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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

SETEMBRO 2021 n.º 154 8.682 EXEMPLARES

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ARTES VISUAIS

Pode a arte ajudar os migrantes e refugiados?

Imagens de trabalhos produzidos por Banksy FOTOS D.R.

SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

E

m artigos anteriores tivemos oportunidade de abordar alguns problemas da atualidade, como seja a “crise climática”, procurando destacar o contributo que as artes visuais podem ter na sensibilização e responsabilização das pessoas. Desta vez gostaríamos de chamar a atenção para aquele que é um dos principais problemas humanitários no presente, a crise dos migrantes e dos refugiados. Os refugiados são pessoas que procuram fugir de zonas de guerra ou de perseguições, enquanto os migrantes procuram mudar de país

ou de região em busca de melhores condições de vida. Numa época em que cada vez mais se apela à paz, são ainda muitos os conflitos armados em várias zonas do planeta. A situação mais recente que preocupa todos os que defendem a paz e a defesa dos direitos humanos está a ocorrer no Afeganistão, com a tomada do poder pelos Talibã. Mas, para além da gravidade das situações relativas aos refugiados, também merece uma atenção especial a situação dos migrantes em várias zonas do planeta, nomeadamente aqueles que procuram deslocar-se do México para os EUA e aqueles que procuram ir do continente africano para a Europa. Segundo a Organização Internacional para Migrações (OIM), desde 2014 já perderam a vida mais de 20 mil migrantes a tentar atravessar o Mediterrâneo.

Num mundo cada vez mais global, em que a internet nos permite circular e estarmos virtualmente em todo o lado, sem fronteiras, é paradoxal que sejam cada vez mais restritivas as fronteiras físicas entre países e territórios. Simultaneamente, num mundo em que cada vez mais se fala da importância dos direitos humanos, da tolerância e da inclusão, são inúmeras as situações de racismo e xenofobia que limitam as possibilidades de interação social e de mobilidade física entre países e entre espaços territoriais. Desde há muito tempo que a arte tem servido como instrumento de crítica e para serem tomadas posições políticas em relação a diversos assuntos, nomeadamente questões sociais. Aliás, os artistas envolvem-se frequentemente em movimentos sociais, expressando a grande relação das artes com o ativismo político e social. As obras produzidas procuram ter impacto comunicacional, chamando a atenção para aspetos da realidade que deveriam ser corrigidos ou resolvidos. Um dos artistas que se tem destacado neste âmbito, no que diz respeito às questões ligadas às migrações, é JR, o qual procura expressar ideias com grande valor simbólico e afetivo, tendo uma das suas últimas produções artísticas, em 2017, consistido na colocação da uma fotografia com cerca de 20 metros de altura de um bebé que olhava por cima do muro que divide os EUA e o México. A emigração tem sido um dos temas trabalhados por JR, pois já em 2007 havia colocado fotos de grande dimensão de palestinos e israelitas cara a cara em oito cidades do mundo, procurando chamar a atenção para o muro que os separa. Também o artista mexicano-estadounidense Ricardo Hernández utiliza a arte como forma de ativismo para criar consciência sobre a situação difícil dos emigrantes centro-americanos e mexicanos com a política de imigração dos EUA. No mesmo sentido, Banksy, um dos artistas mais conceituados na atualidade e ao qual já fizemos referências

em diversos artigos anteriores, tem realizado diversos trabalhos sobre os problemas das migrações e dos refugiados, sobretudo do Médio Oriente e do Norte de África. Por exemplo, em 2015, pintou um retrato de Steve Jobs, cofundador da Apple e filho de um imigrante sírio nos EUA, numa parede de um campo de refugiados em Calais (norte da França). Esta obra foi intitulada como “The Son of a Migrant from Syria” (“O filho de um migrante da Síria”), mostrando Jobs a carregar uma mochila e um computador da Apple. Desta forma, na "Selva" de Calais, Banksy relembra que a Apple só existe porque os EUA um dia deixaram entrar um rapaz oriundo de Homs (Síria), o pai de Steve Jobs. Em 2018, Banksy realizou uma dezena de murais nas ruas de Paris sobre a crise migratória e, em 2019, na Bienal de Veneza, apresentou uma obra de um menino vestindo um colete salva-vidas e segurando uma chama de socorro rosa. Mais recentemente, em 2020, Banksy doou um tríptico intitulado “Mediterranean sea view” (“Vistas para o Mar Mediterrâneo”) para arrecadar fundos para a reforma e compra de equipamentos de reabilitação infantil para um Hospital da Cisjordânia. A obra mostra coletes salva-vidas laranja perdidos entre o mar e uma costa rochosa, foi leiloada pela Sotheby’s por cerca de 3 milhões de euros. Esta obra faz alusão aos milhares de vidas perdidas no mar mediterrâneo e representa uma crítica face à resposta hesitante da Europa em relação à crise migratória. Terminamos fazendo referência a uma exposição que está a decorrer, até 31 de outubro, na Ilha de Menorca, em pleno Mar Mediterrâneo, intitulada “Masses and Movements” (“Movimentos de Massas”), da autoria do artista de Los Angeles Mark Bradford, que, através da linguagem visual evoca múltiplas narrativas de um mundo em movimento, com destaque para a crise dos migrantes. Além disso, Bradford está a procurar levar educação artística às comunidades de imigrantes, como

Ficha técnica Direção: GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Fios De História: Ramiro Santos • Letras e Literatura: Paulo Serra • Mas afinal o que é isso da cultura? Paulo Larcher e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB: https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve

forma de os ajudar na sua inclusão e integração social. Estes exemplos mostram que a imagem visual pode sintetizar questões psicossociais complexas e atuais e pode ajudar a promover a necessária reflexão sobre as mesmas. A arte visual é uma forma de comunicação, permitindo sintetizar em imagens, as emoções e os sentimentos sociais já existentes em relação a certas questões polémicas. A propósito das questões climáticas, havíamos referido num artigo anterior que “as novas gerações vão viver no mundo que ajudarmos a criar e, por muitas diferenças que haja entre as pessoas, as culturas e os países, o planeta terra é a Casa de todos nós, sendo fundamental ajudar a preservá-lo!”. Acrescentaria agora que isto é importante em relação ao ambiente, à natureza e à preservação das espécies, mas devemos começar desde logo pela espécie humana, pelas atitudes em relação aos outros que, como nós, querem tentar ser felizes neste planeta em que vivemos!


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MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA? FOTOS MESTRE HOMEM CARDOSO D.R.

Mas afinal o que é isso da cultura?

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PAULO LARCHER Jurista e escritor

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a crónica anterior, descrevi como, após um pausado jantar, eu e o Mestre António Homem Cardoso tínhamos discutido o conceito de cultura, enquanto caminhávamos por Tavira à beira do rio Gilão (ou seria o Séqua?), ao ritmo sincopado imposto pelo Mestre ao registar o que ia vendo. Suspeito que a ausência de conclusões sobre esse tema extravagante, terá sido não uma consequência desse pára-arranca, mas efeito da lassidão que acompanhou a digestão do nosso jantar e também, confesso-o, da minha falta de jeito. Voltando ao tema quero dizer que, cá para mim, o António é um romântico que ficaria muito bem num grupinho com o Byron, o Hugo, o Garrett e outros do mesmo quilate. No grupo dos que pensam a cultura como um espírito partilhado por todo um povo, presente em todas as suas manifestações, desde a língua às crenças, passando pela arte e pela própria história. Não penso assim. Separar a cultura da educação é perigoso, assim como o é separá-la da arte. A cultura não pode ser vista como uma crença cega das tribos. A cultura exige acção, impõe uma disposição volitiva. “Então e as igrejas, e os palácios, e as pontes, e todos os adornos que neles cabem, e os livros, e os cânticos não são cultura, mesmo após as tribos, como tu dizes, terem desaparecido?” - perguntava-me o António referindo-se ao passeio nocturno que nos levou da ponte “romana” até aos muros do antigo castelo, passando pelos adros das igrejas e capelas e

ermidas que pontuam as antigas vias de Tavira - a de Santa Maria, a do Carmo, a do Espírito Santo, a do D. Sebastião e ainda outras. “São, de um certo modo são, mas só de um certo modo” - dizia eu - “A existência de monumentos na posse de um povo não representa obrigatoriamente cultura”. “Homessa!”(1) - insurgia-se o António - “Então todos estes edifícios excelentes que temos visto desde lá de baixo do rio não serão cultura? Uma cultura que, para mais, pertence aos tavirenses por direito próprio e depois aos portugueses em geral”. “Deixa-me fazer-te uma pergunta” - retruquei - “Lembras-te das estátuas destruídas pelo Daesh na Síria e no Iraque? Achas que antes de serem destruídas eram cultura daquele povo mas depois perderam esse estatuto? Não. Em momento nenhum pertenceram ao património cultural desse povo, porque a cultura é um feixe de relações recíprocas entre o homem e o meio. Do meu ponto de vista, o ódio pela cultura não pode ser ele próprio cultura. Pelo contrário, a ligação amorosa de uma comunidade a um determinado património transforma-o em cultura.” O António mirou-me com aqueles olhos sábios que parecem radiografar-nos a alma e lançou-me o seguinte repto: “Estás-me a baralhar com tanta erudição. Ora vamos lá ver se me consegues dizer qual destas duas é a mais cultural” - e mostrou-me no visor da sua máquina fotográfica duas imagens nocturnas do rio Gilão (ou Séqua?) e duas pontes: uma, a ponte dita romana e a outra a ponte moderna, ex-militar. Em qual delas se sentia mais a cultura, perguntava o António.

Pergunta absurda. Via-se mesmo que não entendera nada do que lhe dissera sobre a cultura estar ligada ao desenvolvimento do indivíduo integrado numa comunidade. Duas pontes. Com franqueza! Porém, o António não era homem para tiradas gratuitas. Forcei-me então a olhar as imagens e deixar-me envolver pela nostalgia das luzes douradas que cintilavam no cenário escuro das águas e das pedras limosas descobertas pela maré vazante; depois de alguns minutos, algo mais parecido com uma questão do que com uma conclusão começou a tomar forma no meu espírito: O que o António formulara, talvez involuntariamente, era uma questão filosófica sobre a natureza da vida e da existência, atendendo a que “natureza”(2) de uma coisa é o conjunto das principais características dessa coisa. Nesta perspectiva, a filosofia é o estudo do significado, natureza e essência da vida ou, como resumiu Martin Heidegger, a busca pelo homem do significado da realidade. Vamos então filosofar: Qual o significado das duas pontes que o António me mostrara? Qual delas me presenteava com superiores conjuntos semióticos? Se conseguisse responder a essa pergunta poderia simultaneamente encontrar a resposta à pergunta inicial: “…Qual destas duas é a mais cultural?” Posso desde já informar o estimado leitor - poupando-o deste modo a uma leitura frustrante - que não consegui encontrar a chave deste enigma, mas que convido os eventuais interessados em saber como é que descalcei esta bota, a ficarem comigo mais umas linhas. A ponte dita romana tem uma história que começa no dealbar

do primeiro milénio, passa por suicídios lendários, demolições e reconstruções, desabamentos parciais pela força da corrente do rio (deveria dizer “dos rios”?), pedonalização e, finalmente, entronização como ex-libris turístico de Tavira. Os passeantes contemplam as águas e as suas margens, clicam nas câmaras dos seus telemóveis; os enamorados sentados nos bancos de pedra sussurram coisas uns aos outros; cãezitos fazem xixi nas vetustas pedras. Todos circulam devagarinho. Não é uma ponte dada a pressas. É, verdadeiramente, uma “slow” ponte, em consonância aliás com a saborosa lentidão reclamada pelos tavirenses para a sua cidade. Ok, isto são coisas que sei, ou melhor, que li, mas que senti eu ao olhar a imagem da ponte romana? Senti paz; fez-me lembrar, em menor escala, a Ponte Carlos em Praga. As luzes a reflectirem-se verticalmente nas águas a gerar um movimento espiritualizado de ascensão. A luz dos candeeiros a tentar imitar a luz polida da Lua cheia. Custa-me dizer que tudo isto não é cultura, sobretudo se assumir que a bela ponte é amada, juntamente com toda a sua história, pelos tavirenses e pelos seus visitantes. Para além dos arcos da ponte, porém, há uma luminosidade estranha, muito branca, que estraga de algum modo esse efeito pacificador. Apercebo-me de súbito que essa luz provém da ponte nova, exactamente a segunda fotografia do António. O maroto fez isto de propósito! Para entender a ponte romana - segundo ele - é pois necessário compreender a ponte nova e vice-versa. As duas pontes geram pois significados recíprocos. Vejamos então a ponte nova de

mais perto, a partir de umas coisitas rebuscadas na rede: esta veio substituir a ponte militar (provisória) construída após as inundações de 1989 e que se tinha degradado imenso nos seus quase trinta anos de serviço; pode dizer-se que está em plena infância, mas Ui!, que gestação difícil e demorada ela teve, coitadinha. A sociedade civil (sim, existe…) levantou-se em peso contra a decisão camarária, o projecto, os custos, as características, a duvidosa utilidade da dita ponte: o Armagedon! Parece ter sido mais repelido que desejado, este demónio de betão, “uma lança no coração da cidade”, conforme se dizia. Esta rebelião civil, por estranho que pareça, é cultura, porque qualquer manifestação cívica o é, independentemente do seu sucesso. Mas vejamos agora o que sinto ao olhar a fotografia: sinto a luz e o seu reflexo, um todo metálico, vibrante, simétrico; claramente uma união, uma passagem, algo que não é para estar mas para ultrapassar. Rapidez. Simplicidade. Modernidade. É uma resposta à tradição e também ela, um dia, será uma componente cultural, uma nova célula do cimento que une gerações. Qual das duas é a mais “cultural”? Lastimo, amigo António, mas isso eu não sei. (1) “Será que a palavra “homessa”, que já ninguém usa, poderá ter atingido pela sua raridade um estatuto de património e ipso facto de “cultura”? (2) Segundo o Dicionário de Filosofia da Universidade de Cambridge.

*O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

O céu e o inferno MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

“A diferença entre o céu e o inferno é de um centímetro”. Gonçalo M. Tavares (Inspirado em Walter Benjamin)

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maginemos alguém que resolve convidar familiares e amigos para um petisco. Levanta-se cedo e vai ao mercado escolher as melhores e mais frescas iguarias. Sabe cozinhar bem e esmera-se para elaborar um suculento manjar. Porém, a certa altura, como se de um curto-circuito se tratasse, o entusiasmo dá lugar a uma sensação nefasta. Seja apenas dentro da sua cabeça ou falando alto, há uma ladainha que se impõe a tudo o que estava a fazer anteriormente com alegria. A ladainha é mais ou menos assim: “sou sempre eu a fazer tudo, ninguém mais faz nada, cai sempre o trabalho todo em cima de mim, ninguém me ajuda, sou pau para toda a obra, sobra sempre para o mesmo, etc., etc., etc...” Esta pessoa tem dificuldade em delegar funções e em dar instruções precisas. Como resultado acaba por considerar as ajudas que se lhe tentam prestar inservíveis, decidindo ser melhor fazer tudo sozinho. De modo que os possíveis ajudantes são demitidos com maus modos. Claro que logo a seguir voltará a mesma ou nova ladainha a queixar-se de que ninguém faz nada e só o próprio é que trabalha. Este tipo de pessoa tende também a repreender veementemente quando alguém faz alguma coisa errada. Por exemplo, alguém parte um copo e imediatamente pede desculpa. Essa pessoa diz um “não tem importância” com tal tom de voz que quem partiu o copo fica com a sensação de que cometeu um crime da maior importância e que merecia ser condenado ao inferno por isso. Como se não bastasse, o assunto tende a não ficar por aí. Seguem-se uma série de interpelações do género: “Mas porque é que fizeste isso? Não prestas atenção a nada! Já sabias que o copo estava ali. Andas sempre com a cabeça na lua! É sempre a mesma coisa, etc., etc., etc...” Claro que o grande criminoso que partiu o copo se sente muito mal, só quer desaparecer dali para fora. Então, dando-se conta disso, o excelente cozinheiro e anfitrião muda de registo sem nunca parar com as interpelações: “então o que é que foi? Mas porque é que estás assim? Também não se te pode dizer nada! Mas que flor de estufa! etc, etc., etc...” De modo que o incauto ajudante errou triplamente: primeiro porque partiu o copo, segundo porque ficou mal disposto com as

O Jardim das Delícias Terrenas de Hieronymus Bosh

repreensões, e terceiro porque não ficou de bom humor imediatamente assim que o excelente anfitrião o entendeu. Claro que a esta altura já toda a gente perdeu a fome! As magníficas iguarias até parece que ficaram envenenadas. E o almoço que poderia ser uma celebração e uma grande alegria é, afinal, um tempo doloroso em que as pessoas ficam juntas por obrigação. Comem sem apetite e até o melhor vinho sabe a fel. O excelente cozinheiro que fez tudo, que se levantou tão cedo para propiciar um magnífico almoço de família, não percebe porque é que, quando no fim de semana seguinte faz novo convite, todos arranjam uma desculpa airosa para declinar a oferta. Soa familiar? Existe também aquele progenitor a quem o filho entusiasmado quer contar uma peripécia que se passou lá na escola. No entanto, embora a criança mal tenha acabado de falar, foi como se não tivesse aberto a boca ou como se o pai fosse surdo. De supetão, atropela a fala da criança desviando o assunto para outra coisa qualquer, seja o futebol, a paisagem que se avista da janela, ou a mensagem que acabou de entrar no telemóvel e que tem prioridade sobre tudo o resto. A criança é assim deixada ao abandono, perplexa e inexistente. Estes episódios vão-se repetindo ao longo da vida, e um dia este excelente progenitor, queixa-se aos colegas de café que os jovens são uns egoístas, que deu tudo aos filhos e que estes não conversam consigo,

FOTO D.R.

que não sabe nada da vida deles, e que tratam a casa como se fosse uma pensão: só aparecem para comer e dormir. E praticamente só lhe dirigem a palavra quando precisam de dinheiro ou se meteram em sarilhos para os quais precisam de ajuda para resolver. Soa familiar? A frase em epígrafe — A diferença entre o céu e o inferno é de um centímetro — aponta para o estranho facto de que o que dá origem a estas duas realidades opostas não ser algo grandioso. Não se trata de uma diferença de natureza, trata-se apenas de uma diferença de grau. Aliás, trata-se de um pequeno grau, apenas um centímetro, um desvio. Só que é um desvio certeiro para a infelicidade. O excelente anfitrião perdeu o sentido daquilo que era mais importante: julgou que o principal para uma boa refeição seriam os ingredientes, quando afinal, o mais importante, aquilo que a todo o custo se devia gerar e procurar manter seria o bom ambiente, a alegria, a felicidade de estarem juntos. Já o atarefado progenitor desvalorizou a pequena peripécia que a criança queria contar. Era algo sem importância e que não merecia a sua atenção. Não se apercebeu que o relevante não era aquilo que a criança tinha para contar, mas antes o facto de ela querer partilhar algo da sua vida com o pai. Só que o pai não ouviu, ou obviou, não quis saber. E esta surdez selectiva criou um afastamento que só aumentou com

os anos. E ao adolescente ou jovem adulto já nem lhe passa pela cabeça partilhar o que quer que seja com o seu progenitor. No filme Sete Anos no Tibete de Jean-Jacques Annaud, Heinrich Harrer (Brad Pitt) e Peter Aufschnaiter (David Thewlis) estão ambos apaixonados pela bela Pema Lhaki (Lhakpa Tsamchoe). A jovem mulher é costureira e os seus admiradores não param de recorrer aos seus serviços para que lhes encurte a bainha das calças, sendo esta a única desculpa que encontram para a ir ver. É inverno e os lagos estão gelados. A certa altura, para impressionar Pema, Heinrich tem a ideia de patinar no gelo, actividade pouco conhecida naquelas paragens. Improvisa patins para os três, e faz um enorme brilharete deslizando pela superfície gelada a grande velocidade, fazendo piruetas e gritando “olhem para mim!” Mas a pobre Pema, que nunca tinha patinado, mal o vê. Está totalmente concentrada a tentar equilibrar-se sobre aquelas duas lâminas escorregadias. Peter vem imediatamente em seu auxílio, ampara-a para que não caia, e pouco a pouco, com a sua ajuda, Pema vai descobrindo o prazer de patinar. Com quem é que o leitor acha que ela casou? Temos neste caso duas estratégias diferentes para conquistar a amada: a de Heinrich que consiste em tentar que a atenção da amada recaia sobre ele, uma estratégia de exibição que poderíamos denominar de estraté-

gia-pavão; e a de Peter que consiste em reparar ele próprio na amada, prestar atenção às suas necessidades, ser o seu amparo, podíamos denominá-la estratégia do cuidar. Embora o objecto do amor fosse o mesmo o modo de lidar com ele foi distinto, e esse pequeno centímetro de diferença ditou a escolha da pretendida. As declarações amorosas incidem normalmente sobre as qualidades do objecto amado: porque tu és tal, tal, tal e tal, eu amo-te. Talvez devessem incluir uma segunda parte em que o amador perguntasse: diz-me o que pretendes, diz-me o que te faz falta, diz-me o que posso fazer por ti. Será possível corrigir aquele desvio de 1cm, reparar a rota? Talvez a resposta esteja contida na própria palavra — re-parar — voltar a parar, isto é, prestar atenção. Gonçalo M. Tavares no seu livro Atlas do Corpo e da Imaginação diz-nos o seguinte: “Note-se que o termo reparar pode significar voltar a colocar em funcionamento ou dar atenção: voltar a parar à frente de algo: reparar, parar duas vezes, parar muito tempo à frente de algo. Aquilo a que se dá atenção volta a funcionar, eis uma definição prática, operacional, quase mecânica, do amor”. Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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FIOS DE HISTÓRIA

A CONQUISTA DE SILVES

Crónica do Cruzado Anónimo

S

e fosse hoje, abriria os telejonais como enviado especial em direto no teatro das operações militares que decorriam a sul do território ocupado pelos muçulmanos. O cronista, que seguia a bordo da terceira cruzada com destino à Terra Santa, foi o repórter de guerra que relatou na primeira pessoa, num estilo direto e em liguagem simples, tudo o que viu naquele ano de 1189. Num manuscrito de oito páginas, que ficou conhecido como “Crónica do Cruzado Anónimo”, começa ele por evocar os gritos de morte que ainda pairavam no ar, da carnificina bárbara perpetrada 15 dias antes por uma outra expedição de cruzados sobre a fortaleza árabe de Alvor. Uma investida em que foram passados a fio de espada, como ele afirma, “perto de 5.600 pessoas, não perdoando a sexo nem idade”. Não escapou ninguém. Porém, para D. Sancho I, de Portugal que não terá participado na chacina -, esta investida não representara senão um primeiro ensaio para a operação seguinte com outro alcance e envergadura: o assalto e tomada da opulenta, populosa, culta e rica cidade de Silves. A grande e afamada capital do reino do Algarve Andaluz, considerada a Bagdad do ocidente. Segundo o cronista - porventura com algum exagero -, mais rica e populosa do que Lisboa e outras cidades como Santarém ou Coimbra. A nova frota de 36 navios e 3.500 homens de guerra, composta por soldados ingleses, teutónicos e flamengos, levando como objectivo a libertação da Terra Santa de Jerusalém, na posse de Saladino, sultão do Egipto, tinha acabado de fazer uma paragem de reabastecimento em Lisboa. E foi nesta paragem na capital do reino, que D. Sancho aliciou e convenceu essa força mercenária a fazer um desvio e ajudá-lo a tomar de assalto a opulenta praça de Silves. Num desses navios seguia aquele soldado mais dado às armas da escrita do que às armas da guerra. Um cronista com a missão de contar os pormenores da expedição militar a Jerusalém, a qual, por interesses e contrapartidas de oportunidade - mais económicas do que religiosas -, se via a caminho de uma missão de auxílio ao rei português na sua política de expansão territorial para sul. Conta ele que D. Sancho fez seguir por terra uma força militar bem equipada

com material de guerra e de assalto, com o objectivo estratégico de dar apoio aos cruzados por um dos flancos de combate. O contigente lusitano acampou a cerca de quatro milhas da cidade, enquanto a frota, a que se juntaram muitas naus portuguesas e uma outra da Galiza, zarpando de Lisboa, navegou sem grandes pressas até ao estuário do Arade, defronte a Portimão. Antes, os cruzados haviam passado junto à localidade de Alvor onde puderam constatar a devastação e os estragos da matança sangrenta ocorrida duas semanas atrás. Navegando já rio acima a partir de Portimão, avistaram Silves cujos

O cronista põe ainda em evidência o castelo e uma grande torre no vale, de onde seguia uma estrada coberta para a cidade, “de sorte que não se podia ver o que se passava de fora dos muros da dita almedina”. No dia 22 de julho, uma vez estudado o sistema defensivo da fortaleza, iniciaram-se os combates. No calendário cristão, era dia de Sta Maria Madalena. Nos primeiros ataques, os cruzados tentam passar as barreiras com múltiplas tentativas de escaladas, ao mesmo tempo que iam escavando minas e túneis para enfraquecer e romper as muralhas. Respondem os árabes com o arremesso de pedras e

rei de Portugal, o que levantou a moral das tropas quando já havia sinais de impotência em face da resistência oferecida pelos árabes. Com efeito, o desânimo e a hesitação começaram a apoderar-se dos cruzados com pressa de arrumar a questão para rumarem ao seu destino. Até o monarca português, perante a tenacidade dos mouros, admitiu desistir e levantar o cerco. Mas a 14 de agosto surgiu o primeiro sinal de fraqueza do lado de dentro: um muçulmano lançou-se do muro da fortaleza abaixo, a seguir a outros. Eram sinais de rendição. Sedento de água, informou que “na cidade morria

de o alcaide chamado Albainus, só a cavalo, acompanhado de todos os demais a pé”. Mas contra tudo o que havia sido acordado, o comportamento dos cristãos não escapou à censura do rei e do repórter. “A nossa gente miúda, porém, descarada e vergonhosamente, começou a roubá-los com quebra de convenção e a maltratá-los com pancadas do que ele o Rei se agastou muito”, sublinhou o cronista adiantado que, confrontado com esta situação de excessos, D. Sancho tomou uma decisão radical: “Entregamos-lhe (ao rei de Portugal) a cidade, ainda recheada de riquezas, para que fizesse a partilha connos-

líquidos a ferver, rechaçando-os. Vive-se uma situação de parada e resposta que dura mais de uma semana, sucedendo-se combates encarniçados com inúmeras baixas de ambos os lados, até surgir um acontecimento que perturbou os cruzados. Em represália à morte de um mouro na porta da mesquita, os muçulmanos que haviam capturado três cristãos, penduraram-nos pelos pés no cimo da muralha para que servissem de exemplo. Ali, impiedosa e lentamente, foram mortos a golpes de lança e espada, para gáudio da população sitiada. Relata o repórter, que no dia 6 de agosto os cristãos resolveram experimentar uma nova arma, na tentativa desesperada de derrubar as muralhas defensivas da cidade: “No domingo, dia de S. Felicíssimo e Agapito, nós os Teutónicos, logo de madrugada assentámos uma máquina, a que chamamos ouriço, contra o muro da coiraça, entre duas torres, com intento de lhe abrir brecha”. A utilização desta máquina não deu, porém, os resultados esperados, dado que os muçulmanos deitaram fogo à mesma, inutilizando-a. Vieram, entretanto, outras máquinas de guerra do

muita gente à sede; porque nos poços havia pouca água e essa era salobra em demasia”. Mas foi preciso atravessar todo o mês de agosto, até chegar o dia esperado: a 1 de setembro, dia de Santo Egídio, os mouros anunciaram, finalmente, que estavam dispostos a render-se, pondo-se “a bradar do muro pela gente d’El Rei para tratar de entregar a cidade”. A partir de então, começaram as negociações – que terão sido muito mais difíceis entre D. Sancho e os cruzados do que com os árabes. Primeiramente, o monarca português procurou que os cruzados deixassem sair os mouros com os seus haveres, proposta que os primeiros recusaram. Prometeu dez mil cruzados de ouro que depois elevou para o dobro que foram também rejeitados. Perante a dificuldade de um acordo, ficou acertado que os mouros sairiam da fortaleza ”somente com o que tivessem vestido, ficando El Rei com a cidade e nós com o despojo que tivesse dentro”. Acertadas as condições, a rendição consumou-se efetivamente no dia 3 de setembro. A resistência durara 43 dias. Escreveu o cronista: “No terceiro dia das nonas de setembro saiu da cida-

co, como cumpria à majestade real, havendo respeito assim ao trabalho, como ao dano que havíamos sofrido. El Rei, porém, tomando tudo para si, nada nos deixou, e por isso os cruzados, tratados tão injuriosamente se separaram dele menos amigos do que dantes estavam”- refere o escriba. Obtida a conquista de tão importante praça, mandou D. Sancho purificar a mesquita maior e convertê-la em Igreja cristã. E, a 7 de setembro, véspera da Natividade de Nossa Senhora, logo foi designado D. Nicolau, bispo de Silves. Após a rendição, o alcaide árabe, Albainus - filho de Ibn Wazir, de Évora, antigo companheiro de Ibn Qasi -, é poupado e segue para o exílio em Sevilha. Regressaria dois anos volvidos, integrado nas tropas de Yacube Almançor. Silves cairia de novo na posse dos mouros e a Sé cristã voltou a ser mesquita árabe outra vez. A capital do Garb al-Andaluz só tornaria definitivamente à coroa portuguesa em 1243.

FOTO D.R.

RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com

campos em redor encontraram desertos. Os seus habitantes, apercebendo-se da aproximação rápida da esquadra inimiga e tendo presentes os acontecimentos de Alvor, fugiram procurando refúgio e proteção dentro das muralhas que circundavam a cidade. Despovoados, os arredores transformaram-se num campo aberto sem resistência à pilhagem e ao saque para esses homens que falavam em nome de Deus e levavam a cruz de Cristo ao peito. Silves era por essa época, uma praça com um forte dispositivo de defesa, cercada por altas torres, fossos e quatro níveis de fortificações, dentro das quais se encontrava a almedina e uma cidade de casas apalaçadas. Os acessos eram quase impenetráveis e as entradas pelas portas feitas em ângulos apertados e tortuosos, o que dificultava ainda mais a passagem. Era uma fortaleza quase inexpugnável, como a descreve o cronista: “uma vasta cidade estendida no vale” e outra parte “pelo monte e chamava-se almedina”. Correm por ali – refere ele – “dois rios (Arade e Odelouca), havendo sobre o canal quatro torres, pelas quais passava o abastecimento de água ao burgo”.

Fontes: “Cidade de Silves num itinerário naval do século XII por um cruzado anónimo”, M. Cadafaz de Matos – C.M.Silves; outras.


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ESPAÇO AGECAL FOTO D.R.

MUSEUS DO ALGARVE:

O Museu de São Brás de Alportel em risco? JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

“Que se faça da cultura, da educação e da ciência os grandes pontos de apoio em que o nosso desenvolvimento deve assentar". Jorge Sampaio, ex-Presidente da República (1939-2021)

O

s museus são estruturas fundamentais numa correcta política cultural, nacional, regional ou municipal, que promova o desenvolvimento humano e a participação dos cidadãos, a preservação, valorização e educação para o património e dinamize as artes, tal como o são as bibliotecas, arquivos, teatros, centros de ciência, … Porquê? Porque quando os museus funcionam de acordo com as normas da Lei Quadro dos Mu-

seus Portugueses, assegurando as funções obrigatórias inerentes à designação museu, quando têm apoios necessários e suficientes das tutelas, se são respeitados e acarinhados, os resultados aparecem nos planos educativo e económico, na participação e autoestima social. A autonomia de gestão das instituições culturais, obviamente escrutinada e avaliada nos seus resultados, é uma necessidade. Como se pode esperar meses ou anos para comprar material corrente, ter os edifícios e espólios em risco ou ter de fechar salas ao público por falta de pessoal? No sécu lo X I X , Seba st ião Estácio da Veiga, pioneiro da arqueologia portuguesa e autor da “Carta Arqueológica do Algarve” encomendada pelo Rei, antecipou a necessidade de museologia científica e social tentando criar um Museu Regional do Algarve que pudesse mostrar e valorizar a riqueza da sua História e Património. O espólio resultante das escavações realizadas

no Algarve permanece há 130 anos nas reservas do Museu Nacional de Arqueologia. A História do Algarve é insuficientemente conhecida, apesar dos esforços de algumas Instituições, do contributo de investigadores como Viegas Guerreiro, Romero de Magalhães, António Rosa Mendes, Horta Correia, Luís Filipe Oliveira e outros, de vários gestores culturais e jovens investigadores, das acções da Rede de Museus do Algarve. A exposição “Algarve, do Reino à Região” foi um bom exemplo da cooperação e partilha entre museus. Se não bastassem os problemas da Região, carências em infraestruturas culturais e de unidades de investigação, de produção e criação artísticas, surge-nos a informação da tentativa de fragilização ou mesmo de extinção do Museu do Traje de São Brás de Alportel, tutelado pela Santa Casa da Misericórdia de SBA, em funcionamento há três décadas. A leitura das notícias sugere razões

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pouco claras e demasiado frágeis nos seus fundamentos. O Algarve não necessita de destruição de museus, mas de criar novos e melhorar os existentes. Avessos a fulanizações em questões de política cultural, desde sempre pugnamos por linhas de defesa e de promoção da riquíssima cultura portuguesa, do património construído, material e imaterial, por medidas de valorização do idioma comum a 300 milhões de cidadãos no mundo. Desejamos a abertura de licenciaturas em Gestão Cultural, como já acontece no País vizinho, para que os recursos culturais sejam geridos por quadros formados, com interdisciplinaridade, participação de instituições, comunidades e especialistas, programas educativos para o desenvolvimento humano, (re)conhecimento da História e Patrimónios diversos. Emanuel Sancho, director do Museu de São Brás, deu a melhor sequência ao trabalho dos padres José e Afonso Cunha Duarte, que se dedicaram

à etnografia algarvia, assegurou e dinamizou um equipamento de referência no interior algarvio. O Museu de São Brás realizou investigação, conservação de espólios, exposições, edições e actividades sociais diversas. Emanuel Sancho criou com outros colegas a Rede de Museus do Algarve, foi um dos dezoito profissionais de cultura do Algarve fundadores da AGECAL. É actualmente Vice-Presidente do MINOM Portugal – Movimento Internacional para Uma Nova Museologia. O Museu de São Brás, o seu director e colaboradores têm trabalho dedicado, continuado e de qualidade, realizado com os meios disponíveis, merecem reconhecimento e apoio de todos. A cultura é indissociável da defesa e aprofundamento da democracia, essencial ao desenvolvimento do País. * O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


CULTURA.SUL

Postal, 24 de setembro de 2021

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LETRAS & LEITURAS

Volta ao Mundo em Vinte Dias e Meio, de Julieta Monginho PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

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olta ao Mundo em Vinte Dias e Meio, de Julieta Monginho, publicado pela Porto Editora, assinala os 25 anos de carreira literária de Julieta Monginho e, depois dos premiados A Terceira Mãe e Um Muro no Meio do Caminho, confirma a voz original da autora. Numa contagem decrescente, ao longo de 20 dias, uma criança empreende um plano de fuga e pede ao leitor, que considera o irmão que nunca teve, que não o denuncie. O dia Zero, em que se encerra a narrativa e se anuncia um mundo novo, deixa-nos em suspenso, e talvez por não ficar completamente encerrado se explique os «Vinte Dias e Meio» do título. Um romance que se lê de uma assentada, ainda que no início nos sintamos a tactear entre a pluralidade de histórias e a novidade da linguagem da autora. No tempo medido por Leo, relatado na primeira pessoa, conflui ainda o tempo de Mário, o pai, narrado na 3.ª pessoa

e de forma alternada. Com direito a menos dias, a narrativa é ainda pontuada, ocasionalmente, pela voz de Marten, o companheiro de Mário. A mãe, curiosamente, não tem direito a voz nesta história de uma família disfuncional e pouco convencional, ainda que Leo nos fale repetidamente dela, e de como a sua natureza se divide em duas: a mãe e a eãm. «A mãe são duas, uma de trás para a frente, outra da frente para trás. Uma enche o armário com cereais de chocolate, a outra esquece-se da hora das refeições e fica a olhar pela janela até adormecer» (p. 9). A frase inaugural do romance confirma a importância simbólica da inversão neste título explica-nos na verdade o motivo do desejo de fuga de Leo, cansado de adultos ambíguos, insatisfeitos, perdidos na vida e no desejo: «Uma família granizo, pedras a bater umas contra as outras» (p. 25). Mário, que ganha no romance uma centralidade talvez maior que a de Leo, e talvez daí a perspetivação da personagem numa terceira pessoa, mais objectiva, tem também a sua vida do avesso, como iremos percebendo ao longo deste romance construído ao jeito de um puzzle ou Lego como aqueles

Julieta Monginho é escritora e magistrada do Ministério Público FOTO D.R.

com que Leo se entretinha, antes de passar a um puzzle mais sofisticado… Mário era, até há 3 dias, segurança no museu Rijksmuseum de Amsterdão, que Leo visita desde bebé e onde gosta de se perder. Mas Mário perdeu o trabalho no dia em que perdeu a cabeça e pontapeou uma vítima por um delito (imaginado?) numa das salas do museu, «episódio» que adquire segundo ele «proporções

desmesuradas» nas redes sociais e na televisão (p. 20) e o reenvia até à aldeia alentejana onde reencontra a mãe demente e procura lidar com as recordações de um pai abusador que o humilhava publicamente por ser homossexual. Mário parece ser portanto uma criança como Leo em ponto grande, fisicamente incapaz de lidar com a sua própria força, e um turbilhão de emoções por resolver. Estabelece-se, paradoxalmente, uma relação curiosa entre o desconforto de Leo na sua pele, na sua vida, da mesma forma que Mário continua a braços com o passado; e enquanto Leo quer fugir de casa, Mário regressa a casa para poder resolver-se. Logo nas primeiras páginas do romance, a autora consegue a proeza de nos fazer ver o mundo pelos olhos de uma criança, fazendo deste livro uma moldura para o mundo, e o leitor compactua com o plano de Leo (que nos pede conselhos recorrentemente) ao mesmo tempo que se situa espacial e temporalmente. Mas a actualidade dos tempos é perpassada por uma ambiência fantástica. Ao longo do romance, logo desde as primeiras páginas, personagens de carne e osso são colocadas ao lado

O Reino, de Emmanuel Carrère

Emmanuel Carrère é um dos maiores escritores europeus da atualidade e realizador de cinema FOTO HÉLÈNE BAMBERGER / P.O.L / D.R.

O Reino, de Emmanuel Carrère, publicado pelas Edições Tintada-china, «conta a história dos primórdios do cristianismo e de como dois homens, Paulo de Tarso e Lucas, transformaram uma pequena seita de judeus, liderados pelo seu pregador crucificado», na religião que em três séculos levou à queda do Império Romano e conquistou o mundo. É um livro portentoso, com mais de 400 páginas de letra miudinha, em que nas primeiras 100 páginas

o autor nos faz um relato de como 25 anos antes passou por uma profunda crise existencial, tornando-se um cristão fervoroso, um católico praticante, com quem 3 anos depois deixou de se identificar. Assumindo-se agora como um céptico, agnóstico, «nem suficientemente religioso para ser ateu» (p. 103), o autor revisita o seu arquivo, como é o caso de 18 cadernos em que comentava diariamente passagens do Evangelho de S. João. Na terceira parte do livro, o autor mergulha então no relato das vidas do apóstolo e do evangelista, sempre baseado na leitura da Bíblia, das cartas de S. Paulo, e vários outros textos religiosos. Porque ao autor interessa esmiuçar a verdade, tentando compreender o que está por trás de testemunhos nem sempre claros e de passagens insuficientes, O Reino é uma narrativa extremamente pessoal (o autor despe realmente a alma), e uma reconstrução histórica do Cristianismo nos seus primórdios, tacteando cuidadosamente entre o «certo, provável, possível

e não impossível» (p. 331), demonstrando-nos como a religião não nasceu com a vinda do Messias – na verdade, quase nem deram por ele na altura –, mas com discípulos de carne e osso: Paulo de Tarso é um caso paradigmático, pois não chegou a conhecer o Cristo em vida. A perspectiva crítica de um conhecedor não crente do Evangelho – «passei dois anos da minha vida a comentar João, dois a traduzir Marcos, sete a escrever este livro sobre Lucas» (p. 413) –, dálhe espaço para colocar em causa aspectos de uma religião baseada numa inversão radical de valores (os ricos serão os pobres, os últimos serão os primeiros), cujos princípios se parecem ter perdido com o tempo: «A Igreja já não domina os assuntos; cumpriu obviamente o seu tempo e é difícil dizer se a sua idade avançada, da qual somos testemunhas bastante indiferentes, tende sobretudo para a senilidade agressiva ou para a sabedoria luminosa que lhe desejamos, pelo menos eu desejo, quando pensamos na nossa própria velhice.» (p. 419)

“O Reino” foi vencedor do Prémio Le Monde 2014 e Melhor Livro do Ano na Lire

Esse distanciamento crítico permite ainda ao autor ironizar e gracejar, em alguns momentos – são particularmente recorrentes as comparações entre os primórdios do cristianismo e o socialismo comunista, comparando as brigas de Paulo e Tiago com as de Trotsky e Estaline. Estas ligeiras notas de humor ao longo do texto não descredibilizam de todo a seriedade do tema ou a profundidade da análise. Emmanuel Carrère nasceu em Paris, em 1957. É um dos maiores escritores europeus da actualidade, e realizador de cinema. O Reino foi vencedor do Prémio Le Monde 2014 e Melhor Livro do Ano na Lire.

de figuras de quadros célebres do Rijksmuseum: Mário sonha com Rembrandt e Leo fala mesmo com ele; a Mona Lisa ensinou Leo a sorrir para que o deixem em paz; Leo encontrou o seu cão Puck, saído de um dos quadros, e vê na Leiteira de Vermeer uma amiga, quase uma figura maternal, a verter infindamente o seu leite. Leo (abreviatura de Leonardo…) é uma criança como as outras, tão capaz de se perder nos seus jogos de computador como nos quadros do museu, mas é particularmente nas pinturas dos mestres que encontra o seu mundo imaginário: «Os quadros, as Figuras dentro dos quadros, acolhiam-no como uma grande família, unida para sempre.» (p. 14) Igualmente fantástico é o plano congeminado por Leo, que passa por construir uma máscara com os traços das Figuras: «Uma pele de cera desenhada, por cima da minha pele, uma espécie de tatuagem provisória. Assim vai ser mais fácil fintar as câmaras de vigilância e deixar para trás estes doidos.» (p. 17) Também Marten, na pressão de conseguir escrever o seu romance, conversa com Virginia Woolf. Além da ambiência fantástica, o romance está repleto da importância da arte, nas suas mais variadas formas: da pintura à música, com versos e árias; e as lendas «do tempo em que só havia o antigamente e o depois» (p. 117) ou as «histórias de moleiros e vagabundos e piratas» (p. 164). Por fim, quer o mundo real, quer o mundo das Figuras fica igualmente ameaçado quando, conforme chegamos ao dia 0 de Leo, o tempo retrocede igualmente até a um episódio bíblico, carregado de simbologia: «Passado, presente e futuro que houvesse, viajavam no caudal de um rio sem margens onde a vida se ordenasse.» (p. 134) Mário faz a sua travessia marítima de volta a Amesterdão, agora «uma cidade cortada ao meio pelas águas», «uma cidade da cintura para cima» (p. 129) A última frase do romance confirma a esperança de que a humanidade se reconstrua num novo mundo, onde Leo não volte a pensar em fugir de casa da mãe. Julieta Monginho nasceu em Lisboa, em 1958. É escritora e magistrada do Ministério Público. A Porto Editora também publicou Um Muro no Meio do Caminho (2018), vencedor do Prémio Fernando Namora e Prémio PEN Clube Português em 2019, e reeditou A Terceira Mãe (2008), Grande Prémio de Romance e Novela da APE.


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