Cultura.Sul 145 4DEZ2020

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DEZEMBRO 2020 n.º 145 7.092 EXEMPLARES

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MISSÃO CULTURA

Promontório de Sagres

& Marca do Património Europeu O Promontório de Sagres representa um lugar feito Mito e um lugar feito Símbolo FOTO LUCIANO RAFALE / D.R.

RAQUEL ROXO Técnica superior da Direção Regional de Cultura do Algarve

A

atribuição da Marca do Património Europeu (MPE) ao Promontório de Sagres, em dezembro de 2015, veio confirmar a relevância deste território na Europa, quer como finisterra estratégica, integrada na conjuntura histórica do pioneirismo da expansão marítima portuguesa, quer pelo impacto que este processo causou na tradição cultural da civilização europeia moderna. Esta marca vem também reconhecer a riqueza e excecionalidade da paisagem cultural que lhe está associada, finisterra, que compreende: uma das maiores concentrações de monumentos megalíticos de toda a Europa; um importante centro de peregrinação moçárabe que teria ali existido – a Igreja do Corvo; a Ermida de Nª Sr.ª de Guadalupe; uma rede de fortificações associadas à Fortaleza de Sagres; e Lagos, que constituiu o primeiro “cais de partida” das viagens

patrocinadas pelo Infante Dom Henrique, lugar que também receberia um dos primeiros grupos de negros escravizados, capturados por europeus, no século XV, e que integra o antigo “Mercado dos Escravos” e o “cemitério” do Vale da Gafaria, ou, mais precisamente, o lugar de depósito de defuntos escravos negros. Atualmente, o projeto MPE integra um total de 48 sítios ou bens patrimoniais, que podem ser consultados através do seguinte mapa interativo: https://geo.osnabrueck. de/ehl/PT/map. Podemos observar como o século XX se encontra bem representado, sendo este o período da história de que ainda existem memórias vivas do horror, da barbárie e de tantas atrocidades cometidas. Os antigos campos de concentração de Westerbork (Holanda) ou de Natzweiler e campos anexos (França /Alemanha) ou ainda o Memorial de Sighet (Roménia) são exemplos desses lugares de memória que foram distinguidos com a MPE e que nos permitem olhar para os lados “mais negros” e mais recentes da História Europeia. Mas, afinal, o que terão estes lugares em

comum com o Promontório de Sagres? Não podemos continuar a desenhar fronteiras entre os aspetos positivos e negativos do passado, da história ou do património, de forma a vermos o que se conjuga com os valores da contemporaneidade que queremos acarinhar, ou com determinado discurso político. Devemos reconhecer que o património integra todos estes aspetos. Aliás, como vários investigadores defendem, todo o património é intrinsecamente dissonante. O Promontório de Sagres não é diferente. A questão é que existem aspetos desse passado europeu – a exploração, a subjugação, a escravatura – que constituem, também, consequências diretas dos “descobrimentos portugueses” e da expansão da cultura europeia. No entanto, verifica-se que continuam a ser temas difíceis de abordar, e que a violência associada a este período continua a ser muitas vezes omitida. O projeto MPE, ao expor as múltiplas significações e narrativas patrimoniais, que são por vezes dissonantes e conflituosas, torna mais fácil de avaliar se o passado e o património associado são

utilizados para manter o status quo ou se podem ser utilizados para a construção de um futuro mais inclusivo, mais democrático e, potencialmente, mais justo e próspero. O Promontório de Sagres representa um lugar feito Mito e um lugar feito Símbolo, de abordagem sensível e complexa, não apenas pela riqueza e diversidade da sua paisagem cultural, mas, acima de tudo, porque foi sujeito a um processo de “solidificação patrimonial”, de forma muito intensa durante o século XX, com a permanente e repetitiva reciclagem de práticas discursivas, integrando, por vezes, novos elementos, mas mantendo, na essência, a mesma narrativa. Vemos que o processo de construção patrimonial se fortaleceu a tal ponto, em torno de uma mesma narrativa, que se torna difícil, mesmo nos tempos atuais, desconstruir essa prática e dar lugar a novas práticas discursivas, mais inclusivas, abrangentes, polifónicas e que ultrapassem a fronteira do “discurso patrimonial autorizado”. Pode a Marca do Património Europeu ajudar a ultrapassar este discurso com práticas mais inclusivas? Este é um caminho que só agora se iniciou…

Ficha técnica Direção: GORDA, Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Fios de História: Ramiro Santos • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'Àgua: Maria Luísa Francisco Colaboradores desta edição: Raquel Roxo Parceiro: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/postaldoalgarve FB: https://www.facebook.com/ Cultura.Sulpostaldoalgarve


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Chimamanda (p. 88). Podemos pensar que alguns destes autores são também aqueles que mais aprecia ou a quem escolheu prestar homenagem?

PAULO SERRA Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

Há hoje em dia um número considerável de escritoras nigerianas com sucesso internacional. Assim de repente, lembro-me da Bernardine Evaristo (Booker Prize), da Taiye Selassi (que vive em Lisboa), da Helen Oyeyemi, de que gosto muitíssimo e da Chinelo Okparanto. O boom da literatura nigeriana pode explicar-se devido a um vasto conjunto de factores, começando na atribuição do Prémio Nobel da Literatura ao Soyinka, em 1986, até à diáspora nigeriana no Reino Unido e nos EUA. Seja como for, é um facto: há hoje um grande número de jovens escritores nigerianos com amplo reconhecimento internacional. A minha personagem, Cornelia, pode ter um pouco de todos eles. Conheço muito bem a Chimamanda e, acredite, não se parece com a Cornelia. Alguns dos outros personagens começaram por se basear em figuras reais, mas depois cresceram e foram adquirindo personalidade própria. A Cornelia foi dos que mais cresceu. Para mim é a personagem mais interessante do livro.

O

s Vivos e os Outros é o novo romance do autor angolano José Eduardo Agualusa que pode, e deve, ser lido no seguimento do anterior A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, publicado em maio de 2017. Três anos depois, o autor regressa uma segunda vez a uma personagem sua, o Daniel Benchimol de Teoria Geral do Esquecimento, jornalista que investiga desaparecimentos, e que foi também o protagonista do romance A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, onde o autor explora o papel dos sonhos na vida das pessoas. Entre estes dois romances, Os Vivos e os Outros e A Sociedade dos Sonhadores Involuntários, há pontos em comum ainda que não imediatamente reconhecíveis. A Sociedade dos Sonhadores Involuntários constitui uma sátira política e, ao mesmo tempo, uma homenagem, motivada pela prisão dos 17 jovens angolanos, onde se destacava Luaty Beirão, que a 20 de Junho de 2015 foram presos em Luanda quando se reuniam para discutir um livro de filosofia política: Da ditadura à democracia de Gene Sharp. Os jovens foram então acusados de preparar um golpe de Estado e foram presos. Este livro, escrito na altura em que começaram a surgir as primeiras manifestações em Angola pró-democracia, revela como o romance representa uma poderosa arma crítica. Em Os Vivos e os Outros abandona-se o tom satírico e a questão política, dando lugar a uma divertida – mas nada leviana - exploração da literatura e do seu papel na vida dos leitores e na vida dos escritores, dos temas (por vezes saturados) que hoje são caros à crítica e à moderação de tertúlias literárias, a mesa dos escritores negros, etc.

Tal como no romance anterior, mas de forma ainda mais complexa, esta narrativa encaixa diversas histórias, a começar pelo facto de o próprio livro ter tido origem num conto do autor, «O construtor de castelos» publicado em 2012 e que terá continuado a crescer em si – esta explicação surge na nota do autor no final do livro, se bem que um leitor atento estranhará as várias páginas que essa história efectivamente ocupa dentro do romance. Pode explicar como é esse processo (se for sequer consciente) de uma história ficar a crescer dentro do autor?

Esse conto é o coração do livro. É o que de certa forma o justifica e explica — o que eu pretendia era escrever um romance sobre pessoas aprisionadas numa cápsula do tempo, num território fora do alcance do presente. Numa espécie de Purgatório, entre o fim de um mundo e o começo de outro.

Havia esta premência em compreender o papel da literatura actual (vou evitar dizer africana ou lusófona ou qualquer outra etiqueta restritiva)?

Compreender não. Talvez interrogar. Interessa-me pensar no papel dos escritores nos dias de hoje, em particular dos escritores africanos. A literatura foi importante para afirmação dos movimentos independentistas no continente africano. E hoje, o que podemos ou devemos esperar dos escritores? Há inclusivamente deliciosos momentos de humor, em especial em torno das percepções destes escritores sobre a literatura, sobre a sua escrita e expectativas dos leitores, sobre as perguntas saturadas da audiência na plateia, sobre o inquirir o escritor como se ele fosse um vidente... Atrevo-me a dizer que esta nota de humor é nova…

Este romance tem um lado de sátira política, como tem “O Vendedor de Passados”, ou “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”. Acho que em todos os meus romances há uma certa ironia. Há, claramente, uma elegia a diversos autores, ora mencionados, ora indirectamente evocados: «Camões, Alberto de Lacerda, Rui Knopfli, Luís Carlos Patraquim, Nelson Saúte» (p. 88). A própria escritora Cornelia lembra a autora nigeriana

Entrevista a José Eduardo Agualusa sobre Os Vivos e os Outros:

E com as várias histórias entram no romance várias personagens, a começar por Moira Fernandez, artista plástica que usava (no romance anterior) os seus sonhos como principal matéria-prima, e que Daniel já conhecia em sonhos. Ainda que se evitem biografismos, é difícil não pensar em Daniel Benchimol (autor de reportagens e livros que entretanto deixou o jornalismo) como um alter-ego de Agualusa, da mesma forma que Moira pode representar Yara, a realizadora moçambicana.

“O que devemos esperar dos escritores?”

Daniel partilha elementos da minha biografia, sim, mas não partilha por exemplo as minhas convicções em relação ao movimento democrático. Ele representa um certo tipo de pessoas que se desiludiram com o processo revolucionário, e desistiram de combater pela democracia. Não é o meu caso. Eu estou mais próximo da filha dele em “A Sociedade dos Sonhadores Involuntários”. Em qualquer caso, agrada-me jogar com isso, como um dos personagens do livro, Jude, que escreve um romance autobiográfico com um narrador que é uma caricatura degradada dele próprio. Coetzee fez isso muito bem.

O escritor José Eduardo Agualusa FOTO PEDRO LOUREIRO / D.R.

Este romance é também um memorial da ilha de Moçambique, da sua história e riqueza


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LETRAS & LEITURAS

cultural, e dos ilhéus que lá vivem e que o acolheram – Agualusa vive já há alguns anos na ilha de Moçambique. Penso que se não fosse assim também não teria feito uma crítica tão feroz à política angolana no seu anterior romance.

O meu romance anterior foi escrito numa situação política que entretanto mudou — durante o regime de José Eduardo dos Santos. De alguma forma previu a queda dele. A situação atual é muito diferente, para melhor, no que diz respeito à liberdade de expressão e ao combate contra a corrupção. Mas ainda há muito para ser feito.

“Interessa-me o sonho enquanto utopia, enquanto matriz de mudança" A sua relação pessoal com os sonhos continua muito presente, neste romance, como se a matéria literária e a matéria dos sonhos proviessem da mesma fonte. Temos personagens que relembram sonhos vívidos, que nos são brevemente narrados. O sonho não é fuga ao real nem libertação de desejos inconscientes, mas uma utopia, um desejo, uma aspiração a uma sociedade melhor. Para a qual a própria ficção concorre, até porque este é também um romance que versa o fim dos tempos, o encerramento de um mundo e o início de outro. É a manifestação de um desejo de renascimento (ainda mais atendendo aos tempos conturbados em que o livro saiu) através da palavra e da imaginação?

Sim, sem dúvida. Como no romance anterior, interessa-me o sonho enquanto utopia, enquanto matriz de mudança. Sonhamos com aquilo que nos preocupa. Com os sonhos tentamos encontrar respostas. É o mesmo com as utopias.

Além da temática central do sonho, tal como no romance anterior, mas desta vez sem se cingir à natureza dos sonhos, há diversos elementos mágicos – chega-se a falar em realismo mágico a dado passo da narrativa. E o final do livro, quando Daniel recebe um estranho manuscrito, remete-nos para o final épico de Cem Anos de Solidão...

A Ilha de Moçambique, como Luanda, é um território no qual as pessoas transitam tranquilamente entre a realidade e o imaginário — a ficção. Não colocam fronteiras. Algumas das histórias que conto, provavelmente as mais inverosímeis, recolhi-as na ilha. Aconteceram mesmo. Como a história do homem que tentou voar para Meca, isso realmente aconteceu.

“As pessoas que aqui chegam são como náufragos do futuro” As próprias personagens, isoladas na ilha de Moçambique, sem internet nem comunicações, encontram-se numa espécie de limbo, que remete para a dualidade do próprio título: Os Vivos e os Outros. Estes escritores deslocados, convidados para um festival literário na ilha bem como os restantes habitantes, encontram-se assim entre dois mundos, o que parece ser a natureza da própria literatura, intemporal, situada num lugar atópico entre o real e o fantástico: «Os mundos germinam dentro da nossa cabeça, e crescem até não caberem mais, e então soltam-se e ganham raízes. A realidade é isso, é o que acontece à ficção quando acreditamos nela.» (p. 180). Será que conflui, nesta expressão de um certo deslocamento do real, a sensação de viver num espaço histórico um pouco esquecido, um pouco fora do tempo, ainda que haja uma ponte de 3 km a ligar a ilha ao continente?

E

C A R O S

F R E G U E S E S !

Este é sem dúvida, o Natal mais atípico da nossa existência. Contudo, ao longo deste ano, também ele de igual modo atípico, todos temos dado provas de grande sentido de responsabilidade, solidariedade e amor ao próximo, o que nos faz ter grande confiança em superar o actual estado de pandemia, de forma a voltarmos à normalidade das nossas vidas, de voltar a sorrir. Assim, desejo que a festa do nascimento de Jesus, seja mais do que nunca, um momento de paz, amor e fraternidade, mas também um momento de reflexão, e que todos possamos dar o nosso contributo ao planeta, modificando alguns hábitos menos próprios que todos temos. Termino, desejando um Natal feliz a todas as famílias da nossa freguesia, com muito amor, saúde e tolerância, e que o ano 2021 seja o virar da página, um ano de amor, sucesso e abundância de coisas boas

B E M

H A J A M !

J O S É M AT E U S D O M I N G O S C O S TA P R E S I D E N T E D A U N I Ã O D A S F R E G U E S I A S D E TAV I R A ( S A N TA M A R I A E S A N T I A G O )

Como disse antes, a ilha é uma espécie de cápsula do tempo, nada do que é presente nos alcança. Por exemplo, a pandemia que aflige o mundo todo neste momento mal se sente na ilha. Não é sequer tema de conversa. Sentem-se, contudo, as suas consequências. A ilha ficou ainda mais isolada. As pessoas que aqui chegam são como náufragos do futuro. Por fim, e esta explicação surge também na nota final do autor, há episódios baseados em eventos reais. Não posso deixar de perguntar se isso se prende com a tempestade – que também contribui para o isolamento na ilha – e que me relembra a situação vivida na Beira, um pouco mais a sul, o ano passado, com a passagem do ciclone Idai que devastou a cidade, cortou comunicações e energia durante quase um mês (no livro decorrem apenas 5 dias), e rodeou povoações inteiras da «prodigiosa água que durante dias apagou o mundo» (p. 324). Além de que houve dias depois, um pouco mais a norte, a passagem de um segundo cicole em Pemba. A própria palavra ciclone (p. 233) é referida.

A capa do novo romance do escritor angolano FOTO D.R.

C A R A S

Sim, isso sim, sentimos na ilha os efeitos do ciclone. Por outro lado, é muito comum estarmos na ilha, com tempo limpo e muito calmo, assistindo a grandes tempestades na costa, a apenas três quilómetros de distância. O livro começa com essa imagem.

COMPRE EM SEGURANÇA!

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MARCA D'ÁGUA

O Papa que convida a passar do “like” ao “amén”! MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

“Felizes aqueles que se fixam especialmente na parte boa dos outros”

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Papa Francisco

om este último artigo do ano gostaria de deixar algumas palavras baseadas no que o Papa Francisco publicou nestes últimos anos, que são textos de grande inspiração e irreverência e que algumas pessoas talvez não conheçam. O Papa Francisco faz 84 anos no próximo dia 17 de Dezembro (Dia de São Lázaro) e mantém uma imensa lucidez, capacidade de trabalho e entrega aos outros para além de ser porta-voz de tanto que está em nós e nem sempre sabemos expressar. Destaca-se pela sua humildade, coragem, sabedoria, simpatia e sorriso. Acredito que seja uma das figuras mais acarinhadas independentemente da religião ou não religião de cada um. Tem publicado vários livros durante o seu pontificado para além das Encíclicas, sendo o mais recente Voltemos a sonhar. O caminho para um

futuro melhor, que sairá em breve em português. Reflecte sobre este tempo de crise pandémica e de provação reveladora dizendo que “de uma crise nunca se sai igual”. Todas as crises trazem uma lição, que é preciso saber compreender. Há sempre o sonho de um mundo melhor. O Papa usa uma linguagem acessível a qualquer pessoa escrevendo frases simples como esta: “(…) se te deixas mudar, sais melhor. Se, ao contrário, ergues as barricadas, sais pior”. O referido livro contém imagens, conselhos e sugestões poderosas e dá ainda enfoque a aspectos que referiu nas encíclicas, pois provavelmente há mais pessoas a ler os livros do que as encíclicas. Cito uma parte deste livro em que o Papa se refere à Encíclica Laudato Si, que é um texto riquíssimo em profundidade e actualidade. Foi o texto usado como base de trabalho num conjunto de palestras/catequeses que desenvolvi entre Outubro de 2019 e Março de 2020 dedicado ao “Cuidar da Casa Comum”. Diz então o Papa Francisco: “Afirmei que é necessária uma conversão ecológica, não apenas para esconjurar a destruição da natureza por parte da humanidade, mas para evitar que esta se destrua a si própria. E dirigi um apelo a favor de uma “ecologia integral”, uma ecologia que vai muito além do cuidado da natureza; é

ter cuidado uns pelos outros como criaturas de um Deus que nos ama, com tudo aquilo que implica”. Há um outro livro do Papa Francisco escrito neste tempo de COVID-19 intitulado Vida após a Pandemia, em que começa precisamente com as palavras que dirigiu “à cidade e ao mundo” a 27 de Março de 2020: (…) Desta colunata que abraça Roma, desça sobre vós, como um abraço consolador, a bênção de Deus”. Creio que muitos não esquecerão a Quaresma de 2020 em particular aquela tarde de oração e bênção Urbi et Orbi em que o Papa Francisco apareceu a pé, debaixo de chuva, sozinho e subiu o adro da Basílica de S. Pedro. Foi um magnífico momento, em plena pandemia, em que estivemos espiritualmente unidos ao mundo. Ao som do canto eucarístico “Tantum ergo”, o Papa apresentou a Cruz e elevou-a numa bênção em silêncio total. O Papa Francisco é uma inspiração e as suas palavras têm eco nos mais simples e nos mais eruditos. Sempre com as questões do mundo actual muito presentes. Recentemente disse que “um cristão defenderá os direitos e as liberdades individuais, mas nunca poderá ser um individualista. Um cristão amará e servirá o seu país com sentimento patriótico, mas não pode ser um mero nacionalista”. E disse ainda: “Encorajo todas as pes-

O Papa Francisco é uma inspiração e as suas palavras têm eco nos mais simples e nos mais eruditos FOTO D.R. soas que detêm responsabilidades políticas a trabalharem activamente em prol do bem comum”. É preciso abandonar a cultura “selfie” e ir ao encontro dos outros. Porque “são os outros, à nossa volta, que, como Ariadne, nos ajudam a encontrar caminhos de saída, a dar o melhor de nós mesmos”. Achei muito curiosa esta referência papal a uma deusa grega, também designada “senhora dos labirintos”, porque, citando Francisco o “pior” que pode acontecer é “ficar a olharmo-nos ao espelho, entontecidos por andar às voltas sem nunca sair do labirinto”. Um espírito muito aberto, como Jesus Cristo seria se vivesse nestes

tempos, em que é preciso incluir e não excluir, em que é preciso aceitar a diferença em vez de rejeitar, porque afinal somos todos irmãos. Há dias comecei a ler a nova Encíclica a que o Papa deu o nome de Fratelli tutti (Todos irmãos - sobre a fraternidade e a amizade social). Também é possível seguir o Papa Francisco pelas redes sociais (mais de 40 milhões de seguidores) em que o Papa convida a passar «do “like” ao “amém”»! Que este Natal seja um verdadeiro tempo de reflexão, um tempo que nos levará a perceber que afinal havia tanto de supérfluo e que este tempo é uma grande oportunidade para redescobrirmos o melhor que há em nós.

ESPAÇO AGECAL

HISTÓRIA CULTURAL OU SOCIOLOGIA HISTÓRICA Sobre a investigação e intervenção na cultura, património e artes JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

O debate sobre cultura e patrimónios, em particular nos “media” e redes sociais, estão hoje diminuídos por dois equívocos que dificultam a compreensão dos acontecimentos descritos pela narrativa histórica que aprendemos nas escolas. O primeiro equívoco tem a ver com a apreciação de acontecimentos remotos, sobretudo as colonizações da antiguidade e da era moderna, utilizando valores das sociedades contemporâneas, quer em relação ao esclavagismo, como ao papel das mulheres e outros direitos sociais. O outro erro é a desvalorização do património herdado, construindo uma contemporaneidade acrítica e acientífica, baseada em ideias e teorias voluntaristas, fascinada pelas novas tecnologias e o mercado global, que sublima “inovação” e

“produto” como valores absolutos. Na primeira metade do século XX surgiu uma corrente de pensamento historiográfico que contestou a legitimidade da interpretação dos factos históricos centrada apenas em fontes documentais e materiais exumados, apresentando a importância da relação interdisciplinar da história com outras disciplinas correlacionadas, como a linguística, a sociologia, a psicologia, estatística histórica ou história quantitativa, a geografia humana, entre outras,… Surgiram estudos sobre as “mentalidades”, valores e percepções dos grupos sociais, atitudes filosóficas perante a vida e a morte, o parentesco, a propriedade, as religiões, as sociabilidades, expressões simbólicas e artísticas, cultura popular, vestuário, alimentação,… A “história das mentalidades” delimitou um novo e importante campo científico, de investigação e de análise interdisciplinar, reequacionou a clássica história

social e económica. A história narrativa produzia conhecimentos parcelares, sobrevalorizações e omissões, porque a maioria das sociedades não produziam arquivos, os cronistas eram normalmente assalariados dos biografados, o estudo centrava-se nas elites políticas e nos “acontecimentos breves”. A esta realidade contrapôs-se a “história-problema” aberta a outras realidades. O grupo de historiadores ligados à revista “Annales”, de que foram pioneiros a partir de 1929 Marc Bloch e Lucien Febvre, introduziu os métodos das ciências sociais na história narrativa, mostrou como os valores e comportamentos sociais têm remotas origens e continuidades. Nesta corrente importa referir a “história da longa duração”, conceito que resulta dos contributos de Marc Bloch e Fernand Braudel (1902-1985). Este historiador francês, preso pelos alemães durante a 2ª Guerra Mundial, estudou

com profundidade, a partir da geografia humana e da observação das paisagens naturais e culturais, o universo mediterrânico nos séculos XV e XVI e estudou o nascimento do capitalismo, quando as economias regionais passam para o controlo do capitalismo financeiro que substituiu a economia de mercado baseada na troca. “O Mediterrâneo e o Mundo Mediterrânico na Época de Filipe II", tese de doutoramento de Braudel escrita na prisão ou “Civilização material, economia e capitalismo” são obras fundamentais para compreendermos a geohistória, reflexão sobre o espaço físico e humano, os valores e as práticas culturais do sul da Europa, do norte de África e do Médio Oriente, bem como o desenvolvimento do processo de colonização política, militar, económico-financeira, cultural e linguística nos séculos mais recentes. Mas o que atrás foi referido tem a ver com a actualidade das Políticas Culturais e da

Gestão Cultural? Tem tudo a ver, a evolução na contemporaneidade terá como base conhecimentos de várias proveniências e a formação dos quadros para a gestão cultural não se pode limitar a uma licenciatura em qualquer área, mas tem de ser rigorosa, abrangente e multidisciplinar. A actual pandemia que praticamente paralisou as actividades culturais no país, sobretudo ligadas ao espectáculo ao vivo, veio pôr em evidência a fragilidade organizativa e segmentação do sector cultural. É, contudo, uma oportunidade para reequacionar a importancia da cultura nas suas diversas áreas de intervenção social e a necessidade de formação científico-técnica actualizada dos seus profissionais. A história cultural, como outras disciplinas, tem papel fundamental como auxiliar na definição de políticas culturais correctas, em particular na renovação de discursos e práticas sobre museus, património e as artes.


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ARTES VISUAIS

Pode a arte ajudar a contribuir para uma atitude mais favorável à paz? SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/artes

E

stamos em dezembro, mês de Natal, quadra associada à paz entre as pessoas.

A paz deveria existir sempre, sendo um estado constante, mas infelizmente não é isso que acontece, pois verificam-se muitos conflitos todos os dias, quer entre pessoas, quer entre países. Assim sendo, é necessário haver períodos que permitam pelo menos atenuar esses conflitos, sendo esbatidas as diferenças, ou o que divide, e acentuadas as semelhanças, ou o que pode aproximar. Neste sentido, o período de Natal ajuda a despertar sentimentos mais positivos em relação aos outros, emergindo com maior frequência situações de perdão, gratidão ou elogio. Num artigo anterior, salientámos que, não obstante ter havido sempre violência ou guerras na história da humanidade, o problema na atualidade é que os meios usados são cada vez mais mortíferos, atingindo muitos inocentes. Esta é uma questão central quando pensamos o futuro da humanidade. Tal como as questões ambientais, as questões ligadas à paz, em particular, são fundamentais para podermos pensar na vida no nosso planeta a médio/longo prazo. Procurando aumentar a consciência de todos e de cada um para este problema, o “Conselho Português para a Paz e Cooperação” tem vindo a desenvolver várias iniciativas, nomeadamente organizando exposições, intituladas “Artistas pela Paz”, em colaboração com a “Peace and Art Society”. A exposição mais recente foi inaugurada em Vila Real de Santo António, no passado dia 6 de novembro. Nela encontram-se expostas 24 obras de 21 “artistas pela paz”. Nas exposições realizadas em 2018-19 contribui com a obra “PAZ é o caminho (Homenagem a Gandhi)” (2018), mas desta vez contribui com a obra “Guerra e Paz: Tudo começa dentro de nós!”, em que procuro salientar que a paz e a guerra são em geral abordadas como algo que existe no exterior, entre países, entre raças, entre religiões ou entre pessoas. As posições de alguns líderes de potencias mundiais, como sejam Trump, nos EUA, ou Bolsonaro, no Brasil, reforçam este ponto de vista, pois apresentam posições divisionis-

tas e promotoras de conflito social. No entanto, é fundamental tomarmos consciência de que cada um de nós é responsável pela Paz e que esta deve começar dentro de cada um de nós. Assim, esta obra procura contribuir para essa tomada de consciência, com uma frase de Gabriel “O Pensador”, quando refere que “a gente muda o mundo na mudança da mente”, da música “Até quando?”. Nós somos muitas vezes o maior obstáculo de nós mesmos, pelo que é importante tomar essa consciência e alterar pensamentos, ideias, preconceitos e crenças que só nos prejudicam a nós mesmos e na relação com os outros. Nessa música, Gabriel refere a também “e quando a mente muda, a gente anda pra frente”. É com a mudança de pensamentos que conseguimos mudar os nossos comportamentos, atitudes e mesmo emoções. Esta ideia é sintetizada por Dalai Lama na frase “Só conseguiremos obter a paz no mundo exterior quando estivermos em paz com nós mesmos (...) Felicidade significa paz de espírito”. O facto de cada um de nós dever assumir essa responsabilidade é ilustrado por essas frases estarem coladas em espelhos em que cada um pode ver a sua imagem, positiva ou negativa consoante o tipo de pensamentos que tiver. Os pensamentos negativos são simbolizados por o espelho estar martelado e pelo sentido dos lábios, enquanto os pensamentos positivos aparecem num espelho limpo, com um “smile”. Desta forma, as artes visuais podem ajudar na criação de imagens que permitem sintetizar o essencial neste processo de consciencialização e de mudança de atitudes e comportamentos. Noutras obras a que fiz referência em artigos anteriores também procurei contribuir para ajudar na tomada de consciência de que todos somos responsáveis pela paz, devendo esse processo começar dentro de nós. Foi o caso das obras “Grito de sangue em atentado terrorista” (2010), “Secrets for a happy life (Homage to Banksy and Einstein)” (2017) e “STOP! Este não é o caminho...” (2020). Numa outra obra mais recente, “Mindfulness (Homenagem a Jon Kabat-Zinn)” (2020), este processo de consciencialização é aprofundado, podendo o mindfulness ajudar-nos nesse sentido. Através da atenção e consciência plena no momento presente podemos aprender a prevenir os efeitos negativos do ritmo em que vivemos na atualidade, com exigências constantes e uma elevada pressão para as realizar rapidamente. Esta situação

Em cima: Técnica mista “Guerra e Paz: Tudo começa dentro de nós!” (2020; 0,60x0,30);

Em baixo: Desenho “Mindfulness (Homenagem a Jon Kabat-Zinn)” (2020; 0,42x0,30) FOTOS D.R.

é sintetizada através da frase de Jon Kabat-Zinn, pioneiro do mindfulness, “você pode não parar as ondas, mas pode aprender a surfar”. Realmente não conseguimos controlar e alterar muito daquilo que ocorre à nossa volta, mas podemos aprender a controlar o efeito que isso tem sobre nós, em cada inspiração consciente que fazemos, se desenvolvermos a atenção plena, focada no presente, com uma atitude de gratidão perante a vida, sentindo a nossa energia e força interior, como se fossemos uma montanha, que permanece estável, serena e resiliente, não obstante a rapidez com que tudo acontece à nossa volta. A frase de Ga-

briel “O Pensador” volta a fazer todo o sentido: “A gente muda o mundo na mudança da mente”. Considero que a arte visual talvez possa ajudar a parar no tempo e a refletir, de forma a que não se repitam no futuro os erros do passado. A arte pode inserir-se num movimento de “educação para a paz”, nesta sociedade em que é cada vez mais importante educar para princípios éticos universais e para valores humanistas, como sejam a honestidade e o respeito pelos outros. Além disso, é essencial o desenvolvimento da espiritualidade em cada um de nós, pois só em paz consigo mesmo, em equilíbrio e sere-

nidade, é que o ser humano consegue estar em paz com os outros. Conforme é referido pela vereadora Carla Sabino, no folheto da exposição realizada em Vila Real: “Cada vez mais acredito que a arte tem um papel preponderante no mundo, pelo poder da sua essência, de tocar aquilo que de mais profundo existe em cada um de nós: as emoções. São as emoções que geram em nós as cores necessárias para desenharmos uma Humanidade melhor. Se desejamos todos viver em paz, façamos por isso, em cada gesto e em cada palavra.” Feliz Natal a todos, com saúde e em paz!


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

Filo-conto de Natal iria à frente, comandando as tropas e abrindo caminho. O medo, capaz de se introduzir mesmo através dos orifícios mais ra uma vez um dia igual a pequenos, seguiu-se-lhe. Atingiu tantos outros dias no “no- as gentes contraindo músculos, vo normal”: todos ficavam causando frio interior, destruindo em casa. Uns por estarem iniciativas e matando gestos mal doentes, outros por receio eles se esboçavam. O medo colocou de ficarem doentes, alguns por medo palas em todos os sentidos. O olhar das sanções do governo e outros ain- encolheu de amplitude ao ponto da por convicção e profundo respeito de um servilismo inquietante. Os pelos profissionais de saúde. ouvidos passaram a captar apenas Incumpridor, o desalento saiu à rua e sons de angústia e gemidos de dor. esticou-se ao alto, ao largo e ao compri- O paladar reduziu-se a um só gosto, do, passeando ufano pelas alamedas tornando-se incapaz de diferenciar desertas. Contemplou as lojas fecha- sabores. O olfacto prisioneiro entre das, os cafés e restaurantes vazios. Não as quatro paredes de casa, esquese via vivalma na praça grande, nem ceu o perfume das flores e o odor no mercado, nem sequer nas paragens de maresia; pelas narinas entrava de autocarro. O desalento esfregou as apenas o cheiro a mofo das almas mãos de contente, tinha agora todas as encarceradas. Sobre o tacto o medo condições para colocar o seu plano em nem teve necessidade de agir. Dirmarcha. Com falinhas mansas seduziu -se-ia mumificado por tanta falta de o medo, a tristeza e o desespero para uso! O tacto é um sentido do perto e que se tornassem seus aliados. Com agora era mandatário estar longe. argúcia explicou ao pequeno exército o O medo escavou então um portão AF_Correio Ribatejo_252x174.pdf 1 19/11/2020 17:50 seu plano estratégico. Ele, o desalento, enorme por onde a tristeza entrou MARIA JOÃO NEVES PH.D Consultora Filosófica

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sem dificuldade. Munida dos seus muitos moinhos, a tristeza reduziu os ânimos a picadinho, triturou os impulsos, por todo o lado onde se ia instalando foi moendo, moendo, moendo... Qual exército de térmitas devorando os alicerces da alma! Agora que já nada resistia à vaga do desespero ela só tinha que chegar. Inversamente proporcional às forças do adversário, quanto menor e mais fraco este, mais ela se agiganta. E assim, as almas naufragaram quase já sem resistir. Foi então que no berço mais humilde do mundo se agitaram as palhas, que brilharam mais que o ouro refulgente. Esse brilho atingiu os céus e uma estrela rasgou a negrura da noite apontando o caminho. No centro das palhas um bebé ria. Era uma gargalhada cristalina cuja vibração chegava ao centro da terra e ao cume dos céus. O desalento assustou-se e resolveu atacar o menino desprotegido deitado nas palhinhas. Mas a criança brincou com ele, pegou-lhe pelo enorme nariz de Pinóquio e abanou-o de um lado para outro ao ritmo do seu

riso, numa dança estonteante. O desalento dissipou-se à alvorada enquanto o riso do menino tilintava nas copas das árvores e viajava nos braços do vento. E esse riso entrou pelas frinchas das janelas, pelas fechaduras das portas, pelas chaminés das casas, e todas as crianças do mundo desataram a rir. Era uma gargalhada quente e cósmica, uma alegria contagiante, que deixou perplexos adultos e idosos. Então, nesse momento de espanto, o riso do menino recém-nascido, num voo de borboleta, começou a adejar no coração das gentes. A princípio era um quase nada, um leve palpitar, que pouco a pouco se foi tornando cada vez mais intenso. E o riso soltou-se em gargalhada, e fez cócegas ao medo, desconcertou os moinhos da tristeza e evaporou as águas do desespero. Dos olhares caíram as palas e o horizonte espraiou-se amplo, imenso, esperançoso. Nos ouvidos tilintava o riso com timbre de ouro. Apurou-se o olfacto que pôde então captar os cheiros da terra, o aroma das nuvens

Especialistas dizem tratar-se da única escultura de Leonardo da Vinci (data de 1472) que sobreviveu até aos nossos dias FOTO VICTORIA & ALBERT MUSEUM, LONDON / D.R.

e o perfume dos seres. Timidamente, o tacto desenrolou as ligaduras que o cobriam e deixou que a brisa lhe acariciasse a pele. Então, o gosto recordou-se do sabor de um beijo. Nesse momento, no coração de cada um, floresceu a certeza inabalável de que o tempo dos abraços há-de voltar! Inscrições para o Café Filosófico:

filosofiamjn@gmail.com


CULTURA.SUL

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FIOS DE HISTÓRIA

A saga dos Corte Reais RAMIRO SANTOS Jornalista ramirojsantos@gmail.com

Poderia ser a versão portuguesa da pedra de Roseta. Mas em vez do código Ptolemaico, tem gravadas a cruz de cristo e a assinatura de um marinheiro de D. Manuel. É um emaranhado de inscrições na pedra. Muito desgastada por 500 anos ao ”sabor do vento e das marés”. E do vandalismo. Uma rocha descoberta em 1680 no rio Taunton, estado de Massachusetts. Perto da “portuguesa” cidade de New Bedford. Durante muito tempo, estudiosos julgaram ter lido naquele painel de hierógligos o nome de Miguel Corte Real e o ano de 1511. Um algarvio de Tavira que foi à procura de seu irmão, Gaspar Corte Real, que tinha ido à Terra dos Bacalhaus e nunca mais voltou.

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sta leitura deu origem à chamada tese da pedra de Dighton que coloca os portugueses no continente americano, 20 anos antes de Colombo. Já que, por duas vezes, em 1471 e 1474, por lá tinha andado o pai deles, João Vaz Corte Real. O primeiro estudo a apresentar a tese de que as inscrições ligavam o nome de Miguel Corte Real àquele local foi defendido em 1918 por Edmund Delabarre, professor na Brown University, nos Estados Unidos. “Eu vi clara e indubitavelmente, a data de 1511”, afirmou ele, com a mesma convicção de Champollion quando conseguiu decifrar a Pedra de Roseta. Mas foi, contudo, o médico luso-americano curioso da investigação histórica, Manuel Luciano da Silva, o seu mais persistente defensor para sustentar a tese de que os portugueses foram os primeiros a chegar à América. Por aquelas águas geladas do noroeste, haviam navegado também outros nomes que fazem a lenda como Leif Erikson ou um tal Eric, o Vermelho, cuja natureza dos relatos de teor literário tornam complicado definir com precisão o primeiro contacto dos europeus com o continente americano. Por lá andou ainda Giovanni Cabotto. Deste genovês ao serviço

de Henrique VII, de Inglaterra , se diz que em 1497, foi para além da Gronelândia e “descobriu terra firme a 700 léguas daqui”. No ano seguinte efectuou nova viagem mas já não voltou. E nunca se chegou a saber o local exacto por ele avistado. Em qualquer caso – não fosse o diabo tecê-las - o reino de Portugal asseverou à coroa inglesa o nulo direito desta à colonização da área, de acordo com o estipulado no Tratado de Tordesilhas. O que era um sinal claro de que saberia da existência de terra firme para aqueles lados. De facto, a primeira representação cartográfica da Terra Nova, e a prova efectiva de que a sua existência e localização chegaram ao conhecimento da Europa, deve-se aos portugueses. Trata-se do planisfério de Cantino, onde a ilha é perfeitamente identificável. Acompanha-a uma legenda onde se lê: “Esta terra he decober per mandado do muy alto exçelentissimo príncipe Rey don manuell Rey de portuguall a qual descobrio Gaspar Corte Real”. A acção do navegador algarvio haveria de ser confirmada por um documento da chancelaria de D. Manuel, datado de 12 de Maio de 1501. Tanto quanto é possível apurar, foi efectuada uma viagem em 1500, que foi detida pelos gelos árcticos, e outra saída de Lisboa em Março de 1501, com três navios. No final do Verão, Gaspar Corte Real mandou dois deles para Lisboa e continuou a sua exploração, não se sabendo mais nada do seu destino. Os que regressaram trouxeram com eles cinquenta e sete nativos e produtos locais, como prova da sua descoberta. No ano seguinte, o seu irmão Miguel partiu à sua procura mas teve igual fim, tendo, supostamente, naufragado no local onde se encontra a pedra de Dighton. Anos mais tarde, terá gravado na rocha o seu nome e os símbolos de Portugal. A partir de então, as viagens à Terra do Bacalhau passaram a ser frequentes. De tal forma deve ter sido intensa a presença portuguesa, que em 1504 a representação da Terra Nova, num mapa de Pedro Reinel, está cheia de topónimos portugueses. E um levantamento de Manuel Luciano da Silva prova que ainda hoje existem em toda a zona costeira, onde a pedra foi encontrada, palavras de origem portuguesa. Tudo havia começado uns 30 anos antes, quando João Vaz Corte Real, ao serviço de D. Afonso V, integrou uma expedição dinamarquesa à

Em cima Carta de Fernão Vaz Dourado que regista as terras dos Cortes Reais e Lavrador Ao centro A pedra de Digthon na foz do rio Taunton antes de ser retirada para um museu. Há quem tenha lido nela o nome de Miguel Corte Real e os símbolos portugueses Em baixo à esquerda Estátua na Escola Naval, em Lisboa, de homenagem ao navegador Gaspar Corte Real que, como o seu pai, foi até à Terra Nova e à península do Lavrador Em baixo à direita Efígie de João Vaz Corte Real que atingiu o estuário do rio Hudson, atual Nova Iorque e a costa leste do Canadá, colocando os portugueses no continente americano vinte anos antes de Colombo FOTOS D.R.

Fontes: Gaspar Frutuoso; Luis Albuquerque, 1987; Manuel Luciano da Silva, 1987; Ofir Chagas, 2004; Adérito Vaz, 2000; outros

Gronelândia. Em 1474 repetiu a experiência e atingiu o estuário do rio Hudson (Nova Iorque) e do rio de S. Lourenço. Por esse feito, recebeu do rei o governo de parte da ilha Terceira e de S. Jorge. João Vaz, descendia de famílas nobres, sendo filho de Vasco Anes da Costa, mais tarde Corte Real, natural de Tavira. Este, lutou ao lado do futuro D. João I , esteve em Ceuta, foi alcaide de Tavira e de Silves e fronteiro mor do Algarve. Um seu irmão Afonso Vaz da Costa, foi comendador da Ordem de Santiago e procurador de Tavira às cortes de Lisboa

em 1439. O seu neto também chamado Vasco Anes – irmão de Gaspar e Miguel - foi igualmente alcaide de Tavira, bem como o seu filho, Bernardo Corte Real. Apesar da historiografia oficial não admitir, sem contestação, o pioneirismo das navegações portuguesas – nem outras, à excepção mais provável dos Vikings – a verdade é que os Corte Reais mapearam uma larga extensão da costa leste da América do Norte. Tocaram, isso é certo, a Terra Nova e o Labrador, assinalados na história e na geografia por Terra dos Corte Reais.

E mesmo que não se reconheça a assinatura de Miguel Corte Real gravada na pedra, o seu nome e a sua epopeia ficaram para sempre imortalizados num poema do siciliano Cataldo Sículo, incluído na sua colectânea Poemata, publicada no ano de 1502: “Foge-me o talento e a eloquência,/ apodera-se de mim o terror, quando tento/ dizer os feitos de tão grande capitão./É aquele que tem o nome do príncipe/ celeste dos cavaleiros e a quem os/ antepassados legaram o apelido de Corte Real...”


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