Cultura.Sul 151 18JUN2021

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JUNHO 2021 n.º 151 8.723 EXEMPLARES

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MISSÃO CULTURA

O Algarve colorido e singular Ficha técnica Direção: GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Fios De História: Ramiro Santos • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'Água: Maria Luísa Francisco • Missão Cultura: Adriana Nogueira Colaboradores desta edição: Mauro Rodrigues e Pedro Gago Parceiro: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB: https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve

O Algarve é a única região do país com fachadas revestidas de pinturas a fresco PEDRO GAGO Técnico Superior da Direção Regional de Cultura do Algarve

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veraneante que chegava à região atravessando a serra, tomava a N125 e, ao longo desta, em placas informativas de cimento, brancas, sucediam-se nomes exóticos de povoações gravadas a preto - Patã, Almancil, Nexe, Estoi. Nomes tão exóticos quanto as casas coloridas que iam povoando o caminho, emolduradas pela luz clara que destacava o contraste do verde arbóreo com os solos avermelhados. Eram casa cujas fachadas estavam

revestidas de pinturas a fresco a imitar marmoreados, como se da terra emanasse um gosto requintado de memórias de ricos palácios. Isto faz com que o Algarve seja a única região do país com fachadas revestidas de pinturas a fresco. São frescos coloridos de belíssimas imitações de pedra, saídas do engenho de oficinas locais que pintavam a paisagem em tons quentes, numa continuidade telúrica. Pinturas ao gosto dos mestres das oficinas e dos proprietários que as encomendavam expressavam desde a mais requintada e perfeita imitação de mármore até à sensibilidade e vontade da mão teimosa que as pintava. Não se trata do resultado de uma sistematização industrial de cor

FOTO PEDRO GAGO / D.R.

única, antes pelo contrário, cada traço, cada aguada de tinta, cada nuance, cada desenho a imitar pedra, são elementos únicos pintados em cada fachada - por isso, originais e irrepetíveis. Embora, vulgarmente designadas de escaiolas, do italiano scagliola, técnica originalmente elaborada com argamassas de estuque coloridas aplicadas no interior das habitações, as escaiolas algarvias diferem desta técnica por se tratar de pinturas a fresco, o que lhe confere superior resistência às intempéries a que estão sujeitas no exterior. Eram métodos construtivos simples que surgiam da aplicação de argamassa de cal, estendida com talocha e régua, sobre a qual eram

pintados os fingidos com a argamassa ainda fresca. Da mão do artífice saíam os veios da pedra, os pequenos minerais, as nuances de cor e o desenho da estereotomia da pedra. Realizado por jornadas para que a pintura fosse sempre executada sobre a argamassa fresca, de modo a que os pigmentos ficassem bem incorporados no reboco, o que confere a estes acabamentos uma resistência secular. Mais do que qualquer tinta contemporânea. Esta técnica decorativa é indissociável das construções do último quartel do século XIX e permaneceram no tempo até meados de novecentos, acompanhando o abandono dos antigos beirados que deram origem a ricas platibandas

profusamente decoradas com trabalhos em argamassa, ornamentadas com desenhos esgrafitados, num jogo de cores contrastante com as paredes marmoreadas. Ainda que a maior parte destas casas sejam construções que acompanharam o crescimento das vilas e cidades algarvias, depressa ultrapassaram as fronteiras urbanas e difundiram-se na paisagem de toda a região, marcando um tempo e um modo alicerçado no gosto de bem receber. Estes elementos arquitetónicos são parte de uma gramática decorativa singular, de um património único, original do Algarve, que urge salvaguardar para usufruto das gerações futuras.


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MARCA D'ÁGUA

O novo normal MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

“Ninguém sabe se sabe Nem que acaso ou que destino nos cabe O novo normal É terreno minado De acasos” Excerto da letra O novo normal de Sérgio Godinho

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ais de um ano depois do início da pandemia, ainda não voltamos ao normal! Será que queremos mesmo voltar ao normal? A expressão “novo normal” tem em si a expectativa de voltar a uma estabilidade em que seja possível prever o que possa acontecer, mas o mundo actual está cada vez mais imprevisível! Não sei se este "novo normal" conseguirá expressar a forma como passamos a lidar com estas alternâncias entre estado de emergência,

de alerta, de contingência e situação de calamidade. Vivemos entre ciclos, vivemos numa guerra de informação e estamos a viver uma experiência sem precedentes. Ainda que seja um novo normal temos velhos desafios, tal como o de aprender com o que está a acontecer com coragem de olhar para a realidade com olhos de ver, porque esse é o primeiro passo para algo diferente. Ou será que não voltaremos ao normal e teremos uma nova relação com o dito normal? Durante este tempo que já é superior a um ano, tanto mudou, mas será que foi o mundo que mudou ou fomos nós que mudámos? Voltámos a valorizar mais o genuíno, a ter mais contacto com a natureza, a ter horários de trabalho mais flexíveis e mais tempo para a família. Voltámos a valorizar mais a comunicação com os outros, a conhecer melhor os nossos direitos. No tempo dos direitos, temos direito ao tempo, ao nosso tempo e a apreciar e usufruir com mais qualidade do tempo de lazer. Deixamos de medir a distância e a proximidade em metros e quilóme-

tros e passamos a medir em minutos e horas. O Zoom tornou-se uma ferramenta de comunicação profissional e pessoal. Embora só mais recentemente seja conhecida em massa, esta plataforma foi criada em 2011 por um informático chinês, chamado Eric Yuan. Em 2020, em plena pandemia, chegou aos 300 milhões de reuniões diárias.

A pandemia tirou-nos da zona de conforto Tolentino de Mendonça disse, quando este ano foi distinguido com o Prémio Universidade de Coimbra, que “a pandemia deve ser interpretada como uma encruzilhada civilizacional”. O cardeal, que dirige a Biblioteca do Vaticano, acrescentou ainda que “a normalidade, pela qual tanto ansiamos, não é um lugar já conhecido a que se volta, mas uma construção nova onde nos temos de empenhar. Por distópica que possa ser, a pandemia empurra-nos para o futuro”. Temos todos mais em comum do que possamos pensar, todos queremos ter mais qualidade de vida, um pre-

sente e um futuro com esperança. Numa perspectiva optimista, podemos ver algumas melhorias práticas deste tempo, como por exemplo, a melhoria de hábitos de higiene, a melhoria das relações interpessoais, também porque tivemos oportunidade para repensar essas relações. A pandemia permitiu sentir como estamos todos juntos, porque foi e está a ser um momento vivido em simultâneo por toda humanidade. Passamos a compreender o sofrimento e as perdas de outra forma. Este tempo também tem permitido olhar para dentro, não no sentido egocêntrico, mas no sentido da introspecção, da escuta interior e do desenvolvimento da inteligência emocional. Por sua vez, esse estar bem connosco próprios tem toda a influência na forma de estar com os outros. Mudaram entre tantos aspectos as protocolares saudações que, de alguma forma, já nos cansavam, mas que tínhamos receio de recusar para não melindrar ninguém. Aqueles dois beijinhos automáticos que dávamos quando nos apresentavam a alguém ou que dávamos de forma rotineira.

“Novo normal" - composição visual de Maria Luísa Francisco

Com esse cumprimento nem olhávamos nos olhos. Agora com o rosto semi tapado, os olhos tornaram-se a nossa imagem de marca. Passamos a apreciar mais a perspicácia do olhar e a inteligência do que outros atributos. Recebam um abraço em jeito de olhar afectuoso. P.S. - Seria bom que daqui a uns tempos, quando ouvíssemos a canção “o novo normal” de Sérgio Godinho, achássemos que essa música é uma recordação do passado.... *A autora não escreve segundo o acordo ortográfico

ESPAÇO AGECAL

Inclusão e valorização cultural: as regiões e o local JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

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aparentemente uma história pessoal. Na década de 90 do século XX um pároco pediu-me que ajudasse a estudar a colecção de ex-votos ou “milagres” guardada no interior de uma ermida de peregrinação, por motivo dos 500 anos da edificação do templo. Estava longe de pensar que se iria abrir tão amplo motivo de reflexão sobre os fenómenos de religiosidade popular e de afirmação das identidades colectivas. Ao definir como metodologia, para além de análise dos aspectos quantitativos e características das centenas de exemplares, foi essencial conhecer a origem social dos ofertantes dos “quadrinhos pintados” e também a geografia do culto de uma Nossa Senhora que tão extraordinários milagres realizava. No final de dois anos constatou-se que o culto exclusivamente rural abrangia um território

muito delimitado, pela visita e observação de outros santuários da região do sul de Portugal, saltaram da “arca patrimonial” mais de setenta cultos idênticos, cada um com a sua Virgem protectora e milagreira. A religiosidade popular é um manancial de informações sobre as identidades, de afirmação dos lugares especiais habitados por forças sobrenaturais capazes de operar curas e salvamentos, sítios ermos e periféricos carregados de mistérios, onde quase sempre existe uma capela de peregrinação, isolada mas não muito distante da povoação, cuja construção é também rodeada de algum acontecimento extraordinário. Cada terra foi abençoada e distinguida por um gesto divino, por isso os seus filhos partilham também de características e protecções especiais. É a valorização do local. Quando no século XIX cresceram os centros urbanos e se constituíram as ciências socais, a monografia da terra surgiu como um “atestado” contra o anonimato e a escassa visibilidade

das localidades, por outro lado de valorização dos recursos naturais e da história local. O Algarve teve estudiosos de primeira grandeza, duas descrições importantes separadas por três séculos são as “Corografia do Reino do Algarve”, de Frei João de São José, editada em 1577, e a de João Batista da Silva Lopes em 1841. A grande transformação ocorreu ainda no século XIX pelo uso de metodologias científicas como o trabalho de campo, pela análise comparativa de dados, a reflexão multidisciplinar que trouxe novos horizontes e aprofundados conhecimentos. Ataíde de Oliveira (1842-1915), natural de Algoz, deixou-nos dezenas de obras que cobrem temáticas que vão da tradição das mouras encantadas a observações monográficas sobre muitas localidades algarvias como Loulé, Paderne, Estômbar, Olhão, Luz de Tavira, Porches, Vila Real de Santo António… No século XX, Leite de Vasconcellos (1858-1941) emergiu como figura

pioneira da etnografia científica portuguesa, como Orlando Ribeiro o foi no âmbito da Geografia Humana. Manuel Viegas Guerreiro (1912 - 1997), algarvio natural de Querença, teve também um papel muito importante na afirmação da Etnologia Portuguesa, na reabilitação da obra de Leite de Vasconcellos, desenvolveu trabalhos numa perspectiva universalista sem nunca se afastar da região e do local. Este é um tema de primordial importância no desenho das políticas públicas para a cultura que, no caso português, pela presença da língua e patrimónios por todo o mundo não podem ser diluídas nos macro programas concebidos e financiados pela União Europeia, particularmente voltados para as indústrias culturais, onde impera o digital-produto, consumismos e públicos. Vivemos tempos em que a herança cultural tende a ser pouco conhecida e valorizada, no frenesim da “inovação”, da “criatividade” e da “criação de novos públicos” consumidores, o património

e a cultura nos discursos habituais são pouco mais que mercadoria cuja função será atrair milhares de visitantes, promovendo as vendas da “fileira”, alojamentos, restauração, imobiliário, modelos homologados e padronizados dos não-lugares globalizados. As civilizações mediterrânicas que nos deram origem, legaram ricos e vastos patrimónios que permitem a Portugal dispor de singularidades, uma língua, monumentos e artes, centros históricos, diversidade paisagística e de habitação, hortas e pomares, cozinha e variedades culinárias, festividades, mercados, convívio comunitário e partilha, em suma qualidade de vida. A inclusão das pessoas, o conhecimento e respeito pelas culturas, a valorização das regiões e do local são condições essenciais de uma verdadeira democratização, de equilíbrio social e qualidade do desenvolvimento humano. * O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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ARTES VISUAIS

Pode a arte contribuir para a preservação de espécies ameaçadas? SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

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ecentemente foram criadas em Faro duas peças escultóricas pelo artista Bordalo II, ambas representando um Cavalo Marinho, encontrando-se uma no Campus de Gambelas da Universidade do Algarve e outra no Parque de Campismo da Praia de Faro. Bordalo II é um dos principais artistas portugueses em arte urbana, tendo já mais de 200 obras escultóricas espalhadas pelo mundo. Inclusivamente, a sua obra “Owl Eyes” (“Olhos de Mocho”), na Covilhã, foi destacada pela Street Art News como uma das 25 obras de arte urbana mais populares do mundo, em 2014. Artur Bordalo assina assim pois é neto do pintor Bordalo. Faz do espaço público a sua tela e utiliza lixo ou desperdício como matéria prima para construir obras/instalações/composições de grande dimensão com uma consciência ambiental. Sendo artista plástico, define-se como “artivista”, ao usar a arte como instrumento de consciencialização pública em torno de causas ambientais. No processo de produção das suas obras, o autor recolhe materiais, corta, adapta o material recolhido, monta a peça, fixa-a no sítio onde vai ficar e, se for o caso, pinta-a. Estas peças são desenvolvidas maioritariamente com a utilização de plásticos de alta densidade, que já não servem para aquilo a que se destinavam. Conforme refere o próprio: "todo o lixo que eu utilizo é por causa do nosso dia a dia e da forma como nós não sabemos gerir os recursos, o próprio planeta, de forma sustentável (…) A ideia que eu tenho é de criar imagens das vítimas da poluição e da ação do homem exatamente com aquilo que os destrói, com aquilo que os mata. O mundo está a ser destruído e eu estou a criar imagens com aquilo que o destrói, com aquilo que destrói a natureza, que a vai degradando." À distância vemos imagens, sobretudo de cenas urbanas ou animais, mas aproximando-nos surgem torneiras, bocados de uma mangueira, um te-

lemóvel, uma calculadora, pedaços de casacos peludos, pneus, plástico, entre outros elementos. Todo o material que compõe as peças maiores é aparafusado ou soldado, e assenta num suporte, embora nas peças mais pequenas seja utilizada cola, numa técnica mista. As suas obras pretendem chamar a atenção para as problemáticas da sociedade materialista, do consumismo exagerado e dos desperdícios derivados do mesmo. Em artigos anteriores fizemos referências aos trabalhos de Bordalo II, em particular no artigo “Pode a arte emergir do lixo?”, em que referimos o seguinte: “Esperemos que a arte possa ajudar a que as pessoas tomem consciência da importância do seu comportamento para a preservação do ambiente, em particular para a necessidade de não desperdiçarmos e para a separação do lixo, permitindo a reciclagem e a reutilização dos materiais.” Mas, a preservação do ambiente está diretamente ligada à biodiversidade e à preservação das espécies, podendo também a arte contribuir para consciencializar a população para a necessidade dessa preservação, visto que o comportamento humano é o principal fator de problemas ao nível da sobrevivência de outras espécies no planeta. É o que acontece com a espécie Cavalo Marinho, um ex-líbris da Ria Formosa, tendo-se verificado uma diminuição drástica no seu número nos últimos anos. No sentido de para a recuperação e conservação do Cavalo Marinho na Ria Formosa foi desenvolvido o projeto HIPPOSAVE, com base em investigação desenvolvida pelo Centro de Ciências do Mar (CCMAR) da Universidade do Algarve. Pretende-se avaliar o estado atual das populações de cavalos-marinhos, criar zonas de santuário e zonas de proteção e ainda produzir cavalos marinhos em cativeiro para repovoamento em áreas protegidas. Fruto de uma campanha de sensibilização junto da população local, promovida pelo CCMar, em conjunto com a Fundação Oceano Azul, a Autoridade Marítima, os municípios envolvidos, o Instituto da Conservação da Natureza e a Agência Portuguesa do Ambiente, foi possível criar duas zonas protegidas na Ria Formosa, on-

de os cavalos-marinhos terão todas as condições para prosperar. As obras de Bordalo II recentemente construídas no Parque de Campismo de Faro e no Campus de Gambelas da Universidade do Algarve, ambas representando um Cavalo Marinho, com cerca de 10 metros de altura, pretendem contribuir para a necessidade de consciencializar para a importância de preservar esta espécie. Uma destas obras situa-se na Universidade do Algarve, onde é desenvolvido o conhecimento, e a outra situa-se na Praia de Faro, que faz parte da Ria Formosa, onde se desenvolve esta espécie. Apesar de representarem a mesma personagem, as duas obras utilizam técnicas artísticas distintas. O cavalo-marinho, construído no depósito de água do Parque de Campismo da Praia de Faro, inclui-se na série “Big Trash Animals”, girando à volta da representação de animais em grande escala, construídos quase exclusivamente de lixo, com o objetivo de provocar um olhar diferente sobre os nossos hábitos de consumo. Já a obra presente no Campus de Gambelas da Universidade do Algarve inclui-se na série “Neutral”, onde o artista utiliza materiais descartados como matéria-prima, numa base de madeira texturada reaproveitada. Depois são acrescentadas camadas de tinta, algumas esfumadas, pinceladas, escorrimentos e salpicos até conseguir a expressividade do animal representado e as suas cores naturais. O objetivo é, como habitualmente na obra do artista, gerar representações dos animais quase de forma a camuflar o que os destrói e criar uma imagem mais realista. Esta terá sido a segunda obra construída por Bordalo II numa Instituição de Ensino Superior, contribuindo para a imagem moderna e internacional da Universidade do Algarve. Esta articulação entre a investigação e a sua aplicação prática é fundamental e esperamos que este seja um exemplo a seguir em relação à preservação de outras espécies ameaçadas na Ria Formosa, nomeadamente o Camaleão, podendo a arte ajudar na consciencialização para a importância da preservação das espécies e do papel essencial que a investigação pode ter neste processo.

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Obras Cavalo Marinho, de Bordalo II (2021) FOTOS D.R.


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LETRAS & LEITURAS

Devastação, de Eduardo Pitta PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

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evastação é o segundo livro de contos de Eduardo Pitta publicado pela Dom Quixote. Ao contrário de Persona, publicado em 2019, e aqui apresentado, estas seis histórias, com nome de gente (Ema, João Pedro, Ofélia, Gilberta, Inês, Zé Maria), cerca de 10 páginas cada, não se entretecem nem formam um mosaico. São casos de vidas díspares, singulares, de 4 mulheres e 2 homens, que parecem nada ter em comum e sem que nenhuma das histórias pareça ser destacada, quase todas com final súbito e por vezes desconcertante. A história de Gilberta, talvez pela vida sofrida que já levou, é das poucas que acabam menos mal.

Histórias com nome de gente Ema nasceu em 1940 e num incidente infeliz, num baile de sociedade, é vítima de preconceito, que lhe chega da própria mãe, que a deixou às escuras em relação ao seu corpo. Corta com a família e refaz a sua vida, mas 50 anos depois ainda espera vingar-se de quem a humilhou. João Pedro, aos 12 anos, corre risco de vida, com o fito de evitar passar o Natal com o pai, em território selvagem, cuja descrição é invocativo de parques e coutadas africanas: «Mokaputa estava preparada para receber convidados. Em número de seis, os bungalows alinhavam-se cerca de cem metros à esquerda do pavilhão principal, uma construção maciça dominada pelo imponente tecto de colmo.» Será necessário engendrar um plano arriscado para não passar o Natal num calor infernal com um pai que quase não dá por ele. Não que João Pedro desgoste do pai, que até o deixa assistir aos seus treinos de esgrima: «Uma das coisas de que João Pedro gostava era de brincar sozinho com os floretes. Vestia a elegante jaqueta acolchoada que lhe ficava a dançar no corpo, punha a máscara metálica e zurzia o ar.» (p. 25) Ofélia (história contada em tempos cronológicos distintos) está à beira dos 70. Tem uma filha, cujo pai desconhece, e o neto Pedro, o seu preferido, bate na mulher, devastado (e aqui a palavra devastação é aplicada com intenção, pois Pedro é quem gera devastação, mais do que uma vez) pelo desejo dos corpos de homens nos

Eduardo Pitta é poeta, escritor, crítico literário, ensaísta

chuveiros do balneário do ginásio e pela latência de uma memória distante do abraço de Rafael, um pescador, rapaz de vinte e quatro anos, recém chegado dos matos da Guiné, por quem a avó claramente nutre uma afeição: «Não percebe o interesse da avó pelo homem. Embirrou com ele desde o dia em que foi levado num passeio de barco, obrigado a mergulhar na Lagoa de Óbidos e depois a manter-se à tona da água, o braço forte do homem preso à sua cintura. A experiência despertou nele um atropelo de sentimentos. Já tem acordado com a sensação de estar enroscado naquele braço. Nessas alturas apetece-lhe prolongar o anelo, mas salta da cama.» (pp. 38-39) Gilberta tem 60 anos e não levou uma vida fácil. Preparava-se para celebrar 25 anos, quando nessa manhã de sábado do dia 7 de Setembro de 1974, assinado o Acordo de Lusaka, a sua vida muda drasticamente. Após a tentativa falhada de secessão branca, deixa uma vida desafogada em Lourenço Marques, parte rapidamente com o marido e os três filhos para Joanesburgo, onde espera em sobressalto o desenrolar dos acontecimentos, até que «desembarcaram na Portela ao princípio da manhã de 29 de Dezembro de 1977. Tinha vinte e oito anos e um diploma da Wits, em

FOTO D.R.

Accountancy, que o ISCAL validou a contragosto, praticamente em cima do Verão de 1979, no termo de uma batalha jurídica.» (p. 51) Ainda que munida, ao menos, desse diploma, a vida de Gilberta refaz-se do nada: «Em Portugal teve de adaptar-se à nova realidade. Os primeiros tempos foram difíceis. Ele há brancos e brancos, reflectiu.» (p. 56) Não hesita em expulsar o filho de casa por ser «paneleiro», apesar da bofetada do marido. Os outros dois filhos ignoram-na no momento da morte súbita do pai e não comparecem ao funeral, por questões de incompatibilidade de agenda. Inês tem 43 anos e sobrevive à derrocada do imobiliário… Mas tinha 25 anos «no dia em que o pai mete a pistola na boca e dispara. A mioleira deu cabo do Noronha da Costa. Negócios fora-da-lei? O pai? A sociedade de corretagem insolvente? Então a casa já não era deles?» (p. 62) Zé Maria tem 52 anos e no dia 13 de Março de 2020 recebe o diagnóstico de um aneurisma cerebral. Esse anúncio do fim dos seus dias coincide com a retenção da mulher nos E.U.A. para onde partiu de modo imprevisto e se vê impedida de regressar, conforme o mundo pára, os aeroportos fecham, a vida se suspende.

“Devastação” é o segundo livro de contos do autor

Entre a verdade e a mentira Entre estas várias histórias de vida devastadas é possível encontrar afinidades, como a vivência de um antes e um depois do 25 de abril, ou de uma infância e adolescência passada na África colonial e uma idade adulta vivida na metrópole. Há personagens em fuga de África cujas vidas terão de ser refeitas, deixando tudo para trás assim que deflagra a Revolução e se anuncia o fim da guerra e da ocupação colonial. Com a sucessão das histórias percebe-se o desenrolar do fio do tempo até chegarmos aos nossos dias, como as intervenções do FMI em Portugal (na história de Inês) ou a pandemia (Zé Maria) como pano de fundo, e sob um olhar crítico, com um arranque simbólico numa sextafeira 13, em Março. É ainda possível ler como a homossexualidade, transversal a um par destas histórias, é alvo de humilhação, expulsão ou recalcamento. O marido de Inês, por exemplo, quando sabe que o filho vende drogas, expressa alívio: «- Pelo menos não é maricas.» (p. 64) Aqueles que ficam de fora, como o filho de Gilberta, podem ser os únicos cujas vidas foram mais alegres, e daí ficarem de fora destes contos. Para quem leu outras obras do autor, e conhece o seu percurso de vida, é difícil impedir uma sensação de reconhecimento, como se

alguns dos factos narrados fossem autobiográficos ou pelo menos inspirados em histórias reais. Como se anuncia na epígrafe do romance, uma frase, de Hilary Mantel: «Some of these things are true and some of them lies. But they are all good stories.» É possível reconhecer nestes contos aspectos familiares na escrita de Eduardo Pitta, como um meio anglosaxónico, culto, abastado, condicente com as elites moçambicanas, onde não faltam os tiques snob, os anglicismos (as papas de aveia chamam-se porridge e Joanesburgo é sempre Johannesburg), e um humor negro peculiar que por vezes assoma como no episódio, já citado, do suicídio do pai de Inês, cuja «mioleira deu cabo do Noronha da Costa». Eduardo Pitta é poeta, escritor, crítico literário, ensaísta. Nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, a 9 de Agosto de 1949. Viveu em Moçambique até Novembro de 1975. Desde 2011 é crítico literário da revista Sábado. Mantém desde 2005 o blogue Da Literatura. Casou em 2010 com Jorge Neves, seu companheiro desde 1972. A 5.ª edição da iniciativa Alvalade Capital da Leitura, com curadoria de Carlos Vaz Marques, realizada entre 31 de maio e 5 de junho, centrou-se no autor, que tem uma forte ligação ao bairro de Alvalade.


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ESPAÇO ALFA

A falácia da facilidade da fotografia FOTO MAURO RODRIGUES / D.R.

MAURO RODRIGUES Membro da ALFA – Associação Livre Fotógrafos do Algarve

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alar deste tema pode tornar-se num assunto mais cabeludo do que complicado, uma vez que hoje em dia praticamente toda a gente tem uma máquina fotográfica em casa (ou na mão) e consegue tirar fotografias. Tecnicamente fazer uma fotografia hoje em dia é fácil e esse ato já não surpreende como há 100 anos atrás. Mas se toda a gente alegadamente tira boas fotografias com um telemóvel barato e uma câmara profissional, onde está a diferença, ou simplesmente não haverá diferença nenhuma. Diferença existe certamente, está numa curva e começa logo pelo equipamento e em que segmento do mercado se encontram. Apesar de muita inovação e tecnologia relacionada com a fotografia estar presente em praticamente todas as gamas de câmaras, existem diferenças ao longo da curva e principalmente no topo como se pode ver neste gráfico chamado de “S-Curve”, que representa uma função sigmóide, originária da matemática aplicada amplamente em economia e computação que irão ser determinantes no resultado final da fotografia.

Esta curva representa muitas estratégias de marketing usadas praticamente por todas as empresas, direi, para poder dividir o mercado em diversos segmentos, criando caixas em que o cliente pode ser “separado”. As empresas assim têm mais facilidade em estudar o cliente e o que precisam nas diferentes áreas em que o produto pode ser aplicado ou usado, condicionando o estilo e a qualidade da própria arte fotográfica nos diferentes segmentos. Sendo assim, as máquinas fotográficas estão segmentadas desta maneira: na maior parte da curva o público em geral recebe quase todas as inovações tecnológicas que o produto oferece, em que a utilização requere menos aprendizagem, esforço, tempo e conhecimento e efetivamente o público consegue tirar fotografias suficientemente razoáveis, fotografias essas que servem para a maior parte dos usos a que se destinam, que são os equipamentos ditos de entrada e gama média. Os segmentos mais profissionais ou de nicho, semi-profissionais e profissionais, se repararmos, ficam no topo da curva e já requerem um esforço, tempo, conhecimento, performance, para não falar do preço, consideravelmente mais elevados e complexos e tecnicamente próximos do limite em termos de inovação. Existem sempre

casos raros e fora da caixa e alguma sorte à mistura, mas se aplicarmos esta curva a tudo, todos podemos perceber que fazer fotografia de qualidade e única requer todos estes fatores no topo da curva. As empresas sabem disto e colocam os seus produtos e funcionalidades do produto estrategicamente ao milímetro nesta curva, criando fatores decisivos que vão melhorar fatias ou aspetos de qualidade na fotografia final. Agora num espaço de competitividade é certo que as empresas vão melhorar / apresentar / esconder ou adiar certos fatores em detrimento de outros para compensar ou ganhar quota de mercado, o que pode baralhar ou frustrar o cliente final e obviamente para criar termos de comparabilidade onde a qualidade final com que as fotografias podem ser apresentadas seja sempre debatível, não... errado, seja sempre diferenciador, mas a curva estará sempre bem definida e bem estudada pelas empresas, o fotógrafo será sempre o último a perceber onde estão esses fatores determinantes a não ser que consiga... estudar continuamente, poder comparar produtos lado a lado e ter uma longa longevidade e prática sobre o assunto, aliás, sobre todos os assuntos que englobam a arte da fotografia, não só sobre o equipamento. A segunda grande diferença, entre fazer fotografia dita suficiente e razoável e a tecnicamente profissional, é o conhecimento da própria arte fotográfica, das técnicas utilizadas, de conceitos como o enquadramento e a composição, da dupla ou longa exposição, da desfocagem em movimento, da profundidade de campo e simetria, do estudo da cor e do preto e branco, da regra dos terços ou da probabilidade, do uso das texturas e padrões, do espaço negativo, dos pontos de vista às linhas de fuga, da simplicidade ao minimalismo, da arte do posicionamento em modelos ou conceitos como o timelapse, hyperlapse, tilt-shift ou o pinhole, entre muitas mais. Mas o mais importante é definitivamente perceber como se comporta a luz e conhecer os seus diversos truques, até ao nível da ciência. Isto aplica-se obviamente no terreno, no ato de fotografar mas depois vem a pós-produção que direi é uma área tão importante como a primeira. Porque na pós-produção existe muita técnica antiga e moderna que

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Compreender a luz é o fator mais importante da arte fotográfica

pode ser aplicada e usar diversos softwares de computador, que hoje em dia, ajudam a refinar, corrigir e a engradecer muitos dos aspetos finais da fotografia, um passo que requere no geral anos de aperfeiçoamento e constante atualização em termos de estudo e conhecimento. Finalmente o terceiro grande factor decisivo na criação de excelente arte fotográfica é o tempo despendido em estudar o sujeito a ser fotografado, sejam modelos, pessoas reais ou animais no seu ambiente, saber antecipar e conhecer a sua história, o tema em estudo ou a área geográfica e as condições meteorológicas em que se encontram, ou então saber criar e manipular tudo num ambiente de estúdio, com adereços, roupas, objetos e saber orientar por exemplo outros talentos como por exemplo o da maquilhadora ou estilista. Saber orientar os aspetos técnicos da produção ou a relação entre todos

os intervenientes além de ter a capacidade de resolver problemas que surjam durante todo este processo. Saber antecipar isto tudo requer trabalho e dedicação e alguns poderão dizer sorte, mas até a sorte pode ela ser igualmente antecipada. Agora muitas pessoas poderão querer cortar atalhos em todos estes fatores e podem-no fazer mas os resultados 95% das vezes irão sair sempre deficientes em algum lugar, garantido. E os artistas são os primeiros a perceber exactamente isso, o que torna especialmente difícil gerir todos estes fatores e por vezes explicar a pessoas leigas na matéria, o porquê da mentira da facilidade da fotografia com contornos mais profissionais, em que é pedido ao fotógrafo para num estalar de dedos como o personagem Thanos faz no filme em Avengers: Infinity War, parecer que seja fácil apresentar um produto de qualidade.


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

FOTOS D.R.

Possuir ou Pertencer? MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

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esconfinámos, já se registam temperaturas de verão e a época balnear está oficialmente aberta. Pouco a pouco vamos regressando à normalidade. Porém, esta normalidade será algo assim tão bom? Que aprendemos com a experiência de pandemia? Que melhorias podemos implementar no nosso modo de vida? Por entre o bombardeio de notícias trágicas referentes à pandemia recordo aquelas, de um outro teor, que me deixaram um sorriso nos lábios: enquanto a humanidade se retraía em quarentena, animais selvagens foram vistos vagando por cidades ao redor do mundo. A cidade de Lopburi, na Tailândia, foi tomada por gangues de macacos de cerca de 500 animais cada. Alguns dos mais de 1000 cervos que habitam o parque Nara, no Japão, também resolveram passear-se pela cidade, em grupos de 10 a 15. Em Itália pessoas depararam-se com ovelhas, cavalos e até mesmo javalis. Estes últimos também se passearam pelas avenidas espanholas e pelas praças portuguesas. Em Bombaim, na Índia, os pavões exibiram o seu esplendor. No País de Gales, as estrelas foram um grupo de cabras-de-Caxemira que desceram do promontório de Great Orme e tomaram de assalto o centro da cidade de Llandudno: correram em rebanho, comeram sebes, jardins e flores às janelas. Veados e corças tomaram Londres. Pelo nosso país também as raposas, bem como belos pássaros fizeram as suas incursões em cidades — toutinegras, felosas, pegas, gaios, e aves de rapina — finalmente deixaram-se ver e ouvir à vontade. À medida que o homem e a sua “civilização” avançaram, os animais recuaram. Quando o homem se

confinou, os animais vieram até aos centros urbanos. Afinal, de quem são estes espaços? Talvez valha a pena recordar a Carta do Chefe índio Seattle ao Grande Chefe de Washington, Franklin Pierce, em 1854. Esta carta foi escrita em resposta à proposta do Governo norte-americano de comprar grande parte das terras da sua tribo Duwamish, oferecendo em contrapartida a concessão de uma reserva: “Como podereis comprar ou vender o céu? Como podereis comprar ou vender o calor da terra? A ideia parece-nos estranha. Se a frescura do ar e o murmúrio da água não nos pertencem, como poderemos vendê-los? Para o meu povo, não há um pedaço desta terra que não seja sagrado. (...) Sabemos que o homem branco não percebe a nossa maneira de ser. Para ele um pedaço de terra é igual a um outro pedaço de terra, pois não a vê como irmã mas como inimiga. Depois de ela ser sua, despreza-a e segue o seu caminho. (...) Trata a sua Mãe Terra e o seu Irmão Firmamento como objectos que se compram, se exploram e se vendem tal como ovelhas ou contas coloridas. O seu apetite devora a terra, deixando atrás de si um completo deserto. (...) Não consigo entender. As vossas cidades ferem os olhos do homem pele-vermelha. Talvez seja porque somos selvagens e não podemos compreender. Não há um único lugar tranquilo nas cidades do homem branco. Nenhum lugar onde se possa ouvir o desenrolar das

folhas ou o rumor das asas de um insecto na Primavera. O barulho da cidade é um insulto para o ouvido. E eu pergunto-me: que tipo de vida tem o homem que não é capaz de escutar o grito solitário de uma garça ou o diálogo nocturno das rãs em redor de uma lagoa? (...) Se o homem cuspir na terra, cospe em si mesmo. Sabemos que a terra não pertence ao homem, mas que é o homem que pertence à terra”. De uma forma poética, o sábio Grande Chefe índio Seattle evidenciou a relação de poder que o homem branco estabeleceu com a natureza. Em vez de um usufruto de forma integrada, o que se verificou foi uma conquista

quase sempre acompanhada de destruição. Filosoficamente existe aqui um problema de base que envolve o conceito de pertença. O chefe índio entendia que o homem pertence à terra. Evidentemente, não se pode de modo nenhum possuir aquilo a

que se pertence. Pertencer e possuir entranham concepções de vida muito distintas, são maneiras antagónicas de estar no mundo. Sabemos que o modo de vida altamente industrializado não é sustentável. É um estilo de vida que gasta recursos naturais em troca de luxo e lucro rápido, enquanto milhões de pessoas, tanto nos países industrializados como nos países subdesenvolvidos, carecem do mínimo necessário e de emprego digno. O uso desregrado de combustíveis fósseis contribui para o aquecimento global cujas consequências poderão ser catastróficas. A agricultura industrializada, com monoculturas e dependência de fertilizantes artificiais e maquinaria pesada acelera a erosão da terra. Agrotóxicos envenenam os agricultores, a vida selvagem, o solo e os alimentos. Os resíduos prejudicam a saúde de todos que comem esses alimentos. Continuamos a utilizar combustíveis poluidores em máquinas e meios de transporte. Os animais criados em confinamento são tratados de maneira humilhante e sofrem até à morte. As 17 maiores áreas de pesca do mundo alcançaram e ultrapassaram seus limites naturais no começo da década de 90 do século passado. No mundo inteiro, um terço dos peixes é triturado como ração para outros animais. A cada ano, nas Américas do Sul e Central, 20.000 km² de florestas tropicais são derrubados para criação de pasto. Nada disto é novo, já em seu tempo o famoso cineasta oceanógrafo Jacques-Yves Cousteau nos alertava: “Hoje em dia, o ser humano apenas tem perante si três grandes

problemas que foram ironicamente provocados por ele próprio: o aumento da população, o desaparecimento dos recursos naturais e a destruição do meio ambiente. Triunfar sobre esses problemas, visto sermos nós a sua causa, deveria ser a nossa mais profunda motivação”. Também o conceito de Ética ambiental não é novo, surgiu na década de 60 do século passado, ampliando o conceito de ética para a interacção com a natureza, considerando que a conservação da vida humana está intrinsecamente ligada à conservação da vida de todos os seres. Tomam-se todos os seres como iguais, por conseguinte, o homem não pode continuar a agir de forma predatória em relação aos outros animais e meio-ambiente. Procura-se um desenvolvimento sustentável, isto é, um desenvolvimento que atende às necessidades do presente sem comprometer a capacidade das gerações futuras de atender às suas próprias necessidades. Ele contém dois conceitos-chave: - o conceito de necessidades, em particular as necessidades essenciais dos pobres do mundo, às quais deve ser dada prioridade absoluta; - e a ideia das limitações a serem impostas à nossa organização social tendo em conta a capacidade do meio ambiente de atender às necessidades presentes e futuras; Dito de uma forma simples, o homem deixa de ser dono da natureza para voltar a ser parte da Natureza. Pertencer em vez de possuir, tal como defendia o Grande Chefe índio Seattle. Com 16 meses de vivência em pandemia ainda não teremos aprendido que um modo é sustentável e o outro não?! Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


CULTURA.SUL

Postal, 18 de junho de 2021

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FIOS DE HISTÓRIA

A Viagem das Plantas (1)

- UMA REVOLUÇÃO FEITA DE ESPANTOS

FOTOS D.R.

RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com

V

ai grande a turbulência das monções naquele mar de regresso. Formosa e acolhedora, é a ilha onde agora aqueles marinheiros vão arribar, vindos de Calecute. De um lado ao outro, o Índico cruza-se em menos de um mês. Para eles, é apenas mais uma etapa de uma viagem que os há-de trazer do fim do mundo. São navegadores e aventureiros dos mares do império, não raras vezes envolvidos “em perigos e guerras esforçados”. Homens de rostos fechados, pele curtida pelo sol e pelo sal, e um coração à prova de bala. Nada que fizesse supor o estremecimento súbito que tomou conta deles soando por todo o navio como uma trovoada seca. Um frémito de emoção que lhes abanou a alma inteira perante o milagre de vida a desabrochar à sua frente na barca onde vinham de regresso a Moçambique. “Trazíamos no chapitéu uma árvore que chamam mangueira, fruta da Índia; pela manhã arrebentou uma folha nova, na viagem o fazia em dez e doze dias, me parece gozava da Primavera dos climas por onde passava”, assim o deixou escrito o padre Jesuíta, António Gomes, testemunha do fenómeno e da transfiguração daqueles corações empedernidos numa comoção de meninos. Os mareantes que tinham instalado a pequena árvore num vaso, aconchegando a terra e regando-a pelas manhãs, podiam ter agora a infinita alegria de presenciarem e viverem, afinal, a maior descoberta das suas viagens. Que assentava na fragilidade de uma planta a nascer, para se reproduzir e rebentar em flor e frutos e permitir mudar definitivamente a paisagem e os costumes dos homens. O simbolismo que essa paixão pela planta da Índia suscitou naquela gente pouco dada a lirismos poéticos, reside no alcance social, económico e cultural que estava a acontecer pela primeira vez à escala global. A circulação, experimentação e troca de árvores, sementes, flores e frutos, que viajando por mares e continentes, tiveram um impacto sem precedentes nas relações comerciais, nos hábitos de consumo e na alimentação de todos os povos. E que está na origem de uma das maiores e mais prodigiosas revoluções de mundialização económica iniciada pelos descobrimentos portugueses.

“A troca de plantas entre continentes, está na origem de uma das maiores e mais prodigiosas rev≠oluções de mundialização económica iniciada pelos descobrimentos portugueses” FOTOS D.R.

Por esse tempo, o mundo dizia-se em português. A língua portuguesa tornara-se a primeira a ser falada em todos os continentes. E essa revolução, feita de espantos e aventuras, ficou eternizada no relato vivo de Fernão Mendes Pinto, um peregrino no outro lado do mundo. Ou nas crónicas do Piloto Anónimo, outro dedicado amigo dos mares. E na carta de Pero Vaz de Caminha, escrita na primeira pessoa e enviada ao rei, de terras de Vera Cruz. O triunfo das plantas acabou, pois, por exercer inevitavelmente uma forte influência nas alterações de poder e nas estruturas económicas dos diversos estados nas mais variadas regiões do planeta, a partir do século XV. Antes disso, já os mouros, provavelmente os mais importantes agentes dessa trocas comerciais, entre a Índia, a África e a Europa, tinham trazido para o Algarve a amendoeira e a figueira, a pereira, o pessegueiro e a laranja amarga, porque a doce só veio no século XVII, da China. A eles se fica a dever também o cultivo da cana de açúcar no Algarve, que D. Afonso III incentivou depois no morgadio de Quarteira, e mais tarde, o Infante D. Henrique, o introduziu na ilha da Madeira, com grandes resultados. Antes do Brasil, onde viria

a assumir um novo paradigma da mundialização económica já numa fase de decadência do comércio das especiarias. Este processo de circulação de novos produtos à escala global, acabou por sentar à mesa o legado gastronómico de povos tão diferentes e tão distantes, num diálogo multicultural que teima em reinventar-se todos os dias sob novas formas de fusão de sabores entre a novidade e a tradição. Basta pensar como seria hoje a nossa alimentação se não conhecêssemos a abóbora, o amendoim, o ananás, a batata, o cacau, o feijão, o girassol, o milho, o pimento e o tomate, trazidos do Brasil! E o tabaco, esse vício que logo se tornou num gesto fino de afirmação social, que trouxemos também do outro lado do Atlântico. Da Ásia e África vieram a pimenta, o gengibre, o cravo, a canela, carregados na Índia e no longínquo oriente, mais o café, a malagueta, a banana, a manga, o coco, a papaia, a melancia, num vai e vem permanente que trouxemos para a Europa e daqui foi para as sete partidas do mundo. O arroz e o chá vieram da China e dados a conhecer pelos portugueses na Europa e no mundo, incluindo o

hábito pontual do chá das cinco em Inglaterra, levado para lá pela portuguesíssima Catarina de Bragança, mulher do rei Carlos II. Para o novo continente americano, levaram os portugueses e os espanhóis, o porco, a vaca, a galinha e os patos que seguiram viagem também nos porões dos barcos para o Japão. Para Moçambique e Angola, a cebola, o alho, o coentro, o pimentão vermelho, a vinha, a cana de açúcar, o milho, o arroz e a batata. E por ser assim, não será motivo de espanto se no outro lado do mundo, encontrar na ementa de uma qualquer cidade do Japão, uns peixinhos da horta, uns carapaus alimados ou em molho de escabeche; em Cochim, na Índia, um sarapatel alentejano, uma cabidela de pato ou uma feijoada de bacalhau em Macau, um caldo à pescador em Malaca, uns pastéis de bacalhau com mandioca em Timor, uma feijoada no Brasil, um cozido em Luanda ou uma jardineira em Maputo. E será sempre difícil alguém adivinhar, como seria hoje a dieta alimentar dos povos, sem a mundialização do comércio e esta troca de plantas e animais. Em dois ou mais sentidos. De todos os lados e de toda a geografia.

Ainda assim, nada que diminua a importância de saber que nas ondas dessa epopeia, o português se havia afirmado como língua franca de poder e de comunicação entre os europeus e os povos das regiões costeiras do imenso império do oriente. E se, por exemplo, é verdade que em Tanegashima, no Japão, os portugueses deram a conhecer as armas de fogo - a pólvora e a espingarda - , também é um facto que lá deixaram a tipografia e o livro impresso. E no Vietname, com os hieróglifos de símbolos da grande China ao lado, acabou por se impôr o legado da escrita alfabética latina introduzida pelo trabalho espantoso dos jesuítas portugueses. Sem esquecer que pelas plantas se conheceram ganhos e avanços significativos na medicina curativa, com a descoberta de novas drogas que Garcia de Orta, médico, reputado investigador e cientista da época, resumia assim: “Digo que se sabe agora mais em um dia pelos portugueses do que se sabia em cem anos pelos romanos”. Fontes: “A Viagem das Plantas”, Filomena Tapada e M. Bettencourt; Plantas e Conhecimentos no Mundo”, A. Margarido e Isabel Castro Henriques; outras


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