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AGOSTO 2021 n.º 153 11.749 EXEMPLARES

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ARTES VISUAIS

Pode um museu tornar as pessoas mais felizes?

Imagens do “The Happiness Museum” (Copenhaga, 2020)

SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

U

ma das medidas finalmente permitidas no processo de desconfinamento progressivo foi a possibilidade de visitar museus. De uma forma geral, a arte pretende estimular emoções, em particular emoções positivas, pelo que os museus podem contribuir para a felicidade das pessoas, pelo menos enquanto os visitam. Mas, para além desta situação geral relativa ao impacto das artes visuais nas emoções humanas, há cerca de um ano foi criado um espaço único no mundo, o “Museu da Felicidade” (“The Happiness Museum”), que

pretende explicitamente contribuir para tornar as pessoas mais felizes. Este Museu foi inaugurado em julho de 2020 em Copenhaga, na Dinamarca, um dos países com um índice de felicidade mais elevado do mundo, de acordo com o Relatório sobre a Felicidade Mundial que a ONU publica todos os anos desde 2012. Este Museu foi criado pelo “Happiness Research Institute” (“Instituto de Investigação da Felicidade”), uma organização que estuda o bem-estar, a felicidade e a qualidade de vida. Este Instituto está particularmente focado em estudar porquê que algumas sociedades são mais felizes do que outras. Meik Wiking, fundador do museu, que também dirige este Instituto, afirma que "no Museu da Felicidade as pessoas têm direito a uma visita guiada que lhes permite conhecer este estado a que todas as pessoas aspiram através de di-

ferentes perspetivas". O Museu mostra aos visitantes a história, a geografia, a política e a ciência da felicidade em oito salas, cada uma proporcionando experiências diferentes, que vão desde simples informações escritas até vídeos, imagens e modelos 3D de um cérebro, por exemplo. Podem ser feitas “terapias de luz” e “experiências de pensamento”. As exposições pretendem ainda levar a refletir sobre questões éticas e emocionais. Os visitantes do museu podem ver exposições e ter experiências interativas que pretendem mostrar como os diferentes países percebem a felicidade. Além de analisar detalhes históricos, estudos, apontamentos sobre a felicidade individual e no mundo, brincadeiras, diversões e materiais audiovisuais, o Museu também se abre à participação dos visitantes, que podem deixar nas paredes as suas ideias sobre a felicidade. Na coleção há ainda objetos doados por pessoas de todo o mundo, que lhes lembram momentos felizes das suas vidas. “É um pequeno museu sobre as grandes coisas da vida (...) A nossa esperança é que os visitantes saiam um pouco mais sábios, um pouco mais felizes e um pouco mais motivados para tornarem o mundo um lugar melhor”, disse Wiking na apresentação do projeto. Wiking lançou também o livro “Hygge”, que significa um estilo de vida em busca do bem-estar, do conforto no dia-a-dia. A este conceito, Wiking juntou outro, a que dedicou outro livro, o “Lykke”, que significa precisamente felicidade. Daí o nome do museu na língua original, “Lykkemuseet”. Sob o lema “Diz sim à felicidade”, e numa perspetiva de permitir momentos de felicidade aos visitantes, havia sido criado o “The Sweet Art Museum”, em Lisboa, composto por várias salas temáticas com diferentes experiências interativas e digitais, decoradas com objetos de grande impacto visual, onde o universo “dream, sweet and colourful” é explorado. Uma das grandes atrações deste museu era a “Splash

Mallow Pool”, um convite aos visitantes a mergulharem numa piscina gigante a transbordar de “marshmallows”. Já num artigo anterior, “Podem as artes visuais expressar felicidade?”, destacámos a exposição “The Happy Show”, de Stefan Sagmeister, que percorreu vários países, tendo também podido ser visitada no MAAT, em Lisboa. Através de vídeos, infografias, esculturas e instalações interativas, bem como de humor e interação, esta exposição convidava os participantes a pensarem sobre a felicidade de uma forma geral e sobre a sua própria felicidade em particular. Apelava a uma atitude mais participativa na busca dessa felicidade, afirmando inclusivamente que esta se treina, tal como treinamos o nosso corpo. É óbvio que os visitantes não se tornarão mais felizes por visitarem o “Museu da Felicidade”, mas pelo menos serão estimulados a construir um percurso mais orientado para o bem-estar. Esta é uma mensagem tanto mais importante numa época de pandemia, em que

o número de casos de depressão tem aumentado em todo o mundo. E, numa época de verão, em que muitas pessoas se encontram em férias, embora seja natural procurar a frescura da água do mar nas praias, talvez possa ser interessante aproveitar para visitar alguns museus, que em geral também são locais bastante frescos. Cada um pode construir o seu percurso no sentido do bem-estar individual e coletivo e a arte pode ajudar nesse sentido...

Ficha técnica Direção: GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Fios De História: Ramiro Santos • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'Água: Maria Luísa Francisco • Mas afinal o que é isso da cultura? Paulo Larcher Colaboradora desta edição: Fabiana Saboya e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB: https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve

Imagens do “The Sweet Art Museum” (Lisboa) FOTOS D.R.


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MAS AFINAL O QUE É ISSO DA CULTURA?

Mas afinal o que é isso da Cultura?

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Jurista e escritor

- É lindíssimo o rio a esta hora - diz o Mestre Homem Cardoso, puxando uma fumaça do seu cigarro aquecido e contemplando a noite, que descia lentamente sobre as águas plácidas. - É o rio Séqua. - Séqua!? Não é o rio Gilão? - Gilão ou Séqua é a mesma coisa. São duas maneiras de nomear o mesmo rio. - Curioso. Lá para o Norte também vi vários rios com dois nomes. É um embaraço histórico e toponímico. - Aqui não é bem o caso, porque o rio muda de nome ao atravessar a ponte romana. O Séqua termina e o Gilão começa no sítio em que a ponte atravessa o rio. É assim há séculos. É um adquirido cultural. - Tenho uma vaga ideia disso - reflecte ele, inspirando outra fumaça. - Uma história de amores contrariados, não é? - Sim. Amores entre uma princesa moura e um cavaleiro cristão, o que à época era crime de lesa-majestade, de modo que quando foram descobertos suicidaram-se: atiraram-se da ponte abaixo cada um para o seu lado. O Gilão para a foz e a linda moura para montante. História bela e triste e provavelmente falsa. - Aqui no Sul há mais moiras encantadas que no resto do País. É uma questão cultural. - Bom, isso da questão cultural dava pano para mangas. Quanto às moiras não as confundas com as mouras. Há moiras encantadas por todo o lado e são qualquer coisa entre a fada e a bruxa. Quanto à nossa princezinha moura chamada Séqua, que eu saiba, não sofreu nenhum encantamento e não anda por aí a desinquietar as gentes. - É curioso como estas lendas marcam a memória das pessoas e se tornam parte da cultura de um Povo - observou o Mestre Homem Cardoso, enquanto se levantava da mesa com a lentidão que advém de um belo repasto. Percorremos vagarosamente a beira-rio. Ele parava de quando em vez para fotografar. Eu olhava também na direcção apontada pela objectiva da câmara para tentar ver o que ele via, mas nada. Na verdade eu via apenas palavras e ele via imagens. Há uma diferença muito grande entre estas abordagens. Nada que seja intransponível, todavia. Há disso bons exemplos na história. Ocorreu-me agora mesmo o nome de Francisco de Holanda, mas há muitos outros.

Um pouco adiante, na outra margem, a silhueta incongruente da estação rodoviária deve ter sobressaltado o temperamento estético do meu amigo, que a contemplou longamente, até que, apontando o edifício branco, perguntou: - Sabes quem é que fez esta coisa? Disse-lhe que sim, que tinha sido um certo arquitecto. Um bom arquitecto, aliás. Ele fitou-me, como que para avaliar da correção da minha afirmação, voltou o olhar para a estação, fez duas ou três fotografias, inspecionou o resultado no pequeno visor da câmara e rematou: - Não percebo. - Isso é arte, António. Gostes ou não

- Acho que estou a perceber a tua posição, António, e parece-me que os nossos pontos de vista não são irreconciliáveis. É que eu não associo a cultura ao crescimento natural mas ao seu cultivo. Ora nem todos têm o tempo, a capacidade ou a inclinação para aprender o que é preciso para se ter cultura. E entre as pessoas cultivadas também há diferenças. E, finalmente, a herança cultural tem que ser preservada e transmitida entre as gerações e esse não é um atributo de uma comunidade lato sensu, mas o objectivo maior de escolas e universidades. - Pois para mim, meu querido ami-

o que tem como efeito que, após sermos apanhados nas ondas da civilização global, as antigas práticas, rituais e crenças adquiram uma qualidade inconsistente que, aliás, reflecte bem a nossa existência desenraizada. Apesar disso, reconheço que os habitantes das cidades actuais são seres tão sociais quanto os homens das tribos e são incapazes de viver em paz sem uma qualquer identidade social que lhes ofereça a confiança neles próprios. O Mestre Homem Cardoso remeteu-se ao silêncio e pareceu-me de repente que o tinha aborrecido com a minha verborreia, mas não. Afinal

go, a cultura é o fluxo de energia moral que por trancos e barrancos tem mantido intacta a sociedade em que vivemos. Sem ela estou convicto que não seríamos portugueses! - Ok, está certo. Para evitar este tipo de confusão, é melhor então distinguir a “cultura comum", da "alta cultura” e determinar que esta é uma forma de mestria que envolve conhecimentos muito para além do que é encontrado na cultura comum. - Está bem, eu admito essa cultura de elites, mas para mim existe uma outra através da qual o povo exprime a sua identidade social e o seu sentido de pertença. - Sim, de acordo, mas nota, António, eu não estou de forma alguma a menosprezar a cultura comum e reconheço que esta foi um sinal de coesão interna das diversas formas tradicionais de sociedade e das suas tribos, mas a verdade é que estas estão a desaparecer

estava apenas absorto na sua arte e sobretudo a lutar com a falta de luz. Fomos andando assim, sincopadamente, ao ritmo das fotografias, até à Ponte Romana onde depois de inúmeras poses se sentou num dos bancos de pedra e declarou: - Esta luz não serve. Devia ter ido buscar a outra máquina ao carro… Houve cá, Zé, pelo que vejo, nas tuas filosofias borrifam-se na cultura. - Não pá! Claro que não. A filosofia não é unívoca, tem patamares: o primeiro é o do espanto que acompanha o homem na sua experiência de contacto com ele próprio e com o mundo que o cerca. Quando esse espanto dá origem a questões fundamentais, entre as quais a da “cultura”, subimos mais um patamar e o terceiro atinge-se quando o homem começa a reflectir sobre as questões que levantou, na procura de respostas. Este terceiro estádio é o da pura filosofia onde esta atinge o seu estatuto on-

FOTO MESTRE HOMEM CARDOSO D.R.

PAULO LARCHER

gostes, é arte, e é mais cultura do que a historinha da moura. - Ó Zé, tem paciência! A cultura, pelo menos como eu a concebo, não é um edifício. A cultura é uma enorme realidade onde cabem os costumes, as crenças e as práticas de um Povo. - Há outras concepções de cultura, que eu aliás partilho. - Não me venhas agora dizer que a cultura de uma nação não é a sua essência. - Sim e não, António. Parece-me que tens uma visão romântica da cultura e essa visão esteve muito bem no século XVIII, mas hoje está démodé. - Zé, isso que disseste cheira-me demais a filosofias e eu gosto de coisas reais, concretas, percebes? A cultura de um povo, do nosso Povo por exemplo, é uma força espiritual partilhada por todos. É uma força que deu forma à nossa linguagem, à religião, à historia, à própria arte.

tológico. Qualquer outra forma de pensar que fique pelo caminho é uma pseudo-filosofia. O assunto da cultura, porém, estava esgotado. O Mestre deixara de me prestar atenção e revia as imagens no visor da máquina, mas parecia contrariado. Voltou o pequeno écran para mim para que eu pudesse ver também. Observei com atenção e vi a Ponte Romana, e o leito do rio banhado numa escuridão fantasmagórica, e vi o antigo mercado e a ponte nova como nunca os tinha visto. Num relance pareceu-me em várias ocasiões ver o rosto dulcíssimo da princezinha Séqua escondendo-se com o seu amado sob os arcos da velha ponte; e pareceu-me também surpreender ref lexos metálicos que seriam seguramente emitidos pela espada de aço do cavaleiro Gilão. De repente dei por mim sobre a Ponte Romana - que não é romana, nem árabe, nem medieval, mas um somatório de destruições e reconstruções -, temendo ouvir, do fundo dos tempos, o troar dos cascos dos cavalos das hostes cristãs e sarracenas, com espadas e sabres já desembainhados, prontos a lavar com sangue um amor sacrílego. Tive uma reacção emocionada à vista daquelas fotografias que, segundo o seu autor, estavam longe de ser perfeitas, e, de súbito, a noção de cultura dos românticos alemães, apadrinhada pelo meu amigo António, pareceu-me de repente mais pura, certa, telúrica, eterna, do que a minha construção fria, mental e académica, de modo que encarei-o e lancei-lhe o desafio: - Ó António, porque é que um dia destes não vamos dar uma volta pelas mais lindas cidades do Algarve a fotografar e a discutir filosofias? O Mestre Homem Cardoso ajeitou vagarosamente a corrente da máquina sobre o ombro, olhou de novo para as luzes doiradas reflectidas nas águas sombrias, sorriu enigmático e respondeu: - Parece-me uma excelente ideia. (1) A narrativa vai ser desenvolvida também em homenagem a Ernest Hemingway - autor muito apreciado por mim e pelo Mestre Homem Cardoso -, onde uma jantarada de amigos em Tavira à beira do rio Séqua, se irá transformar em sessão fotográfica e conversa pseudo-filosófica. Nota: O estilo de Hemingway caracteriza-se pela utilização intensiva de diálogos com um mínimo de recurso ao discurso indirecto.


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FIOS DE HISTÓRIA

RIBAT DA ARRIFANA

O Retiro do Monge Soldado Cansado da Guerra RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com

É

como se o mar fosse o seu deserto! E sobre aquela rocha, respirando o imenso azul à sua frente, edificou ele o seu Ribat. Chega-se lá pela estrada que bordeja toda a costa vicentina. Cheia de tojos, urzes, malvas e ervas rasteiras. A espuma do mar e a névoa molhada isolam a Ponta da Atalaia ainda mais do mundo, “conferindo-lhe o misticismo próprio dos lugares sagrados” - escreveu Mário Varela Gomes. Foi lá, na “finis terrae de Arrifana” que cansado das guerras e dos homens, Ibn Qasi, o monge soldado, decidiu construir o seu retiro. Dali, à distância de um olhar, adivinha-se o castelo onde, um século depois, uma moirinha perdida de amores por um guerreiro cristão abriu as portas aos cavaleiros de Santiago para a conquista de Aljezur. Entre um e o outro, fica a lenda e a história. Falada em árabe. Ela chamava-se Maria Aires, que a memória do povo guardou como Mareares. Linda e plebeia. Ele, rei do Garb, nobre e poeta, monge e guerreiro. Num tempo em que os cristãos corriam para sul procurando desalojar os Almôadas do Algarve, conta-se que a bela e morena plebeia moirinha, num assomo de maior arrebatamento por um cavaleiro cristão, não resistiu a segredar-lhe confidências. Que – informou ela – deveriam escolher a madrugada de 24 de junho, para tomarem de assalto a praça forte. Porque seria por

essa hora, antes de a noite se fazer que outrora fora um retiro de mon- foram emprestando uma autonomia dia, que os habitantes tinham por ges guerreiros cansados da guerra. crescente, afastando-o e aos seus costume irem banhar-se nas águas Foi ali que eles encontraram o seguidores, da corrente religiosa frescas da praia lá mais ao fundo. recolhimento que buscavam, entre- islâmica mais radical. E assim, na posse desse segredo, os gando-se à meditação e à exaltação O sufismo que encerra a mensagem homens de D. Paio Peres Correia, mística. À imagem do seu mestre, espiritual de Ibn Qasi defende a unicamuflados por moitas de vegetação abraçaram o legado filosófico por cidade divina e o amor universal, e a coberto da escuridão da manhã ele deixado e o espírito de despoja- contra a prepotência e a tirania. A que ainda tardava, encetaram a mento e renúncia de bens materiais. sua formação e origem social - pois aproximação e o assalto final ao O ribat da Arrifana, fundado em era natural de Silves e descendencastelo desguarnecido. te de uma antiga família Nunca haviam imaginacristã - “constituem uma do tão fácil conquista! herança cultural de um Afirma-se que, sensimundo que não deixou de bilizado pelo gesto e o influenciar”. Não admiencantos de Maria Aires, ra, por isso, que passasse a D. Paio poupou-lhe a vireceber a hostilidade e fosda e a honra, fazendo-lhe se tomado como inimigo a erguer uma casa em loabater, da parte do poder cal próximo da povoação islâmico dominante. que ainda hoje, em sua Mas foram tantos os seus memória, se chama Maseguidores que “a palareares. vra do mestre depressa O castelo, e em torno se transformou em cordele a vila, edificado sorente religiosa e política, bre ruínas de um castro tendo alastrado a todo o lusitano do período rosudoeste peninsular”. mano, ergue-se no cimo Em 1144, um grupo dos de uma colina de quase seus discípulos conquista cem metros de altura, o castelo de Monte Agudo, dominando o vale e a aos almorávidas, situado ribeira. “Foi na “finis terrae de Arrifana” que, cansado das guerras e dos homens, nas imediações de MérRibeira essa que chegou Ibn Qasi, o monge soldado, decidiu construir o seu retiro” tola. a ser um porto fluvial do “Estava dado o sinal de antigo império almorávida. E o seu 1130, sendo um retiro para estudo um tempo novo”. Era a ofensiva assoreamento posterior retirou a e reflexão religiosa, não perdera, dos Almôadas, e o seu aliado Ibn importância estratégica à povoação no entanto, o espírito guerreiro dos Qas1 fez a sua entrada triunfante de Aljezur que foi decaindo pelos sé- seus fundadores. Seguindo os gran- naquela povoacão, “sendo aclamaculos adiante. Da herança mourisca des princípios doutrinais de Ibn Qasi, do mahad1, ou enviado de Deus”. ficaram o castelo, a sua cisterna e as os monges eram preparados para a De seguida, cai Marraquexe a mais casas caiadas de branco nas ruas guerra contra os inimigos do islão. importante praça do Magrebe e, fiestreitas pelo monte acima. Fossem muçulmanos hereges ou gen- nalmente, conquistam Sevilha. Uma E no espigão rochoso, junto ao mar, tes de outra fé. A jiad era legitimada vitória que se revelou decisiva para o abraçando o infinito, haviam sobra- como guerra santa de preservação reconhecimeto do domínio almôada do também, muitos anos antes, as e difusão do islão. Todavia, com no Garb al Andaluz. ruínas do ribat al-Rihana, daquilo cambiantes que gradualmente lhe Ibn Qasi era então um líder religio-

sos e político incontestavelmente respeitado. E foi constituído representante do rei al-Mumin, no al Andaluz. Porém, esta convivência pacífica foi sol de pouca dura para este guerreiro que se tinha recolhido no seu refúgio da Arrifana. Afinal - percebeu ele depressa - nada de substancial mudara na natureza do novo poder. A mesma intolerância, sobranceria e prepotência prosseguida agora pelos almôadas, empurraram-no para os braços do rei cristão que abria caminho em direção ao sul. Afonso Henriques recebe-o como seu par “oferecendo-lhe um cavalo, um escudo e uma lança, prendas próprias de soberano”. Porém, naquele mesmo ano de 1151, Ibn Qasi, acusado de trair o islão, foi assassinado em Silves. Morreu às mãos de um dos seus seguidores. O castelo da Arrifana, como o povo lhe chama, foi então abandonado e as suas ruínas identificadas apenas em 2001. A aguardar que um novo príncipe muçulmano – provavelmente Agha-Khan, líder espiritual dos xiitas ismailis – o possa fazer despertar do sono longo e profundo em que esteve soterrado. Juntado-se à lenda que permanece vagamente na memória do povo, para afirmar que a povoação de Aljezur foi fundada por um príncipe-poeta da Arrifana. Fontes: “Ibn Qasī – Memórias, do pensamento e acção do mestre sufi da Arrifana, Al-Rihana, Aljezur, n.º 2” e “National Geografic, - As ruínas arqueológicas da Arrifana”, Rosa e Mário Varela Gomes; “ As Sandálias do Mestre”, Adalberto Alves; Fotos National Geografic Portugal; outras.


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

Tréguas de Zeus

MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

N

a Grécia antiga, de 4 em 4 anos, as populações suspendiam as hostilidades para poderem deslocar-se a Olímpia, cidade-estado situada a noroeste do Peloponeso, para competir e assistir aos torneios em honra do pai de todos os deuses. Eram as “Tréguas de Zeus”. Este costume teve início em 776 a.C. e incluía não apenas torneios desportivos, mas também competições de oratória, música e outras artes. Porém, após 293 Olimpíadas, em 393 d.C, o imperador Teodósio I de Milão decreta o seu enceramento. Em 426, Teodósio II ordena a demolição dos edifícios sagrados da cidade de Olímpia. A estátua de Zeus é levada para Constantinopla e aí é destruída pelo fogo iniciando-se um longo interregno. Os Jogos Olímpicos renascem graças ao trabalho árduo do barão francês Pierre Coubertin. Em 1888 funda o Comité para a Propagação dos Exercícios Físicos na Educação. Incansável, escreve numerosos livros, artigos, e dá conferências. Em 1894 tem lugar na Sorbonne um congresso internacional em que Coubertin é aclamado pela sua ideia de ressuscitar esta magnânima festa do desporto. É neste ano que se elege o primeiro Comi-

té Olímpico Internacional, que se cria o emblema dos cinco anéis que representam todos os países dos cinco continentes, e a divisa que condensa os anseios e ideais de todos os desportistas que tomam parte nesta competição: Citius, Altius, Fortius (mais rápido, mais alto, mais forte). Finalmente, em 1896, realizar-se-ão em Atenas os primeiros Jogos Olímpicos da era moderna. Nestes 124 anos Zeus não deu tréguas em três ocasiões, suspendendo-se os jogos em 1916, 1940 e 1944, por ocasião das duas grandes guerra mundiais. Em 2020 os jogos são, pela primeira vez na história recente, adiados. O fim das hostilidades não dependeu da vontade humana. O coronavírus espalhou-se pelo planeta em mutações sucessivas e a pandemia não nos deu tréguas! A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos 2020 acontece, então, em 2021, tratando-se da mais melancólica e anticlimática de que alguma vez me recordo. Nem mesmo as advertências de que se trataria de um evento “solene” sob o tema “recuperação e reconstrução”, tendo em mente o terramoto e o tsunami de 2011 e a actual pandemia, se adivinhava tamanha tristeza. Esta cerimónia costuma ser um momento grandioso. Os aspectos protocolares repetem-se: o hastear das bandeiras, o desfile dos atletas participantes, o transporte

da tocha olímpica que finalmente permanecerá acesa no estádio. Constitui também uma oportunidade excelente para a nação anfitriã surpreender o mundo com um espectáculo que exiba a sua história e o melhor da sua arte. Congratulamo-nos com o facto de, em Tokyo, se ter expressado uma imensa gratidão pelos profissionais de saúde, pela inclusão constante dos atletas para-olímpicos, pela luta pela igualdade de género tão bem exemplificada nos porta-estandartes. Aliás, estão de parabéns os nossos atletas Telma Monteiro e Nelson Évora que, empunhando a bandeira Portuguesa e saltando de entusiasmo, foram a quase única nota de alegria presente neste evento. Apesar do lema “separados mas nunca sozinhos” aquilo que transpareceu nesta celebração foi um enorme isolamento, angústia e vazio; demasiado espaço vazio! Como se não bastasse a arrepiante ausência de público, o próprio palco se transformou num catalisador de desalento. Por muito que o vazio seja apanágio da estética japonesa, a preponderância que aqui se lhe deu foi excessiva. Os ecrãs televisivos vomitaram a imagem insistente e entediante de uma mulher a correr sozinha numa passadeira — como se não bastasse o facto de tantos de nós o termos feito durante o confinamento e de não precisarmos de ser desse facto recordados. Noutro momento, Mirai

FOTO D.R.

Moriyama, bailarino de dança Butô envolto em vestes brancas, evocando uma alma penada, levantou-se virtuosamente do pó para ao pó regressar. Ao que se seguiu um minuto de silêncio por todos aqueles que a pandemia, o terramoto e o tsunami levaram. Mais tarde, evocando a obra da artista plástica Chiharu Shiota, bailarinos de branco, cujas caras também se encontravam embrulhadas numa rede da mesma cor, realizaram uma coreografia utilizando uma corda elástica vermelha, que supostamente pretenderia transmitir o funcionamento do interior do corpo: sangue, nervos, músculos, tendões, órgãos — numa perfeita monotonia, fealdade, e ausência de graça. Enfim, tudo falhou por que demasiado literal. Aristótles nesse magnífico tratado de estética que se intitula Poética, faz a seguinte pergunta: Como pode um quadro onde estão representados cadáveres produzir prazer? Esta é a pergunta irredutível que inaugura a questão estética por excelência. Como quase sempre acontece com as perguntas originárias, nela própria está contida a resposta. Embora os cadáveres na vida real não produzam prazer, é a forma como estão representados no quadro que veicula esse sentimento. Portanto, o prazer estético não reside no conteúdo — no motivo, no assunto, no referente — mas sim na forma como esse conteúdo está representado. Em termos kantianos diríamos que o

Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico

FOTO D.R.

Os pictogramas das novas modalidades olímpicas foram pela primeira vez apresentados: skate, surf, beisebol, karaté e escalada desportiva

prazer estético reside na forma da representação. Ora foi precisamente esta forma da representação que falhou sucessivamente nesta cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos de Tokyo 2020, em 2021. As intenções foram muito nobres mas faltou-lhes a “artisticidade”. O filósofo espanhol Ortega y Gasset, seguindo a esteira kantiana, muito insistiu neste conceito no seu ensaio A Desumanização da Arte. Ortega y Gasset pretendia um novo modo de sentir a existência —refinado e elegante— um modo que implicaria um distanciamento e um trabalho sobre a matéria prima inicial, em vez da simples cópia ou da empatia por arrastamento emotivo. Ora o que aconteceu na grande maioria das propostas estéticas da cerimónia de abertura destes Jogos Olímpicos foi precisamente isso: a cópia simples e o apelo ao sentimentalismo fácil. O espectador do séc. XXI, desejavelmente culto e inteligente, regozijar-se-ia na artisticidade da obra de arte e não no seu conteúdo, realizaria autenticamente a experiência estética. Pouca oportunidade houve para o fazer nesta cerimónia. Existiu, no entanto, uma honrosa excepção que para mim constituiu o ponto alto do evento em termos artísticos: a pantomima dos pictogramas. Interpretada por Hiro-Pon, um artista japonês do premiado grupo de comédia performática Gamarjobat, apoiado por Masa e Hitoshi, também eles comediantes japoneses. Numa dança muda, os pictogramas adquiriram vida transformando-se sucessivamente uns nos outros numa coreografia densa e vigorosa. Os pictogramas das novas modalidades olímpicas foram pela primeira vez apresentados: skate, surf, beisebol, karaté e escalada desportiva. A performance surpreendeu e encantou! Vale a pena recordar que os pictogramas foram introduzidos pela primeira vez precisamente nos Jogos Olímpicos de Tóquio em 1964. Os designers de então criaram estas figuras estilizadas que funcionaram como símbolos não verbais, transcendendo as barreiras da linguagem. Os pictogramas são capazes de comunicar informação de forma rápida, rigorosa e inequívoca. Hoje em dia muitos destes símbolos são utilizados universalmente. Estejamos, pois, agradecidos.


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MARCA D'ÁGUA

Perfeccionismo, competição e cooperação MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

A grandeza de saber cooperar num momento de alta competição FOTO D.R.

V

i nas redes sociais imagens da ginasta profissional Simone Biles nos Jogos Olímpicos de Tóquio. Estava a começar a escrever o artigo deste mês sobre um tema bem diferente, mas fiquei presa àquelas imagens como um exemplo de resiliência e humildade. Na altura em que os holofotes estavam virados para a atleta, teve a humildade de parar e as-

sumir o stress e angústia em que vivia. Mesmo sem chegar ao pódio, Simone Biles tornou-se uma campeã. Com a sua coragem teve a capacidade de trazer ao de cima a discussão sobre a saúde mental dos atletas e sobre a necessidade de repensar mais a pessoa do que a competitividade. Ainda há algum tempo a fadista portuguesa Raquel Tavares parou a sua carreira artística por sentir que não tinha tempo para si e que não tinha vida própria. Simone e Raquel são dois exemplos de quem teve a capacidade de perceber que não estava bem, mas existem muitas pessoas que não sabem ou não querem admitir isso. Quase todos nós em várias alturas da nossa vida somos confrontados com situações que geram stress, ansiedade e por vezes, depressão, mas nem sempre temos a capacidade de perceber que precisamos de ajuda, nem a humildade de a procurar, quando necessária. Quando estamos nestas situações, acontece, por vezes, ter de abdicar de sonhos ou desistir e depois ter de começar de novo. O médico Roberto Aylmer, com espe-

cialização em gestão em contextos complexos e no Burnout Executivo escreveu que a situação de que falamos, tal como a situação da tenista Naomi Osaka são «um marco para uma nova era onde a vulnerabilidade é necessária e aceite. O lema deste novo contexto resume-se na frase da tenista de origem japonesa: “É ok não estar ok” que saiu na capa da revista americana Time no início de 2020» A frase de Simone Biles: «Não somos apenas atletas, somos pessoas. E às vezes é preciso dar um passo atrás», não deixou ninguém indiferente. Este «passo atrás» poderá permitir dar dois passos para a frente. Tudo isto faz sentido se existir a capacidade de alterar padrões, medos, bloqueios e modificar comportamentos. Se a pessoa não se conhecer terá mais dificuldade em todo o processo. Daí a importância do auto conhecimento. De saber o que queremos para nós e o que nos faz bem e não ficar agarrado ao que os outros querem ou esperam de nós. A pandemia veio agravar muitas situações de depressão. Nas redes sociais, por exemplo, é partilhado o melhor, vidas quase perfeitas, mas quando há a coragem de mostrar o outro la-

do, tanto pode ser desastroso para a imagem da pessoa em causa, como também pode trazer ajuda. E então quando os nossos defeitos nos afectam e nós ilusoriamente pensamos que são qualidades? Achava o máximo ser perfeccionista e a forma como elogiavam os meus resultados fazia-me pensar que o perfeccionismo era uma virtude. Afinal ser perfeccionista revelou-se um defeito que trouxe alguns desafios (de há um tempo para cá deixei de usar a palavra problemas e substituí por desafios). Custa sempre assumir a nossa vulnerabilidade, mas todos temos alguma vulnerabilidade, e isso por vezes até nos torna maiores. Ressoa a frase de Simone Biles: «Temos de proteger a nossa saúde e o nosso bem-estar e não fazer apenas o que o mundo quer que façamos». O exemplo que vem destes desportistas, vistos à escala global como heróis e em certa medida como pessoas infalíveis, vai permitir reposicionar a questão da competitividade versus bem-estar pessoal. E se bem aproveitada a oportunidade irá permitir recolocar toda esta ques-

tão junto das gerações mais jovens, as mais susceptíveis nesta matéria (ou, pelo menos, as que aceitam a sua exposição de forma mais pública). Estas partilhas surgiram por causa dos Jogos Olímpicos, cujo lema é: «Mais Rápido, Mais Alto, Mais Forte» em latim «Citius, Altius, Fortius», que foi adoptado pelo fundador dos Jogos modernos, Pierre de Coubertin, no Séc. XIX. No passado dia 20 de Julho, o Comité Olímpico Internacional (COI) modificou este lema para acrescentar a palavra «Juntos». O presidente desta entidade, Thomas Bach, sublinhou a necessidade de solidariedade durante estes tempos da pandemia de Covid-19. Com esta mudança na Carta Olímpica refere Bach «o trabalho colaborativo produz resultados mais rápidos e melhores do que se cada um trabalhasse sozinho para se proteger do progresso do outro». Felizmente na vida dos atletas, como na vida de cada um de nós, há momentos em que do nosso âmago sai mais o desejo de cooperar do que de competir. *A autora não escreve segundo o acordo ortográfico

ESPAÇO AGECAL

Poder Local e Cultura JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

A

26 de Setembro realizar-se-ão eleições para as 308 Câmara Municipais e Assembleias Municipais, bem como para 3092 Assembleias de Freguesia. As eleições autárquicas ocorreram pela primeira vez em democracia a 12 de Dezembro de 1976, na sequência da aprovação da Constituição da República em Abril desse ano. Meio século passado, é imprescindível fazer o balanço da evolução das políticas públicas em Portugal, das transformações e realizações positivas, mas também dos fenómenos negativos que prejudicaram o desenvolvimento do País. Portugal partiu de uma situação desfavorável em relação

a outros países europeus, bastará lembrar que em 1981 ainda um em cada cinco portugueses era analfabeto. A autonomia administrativa e financeira do Poder Local no último quartel do século XX, deu enorme impulso à melhoria das condições de vida das populações. Nos anos 70 parte significativa das localidades portuguesas estavam carenciadas de saneamento básico, abastecimento domiciliário de água, redes de electricidade, equipamentos sociais e culturais, existiam dificuldades no acesso à saúde e habitação. O Poder Local, nos primeiros anos após a Revolução de Abril de 1974, esteve à altura das prioridades e urgências do País e das populações, foi genuíno o entusiasmo da geração pioneira na recuperação dos atrasos estruturais das regiões e localidades. Portugal teve uma evolução sig-

nificativa, os indicadores sociais melhoraram, mas a partir dos anos 80 começou a fazer caminho uma outra ideia de “desenvolvimento”. A regionalização foi adiada, circuitos de decisão passaram para o exterior do País, a gestão de recursos continuou centralizada, o ordenamento territorial permitiu acentuar assimetrias, o declínio demográfico e desertificação, houve perdas de biodiversidade e alterações nos sistemas produtivos. Cerca de metade da população vive hoje nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto. E a cultura? O fim da censura e a liberdade de expressão criaram a partir de 1974 uma nova realidade cultural em Portugal. A democratização do acesso à educação e à cultura foi decisiva na transformação do País. Para além do texto constitucional e da Lei das

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Atribuições e Competências das Autarquias Locais, foi aprovada importante legislação como a Lei de Bases do Património Cultural (nº107/2001), a Lei Quadro dos Museus Portugueses (nº 195/2004), a Lei dos Arquivos (DL nº 16/93), entre outras... Os Municípios tiveram um papel relevante no domínio da cultura, promoveram a reabilitação, construção e o acesso a bibliotecas, teatros, cineteatros, arquivos, museus, centros de ciência,… Foram criadas a Rede Nacional de Leitura Pública, a Rede Portuguesa de Museus, a Rede Portuguesa de Arquivos, a Rede de Teatros e Cineteatros, apoiados por programas como o Promuseus, o PARAM, entre outros. Hoje 130 mil pessoas trabalham em Portugal na cultura, o sector representa 2,7% da economia nacional, o peso no Orçamento Geral do Estado em 2021 foi de 0,21% (sem a RTP), a terceira

mais baixa entre as áreas ministeriais. As autarquias locais investiram 519 milhões de euros em 2019 na cultura, mais 10% do que no ano anterior, incluindo despesas de capital e correntes. Em média as despesas com cultura representaram 5,9% dos orçamentos municipais portugueses. Detectam-se disparidades orçamentais no apoio à cultura, mesmo entre municípios com expressões demográficas semelhantes, surgem assimetrias no plano regional. O suporte financeiro aos diversos sectores da cultura é pouco equilibrado. Será inadiável, nos 50 anos da democracia, realizar balanço das políticas culturais em Portugal (1974-2024), dos seus resultados quantitativos e qualitativos. * O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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CULTURA.SUL

Postal, 6 de agosto de 2021

LETRAS & LEITURAS

O Homem do Casaco Vermelho, de Julian Barnes PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

O mais recente trabalho de Julian Barnes vive algures entre a biografia, o ensaio e o romance de uma época FOTO ULF ANDERSEN / D.R.

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Homem do Casaco Vermelho, publicado pela Quetzal numa luxuosa edição de capa dura vermelha, recheada de fotografias e reproduções a cores de obras de arte, é o mais recente trabalho de Julian Barnes. Este

novo livro do autor britânico, com tradução de Salvato Teles de Menezes, é difícil de classificar, pois vive algures entre a biografia, o ensaio, o romance de uma época: «A Belle Époque: locus classicus de paz e prazer, charme com mais do que uma pincelada de decadência, um último florescimento das artes, e o último florescimento de uma alta sociedade instalada antes de, tardiamente, esta suave fantasia ser varrida pelo metálico e sem graça século XX» (p. 37). Por estas páginas desfilam Proust, Sarah Bernhard, Oscar Wilde, invoca-se Flaubert e Henry James, entre outros. Julian Barnes toma por mote para esta digressão um retrato de Samuel Pozzi, considerado uma das mais extraordinárias telas de John Singer Sargent (tão polémica quanto discretamente sensual) que o autor descobriu exposta na National Portrait Gallery. Tomando Pozzi como protagonista – um plebeu com apelido italiano, «chocantemente bonito», «homem superiormente inteligente», que ascende a médico da alta sociedade, cirurgião, pioneiro da ginecologia moderna, «viciado em sexo» (p.196), livre-pensador, coleccionador de arte – este livro é um belíssimo exercício criativo e autoreflexivo

(onde nos fala inclusivamente do seu primeiro romance, entre outros) que reafirma Barnes como um dos grandes autores de língua inglesa. Um aspecto curioso que perpassa o livro é a contraposição persistente entre a cultura francesa e a inglesa, em detrimento desta última, como quando constata que a Belle Époque é um período de grandes triunfos da arte francesa, do impressionismo ao simbolismo, passando pelo cubismo: «O que é que teve a Grã-Bretanha que pudesse apresentar perante isto? A persistente saga do prérafaelismo, a prolongada morbidez da arte vitoriana» (p. 43). E s t a cont r ap o siç ã o e nt re passado e futuro (ou um presente desencantado) serve ainda, muito subtilmente, como chamada de atenção ao que se passou no Reino Unido nos últimos anos com o Brexit: «como o passado deve às vezes odiar o presente, e o presente o futuro – esse desconhecido, descuidado, cruel, ofensivo, depreciativo e insensível futuro – um futuro que não merece ser o futuro do presente» (p. 125). Explana-se, aliás, na nota do autor, que o livro foi escrito no último ano perto da «saída deludida e masoquista da Grã-Bretanha da União Europeia» (p. 309).

Barnes recorre a excertos de diários, cartas, numa colagem que visa compôr o homem por trás do retrato, ao mesmo tempo que alerta o leitor para os limites desta reconstituição:

Uma luxuosa edição de capa dura vermelha, recheada de fotografias e reproduções a cores de obras de arte

«”Não é possível saber”. Quando pa rc i mon iosa mente u sad a , esta expressão é uma das mais fortes na linguagem do biógrafo. Lembra-nos que o aprazível estudo-de-uma-vida que estamos a

Grand Hotel Europa, de Ilja Leonard Pfeijffer

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rand Hotel Europa, de Ilja Leonard Pfeijffer, é o belíssimo título inaugural da coleção Contemporânea, chancela Livros do Brasil, e o primeiro romance do autor publicado entre nós, traduzido do neerlandês por Maria Leonor Raven. Já com várias obras premiadas internacionalmente, Grand Hotel Europa, com mais de 300 mil exemplares vendidos, arrebatou a crítica e os leitores holandeses. Não se pense contudo que é um livro ligeiro, ou que as suas quase 600 páginas se lêem com a superficialidade de um bestseller. Grand Hotel Europa é um romance reflexivo, de várias camadas e feito de histórias interligadas, sobre a identidade europeia na desafiante era do turismo de massas, mas também uma sátira genuinamente divertida. Um escritor, que partilha o nome do autor, aloja-se no ilustre e decadente Grand Hotel Europa com o fito de reconstruir pela

escrita os destroços da sua relação com Clio, uma fogosa italiana com quem vive uma esplendorosa história de amor em Veneza,

Ilja Leonard Pfeijffer já tem várias obras premiadas internacionalmente FOTO D.R.

uma cruzada (ao estilo de Dan Brown) em busca de uma pintura de Caravaggio, tórridas cenas de sexo e explosivas crises de ciúmes. O romance alterna magistralmente entre dois planos: o passado vivido

com Clio, que partilha o nome da musa da História, e era ela própria historiadora de arte; e o presente no Grand Hotel Europa, que entretanto é apropriado por um chinês, e começa rapidamente a perder a sua identidade genuinamente europeia, até para melhor servir as hordas de turistas chineses. Conduzindonos entre tempos distintos, e locais diversos, o narrador interpela directamente o leitor, e expõe, muitas vezes mediante diálogos, uma pertinente reflexão, bastante informada. A narrativa perspectiva a Europa como um continente velho e cansado, que apenas tem o passado como oferta, cuja história não pode ser realmente degustada pelos visitantes que estão muito mais preocupados em fazer maratonas turísticas, mas sempre sem que se perceba realmente que são turistas, para poder tornar a sua linha do tempo nas redes sociais mais apelativa – pois “o mais baixo que se pode hoje descer na condição humana é não viajar

regularmente”. Mas há também o reverso da moeda: o modo como a Europa se tem redefinido, muitas vezes com o risco de negar a sua própria autenticidade, colocando assim a sua sobrevivência em risco face à necessidade de se reinventar para chamar turistas.

“Grand Hotel Europa” arrebatou a crítica e os leitores holandeses

ler, apesar de todos os pormenores, dimensão e notas de pé de página que apresente, apesar de todas as certezas factuais e hipóteses seguras que contenha, pode apenas ser uma versão pública de uma vida privada e uma versão parcial de uma vida privada. A biografia é uma coleção de buracos atados com um fio» (p. 134) Como escreve a páginas tantas, a propósito de Lucien Freud, o modelo, neste caso Pozzi, está lá apenas para ajudar a pintura, e conta mais a pincelada do artista do que o retratado: «diria que estava a usar uma pessoa para fazer um quadro e, ao fazer isso, estava a substituir essa pessoa – e a sua existência – por uma nova realidade.» (p. 224). Barnes assume que o «trabalho do romancista é transformar um ténue ou mesmo falso rumor numa certa e fulgurante realidade; e acontece muitas vezes que quanto menos se tem, tanto mais fácil é retirar partido disso.» (p. 52) O autor/narrador (que aqui se confundem) remete-nos, noutra passagem, do roman à clef e quase pensamos que nos fala deste seu livro de não-ficção: «possui óbvias atrações para os romancistas – a alegria da malícia, a piscadela de olho do sigilo não sigiloso, a vaidade de estar bem informado e partilhar essa informação com outros» (p. 217) É, na verdade, aquilo que acontece linhas antes neste mesmo livro, quando o autor ao referir-se a um prémio literário rapidamente se perde em mais uma digressão em torno do mesmo, com os vários vencedores, o prémio, etc. Um dos pontos mais delicados do romance é justamente a forma como o leitor por vezes se perde nos saltos súbitos de um assunto para o outro, sem que haja propriamente um fio condutor, da mesma forma que por vezes avançamos e voltamos a recuar na cronologia de vida das personagens. Contudo, numa das recorrências do romance e que mais parece uma obsessão do autor - a soma de relatos de duelos e de médicos alvejados por pacientes insatisfeitos -, indicia-se uma das revelações desta biografia, já perto do final. O Homem do Casaco Vermelho tem o ritmo e o colorido de um romance, mas é acima de tudo uma biografia, por vezes descentrando-se do modelo conforme desfia um retrato de época, e aponta constantemente para os limites do biógrafo (e os ilimites do romancista) face à aura de mistério que advém do passado e rodeia o biografado.


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Postal, 6 de agosto de 2021

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ESPAÇO ALFA

Fotografia, arte e mindfulness FABIANA SABOYA Membro da ALFA – Associação Livre Fotógrafos do Algarve

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embro-me do meu primeiro dia de aula, há cinco anos, no segundo curso de fotografia profissional que resolvi tirar. Desta vez, aqui em terras lusitanas. Meu professor, Pedro Palmela, perguntou-nos: “O que é fotografia para vocês?”. A presumível pergunta obteve respostas similares, inclusive a minha. Ouvia-se desde “É desenhar com a luz” a “É contar uma história”, ou ainda “É eternizar um momento”. Não havia respostas erradas ali. Entretanto, não era esse o objetivo do exercício. O professor então voltou a questionar: “O que é fotografia para vocês?”. Fez-se um silêncio ensurdecedor. Desde então, essa inquietante indagação persegue-me. Tira-me da inércia que uma vez ou outra instala-se na mente e obriga-me a reavaliar o que eu penso, sinto, produzo e, especialmente, busco com a fotografia. Não é novidade que o avanço da tecnologia permitiu que a técnica de criação de imagem por meio de exposição luminosa se popularizasse. O nosso próprio telemóvel permite-nos registar tudo o que quisermos, até os astros (Quem nunca tirou uma foto da lua cheia mesmo sabendo que não sairia nada de jeito que atire a primeira pedra!). Com um pouco mais ou um pouco menos de qualidade a depender do modelo, temos em mãos a ferramenta necessária para garantir que a vovó acompanhe o crescimento do neto do outro lado do Atlântico, para colocar uma foto apresentável no nosso CV e até mesmo para digitalizar e enviar documentos. A arte como expressão da humanidade, em tempos tenebrosos e até depressivos como este, é invocada a cumprir o seu papel. A fotografia é uma manifestação cultural e artística, produto da criatividade do homem na sociedade. Isto posto, quem foi que ditou que aquela foto desfocada da nossa infância, tirada pela nossa mãe, ao colo do nosso falecido avô, com a mancha de um dedo anelar no canto superior esquerdo não é arte, se sempre nos emociona? O que diferencia de facto esta imagem das minhas enquanto profissional? Não é que os amantes da fotografia não saibam apreciar o despretensioso e amador retrato descrito

A fotografia é uma manifestação cultural e artística, produto da criatividade do homem na sociedade

anteriormente, mas eles seguramente saberiam potencializar com as suas técnicas todo o sentimento que o momento transbordava. O objetivo não é enaltecer, tampouco desprestigiar o trabalho do fotógrafo profissional, mas legitimar e reconhecer a produção individual e criativa de cada um, num contexto que exige esforços de todos para mantermo-nos como comunidade e como indivíduos sãos e saudáveis. A arte sempre ajudou a humanidade a enfrentar ditaduras, pestes, catástrofes naturais, a vencer seus próprios demónios… Não é uma competição entre profissional e amador, entre DSRL e telemóvel. Por isso, volto repetidamente à pergunta do meu professor e questiono o meu próprio fazer artístico, a sua necessidade e contribuição. Nesse mergulho em mim mesma, ficou ainda mais claro que a imagem que entrego é tão somente o resultado da minha experiência. A fotografia não é só o meu trabalho, a minha fonte de renda. Ela é, acima de tudo, a estratégia que encontrei para colocar-me no presente, para viver o aqui e o agora. Não há passado, não há futuro. Eu

vejo, eu sinto, eu penso, eu clico, eu VIVO! Sorrio com o sorriso de um bebé ao colo de sua mãe, emociono-me com a bailarina interpretando seu papel, choro com os votos sinceros e apaixonados de um casal no altar, enfureço-me com as injustiças sociais e regozijo-me com o renascimento de mulheres empoderadas em trabalho de parto. O conhecimento técnico do meu equipamento permite-me manuseá-lo como se respirasse: espontaneamente. A câmera faz parte do meu corpo e ela consegue captar todas as escolhas que faço com base na minha bagagem de vida, cultural e artística. Posso dizer, com toda a certeza, que a fotografia é a minha terapia mindfulness. Não há espaço para julgamento, só para estar consciente sobre tudo o que passa diante dos meus olhos, ou melhor, das minhas lentes. Só que para capturar a imagem que eu quero, aquela que estou vendo física, mental e emocionalmente, eu não posso contar com a sorte. Eu tenho que dominar a técnica fotográfica. Contudo, dominá-la, assim como à mindfulness, requer muitos anos de estudo e prática constante.

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FOTO D.R.

É tão paradoxal quanto verdadeira a necessidade de aprofundar-se nos processos e nas ferramentas de criação, de controlar o equipamento e as técnicas de enquadramento, composição e iluminação, de saber como e porque fazer certas escolhas, para que alcancemos essa naturalização e para que nossa imagem atinja o que esperamos dela esteticamente. Estudar facilita a confeção de tal modo que podemos dar-nos ao luxo de fazer ao mesmo tempo o processamento técnico mentalmente e desfrutar do momento. Tais processos culminam na comprovação revelada em imagem impressa de que todo o esforço valeu a pena, permitem que eu experiencie a fotografia e que ela seja-me tão espontânea quanto existir. Como professora no curso de fotografia para jovens na ALFA, recebo muitos deles que nasceram para essa profissão no exercício dela no seio familiar, registando a sua própria família, tal como eu. A chamada geração Z já nasceu com uma câmera digital na mão e o acesso a canais de informação e formação ao alcance de um clique. Ainda assim, a expe-

riência de se obter o conhecimento através do diálogo, da troca com um intermediador, é insubstituível, na medida em que a comunicação é o veículo e o alicerce da construção da própria sociedade. Agora, temos sempre muito mais a aprender do que a ensinar. O meu papel como formadora é dar as ferramentas necessárias para a sua aprendizagem, para promoção da sua veia e seu olhar artísticos, para domínio e automação dos processos, para que saibam criticar a si e a sua obra e para que tirem o máximo proveito da tecnologia que disponibilizam. Sem jamais julgar, podar ou impor a minha visão. E compete-me levar em conta a sua verdade, como posso ajudá-los a atingir o seu próprio mindfulness, transbordar autenticidade e viver a fotografia. Depois de tanto tempo distante dos meus alunos, já não vejo a hora de recomeçar as aulas e as reflexões sobre onde está a arte, sobre como ela se faz, como a sentimos, como ela nos salva e, sobretudo, plantar-lhes aquela coceirinha no cérebro com o tradicional e socrático: “O que é fotografia para vocês?”


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