Cultura.Sul 133 13DEZ2019

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

DEZEMBRO 2019 n.º 133 www.issuu.com/postaldoalgarve

6.785 EXEMPLARES

MISSÃO CULTURA •••

Hemeroteca Digital do Algarve – a imprensa do Algarve à distância de um clique foto d.r.

O Orçamento Participativo de Portugal, conhecido como OPP, é «um processo democrático deliberativo, direto e universal, através do qual as pessoas apresentam propostas de investimento e que escolhem, através do voto, quais os projetos que devem ser implementados em diferentes áreas de governação. Através do OPP, as pessoas podem decidir como investir 5 milhões de euros», pode-se ler na página https://opp.gov.pt/. Os cidadãos podem votar num projeto nacional e num projeto regional. Em 2017, o projeto Hemeroteca Digital do Algarve foi o mais votado no OPP 2017 da região, com 703 votos, o que indica uma forte mobilização de todos aqueles que perceberam a importância da existência de um arquivo digital, acessível universalmente. A Ideia Luís Guerreiro, engenheiro de formação, foi um homem de Letras e um Humanista que teve a ideia de criar e disponibilizar todos os jornais e revistas que o Algarve produziu desde o séc. XI, até aos nossos dias, em formato digital, através de uma plataforma de acesso fácil, universal e gratuito. O seu conhecimento da história do Algarve e da importância da imprensa regional para a reconstituição desta foram motores para esta candidatura. Com o apoio de Patrícia de Jesus Palma, doutorada em Estudos Portugueses (História do Livro e Crítica Textual), o projeto foi fundamentado, realçando os aspetos de natureza cultural, patrimonial e de investigação científica nele envolvidos: na verdade, a história desta região encontra-se espelhada em tantos artigos publicados nos mais de 400 títulos de publicações

Em 2017, o projeto Hemeroteca Digital do Algarve foi o mais votado no OPP 2017 da região •

periódicas que surgiram na região, com tipologias muito diversas, tais como o desporto, o turismo, a política, a religião, o associativismo, o comércio, etc. Daí também se consegue aferir as relações que o Algarve foi estabelecendo, a vários níveis de envolvimento, com o resto do país e mesmo com o estrangeiro, sendo bastante relevante para quem investiga ou simplesmente tem curiosidade sobre estes assuntos. A realização A Direção Regional de Cultura do Algarve, reconhecendo na Uni-

versidade do Algarve a capacidade para a coordenação da execução do projeto, fez um protocolo com esta entidade, permitindo a materialização da ideia no prazo de 24 meses, como estava estipulado. A maioria destas coleções encontrava-se apenas na Biblioteca Nacional (muitas delas em elevado estado de degradação), e noutras bibliotecas e arquivos do país, ou pertença de alguns particulares, o que dificultava – e, em alguns casos, até impedia – o acesso a quem tem de recorrer com frequência a estas valiosas fontes. Para a concretização do projeto,

foram feitos contactos com bibliotecas e arquivos públicos e particulares para empréstimo das coleções e todos gentilmente acederam. A Biblioteca Nacional de Portugal aceitou ser parceira desde o primeiro momento, não só facultando os exemplares que tinha, como ficando a seu cargo a digitalização de mais de 400 títulos de jornais editados no Algarve desde 1810, num total de mais de 200.000 imagens. A 8 de dezembro iniciou-se uma primeira fase, em que ficaram disponíveis 49 títulos. A fase de carregamento continua, sendo os restantes títulos disponi-

Ficha técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço ALFA: Raúl Grade |Coelho • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Espaço ao Património: Isabel Soares • Filosofia dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e literatura: Paulo Serra • Missão Cultura: Direção Regional de Cultura do Algarve • Reflexões sobre urbanismo: Teresa Correia Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 6.785 exemplares

bilizados o mais breve possível, pretendo-se, ainda, que o utilizador venha a ter a possibilidade de pesquisar, por palavra ou assunto, no texto integral. Em cumprimento do Código dos Direitos de Autor e dos Direitos Conexos, em 2019 ficarão disponíveis as publicações entre 1810 e 1949, sendo as restantes incluídas nos anos subsequentes. No entanto, o leitor pode consultar a totalidade da coleção digital nas instalações físicas da Biblioteca da Universidade do Algarve – António Rosa Mendes, entidade que fará a coordenação executiva, científica e de sistemas desta coleção digital. A Hemeroteca Digital do Algarve vem permitir a reunião e a salvaguarda deste valiosíssimo património do Algarve que servirá a memória de todos. l Direção Regional de Cultura do Algarve


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LETRAS E LEITURAS •••

Longa Pétala de Mar, de Isabel Allende foto lori barra

Paulo Serra

Doutorado em Literatura na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

O Amante Japonês era já um prenúncio do retorno aos grandes romances desta autora chilena, dos que nos puxam de súbito para dentro da sua escrita fluída, onde vigora um universo meio histórico meio intemporal povoado por personagens carismáticas de paixões intensas. Longa Pétala de Mar é um poderoso romance que resgata a inventiva e original voz de Isabel Allende, a sua ironia e humor muito próprios, e um sentido da vida que daria para escrever alguns livros motivacionais, sem cair jamais no delicodoce daquilo que se pode entender como chic literature. Este livro foi lançado primeiro pelo Círculo de Leitores (numa edição de capa dura), com a revista distribuída aos sócios em Outubro, e depois publicado pela Porto Editora. Mesmo com livros anteriores da autora, bastante sofríveis (O Jogo de Ripper), em que a história se arrasta sem qualquer chama, ler Isabel Allende sempre foi um dos meus prazeres íntimos. E depois das várias tentativas mais ou menos bem sucedidas de romance histórico em que a autora tem intentado, a história deste livro está perfeitamente doseada entre o encanto mágico das primeiras obras da autora e um contexto histórico concreto, no caso a Guerra Civil de Espanha, sob a sombra do regime de Franco e a iminência da Segunda Guerra, que servem apenas de intróito ao verdadeiro tema a tratar. Em 1938, encontramos Victor Dalmau, um jovem estudante de medicina que dá por si incorporado na frente de combate como auxiliar de medicina; Roser Bruguera, uma jovem humilde que de pastora de cabras se converte numa pianista exímia; Ofelia, uma jovem chilena de boas famílias com casamento arranjado; Pablo Neruda, um poeta que ousa fretar um navio onde embarca mais de dois mil espanhóis rumo a Valparaíso, em fuga a uma Espanha em ruínas. Allende aposta em diversas frentes para conseguir, capítulos depois, entretecer de forma exímia todas as histórias, sem que o fio da narrativa e a sua prosa torrentosa se quebre, envolvendo plenamente o leitor, sem lhe dar tempo para sequer pensar em parar. Enquanto o Velho Mundo mergulha numa confusão sem precedentes, e a Espanha se dilacera numa guerra durante novecentos e oitenta e oito dias e que culmina com o reconhecimento da legitimidade do governo de Franco, o

Isabel Allende é uma escritora e jornalista chilena •

Chile surge como «um paraíso atrasado e distante» (p. 100) onde os espanhóis procuram uma segunda oportunidade. Temos, desde as primeiras linhas, frases que demarcam o estilo próprio de Allende, como «Era uma enfermeira suíça de vinte e quatro anos, com um rosto de virgem renascentista e a coragem de um guerreiro empedernido.» (p. 18). Também bastante recorrente na escrita de Allende é a forma como muitas vezes o seu romance antecipa o futuro: «- Nem morta te direi – e essa seria a única resposta que sairia da sua boca durante os cinquenta anos seguintes.» (p. 203) O maravilhoso ainda dá algumas mostras de vida, recuperando a figura mítica do fantasma, que tão bem define o próprio realismo mágico latino-americano, como símbolo de fusão entre o real e o irreal: «Não havia memória de ter jamais habitado uma criança naquela sombria mansão de pedra, por onde deambulavam gatos semisselvagens e uma prole de fantasmas de outras épocas.» (p. 31) Ou no exagero que acentua o horror da guerra: «Tanto sangue corria que, no ano seguinte, os camponeses trejuravam que as cebolas eram vermelhas e que por vezes se encontravam dentes huma-

nos no interior das batatas.» (p. 58) Mas o mágico é uma corrente de escrita definitivamente preterida pela autora, sem que isso quebre o encanto da leitura. E a páginas tantas podemos até encontrar uma breve, indirecta, referência a Clara: «- É uma mulher muito extravagante. Dizem que fala com os mortos!» (p. 95). Clara, claríssima, clarividente... Uma personagem que de tal forma me apaixonou em A Casa dos Espíritos que, mais de 20 anos depois, fiz questão de baptizar a minha sobrinha com esse nome (por sorte, não foi preciso convencer muito os pais). Se em A Casa dos Espíritos, onde também encontrávamos Salvador Allende (o Presidente) e Pablo Neruda (o Poeta) como personagens de ficção, o mágico concentrado em torno dos dons de Clara vai recuando, conforme a política se impõe, num regime ditatorial de terror, em Longa Pétala de Mar (título retirado a um poema de Neruda) o caminho é inverso, transpondo o umbral entre um mundo que soçobra, onde não faltam alusões aos horrores de Guernica e à batalha do Ebro, e um paraíso a descobrir, num Chile sinuoso e remoto, onde as paixões são violentas e os temperamentos são bruscos mas honestos e leais. l

A capa do livro do mais recente romance de Isabel Allende •

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Autobiografia, de José Luís Peixoto Talvez devamos começar pelo jogo de ilusão patente na capa, pois ao título de Autobiografia segue-se a categorização de Romance, sobre um fundo de páginas em branco rasgadas. Não estamos portanto, pensa o leitor, no campo das biografias romanceadas. Talvez seja um daqueles romances em que se cruza a memória e vivência pessoal com a ficção? Mas depara-se o leitor, ao adentrar-se no romance, com uma epígrafe de Saramago em que se salvaguarda que «tudo é autobiografia» para depois, logo na primeira linha, encontrar a frase «Saramago escreveu a última frase do romance.» (p. 9) E, duas páginas depois, quando lemos que a campainha tocou, quem se levanta para abrir a porta é José. José Saramago, portanto, pensa o leitor, apenas para páginas adiante se aperceber que este José fala de um outro José (Saramago), que este José está a tentar escrever o seu segundo livro, e se sente partido em pedaços, enquanto o outro, Saramago, se sente completo, terminado de escrever o seu mais recente romance, intitulado Todos os Nomes, com um protagonis-

foto neusa ayres

José Luís Peixoto é autor de um dos mais inovadores romances da literatura contemporânea portuguesa •

do outro José, o Nobel, desdobrando-se este Autobiografia num universo literário de múltiplas realidades paralelas. O jogo de espelhos mantém-se ao longo da narrativa, repartida em duas, mais ou menos alternadas, sendo que a história se centra mais em JoRomance é uma homenagem a José Saramago • sé do que em Saramago, ta – de seu nome José... José, o deste enquanto o leitor vai desfiando o livro, venceu ainda um prémio com o fio da narrativa, com as suas ideias e seu primeiro romance, à semelhança suspeitas, para se guiar neste exerdo autor, o verdadeiro, que ganhou cício literário como num labirinto em o Prémio José Saramago (na sua se- que ficção e biografia se cruzam. E gunda edição, em 2001, atribuído pela da mesma forma que apontamenFundação Círculo de Leitores) por vol- tos pessoais da vida de Saramago ta da mesma idade do jovem escritor, são reinventados num Saramago personagem, com o seu primeiro livro. de papel, também nestas páginas E este jovem escritor, José, será de- se abrem outros umbrais por onde pois convidado a escrever a biografia entram ainda na história figuras de

carne e osso, ou inspiradas no seu referente real, como Pilar, assim como figuras de papel que conhecemos de outros romances de Saramago: o editor Raimundo Silva (História do Cerco de Lisboa); Lídia (O Ano da Morte de Ricardo Reis); Mau-Tempo (Levantado do Chão); Bartolomeu de Gusmão (Memorial do Convento); Fritz (A Viagem do Elefante). Confluem ainda na narrativa espaços reais, da geografia íntima de Peixoto, como a Rua de Macau, e outras com nomes de ex-colónias, e muitas das personagens são ainda ressonâncias e referências de um espaço mais vasto, que assinalam a passagem de José (Luís Peixoto), o verdadeiro, pelo mundo, como é o caso de Cabo Verde. Mas a narrativa desvela mais e mais camadas, pois não só as personagens e situações são piscares de olho a um leitor atento de Saramago, como o Fritz d’A Viagem do Elefante cegar subitamente sem explicação ou esta Lídia, cabo-verdiana, ser uma lojista que em muito lembra a companhia de Ricardo Reis, em O Ano da Morte de Ricardo Reis, onde o duplicado de Pessoa (um desdobramento também ele afim de O Homem Duplicado de Saramago) se substancia num heterónimo tornado ortónimo. Este é talvez um dos mais ino-

vadores romances da literatura so saramaguiano sempre pronto a contemporânea portuguesa de um explorar os possíveis da história) coautor que se tem afirmado um pou- mo de simbólico e de homenagem, co pelo mundo inteiro, e que já tem quando o anúncio do Prémio Nobel viajado para escrever. Uma homena- de 1998 desencadeia uma chuva... gem nada beatificada a uma figura de livros de Saramago. tutelar na sua escrita e na sua vida. A leitura de Autobiografia é como A afirmação de que cada escritor é uma refracção que se estende ao inum protegido e um legado vivo de finito, e que só se resolve com mais todos aqueles que o precederam e do que uma leitura do livro, onde que pousam no seu ombro no acto podemos dar por nós a ler sobre a da escrita. personagem (retirada de outro livro) José Luís Peixoto, autor publicado que está a ler, agora, o mesmo livro pela Quetzal, arriscou muito, tan- que nós. l to que, e esse é um dos momentos cruciais do livro que se pode designar genial, chega a Ofereça qualidade aos seus cabelos, fazer uma com um diagnóstico capilar gratuito e serviços de qualidade à sua medida. Ainda pode incursão adquirir produtos da marca KEUNE, no maraexclusiva no salão. vilhoso, Um novo espaço criado especialmente para si, com um junto ao hotel Real Marina. episódio que tem Rua José Amâncio Correia Júnior, Lote 19 A tanto de 8700-408 Olhão 289 170 459 insólito Facebook: @hairritualcabeleireiros (tal como Instagram: hairritual.cabeleireiros no univer-

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ARTES VISUAIS •••

Pode a arte tornar o invisível visível? Saúl Neves de Jesus

Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; https://saul2017.wixsite.com/artes

Desde há muito tempo que a arte e a ciência andam interligadas, sendo os primeiros grandes cientistas identificados na história também como artistas, sendo Leonardo Da Vinci um dos principais exemplos, e várias produções visuais surgem na história da ciência e também na história da arte, como é o caso das cerca de 600 pinturas e 1.500 gravuras descobertas nas cavernas de Lascaux, no sul de França, realizadas antes de 10.000 aC, no período paleolítico.

gem, a arte tem sido essencial, em vários momentos históricos, para a introdução de novos pontos de vista na ciência. Embora na atualidade a fotografia possa ser também usada no processo de ilustração, no passado o desenho era a técnica mais usada para criar imagens ilustrativas da realidade. Não havendo outras formas de “retratar” a realidade, muito do avanço científico ocorrido ao longo dos séculos contou com o suporte essencial da ilustração. Isto aconteceu em diversas ciências, em particular nas ciências ditas “da natureza”. Por exemplo, no trabalho de Darwin sobre a teoria da evolução das espécies foi utilizada a ilustração com grande frequência, considerando-se que Darwin deixou mais de 1000 ilustrações nos seus estudos.

Imagem da bactéria CRE •

plo, para ilustrar a percentagem daquilo que existe no universo, Pablo Budassi criou uma imagem em que apenas cerca de 5% da densidade do universo são compostos por matéria

fotos d.r.

o tamanho da realidade observável, como seja o microscópio ou o telescópio. Atualmente, o “tornar visível o invisível” tem ocorrido sobretudo através da fotografia, havendo grande ampliação das imagens visuais, nomeadamente do universo, do corpo humano ou de micro-organismos. No caso do universo, por exemplo as fotos fornecidas pela NASA da Nebulosa do Caranguejo, permitem examinar em detalhe a estrutura dessa estrela morta. No que diz respeito ao cérebro humano, destacaria a exposição “Cérebro: mais vasto que o céu”, que ocorreu na Fundação Calouste Gulbenkian, entre março e junho deste ano, permitindo uma “viagem” à origem e complexidade do cérebro humano.

tra-resistente é a CRE, a qual pode transmitir-se sem sintomas, tendo sido responsável por mais de 10.000 infeções que resultaram em várias centenas de mortes nos EUA, em 2018. Em vários casos, a CRE resistiu aos 26 tipos de antibióticos existentes no país. É também microscópico aquele que é considerado "o animal mais resistente da natureza". Tem oito pernas, olhos, nervos, músculos e uma boca como um focinho, medindo cerca de 0,05mm. Designado por tardígrado, ou “urso de água”, por causa da sua aparência e da lentidão dos seus movimentos, pode sobreviver por anos nas condições mais extremas, nomeadamente no vácuo do espaço, na água a ferver, no gelo ou no fundo do mar. Por exemplo, resistem a radiações cerca de 1000 vezes superiores às que um ser humano pode suportar. Em 2007, vários exemplares de duas espécies de tardígrados foram enviados para o espaço, tendo sido expostos não apenas ao vácuo do espaço, onde é impossível respirar, mas também a níveis de radiação capazes de incinerar um ser humano. De volta ao planeta Terra, um terço deles ainda estava vivo e cerca de 10 % destes foram capazes de reproduzir-se com sucesso. O facto de conseguirem permanecer em estado criptobiótico muito tempo é o “segredo” desta capacidade de sobrevivência. Assim, a arte visual, quer através da fotografia, quer através da

Imagem do universo (Nebulosa do Caranguejo) •

Várias vezes a arte se revelou essencial na ciência, através da utilização da imagem visual. Uma situação de “encontro” entre o cientista e o artista, é aquela em que o cientista precisa da imagem para comunicar sobre o seu trabalho. Por exemplo, a história mostra-nos que, sem a perceção artística da perspetiva, Galileu certamente não teria feito a descrição da superfície da Lua em 1610, quando a observava com o recém-inventado telescópio, desenhando-a com crateras e sombras, em ângulos diferentes, de acordo com a posição do Sol, descrição que produziu um importante impacto na visão cosmológica. Já no século XVI, quando o estudo da anatomia era dificultado pela proibição de dissecar cadáveres, haviam sido chamados artistas para colaborar com os cientistas, permitindo tornar compreensível e mais rigorosa a descrição da realidade. Assim, através do poder da ima-

A medicina foi outro domínio em que ocorreu um uso frequente da ilustração, em particular no estudo da anatomia humana. As questões ligadas ao universo, e ao tempo x espaço do mesmo, são daquelas sobre as quais atualmente mais ilustrações incidem. Por exem-

comum (planetas e estrelas), sendo o restante energia escura. Desta forma, a ilustração permite a criação de imagens que possibilitam “visualizar” aquilo que ainda não é visível ao olho humano, mesmo utilizando técnicas que permitem aumentar de forma muito significativa Imagem do micro-organismo tardígrado •

Imagem de sinapses no cérebro •

Quanto aos micro-organismos, destacaria que no passado dia 18 de novembro ocorreram as comemorações do Dia Europeu do Antibiótico, culminando a Semana Mundial dos Antibióticos, iniciada no dia 14, tendo como principal objetivo sensibilizar para a importância duma adequada utilização dos antibióticos, nomeadamente devido ao alarmante aumento da resistência aos antibióticos que várias “super-bactérias” revelam. Se nada for feito, estima-se que morram 10 milhões de pessoas por ano, em 2050. Um dos exemplos de bactéria ul-

ilustração, tem permitido tornar visíveis imagens não acessíveis ao olhar humano, contribuindo para apreciar as mesmas e também para aprender com elas, contribuindo para aproximar a ciência e a arte. l NOTA DE REDAÇÃO: Na edição de novembro do Cultura.Sul, por lapso o artigo de Saúl Neves de Jesus foi publicado com o título “Pode a arte ajudar a proteger o ambiente?”, quando o título correto é “Pode a arte sensibilizar para comportamentos mais saudáveis?”. Ao visado e aos nossos leitores as nossas desculpas.


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MARCA D'ÁGUA •••

Maria Luísa Francisco Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa luisa.algarve@gmail.com

Pelo terceiro mês consecutivo, a crónica é dedicada a personalidades que partiram por doença prolongada, neste curto espaço de tempo. Espero escrever no novo ano crónicas dedicadas a temas bem diferentes. Gostaria de fazer com as minhas palavras uma singela homenagem a Baltazar Guerreiro, que partiu no passado dia 9 de Novembro com 58 anos. Um algarvio bastante conhecido na região e que dedicou grande parte da sua vida à música, em particular ao acordeão. Baltazar Guerreiro começou a tocar este instrumento musical com 6 anos de idade quando ainda vivia em Alcoutim, terra onde nasceu e viveu até aos 11 anos, altura em que

Baltazar Guerreiro: da arte musical à valorização dos produtos regionais a família se mudou para Loulé. Realizou inúmeros concertos na região e levou o nome do Algarve a países onde actuou, tais como a Suécia, Suíça, Dinamarca e Estados Unidos da América. Editou o seu primeiro trabalho discográfico em 1988, tendo vendido mais de 10.000 unidades. Foi co-fundador da «Orquestra Big Band - Arte & Música» e do Grupo de Música Portuguesa «Albuhera» e integrou o «Quarteto de Fado Albuhera». Há alguns anos assisti a um concerto do Grupo «Albuhera» onde a fadista Raquel Peters é a vocalista. No final fui felicitar esta amiga, que muito admiro como artista e como pessoa e apresentou-me os elementos do grupo onde estava Baltazar Guerreiro. Conversámos no ambiente informal e agradável da praça principal de Alcoutim, onde decorreu o concerto. Foi então que Baltazar disse que era natural daquela localidade e contou um pouco do seu percurso.

“Promotor da identidade cultural algarvia e um embaixador criativo dos produtos regionais” Baltazar Guerreiro é um dos acordeonistas referidos no livro da Arandis Editora intitulado O Acordeão no Algarve - Um Século de Histórias e Memórias, da autoria de Nuno Campos Inácio. O autor do livro descreve o acordeonista numa excelente frase de síntese do que foi a vida deste homem, que irradiava alegria e orgulho de ser algarvio e que nós algarvios não esqueceremos: “um acordeonista activo e voluntarioso, promotor da identidade cultural algarvia e um embaixador criativo dos produtos regionais”. Voltei a encontrá-lo, quase sempre com a sua simpática família, em vários eventos de divulgação do que o Algarve tem de melhor. Um produtor presente e empenhado em divulgar os produtos da região. Percebia-se a sua paixão pelo Algarve, pelas tradições e que com-

Baltazar dedicou grande parte da sua vida ao acordeão •

plementava tão bem com a arte de tocar acordeão, instrumento ligado à tradição musical algarvia. Comprei alguns produtos da marca «Chocofigo», que muito apreciei. Marca que Baltazar Guerreiro criou e que comercializava divulgando assim produtos regionais como o figo, a laranja, a alfarroba, a batata doce, entre outros, cobertos com chocolate. São pessoas assim que também contribuem para que o Algarve mantenha a identidade. O facto de este empresário comprar as matérias primas a produtores locais e ter um produto quase todo feito à mão acrescentou valor à sua marca, ao ponto de se internacionalizar (era também empresário no ramo da óptica). Divulgou os produtos endógenos de forma criativa, em especial pela arte de saber juntar as matérias primas dando-lhes um toque gourmet e, entre várias inovações, pela criação de um chocolate com piri-piri. Faleceu no dia em que terminou

o 69º Troféu Mundial de Acordeão em Loulé, concelho onde Baltazar Guerreiro vivia há algumas décadas. A sua morte coincidiu também com a data em que se realizou o XVII Congresso Europeu de Confrarias Vínicas e Gastronómicas, em Albufeira. Dois eventos que lhe diziam certamente muito e aos quais já não conseguiu assistir. O seu grupo musical actuou no Congresso e nesse momento chegou a notícia da sua partida. Em palco Raquel Peters partilhou essa dor e em memória do colega e amigo cantou um tema especial – My way de Frank Sinatra. Sempre me parece que as pessoas com doenças prolongadas morrem em datas que para elas são especiais ou coincidentes com acontecimentos especiais. Partiu um acordeonista de excelência e um divulgador genuíno dos produtos regionais. A família Guerreiro ficou mais pobre e o Algarve também. l

ESPAÇO AGECAL •••

Morin, Magalhães e o 5 de Maio da língua e cultura portuguesas Jorge Queiroz

Sociólogo, Sócio da AGECAL

Edgar Morin, com 98 anos de idade, permanece um dos mais respeitados intelectuais, reconhecido pelas análises sobre a complexidade, autor de "O Paradigma Perdido: a Natureza Humana", uma das obras mais importantes sobre a epistemologia e da análise das ciências. Teceu recentemente um fundamentado elogio à cultura portuguesa. E que disse Morin? Que Portugal é um país extraordinário, simultaneamente mediterrânico e atlântico, com uma influência mundial, acredita o filósofo que a lusofonia está a desempenhar um papel importante no mundo, sobretudo pela presença da língua como património vivo. Morin vê na lusofonia e nas culturas de expressão portuguesa um instrumento de aproximação e cooperação humanista entre conti-

nentes e povos. O português e a cultura portuguesa deveriam ser em Portugal componentes centrais nas políticas pública- Porquê? Por ser um idioma pluricontinental, língua materna em Portugal, Brasil, São Tomé e Príncipe. Em Angola, Moçambique é o idioma de ligação ou veicular e em outros países convive com dialectos e crioulos, como são os casos da Guiné-Bissau, Cabo Verde e Timor-Leste. Mas o português é também falado em outras regiões do mundo caso de Macau, no Japão existem meio milhão de falantes e em muitos lugares com herança cultural portuguesa é usado por pequenas comunidades. São 17 países do mundo que utilizam o subsistema de ensino da língua e cultura portuguesas dirigido a luso-descendentes, 33 países oferecem o português nos currículos do ensino secundário e 74 integram estudos portugueses e literaturas lusófonas em universidades e escolas superiores.

Por outro lado, a economia da cultura é extremamente deficitária, a importação de bens e serviços de matriz anglo-saxónica (cinema, musica, tradições como o halloween,…) supera largamente a débil exportação nacional. Há estatísticas oficiais disponíveis que poucos analisam… O potencial da cultura portuguesa é enorme. No domínio da história, do património material e imaterial, inúmeros acontecimentos seriam fonte de inspiração e originalidade nas artes e indústrias culturais de internacionalização ou em programas educativos dirigidos às novas gerações. Este ano comemoram-se os 500 anos da viagem de circum-navegação do português Fernão de Magalhães ao serviço do Imperador Carlos V, que levanta diversas questões. Desde logo o termo “descobrimento”. Descobre-se o que não se conhece e Magalhães sabia da existência de outro mar situado na costa ocidental sul-americana porque ele próprio nele tinha navegado vários

anos ao serviço da coroa portuguesa e sob o comando de Afonso de Albuquerque na zona das Molucas. A viagem de circum-navegação não seria possível sem os conhecimentos matemáticos, astronómicos e cartográficos da elite científica portuguesa com quem Magalhães preparou o seu plano e itinerários, que apresentou a D. Manuel I. Este recusou e Carlos V aceitou… O descobrimento existiu mas do ponto de vista europeu. Em muitas regiões da Ásia sabia-se da existência da Europa e da Africa, mercadores de múltiplas origens apareciam em regiões longínquas para comprar produtos e depois os vender utilizando a via terrestre mas também marítima. A rota da seda ia da China até à Ásia Menor. Foi a maior e mais extensa rede comercial do Mundo Antigo, no período romano muito utilizada. Hoje a “globalização” é um termo ambíguo com significados contraditórios, transmite a ideia de um mundo que se estrutura como um todo para

responder às necessidades da humanidade, mas na realidade dominam macropolíticas financeiras, económicas, tecnológicas e comunicacionais uniformizadoras, claramente desintegradoras dos países e inigualitárias no plano social. Aprendemos muito com o estudo das civilizações mediterrânicas e nas informações resultantes das viagens dos nossos antepassados pelo mundo, são lições fundamentais sobre a biodiversidade planetária, de gestão da terra e dos recursos hídricos, sobre a diversidade cultural, ensinamentos que se mantêm actuais. A UNESCO decidiu recentemente que 5 de Maio será o DIA MUNDIAL DA LÍNGUA PORTUGUESA, compete aos portugueses assinalá-lo no quotidiano, promover e defender este património vivo. É neste correcto sentido da História e utilização das Convenções da UNESCO que Edgar Morin nos falou e chamou a atenção para a importancia actual da língua e cultura portuguesas. l


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FILOSOFIA DIA-A-DIA •••

Por que se escreve? Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

Creio que nunca se escreveu tanto como hoje em dia. Escrevem-se mensagens nos telemóveis mais do que se telefona, escreve-se no Facebook, no Twitter, no blog, no correio eletrónico. Nunca a escrita foi tão acessível! E talvez nunca se tenha escrito tanto e lido tão pouco... fotos d.r.

Hoje proponho que pensemos sobre a escrita. Porém, numa época em que tanto se escreve, importa salvaguardar que proponho que reflictamos sobre a escrita literária e filosófica. Deixemos de fora esse amontoado de palavras dos sms, das redes sociais, dos jornais e das revistas. Nestes mais de quatro anos de cafés filosóficos mensais realizados nas cidades de Tavira e Faro, surpreendi-me ao constatar que nenhum dos até hoje participantes leu na íntegra Em busca do tempo perdido, de Proust ou Ulisses de James Joyce. E poucos foram aqueles que tomaram sequer contacto com algum texto de um destes gigantes da literatura do sec. XX. Talvez os sete volumes ao longo dos quais se espraia a obra do primeiro, ou as 752 páginas do volume único do segundo intimidem mesmo os mais ousados. São obras magistrais que requerem tempo, não se compadecem com rapidinhas, nem leituras na diagonal. Existem nelas frases que demoram vários dias a saborear. Já imaginou como seria uma conversa entre estes dois génios da literatura? De facto, não precisamos

de imaginar porque tal encontro aconteceu. A 18 de Maio de 1922, o escritor e mecenas britânico Sydney Schiff (pseudónimo Stephen Hudson) e a sua esposa Violet foram os anfitriões de um jantar de gala no Ritz, por ocasião da estreia de Le Renard de Stravinsky em Paris. Entre os convidados encontravam-se Sergei Diaghilev - o famoso director da companhia Ballet Russes - o compositor Igor Stravinsky, o pintor Pablo Picasso, e os escritores James Joyce e Marcel Proust. Em Como Proust pode mudar a sua vida, Alain de Botton descreve este singular encontro que ocorreu nessa noite sob um lustre do Ritz: Joyce chegou atrasado e sem smoking, Proust manteve o seu casaco de peles vestido a noite toda. Proust perguntou a Joyce se conhecia o duque de tal e tal. Joyce respondeu “Non”. Os anfitriões perguntaram a Proust se lera determinado excerto de Ulisses. Proust respondeu “Non”, e assim por diante. Depois do jantar a Marcel Proust • situação não melhorou: “Proust entrou no taxi com os seus anfitriões, Violet e Sydney Schiff, e, sem pedir, Joyce entrou também. O seu primeiro gesto foi abrir a janela e o segundo acender um cigarro, duas coisas que, na opinião de Proust, constituíam um atentado à vida. Durante a viagem Joyce observou

Proust sem dizer uma palavra, enquanto Proust não parou de falar sem se dirigir a Joyce. Quando chegaram ao apartamento de Proust na Rue Hamelin, Proust chamou Sydney Schiff à parte e disse: ‘Peça, por favor, a Monsieur Joyce que deixe o meu taxi levá-lo a casa’. O taxista assim fez. Os dois homens nunca mais voltaram a ver-se”. Parece não ter existido entre

contrário, tendemos a reler e reescrever várias vezes a mesma frase. Assim, como nos diz Botton, “as ideias originais - fiapos nus e desarticulados - são enriquecidas e aperfeiçoadas com o tempo”. Não se pode, portanto, esperar da oralidade a mesma agudeza de raciocínio, precisão, ou finura expressiva alcançável na escrita. A filósofa María Zambrano, num

María Zambrano •

os dois escritores um mínimo de empatia; não foram capazes de estabelecer uma plataforma de comunicação. Aquela que poderia ter sido uma conversa memorável entre dois génios da literatura resumiu-se à palavra “Non”. Contudo, diz-nos Alain de Botton, mesmo que este histórico encontro tivesse corrido maravilhosamente, ainda assim teria existido uma discrepância incontornável entre a conversa e a escrita destes dois homens. De acordo com Botton, o diálogo exibe aqui os seus limites: seria impossível falar ao nível no qual se escreve em Em busca do tempo perdido ou em Ulisses. Na verdade, enquanto que numa conversa somos naturalmente mais expontâneos, e, por conseguinte, menos reflectidos, na escrita, pelo

James Joyce •

magnífico texto intitulado precisamente “Por que se escreve?” incluído no livro A Metáfora do Coração, afirma: “o imediato, o que brota da nossa espontaneidade, é algo pelo que inteiramente não nos fazemos responsáveis, porque não brota da totalidade íntegra da nossa pessoa; é uma reacção sempre urgente, premente”. A urgência da oralidade não se compadece do tempo necessário para aprofundar o pensamento ou alargar o escopo da análise. “Há no escrever um reter as palavras, como no falar há um soltá-las”, prossegue María Zambrano, por isso mesmo “escrever vem a ser o contrário de falar”. A partir daqui a filósofa entrará numa linha de raciocínio que surpreende, considerando que ao falar nos tornamos prisioneiros do que dissemos enquanto que ao escrever nos libertamos. Suponho que tendamos a pensar o contrário. Não será a palavra falada, que se desvanece após ser pronunciada, a mais livre? Precisamente porque permanece, não nos tornará a palavra escrita seus prisioneiros? Porém, para María Zambrano, se pela palavra dita nos tornamos livres do momento ou da circunstância “assediante e instantânea” essa mesma palavra não nos recolhe. Por este mo-

tivo, a oralidade acabará sempre por produzir desagregação. Ao escrever, pelo contrário, as palavras já não se encontram ao serviço do “momento opressor”, muito pelo contrário, “partindo do nosso ser em recolhi-mento, irão defender-nos perante a totalidade dos momentos, perante a totalidade das circunstâncias, perante a vida na sua integridade”. Segundo María Zambrano a libertação somente acontece na perdurabilidade, por conseguinte: “salvar as palavras da sua momentaneidade, de seu ser transitório, e conduzi-las em nossa reconciliação rumo ao perdurável, é o ofício de quem escreve.” E que dizer sobre o acto de escrever e o acto de ler? Miguel Esteves Cardoso num texto intitulado “Escrever e Ler” incluído no livro No passado e no futuro estamos todos mortos afirma: “Por cada hora que passo a escrever, recebo três horas de leitura. Nada mau este retorno: 300 por cento”. Este cálculo não se percebe de imediato, mas o escritor adiante clarifica: “escrevo devagar e leio depressa. Esta crónica pode levar três horas a escrever mas não consigo levar mais de três minutos a lê-la. Por outras palavras, para eu escrever o número de palavras que leio em três

Miguel de Sousa Tavares •

horas precisaria de 600 horas”. Fica assim matematicamente explicito aquilo que todos nós, certamente experimentamos: existe uma significativa diferença das tessituras do tempo, da oralidade, da escrita e da leitura. O modo de vivência do tempo é, em si mesmo, uma forma de acesso particular à realidade a que estamos idos. Quem não apenas lê muito, mas lê, sobretudo, bons livros, sabe que há reinos de realidade que apenas se alcançam nesse tempo da leitura, e que há estados de consciência que não surgem de outro modo. Talvez por esse motivo James Joyce tivesse ousado dizer: “A única exigência que faço aos meus leitores é a de dedicarem as suas vidas à leitura das minhas obras”. l Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com


13 de dezembro de 2019

CULTURA • SUL

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REFLEXÕES SOBRE URBANISMO •••

Teresa Correia

Arquitecta / urbanista arq.teresa.correia@gmail.com

Ordenamento do território e a sua expressão gráfica Esta matéria pode ser de difícil abordagem para o comum cidadão, mas uma das questões mais importante no Ordenamento do Território, prende-se com a leitura gráfica do Plano. Nos PDMs de antiga geração, fica-se a perceber onde está o perímetro urbano e a categoria do solo, pela mancha que cabe em cada espaço ou lugar numa planta, normalmente à escala 1/25.000. Acontece que, por vezes, não se percebe, de forma fácil, que tipo de classe de espaço estamos e muito menos a localização (se é a correta), uma vez que as referências principais dos lugares estão mal definidas ou omissas em peças desenhadas ainda feitas à mão.

Ordenamento do território, desenho e escalas Daí, a maior parte das autarquias do Algarve, e nomeadamente a CCDR, ter vetorizado as referidas peças feitas pelos técnicos nos tempos dos “grisés” e das canetas Rotring, passando para sistemas SIG. As antigas peças desenhadas, plantas em papel físico, aprovadas pelo Governo são preciosas porque são aquelas que têm força legal e correspondem à realidade do plano. Porém, as traduções para os sistemas SIG dão-nos uma ferramenta excecional para saber imediatamente e de forma quase perfeita a localização de um terreno na carta de Ordenamento do PDM, na REN ou na RAN. Porém, não são poucos os casos em que estas traduções correspondem também a uma interpretação de quem fez a passagem do desenho para o computador, dando uma leitura pessoal ao traço. Nestas

situações, em cima das linhas, e com dúvidas, torna-se difícil a decisão para um executivo, podendo incorrer em erros, logo, será mais correto ter alguma flexibilidade de leitura face à escala em que foi traçado o plano, ou seja, à escala 1/25.000. Este pormenor de rigor de leitura e de exigência é importante para que, sendo público, seja possível qualquer um fazer o seu juízo sobre o que é possível ou não em termos urbanísticos e, por outro lado, evitar comportamentos excessivos nas decisões sobre estes mesmos Planos. No nosso sistema democrático, a garantia dos cidadãos é também dada pela publicidade, discussão pública, facilidade de consulta ou a publicação dos instrumentos de gestão territorial ou setoriais, como o PMDFCI, consubstanciando uma praxis inquestionável, mas por vezes ignorada.

Desenho e escalas O desenho, em mancha ou em traço, é uma técnica utilizada desde tempos imemoriais pelo Homem para traduzir uma intencionalidade, neste caso, sobre o território. Este ato traduz também uma reflexão e um posicionamento crítico e decisório. Assim, esta técnica podendo ser traduzida posteriormente para os computadores, é uma forma de expressão de saber de um especialista, o qual pretende traduzir uma ideia estruturante e condutora sobre um espaço. Acontece que os planos estão cada vez mais conquistados pelas aplicações de software, extremamente sofisticados, que evitam naturalmente o erro humano, mas desvalorizam, por outro lado, fatores sensíveis ao homem, particularidades do próprio território. O resultado mais desastroso foi, por exemplo, a aplicação do software referente à vulnerabilidade de risco de incêndios, o qual obriga a ter manchas em forma de pixel, com uma percentagem de 20% por cada grau (com manchas vermelhas e laranjas, em grande parte de cada município), o que gera as maiores injustiças, nas escalas em que se trabalha. O resultado automático de um software, o

qual constrói linhas e manchas irreconhecíveis em termos físicos no território, afeta diretamente a vida dos particulares, proibindo todas as ampliações e construções novas. O desenho é assim fundamental ao ato de planear e não deveríamos, como seres humanos, abdicar deste, mesmo que tivéssemos softwares auxiliares como bases de trabalho. A escala é outro dos elementos que deverá ser recuperado. Com a informatização, os atuais PDMs em revisão são instrumentos complexos que permitem a identificação em planta de elementos em detalhe, aumentando ou diminuindo a sua visualização. Existe agora a tentação de resolver tudo à escala do PDM, ou seja, em vez de se trabalhar nas escalas dos aglomerados com planos de urbanização, passa-se a ter tudo incluído na planta do PDM. A verdade é que é possível realizar esse exercício, mas implica investimento de tempo e custo e perde-se a noção do fim mais estratégico que deverá ser um Plano à escala do município. Acredito que a valorização do controlo de análise pelo Homem é ainda uma forma de fazer melhores planos e, não tanto, apenas com Planos resultantes de “rotinas informáticas”. l pub


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