CULTURA.SUL 148 5MAR2021

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

MARÇO 2021 n.º 148 6.824 EXEMPLARES

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A ilustração científica nas Ruínas Romanas de Milreu (Estoi, Faro) Ficha técnica

Reconstituição da fachada principal do Templo de Milreu (Theodor Hauschild, 1980)

Direção: GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ALFA: Raúl Grade Coelho • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Fios De História: Ramiro Santos • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'Àgua: Maria Luísa Francisco • Missão Cultura: Adriana Freire Nogueira Colaboradores desta edição: Cristina Tété Garcia, Mauro Rodrigues Parceiro: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB: https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve

CRISTINA TÉTÉ GARCIA Arqueóloga

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lustração científica significa criar desenhosrepresentativosdeinformação científica, tornando-a inteligível aos olhos de públicos mais vastos. As Ruínas Romanas de Milreu fazem parte de um sítio arqueológico, cuja ocupação humana remonta ao século I d.C., prolongando-se até à actualidade. De facto, aqueles muros, pavimentos e canalizações foram alterados e acrescentados ao longo dos séculos, de acordo com as necessidades dos seus habitantes. O seu estudo científico é, por isso, complexo e de difícil transmissão e divulgação, tendo já originado três

teses de doutoramento, uma das quais redigida em alemão e dezenas de artigos científicos. É neste aspecto que a ilustração científica é uma ferramenta eficaz de interpretação visual da ruína arqueológica, através de um trabalho de observação, selecção da informação relevante e criação de imagens esclarecedoras da arquitectura, dos elementos artísticos e da funcionalidade das construções romanas. Deste modo, o desenho “permite a composição de vários elementos não disponíveis em simultâneo”, como por exemplo, a representação do existente, situando o visitante no espaço físico, a reconstrução de partes inexistentes ou escondidas ou a “gestão da profundidade de campo” a partir da posição do observador. Afirma-se um campo desafiante no desenvolvimento de competências em comunicação visual aplicada à Arqueologia, através da procura do equilíbrio entre Arte e Ciência. O suporte utilizado pode ir da imagem digital à ilustração com recurso de técnicas tradicionais, como a tinta da china e o grafite.

O Prof. Theodor Hauschild, que desenvolveu o estudo da Villa Romana de Milreu nas décadas de 1970 e 1980, foi pioneiro na utilização da ilustração científica como suporte visual da interpretação e reconstituição arquitectónica do Templo (e que deu origem mais tarde à produção da maquete que pode ser vista no núcleo museológico). Através do Programa de Conservação e Requalificação das Ruínas Romanas de Milreu, enquadrado pelo Programa Operacional CRESC Algarve 2020, a Direcção Regional de Cultura do Algarve pretende recuperar a ilustração científica como ferramenta estruturante da divulgação do Património Cultural. Na actualidade, o desenvolvimento deste trabalho envolve um conjunto de pessoas que organizam e preparam os conteúdos históricos e arqueológicos, que verificam o rigor da informação científica e que transformam em informação visual com forte carga comunicativa. A fotografia constitui também uma fonte de apoio importante neste trabalho, assim como a pesquisa bibliográfica, arquivística e

o conhecimento do espólio arqueológico depositado nos museus. A Direcção Regional de Cultura do Algarve agradece ao Professor Doutor Artur Ramos (FBAUL) e Professor Doutor João Pedro Bernardes (UALG) o seu envolvimento nesta missão e gosto comum de tornar o

conhecimento científico das Ruínas Romanas de Milreu acessível a todos. Bibliografia: P. Salgado, et al, “A ilustração científica como ferramenta educativa”, 2015. * A autora não escreve segundo o acordo ortográfico

Reconstituição da Entrada da Casa Romana (Domus) de Milreu, esboço em grafite (Artur Ramos, 2020)


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ARTES VISUAIS

O que é a arte espontânea? SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

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expressão artística por pessoas sem formação em artes visuais, em particular através da pintura e do desenho, tem ocorrido ao longo dos tempos. Inclusivamente, a história de arte, mesmo a mais recente, quando já havia ambientes formais para a aprendizagem artística, mostra-nos que muitos artistas conceituados não tiveram formação em “Belas Artes”. Desde Van Gogh, um dos principais nomes, sobretudo no desenvolvimento do movimento impressionista, a Yves Klein, que estudou na Escola Nacional da Marinha Mercante e na Escola Nacional de Línguas Orientais, não tendo formação académica em artes. Embora para alguns a definição de artista passe por ter uma formação académica em artes, ao longo do século XX foi crescendo a aceitação de que quem não tivesse essa formação também poderia ser considerado artista, tendo surgido várias designações para enquadrar este tipo de expressão artística. Desde logo, no final do século XIX, foi usado o conceito de “arte naïf” para descrever os artistas autodidatas que desenvolviam uma linguagem pessoal e original de expressão. O termo naïf significa ingênuo ou inocente, tendo sido usado pela primeira vez em 1866, em relação às pinturas de Henri Rousseau, após este ter exposto no Salão dos Independentes. No entanto, verificou-se que, ao ser rotulado com o termo naïf, com o objetivo de menosprezar a sua obra, ocorreu o inverso. As críticas desfavoráveis, com o passar do tempo, acabaram por despertar a atenção e curiosidade para conhecer o seu trabalho, com a posterior aceitação do mesmo. Assim, embora despertando a ironia da maioria dos críticos acadêmicos, as suas pinturas foram inclusivamente valorizadas por figuras de vanguarda na época, em particular os pintores Robert Delaunay, Paul Signac, Picasso, Matisse, Paul Gaugin e Kandinsky. Feita sem muito domínio técnico, a arte naïf geralmente é praticada por pessoas que não estudaram arte e criam suas obras guiadas pelo instinto e pela sensibilidade. O artista naïf caracteriza-se por ser autodidata, desconhecer ou recusar as regras académicas ou

clássicas de composição e técnica, sendo a originalidade, a criatividade e a espontaneidade as principais características da sua produção artística. É diferente do artista folclórico ou tradicional, como os indígenas e certas formas de arte popular, pois o artista naïf não repete padrões fixos herdados dos ancestrais ou da coletividade. A arte naïf muitas vezes é associada à arte infantil, pela característica espontaneidade e liberdade criativa, mas distingue-se dela por não ser o resultado de um estágio específico de maturação cognitiva e motora. De entre os praticantes de artes visuais sem formação académica neste domínio contam-se as pessoas com experiência de doença mental. Para estas situações particulares também surgiram diversas designações na literatura. Desde logo, no final do século XIX surgiu o termo de “arte degenerada”, dizendo respeito às produções artísticas de “artistas rebeldes” ou de pessoas com doença mental, que se desviavam das regras tradicionais, sendo desvalorizadas e consideradas como “lixo”. Este termo teve particular destaque durante o regime Nazi, na Alemanha, em que foram consideradas como “degeneradas” todas as obras de arte que não estavam de acordo com o ideal de beleza clássico e naturalista. Em 1947 surgiu ainda um outro conceito, a “arte bruta”, usado para procurar descrever as produções artísticas realizadas de forma completamente livre, resultando da pulsão criativa de cada artista, sem imposição de regras académicas, pois estas poderiam limitar a liberdade de expressão criativa. Jean Dubuffet foi o primeiro a usar este conceito, como título de uma exposição de obras da sua autoria. O conceito de arte bruta pretendia integrar as produções de artistas marginais, de arte naïf, de arte primitiva e ainda de doentes mentais. Em 1948, Dubuffet fundou a Companhia de Arte Bruta, à qual pertenceram diversos artistas que vieram a ter algum destaque na história de arte, como André Breton ou Michel Tapé. Mas especificamente para enquadrar as obras de pessoas com doença mental surgiram outras designações ao longo do século XX, nomeadamente arte pura, arte visionária ou arte marginal. No entanto, tendo em conta que a espontaneidade é comum aos processos envolvidos na produção artística em qualquer destas designações, o conceito de arte espontânea parece ser o mais

EM CIMA Pintura “A Musa inspirando o Poeta” (Henri Rousseau, 1909) EM BAIXO Pintura “Sem título” (Ismael Gonçalves, 2020) FOTOS D.R.

abrangente e consensual para descrever a expressão artística de pessoas diagnosticadas com doença mental. Assim, o conceito de arte espontânea designa as obras que apresentam qualidades de expressão estética, na forma de desenho, pintura ou escultura, realizadas por pessoas com experiência de doença mental. E a arte espontânea pode ter um papel muito importante para a estabilização e recuperação no âmbito da saúde mental.

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MARCA D'ÁGUA

A Natureza e a Poesia de mãos dadas MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

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arço é o mês em que se celebra o Dia da Árvore e das Florestas, o mês em que volta a Primavera e se celebra também o Dia Mundial da Poesia. A Ecologia e a Poesia, duas áreas que me apaixonam, juntam-se comemorativamente neste mês. E até uma outra área que não me é indiferente entra aqui: a política. Neste momento em que escrevo ainda não se realizou a Reunião do Conselho de Ministros, onde o futuro da floresta será debatido. Recordo que a Confederação dos Agricultores de Portugal (CAP) apelou ao Presidente da República para que inicie o seu segundo mandato inaugurando um debate amplo e consultando especialistas e representantes do sector florestal. As árvores e a floresta são importantes para o nosso bem-estar e ninguém terá dúvidas de que é crucial garantir o futuro da Floresta portuguesa, pois é um activo importante para a retoma da economia. Tudo está ligado e por isso, sem uma correcta gestão e sem apoios ao investimento florestal ficamos mais pobres a longo prazo. A floresta é uma densa rede de relações entre todos os membros do ecossistema, do qual também somos parte. Às vezes sento-me a escrever perto das árvores e penso em todas estas questões, porque não posso deixar de estar envolvida com o que me rodeia.

A incrível capacidade de auto-cura contida num abraço Umas vezes sem inspiração outras a me sentir poeta social por isso quero com a razão e a emoção levar a poesia a quem lê o jornal

FOTO D.R.

Quando ando pela serra algarvia, penso nos nossos antepassados que cuidaram das árvores que nos dão sombra e frutos. Muitos deles

eram analfabetos e o seu sentir, tal como as suas palavras não ficaram no papel, mas o suor das suas mãos envolveu cada árvore tornando-a poema táctil. O último poema que escrevi ao meu pai foi publicado no suplemento DN Jovem. Quando o Diário de Notícias chegou, o meu pai tinha partido uns dias antes e já não leu o poema a ele dedicado. Li-o junto da última árvore que ele abraçou antes de me abraçar e me morrer nos braços. Por isso cada árvore é uma extensão desse abraço, que nunca poderei esquecer, e que inspira cada dia. Foi em grande medida a partir da experiência de morte que a poesia se tornou uma parte tão importante da minha vida. Poeta não é só quem faz poesia. É também quem tem sensibilidade para compreender a poesia nessa ambiguidade chamada interpretação. As árvores sempre inspiraram os poetas. Camões escreveu um soneto que começa assim: “Árvore, cujo pomo, belo e brando (…)” e termina desta forma:

“Que pois me emprestas doce e idóneo abrigo a meu contentamento, e favoreces com teu suave cheiro minha glória, se não te celebrar como mereces, cantando-te, sequer farei contigo doce, nos casos tristes, a memória.”

Neste Inverno de pandemia, que nos parece tão longo, nunca a Primavera foi tão desejada! É já no próximo dia 20 de Março às 9h37 que começa a estação de tantos encantos. E como diz o poeta Ruy Belo, na parte final do seu poema intitulado “Árvore rumorosa”: “Não há inverno rigoroso que te impeça de rematar esse trabalho que começa na primeira folha que nos braços te desponta Explodiste de vida e és serenidade e imprimes no coração mais fundo da cidade a marca do princípio a que tudo remonta.”

A 21 de Março, para além de se celebrar o Dia Mundial da Poesia, da Árvore e das Florestas, é também Dia Internacional Contra a Discriminação Racial e Dia Internacional do Síndrome de Down. Que a poesia aqueça os nossos dias e, se for possível, abracemos uma árvore, é um abraço tão terapêutico! Há cientistas que referem que esse contacto directo com as árvores, num abraço envolvente, ajuda a reduzir o stress e até a dor crónica, porque o nosso corpo tranquiliza ao retornarmos à natureza, ao nosso ambiente original. Abraço árvores sábias e discretas que me acolhem no seu regaço percorro troncos rugosos filhos de um tempo que abriga cansaços e habito silêncios da «Serra-Mãe» dando tons de vida à morte dos dias. Maria Luísa Francisco

* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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ESPAÇO ALFA

A veracidade de tudo e todos na terra e no universo MAURO RODRIGUES Membro da ALFA – Associação Livre Fotógrafos do Algarve

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om as experiências e o conhecimento adquirido ao longo dos séculos com a Camera Obscura, do estudo das lentes e dos processos químicos em diferentes materiais fotosensíveis, foram muitas as descobertas científicas no passado que levaram o inventor francês Joseph Nicéphore Niépce em 1826 à primeira fotografia permanente documentada da Humanidade, fotografia essa que sobrevive até aos dias de hoje, 195 anos depois, num processo chamado de heliografia, uma placa de prata coberta com um derivado de petróleo fotossensível chamado de Betume da Judéia. Mas foi através da parceria com Louis Jacques Daguerre e a invenção do Daguerreótipo em 1837 que o processo fotográfico foi realmente aperfeiçoado, ao reduzir o tempo de exposição e a fixação do material fotosensível às placas fotográficas, mergulhando-as em soluções químicas aquecidas com sal de cozinha (mais tarde iodeto de potássio, um sal mais eficaz). William Talbot foi outra figura importante na altura que aperfeiçoou o processo químico do próprio papel foto-

gráfico com nitrato de prata e ácido gálico posteriormente fixado numa solução de hipossulfito de sódio. Este equipamento foi tão revolucionário e inovador na altura, que foi rapidamente considerado de domínio público pelo governo francês. Aliás, o porto de Lisboa e do Funchal, incluindo a Rainha Maria II de Portugal em 1839, foram fotografados com este equipamento, que se tornou num produto viável para ser comercializado. Mas a fotografia teve um grande impulso no seu desenvolvimento e expansão devido ao grande avanço tecnológico que estava a ocorrer na Europa, com grandes inovações nos processos da industrialização e no crescimento sustentado da população a níveis nunca vistos. Tudo melhorou ou tudo mudou? É um caso para pensar nos dias de hoje… na realidade o facto é que o trabalho saiu das mãos dos artesãos para as mãos das máquinas, incluindo os artistas pintores que na altura falavam da “morte do artista” ao serem confrontados com a invenção da fotografia. O processo imediato / instantâneo da captura da realidade e da sua verdade intrínseca veio revelar e preservar o momento, veio preservar a memória e efectivamente mostrar como a Humanidade na realidade é. Foram muitos os sectores que aproveitaram esta revolução da imagem, principalmente o jornalismo, onde as fotografias repre-

sentavam a partir de agora, um registro histórico inegável e para sempre. Até a política inovou na altura, principalmente na justiça, uma vez que os “factos históricos” eram facilmente embelezados ou distorcidos de forma a camuflar uma realidade, com a democratização da fotografia, isso tornou-se muito mais complicado de desmentir. Em 1889 outra revolução, desta vez, George Eastman inventou a câmara fotográfica de rolo de 35mm, que fez baixar consideravelmente o preço das câmaras, dos rolos de filme e da própria revelação com o negativo, o nome da empresa é a Eastman Kodak Company e a câmara, a Kodak nº 1. Os irmãos Lumiére aproveitaram uma patente perdida e inventaram o cinema, com a fotografia em movimento em 1895 e mais uma vez a Humanidade iria ser levada para campos onde a veracidade torna-se acessível a todos e a tudo. Era irreal e de tal modo impressionante que os primeiros espectadores fugiram do cinema onde o primeiro filme foi projectado, uma vez que mostrava um comboio a vir em direção da objectiva (ou da tela), a população literalmente pensava que o comboio iria entrar pelo cinema adentro. A ciência rapidamente aproveitou a invenção para mostrar a realidade da diversidade do nosso Planeta e do Universo como nunca

George R. Lawrence e a sua equipa instalando a maior máquina fotográfica da altura (640 Kg), para criar a maior fotografia da altura, para fotografar um comboio da Alton Limited em 1900 FOTO D.R. ninguém tinha visto, com detalhes impressionantes, com descobertas e imagens que se tornaram icónicas e transformaram o próprio tecido do pensamento do ser humano. Imagens icónicas como as do planeta Marte em 1965 quando a sonda especial Mariner 4 enviou as primeiras fotografias digitais de volta para a Terra. Invenção essa que originou a revolução digital ao nível do consumidor comum como conhecemos hoje em dia.

A invenção da fotografia é inegável na transformação do Mundo e do pensamento e hoje em dia está tão disseminada que ninguém consegue viver sem ela, aliás, a fotografia hoje em dia é considerada descartável, mas representa um marco histórico na nossa evolução como espécie e que pode estar de novo em risco de sofrer outra transformação, a da Inteligência Artificial, mas isso, meus amigos, é material para outro artigo no futuro…

ESPAÇO AGECAL

A civilização “reaparecida”, o Al Andalus no Algarve JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

"Civilização desaparecida” é uma referência irónica que constatou o escasso relevo dado à herança cultural muçulmana na narrativa histórica sobre Portugal anterior à democracia. Plena de “eternos retornos” e “reconquistas”, é uma evidência que no século VIII as populações peninsulares e do norte de África se conheciam, eram herdeiras da romanização, a cristianização e islamização foram processos evolutivos. A presença muçulmana na Península Ibérica, entre o séc. VIII e XV, deixou marcas materiais e imateriais profundas, também no Garb al Andalus, o actual Algarve. O desinteresse pelos “estudos árabes”, com algumas excepções, foi consequência do latinismo, do nacionalismo e reinvenções mitológicas que acompanharam a criação do Estado Nação, exacerbadas durante as ditaduras ibéricas, em Portugal (1928-1974) e em Espanha (1939-1976). Por contraposição

e rivalidades foram relegadas para segundo plano as influências muçulmanas que permanecem na língua, toponímia, arquitectura, habitação, agricultura, engenharia, hidráulica, quotidiano,… Sobre o legado cultural muçulmano, muitas vezes designado por árabe ou islâmico, importa referir que a terminologia resulta de diferentes conceitos. Árabe era a etnia dos dirigentes religiosos e militares que ocuparam o norte de África e o sul da Europa, impondo a língua e religião islâmica como elementos unificadores da colonização. Permaneceu a cultura moçárabe, a dos cristãos habitantes da Península, bem como a cultura judaica essencialmente étnica, não expansionista, diferente do cristianismo e do Islão. Através da investigação actual sabe-se que o relato da “invasão árabe” de 711 d.C é considerada pouco rigorosa, não só porque Tarik e o seu exército de poucos milhares de homens, eram na sua maioria berberes-amazighs, também porque a entrada na Península ocorreu a

pedido de uma facção da monarquia hispano-visigoda em guerra civil. O reduzido efectivo fez com que adoptassem uma gestão política consentânea com os novos equilíbrios económicos, sociais e religiosos, permitindo coexistências baseadas em normas negociadas. Afastando-nos da versão histórico-romântica alguém deixou escrito ”…os cristãos fazem incursões no País e apoderam-se dos despojos, os árabes e o fisco levam-nos o resto…”. Os berberes vindos para a Ibéria eram na sua maioria provenientes do “Magrebe verde”, zonas cerealíferas, de pomares de sequeiro, fruteiras e criação de gado, estabeleceram na Península as suas “alcarias”, mas também comunidades urbanas onde concentraram poderes e saberes. As elites do Al Andalus, considerado como o “primeiro renascimento”, foram vanguarda do pensamento medieval mais avançado, a medicina árabe era ensinada nas universidades europeias. Os muçulmanos dinamizavam escolas corânicas, onde as crianças aprendiam textos

religiosos, língua e escrita, enquanto a Europa cristã continuava esmagadoramente analfabeta. No século XX cresceu o interesse e a investigação sobre as civilizações mediterrânicas, abriram-se novas perspectivas para as relações milenares entre as duas margens do Mediterrâneo, mais de dois mil anos de comércios, de competições e conflitos entre os vários impérios, greco-bizantino, romano, otomano, romano-germânico,… Com a implantação das democracias ibéricas (1974-1976) proliferaram na Península estudos e cursos de árabe, edições, literatura, investigação arqueológica e linguística, intercâmbios… São hoje importantes referências em Portugal os trabalhos de David Lopes ainda no século XIX, Garcia Domingues (arabista, natural de Silves), Christophe Picard (“Le Portugal musulman, séc. VIII-XIII”), Borges Coelho (“Portugal na Espanha Árabe”), Cláudio Torres e Santiago Macias (Campo Arqueológico de Mértola), Teresa Gamito e Helena Catarino (arqueologia me-

dieval), Adalberto Alves (língua e poesia árabe), entre muitos outros… O interesse pela cultura muçulmana no Algarve foi visível nas últimas décadas com recuperação de algum património fortificado e urbano, a criação de núcleos museológicos por autarquias e acções regulares de divulgação do período muçulmano em Silves, Tavira, Loulé, Vila do Bispo, Cacela, Faro, Albufeira, do património oral e poesia, foram ainda promovidas geminações entre cidades algarvias e marroquinas. A dieta mediterrânica inscrita como PCI da Humanidade da UNESCO (2013), também com Portugal e Marrocos, permitiu aprofundar quotidianos e hábitos alimentares, constataram-se diferenças mas sobretudo enormes afinidades no estilo de vida. A história e a herança cultural muçulmana no Algarve, a “região mais mediterrânica” do País, merece atenção, dando continuidade à investigação, preservação e divulgação. * O autor não escreve segundo o acordo ortográfico


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

Filosofia Dia a Dia: O Espaço e o Tempo MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

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espaço e o tempo são formas a priori da sensibilidade tal como postula o filósofo alemão Immanuel Kant na sua Crítica da razão pura, publicada pela primeira vez em 1781. A priori significa independente da experiência. Quer isto dizer que independentemente do objecto que nos seja dado à percepção, o espaço e o tempo estão sempre lá, dando forma e possibilitando essa experiência. Os dados dos sentidos são recebidos nesse formato espácio-temporal que configura o nosso horizonte perceptivo. Tente-se imaginar um objecto, qualquer que ele seja, pode ser até um objecto fictício, tentemos imaginá-lo sem que nos seja dado num certo espaço e num determinado tempo. Mesmo que esse espaço aconteça no interior da nossa cabeça, e o tempo seja um tempo imaginado, é impossível que qualquer coisa se apresente fora destas duas coordenadas. Em época de pandemia, ao atravessarmos um período de confinamento prolongado, cumpre perguntar o que é que acontece quando ficamos cerceados no espaço. Mais ainda quando esse espaço pode, eventualmente, ser fechado, se não se tem um jardim, um terraço ou uma varanda. Cumpre também perguntar se, e de que modo, é que esta contracção do espaço influi na percepção do tempo. Vivíamos acossados pelo tempo do relógio, as horas a trote, os minutos a galope e os segundos, esses, tão rápido que nem senti-los! A vida num desviver de prazos e obrigações de correria infernal. Eis se não quando, se abate sobre nós uma pandemia e, de repente, não há correria possível, a não ser que se compre uma passadeira rolante para a cozinha, se possível a barrar o frigorífico, que isto de ficar em casa engorda. Julgávamos que aquela correria toda, o não conseguir parar em casa, o não ter sossego, o estar sempre a saltar de um programa para outro, era a vida. Queixávamo-nos mas, lá bem no fundo, gostávamos de nos poder queixar. Estávamos ocupados, e isso fazia-nos sentir bem. Éramos necessários, precisavam de nós, tínhamos um papel a desempenhar na sociedade e, se somos sinceros, com maior frequência do que admitiríamos, julgávamo-nos imprescindíveis. Mas o inimigo invisível veio demonstrar-nos que não. Afinal, até parece que não fazemos falta nenhuma, ou decerto bastante

Oráculo de Delfos

FOTO D.R.

menos do que supúnhamos. De repente, temos muito mais tempo mas muito menos espaço. O espaço está cheio das coisas da casa e das pessoas da casa, que padecem a mesma condição. E com tanto mais tempo e tanto menos espaço os encontrões são inevitáveis. Anda-se às turras por tudo e por nada, e nem sequer dá para ir arejar, dar dois dedos de conversa com os colegas de trabalho, ou ir ver o futebol pró café. Quem vive sozinho não corre o perigo dos encontrões, mas sente a presença das paredes que parecem abater-se sobre o próprio. Há também o silêncio, o silêncio, que as vozes da televisão e do rádio não fazem mais que mascarar. Damo-nos conta, quiçá pela primeira vez, do valor inestimável da voz humana, proveniente de um corpo quente ali ao pé. E até a palavra menos amistosa, até a discussão desagradável, parecem agora preferíveis ao silêncio que cheira a morte. A casa, porto de abrigo, transformou-se em prisão. Mas terá de ser assim? Vivia-se virado para fora em milhentos afazeres, convívios e diversões, e agora não há mais remédio senão virar para dentro. E esquecemo-nos de como se faz. Parecemos os prisioneiros no fundo da caverna de Platão, que julgam que as sombras projectadas na parede são a realidade. E agora que ficámos sem essas projecções ilusórias ensandecemos.

Queremos rapidamente outra ilusão para substituir a que tínhamos. Queremos engolfar-nos num frenesim, queremos ocupar-nos com não importa o quê, tudo é melhor que a cabeça abandonada a si própria. É como se fossemos seres tóxicos para nós próprios. Deixados a sós tendemos para a auto-destruição. Mas terá de ser assim? Na alegoria platónica os prisioneiros agrilhoados no fundo da caverna podem apenas olhar em frente, para as sombras projectadas na parede do fundo da caverna. Há um que consegue soltar-se, vira as costas aos companheiros e à parede de sombras e empreende o caminho ascendente que leva à saída da caverna. Quando conseguir sair verá a luz do dia e terá acesso às coisas mesmas, à verdadeira realidade. Porém, até lá chegar, passa por muitos perigos, e por muitos momentos de exasperação. À medida que avança, a luz aumenta e o prisioneiro, habituado à escuridão no fundo da caverna, experimenta uma dolorosa ofuscação. É a cegueira, a perda total de referentes, a fragilidade tremenda. Apenas com insistência e com tempo, os olhos conseguem adaptar-se e o prisioneiro pode prosseguir... Até que um novo momento de ofuscação o obrigue a parar, e de novo padeça de incapacidade, de ineficácia, com o imenso medo que acarretam.

Apesar das dificuldades do caminho, uma vez empreendido, o prisioneiro já superou a prova mais difícil de todas. Nenhum período de ofuscação será tão duro nem tão difícil como aquele gesto inicial, centro nevrálgico desta alegoria: o momento em que o prisioneiro vira o pescoço. Virar o pescoço significa que se modificou o ponto de vista. O horizonte de sentido expande-se. De repente, aquilo que se julgava ser a realidade, não só se revela uma falácia, mas sobretudo exibe a sua condição mínima, exígua... Apenas sombras na parede da caverna, quando os verdadeiros objectos que as provocam estão lá fora, num mundo imenso, sob a vastidão do sol e do céu. No nosso caso, a contracção do espaço fez com que se produzisse uma ampliação do tempo, e este obrigou, queiramos ou não, a virarmos o olhar para dentro. E estamos ofuscados, os olhos doem e não conseguimos ver nada. Levámos toda a vida virados para fora, não sabemos lidar com esta calma, com este silêncio, com esta inactividade, com todas estas condições tão propícias à introspecção. De repente, damo-nos conta de que o relógio é um instrumento de medição do tempo muito rudimentar. A nossa própria linguagem que divide em passado, presente, e futuro, a forma-tempo que nos constitui, é tosca e grosseira. Experimentamos muito mais formas-tempo que essas.

Qualquer obra musical é um bom exemplo disso. Olhar para dentro custa muito. Então, por todo o lado se oferecem para vir em nosso auxílio. São gurus e xamanes, videntes e cartomantes, uma quantidade enorme de gente que diz ter ficado iluminada num qualquer retiro de fim-de-semana, ou num curso pela internet. Há sempre quem tenha a suficiente astúcia para se aproveitar dos mais frágeis ou incautos. Que fazer então? Nas sei. Não sei. Não sei. Tomara vislumbrar para além da minha própria ofuscação. Não sei. Não sei. Não sei. “Só sei que nada sei.” ― A douta ignorância socrática! Não vou mascara-la com uma falsa sabedoria que me apazigúe deste estar a sós comigo. Escolho aturar-me. Agora que não posso escalar montanhas, nem fazer aquele safari tão estupidamente adiado, talvez tenha chegado o momento de cumprir o oráculo de Delfos. Agora que o espaço em meu redor se contrai e o tempo se expande, abraço esta inexorável aventura: “Conhece-te a ti mesmo!” Partilhe as suas reflexões no grupo Café Filosófico do Facebook: https://www.facebook.com/ groups/1369727349722120 ou por email: filosofiamjn@gmail.com

* A autora não escreve segundo o acordo ortográfico


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FIOS DE HISTÓRIA

O Mito e a Sombra RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com Fez do Algarve o seu navio. E de Sagres e Lagos, cais de partidas e chegadas para sonhos e descobertas embarcados com a fé, a espada, mais o ouro, as pescas, o comércio e os escravos. D. Henrique, o infante navegador que a história assim o haveria de registar, concentra em si a glorificação do mito e um mar de interrogações. É luz e sombra. Solidão rodeada de água e gente. Homem de fé e negociador implacável. Sonho e pesadelo. Este filho de D. João I encarna a epopeia contada de uma certa maneira e que assim se foi afirmando como narrativa dominante: venceu o longe e o desconhecido, o cabo Não e o Bojador, os monstros marinhos e as águas ferventes, levando as caravelas até à serra Leoa. D. Henrique, a quem lhe coube o princípio dos mares, é também a construção que dele fez Zurara, contador de biografias e de memórias lembradas. E que muitos outros haveriam de replicar por séculos adiante, afirmando a ideia de que só a ele coube ter o feito e a glória que era obra coletiva de uma nação inteira. O cronista celebrou D. Henrique como um predestinado astral e “príncipe pouco menos que divinal” o qual, perdendo a sua dimensão humana, “passou do palco da vida para o altar”. E assim ficou. Porém, nem todos lhe copiaram essa retórica de exaltação mística. Por

exemplo, outro cronista, Rui de Pina, fez por lembrar que o ‘conquistador’ de Ceuta não evitou os desastres de Tânger e de Alfarrobeira, nem a assombração dos dias! E não deixou de lhe apontar o dedo pelas morte de seus dois irmãos. Mas, sem lhe retirar os méritos que a história havia de registar como impulsionador dos marinheiros algarvios, levando-os a vencer “o medo e o desconhecido”, a historiografia moderna deixou de se rever neste exclusivismo da narrativa oficial, procurando resgatar da obscuridade, a memória e o papel do infante D. Pedro, nessa fase inicial dos descobrimentos portugueses. Para estes, a figura do príncipe das Sete Partidas do Mundo ficou injustamente escrita em letra menor na história daquela época. Vítima de conspirações palacianas e de intrigas de uma certa nobreza senhorial feudal que o levaram à morte em Alfarrobeira. Nesta perspectiva da história, os dois irmãos são duas faces da mesma moeda, personificando, embora, visões diferentes para o Portugal de então. Porém, essas clivagens ideológicas não constituíram obstáculo para uma cooperação mutuamente profícua. O infante de Sagres recebeu sempre do irmão, enquanto príncipe regente, todo o apoio para a concretização dos seus projetos e empresas, a par das iniciativas da própria coroa. D. Henrique, administrador da Ordem de Cristo, com sede em Castro Marim, herdara a riqueza dos Templários, e tornou-se também governador perpétuo do Algarve. Ficou, por esse facto, com o monopólio das pescas, dos corais, mais o sabão e o

óleo das focas e baleias, tendo recebido ainda a concessão de um quinto do negócio da venda de escravos que começavam a chegar a Lagos, “filhados pelas suas embarcações no litoral africano”. Até à sua morte em 1460, acumulou uma enorme fortuna que lhe serviu para financiar as iniciativas que promovia na expansão e defesa das praças marroquinas e na exploração da costa atlântica, compensando generosamente, com honras e mercês, os marinheiros e escudeiros de sua Casa. A sua vida reparte-a, por longos períodos, entre Tomar e o Algarve. Aqui fez morada em Lagos e na Raposeira, num monte sobranceiro à ermida de Nª Sra de Guadalupe. Mas foi de Lagos que fez a sua base operacional. A partir daqui recrutou e mobilizou pescadores e marinheiros conhecedores dos mares e da navegação. O Bojador era o limite da navegação possível. Para além dele ficavam o mistério e os abismos do medo! Não se sabe ao certo em que ano passou D. Henrique a permanecer “definitivamente” no Algarve. Sabe-se sim que, aos 21 anos, em 1416, aqui veio com uma armada de socorro a Ceuta. E desde então passaram a ser cada vez mais frequentes as suas visitas ao Algarve. Alberto Iria, pescador de livros que lhe assinalam os dias, seguiu--lhe os passos e foi encontrá-lo em lugares tão variados e dispersos como Sagres, Castro Marim, Lagos, Tavira, Faro e Bansafrim. Um dia em Silves, no seguinte em Albufeira ou em Estômbar, outro ainda na Mexilhoeira, Alvôr, Quarteira ou a rezar na Raposeira. Certo é que, em 1437, após ter esperado cinco meses em Ceuta para “ver a conclusam que no livramento do

Infante Dom Fernando se tomava... se veo ao Algarve e aqui fez a sua morada”, tomando verdadeiro contacto com a vida dos pescadores, navegantes e mercadores que há muito se iam aventurando pelos águas da costas de Granada e do levante. Antes de se fixar de forma mais permanente no Algarve, sobretudo em Sagres e Lagos, sabe-se que estava nesta cidade quando Gil Eanes dobrou o Bojador, em 1434, e que, cinco anos depois, recebeu carta e autorização do regente D. Pedro, para edificar a sua “villa no Cabo de Trasfalmenar”, que ambos visitaram, e a que lhe daria o nome Villa do Infante: “mynha villa de Sagres onde vivo no cabo do mundo”, como escreveria mais tarde. E estando em Lagos a 7 de Agosto de 1444, assistiu ao regresso das caravelas de Lançarote de Freitas com 236 escravos e mandou tirá-los e “levar a aquelle campo que esta a alem da porta da villa” os mouros cativos trazidos de África, “dos quais o infante havia de haver o seu quinto” do negócio. Pressentindo que estava próximo o seu fim, redigiu a 28 de outubro de 1460, o próprio testamento autenticado e “asynado per my e assellado do sello das mynhas armas feitas em mynha villa do iffante”. Henrique, o Navegador, como ficou imortalizado, faleceu a 13 de novembro. Uma quinta-feira. Em Sagres. Assim o deixou dito, Diogo Gomes, seu moço de câmara: “no anno do Senhor de 1460 o senhor iffante Henrique adoeceu na sua villa, da qual doença morreu em 13 de Novembro do mesmo anno, em uma quinta feira. E na noite em que morreu, o levaram para a igreja de Santa Maria

em Lagos, onde foi sepultado honradamente”. Transladado mais tarde para o Mosteiro da Batalha, ali dorme o sono eterno. Na companhia de seus pais e irmãos. E de D. Pedro. Fontes: “Crónica da Conquista da Guiné” e “Crónica da Tomada de Ceuta”, Gomes Eanes de Zurara; “Crónica d’El Rei D. Afonso V”, Rui de Pina; “O Intinerário do Infante D.Henrique no Algarve”, Alberto Iria; ”Documentos sobre a Expansão”, Vitorino Magalhães Godinho; “A Maldição do Infante D.Pedro”, Alfredo Pinheiro Marques; “Mito e memória do Infante D. Henrique”, Mª Isabel João; outras

(Painéis de S. Vicente – óleo e têmpera sobre madeira de carvalho) Uma obra prima dificil de interpretar, as seis pinturas atribuídas a Nuno Gonçalves, apresentam um conjunto de 58 personagens em torno da dupla figuração de S. Vicente, patrono e inspirador da expansão militar quatrocentista FOTOS D.R.


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PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

O regresso de Júlia Mann a Paraty, de Teolinda Gersão, cuja obra é publicada pela Porto Editora, foi lançado em Janeiro deste ano, em simultâneo com a publicação da 7.ª edição da colectânea de contos A mulher que prendeu a chuva e outras histórias. A autora, que completa agora 81 anos e celebra os seus 40 anos de vida literária, foi leitora de português na Universidade Técnica de Berlim e professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa, onde ensinou Literatura Alemã e Literatura Comparada. Este pequeno grande livro compõe-se de três novelas que se entrecruzam, de modo surpreendente, e daí poder ser lido como um romance. Um livro que rememora o século XX, na forma como dá voz a dois dos seus grandes pensadores, nomeadamente Thomas Mann, que cruza filosofia com literatura, e Freud, mentor da psicanálise, com a sua perspicácia em detectar recalcamentos e fazer analogias. E quem mais se exteriorizou na escrita, vivendo as paixões homossexuais que em vida procurou reprimir, do que Thomas Mann? Não precisamos de pensar no mais óbvio Morte em Veneza, mas se lermos a tetralogia de José e os seus irmãos, é difícil não nos ofuscarmos com o amor do autor pelo jovem José. Mas a homossexualidade de Thomas Mann parece tornar-se invisível, face ao pecado maior da mãe, Júlia, que traz em si a mancha de um sangue impuro, mestiço, pois Júlia tem ascendência portuguesa e índia, tendo vivido no Brasil até aos sete anos, sendo depois arrancada a esse mundo de liberdade, de excesso, de cores vibrantes, de doce, quando é levada para a Alemanha. O virtuosismo na arte da novela de O regresso de Júlia Mann a Paraty reside sobretudo na forma como assenta em cartas nunca escritas, diálogos mudos que se estabelecem com interlocutores ausentes, como Mann que escreve a Freud em pensamento e viceversa, ou na forma como Júlia escreve mentalmente ao pai cartas nunca enviadas. Virtuosismo narrativo que culmina num volteface, presente e insinuado, mas revelado apenas no final.

Postal, 5 de março de 2021

Teolinda Gersão celebra 40 anos de vida literária

R Creio que o registo ficcional está sempre presente, desde o início: Parti de uma investigação sobre figuras reais, e os factos narrados aconteceram, mas o leitor percebe de imediato que se trata de um livro de ficção. Júlia é de facto uma figura secundária, comparada com as grandes figuras de Freud e de Thomas Mann. Mas o livro pretende trazê-la para o primeiro plano e dar-lhe voz, porque também ela é, a seu modo, uma personagem extraordinária, embora tenha vivido na sombra.

FOTOS HOMEM CARDOSO | D.R.

A cronologia do livro é contrária à da vida real P Nesta narrativa opta por uma cronologia inversa, pois começamos com a geração dos filhos de Júlia Mann, nas primeiras duas novelas, para depois chegar ao percurso de vida da mãe. Como se as gerações vindouras fossem marcadas por um passado que só depois é desvelado. Pode inclusive ler-se que os seus dois filhos eram escritores porque herdaram «a sua capacidade infinita de memória, e o poder de a recuperar, nos mínimos detalhes» (p. 101).

Entrevista à escritora Teolinda Gersão

Recuso-me a aceitar que haja culturas superiores ou inferiores, o que há são culturas diferentes P Uma das primeiras impressões deste livro, nos seus 40 anos de escrita, é a de que cruza parte do seu percurso geográfico: Alemanha e Brasil.. R É verdade que vivi três anos na Alemanha e dois no Brasil, em São Paulo, e portanto conheci por experiência os dois países. Claro que foi sobretudo no Brasil, que considero o meu segundo país, que me senti mais “em casa”, não só por falar a mesma língua, como pela afectividade das pessoas, e por ser, como nós, um país do Sul. Também eu pertenço ao Sul, gosto

do sol, do calor, do modo de ser dos povos do Sul. Temos obviamente defeitos (sou muito crítica dos nossos), mas não somos em nada inferiores aos povos do Norte. Aliás, recuso-me a aceitar que haja culturas superiores ou inferiores, o que há são culturas diferentes, mas todas igualmente válidas. É um erro enorme, e uma arrogância insuportável, a forma displicente, paternalista ou punitiva com que somos por vezes tratados pelos povos do Norte, na União Europeia e não só. Dito isto, viver, estudar e ensinar na Alemanha, sobretudo em Berlim, foi

uma experiência imensamente enriquecedora. Pela primeira vez olhei Portugal a partir de fora, e confrontei-me com uma cultura muito diferente da minha. Encontrei-lhe defeitos, mas também enormes qualidades. P Outra primeira impressão é a de que este livro parece iniciar como ensaio para depois se tornar numa ficção, um ensaio de biografia de uma figura secundária na História, quase uma nota de rodapé na vida de outros.

R É verdade, a cronologia do livro é contrária à da vida real. Freud pensa em Thomas Mann em 1938, Thomas Mann pensa em Freud em 1930, e a história de Júlia termina em 1923, ano da sua morte, portanto a narrativa da última parte aconteceu antes disso. Também é verdade que foi Júlia a trazer a criatividade e a vocação artística para a família Mann, herança que transmitiu aos filhos, como aliás Thomas Mann reconhece. Antes de Júlia, os Mann eram uma família de empresários e comerciantes, dedicados acima de tudo aos interesses da firma.

Ainda que Thomas Mann seja sobejamente conhecido, e figura central às duas primeiras novelas, é curioso como, na terceira novela, Júlia se centra mais em Heinrich. Muitas vezes o que sabemos de Thomas é por contraste com Heinrich. P

R O contraste entre os dois não podia ser maior, e a sua rivalidade/inimizade também não. Thomas considerava inclusive que o maior problema da sua vida era Heinrich. Esse facto só trouxe a ambos um sofrimento a que Júlia não ficou alheia. Como mãe, fez tudo o que podia para os reconciliar, e morreu na ilusão de ter conseguido esse objectivo maior da sua vida. Mas também Freud, na primeira parte do livro, dá grande relevo a Heinrich, e tenta mostrar a Thomas, numa carta que realmente lhe enviou, como a inimizade entre ambos, mais patente do lado de Tho-


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LETRAS & LEITURAS

mas, só podia ser destrutiva. Mas Thomas não entendeu a mensagem. P Ainda que nunca o faça de forma declarada, aquela que parece ser uma grande questão da vida de Thomas Mann, a sua homossexualidade reprimida, que Freud aborda em profundidade, a vida de Júlia parece mais fortemente marcada pela discriminação, pela mancha de que os próprios filhos se envergonham, de ter uma mãe mestiça. R A mestiçagem começava na mistura do sangue português do seu avô Manuel com o sangue índio de uma brasileira. E depois a mestiçagem desse sangue já cruzado com o sangue alemão. Essas misturas eram mal vistas na época, nos países europeus do Norte, e a sociedade fechada, burguesa e rica de Lübeck, cidade mercantil e portuária do norte da Alemanha, era muito sensível a essa perspectiva.

tivera à venda.» (p. 120) É uma característica da época. As mulheres não tinham autonomia económica, o seu valor dependia da sua beleza, prendas domésticas, e sobretudo do dote, determinante num casamento. Eram de certo modo vendidas e compradas, mas os homens também se vendiam, conforme o valor do dote. Os casamentos eram de conveniência, o amor não entrava na equação. Claro que os homens, e só eles, tinham liberdade de ter outra(s) mulher(es), o adultério masculino era socialmente aceite, por vezes até encarado como sinal de estatuto e riqueza. Não é por acaso que o adultério feminino foi um tema literário fortíssimo do século XIX - pensemos por exemplo em Ana Karenina, Madame Bovary, da alemã Effi Briest, ou na Luísa d´O Primo Basílio em Lisboa... Mas, ao contrário do que sucedia com os homens, o adultério feminino foi R

postumamente só em 1925 - possivelmente por receio da reacção social, uma vez que Flaubert foi a tribunal por ter escrito Madame Bovary... Mas a data tardia da publicação não retira a Eça o mérito de ter ousado escrever um livro muito à frente do seu tempo, em ruptura com o paradigma então vigente. P A vida de Júlia é pautada por uma dicotomia irreconciliável, entre o Norte e o Sul («a virtude e a sensatez nórdica, e o desregramento sexual e moral do Sul» (p. 115), entre a vida na Alemanha e a infância no Brasil, de onde foi arrancada a um mundo de liberdade, cores, e de comida, especialmente o que é doce. É curioso como mais tarde na Alemanha Júlia sente o impulso de comer neve (p. 97).

São dois mundos profundamente contrastantes, com aspectos por vezes inconciliáveis. O pequeno livro de memórias que Júlia escreve aos cinquenta e dois anos, Da infância de Dôdô, só publicado trinta e cinco anos depois da sua morte, exprime gratidão pela família paterna que a acolheu e aceitou o melhor que pôde e soube. No entanto, para o leitor não deixa de ser visível como foi naturalmente traumática para a pequena Júlia a perda da mãe aos seis anos, e, cerca de um ano depois, a mudança inesperada para um mundo inteiramente desconhecido, onde o ambiente social, o clima, a língua e até a religião e os costumes eram completamente diferentes. A avó paterna foi o seu grande apoio, mas também ela morre, poucos anos mais tarde. E, devido à sua idade avançada e circunstâncias de vida, apenas dois domingos por mês, depois do almoço, Júlia e os irmãos podiam ir a sua casa. Nos outros – muitos – dias do mês, viviam em internatos. R

O escritor, como o psicanalista, é sobretudo alguém que escuta A escritora foi professora catedrática da Universidade Nova de Lisboa

A figura da mulher (que tem sido central na sua obra) torna-se a certa altura, de forma subtil, o eixo da narrativa da vida de Júlia, nomeadamente na forma como aborda a fachada do seu casamento convencional e burguês. «Fora vendida e comprada para as funções domésticas que desempenhava, mas ela mesma, Júlia, nunca esP

sempre punido, na literatura como na vida, com o ostracismo social e uma culpabilidade interior e sobretudo exterior, que frequentemente levava à morte das transgressoras. Uma inesperada mudança de paradigma, talvez não suficientemente valorizada e salientada, é portuguesa: Surge em Alves & Companhia de Eça de Queiroz, no século XIX um livro revolucionário, publicado

P Este livro ter-lhe-á tomado bastante tempo de pesquisa e de leitura, e releitura, da obra dos autores aqui transformados em personagens. Chega mesmo a fazer uma análise crítica e a passar em revista diversas obras de ambos os irmãos Mann.

R - Muitos anos de leitura e pesquisa, sem dúvida. Mas não fiz crítica, literária ou outra, só referi algumas obras dos Mann nos aspectos em que interessavam ao contexto deste livro.

Livro é composto por três novelas que se entrecruzam

O virtuosismo na arte da novela de O regresso de Júlia Mann a Paraty reside sobretudo na forma como assenta em cartas nunca escritas, diálogos mudos que se estabelecem com interlocutores ausentes, como Mann que escreve a Freud em pensamento e vice-versa, ou na forma como Júlia escreve mentalmente ao pai cartas nunca enviadas. P

R Penso que o escritor, como o psicanalista, é sobretudo alguém que escuta. Também os silêncios, e o que os silêncios podem conter, significar, ou tentam em vão calar. Como o psicanalista, o escritor escuta a linguagem do inconsciente, a que ninguém fala. E escrita literária, como a psicanálise, é uma tentativa de “traduzir” essa linguagem silenciosa, e transformá-la em voz. P Freud refere-se com condescendência ao ambicioso projecto da tetralogia José e os seus irmãos, que surge referida recorrentemente. Se lermos a obra é aliás difícil não nos ofuscarmos com o amor do autor pelo jovem José. Já teve oportunidade de (re)ler esta nova tradução recentemente relançada pela Dom Quixote com novíssima tradução do alemão?

Partilha da opinião de Freud? R Freud não apreciou grandemente o discurso Freud e o Futuro, que Thomas Mann leu em sua homenagem na Sociedade Vienense de Filosofia Médica, como refere numa carta a Lou Andréas-Salomé. Thomas foi dias depois ler-lho a sua casa - por razões de saúde, Freud não estivera presente na sessão. Nesse texto Thomas Mann fala do livro que está a escrever, José e os seus irmãos, e, na conversa pessoal que a seguir tiveram – a única na vida de ambos – e numa carta que Freud depois lhe escreveu, o pai da psicanálise tenta mostrar-lhe que o mito dos grandes homens, como a figura bíblica de José, ou a de Napoleão, que também como José conquistou o Egipto, é um mito perigoso, e que o terreno dos mitos é escorregadio, para personalidades como a dele. Não faltará quem considere o livro magnífico, e eu respeito obviamente opiniões diferentes da minha. Do meu ponto de vista, está longe de ser um dos melhores livros de Thomas Mann, talvez mesmo de ser um grande livro. Enquanto leitora, reconheço o esforço e a tenacidade do autor, que o escreveu laboriosamente ao longo de dezasseis anos. Mas é uma obra a que raramente sinto desejo de voltar.


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