Cultura.Sul 143 9OUT2020

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Mensalmente com o POSTAL em conjunto com o

OUTUBRO 2020 n.º 143 8.316 EXEMPLARES

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MISSÃO CULTURA

A Casa Rural das Ruínas Romanas de Milreu (Estoi) CRISTINA TÉTÉ GARCIA Coordenadora das Ruínas Romanas de Milreu - DRC Algarve

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esde há muito que as grutas do Algarve As pequenas torres cilíndricas adossadas aos quatro cantos do edifício são a imagem forte da Casa Rural de Milreu, um dos mais interessantes exemplos da arquitetura tradicional algarvia. A sua origem remonta ao reinado de D. Afonso III, quando a região do Algarve foi conquistada pelos reis cristãos peninsulares e integrada no reino português. O alargamento da construção terá acontecido nos finais do século XV ou inícios do século XVI, tendo então sido construídas a cozinha, mais espaçosa, a casa de dentro (quarto de dormir), o celeiro e o estábulo, com o seu sobrado. A casa de fora funcionava como sala, onde também seriam recebidas as visitas. A Casa Rural resistiu ao terramoto de 1755, porque as suas fundações assentam sobre as robustas construções da época romana. No século XIX, os proprietários de então, fizeram obras de ampliação da Casa Rural, criaram uma nova fachada principal, em que variadas portas e janelas permitiam encher de luz o interior. A subida do pavimento em cerca de quarenta centímetros e a subida geral de toda a cobertura deu ao edifício o aspeto atual. Já na posse do Estado Português, a Casa Rural foi recuperada em 2001. Desde então, tem acolhido inúmeras exposições e atividades culturais. Destacamos a exposição de Júlio Pomar em 2009. E as muitas exposições de arte de alunos e artistas nacionais dinamizadas pelos Professores Miriam Tavares e Pedro Cabral Santo da Universidade do Algarve. Ou as oficinas de artes tradicionais, palestras proverbiais. Diversas associações e artistas locais tiveram também a oportunidade de divulgar os seus trabalhos. E as conferências em que podem participar todos os que amam o Mundo Antigo. Vinte anos depois, a vetusta Casa Rural voltou a acolher a mesma equipa, que recuperou os revestimentos exteriores, garantindo a sua impermeabilização, nomeadamente rebocos, caixilharias de portas e janelas, reparou o telhado e ainda executou uma caleira para desvio de águas pluviais das ruínas arqueológicas, reforçando a solidez e capacidade de resistência da Casa Rural. Esta obra decorreu entre fevereiro e junho deste ano, foi enquadrada pelo Programa de Conservação e Requalificação das Ruínas Romanas de Milreu e financiada pelo Programa Operacional CRESC Algarve 2020, coordenado pela CCDR Algarve. Mal podemos esperar para reabrir o espaço da Casa Rural à participaçãodacomunidade,sinaldamudançadestetempo. Até lá, podemos sempre apreciar a sua bela arquitectura e imaginar uma família a aquecer-se na casa de fogo, mal imaginando que sob o chão que pisavam, a casa romana, silenciosa, os observava e protegia.

Ficha técnica Direcção: GORDA Associação Sócio-Cultural Editor: Henrique Dias Freire Paginação e gestão de conteúdos: Postal do Algarve Responsáveis pelas secções: • Artes Visuais: Saúl Neves de Jesus • Espaço AGECAL: Jorge Queiroz • Fios de História: Ramiro Santos • Filosofia Dia-a-dia: Maria João Neves • Letras e Literatura: Paulo Serra • Marca D'Àgua: Maria Luísa Francisco • Nascida no Monte Teresa Lança Colaboradores desta edição: Cristina Tété Garcia Parceiros: Direcção Regional de Cultura do Algarve e-mail redacção: geralcultura.sul@gmail.com e-mail publicidade: anabelag.postal@gmail.com online em: www.postal.pt e-paper em: www.issuu.com/ postaldoalgarve FB: www.facebook.com/ postaldoalgarve/ Tiragem: 8.316 exemplares

Em cima A Casa Rural de Milreu é um dos mais interessantes exemplos da arquitetura tradicional algarvia

Em baixo A Casa Rural tem acolhido

inúmeras exposições e atividades culturais FOTOS D.R.


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NASCIDA NO MONTE

Sem máscaras TERESA LANÇA Educadora de Infância nascidanomonte@gmail.com

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ouso em cima da mesa uma caixa de cartão. A porta, aberta para a pequena varanda, deixou entrar o vento e há papéis espalhados por todo o lado. Lá fora, as malvas a florir nos vasos pendurados presas por raízes à terra, e eu aqui, do lado de dentro, presa a nada, como os meus desabafos esvoaçando pela sala. Pego numa folha que já não lembro, nem os tempos nem os sentimentos que lhe descrevi. E leio: “Vá, coragem, despeja aqui a tua alma! Escreve aqui todas as palavras, todas! Esquece os medos,

e se não encontrares as palavras que traduzam o que sentes, é porque ainda não foram inventadas todas as palavras. Inventa-as sem medos, sobretudo esses que te azucrinam atrás das portas...das portas de ti, onde as noites te matam nos sonhos. Não temas falar dos outros, porque nenhuma das tuas palavras se aplicará àquilo que eles realmente são, mas à forma como tu os recebeste em ti; nem são deles os teus caminhos. A tua história não é a história de ninguém: é tua, és tu, são os teus caminhos. Tira a burca porque o tempo dos perigos já passou; derrama sobre este teclado a tua alma! Vence o medo que vives embebendo em tudo o que és tu! Tu és tu! A tua vida pode ter crescido misturada na vida de outras vidas, mas não

fundida nelas. A tua história não é a mesma daqueles que percorreram os mesmos caminhos que tu. As estradas da vida são comuns a todos, as vidas que percorrem as estradas, não. A tua história é feita dos caminhos percorridos dentro de ti mesma, com aqueles que voluntária ou involuntariamente deixaste entrar neles: nesses que ainda percorres e naqueles que dentro de ti chegaram ao fim da linha. Não temas este parto que é só teu. Recusa qualquer benevolência. Não procures palavras que atenuem o que não tem forma nem jeito de dizer o que sentes, sem adulterar a imagem que passaste de quem és, nem temas que as palavras derramadas na vida, se confundam com os sentimentos

que são apenas teus e cresceram… tanto, que já não os consegues reter dentro de ti. Não temas falar das tuas tristezas, das tuas mágoas, mas também de assumir as tuas felicidades, os teus amores, nem temas falar de ódios… não, não apagues a palavra sublinhada, essa é a palavra exata; a que define esse ardor raivoso que sentes, pelo mundo a que fechaste definitivamente as tuas fronteiras. Não temas as tuas culpas, as tuas dependências, nem as desculpas que não consegues conceder. Usa os bálsamos que te restam para ti mesma, e não te deixes vencer pelo medo que as tuas confissões e desalentos, deixem a tua alma nua, as tuas fragilidades do avesso! Não és mais forte por mascarares as tuas fraque-

zas, nem deixas de o ser por mostrares o que és por detrás da máscara. Assume o teu disfarce e assume-te sem ele; dá-te o direito de teres direitos, de te apresentares do avesso. Não temas que por mostrar as tuas fragilidades te julguem enfraquecida! Força. Vá! Expulsa todo o veneno que a vida te injetou. Espreme tudo o que és tu, até restar em ti apenas a essência, porque este é um filho apenas teu, e não deixes que te convençam do contrário. Tu és responsável pelo que fazes, não pelo que sentes, não pela forma que os outros aceitam ou sentem o que tu és. Tu és apenas e completamente tu, mesmo o que transborda e derramas na vida, por não o conseguires reter mais. Vá! Ainda tens uma arca de sonhos por abrir”.

MARCA D'ÁGUA

Dia Internacional da Mulher Rural - breve apontamento sobre a mulher rural e os seus saberes MARIA LUÍSA FRANCISCO Investigadora na área da Sociologia; Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa

luisa.algarve@gmail.com

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ecidi escrever algumas palavras sobre aquelas mulheres do mundo rural que todos conhecemos na vida real. No Algarve quase todos nós temos algum familiar na serra e mesmo quem não tem, no seu imaginário existe a imagem daquelas mulheres que trabalhavam e trabalham a terra de lenço e chapéu na cabeça. São mulheres lutadoras, maioritariamente agricultoras, às vezes já viúvas, e que desempenham vários papéis sociais. São cuidadoras dos filhos e dos seus idosos. São as principais guardiãs de tradições e saberes ancestrais que chegaram aos nossos dias e que foram passadas de geração em geração, sem livros ou manuais. A manutenção dessa memória deve ser valorizada porque estas mulhe-

res guardam uma valiosa sabedoria popular, que é parte importante do Património Cultural Imaterial. Vidas passadas parte do tempo ao sol, de manhã até ao anoitecer, daí a expressão “trabalhar de sol a sol”. Essa protecção do corpo com roupas de manga comprida, mesmo de Verão, tal como a cabeça coberta, não tem só a ver com o pudor e o recato, mas creio que terá a ver principalmente com o proteger-se do sol. O mesmo acontece com o vestuário do homem que trabalha no campo, que sempre veste calças, camisa de manga comprida e boina ou chapéu. Gosto das gentes da serra e estou grata pelos ensinamentos que me passaram, como por exemplo amassar o pão e os rituais associados, como referi na crónica de 6-02-2020. Tive a oportunidade de fazer alguma recolha, não só a nível do gosto pessoal pelas tradições, costumes, lendas, orações e cantares, mas tive também a oportunidade de, a nível académico, estudar diversas dimensões da vida no interior algarvio de Aljezur a Alcoutim. Esta paixão pela serra algarvia e pelas raízes rurais faz parte de uma

maneira de estar, de um orgulho em manter certos termos regionais na linguagem diária e de os divulgar, mas isso daria outra crónica. Não fugindo ao tema escolhido, há que referir que o Dia Internacional da Mulher Rural foi instituído pela ONU em 1995, principalmente para relembrar o grande número de mulheres que vive e trabalha no meio rural e é um exemplo de resiliência e resistência em relação à manutenção da vivência humana nos territórios rurais. E pela importância de reconhecer e valorizar o seu papel. É curioso que a ONU escolheu como tema das Comemorações do último Dia Internacional da Mulher Rural, celebrado a 15 de Outubro de cada ano, “Mulheres e raparigas rurais a construir uma resistência climática”. É muito curioso este tema não só pelo sentido de resistência, mas pela importância que as mulheres têm na parte climática e ambiental. São elas que recolhem e guardam as sementes, que preservam, mas por vezes também têm comportamentos, que por desconhecimento, são prejudiciais para o ambiente. Por exemplo, após a utilização de

adubos ou produtos anti-pragas, as embalagens nem sempre são devidamente acondicionadas ou são deixadas no campo. Outro exemplo que verifiquei foi as pilhas das lanternas ou rádios espalhadas pelos campos, porque falta a noção de que as pilhas contêm produtos nocivos para o solo. Cabe muitas vezes à mulher essa parte de transmitir aos filhos, pequenos gestos de cuidado com a terra e tudo o que ela produz. De cuidado com o outro, seja homem ou mulher. São as mulheres que dão a primeira educação aos filhos e por isso muitas vezes, por ignorância, dão aos rapazes uma educação machista. (Não defendo conceitos machistas nem feministas) Ainda hoje há quem eduque os filhos dizendo que os homens não choram, ou não precisam de saber fazer tarefas domésticas. E sem querer, estão a deseducar em vez de educar para a igualdade, para o saber estar e o saber ser. Felizmente, o meio rural está a mudar também porque vivem nestas zonas pessoas cada vez mais esclarecidas e com formação superior.

As mulheres rurais são uma força da Natureza! FOTOS D.R.

Alguns voltaram à terra dos pais ou dos avós idealizando uma vida no campo com novos negócios. Estes rurais renovados, normalmente em idade activa, juntamente com outras pessoas em início de reforma, que procuram uma vida mais tranquila, tornam-se importantes agentes de desenvolvimento local pelo seu capital cultural, espírito de iniciativa e experiência. Voltarei ao mundo rural...


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FILOSOFIA DIA-A-DIA

Fernando Pessoa e o Racismo Maria João Neves Ph.D Consultora Filosófica

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problemática da possibilidade de Fernando Pessoa ter eventualmente assumido posições racistas foi abordada pela primeira vez na Festa Álvaro de Campos, na edição de 2016. Tratou-se de um espectáculo com encenação e roteiro de Tela Leão intitulado Os Filhos do Fogo de Deus, que coligiu textos de vários autores. Esta expressão que dá título ao espectáculo provém de um sermão do Padre António Vieira em que se promete uma carta de alforria a todos os escravos, na vida para além da morte: “Vós sois filhos do fogo de Deus (...) porque o fogo vos imprimiu a marca de cativos (...) também o fogo vos alumiou, porque vos trouxe a luz da fé e dos conhecimentos dos mistérios de Cristo. (...) a melhor parte do homem, que é a alma, é isenta de todo o domínio alheio, e não pode ser cativa.” O padre António Vieira dedicou grande parte do seu esforço não apenas à consolação das almas das minoria oprimidas, mas também activamente à sua defesa. Na sua brilhante carreira diplomática defendeu junto da coroa portuguesa os direitos dos judeus e dos povos indígenas escravizados no Brasil. Pergunto-me, pois, como é que é possível terem vandalizado a estátua do Padre António Vieira nas manifestações anti-racistas que recentemente ocorreram em Lisboa. Na encenação de Os Filhos do Fogo de Deus o texto que incendiou os ânimos, tanto do público como dos actores, foi o seguinte parágrafo atribuído a Fernando Pessoa: “A escravatura é lógica e legítima; um zulu ou um landim não representa coisa alguma de útil neste mundo. Civilizá-lo, quer religiosamente quer de outra forma qualquer, é querer dar-lhe aquilo que ele não pode ter. O legítimo é obrigá-lo, visto que não é gente, a servir os fins da civilização. Escravizá-lo é que é lógico, o degenerado conceito igualitário, com que o cristianismo envenenou os nossos conceitos sociais, prejudicou, porém, esta lógica atitude.” Fernando Pessoa in Sobre Portugal - Introdução ao Problema Nacional. Foi este mesmo texto que despoletou a oposição Luzia Moniz à proposta de se dar o nome do poeta a um programa académico de intercâmbio, semelhante ao programa Erasmus, mas de abrangência restrita aos países de Língua e Cultura Portuguesa. Gerou-se uma enorme polémica! A presidente da Plataforma para o Desenvolvimento da Mulher Africana (PADEMA), num artigo de opinião publicado no

jornal de Angola acusou Pessoa de ter sido um “escravocrata racista, que não pode ser indicado para patrono de um projecto cujos beneficiários são maioritariamente jovens descendentes de escravizados”. O controverso texto atribuído ao poeta, e cuja data se desconhece, encontra-se disponível no arquivo Pessoa on line no seguinte endereço: http://arquivopessoa. net/textos/1013. Foi também publicado numa recolha de textos de Maria Isabel Rocheta e Maria Paula Morão editados pela Ática em 1979. O investigador José Barreto, que trabalha há 15 anos no espólio da obra de Fernando Pessoa, afirma que esta acusação não tem fundamento. Considera que o equívoco deriva do facto de desde os anos 80 se terem vindo a publicar “muitas centenas de coisas que Pessoa nunca pensou publicar, muitos leitores simplesmente não distinguem entre o que ele deu ou pretendia dar à estampa e o que atirou simplesmente para a mala em que guardava tudo o que escrevia, mesmo certas parvoíces (acontece a todos) que rabiscava em papelinhos, eventualmente com uns copinhos já bebidos. Pessoa não atirava nada fora: podia era escrever outros papelinhos a dizer o contrário do que tinha dito nos primeiros. Acontecia-lhe isso muito frequentemente.” Na mesma linha de raciocínio Teresa Rita Lopes, uma das principais investigadoras da obra do poeta, explica que o mal entendido acontece porque “as pessoas esquecem que quando atribuem frases ao poeta estão a tirá-las de uma das suas personagens, porque toda a obra do Pessoa é uma obra de teatro. Pessoa desdobrou-se em personagens que, naturalmente, se contrariam umas às outras”. Neste caso específico, Pessoa terá inventado um personagem a quem chamou António Mora para quem a escravatura era algo natural. No mesmo site podemos encontrar outros textos polémicos sobre este tema, igualmente atribuídos ao poeta, a título de exemplo: “Ninguém ainda provou, por exemplo, que a abolição da escravatura fosse um bem social. Ninguém o provou, porque ninguém o pode provar. Quem nos diz que a escravatura não seja uma lei natural da vida das sociedades sãs? Ninguém o pode dizer, porque ninguém sabe quais são as leis naturais da vida das sociedades e essa pode portanto ser uma delas. A velha afirmação de Aristóteles — aliás tão pouco propenso a soluções ‘tirânicas’ — de que a escravatura é um dos fundamentos da vida social, pode dizer-se que ainda está de pé. E ainda está de pé porque não há com que deitá-la abaixo.” in Fernando

Em cima: Estátua de Fernando Pessoa em frente ao Café “A Brasileira"; Em baixo: Peça “Os Filhos do Fogo de Deus” fala de escravatura FOTOS D.R.

Pessoa, Régie, Monopólio, Liberdade http://arquivopessoa.net/textos/2397 Sobre o posicionamento de Aristóteles relativamente à escravatura muito há a dizer, mas escasseiam os caracteres para poder seguir tal trilho neste artigo. Regressando ao texto acima citado, ele vem referenciado como tendo sido publicado pela primeira vez em 1926 na Revista de Comércio e Contabilidade. Se estes dados forem correctos trata-se de uma publicação em vida do poeta que teria então 38 anos. Não se trata, portanto, de um texto de juventude onde um Pessoa ainda imaturo e envolto pelo clima de apartheid que experienciou na África do Sul expressasse a sua opinião imberbe influenciado pelas circunstâncias do momento. Pessoa trabalhou como correspondente comercial em várias

empresas da Baixa lisboeta interessando-se também por temas ligados ao comércio. Tratava neste escrito da questão chamada “dos tabacos” onde se tenta apurar se se deve preferir o sistema de administração de Estado ou régie, o sistema de monopólio privado, ou o sistema de concorrência livre. Pessoa escreve que “A lei aparentemente mais justa, a lei mais de acordo com os nossos sentimentos de equidade, pode ser contrária a qualquer lei natural, pois pode bem ser que as leis naturais nada tenham com a nossa ‘justiça’ e em nada se ajustem às nossas ideias do que é bom e justo”. Daqui decorre que quando o poeta estabelece um paralelismo entre a lei da natureza e a lei das sociedades expressa justamente a injustiça que pode vigorar sob elas. Injustiça essa que permite atrocidades como a escravatura.

Como se pode verificar, são de crucial importância as fontes e o contexto. Ora não se pode pedir a um público não especializado que deslinde fontes, esclareça proveniências, averigue datas. Esta é precisamente a tarefa dos especialistas que, justamente, se deveriam responsabilizar pelo modo como a informação é facultada ao público em geral. O arquivo on-line que venho citando neste artigo, por exemplo, poderia e deveria conter alguma nota onde se indicasse a possibilidade de determinados textos pertencerem a personagens, como é o caso do racista esclavagista António Mora, e não ao próprio poeta. Aqui fica o meu apelo! Assim se evitariam calamitosas mas quiçá inadvertidas desonestidades intelectuais. Inscrições para o Café Filosófico: filosofiamjn@gmail.com


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ARTES VISUAIS

Até onde pode ir a imersão numa exposição de artes visuais? SAÚL NEVES DE JESUS Professor Catedrático da Universidade do Algarve; Pós-doutorado em Artes Visuais; http://saul2017.wixsite.com/ artes

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arte tem vindo progressivamente a representar e a refletir a atual era digital. As criações artísticas constroem-se através de instalações audiovisuais que incorporam imagem, som e luz, em produções 3D, projeções a 360º e hologramas. Vários artistas consideram que a relação entre ciência, tecnologia e arte traduz um novo conceito de arte, não apenas como um objeto de consumo ou contemplação, mas como um sistema complexo, que permite a interação e a imersão. No último artigo abordámos “Como tornar a arte mais imersiva?”, tendo destacado o papel da utilização das novas tecnologias nas artes visuais e exemplificado com a exposição digital imersiva ‘Impressive Monet & Brilliant Klimt’, alusiva à obra dos pintores Claude Monet e Gustav Klimt, a decorrer no espaço subterrâneo do edifício Alfândega do Porto até 15 de novembro. Através da utilização de projeções a 360º e de hologramas, o espetador mergulha no universo pictórico do Monet e Klimt, desenvolvendo uma experiência imersiva única. Este tipo de exposições marcará o futuro próximo nas artes visuais. Para além da “Impressive Monet & Brilliant Klimt’, no Porto, em Lisboa, continua patente, no Terreiro das Missas, em Belém, uma exposição imersiva alusiva ao pintor holandês Vincent Van Gogh, intitulada “Meet Vincent Van Gogh”, permitindo um percurso pela vida e obra deste artista, com recurso a vários elementos multimédia, projeções, filmes e fotografias. Nesta exposição, é feita uma viagem por locais por onde passou, como o “Café Le

Tambourin”, em Paris, ou a “Casa Amarela”, em Arles. Permite também a imersão na criação dos quadros mais famosos de Van Gogh e inclusivamente pintar na perspetiva do artista e até perceber a sua influência na atualidade. Para perceber melhor o que vai encontrar nesta exposição, existe um site oficial. Inaugurada em fevereiro e suspensa em Março, a exposição multissensorial produzida pelo “Vincent Van Gogh Museum”, em Amesterdão, em parceria com a produtora UAU, reabriu em junho com lotação reduzida e com um reforço da higienização do espaço. Esta exposição imersiva e multissensorial já passou por cidades de vários países, nomeadamente Barcelona, em Espanha, Pequim, na China, e Seul, na Coreia do Sul, podendo ser vivenciada em Lisboa até 3 de janeiro de 2021. Mas a componente de imersão do espetador pode ser ainda mais conseguida com a utilização da realidade virtual. Os universos do virtual, bem como do digital e do online, caracterizam-se como velozes, transitórios, mutáveis, intangíveis e elétricos. Como exemplo, a exposição de realidade virtual "Electric", inaugurada em maio de 2019, na Feira Frieze de Nova Iorque, e que passou pelo Museu de Arte Contemporânea de Serralves no início deste ano, pretendia "experimentar" de que forma é que o mundo da tecnologia e da arte se "misturam". A mostra foi comissariada por Daniel Birnbaum, reconhecido crítico de arte e diretor do “Moderna Museet de Estocolmo”, sendo a instalação técnica da responsabilidade da “Acute Art”, organização que o próprio dirige. Birnbaum descreveu esta exposição como uma experiência que visa também atrair “novos e diferentes públicos” aos museus. O objetivo da “Acute Art” é produzir e apresentar obras de realidade virtual, realidade aumentada e realidade mista que sejam acessíveis, inteligíveis e que possam

Imagens da exposição ‘Meet Vincent Van Gogh” (2020) ser expostas sem ser necessário recorrer a complexas infraestruturas. Esta exposição apresentava-se como divergente em relação às tendências de quem visita um museu, na medida em que convidava o público a visitar, através de óculos de realidade virtual, “outros universos”, experiências imersivas que levavam o observador por percursos desconcertantes através de mundos fictícios. No centro de uma sala em penumbra, sete cadeiras equipadas apresentavam cinco realidades distintas, acionadas pela colocação dos respetivos óculos. Assim se retirava e isolava o espectador do que o circundava, sendo convidado a ingressar em universos profundamente imersivos, inteiramente projetados pelos artistas. Apresentadas com mais ou menos ação, com cor ou em escala de cinzas, com motivos naturais ou puramente geométricos, os percursos virtuais tinham como denominador comum

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a possibilidade de adotar uma visão de 360º e obter respostas tecnológicas ao movimento corporal exercido pelo espetador/participante. Através do download de uma aplicação para smartphone, disponível no local, o espetador era convidado a participar numa experiência interativa e relacional, sendo a realidade virtual reativa à movimentação do espectador, ou seja, à deslocação do dispositivo móvel e à alteração do ponto de vista adotado. O tempo, o modo de comunicar com a obra, o nível de participação e a proximidade que se estabelecem são determinados por cada espectador, o que permite o desenvolvimento de uma experiência individual, inédita e irrepetível. Assim, o aproveitamento das potencialidades da realidade virtual poderá ser uma das vias privilegiadas a desenvolver no futuro das artes visuais, contribuindo para experiências sensoriais e emocionais cada vez mais intensas e imersivas.

Imagens da exposição ‘Electric” (2020)

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FIOS DE HISTÓRIA

O último dia na vida do Príncipe Perfeito RAMIRO SANTOS ramirojsantos@gmail.com

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orreu em Alvôr, ao cair da tarde do dia 25 de Outubro de 1495. Era Domingo. Tinha 40 anos. Foi o arquitecto de “um mundo novo”. Percursor da globalização e da modernidade. Abriu as portas do Índico. Mudou a geografia de Ptolomeu. Deixou a Índia, o Brasil e o império ao virar da “esquina”. Assinou em Tordesilhas a partilha do mundo, a dois, com Castela. D. João II ficou na história como o Príncipe Perfeito. A nível interno teve mãos de ferro e lançou as bases de um estado moderno. Centralizou o poder, confiscando bens e retirando privilégios à alta nobreza feudal. “Não quero ser rei apenas das estradas de Portugal”, terá dito quando iniciou um processo de reformas que pôs fim à medievalização e fragmentação do poder. E a quem se lhe opôs, não hesitou em aplicar a força da lei e, em alguns casos, a lei da força do seu próprio braço. Foi assim com o todo poderoso duque de Bragança e com D. Diogo, duque de Viseu, irmão de sua mulher, rainha Dª Leonor. Ambos, alegadamente, implicados em conjuras de alta traição à pátria, em conluio com Castela, visando a sua eliminação física. Há quem não deixe de estabelecer essas ligações familiares - e a forma como reagiu com firmeza às conspirações lideradas pelas grande casas senhoriais - à sua própria morte. Se a rainha Dª Leonor e sua mãe, Dª Beatriz, não escapam à suspeição, de terem sido as mãos por detrás do arbusto, o que não parece merecer hoje grandes reparos é que D. João II morreu envenenado. Por doses pequenas e graduais de ácido arsénico. Reinou durante 14 anos e dois meses. Nos últimos quatro anos, os sinais de envenamento eram visíveis e recorrentes: vómitos, diarreias, desmaios, mãos e pés inchados e enegrecidos. E, sobretudo, o efeito típico do veneno da época: o corpo continuava intacto e incorruptível muitos anos após a sua morte! Já em 1492 – segundo o cronista do reino, Garcia de Resende - estando em Lisboa, “vieram-lhe grandes acidentes e desmaios, estando mui mal em casa da rainha”. E ele, que até aos 37 anos só bebia água, começou, a conselho médico, a

tomar vinho com “grande temperança”, desde que os físicos começaram a associar os sinais de crise, à agua que ingeria da Fonte Coberta, em Évora. E a prova real foram as mortes do copeiro mor do palácio e outros dois serviçais da corte que beberam na mesma fonte! Foram longos anos de degradação física progressiva, com recaídas cada vez mais frequentes, mas que nunca lhe toldaram o pensamento e a acção. D. João II era um homem de grande coragem física, perspicaz e determinado. Sabia bem o que pretendia: - Diogo Cão já atingira a foz do Zaire e Pêro da Covilhã seguira por terra para preparar localmente o caminho aos navegadores. Mais importante ainda: a sul, Bartolomeu Dias tinha encontrado a passagem para Índia. Afinal o Índico não era um mar fechado! E o Atlântico sul era mar português! Porém, Colombo tinha chegado às Antilhas. E Tordesilhas estava ainda por assinar! A morte, tão acidental como duvidosa, do seu filho, príncipe herdeiro D. Afonso, em 1491, trazia-lhe o proble-

ma acrescido da sucessão da coroa. O rei tudo fez junto do papa para legitimar o filho bastardo, D. Jorge, mas o lóbi de castela, da mulher e da sogra, venceram este braço de ferro que poderia ter custado uma guerra civil e deitado tudo a perder. Castela espreitava um qualquer descuido para intervir, mas o rei português teve a sabedoria de saber esperar porque, como ele costumava dizer, “há tempos de falcão e tempos de coruja”. Com grande visão de estado, assegurou a paz na terra e a liberdade no mar. Em Julho de 1495 - escreve o cronista - “encontrando-se em Alcáçovas, vê a sua situação piorar e perde o gosto de comer, não tendo prazer em coisa alguma”. E perante este quadro, em finais de Setembro, os médicos decidem recomendar ao rei que fosse para tratamento nas caldas de Monchique, no Algarve. Aqui, sentiu-se “mui contente”. Foi à caça e saiu divertido. Contudo, dias depois, sobrevieram-lhe fortes dores de estômago que o deixaram “agastado e triste”. Muito fraco, dirigiu-se a

Em cima à esquerda: D. João II foi o estratega da globalização e da modernidade e deixou o país às portas do Brasil, da Índia e do império; Em cima à direita: D. João II impôs as suas condições no tratado de Tordesilhas assegurando a liberdade exclusiva no Atlântico Sul e dividindo o mundo a dois com Castela; Em baixo à direito: Sepultado na Sé de Silves, o seu corpo foi transladado 4 anos depois para o Mosteiro da Batalha, sem sinais de corrupção FOTOS D.R. cavalo, instalando-se em casa de Álvaro de Ataíde, alcaide mor de Alvôr. O filho, D. Jorge, que o acampanhava, foi mandado para casa de D. Martinho, senhor de Vila Nova de Portimão. Desenganado pelos médicos, organizou, então, o cenário da sua morte. Recebeu a extrema unção, não sem antes pedir aos que o rodeavam que não o “agonizassem com os seus prantos”. Recebia pouca gente e só Garcia de Resende tinha “porta aberta” na sua antecâmara de morte. No testamento, declara herdeiro da coroa, o duque de Beja, futuro D. Manuel I, que foi travado em Alcácer pelos partidários da mãe quando se dirigia para Alvôr, impedindo-o de acompanhar os últimos momentos do seu primo e cunhado. Pediu ainda que lançassem o seu corpo na Sé de Silves e depois levassem os restos mortais para o mosteiro da Batalha. Quando o enterraram em Silves, usaram três alcofas de cal vir-

gem para apressar a decomposição do corpo. Porém, quatro anos mais tarde, verificaram que as tábuas do ataúde estavam queimadas pela cal, mas o corpo “acharam-no todo inteiro, que se conhecia quando em vivo”. Se o título de Príncipe Perfeito lhe foi atribuído por Lope da Vega, a maior demonstração de respeito pela personagem excepcional, que deixou uma marca indelével na história do mundo, foi dada por Isabel de Castela, a Católica. Informada da morte do rei português, desabafou: “Es muerto el Hombre”! ...E Lisboa cobriu-se de luto por seis meses. Ele era o rei do povo. Que o chorou, condoídamente, como antes nunca havia acontecido. Fontes: ““Crónica da vida e feitos d’el rei D. João II”, de Garcia de Resende; Crónica d’el Rei D. João II”, de Rui de Pina; “D. João II”, de Luis Adão da Fonseca; “Itinerários d’el rei D. João II”, J. V. Serrão; outras.


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PAULO SERRA Doutorado em Literatura

parece ter achado graça a estas crónicas. Falámos algumas vezes sobre elas. Entendemo-nos bem. Acabámos por colaborar com gosto. O título Em Todos os Sentidos foi o João Almeida quem o criou. Acabámos até por fazer um audiolivro em colaboração. Mas é preciso ser justo, as minhas crónicas são longas, descritivas, narrativas. Clarice era genial, bastavam-lhe duas linhas ou pouco mais para criar um monumento.

na Universidade do Algarve; Investigador do CLEPUL

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m Todos os Sentidos, compilação de crónicas da autora, foi publicado em Abril, pela Dom Quixote. A propósito desses 41 textos, entre o conto e o testemunho, entrevistámos a autora que foi agraciada entretanto com o Prémio da Feira Internacional do Livro de Guadalajara para Línguas Românicas. Nada mais merecido, além de que se assinala este ano os 40 anos de vida literária de Lídia Jorge, cujo romance de estreia foi publicado em 1980 e marca uma cisão na literatura portuguesa pós-25 de Abril.

A NOSSA GERAÇÃO ENCAMINHA-SE PARA A REVOLUÇÃO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

No primeiro texto, «A Caminho do Bosque», leva tempo até chegar à questão fulcral. Será o ritmo calmo desta primeira crónica próprio de quem tenta encontrar o seu tempo de escrita? Essa é uma observação curiosa, relacionar o ritmo espaçado na descrição do movimento das árvores com a busca de um modelo de construção da crónica. Mas a questão é ligeiramente diferente. Estas crónicas são construídas a partir de uma imagem, um tema, em geral anódino ou quase, que depois se desenvolve e alcança um outro sentido no final. Foram-me chamando a atenção para isso, e acabei por verificar que era assim. Suspeito que seja a contaminação da estrutura narrativa, a fórmula do conto emprestada à crónica. A ordem de publicação das crónicas respeita a ordem pela qual foram transmitidas? Sim, respeita. Além das poucas alterações que vêm mencionadas na nota final do livro, as crónicas publicadas seguem a ordem e o texto que lhes deram origem. A Casa do Bosque, rodeada pelas árvores de frutos, que refere diversas vezes corresponde à casa da sua mãe, o seu refúgio predilecto de escrita? De facto, corresponde. Um título alternativo para estas crónicas seria “Crónicas da Casa do Bosque”. Foram escritas no ambiente desta casa. Uma casa no meio do mato, como aqui lhe chamam. Uma floresta de árvores de sequeiro, uma floresta esparsa. Ao longo dos anos este local tem permitido concentrar-me. Teve receio de que lhe acontecesse o mesmo do que a Clarice Lispector, despedida por não saber escrever crónicas? Claro que sim, mas não foi isso que aconteceu. João Almeida, director da Antena 2 da Rádio Pública

Lídia Jorge foi agraciada com o Prémio da Feira Internacional do Livro de Guadalajara para Línguas Românicas FOTOS FRANK FERVILLE / D.R.

Entrevista a Lídia Jorge:

“O momento delicado que atravessamos ora nos faz chorar, ora nos faz rir”

Existem vários temas recorrentes, mas nenhum tão presente como o tempo ou uma sensação de espanto, ou cautela, face aos novos tempos. Claro que sim. Estamos no fundo da vaga que faz o nosso tempo. Não vemos o cimo da ondulação, não sabemos onde estamos. A nossa geração passou por uma revolução digital e encaminha-se para uma outra, a revolução da inteligência artificial. São mudanças rápidas que apresentam ganhos formidáveis para a Humanidade. Ao mesmo tempo, trazem consigo não só a perturbação que todos os saltos civilizacionais desencadeiam como albergam riscos que contradizem o progresso criado pelo desenvolvimento tecnológico. O princípio grego do homem como medida de todas as coisas está em risco de desaparecer. Quando os jovens clamam nas ruas de que não há Planeta B, eles estão a expressar o receio de que embarquemos não só na exploração assassina da Terra, mas também o medo de que a vida humana em vez de melhorar, deixe simplesmente de o ser. Implicitamente, também estão a dizer que não há Humanidade B. Atendendo ao ofício da escrita como acto de natureza solitária, ter os seus textos difundidos na rádio permitiu-lhe ter retorno dos ouvintes? A participação em rádio ou televisão desencadeia uma comunicação imediata muito interessante. O diálogo torna-se mais rápido, a opinião e o juízo de valor faz-se sobre o momento. As pessoas podem trocar experiências entre si a propósito dos temas e dos casos relatados. Depois da crónica “A Rapariga dos Fósforos”, que relata um caso de burla nunca bem explicado, muitos amigos contaram-me outros casos semelhantes. O conto de Hans Christian Andersen estava sempre como pano de fundo.


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LETRAS & LEITURAS Reencontramos personagens e histórias, em especial de O Dia dos Prodígios, algumas já conhecidas. Mas a de Manuel Gertrudes é uma completa novidade ou a do Grande Hotel que se metamorfoseou no Stella Maris de A Costa dos Murmúrios. Os livros têm histórias paralelas que constituem o seu substrato. Milan Kundera diz evitar falar da sua biografia porque os seus dados pessoais são apenas os tijolos do edifício da sua obra. Mas sobre A Insustentável Leveza do Ser Kundera contou como lhe surgiu a ideia, e como a transfigurou. Nem ele nem o livro ficaram diminuídos, pelo contrário. O soldado Manuel Gertrudes teve importância de vários modos na minha vida e a sua história pessoal entrou de várias formas para o interior dos meus livros. A Costa dos Murmúrios foi escrito porque a casa onde esse antigo soldado da Grande Guerra tinha morado ia ser transformada para sempre. Eu tive a ideia de que o derrube das paredes era o último murmúrio da sua história. Tinham acabado as palavras. Esse facto levou-me a escrever esse livro e além do mais sugeriu-me o próprio título. A escrita é uma aventura entre seres humanos. De certa forma, em cada livro, há muita gente de mãos dadas. Fala-nos ainda do Guilherme, que tal como a sua Jesuína Palha agarrou uma serpente com as mãos para a matar. A serpente alada de O Dia dos Prodígios é um símbolo e também a sua imagem de marca, o que já vem da primeira edição na Europa-América. Sabemos que é a serpente do seu primeiro romance mas há aí outra história... E porquê a cobra como símbolo? Foi acontecendo. O Dia dos Prodígios está construído em torno desse mito. O mito ofídico estava muito vivo no Algarve, quando eu era criança. Pelo menos no centro do Algarve. A ideia que se passava era de que, quando as serpentes tinham muita idade, criavam asas e voavam. Passei a infância com receio de que não fossem pássaros as aves que vinham beber nas pias da nossa casa mas serpentes voadoras. Depois, a edição da Europa-América apresentava a cobra voadora, a olhar para nós, bem assanhada, terrível. Eu gostei. Achei que olhava para ela e a vencia. Depois a serpente foi-se estilizando e tornou-se anémica. Agora é já só um arabesco. Mas eu sinto-me sempre diante do bicho feroz e a figura do Guilherme defende-me. Nas suas crónicas parece sempre preferir problematizar em vez de apontar e opinar. A certa altura, refere «Não me quero intrometer em assunto tão delicado...». Não me eximo a dar opinião, mas gosto de ouvir a opinião dos outros. A ficção deu-me a capacidade de escutar, julgo. A leitura e a prática da

ficção ajudam a deslocar-nos do nosso ponto de vista para o ponto de vista dos outros. O que não significa fraqueza de opinião, bem pelo contrário. O contraditório é o nervo que estimula e sustenta a opinião própria.

A MEGALOMANIA RESULTA SEMPRE NUM TRISTE ESPECTÁCULO Mas também há momentos em que a ironia predomina, como quando ao falar do Brexit remete para a A Jangada de Pedra de Saramago. Até porque também cabe à literatura iluminar a realidade... A megalomania resulta sempre num triste espectáculo, quando não em tristes situações como as que estão a acontecer no mundo de hoje. Os Estados Unidos, o Reino Unido, o Brasil, a Turquia, e muitos mais, padecem dessa doença infernal que é o infantilismo. O slogan do Great Again que se espalhou pelo mundo anglo-saxónico é a reprodução do pensamento de Hitler que galvanizou a Alemanha para a trágica aventura da Segunda Guerra Mundial e do Holocausto. O momento delicado que atravessamos ora nos faz chorar, ora nos faz rir. Por vezes, eu gosto de sorrir. Serve-nos alguns pormenores da sua vida mais privada, como a referência ao Carlos. Foi uma partilha arriscada ou uma espontaneidade consciente? Foi para brincar com o Ignácio de Loyola Brandão, amigo do Carlos. Foi o Carlos Albino quem me apresentou o Ignácio há muitos anos. Nunca mais deixámos de estar próximo. O Ignácio é um grande escritor e um bom amigo. Na crónica “Tempestade”, eu quis descrever-lhe a situação climática do Algarve e ao mesmo tempo celebrar a sua obra. Passou um momento difícil recentemente, à semelhança de muitos portugueses. A minha mãe faleceu com Covid-19. Estava muito débil, o vírus entrou nela e levou-a. Foi muito duro. Ao contrário da Gripe Espanhola que atingia os jovens saudáveis, este vírus atinge os mais frágeis. Estamos perante a força da Natureza que não olha a quem. E nós somos débeis, soberbos mas débeis. Este é um momento de tomada de consciência da nossa vulnerabilidade. Deveria juntar-nos. Houve uma onda calorosa de felicitações a propósito do recentíssimo prémio, por parte dos leitores e escritores. Temos uma geração jovem que lhe está reco-

nhecida. Como vive essa boa nova? Cada geração traz a sua luz muito própria. Como dizia o Eduardo Lourenço, as gerações mais novas sempre são parricidas, matricidas. Por isso, em geral, os mais velhos leem mais os mais novos do que o seu contrário. É natural. Mas quando nos encontramos e nos reconhecemos, com propostas diferentes, porque saídas de tempos diferentes, e nos respeitamos mutuamente, temos mais possibilidades de fazer vingar uma Literatura. Eu gosto de ler os jovens e de falar deles. Obrigada àqueles que por acaso já tenham lido uma página minha, e que estejam contentes com o significado do Prémio FIL de Guadalajara. Sei que já falámos noutra entrevista sobre isto, mas anos depois não resisto a perguntar. Ainda sente que Estuário marca uma nova fase na sua escrita? Imagino aliás que deve estar para sair um novo romance... Quando um livro sai, se acreditamos nele, sentimo-nos em estado de êxtase durante um tempo. Uma tendência para se ser fanfarrão, como dizia o John Sheever. Em relação a Estuário ainda estou nessa fase. Mas ela vem sobretudo de Os Memoráveis. Nesses dois livros a subversão do plano real é o seu suporte. O que estou a escrever vai de novo por aí. Magritte dizia que só pintava sobre o além. Posso não o conseguir, mas é o que tento fazer.

A escritora assinala este ano 40 anos de vida literária

Na sua crónica sobre a Beira, não tenho uma pergunta mas uma possível resposta. Percebemos que a passagem do ciclone Idai foi algo que a tocou particularmente até porque viveu na Beira. Refere depois «A cada dia que passa, o que acontece lá é como se acontecesse aqui (...). A Terra é um só espaço, e todos os países estão unidos pelo mesmo traço de convivência necessária. (...) Que palavra temos para chamar a isto?» A minha resposta é cooperação. Portugal reagiu tão prontamente à tragédia que os próprios beirenses acolhiam-nos com um sorriso imenso. Foi palpável a sua gratidão. O seu comentário dá razão ao que penso. A palavra que utiliza está certa, cooperação. Cooperação é mais forte do que solidariedade. A solidariedade ainda mantém a conotação de que passa da mão que tem para a mão que recebe. Cooperação fala do que também se recebe em troca quando se dá. E do que se dá quando se recebe. Fala da dádiva recíproca, e da responsabilidade mútua. Como se fôssemos só um povo. Não se trata de palavras piedosas, mas de puro resgate. Ao mal e ao bem assiste o dever de partilha. A Literatura, disciplina de beleza por excelência, criada para júbilo do poder das palavras, promove esse encontro. Se isto não for assim, então não sei nada sobre este mundo.

“Em Todos os Sentidos” foi publicado em Abril pela Dom Quixote

FOTO D.R.


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ESPAÇO AGECAL

Aprender com o Renascimento JORGE QUEIROZ Sociólogo, sócio da AGECAL

“Os que se fascinam com a prática sem ciência são como os timoneiros que entram num navio sem roda do leme ou bússola, nunca sabem o destino”. Leonardo da Vinci À medida que o estudo das culturas do mundo foi avançando, sobretudo nos séculos XIX e XX, período durante o qual se constituíram diversas ciências sociais, a análise do fenómeno cultural enquanto sistema de valores e práticas comunitárias evoluiu para a estruturação de novas disciplinas autónomas e interdependentes, designadas genericamente por ciências da cultura. Na obra “As duas culturas” C.P. Snow subdividiu este universo em “cultura humanista” e “cultura

científica”. Várias foram as categorizações propostas por outros autores e hoje dispomos de inúmeras classificações, adoptadas por organismos internacionais: cultura material e imaterial, popular e erudita, de saída e de apartamento no caso dos espectáculos, … Mas a contemporaneidade necessita de uma visão que aborde e inclua as lições do passado. O Renascimento na história das civilizações, inspirado pela Antiguidade greco-romana, continua sendo percepcionado como um dos períodos mais extraordinários e o seu epicentro ocorreu na Europa do Sul, em particular em Florença e Roma, um pouco por toda a Europa pós-medieval. Do modelo representativo induzido pela teologia medieval durante cerca de mil anos surgiu em contraposição uma nova fórmula conceptual, manifestando-se nela a íntima relação entre ciência e arte. As artes visuais do Renascimento tiveram por base a geometria, a

introdução da proporção e da perspectiva permitiu aos artistas calcular com rigor as obras para locais previamente definidos e com diferentes dimensões. Ainda hoje nos surpreendemos com a facilidade com que Leonardo da Vinci e outros artistas seus contemporâneos criaram sínteses, tendo como ponto de partida a observação e interpretação científica do homem e da natureza. A influência dessas concepções foi grande em Portugal durante os séculos XV e XVI com grandes benefícios para Portugal que ainda hoje sentimos. Figuras do Renascimento em Portugal foram o Infante D. Pedro e D. João II, mas também Damião de Góis, intelectual multifacetado perseguido pela Inquisição, Francisco de Holanda o primeiro historiador de arte europeu, os arquitectos Diogo de Boitaca, Francisco e Miguel Arruda, Diogo de Torralva, Garcia de Resende que compilou o Cancio-

neiro Geral, o poeta Sá de Miranda, o médico Garcia da Orta, Gil Vicente dramaturgo, muitos grandes nomes da cartografia portuguesa como António de Holanda, Pedro e Jorge Reinel, pintores da corte… e tantos outros. A permanência de referentes e exemplos criados pelo “homem do renascimento”, permite-nos procurar alterar uma actualidade dominada pela tecnologia e as especializações, que promove a substituição da reflexão de problemas complexos pela reprodução automática de processos e o imediatismo de tarefas. Apesar da necessidade de quadros correctamente formados para as áreas da cultura, domínio para a qual se exige conhecimentos amplos e actualizados, as universidades portuguesas têm dado escassa atenção à oferta de cursos de investigação aplicada à gestão dos recursos culturais do País e dos territórios, o que concorre para o predomínio da con-

juntura sobre estratégias de médio e longo prazo. Se continuarmos a trabalhar sectorialmente sem entendermos o todo nas suas interligações, teremos segmentação de realidades, perda de patrimónios, corporativização do tecido cultural ao sabor das conjunturas, disfuncionalidades e afastamento dos objectivos de desenvolvimento humano. As lições do passado, em particular do Renascimento, as relações entre Homem e Natureza, são hoje cada vez mais necessárias na educação das novas gerações para os valores, a começar pelo olhar de escolas e comunidades para o património cultural e natural que as rodeia e a compreensão das interligações entre as diversas ciências. O mundo não é um mercado global em competição, são os territórios e as sociedades, produção de conhecimentos com milhares de anos imprescindíveis à sobrevivência humana.

Município de Tavira Edital n.º 56/2020

• Jazigo Municipal nº. 24, Grupo I, Rua S/N Torna publico, nos termos do artº. 53º Capitulo X do Regulamento do Cemitério, em vigor no Município, que serão depositados em ossários públicos os restos mortais que se encontram nos jazigos abaixo descriminados e que não sejam reclamados no prazo de 60 dias contados da data da afixação deste Edital. • Jazigo Municipal nº. 18, Grupo F, Rua S/N - Rosália da Assunção Ribeiro Castanho, falecida em 02/02/1928 • Jazigo Municipal nº. 21, Grupo F, Rua S/N - Maria Vitoria Pereira, falecida em 16-04-1938 - Isabel do Carmo, falecida em 20-06-1953 - Manuel Pereira, falecido em 24-05-1967 • Jazigo Municipal nº. 33, Grupo F, Rua S/N - Brites do Carmo, falecido em 07-02-1937 - Joaquim de Jesus Casquinha, falecido em 25-12-1946 - José Pilar, falecido em 09-03-1953

- Maria Isabel Dias, falecida em 02-10-1924 - Ana da Conceição Cartó, falecida em 02-12-1929 - Teresa Maria da Fonseca, falecida em 01-02-1958

- Zulmira Cândido Matos Gomes, falecida em 22-05-1930 - Maria do Carmo Matos, falecida em 29-09-1938 • Jazigo Municipal nº. 47, Grupo I, Rua S/N - Ana das Dôres Frangolho, falecida em 30-12-1924 - Maria das Dores, falecida em 19-02-1942

Ponto 1 – Apreciação e deliberação, da Ata de 12 de agosto 2020 – Aprovado por unanimidade

- João dos Santos, falecida em 12-09-1947 - Maria José Soares, falecida em 23-11-1953 - Maria Inácia, falecida em 04-01-1960 • Jazigo Municipal nº. 27, Grupo J, Rua S/N

- Antónia Júlia Romero Fernandes, falecida em 02-04-1923

- Maria José, falecida em 01-09-1930

- Ana das Dores Pereira, ossadas

- Maria Rosa Pires Caleça, falecida em 31-12-1947

- Maria das Dores Pereira, ossadas

- José Gomes Baptista Caleça, falecido em 06-03-1936

• Jazigo Municipal nº. 47, Grupo G, Rua S/N

• Jazigo Municipal nº. 54, Grupo J, Rua S/N

- Maria do Rosário, falecida em 14-04-1929

- Cândida Rita Martins, falecida em 19-12-1925

- Cristina da Conceição Cabrita, falecida em 24-09-1953

- Lucinda Eglantina Martins, falecida em 13-04-1936

• Jazigo Municipal nº. 12, Grupo H, Rua S/N

- Maria Júlia Martins, falecida em 21-09-1953

- João Pedro Maldonado, falecido em 28-03-1940

• Jazigo Municipal nº. 60, Grupo J, Rua S/N

• Jazigo Municipal nº. 26, Grupo H, Rua S/N

- José Simplicio Pires, falecido em 07-05-1926

- Câmara Municipal de Tavira

- Maria Eduarda Santos Peres, falecida em 29-07-1939

• Jazigo Municipal nº. 18, Grupo I, Rua S/N

- Inez de Jesus Gomes Peres Pires, falecida em 23-12-1951

• Jazigo Municipal nº. 22, Grupo I, Rua S/N

JOSÉ LUÍS AFONSO DOMINGOS, presidente da Assembleia Municipal supra, faz público, nomeadamente tendo em atenção o preceituado no n.º 1 do artigo 56.º, da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro, que a Assembleia Municipal, na sua sessão ordinária de dia 30 de setembro de 2020, deliberou:

- Caetana da Conceição, falecida em 04-12-1936

- Maria da Glória Barros, falecida em 10-06-1925

- Manuel Pedro Pereira, falecido em 06-03-1944

EDITAL

- Antónia Joaquim Mendonça, falecida em 25-12-1924

• Jazigo Municipal nº. 13, Grupo G, Rua S/N

- Diamantina da Conceição Pereira Albino, falecida em 31-08-1924

CÂMARA MUNICIPAL DE CASTRO MARIM

• Jazigo Municipal nº. 46, Grupo I, Rua S/N

PERÍODO DA ORDEM DO DIA Ponto 1 – Apreciação da informação escrita do Senhor Presidente da Câmara Municipal, nos termos da alínea c) do n.º 2 do art.º 25.º da Lei n.º 75/2013, de 12 de setembro- Tomou conhecimento; Ponto 2 – Informação do Senhor Presidente da Assembleia – 2ª Congresso da ANAM – Tomou conhecimento; Ponto 3 – Pedido de renúncia ao mandato - Victor Hugo Gregório Palma e Élia Isabel Pereira Horta - Tomou conhecimento; Ponto 4 – Apreciação e deliberação, sob proposta da Câmara Municipal, Transferência de Competências para o Município no Domínio da Educação – Aprovado por unanimidade; Ponto 5 – Apreciação e deliberação, sob proposta da Câmara Municipal, Transferência de Competências para o Município no Domínio da Saúde – Aprovado por unanimidade; Ponto 6 – Apreciação e deliberação, sob proposta da Câmara Municipal, 2ª Alteração Mapa Pessoal para o ano de 2020 – Aprovado por unanimidade; Ponto 7 – Informação - Eleições para Presidente e Vice-Presidente para a CCDR do Algarve - Tomou conhecimento; Para constar, se publica este Edital e outros de igual teor, que vão ser afixados nos lugares de estilo do Município

22 de setembro de 2020 O Vereador do Desporto, Mobilidade e Equipamentos Municipais

Castro Marim, 30 de setembro de 2020 O Presidente da Assembleia Municipal,

Manuel Madeira Guerreiro

José Luís Domingos (POSTAL do ALGARVE, nº 1251, 09 de Outubro de 2020)

- Emília Júlia dos Santos, falecida em 02-10-1924 - Salvador Santos Rêgo, falecido em 03-03-1966 - Maria da Glória Bandeira Gomes, falecida em 01-03-1979

(POSTAL do ALGARVE, nº 1251, 09 de Outubro de 2020)


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