Mídias e Mediações Culturais

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Mídias e Mediações Culturais



Pipa Comunicação Recife, 2014


COPYRIGHT 2014 © RAIMUNDA BENEDITA CRISTINA CALDAS; JOSÉ GUILHERME DOS SANTOS FERNANDES; FERNANDO ALVES DA SILVA JÚNIOR; LARISSA FONTINELE DE ALENCAR. Reservados todos os direitos desta edição. É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa do autores e organizadores.

IMAGEM DA CAPA Fotografias de Larissa Fontinele de Alencar (2013)

CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Karla Vidal e Augusto Noronha Pipa Comunicação - www.pipacomunica.com.br

REVISÃO Carlos Henrique Lopes de Almeida Fernando Alves da Silva Júnior Hadson José Sousa Larissa Fontinele de Alencar Raimunda Benedita Cristina Caldas Tabita Fernandes da Silva

CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO CIP) Ficha catalográfica produzida pelo editor executivo C145 Caldas, R. B. C. et al. Mídias e mediações culturais / Raimunda Benedita Cristina Caldas; José Guilherme dos Santos Fernandes; Fernando Alves da Silva Júnior; Larissa Fontinele de Alencar. - Recife: Pipa Comunicação, 2014. 640p. : Il., Fig., Quadros. Inclui bibliografia. 1ª ed. ISBN 978-85-66530-33-9 1. Linguística. 2. Estudos Literários. 3. Narrativas Orais. 4. Memória. 5. Ensino-Aprendizagem. 6. Linguagem. I. Título. 400 CDD 81 CDU

c.pc:08/14ajns


Prefixo Editorial: 66530

COMISSÃO EDITORIAL Editores Executivos Augusto Noronha e Karla Vidal Conselho Editorial Angela Paiva Dionisio Antonio Carlos Xavier Carmi Ferraz Santos Cláudio Clécio Vidal Eufrausino Leonardo Pinheiro Mozdzenski Clecio dos Santos Bunzen Júnior Pedro Francisco Guedes do Nascimento Regina Lúcia Péret Dell’Isola Ubirajara de Lucena Pereira Wagner Rodrigues Silva


UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ Carlos Edílson de Almeida Maneschy Reitor Horacio Schneider Vice-Reitor Emmanuel Zagury Tourinho Pró-Reitor de Pesquisa e Pós-Graduação

CAMPUS UNIVERSITÁRIO DE BRAGANÇA Sebastião Rodrigues da Silva Júnior Coordenador Janice Muriel Fernandes Cunha Vice-Coordenadora

PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGENS E SABERES NA AMAZÔNIA Raimunda Benedita Cristina Caldas Coordenadora José Guilherme dos Santos Fernandes Vice-Coordenador


PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM LINGUAGENS E SABERES NA AMAZÔNIA O Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPGLS), na modalidade de curso de mestrado, está vinculado ao Campus Universitário de Bragança, da Universidade Federal do Pará, e tem por finalidade a formação continuada e o fomento da prática investigativa de profissionais portadores de diploma de nível superior, que sejam capazes de atuar no ensino de graduação e pós-graduação, na gestão e na intervenção cultural especializada, tendo como objetivo precípuo estudar, a partir de movimentos endógenos e exógenos, as diversas representações e práticas que perfizeram e perfazem as várias configurações das culturas da/na Amazônia, mediante a compreensão das diferentes formações discursivas, em diferentes linguagens, e suas correspondentes condições sociais e históricas de produção. O PPGLS existe desde 2011, quando realizou sua primeira seleção, com aprovação de 12 candidatos. O Programa foi aprovado na 122ª Reunião do CTC, da Capes, com o conceito 3, o que reforça nossa motivação para alavancar este Programa, daí a necessidade de realizar eventos, como o II SLINS, que possibilitem maior interação entre pesquisadores e entre a Academia e a Comunidade em geral, com a possibilidade de transferência de conhecimentos. No Programa existe uma área de concentração – Linguagens e Saberes – e duas linhas de pesquisa: Leitura e Tradução Cultural e Memória e Saberes Interculturais. Para maiores detalhes acerca do PPGLS, acesse: ppgls.blogspot.com.


Sumário Apresentação 19

MÍDIAS E MEDIAÇÕES CULTURAIS Raimunda Benedita Cristina CALDAS, José Guilherme dos Santos FERNANDES, Fernando Alves da SILVA JÚNIOR Larissa Fontinele de ALENCAR

Estudos Linguísticos 23

AMAZÔNIA CINZA: AS NARRATIVAS ORAIS DO MITO DO ATAÍDE E DO CURUPIRA NAS ENTRANHAS DOS MANGUEZAIS BRAGANTINOS Myrcéia Guimarães da COSTA

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ANÁLISE DO DISCURSO: A MEDICINA COMPLEMENTAR UTILIZADA PELOS REMANESCENTES DE QUILOMBOLAS DA PIMENTEIRA (PA) Antonia Edylane Milomes SALOMÃO

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UM ESTUDO DAS VOGAIS PRETÔNICAS NO FALAR NORDESTINO EM BACURITEUA – BRAGANÇA (PA) Gleyson César da Silva COSTA Lorram Tyson dos Santos ARAÚJO


59 ESTUDO LEXICAL DE PLANTAS ORNAMENTAIS EM CAPANEMA-PA: UMA INCURSÃO NOS SABERES LOCAIS Suely Cunha de SOUZA Raimunda Benedita Cristina CALDAS

73 CONTRIBUIÇÕES PARA O ATLAS DO PROJETO AMPERNORTE: VARIEDADE LINGUÍSTICA DE MOCAJUBA (PA) Maria Sebastiana da Silva COSTA Regina Célia Fernandes CRUZ

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TERMINOLOGIA DO ARTESANATO DE MIRITI EM ABAETETUBA (PA) Brayna C. dos Santos CARDOSO

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SABERES QUE CURAM: UMA INCURSÃO SOBRE A TRADUÇÃO DOS NOMES DE PLANTAS NA REGIÃO BRAGANTINA Márcia Saviczki PINHO

107 AS OCORRÊNCIAS DE /s/ E /S/ NO FALAR BRAGANTINO: A PARTIR DE CONSIDERAÇÕES HISTÓRICO-CULTURAIS Fernanda Analena Ferreira Borges da COSTA

Estudos literários e suas vertentes 125 A POESIA DE MAX MARTINS E A FORMAÇÃO DA LITERATURA EM BELÉM DO PARÁ Ingrid da Silva MARINHO Orientador: Prof. Dr. Luís Heleno Montoril DEL CASTILO


133 DENTRE AS ÁGUAS DE “MARAÍLHAS”: LEITURA DO CONTO “A ILHA DO CUPELOBO OU O ENTERRO DO APOSTEMADO” DE SALOMÃO LARÊDO Glayce de Fatima Fernandes da SILVA Larissa Fotinele de ALENCAR

147 O GROTESCO NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA Aldilene Lopes de MORAIS Alessandra Fabrícia CONDE DA SILVA

161 O MOTIVO DA BESTA LADRADOR N’A DEMANDA DO SANTO GRAAL Adriana da Silva LOPES

175 RECONHECIMENTO, PRAZER E ESTRANHAMENTO NA ARTE POÉTICA DE RODRIGO BARATA Joel CARDOSO

189 PEREGRINAÇÃO E REALISMO MARAVILHOSO EM QUARTO DE HORA, DE MARIA LÚCIA MEDEIROS José Eduardo dos Santos SOUSA Lucideyse de Sousa ABREU

Narrativas orais e suas interfaces 203 A DÁDIVA NAS NARRATIVAS ORAIS ACERCA DA MATINTAPERERA DE TAPERAÇU CAMPO, BRAGANÇA (PA) Fernando Alves da SILVA JÚNIOR


221 METAMORFOSE: A PRESENÇA DO FANTÁSTICO NAS NARRATIVAS DE QUINTINO DE LIRA Juliana Patrízia Saldanha de SOUZA

233 MÍDIAS E APROPRIAÇÕES NA COMUNIDADE CEARAZINHO Rafaella Contente Pereira da COSTA

245 QUEM CONTA UM CONTO, AFIRMA UM PONTO: O REALISMO MARAVILHOSO EM NARRATIVAS ORAIS DA REGIÃO BRAGANTINA Luciana Vieira PINHEIRO Savana Cristina Lima CARDOSO

257 RAIMUNDA, ROSA E IZABEL: A TEATRALIDADE DE TRÊS MATRIARCAS DE SANTA LUZIA DO PARÁ Patricia Sobrinho REIS

Memória e suas interfaces 269 RASTROS: CONCEITO EM CONSTRUÇÃO Larissa Fontinele de ALENCAR Tânia Maria Pereira SARMENTO-PANTOJA

281 RELIGIOSIDADE, CULTURA E IDENTIDADE NA FESTIVIDADE DE SÃO BRÁS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO JACAREQUARA Antonio Edson FARIAS


295 A SÉTIMA ARTE APORTA NA PÉROLA DO CAETÉ: CINE OLÍMPIA... REGISTROS DE UMA HISTÓRIA CULTURAL Ariane Baldez COSTA

307 ORALIDADE, IMAGINÁRIO E MEMÓRIA EM QUARTO DE HORA DE MARIA LÚCIA MEDEIROS Aline de Fátima da Silva LUCENA

319 TRILHOS DA MEMÓRIA: ANÁLISE DOS CONTOS “CRÔNICAS DE MINHA PASSAGEM” E “CASA QUE JÁ FOSTE MINHA”, DE MARIA LÚCIA MEDEIROS Euciany Nascimento COSTA Mayra Patrícia Corrêa TAVARES

Ensino-aprendizagem e suas abordagens 332 EDUCAÇÃO POPULAR FREIREANA COM JOVENS E ADULTOS DE UM HOSPITAL PÚBLICO DO MUNICÍPIO DE BELÉM DO PARÁ Lyandra Lareza da Silva MATOS Cristiana Gomes dos SANTOS Ivanilde Apoluceno de OLIVEIRA

345 O SISTEMA EDUCATIVO RADIOFÔNICO DE BRAGANÇA: SABERES DA PRÁTICA EDUCATIVA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (1960- 1970) Rogerio Andrade MACIEL Maria do Perpétuo Socorro Gomes de Souza Avelino de FRANÇA


363 O GÊNERO SEMINÁRIO ESCOLAR COMO OBJETO DE ENSINO NA 7ª SÉRIE DO ENSINO FUNDAMENTAL Debora Regina Silva da Paixão BORGES Maria Helena Rodrigues CHAVES

375 SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE COMPLEXOS TEMÁTICO NA FORMAÇÃO EM REDE DA SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO EM BRAGANÇA – PARÁ Robson FEITOSA Lena SARAIVA Maria Adriana

387 A NARRATIVA E A TECNOLOGIA COMPUTACIONAL NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM Aldiléia Lopes de MORAIS Alessandra Fabrícia CONDE DA SILVA


Apresentação




Mídias

e Mediações Culturais Apresentamos neste livro o resultado do II Simpósio Nacional de Linguagens e Saberes na Amazônia – II SLINS, realizado no Campus de Bragança, da Universidade Federal do Pará, nos dias 6 e 7 de dezembro de 2013. Integraram esta coletânea pesquisadores do Programa de Pós-Graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia, estudantes do Curso de Letras do Campus de Bragança e pesquisadores convidados. Os artigos que compõem esta publicação decorreram das trocas de informações e experiências dos referidos pesquisadores sobre suas pesquisas em suas apresentações. Este livro divulga uma variedade de temas que se reportam a Mediações e Mídias Culturais, tema do II SLINS. Abrindo a coletânea de Estudos Linguísticos, Myrcéia Guimarães da Costa apresenta um estudo lexical sobre o termo Cinza como parte de um projeto de pesquisa intitulado “Amazônia Cinza: as narrativas orais do mito do Ataíde e do Curupira nas entranhas dos manguezais bragantinos”. A autora considera nos estudos terminológicos os aspectos comunicativos e a carga simbológica do termo em questão nas narrativas. Antonia Edylane Salomão faz uma abordagem teórica do discurso na comunidade Pimenteira-PA, evidenciando a interação no discurso entre os membros dessa comunidade com o saber da cura. Como parte da construção do Atlas Prosódico Multimédia do Português AMPER-POR, Maria Sebastiana da Silva Costa traz uma análise de dados da variedade do português falado em Mocajuba-PA. Gleyson César Costa e Lorram Tyson Araújo apresentam uma pesquisa sobre as variações das vogais médias em Bacuriteua no uso de falantes oriundos do Nordeste. Suely Cunha de Souza faz um registro de formas lexicais na nomeação de plantas ornamentais usadas nos bairros São José e São João Batista em Capanema-PA. Márcia Saviczki aborda um estudo dos termos específicos das plantas medicinais na localidade de Vila-que-Era. Ao final desta primeira seção, Brayna Cardoso apresenta a descrição do léxico específico do discurso oral dos artesãos de miriti em Abaetetuba-PA.

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Mídias e Mediações Culturais

Na seção Narrativas orais e suas interfaces Fernando Alves da Silva Júnior dialoga a oferta presente no mito amazônico da matintaperera de Taperaçu Campo, em Bragança (PA), com o conceito de dádiva maussiano. Juliana Patrizia apresenta em uma reflexão sobre a importância das narrativas fantásticas de Quintino de Lira na memória do povo luziense (PA). Rafaella Contente em Mídias e apropriações na comunidade Cearazinho discute sobre rádio, televisão e internet, veículos que se tornaram centrais na difusão das informações na comunidade. No artigo “Quem conta um conto, afirma um ponto: o realismo maravilhoso em narrativas orais da região bragantina” Luciana Pinheiro mostra narrativas contadas por acadêmicos da UFPA do Campus Universitário de Bragança. Finalizando a seção, Patrícia Reis apresenta uma análise etnocenológica na teatralidade cotidiana de três matriarcas de Santa Luzia do Pará: Raimunda, Rosa e Izabel. A seção Memória e suas interfaces abre em “Rastros: conceito em construção” de Larissa Fontineli questões acerca da manifestação cultural da Marujada de São Benedito. Em seguida, Antonio Edson Farias trata em “Religiosidade, cultura e identidade na festividade de São Brás na Comunidade Quilombola do Jacarequara/PA” as facetas da matança, mordomagem, comilança, procissão, ladainha em latim e festa. Ariane Baldez retrata hábitos sociais do público do cinema em Bragança em seu texto “A sétima arte aporta na Pérola do Caeté: Cine Olímpia... Registros de uma história cultural”. Aline Lucena traz em “Oralidade, imaginário e memória em Quarto de Hora de Maria Lúcia Medeiros” discussões sobre relações interdiscursivas nas enunciações do eu que lembra e o eu que narra. Em “Trilhos da memória: análise dos contos “Crônicas de minha passagem” e “Casa que já foste minha”, de Maria Lúcia Medeiros” Euciany analisa memória coletiva e individual. Abrindo a seção Estudos literários e suas vertentes Ingrid Marinho em “A poesia de Max Martins e a formação da literatura em Belém do Pará” apresenta um resultado parcial do Plano “Poesia, corpo e subjetividade: o acervo de Max Martins, sua poesia e a formação da literatura em Belém do Pará”, enquanto parte do projeto de Iniciação Científica. Glayce de Fátima apresenta no artigo “Dentre as águas de “Maraílhas”: leitura do conto “a Ilha do Cupelobo ou o Enterro do Apostemado” de Salomão Larêdo” discussões sobre identidade cultural 20


APRESENTAÇÃO

amazônica. “O grotesco nas cantigas de Santa Maria” de Aldilene de Moraes mostra aspectos das formas cômicas da cultura popular e da vida na sociedade medieval. Adriana Lopes discute em seu artigo “O motivo da besta ladrador n’A demanda do Santo Graal” as figuras deformadas, em especial o demônio e a relação da ideia da Besta ser representante do diabo. Encerrando esta seção, “Reconhecimento, prazer e estranhamento na arte poética de Rodrigo Barata” de Joel Cardoso traz questões que reúnem nos temas familiaridade e estranhamento nos haicais do poeta. A seção final Ensino-aprendizagem e suas abordagens inicia com o artigo “Educação popular freireana com jovens e adultos de um hospital público do município de Belém do Pará” de Lyandra Matos. Relata o trabalho pedagógico com acompanhantes de crianças oriundas, em sua maioria, de cidades ribeirinhas em um hospital público. A seguir, o artigo “O sistema educativo radiofônico de Bragança: saberes da prática educativa na educação de jovens e adultos (19601970)” de Rogério Maciel e Maria do Perpétuo Socorro faz uma abordagem sobre os textos que circulam na prática educativa radiofônica. Débora Borges apresenta no artigo “O gênero seminário escolar como objeto de ensino na 7ª série do ensino fundamental” as especificidades do gênero no contexto escolar. Em “Saberes e práticas educativas no processo de construção de complexos temático na formação em rede da Secretaria Municipal de Educação em Bragança-Pará” de Robson Feitosa, Maria Adriana Leite e Lena Cláudia os autores apontam a complexa rede de significados no processo formativo de educadores e educandos. Finalmente, Aldiléia Morais e Alessandra Fabrícia tratam no artigo “A narrativa e a tecnologia computacional no processo de ensino-aprendizagem” questões relativas à utilização de dois recursos tecnológicos, uma mídia e um software. Os estudos aqui propostos compõem o cenário interdisciplinar e multifacetário de nossos pesquisadores. As investigações que vão dos Estudos linguísticos, Narrativas orais e suas interfaces, Memória e suas interfaces, Estudos literários e suas vertentes ao Ensino-aprendizagem e suas abordagens são indicativas das contribuições que tornam relevantes as investidas de pesquisas sobre Linguagens e Saberes na Amazônia.

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Estudos LinguĂ­sticos


AMAZÔNIA CINZA: O TERMO CINZA SOB UMA ABORDAGEM TERMINOLÓGICA Myrcéia Carolyne Guimarães da Costa (PPGLS-UFPA)

Introdução Este trabalho tem em vista perscrutar sob o aspecto terminológico a palavra cinza. Esta palavra está inserida em um projeto de pesquisa intitulado Amazônia Cinza: as narrativas orais do mito do Ataíde e da Curupira nas entranhas dos manguezais bragantinos, que objetiva pesquisar mitos da parte costeira da Amazônica onde está localizada uma imensa área de manguezais. Dada à coloração cinzenta do solo lodoso dos manguezais e em contraste ao verde da gigantesca Floresta Amazônica optou-se por esta palavra que alcança estatuto de termo por se configurar, neste contexto, com uma dimensão especializada. Ao se tratar de Amazônia, imediatamente se remete à ideia da cor verde em referência à imensa floresta – a colossal área verde –. Quando, por sua vez, a referência é Amazônia cinza, desloca-se do ambiente de floresta para o ambiente de manguezal, local pouco explorado, em relação às pesquisas sobre as histórias mitológicas, além, é claro, de a extensão territorial ser bem mais modesta que a de floresta, por isso o destaque para a “cor verde”. O vocábulo cinza é assinalado aqui como um termo a partir do que consideram Krieger e Finatto (2004) ao afirmarem que os termos possuem valor cognitivo e estes dependem dos diferentes cenários comunicativos nos quais estão inseridos, bem como de outras estruturas que os concebam às comunicações especializadas. Como aqui a palavra em estudo está bem delineada no que diz respeito ao seu

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Amazônia cinza: o termo cinza sob uma abordagem terminológica

plano de conteúdo, estar na ordem dos conceitos, passa a adquirir, portanto, o caráter de unidade lexical especializada.

Palavra x Termo Antes de dar início à conceituação do termo cinza, é importante estabelecer a distinção entre palavra e termo. Para a Terminologia, esta distinção está no campo do plano de conteúdo, no qual a palavra encontra-se na ordem dos significados e o termo na ordem dos conceitos. Conforme afirma Lara (2005) “os termos são diferentes das palavras se considerarmos que são unidades usadas nos discursos de especialidade (discurso das ciências e das técnicas)”, isto é, quando se trata de palavra, a referência é a língua nas mais diversas possibilidades de uso, todavia, ao se tratar de termo, fala-se em palavras utilizadas dentro de uma situação específica de comunicação. As pesquisas de Krieger & Finatto apontam um denominador comum entre os estudiosos da área no que se refere a termo: O estatuto terminológico de uma unidade lexical define-se por sua dimensão conceitual. Consequentemente, o que faz de um signo linguístico um termo é o seu conceito específico, propriedade que o integra a um determinado campo de especialidade. (KRIEGER; FINATTO, 2004: 78)

As autoras explicam que existe um processo de terminologização em que há uma ressignificação nas palavras comuns, através da qual, passam a obter significados especializados, adquirindo assim, a condição de termo. E, ainda, devem-se considerar os aspectos comunicativos, em que, para se configurar como termo, a palavra precisa estar inserida em um contexto e situação determinados. É esse processo de ressignificação que ocorre com o termo cinza, neste estudo a palavra não indica apenas a cor, vai além disso: cumpre destacar que o novo significado ocorreu por aproximação à significação denotativa da palavra – a tonalidade acinzentada do solo dos manguezais – e também em oposição a outra cor – o verde – que fortemente caracteriza a região amazônica. Portanto, o termo cinza assume uma natureza especializada neste contexto em razão de abranger

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MYRCÉIA CAROLYNE GUIMARÃES DA COSTA

todas as características de manguezal. Ao se referir à Amazônia Cinza, o termo carrega em si as características como região úmida, salgada, lodosa, rica em nutrientes, com longas raízes e por abrigar uma grande biodiversidade de animais e vegetais. Diante disso, a palavra cinza se distingue do termo cinza.

Significados da palavra cinza Várias fontes foram pesquisadas em busca da significação da palavra cinza. Vejamos algumas delas: • Dicionário “Miniaurélio Século XXI Escolar” CINZA sf. 1. Pó ou resíduos da combustão de certas substâncias; borralho. adj2g.2n. 2.V. cinzento.

• Dicionário Online de Português CINZA – s.f. Resíduo sólido que resta da combustão completa de uma substância. // Fig. Reduzir a cinzas ou desfazer em cinzas, destruir completamente, extinguir. / Sinal de luto, mortificação (em sentido próprio ou figurado). / Resíduo da combustão dos panos do altar ou dos ramos bentos com que o sacerdote faz uma cruz na fronte dos fiéis no primeiro dia da Quaresma. / &151; S.f.pl. Restos dos mortos, expressão que provém do hábito que tinham os antigos de queimar os mortos. / Fig. A memória dos mortos: honremos as cinzas dos nossos antepassados. // Quarta-feira de Cinzas, o primeiro dia da Quaresma. // Cinzas verdes, malaquita, carbonato verde de cobre ou verde-montanha, carbonato hidratado de cobre empregado na extração do cobre, na bijuteria e como tinta na pintura fina. // Cinzas azuis, azurita, azul-montanha, carbonato azulado de cobre, reduzido a pó e que serve para fabricação de papéis pintados. / &151; Adj. Que tem cor de cinza, cinzento: vestia um terno cinza.

• Site “Origem da palavra” CINZA – do Latim cinis, “material sobrado de um processo de combustão”. CINZA – Hoje é raro o uso do sinônimo gris, derivado do Francês gris, que veio do Frâncico gris, “cinzento”.

As cores representam um rico campo de simbologia para a Psicologia. Cada cor (de acordo com o site pesquisado) apresenta um significado que promove impulsos e reações no ser humano ao ser captada pela visão e transmitida ao cérebro. Assim, 25


Amazônia cinza: o termo cinza sob uma abordagem terminológica

• Site “Significado das Cores” CINZA – O cinza pode simbolizar estabilidade, sucesso e qualidade, mas em excesso pode transmitir falta de vida. Algo que “se tornou cinzento” nem sempre é visto de forma positiva, pois o termo é comumente usado para expressar morbidez e falta de vigor. Um tempo nublado – como o céu sempre acinzentado – também não é amplamente desejado pelas pessoas. Porém, se bem utilizado, o cinza oferece equilíbrio e flexibilidade por ser o equilíbrio entre o preto e o branco. Cinza é a expressão de neutralidade. Símbolo da indecisão e da ausência de energia. Quanto mais sombrio, mais expressa desânimo e monotonia.

Ainda nessa perspectiva simbólica, temos: • Artigo “Psicodinâmica das Cores em Comunicação” CINZA – do Latim cinica ou do Germânico gris. Intermediária entre luz e sombra, o cinza não tem interferência nas cores em geral. Promove sensações acromáticas: em termos de compensação, parece querer dividir o mundo. Gosta de isolamento e não quer envolvimento. o Associação material: ratos, pó, neblina, máquinas. o Associação afetiva: velhice, sabedoria, passado, tristeza, aborrecimento.

Há uma referência ao vocábulo cinza quanto ao aspecto folclórico que, além de remeter ao significado religioso da Quarta-feira de cinzas, faz um histórico mais profundo da palavra desde o Antigo Testamento até a alteração, feita pelo Papa São Gregório Magno, do dia em que se tomam as cinzas que, outrora era no sexto domingo antes da Páscoa para a quarta-feira depois do carnaval. Porém, veremos a definição que se faz sob o prisma puramente folclórico, cabe ressaltar que simboliza humildade e arrependimento e todas as acepções se referem à cinza resíduo e não à cor. • Dicionário do Folclore Brasileiro CINZA – Para a tradição folclórica a cinza é um isolante mágico, defendendo o corpo da penetração dos poderes inimigos e malignos. As cinzas da palha seca do Domingo de Ramos, atiradas ao ar, fazem cessar a tempestade. São hemostáticas e revulsivas. As cinzas do borralho, barrando as soleiras das portas, defendem a entrada das bruxas e dos entes malvados e poderosos, perturbadores do sono das crianças pagãs. Tem, no catimbó, os mesmos poderes

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do sal esterilizador. As coisas-feitas, muambas, feitiços, ebó, cobertas de cinzas, são inoperantes e, se enterradas na cinza, provocam o choque de retorno contra o agente.

Ao se realizarem as pesquisas acerca da palavra cinza, observou-se que a acepção mais importante é a que se refere a resíduos ou pó, a referência a cor vem em último grau na hierarquia de relevância, algumas vezes sequer apareceu no verbete. A alusão à cor é denominada cinzento, porém como cinza é comumente utilizada com este sentido, faz-se uma pequena alusão demonstrando, inclusive, um contexto em que aparece como cor, “vestia um terno cinza”. Já no aspecto simbólico, o cinza é relacionado à significação de cunho negativo, sombrio, ou quando muito, é arrolado à sabedoria e velhice. Ante a essas representações é que ao se referir, por exemplo, a tempo ruim, nebuloso, se diz que está cinza, pois as nuvens carregadas antes de chover têm a coloração acinzentada e este clima denota descontentamento. Para se traduzir sentimento de tristeza, sensação ameaçadora, sombria, utiliza-se o vocábulo cinza, a simbologia do cinza indicando coisa negativa é bastante forte em nossa cultura. Há ainda a conotação de caráter religioso em que cinza, com a significação de resíduo, indica elementos que se remetem ao período da Quaresma; indica também luto; e, ainda, faz referência a restos mortais advindos de processos crematórios. Quanto à origem do termo, quando se trata de cinza resíduo, vem do latim cinis; quando se trata de cor não há um consenso, em algumas pesquisas diz-se que advém do frâncico gris, outras indicam que se originou do latim cinica ou do germânico gris, o fato é que de gris originou-se o termo em língua portuguesa grisalho (adj. Acinzentado, pardo; mesclado de branco e preto: cabelo grisalho. / Que tem cabelos grisalhos. / Encanecido. – Dicionário Aurélio Online), que remete à cor cinza assim como à simbologia de envelhecido, acabado, em tom negativo.

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Amazônia cinza: o termo cinza sob uma abordagem terminológica

• Artigo “Dicionário e Cores”, há aqui uma ampla apreciação sobre o item lexical cinza. Outra observação que se faz relevante é concernente à entrada grigio nos três dicionários arrolados, a saber: o item lexical cinza em língua portuguesa é inexistente como equivalente tradutório em todos eles e em todos os níveis das suas microestruturas. De fato, essas obras lexicográficas arrolam como equivalentes de grigio as unidades lexicais cinzento, grisalho, pardo e gris. Infere-se, portanto, que cinza em português não é considerado um adjetivo cromático, mas tão somente como o substantivo concreto que designa “pó ou resíduos de combustão”. Em consonância a esta observação, quando buscamos na direção português-italiano do Spinelli-Casanta a entrada cinza, deparamo-nos com a inexistência da acepção de cinza como adjetivo que designa cor; o mesmo se observa no Dicionário de Português-Italiano do Mea. Entretanto, no Aurélio, essa acepção ocorre, vejamos: “Adj. 2 g. e 2 n. 5. Bras. V. cinzento (1 e 2): ‘Os olhos cinza, envelhecidos, não revelavam nada’ (Francisco Jorge Torres, Bruxaxá, p.16); vestido cinza; gravatas de cor cinza”. No DMC, grigio tem sido traduzido muitas vezes pelo adjetivo cinza, uma vez que comprovamos e atestamos a sua frequência. É o caso de expressões cromáticas como: vestimenta cinza, roupa cinza, ímãs cinzas entre outras.

Análise Mesmo que o resultado da pesquisa aponte que cinza não corresponde propriamente à cor, observamos, por outro lado, que esta significação é comumente utilizada, em vista disso, o estudo sobre o termo cinza sob o aspecto de termo de especialidade é válido, posto a frequência em que é empregado. Para citar uma ocorrência dessa natureza, vejamos um trecho da canção “Fábrica”1 de autoria de Renato Russo: O céu já foi azul, mas agora é cinza O que era verde aqui já não existe mais Quem me dera acreditar Que não acontece nada De tanto brincar com fogo Que venha o fogo então

Cinza aparece aqui denotando os dois sentidos: de pó e de cor, além, ainda, de apresentar a simbologia de aspecto negativo. Predomina o sentido de cor, pois existe a presença de duas outras cores: azul e verde. Igualmente ao projeto ora 1. In: Legião Urbana, As quatro Estações ao vivo. EMI: São Paulo, 2004

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estudado, há o contraste entre cinza e verde, porém aqui em contexto bastante diferente do que é apresentado no projeto. As fábricas estão poluindo o céu com fumaça cinza; para a construção delas (as fábricas) é necessário desmatar florestas – morte – verde transformado em cinza e em cinzas, e a canção mostra um tom de revolta e protesto. No projeto, o termo cinza não apresenta a simbologia negativa nem faz referência a resíduos, apenas remete à cor a fim de ressaltar um lado da Amazônia não muito conhecido – a parte litorânea, mais especificamente os manguezais – Amazônia Cinza: as narrativas orais do mito do Ataíde e da Curupira nas entranhas dos manguezais bragantinos. Importa destacar que mesmo o projeto não manifestando a simbologia negativa do cinza, o aspecto lodoso, característica dos manguezais, que lembra lama, aparência pouco agradável, sujeira, há, no pensamento popular, a crença de que este ecossistema seja pobre, pouco importante, improdutivo. Atributos estes que podem advir do que a cor cinza provoca no inconsciente das pessoas. Porém, são louváveis as campanhas de sensibilização para a preservação deste espaço que é berçário natural de diversas espécies de animais e vegetais. O estatuto de termo adquirido pelo item lexical cinza pode ainda ser confirmado em outra ocorrência no projeto de pesquisa: “Conhecer a fundo o mito do Ataíde e mesclar com outro personagem mítico (Curupira), demonstra um trabalho de análise, interpretação e comparação que vem confirmar e abranger a riqueza cultural do universo verde – e cinza (referência ao manguezal) – da região amazônica”. Mais uma vez temos o contraste entre as cores verde e cinza para representar a Amazônia, e o cinza aparece aqui como um termo de especialidade que representa não somente a cor, e sim a região de manguezais de maneira a destacar sua importância e denotar o aspecto positivo que esse ecossistema carrega em seu plano conceitual.

Conclusão Para a realização desta análise ou uma apreciação a respeito do termo cinza com base em estudos terminológicos fez-se um apanhado teórico sobre o que os 29


Amazônia cinza: o termo cinza sob uma abordagem terminológica

estudos terminológicos consideram para que uma palavra alcance a condição de termo. Delineou-se com clareza a diferença entre palavra e termo para, enfim, demonstrar no objeto de estudo, que se trata de um termo especializado. A pesquisa sobre o item lexical cinza apresentou uma vasta explanação sobre os seus significados, possibilitou-nos depreender que esta palavra, dependendo do seu sentido, tem origem diferente e que possui uma grande carga de simbologia. Diante dos estudos realizados, concluiu-se que o cinza de Amazônia Cinza, dentro do contexto em que está inserido, possui a qualidade de termo em virtude de constituir uma carga de conceituação que transmite mais informações do que a palavra cinza tomada isoladamente, este termo encerra em si além da cor, um ecossistema inteiro e, ainda, consegue inverter o valor simbólico já cristalizado como negativo em algo positivo.

Referências CASCUDO, L.C. Dicionário do Folclore Brasileiro. 12 ed. São Paulo: Global. 2012. COSTA, M.C.G. Amazônia Cinza: as narrativas orais do mito do Ataíde e da Curupira nas entranhas dos manguezais bragantinos. Projeto de Pesquisa do PPG em Linguagens e Saberes na Amazônia da Universidade Federal do Pará, 2013. DICIONÁRIO ONLINE DE PORTUGUÊS. Disponibilidade em: <http://www.dicio.com.br/cinza/>. FERREIRA, A.B.H. Miniaurélio Século XXI Escolar: O minidicionário da Língua Portuguesa. 4. ed. rev. Ampliada. Rio do Janeiro: Nova Fronteira, 2001. FERREIRA, A.B.H. Aurélio Online. Disponibilidade em: <http://www.dicionariodoaurelio.com/>. FREITAS, A.K.M. Psicodinâmica das cores em comunicação. Nucom. Limeira/SP. Ano 4, nº 12. De outubro à dezembro de 2007. Disponibilidade em: <http://www.iar.unicamp.br>. KRIEGER, M.G. & FINATTO, M.J.B. Introdução à terminologia: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2004. LARA, M.L.G. de. Uma teoria terminológica para um conceito contemporâneo de informação documentária. Anais do ENANCIB, Florianópolis, 2005. (Cdrom). ORIGEM DAS PALAVRAS. Disponibilidade em: <http://origemdapalavra.com.br>. RUSSO, R. Fábrica. In: Legião Urbana, As quatro Estações ao vivo. EMI: São Paulo, 2004. Disponibilidade em: <http://www.vagalume.com.br>. SIGNIFICADO DAS CORES. Disponibilidade em: <http://www.significadodascores.com.br>. SILVA, E.M.R. Terminologia da cultura da farinha no Nordeste Paraense. Projeto de Pesquisa do Programa de Mestrado em Letras da Universidade Federal do Pará, 2008. ZAVAGLIA, C. Dicionário e Cores. Alfa, São Paulo, 50 (2): 25-41, 2006.

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ANÁLISE DO DISCURSO: A MEDICINA COMPLEMENTAR UTILIZADA PELOS REMANESCENTES DE QUILOMBOLAS DA PIMENTEIRA (PA) Antonia Edylane Milomes Salomão (PPGLS-UFPA)

Introdução Definido Michel Foucault com heterogêneo, instável e em processo de construção, o corpus é um sistema aberto ainda em formação e que ao ser analisado apresentará diálogo com outros discursos. A definição de uma formação discursiva como uma forma de repartição, ou, ainda, um sistema de dispersão convida a colocar a contradição entre a unidade e a diversidade, entre a coerência e a heterogeneidade no interior das formações discursivas; vem a fazer de sua unidade dividida “a própria lei de sua existência. (FOUCAULT, 1986).

Em 19 de outubro de 2013 foi gravada uma conversa com a senhora Domingas que é moradora da comunidade da Pimenteira em Santa Luzia do Pará. Na entrevista o discurso da moradora mostra saberes de um povo historicamente excluído pela cor que possui. Os quilombolas da comunidade da Pimenteira vivem na região por cerca de 50 anos e hoje os remanescentes buscam melhorias e benefícios para os moradores da região. Na entrevista a senhora Domingas fala de sua história, da comunidade da Pimenteira, dos projetos da Associação dos Quilombolas e sobre o seu conhecimento e trabalho com as plantas e ervas de uso medicinal. A manipulação das ervas e plantas de uso medicinal e/ou caseiros veio do conhecimento dos moradores antigos que usufruíram da terra para a cura de alguns males do corpo. Esse saber foi repassado entre as gerações e hoje um pequeno grupo preserva tal conhecimento e tenta manter suas raízes em oposição aos avanços do mundo atual. Com o intuito de manter os conhecimentos de uso das ervas, a senhora Domingas e um pequeno grupo da comunidade Quilombola fizeram a coleta de algumas amostras de ervas e plantas da região em que vivem, 31


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catalogaram cada espécie com os nomes de conhecimento e uso popular que possuem. Contudo o que vale, no momento, nesta pesquisa é a Análise do Discurso dentro dos saberes que a senhora Domingas possui. Durante a análise os autores Eni P. Orlandi (1999) e Michael Foucault terão forte contribuição neste estudo. Diante da Análise do Discurso, Orlandi (1999, p.15) assegura [...]. A Análise do Discurso concebe a linguagem como mediação necessária entre o homem e a realidade natural e social. Essa mediação, que é o discurso, torna possível tanto a permanência e a continuidade quanto o deslocamento e a transformação do homem e da realidade em que ele vive. O trabalho simbólico do discurso está na base da produção da existência humana. (ORLANDI, 1999, p.15).

Ao se falar da ligação entre língua, sociedade e cultura, compreende-se que não pode haver análise da língua de um povo sem conhecer a sociedade e cultura em que vivem. É através da linguagem que se expõem as denúncias, trabalho, identidade, história e cultura. Partindo dessa premissa Alckmim (2006, p.21) confirma-nos a ideia de que a “linguagem e sociedade estão ligadas entre si de modo inquestionável.” Compreende-se que a sociedade contém distinções sociais muito fortes que fazem com que haja divisões de classes sociais1 e de espaço geográfico2, assim entende-se que na linguagem também ocorrerem divisões linguísticas entre os falantes.

Análise do Discurso: o que dizem Orlandi e Foucault A obra Análise do Discurso de Eni P. Orlandi apresenta em seus capítulos as condições de produção de um discurso que necessita dos sujeitos, da situação e da memória para ser constituído. Orlandi (1999) explica que a maneira como a memória surge induz as condições de produção do discurso, assim o Interdiscurso tem íntima ligação com a memória. Mas o que é o Interdiscurso? Orlandi

1. “A Variação Social ou Diastrática relaciona-se com um conjunto de fatores que têm a ver com a identidade dos falantes e também com a organização sociocultural da comunidade de fala”. (ALKMIM, 2006, p. 35) 2. “A Variação Geográfica ou Diatópica esta relacionada com as diferenças linguísticas distribuídas no espaço físico”. (ALKMIM, 2006, p.34)

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explica que o interdiscurso é algo que já foi dito e que causa efeito no que esta sendo dito, ou seja, é a memória discursiva. [...] O fato de que há um já-dito que sustenta a possibilidade mesma do dizer, é fundamental para se compreender o funcionamento do discurso, a sua relação com os sujeitos e com a ideologia. A observação do interdiscurso nos permite, no exemplo, remeter o dizer da faixa a toda a uma filiação de dizeres, a uma memória, e a identificá-lo em sua historicidade, em sua significância, mostrando seus compromissos políticos e ideológicos. (ORLANDI, 1999, p. 32).

O interdiscurso, como explica Orlandi (1999), é todo o conjunto de formulações feitas e já esquecidas que determinam o que dizemos. Logo, ao analisar um discurso devemos considerar os já-ditos e distinguir aquilo que está em sentido implícito e que surge no novo discurso. A consciência desse fato nos leva a compreensão do funcionamento do discurso e sua relação com o sujeito e ideologia. Orlandi (1999) expõe que ao analisar um discurso devem-se considerar os processos e condições em que a linguagem é produzida, observando como a linguagem é materializada na ideologia e, consequentemente como a ideologia é manifestada na língua. Pêcheux (1975) completa dizendo que “não há discurso sem sujeito e não há sujeito sem ideologia: o individuo é interpelado em sujeito pela ideologia e é assim que a língua faz sentido.”(apud Orlandi,1999, p.17). Orlandi (1999) coloca que “uma mesma palavra, na mesma língua, significa diferentemente, dependendo da posição do sujeito e da inscrição do que diz em uma ou outra formação discursiva.” (1999: 60). A autora visualizando essas diferenciações na língua propõe métodos para ordenar o processo de análise do discurso. Em sua obra o analista deve explicar os processos de identificação através de sua análise e para isso “o dispositivo, a escuta discursiva, deve explicar os gestos de interpretação que se ligam aos processos de identificação dos sujeitos, suas filiações de sentidos: descrever a relação do sujeito com sua memória.” (1999: 60). A base de uma análise discursiva considera em princípio a constituição do corpus com critérios teóricos a ser delimitado, outro ponto importante na análise do discurso que Orlandi (1999) coloca é a linguagem que nas práticas discursivas verifica as diferentes naturezas como imagem, som e etc. O objeto analisado é

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inesgotável por que “por definição, todo discurso se estabelece na relação com um discurso anterior e aponta para outro. Não há discurso fechado em si mesmo, mas um processo discursivo do qual se podem recortar e analisar estados diferentes. (1999: 62). Com isso Orlandi (1999: 63) explica que “a construção do corpus e a análise estão intimamente ligados” e que nessa relação “decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas.” Ao analisar as propriedades do corpus, outro autor apresenta relações de pensamento com Orlandi (1999) ao falar das unidades discursivas construídas no campo dos fatos do discurso, assegurando que a partir dessas unidades outras são formadas surgem indagações sob quais regras um enunciado pode ser construído? Diante disso Foucault (2008) declara que [...] Por mais banal que seja, por menos importante que o imaginemos em suas consequências, por mais facilmente esquecido que possa ser sua aparição, por menos entendido ou mal decifrado que o suponhamos, um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Trata-se de um acontecimento estranho, por certo: inicialmente porque está ligado, de um lado, a um gesto de escrita ou à articulação de uma palavra, mas, por outro lado, abre a si mesmo uma existência remanescente no campo de uma memória, ou na materialidade dos manuscritos, dos livros e de qualquer forma de registro; em seguida, porque é único como todo acontecimento, mas está aberto à repetição, à transformação, à reativação. (FOUCAULT, 2008, p. 32).

O fragmento citado coincide com as especificidades do interdiscurso ideado por Orlandi (1999) ao afirmar que um já dito fica alojado na memória discursiva, nessa mesma linha Foucault (2008) utilizando-se de outros termos explica que o enunciado é inesgotável e que o mesmo possui as condições de ficar guardado na memória estando aberto à repetição, à reativação ou à transformação. O enunciado é parte de um determinado discurso que ao surgir articula-se a outros enunciados provocando efeitos de sentido no discurso novo que surgiu, ou seja, o interdiscurso. Foucault (2008) explica que “Cada elemento considerado é recebido como a expressão de uma totalidade à qual pertence e que o ultrapassa.” Essa questão da totalidade citada pelo autor vem no intuito de substituir

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a diversidade das coisas ditas por uma espécie de grande texto uniforme, ainda jamais articulado e que, pela primeira vez, traz à luz o que os homens haviam “querido dizer”, não apenas em suas palavras e seus textos, seus discursos e seus escritos, mas nas instituições, práticas, técnicas e objetos que produzem. (2008: 134).

A ligação entre os dizeres de Foucault e Orlandi são pertinentes para dar claridade ao caminho que leva à formação discursiva, o que para Orlandi (1999) os interdiscursos são recortes de formações discursivas. Para Foucault (2008) os estudos sobre a análise do Discurso tiveram grande valor para o saber e conhecimento humano. Foucault (2008) conclui sobre a análise enunciativa que Descrever um conjunto de enunciados, não como a totalidade fechada e pletórica de uma significação, mas como figura lacunar e retalhada; (...) descrever um conjunto de enunciados para aí reencontrar não o momento ou a marca de origem, mas sim as formas específicas de um acúmulo (...). É estabelecer o que eu chamaria, de bom grado, uma positividade. Analisar uma formação discursiva é, pois, tratar um conjunto de performances verbais, no nível dos enunciados e da forma de positividade que as caracteriza; ou, mais sucintamente, é definir o tipo de positividade de um discurso. (p. 141-142).

Arqueologia do saber: formação discursiva ou discurso científico No campo da linguagem ocorrem mudanças que passam a ser visto como uma organização, um objeto. Neste campo Foucault (2008, p.55) expõe [...]. Certamente os discursos são feitos de signos; mas o que fazem é mais que utilizar esses signos para designar coisas. É esse mais que os torna irredutíveis à língua e ao ato da fala. É esse “mais” que é preciso fazer aparecer e que é preciso descrever. (FOUCAULT, 2008: 55).

O Discurso é proposto por Foucault (2008: 204) em sua obra Arqueologia do Saber. Esta obra é determinante, pois denomina preocupação com as questões relativas à estrutura que constitui o conhecimento e o saber não necessariamente científico, para ele

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[...]. Não se trata de um pré-conhecimento ou de um estágio arcaico no movimento que vai do conhecimento imediato à apoditicidade; trata-se dos elementos que devem ter sido formados por uma prática discursiva, para que, eventualmente, se constituísse um discurso científico, especificado não só por sua forma e seu rigor, mas também pelos objetos de que se ocupa, os tipos de enunciação que põe em jogo, os conceitos que manipula e as estratégias que utiliza. Assim, a ciência não se relaciona com o que devia ser vivido, ou deve sê-lo, para que seja fundada a intenção de idealidade que lhe é própria; mas sim com o que devia ser dito – ou deve sê-lo – para que possa haver um discurso que, se for o caso, responda a critérios experimentais ou formais de cientificidade. (FOUCAULT, 2008, p. 204).

A obra de Foucault (2008) Arqueologia do Saber não é somente uma formulação de métodos de pesquisa na área das ciências humanas. É a construção através da formação de discursos que nos regula a concordar ou não sobre a diversidade de sentidos que atribuímos às palavras dentro de uma mesma língua, com isso entender que uma formação discursiva não está fechada em si, mas que seus limites irão além da diversidade de outras formações discursivas e, com isso, dar ao discurso a possibilidade de mudança e ou transformação da historicidade de cada sujeito. Com isso Foucault conclui A propósito de uma formação discursiva, podem-se descrever diversas emergências distintas. O momento a partir do qual uma prática discursiva se individualiza e assume sua autonomia, o momento, por conseguinte, em que se encontra em ação um único e mesmo sistema de formação dos enunciados, ou ainda o momento em que esse sistema se transforma, poderá ser chamado limiar de positividade. Quando no jogo de uma formação discursiva um conjunto de enunciados se delineia, pretende fazer valer (mesmo sem consegui-lo) normas de verificação e de coerência e o fato de que exerce, em relação ao saber, uma função dominante (modelo, crítica ou verificação), diremos que a formação discursiva transpõe um limiar de epistemologização. Quando a figura epistemológica, assim delineada, obedece a um certo número de critérios formais, quando seus enunciados não respondem somente a regras arqueológicas de formação, mas, além disso, a certas leis de construção das proposições, diremos que ela transpôs um limiar de cientificidade. Enfim, quando esse discurso científico, por sua vez, puder definir os axiomas que lhe são necessários, os elementos que usa, as estruturas proposicionais que lhe são legítimas e as transformações que aceita, quando puder assim desenvolver, a partir de si mesmo, o edifício formal que constitui, diremos que transpôs o limiar da formalização. (FOUCAULT 2008: 208-209). 36


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Domingas: o discurso entre os discursos Analisar um Discurso significa olhar além das aparências, identificar o que está implícito no discurso e perceber que o já dito vai além do consciente para o inconsciente e ideológico. Em 19 de outubro 2013 a comunidade da Pimenteira recebeu a visita da mestranda Antonia Edylane Milomes Salomão, que entrevistou a senhora Domingas Alves do Nascimento, uma moradora cuja origem é Quilombola. Domingas é conhecedora das ervas e plantas de uso medicinal, vive da agricultura e das vendas de seus produtos como a garrafada e a multimistura. Na entrevista o discurso da moradora da Pimenteira apresentou saberes de um povo que se mantém dos recursos da natureza, procurando preservar o ambiente em que vive, a senhora Domingas também cultiva suas ervas e plantas em sua casa, como meio de proporcionar a saúde de seu povo e, de conseguir recursos para seu sustento. Para realizar esta pesquisa foi necessário registrar a conversa com a senhora Domingas através de fichas com perguntas variadas sobre sua história, sobre a comunidade e sobre o uso medicinal das plantas e ervas, depois foi indispensável a gravação do som e imagem da entrevistada para, na sequência analisar seu discurso que foi transcrito de forma Grafemática. Com esse material transcrito propõe-se a análise de um discurso repleto de saberes de um povo historicamente resignado. Tendo por base bibliográfica os estudos de Orlandi (1999) e Foucault (2008), observou-se que na trajetória dos estudos e da pesquisa em questão emergiram questões importantes sobre a memória discursiva do sujeito e sua constituição ideológica. Sobre isto Orlandi (1999) explica que na Análise do Discurso a linguagem não é transparente, que a ideologia atua entre a palavra e o mundo. Para melhor identificação das personagens na Análise do Discurso, foram utilizados “D” para a fala da senhora Domingas e, “P” para a fala da mestranda deste artigo. Observe:

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(1) D: (domingas alves do nascimento) P: a data de nascimento D: dia vinte oito...de outubro P: qual o ano? D: (...)...dois...vo completa cinquenta e um ano dia vinte oito P: é...AQUI agente pode dizer como é o endereço? D: pode P: como é? D: pimenteira P: so pimenteira? D: (...)...((barulho do vento)) P: entao hoje a senhora tem quantos anos? D: cinquenta e um ...NAO cinquenta éh:: cinquenta né P: ho-je a senhora tem cinquenta é isso D: cinquenta isso P: quantas pessoas moram na sua casa? D: sao seis P: seis...a senhora...éh::paraense? qual a sua naturalidade? D: paraense P: paraense mesmo né P: qual é a sua principal ocupacao o trabalho? D: na agricultura P: qual é a principal fonte renda? D: como assim::? P: com o que a senhora ganha dinheiro? D: ah:::com assim com as minha atividade éh::assim...planta malva agente cobre com a malva(agente cobre com a malva)do açai é uma safra muito boa de açai...e os meus trabalhos de garrafadas (que ganho no mes) pra mim mesmo o que eu to fazendo é esse né P: hum hum D: a garrafada que eu vendo bastante...é muito encomendado...mu::ito P: remedio caseiro? D: isso remedio caseiro

Neste primeiro momento da entrevista observou-se que a senhora Domingas é uma pessoa desinibida, trabalhadora e ávida pelo conhecimento medicinal das plantas e ervas. Durante a entrevista a moradora Domingas escolheu seu quintal um local com muitas plantas, árvores, sombra e ventilação, durante a gravação a 38


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moradora apresentou-se de forma acolhedora e sorridente, algo marcante em sua personalidade. No percurso da entrevista percebeu-se que a senhora, apesar de sua pouca escolaridade é uma grande contadora de historias de sua família, registros de seu passado e da comunidade da Pimenteira. Observe o fragmento (2):

(2) P: a senhora tem que escolaridade? ate que serie a senhora estudou? D: so a primeira P: primeira serie D: naquele tempo era MUITO dificil né...agente morava aqui ai eu daqui com uma legua...né quando eu agora comecei a estudar eu tava cum...quinze anos eu com dezesseis anos(...)ai pronto meu marido lutou lutou mas eh pra mim foi muita dificuldade hoje ja sou dona de familia e deixa minha casa pra mim andar so de canto todim ai eu nao quiz ele pelejou pelejou mas eu logo disse NAO acho que nao se eu soubesse tava na casa do papai ai tudo bem ficava ruim e eu tinha de sair seis hora da manha que é daqui la na beira do rio é uma legua de...ai num tinha como eu prepara o almoco né chegada de tarde cansada ne ai num to ai eu num estudei mais ai...e era muito dificil muito dificil meus irmaos nenhum...so tem eu meus irmaos so tem eu que tem a quarta serie um ou dois por causa dessa dificuldade...(tossiu) P: a senhora vive na comunidade a quanto tempo? D: ...éh eu nasci e me criei aqui na comunidade ASSIM eu nao nasci aqui mas foi aqui perto né

Domingas é uma mulher forte e representa as pessoas que vivem em comunidade distantes das necessidades humanas básicas como saúde e educação, muitos preferem abandonar os estudos para trabalhar na terra e cuidar da família. Devido às muitas experiências de vida a moradora falou de suas origens, sua família e trabalho com a Associação Quilombola da Pimenteira, mas o que chama a atenção sobre essa personagem é seu conhecimento sobre o uso das plantas e ervas de uso medicinal. A moradora da Pimenteira vive na comunidade rural há cerca de cinquenta anos e, durante seus anos de vida, muitos saberes de seus ancestrais sobre as plantas e ervas medicinais foram repassados. Sua avó materna e sua mãe eram conhecedoras do uso de chás para a cura de males do corpo e da alma. Com o passar dos anos os conhecimento da senhora Domingas sobre as plantas e ervas passou a ser muito importante para a comunidade local e para o aumento do orçamento familiar. Veja abaixo no fragmento (3):

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(3) P: ok...agora agente vai pra uma outra etapa...uma etapa da sua area...faz uso das plantas medicinais a senhora utiliza tambem? D: certeza P: quem passou esse conhecimento sobre a utilizaçao das plantas D: hum hum P: pra senhora? D: a minha vó e a minha mae...minha vó da parte da minha mae os meus avos da parte do meu pai nao conheci nenhum agora da parte da minha mae conheci todos os dois P: quem tem problema de saude e decide procurar ajuda...quando a senhora tem um problema da saude éh e decide procurar ajuda a quem recorre? D: olha eu quando a saude problema meu mesmo? P: sim sim D: eu recorro a eu mesmo ate agora graças a deus ainda nao ainda nao deu recorrer a ninguem eu mermo né meus P: medico D: ((balança a cabeça de forma negativa)) ate agora nao ate agora eu ja fui na mao de medico pra cirurgia pra me operar né P: de que? D: mas pra nao ter mais...filho

Foucault (2008) expõe que a concepção de discurso é considerada como prática que provém dos saberes, e da necessidade de articulá-lo com outras práticas não discursivas. Nesse contexto a moradora falou da necessidade de aprimorar seus saberes sobre o uso das plantas, devido aos trabalhos que executava com o Bioenergético3 na comunidade da Pimenteira. Esta necessidade de conhecer mais foi mediada por outras pessoas que aconselharam a senhora Domingas a estudar sobre a medicina alternativa, a partir da busca por esses novos saberes a moradora iniciou a produção da multimistura e o aprimoramento da produção da garrafada. O encontro desses saberes está inserido no discurso da moradora que 3. Bioenergética é a energia da vida. É uma nova técnica de diagnóstico e tratamento de doenças, baseada na sabedoria do inconsciente humano. Esta sabedoria segundo garantem eminentes psicólogos é inata e igual para todos, portanto não depende de nenhum estudo, mas nos foi infundida por Deus no momento da concepção. É um método simples que se utiliza apenas dos dedos das mãos entrelaçadas em forma de anel, feito por duas pessoas examinadoras. Também usa uma vareta de metal para encostar na pessoa a ser examinada. Pesquisado no dia 03/12/2013 as 23:11hs no site: http://www.jaimebruning.com.br/bio_saude. php.

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hoje consegue sustento com a venda desses produtos em cidades vizinhas. Além da troca de conhecimentos, Domingas também faz a troca das ervas e plantas que não são da cultura na comunidade com pessoas que fazem a encomenda de seus produtos. Veja abaixo o fragmento (4):

(4) P: ok...como obitem as plantas que utiliza...como é que a senhora consegue essas plantas? D: como é que eu consigo? P: hum hum D: éh as vez é é arrumando com outro colega trocando né...as vez eu nao tenho daquela daquela planta as vez eu eu consigo com troco como caso a dona nazare ela a dona nazare ela ela tem muita planta ela tem muita ela é muita chagada né ai agente se ela nao tem da marca que eu tenho eu ja dou daquele que eu tenho ela ja mim espera daquele um que agente tem que agora agente ja ta fazendo a multi mistura nao sei se voces tem conhecimento da multi mistura né P: hum hum D: ai agente ta fazendo assim ela lá ela tem a semente de girasol e o farelo mas ela tem o farelo do pó do arroz aqui na comunidade eu ja levo a a a o pó da casca da da ma da folha da macaxeira dá o gergilim ai de lá agente ja faz todo junto ja mistura ja é uma troca né que agente ta organizando e ai é muito bom que ela a...dia vinte sete dia vinte oito de setembro nos tava num encontro de...alimentaçaos alternativa ai era uma doutora clara ela é japonesa no japao e ai ela ta dizendo quem come alimento...ta comendo alimentaçao e ta comendo remedio porque ja ta comendo aquela alimentaçao que ja serve de remedio ja ta protejendo e é como a multi mistura que ela ensinou né...e ai ela ficou ensinando varias coisas que nos temos aqui que assi agente deixa se perder ai joga fora e ela disse que enquanto voces tao comendo aquilo voces ja tao se previnindo voces ja tao comendo remedio num carece voces ta lá na farmacia...comprando remedio pra voces voces ja tao comendo tao se alimentando e tao P: hum hum D: e é como a multi mistura ela ensinou o tucupi que ela ensinou que o tucupi é muito bom e tudo tipo de verdura ela ensinou e agente agenta ta fazendo essa essa experiencia com a Nazaré P: hum hum D: e ai...ta dando certo ate agora a multi mistura nos tamo fazendo ela ta vendendo muito muito muito

Nenhum discurso é puro, apesar dos saberes adquiridos com a mãe e avó materna, a senhora Domingas revela em sua fala informações que marcam a presença de outros discursos, de outros saberes. Os saberes adquiridos ao longo de 41


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sua vida foram sendo modificados e aprimorados através do relacionamento com pessoas que continham informações semelhantes ao que a senhora Domingas já sabia. No propósito de apreender sobre o manuseio das ervas e plantas, a moradora fez um curso de alimentação alternativa, a partir desse curso a senhora passou a produzir a multimistura, produto este que anteriormente não fazia parte de seu saber, hoje se percebe que ao apreender esse conhecimento Domingas tomou outro discurso com respeito ao uso das plantas e ervas, a moradora procura hoje a cura e/ou prevenção de doenças através de uma alimentação equilibrada. O trabalho com as ervas e plantas de uso medicinal é tão importante para a senhora Domingas, que é possível sentir grande emoção na moradora ao relatar sobre seu conhecimento, sobre seu saber adquirido entre as gerações de sua família. Observe no fragmento (5):

(5) D: ai agente ta fazendo assim ela lá ela tem a semente de girasol e o farelo mas ela tem o farelo do pó do arroz aqui na comunidade eu ja levo a a a o pó da casca da da ma da folha da macaxeira dá o gergilim ai de lá agente ja faz todo junto ja mistura ja é uma troca né que agente ta organizando e ai é muito bom que ela a...dia vinte sete dia vinte oito de setembro nos tava num encontro de...alimentaçaos alternativa ai era uma doutora clara ela é japonesa no japao e ai ela ta dizendo quem come alimento...ta comendo alimentaçao e ta comendo remedio porque ja ta comendo aquela alimentaçao que ja serve de remedio ja ta protejendo e é como a multi mistura que ela ensinou né...e ai ela ficou ensinando varias coisas que nos temos aqui que assi agente deixa se perder ai joga fora e ela disse que enquanto voces tao comendo aquilo voces ja tao se previnindo voces ja tao comendo remedio num carece voces ta lá na farmacia...comprando remedio pra voces voces ja tao comendo tao se alimentando e tao

Por meio do trabalho de análise, o analista pode detectar como os sujeitos e os sentidos se constituem se posicionam na história e como a língua atravessa e é atravessada por esses sujeitos e sentidos.

Considerações finais A língua não acontece e não se faz sem a presença humana. O ser humano é um ser social, que precisa comunicar-se com os seus pares. É através da Lín42


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gua que é possível estabelecer a comunicação entre os mesmos. A língua não se dissocia da sociedade. Confirmando com essa ideia, Alckmim (2006, p. 21) salienta-nos Linguagem e sociedade estão ligadas entre si de modo inquestionável. Mais do que isso, podemos afirmar que essa relação é a base da constituição do ser humano. A história da humanidade é a história dos seres organizados em sociedades e detentores de um sistema de comunicação oral, ou seja, de uma língua. (ALCKMIM, 2006, p. 21).

Toda pesquisa tem por objetivo captar as reações e representações dos indivíduos de uma dada situação. No discurso da senhora Domingas pode-se perceber o acesso às diferentes ciências que estão incorporadas ao sujeito, com sua historicidade, cultura, ideologias e crenças, ou seja, é na relação com os diversos discursos que se constituíram outros discursos na senhora da Pimenteira. A análise do Discurso com seu poder de relativizar, argumentar, intervir e apreender a nossa realidade mostra ainda nossos limites como seres humanos, nossa incompletude, nossa incoerência e caos diante a existência. Somos seres finitos e pequenos diante da vida e da história, buscamos emergir e superar as constantes metamorfoses que formam a vida e trazem o conhecimento por meio da ciência e da língua.

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Análise do discurso: a medicina complementar utilizada pelos remanescentes de quilombolas da Pimenteira (PA)

FOUCAULT, Michel. A arqueologia do saber – tradução de Luiz Felipe Baeta Neves, –7ed. – Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008. GREGOLIN, Maria do Rosário. Foucault e Pêcheux na análise do discurso – diálogos & duelos. São Carlos: Editora Claraluz, 2004. MACHADO, Roberto. Ciência e Saber – A Trajetória da Arqueologia de Foucault. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981. MOLLICA, M. C.; BRAGA, M. L. (orgs). Introdução à Sociolinguística: o tratamento da variação. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2004. ORLANDI, Eni Puccinelli. Análise de discurso: princípios e procedimentos. Campinas, São Paulo – SP, Pontes, 1999. POTTER, J. & WETHERELL, M. Discourse and Social Psychology. London: Sage Publications. 1987. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo, Cultrix, 1991. TERRAS QUILOMBOLAS. Comissão pró-índio de São Paulo. Disponível no site http://www.cpisp.org.br/ terras/asp/ficha_territorio.aspx?terra=i&TerraID=2501.

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UM ESTUDO DAS VOGAIS PRETÔNICAS NO FALAR NORDESTINO EM BACURITEUA – BRAGANÇA (PA) Gleyson César da Silva Costa (UFPA) Lorram Tyson dos Santos Araújo (UFPA)

Introdução A língua portuguesa desde sua origem até os dias de hoje é uma amálgama de línguas, de dialetos1, subdialetos2 e traços linguísticos diversos. Em cada nação, em cada lugar, ela é, todavia, falada, pensada, por vezes escrita de maneira diferente. Fatores que vão desde os de ordem linguística aos extralinguísticos são introduzidos a ela, bem como a todas as línguas. O Brasil pode ser compreendido como um grande dialeto (em comparação ao português europeu falado em Portugal) uma vez que apresenta em seu território dialetos menores, e ainda subdialetos, como bem nos mostra Mattoso Câmara quando conceitua em seu “Dicionário de linguística e gramática” o verbete ‘dialeto’, dizendo: “No Brasil, temos, segundo Antenor Nascentes, uma divisão dialetal entre o Norte e o Sul, incluindo a primeira os subdialetos – a) amazônico, b) nordestino, e a segunda – a) baiano, b) fluminense, c) mineiro, d) sulista.” (NASCENTES, 1953, p.25-6 apud CÂMARA JR, 2000, p. 96). Os aspectos que diferem o falar português nas várias partes do Brasil são dos mais diversos, que vão desde aspectos ‘simples’, como palavras com semânticas diferentes, até aspectos mais profundos da língua, de ordem fonético-fonológica, prosódicos, dentre outros. Um ponto de grande significação da/na fala e que tem ganhado relevância em termos de pesquisa nos últimos anos é o aspecto vocálico de certas regiões do Brasil, a preferência de abertura ou fechamento vocálico das vogais médias em 1. “Do ponto de vista puramente linguístico, os dialetos são falares regionais que apresentam entre si coincidências de traços linguísticos fundamentais” (CAMARA JR. 2000, p. 95). 2. Temos subdialetos, “quando há divergência apreciável de traços linguísticos secundários entre zonas desse território [em que se é falado o dialeto]” (ibidem). Poderíamos citar como exemplo de dialeto e subdialeto, o mesmo feito por Mattoso Câmara: dialeto: o português falado no Brasil; subdialeto: o português falado no nordeste do Brasil (2000, p. 96).

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determinadas posições das palavras, bem como o alteamento ou rebaixamento de vogais, que, dependendo da preferência vocálica, caracterizam, muitas vezes, os falares regionais brasileiros. A pesquisa que aqui se faz enquadra-se neste contexto de investigação das vogais médias e pretende colaborar, discretamente, com os estudos em torno dos falares das regiões do português do Brasil, mas especificamente do nordeste paraense, analisando como anda a preferência vocálica das vogais médias pretônicas no falar dos nordestinos que imigraram para uma vila de pescadores na cidade Bragança – vila de Bacuriteua – e a partir de então começaram a conviver com falantes de preferência outra quanto à realização destas mesmas vogais nas mesmas situações; bem como perceber se houve influência da preferência nordestina nas mesmas situações em relação aos bacuriteuenses. A orientação confere o caráter sociolinguístico de pesquisa de campo, visto levar em consideração, além de questões linguísticas referentes à língua portuguesa, proporciona espaço também para certos fatores sociais indissociáveis desta que é a maior forma de comunicação humana, como: lugar em que se fala (dialetos/variação linguística), o contato com culturas linguísticas diferentes, as preferências fonéticas de determinados grupos de falante, dentre outros pontos. Todos relevantes quando se pensa língua como um fato “imanentemente” social.

O sistema vocálico português Sabe-se que o sistema das vogais do português, em termos fonéticos, é dotado de profunda complexidade e fertilidade bem maior que as cinco letras a, e, i, o e u representam regularmente, na maneira como se compreendem, de forma superficial, as vogais de nossa língua. Seriam elas, assim, pelo menos sete. As quais são percebidas plenamente quando em posição tônica nas palavras. Como se é possível notar nos exemplos: c[a]sa, p[]dra, P[e]dro, v[i]vo, []va, [o]vo, [u]va. Estes sete fonemas vocálicos comportam-se nos cinco grafemas latinos e multiplicam-se, por conta de seus traços distintivos, em inúmeros alofones. As vogais constituem um inventário bem disposto e de quase perfeita simetria, com exceção do fonema /a/ que não apresenta um correspondente opositi46


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vo, “ocupando [assim] o vértice de um triângulo de base para cima”3 (CALLOU & LEITE. 2005, p. 79). O quadro a seguir ilustra: VOGAIS Anteriores

Central

Posteriores

/i/

Altas Médias altas Médias baixas

/u/ /e/

/o/ //

// /a/

Baixa não-arredondadas

arredondadas

Quadro 1 — Vogais

As vogais comportam-se no sistema vocálico de forma gradativa, por meio de aspectos como posição da língua (altas, médias altas, médias baixas e baixas), recuo ou avanço de parte anterior ou posterior da língua (anteriores, central e posteriores) e arredondamento da boca (arredondada e não arredondada). Este último traço não configura caráter distintivo das vogais, visto que, como se pode perceber no quadro (1), o fonema central e os anteriores são todos não arredondados. Sobre tal disposição das vogais, Câmara Jr. Resume (CÂMARA JR.,1988, p. 41): Há uma série de vogais anteriores, com avanço da parte anterior da língua e sua elevação gradual, e outra série de vogais posteriores, com um recuo da parte posterior da língua e a sua elevação gradual. Nestas há, como acompanhamento, um arredondamento gradual dos lábios. Entre umas e outras, sem avanço ou elevação apreciável da língua, tem-se a vogal /a/ como vértice mais baixo de um triângulo de base para cima (CÂMARA JR.,1988, p. 41).

3. Isto na visão de estudiosos como Trubetszkoy (1929 apud CÂMARA JR, 1988) que consideram ser o sistema vocálico um sistema triangular, visto que estudiosos como MALMBERG (1954) acreditem ser esse sistema, na verdade, um trapézio, com lugar para um fonema /a/ com caráter mais anterior e um fonema /a/ mais posterior.

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As vogais, como já dito, comportam-se em sete fonemas, quando em sílaba tônica. Quando em posição átona ocorre o fenômeno que em linguística estrutural europeia convencionou-se denominar neutralização4, que se faz quando dois ou mais fonemas em determinado contexto perdem seu traço distintivo e passam a ter o comportamento de apenas um. Câmara Júnior (1988, p. 43) com relação à neutralização ainda discorre: todos os fonemas vocálicos, em termos fonéticos, apresentam variação, tanto articulatória quanto auditiva, ocasionando na maioria das vezes o fenômeno da neutralização, a qual será diversa, dependendo da modalidade silábica da posição átona (p. 43). Nesse sentido, Massini-Cagliari (1992, p. 25), estudando a qualidade das vogais explica que “as vogais [e], [o], [a], em sílabas átonas, tendem a ser mais centrais e altas do que em sílabas tônicas”, o que colabora com o fenômeno da neutralização. Diante de consoante nasal na sílaba seguinte, como acontece em cama ([‘]), as sete vogais reduzem-se a cinco, com acréscimo a um alofone de /a/ que apresenta um traço um tanto posterior [], assim como na palavra amo pronunciada no português brasileiro, como ilustra Câmara Jr. (1988, p. 43): altas médias baixa

/i/ /e/

/u/ /o/ /a/ []

Este sistema reduz-se mais ainda quando em sílabas finais de máxima atonicidade, em que desaparecem as oposições entre as vogais anteriores e as vogais posteriores, formando, assim, um sistema de apenas três vogais: altas baixa

/i/

/u/ /a/

Outro fenômeno discutido por Câmara (CÂMARA JR. 1988, p. 44-45) é o da harmonização. Acerca disso, discorre que

4. Termo que ficou conhecido em fonologia, pelo estudioso Trubetszkoy (1929 apud CÂMARA JR., 1988).

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No registro formal do dialeto carioca, as oposições (...) [quadro 3] entre /o/ e /u/, de um lado, e, de outro lado, entre /e/ e /i/ ficam prejudicadas pela tendência a harmonizar a altura da vogal pretônica com a da vogal tônica quando esta é átona. Souza da Silveira (...) tratou com acuidade do fenômeno, chamando-o “harmonização vocálica”. A rigor, diante de /i/ e /u/ tônicos, /e/ e /o/ só aparecerão com firmeza em vocábulos inusitados na linguagem coloquial (...).

Ainda sobre o campo das vogais átonas, há as vogais denominadas assilábicas, que acontecem quando a vogal, tal como certas consoante em português, posiciona-se não no centro, mas numa das margens da sílaba. Nesse caso temos uma sílaba com o fenômeno ditongo. Para alguns estudiosos essa vogal, na verdade seria uma consoante em português, todavia Mattoso (1988, p. 46) explica que elas são “alofones assilábicos de uma vogal, e, nunca (...) uma consoante”. Há ainda um derradeiro tipo de vogais, que diferem das demais, por conta de uma ressonância nasal. As vogais são as denominadas nasais, as quais têm gerado inúmeras discussões, pondo em cheque seu caráter fonético e fonológico.

Metodologia da pesquisa A orientação deste trabalho segue seu percurso por uma investigação de caráter sociolinguístico quantitativo, nos moldes propostos por Tarallo para uma pesquisa que trate de variações linguísticas em uma comunidade de fala. Dessa forma, a pesquisa centra-se não somente em fatores linguísticos, mas em todos aqueles que estão alheios a este campo, e que o interferindo, modificam-no. O lócus investigativo é a vila de Bacuriteua, localizada no município de Bragança situada no nordeste do Pará. A escolha foi motivada por conta da significativa imigração de pescadores advindos da Região Nordeste (Ceará, Maranhão, Piauí e outros estados) para esse lugar, por conta de Bacuriteua situar-se à beiramar e ter como principal fonte de renda a pesca, mesmo meio de sobrevivência de muitos nordestinos. Para comporem as células utilizou-se um corpus investigativo de doze informantes divididos da seguinte maneira:

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• dois casais de imigrantes (dois homens e duas mulheres), residentes entre 9 e 11 anos em Bacuriteua; • dois casais imigrantes (dois homens e duas mulheres), residentes entre 15 e 17 anos em Bacuriteua; • dois casais nativos.

A coleta de dados serviu-se de instrumentos como uma câmera digital e um aparelho de gravação sonora, a fim de que o armazenamento das gravações em áudio e vídeo servissem de apoio e maior clareza para identificação dos sons das palavras em análise. Também servimo-nos de um caderno com um inventário de 39 imagens com figuras previamente elaboradas e supostamente familiares a eles, para que essas imagens e suas representações facilitassem o reconhecimento e os falantes pronunciassem os nomes para registro e estudo5.

As vogais médiais pretônicas em Bacuriteua Imigrantes nordestinos com menos tempo de residência (A) Ao analisar os dados de falantes imigrantes residentes entre 9 a 11 anos na Vila de Bacuriteua, doravante A, um dos aspectos importantes apresentados é o alteamento das vogais pretônicas. O alçamento observado, ou seja, a elevação da altura da língua, é um fenômeno que favorece diferenciar os dialetos presentes na comunidade linguística e reconhecer traços específicos que identificam um grupo social numa determinada localidade. Este foi um fator condicionante e está presente em todos os casos investigados, assim como para os imigrantes há mais tempo (B) e nativos (A). O primeiro falante, A1, pronunciou palavras em que o traço fechado foi preservado, ou seja, palavras como s[e]bola e c[o]ruja seguiram o processo de harmonização vocálica, na realização da manutenção deste traço, porquanto as vogais [e] e [o], respectivamente, foram influenciadas pelas vogais tônicas [o] e [u] 5. obs.: 13 dos 39 nomes de imagens que compuseram o catálogo foram selecionados com base nas variantes que fizeram parte do questionário do projeto “vogais do português do Brasil”– PROBRAVO– Variedades da Amazônia Paraense – Norte Vogais, sobre a coordenação de Regina Cruz –UFPA.

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imediatamente seguintes e de mesmo traço fonético fechado. Da mesma forma é para A2, A3 e A4 que demonstram predominância de alteamento, conforme mostra o gráfico. Ao serem analisadas as falas, um dos aspectos que impressiona é, pois, o alteamento, como ocorre nas vogais pretônicas de timbre aberto, ora alternando para as de traço fechado, como [e] ou [o], oral para [i] ou [u]. Como é possível observar pelo gráfico abaixo, as principais ocorrências acontecem com as médias altas, principalmente as de posição anterior, como realizadas nas palavras c[e]rveja e pr[e]sidente, com 50% para [e] e menos frequente nas de posição posterior, como em c[o]ruja e f[o]guera com 30% para [o]. Essas preferências podem ser explicadas segundo o fenômeno da harmonização vocálica, que tende a altear a vogal média pretônica por influência dada vogal tônica adjacente, caracterizando um aspecto importante de variação no falar dos imigrantes (A).6 Os casos de pronúncia de vogais médias baixas, ainda que em menor proporção, são, contudo, relevantes nesse grupo. O índice gráfico apresenta uma proporção igual no emprego dos traços abertos tanto para as anteriores quanto para as posteriores (28% para [] e []), mostrando, com isso, ainda preservarem traços característicos do dialeto nordestino. O impressionante aparecimento das vogais altas nos contextos de atonicidade substituindo as vogais médias altas e baixas é um importante indício da influência motivadora do falar nativo sobre o nordestino. De modo geral, ao analisar a preferência das vogais médias pretônicas, [e] possui maior percentual para as anteriores (50%), assim como para as posteriores [o] é mais ocorrente com (30%), sem levar em conta a elevação de [u] como traço predominante para o falante (42%). No entanto, numa tímida e estreita margem percentual que separa as vogais [] e [o] está o abaixamento como fenômeno que tende a acompanhar a mesma preferência predominante do alteamento, pois 30% são para [o] enquanto [] fica próximo com 28%; tais aspectos possibilitam 6. “HARMONIZAÇÃO: Mudança do timbre de uma vogal pretônica para harmonizar-se com o da vogal tônica ou vocábulo, donde um debordamento (...) Na língua portuguesa do Brasil há uma forte tendência para a harmonização na escala dos abrimentos, determinando a passagem de uma vogal média para alta ou de uma vogal alta para média, de acordo com o timbre da vogal tônica, independentemente da correspondência ou divergência entre elas na posição articulatória anterior ou posterior arredondada (...)” (CÂMARA JR. 2000, p. 134-135).

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observar nessas poucas, porém notáveis recorrências das vogais abertas, o traço reminiscente e característico dos falares nordestino. Mas como os dados evidenciam, é predominante o alteamento. A investigação mostrou que para as vogais médias há predomínio das variantes altas, cujo motivo está em função da presença das condicionantes vogais fechadas, confirmando, assim, a harmonização vocálica como o principal fenômeno motivador para o alteamento.

Gráfico 1 — IMIGRANTES (A) Vogais médias pretônicas anteriores e posteriores (%)

Na sequência, são apresentadas outras palavras que foram pronunciadas de forma regular pelos informantes A: Exemplos de harmonização vocálica: Cab[i]ludo

R[e]polho

C[e]rveja

Imigrantes nordestinos com mais tempo de residência (B) Ao analisar a fala dos imigrantes nordestinos que residem entre 15 a 17 anos, de agora em diante B, foi possível observar importantes casos que se diferenciam de B. Quanto às vogais médias, as de posição anterior apresentam dados com maior número de palavras pela manutenção do traço aberto [] (43%), assim como há a conservação do mesmo traço para as posteriores [] (34%). E em con-

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traste aos dados de A com maior incidência para o alteamento, B apresenta maior frequência para a conservação da abertura, ou seja, há manutenção do abaixamento da vogal. A pesquisa constatou que nos diversos contextos situacionais as vogais abertas são mais frequentes, isto é, a maioria dos casos não segue a regra de harmonização vocálica, como em c[]lular, contrariando a referida regra. Porém, isso não retira a possibilidade de outras variações acontecerem, como por exemplo, b[] n[]dito, ben[e]dito e bin[i]dito, em que as vogais em destaque alternam dentro do mesmo vocábulo. Contudo, a realização das vogais com traço aberto não supera a preferência da vogal [u] que, sendo um importante aspecto a ser notado, ocorre em 49% dos casos das posteriores, como em b[u]neca e f[ur]miga. Com relação à vogal média alta anterior, constatou-se um número expressivo nas suas realizações. Palavras como cerv[e]ja e cab[e]ludo somam 33%. Tais preferências podem ser compreendida pela motivação resultante de harmonia vocálica, confirmando a variação como fenômeno real.

Gráfico 2 — IMIGRANTES (B) Vogais médias pretônicas anteriores e posteriores (%)

O falar dos nativos (C) De acordo com os informantes nativos, podemos dizer que houve maior incidência para o alteamento das vogais médias em contexto pretônico, com 60%

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para [e], realizadas em palavras como cab[e]ludo e c[e]rveja, e 51% para [o], como em f[o]rmiga e c[o]ruja . Assim sendo, apresentaram o fechamento como traço característico, mostrando com isso a preferência pela realização das vogais em posição pretônica de traço fechado. A preferência pelas vogais médias altas, em contraste à pouca incidência de uso das baixas, em contexto pretônico, evidencia a similaridade com o falar de Bragança, ou mesmo do próprio Pará, pois, conforme as conclusões de Freitas, ao pesquisar sobre o falar na cidade de Bragança7, citando SILVA (1989, p. 75), a autora considera esta região como uma ilha dialetal para o resto do Brasil, em função do uso variável dos traços aberto e fechado, porém, com incidência maior para este último. É o que torna possível a existência de uma distinção dialetal entre os falares do Norte e do Sul-Sudeste, conforme proposição de Nascentes, comentado anteriormente. Contudo, essas informações entram em discussão ao fazer relação à teoria de Nascentes. Como fica evidente no gráfico seguinte, para este grupo, houve predominância na realização de uso das vogais médias altas. No entanto, as de posição anterior ficaram com baixíssimo índice, com 29% para [] e 19% para [], comprovando, assim, o exposto acima sobre a variabilidade entre alteamento e manutenção dos traços fonéticos. Mas essa variação é típica do falar paraense, como característica desta região, pois, conforme a pesquisa de Cardoso (1999 apud KLUNCK, 2007, p. 18)8, o Pará possui essa variabilidade de uso como identidade regional e por isso os informantes alternam entre alteamento e abaixamento de vogal média. Somadas e computadas em percentuais, os gráficos a seguir confirmam a preferência para o alteamento das vogais médias.

7. Dissertação de Mestrado de Simone N. Freitas As vogais médias pretônicas no falar da cidade de Bragança. Belém: UFPA, 2001. 8. Dissertação de Mestrado de Patrícia Klunck Alçamento das vogais médias pretônicas sem motivação aparente. Porto Alegre, 2007.

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Gráfico 3 — NATIVOS (C) Vogais médias pretônicas anteriores e posteriores (%)

Outros casos em que registramos ocorrências das vogais médias baixas foram os casos de harmonização, nas palavras: P[E]lé, r[E]médio. Ficou evidente, portanto, que o traço fonético mais comum no uso das vogais pretônicas para os nativos é o traço fechado das vogais, pois, como os dados mostram, somam-se em média, no lado das anteriores, 60% para [e], em desproporção à média de 29% para [], e para as posteriores 51% para [o] e apenas 19% para [].

Considerações finais Com relação aos imigrantes de menor tempo de residência em Bacuriteua (A), constatamos que há uma maior incidência pelo uso das vogais médias altas em comparação ao uso das médias baixas, esta que é uma característica mais expressiva dos nordestinos. A vogal média anterior [e] ficou com 50% e a posterior [o] com (30%), descaracterizando, por isso, a predileção nordestina do abaixamento das vogais. Percebemos ainda, que a mesma vogal média alta anterior [e], embora apresente maior quantidade de ocorrências, concorre com a vogal alta [u] (42%), demonstrando, com isso, que este grupo está fazendo significativamente o alteamento das vogais médias pretônicas. Os imigrantes com mais tempo de moradia na vila (B) podem ser considerados mais conservadores. Quando relacionamos os imigrantes há menos tempo (A)

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e os nativos (C), com relação ao uso das vogais médias pretônicas, (B) apresenta maior predominância por vogais médias abertas – [] com 43% (em contraposição a [e] que ficou com 33%) e [] com 34% (em contraste a [o] com 17%). O alteamento que se verifica é um fenômeno emergente, mas está em menor número com relação aos demais falantes (A) e (C). Em (B) é o alçamento de [u] apresenta-se mais ocorrente, com 43% dos casos, no entanto, para o estudo das vogais médias em questão, ao que tudo indica, (B) tende a preferir médias abertas. Os nativos (C) realizam mais alteamento das vogais médias. Para [e] são 60% da preferência, assim como em [o] são 51% dos casos. Há o uso também das vogais médias baixas, todavia são em menor caso. Diante dos fatos, percebe-se que os nativos (A), provavelmente por serem maioria na localidade (segundo a Revista de Gestão Pesqueira são 74,68%)9, não foram influenciados pelos imigrantes tanto quanto os imigrantes pelos nativos, pois enquanto os nativos apresentaram tendência relevante ao alteamento, o abaixamento é mais comum para os imigrantes, sobretudo aos de maior tempo (B). Em linhas gerais podemos rematar a pesquisa apontando e sintetizando aspectos importantes. Verifica-se que o alteamento das vogais médias em posição pretônica são abundantes. Assim como as variações podem refletir a origem dos falantes, os nativos diferenciam-se dos imigrantes pelo alçamento das vogais médias que, para os nordestinos (A) e (B), existe em menor proporção. O resultado desta pesquisa revelou uma comunidade marcada pela diversidade. Palavras como c[]bola, c[e]bola, c[i]bola evidenciam essa característica na fala dos bacuriteuenses.

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ESTUDO LEXICAL DE PLANTAS ORNAMENTAIS EM CAPANEMA-PA: UMA INCURSÃO NOS SABERES LOCAIS1 Suely Cunha de Souza (UFPA) Raimunda Benedita Cristina Caldas (UFPA)

Introdução Os estudos terminológicos abrangem as mais variadas áreas científicas devido à natureza de enfoque no termo de especialidade. Embora sejam termos específicos de uma área, podem circular por domínios que não os seus, através das transferências semânticas, ou seja, de um processo associativo entre ideias de naturezas diferentes (MALHEIROS-POULET, 2011). Nesta discussão tratamos desse aspecto da nomeação dos termos das plantas ornamentais, considerando que, “em sua maioria, não perdem o sentido de base, por mais que entrem vulgarizados em um meio lexical, pois o que explica a distinção entre conceito vulgar e científico é o senso comum” (FAULSTICH, 2006, p. 27). A apresentação de uma amostra de termos sobre os nomes comuns de plantas ornamentais na cidade de Capanema, no interior do Pará, aponta possíveis variações entre os achados lexicais. Tem como base os pressupostos da Socioterminologia, visto que as palavras usadas para nomear sofrem, em algum momento, variações significativas capazes de mudar até o próprio significado do vocábulo. Essa perspectiva considera que os saberes locais influenciam a denominação dos termos, pois estes, usados no meio linguístico e social, “são entidades passíveis de variação e de mudança e que as comunicações entre membros da sociedade são capazes de gerar conceitos interacionais para um mesmo termo ou de gerar termos diferentes para um mesmo conceito” (FAULSTICH, id, p. 30).

1. Trabalho desenvolvido com o apoio do programa PIBIC/UFPA.

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Estudo lexical de plantas ornamentais em Capanema-PA: uma incursão nos saberes locais

Extensão de significado de um termo A extensão semântica é bastante produtiva na inovação vocabular. Atribui a partir de palavras já existentes novos significados, processo que caracteriza a polissemia. Este processo contribui para a economia dos sistemas linguísticos. Em especial, a polissemia que se aplica com modos de conceitualização da realidade extralinguística são oriundos de processos cognitivos. (CORREIA e BARCELLOS ALMEIDA, 2012). No campo dos estudos terminológicos das plantas ornamentais, foco desta pesquisa, encontramos na nomeação dessas plantas a extensão de significado de termos de uma área de especificidade para outra. Como um termo específico porta informações que circulam entre as gerações, a terminologia torna-se a base fundamental para a análise de dados. Nesse aspecto, ela auxilia na identificação de palavras da língua, que são próprias de uma especialidade (CABRÉ, 1993 apud ANDRADE, 2001). O caráter terminológico abrange os “reflexos da realidade humana” e esta se cerca de léxicos por meio dos quais “falantes de uma língua interagem uns com os outros”, nomeiam “seres e coisas para dar sentido e conceito às palavras existentes, criadas e/ou recriadas”. Desta forma, a linguagem articulada pelos falantes de determinada localidade se configura em um rico acervo no qual podemos observar sua diversidade cultural (FREITAS, 2011, p. 20). É por isso que as pesquisadoras Caldas e Silva (2011), no artigo no qual tratam sobre a “importância do registro do léxico para a compreensão da constituição do português brasileiro”, argumentam a realização do registro lexical como “passo inicial fundamental” para se conhecer as particularidades linguísticas de uma dada região (...) de modo que tal registro possa atender às necessidades cotidianas dos usuários no dia-a-dia e possa servir também de base empírica para trazer mais evidências a respeito dos cruzamentos entre grupos sociais e regionais distintos de uma região, pois é o campo do léxico o mais suscetível ao contato (CALDAS; SILVA, 2011, p. 185).

Portanto, o levantamento lexical efetiva-se no conhecimento tradicional das comunidades e está relacionado intimamente com aos saberes que costumam

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SUELY CUNHA DE SOUZA E RAIMUNDA BENEDITA CRISTINA CALDAS

ser repassados oralmente de geração em geração. Desse modo, nomear e conviver com espécies, em grande parte, leva uma comunidade a considerar os nomes vulgares das plantas, de acordo com suas necessidades, o que renova a percepção cognitiva desse homem diante do universo para a construção do seu conhecimento.

Considerações sobre o saber local Para Geertz (1997), o pensamento etnográfico versa sobre as formas do saber como “sempre e inevitavelmente locais, inseparáveis de seus instrumentos e de seus invólucros”. De certo modo, obtemos nossos conhecimentos por intermédio dos livros ou ensinamentos de uma determinada comunidade/entidade, porquanto vivemos “imersos em metacomentários” e, dessa forma, nossas consciências passam por remodelações a cada instante, por meio dos conceitos emitidos por outros sobre os objetos e pela forma como tais objetos nos são apresentados. Para isso, os seres humanos necessitam-se, quer no desenvolvimento de aprendizados e ensinamentos, quer na tentativa de entender o entendimento alheio (GEERTZ, 1997, p. 12 e 18). Tal necessidade fez do homem um especialista no desenvolvimento de ferramentas próprias para cada situação em sua vida, de forma que é compreensível, segundo Castro (2000), o saber tradicional ser o “resultado do acúmulo de experiências vivenciadas pelos indivíduos em um lugar, na relação que estabelecem com o ambiente, natural e social” e com “a memória coletiva de um grupo que se reproduz na relação entre os sujeitos e seus pares”. Portanto, na relação entre o homem e a natureza, o saber passa a ser elaborado pelas “ações práticas vivenciadas por componentes de populações tradicionais, no meio natural”, e originado “na experiência cotidiana, possibilitando assim o seu acúmulo pelos sujeitos” (CASTRO, 2000 apud LIMA, 2009, p. 156-157). É por intermédio deste saber, afirma Lima (2009), que os povos tradicionais da Amazônia têm garantido a manutenção da floresta através do conhecimento tradicional, desenvolvendo uma forma própria de atuar no meio natural (LIMA, 2009, p. 157). Logo, essa forma própria constitui aquilo que os estudiosos da hu-

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manidade denominam de conjunto das “competências e habilidades dos componentes de populações tradicionais” observadas em Castro (2000 apud LIMA, 2009, p. 157). Em concordância à afirmação supracitada correspondem os achados etnográficos de dois pesquisadores citados por Lévi-Strauss (1997), que puderam averiguar nas populações tradicionais, assim como nas indígenas pertencentes ao lócus investigativo destes, uma capacidade de identificar em “riqueza de detalhes” e pelas “faculdades aguçadas”, as distinções que atuam num bioma: notam com exatidão os “caracteres genéricos de todas as espécies”, bem como as “mais sutis mudanças dos fenômenos naturais, tais como o vento, a luz, as cores do tempo, as ondulações das vagas, as variações da ressaca, as correntes aquáticas e aéreas.” (HANDY; PUKUI, 1958, p. 119 apud LÉVI-STRAUSS, 1997, p. 18). Para que se estabeleça e se desenvolva o movimento destes saberes entre os indivíduos de uma comunidade é necessária à comunicação, especificamente a verbal. Portanto, podemos dizer que a propagação de um saber pode ser feita por uma semântica estrutural da língua, ou seja, quando o sentido é transportado pela sintaxe, através de eleições dos signos apropriados (CARREIRA, 1994, p. 149). Por isso, Abbade (2011) afirma que “língua e cultura são indissociáveis”, pois A língua de um povo é um de seus mais fortes retratos culturais. Essa língua é organizada por palavras que se organizam em frases para formar discurso. Cada palavra selecionada nesse processo acusa as características sociais, econômicas, etárias, culturais (...) de quem a profere. Partindo dessa premissa, estudar o léxico de uma língua é abrir possibilidades de conhecer a história social do povo que a utiliza (ABBADE, 2011, p. 1332).

e Freitas (2011) reitera que o léxico é quem modifica o meio onde vivem os componentes de uma comunidade cuja responsabilidade é atribuída aos atos interativos e expressivos de suas opiniões, na qual a língua passa a ser utilizada de acordo com as que lhe foi comunicada, não que isso signifique uma reprodução tal como foi transmitida, pois nesse processo marcas novas são elaboradas ou reelaboradas, dependendo das situações vivenciadas no cotidiano daquele grupo social (FREITAS, 2011, p. 16).

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Diante do que já foi dito até aqui, podemos entender que os atos interativos e expressivos de opiniões vistos em Freitas (2011), que tenham por veículo a língua, configuram o pensamento humano e este, por sua vez, configura o objetivo dos cientistas sociais hodiernos que buscam investigar “a anatomia do pensamento” e não mais “o comportamento” (GEERTZ, 1997, p. 56).

Caracterização da pesquisa O lócus investigativo

O estudo foi realizado em duas comunidades, São José e São João Batista, que se localizam ao sul da cidade de Capanema2 e ficam separadas do Centro pela interseção da Rodovia BR-316. Contudo, alguns pontos centrais como jardins públicos e floriculturas constituíram parte do lócus investigativo. Os dois bairros também se distam por uma pequena área descampada que serve como pastagem.

Figura 1 — mapa da localização das comunidades pesquisadas, na cidade de Capanema-PA. Fonte: http://maps.google.com.br

2. O município de Capanema recebeu, durante sua formação e seguindo uma ordem cronológica, os nomes “Quatipuru”, “Siqueira Campos” e “Capanema”. O primeiro, de acordo com o dicionário Houaiss, teve origem no tupi akutipu’ru e significa ‘cutia enfeitada’. Esta nomeação foi dada por haver uma grande quantidade de roedores na região, conhecidos como coatipuru/acutipuru (Sciurus aestucus); o segundo foi em homenagem a um dos heróis da Revolução de 30; e o último é gerador de ambiguidades entre autores: ora o termo se refere, na língua indígena, a “mato infeliz”, ora se refere ao Barão de Capanema, Guilherme Schuch, a quem, segundo SOUSA (2010), D. Pedro II atribuiu o epíteto por causa da existência de uma pequena Serra chamada Capanema, localizada na Freguesia de Antonio Pereira onde Schuch nasceu.

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Particularidades da pesquisa qualitativa e quantitativa A investigação partiu da pesquisa bibliográfica. Foram feitas seleções das fontes de informações, como material de botânica e de terminologia, para elaboração de uma ficha terminológica adequada ao registro do material selecionado, a fim de armazenar as informações adquiridas sobre as plantas ornamentais. Prosseguimos com a pesquisa de campo para coletar os dados. Foram executadas as entrevistas com os moradores dos respectivos bairros. Com a intenção de obter informações pertinentes, assim como a realização do levantamento de espécies cultivadas e dos registros orais sobre a utilização dessas espécies. Os recursos utilizados foram uma ficha específica contendo abordagens livres ou pré-formuladas, uma câmera digital para o registro de imagens e um gravador (de celular) para as narrativas. Na descrição dos aspectos das plantas estudadas constam: a entrada, variantes, nome científico, lugar de origem, bem como o armazenamento de textos para explanação sobre o percurso lexical ou demais aspectos socioantropológicos nos dados selecionados e suas prováveis variações em decorrência de tais aspectos. Concomitantemente, foi realizada a organização dos dados, quando foi executada a coleta de léxico especializado com a instrumentalização para armazenamento de dados em arquivos específicos de plantas usadas em artefatos culturais, destacando-se as características e os usos das espécies estudadas. No entanto, devemos considerar aqui o fato de que as plantas ornamentais são, em sua maioria, importadas. É por isso que alguns nomes carregam as nomeações de origem e isso obscurece, em parte, as relações de identificação local.

Como nomear o exótico? Nomes de plantas podem ter o mesmo nome de animais. Tomemos como exemplo a planta Alocasia longiloba, que recebeu a nomeação “Coelhinho”. Este lexema usualmente é utilizado para conceituar um dos mamíferos lagomorfos, o Oryctolagus cuniculus. Percebemos que o termo “Coelhinho”, próprio da área Zo-

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ológica, circula na área da Botânica de forma emprestada e sob um novo conceito que não o de base, embora ambas as áreas pertençam ao campo da Biologia. Durante o tratamento dos dados, encontramos nomes que faziam da imagem representativa da planta uma referência a imagens de animais. Outros designavam cores, o formato redondo ou alongado da planta e até mesmo o tipo de abertura da folha, assim como o modo de adaptação no clima e ambiente etc. Dessa forma, atribui-se a essas representações as motivações embutidas na terminologia popular das plantas ornamentais. Na fala de uma informante para nomear a planta Euphorbia tirucalli L., a associação do estado físico desta ao físico magro de uma pessoa: O João-magro parece uma árvore para enfeite de natal. Aqui a metáfora impõe uma imagem para substituir o termo científico. A tabela a seguir ilustra alguns desses nomes que estão relacionados com as características imagéticas ou circunstanciais dos vegetais, apesar de alguns não terem recebido uma denominação específica. Neste caso, devemos associar essa dificuldade de nomear ao fato de tais plantas pertencerem a outras localidades. Imagem

Nome Científico

Adenium obesum Balf.

Buxus sempervirens

Hibiscus Mutabilis (Foto retirada do site: www.plantasonya. com.br)

Nome Popular

Motivo

Rosa-do-deserto

Não gosta de muita água e pode passar dias sem ser regada.

Buxinho

Em referência ao aspecto ‘barrigudo’ na disposição das folhas.

Mudança

Devido à modificação gradual de matizes na coloração da flor dessa planta, durante o percurso solar.

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Licuala Grandis

Palmeira Leque

A folha dessa planta, quando aberta, possui a forma de um leque.

Palmeira chamaedorea

Palmeira enchameadora

Avoluma-se em ambientes internos.

Quadro 1 — Demonstrativo das nomeações por referências. Fonte: Suely Souza.

Foi possível, durante o tratamento do corpus, uma averiguação de termos concorrentes como ‘Bola-de-fogo/Bola-do-mundo’, ‘Coroa-de-rei/Coroa-imperial’, correspondentes à espécie Scadoxus multiflorus. Sobre esse fenômeno, Freitas (2011) considera que determinada comunidade passa a criar termos em concordância com a realidade e necessidade advindas da vivência enquanto grupo social e, por isso, “variações surgem, com o intuito de trazer à cultura da língua inovações e progresso, representando marcas típicas das expressões e opiniões das pessoas que geram esses vocábulos” (FREITAS, 2011, p. 19). Quando indagados sobre como nomeavam suas plantas, os informantes mencionavam termos os quais eles apontavam para o contorno, textura ou pigmentação da planta relacionando-os a imagens de animais, cores, perfil de algum objeto, enfim, com aquilo que se assemelhasse a algo conhecido para eles. Essas características apontaram para um método de nomear do qual a pesquisadora extraiu o conceito de “denominação motivada”, ou seja, os atributos nominais dados aos aspectos anatômicos e fisionômicos dos objetos, neste caso, dos vegetais ornamentais. Devido ao movimento migratório, as pessoas transportam seus pertences de um lugar a outro e isso favorece que objetos diferentes em uma comunidade passem por desconhecidos por pertencerem a outras localidades. Logo, é no espaço que rodeia essa lacuna que a denominação motivada parece agir em função do ignoto. 66


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Nesse contexto, a denominação motivada surge com a intenção de ajudar no processo da nomeação através do uso de analogias. Dessa forma, termos como ‘Cachorrinho’ (Syngonium aurintum), ‘Coelhinho’ (Alocasia longiloba) e ‘Joãomagro’ (Euphorbia tirucalli L.) são (re)significações metafóricas que os falantes atribuem as plantas das quais não conhecem o nome de origem. O gráfico abaixo representa os diferentes locais de coleta onde a denominação motivada atua.

Gráfico 1 — Gráfico representativo das ocorrências lexicais nos locais de coleta. Fonte: Suely Souza.

À figura dos galhos finos e longos, desprovidos de folhagens, somente algumas “penugens” reparam a inflexibilidade da natureza, é atribuído o nome já visto: João-magro (foto abaixo). Mas a mesma informante também o denomina de ‘Pau-pelado’. Uma espécie de planta não identificada, que possui aparência próxima a da referida acima foi nomeada, por outra informante, como ‘Pecadopelado’. Assim, para Latorre (1992), quando denominamos determinado objeto, nós estamos, ao mesmo tempo, concebendo uma “nova realidade”. Destarte, na perspectiva do percurso gerativo da enunciação de decodificação, Maria Aparecida Barbosa (apud LATORRE, 1992) nos afirma que o processo de denominação se desenvolve da seguinte forma 67


Estudo lexical de plantas ornamentais em Capanema-PA: uma incursão nos saberes locais

O indivíduo ou um grupo percebe um referente, real ou imaginário, passível de conceptualização e representação. A seguir, um signo é constituído a partir de uma escolha. Este pode ser assim descrito: referente (real ou imaginário), conceptualização (representação), escolha de um signo (adequação relativa). Segundo Pottier (1992, p. 48-49), a primeira operação repousa em uma aptidão do sujeito falanteouvinte, a de representar para si mesmo o ‘referente’ (percepção-concepção). A segunda operação consiste em procurar o nível de adequação desejado. Nesse percurso, há diferentes tipos de escolha. Assim, para todos os ‘referentes’ usuais de uma cultura, a língua dispõe de um nome que surge imediatamente à mente dos membros de uma comunidade (Maria Aparecida Barbosa apud LATORRE, 1992, p. 206).

Figura 2 — Plantas ornamentando os átrios de casas no bairro São José. Da esquerda para a direita: João-magro ( Euphorbia tirucalli L.), Jiboinha (Epipremnum pinnatum), Coelhinho (Alocasia longiloba), Cachorrinho (Syngonium auritum). Foto: Suely Souza.

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Se, para Pottier (apud LATORRE, 1992), um sujeito falante-ouvinte primeiramente faz a sua representação do referente para depois adequar o conceito a um nível que seja melhor representativo para esse referente, então, dentro de uma comunidade de culturas e costumes diversos, termos como, ‘Maria-semvergonha’, ‘Saia-branca’ ou ‘Pega-rapaz’ constituem designações cujos referentes permitem uma relação de similitude com os objetos ou qualidades por eles representados. Sendo assim, podemos tomar como exemplo o nome ‘Mudança’ que também pode ser usado para designar uma estratégia de reprodução3 do Hibiscus mutabilis, ao atrair visitantes à procura de néctar.

Variações linguísticas na terminologia dos nomes populares Retomando o assunto já mencionado no subtópico “Como nomear o exótico?”, quarto parágrafo, dos nomes registrados durante o tratamento do corpus fizemos um pequeno levantamento de termos que aparentemente apresentaram algum tipo de variação. Demos importância a esse fenômeno dentro da pesquisa porque ele pode sugerir um movimento inovador e veiculador de sentidos, pois, como supracitado, no momento em que nomeamos um objeto, uma nova realidade é concebida. O quadro abaixo ilustra os termos que mais apresentaram variações. Sobre esse aspecto, as oscilações observadas entre esses termos parecem sugerir uma possível mudança do significado atribuída ao aspecto morfológico diferenciado em cada par. São José

Casa de venda e troca de plantas

São João Batista

Maria-sem-vergonha/ Boa-noite.

-

-

Cravo-de-anjo

Cravo-de-defunto

-

3.Ver A loucura da rosa (www.chc.cienciahoje.uol.com.br).

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Cama-do-menino-Jesus/ Brilhantina

-

-

Rabo-de-arraia/ Esporão-de-arraia

-

-

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Unha-de-gato/ Sabiá

-

Bola-do-mundo/ Coroa-imperial/ Coroa-de-rei

-

Bola-de-fogo

Desse modo, de acordo com o dicionário Aurélio (2009 apud URBANO, 2011), a forma linguística que “representa uma das alternativas possíveis para a expressão, num mesmo contexto, de determinado elemento fonológico, morfológico, sintático ou léxico” pode ser considerada como forma variante da língua (p. 157). Assim, Abbade (2011) fala sobre a lexemática ter por ocupação o estudo do significado de uma palavra no interior de uma língua, através do ponto de vista da própria língua. Portanto, seguindo esse critério, seria errado entendermos que o termo ‘Cachorrinho’ possui a capacidade de significar ao Syngonium auritum como o melhor amigo do homem? A questão nos faz refletir sobre como usamos nossa capacidade perceptiva para identificação das coisas e qual é a finalidade. Certamente, fazer com que pessoas identifiquem objetos através daquilo que é o mais peculiar num determinado local é promover, ao mesmo tempo, a circulação de um conhecimento.

Considerações Percebemos que as comunidades pesquisadas demonstraram um modo típico de nomear as plantas para a ornamentação de suas casas, levando em conta os aspectos físicos e a imagem representada que os conduziu à atribuição de nomes por intermédio da motivação. Foi por esse motivo que evidenciamos neste estudo as nomenclaturas populares das plantas de caráter ornamental, inseridas no léxico botânico dessas comunidades. Dessa forma, nota-se que o que se configura

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como artefato cultural para estes informantes são as representações físicas e imagéticas de seus vegetais. Como algumas plantas não receberam uma nomeação, sente-se a necessidade de uma catalogação mais abrangente da flora na região do Caeté, através do levantamento do registro de especialidades, para que essas lacunas – não só das ornamentais, mas de outras categorias que também sofrem com essa incompletude – possam ser preenchidas. A isto se deve também o fato da importação dessas plantas. Enfim, nesta pesquisa aprendemos sobre como a língua é capaz de influenciar no processo da nomeação, visto que um povo, ao se comunicar entre si ou com outros povos, toma por veículo comunicador o léxico de sua língua, transportando neste suas impressões e opiniões sobre os objetos à sua volta.

Referências ABBADE, C. M. S. A lexicologia e a teoria dos campos lexicais. In: Cadernos do CNLF, v. 15, nº. 5, Rio de Janeiro: CiFEFiL, 2011. pp. 1332-1343. CALDAS, R. B. C.; SILVA, T. F. Da importância do registro do léxico para a compreensão da constituição do português brasileiro. In: Revista A Palavrada, v. 1, n. 1, Bragança: UFPA, jan./jun. de 2011. ISSN 2236-4536. pp. 186-192. CARREIRA, Maria. H. A. Para uma leitura guiada de Sémantique Générale de Bernard Pottier, com adaptações ao português. In: Revista Línguas e Literaturas, série 2. v. 11, Porto: FLUP, 1994. pp. 147-180. CORREIA, Margarita; BARCELLOS ALMEIDA, Gladis M. de. Neologia em português. São Paulo: Parábola, 2012. FAULSTICH, Enilde. A Socioterminologia na comunicação científica e técnica. Revista Ciência e cultura, v. 58, n. 2, São Paulo: SBPC, abr./ jun., 2006. pp. 27-31. FREITAS, P. M. As plantas que curam. 2011. 51 f. Trabalho de conclusão de curso (apresentado ao final do curso de graduação lato sensu em Letras) – Faculdade de Letras, Universidade Federal do Pará, Bragança. GEERTZ, Clifford. O saber local: novos ensaios em antropologia interpretativa. Tradução de Vera Mello Joscelyne. Rio de Janeiro: Vozes, 1997. KRIEGER; M. G.; FINATTO, M. J. B. Introdução à Terminologia: teoria e prática. São Paulo: Contexto, 2004. LATORRE, V. R. D. Taxionomia dos topônimos e antropônimos no léxico de Guimarães Rosa: o encantamento dos nomes. In: ALVES, Eva Maria (org.) et.al. Os estudos lexicais em diferentes perspectivas, São Paulo: FFLCH/USP, 2010. pp. 203-214. LÉVI-STRAUSS, Claude. A ciência do concreto. In:______. O pensamento Selvagem. Tradução de Tânia Pellegrini. 2ª ed. São Paulo: Papirus, 1997. pp. 15-48. LIMA, Walter C. R. Saber tradicional: suporte para o exercício da territorialidade de uma comunidade no estuário amazônico. Revista Ensaio Geral, v. 1, n. 1, Belém: UFPA, jan/jun. de 2009. pp. 155-156.

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Estudo lexical de plantas ornamentais em Capanema-PA: uma incursão nos saberes locais

MALHEIROS-POULET, M. E. Locuções com valor intensivo em português: transferências semânticas, graus de lexicalização. In: ISQUERDO, Aparecida Negri & ALVES, Ieda Maria (org.). As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia, v. 3, São Paulo: Humanitas, 2007. pp. 41-52. SOUSA, Teresinha de Jesus. Capanema: minha terra, nossa gente e sua história. Capanema: Gráfica Vale, 2010. URBANO, Hudinilson. Variantes Linguísticas. In: PRETI, Dino (Org.). Variações na fala e na escrita, São Paulo: Humanitas, 2011. Projetos Paralelos – NURC/SP; v. 11, pp. 157-185.

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CONTRIBUIÇÕES PARA O ATLAS DO PROJETO AMPER – NORTE: VARIEDADE LINGUÍSTICA DE MOCAJUBA (PA) Maria Sebastiana da Silva Costa (PPGL-UFPA) Regina Célia Fernandes Cruz (UFPA)

Introdução Os estudos da prosódia em português começaram a ser vislumbrados desde as gramáticas tradicionais, como na gramática de língua portuguesa de 1540 até os tempos atuais. Desses estudos fazem parte as análises embasadas pela teoria suprassegmental, a qual utiliza recursos mais avançados para caracterizar uma análise prosódica. E é com base na teoria prosódica, com incursão na acústica (parâmetros acústicos de duração, intensidade e frequência fundamental) que o projeto AMPER vincula sua metodologia. Dessa forma, o presente artigo apresenta o projeto AMPER por meio da metodologia adotada do projeto AMPER-NORTE em uma análise acústica de um informante, masculino, do ensino médio, etapa já concluída, enquanto parte da pesquisa em andamento. O presente trabalho compreende mais uma contribuição ao projeto AmperNorte (Atlas Prosódico Multimédia do Norte do Brasil). Apresenta-se aqui uma análise dos dados obtidos de um informante do sexo feminino com ensino Médio Completo (BF53) da variedade do português falado em Mocajuba. A pesquisa referente à variedade falada no Município de Mocajuba está em andamento, mas sete corpora já foram formados, referentes à: ilha de Mosqueiro (GUIMARÃES, em andamento), cidade de Belém (SANTOS JR., 2008; BRITO, 2012), cidade de Bragança (CASTILHO, 2009), cidade de Cametá (SANTO, 2011), cidade de Abaetetuba (REMÉDIOS, em andamento), cidade de Baião (LEMOS, em andamento), cidade de Curralinho (FREITAS, em andamento). Além dessas localidades o projeto Amper Norte já tem previsto a formação de corpora nas seguintes localidades: Óbidos, Santarém e Breves. 73


Contribuições para o Atlas do Projeto Amper-Norte: variedade linguística de Mocajuba (PA)

Trata-se de um trabalho pioneiro, tendo em vista que as únicas descrições do português falado em Mocajuba são de caráter sociolinguístico e do nível segmental (CAMPOS, 2008; COSTA, 2007). Campos (2008) trata do processo de variação das vogais médias pretônicas neste dialeto. Costa (2007), por sua vez, aborda o fenômeno de rotacismo no falar em questão. Portanto nenhum estudo sobre os aspectos suprassegmentais até o presente momento fora realizado sobre a variedade em escopo. O nosso objetivo maior é caracterizar a variação prosódica dialetal do português falado no município de Mocajuba (PA), bem como constituir um corpus prosódico com amostras dialetais do português falado no município de Mocajuba (PA); disponibilizar o corpus formado on line; e proceder a uma análise instrumental dos aspectos prosódicos do português falado no município de Mocajuba (PA).

O campo prosódico A linguística suprassegmental, mas especificamente a prosódia com estudos voltados para parâmetros acústicos, foi ganhando espaço no fazer científico e, dentre todos os parâmetros supracitados, pode-se afirmar que as dimensões mais importantes para a prosódia do Português são o acento e a entoação. O acento, porque no português se utiliza as diferentes posições do acento nas palavras para distinguir significados (ex: <sabia> / <sábia>). O acento em Português aparece por meio de um aumento de intensidade associado à duração de uma sílaba. Já a entoação é uma flutuação da curva da frequência fundamental ao nível da frase, que é responsável em Português pela distinção de intenções comunicativas e expressivas. Assim, uma frase do tipo declarativo distingue-se de um de tipo interrogativo ou exclamativo devido a alterações da entoação. Martins (1998) afirma que os parâmetros acústicos considerados relevantes para o acento e a entoação em diversas línguas são a duração, a intensidade, a frequência fundamental e a energia dos segmentos – isolados, ou em sílaba, palavra ou frase. É, portanto, também por conta da Prosódia distinguir modalidades frasais, como interrogativa e afirmativa, tal diferença é observada através da variação de contornos melódicos, a entonação.

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MARIA SEBASTIANA DA SILVA COSTA E REGINA CÉLIA FERNANDES CRUZ

Projeto AMPER-NORTE O projeto AMPER – Atlas Multimédia Prosódico do Espaço Românico – objetiva a elaboração de um Atlas Dialetal Multimédia a fim de mostrar a prosódia das distintas línguas românicas. A presente pesquisa iniciou-se somente com o estudo das variedades europeias, mas desde 2004 o grupo de pesquisadores estendeu-se para o continente Americano. O Amper-POR (Atlas Prosódico Multimédia do Português) é constituído por quinze instituições, dentre as principais variedades do Português destacam-se: O Português Europeu Continental, o Português Europeu Insular e o Português Brasileiro. Faz parte do Amper-POR e tem como objetivo principal proceder a um levantamento das características prosódicas das variedades linguísticas do português falado na Amazônia Paraense, com a finalidade de confeccionar um Atlas Prosódico Multimédia da região Norte do Brasil. O projeto Amper-Norte é sediado no laboratório de Ciência e Tecnologia da Fala do Campus Universitário de Cametá (CUNTINS) da UFPA e conta com a infraestrutura deste para a execução de suas atividades. O projeto em questão já produziu duas monografias de conclusão de Curso (SANTOS JR. 2008; CASTILHO, 2009), uma Dissertação de Mestrado (SANTO, 2010) e dois planos de Iniciação Científica (SILVA, 2011; BRITO, 2012). A coordenadora do projeto possui uma bolsa de Produtividade do CNPq (PQ2) com este mesmo projeto desde 2009.

Metodologia AMPER Como um dos objetivos do projeto AMPER compreende uma análise contrastiva dos dialetos estudados, o corpus gravado é formado de seis repetições de 102 frases do corpus de base do projeto para a língua portuguesa. Cada um dos elementos constituintes das frases possui uma imagem correspondente, uma vez que não é permitido nenhum contato dos informantes com as frases escritas. Portanto, durante a coleta de dados, a representação visual das frases é projetada por meio de slides aos informantes como meio de estímulos gráficos

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Contribuições para o Atlas do Projeto Amper-Norte: variedade linguística de Mocajuba (PA)

para a produção das 612 repetições a serem geradas. A série de frases que forma o corpus do projeto AMPER obedece a critérios fonéticos e sintáticos previamente estabelecidos. Uma vez que nas vogais reside a maior parte da informação relevante no que concerne à curva prosódica e, tendo-se em conta as características da estrutura acentual do português, escolheram-se vocábulos representativos das diversas estruturas acentuais (oxítona1, paroxítona2 e proparoxítona3) nas diversas posições frásicas4. Sintaticamente as frases são montadas de forma a apresentar Sujeito – Verbo – Complemento (SVC) e suas expansões com a inclusão de Sintagmas Preposicionais. Quanto à estrutura sintática, todas as frases possuem apenas: 1) quatro personagens: Renato, pássaro, bisavô e capataz; 2) três sintagmas adjetivais: nadador, bêbado e pateta; 3) três sintagmas preposicionais indicadores de lugar: de Mônaco, de Veneza e de Salvador; e 4) um único verbo: gostar. Com relação à entoação, elas são concebidas de modo a contemplar as modalidades declarativas e interrogativas globais. No momento da coleta de dados, a cada informante são pedidas seis repetições da série de frases do corpus (em ordem aleatória), como já mencionado acima, sendo selecionadas para análise acústica as três melhores repetições, a fim de serem estabelecidas médias dos parâmetros acústicos controlados: duração, frequência fundamental (F0) e intensidade. Conforme determina o projeto geral, para a seleção dos informantes são considerados os seguintes critérios: 1) faixa etária (acima de 30 anos); 2) escolaridade (fundamental, médio e superior) e; 3) tempo de residência na localidade (nativos do local). A partir desses critérios, foram selecionados seis informantes, três homens e três mulheres, que participaram da coleta de dados. Trata-se, portanto, de uma amostra estratificada. Cada informante recebe um código de acordo com

1. Os vocábulos oxítonos utilizados são: 'o bisavô', 'de Salvador', 'nadador' e 'capataz'. 2. Os vocábulos paroxítonos utilizados são: 'o Renato', 'de Veneza', 'pateta'. 3. Os vocábulos proparoxítonos são: 'o pássaro', 'de Mônaco', 'bêbado'. 4. As posições frásicas são: sintagma nominal, sintagma preposicional.

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MARIA SEBASTIANA DA SILVA COSTA E REGINA CÉLIA FERNANDES CRUZ

o sistema de notação adotado pela coordenação do projeto AMPER-POR e conforme o quadro 01 abaixo. Localidade

Escolaridade

Sexo

Código*

Feminino

BF51

Masculino

BF52

Feminino

BF53

Masculino

BF54

Feminino

BF55

Masculino

BF56

Ensino Fundamental

Mocajuba

Ensino Médio

Ensino Superior

Quadro 01 — Codificação dos informantes do município de Mocajuba segundo suas características sociais. * A letra B significa português brasileiro, a letra F identifica o Estado do Pará, o número 5 é o código da zona Urbana Mocajuba e os números pares finais referem-se sexo masculino e os números impares ao sexo feminino, os números 1 e 2 identificam o Ensino Fundamental, 3 e 4 Ensino Médio e 5, 6 nível superior de escolaridade.

A taxa de amostragem de cada sinal gravado é de 44.100 Hz, 16 bits, sinal mono. Uma vez a gravação concluída, procede-se à separação por informante das 612 frases do sinal original em um arquivo sonoro específico. O material gravado sofre, então, seis etapas de tratamento: a) codificação das repetições; b) isolamento das repetições em arquivos de áudio individuais; c) segmentação vocálica dos sinais selecionados no programa PRAAT 5.0; d) aplicação do script praat; e) seleção das três melhores repetições e; f) aplicação da interface Matlab para se obter as médias dos parâmetros das três melhores repetições.

Formação e Organização do Corpus de Mocajuba (PA) Para proceder-se a pesquisa em Mocajuba contou-se com a ajuda de familiares que moram neste Município para a seleção dos informantes. O informante em

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Contribuições para o Atlas do Projeto Amper-Norte: variedade linguística de Mocajuba (PA)

análise tem 33 anos e possui nível médio de escolaridade (BF53). A gravação dos dados foi feita com gravador profissional digital PMD660 Marant e um microfone Shure dinâmico e de cabeça para a captura do áudio. A taxa de amostragem de cada sinal é de 44.100 Hz, 16 bits, sinal mono. O sinal foi gravado na residência de um primo da informante, localizada no centro de Mocajuba, o local foi escolhido a pedido da própria informante. A gravação realizou-se no horário do almoço das 12h às 13h30min. O mesmo não teve contato nenhum com as frases escritas apenas com a visualização de slides exibidos com o auxílio de um notebook Sony vaio por meio do programa Power point. Para a variedade linguística de Mocajuba, estamos utilizando o corpus ampliado do Projeto AMPER-POR de 102 frases. A informante produziu seis repetições da série de frases (em ordem aleatória), totalizando 612 frases. O corpus da informante BF53 sofreu as seis etapas de tratamento dos dados citadas acima. Na segmentação fonética, utilizamos o programa PRAAT. Durante a segmentação fonética, estabelecemos a escala de pitch que ficou entre 150 Hz a 350 Hz. O script praat foi aplicado a cada uma das repetições de cada frase do corpus. A aplicação desse script gerou um arquivo.TXT contendo as medidas dos parâmetros acústicos frequência fundamental, duração e intensidade das vogais de cada repetição. Antes de se proceder à análise acústica na interface Matlab, foram selecionadas as três melhores repetições de cada frase em termos de qualidade sonora e de similaridade de distribuição de vogais plenas (v) e elididas (f). A aplicação da interface Matlab forneceu a média dos parâmetros físicos – F0, duração e intensidade – em um arquivo fono.txt das três repetições de cada frase e das duas modalidades. A interface gerou mais outros arquivos em formato de imagem contendo gráficos das médias de F0, duração e intensidade de cada modalidade individualmente, assim como gráficos comparativos de ambas as modalidades. A interface gerou igualmente arquivos ton contendo uma síntese de cada modalidade sem a parte segmental. Para proceder-se uma análise preliminar dos dados obtidos da informante BF53 foram observados os parâmetros acústicos referentes à variação das médias 78


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de F0 em Hz, da duração em ms e da intensidade em dB especificamente nas sílabas tônicas do núcleo dos sintagmas nominais analisados.

Resultados preliminares Para o presente estudo do informante BF53, consideramos apenas os dados fornecidos para as frases com sintagmas nominais finais simples contendo 10 vogais, a saber: ‘O pássaro gosta do pássaro’ (pwp), ‘O Renato gosta do Renato’ (twk) e ‘O bisavô gosta do bisavô’ (kwk), cujas sentenças são compostas sintaticamente de sujeito, verbo e predicado. Todas as frases selecionadas possuem os vocábulos alvos – ‘pássaro’, ‘Renato’ e ‘bisavô’ – tanto em posição inicial da frase, como núcleo do sujeito, quanto em posição final, como núcleo do sintagma nominal final que constitui o predicado. Os gráficos abaixo contém uma comparação entre os parâmetros acústicos das sentenças nas duas modalidades entoacionais (declarativa e interrogativa total) para observar respectivamente em cada um a frequência fundamental (F0), duração e intensidade.

Gráfico 1 — Comparação entre a média de variação de F0 nas sentenças pwp (azul) – O pássaro gosta do pássaro –, twt (laranja) – O Renato gosta do Renato – e kwk (verde) – O bisavô gosta do bisavô – em ambas as modalidades – declarativa (linha plena) e interrogativa (linha tracejada), faladas por um locutor do sexo feminino com Ensino Médio Completo de Mocajuba.

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Contribuições para o Atlas do Projeto Amper-Norte: variedade linguística de Mocajuba (PA)

O gráfico 1 contém as médias de F0 em Hz das sentenças alvo. Observa-se que o movimento de variação de F0 mais importante responsável pela distinção das duas modalidades alvo – declarativa e interrogativa total – ocorre justamente na vogal tônica do núcleo do vocábulo alvo – pássaro, Renato e bisavô –, mais precisamente observa-se um movimento de pinça nas respectivas sílabas tônicas dos vocábulos em análise. Notou-se que em pwp, twt e kwk os movimentos melódicos foram bem parecidos, os quais apresentaram um movimento de pinça, ou seja, movimentos opostos entre a declarativa e interrogativa, isto deve-se ao fato de nas vogais incidir o maior número de variação e portanto a maior significância acústica está centrada nas respectivas sílabas tônicas a saber: “pá-”, “-na-” e “-vô” correspondentes aos vocábulos “pássaro, Renato e bisavô”. Apesar dos enunciados – pwp, twt e kwk – possuírem o núcleo do sujeito e do predicado preenchidos pelo mesmo vocábulo, verifica-se que os movimentos mais importantes de F0 ocorrem no sintagma nominal final correspondente ao predicado. Este resultado assemelha-se com o observado por Santo (2011) para os dados de Cametá; por Cruz e Brito (2012) para os dados da cidade de Belém e; por Lemos (2013) para os dados da cidade de Baião, cujos resultados mostraram ser significativa a variação de F0 na sílaba tônica do sintagma nominal final das frases declarativas e Interrogativas.

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Gráfico 2 — Comparação entre a média de variação de ms nas sentenças pwp (azul) – O pássaro gosta do pássaro –, twt (laranja) – O Renato gosta do Renato – e kwk (verde) – O bisavô gosta do bisavô – em ambas as modalidades – declarativa (coluna plena) e interrogativa (coluna com ranhuras), faladas por um locutor do sexo feminino com Ensino Médio Completo de Mocajuba.

Observa-se no gráfico acima, contendo as médias de ms do parâmetro de duração, que este parâmetro não se mostrou significativa para nossa análise haja vista que os níveis de duração entre as interrogativas e as afirmativas mantiveram-se com elevações parecidas, vale ressaltar que em twt – Renato gosta do Renato – na vogal tônica “a”, do vocábulo Renato a afirmativa mostrou-se um pouco mais longa que a interrogativa, o mesmo aconteceu em kwk, no qual a sílaba tônica “-vô” mostrou-se com uma duração maior na modalidade afirmativa do que na interrogativa. Como o confronto entre as pautas acentuais nos vocábulos não é objeto do presente estudo, deixaremos para explorar esse aspecto futuramente. Os resultados sobre os parâmetros de duração observados em Mocajuba assemelham-se com os observados por Lemos (2013) para os dados da cidade de Baião, em ambos constatou-se que a característica acústica de duração não sofreu variação significativa importante na fala dos informantes analisados. Por outro lado Cruz e Brito (2012), ao analisarem os dados da cidade de Belém, constataram que as medidas de duração das vogais tendem a ser maior na modalidade interrogativa do que na declarativa, principalmente da última vogal tônica do enunciado. 81


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Gráfico 3 — Comparação entre a média de variação de dB nas sentenças pwp (azul) – O pássaro gosta do pássaro –, twt (laranja) – O Renato gosta do Renato – e kwk (verde) – O bisavô gosta do bisavô – em ambas as modalidades – declarativa (coluna plena) e interrogativa (coluna com ranhuras), faladas por um locutor do sexo feminino com Ensino Médio Completo de Mocajuba.

O gráfico correspondente à intensidade nos mostra que esta característica não é relevante para a nossa análise haja vista que as medidas mantiveram-se com mesmo nível em todas as frases pwp, twt e kwk e nas duas modalidades afirmativas e interrogativas. Cruz e Brito (2012), Santo (2011) e Lemos (em andamento) também constataram que o parâmetro acústico de intensidade não foi relevante em suas análises.

Considerações finais Este estudo enquanto parte do projeto Amper-Norte investiga a variação prosódica dialetal do português falado no Município de Mocajuba (PA). A seleção, até o momento, conta com dados de um informante – BF53 – nativo do município de Mocajuba, com idade acima de trinta de anos, a qual realizou seis repetições das 102 frases do corpus AMPER, totalizando 612 frases.

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MARIA SEBASTIANA DA SILVA COSTA E REGINA CÉLIA FERNANDES CRUZ

O material gravado sofreu seis etapas de tratamento a) codificações das repetições; b) isolamento das repetições em arquivos de áudio individuais; c) segmentação vocálica dos sinais selecionados no PRAAT 5.0, cuja a escala de pitch variou de 150 a 350; d) aplicação do scripit praat; e) seleção das três melhores repetições e; f) aplicação do interface Matlab para se obter as médias dos parâmetros das três melhores repetições. Após concluir-se o tratamento dos dados da informante BF53 e já de posse das médias fornecidas pela interface Matlab dos parâmetros acústicos de duração, F0 e intensidade das frases correspondentes aos códigos kwk, pwt e twt, procedeu-se à descrição dos resultados preliminares do presente trabalho. Uma análise preliminar das modalidades oracionais declarativas e interrogativas, considerando os parâmetros acústicos de frequência fundamental, duração e intensidade, tem demonstrado que a F0 é um parâmetro relevante na distinção das duas modalidades alvo. Observou-se um movimento de pinça que marca as curvas melódicas decrescentes para as frases declarativas e crescentes para as frases interrogativas. A duração e a intensidade não se mostraram relevantes no presente estudo.

Referências BARBOSA, Plínio A. Prosódia: uma entrevista com Plínio A. Barbosa. REVEL, V. 8, n. 15, 2010. Disponível em: www.revel.inf.br. Acesso em: 10 jan. 2013. BRITO, Camila. Atlas Prosódico Multimédia do Português do Norte do Brasil – AMPER-POR: variedade linguística da zona rural de Belém (PA), Belém: UFPA/ILC/FALE, 2012 (Iniciação Científica). CAMPOS, Benedita do Socorro. Alteamento das vogais médias pretônicas no português falado em Mocajuba-PA: uma abordagem variacionista. Belém: UFPA/CML, 2008. (Dissertação de Mestrado em Linguística). CARDOSO, Brayna. Atlas Prosódico Multimídia do Português do Norte do Brasil – AMPER – POR: variedade linguística da zona urbana do município de Mocajuba (PA), Belém: UFPA/PPGL, 2013 (artigo para obtenção de nota parcial da disciplina). CASTILHO, Francinete Carvalho. Formação de Corpora para o Atlas Dialetal Prosódico Multimídia do Norte do Brasil: Variedade Linguística de Bragança (PA). Bragança: UFPA/Campus de Bragança/Faculdade de Letras, 2009. (Trabalho de Conclusão de Curso em Letras). COSTA, Maria Sebastiana da Silva. Rotacismo no falar dos analfabetos da zona urbana do município de Mocajuba/Nordeste do Pará: um exercício variacionista. Cametá: UFPA.2007. (Monografia de Graduação). Orientador: RODRIGUES, Doriedson do Socorro.

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Contribuições para o Atlas do Projeto Amper-Norte: variedade linguística de Mocajuba (PA)

CRUZ, Regina et al. Formação e anotação do corpus do Projeto AMPER Norte. In: Proceedings of GSCT 2012, Belo Horizonte, UFMG, fevereiro de 2012, no trelo. FREITAS, João. Atlas Prosódico Multimédia do Município da ilha do Marajó (PA), Belém: UFPA/ILC/CML, (Dissertação de Mestrado). GUIMARÃES, Elizeth. Atlas Prosódico Multimédia da Belém Insular (PA), Belém: UFPA/ILC/CML, (Dissertação de Mestrado). LEMOS, Rosinele. Atlas Prosódico Multimédia do Município de Baião (PA), Belém: UFPA/ILC, CML, em andamento (Dissertação de Mestrado). MARTINS, Delgado Raquel Maria. Introdução a Fonética do Português, Caminho, Lisboa, 1998. REMÉDIOS, Isabel. Atlas Prosódico Multimédia do Município de Abaetetuba (PA), Belém: UFPA/ILC/CML, em andamento (Dissertação de Mestrado). SANTO, Ilma. Atlas Prosódico Multimédia do Município de Cametá (PA), Belém: UFPA/ILC/CML, 2011. (Dissertação de Mestrado). SANTOS JR., Manoel Fonseca dos. Formação de corpora para o Atlas Dialetal Prosódico Multimédia do Norte do Brasil: variedade linguística de Belém. Belém: UFPA/ILC/FALE, 2008. (Trabalho de Conclusão de Curso em Letras). SILVA, Amanda. Atlas prosódico multimédia do Português do Norte do Brasil – AMPER-POR: variedade linguística da zona rural de Belém (PA). Belém: UFPA. 2011. (Plano PIBIC/CNPq). Orientador: Regina Célia Fernandes Cruz.

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TERMINOLOGIA DO ARTESANATO DE MIRITI EM ABAETETUBA (PA) Brayna C. dos Santos Cardoso (PPGL-UFPA)

Introdução A língua é o código pelo qual um povo realiza a comunicação. Partindo deste pressuposto, verificamos que o ato comunicativo se faz de fundamental importância, pois é por meio dele que o homem expressa a sua cultura e interage em sociedade. E esta interação social, criada e reelaborada pelos seres humanos, objetiva atender suas necessidades sociolinguísticas, formando o que denominamos de léxico de uma língua, e este, por sua vez, corresponde ao conjunto de palavras – léxico de uso ordinário pertencente a uma língua natural. Com os avanços tecnológicos na sociedade moderna, verficamos que o universo lexical das línguas expande-se e forma novos domínios lexicais específicos, ou seja, novas lexias são geradas por processos de derivação diversos, neologismos, ou uso de lexias já existentes que tomam um novo sentido etc. Tais domínios específicos ampliam o léxico geral (comum) formando línguas de especialidade que codificam as mais variadas ciências, arte, grupo social ou atividade humana, como a: terminologia da engenharia, terminologia da medicina, terminologia do direito etc. A presente pesquisa tem por foco o levantamento e descrição de um léxico regional (abaetetubense) especializado que codifica a cultura do artesanato de miriti, formado por termos que retratam o processo de produção de objetos artesanais feitos da bucha de miriti1, e que hoje é um destaque sociocultural de Abaetetuba.

1. Termo usado para referenciar a matéria prima utilizada para confeccionar o artesanato de miriti.

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Terminologia do artesanato de miriti em Abaetetuba (PA)

As ciências do léxico: terminologia, lexicologia e socioterminologia Faulstich (1995) postula que as chamadas ciências do léxico, a saber: Terminologia, Lexicologia e Socioterminologia, tem em comum o estudo do léxico de uma língua. A Terminologia estuda as chamadas línguas de especialidade, ou seja, os conjuntos de lexias especializadas que codificam um determinado domínio do conhecimento humano, e seu campo de pesquisa está voltado ao âmbito das profissões. Segundo Biderman (1998), a Terminologia é o estudo de um subconjunto do léxico de uma língua, mais sucintamente, do léxico específico de uma área do conhecimento humano. Estudando um conjunto de signos linguísticos especializados, ou seja, lexias que elevaram-se à categoria de termo. O termo é uma unidade lexical que detêm/evoca um conteúdo conceitual específico dentro de uma determinada área do conhecimento humano, possui uma significação particular (técnico científica) na comunicação entre os indivíduos que compartilham a mesma área de saber. Partindo deste pressuposto, Barros (2004, p. 60), afirma que o estudo da unidade terminológica é feito mediante diversos aspectos; morfossintático, léxico-semântico e semântico-sintático. O terminólogo, ao proceder sua análise terminológica, utiliza-se de dois percursos: o Onomasiológico e o Semasiológico, na perspectiva de Barros (op. cit.) quando [...] o terminológo parte do termo e procede a uma análise de seu conteúdo semântico. Seu percurso é, portanto, o do interpretante, percurso semasiológico. Ao redigir definições, no entanto, parte do significado para chegar a um enunciado (percurso onomasiológico). (p. 67).

Essa inquietação do ser humano em atribuir nomes, conceitos as suas descobertas e inventos é bastante antiga, o homem sente tal necessidade desde o ínicio do mundo e com os avanços científicos e tecnlógicos amplia-se cada vez mais o universo lexical das línguas, ocasionando a formação de outros domínios específicos que apresentam suas especificidades, devido ao contexto sociocultural em que as unidades terminológicas estão inseridas. 86


BRAYNA C. DOS SANTOS CARDOSO

Como disciplina científica, a Terminologia firmou suas bases no século XX, com estudos do austríaco Eugene Wuster, nos anos de 1930, na Alemanha, local em que estabeleceu as bases da chamada Escola Terminológica de Viena, onde posteriormente elaborou a Teoria Geral da Terminologia (TGT). Seu corpus de análise era de língua escrita, correspondente ao dialeto padrão veiculado em obras de origens técnicas e científicas, e deu origem a chamada Terminologia Tradicional pautada em perspectivas normativas e prescritivas, tendo o termo escrito como detentor de um maior prestígio a nível social. Já a Lexicologia é uma ciência que estuda o léxico geral de uma língua, descreve os fenômenos da língua global2, pertencente ao senso comum, é o léxico que todos compartilham,cuja compreensão de seus conceitos e suas designações é algo do saber comum, por não pertencerem tais saberes a nenhum domínio específico. Neste artigo, adotamos a perspectiva teórica de Barros (2004), segundo a qual a unidade padrão de estudo da Lexicologia é a palavra, o vocábulo, a lexia. A autora ressalta, ainda, o fato da Terminologia e da Lexicologia distinguirem-se no nível da unidade lexical, visto que: [...] a Lexicologia estuda a palavra no nível do sistema linguístico (língua global) e a Terminologia a estuda em nível das (s) norma (s) de universos de discursos especializados (línguas de especialidade). (Ibid., p.60).

A Lexicologia apresenta perspectivas de análise e descrição concernentes a classes gramaticais, significados, classificações, composições de palavras, dentre outras que abarcam o repertório geral das palavras que constituem uma língua. Quanto à Socioterminologia, o estudo desta ciência baseia-se em ciências como a Sociolinguística e a Etnografia, tendo como objetivo geral a descrição e classificação de variantes terminológicas – variantes de um termo – que se atualizam em distintas situações sociolinguísticas de uso da língua, e apresentam-se condicionadas a determinados fatores sociolinguísticos que levam em consideração os contextos sociais, situacionais, espaciais e linguísticos onde circulam os termos.

2. Neste artigo utilizamos o termo língua global no mesmo sentido utilizado por Barros (2004), tal termo faz referência ao léxico geral, ou seja, não pertence a nenhum domínio específico (língua de especialidade).

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Terminologia do artesanato de miriti em Abaetetuba (PA)

Na perspectiva da Terminologia Tradicional, a unidade terminológica apresentava um caráter monossêmico: o termo era composto por uma forma linguística e um conceito. Através da releitura dos estudos terminológicos, detectou-se que as línguas de especialidade admitiam o fenômeno de variação linguística podendo produzir termos diferentes para um mesmo conceito (sinonímia), ou mais de um conceito para o mesmo termo (polissemia). No que concerne aos estudos socioterminológicos, Faulstich apresenta tais estudos como uma releitura da Terminologia Tradicional, adotando o modelo teórico proposto por Labov em sua teoria varicionista, trazendo novas proposições referentes ao tipo de corpus a ser analisado, um corpus de língua oral pertencente muitas vezes aos dialetos ditos não-padrão, por meio da classificação de variantes terminológicas, levando em conta fatores linguísticos e extralinguísticos que condicionam a variação terminológica.

Metodologia da pesquisa de campo: coleta de dados, constituição e levantamento do corpus da pesquisa Universo da pesquisa

O presente trabalho apresenta o resultado de uma pesquisa realizada no período de outubro a dezembro de 2011, na Associação dos Artesãos de Miriti de Abaetetuba (ASAMAB) e na Associação Arte em Miriti de Abaetetuba (MIRITONG), localizadas na zona urbana do município de Abaetetuba/PA. A escolha destes espaços se deu em virtude destas associações possuirem um maior destaque na produção e exportação dos artesanatos de miriti do município.

Critérios para seleção dos informantes e estratificação social dos informantes Na realização deste trabalho foram feitas 10 (dez) entrevistas com 10 (dez) informantes que apresentavam as seguintes características socioculturais:

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BRAYNA C. DOS SANTOS CARDOSO

• Trabalhar com os artesanatos de miriti com um tempo mínimo de trabalho de 5 (cinco) anos; • Ser do sexo masculino ou feminino; • Ter idade entre 18 (dezoito) e 60 (sessenta) anos; • Possuir escolaridade de 1º grau ou 2º grau (completo ou incompleto); • Ser natural de Abaetetuba e pertencer à comunidade de artesãos pesquisada.

Assim, temos a seguinte estratificação social apresentada na tabela a seguir. ARTESÃO

SEXO

ESCOLARIDADE

FAIXA ETÁRIA

1

M

1º GRAU (Completo ou Incompleto)

18 a 35 anos

2

F

1º GRAU (Completo ou Incompleto)

18 a 35 anos

3

M

1º GRAU (Completo ou Incompleto)

36 a 60 anos

4

F

1º GRAU (Completo ou Incompleto)

36 a 60 anos

5

M

2º GRAU (Completo ou Incompleto)

18 a 35 anos

6

F

2º GRAU (Completo ou Incompleto)

18 a 35 anos

7

M

2º GRAU (Completo ou Incompleto)

36 a 60 anos

8

F

2º GRAU (Completo ou Incompleto)

36 a 60 anos

9

M

1º GRAU (Completo ou Incompleto)

Mais de 60 anos

10

F

1º GRAU (Completo ou Incompleto)

Mais de 60 anos

Levantamento do corpus da pesquisa O corpus da pesquisa é de natureza oral (língua falada), diferindo totalmente das premissas teóricas pela Terminologia Tradicional que prestigiava o modelo normativo (prescritivo) de análise de língua, prestigiando os termos oriundos do dialeto padrão (de prestígio) de uma língua. Neste contexto, a norma padrão era vista como detentora de um valor mais elevado a nível social enquanto que a língua falada era considerada de menor prestígio social.

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Terminologia do artesanato de miriti em Abaetetuba (PA)

Neste trabalho foram escolhidos 10 (dez) informantes, aos quais foram aplicados individualmente, um questionário Semântico-Lexical (QSL), seguindo a metodologia adotada pelo Projeto ALIPA/ALIB, com adaptações concernentes a Terminologia em análise (Terminologia do Miriti); uma ficha sociolinguística com o intuito de conhecer o perfil social de cada informante, a citar: idade, sexo, escolaridade, local de origem; gravações digitais em MP3 das narrativas orais (discurso) dos informantes para realizar um levantamento de termos correntes do universo linguístico desta cultura e transcrições grafemáticas, com o intuito de obter o registro dos termos, possiblitando assim, a realização de uma análise descritiva dos variados aspectos da linguagem especializada dos artesãos de miriti.

Análise e interpretação dos dados: aspectos que constituem os termos da Terminologia do Miriti Processos Morfossintáticos formadores dos termos da Terminologia do Miriti Com base nas análises morfossintáticas de Basílio(1991), Carone (1994) e Macambira (1987), apresentaremos uma análise dos processos morfossintáticos mais recorrentes na formação dos termos da Terminologia do Miriti, verificando as características presentes nas formações lexicais desta língua de especialidade. Seguindo a perspectiva de Basílio (1991), as palavras são utilizadas automaticamente sem uma reflexão acerca delas por parte do falante, é por isso que não nos damos conta quando formamos enunciados que não estavam disponíveis para uso e foram formados por nós mesmos, fruto de uma necessidade comunicativa. A estruturação dos termos que compõem a terminologia em análise seguem as regras de formação de vocábulos da língua portuguesa, sendo os processos mais recorrentes a derivação e a composição, todavia, formam-se vocábulos, também, pelo processo de hibridismo, abreviação e sigla. Carone (1994), afirma que a palavra é composta por unidades mórficas dotadas de significado que, ampliam o léxico através do empréstimo de palavras de outras línguas ou de recursos internos ao sistema linguístico ocasionando na formação de novas palavras. 90


BRAYNA C. DOS SANTOS CARDOSO

Na concepção de Macambira (1987), as palavras estão distribuídas em diversas classes que obedecem a critérios inerentes a forma, função e sentido; em língua portuguesa o processo mais produtivo que atua na formação das palavras é o processo derivacional. Ao analisar os dados constatamos que a formação dos termos da Terminologia do Miriti obedece aos mesmos critérios de formação das palavras do léxico geral da língua portuguesa. O processo de derivação prefixal realiza-se sobre apenas um radical, ao qual se articulam formas presas em posição anterior (prefixos) formando uma outra palavra, sendo assim, verificou-se uma pequena ocorrência deste processo nos termos da pesquisa, apresentando apenas, os seguintes morfemas: en- e re-, visulizados nos seguintes exemplos, entalhe, entalhar, retira. Já o processo de derivação sufixal, formador de novas palavras por articular formas presas em posição posterior (sufixos) a uma base ou radical, é bastante frequente no corpus da pesquisa, os sufixos mais recorrentes são: -ado, -ção, -agem, -inho/ -inha, formadores de substantivos e adjetivos relacionados a ações e processos da terminologia do miriti, a citar: coletado, lixado, tirado, molhado, aproveitado, beneficiado, embalado, recomendado, reciclado, produção, amolação, decoração, imperfeição, exposição, lixação, fixação, aplicação, montagem, lixagem, selagem, modelagem, secagem, embalagem, curtinho, branquinho, sequinho, ribeirinho, passarinho, barquinho, cobrinha, pombinha, caixinha, sacolinha. Vale ressaltar que, há também, o aparecimento de outros sufixos como: -dor, -mento, -ejo, -ura, -al, -oso, -ia, -dade, -ato, -ante, -ão, -ente, -eira/ -eiro, pouco frequentes nos dados coletados, a saber: idealizador, acabamento, lixamento, manejo, estrutura, pintura, escultura, tradicional, festival, miritizal, poroso, referência, entidade, artesanato, ajudante, ambulante, artesão, região, presidente, palmeira, miritizeiro, girandeiro. Quanto ao processo de derivação prefixal e sufixal, este ocorre através da junção simultânea do prefixo e sufixo ao radical formando palavras que apresentam sentido completo, mesmo com a retirada de um dos afixos.Na análise dos dados os termos são encontrados nos prefixos, re-, des- e nos sufixos, -ado, -mento, formadores dos seguintes exemplos: retirado e desenvolvimento.

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No que concerne ao processo de derivação parassintética, ou seja, na adição simultânea de prefixo e sufixo a uma base para a formação de uma palavra, encontramos apenas uma ocorrência, constituída do prefixo ex- e do sufixo -ista, formando o termo extrativista. No que compete ao processo de derivação regressiva, este forma uma nova palavra através da supressão de um elemento, é retirada uma parte da palavra derivante, para assim, formar uma nova palavra. No que consiste aos termos coletados, verificamos que este processo apresenta os seguintes exemplos: corte, poda, entalhe, talha, encaixe, molde. O processo de composição consiste em formar uma nova palavra através da junção de dois ou mais radicais; Carone (2004) pontua que, o composto de uma nova palavra incorpora-se ao léxico de uma língua formando um sintagma bloqueado, o qual apresenta-se de dois tipos, justaposto conservando sua unidade vocabular ou aglutinado unindo os elementos em um só vocábulo. Nos dados verificados encontramos termos pouco frequentes nesse processo, na composição por justaposição temos como exemplo, soca-soca, pila-pila, corró-corró e por aglutinação temos o termo Miritong. Detectamos também, a formação de termos por sigla, abreviação e hibridismo, respectivamente, recorrentes nos seguintes exemplos: ASAMAB (Associação dos Artesãos de Miriti de Abaetetuba), logo substituindo o termo logomarca e miritifest. O termo miritifest é composto por duas palavras, a palavra miriti proveniente da língua portuguesa e fest de origem inglesa. Através da análise podemos constatar que a Terminologia do Miriti segue os mesmos processos de formação das palavras do léxico geral da língua portuguesa, os termos mais recorrentes formaram-se a partir de verbos e da nominalização destes, formando substantivos. Tais termos designam nomes de sujeitos agentes, objetos e ações que competem a terminologia em questão, sendo assim, o processo que apresentou-se de maneira mais significativa, dentre os expostos no corpus da pesquisa, é o processo de derivação sufixal. Também encontramos termos que não apresentaram afixos, tais como: pecíolo, bucha, talo e braço.Sendo assim,verficamos que os termos encontrados, com exceção dos termos formados por composição por justaposição são ter92


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mos simples, pois segundo Barros (2004) constituem-se de único radical, com ou sem afixos.

Estruturação dos sintagmas terminológicos Barros (op. cit., p. 100) assinala que a estrutura morfossintática e léxico-semântica do termo pode constituir-se de uma sequência lexemática formando o termo complexo, constituído de dois ou mais radicais, acrescido de outros elementos como os afixos, pertencendo a classes de palavras diversas, tais como: substantivo, adjetivo, verbo, advérbio etc. Os estudos na área da Terminologia demonstram que os termos sintagmáticos – sintagmas terminológicos3 – apresentam-se com maior produtividade nas línguas de especialidades, e o mesmo ocorre na Terminologia do Miriti, que apresenta um corpus estruturado com um elevado número de termos complexos. Estes sintagmas terminológicos (doravante S.T.) tendem a seguir as seguintes estruturas: substantivo + preposição + substantivo, substantivo + adjetivo, verbo + artigo + substantivo + adjetivo, substantivo + advérbio + adjetivo, numeral + preposição + substantivo, verbo + preposição + substantivo + adjetivo, substantivo + preposição + substantivo + adjetivo, substantivo + adjetivo + preposição + substantivo. a) S. T substantivo + preposição + substantivo: isopor da amazônia, folha do miritizeiro, artesãos de/do miriti, embalagem de miriti, técnicas de secagem, brinquedo de miriti, cabo da folha, grelo da folha, árvore de miriti, caixa de miriti, Feira do Círio, Fábrica de Sonhos, braço de/do miriti, bucha de/do miriti, talo da folha, miriti com manchas, papel de miriti, estrutura de miriti, Feira do Artesanato, decoração de miriti, história do miriti, montagem das peças, idealizador da Miritong, logo da Miritong, introdução do designer, adaptações de peças, artesanato de miriti, tradicional do círio, resíduos de miriti, casca do miriti, polpa do miriti, coleta do miriti, central de artesanato, haste da folha, artesão de acabamento, diretor de produção, referência do espaço, Festival do miriti, folha do miriti, artesão de corte, Associação dos Artesãos, braço da palmeira, venda por encomenda, ateliê de miriti, 3. A essas unidades terminológicas constituídas por diversos lexemas são atribuídas várias designações, tais como, termos complexos, termos sintagmáticos, termos-sintagmas e sintagmas terminológicos.

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Terminologia do artesanato de miriti em Abaetetuba (PA)

artesã de miriti, acabamento do brinquedo, palmeira de miriti, sobra da bucha, bijuteria de miriti, arte do miriti, fibra do miriti, corte do miriti, homem do brinquedo, espaço de comercilização, venda em feiras, meio do miriti, centro do miriti, subproduto da cestaria. b) S.T. substantivo + adjetivo + adjetivo: mestre artesão, tradição cultural genuína, isopor natural, venda ambulante, árvore santa, miriti maduro, miriti beneficiado, miriti escuro, miriti fofo, miriti poroso, brinquedo tradicional, folhas maduras, miriti verde, miriti seco, miriti molhado, processo artesanal, arte popular, fibras consistentes, retoques finais, braços maduros, folhas compridas, brinquedos decorativos, brinquedo popular, arte ribeirinha, material seco, estrutura oca. c) S.T. verbo + artigo + substantivo + adjetivo: cortar o miriti seco, escolher o miriti, coletar o miriti, moldar as peças, fazer a modelagem, talhar o miriti, talhar o brinquedo, fazer o corte, faz a escultura, unir a bucha, fazer a selagem, fazer o lixamento, faz a pintura, jogar a tinta, cerrar as placas, tirar a imperfeição, fazer a comercialização. d)S.T. substantivo + advérbio + adjetivo: Ex.: braço bem curtinho, braço mais comprido, artesão mais velho, miriti bem branquinho, miriti bem sequinho. e) S.T. numeral + preposição + substantivo: Ex.: uma semana de secagem, vinte dias de secagem, cento de miriti, milheiros de miriti. f) S.T. verbo + preposição + substantivo + adjetivo: Ex.: talhar na medida certa, vender no ponto. g) S.T. substantivo + preposição + substantivo + adjetivo: Ex.: lixação com lixa grossa, lixação com lixa fina, Programa de Artesanato Brasileiro, peças em tamanho real. h) S.T. substantivo + adjetivo + preposição + substantivo: Ex.: manejo sustentável do miriti, brinquedos tradicionais do círio, papel reciclado de miriti, espaço cultural do miriti.

Analisando a Terminologia do Miriti podemos verificar que os sintagmas com maiores índices de ocorrência foram os compostos por substantivo + preposição + substantivo, substantivo + adjetivo + adjetivo e verbo + artigo + substantivo + adjetivo. Constatou-se que as construções morfossintáticas que apresentaram maior frequência foram as de base nominal, as quais ocupam um lugar de destaque nos estudos em línguas de especialidade segundo a autora Barros (2004). Esta teórica ressalta também, que a classe dos substantivos são unidades semânticas básicas da língua que vivem em constante renovação.

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Os termos que compõem o corpus da pesquisa possuem um caráter multidisciplinar em Terminologia, para Barros (op. cit.) podem ser: próprio do domínio em análise, ou seja, exclusivo da terminologia analisada, no caso desta pesquisa termos pertencentes ao domínio da Terminologia do Miriti; emprestado de um domínio, pertence mais especificamente a um outro domínio e utilizado igualmente no domínio em estudo, apresentando traços semânticos distintos e o termo que ultrapassa o domínio, termos utilizados por vários domínios sem pertencer particularmente a um único.

Variantes terminológicas Faulstich (1995, p. 285) pontua que as variantes terminológicas resultam dos diferentes usos que uma comunidade faz do termo levando em consideração a diversidade social, linguística e geográfica onde estes circulam. Para a autora as variantes mais comuns em língua de especialidade são: variante lexical, variante morfossintática, variante gráfica, variante socioprofissional, variante topoletal ou geográfica. Adotando o modelo de classificação proposto por Faulstich (op.cit.), a Terminologia do Miriti apresenta as seguintes variantes terminológicas: • Variantes lexicais: são itens lexicais em que estes ou parte destes podem ser comutados sem que o significado terminológico seja alterado. Ex.: miriti ~ braço ~ talo ~ bucha, entalhar ~ cortar ~ esculpir. • Variantes morfossintáticas: nestes termos os conceitos não se alteram quando há alternância de elementos gramaticais. Esta variante ocorre, principalmente, nos sintagmas terminológicos. Como exemplo temos: miriti ~ braço de miriti ~ braço do miriti ~ bucha de miriti ~ bucha do miriti, talo da folha ~ cabo da folha, folha do miriti ~ folha do miritizeiro, meio do miriti ~ centro do miriti, isopor da amazônia ~ isopor natural, artesão ~ artesãos de miriti ~ artesãos do miriti ~ artesão de brinquedo de miriti ~ artesão do brinquedo de miriti, miritifest ~ festival do miriti, talhar o miriti ~ talhar o brinquedo, fazer o corte ~ cortar as peças, moldar (as peças) ~ fazer a modelagem, fazer o lixamento ~ fazer a lixagem, artesão de escultura ~ artesão que faz escultura, artesão de entalho ~ artesão de entalhe, tradicionais ~ brinquedos tradicionais ~ brinquedos tradicionais do círio ~ brinquedo popular ~ populares, peças de miriti ~ brinquedo de miriti ~

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Terminologia do artesanato de miriti em Abaetetuba (PA)

artesanato de miriti, decorativo ~ brinquedo decorativo, utilitário ~ brinquedo utilitário, resíduos de miriti ~ sobras de miriti, ASAMAB ~ Sede da Associação dos Artesãos ~ Associação dos Artesãos, Miritong ~ Fábrica de Sonhos ~ Ateliê Fábrica de Sonhos, miriti beneficiado ~ matéria prima beneficiada, emassar ~ jogar a massa ~ corrigir com massa.

Ao analisar a Terminologia do Miriti detectamos o uso de diferentes termos para nomear o mesmo conceito (sinonímia), em língua de especialidade esse processo é bastante ocorrente, o termo sinônimo mantêm o sentido intacto de um termo para outro abarcando suas características sociolinguísticas, enquanto que em língua comum, o sinônimo apresenta apenas nuance de sentido. Baseandose no modelo proposto por Pontes (1982), verificamos que os sinônimos formais compõem a Terminologia do Miriti por constituirem formas que ao serem substituídas não alteram o seu significado em um mesmo contexto de fala.

Considerações finais O trabalho intulado Terminologia do Artesanato de Miriti em Abaetetuba – PA, apresenta uma descrição do léxico específico dos artesãos de miriti abaetetubenses com um enfoque nos aspectos morfossintáticos mais recorrentes na formação dos termos. A documentação deste ofício tenta descrever a linguagem de especialidade retratada nos discursos informantes que trabalham com a produção e comercialização dos artesanatos de miriti nas associações ASAMAB e Miritong. A pesquisa demonstra lexias especializadas que fazem referência a nomes de sujeitos agentes, objetos e ações que designam a Terminologia do Miriti. Desta forma, o objetivo principal deste trabalho é descrever o léxico específico do discurso oral dos artesãos, visto que, a atividade é feita de forma artesanal e os conhecimentos apreendidos na prática, sendo repassados oralmente de pai para filho, e assim perpetuados de geração a geração. Também, divulgar aos acadêmicos da área e as pessoas que detenham interesse, os estudos terminológicos.

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BRAYNA C. DOS SANTOS CARDOSO

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SABERES QUE CURAM: UMA INCURSÃO SOBRE A TRADUÇÃO DOS NOMES DE PLANTAS NA REGIÃO BRAGANTINA Márcia Saviczki Pinho (PPGLS-UFPA)

Introdução O costume e hábito de tomar um chá ou cultivar plantas medicinais com o objetivo de curar algum mal físico não é novidade em nossa cultura brasileira. No entanto, este conhecimento que já se disseminou em nosso território tem muita riqueza de saberes seculares embutidos nestas práticas, heranças de populações tradicionais, que ainda não foram estudados. Martins et. al. (2005), define plantas medicinais como “toda e qualquer planta que atue de maneira benéfica no combate ou minimização de qualquer malefício no organismo humano (apud. BARLEMET et alli, 1995)” Baseado em levantamentos realizados em uma prévia pesquisa, observou-se que a localidade da Vila-que-Era, considerada o berço da cidade de BragançaPA, possui características historicamente marcantes de preservação da cultura de cultivo e uso de plantas medicinais que nos possibilitam compreender de que modo são intercambiados os conhecimentos em torno delas, ou seja, os saberes tradicionais imbricados no léxico específico dessas plantas na região bragantina (PA), tanto em relação ao poder de cura, como de sua identificação e transmissão desses conhecimentos pelas comunidades da região. Convém esclarecer que o presente artigo tem o propósito de apresentar uma pesquisa que ainda não está concluída e que, portanto, ainda está no nível de proposição. A pesquisa proposta parte, assim, das seguintes hipóteses: há um léxico específico das plantas medicinais nos falares populares da região Bragantina (PA) que envolvem conhecimentos tradicionais em relação ao poder de cura das plantas medicinais; a terminologia das plantas medicinais, na região Bragantina (PA) é um reflexo da cultura local e regional; os termos que geraram denomi-

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Saberes que curam: uma incursão sobre a tradução dos nomes de plantas na região bragantina

nações para as espécies vegetais são motivados pelas necessidades de referência dessas espécies com a função que elas exercem no campo da cura; há um trabalho de adaptação das palavras no repasse desses conhecimentos aos mais jovens da sociedade, como forma de facilitar esse intercâmbio; os mais antigos membros desta sociedade formulam estratégias para repassar esses conhecimentos. Silva (2002) afirma, com base em teóricos da área deste estudo que, devido à extensão territorial da Amazônia, não se pode precisar em números concretos as espécies de plantas na região, permitindo, apenas, que se tenha estimativas do potencial botânico. Ressalta, ainda, a preocupação em relação à urgência desses registros, bem como do registro de aspectos culturais na arte da cura (MORS, 1982 apud SILVA, 2002), antes que desapareçam com os interesses econômicos de empresas farmacêuticas na região.

Plantas medicinais: tradução e terminologia As populações residentes em áreas rurais, denominadas tradicionais, devido ao fato de preservarem muitos conhecimentos adquiridos ao longo dos tempos através de experimentações intuitivas ou empíricas repassadas oralmente de geração a geração, possuem, de fato, variados conhecimentos específicos, tanto do mundo natural, como o poder de cura das plantas, como do sobrenatural, caracterizado em saberes tradicionais (MIRANDA & JORDÃO, 2005, apud GALLOIS, 2000). Segundo Lévi-Strauss (1989), a proximidade e intimidade com o universo das plantas possibilitou aos povos ditos primitivos ou tradicionais identificar inúmeras espécies e gêneros de vegetais com suas devidas seleções das que não serviam e das que serviam para uso, principalmente as que são de utilidada na arte da cura (MORS, 1982 apud SILVA, 2002), assim como possibilitou aproveitar os princípios ativos existentes nestes vegetais, suas finalidades e detalhes de uso, como o reconhecimento do habitat e época adequada da colheita de certas espécies, além do conhecimento a respeito das partes adequadas para determinadas doenças e seus processos de preparo.

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Conforme Lima (2009), as mudanças e variações desses conhecimentos estão relacionadas às diferenças de intensidade do contato com a natureza e à maneira de manipulá-la nos diferentes grupos sociais que variam de um local para outro devido às características naturais e sociais das regiões. Os detalhes desses conhecimentos estão embutidos nos termos específicos da língua de uma dada região ou localidade, em razão de os membros da cultura em questão denominarem os objetos, neste contexto, as plantas, de acordo com suas funções e finalidades. O estudo científico dos termos específicos das línguas e dos princípios gerais e mecanismos de sua estruturação ficam a encargo da Terminologia que, iniciada por Wuster, teve seu desenvolvimento sob várias óticas, tornando-se difícil, até certo ponto, a unicidade conceitual. Para uns trata-se de um “conjunto de termos de um determinado domínio”; para outros “visa descrever as unidades terminológicas”; e, por fim, destaca-se a seguinte questão para alguns estudiosos a Terminologia é uma ciência e para outros é uma disciplina científica. O estudo das unidades terminológicas denota não só as análises das características linguísticas, como também as extralinguísticas envolvidas na comunicação das relações humanas no âmbito das especialidades. Elas são, segundo Krieger e Finatto (2004), “simultaneamente, elemento constitutivo da produção do saber, quanto componente linguístico, cujas propriedades favorecem a univocidade da comunicação especializada”. É importante esclarecer que, neste sentido, termos “são signos que encontram sua funcionalidade nas linguagens de especialidades, de acordo com a dinâmica das línguas: são entidades variantes, porque fazem parte de situações comunicativas distintas” (FAULSTICH, 1998, p. 62). Barros (2004, p. 40) afirma que termo “é uma unidade lexical com conteúdo específico de um domínio específico”. O homem, por conseguinte, repassa toda sua bagagem de conhecimentos, compactada nos termos específicos, através da linguagem e as culturas tradicionais fazem uso da linguagem oral para esse fim. Assim, Freitas (2006), ao estudar a comunidade de Enfarrusca Bragança-PA aponta, através de afirmações de seus informantes, que os conhecimentos sobre o uso de plantas utilizadas como re101


Saberes que curam: uma incursão sobre a tradução dos nomes de plantas na região bragantina

médios são transmitidos, principalmente, através dos pais para seus filhos, assim como para vizinhos, amigos e a quem necessite do medicamento tradicional. Para Faulhaber (2008), o trabalho do pesquisador, neste contexto, de conhecer a intimidade da cultura do outro, seu modo de pensar, de agir na ciência empírica, enfim, seus mecanismos de organização interna, para decifrá-lo e expressá-lo em conhecimento científico, em uma busca constante de harmonizar as diferentes lógicas do modo de pensar, a partir de uma constante busca de aproximação de esferas de conhecimentos, consiste no trabalho de tradução, na visão antropológica. Desse modo, ao situarmos o papel da tradução, leva-se em conta o que Geertz (2009) caracteriza como uma tentativa de decifração do sentido através da procura de aproximações, tanto em culturas de línguas diferentes como em uma mesma língua em diferentes culturas, entendida como um conjunto de sistemas simbólicos, em que a linguagem tem uma ligação estreita neste sistema, ou seja, uma ciência interpretativa, em busca do significado (GEERTZ, 2009). Esse enfoque antropológico contribui para a realização deste trabalho, no sentido de compreender o significado na construção do conceito de um dado termo; no entanto, o foco central é a Terminologia e a tradução, que se constituem em dois campos de práticas e de conhecimento, cujas identidades e propósitos específicos se confundem e em que tampouco as competências profissionais se equivalem, expressando cada uma, respectivamente, no fazer terminológico e no fazer tradutório, que ora se cruzam, ora se entrecruzam nos caminhos da construção de conhecimento. Krieger afirma que “se, muito sucintamente, é possível definir a tradução como um campo de práticas, de reflexão e de teorias voltados ao complexo processo tradutório, a Terminologia, por sua vez, também constitui um campo de estudos e de práticas”, tendo esta o termo específico como foco central. No processo de tradução, portanto, a Terminologia funciona como base de apoio, contribuindo com esclarecimentos teóricos linguísticos fundamentais para a elaboração de produtos terminográficos. Para Krieger e Finatto (2004, p.70): “a maior colaboração que a disciplina terminológica pode oferecer aos tradutores é a de auxiliá-los a compreender a natureza, o estatuto, a constituição e o funcionamento dos termos técnico-científicos”. 102


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No fazer tradutório, o tradutor tem um papel de suma importância. Para Krieger e Finatto (2004, p. 68) “ao tradutor interessa um manejo terminológico competente, expresso pela adequada seleção, na língua de trabalho, dos termos equivalentes àqueles utilizados pelos especialistas na língua original”. Para isso, é necessário que tal profissional conheça e acesse repertórios terminológicos utilizados nas comunicações especializadas, tanto nas relações culturais interlínguas como monolíngues. Portanto, segundo Krieger, ainda, “fazer terminologia e fazer tradução são atividades que não se equivalem, lembrando-se de que o tratamento aplicado dos termos técnico-científicos pode se fazer apenas sob o enfoque monolíngue”; como é o enfoque deste trabalho.

Levantamento dos dados Para levantamento dos dados a serem analisados serão seguidos os passos de Freitas (2005), fundamentado teoricamente em Lakatos (1991). Dessa forma ocorrerão visitas aos quintais das famílias, tanto daquelas selecionadas previamente, quanto de outras, descobertas no percurso da pesquisa. Como método de pesquisa utilizaremos a observação direta intensiva, por meio da técnica de dois tipos de entrevista: a padronizada e a estruturada. O primeiro modelo será utilizado para traçar o perfil do entrevistado e para levantar dados etnobotânicos; o segundo servirá para recolher o conhecimento popular em relação à prática de cura através das plantas medicinais, assim como para conhecer o trabalho e estratégias de transmissão desses conhecimentos, dando enfoque à subclassificação de entrevista não dirigida. Serão utilizadas como ferramenta de suporte equipamentos de áudio-visual para registro e coleta de dados. Os conhecimentos aqui levantados, registrados e analisados serão armazenados em um banco de dados para consubstanciar a construção de novos conhecimentos científicos sobre a região Bragantina (PA), especialmente no que diz respeito aos conhecimentos tradicionais imbricados na formação de seus léxicos especializados, a fim de desvendar fontes de práticas populares que envolvem saberes nessa região. 103


Saberes que curam: uma incursão sobre a tradução dos nomes de plantas na região bragantina

Conclusão A pesquisa aqui apresentada, portanto, favorecerá a tradução dos conhecimentos tradicionais referentes às plantas medicinais na região bragantina para o mundo acadêmico, com a intenção de registrá-los, em banco de dados, para que estes não se percam devido às grandes transformações que a sociedade atravessa, além de possibilitar que outras gerações e grupos sociais tenham acesso a essa ciência. Além, é claro, de contribuir com a linha de pesquisa Leitura e Tradução Cultural por meio da produção de material para consubstanciar a construção de novos conhecimentos científicos sobre a região Bragantina (PA), especialmente no que diz respeito aos conhecimentos tradicionais imbricados na formação de seus léxicos especializados, pois estes envolvem saberes.

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AS OCORRÊNCIAS DE /s/ E /S/ NO FALAR BRAGANTINO: A PARTIR DE CONSIDERAÇÕES HISTÓRICO-CULTURAIS Fernanda Analena Ferreira Borges da Costa (PPGL-UFPA)

Introdução É na língua que se percebe a cultura de um povo, Esta traduz idéias, identifica, produz interação, “monta e remonta” o seu falante. O fato é que a todo instante, utilizamos a língua de acordo com uma tradição que nos foi transmitida, embora nós também contribuamos para sua renovação e constante transformação. O Estado do Pará apresenta a maior população dentre os estados da região norte, distribuída por 144 municípios, além de uma interessante história de imigrações européias, nordestinas, entre outras. Por assim dizer, no que se refere à língua e suas variações, o interesse por um estudo sobre variação fonética não só ampliará a descrição cultural do nosso estado, como possibilitará a valorização das ocorrências linguísticas demarcadas em nossas “falas” que convivem e se misturam, traduzindo nossa sociedade. Esse estudo se propõe observar a fala no município de Bragança, principalmente ao relacioná-la aos sons da fala de Belém, capital do estado do Pará. O foco está sobre a realização da variável /s/ pós-vocálico, tanto em posição silábica inicial, como medial e final. Tal interesse suscitou questionamentos a respeito das variedades linguísticas contidas nesse falar local, especificamente os seguintes: essas diferenças fonéticas se dão desde a fundação dessas cidades, a saber, as cidades de Bragança e Belém? Por que há essa articulação fonética diferenciada em localidades relativamente próximas? Há fatores linguísticos e extralinguísticos influenciando o processo de variação? A variação pode estar relacionada ao processo histórico e

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As ocorrências de /s/ E /S/ no falar bragantino: a partir de considerações histórico-culturais

cultural de fundação e desenvolvimento social de cada uma delas, inevitavelmente, refletidos sobre a língua? Ao trabalhar com a variação linguística, objetivo estudar e esclarecer tais questionamentos por meio de investigação científica, de modo a contribuir com os estudos feitos na área da variação fonética, bem como com todos os que se voltam para a heterogeneidade linguística que é o interesse basilar desta pesquisa. Alguns componentes das línguas constituem-se em variáveis que oferecem mais possibilidades de variação, como é o caso do /s/ em posição pós-vocálica; podendo ser constatada em estudos anteriores, como os de CARVALHO1 (2000) e MARTINS2 (2003). Assim, a posição que a fricativa alveolar ocupa dentro da palavra (onset ou coda, no início, no meio ou no final) constitui-se num aspecto extremamente relevante para o estudo desse fenômeno, por resultar em uma gama de variantes que ora são atribuídas a condicionamentos linguísticos, ora a condicionamentos não linguísticos. A pesquisa bibliográfica está respaldada nas leituras de Labov (1972), Cardoso (2010), Brandão (1991), Bagno (2001), Fiorin (2011), Silva (2009); além de Lindanor Celina (1997) e Nonato da Silva (2006), as quais possibilitaram o reconhecimento da bragantinidade3. Certa dose de subjetividade na bibliografia desta pesquisa se justifica por entendermos que “não pode o linguista ignorar a literatura, pois ela é a arte que expressa pela palavra e nela condensam-se as maneiras de ver, de pensar e de sentir de uma dada formação social numa determinada época4”. Para Fiorin (2011), ao considerar a relação de interdependência entre língua e fala no contexto da mudança linguística, é importante atenção para o seguinte: podemos pensar em inovações que ocorrem na fala e que, com o passar do tempo, acabam sendo incorporadas ao sistema.

1. CARVALHO, Rosana Siqueira de. Variação do /s/ pós-vocálico na fala de Belém. 2000. 112f. Dissertação (mestrado em Linguística)Universidade federal do Pará. 2. MARTINS, Arlon. A pronúncia do fonema /s/ pós-vocálico no português do município de Bragança-Pa. In: RAZKY, Abdelhak (Org.). Estudos Geo-Sociolinguísticos no Estado do Pará. Belém, 2003. 3. Termo usado por Jorge Ramos (1927-1981), escritor bragantino, em suas obras poéticas. 4. Ver em FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à Linguística: objetos teóricos. 6 ed. – São Paulo: Contexto, 2011.

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FERNANDA ANALENA FERREIRA BORGES DA COSTA

Não pretendo aqui esgotar este tema, mas sim demonstrar alguns elementos e levantar alguns pontos que sirvam como subsídios para futuros debates e pesquisas linguísticas voltadas para a variação linguística, por assim dizer, objetivando deixar estas discussões mais ricas e menos complexas.

Apresentação do município de Bragança Atualmente Bragança tem uma área de 2.090,234 km² e situa-se na mesorregião do Leste Paraense e microrregião Bragantina que está localizada na parte central do litoral nordeste paraense, composta por 13 municípios, sendo este município o maior. Limita-se ao Norte com o Oceano Atlântico; ao Sul com os municípios de Santa Luzia do Pará e Viseu; a Leste pelo município de Augusto Corrêa e a Oeste pelos municípios de Tracuateua e Capanema. Segundo o IBGE, no censo de 2010, a população era de 113.863 habitantes.

Das migrações: um falar todo bragantino Ao longo da história o processo de colonização foi o sistema em que os humanos ocupavam o espaço e se espalhavam pelo mundo. Neste processo há um choque de culturas entre os habitantes locais e os imigrantes que chegam. Por esse processo é que se desenvolveram vários países fazendo com que as regiões colonizadas criassem identidades próprias [como a variação na fala]. O processo de colonização de uma região tem extrema importância para se conseguir entender como se desenvolveu certo local, entender os motivos dos acontecimentos que hoje ocorrem neste local e no entorno deste5.

A vila de Belém e a vila de Souza do Caeté – atual Bragança – foram duas das mais importantes áreas de ocupação da Amazônia ainda na primeira metade do século XVII. Nas décadas seguintes à instalação das vilas, Belém teria maior desenvolvimento, sobretudo por polarizar as expedições de conquista pelo rio Amazonas. O isolamento da Vila de Souza do Caeté faria tal povoamento passar por tempos de grandes dificuldades. 5. NÚCLEO DE ALTOS ESTUDOS AMAZÔNICOS (NAEA). Seminário Internacional – Amazônia e Fronteiras do Conhecimento. Universidade Federal do Pará, Belém, 2008.

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As ocorrências de /s/ E /S/ no falar bragantino: a partir de considerações histórico-culturais

As flutuações populacionais na microrregião Bragantina, entre a instalação da Vila de Souza do Caeté e o início efetivo da colonização até esta tornar-se cidade e receber os primeiros escravos negros e imigrantes açorianos, estavam relacionadas à falta de assistência e isolamento da capital Belém, que só seria resolvido a partir do final do século XIX com a abertura de um caminho por terra: a Estrada de Ferro de Bragança. Nos anos que vão de 1850 a 1930 presenciou-se a chegada de emigrantes espanhóis legais e até ilegais na Amazônia brasileira, por um período de dez anos, principalmente no início do século XX; eram muitos andaluzes e, principalmente, galegos. O governo paraense nos anos de 1880, preocupado com a forte migração para Belém, adotou “medidas de combate à migração”, principalmente por conta de perceber que havia uma entrada, não só de estrangeiros, mas também de imigrantes oriundos de outras regiões do país, como é o caso dos nordestinos, tudo em razão da riqueza gerada pelo boom da borracha. O Pará nos anos de 1900 já apresentava um número de 96.560 imigrantes só na capital paraense. Como na capital do estado do Pará não foi permitida a permanência desses imigrantes no período citado, a única opção era “expulsá-los” para os interiores do estado, para as colônias agrícolas existentes, fato que ocorreu, sendo Bragança um dos interiores que recebeu imigrantes do nordeste do país. Sendo assim, tal medida política nos possibilita deduzir a evidente herança cultural dos imigrantes nordestinos na constituição de Bragança, como no caso da língua e sua variedade dialetal aqui estudada. Entre os principais núcleos coloniais considerados “legais” pelo governo brasileiro estava o de Benjamim Constant. Além dos imigrantes nordestinos, sabe-se, também, que muitos imigrantes espanhóis representaram o sucesso para a região. A exemplo destacam-se as famílias Lhamas Veiga, Castanho Gardunho, Garcia Castanho, Rodriguez, Turiel e Gonzalez. Esses imigrantes foram importantes para gerar uma “riqueza” na economia local dessas colônias. Um exemplo está para a riqueza deixada por famílias de imigrantes espanhois na cidade de Bragança onde se vê a herança de prédios residenciais e comerciais deixados por antepassados espanhois e a riqueza de suas famílias consolidadas. Além, 110


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é claro, de uma forte herança cultural [como na própria língua] que pode ser percebida na atual formação da sociedade, mesclada por ritmos e cores que dão sentido ao caboclo bragantino. (SMITH, 2011).

Ao considerar a importância do processo migratório aqui ocorrido, podemos destacar a importante contribuição estrangeira e de brasileiros nordestinos na formação cultural do Pará, uma herança patrimonial familiar que se preserva e se mantém como parte viva de uma grande epopeia que existiu no coração da Amazônia.

Duas palavras sobre o assunto A possibilidade de variação da língua expressa a variedade cultural existente em qualquer grupo. Basta observar, por exemplo, no Brasil, que, dependendo do tipo de colonização a que uma determinada região foi exposta, os reflexos dessa colonização estarão presentes de maneira indiscutível. A fala apresenta características sócio-culturais inerentes a cada comunidade linguística na qual está inserida, afirma Oliveira (apud CARDOSO et al., 2008). Linguagem e sociedade mantêm uma relação intrínseca. Em verdade ambas caminham juntas e escolhem um rumo onde uma não pode ser construída sem a outra. A sociedade somente é construída por intermédio de aspectos e manifestações culturais específicas, em que toda ação cultural corresponde a um hábito ou mudança dentro do contexto social. Consideramos fundamental, neste trabalho, esclarecer qual a concepção de linguagem adotada por nós para embasar esta pesquisa e que dá suporte ao contexto variacionista da linguagem. A linguística apresenta definições teóricas para língua e linguagem. Koch considera que, A linguagem humana tem sido concebida, no curso da História, de maneiras bastante diversas, que podem ser sintetizadas em três principais: a) como representação, “espelho”, do mundo e do pensamento; b) como instrumento, “ferramenta” de comunicação e c) como forma, “lugar” de ação e interação. (KOCH, 1997, p. 9).

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As ocorrências de /s/ E /S/ no falar bragantino: a partir de considerações histórico-culturais

Neste estudo adotamos a concepção de linguagem que a considera como lugar de interação, uma vez que esta concepção considera os fatores contextuais como elementos fundamentais. Para os estudos de variação é fundamental o reconhecimento dos aspectos contextuais tais como espaço, tempo etc. Conforme Bagno Toda língua além de variar geograficamente, no espaço, também muda com o tempo. A língua que falamos hoje no Brasil é diferente da que era falada aqui mesmo no início da colonização e também é diferente da língua que será falada dentro de trezentos ou quatrocentos anos. (BAGNO, 2008, p.22)

Sendo a fala a expressão oral do ser humano, cada falante ou grupo de falantes têm suas particularidades ao emitir qualquer expressão. É perfeitamente cabível dizer que o indivíduo que produz variação linguística, em sua maioria, não é consciente das razões que o conduzem ao uso de formas variantes.

Variação Linguística x Mudança Linguística Todo ser humano é condicionado pelos fatores sociais e papéis desenvolvidos na sociedade, o que implica adaptações e mudanças na linguagem de acordo com a necessidade. A variação é um fenômeno consequente da propriedade que as línguas têm de serem flexíveis e ajustáveis às várias situações em que o indivíduo precise se comunicar. Ao se falar de variação fonética, é comum ocorrerem mais de duas variantes para uma mesma variável, ou seja, há sempre a realização de outras variantes além daquelas mais obviamente perceptíveis e marcadas no lugar em que são usadas. A variação linguística está estreitamente relacionada ao fenômeno da mudança linguística. Esta, também chamada de alteração, consiste na transformação da língua, não só por meio de processos fonéticos, mas também fonológicos, morfológicos, analógicos, demonstrando, assim, que nem toda variação implica mudança, mas toda mudança implica variação.

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FERNANDA ANALENA FERREIRA BORGES DA COSTA

Dentre os vários tipos de mudanças, destacamos as mudanças fonéticas, que ocorrem quando há modificações, geralmente lentas, as quais acontecem em alguns sons de qualquer língua, através de processos históricos. A língua portuguesa, marcada pela existência de variação, também passa por mudanças, o que indica a sua flexibilidade e o seu caráter dinâmico. Isso, no entanto, não significa seu desaparecimento, mas seu desenvolvimento, seu percurso natural, como o é em todas as línguas.

Procedimentos metodológicos Neste trabalho estudamos a variação de /s/ em posição pós-vocálica na fala de bragantinos com mais de 60 anos, moradores da zona rural do município de Bragança. Para sistematizar a variação do fenômeno estudado – o qual apresentou duas realizações fonéticas predominantes: a variante alveolar [s] e a variante palatal [S] – tomamos como base a abordagem teórico-metodológica da Teoria da Variação de Labov (1972). O critério de escolha do município de Bragança deveu-se a relevantes fatores, tais como sua circunvizinhança geográfica, sua marcante história de migrações que resultou na miscigenação étnico-cultural do povo local, que recebeu negros escravos e já era formado também por índios nativos. Outro fator imprescindível que podemos destacar é o fato de Bragança ter sido o primeiro pólo de ocupação européia da Amazônia e a segunda cidade mais antiga do Pará. Para tanto, foram consultadas algumas fontes constantes na referência bibliográfica desse trabalho e, para constatações in loco, percorri um grande número de localidades situadas na zona rural de Bragança, conforme apresentadas a seguir. Município: Área: População: Zona:

BRAGANÇA 2 090,234 km² 113.863 habitantes RURAL

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1– Campos Bragantinos 1.1 – Campos de baixo (Lago do Povo) 1.2 – Campos de cima (Tucunzal) 2– Entrada do município (PA- 242) 2.1– Tracuateua (Antiga localidade de Nova-Quatipuru) 1- Rodovia Benjamin Constant 3.1- Arauá 3.2- Cururutuia 3.3- Laranjal 3.4- Miriteua 3.5- Monte Alegre 3.6- Travessa 29 (fim da linha da Estrada de Ferro) 3.7- Vila Benjamin (Antiga parada obrigatória do trem) 3.8- Santo Antônio dos Monteiros 3.9- Santo Antônio dos Soares 4– Vila Jessé Guimarães (Colônia Montenegro) 5– Litoral bragantino 5.1- Acarajó 5.2- Vila de Ajuruteua 6– Rodovia Bragança - Vizeu 6.1- Camutá 6.2- Vila que era; “Primeira Bragança” Tabela 1 — LOCALIDADES VISITADAS PARA COLETA DOS DADOS

Para as pesquisas em geografia linguística, é importante que o informante seja da zona rural por uma razão basilar: trata-se de uma área onde a língua fica mais preservada, já que a zona urbana envolve muito mais mobilidade e contatos linguísticos variados. Foram entrevistadas 45 pessoas no total, em uma média de tempo de 15 a 20 minutos para cada gravação, feita com aparelhos de gravação em formato MP3 e MP4. Por fim, foram utilizadas 14 gravações para a análise deste trabalho. Os sujeitos estão divididos em masculino e feminino (sem grande exploração e relevância dessa variável para este trabalho), de acordo com sua faixa etária e nível de escolaridade, conforme a tabela a seguir:

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INFORMANTE 1

64 ANOS

1ª SÉRIE

INFORMANTE 2

63 ANOS

ANALFABETO

INFORMANTE 3

95 ANOS

1ª SÉRIE

INFORMANTE 4

67 ANOS

4ª SÉRIE

INFORMANTE 5

65 ANOS

4ª SÉRIE

INFORMANTE 6

74 ANOS

ANALFABETO

INFORMANTE 7

72 ANOS

3ª SÉRIE

INFORMANTE 8

72 ANOS

4ª SÉRIE

INFORMANTE 9

80 ANOS

ANALFABETO

INFORMANTE 10

66 ANOS

3ª SÉRIE

INFORMANTE 11

74 ANOS

3ª SÉRIE

INFORMANTE 12

83 ANOS

4ª SÉRIE

INFORMANTE 13

70 ANOS

ANALFABETO

INFORMANTE 14

75 ANOS

1ª SÉRIE

·

Os informantes que estudaram até a 4ª série foram alunos, já com idade avançada, do Sistema Educativo Radiofônico de Bragança – SERB.

Tabela 2 — SUJEITOS X IDADE X ESCOLARIDADE

Segundo Aguilera et al6 (2001), os sujeitos desse tipo de investigação devem atender a alguns requisitos como, por exemplo, serem nativos do ponto linguístico pesquisado e não terem vividos mais de1/3 de suas vidas fora do lugar onde 6. AGUILERA, Vanderci A. As proparoxítonas na linguagem popular e rural paranaense. ENCONTRO NACIONAL DA ANPOLL IX. Anais. Linguística, vol.2. João Pessoa: ANPOLL, 1994.

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As ocorrências de /s/ E /S/ no falar bragantino: a partir de considerações histórico-culturais

nasceram. Sendo assim, neste estudo observamos as variantes: escolaridade (todos não escolarizados), idade (todos com mais de 60 anos) e origem geográfica (exclusivamente da zona rural). O número de entrevistas utilizadas foi de 14 pessoas, em uma faixa etária de 60 a 90 anos. Após todo o processo de coleta de dados, no período correspondente a julho de 2011 até março de 2012, foi feita a análise do material obtido, por meio das transcrições grafemáticas e fonéticas, com o auxílio do Alfabeto Fonético Internacional (IPA). Os casos de ocorrência do /s/, são apresentados realçados de amarelo; os casos de ocorrência do /S/,têm o realce em vermelho. Outros casos como os de /Z/ e /z/, estão realçados, por sua vez, com a cor rosa para facilitar a observação das ocorrências analisadas nesta pesquisa.

Análise dos dados Neste momento serão demonstrados os resultados a que chegamos após o período de leituras, coleta dos dados e transcrições. Vale assinalar sempre que “nenhuma língua permanece a mesma em todo o seu domínio e, ainda num só local, apresenta um sem-número de diferenciações”, segundo o que já afirmou Celso Cunha (1975). O /s/ em posição pós-vocálica constitui-se em uma das variáveis que oferecem mais possibilidades de diferentes realizações. A atenção sobre a fala dos informantes durante a coleta de dados e sua manipulação quando da transcrição grafemática e fonética possibilitou a opção por uma análise que leva em conta não apenas a posição silábica final para variação, mas a posição de coda, principalmente. Portanto, as ocorrências de /s/ e /S/ evidenciaram casos particulares quanto à estrutura silábica dos vocábulos observados, podendo ser considerados como causas essenciais para essa variação fonética.

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EXEMPLO 1: INF. 1  ew iStu’dej i nũ apRe)’dZi foj ‘nadå, ‘ER

umå is’kålå ki ‘t∫ĩå

nU Ziki’Ri]

INF. 13  [ew ia ũmå vejs na se)’mãnå na is’kålå] [ajs ‘mĩå ‘fiλå ‘tudu iStu’daRu]

A fricativa alveolopalatal /∫/, assim como ocorre acima exemplificada no vocábulo estudar diante da oclusiva alveolar /t/, é também constante em todas as outras palavras em que esses dois sons ocorrem simultaneamente em sua estrutura [‘fESt√, guS’tey, iS’tadu]. Não ocorrendo em hipótese nenhuma a fricativa alveolar /s/ nesses casos. OBSERVE: INF. 1  Uins pai da mamãi eru purtuguêis, u velhu era purtuguêis, agora a velha era misturada cum índia, a velha.

É valido assinalar que os dois informantes acima são de regiões rurais distantes entre si.O INF.1 vem de uma localidade próxima à rodovia Benjamin Constant, a leste do município, e o INF. 13 mora em direção ao norte do município, no litoral bragantino. No entanto, é constante a ocorrência de /S/ no dado ambiente fonético. A fricativa alveolar /s/ também é observada na fala dos informantes do exemplo 1, como no vocábulo escola. Nesse caso, ocorre diante de outro segmento consonantal oclusivo, a velar /k/. Percebe-se que a posição silábica onde ocorre a variação não influência em sua realização, pois observamos que o mesmo tipo de variação ocorre em diferentes partes dos vocábulos. EXEMPLO 2: INF. 2  [?eλi ‘dZisi tah ‘dZiå a pi‘kẽnå dZiskã‘savå] INF. 6  [mew paj ‘ER fRã’sisku dZi oλi’veR ‘baStU] INF. 7  [mews a’våjs, tRes a’våjs‘ERU ispã’å w, så u fi’nadU mew a’vo puh‘pahtSI dZi mãj ki ER paRa‘ẽsi]

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As ocorrências de /s/ E /S/ no falar bragantino: a partir de considerações histórico-culturais

Schane (1975, apud SOUZA, 1992, p. 39) acredita que “(...) a maior parte das mudanças fônicas (na frequência) podem ser explicadas como alterações de fenômenos articulatórios7”. Em sílabas finais, o /s/ ocorre de forma predominante na fala dos paraenses bragantinos. Entretanto a palatal /S/ também ocorre nessa posição no momento da fala em que um vocábulo que termine com “s” venha seguido pelo próximo iniciado por consoantes alveolares (linguodentais), como o [d], o [t] e o [n]. Portanto, há influência sonora de um vocábulo sobre o outro. OBSERVE: INF. 8  Istudei nu Camutá, mais não nessa iscolinha. INF. 11  U mistu chegava mais tardi, mais u horáriu chegava mais cedu. INF. 7  Eu mi lembru, dus dois trem, dais duais bitola, da grandi i da zita

É significativa a ocorrência da palatal /S/ e, algumas vezes, da /Z/, diante das alveolodentais. Logo, podemos observar o que diz Martins (2003, grifo meu), No que diz respeito à pronúncia palatal, é provável que ela tenha se originado diante de consoantes africadas [t∫] e [d∫], como se observa na fala em questão, por assimilação em algum estágio de evolução da língua, e por analogia ter se realizado diante de consoantes alveolodentais [t] e [d], e, assim ter se generalizado como forma articulatória palatal em substituição à pronúncia alveolar [s] (p. 52).

Apesar de não terem sido focalizadas, primordialmente, nesse estudo, é pertinente ressaltarmos as ocorrências de /Z/ e /z/. Logo, observamos a fricativa palatal diante de nasal alveolar /n/ (observada no exemplo acima), já a fricativa alveolar também aparece diante de nasal bilabial /m/ e oclusiva bilabial /b/. Para Martins

7. Ver em CARVALHO, Rosana Siqueira de. Variação do /s/ posvocálico na fala de Belém. 2000. 112f. Dissertação (mestrado em Linguística)- Universidade federal do Pará.

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“O segmento fônico se realizará como sonoro diante de segmento sonoro e surdo diante de segmento surdo ou pausa [portanto], a articulação sonora de ambas as variantes está sujeita a uma regra de assimilação” (Martins apud RAZKY, 2003). EXEMPLO 3: INF. 3 

I u nomi da minha mãi era Maria Lizboa

[ i U ‘no)mI da ‘mĩå INF. 8 

ma)j ‘ER

ma‘Ri

iz‘bo

]

Im sessenta parô u trem, nessi anu mezmu

[ ĩ sE‘se)tå

pa‘Ro U tåRe)j ‘nesI ‘anU ‘mezmU ]

Ao observar todos esses casos expostos, inquietou-nos os seguintes questionamentos: será nesses momentos que podemos perceber algumas das influências dos diferentes povos que migraram para a região? Ou será mais provável que seja uma questão de facilidade e/ou influência articulatória? Apesar de esta pesquisa não bastar para alcançar as precisas respostas para as perguntas lançadas, mas tendo a ciência de que a língua é fator social que condiciona o indivíduo a se expressar de acordo com sua construção cultural e que “toda língua além de variar geograficamente, no espaço, também muda com o tempo” (BAGNO, 2008), podemos inferir, enfim, o seguinte: • é provável que a pronúncia alveolar de /s/, que predomina no município de Bragança, tenha sido implantada devido aos contatos que os moradores da cidade experimentaram (e experimentam ainda) com regiões de pronúncia alveolar como o nordeste brasileiro: O grande fluxo migratório do início do século XX torna-se prova desse aspecto linguístico, portanto, sem deixar de lembrar da importante ligação da cidade de Bragança com o Maranhão no tempo de sua fundação; • sabe-se que o /s/ pós-vocálico chiante (palatal) da fala de um grande número de paraenses, como os da capital do estado, Belém, está relacionado à influência do dialeto português, pois a colonização portuguesa foi muito significativa em nosso estado. No entanto, em algumas regiões do Pará, como é o caso de Bragança, houve a significativa 119


As ocorrências de /s/ E /S/ no falar bragantino: a partir de considerações histórico-culturais

presença de outros povos que influenciaram por muito tempo na sua cultura, não sendo a língua exceção nesse aspecto. A construção da estrada de ferro Belém – Bragança no início do século passado, além de outros processos migratórios, trouxe muitos espanhóis para terras caeteuaras (além de outros povos em menor escala). Portanto, cons,equentemente o espanhol pode ter tido influência nesse processo variacional; • segundo estudos, no “espanhol padrão” o /s/ alveolar predomina em sua pronúncia, porém há muitas variações conforme a região onde o espanhol é usado. “A língua espanhola apresenta algumas variantes: um falante do dialeto Andaluz pronunciará a palavra Zaragoza como [Sáragosa], enquanto um falante de Madrid certamente produzirá a mesma palavra de forma diferente8”. Especificamente no caso das imigrações espanholas para a região bragantina, a maioria dos espanhóis que foram para lá eram da Andaluzia e da Região da Galícia, sendo essas duas regiões conhecidas por algumas variações em relação ao resto da Espanha, devido à sua própria história política. De um modo geral, a pronúncia do /s/ pós-vocálico de Bragança tem uma forte tendência alveolar, apesar dos vários contextos de ocorrência das palatais, principalmente de /S/.

Algumas considerações que não são finais Muitos estudos de fatores que ocasionam mudanças nunca são relacionados com a evolução de cultura de uma cidade, com as modificações de hábitos diários nem com diferenças existentes entre idades dos indivíduos, tampouco com as formas de comunicação e com o contexto em que se estabeleceram.

8. Artigo intitulado A fonética no processo de ensino e aprendizagem de língua espanhola. Disponível em: http://www.uel.br/eventos/sepech/sepech08/arqtxt/resumosanais/DulceMSCamargo.pdf.

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Todo sujeito e sua maneira de se expressar são condicionados pelas atividades desenvolvidas mais sua subjetividade. Assim sendo, é simples constatar que os fatores extralinguísticos influenciam de maneira direta no uso da linguagem de qualquer sujeito. Sua organização social e fatores correlatos, a sua trajetória de experiências adquiridas, transformam-no num ser com limitações ou habilidades específicas. Visto que “uma língua é, sobretudo, um produto social e cultural e como tal deve ser entendida”, é sumamente importante que o cientista da linguagem tornese “mais consciente do que a sua ciência pode significar para a interpretação da conduta humana em geral9”. É importante ressaltar, mesmo levando em conta os imprescindíveis pressupostos saussurianos, que os estudos variacionistas sugerem que a língua e fala são mais do que inter-relacionadas, uma vez que a relação entre elas parece ser de interdependência. Segundo Fiorin (2011), “Ainda temos muito o que descobrir a respeito das línguas”. Com essa pesquisa buscamos contribuir para um melhor conhecimento da história e da cultura da cidade de Bragança, vista como mais uma parte de nosso imenso estado do Pará.

Referências AGUILERA, Vanderci A. As proparoxítonas na linguagem popular e rural paranaense. Encontro Nacional da ANPOLL IX. Anais. Linguística, vol.2. João Pessoa: ANPOLL, 1994. BAGNO, Marcos. Preconceito Linguístico. São Paulo: Parábola, 2001. ______. A Língua de Eulália. Novela sociolínguista. São Paulo: Contexto, 2008. KOCH, Ingedore Villaça. A Inter-ação pela linguagem. São Paulo: Cortez, 1997. BASTOS, C; KELLER, V. Aprendendo a aprender. Rio de Janeiro: Vozes, 1991. BORTONI-RICARDO, Stella Maris. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola, 2004. BRANDÃO, Sílvia F. A Geografia Linguística no Brasil. São Paulo: Ática, 1991. CARVALHO, Rosana Siqueira de. Variação do /s/ posvocálico na fala de Belém. 2000. 112f. Dissertação (mestrado em Linguística)- Universidade federal do Pará. CUNHA, Celso. Uma política do idioma. 3ª edição, Tempo brasileiro, São Paulo, 1975. FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à Linguística: objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2011. 9. Sapir, Edward (1929) In: FIORIN, José Luiz (org.). Introdução à Linguística: objetos teóricos. São Paulo: Contexto, 2011.

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As ocorrências de /s/ E /S/ no falar bragantino: a partir de considerações histórico-culturais

LABOV, William. Sociolinguistic Patterns. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972. LACERDA, Patrícia F.A. da Cunha. Tradução e Sociolinguística Variacionista: A língua pode traduzir a sociedade? In: Revista Brasileira de Tradutores: Tradução & Comunicação. Universidade Federal de Juiz de Fora, Nº 20, 2010. MILANEZ, Leonardo & TAFNER JR., Armando. Colonização e desenvolvimento regional no Nordeste Paraense: Estudo Comparativo das Regiões Bragantina e de Tomé-Açu. Seminário Internacional Amazônia e fronteiras do conhecimento. Belém, dez. 2008. Disponível em: <http://www.ufpa.br/naea/ siteNaea35/anais/html/geraCapa/FINAL/GT5-65-1116-20081201183031.pdf>. Acesso em: junho de 2012. MARTINS, Arlon. A pronúncia do fonema /s/ pós-vocálico no português do município de Bragança-Pa. In: RAZKY, Abdelhak (Org.). Estudos Geo-Sociolinguísticos no Estado do Pará. Belém, 2003. OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de (Org.). Cartografias Ribeirinhas: saberes e representações sobre práticas sociais cotidianas de alfabetizandos amazônidas. 2ª edição, Eduepa: Belém, 2008. PERINI, Mário. A língua do Brasil amanhã e outros mistérios. São Paulo: Parábola, 2004. SILVA NETO, Serafim. Guia para estudos dialetológicos. Florianópolis: Faculdade Catarinense de Filosofia – Publicações do Centro de Estudos Filológicos nº 4, 1955. SMITH JR., Francisco Pereira. O imigrante espanhol na Amazônia. XI Congresso Luso Afro Brasileiro de Ciências Sociais: Diversidades e (Des)igualdades. Salvador, ago. 2011. Disponível em: <http://www. xiconlab.eventos.dype.com.br/resources/anais/3/1307453713_ARQUIVO_ArtigocompletoConlab2011. pdf> Acesso em: maio de 2012. TARALLO, Fernando. A Pesquisa sociolinguística. São Paulo: Ática, 2004.

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Estudos Literรกrios e suas Vertentes



A POESIA DE MAX MARTINS E A FORMAÇÃO DA LITERATURA EM BELÉM DO PARÁ Ingrid da Silva Marinho (PIBIC - UFPA) Prof. Dr. Luís Heleno Montoril Del Castilo (Orientador - UFPA)

Introdução A produção do presente artigo está diretamente ligada às pesquisas vinculadas ao Plano de Trabalho Poesia, corpo e subjetividade: o acervo de Max Martins, sua poesia e a formação da literatura em Belém do Pará, financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica e de Desenvolvimento Tecnológico e Inovação da Universidade Federal do Pará e inserido no Projeto de Pesquisa Literatura Comparada e Estudos Culturais II: perspectivas teóricas para ler literatura, arte, cultura, sociedade e processos globalizantes na Amazônia, Brasil e América Latina. A coleta de corpus (revistas, jornais, suplementos e livros dos anos de produção do poeta Max Martins), utilizada para a produção deste artigo, foi realizada na Fundação Tancredo Neves e na Fundação Curro Velho. A partir das leituras e pesquisas realizadas, é possível afirmar que o modernismo foi um movimento de ideias, de pensamento, que teve o mérito, além de artístico e estético, de trazer à tona elementos questionadores de algumas vertentes do conservadorismo autoritário que exaltavam a incapacidade do brasileiro em geral para a produção de mudanças sociais e políticas. Considerando a produção do poeta e as produções poéticas vigentes em seu contexto, torna-se necessário refletir sobre a formação cultural/literária em Belém referente à época de Max Martins, a partir da pesquisa bibliográfica do acervo. A reflexão sobre este momento cultural/literário em Belém na época de produção poética de Max Martins exige o esclarecimento do que foi o movimento modernista no Brasil, o qual ganhou forma a partir da Semana de Arte Moderna ocorrida em 22, no Teatro Municipal de São Paulo. Segundo Antônio Cândido 125


A poesia de Max Martins e a formação da literatura em Belém do Pará

(2000), o modernismo foi um movimento de ideias e não somente das letras que modificou profundamente a arte e o pensamento. A análise do movimento modernista em Belém traz à tona a importância de compreender os processos de mudanças ao longo de um determinado processo histórico, fundamental por lançar luzes sobre possibilidades de mudanças que foram sendo abortadas ao longo de várias décadas.

A literatura em Belém do Pará Os estudos literários foram mais fortemente concentrados no triângulo dos acontecimentos literários: São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte. Ao estudar a Literatura Brasileira, pouco ou nada se vê da literatura produzida em outras regiões, principalmente no Norte e Nordeste do Brasil. Daí a relevância de pesquisar a formação cultural, social e literária referente à produção poética de Max Martins, sendo um dos poetas mais representativos da poesia moderna brasileira, mas visibilidade restrita à capital paraense. Tal restrição estende-se para a maior parte da literatura, arte e cultura produzida na região Norte do Brasil. Observa-se que mais de 20 anos após a Semana de Arte Moderna, os jovens poetas de Belém ainda viviam na era parnasiana. Buscaram, na década de 1940, os moldes da Academia Brasileira de Letras, o seu rumo e ritmo literário eivado das formalidades parnasianas. A amizade e os encontros desse grupo de poetas contribuíram para o fortalecimento e continuação desse grupo que se tornaria parte da história da literatura paraense. Neste contexto de pós-guerra e de redemocratização surgiu uma nova tendência na imprensa brasileira: a criação de suplementos literários. Estes foram idealizados para “minar” o isolamento da literatura nacional entre si e entre outros países. Os conhecimentos e valores compartilhados pelos membros do Suplemento Arte Literatura contribuíram para uma nova forma de pensar a literatura e a história, o que resultou também em atos que auxiliaram a cultura, a política e a sociedade. Esse grupo de poetas, incluindo Max Martins, contistas, críticos, ensaístas e críticos, por tudo que representaram nas diversas relações que estabeleceram com a sociedade local, deixaram uma herança de imensa carga histórica e

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INGRID DA SILVA MARINHO E LUÍS HELENO MONTORIL DEL CASTILO

de grande valor cultural para o entendimento da história da literatura paraense. O suplemento literário da Folha do Norte tornou-se o lugar da poesia dos novos poetas. Era também um instrumento de atualização da literatura local, pois através dele, tiveram contato com diversos artigos de escritores de várias regiões do país e também do exterior. O suplemento exprimira um sentimento geracional de renovação na medida em que oportunizou a esses jovens exporem seus poemas modernos e, ao mesmo tempo, colocou-os em constante contato com o que havia de mais moderno na literatura mundial. Por essa razão o suplemento Arte Literatura foi o suporte dessa nova escrita; coube a ele levar ao leitor comum de jornal as novas ideias trazidas ou buscadas por poetas ansiosos por modernização e renovação da poesia. Em 1942, Max Martins participou da fundação da Academia dos Novos, juntamente com Benedito Nunes, Haroldo Maranhão, Alonso Rocha, Jurandir Bezerra, entre outros poetas. O grupo se reunia para recitar poemas de românticos e parnasianos, como Castro Alves e Olavo Bilac, tendo inicialmente, o modelo da arte pela arte. Benedito Nunes, no prefácio Max Martins, Mestre-Aprendiz, do livro Não Para Consolar, de 1992, esclarece as circunstâncias da Academia dos Novos, cujos integrantes, em 1942, ainda viviam o parnasianismo. De acordo com Nunes (1992), é Max Martins quem primeiro se dá conta do “atraso” cultural/ literário em que a Academia vivia, principalmente quanto à produção de versos. A rebeldia de Max encerrou as sessões formais e literárias da Academia, a qual se desfez em 1945, dando abertura para a consciência do Modernismo no Brasil a esse grupo de poetas iniciantes do Pará, somente após a morte de Mário de Andrade. O incêndio da Semana de Arte Moderna já se tinha amainado, pois vinte anos são passados desde as batalhas nos redutos das artes. De fato, muitas páginas tinham sido viradas desde que se confrontaram as vertentes das artes nos arraias de São Paulo. Os ecos atravessaram o Brasil. A Academia dos Novos não sossegava, forcejava por mudança. E o grupo de escritores paraense, todos envolvidos nesse estágio de maturação, vivia um instante de rescaldo, de balanço. (TUPIASSÚ, 2000, p. 14)

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A poesia de Max Martins e a formação da literatura em Belém do Pará

No ambiente cultural/literário de Belém, o suplemento Arte Literatura semanal exerceu um papel fundamental na divulgação da produção de autores locais e nacionais, atuando numa linha crítica e atual, proporcionando ao leitor textos de Carlos Drummond, Cecília Meireles, João Cabral de Melo Neto alternando com a poesia de Mário Faustino, Alonso Rocha, Max Martins, Paulo Plínio, Ruy Barata, Benedito Nunes, Cauby Cruz, Haroldo Maranhão, Jurandyr Bezerra, poetas que ficaram conhecidos, segundo a professora pesquisadora Marinilce Coelho (2005), como o “Grupo dos Novos”; grupo de jovens que começavam a se firmar como críticos, cronistas e poetas.

A poesia e o acervo de Max Martins A análise preliminar feita com o corpus coletado na Fundação Cultural Tancredo Neves (CENTUR), sala Haroldo Maranhão – obras raras – e na Fundação Curro Velho, referentes ao acervo de Max Martins, indica que Max pertenceu a uma geração que publicou no suplemento Folha do Norte, dirigido por Haroldo Maranhão; o suplemento A Província, dirigido por Mário Faustino; nas revistas Encontro, Norte e Amazônia. Durante a coleta de corpus, na sala Haroldo Maranhão, foi possível o acesso a algumas edições da revista Amazônia¹, na qual Max Martins aparece como um dos colaboradores, em janeiro e fevereiro de 1955, nº I e nº II, do ano I. Em maio do mesmo ano, Max concede uma entrevista à revista, reportagem feita pelo também poeta Jurandyr Bezerra, intitulada Max Martins – poeta sem título. Em junho, n.º VI, e setembro, nº IX, de 1955, a revista Amazônia apresenta Seleção e Notas “No Reino das Palavras”, de Max Martins; em março de 1956, nº XV, a mesma revista publica um poema de Jacque Prevert, Para fazer o retrato de um pássaro, traduzido por Max; no mesmo nº Jurandyr Bezerra lança uma nota a respeito do livro O Estranho, lançado em 1952, denominado a poesia de Max composta por um “sensualismo ingênito que, sob certos aspectos transforma o sentimento puro numa poesia expressionista”. (Revista Amazônia, ano II, nº XV, mar. 1956; p. 96). Em um manuscrito da Coleção Haroldo Maranhão (Obras Raras-Centur) foi possível consultar diversos poemas, correspondências e mais de vinte colagens,

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de 1970 a 1993, enviadas por Max Martins para Haroldo Maranhão, entre eles uma boneca do livro A Fala entre Parênteses, assinada por Max Martins e Age de Carvalho, em novembro de 1981, o qual foi publicado apenas no ano seguinte; e uma coleção de 15 poemas de Max para Haroldo, em 1970, contendo o poema Koan, publicado no livro H’era, em 1971. Em 1948, Max Martins aparece como colaborador da Revista Encontro, dirigida por Benedito Nunes, Mário Faustino e Haroldo Maranhão. Com apenas um número, a revista publicou textos inéditos, literários e críticos, de autores locais. Na revista também aparece poemas de Max, sendo um deles o poema Auto-retrato. Quatro anos depois é publicada a revista Norte, a qual teve três números publicados com uma fortuna crítica e literária. As revistas Encontro e Norte dirigidas pelo grupo de poetas composto por Mário Faustino, Benedito Nunes, Alonso Rocha, Haroldo Maranhão, entre tantos outros que também atuaram como colaboradores, representaram uma tentativa de dar continuidade à produção literária dessa geração. Encontra-se no suplemento Folha do Norte uma publicação a respeito da revista – O encontro da nova geração do Pará, Belém, 27 de fev. 1949. Segundo Coelho (2005), esse movimento local contribuiu com significativas mudanças no contexto cultural, crítico e literário de Belém. Em 1946, foi criado o suplemento Arte Literatura, sob a direção de Haroldo Maranhão. A partir desse momento é possível falar de uma literatura moderna em Belém, dando continuidade à iniciada em 22, embora com temática, estilos e características distintas. O periódico circulou em Belém até janeiro de 1951, totalizando 165 números, com notícias sobre a arte e a literatura, contando com colaboradores que faziam parte do seu círculo de amizade, como Benedito Nunes, Max Martins, Ruy Barata, Mário Faustino, entre outros, os quais contribuíram com artigos, ensaios, comentários e poesias. Ao olhar para aqueles anos 40, 50, a conclusão é que Max produziu “sob as ordens do sublime estético”, através do alimento poético (a palavra), que atravessa o tempo.

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Ao fazer o poema, eu já estou sendo. O fato de fugir, quase sempre, ao apelo da massa pode ser atribuído ao medo de enfrentar um público que iria querer ler o que gosta. (...) Ao meu ver, a poesia nasce de uma solidão (minha) para outra solidão (do leitor), mas se ela chegou à dele passa a não ser mais solidão. (MARTINS, 1980, p. 04. In O Liberal)

O decano dos poetas se declarou autor de uma poesia que mostra uma visualização com relação à palavra, o poema a partir da palavra. De acordo com uma das entrevistas, dada para o jornal A Província do Pará, Max afirma que o concretismo é, também, a predominância do visual, o significante cristalizado, sem o significado. “Eu preciso de significado, apesar de dar grande valor ao significante”. Max Martins é autor de uma poesia não é, apenas, um exercício existencial, mas também um processo de técnica, onde a palavra, a frase e o verbo são trabalhados; o poema composto por conteúdo e forma, sendo uma grande “cópula entre as palavras”. “De acordo com a minha experiência, sei que a poesia é um exercício não apenas existencial, mas técnico, e como tal, deve ser constante.” (MARTINS, 1980, p. 9. In Jornal O Estado do Pará) Apesar dos ecos do modernismo terem chegado em Belém apenas em 1945, o “Graça Aranha no tucupi” produziu uma poética como resultado de uma artesania, nutrindo-se do verbo, assumindo, também sua paixão pelas artes plásticas e encontrando na colagem uma linguagem próxima à linguagem da poesia.

Considerações finais É possível afirmar que, Max Martins possui alguma afinidade com a Geração de 45, no que diz respeito ao campo temático, que se assenta em duas bases: social e existencialista. Max não optou pela produção de poesia engajada, mas assumiu o compromisso com a boa escrita e com a linguagem bem trabalhada. Logo, investigou-se a produção do poeta e as produções poéticas vigentes em seu contexto, assim como a formação cultural/literária em Belém referente à época em que produziu e atuou o poeta. A análise feita com os dados coletados, até o presente momento da pesquisa, indica que Max Martins renovou sua linguagem poética, preferiu o verso livre, o 130


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jogo com as palavras e ruptura com o tradicional, abusando do elemento concretista, que estrearia nos anos 50. Dentro do contexto cultural literário em Belém do Pará, o Suplemento Arte Literatura, no qual Max Martins participou publicando alguns de seus poemas, estabeleceu os caminhos para a relação entre as tendências do Modernismo local e o internacional. Havia conexões diretas com outros países através de correspondentes que enviavam artigos de crítica literária especialmente para o suplemento paraense. Sendo assim, o grupo do suplemento pôde atualizar a sua literatura com as mais novas discussões acerca da arte literária e da filosofia e, também, sendo suporte dessa nova escrita. O Arte Literatura levou ao leitor comum as novas ideias trazidas ou buscadas por poetas ansiosos por renovação e modernização tanto da poesia quanto das ideologias. O Mestre-Aprendiz, Max Martins, assumiu uma postura rebelde, pondo fim às sessões formais da Academia, mas a amizade entre o “Grupo dos Novos” permaneceu e, aso poucos, todos se converteram ao Modernismo. Tal rompimento representou o fim da adesão de uma literatura romântica e parnasiana. A atitude “Graça Aranha” de Max foi a “pedra de toque” que faltava para os poetas acadêmicos mudassem o ruma da estética literária paraense. Ao publicarem no suplemento- sob a orientação de Haroldo Maranhão- essa geração de jovens poetas proporcionou uma dimensão ampla da literatura e da crítica local. Max Martins mostra-se autor de uma escrita transgressora, em que acionou “os termos de um verbo ativo”, violando a linguagem. Além disso, durante a pesquisa e através das colagens presentes no manuscrito, observa-se um Max interessado pelas artes plásticas, encontrando na colagem uma linguagem que, segundo ele, mais se aproxima da poesia.

Referências Periódicos A Província do Pará. Belém, 17 ago. 1980. A Província do Pará. Belém, 23 mai. 1982. A Província do Pará. Belém, 25 e 26 mar. 1990. A Província do Pará. Belém, 22 e 23 mai. 1994.

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Folha do Norte. Belém, 27 de fev. 1949. O Estado do Pará. Belém, 05 jan. 1980. O Estado de São Paulo. São Paulo, 22 ago. 1980. O Liberal. Belém, 21 ago. 1980.

Prefácio NUNES, Benedito. Max Martins, Mestre-Aprendiz (prefácio). In: Não Para Consolar: poemas reunidos 1952-1992. Belém: CEJUP, 1992.

Outras referências CANDIDO, Antônio. Literatura e Sociedade. São Paulo: Publifolha, 2000. COELHO, Marinilce. O Grupo dos Novos (1946-1952): memórias literárias de Belém do Pará. Belém: EDUFPA: UNAMAZ, 2005. MARTINS, Max. Poemas reunidos: 1952- 2001. Belém: EDUFPA, 2001. TUPIASSU, Amarílis. O Estranho Max e as Insubmissões da Academia dos Novos. In Revista Asas da Palavra. v. 5, n.11. Belém: Unama, 2000.

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DENTRE AS ÁGUAS DE “MARAÍLHAS”: LEITURA DO CONTO “A ILHA DO CUPELOBO OU O ENTERRO DO APOSTEMADO” DE SALOMÃO LARÊDO Glayce de Fatima Fernandes da Silva (UFPA) Larissa Fotinele de Alencar (UFPA)

Introdução A literatura de Salomão Larêdo revela um amor incondicional à Amazônia, amor esse que é desnudado de diversas formas em suas linhas literárias. Autor literário da contemporaneidade paraense que “brinca” com as temáticas regionalistas ao abordar o universo nortista. Ler Salomão Larêdo é adentrar em um mundo de encantos amazônicos, como se a cada linha a Amazônia expandisse seu território, é como se o leitor incorporasse o espaço do caboclo das narrativas e dividisse com ele o mesmo mundo de encantos, mas não é só isso, é possível atingir o lado menos encantado: o das mazelas sociais, infelizmente, também moldadas com base na realidade. A Literatura produzida no cenário amazônico deixa transparecer as faces da Amazônia, no entanto é pouco difundida, inclusive em seu próprio espaço. A obra Maraílhas esbanja um teor regionalista, em seus contos o homem ribeirinho é dono de diversas situações que o fazem herói, não somente pelos acontecimentos em que envolvido, como também por ser um importante foco temático de algumas narrativas. O conto A Ilha do Cupelobo ou O Enterro do Apostemado, sobre o qual se lança o olhar deste estudo compõe a obra Maraílhas e nela se dispõe de maneira diferenciada por sua natureza fantástica, o que emerge das situações sobrenaturais que envolvem sua narrativa, situações essas comuns ao imaginário popular amazônico. Quem nunca teve medo e ao mesmo tempo gostou de ouvir histórias de “visagem”? Foi exatamente um espírito “visagento” que passou a perambular pelo

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espaço da narrativa. Assim, a situação sobrenatural domina a narrativa e como peculiaridade da Literatura Fantástica o leitor é envolvido no mundo sobre-humano que segue o curso do “conto-ilha” e entre seus leitos navega na tentativa de alcançar a explicação para a atmosfera gerada. O conto estudado versa uma temática regionalista amazônica. Em suas linhas o autor não apenas converge a cultura do povo amazônida em arte, como faz de sua arte um meio de propagação da cultural amazônica, envolvendo-as em laços diretos. Nas linhas literárias contemporâneas de Salomão Larêdo, um grito ainda ecoa como vestígio das inquietações modernistas vividas em outrora na região Norte, em especial no Pará.

Literatura Brasileira de manifesto amazônico A Literatura Amazônica é muito mais que uma simples produção artísticoliterária da região norte do Brasil, ela é, pois, um manifesto que mistura diversos valores representativos do universo nortista: tipo humano, sabores, cheiros, cores, sons, crenças, imaginário, dentre outros. Assim, a fim de delinear sua compreensão, trazem-se, à luz desta discussão, as contribuições de Nunes, Fares e Fares (2004, p.1), que afirmam que: Ao tentar conceituar e caracterizar a literatura brasileira de expressão amazônica, vale pensar, inicialmente, o que, afinal, é a Amazônia. Um aglomerado humano? Um espaço geopolítico e cultural? Mas esta tarefa intelectiva, parece-nos, fica também adequada aos... sociólogos, geógrafos e políticos de plantão. Assim, nos prendemos ao texto literário sem virarmos as costas aos problemas essenciais da região [...]

Os elementos marcadores da “amazonicidade”1 na Literatura Amazônica advém de uma história literária, marcada por períodos, obras e autores. Dessa maneira, é certo afirmar que a formação dessa literatura incide de diversos pontos e que a intenção de reconhecer ou homenagear à cultura regional varia de acordo com o autor e seu estilo. Dentre as temáticas que marcam as produções literárias locais uma das mais frequentes é a reverência à natureza, segundo assinalam Nunes, Fares e Fares (2004, p.1): 1. Expressão criada para designar a temática genuinamente amazônica na Literatura Regional (Amazônica)

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Eis que o rio Amazonas, e consequentemente a floresta, fornecem ao nativo e aos visitantes os temas geradores de uma das mais ricas culturas de que se tem notícias neste mundo de meu Deus. O rio é a vida e a morte, mas entre um extremo e outro, ele aposta nas imagens que a imaginação humana pode, felizmente, produzir.

Nota-se, portanto, que não há como desvencilhar da compreensão de Amazônia seus aspectos naturais, o que frequentemente é incorporado à Literatura Amazônica. Assim, no conjunto das produções literárias amazônidas um conjunto de obras que tomam a natureza como sustentação da identidade regional, fazendo dessa identidade um digital representativa para todo um coletivo. As produções literárias têm por peculiaridade carregar as especificidades regionalistas. No cenário literário nacional, o sentimento de inquietude de cunho regionalista fundamentava-se de valores delimitados a espaços temáticos, mas que puderam e podem ultrapassar essas fronteiras, dadas as possibilidades interpretativas contextuais. Assim, a Amazônia pode ser percebida em Literaturas extra fronteiriças, ao mesmo passo que em suas produções pode versar temáticas universais. As temáticas genuinamente regionais – amazônicas – ganharam espaço, principalmente em Belém, no Modernismo paraense. Pincela-se isto, em decorrência de que até os dias atuais se arrasta em literaturas mais recentes o espírito que contagiou os modernistas do início do século XX, como se observa a seguir: O manifesto À geração que surge! Proclama a “hora extraordinária da independência” de o Norte brasileiro fazer seu levante, de erguer-se. Ao estado do Pará é designado ser o “baluarte da liberdade nortista”. O desejo de ressuscitar o movimento literário local submetido ao Sul, que “propositadamente, se esquece de nós!” Na linguagem há o predomínio de expressões sintéticas e de palavras de ordens a partir das quais a “literatura equatorial” poderia se libertar do Sul” (COELHO, 2005, p. 78).

Foi nesse contexto que emergiram atributos que são próprios da Literatura Amazônica, vestindo-a da supervalorização do regional. Eis que surge nessa conjuntura, dentre outros, o manifesto “Flami-N’-Assú”2. Esse manifesto ficou aberto 2. Último manisfesto modernista paraense, lançado por Abguar Bastos com intuito de que as vindouras gerações literárias tives-

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à quantos adeptos o desejarem, mesmo ao perpassar do tempo. Desse modo, na Literatura Amazônica Contemporânea, muitos autores ainda desdobram suas composições sobre esse mesmo sentimento nativista, como o escritor Salomão Larêdo.

Identidades culturais nas entrelinhas da Literatura Amazônica Os traços representativos de um povo ou de um indivíduo são seus caracteres próprios, mas segundo assinala Hall (2000), as identidades culturais se encontram em crise, em vista da forte tendência à fragmentação das identidades, que culmina na construção de diversas identidades, como é possível observar a seguir: O sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas. Correspondentemente, as identidades, que compunham as paisagens sociais “lá fora” e que asseguravam nossa conformidade subjetiva com as “necessidades” objetivas da cultura, estão entrando em colapso, como resultado de mudanças estruturais e institucionais. (HALL, 2000, p. 12).

Essa tendência a que estão submetidas às sociedades pós-modernas, de construção de uma identidade-mosaico, faz com que a necessidade de trazer à tona as discussões sobre as identidades culturais regionalistas seja cada vez mais necessária, não em oposição às identidades que se apresentem adversas produzindo choques culturais, mas como uma maneira de reconhecer uma identidade cultural em sua unicidade e não-fragmentada. Ressalta-se que tomar determinada identidade cultural como temática literária não culmina em ter a intenção de preservá-la imutável, mas de prestar-lhe homenagem, de registrá-la e de reconhecer seus valores. Dessa forma, entendese que fazer abordagens regionalistas na Literatura Amazônica implica em reconhecer que existem condutas e padrões que representam o homem ribeirinho, o sem suas produções apoiadas no sentimento regionalista.

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pescador, o artesão, as benzedeiras, e tantas outras figuras que compõem o cenário amazônico, tão relevantes quanto qualquer outro indivíduo, que pudesse ser incorporado às temáticas literárias. Desse modo, explorar literariamente essas identidades culturais, com representações da linguagem, culinária, sincretismo religioso, formação étnica híbrida (índio-afro-lusitana) e tantos outros elementos compõe a cultura do homem amazônida, bem como a natureza, implica em destacar pecúlios de uma gente que bem mais que “caboca” é “cabocla brasileira”. E se esse reconhecimento puder ser conquistado por vias literárias, à satisfação não será somente dos nativos amazônidas, mas de todos aqueles que se deleitarem com os sons, cheiros, cores, sabores e texturas, que se deixam aflorar sinestesicamente na Literatura Amazônica.

Em face à Literatura Fantástica Para que se alcance da definição de Literatura Fantástica, faz-se necessário compreender que o fantástico acontece em face às incertezas na justificativa de um fato, quando tal fato gira em torno do natural ou do sobrenatural. Tendo em consideração que o natural é entendido como algo que segue a logicidade, uma ordem natural e racional das coisas, enquanto o sobrenatural está relacionado às coisas que fogem do plano humano, atingindo a esfera do sobre-humano. Antes de definir o conceito de Literatura Fantástica, convém antes compreender que junto ao gênero fantástico residem os gêneros estranho e maravilhoso, o primeiro como linha de separação entre estes últimos, entendendo-se que “um gênero se define sempre em relação aos gêneros que lhe são vizinhos” (TODOROV, 2004, p. 32). Para que se delimite a fronteira entre esses gêneros é preciso compreender que o fantástico dispõe de uma característica que lhe é própria do gênero: a hesitação do leitor, que pode vir a sentir dúvidas em relação aos acontecimentos narrados, se pertencem ao mundo natural ou ao sobrenatural, como se observa a seguir:

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O fantástico implica pois uma integração do leitor no mundo das personagens; define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos acontecimentos narrados... temos em vista não este ou aquele leitor particular, real, mas uma função de leitor implícita no texto (do mesmo modo que nele acha-se implícita a função do narrador)... Quando o leitor sai do mundo das personagens e voltar à sua prática própria (a de leitor), um novo perigo ameaça o fantástico. Perigo que se situa a nível da interpretação do texto. (TODOROV, 2004, p. 37).

Considerando as ponderações acima, chama-se atenção para dois fatores, o primeiro é que nem sempre se estabelece essa relação entre leitor e personagem, ou seja, a hesitação pode acontecer apenas com a personagem; o segundo ponto é que a hesitação não é obrigatória à personagem, podendo o fantástico ser evidenciado apenas na narrativa. Os gêneros estranho e maravilhoso oferecem risco ao fantástico. Segundo Todorov (2004) o fantástico localiza-se no limite entre os dois gêneros. O gênero estranho caracteriza-se pelas explicações acerca dos fatos que nascem da dúvida e partem para justificativas coerentes com o mundo real, ou com algo cujo mistério já apresente explicação; o gênero maravilhoso, por sua vez, possui explicações que fogem da realidade e atingem o plano irreal, dadas as impossibilidades de atingir fundamentos lógicos aos acontecimentos. Os caminhos seguidos pelas narrativas fantásticas podem convergir à vertente do real ou do sobrenatural. Quando toca o primeiro diz-se que a narrativa apresenta o estranho-maravilhoso, quando ao contrário, diz-se que a narrativa apresenta o fantástico-maravilhoso. Assim, o fantástico-estranho – sobrenatural explicado – na literatura está marcado por acontecimentos sobrenaturais que surgem no decorrer da narrativa, mas que ao final rebem explicações racionais. O fantástico-maravilhoso, por sua vez, implicada na existência de fatos sobrenaturais que permanecem até o final da narrativa, fazendo com que esta possa ser enfim denominada como narrativa fantástica. Portanto, o maravilhoso deve ser a última resposta a hesitação suscitada no enredo de uma narrativa fantástico-maravilhosa. Ter essa compreensão faz-se necessário para que se possa discorrer sobre a narrativa fantástica de que dispõe o conto estudado, cuja influência temática

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advém das narrativas do imaginário popular amazônico, as quais se apresentam frequentemente como marca da amazonicidade da literatura Larediana3.

Salomão Larêdo: escritor amazônida Salomão Larêdo é um escritor paraense contemporâneo, nascido em Cametá (Nordeste paraense), cidade onde ouviu pela primeira vez o canto do rio Tocantins, que logo ali, em frente a sua casa, seguia seu curso. Rio que veio a se tornar seu “confidente-amigo”, grande inspirador e causador de muitas lutas e saudades. Destaca-se nestas linhas as iniciativas cidadãs de Salomão Larêdo, envolvido diretamente com formação de leitores, com a formação de pessoas críticas, e com a divulgação da cultura e da literatura amazônica, o que procura viabilizar com a criação de projetos (como O Escritor na Cidade, Liberal na Escola e O Escritor na Escola), fundação de grupos e associações (Associação Paraense de Escritores e União Brasileira de Trovadores Seção Pará), e com idealização e organização de encontros (Encontros Mensais dos Escritores), dentre outras iniciativas. Salomão Larêdo possui uma lista extensa de produções literárias, “Cântico do Amor Amado”, seu primeiro livro (de poemas) foi lançado em 1972, mas além de poeta, o escritor é contista, cronista e romancista. Dentre suas principais produções está “Maraílhas”, publicada em 1991. A literatura de Salomão Larêdo dispõe de características regionalistas. Seu fazer literário é bastante particular, algumas narrativas têm as temáticas abstraídas da realidade, como de acontecimentos noticiados em jornais. Em outros textos há cortes repentinos das narrativas, quando as personagens mudam de espaço bruscamente, como em “Timbuí” e “Remo de Faias”, o conduz novos rumos (inusitados) às narrativas. A mitologia amazônica tem espaço reservado em sua literatura, como nas obras “Matintresh”, “Matinta Perera” e “Chapéu Virado”, em que as narrativas do imaginário popular amazônico são mescladas às tramas modernas. Outra marca da literatura Larediana é intertextualidade, como se dá no romance “Sibele 3. Termo criado para fazer referência à literatura de Salomão Larêdo.

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Mendes de Amor e Luta”, em que a protagonista é dotada de características antiheroicas, tal qual o protagonista da obra Macunaíma, de Mario de Andrade. Nota-se no trecho a seguir a tentativa de aproximar as narrativas: “Chega. E vamos ao sonho propriamente dito de nossa macunaíma, rainha da Amazônia, dama, santa, virgem, mulher, prostituta, criança, e prazer gostoso, que é Sibele Mendes” (LARÊDO, 1994, p. 124). A abordagem crítica sócio-política também é um elemento relevante na literatura do autor, revelada acentuadamente no romance “Guamares”, em que as mazelas sociais e os desencantos da cidade de Belém são deixados transparecer ao curso da narrativa: “A infância sem brinquedo, o péssimo tratamento que recebera da sociedade, gerou um bandido, é certo, mas de alma boníssima, que se interessava em dar tudo que não tivera a quem também nada tinha” (LARÊDO, 1989, p. 110). Havendo, porém, um paradoxo entre a denúncia social, a personalidade solidária e bondosa de algumas personagens. Em geral, a linguagem que permeia as narrativas do autor explora acentuadamente os coloquialismos da fala paraense. Esse recurso confere certa particularidade ao seu estilo literário, causando a impressão de que as narrativas foram transcritas da oralidade. Ainda no que toca à linguagem, outra marca é a presença de neologismos, o que confere sonoridade a alguns de seus textos (ainda que em prosa). Em vista dos pontos aqui elencados, a partir de levantamentos bibliográficos, constata-se que a literatura Larediana é contemporânea, pincelada com elementos modernistas e vastamente embebida pelas marcas de amazonicidade.

Dentre águas “Maraílhas”: leitura do conto “A Ilha do Cupelobo ou O Entero do Apostemado” “Maraílhas” é mais uma das obras primas de Salomão Larêdo, cujo título é

original e sugere sua temática narrativa, embora seja segundo o autor, uma homenagem ao nome de sua esposa Maria Lygia. Seu título casa perfeitamente com as temáticas dos contos que compõe a obra.

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A obra reúne 23 contos, cujas narrativas transcorrem em ilhas, assim, tomase cada conto um conto-ilha e a obra “Maraílhas” como um arquipélago de contos. O prenúncio da obra é o roteiro, que apresenta ao leitor as personagens como se fossem “estrelas” (Venusa, Verena, Venera); “atriz convidada” (Ginaflor); “elenco” (Tantão Jibóia, Gerusa, Padre Frário, Jamico...); e “convidada especial” (Vanju). É desse modo descontraído que o autor brinca com o leitor, apresentando ainda, roteiro, direção e ano de produção. Ao curso de toda a obra o autor sugere interrupções, momentos antes de o leitor viajar para o próximo conto-ilha, o que o faz apresentando algumas curiosidades sobre a região Amazônica ou como “intervalo”, uma espécie de trecho narrativo perdido de algum conto-ilha. Assim, todos os contos-ilhas são introduzidos por microtextos (cantigas, adágios populares, adivinhações, receitas...), esses microtextos transbordam detalhes regionais, alguns fazendo anúncio da temática, outros acrescentando-lhes valor estético. O conto-ilha “A Ilha do Cupelobo ou o Enterro do Apostemado”, assim como os demais contos da obra, transcorre em uma ilha. Seu enredo tem como fio condutor os acontecimentos decorridos em um enterro. Certo homem ribeirinho, após ter adoecido (apostemado) veio a falecer, deixando mulher e filhos. Diante do fato, sem nada mais a se poder fazer, providenciou-se seu enterro. Dados os fatores naturais a locomoção das pessoas até a ilha onde se dispunha de um cemitério foi por água. Um tumulto foi gerado quando na travesseia da ponte o caixão caiu na água, dando-se pelo sumiço do corpo. Ao se tomar o conto-ilha para estudo, identifica-se que as personagens representam um tipo-humano típico da região Amazônica: a população ribeirinha. Suas personagens são: a viúva; os filhos; os remadores; os coveiros; Pureza, Ginaflor, Jurubeba e velho Nemézio (acompanhantes do enterro). Dentre as personagens apenas Ginaflor recebeu descrição de suas características, o que sugere que a narrativa não está centrada nas personagens, embora representem o tipo humano (caboclo amazônida) que ao integrar à narrativa homenageia aos “Josés”, às “Marias”, aos “Joãos”, humildes pessoas da rica Amazônia, repercutindo em seu texto a amazonicidade.

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Outros elementos de amazonicidade são evidenciados na narrativa, como natureza e linguagem. O espaço da narrativa consiste em uma reprodução da natureza amazônica. Ressalta-se que todos os acontecimentos do conto-ilha são conduzidos pela água, é ela quem os decide: “Ninguém queria se jogar n’água e caixão fazendo água pouco a pouco cedia. Vieram em auxílio, alguns moradores do povoado. No que pegaram o caixão, o corpo não estava mais” (LARÊDO, 2001, p. 100).Outros elementos naturais – além da água – demonstram que o ritmo de vida de quem vive no espaço ribeirinho é envolvido pela natureza: “Quando passavam pelo Jurubatuba, a saracura catou eram batata 9 horas da manhã... Numa encontroada lá se vai o caixão... maré cheia que a saracura avisara estava mudando” (LARÊRO, 2001, p. 100). Segundo o conhecimento popular, a saracura é um pássaro que canta sempre que a maré está a encher, compartilhado seu conhecimento com o caboclo através do cantar. No que toca a questão da linguagem, nota-se que no conto-ilha vigora uma linguagem alegórica da fala coloquial amazônida. Os aspectos concernentes a essa fala se manifestam tanto na voz narrativa quanto nos discursos das personagens: “Ai! Gritou Ginaflor. _ Pegaru na minha iscusa!... Tu tá inventando, corna! Juro que não! Pela bença de Deus. (LARÊDO, 2001, p. 99-100). Cabe salientar que a linguagem de que dispõe a narrativa além de reproduzir a fala coloquial, lhe atribui um tom humorado. Este conto– ilha apresenta uma linguagem que é marca da Literatura Larediana, em cuja narrativa – tal qual em diversos de seus textos- as personagens esbanjam vocabulários moldados a partir da fala amazônida. Esse aspecto requer cuidados ao leitor para a boa compreensão da leitura, dados os frequentes usos de termos coloquiais e regionais amazônicos.

Um passeio pelo fantástico conto “A Ilha do Cupelobo” Quando a chuva chegou, com o temporal, mais tenebrosa foi a noite. Muita gente passou a ver um vulto. Era o cupelobo. Ninguém quis mais morar na ilha. Virou tapera cheia de visagem (LARÊDO, 2001, p. 100).

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GLAYCE DE FATIMA FERNANDES DA SILVA E LARISSA FOTINELE DE ALENCAR

Observou-se ao curso da narrativa do conto-ilha que alguns elementos de amazonicidade a incorporam. Cabe neste momento dar destaque a outro elemento: as crenças do imaginário popular amazônico. O espaço reservado a este elemento se justifica pelo teor fantástico atribuído à narrativa quando a ela é incorporado. O fragmento acima apresenta o desfecho da narrativa, em que fica evidenciado que as personagens compartilham da mesma situação de medo e das mesmas crenças, assim esse aspecto do comportamento coletivo sinaliza um aspecto cultural. As personagens do conto comungam da mesma realidade social, habitam povoados às margens de rios amazônicos. Esse fato faz com que compartilhem da crença em visagens. As narrativas de visagens que assombram taperas (lugares inabitados e abandonados) são comuns no imaginário popular amazônico. Esse viés explorado na narrativa a confere características de literária amazônica e fantástica. O primeiro sinal de que o conto-ilha é fantástico se dá no momento do sumiço do corpo do defunto, posteriormente outros acontecimentos acentuam essa característica: “Não podia ser, aquele braço de rio não suportava muita água e a profundidade, mínima...” (LARÊDO, 2001, p. 100). Os questionamentos levantados começam a indicar que a situação é permeada por algo sobrenatural: “Sumiu o corpo. Acho que não podia sair, a maré está subindo e o corpo tem que estar pra cima não pra baixo... É impossível ter sumido assim tão rápido e, para onde? Não tem explicação...” (Ibidem). A narrativa vai se expandindo no terreno fantástico à medida que as explicações plausíveis para o fato vão se esgotando. Enfim, quando todas as possibilidades de busca pelo corpo se esgotam o teor fantástico aumenta, sobretudo, em decorrência da incerteza deixada ao leitor. Nesse sentido, o fantástico, para Todorov (2004, p. 37), “define-se pela percepção ambígua que tem o próprio leitor dos acontecimentos narrados”. O olhar interpretativo lançado à narrativa permitiu perceber que o medo gerado às personagens lhes conduziu a compreensão dos fatos circunscritos ao plano sobrenatural. Já ao leitor restam perguntas, releituras, novas análises e,

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Dentre as águas de “Maraílhas”: leitura do conto “A ilha do cupelobo ou o enterro do apostemado” de Salomão Larêdo

assim, continuar sua hesitação, o que, portanto, atrela à narrativa às margens do fantástico-maravilhoso.

Considerações finais Ter abraçado a literatura de Salomão Larêdo para estudo permitiu o experimento simultâneo dos sabores e os dissabores de uma Literatura Contemporânea, ao passo que é capaz de cativar, contagiar e afagar por um lado; e inquietar, provocar e “agredir” por outro. Sim, cativa pela temática amazônica apresentada em suas linhas; contagia com as declarações de amor feitas à região, percebida a cada minúcia de detalhe sobre tudo que representa a Amazônia em sua literatura; afaga pelo querer conquistar ao leitor. E sim, inquieta pela maneira incomum de conduzir as narrativas; provoca ao trazer à tona as realidades mais sofridas do povo amazônida; e agride a consciência do leitor, que por vezes prefere ficar na comodidade de leituras para mero deleite, negando-se a fazer reflexões críticas. A leitura interpretativa do conto-ilha permitiu identificar os elementos concernentes à identidade cultural amazônica em todo seu curso. Foi possível ainda, caracterizar a narrativa como fantástica, constatando-se seu teor fantásticomaravilhoso. Olhar para o conto-ilha eleito para estudo não poderia acontecer fora do arquipélago chamado “Maraílhas”, essa contextualização na obra permitiu perceber que embora os contos disponham de narrativas isoladas, essa obra possui o diferencial de ser entrecortada por detalhes que ligam os contos uns aos outros, tal qual as águas que envolvem ilhas em uma mesmo arquipélago. O conto-ilha “A Ilha do Cupelobo”, permitiu uma leitura diferenciada dos demais contos do arquipélago “Maraílhas” por sua característica fantástica. Dessa forma, observou-se que a identidade cultural amazônica se apresenta na narrativa nas crenças e costumes da população amazônida, que transmitidos por gerações, além do tipo humano, natureza, linguagem abordados.

Referências COELHO, Maurinice Oliveira. O Grupo dos Novos: memórias literárias de Belém do Pará. Belém: UFPA, 2005. HALL, Stuart. A Identidade cultural na pós-modernidade. Trad.: Tomaz Tadeu da Silva; Guaracia Lopes Louro. 4 ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000.

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GLAYCE DE FATIMA FERNANDES DA SILVA E LARISSA FOTINELE DE ALENCAR

LARÊDO, Salomão. Chapéu Virado: encantamento amazônico. Belém: Salomão Larêdo, 1997. ______. Guamares. Belém: CEJUP, 1989. ______. Maraílhas. Belém: CEJUP, 2001. ______. Matintresh Antígona exAmazônica. Belém: Salomão Larêdo, 2003. ______. Matinta-Perera o medo de amar. Belém: Salomão Larêdo, 2003. ______. Sibele Mendes de amor e luta. Belém: Fanlangola, 1994. ______. Timbuí a lenda da anta. Belém: Salomão Larêdo, 1998. NUNES, Paulo; FARES, Josse; FARES, Josebel Akel. Ensaios de Literatura Amazônica: caderno de textos I. Belém: UNAMA, 2004. TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução: Maria Clara Correa Castelo. 3 ed. São Paulo: Perspectiva, 2004.

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O GROTESCO NAS CANTIGAS DE SANTA MARIA Aldilene Lopes de Morais (PPGLS-UFPA) Alessandra Fabrícia Conde da Silva (UFPA)

Introdução Sabemos que as CSM1 louvavam os milagres marianos, no entanto, nosso trabalho não consiste em fazer uma abordagem sobre os milagres louvados por Afonso X, mas constitui-se de um estudo sobre como o riso, apesar de estar à margem da cultura oficial, fez-se presente na literatura medieval, assim como também nas CSM. Como veremos, Afonso X, apesar de expurgar o riso2 dos cultos religiosos, em algumas de suas cantigas, cujo foco seria louvar os grandes milagres marianos, apresenta construções de imagens grotescas que conduzem ao riso. Dessa forma, será realizado um estudo sobre o grotesco, como elemento pertencente à cultura cômica popular. O termo grotesco de acordo com Bakhtin (1999, p.41) pauta-se na cultura popular, ligado ao carnaval, movimento em que são manifestados o cômico e o riso. Assim sendo, as formas cômicas da cultura popular seguiam a vida da sociedade medieval em quase todos os aspectos, tanto nas festas profanas, quanto nos ritos religiosos, como afirma-nos Bakhtin (1999, p. 4). Sobre o grotesco, dois pontos precisam ser esclarecidos. Primeiro, segundo as concepções de Bakhtin (1999), existem duas formas de grotesco, de um lado temos o realismo grotesco, que está presente na “cultura cômica popular” (BAKHTIN, 1999, p. 17), cujo delineamento se dá pelo rebaixamento de tudo que é considerado como transcendental e elevado espiritualmente. Para

1. Neste trabalho utilizaremos a sigla CSM quando nos referirmos às Cantigas de Santa Maria. 2. Notemos que quando falamos sobre o riso, remetemo-nos ao teatro satírico, que conduz ao riso, e que foi expulso dos templos, mas estava permitido nas praças públicas (REBELLO, 1977, p. 18-19).

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O grotesco nas cantigas de Santa Maria

Bakhtin (1999, p. 17), há uma “transferência” desses elementos para o “plano material e corporal” que não devem ser vislumbrados em seu caráter negativo, em contrapartida, é positivo e regenerador, haja vista a sua ambivalência, pois é “ao mesmo tempo negação e afirmação”. Outro ponto que deve ser frisado sobre o grotesco, mencionado por Bakhtin em seu estudo, concerne ao grotesco romântico, detentor de uma abordagem diferenciada: o elemento regenerador não mais existe, o que sobressai é o terror e o temor. Dessa maneira, nosso estudo se embasará, no realismo grotesco, que está atrelado ao elemento cômico presente na cultura popular da Idade Média. Buscaremos apresentar algumas imagens grotescas, isto é, fora do padrão da cultura oficial, que poderão ser vistas nas Cantigas de Santa Maria de Afonso X. Estas apresentam um corpus de 427 cantigas, no entanto, nos limitaremos ao estudo de apenas duas cantigas, em cujas composições está presente o grotesco que conduz ao riso.

Afonso X e as cantigas de Santa Maria Afonso X em Las siete partidas proíbe que os clérigos façam “jogos de escárneo”, no entanto, este mesmo rei apresentou conjuntamente à matéria religiosa elementos jocosos, como trataremos adiante a respeito das imagens grotescas presentes nas Cantigas de Santa Maria. Como alude-nos Francisco Rebello (1977, p. 18-19), Afonso X embora tivesse proibido o jogo escarninho, não proibiu a representação dramática, desde que fosse fora da Igreja. Rebello (1977, p. 28), tratando do primitivo teatro português, ainda acrescenta que nos estatutos que D. Frei Telo, arcebispo de Braga, promulgou em 1281, adverte-se solenemente o clero de que não deverá ter contactos com «jograis, mimos e histriões» – o que prova, a contrario, a existência de representações relacionadas com actos do culto nas quais se introduziriam elementos profanos, pois «os sínodos não legislavam para situações irreais», como observa judiciosamente Mário Martins. No entanto, apesar da proibição ordenada, tudo leva a crer que tais representações continuaram a fazer-se, uma vez que documentos conciliares posteriores reiteradamente a decretaram.

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Assim como Afonso X prescrevera nas Leis, em Portugal, também buscouse a proibição de elementos profanos, elementos que nos permitem a pensar nas imagens grotescas. Mas o que de fato nos interessa é que ainda que o Rei de Leão e Castela tivesse outorgado a censura, quanto ao uso de chistes e sua presença em questões religiosas, a sua prática não condizia com tais leis. O próprio rei sábio, em o Libro Del Acedrex, “o primeiro tratado de xadrez do Ocidente, composto em 1823 (...), começa com a rotunda afirmação”: Deus quis que os homens naturalmente tivessem todas as formas de alegria para que pudessem suportar os desgostos e tribulações da vida, quando lhes sobreviessem. Por isso os homens procuraram muitos modos de realizar com plenitude tal alegria e criaram diversos jogos que os divertissem (...). E esses jogos são muito bons etc. (LAUAND, s/d)

Vemos, então que o riso estava presente na sociedade Medieval. Aliás, L Jean Lauand3 fala-nos sobre a pedagogia do riso, pontuando que Afonso X, assim como Alcuíno, Petrus Alfonsus e Rosvita de Gandersheim, tinham pontos em comum no que se refere ao uso do lúdico, pois apesar de serem mestres eruditos de seu tempo, utilizavam-se de “uma pedagogia de caráter acentuadamente popular” (LAUAND, s/d, s/p). Todos esses autores se utilizavam do lúdico como forma de educar, de maneira que usavam em seus ensinamentos “charadas, teatro, anedotas ou jogos”. A religião agrega-se a esses elementos como um dos pontos principais na educação medieval, sendo considerada como “‘tema transversal’” na educação medieval. (LAUAND, s/d, s/p). Assim, importa-nos conhecer a respeito de Afonso X e das Cantigas de Santa Maria. Afonso X, também alcunhado de “O sábio”, foi um dos grandes reis ocidentais presente no século XIII. Era um rei que lutava em prol da centralização do reino – projeto que foi iniciado por seu pai Ferrnando III em 1217-1252 – assim como também era um monarca que tinha íntima relação com o “conhecimento [em geral] e as artes”, segundo afirma-nos Carolina Michaëlis (2004, p. 340). 3. O texto desse autor está disponível em http://www.hottopos.com/notand7/jeanludus.htm, em que não há indicação sobre o ano de publicação e a página.

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O grotesco nas cantigas de Santa Maria

Durante seu governo, houve grande avanço no que concerne à difusão do conhecimento, pois ele não mediu esforços para mandar traduzir e compor obras. É interessante que Afonso X não apenas financiava, mas participava de todo o processo de tradução das obras que ele mesmo elegia. É nesse período que há as restaurações das universidades de Salamanca, Sevilha e Valladolid, assim como criou um “completo sistema de leis”. Dentre as diversas composições artísticas do grande rei “Sábio” as Cantigas de Santa Maria se constituem uma das mais importantes (SOKOLOWSKI, 2010, p. 9). Rodrigues Lapa (1981) salienta-nos que as cantigas figuram no total de 427 criações. Concernente à estrutura, o estudioso português (LAPA, 1981, p. 210) pontua que elas se apresentam, em grande parte, na forma narrativa e “em prosa metrificada, atingindo muitas vezes 15 sílabas por verso e, excepcionalmente, 23.” É válido ressaltar que as cantigas enumeradas acima não foram compostas apenas por Afonso X, pois para Lapa (1981, p. 211) houve participação de colaboradores, conforme o exposto no “manuscrito de toledano”, que apresenta a autoria de apenas 100 cantigas destinadas ao monarca. Para Lapa (1981, p.216), de forma geral, as CSM ensejam um “realismo atrevido” da vida, de maneira que Afonso X e seus companheiros cooperadores trovadores buscavam um cruzamento entre o campo religioso e o profano, não havendo separação entre ambos. De forma louvável, as CSM retratam a “humanização do sagrado” (LAPA, 1981, p. 216). Mas antes de realizarmos o nosso estudo sobre tais cantigas de Santa Maria, é necessário que façamos incursões sobre o grotesco.

O grotesco É imprescindível que entendamos como o grotesco se configura na obra A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: o contexto de François Rabelais de Mikhail Bakhtin (1999), onde são abordados aspectos da cultura cômica popular e de suas características originais. É dentro desse contexto que a noção de grotesco surge, pois está intimamente ligada à cultura popular. É interessante ressaltar que Bakhtin, ao fazer um estudo da obra de Rabelais, discorre sobre

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o grotesco, de forma geral, tanto na Idade Média, quanto no Renascimento, além de tecer alguns comentários sobre esta estética em épocas posteriores. A expressão ‘grotesco’, desde que surgiu, está associada à cultura popular e ao cômico, sempre relacionada ao carnaval, como esclarece Bakhtin (1999, p. 41). O carnaval com suas manifestações do cômico e do riso constituía-se um elemento primordial na vida da sociedade medieval (BAKHTIN, 1999, p.4). O elemento cômico acompanhava a vida das pessoas em quase todos os aspectos, pois Bakhtin (1999, p.4) expõe que havia celebrações de várias festas populares, como “a festa dos tolos”, a “festa do asno”, “riso pascal”, até mesmo as festas religiosas adquiriam um caráter “cômico e popular”. Dentro dessa perspectiva, Bakhtin (1999, p. 3) expõe-nos que o riso está arraigado à cultura cômica popular da Idade Média e do Renascimento. Esse aspecto do risível, o qual está presente nas manifestações populares, contrasta com a maneira “séria” e cristã peculiar ao período medieval. Essa dessemelhança constituía uma duplicidade do mundo. Assim, Bakhtin (1999, p.4-5) ressaltanos que todos os ritos e espetáculos organizados à maneira cômica apresentavam uma diferença notável, uma diferença de princípio, poderíamos dizer, em relação às formas do culto e às cerimônias oficiais sérias da igreja ou do Estado feudal. Ofereciam uma visão do mundo, do homem e das relações humanas totalmente diferente, deliberadamente não-oficial, exterior a igreja e ao Estado; pareciam ter constituído, ao lado do mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida aos quais os homens da Idade Média pertenciam em maior ou menor proporção, e nos quais eles viviam em ocasiões determinadas. Isso criava uma espécie de dualidade do mundo [...]

No que concerne ao estudo do grotesco, Bakhtin (1999, p.16) acrescenta que é recorrente “o princípio da vida material e corporal: imagens do corpo, da bebida, da comida, da satisfação de necessidades naturais e sexual. São imagens exageradas e hipertrofiadas.” As imagens referentes a esse princípio material e corporal na cultura cômica popular – as quais são divergentes das demais culturas que surgirão posteriormente – serão denominadas de realismo grotesco (BAKHTIN, 1999, p. 16). Essas imagens exageradas, não convencionais ao que se 151


O grotesco nas cantigas de Santa Maria

costumava encontrar, são extremamente positivas, ou seja, não estão separadas dos demais elementos recorrentes à vida. Para Bakhtin (1999, p. 17), o “princípio material e corporal é percebido como universal e popular”. Esse princípio material e corporal recorrente na obra de Rabelais, o qual caracteriza o grotesco, não se situa em um ser individual muito menos no “ser biológico”, no entanto, se configura no coletivo, isto é, no povo. Dessa forma, o componente corporal é sempre “magnífico, exagerado e infinito” (BAKHTIN, 1999, p. 17). Assim, as imagens que constituem o grotesco sempre são contrárias às imagens clássicas, em que o corpo humano está sempre em estado de perfeição. No realismo grotesco a imagem é sempre disforme e monstruosa, desvirtuando-se, esteticamente, do belo, conhecido contemporaneamente. Assim sendo, um estudo sobre o elemento grotesco em algumas Cantigas de Santa Maria é pertinente, haja vista, que apesar de retratarem os milagres marianos, não deixam de apresentar alguns elementos profanos como já atestou Lapa (1981, p.216).

A imagem grotesca em algumas cantigas de Santa Maria de Afonso Sabemos que as imagens grotescas na Idade Média e Renascimento são provenientes da cultura cômica popular, cuja manifestação está atrelada ao cômico e ao carnaval, aspectos que são recorrentes no mundo da cultura popular e que, apesar de situar-se à margem da cultura oficial, não deixa de permanecer em toda a sociedade medieval, como já atestou-nos Mikhail Bakhtin (1999, p.4). Dentro dessa perspectiva, iremos entender como esse elemento se configura em algumas Cantigas de Santa Maria. Dessa maneira iremos nos direcionar, inicialmente, para a análise da cantiga Quen leixar Santa Maria (132). “Esta é como Santa Maria fez ao crerigo que lle prometera castidade e sse casara que leixasse ssa moller e a fosse servir” (CSM, 132).. A cantiga apresenta a história do clérigo que prometera fidelidade à Santa Maria, de forma que permaneceu casto por um longo tempo. O clérigo perde seus pais; com o passar dos tempos, ele adquire grande riqueza. Seus familiares o aconselham a casar, pois não era bom que ele continuasse sozinho. Assim o 152


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fez. A santa ao saber que ele tinha quebrado seu compromisso de castidade e fidelidade, adormece-o no dia do casamento, para adverti-lo, pois ele havia prometido-lhe castidade. A santa questionava que o rapaz era um mentiroso, que preferiu os prazeres carnais e a riqueza a ser seu servo. Logo, em seguida, o rapaz desperta e vai para o seu casamento. Ao chegar, à noite, a cantiga conta que: Enton ambo-los deytaron na camara em um leyto; e dês que soos ficaron e el viu dela o peyto, logo ambos ss’ abraçaron, cuidand’ ela seu dereyto aver del, mais non podia Quem leixar Santa Maria... Ca pero a gran beldade dela fez que a quisesse o noivo de voontade e que lle muito prouguesse, a Virgen de piadade lle fez que o non fezesse. E do leit’ enton s’ erguia Quen leixar Santa Maria... E logo foi ssa carreyra e leixou a gran requeza que avia, e maneyra fillou de mui gran pobreza por servir a que senlleyra foi e será en nobreza, que os seus amigos guia,[...] (CSM, 132).

Como é perceptível, a Santa não admite a traição do ex-clérigo e faz com que ele perca a libido. Após esse episódio, a cantiga pontua que o rapaz sai imediatamente do local em que estava passando a viver resignadamente em devoção à Virgem Maria.

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O grotesco nas cantigas de Santa Maria

Na cantiga descrita acima, é compreensível a presença do realismo grotesco, com o baixo corporal, haja vista, que há uma alusão ao ato sexual, apesar de não ser concretizado, pois a Santa Maria não permitiu. Dessa maneira, podemos vislumbrar a presença do rebaixamento. Assim sendo, Bakhtin (1999, p.325) salienta-nos que o rebaixamento é enfim o princípio artístico essencial do realismo grotesco: todas as coisas sagradas e elevadas aí estão reinterpretadas no plano material e corporal [...] é o céu que desce a terra e não o inverso.

Levando essas informações em consideração, na cantiga, o aspecto sagrado que está personificado na imagem da Santa Maria, perde seu valor e se funde com as coisas materiais e corporais, configurando o realismo grotesco. Ao ler a cantiga, no momento em que a santa se ira contra o rapaz, percebemos a santa não como um ser sagrado, mas como um ser humano que se injuria, irrita-se e sente ciúmes. Características peculiares aos seres terrenos e não aos divinos. Ainda sobre o realismo grotesco, Bakhtin (1999, p. 278) afirma-nos que “órgãos genitais, traseiro, ventre, boca, nariz”, são dados recorrentes nas imagens grotescas. Na cantiga Quen leixar Santa Maria (132), apesar de não haver uma referência direta aos órgãos sexuais, há uma tentativa de relação sexual, pelo menos os seus preliminares, pois a Santa Maria, não permite que o ato sexual seja concretizado. Implicitamente, podemos perceber essa questão no seguinte fragmento a seguir: Ca pero a gran beldade dela fez que a quisesse o noivo de voontade e que lle muito prouguesse, a Virgen de piadade lle fez que o non fezesse. E do leit’ enton s’ erguia [...] (CSM, 132)

A santa na cantiga132 age como sendo uma pessoa humana, de forma que há uma alteração do plano transcendental para o material, como é descrito por 154


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Bakhtin (1999, p.17). Questões como estas estavam presentes no “ambiente escolar e culto da Idade Média”, isto é, a pedagogia medieval utilizava-se do elemento “jocoso” como forma de didatizar a sociedade. Isso era feito por meio de paródias sacras, como explica-nos Bakhtin (1999, p.18). Esse comportamento da “Santa” perante o sentimento amoroso é explicado por Rodrigues Lapa (1981, p. 215), quando chama-nos a atenção para esse fato, pois o que aos nossos olhos poderia parecer espantoso e estranho, pelos medievais era vislumbrado de forma natural, haja vista, que a mentalidade desse período era essencialmente cristã, explicando tais comportamentos nas cantigas. Ainda sobre isso, Lapa (1981, p.215) indica-nos que “assim, os santos e santas, intimamente misturados com os homens, eram obrigados a tomar deles os costumes e até os sentimentos. Só por esse modo poderiam ser compreendidos por eles e influir neles”. Nessa cantiga, o fato da santa não deixar o moço concretizar seu matrimônio, gera o cômico, o riso, aos que a ouvem ou a lêem, permitindo-nos reconhecer a presença do grotesco. Ainda sobre o grotesco nos direcionaremos para a cantiga 225 intitulada Muito bom miragr’ a Virgen faz. Nela iremos entender “Como hu clerigo ena missa consomiu ha aranna que lle caeu no calez, e andava-lle ontr’ o coiro e a carne viva, e fez Santa [Maria] que lle saysse pela unna” (CSM, 225). Nessa cantiga, iremos presenciar um fato intrigante e engraçado. A cantiga esclarece-nos que certo padre em uma missa, após comer a hóstia, quis beber o cálice que simboliza o sangue de Cristo. Dentro do recipiente, em que estava o sangue que ia beber, tinha uma grande aranha que nadava. Apesar desse fato, o clérigo o bebeu, pois não queria perder nenhuma gota do vinho de Espanha. Assim sendo, ao consumir a bebida, a aranha entrou no corpo do rapaz e Deus não permitiu que ela morresse e nem que o mordesse, e não fazia nem bem nem mal, por virtude de Santa Maria. A cantiga relata que a aranha passeava pelo corpo do padre entre o couro e a carne e andava muito rápido. O padre se angustiava muito, por conta disso, pedia a Deus e à Virgem Maria que o matasse ou o livrasse desse grande sofrimento. Certo dia, a aranha estava andando pelo braço direito do padre, quando de repente o seu braço começou a esquentar e ele o coçava veemen155


O grotesco nas cantigas de Santa Maria

temente. Surpreendente, e por milagre da Santa Maria, a aranha sai pela sua unha. O padre, então, a guardou em uma bolsa. Na celebração de uma missa, o clérigo contou os grandes feitos da Santa Maria e de filho Jesus Cristo, de forma que acaba por ingerir conscientemente a aranha novamente e diz tratar-se de um saboroso alimento. Assim, a fé do padre aumentou pelo grande milagre que a Santa Maria lhe fez. Nessa cantiga de Afonso X, podemos vislumbrar o elemento grotesco, pois o riso é provocado quando a aranha começa a passear pelo corpo do clérigo e ele começa a coçar-se. Esse aspecto é perceptível no seguinte trecho: Esta aranna andando per cima do espaço e depois pelos costados e en dereito do baço, des y ya-ll’ aos peitos e sol non leixava braço per que assi non andasse; e o corpo mui Veloso (CSM, 125)

A descrição de como a aranha percorre o corpo do padre, leva-nos ao riso configurando-se um elemento grotesco. É interessante ressaltar o que Bakhtin (1999, p. 250) diz-nos sobre o vinho no contexto da cultura popular. Para ele, o vinho é o oposto do azeite, “símbolo do sério piedoso e oficial, ‘da piedade e do temor de Deus’. A vinho liberta do medo e da piedade”. Dentro dessa perspectiva, o vinho se configura como algo que está dentro do contexto profano, pois de certa maneira ele provoca a liberdade nas pessoas em relação ao tom sério e temeroso que era imposto pela cultura oficial. É válido considerar ainda que o vinho também é símbolo do cristianismo. Bakhtin ao falar que o vinho é algo pertencente à cultura popular refere-se ao excesso do vinho. Notemos que o padre descrito na cantiga não queria perder nenhuma parte do vinho tão precioso. O fato do padre ingerir o vinho juntamente com a aranha, configura-se um ato pecaminoso, haja vista que o padre desejou beber todo o vinho que havia dentro do cálice, configurando um ato de glutonaria. Dessa maneira, de acordo com as representações corporais grotescas, a imagem da aranha torna-se ambivalente, haja vista, que ela nasce por conta do pecado, mas por conta do 156


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milagre da Santa Maria ela morre, corroborando com o que diz Bakhtin (1999, p. 22) sobre a ambivalência em que há “dois pólos de mudança – o antigo e o novo, o que morre e o que nasce o princípio e o fim da metamorfose”. O padre, primeiramente, consome a aranha através do vinho, metaforizando a absorção do pecado, por fim a aranha sai pela unha do clérigo, configurando o milagre da santa. Ao comer novamente aranha, ela não é mais considerada como um bicho “lixoso”, no entanto, agora ela se mostra um alimento saudável. Sabemos que o riso apesar de ser relegado pela igreja oficial estava presente nos cultos e nas cerimônias oficiais da igreja. Dessa forma, houve a necessidade de se “legalizar” esse riso que, de certa maneira, estava fora da igreja. Assim Bakhtin (1999, p. 64) afirma-nos que nas formas e no próprio culto religioso herdados da Antiguidade, penetrados pela influência do Oriente, e influenciados em parte por certos ritos pagãos locais (sobretudo os da fecundidade), observam-se embriões de alegria e de riso às vezes dissimulados na liturgia, no rito dos funerais, do batismo ou do casamento, ou mesmo em várias outras cerimônias.

Afonso X em Las siete partidas, como já esclarecemos, proíbe as manifestações do riso dentro das igrejas, apesar de utilizar elementos cômicos em suas produções religiosas, como nas CSM. O rei cognominado “O sábio” utilizava de forma pedagógica do elemento cômico para que pudesse ensinar (LAUAND). Dessa maneira, o riso pode ser justificado dentro dos ritos marianos e dos grandes milagres da Virgem Maria. O elemento sagrado e o profano andavam de mãos dadas nas Cantigas de Santa Maria. O grotesco que conduzia ao riso e ao jocoso eram aspectos que estavam arraigados à cultura popular. Vimos, também, que por mais que a cultura oficial negasse o riso e todos os elementos que constituíam o grotesco, no transcorrer dos tempos, a cultura popular e a cultura oficial agregavam os mesmos elementos, pois a Igreja promovia as festas cristãs no mesmo período das festas profanas, momento em que coexistiam junto, aos ritos sagrados, as manifestações do riso (BAKHTIN, 1999, p. 66).

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Considerações finais Este trabalho teve como ponto primordial, realizar um estudo sobre grotesco em algumas Cantigas de Santa Maria, buscando compreender como a Literatura do período Medieval lidou com a religiosidade. Vimos, então, que na obra de Afonso X, nas Cantigas de Santa Maria, há uma digressão. O elemento religioso é subvertido. Afonso X declara que o riso não deve ser utilizado no interior das igrejas, o que não excluía a sua presença em locais externos dos templos. Em algumas de suas cantigas há a presença do elemento cômico, a partir das imagens grotescas, isto é, das imagens da cultura não oficial (BAKHTIN, 1999, p. 4 - 5). Dessa maneira, buscamos compreender como as cantigas de Santa Maria de Afonso X, havia a presença de elementos profanos como o riso, que a igreja tentava a todo custo tolher, mas como se percebeu, acabou influindo na cultura oficial clerical. Segundo Jacques Dalarum (1990, p. 40) é somente a partir do século XII que o culto à Maria ganha maiores proporções. Nesse período, os templos começavam a ser construídos com o intuito de venerá-la. De acordo com Rodrigues Lapa (1981, p. 216) nas CSM era recorrente a presença de aspectos humanos. É válido ressaltar que o viés religioso continuou presente, haja vista que as cantigas tinham como intuito louvar os milagres marianos. Buscou-se traçar um panorama de como o grotesco se configurou na cultura popular da Idade Média. Mikhail Bakhtin (1999) foi o referencial teórico, no qual podemos perceber que o riso sempre foi deixado à margem na cultura clerical oficial. As manifestações do riso estavam intimamente ligadas ao povo, o que não deixou de influir na cultura oficial, como verificou-se. Em suma, constatamos a presença de algumas imagens grotescas nas Cantigas de Santa Maria. Mário Martins (1986, p. 21), como já se observou, falou-nos sobre a presença da sátira nas cantigas de Santa Maria. Assim sendo, a presença do grotesco conduzia ao riso, o qual estava intrinsecamente arraigado à cultura popular (BAKHTIN, 1999, p. 41). 158


ALDILENE LOPES DE MORAIS E ALESSANDRA FABRÍCIA CONDE DA SILVA

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O MOTIVO DA BESTA LADRADOR N’A DEMANDA DO SANTO GRAAL Adriana da Silva Lopes (PPGLS-UFPA)

Introdução A literatura da Idade Média mostrou-se fornecedora de obras singulares. A novela de cavalaria A Demanda do Santo Graal insere-se nessa lista por representar o imaginário medieval, o sistema cavalheiresco da época, a busca incessante por um objeto sagrado (o Graal), que vem a ser a esperança de um reino e, sobretudo, por enaltecer certos valores moralistas, baseando-se em ensinamentos religiosos. Por ilustração, há as ações de alguns cavaleiros: Galaaz representa a força da cavalaria e sua extrema devoção faz com que seja considerado o “puro dos puros”. Para Heitor Megale (2001, p. 27), “(...) [a] própria Demanda do Santo Graal desperta, quando já se tem conhecimento da matéria, um certo magnetismo, uma espécie de magia que atrai e seduz”. Nessa perspectiva de se fazer conhecer a matéria da Bretanha, busca-se estudar uma criatura indispensável para o desencadeamento da novela: a Besta Ladrador. Esta é dotada de certa moralidade, correspondendo ao ideário cristão que influenciou toda a literatura do período. Nesta perspectiva, será estudado o motivo da Besta n’A Demanda do Santo Graal, uma vez que a Bíblia é bastante presente na concepção medieval, e por tratarmos de alegoria, nosso estudo busca entender a relação existente entre a Besta e o Diabo. O artigo destina-se a entender a presença da Besta Ladrador n’A Demanda do Santo Graal. O foco deste estudo será compreender as ações dessa criatura para poder relacioná-la com a forma do Diabo. Para isto, as considerações de Márcia Mongelli, Heitor Megale e Esther Corral Díaz servirão como base para tal analogia. Já que se fala de Demônio e figuras deformadas na Demanda, é indispensável atentar para a presença destes seres na Idade Média. Os estudos de

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O motivo da Besta Ladrador n’A demanda do Santo Graal

Sergio Alberto Feldman e, sobretudo, Umberto Eco acrescentarão informações sobre o Diabo no contexto do imaginário da época Medieval. Ainda, no artigo em questão, a Bíblia será um intertexto. A Besta no Livro de Apocalipse, assim como na Demanda, adquire a expressão do Demônio. Na Literatura Medieval, geralmente, a Besta está sob forma horrenda, como poderá ser constatado na cantiga de escárnio e maldizer de Fernando Esquio. A Besta como representante do Diabo será encontrada também na Hagiografia Medieval que narra a vida de São Gonçalo de Amarante correspondendo, assim, a outra leitura intertextual. Para a construção deste trabalho foi necessário realizar leituras intertextuais, para poder compreender a Besta como um elemento que permeava a literatura Medieval e um ser integrante do imaginário da época.

A Besta Ladrador na Demanda Dentre as três maravilhas inseridas na Demanda do Santo Graal, destaca-se a da Besta Ladrador, um animal horrendo, cuja imagem e atitude remetem ao mal e pode equiparar-se ao Demônio, tal como se verá no referido artigo. A primeira aparição da Besta Ladrador n’A Demanda do Santo Graal acontece quando Galaaz, Dondinax e Ivã, o bastardo, entram em uma floresta e encontram a besta desassemelhada; esta trazia consigo cães que ladravam (DSG, 1995, p. 76). A princípio, os cavaleiros entenderam que os ladridos vinham de cães que a seguiam, mas logo em seguida percebem que as vozes surgiam de dentro dela. Galaaz surpreso diz: “par Deus, amigos, fremosa aventura e maravilhosa é aquela e semelha-me que seria aventurado quem soubesse onde estas vozes saem que aqui jazem ascondidas” (DSG, 1995, p. 76). A partir disso, Ivã, o bastardo, sugere aos outros cavaleiros para que saiam à procura da besta para descobrir como surgem as vozes. A partir de então, a narrativa se volta para as aventuras dos cavaleiros e sua intensa busca pela Besta Ladrador. Eles conhecem Palamades, um cavaleiro pagão e filho de Esclabor. Aquele, por sua vez, quer vingar-se da besta por ter matado sua família. Para isso, Palamades não permite que nenhum outro cavaleiro a cace. No decorrer da narrativa, o cavaleiro pagão trava batalhas contra 162


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Ivã, o bastardo, com Giflet, Boorz, Persival, Galvão e também com Galaaz. Este o derrota e o convence a render-se ao cristianismo. Somente ao ser batizado, Palamades com a ajuda de Galaaz e Persival, consegue matar a Besta. O trecho a seguir narra o momento em que ela é ferida e morta: E Palamades, que era muito ardido e que o havia muito de coraçom e que muito afam presara já por ela pola matar, meteu-se no lago de cavalo assi como estava e feriu a besta de tal guisa que lhi passou os costados ambos, assi que o ferro da lança com gram peça da hasta passou da outra parte (DSG, 1995, p. 431).

Palamades simboliza uma das principais intenções da Demanda ao narrar o seu arrependimento por ser um cavaleiro pagão. A obra conduz o leitor a compreender que a função dos cavaleiros da Távola Redonda é buscar a sua própria salvação, como observa Mongelli (1995, p. 104), acrescentando que “o batismo final de Palamades, pouco antes de sua morte nas mãos de Galvam, testemunha o sucesso que muitas vezes resulta da tolerância da Igreja para com os infiéis”. A revelação do mistério da Besta se dará no momento em que Galaaz, Boorz e Persival chegam à ermida do rei Peleam, que já os auxiliara no episódio do Castelo de Corberic e o Graal, momento em que Galaaz fornece-lhe a cura de sua paralisia. Galaaz questiona o rei sobre três maravilhas1 que encontrara no reino de Logres, dentre elas a da Besta Ladrador. A pedido do cavaleiro, o rei então revela os segredos da Besta. A estória da Besta Ladrador está entre as três maravilhas da Demanda do Santo Graal; o seu nascimento se dará da seguinte forma: no reino de Logres, o rei Hipomenes tinha dois filhos, uma linda e formosa donzela e um rapaz tão formoso e sisudo quanto à irmã. Porém, a irmã tem a infelicidade de se apaixonar pelo irmão, que por sua vez a reprime. Por estar sofrendo com a situação, a donzela vai até uma fonte para se matar. Eis então que “parecê-lhe o demo em semelhança de homem tam fremoso e tam bem feito que maravilha” (DSG, 1995, p. 446). A moça, então, se entrega ao Diabo e engravida. Ao ser induzida pelo 1. As três maravilhas da Demanda são reveladas a Galaaz, Boorz e Persival pelo rei Peleam, as maravilhas são: a Besta Ladradora, a Fonte da Cura e a da Mulher da Capela (DSG, 1995, p. 446).

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demo, diz a seu pai que o irmão obrigou-a a dormir com ele. Imediatamente o rei manda prender o filho e este é condenado à morte. No momento em que estava prestes a ser devorado por cães, o irmão voltase para a irmã e lança um presságio: Tu me fazes sofrer vergonha sem merecimento mas Aquele me vingará que prende as grandes vinganças das grandes deslealdades do mundo. E au nacença do que tu trages parecerá que nom foi de mim, ca nunca de homem nem de molher saíu tam maravilhosa cousa como de ti saírá; que diaboo o fez e diaboo trages e diaboo sairá em semelhança da besta mais desassemelhada que nunca homem viu. E porque cães me fazes dar haverá em aquela besta dentro em si cães que sempre ladrarom em renembrança e referimento dos cães a que me fazes dar (DSG, 1995, p. 449).

Os que estavam no parto da filha de Hipomenes ficam maravilhados quando dentro dela sai a mais dessemelhada besta e a mais mal aventurada, como já ouvistes, e houverom pavor tam grande que todas foram mortas fora ela e outra dona. E a besta se foi assi que nom houve homem no paaço nem no castelo que a podesse tornar e ia poendo as maiores ladridos do mundo (DSG, 1995, p. 449).

O nascimento da Besta, causado por “atos escusos como a nigromancia, o incesto, o pacto com o demônio, a maldição e a vingança” (MONGELLI, 1995, p.109), culmina não somente com o seu aspecto “desassemelhada”, mas com as intensas tragédias acontecidas na Demanda, ou seja, tanto sua imagem, quanto seus caminhos, suas práticas maléficas, tornam-na na Demanda uma criatura fadada ao Mal e à destruição, mostrando-se como figura exemplar demoníaca. Mongelli (1995, p. 111) discute sobre uma relevante questão: o poder dos demônios frente ao homem. Eles alteram não só seus comportamentos, como também tomam posse de seus corpos. No caso da Demanda, o Diabo mantem relações sexuais com a filha do rei Hipomenes e desse ato nasce a Besta. Quanto ao incesto, este pode ser representado, segundo Mongelli (1995, p.112), pelo “mundo das Trevas e das divindades infernais, cenário da Besta, [construção que] amoldase como luva ao crime do incesto”.

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Esther Corral Díaz (1999, p. 85), ao realizar o estudo do motivo da Besta Ladrador, recorre à história da literatura para compreender os elementos constituintes da natureza deste ser. De acordo com a autora, a Besta Ladrador assume alta relevância na estória, pois, sua aparição é um fator bastante recorrente, além de sua existência ser primordial para o desencadeamento da narrativa. Na Literatura Medieval, era comum a utilização de seres fantásticos, por meio das enciclopédias e Bestiários que procuravam descrever e retratar animais (sejam eles reais ou imaginários). As anomalias persistentes em alguns seres eram vistas pelos integrantes do Medievo como algo inteiramente normal (DÍAZ, 1999, p. 86). Umberto Eco (2007, p. 107) atesta que os monstros desde a Antiguidade clássica eram símbolos de intensas desgraças, como chuvas de sangue, chamas no céu e de nascimentos anômalos e estes casos eram vistos de maneira aceitável. Eco (2007, p. 113) afirma-nos que “os medievais consideravam os monstros atraentes”; por conta disso, pode-se compreender por que alguns destes seres estampam os capitéis de muitas Igrejas. Considerando o elemento maravilhoso, Corral Díaz (1999, p. 87) expõe-nos que (...) a pesar de esto [a besta] se impone a los ojos del lector como un ser real, siempre en continuo movimiento, al ser presentada de forma dinámica, en huida constante. Sólo es vista estáticamente, cuando se detiene para saciar su sed en una fuente o enun lago.

Podemos considerar as aventuras dos cavaleiros, à procura da Besta Ladrador, como uma maravilha (CORRAL DÍAZ, 1999, p. 87). Algumas passagens remetem ao sobrenatural, como podemos ver no episódio em que Palamades, Galaaz e Persival estão em um lago onde a Besta estava bebendo água, após ser ferida por Palamades; a Besta entra no lago e começa a fazer uma grande tempestade; o lago começa a arder, a exalar chamas e em seguida ferver (DSG, 1995, p. 431). A origem da palavra Besta Ladrador, segundo Corral Díaz (1999, p. 88) é uma tradução do francês beste glatissante e se refere a um animal fantástico integrante do ciclo da Post-Vulgata, mais precisamente em La Queste Post-Vulgata e em Tristan em prose, textos esses que servirão de base para a Demanda.

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Os primeiros textos franceses que utilizam a besta são Perceval e a continuação de Perceval de Gerbert de Montreuil, contudo, estas obram apresentam a besta de maneiras distintas (CORRAL DÍAZ, 1999, p. 88). Esther Corral Díaz (1999, p. 89) ainda acrescenta que a partir de este momento, el animal se bestializa cada vez más. Su cuerpo passa a estar conformado por miembros procedentes de distintas especies zoológicas. En el ciclo de La Vulgata, se documenta de forma bastante sucinta en dos ocasiones muy distintas em L’ Estoire del Saint Graal. El apelativo simple de beste es complementado com el adjetivo diverse, que hace referencia a su naturaleza híbrida.

Em el Tristan em prose, há o uso pela primeira vez da beste glatissant, ressaltando as características monstruosas e horrendas deste ser. Em Merlin-Huth (obra estaque estão inseridos os principais textos bretões), também se verifica a presença da besta. A partir disto, é recorrente a inserção do animal monstruoso nas lendas arturianas (CORRAL DÍAZ, 1999, p.90). Corral Díaz salienta ainda que “em la Quest Post-Vulgata, se producen dos câmbios en el motivo. Se acrecienta, por um lado, aún más, la monstruosidade del animal fantástico”. Essa questão é percebível nos episódios em que a Besta mata a família de Palamedes e os filhos de um ermitão. Corral Díaz (1999, p. 91) alude que o motivo da Besta com o passar do tempo se transforma, adquirindo desta maneira outras características: Pero quizás la evolución más marcada se sitúe en el cambio que se produce en el simbolismo de la besta: de ser la imagen de Cristo (Perlesvaus), o de la Iglesia (Gerbert), pasa a convertirse en un mostruo devastador, identificado con el demonio; su búsqueda passa de ser una aventura breve y fortuita (Gerbert) a ser larga y concienzuda en el ciclo de la Post-Vulgata.

Este trecho é essencial para compreendermos a evolução da Besta na Literatura Medieval, conduzindo-nos a atentar para as características e simbologias deste monstro em A Demanda do Santo Graal. A descrição física da Besta na Demanda é algo bastante restrito, já que não se menciona a sua anatomia. Somente é descrito algumas especificidades

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como a sua rapidez ao correr. Contudo, essas características também são limitadas (CORRAL DÍAZ, 1999, p.91). Porém, o que chama mesmo a atenção são os ladridos emitidos por ela. Em l’ Estoire e Merlin os atributos da Besta são compostos por algumas partes distintas de animais; na Demanda os cavaleiros usam o termo “besta desassemelhada” (CORRAL DÍAZ, 1999, p. 92). A utilização do adjetivo “desassemelhada”, segundo Mongelli (1995, p.99) é uma metáfora de estranheza. O termo remete também aos empecilhos encontrados pelos cavaleiros em busca da besta e procura diferenciá-la de outros fenômenos da natureza. O receio pelo desconhecido era um fator bastante recorrente durante a Idade Média, o uso de “desassemelhada” representa a “presença de um ‘significado’ para que não se encontra o ‘significante’” (MONGELLI, 1995, p. 99). Além desses fatores anteriormente mencionados, deve-se destacar que há, de fato, a presença de uma moralização nas ações da Besta e “talvez sua melhor ‘demostrança’ de que todos devem viver no temor de Deus e combater para purificar-se dos pecados e livrar-se das tentações” (MONGELLI, 1995, p. 103). Partindo do caráter diabólico da Besta Ladrador, é necessário, antes de tudo, recorrer ao seu nascimento, já que a Besta foi fruto de um pacto com o Demônio e um falso incesto2, tendo os filhos do rei Hipomenes como personagens principais. A respeito disso, Corral Díaz (1999, p. 95) salienta que os elementos diabólicos se darão também em momentos em que a Besta se encontra ferida, como no trecho a seguir: e quando se ela [besta] assi sentiu ferida deu ua voz mui espantosa, tanto que era maravilha. E pois que deu a voz, saiu da água uu homem mais negro que o pez e seus olhos vermelhos como as brasas; e aquel homem tomou a lança com que a besta foi ferida e feriu aquel meu filho que a ferira de tam gram ferida que o matou. E depois ao outro; dês i, ao terceiro; dês i, ao quarto; dês i, ao quinto (DSG, 1995, p. 84).

Para Mongelli (1995, p.97), “a Besta simboliza a conspurcação da Humanidade, a natureza deformadora e deformada do Pecado, o ser do Mal”. Nesta concepção, se fomenta a ideia da Besta ser representante do Diabo, pois, assim 2. Falso porque de fato não ocorreu o incesto, somente a acusação falseada da filha do rei Hipomenes.

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como ele, ela é a grande precursora do mal na Demanda. Nas palavras de Mongelli (1995, p. 107), a aventura da Besta Ladrador avulta como uma espécie de súmula de princípios doutrinários cristãos. É o único monstro da obra, onde notoriamente se abriu mão dos gigantes de duas cabeças e dos magos transformados em serpentes, corriqueiros nas novelas corteses, concentrando em si as aberrações do Pecado.

As ações maléficas da Besta Ladrador geralmente acontecem de modo obscuro. Desta maneira, pode-se entender que esses atos se fundamentam no conceito cristão de pecado, como bem destaca Márcia Mongelli (1995, p.109). Considerando o Demônio símbolo do pecado, conclui-se que a Besta pode equipararse a este ser. Além de simbolizar o Mal, “a besta é a ‘demostrança’ do acerto da decisão coletiva de peregrinar: com as deformações que ela alegoriza e expõe aos olhos de todos, espelhando-lhes a alma, a corte arturiana estaria perdida se não se purificasse” (MONGELLI, 1995, p. 114). Na Idade Média, a literatura tinha como presença constante a figura do Diabo, este percorreu períodos como a Patrística, em crônicas e relatos medievais. O Demônio era possuidor de importantes influências na sociedade, sendo ele caracterizado como um ser atuante e proselitista, segundo as observações de Sergio Alberto Feldman (2007, p. 1). Eco (2007, p. 92) também discorre sobre a significância de Lúcifer, pois, “em um crescendo de feiúra, invade pouco a pouco a literatura patrística e medieval, sobretudo aquela de caráter devocional”. Feldman (2007, p. 4) reflete sobre o Diabo no contexto do imaginário da época Medieval, visto que a construção e a manutenção das crenças do imaginário se dão num processo de longa duração. O imaginário se constrói dentro e em função de um determinado contexto social. O Diabo surge no Cristianismo primitivo como uma faceta do intenso dualismo que marca a luta da Igreja para se afirmar nos séculos III e IV. O medievo é uma sucessão de confrontos entre o bem (encarnado pela Igreja) e o mal (encarnado pelo Diabo e seus aliados).

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Para acrescentar, Feldman (2007, p. 4) revela-nos que as manifestações sobrenaturais, neste caso a presença do Diabo, além de serem fatores recorrentes, eram vistos pelo Medievo como algo natural. “Sua atuação no cotidiano cristão medieval é completa. Está em tudo e em todos os lugares e situações” (FELDMAN, 2007, p. 4-5). Na visão de Heitor Megale (1992, p. 63) a figura da Besta Ladrador, além de ser a representação do Diabo, é um elemento oposto à articulação do Graal. Para Megale (1992, p. 63), “o texto propicia significativo apoio à idéia de digressão que a besta representa”. A Besta, por sua vez, induz o cavaleiro a se desguiar, pois, além de inserir-se nas aventuras ao qual não fazia parte, afasta os cavaleiros da sua real busca (o Graal) para perseguir o Demônio. A associação da imagem da Besta com a do Demônio dar-se-á também na Bíblia Sagrada. No Livro de Apocalipse, a Besta é símbolo do Mal e a representação do Anticristo. A passagem descrita a seguir, apresenta segundo a visão de João, as características da Besta: E eu pus-me sobre a areia do mar, e vi subir do mar uma besta que tinha sete cabeças e dez chifres, e sobre os seus chifres dez diademas, e sobre as suas cabeças um nome de blasfêmia. E a besta que vi era semelhante ao leopardo, e os seus pés como os de urso, e a sua boca como a de leão; e o dragão deu-lhe o seu poder, e o seu trono, e grande poderio (APOCALIPSE 13: 1-2).

Nota-se que o Apocalipse apresenta a Besta com atributos disformes e com membros de diferentes espécies de animais. Esta é detentora de uma imensa simbologia no Livro bíblico. O perfil do Anticristo se delineia de acordo com as profecias e a descrição da Besta. Pode-se perceber que ela traz consigo a feição de Satanás quando são lançados alguns prenúncios, como neste exemplo: “Estes [as bestas] combaterão contra o Cordeiro [Jesus], e o Cordeiro os vencerá” (APOCALIPSE17: 14). A figura da Besta Ladrador também pode ser encontrada nas cantigas medievais de escárnio e maldizer, como no exemplar de Fernando Esquio. No caso da cantiga, a seguir, pode-se atentar que a Besta possui o mesmo significado que na Demanda:

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Disse um infante ante sa companha que me daria besta na fronteira, e nom será já murzela nem veira, nen branca, nen vermelha, nen castanha; pois amarela nen parda non for, apran será a Besta Ladrador, quelh’ adurán do reino de Bretanha n tal besta como m’el á mandada, non foi omem que lhe visse as semelhas; nen tem rostro, nen olhos, nen orelhas, nen é gorda, nen magra, nen delgada, nen é ferrada, nen é por ferrar, nen foi omem que a visse enfrear; nen come erva, nen palha, nen cevada (CBN, 1607; CV.1140).

Segundo Rodrigues Lapa (1970, p. 237), esta cantiga se integra ao grupo de escárnios produzidos contra senhores pelintras. Pode-se perceber que a Besta é caracterizada como um ser impossível. Justamente por esse fator, ela equipara-se com a Besta da Demanda do Santo Graal. Relacionar a Besta Ladrador à imagem distorcida era um fator bastante recorrente nos textos da Idade Média, já que neste período a descrição de monstros era algo comum, como já temos visto. A apresentação da Besta ocorre ainda nas Hagiografias Medievais, como exemplo há a narração da vida de São Gonçalo de Amarante. Nela, observa-se uma relação de oposição entre as forças do Bem e do Mal (1984, p. 111), Aquele, o Bem, (representado pelo santo) se tornará o vencedor. O Diabo insere-se na estória novamente em figura de uma Besta: Veeo em sua vontade de continua conspiraçon da payxam de Nosso Senhor Jhesu Christo de visitar os seus lugares. Mas temendo que a cruenta besta s. o diabo derramasse a manada do Senhor polla sua partida, espaçou o tempo de hyr (...) (apud LUCAS, 1984, p. 114).

A Demanda apresenta dois elementos distintos que, no decorrer da novela, se contrapõem, são eles: a Besta Ladrador e o Cervo Branco. Para Márcia Mongelli (1995, p. 99), há uma relação de oposição, pois 170


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se a Besta já de início dissemina o terror, por sugerir a força de persuasão do Demônio e das potestades infernais, sua imagem distorcida suscita, por antítese, a presença inesperada e aparentemente gratuita do Cervo branco.

Assim, o Cervo na Demanda procura ser o contraponto da Besta Ladrador (MONGELLI, 1995, p. 101), haja vista que o Cervo remete à figura de Jesus Cristo; já a Besta, simboliza o Demônio. Apesar desses dois personagens não se cruzarem diretamente na estória, a utilização deles possui uma intenção: Não é gratuita a colocação lado a lado da Besta e do Cervo branco: a aura benéfica deste busca neutralizar as irradiações malignas daquela, provando aos assustados cavaleiros que os poderes do Príncipe das Trevas sempre esbarram com os do Senhor da Luz (MONGELLI, 1995, p. 102).

Ao realizar o estudo da Besta Ladrador em A Demanda do Santo Graal e após utilizar alguns intertextos, é perceptível que na literatura medieval a Besta busca simbolizar as divindades maléficas. Animais horripilantes e descaracterizados fisicamente provocam quase sempre, terror. É assim na Demanda, na Bíblia, na Cantiga de Fernando Esquio, nas Hagiografias Medievais, conforme vimos. Nestes exemplos a Besta conduz ao Mal; é autora de verdadeiras desgraças. No caso da Demanda, ela é a perfeita representação do Demônio, este por sua vez ganha espaço na narrativa por ser o gerador de quase todos os Males que acontecem.

Considerações finais Animais, criaturas horrendas, seres sobrenaturais eram presença constante no imaginário Medieval. Estes, quase sempre, traziam consigo ensinamentos cristãos e morais, carregados, ainda, por algumas simbologias que serviam como modelo para os integrantes do Medievo. No quesito literário, a Idade Média revelou-se uma fonte basilar para propagar ideias moralistas. Neste sentido, constatou-se que A Demanda do Santo Graal assume relevo por construir personagens e criaturas, sejam elas de boa índole ou não, que remetem às doutrinas cristãs. Alguns destes seres buscavam 171


O motivo da Besta Ladrador n’A demanda do Santo Graal

representar algumas divindades religiosas. Esta concepção foi perceptível quando estudado o motivo da Besta Ladrador, na Demanda. Para chegar a tal conclusão, fez-se necessário atentar para alguns aspectos que envolveram o universo Medieval. A Besta Ladrador revelou-se como um ser diabólico, servindo como contraponto às boas referências do Cervo. Na Demanda, percebeu-se que a Besta é uma criatura maléfica, cujas ações comparam-se às de outra singular figura Bíblica, o Diabo. Foi notório na novela o desencadeamento de algumas tragédias e mistérios causados pela Besta Ladrador, fatos influenciados por forças Infernais, como a morte de muitos bons cavaleiros e do extermínio da família de Palamedes. Para relacionar a Besta Ladrador da Demanda com a terrível imagem do Demônio, foi necessário estudar suas formas, seus atos e considerar, ainda, a construção da narrativa, para que de fato chegássemos a tal conclusão. Como já afirmara Umberto Eco (2007, p. 113), os monstros e seres horrendos assumiram importante lugar no imaginário Medieval. Foi perceptível que, de fato, era constante a presença do Demônio na sociedade da época, assim como também exerceu forte influência na Literatura. Por se tratar de um elemento maravilhoso, a Besta na Demanda vivenciou diversos acontecimentos sobrenaturais; neste caso, exemplificou algumas ações diabólicas que, embora aterrorizantes, eram vistas com certa normalidade. Esses fatores serviram como modelo para entender o maravilhoso dentro da concepção Medieval. A presença da Besta foi percebida em outros textos medievais, como na Cantiga de Fernando Esquio, na Bíblia Sagrada e na Hagiografia que trata da vida de São Gonçalo de Amarante, objetivando realçar a semelhança entre a Besta e o Demônio. Com isto, foi possível atentar que a Besta, na Literatura da Idade Média, quase sempre elucida a imagem de Satanás, o grande símbolo do Mal. Na Demanda, o motivo da Besta destaca essa vertente maligna, adquirida pelas suas expressões disformes, horrendas e por causar tragédias que intrigaram os cavaleiros.

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ADRIANA DA SILVA LOPES

Referências A BÍBLIA SAGRADA. Traduzida em Português por João Ferreira de Almeida. Revista e corrigida no Brasil. Ed. 1995, São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2007.1056p. A DEMANDA DO SANTO GRAAL. Edição de Irene Freire Nunes. Lisboa: Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1995. A DEMANDA DO SANTO GRAAL. Organização e atualização do português de Heitor Megale. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. CORRAL DÍAZ, Esther. El motivo de la besta ladrador en la Demanda do Santo Graal. In: CONGRÉS DE L’ASSOCIACIÓ HISPÀNICA DE LITERATURA MEDIEVAL, 7., 1997, Castelló de la Plana. Actes... Castelló de la Plana: Universitat Jaume I, 1999. v. II, p. 85-99. ECO, Umberto. História da Feiúra. Tradução de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2007. FELDMAN, Sérgio Alberto. A presença do Diabo no cotidiano medieval judaico: os ritos de passagem. Fênix: Revista de História e Estudos Culturais. Uberlândia, a. IV, n. 2, p. 1-14 abril/maio/jun 2007. Disponível em: <http://www.revistafenix.pro.br/PDF11/ARTIGO.8.SECAO.LIVRE-sergio.Alberto.Feldman.pdf>. Acesso em: 20 de Janeiro de 2014. LAPA, Manuel Rodrigues. Cantigas d’escarnho e de mal dizer dos cancioneiros medievais galegoportugueses. Lisboa: editorial galáxia, 1970. LUCAS, Maria Clara de Almeida. Hagiografia Medieval Portuguesa. 1º ed. Lisboa: Biblioteca Breve, 1984. MEGALE, Heitor. A Demanda do Santo Graal. Das origens ao códice português. São Paulo: Ateliê, 2001. MEGALE, Heitor. O jogo dos anteparos: a demanda do Santo Graal: a estrutura ideológica e a construção da narrativa. São Paulo: T.A. Queiroz, 1992. MONGELLI, Lênia Márcia de Medeiros. Por quem peregrinam os cavaleiros de Artur. São Paulo: Íbis, 1995.

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RECONHECIMENTO, PRAZER E ESTRANHAMENTO NA ARTE POÉTICA DE RODRIGO BARATA Joel Cardoso (UFPA/ICA)

Preliminares: da poesia A poesia é conhecimento, salvação, poder, abandono. Operação capaz de transformar o mundo, a atividade poética é revolucionária por natureza; exercício espiritual, é um método de libertação interior. A poesia revela este mundo; cria outro. (...) Isola, une. Convite à viagem; regresso à terra natal. Inspiração, respiração, exercício muscular. (...) Obediência às regras; criação de outras. Imitação dos antigos, cópia do real, cópia de uma cópia da Ideia. Loucura, êxtase, logos. Octavio Paz1

Na abertura de O Arco e a Lira, Octavio Paz, discorre pormenorizada e belissimamente e sobre o que é a poesia. Tudo pode ser (e não pode ser) poesia. Sendo esclarecimento e reflexão, o livro é um cântico de amor à poesia, à arte de fazer versos, de poetar. Aborda, ainda, diversos outros tópicos: a linguagem, o ritmo, o verso e a prosa (o romance), a imagem, as margens do texto poético, a revelação poética, a inspiração e muito mais. Num mundo carente de beleza, de busca de sentido, de ressignificação para tudo o que nos envolve e nos rodeia, num mundo marcado pela violência e pela insegurança, em que o instável e o efêmero dão o tom maior à vida, a poesia pede passagem, busca novos lugares para ser e estar. Nunca fomos tão carentes de autenticidade como agora. Nesta era de insensibilidades, tudo se banaliza, se vulgariza vertiginosamente. A poesia busca um lugar em meio às novas tecnologias, um lugar em que a autenticidade se faça notar ante o excesso de imagens que nos anestesiam. No nosso mundo contemporâneo, indelevelmente demar-

1. PAZ, O. 1982: 15.

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Reconhecimento, prazer e estranhamento na arte poética de Rodrigo Barata

cado por uma ilusão de progresso, já não conseguimos acompanhar as mudanças em qualquer das áreas de atuação humana. As palavras, inexpressivas, inócuas, se perdem na balbúrdia de sons e ruídos; os discursos, caóticos, cheios de intencionalidades ocultas, empobreceram. “O mundo como imagem desaparece e em seu lugar se levantam as realidades da técnica, frágeis apesar de sua solidez já que estão condenadas a ser negadas por novas realidades”, afirma Octavio Paz. Devolvendo-nos àquilo que de mais humano há em nós, redefinindo conceitos, transgredindo regras, revitalizando a linguagem, ampliando horizontes semânticos e sintáticos, interferindo no racional e no sensorial, a poesia – potencialização máxima da palavra como expressão artística humana - se faz mais que necessária. Na poesia, reconciliados, os opostos convivem pacificamente, como, aliás, convém à verdade. Com a poesia, instaurando nexos, libertamo-nos da lógica opressora, de tudo aquilo que, por ser convencional, rotineiro, acaba por nos sufocar e atordoar. Poesia é revelação, é chamamento à vida, à condição humana. E, como disse alguém, porque a vida somente não basta, o homem se realiza na Arte, no discurso, na concatenação de imagens. Imagens e discursos que, ainda que minimamente, o representem. A poesia se viabiliza quando saímos do convencional; quando a palavra, liberta do ranço do cotidiano, da cristalização redutora, se alça magicamente, alcançando novos patamares, desabrochando em novos sentidos, se abrindo para significações e realizações inusitadas. Estamos diante da poesia, quando, paradoxalmente, num processo de estranhamento, ao mesmo tempo, nos reconhecemos, nos identificamos, nos achamos. É como se nós nos mirássemos num espelho e, ao nos determos ante a nossa imagem refletida, ao fim, nos perguntássemos: “como não notei isso antes?, então este estranho sou eu?” Eis-nos, pois, ante um processo dúbio: reconhecimento através do estranhamento. As coisas mais banais, recriadas pela magia do poema, nos encantam, nos emocionam, nos sensibilizam, como se, só agora, através do olhar do texto poético, as tivéssemos vendo pela primeira vez. Elos entre o exterior e a nossa interioridade, os poemas, as imagens poéticas são uma descoberta, ou melhor, uma redescoberta, uma viagem essencial. As coisas, o mundo, os seres continuarão a

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ser aquilo que são, mas, indubitavelmente, no poema, tudo extrapola, tudo – metonímica e metaforicamente – adquire uma nova e singular dimensão.

Do Haicai Sempre achei que as minhas palavras teriam que atingir o grau de brinquedo para que fossem sérias. Manoel de Barros haicai quase os mesmos poemas são outros versos de onde vida quase quando Rodrigo Barata

O haicai é uma modalidade de poema, cuja origem se vincula ao Japão, país que estruturou, consolidou e popularizou esta modalidade de texto poético que se caracteriza pela brevidade. Poema de forma fechada e fixa, o haicai é, como o conhecemos hoje, composto por dezessete sílabas poéticas, divididas em três versos com, respectivamente, cinco, sete e cinco sílabas poéticas: dois pentassílabos entrecortados por uma redondilha maior. No Japão, os haicais, exprimindo sentimentos ligados sobretudo à natureza, são dispostos em apenas uma linha vertical. Nos primórdios do gênero, popularizou-se principalmente entre aristocratas e cortesãos, como jogo verbal, como brincadeira, como exercício de linguagem, que, marcado por sua exiguidade, privilegia apenas o essencial. Um dos autores mais famosos de haicais, no Japão, foi Matsuô Bashô, que tendo vivido entre 1644 e 1694, fez da sua criação poética uma prática não só artística, mas, sobretudo, uma prática de elevação espiritual. Trasposto para o nosso país, Goga Masuda (1911-2008), Nempuku Sato (18981979) foram, entre outros, nomes significativos para a divulgação do haicai em território nacional, principalmente, de início, entre os imigrantes japoneses. Quanto ao conteúdo, os haicais se diversificaram e versam, de forma sucinta, sobre aspectos da natureza, reflexões sobre o homem e a condição humana, descrições de momentos. Ao se espalharem pelo mundo, o haicai se diversifica, tanto 177


Reconhecimento, prazer e estranhamento na arte poética de Rodrigo Barata

formal quanto conteudisticamente. No Brasil, como sabemos, a modalidade de texto poético mais popular é a trova (ao lado da literatura de cordel); no Japão, o haicai. Gênero detentor de uma grande diversidade temática, com certeza, tudo, na modernidade, pode se tornar motivo para um haicai. No entanto, nem sempre foi assim. De início, atinham-se às mudanças da natureza, aos ciclos de vida, às percepções de caráter poético-filosófico. Os haicais, originalmente, prescindem da rima. Não prescindem, entretanto, do ritmo, da sonoridade. Poesia, como sabemos, é a arte que, por sua sonoridade, pelo seu ritmo, mais se aproxima da música. No Brasil, Guilherme de Almeida, poeta paulistano da primeira metade do século XX, adotando o haicai como uma das formas de sua expressão poética, reformatou o gênero: com ele, o primeiro e o terceiro versos rimam e o segundo verso, de sete sílabas, apresenta uma rima interna. Não deixa de ser um virtuosismo formal. Dificulta sobremaneira a sua elaboração dentro da exiguidade a que se propõe. Vejamos, para ilustrar, entre tantos exemplos, três haicais de Guilherme de Almeida: Consolo A noite chorou a bolha em que, sobre a folha, o sol despertou. Os andaimes Na gaiola cheia (pedreiros e carpinteiros) o dia gorjeia. Quiriri Calor. Nos tapetes tranquilos da noite, os grilos fincam alfinetes.

Talvez mais comum, uma outra tendência do haicai, no Brasil, promove esta forma poética, elaborando-a sem rimas, mas conservando a métrica original. Optar por se expressar através de haicais, texto poético radicalmente sucinto e formatado, é se submeter voluntariamente aos ditames de uma modalidade textual pré-concebida. Compor haicais é se entregar à ludicidade não só da lingua178


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gem, mas, sobretudo, se submeter às regras de um jogo, jogo em que a linguagem, em geral, se amolda à exiguidade do formato proposto. Há quem valorize mais o conteúdo, propondo, de forma sucinta, apenas uma sugestão, uma reflexão ou exposição completa. Outros se atêm mais à forma, privilegiando sonoridades, ritmos, cadências, virtuosismos estilísticos. Exigindo um domínio vocabular, rítmico e formal, alguns haicais, mais livremente propostos, não apresentam rimas. À beira da estrada O casal tirando fotos Do arrozal de outono Antonio Seixas

Alguns poetas modernos, de forma mais solta e mais livre, transgridem deliberadamente o formato caracterizador do haicai. É bom que se ressalte que embora tais produções mereçam respeito, não há como não expressar estranhamento e desconforto em relação a elas. Soneto é soneto. É um poema com formato pré-definido. Com o haicai ocorre o mesmo. Citamos, a título de ilustração: viver é super difícil o mais fundo está na superfície Paulo Leminski Ou, ainda, este outro: Nos dias quotidianos É que passam Os anos Millôr Fernandes

Vejamos, ainda, em Sapato Florido, um exemplo de haicai do grande Mário Quintana, poeta do cotidiano, poeta da simplicidade e da complexidade, enfim, um poeta genial, um poeta maior.

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Reconhecimento, prazer e estranhamento na arte poética de Rodrigo Barata

Haicai da cozinheira A cozinheira preta preta Preta e gorda Com seu fresco sorriso de luz...

Inegável que os textos apresentam qualidade poética. São indubitavelmente criativos. São belos, sucintos. Fogem, no entanto, à forma que identifica e caracteriza os haicais. Não se encaixam completa e adequadamente no gênero em que se pretendem inserir.

Do autor Haikai não é síntese, no sentido de dizer o máximo com o mínimo de palavras. É antes a arte de, com o mínimo, obter o suficiente. Paulo Franchetti

Rodrigo Maroja Barata, natural de Belém do Pará, desde cedo teve um convívio muito próximo com a palavra. Formado em Letras, com mestrado em Artes e doutorado em andamento em Antropologia, ministrou (e ainda ministra), aulas de Língua Portuguesa e Literaturas, durante anos, em colégios da capital paraense. Apaixonado pelas artes, sobretudo pelo cinema e pelo teatro, é uma pessoa inquieta e extremamente perspicaz. Ousado, transita com facilidade por temas polêmicos (erotismo, pornografia, sexualidade, homossexualidade etc). Resultado de seu namoro com a palavra, em 1993, publica P = V x T, obra ilustrada por Sylvia Lassance, dedicado ao público infanto-juvenil. Escrever para jovens tem sido uma das formas de expressão mais frequentes na trajetória do autor. Em sua obra, palavra e imagem estão sempre em diálogo. Em 2004, publica Dermes e vícios, um libreto de criativos e irreverentes sonetos. As ilustrações, desta feita, são assinadas por Renato Pantoja. Seguem-se E coisa tem nome?, de 2009, um libreto de poemas e Anatomia maluca, de 2010. Ambos com ilustrações de João Augusto Rodrigues.

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Do livro As palavras são o fio condutor onde amarramos nossas experiências. Aldous Huxley haicai acorde 191 acordei assim todo sujo de saudade com cárdio partido Rodrigo Barata

Talvez num excesso de rigor ou de conservadorismo, há quem queira impor ao haicai temas, receitas prévias e fórmulas prescritivas, deliberando o que deve ou não, quer como tema, quer como forma, ser eleito como pontos essenciais para a elaboração desta forma poética. O exercício poético é, por vezes, o primado da transgressão. Assim tem sido, desde sempre, a trajetória da Arte. Sem jamais eliminar o anterior, um paradigma reina soberano até o advento de um outro que o conteste, reivindique e instaure novos espaços e posturas para a sua expressão. Ainda que se respeite a pertinência das colocações, a trajetória de pesquisa feita em torno do gênero, talvez demasiadamente exigente, o professor Paulo Franchetti, da UNICAMP, pondera: Quanto a mim, nem sempre reconheço, num terceto, rimado ou não, espirituoso ou plano, que se apresente como haicai, o direito de usar o nome. Sinto que estou perante um texto de haicai apenas quando reconheço nesse texto uma dada disposição de espírito, uma atitude frente ao mundo e à linguagem que conota uma estratégia específica de composição e de recepção do poema.” (...) “E a novidade que o haicai oferece a um ocidental, de meu ponto de vista, é o fato de ele ter por objetivo não a beleza da imagem ou da combinação dos sons, mas o registro ou o despertar de uma percepção muito ampla ou intensa nascida de uma sensação. Esse me parece o núcleo da forma do haicai.

Um terceto qualquer, obviamente, nem sempre é um haicai. Há, para a caracterização do haicai, o ajuste a certas regras caracterizadoras. A priori, a cria181


Reconhecimento, prazer e estranhamento na arte poética de Rodrigo Barata

ção poética, contrariando tradições e superando paradigmas acadêmicos, não se sujeita a receitas preliminares. O percurso do haicai em nosso país, ignorando a tradição, contrariando as origens, subvertendo prescrições e receitas, tem demonstrado que tudo pode caber nessa modalidade poética. A preservação do gênero deve, talvez, ser mantida sem que se imponham se restrinjam os temas ou se estabeleçam fórmulas ou receitas para a sua elaboração e permanência no panorama poético nacional. Não deve ser nada que cerceie a criatividade, a imaginação, o voo poético. No formato, sem grandes descaracterizações, os voos mais libertários são, indubitavelmente, bem vindos, as ousadias transgressoras podem ocorrer salutar e inovadoramente. Senhor do verbo, do inusitado, da imprevisibilidade, Rodrigo Barata, em Cinco Estações, mostra-se um poeta requintado, e, embora ainda muito jovem, já está estética e estilisticamente maduro. Poeta por excelência, está pronto, com trajetória estética própria e bem delineada. Tem pleno domínio de sua arte. Como convém a quem se deixa aprisionar pelo fascínio do haicai, uma modalidade poética fascinante, mas, sem dúvida, também cheia de armadilhas. Ao brincar livremente com as palavras, o poeta tira delas o ranço pernicioso do cotidiano para, em voos libertários da imaginação, dando voz à perplexidade, questionando por vezes o inquestionável, lançá-las em novos contextos sintáticos e semânticos, inventando – e, também, desinventando - a vida, a realidade, a percepção do mundo. Muitos são, no livro, os voos empreendidos. Para o autor, no seu fazer poético, criativamente, a saudade, na trilha das nossas carências, preenche lacunas, pairando sobre (e sob) nuvens de desejos fugidios. O libreto apresenta cinco momentos, cinco estações, cinco paradas, cinco pontos de chegada (ou seriam de partida?). Cinco que, de repente, para a nossa surpresa, se transformam, na realidade, em seis instâncias poéticas que, embora distintas, se complementam... Brincando com a linguagem do poeta, estamos ante os anseios atemporais (banidos, bandidos?) da primeira estação, que, sem que o percebamos, quase de imediato, mantendo a alta voltagem de te(n)são, no mesmo teor, assim meio que de viés, nos remete sempre às próximas estações, para, no prosseguir da viagem, aportarmos nos quases do caminho, na (ir)realização do prazer, nos quandos e 182


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nos porquês de outrora (que também são de agora). E aí, com o poeta, também nos perguntamos: dos deuses e adeuses, do desatar dos nós desses tempos glaciais, o que, afinal, terá restado? Talvez ânsias, interstícios, ofertas (nem sempre generosas) de nós mesmos e, também, ofertas do outro... um moroso ca(p)tar de versos... Seriam, por acaso, plenilúnios para ti?... Na sina de infringir rumos (sina de quem trabalha com a palavra), na lentidão dos adágios (quebrando a pressa insensível do ritmo do presente), no parêntese dos abraços (tão necessários quanto raros nos nossos dias), nos frágeis amores de vidro (sempre na iminência da quebra, da ruptura) nas ciladas do cedo demais (constatação por vezes inevitável), ou do tarde menos, somos, vida afora, desencontros, desejos, perdas, transgressões, ganhos, fugazes segundos na apreensão de eternidades. Como preconiza poeticamente Manoel de Barros, “o sentido normal das palavras não faz bem ao poema. / Há que se dar um gosto incasto aos termos”. Há que se fugir à mesmice, “mudar de habitat”, e, quebrando formalidades, ousar sempre, percorrendo os “interstícios / de ânsias, adeuses”. Cinco Estações é Poesia com letra maiúscula, poesia para iniciados. No tecido intertextual que se instaura, no palimpsesto estrutural dos poemas, percebemos que há, no diálogo lúdico - lúcido? - que emerge, para deleite do leitor, a (co)presença de outros textos, outros contextos. Uma das muitas possibilidades do fazer poético é a capacidade de re-significar coisas e fatos banais. Vemos, através da poesia, as coisas, os pensamentos, os dizeres, os fatos como se os víssemos pela vez primeira. As ideias, libertas da prisão do racional, fluem soberanas, descortinando amiúde possibilidades impensadas. Criando termos, subvertendo outros, nos versos, “sujos de saudades”, narcisicamente, nós nos miramos nos espelhos de uma (quase) vida. E assim, na precariedade do dizer, o existir, de repente, resvala para o que não existe. O plausível se (tra)veste de implausibilidades. “Verdades feitas de mentiras sonhadas. E, “de repente, não mais que de repente”, um universo de letras, de poesia, de música, de imagens, de puro deleite e magia se presentifica, (i)materializando-se na musicalidade dos versos. Extrapolando os motivos regionais (indubitavelmente importantes), os poemas fluem gostosamente, sem açaí, sem tacacá, sem botos, matintas e derivados. Nem por isso o artista deixa de ser um autêntico representante das letras da Ama183


Reconhecimento, prazer e estranhamento na arte poética de Rodrigo Barata

zônia. Rodrigo Barata, no entanto, não se restringe a esse contexto: passeia por inquietações universais. No universal, reconhecemos, nele, aqui e ali, matizes do regional. haicai quase oriental aqui dentro anseio nos tempos de primavera, aqueles de inverno Rodrigo Barata

Estamos num lugar e ansiamos por outro. A felicidade consiste, quase sempre, numa busca interminável. Como na “vida quase quando” (metahaicai). Sempre num limiar impreciso. O poema nos remete aos versos de “Velho Tema”, de Vicente de Carvalho: Essa felicidade que supomos, Árvore milagrosa que sonhamos Toda arreada de dourados pomos, Existe, sim: mas nós não a alcançamos Porque está sempre apenas onde a pomos E nunca a pomos onde nós estamos.

Num tempo carente de poesia como o nosso, a arte irreverente, ousada e sofisticada de Rodrigo Barata é muito bem vinda. A poesia se faz cada vez mais necessária; num “jeito assim de viés” as palavras evocam imagens jamais imaginadas. As imagens, por sua vez, nos devolvem às palavras. Nós, como seres – seres do discurso -, só existimos potencialmente na incerteza desse eterno ir e vir que nos forma, nos conforma e, indubitavelmente, nos transforma. Esforçamo-nos – embora, por vezes, inutilmente - para fugir à aridez da realidade que nos abarca, tal como se “fossem realidades esmaecidas / na espessura da existência / em que somos mais que o tempo”2.

2. (versos do poeta de origem mineira, Wilbett Oliveira, radicalizado, agora, no Espírito Santo, in: Minúsculos, Vila Velha, Opção, 2013)

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A diversidade temática é a tônica dominante de Cinco Estações. Verdadeiras pílulas poéticas. Abrindo espaço, singrando novos horizontes, os versos saem do marasmo (“lapido epitáfios / de burguês, plebeus e putas / - champagne, cheguei!”). Deparamo-nos com algumas deliciosas ousadias linguísticas (“tu vens com calmantes / te vais com ansiolíticos... / eu drinko solvente”). Muitos poemas refletem preocupações existenciais (sempre instigante, indefinível, amor “é despenhadeiro”; ou, “... larguei-me de mim, enfim / pronde sou agora?”, ou, ainda, “amar é tão brusco / de repente não existe / que nem tanto faz!”). Apostar na intertextualidade é confiar na capacidade percepção, de apreensão, de conhecimento prévio do leitor. Flertes com outras Artes, com outras linguagens, por vezes, aparecem: “haicai piaf // não, afã do afã, / não, eu não regresso ao afã / não, eu não regresso”. No título, a pista estabelecendo ponte intertextual. Quem conhece a canção “Non, Je ne regrette rien”, de Edith Piaf, imediatamente estabelece as conexões e os sentidos, sugestiva e intertextualmente, se instauram. Os trocadilhos, ah!, os trocadilhos, brincam na economia formal dos haicais. Dentre os muitos exemplos, citamos: “lava-me or leave-me”. Traduzindo paradoxos, os trocadilhos se fazem presentes no contexto poético: “haicai do juntos para sempre? // por um tolo acaso, / nosso caso criou caso, / então descasou-se!”). Observemos que o título do poema é uma interrogação. A sonoridade, embalada pelo ritmo da métrica, confere expressividade e graça aos versos. Há versos em que se pressente o escoar irreversível do tempo (“jogo dardos com a saudade”, ou, “depois de xis anos (...) embaçada imagem”). O inesperado, o inusitado se fazem presentes (“lier’s haicai // chegou no natal / e se foi no plenilúnio / pleno de mentiras”). Alguns poemas jogam com a efemeridade da vida, dos sentimentos (“aprendo que viver só / é desatar (-) nós”, ou, “uma saudade gritada / escorre em sarjetas...”). Tudo é finito, o mundo, os seres, as coisas (“se o mundo acabar, tô nem aí, o amor finda / e... e... vira lenda). Rebelar-se sempre, no bom sentido. Criar neologismos, não por os criar simplesmente, mas para, na necessidade expressiva do poema, revesti-los de sentido: “nosso edredon iceberga / as culpas de gelo”; ou, “em casa de espelhos / tua 185


Reconhecimento, prazer e estranhamento na arte poética de Rodrigo Barata

lembrança infinita / labirinta amor”. Jogar com a linguagem pressupõe, desde os primórdios do haicai, humor (sempre presente), ludicidade (jogo constante): “haicai constipadim // a tarde laranja / derrama suco no amor tão resfriadim”. A presença da oralidade, à la Oswald de Andrade, é apenas um dos traços de Rodrigo Barata. Não se trata da oralidade pela oralidade, mas, mineiramente, lembrando Guimarães Rosa, de uma oralidade buscada, cultivada e deliberadamente recriada.

Considerações finais Chão humilde. Então Riscou-o a sombra de um voo. “Sou céu!”, disse o chão. Guilherme de Almeida

O percurso até aqui empreendido se propunha tão somente fazer uma apresentação da obra de Rodrigo Barata. Trata-se de um percurso prazeroso, e, do ponto de vista literário, uma inquietante descoberta lúdica. As inquietações povoam, de forma significativa, a nossa interioridade. Como já afirmamos, somos essencialmente seres do discurso. Persiste, no entanto, na contemporaneidade, um descaso generalizado com a palavra, com o discurso, com o fazer poético. Quebrando paradigmas, fazer poesia é tirar o discurso da sua normalidade, arejá-lo, ampliá-lo. Quem trabalha poeticamente com a palavra tem obrigação, de um lado, de cultuá-la, mas, de outro, também, de violentá-la, de lançá-la e novos contextos. A palavra racionalmente a serviço da subjetividade (ou seria o contrário?). Ante a complexidade e a falta de critérios estéticos dos tempos atuais, o fazer poético, não raro, lamentavelmente, tem perdido o seu rumo e resvalado para uma prática pretenciosa e estéril, descompromissada esteticamente, violentada em seus objetivos. Como preconizava Mário de Andrade, “a Poesia (...) transfunde as noções mais conscientes pra um plano vago, mais geral, mais complexamente humano” (ANDRADE 2002, p. 52). Isso foi dito em 1931. De lá para cá, muito já foi feito. Muita água rolou sob e sobre os cascalhos da aridez poética. Evoluímos esteticamente, é inegável. Ganhamos maturidade. No entanto, con-

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tinuamos, em alguns pontos, paralisados e estagnados, como que estacionados na estaca zero. Ainda há os que pretendem que qualquer mensagem, codificada em versos descompromissados, ostente a pretensão de se querer poesia. É preciso saber – no campo da produção artística, de uma forma geral - separar o joio do trigo. Há um descaso generalizado em relação à forma, ao estilo. A elaboração de qualquer gênero, de uma forma geral, e, aqui, especificamente, do haicai, não deve se restringir apenas às dificuldades da arquitetura formal, tampouco ao virtuosismo do artista, mas levar em consideração, quanto ao seu conteúdo, a originalidade da expressão, a sensibilidade lírico-poética na transmissão das ideias, a capacidade de traduzir impressões momentâneas sensivelmente captadas. Como dizia o poeta russo Maiakovski, não existe conteúdo revolucionário se não houver também uma forma revolucionária. Forma e conteúdo estão intrinsicamente ligados. Nem tudo é artístico, nem tudo é literário, nem tudo é poesia. Expectantes, efêmeros, fugidios, mágicos, os instantes de lirismo surgem intempestiva e inesperadamente. E como vêm, também, se vão. Captá-los, aprisioná-los no verso, na efemeridade do momento crucial, mais que uma questão de talento, é uma questão de sorte! Como nos adverte liricamente Mario Quintana, “Cuidado! A nossa própria alma apanha-nos em flagrante nos espelhos que olhamos sem querer. Somos seres contraditórios. Especularmente, os outros refletem, na realidade, a nossa imagem. Imagens que queremos, de algum modo, ver. Imagens que os outros projetam de nós mesmos e que, por vezes, nos contrariam, nos questionam, nos denunciam. Das imagens às palavras é apenas um triz, um lapso de tempo, um irreprimível ir e vir. E as palavras emolduram as imagens. “É preciso – segundo, ainda, Mário de Andrade - atingir o lirismo absoluto, em que todas as leis técnicas e intelectuais só apareçam pelas próprias razões da libertação, e nunca como normas preestabelecidas” (ANDRADE 2002, p. 52). Num mundo de imagens, o homem, revelando-se e velando-se, procurando traduzir-se através da precariedade das palavras, reflete para os demais a imagem que criou de si mesmo. Voltamos a Octavio Paz para fechar o texto. Para ele, o poema representa, “o ponto de encontro entre a poesia e o homem”. Poesia, aqui, como sinônimo de beleza, de valor estético, de sublimação, de busca ideal de todo fazer artístico. É o que também pensamos. 187


Reconhecimento, prazer e estranhamento na arte poética de Rodrigo Barata

Referências ANDRADE: Mário. Aspectos da literatura brasileira. 6ª. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 2002. BARATA, Rodrigo. P = V x T. Ilustrações de Sylvia Lassance. Belém: CEJUP, 1993. BARATA, Rodrigo. Dermes e vícios. Ilustrações de Renato Pantoja. Belém: do autor, 2004. BARATA, Rodrigo. E coisa tem nome? Ilustrações de João Augusto Rodrigues. Belém: Amazônia, 2009. BARATA, Rodrigo. Anatomia maluca. Ilustrações de João Augusto Rodrigues. Belém: Amazônia, 2010. BASHÔ. Trilha estreita ao confim. Trad. Kimi Takenaka e Alberto Marsicano. São Paulo: Iluminuras, 1997. FRANCO, João José de Melo. Pequeno dicionário de termos literários. São Paulo: Três Livros e Fascículos, 1984. FRANCHETTI, Paulo (Org.). Haikai; antologia e história. 3ª ed. Campinas: Unicamp, 1996. MOISÉS, Massaud. Dicionário de termos literários. 12ª ed. São Paulo: Cultrix, 1997. PAZ, Octavio. O arco e a lira. Trad. De Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982.

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PEREGRINAÇÃO E REALISMO MARAVILHOSO EM QUARTO DE HORA, DE MARIA LÚCIA MEDEIROS1 José Eduardo dos Santos Sousa (UFPA) Lucideyse de Sousa Abreu (UFPA)

Introdução Quando o assunto é literatura, mais especificamente produção literária, vários são os recursos utilizados pelos autores para prender a atenção do leitor à obra, fazendo assim com que sua curiosidade seja despertada para descobrir o que acontece no final. No entanto, não basta o autor utilizar recursos como peripécia e reconhecimento2 de maneira aleatória, ou seja, apenas aplicar o conceito na obra sem se preocupar com a forma que ele irá se ligar com a história, pois para que recursos como estes sejam utilizados de maneira a cumprir com sua função é necessária a habilidade por parte do autor para utilizá-los sempre de maneira a surpreender o leitor. Outro recurso muito comum na literatura é a presença do sobrenatural, que geralmente aparece dentro de termos como maravilhoso, fantástico ou estranho. Obras em que percebemos essa presença geralmente são chamadas de literatura fantástica, devido à forte presença de elementos sobrenaturais. No entanto, esses três termos não são sinônimos; cada um possui características e formas únicas de fazer uso do elemento sobrenatural, sendo o sobrenatural a única semelhança entre eles. O fantástico ocorre quando o personagem ou o leitor e até ambos hesitam na presença do sobrenatural, contestando se o acontecimento não natural é real ou não, se realmente está acontecendo. O estranho é quando o fato ocorrido podo ser explicado de maneira racional e lógica, mas que por algum motivo se revelou de forma aparentemente insólita. Além disso, há uma diversidade de va1. Trabalho orientado pela professora Me. Alessandra F. Conde da Silva, UFPA, Campus de Bragança. 2. A peripécia consiste em uma reviravolta ocorrida na história, subvertendo as expectativas do personagem e do leitor, já o reconhecimento ocorre quando o protagonista da história toma conhecimento de uma determinada situação.

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riações para os três termos, mas nos focaremos no maravilhoso, pois ele é a base para o nosso estudo. O maravilhoso, um dos temas principais desse trabalho, possui várias formas de se manifestar na literatura. Por exemplo, o maravilhoso científico, que segundo Todorov (2008, p. 63) daria quando o sobrenatural é explicado a partir de leis que não são conhecidas pela ciência contemporânea, mas de uma maneira racional; ou seja, ocorre o sobrenatural, mas ele não é desconhecido por muito tempo, pois logo surge uma explicação científica e racional para o acontecimento em questão. Não podemos confundi-lo com o estranho, pois por mais que ambos sejam passíveis de serem desvendados, o estranho é explicado por uma lógica conhecida, já o maravilhoso científico é racionalmente esclarecida por ciências não reconhecidas. É importante termos em mente conceitos como esses, pois assim fica claro que há várias formas do sobrenatural se fazer presente na literatura, cada uma com características próprias. Após esse apanhado sobre alguns elementos que podem ser utilizados na literatura para expressar a intenção do autor chegamos ao realismo maravilhoso, termo utilizado para designar o maravilhoso nas obras latino-americana. Esse termo tem como principal difusor Carpentier. Segundo ele, esse termo se encaixa melhor devido o sobrenatural aparecer ligado a características culturais, geográficas e ao cotidiano do continente americano. Além dessa designação, utilizaremos também maravilhoso europeu ou simplesmente maravilhoso, que nada mais é do que a forma como o maravilhoso aparece na literatura europeia. Em um de seus ensaios sobre o realismo maravilhoso Carpentier diz que o realismo maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação não habitual ou particularmente favorecedora das desconhecidas riquezas da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com especial intensidade em virtude de uma exaltação do espirito que o conduz a um modo de “estado-limite”. Para começar, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé. Os que não acreditam em santos não podem curar-se com milagres de santos, nem os que não são Quixotes podem entrar com o corpo, alma e bens, no mundo de Amadís de Gaula ou de Tirante-o-Branco. [...] (CARPENTIER, 1987, p. 140-141).

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Podemos observar que, de acordo com Carpentier, o princípio do realismo maravilhoso consiste na alteração da realidade, mas que essa alteração não ocorre por acaso; ela é inserida de maneira proposital pelo autor, mas inesperada por parte dos personagens e do leitor. Ele ainda afirma que para o receptor aceitar o irreal é necessário uma fé, por exemplo, caso o maravilhoso se manifeste na forma de vultos, apenas pessoas com uma crença previa em sua existência é que irão tomar esse acontecimento como natural e verdadeiro para a história. Ainda sobre o realismo maravilhoso Carpentier defende que sua associação está ligada “a certos acontecimentos ocorridos na América, a certas características da paisagem, a certos elementos que nutriram minha obra” (CARPENTIER, 1984. p. 120). Ele ainda acrescenta mais: “o real maravilhoso nosso, é o que encontramos no estado bruto, latente, onipresente em toda América Latina. Aqui o insólito é cotidiano, sempre foi cotidiano (CARPENTIER, 1984, p. 122). Em outras palavras, o realismo maravilhoso é fruto das histórias, lendas e mitos presentes na América Latina, como por exemplo a lenda de Eldorado, uma lenda maravilhosa que tem suas origens no período de colonização quando os europeus foram levados a acreditar na cidade de ouro. Além disso vemos que aqui no Brasil é muito comum termos histórias em que há a presença de elementos ou personagens não naturais, ou não reais, ligados à natureza, como o Saci ou Curupira. Inicialmente, tomamos conhecimento desses seres através de lendas e histórias que são passadas através de gerações. Se pararmos para observá-los, veremos que ambos têm uma ligação muito forte com a natureza e regiões mais inóspitas, características presentes em boa parte do país. Além disso, são personagens que estão presentes em nosso cotidiano, pois é comum pessoas mais velhas contarem essas lendas às crianças com o intuito de amedrontá-las de alguma forma. Assim, desde pequenos crescemos rodeados por histórias maravilhosas e é a partir desses contos que a maioria começa a adquirir a fé que Carpentier defende como prévia à aceitação do maravilhoso. Tanto o realismo maravilhoso de Carpentier quanto o maravilhoso europeu possuem a mesma essência: trazem à tona a presença do sobrenatural e tanto o leitor quanto o personagem tomam essa alteração como real e parte importante da história. Muitas vezes eles não se sentem motivados a desvendar ou explicar 191


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o fato estranho; é essa aceitação incondicional que caracteriza o maravilhoso, diferenciando-o do fantástico e do estranho. O conto “Quarto de Hora”3 de Maria Lucia Medeiros será estudado tomando o maravilhoso e a peregrinação como elementos principais, pois neles observaremos a intensa presença do sobrenatural. Vemos tanto o realismo maravilhoso quanto o maravilhoso europeu surgirem e se tornarem naturais ao conto. Além deles, outras características trazem mais riqueza à história, como a peregrinação vivida pela personagem principal, como veremos. No conto, há vários momentos em que a personagem se depara com vultos. A presença desse sobrenatural caracterizamos como realismo maravilhoso, pois são elementos advindos de lendas muito comuns na América. Já o realismo europeu se mostra no momento em que a protagonista se depara com um cavalo em chamas e esse a leva sem que ela saiba o seu destino. Esse animal em chamas já tem uma ligação muito mais forte com a mitologia greco-romana do que com o folclore americano. No decorrer da história, alguns acontecimentos nos permitem supor com segurança que a personagem possui poderes mágicos. Ou seja, tratar-se-ia de uma feiticeira, devido à presença de rituais, ervas e poções - que são preparadas com uma determinada finalidade -, a hereditariedade cultural, além de outros fatores que também serão estudados no decorrer deste trabalho. O conto possui vários núcleos que no durante os acontecimentos vão se encadeando, tornando-o um tipo de novela contínua. Ao final percebemos que o foco principal da história se dá justamente devido a essa junção de acontecimentos. A personagem vive uma peregrinação durante todo o conto. Podemos dividi-la em duas partes, pois há uma primeira que ela realiza acompanhada da mãe. Ao final da primeira caminhada, a mãe morre e a personagem inicia a segunda peregrinação sozinha, cumprindo o ritual de hereditariedade cultural. No entanto, elas não podem ser vistas como duas caminhadas distintas, devido ao encadeamento

3. O livro Quarto de Hora (1994) foi escrito pela paraense Maria Lúcia Medeiros; ele é composto por quinze contos. O maior deles chama-se Quarto de Hora; nele é contada a história de uma menina que passa por uma trajetória de aprendizado, primeiro junto da mãe e depois sozinha. O conto segue cheio de encantamentos e mistérios e o sobrenatural se faz presente em grande parte dele.

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dos núcleos narrativos. Formam, na verdade, apenas uma peregrinação dividida em dois momentos: o da educação do ritual de hereditariedade cultural e o da efetivação hereditária. No primeiro momento ela aprende a seguir os passos da mãe, sendo por ela auxiliada e ensinada, no segundo momento, a menina, representante da mãe, cumpre o seu ritual de passagem da infância para a maturidade.

Peregrinação e realismo maravilhoso: conhecendo e desvendando Quarto de Hora O conto Quarto de Hora é uma literatura cheia de encantos, um material riquíssimo em elementos sobrenaturais que nos permite ir ao encontro do realismo maravilhoso. A história vivida pela personagem/narradora nos permite deslindar sua aventura épica e trágica. Épica devido ao narrar de fatos e conquistas da personagem, e trágica pelo fato da personagem vivenciar um conflito com seu mundo, intensificada pela perda de sua mãe. A sua trajetória tem na peregrinação o seu ponto de partida. Pois é nessa caminhada que a personagem irá vivenciar os desafios e conquistas a serem narrados por ela. As peregrinações são consideradas buscas, ou seja, quem peregrina está à procura de algo. Por exemplo, um pecador arrependido caminha em penitência buscando perdão, já para Le Goff (1994), a peregrinação conduz o caminhante ao conhecimento interior, ou seja, a uma forma de aprendizado e busca por conhecimento. O conceito defendido por Le Goff se encaixa com trajetória de busca empreendida pela personagem de Quarto de Hora, pois ela além de buscar conhecimento tenta desvendar os próprios segredos. O conto inicia-se com a mãe da personagem a contar-lhe uma história, a lenda da cidade branca, hesitando em terminá-la por um tempo até encontrar vestígios de interesses, a partir da atitude de encantamento por parte da filha. Ela termina a lenda no primeiro dia da peregrinação, onde além de contar-lhe o final, também ensina a filha o princípio do trabalho ao manusear poções, substancias e ervas, o que nos conduz a pensar em rituais de feitiçaria. Podemos interpretá-la como uma lenda de aprendizagem passada através de gerações, sendo relembrada pela personagem durante todo o percurso. 193


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O primeiro contato com imagens presentes no corpus do realismo maravilhoso dá-se no segundo dia de peregrinação. Junto da mãe, a personagem é levada a um encontro com uma procissão de vultos, como podemos observar no trecho a seguir. Então, movendo-se vagarosamente e a uma distância considerável, ofereceu-se aos nossos olhos o desenrolar de um espetáculo, eu diria uma procissão, um cortejo de almas deste mundo e de outros. Todos encapuzados, uns apoiados nos outros, rezavam ou murmuravam rezas que aos nossos ouvidos chegavam qual barulhar do vento. Uma procissão de mortos-vivos, um não mais acabar de vultos de passagem. Passavam ao largo em movimentos que me pareceram repetidos como se vagueassem e volteassem unicamente para nós, que havíamos chegado sem atraso, que não faltáramos ao encontro. Por mais que eu esforço despendesse, não via nenhum rosto mas era como se eu os visse com o coração e pelo sopro da memória, tal a ausência de estranhamento [...] (MEDEIROS, 1994, p. 15-16).

O encontro sem estranhamento com a procissão torna o espetáculo conhecido, ou melhor, naturalizado, para a personagem. Nos dias seguinte ela conduzida a lidar com a natureza e aprende a utilizá-la ao seu favor, aprende a crer na inutilidade das lágrimas, lidando com o sofrimento como um exercício de fortificação, como ela narra. Com gestos de leveza e no mais completo silêncio reverenciou os ramos tocando o caule, examinando as folhas, deslizando os dedos pelos nódulos, resinas e liquens. Depois, tomou-me as mãos e fez-me repetir palavras tão belas que até hoje ao pensa-las, penso inevitavelmente na luz que possuíam. [...] [...] valeu-me dela para fazer-me a narrativa das águas e das lagrimas. Sem dor não proverás do sal nem verás esse campo tremular em tuas retinas. Para fazer-me crer na inutilidade das lágrimas[...] (MEDEIROS, 1994, p. 17).

Um dos momentos que merece destaque na narrativa é a atividade de parteira. Convocada pela mãe, a menina deve ajudá-la em um parto, construindo, a partir daí, experiências de ritos entre mulheres. Angélica Mota-Maués (1994, p.

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118) descreve o parto como um ritual de mulheres entre mulheres, onde se era preparado o lugar e a parteira com antecedência para o nascimento de nova vida, além da parteira, pelo menos mais três mulheres participam, uma “leiteira”, uma “lavadeira” e uma “tratadeira”. No conto a personagem diz: “(...) os restos do parto confiados a mim foram enterrados ao lado da casa. E assim eu fiz com minhas próprias mãos e aprendi [...]” (MEDEIROS, 1994, p. 19). Percebe-se que há todo um rito com o que fazer com os restos do parto, um costume geralmente feito entre parteiras. Segundo Kramer e Sprenger (p. 107-108) no seu Malleus Malleficarum, o oficio de parteira é comum entre as bruxas e que em geral elas usam esse momento pós-parto para oferecer o recém-nascido ao diabo. No entanto, na obra Quarto de Hora, não há qualquer indício de que tal ritual demoníaco foi proferido, apenas observa-se que a personagem auxiliou a mãe em um parto tornando-se conhecedora dessa prática. Notadamente, como as feiticeiras faziam, a menina e sua mãe lidaram com os restos de parto de forma ritualística e não cristã. No último dia de peregrinação, vemos que a personagem já é conhecedora de poções, drogas, ervas e elementos ritualísticos, como a transição ao mundo dos mortos e o rito do parto. Em seguida, com a morte da mãe, guiadora no princípio da peregrinação, a personagem recebe uma última tarefa, um ritual que consiste na transição de menina à mulher, tornando completa a fase de preparação necessária para que ela siga seu caminho sozinha. Como que uma última ordenação ritualística ou profecia, a mãe principia: Quando a lua surgir já estará acesa a fogueira e nessa ordem aqui determinada, lançarás nela primeiro o alfazema, a canela, as flores do tamarindo e assim, animada estará a correnteza e a vegetação. Deita devagar depois as cartas que estão cingidas por fitilho, as orações – as já fixadas pela tua memória – poderás queimar. Defumarás os escapulários e os bentinhos, as rezas de achamento. Os responsos guardarás contigo. Pelo sopro do ar, a fumaça carregará para todos os meridianos as palavras vigorosas e de maior poder. O vestido que eu costumava usar nas festas da colheita e cuja beleza teus olhos mudos cobiçavam, agora já te pertence. Desdobra-o com cuidado para estender na relva a brancura dele sem que te esqueças dos colares e da flor que eu pretendia na linha da cintura. Então despiras tua veste pagã para que possas untar por igual cada parte de teu corpo e o faras com óleo almiscarado. Sete

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vezes passarás entre o fogo e a fumaça. Depois, buscarás no galho o fruto, as folhas mais tenras e algumas sementes que estarão nos favos. Ajuntarás a eles o pote de mel desenterrado por tuas próprias mãos e em lugar marcado. Na folha do antúrio que cresce úmido à beira dágua deitarás o mel, o fruto, as folhas novas e as sementes. Ao cabo disso precisarás reavivar o fogo e o farás com o conteúdo de uma caixinha redonda, minha porção misteriosa, meu cadinho, meu sal da vida. Tontearás de louca embriaguez e a mata recenderá. Veras então subir pelos ares o verdadeiro olor ao assomar no céu a Lua plena. Deixa a descoberto teu ventre e faz ver a ela que, tal fruto deiscente, o fluxo descerá com o plenilúnio (MEDEIROS, 1994, p. 21-22).

No rito, é clara a utilização de ervas e poções misteriosas, que nos conduzem a ver semelhanças com certas práticas de bruxas e feiticeiros, que usam esses conhecimentos para determinados fins de encantamentos ou rituais de feitiçaria. Segundo Evans Pritchard (1978, p. 228) a respeito do uso de drogas e ervas, ao tratar da cultura dos Azande, por exemplo, “[...] a feitiçaria envolve ritos mágicos que usam objetos feitos de árvores e plantas. Esses objetos foram chamados de ‘drogas’”. Percebemos que há um certo teor de mistério que envolve a vida e o destino da caminhante, além disso, no decorrer do conto o contato com ervas e rituais nos permite aproximá-la das práticas comuns aos praticantes de magia. Esse é também o momento em que a personagem assume o papel da mãe, pois após esse acontecimento a personagem diz que sente como se ela fosse a mãe: “cuidei nessa noite de todas as tarefas adultas porque assim movia-me, adulta e ancestral, como se já fosse minha a história dela, a minha história agora repassada” (MEDEIROS, 1994, p. 18). O tornar-se a mãe conduz-nos à ideia de hereditariedade. Tomando, ainda os costumes Azande, como exemplo, a bruxaria, “é algo herdado, [passado] de pai para filho” (PRITCHARD, 1978, p. 39) Com isso podemos considerar os poderes como heranças genéticas e culturais, repassados através de gerações. Na continuação, que aqui chamamos de segunda peregrinação, a personagem prossegue sua trajetória maravilhosa já se sentindo senhora de si. Ela primeiramente se depara com um cavalo de fogo. Ao montá-lo ele reluta de maneira selvagem e indomada, queimando a pele da personagem. Assim ela descreve o evento maravilhoso: “Meu corpo todo queimava nas labaredas que irrompiam pelas ventas resfolegantes, pelos olhos enormes, pelas patas que batiam no meu 196


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peito. Pelo dorso do animal as lavas escorriam e queimavam-me as coxas” (MEDEIROS, 1994 p. 24.). Esse animal conduz-nos a traçar um paralelo com o maravilhoso europeu originário da mitologia grega, pois nela vemos constantemente a presença do insólito se manifestando na forma de animais como Pegasus, o cavalo com asas ou a Fênix, ave que entra em autocombustão e depois renasce das próprias cinzas. Após descansar suas feridas a personagem encontra outro cavalo; dessa vez trata-se de um cavalo aparentemente comum, que transporta a personagem até um casebre; lá encontrando uma velha, esta lhe diz quais santos a menina deve se apegar no momento de sua morte, como observamos no conto: “Ao apontar para um canto desvelou-me, entre as tábuas que formavam parede, fileiras de santos, imagens carcomidas polo tempo. Santo Onofre, São Jerônimo, São Cristovão e Santa Filomena, os nomes saindo da voz titulenta daquela mulher velha” (MEDEIROS, 1994 p. 26.). Observamos que essa velha tem como única companhia imagens de santos, e por habitar em uma casa simples a tomamos por um eremita. A personagem acredita que essa velha possa ser um tipo de oráculo, pois ela espera por respostas a respeito de seu futuro, mas que não são dadas. Assim a menina relata o fato: “Esperei em vão que ela me falasse do quanto eu ainda teria que percorrer, de quanto enfim a morte me chamaria dali, em quais circunstâncias eu partiria e quais os santos que eu deveria invocar para me sustentarem à beira dos abismos” (MEDEIROS, 1994, p. 26-27). Fica-nos claro, como já atestamos acima, que a personagem aguarda ansiosa pela revelação dos conhecimentos sobre o futuro, mas eles não vêm. Somente risos e nada mais. Quando tentava falar, somente um “som roufenho” ouvia-se. Para a sua surpresa, a velha debilitada abraçou-a, “como se houvesse estado à minha espera e levou-me para dentro” (MEDEIROS, 1994, p. 26). Sem saber para onde irá, sem indicação, além do riso, da voz roufenha e do barulho do cão, a menina após andar em círculos cai em um “precipício que não tinha fim” (MEDEIROS, 1994, p. 28). Da velha a lembrança do riso e, ao cair no abismo, um novo mundo se abre. A velha, ao que parece era a linha limite entre os dois mundos.

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Ainda sobre a velha podemos vê-la também como um tipo de Baba-Yagá, pois segundo Propp a função desse personagem seria a de “vigia” entre dois mundos. Ele assim relata-nos sobre esta personagem dos contos russos: [...] por vezes a Baba-Yagá ali está para vigiar a fronteira, por ordem de senhores que a censuram por haver deixado o Ivã passar: “Como ousaste deixar que semelhante patife entrasse em meu reino?” [...] Esse exemplo já sugere que o doador do recurso mágico vigia a entrada do reino da morte. [...] (PROPP, 2002. p. 59.)

A partir dessa definição entendemos a velha como uma guardiã do submundo, pois após esse encontro no casebre, ela habilita a personagem, ainda em vida, a penetrar no reino dos mortos. A protagonista desce ao mundo subterrâneo de barco, como se vê na tradição mitológica clássica, e segue até encontrar três vultos, que aparecem em um lugar sombrio. São personagens extraordinários, pois tem poderes sobrenaturais de tecer os ares, as terras e as almas: [...]Respirei fundo e ao abrir os olhos outra vez, vultos apareceram dispostos na paisagem e eram três. Não lhes podia ver o rosto pois curvados, laboravam, moviam harmoniosamente as mãos a tecer o que me não era dado deslindar[...] Sussurrei às suas costas. - Irmão de mim, com que te ocupas [...] - Ocupo-me dos movimentos do ar, terço a força dos sopros [...] - Irmão de mim [...] há movimentos incerto de tuas mãos e emaranhado das linhas também há... - [..] Ocupo-me de vegetação, teço raízes, teço teu chão [..] Teço o fio da lamina [...] - Irmão ou irmã de mim [...] teces o que foi oi teces o que será? - Contempla-me porque não tenho tempo para olhar-te. [...] teço-lhe a alma [...] O veio imanente teço e é tudo (MEDEIROS, 1994, p. 32-33).

Além dessa manifestação do realismo maravilhoso, segundo Maria Santos (2006, p. 117), podemos fazer uma relação dos vultos tecedores com as fiandeiras mitológicas, pois, por analogia, o primeiro tece os fios da vida, o segundo os fios do destino e o terceiro os fios da alma, que corta os fios da vida. Após esse encontro, a peregrina ao seguir seu caminho cai em um abismo sem perceber e se depara com três guerreiros mortalmente feridos. Através desses guerreiros são passadas flechas à personagem, e essas a auxiliam na escalada: uma 198


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metáfora do conhecimento para ajudá-la a sair do mundo subterrâneo. Posterior à saída do abismo a personagem observa manifestações da natureza, além do fecharse inesperado do abismo. Fitei o céu negro lá em cima, ao tempo de ver rolando na amplidão nuvens de fogo, relâmpagos e trovões em grande estrondo, como se em batalha se afrontassem céu e céu. Um vento aterrador ergueu diante dos meus olhos fogo e fogueira em explosão colossal, a reboar para dentro da terra diante dos meus olhos, o abismo a se fechar em terrível estrondejamento (MEDEIROS, 1994, p. 39).

A possibilidade de estar e vagar pelos dois mundo faz referência à vida após morte e ao espiritualismo. No período medieval essa tendência à manifestação da fé cristã era fortemente usada nas obras literárias, mas não se desligando de outras religiões consideradas pagãs. Vejamos: “O maravilhoso medieval – assim como outros domínios da religião e da cultura – acolhe fontes diversas, anteriores ou exteriores à Cristandade, para aprisioná-las e cristianizá-las em intensidades variadas” (LE GOFF, 1994, p.108). É isso que vemos no conto Quarto de Hora, a permanência da mescla de crenças populares. Essa mescla pode ser observada nas características da velha guardiã do submundo, pois ela demonstra possuir crenças cristãs e pagãs simultaneamente. Após a saída do abismo, que é também a saída do mundo dos mortos, o ambiente é modificado. Em um bosque, a peregrina encontra um grupo de pessoas a ouvir histórias contadas em forma de cantochão, e ao se aproximar percebe que se trata da mesma lenda contada pela mãe no início da peregrinação: a lenda da cidade branca Murmúrio de vozes que foram chegando ao apurar o ouvido e adentrar lugar varado pela claridade. Umbroso bosque que meus olhos percorriam extasiados, arvoredo e espalhar-se e alargar resplêndido por vastidão sem fronteiras. Lugar de luz exata, interminável bosque e prazerosa caminhada, visões que me chegavam assombreadas. Ali um bando de meninos nus a rodear-me e puxar-me pelas mãos. Mais adiante um páramo tranquilo em meio ao bosque e, em grande roda aberta, grupo de homens, mulheres com crianças a apoiar o queixo às mãos e ouvir histórias saídas de uma voz em cantochão, [...]

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Reconheci de pronto a história que minha mãe contava para mim em noites primevas. [...] (MEDEIROS, 1994, p. 40-42)

Antes do fim do conto a personagem se depara com um menino praticante de alquimia, que ao fazer movimentos tornava a água colorida, além de ter o conhecimento necessário para transformar e reviver pássaros. Mirei e vi claramente visto, alguém que em princípio julguei em espreitança. Era um menino a fazer movimentos circulares e tornar as águas coloridas. Gestos de extrema lentidão, alquimia desenhada no ar, respirar paciente ao mergulhar os pássaros um a um e soltá-los depois em transmudação (MEDEIROS, 1994, p. 42).

O conto termina com a personagem continuando a peregrinação, seguindo em direção ao que acredita ser seu destino. Nesta obra, somos convidados a ter fé no que lemos, como que sem questionamento, ou hesitação. Somos convidados a sentir a força de um realismo que é maravilhoso, que nos permite entender uma natureza e uma realidade que se constituem conjuntamente com o que é sobrenatural, como as dores que a menina sente ao ser queimada pelo cavalo de fogo. Dores e ardências reais causadas por um animal mais que natural. O trabalho que realizamos teve como objetivo principal observar a presença do realismo maravilhoso, que apareceu durante a peregrinação empreendida pela protagonista no decorrer do conto Quarto de Hora, da autora Maria Lúcia Medeiros. É na peregrinação que o realismo maravilhoso ocorre, tornando a filha em mãe, tornando-a apta a viver em uma sociedade construída sobre as bases do real e do maravilhoso. Ao se ver sozinha, a menina é conduzida a viver uma vida mística, mas também real. Ela não pode deixar de prestar serviços à comunidade. A mãe lhe ensinara a ser parteira. Mas ela também não deve esquecer de prestar honra à natureza: inicia-se então o ritual da mulher parteira e os restos do parto são enterrados, como que a partir daí a vida da criança ligava-se à terra, à vida: “(...) tal linha ou cordão a prender e desprender a linha da vida (...)” (MEDEIROS, 1994, p. 19). E ainda em comparação, vemos quando a mãe faz gestos de semear, de colher, gestos de morrer (MEDEIROS, 1994, p. 15). Gestos que ensinaram à menina a agir sobre a natureza a partir de rituais. Após o gesto de morrer, deve-se contar uma história, uma história que é a da mão, mas é também a da filha. 200


JOSÉ EDUARDO DOS SANTOS SOUSA E LUCIDEYSE DE SOUSA ABREU

Por se tratar de uma literatura de origem latino-americana em vários momentos substituímos o termo maravilhoso por realismo maravilhoso, defendido principalmente por Carpentier. Como foi abordado no trabalho esse termo se aplica melhor para designar os elementos sobrenaturais em associação ao real que estão presentes nesse continente. Em seguida, reconhecendo que a obra é rica em elementos sobrenaturais, vimos que há elementos secundários que foram aqui estudados, como a associação da personagem a uma feiticeira, à manipulação de drogas e ervas, à hereditariedade ritualística etc. Chamamos de secundários, mas não podemos deixar de reconhecer que foram elementos que no decorrer da obra caminharam lado-a-lado com o maravilhoso, ou melhor, foram elementos que fomentaram o realismo maravilhoso, fazendo com que a obra se tornasse ainda mais rica e, dessa forma, aguçando a curiosidade do leitor para descobrir os meandros da narrativa.

Referências BOTOSO, Altamir. O Realismo Maravilhoso no Romance O Mundo Alucinante, de Reinaldo Arenas. Publicado em RevLet – Revista Virtual de Letras, v. 01, jan./jul. 2011. CARPENTIER, Alejo. A literatura do maravilhoso. Tradução de Rubia Prastes Goldoni e Sérgio Molina. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais; Edições Vértice, 1987. CARPENTIER, Alejo. Lo Barroco y lo Real Maravilloso. Ensayos. Habana: Editorial Letras Cubanas, 1984. GINZBURG, Carlo, História noturna / Carlo Ginzburg; tradução Nilson Moulin Louzada. – São Paulo: Companhia das Letras, 2012. KRAMER, Heinrich; SPRENGER, Jacobus. Manual de Caça às Bruxas (Malleus Maleficarum). São Paulo: Edições de Planeta. LE GOFF, Jacques. O imaginário medieval. Tradução de Manuel Ruas. Lisboa: Estampa, 1994. LOTTERMANN, Clarice. Raul da ferrugem azul e de olho nas penas: o insólito como denúncia. Publicado em Revista Trama, v. 9, n. 17, jan.-jun., 2013 – p. 67 – 80. MAUÉS, Maria Angelica Motta. “Lugar de Mulher”: representações sobre os sexos e práticas médicas na Amazônia (Itapuá/Pará). In: ALVES, PC. and MINAYO, MCS., (Orgs.). Saúde e doença: um olhar antropológico [online]. Rio de Janeiro: Editora FIOCRUZ, 1994. MEDEIROS, Maria Lucia. Quarto de Hora. Belém: CEJUP, 1994. MONGELLI, Lênia Márcia da Medeiros. Por Quem Peregrinam os Cavaleiros de Artur. Cotia: Íbis, 1995. PRITCHARD, E. E. Evans. Bruxaria, Oráculos e Magia entre os Azande. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 1978. PROPP, Vladímir. As raízes históricas do conto maravilhoso. São Paulo: Martins Fontes, 2002. SANTOS, Maria Trindade Martins dos. A memória no espaço da escritura de Quarto de Hora: Contos de Maria Lúcia Medeiros. 2006. TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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Narrativas Orais e suas Interfaces


A DÁDIVA NAS NARRATIVAS ORAIS ACERCA DA MATINTAPERERA DE TAPERAÇU CAMPO, BRAGANÇA (PA) Fernando Alves da Silva Júnior (PPGLS-UFPA)

Primeiros passos da pesquisa de campo Este trabalho corresponde a uma parte da dissertação desenvolvida para o programa de pós-graduação em Linguagens e Saberes na Amazônia (PPGLS) da Universidade Federal do Pará (UFPA) que consiste em analisar as narrativas orais acerca do mito da matintaperera na comunidade de Taperaçu Campo, comunidade dos campus bragantinos (PA), mediante gravação desses textos orais. Para o registro das narrativas orais utilizamos um gravador digital com microfone, sendo que houve casos em que dispensamos o uso do gravador e as conversas foram somente anotadas em uma agenda quando a informalidade do encontro dispensava o uso do aparelho, fizemos também o registro fotográfico da comunidade, assim como de alguns narradores. Quanto ao uso do gravador convém mencionar que a orientação metodológica das primeiras visitas em 2011, quando iniciamos nossa pesquisa de campo em outra comunidade bragantina (São Domingos), consistia em realizar uma visita inicial, explicar a intenção da pesquisa e agendar um momento apropriado somente para a gravação. Contudo, quando era mencionado o objeto da pesquisa (as narrativas acerca de matintaperera, de labisonho, etc) os narradores logo iniciavam sua narração, o que resultou em perda de informações substanciais para nosso trabalho. Quando fazíamos a segunda visita com o gravador e a máquina fotográfica aquelas histórias e a espontaneidade do momento anterior se esmaeciam em uma narrativa que não repetia a anterior.

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A dádiva nas narrativas orais acerca da Matintaperera de Taperaçu Campo, Bragança (PA)

Diante desse impasse metodológico alteramos nosso modo de abordagem. Começamos a propor um novo modo de estabelecer o primeiro contato, optamos por deixar o gravador ligado desde a nossa apresentação até a despedida e no meio da conversa explicávamos o objetivo do nosso trabalho. Este modo de entrevistar também gerou perda de informação nos encontros. Por exemplo, na entrevista com seu Aldenor Cirilo, que me foi apresentado por dona Edilene na noite do dia 30 de dezembro de 2012, quando ela finaliza a apresentação, ele inicia a conversa e por pouco não perdemos importantes informações para a pesquisa. Por fim, sempre informávamos que tudo fora gravado e que só utilizaríamos o áudio caso o narrador autorizasse o uso para os trabalhos acadêmicos que estávamos produzindo. Outro incômodo do momento da entrevista era a luz vermelha do gravador digital indicando o rec, que foi suprimida por uma fita adesiva preta justamente por conta da intimidação que, a nosso ver, causava nos entrevistados durante as visitas. No momento das conversas, a distância física entre o pesquisador e os narradores foi a mais natural possível, uma vez que o microfone digital garantiu uma gravação audível1 sem a necessidade de aproximar desagradavelmente o gravador às bocas de nossos anfitriões. Nossa primeira experiência como as narrativas orais míticas bragantinas foi com o desenvolvimento do projeto de conclusão do curso de especialização em Linguagens e Culturas na Amazônia ofertado pela UFPA no decorrer do ano de 2011 no qual pude entrevistar e analisar as narrativas orais míticas de dona Josefa Silva moradora da comunidade de São Domingos, Bragança (PA). Essa pesquisa deu início ao projeto que analisaria a narrativa da matintaperera por uma simples questão: quase todos os narradores pesquisados desde o ano de 2011 citaram em nossas conversas histórias acerca dessa bruxa amazônica2.

1. Houve momentos em que fomos recebidos no quintal com barulhos adjacentes, em pátios com televisores ligados ou próximos ao trânsito de carros e motos, e ainda quando pessoas conversavam, que dificultaram partes das transcrições. 2. Utilizamos o termo bruxa por conta das leituras do trabalho de Josebel Akel Fares (1999; 2007) e, posteriormente Silva Júnior e Simões (2013). Não pretendemos inferir um pensamento colonizador a partir dessa expressão, apenas estamos considerando os estudos anteriores acerca deste mito que também se vale da outra expressão “a mulher do pássaro da noite” (VILLACORTA, 2000).

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FERNANDO ALVES DA SILVA JÚNIOR

Quando iniciamos a pesquisa para o PPGLS o objetivo era analisar as narrativas orais da matintaperera ao entorno de Bragança, a impossibilidade do projeto restringiu o espaço de pesquisa, como esperávamos. Em vista de algumas visitas a comunidades distintas, o recorte espacial recaiu sobre a comunidade de Taperaçu Campo por conta de uma pessoa, dona Edilene. Não tínhamos intimidade com a comunidade até conversarmos com essa senhora de 35 anos acerca do meu trabalho e ela nos convidar para gravar com o pai, seu Raimundo Silva. A partir de então gravamos com nove moradores de Taperaçu Campo (Maria Silva Aviz, Raimundo Silva, Agostinho da Silva Sousa, Aldenor Cirilo, Enedina de Sousa, João Coelho de Sousa, Orivaldo Pereira da Silva, Egídio Ferreira da Silva, Arlindo Araújo e Manoel de Jesus), todos indicados e convidados por dona Edilene, uns na casa da nossa guia, outros na casa dos pais e ainda teve aqueles que gravamos em suas próprias residências. As entrevistas não tiveram um roteiro pré-definido, com perguntas que requeriam respostas objetivas. Elas seguiram a lógica de uma conversa, sendo que o direcionamento era muito bem delimitado: as histórias da matintaperera. Não esperávamos que as histórias tivessem ocorrido somente em Taperaçu Campo, pretendíamos encontrar as histórias que fazem parte do acervo que circula oralmente na comunidade. Em algumas entrevistas, logo que esgotavam as narrativas da matintaperera, surgiam outros casos de aparição e encontros inesperados. Assim identificamos as narrativas míticas que circulam livremente na comunidade: a narrativa do bode, a do gritador, a do fogo do campo, a da mãe d’água, a da curupira, a do Ataíde, a do labisonho e a da matintaperera. À medida que as narrativas da matinta foram registradas e o conhecimento acerca dessa personagem, em sua grande maioria feminina, se aprofundava, tentamos garantir a impessoalidade nas entrevistas não fornecendo explicações e permitíamos que os narradores sempre discorressem de acordo com seus conhecimentos, fazíamos sim, perguntas que estimulassem o prosseguimento das histórias, às vezes, essa continuidade só era certa quando contávamos uma história de matintaperera criando um intercâmbio de narrativas.

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A dádiva nas narrativas orais acerca da Matintaperera de Taperaçu Campo, Bragança (PA)

A comunidade: Taperaçu Campo Taperaçu Campo compõe um grupo de comunidades que formam parte da região dos campos bragantinos pertencentes a Reserva Extrativista Marinha Caeté-Taperaçu. A comunidade é largamente conhecida como Acarpará, nome que de acordo com seu Egídio Ferreira da Silva (Taperaçu Campo, 20 jul. 2013) surgiu por conta da iniciativa de uma Associação que foi criada em meados da década de 60 para fortalecer a agricultura local, especialmente com o cultivo do feijão caupi, a chamada Associação de Crédito Rural do Pará - ACARPARÁ. A denominação Taperaçu Campo abrange atualmente as seguintes comunidades: Patalino, São Mateus, Acarpará, Porto dos Milagres e Porto da Mangueira. Essa divisão, como explica seu Egídio, decorreu da atuação da Pastoral da Saúde quando precisou demarcar os grupos de trabalho e as áreas que seus agentes ocupariam. Alguns moradores, como o presidente da associação comunitária seu Arlindo Araújo, insistem em denominar todo esse espaço como Taperaçu Campo, da forma como é escrito nos documentos oficiais (conta de energia, por exemplo).

Figura 1— Mapa da comunidade Taperaçu Campo. Fonte: projeto gráfico, Fernando Alves (2013).

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A comunidade possui duas escolas (uma municipal de ensino fundamental e outra estadual de ensino médio), uma igreja católica, a de São Jorge, um posto de saúde, três campos de futebol (na entrada da comunidade do Patalino, em frente à igreja e ao posto de saúde e outro na comunidade do Porto dos milagres) e dez olarias3. Além das olarias que empregam boa parte da comunidade, outras fontes de renda são o pescado e a agricultura. O número substancial de olarias4 é resultado do grande número de matéria-prima (argila) encontrada nas regiões dos campos bragantinos. As olarias extraem a argila de suas propriedades e quando esgotam os recursos de seus limites pagam para retirarem a argila das propriedades dos demais moradores: dragam os campos com tratores e deixam somente locais esburacados. Dona Edilene explica ainda que alguns moradores aproveitam essas covas como “tanques naturais” para armazenar a água das chuvas que amolecerá a mandioca antes do preparo do seu subproduto: a farinha.

Esboçando um mito: a matintaperera A matintaperera é, via de regra, uma senhora idosa em condições de se metamorfosear em uma espécie de pássaro de hábitos noturnos que transita pela comunidade. O que marca a presença da matinta é seu trinado: fiiite, fiiite, fiiite, matiiintaperera. Para a certeza do reconhecimento é necessário identifica o nome da divindade em seu canto, o que os moradores dizem que é a “dobração” de seu assobio, caso contrário o pito noturno pode indicar a presença de outras entidades (a curupira ou a mãe d’água) que emitem o mesmo assobio, com a diferença de não dobrarem o canto. Neste trabalho citaremos de forma sintética as narrativas de seis moradores de Taperaçu Campo (Raimundo Silva e Agostinho da Silva Sousa, João Coelho de Sousa, Orivaldo Pereira da Silva, Egídio Ferreira da Silva, Arlindo Araújo) que

3. No mapa constam apenas nove olarias porque omitimos a de seu Aldenor Cirilo que, de acordo com dona Edilene, está atualmente desativada. 4. As olarias em Taperaçu Campo são gerenciadas por famílias, as de pequeno porte, e por empresas, duas de grande porte.

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A dádiva nas narrativas orais acerca da Matintaperera de Taperaçu Campo, Bragança (PA)

relatam o momento da oferta a matinta: tabaco, café e peixe que, mais adiante, articularemos com o conceito maussiano de dádiva. Na ordem de realização das entrevistas, a versão de seu Raimundo Silva com seu Agostinho da Silva Sousa é a primeira a nos ensinar a maneira de capturar a matintaperera convidando-a a buscar um cigarro ou a beber um pouco de café: A matintaperera, uma vez eu... a matintaperera é assim, ela passar pela sua casa, aí assobiar, aí você prender ela: – Vem buscar um, um cigarro de manhã, vem busca uma, vem beber um café. Ela fica, ela fica presa, ela só, ela só se acomoda quando ela... quando ela vai lá. Aí você dá aquela maniva, ela... Uma vez eu, eu fui... Ela pede o, a pessoa vem pedir o cigarro, buscar, né? O tabaco? Eh, eh. Aí, tinha o cara que joga baralho acolá. Aí, quando foi umas duas horas chegou lá. Com um pouco mais chegou duas velhas, pano na cabeça. Elas tinham passado lá de noite, ele disse, ele gritou de lá onde eles estavam jogando baralho, disse: – Vem buscar, vem buscar uma boia de peixe amanhã. Foram simbora, assobiando, foram simbora. Quando foi essas horas, elas vieram.] [Raimundo: Foram bater lá?] [Augustinho: Vieram bater lá. Chegou lá, ele disse: – Olha! Lá vem as mulher, vieram buscar o peixe. Aí também foi pra lá, elas chegaram, ele foi pra lá dá a canga de peixe pra elas. (SILVA, Raimundo; SOUSA, Agostinho da Silva, Taperaçu Campo, 16 set. 2012).

Já para seu João Coelho de Sousa uma maneira certa de se conhecer a identidade da matintaperera é oferecendo-lhe algo, o que tiver: café, tabaco, etc, que uma pessoa aparecerá no dia seguinte cobrando o que fora prometido: A matintaperera, a gente, ela dá o assobio dela, né? Aí se afinca uma faca encima da mesa ou, aí oferece o cigarro pra ela, pra ela tomar o café da manhã com você. Ganhar o cigarro. Aí quando é de manhã ela chega, aí você sabe quem é, uma pessoa. (Mas ninguém fala nada, não?) Não, não, fala nada não. (Não precisa?) Fala nada não. Aí dá o café, só pra conhecer, só pra conhecer a pessoa. Porque a matintaperera é gente, não é bicho. [...] Mas você não sabe da matraca pra pegar ela, né? E quem sabe, aí ela dá o primeiro assobio você, pega a faca e [barulho de metal batendo em uma superfície de madeira], (Enfinca.) Enfinca na mesa. Aí dá o outro, você finca, dá o derradeiro, finca. Aí: – Olha! De manhã vem tomar o café comigo. Se tiver o café: – Pode vir tomar o café comigo, cigarro. Vou ficar lhe esperando. Quando é cedinho ela chega na sua porta. Aí você já conhece quem é. Mas porque é gente também. (Também é gente. Ela também não bate no pessoal, assim não?). Não, não, não, não,

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não bate não. A matintaperera não. Lá, ela acompanha, porque todo bicho acompanha pra meter o medo pra pessoa, pra ver se corre, né? Todo bicho acompanha. (SOUSA, João Coelho de, Taperaçu Campo, 12 jan. 2013).

Para seu Orivaldo Pereira da Silva o assobio que a matintaperera emite é sempre um pedido. Na sua história, protagonizada pelo seu avô, a matintaperera sempre seguia o senhor quando este ia para a maré pescar mero e todo o assobio que a “pai d’égua” emitia era um reclame do pescado que ele estava para conseguir: (E a história do tabaco...) Agora do tabaco... (...que dão pra matinta, né?) ...o tabaco, o tabaco é a curupira, a a matintaperera (A matinta, né?) É. Porque uma vez, eu tenho o meu avô, ele pescava e foi, tava pescando, e tinha uma senhora que morava numa ilha (daqui, da praia?) Eh, eh. Ela virava. Quando foi um dia ele foi pra maré, passou a pai d’égua assobiou. – De manhã tu vem buscar um pedaço de mero. (Mero? Ele ofereceu mero?) É. Porque ele pescava, pescava de mero. – Vem buscar um pedaço de mero de manhã. Quando foi de manhã cedinho que ele chegou da maré, ele olhou lá no meio do campo, tinha o campo, né? Ele olhou, lá vem, ele disse: – Olha mulher! A mulher vem buscar o pedaço de mero. (Já sabia) Já sabia. Chegou e disse: – Ah seu Dico. Vim buscar um pedaço de mero que o senhor prometeu pra mim. – Aaah! Era tu que tava assobiando, nera? (E era conhecida?) Conhecida a velha lá. Ele agarrou tirou um pedaço de mero e deu pra ela. (Mas tem que dar, né?) Tem que dar. (SILVA, Orivaldo Pereira da, Taperaçu Campo, 12 abr. 2013).

Na história de seu Egídio Ferreira da Silva encontramos o momento exato em que a pessoa deve oferecer à matinta: “na dobração do assobio”. Na sua narrativa a matinta era uma senhora que morava próximo à moça que promete o café com o intuito de conhecer a identidade da velha. Ao divulgar para seus vizinhos a descoberta, irrita a velha matinta que também é a curandeira da comunidade.

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A dádiva nas narrativas orais acerca da Matintaperera de Taperaçu Campo, Bragança (PA)

Olha, eles dizem, os mais antigos diziam que quando, aí ofereciam, né? Quando ela, ela, ela assobiava, quando eles esperavam na dobração do assobio. Eles diziam: – Fiiite, matiinta...pe. Quando ele chegava no perera aí eles negociavam: – Vem buscar um pedaço de tabaco amanhã. É. Então ali, bem aqui assim tinha uma velha, né? Mais aqui assim, uma velha antiga. E eles diziam que era ela, né? Aí uma vez, eu tinha um irmão que morava bem ali, o Romoaldo, e tinha a esposa dele, a Maria. E ela era cumadre da Maria, da minha cunhada, tá? (Uh, uh) Aí a Maria, nessa noite, ouviu o assobio e aí, ofereceu um pedaço de tabaco que quando foi de manhã a velha apareceu lá, apareceu. Aí ela não disse nada, deu o tabaco, não disse nada. Aí já contou pra outro, né? Então ela benzia, a velha benzia, (Mentira?) Eh, eh. (Ela era benzedeira?) Eh, eh, ela era benzedeira. Aí quando foi no outro, uns quatro dias aí contaram pra ela. Ela veio, ela veio. Chegou lá aí ela disse: – Ah, comadre a, a minha filha tá com dor de cabeça, tá com febre, dê uma benzida nela aí. Ela disse: [Emitindo voz de velho]: – É comadre, matintaperera não benze. (SILVA, Egídio Ferreira da, Taperaçu Campo, 20 jul. 2013).

Por fim temos a versão de seu Arlindo Araújo que confirma as anteriores quanto ao fato do oferecimento sinalizar uma visita na manhã seguinte. A matintaperera emite seu trinado, o morador oferece o café ou o tabaco e na manhã que sucede o “encontro” uma pessoa virá requisitar o prometido. (E a matinta, ela mexe com o pessoal também?) A matinta, a matinta não, a matinta, ela só faz o coisa de ficar assobiando ali. Que tem uma que avoa, isso é história que eles contam, eu nunca vi. (E ninguém oferece pra ela? O pessoal diz que...) É, eles ofereciam, é tem gente que conta aí que ofereciam cigarro, tabaco ofereciam alguma coisa, quando era de manhã cedinho, diz que chegava uma pessoa lá na porta. (Pedindo, certinho?) Certinho. (ARAÚJO, Arlindo, Taperaçu Campo, 31 ago. 2013).

São cinco conversas que se ligam por um fio comum, o oferecimento. São duas configurações da matintaperera: a ornitomórfica, quando a entidade se apresenta no tempo noturno emitindo seu assobio que pode ser interpretado como um pedido; e a antropomórfica, momento em que a pessoa que se transforma em ave surge para requer o prometido da véspera.

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Breve observação acerca da dádiva Para Mauss (2003, p. 193), o potlatch, nome chinook utilizado de Vancouver ao Alaska, significa “nutrir” ou “consumir”. Mais propriamente “rivalizar com presentes”, as regras implícitas nesse jogo é aquela que “obriga a retribuir o presente recebido”. Dois elementos basilares são encontrados em Samoa (Polinésia) “o da honra, do prestígio, do mana que a riqueza confere, e o da obrigação absoluta de retribuir as dádivas sob pena de perder esse mana, essa autoridade, esse talismã e essa fonte de riqueza que é a própria autoridade” (Ibid., p. 195, grifo do autor). Aqui refletimos acerca da hierarquia colocada por Caillé (2000) na superioridade das divindades em frete ao sujeito comum. As formas de relacionamento a partir do regalo que é entregue à matintaperera pode, em certa medida, contribuir para a compreensão de que a leitura da dádiva colocaria esse jogo hierárquico em seu sentido inverso, uma vez que o morador que se sente coagido em oferecer, a partir do momento que dá, retoma para si a posição hierarquicamente superior àquele que recebeu, criando a relação de débito. A base dessa relação de troca está no taonga: “tudo o que é propriedade propriamente dita, tudo o que pode ser trocado” (MAUSS, 2003, p. 196), ele é fortemente ligado à pessoa que o possui, é o hau, “espírito das coisas” (Ibid., p. 197). A coisa dada, obrigatoriamente recebida, deve circular, a coisa recebida que vira coisa dada a propósito do hau (espírito) que ela possui. Não pode inexistir retribuição, caso aconteça de uma coisa recebida não ter um substituto que a mantenha circulando “poderia advir um mal” quiçá a morte (Ibid., p. 198). Nesse sentido “você me dá um, eu dou a um terceiro, este me retribui um outro, porque ele é movido pelo hau de minha dádiva; e sou obrigado a dar-lhe essa coisa, porque devo devolver-lhe o que em realidade é o produto do hau de seu taonga” (Ibid., p. 198). Neste caso a coisa dada conserva em si algo que é do doador. A dádiva é a metonímia das relações sociais, toma-se uma parte (café, tabaco e peixe) pelo todo (a pessoa moral que recusa de si). Mauss (Ibid., p. 200) afirma que essa coisa dada está entranhada por uma alma (hau), senão a do próprio doador, ela assume a alma do primeiro dono, ela é alma também e, sobretudo, necessita retornar para seu lar de origem. Caso não 211


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seja constantemente repassada o detentor corre o risco de receber um grande mal sobre si. A matinta que recebe a alma daquele que ofertou, recebe o outro na medida em que a coisa dada (café, tabaco ou peixe) não são simples coisas, são símbolos de uma relação com o outro, recusar a oferta é recusar a pessoa moral que a oferta, não se recusa simplesmente a coisa dada, o que se recusa é o própria pessoa que se entrega naquele ato de doar algo de si que é si mesmo. Assim, Mauss (Ibid., p. 201-202) propõe três instâncias da dádiva: a obrigação de dar, a obrigação de receber e a obrigação de retribuir. Isso porque “a prestação total não implica somente a obrigação de retribuir os presentes recebidos, mas supõe duas outras igualmente importantes: obrigação de dar, de um lado, obrigação de receber de outro”. Negar uma dessas três instâncias “equivale a declarar guerra, é recusar a aliança e a comunhão”. É nesse sentido que a dádiva assume o conceito de crédito, na medida em que o objeto dado retorna com valores outros agregados a ele. Para que os bens circulem dentro da comunidade há a necessidade do indivíduo ser, em certo grau, perdulário.

Pensando a dádiva no mito da matintaperera Nota-se que o oferecimento postula uma relação que abarca o envolvimento de um ente superior com um sujeito local que dar por um lado, enquanto o donatário, por outro, torna-se um semelhante quando transforma-se em gente para se revelar como um conhecido no momento do “fechamento” do contrato assumido entre eles. Observa-se nesse momento das narrativas que o conceito de sacrifício5 se reveste daquele espírito definido pela dádiva maussiana conforme esse objeto da troca (café, tabaco e peixe) ganha ares de obrigação, o que é explicado por Mauss (2003, p. 198) ao afirmar “que a coisa recebida não é inerte. 5. A compreensão de sacrifício (MAUSS; HUBERT, 2005, p. 15), “sugere imediatamente a idéia de consagração” isso porque “em todo sacrifício um objeto passa do domínio comum ao domínio religioso – ele é consagrado”. Essa primeira observação de Mauss e Hubert é muito cara para a nossa pesquisa, pois a consagração se revela justamente na oferta que uma pessoa de Taperaçu Campo realiza em nome da divindade amazônica. Caillé (2002, p. 180) em sua “antropologia do dom” explica em nota que tanto etimologicamente quanto literalmente “o termo sacrifício implica a idéia de um bem sensível oferecido ou destruído em honra de um ser superior” (grifo do autor) que além “de atestar a sua soberania” serve de igual modo “para obter dele proteção, perdão ou graça”. É dentro destes limites conceituais que aproximamos o oferecimento à matintaperera de Taperaçu Campo ao conceito antropológico de sacrifício.

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Mesmo abandonada pelo doador, ela ainda conserva algo dele” (Ibid., p. 198), considerando-se que “o vínculo de direito, vínculo pelas coisas, é um vínculo de almas, pois a própria coisa tem uma alma, é alma, [...] pois, aceitar alguma coisa de alguém é aceitar algo de sua essência espiritual, de sua alma” (Ibid., p. 200). Daí a obrigação de receber ser fundamental para o conceito de dádiva maussiano, não aceitar é recusar aquele que oferta, porque nega a comunhão com o vizinho e afrouxa os laços sociais na comunidade que os unem. Assim, as três vertentes da teoria de Mauss acerca da dádiva circunscrevemse na tripla obrigação: de dar, de receber e de retribuir. Se a coisa dada conserva a essência daquele que ofertou se distanciando da coisificação do indivíduo (a alienabilidade), e tendendo para a humanização do objeto (a inalienabilidade); tal qual no sacrifício, o indivíduo não abnega por ser simplesmente perdulário, mas porque espera-se receber algo em troca; um altruísmo prenhe de egoísmo, isso evidencia-se a partir do momento em que a “prestação total não implica somente a obrigação de retribuir os presentes recebidos, mas supõe duas outras igualmente importantes: obrigação de dar, de um lado, obrigação de receber, de outro” (Ibid., p. 201). Para Lanna (2000, p. 175), em um aspecto mais amplo, o conceito de dádiva de Mauss se espraia para além das relações econômicas, alcançando as ações de sociabilidade e cortesia entre as pessoas: a proposta geral do Ensaio é a liga social. Nessa perspectiva pensada por Mauss (2003, p. 201-202) a ação de reservarse a não dar, que é proporcional a negar-se a receber, “equivale a declarar guerra; é recusar a aliança e a comunhão” o que justifica a intenção da matinta em acompanhar um sujeito em Taperaçu Campo, quando nada é oferecido, resta a agressão física entre eles, pois para se desvencilhar dos insistentes trinados da entidade, o sujeito aventura-se a capturá-la, lembrando-se da matinta que foi “pega” com o tição de fogo da siribeira e ficou se batendo nas árvores até o “piedoso” sujeito libertá-la retirando o pedaço de siribeira do local que tinha enterrado; que, por outro lado, mostra-se como ofensivo, é negar-lhe a amizade por conta do outro não ser merecedor de tal amizade, é aprofundar o distanciamento entre eles, é tornar-se indiferente por manter a impessoalidade negandolhe o parentesco. Em todo caso, não observamos a matinta ausentar-se do com213


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promisso de receber aquilo que foi dado e tão pouco o sacrificante-sacrificador nega o objeto prometido. Em Taperaçu Campo ela comparece a todos os encontros para tomar para si aquilo que lhe foi dado, para deixar evidente que o oferecedor, por seu turno, não abstém-se de dar por pura “bondade”, seu altruísmo reveste-se de egoísmo quando o café, o tabaco ou o peixe doado sinalizam uma vontade de conhecimento. Quando na narrativa de seu Egídio Ferreira da Silva, a jovem senhora oferece tabaco à matinta e descobre que sua vizinha transformava-se em ave visagenta, a dádiva repassada, em certa medida, leva algo da doadora, a matinta leva um pouco do seu oferecedor, e quando a jovem revela o segredo da divindade, aquela dádiva retorna como algo negativo, pois a velha matinta se nega posteriormente a benzer o filho da vizinha que estava adoentado. São contratos que se estabelecem em Taperaçu Campo entre homens e divindades, que buscam, sobretudo, amenidades. Não há troca apenas de alimentos por acalantos e ordem6, mas há busca por laços sociais conforme essas permutas são realizadas entre os moradores da comunidade: o vizinho que fornece café é o mesmo que receberá o peixe ou aquele que participava do beneficiamento do tabaco, na época em que este era fortemente cultivado na comunidade, a relação entre os vizinhos se expressa, também, por meio da troca, da saudação. Seu Augustino presta serviços para a família de seu Raimundo ordenhando as vacas e preparando o subproduto da mandioca, a farinha, na casa de forno do amigo com a mandioca cultivada pela família de seu Raimundo e colhida com a ajuda de seu Agostinho da Silva Sousa, os trabalhos, assim, envolve as duas famílias. As atividades deste não são vistas como puro altruísmo, ele o faz porque granjeia para seu lado parte do leite que tira tal qual da farinha que prepara, assim como dará para seu amigo Raimundo parte do pescado que trará da maré. As relações sociais invadem a maneira de lidar com as aparições de Taperaçu Campo, a matinta é uma pessoa da comunidade com a qual cotidianamente se irá relacionar, senão na mesma residência, como é o caso do filho curandeiro que rivaliza com a mãe também curandeira quando ela se transforma em ma6. Considerando-se aqui o barulho emitido pela matintaperera na forma ornitomórfica.

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tintaperera ou em égua, o mesmo caso do filho que surpreende a mãe matinta transformada em passarinho (sururina) e descobre que se tratava da genitora somente quando esta chega a sua casa toda dolorida por conta das porradas que tomou do filho ao tentar fugir das pancadas dentro de casa, provavelmente encontrará um vizinho se transformando em matinta ou labisonho em uma das olarias ou embaixo de alguma árvore nas noturnas e solitárias ruas da comunidade. A dádiva, em certa medida, explica essas relações de ida e volta das ações que se pratica na comunidade, mas também justifica a manutenção das amizades em Taperaçu Campo. Em virtude de uma visita à casa de seu Agostinho da Silva Sousa, em 24 de janeiro de 2014, questionei acerca do funcionamento dos trabalhos comunitários em Taperaçu Campo, especialmente aquele voltado para o embarreamento das casas de taipa. De acordo com ele, a construção desse tipo de moradia era7, via de regra, responsabilidade do proprietário levantá-la com madeira geralmente extraída de mata próxima e coberta com palhas ou com telhas de fibrocimento onduladas8. Já no momento do embarreamento outros homens da comunidade eram convidados a ajudarem o proprietário, momento da comunhão e do testar a força dos laços que os rodeiam. O embarreamento, que durava de um a dois dias, era regado à bebida alcóolica, geralmente destilada, fornecida pelo proprietário enquanto o almoço ficava a cargo da esposa do anfitrião, este último detalhe foi salientado pela esposa de seu Agostinho, dona Maria, que nos acompanhava na conversa. O retorno de seu Agostinho aos colegas do mutirão do embarreamento era dado na ocasião em que outro membro da comunidade o requisitasse para serviço semelhante, se julgássemos que a retribuição de seu Agostinho alcançasse todos aqueles que embarrearam sua casa, chegaríamos a conclusão de que todo esforço empenhado em retribuir a ajuda dos vizinho equiparou, ou ultrapassou, o necessário para ter embarreado sozinho sua residência sem a ajuda dos demais moradores. Não obstante, um aspecto da vida comunitária de Taperaçu Campo 7. Hoje em dia encontramos muitas casas de alvenaria na comunidade por conta da Resex e da olaria comunitária. 8. Popularmente conhecida como telha de Brasilit.

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se esmaeceria, o vínculo e a sociabilidade entre os indivíduos, a aproximação e certo nível de altruísmo garantia do nó que aperta as famílias. Certo que não são todos os membros convidados, apenas aqueles que, de certa forma, aceitará o convite, porque quando se aceita, o dar-se pode ser o retribuir. Claro que ao convocado é reservado o direito de não comparecer, nestes termos a recusa não justificada, pode acarretar interpretações de que ele não necessitará do amigo em atividades futuras que requer e que se necessitará certamente receberá recusa como retorno. Esta exposição de seu Agostinho nos ajuda a compreender a postura da matinta, por uma parte, em requerer a “merenda”, como diz se Manoel de Jesus, por meio do assobio, não oferecer é acreditar que não precisará da matinta, digo, do(a) vizinho(a) que se mostrará na manhã seguinte requerendo o prometido e, implicitamente, se colocando a disposição do sacrificador-sacrificante, porque no fundo, como nos explica Godbout/Caillé, receber é se colocar como um doador em potencial, por isso dá é, em certa medida, receber. Nas observações feitas por Lanna (2000, p. 175) se há algo que une as observações de Mauss no “Ensaio sobre a dádiva”, essa é “a noção de ‘aliança’”. O que se procura é um repouso com o ente que acompanha a pessoa para verificar as motivações que a faz correr: seria por conta do medo? Possivelmente. Mas tudo nos leva a crer que o morador oferece com a intenção de fortalecer essa liga social no dar e receber, pois “o argumento central do Ensaio é de que a dádiva produz a aliança, tanto as alianças matrimoniais como as políticas, religiosas, econômicas, jurídicas e diplomáticas” (Ibid.). Esse aspecto amplo do conceito de dádiva se espraia para além das relações econômicas, alcançando os aspectos de sociabilidade e cortesia entre os moradores, “mostra ainda como, universalmente, dar e retribuir, são obrigações, mas organizadas de modo particular em cada caso” (Ibid.). Os casos particulares, os locais ou momentos da doação interferem no retorno da dádiva, no seio da comunidade o prestígio pode ser lido a partir do círculo de amizade que se pretende construir entre os moradores, a jovem que deu tabaco à matinta se liga à velha que se metamorfoseia por conta do interesse no tratamento xamânico da filha que adoecera; o movimento se dá na outra via com a matinta de seu Orivaldo Pereira da Silva que se interessava 216


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pela amizade de seu Dico por conta do mero que ele pescava. Nestes termos vale a colocação de Godbout (1992, p. 11 e 14) de que no campo de atuação da dádiva sobressai “o implícito e o não dito”, de sorte que a dádiva serve, sobremodo, “para estabelecer ligações”, ligações em certa medida pré-estabelecidas ou escolhidas de forma que o retorno seja certo. Pensando a dádiva como um paradigma que se encontra no entremeio do individualismo e do holismo metodológico, Caillé (1998, p. 10) parte do princípio de que no primeiro todos os cálculos nas relações sociais se direcionam para o interesse individual no cálculo egoísta de sempre ponderar as relações para nunca ter perdas, enquanto que, no pólo antagônico, todas as atenções se concentram no “costume, valores ou regras” que regem determinado grupo social, para o qual as ações nunca surpreendem porque são ditadas por regras que não serão rompidas, neste caso “ninguém trairá” e, com isso, a responsabilidade de paridade ser completamente seguida. No paradigma da dádiva institui-se uma “aposta na aliança e na confiança”, aproximando essa leitura para nosso objeto, apesar das regras serem transparentes (a oferta ter de ser paga, e o retorno egoísta ser esperado) o que se dá é um voto de confiança, a certeza é sempre presumida, cria-se a máxima: “‘confiar totalmente ou desconfiar totalmente’, eis a solução” proposta por Mauss no Ensaio sobre a dádiva e definido por Caillé (1998, p. 11) como o terceiro paradigma. Acerca disto este autor (Ibid., p. 12) retoma o termo gift de Mauss para exemplificar que na dádiva há a mesma proposta do pharmakos é o remédio e o veneno, são dádivas obrigatórias àqueles que dão (morador local) e àquele que recebe (matintaperera). Pois quem “quer o dom, acrescenta Godbout (1992, p. 15), quer o veneno”: o donatário que aceita a dádiva, aceita as regras de retribuição. Pois a dádiva é, segundo ele [Mauss], indissociavelmente “livre e obrigada” de um lado, e interessada e desinteressada do outro. Obrigada, pois não se dá qualquer coisa a qualquer pessoa, num momento qualquer ou de qualquer modo, sendo os momentos e as formas da dádiva de fato socialmente instituídos, como bem nota o holismo (CAILLÉ, 1998, p. 12).

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Não caberia essa mesma definição para o sacrifício cunhado por Mauss e Hubert antes do Ensaio sobre a dádiva? Caillé (Ibid., p. 12) diria que sim, conforme se trata de “um modelo de ação social totalmente diferente o que ele nos apresentava na reflexão acerca do sacrifício ou da dádiva”. Contudo, o ato de dar e de receber ganha expressão somente quando fixados “numa certa atmosfera de espontaneidade. É preciso dar e retribuir. Sim, mas quando, quanto, e com que gestos, quais entonações?” são questionamentos que localizam as situações e a prática de oferecer mediante os elementos que determinam o posicionamento dos actantes nesse jogo que são as relações de aliança dentro de uma comunidade, a relação de convizinhaça é a máxima entre os moradores, por isso o objeto dado se colocar a serviço dos laços, o donatário reforça as relações apertando o nó ao aceitar a oferta, nas anotações realizadas por Godbout (1992, p. 15), o dom deve ser pensado como uma relação contínua e bilateral, como uma relação sobretudo entre sujeitos. Mesmo que para Mauss (2003, p. 187) os presentes sejam, a rigor, voluntários, eles se expressam “na verdade obrigatoriamente dados e retribuídos”. O que Mauss (Ibid., p. 188) diz claramente é que “nesse gesto que acompanha a transação, há somente ficção, formalismo e mentira social, e quando há, no fundo, obrigação e interesse econômico”. Essas trocas não são apenas coisas materiais, as trocas, como foi dito, são de amabilidades, enquanto que as riquezas, compreendidas como os bens materiais em si que fisicamente estão presentes na oferta, acrescenta Caillé e Graeber (2002, p. 24), transitam nessas relações não como fator primeiro, mas na marginália.

Considerações finais Observamos que a dádiva no oferecimento à matintaperera se configura como uma aliança, no sentido largo do conceito de Mauss, uma aliança que sobretudo une “os ritos, os casamentos, a sucessão de bens, os vínculos de direito e de interesse, posições militares e sacerdotais, tudo é complementar e supõe a colaboração das duas metades da tribo”, assim “as duas frátrias se mostram respeito” (MAUSS, 2003, p. 191).

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A partir da dádiva pensamos o outro em sua inteireza, porque as diferenças são permitidas e respeitadas e também porque cada lado do “contrato” sobrevive em função do outro, ou pelo menos fortalecem um vínculo de dependência mútua por meio da troca, intercambiam-se entre si e com os mitos. O que não se quer é a anulação do consubstancial, busca-se o elemento de contato para a partir dele manterem-se distantes. Não haveria encontro com a matinta caso ela não se apresentasse como diferente: quem negaria a companhia da matintaperera nos caminhos sombrios das madrugadas de Taperaçu Campo ou na insegurança das marés quando a retribuição dessa companhia fosse apenas o café ou o peixe na manhã seguinte? Se a solidão é contrária à sociedade, aceitar os termos do encontro com a divindade é reificar que a relação com os vizinhos é puramente necessária para a manutenção da liga social na comunidade, sendo assim, o café, o tabaco e o peixe alimentam as matintas, na mesma proporção em que alimentam as relações sociais apertando o nó que enlaça todos em Taperaçu Campo.

Referências CAILLÉ, Alain. Antropologia do dom: o terceiro paradigma. Petrópolis: Vozes, 2002. ______. Nem holismo nem individualismo metodológicos: Marcel Mauss e o paradigma da dádiva. Rev. bras. Ci. Soc. [online]. 1998, vol.13, n.38, p. 5-38. Disponibilidade em: <http://www.scielo.br/pdf/rbcsoc/ v13n38/38caille.pdf>. Acesso em: 02 nov. 2013. CAILLÉ, Alain; GRAEBER, David. Introdução. In: MARTINS, Paulo Henrique. A dádiva entre os modernos. Petrópolis: Vozes, 2002. FARES, Josebel Akel. Imagens da mitopoética amazônica: um memorial das matintas pereras. Dissertação de mestrado em Letras. Belém: UFPA, 1997. ______. Imagens da matinta perera em contexto amazônico. Revista Boitatá – Universidade Estadual de Londrina. Londrina – PR, 2007, n. 3, jan-jun, p. 62-78. Disponibilidade em: <http://www.uel.br/revistas/ boitata/volume-3-2007/Artigo%20Bel.pdf>. Acesso em: 02 de jul. de 2012. GODBOUT, Jacques. O espírito da dádiva. Lisboa: Instituto Piaget, 1992. LANNA, Marcos. Nota sobre Marcel Mauss e o Ensaio sobre a dádiva. In: Revista de sociologia e política, Curitiba, 2000, n. 14, jun., p. 173-194. Disponibilidade em: <http://www.scielo.br/pdf/rsocp/n14/a10n14. pdf>. Acesso em: 29 nov. 2013. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: ______. Antropologia e sociologia. São Paulo: Cosac Naify, 2003. MAUSS, Marcel; HUBERT, Henri. Sobre o sacrifício. São Paulo: Cosac Naify, 2005.

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SILVA JÚNIOR, Fernando Alves; SIMÕES, Maria do Perpétuo Socorro Galvão. Imaginário e representação feminina na narrativa mítica da matintaperera, Acarpará – Bragança/PA. Revista Boitatá – Universidade Estadual de Londrina. Londrina – PR, 2013, n. 15, jan.-jun, p. 181-197. Disponibilidade em: <http://www. uel.br/revistas/boitata/volume-15-2013/FernandoSocorro.pdf>. Acesso em: 29 nov. 2013. VILLACORTA, Gisela Macambira. “As Mulheres do Pássaro da Noite”: pajelança e feitiçaria na região do salgado (Nordeste do Pará). Dissertação de mestrado em antropologia social. Belém: UFPA, 2000.

Entrevistas ARAÚJO, Arlindo, Aposentado. 64 anos. Entrevista concedida a Fernando Alves da SILVA JÚNIOR. Taperaçu Campo, Bragança-PA, 2013. Gravação digital 56”38’ estéreo. AVIZ, Maria Silva. Aposentada. Entrevista concedida a Fernando Alves da SILVA JÚNIOR. Taperaçu Campo, Bragança-PA, 16 set. 2012. Gravação digital 48”57’ estéreo. AVIZ, Maria Silva. Aposentada. Entrevista concedida a Fernando Alves da SILVA JÚNIOR. Taperaçu Campo, Bragança-PA, 19 mai. 2012. Gravação digital 1h44” estéreo. CIRILO, Aldenor. Aposentado. Entrevista concedida a Fernando Alves da SILVA JÚNIOR. Taperaçu Campo, Bragança-PA, 30 dez. 2012. Gravação digital 17” estéreo. SILVA, Egídio Ferreira da. Lavrador e presidente de associação comunitária. 62 anos. Entrevista concedida a Fernando Alves da SILVA JÚNIOR. Taperaçu Campo, Bragança-PA, 20 jul. 2013. Gravação digital 55”25’ estéreo. SILVA, Orivaldo Pereira da. Aposentado. 55 anos. Entrevista concedida a Fernando Alves da SILVA JÚNIOR. Taperaçu Campo, Bragança-PA, 12 abr. 2013. Gravação digital 2h24”29’ estéreo. SILVA, Raimundo. Aposentado. 65 anos; SOUSA, Agostinho da Silva. Aposentado. 69 anos. Entrevista concedida a Fernando Alves da SILVA JÚNIIOR. Taperaçu Campo, Bragança-PA, 16 set. 2012. Gravação digital 25”24’ estéreo. SOUSA, Enedina de. Aposentada. 72 anos. Entrevista concedida a Fernando Alves da SILVA JÚNIOR. Taperaçu Campo, Bragança-PA, 12 jan. 2013. Gravação digital 7” estéreo. SOUSA, João Coelho de. Aposentado. 73 anos. Entrevista concedida a Fernando Alves da SILVA JÚNIOR. Taperaçu Campo, Bragança-PA, 12 jan. 2013. Gravação digital 1h19” estéreo.

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METAMORFOSE: A PRESENÇA DO FANTÁSTICO NAS NARRATIVAS DE QUINTINO DE LIRA Juliana Patrízia Saldanha de Souza (SEDUC-UFPA) O momento mais feliz que eu sinto é libertar a terra junto com meus companheiros e deixar todo mundo sossegado, viver tranquilo, até o final da vida de cada um. Quintino 1951-1984

Introdução Traçando um perfil do Gatilheiro1, o jornal O Liberal estampa a foto de Quintino em uma grande reportagem, no início de agosto de 1984, admitindo que sua figura ultrapassara o perfil de um colono comum para tornar-se uma lenda:

Fotografia 1 — Quintino, já atuando como Gatilheiro. Fonte: Imagem cedida por morador, durante pesquisa.

1. Ao ser questionado se trabalhava como pistoleiro, Quintino nega essa informação, alegando que usava o gatilho para buscar justiça. Portando, considerava-se um Gatilheiro.

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Metamorfose: a presença do fantástico nas narrativas de Quintino de Lira

“Quase cem mortes, ele se diz melhor que lampião” QUINTINO O CANGAÇO NO CONFLITO CIDAPAR Anti-herói, bandido, Robin Hood, Justiceiro, Lampião, são alguns dos adjetivos frequentemente usados para qualificar o homem que tomou a defesa armada dos colonos da Gleba CIDAPAR (...) Armando Oliveira da Silva é o seu nome. Mas todo mundo só o conhece por Quintino. Tem 38 anos de idade (...) para os colonos ele é uma espécie de vice-rei adorado e respeitado. Para os fazendeiros não passa de ‘homicida perigoso (...) Caçado por policiais e pistoleiros consegue fugir a qualquer cerco. No meio da mata ele é imbatível. Sua pontaria é cantada por todos em versos e trovas. Suas façanhas, já se tornaram uma lenda na região. (O LIBERAL, 26/07/1984 p. 02).

Na década de 1980, próximo ao aniversário dos cento e cinquenta anos da Cabanagem2, explode um conflito agrário no nordeste paraense considerado, pelo então governador Jader Barbalho e confirmado pela imprensa, como um dos maiores conflitos agrários da época entre o Estado, os grileiros e os colonos, em território nacional. Nesta guerra desigual destacou-se Armando Quintino de Lira, homem de origem simples que buscava justiça, mas para o governo foi considerado um antiherói. No período do conflito, a imagem do Gatilheiro já havia tomado proporções mitológicas, ao ponto de suas metamorfoses e invisibilidades, largamente narradas pela população e divulgadas pela imprensa, se tornarem peças importantes durante o conflito. Foi em meio a esse cenário de conjuntura social, política e agrária que Quintino ultrapassa o insofismável, o real, o lógico e o verossímil para adentrar no mundo do imaginário, repleto de histórias fantásticas que impressionavam até o mais cético dos homens. As narrativas são manifestações que, eventualmente não surgindo de forma escrita, atravessaram gerações através da oralidade. Essas manifestações eram, e ainda são, empregadas para explicar fatos que ocasionalmente não tem explicação lógica. Ao trazer essa questão, Peter Burke (2005, p. 157) diz que a narrativa retornou “junto com uma preocupação cada vez maior com as pessoas comuns 2. Coincidentemente, enquanto matam Quintino, comemorava-se os 150 anos da Cabanagem. “Quintino não era um bandido (...) Foi um cabano de nossos dias”. (O Libral.06.01.85, p. 5).

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e as maneiras pelas quais elas dão sentido às suas experiências, suas vidas, seus mundos”. Portanto, são nas regiões mais distantes dos centros urbanos, e principalmente nas ribeirinhas, que sofrem constantes influências dessas narrativas em sua cultura e, essas influências, infiltram-se, mesmo que em graus diferentes, em cada lugar. Partindo desse pressuposto, Selma Calasans cita Borges afirmando que “toda forma de contar seja ela oral ou escrita, começaram com a narrativa fantástica”. (MONEGAL, 1975 apud RODRIGUES, 1988, p. 12). E essa narrativa aparece permeada, ao mesmo tempo, de personagens verdadeiros e fatos imaginários que eventualmente se confundem com a realidade. O entrelaçamento dos fatos reais com o imaginário é que foram capazes de influenciar no andamento do conflito e na vida da população até os dias atuais. Salvatore D’ Onofrio (1999, p. 53) pontua dizendo que “entendemos por narrativa todo discurso que nos apresenta uma história imaginária como se fosse real, constituída por uma pluralidade de personagens, cujos episódios de vida se entrelaçam num tempo e num espaço determinado”. É nessa concepção do imaginário apontada por D’Onofrio, que a população local construiu as narrativas sobre o lendário Quintino: cheias de mistérios, transformações e invisibilidades. Damiana3, na época, foi companheira de Quintino e, atualmente residente em Santa Luzia do Pará, confirma as histórias sobre as metamorfoses de Quintino, pois, em vários momentos, foi testemunha desses acontecimentos. Um dia a gente teve que entrar na mata pra fugir da polícia. O Quintino foi avisado por um de seus informantes que a polícia tava pertinho da gente, então entramo na mata e ele disse: Fica quieta, encostada nessa árvore e não se mexe. Quando olhei pro lado ele desapareceu. A polícia vasculhou por lá, passou por mim várias vezes e não me via. Eu percebi que uma folha se mexia muito rápido num córrego entre as raízes das árvores. Então pensei: É o Quintino virado folha! Depois que os homens foram embora e tudo se acalmo, ele apareceu pra mim, assim a gente fugiu. (DAMIANA - informação verbal)

3. Damiana durante minha pesquisa que ocorreu entre jan/jun. de 2012, relatou-me diversas narrativas ao qual ela confirma que foi testemunha das metamorfoses de Quintino.

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Metamorfose: a presença do fantástico nas narrativas de Quintino de Lira

Inicialmente, o fantástico é conceituado como algo criado pela imaginação, algo fantasioso e que não tem nenhuma veracidade, ou seja, fora do comum. Autor de Introdução à literatura fantástica, Tzvetan Todorov (1992) esclarece que o leitor tem a possibilidade de escolher entre duas realidades: a natural ou a sobrenatural. Nesse sentido, o autor distingue as narrativas que apresentam conteúdos sobrenaturais em três gêneros: o maravilhoso, o fantástico e o estranho. O evento sobrenatural, inimaginável, exposto no relato de Damiana, apresenta duas características independentes. Os acontecimentos gerados pelo conflito é real, no entanto, o enredo que compõe a narrativa apresenta-se permeado de acontecimentos extraordinários. Quando o leitor aceita a narrativa com seus elementos sobrenaturais e não os questiona, como acontece com Damiana, nessas circunstâncias, é definido como narrativa maravilhosa. O autor explicita o fantástico configurando-o pela “hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural” (Ibid, 2000. p. 31). A expressão “Quase cheguei a acreditar”, para o autor, é o que melhor expressa o fantástico. Quando o leitor encontra-se em uma situação irresoluta entre uma explicação lógica e uma explicação sobrenatural, a dúvida se é real ou imaginário é o que melhor define o gênero fantástico. Esse gênero constitui, sem dúvida, o que melhor define as narrativas sobre o Gatilheiro. Todorov ainda certifica que a certeza causada ao leitor, que eventualmente se questiona quanto a veracidade da narrativa e na certeza que a invisibilidade e a metamorfoses não pertencem ao mundo real e, portanto, existe uma explicação racional para um fenômeno que é considerado sobrenatural. Nesse sentido, o enredo torna a narrativa inverossímil, ou seja, temos a narrativa estranha. Ao jornal O Liberal, o Coronel Francisco Machado4 descarta a possibilidade de metamorfose, entretanto, admite que as histórias que envolvem as ações de Quintino tem o poder de fascinar as pessoas.

4. Depois de várias tentativas por parte da polícia para frear as ações de Quintino, os jornais e a opinião pública passaram a questionar a operação da polícia, duvidando da sua capacidade em capturá-lo. Diante dessas indagações o referido Coronel concede uma entrevista falando sobre a dificuldade de capturá-lo. A partir daí, as narrativas fantásticas de Quintino ultrapassam a região do conflito e torna-se assunto para além das fronteiras do estado.

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Reconheço que tais histórias impressionam de tal maneira, que muita gente da região aonde o Quintino vem agindo acredita plenamente nesses poderes sobre-humanos do Gatilheiro. Até mesmo alguns soldados da PM enviados a área retornam com terror supersticioso e a crença nessas versões. (O LIBERAL, 16/12/1984)

Percebe-se que a própria polícia, com todo seu aparato balístico, helicóptero e homens treinados, se recusava a caçá-lo, atormentados pelas lendas que envolviam suas transformações e invisibilidades. É nesse contexto do fantástico que as histórias envoltas de mistérios fascinavam as pessoas. Todas as narrativas fantásticas, que envolveram a trajetória do Quintino, aconteceram simultaneamente ao conflito e ao trazer para si a responsabilidade de “protetor” dos indefesos, reforçava ainda mais a credulidade nas narrativas que sempre ressaltavam as suas escapadas, fora do comum, do cerco policial. Como podemos observar nesse relato.5 “Ai caiu bala e Quintino disse assim: ‘-todo mundo fica em volta de mim, que aqui não vai acontecer nada com nós’. Nós fiquemos todos ao redor dele e a bala caiu de lá, de metralhadora. O pessoal lá no Cachoeira faz um cálculo de mil e quinhentos tiros. Nós atiremos demais também até que o Quintino não viu sair mais nada e disse ‘- os homens já morreram’, o helicóptero fez uma curva e ele falou ‘– pode meter bala’, nós metemos bala de 20, só de 20, quando ele tomou as alturas e nós alcancemo, então o helicóptero veio pra trás atirando pra dentro do capão de mata e Quintino disse que podia meter bala e nós metemos, aí o helicóptero secou, fizemos um cálculo que tinha acabado a munição. Quando o helicóptero se distanciou, nós corremos para a mata que estava a umas vinte e cinco braças e fiquemos cada qual num pé de pau grosso, então eles se acalmaram e foram embora. Saímos então para a beira de um campo e lá vem um jeep, quando chegou na altura que a gente tava antes saiu um tiro que era de bomba, era uns tiros feio, que fumaçavam. Nós num atiramos, saímos e viemos embora, depois soubemos que eles desceram do jeep para ver se achavam algum de nós morto”. (Apud CUNHA, 2000, p. 230).

Sendo assim, o confronto relatado surpreendeu a polícia e a Cidapar que não entendiam como Quintino e seu bando conseguiam sair ilesos misteriosamente de um forte ataque de balas e bombas. Emergindo nos detalhes da narrativa, 5. Esse confronto aconteceu, na época, na Vila do Cachoeira, sede da Empresa Cidapar e surpreendeu a todos. Segundo relatos, do grupo de Quintino não havia nenhuma baixa. Porém, o helicóptero foi todo crivado de bala.

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Metamorfose: a presença do fantástico nas narrativas de Quintino de Lira

o leitor pode ser levado ao ceticismo diante da ordem proferida por Quintino: “todo mundo fica em volta de mim, que aqui não vai acontecer nada com nós”. Todorov (1992) frisa que a incerteza entre o que é real ou imaginação transporta o leitor ao que ele chama de “fantástico puro”. Portanto, pode ocorrer do leitor escolher entre o caminho que aponta para o desconhecido ou para o caminho que aponta para a razão. Todas essas narrativas fantásticas confirmaram de vez os atributos sobrenaturais que o povo atribuía ao Gatilheiro. Os próprios parceiros de Quintino, presentes nesse ataque com o helicóptero, relataram que o Gatilheiro ao dizer que “todos devem estar perto dele”, pois nada aconteceria de ruim, entendiam que a ordem foi mais uma demonstração de seus “dons”. Esse episódio foi largamente divulgado pela população e alavancou a imagem de Quintino, sendo, de fato, considerado por todos um mistério. Diante de todos esses acontecimentos, Quintino sai do plano real e adentra no imaginário popular, tornando-se uma lenda para o povo da região. Entre inúmeros testemunhos, Damiana lembra o dia em que: A gente tava descansando na casa do meu pai, lá pelo meio dia a polícia chegou na vila, nós fomos para o quarto e pouco depois a polícia chegou e o Quintino disse pra mim ficar atrás dele, de repente ele virou um cachorro, daí eu sai do quarto com o cachorro e o papai disse à polícia que ninguém tinha visto o Quintino na vila, mas ele estava do nosso lado ouvindo a conversa. O policial espantou o cachorro dizendo assim: ‘passa daí cachorro’, mas ele tava chutando era o Quintino. (DAMIANA – Informação verbal.)

Os fatos apresentados na narrativa não fazem parte do mundo real. Porém, esses atributos místicos são confirmados por Quintino que atribui à natureza a responsabilidade pelos seus “dons”. Cunha, (2000, p. 156) diz que “as manifestações desse dom mágico de Quintino tem o papel de provocar naquela sociedade o impacto do seu poder, em contra posição ao poder econômico e institucional da sociedade envolvente”. Observou-se que essa postura adotada pelo Gatilheiro surtia efeito e, a partir desses relatos, as narrativas fantásticas sobre as escapadas de Quintino tornaram-se relevantes para o conflito.

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Essas narrativas, na maioria das vezes, têm como fator principal a associação com animais comuns da região e, entre tantas narrativas envolvendo as metamorfoses, o cachorro é o animal mais citado, Como o caso em que foi relatado acerca de Quintino por um de seus informantes. Ele disse que o filho de um fazendeiro, à noite em frente à sua casa, chutou um cachorro e disse: “passa Quintino”, referindo-se a crença de que Quintino metamorfoseava-se em cachorro. Quintino ao saber do ocorrido, colocou o fazendeiro na sua lista de inimigos (Ibid. 2000. p. 157). Por ser um animal que tem liberdade de locomoção, pode estar em qualquer lugar. Sendo assim, todo cachorro que passava em frente aos portões da Cidapar, era alvejado pelos seguranças, acreditando que poderia ser Quintino tentando invadir o local. Atentemos-nos para esse depoimento divulgado no jornal O Liberal no dia 01.08.1984: “os colonos contam que muitos pistoleiros não podem ver um cachorro que vão logo atirando, porque se espalhou o mito que o Quintino se transforma em cachorro toda vez que se encontra encurralado”. (O Liberal, 1º cad. p. 16 apud CUNHA 2000, p. 259). As influências no cotidiano das pessoas, em decorrências de tais narrativas, era comum. Muitas vezes, os pais procurando punir seus filhos, costumavam usar a expressão: “Esse menino tá feito Quintino, vive sumindo” ou ainda “Vem pra dentro de casa moleque, lá vem o Quintino”. E assim, a criança obedecia. Ainda hoje, as histórias que envolvem Quintino, sobre as suas metamorfoses, são contadas na região. Como podemos observar nesse caso contado por populares: certa vez o Gatilheiro recebe uma reclamação dos empregados de Paraibano, homem rico, proprietário de grandes fazendas, este se nega a dar rede aos trabalhadores para dormir. Após ouvir as reclamações dos colonos, Quintino manda um recado dizendo para Paraibano que ele deveria tratar bem os empregados e exigia que o fazendeiro desse o que os homens precisavam, ou então Paraibano se haveria com ele. E insistia em dizem que no momento da negativa de Paraibano, ele próprio (Quintino) estava ao lado do fazendeiro e ouviu tudo. Ao que tudo indica, Quintino compreendeu que, se apropriando das narrativas relatando seus ‘dons’, ele conseguiria controlar a situação a seu favor.

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Metamorfose: a presença do fantástico nas narrativas de Quintino de Lira

O próprio Quintino alimentava a imaginação da população contando as suas metamorfoses, porém, nunca as usava para se exibir, apenas se apropriava desse “dom” para se defender de seus agressores. Ao Paulo Roberto Ferreira, Quintino explica seu “poder” de transformar-se em qualquer animal ou a invisibilidade para escapar do cerco proveniente do inimigo. Bom, é o seguinte: Eu quando quero virar num cachorro, que a polícia vem me presseguir, eu me viro num cachorro, me viro num bode. E eles passam por mim e não me vê. Eu viro num vivente qualquer, assim seja necessário eu me virar. Porque isso aí é truque que a gente tem que fazer para escapar das garras da polícia na hora da precisão. Se causo seja preciso, o jeito que tem é a gente se virar rápido. E alí ninguém vai ter que dizer que não. Então isso é defesa minha. Isso aí se eu aprendi, foi a natureza que me ensinou. Então eu consigo aprender ainda muito mais. Em defesa de mim. Mas nunca me virei num bicho pra fazer mal pra ninguém. Quando eu me viro num bicho selvagem é pra me defender dos inimigos. Mas não para usar isso como palestra (gabolice), como brincadeira, como safadagem, não. Eu sou uma pessoa honesta. Que se eu viro num cachorro, num sapo, num pinto, num burro, num porco, é pra defesa. Mas tirou aquele momento ali de perigo, eu volto ao normal como eu era. E nessas brincadeiras, muita gente escapou de entrar nas minhas emboscadas. Mas daqui pra frente eu não vou mais dispensar. No dia que eu estiver num negócio aí qualquer e um elemento tiver me caçando, aí eu boto fogo nele. (Entrevista a Paulo Roberto Ferreira, 21/11/1984).

Contrapondo a existência do fantástico nas narrativas de Quintino, quase sempre é impossível separar o fantástico do real, pois estão entrelaçados de tal forma que mesmo utilizando a razão, é praticamente impossível separá-los. E essa junção entre o real e o imaginário torna-se consistente a partir do narrador que, usando a habilidade de contador de histórias, consegue transpor o ouvinte para a credulidade dos fatos, mesmo o subconsciente do ouvinte apontando para o ceticismo. Ray Bradbury adverte “que um contador de histórias fantásticas não pode aspirar a outra coisa que não seja induzir o leitor à sensação da irrealidade da realidade” (BRADBURY, apud CERQUEIRA, 2007). Apesar de Quintino admitir as metamorfoses, ele tem um perfil de homem comum, foge completamente do estereótipo de feiticeiro ou outro personagem conhecido pelas práticas misteriosas. Quintino explica essa questão ao ser questionado acerca de uma possível oração que o protegia: 228


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É verdade. Eu não tenho só uma. Tenho e dezenas de orações. Agora eu não vou revelar o nome, desculpe. E lhe dizer não interessa. E Deus que me defende de eu virar essas coisas. Porque Deus foi que me ensinou. Eu sou humano, pessoa de carne e osso e filho de humano com humano. De um homem com uma mulher. (CLEARY, 1986, p. 181)

No entanto, ele tem a capacidade de atitudes inexplicáveis para o senso comum. Essas atitudes somadas ao carisma e ao respeito que ele cultivava entre a população, fez com que se tornasse uma lenda viva, um mito entre o povo da região luziense e arredores. Quintino percebeu, no decorrer do conflito, que o respeito adquirido entre a população era uma grande arma contra seus opressores. Segundo Loureiro (2001, p. 258) “Quintino tem consciência dessa diferença e procura marcá-la”. São os colonos que relatam seus sofrimentos, as perseguições e o herói, usando de seus atributos mágicos, os defendes. As transformações de Quintino o auxiliam nas fugas. Porém, ao ser assassinado no dia 04 de janeiro de 1985, ele estava sem seus objetos pessoais. Com isso, populares passaram a acreditar que a ausência de sua bolsa, com uma possível oração que o protegia, perdida no confronto anterior com a polícia, o deixou vulnerável, sem a “proteção”, facilitando a sua morte. David Cleary faz uma análise traçando um perfil do Gatilheiro: Quintino, portanto, é uma pessoa envolta em paradoxo. Ele é um homem de violência, mas essa violência e empregada para restabelecer a paz reinante antes da chegada dos grileiros. Luta pelo campesinato, mas não é camponês. E idolatrado pela coletividade, mas também é mantido (ou se mantém) separado dela. E a favor dos pobres, quando sua valentia diz que ele deve ser pistoleiro trabalhando para os ricos; ao invés disso, mata pistoleiros. E homem, mas sabe transformar-se em animal. E cristão, mas foi embora para morar com os índios. Protege cristãos, mas utilizando poderes mágicos que as religiões cristas repudiam. E homem, mas também é mito. De fato, cada vez que se tenta enquadrá-lo numa categoria, ele cabe em um nível, mas, no outro, ele foge para a categoria complementar, porém oposta. Ao invés de ser uma coisa ou outra, ele ocupa uma área cinza entre as duas. (CLEARY, 1986, p. 173)

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Metamorfose: a presença do fantástico nas narrativas de Quintino de Lira

Considerações finais Considerando as definições apontadas por Todorov acerca dos gêneros fantástico e maravilhoso, foi observado, de um modo geral, que as narrativas sobre as escapadas de Quintino, permeadas de invisibilidades e transformações em relação ao sobrenatural, fogem completamente do estereótipo de narrativas assombrosas. Observa-se que Damiana confirma as metamorfoses e, ainda, admite que muitas vezes foi testemunha desses fatos sobrenaturais. Porém, ela não denomina como “coisas de outro mundo”, ou seja, fantasmagórica. Partindo do ponto de vista do contador de histórias, as narrativas maravilhosas são entendidas como toda narrativa que envolve o ouvinte, de tal forma, que ele aceita o fato como verdadeiro. Então, recai sobre o narrador a responsabilidade de fazer com que o ouvinte seja envolto no enredo da narrativa. Sendo assim, presume-se que a sensação do maravilhoso está voltada para a fé, na crendice dos acontecimentos expostos na narrativa. As pessoas que contam acreditam como sendo algo “real”. Considerando as narrativas proferidas por Damiana, elas são classificadas como maravilhosas, pois leva-se em consideração o papel que ela assume de coadjuvante e, portanto, ela acredita no enredo maravilhoso. No entanto, Todorov (1992) esclarece que mesmo diante das evidências mostradas nas narrativas, os acontecimentos que fogem das leis naturais, regidas pela razão, recaem na incerteza da narrativa ser real ou imaginada. Sendo assim, se não há uma explicação lógica para esses acontecimentos, eles são ininteligível e, o momento de hesitação, ocorre durante a narração e o leitor, não mais o narrador, tem a possibilidade de escolher entre o real e o irreal. Diante dessa exemplificação, a narrativa passa a caracterizar-se como narrativa fantástica. Partindo do senso comum, era incompreensível um homem simples, liderar um grupo de colonos, sem balística apropriada para um conflito ou estratégia de guerra, ser comparado com a polícia, e, ainda assim, conseguir escapar do cerco policial, ora transformando-se em um animal ora escondendo-se atrás de um facão. Como não havia explicações para suas façanhas, a sua figura foi tomando dimensões históricas e lendárias. Cleary (1986, p. 161) acentua que “a sua valentia, acredita-se, baseia-se em partes a sua coragem, mas é também, em grande 230


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parte, a sua capacidade do sobrenatural, ‘feitiço’”. A ligação de seu nome, com as histórias que envolviam as suas metamorfoses, era apenas o resultado das suas escapadas que intrigavam a todos. Diante de toda narrativa fantástica, ele era um homem comum. Porém, para essa gente humilde e sofredora, era mais que isso, ele encarnava a esperança, era a personificação da justiça. Tudo isso fazia desse personagem paraense uma lenda viva, capaz de aliviar o sofrimento de alguns e aterrorizar a vida de outros. Todas essas narrativas fantásticas reforçavam ainda mais o prestígio que Quintino adquiria entre a população e o pavor entre seus inimigos. Nesta situação, de total transposição entre o real e o imaginário, acabou possibilitando a imortalidade de um homem simples para transmudar à lenda.

Referências BURKE, Peter. O que é História Cultura? Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005 CERQUEIRA, Dorine Daisy Pedreira de. Jorge Luís Borges e a narrativa fantástica. In: Hispanista, n. 21. Disponível: <http://www.hispanista.com.br/revista/artigo176esp.htm>. Acesso em: 01 jan. 2014. CLEARY, David. Se fosse só na coragem. Quintino bandido social e messias paraense. In. Anuário Antropológico 85. Rio de janeiro: Tempo Brasileiro, 1986. CUNHA, Manoel Alexandre da. Banditismo Social: Política e Utopia. 2000. Tese (Doutorado em Antropologia Social) - Universidade de Brasília, Instituto de Ciências Sociais, Brasília, 2000. D’ONOFRIO, Salvatore. Teoria do Texto: prolegômenos e teoria da narrativa. São Paulo: ABDR, 1999. RODRIGUES, Selma Calasans. O fantástico. São Paulo: Ática, 1988. TODOROV, Tzvetan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2006, ______. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 1992.

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MÍDIAS E APROPRIAÇÕES NA COMUNIDADE CEARAZINHO Rafaella Contente Pereira da Costa (PPGLS-UFPA)

Introdução Mesmo quando se esconde, com conceitos críticos contra as mídias de massa, torna-se quase impossível se distanciar dos sistemas discursivos destas que invadem o cotidiano. Os produtos midiáticos estão tanto nos grandes centros urbanos quanto nas zonas rurais para serem consumidos, das informações globais a locais e das propagandas de bens materiais a contra incêndios florestais a heterogeneidade de informações possibilita os meios de comunicação fazerem parte da vida das pessoas que assumem discursos, são produtoras e produtos dos mesmos. Os moradores da comunidade Cearazinho, desde seu surgimento até os dias atuais, se protegem da exclusão social por meio do trabalho rural e, deste modo, buscam qualidade de vida afastados dos grandes centros procurando na agricultura familiar e na economia solidária formas mais justas de trabalho e moradia. A comunidade possui uma cultura tradicional, do trabalho com a produção de farinha, que agrega características próprias ao espaço social como técnicas de relação com a natureza, formações familiares e costumes, desta maneira este grupo segue uma lógica de cotidiano adquirida ao longo do tempo. Entretanto, esta cultura tradicional se entrelaça às novas tecnologias de informações existentes na paisagem e que, apesar do convívio recente, pois a televisão e o rádio chegaram há treze anos e ainda iniciam a relação com a internet, apresentam-se bastante difundidas no meio social. A partir das abordagens sobre discurso de Foucault e Orlandi e de comunicação de massa de Adorno e Horkheimer, o cotidiano do Cearazinho foi analisado nas estruturas de consumo de mídias como bens culturais, com a finalidade de compreensão do papel das comunicações de massa nos indivíduos e, por extensão, nas estruturas sociais. As narrativas foram coletadas como fonte de obtenção

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Mídias e apropriações na comunidade Cearazinho

de conhecimento principalmente no que se refere ao cotidiano, pois permitem identificar práticas culturais e sistemas de valores.

Os discursos A comunidade Cearazinho possui aproximadamente 420 habitantes distribuídos em 48 famílias e para a pesquisa foi retirado uma amostra de 42 jovens e 42 adultos. Com estes sujeitos foram feitas as coleta de narrativa nas quais foi possível observar o consumo dos meios de comunicação de massa e o consumo de produtos, tais como: quais programas assistem com mais frequência, o conteúdo dos mesmos e a medição social do consumo, no qual foi possível compreender os processos de influência em que o cotidiano se intersecta com os processos comunicativos das mídias. Deste modo, a partir das analises dos discursos e das observações locais, os resultados foram analisados nos aspectos qualitativos e quantitativos. Para Foucault (2005), existem regras que permitem a existência de uma enunciação como o contexto histórico, as relações sociais e a posição que o sujeito ocupa. Assim, uma única narrativa apresenta múltiplos contextos para o discurso ser formado e, desta forma, uma formação discursiva cruza com outras. Por este motivo, os discursos mostram as interpretações dos sujeitos acerca do mundo colocando a linguagem como espaço de mediação entre a ideologia e a realidade sócio-histórica que faz referência. Orlandi (2009) diz que, na análise do discurso, é necessário tratar a concepção de língua como trabalho simbólico que confere aos sujeitos atribuir significados e significar-se. Estudar um discurso, portanto, é interpretar o dito e o que não foi mencionado, saber o lugar que ocupa o dito em relação ao não dito e o modo como é dito. Por isso a necessidade de entender o lugar que o sujeito fala, o contexto histórico e social do lugar, a posição de quem fala e de quem escuta, as condições em que é narrado, as transferências nas simbologias das palavras que, dependendo do lugar em que é falado, possui significados diferentes e procedimentos internos e externos que caracterizam um discurso.

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O Cearazinho O Cearazinho localiza-se a 12 km da cidade de Bragança no Estado do Pará e,

atualmente, o lugar é designado pelo nome de comunidade que, segundo Schweickardt: Ser de uma comunidade é quase como que possuir um sobrenome, ter uma identidade, que significa mais que uma delimitação física (...) Ser de uma comunidade indica pertencimento a um grupo determinado e não a outro (...) É uma construção social, cuja característica crucial é o fato do pertencimento gerar direitos especiais que os membros partilham (...). (SCHWEICKARDT, 2010, p. 48-49).

A comunidade surgiu por volta de 1900 e logo recebeu o apoio da igreja que, na época, representou a aceitação social. A igreja, por meio da Cáritas Diocesana de Bragança, oferece incentivos para o comércio através de uma cooperativa de economia solidária1. Eles produzem óleos de buriti, andiroba e urucuruba que são comercializados principalmente com a finalidade de fabricação de cosméticos para pessoas físicas ou jurídicas interessadas na compra de grande quantidade. A cooperativa é composta por algumas famílias do Cearazinho, no total de três, e outras comunidades da região bragantina como Tauari, São Raimundo, Santo Antonio dos Monteiro e Santa Maria do Açaizal. A ideia de trabalhar com a extração de óleos ocorreu devido a grande riqueza natural das localidades e pela preferência dos membros em trabalhar na cooperativa com outra produção que não seja a principal da comunidade. A produção da farinha é a atividade principal da comunidade e a responsável pelo capital monetário usado para a compra de remédios, roupas, móveis, eletrodomésticos, além de carnes e alimentos não perecíveis. Por meio do trabalho, o espaço social do Cearazinho transcendeu para além de sua fronteira geográfica e partiu para outros espaços que partilham de diferentes e iguais identidades ideológicas, políticas e culturais. A cooperativa e a produção de farinha possibilitam 1. Para Benini (2012) a economia solidária tem como base a cooperação e a autogestão. A cooperação é o principio que orienta todas as ações de investimento, produção, comercialização e partilha de resultados, já a autogestão é devido os empreendimentos serem geridos pelos próprios trabalhadores que decidem conjuntamente a forma e a divisão da produção.

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Mídias e apropriações na comunidade Cearazinho

a existência da difusão de novos códigos culturais entre comunidades e representam o reconhecimento social e político na localidade da região bragantina. De acordo com as narrativas, desde 2003 o Cearazinho possui energia elétrica o que possibilitou a chegada de televisores e rádios. Antes já existia o rádio que era mantido a pilha, porém as estações não funcionavam com qualidade e a chegada de antenas para televisões auxiliaram para que o uso do rádio fosse aumentando, já a internet somente há dois anos tem usuários no local. No cotidiano é possível observar o lugar que o consumo conquistou entre os moradores, pois está desde a aquisição de maquinários e instrumentos para a melhora da produção até nas horas de lazer, misturando-se entre paisagens naturais e tecnológicas. Há televisões e sons no interior das casas rústicas de barro, há brincadeiras nos igarapés durante a tarde entre as crianças que logo depois ligam o DVD para assistir filmes e há máquinas para auxiliar na extração dos óleos em meio aos instrumentos feitos de barro, folha e pedra.

Mídias e discursos: o poder de agendamento Para analisar de que forma as mídias fazem parte da construção de memórias e identidades na sociedade, é necessário entender como são construídas suas práticas discursivas. Neste sentido, algumas reflexões da Análise do Discurso são a base para compreender como se constroem os discursos midiáticos. A ideia é pensar como, através da apropriação de um real já fragmentado, é possível construir uma visão, ainda que parcial, capaz de ser confundida com o próprio real. É atributo do discurso midiático contemporâneo se postular como papel de remissor da verdade, no entanto, o que se percebe é uma apropriação deste real através de estratégias enunciativas, tanto verbais como não-verbais. Os discursos são formulados não só a partir do sujeito que fala, mas também na interação com o sujeito que recebe ou que se supõe que receberá. Para Braga (1999), as mídias capturam, adicionam e diminuem sentidos e realidades, ao fazer isso, capturam espaços sociais que são mudados em formas, ritmos, duração, perspectiva e interpretação. A realidade social, desta forma, recebe solicitações de modificações para se tornar igual ao que a mídia transformou. 236


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As mídias produzem realidade social como experiência coletiva que retorna para a sociedade e, em decorrência das intersubjetividades existentes, tomam diferentes interpretações e incorporações. Entende-se que as mídias tem o poder de intencionar na agenda da sociedade fatos para a mesma pensar e ter como importante para si, por este motivo que muitas percepções da realidade advêm das notícias e propagandas, e não de definir como ela deve pensar, partindo do pressuposto que cada um tem seu universo próprio de acordo com suas experiências vividas e que por isso o conteúdo das mídias não é recebido de forma semelhante pelos sujeitos e toma na sociedade diferentes interpretações. Desta maneira, essas apropriações do real não são condutoras de significados por elas mesmas, são sistemas repletos de representações simbólicas que dependem para sua interpretação tanto do trabalho de ouvir do produtor no sentido de codificála adequadamente como das condições de quem escuta a fala para interpretá-las. Duas são as grandes divisões de público segundo Veron (1987), o primeiro são aqueles que não delegam importância aos meios de comunicação e procuram nas pesquisas e nos livros o conhecimento e, o segundo, se subdivide nos que atribuem às mídias de massa a alienação que ritualiza e vulgariza os sujeitos e os que atribuem a melhora da sociedade à elas. Desta forma, cada grupo interage com as mídias de acordo com suas identidades. Existe um tipo de discurso midiático que carrega marcas de todas as práticas discursivas como científico, político e social, ou seja, é pensado dentro de uma prática institucional definida obedecendo a linhas editoriais, propostas comerciais, motivações ideológicas de seus proprietários, entre outras variáveis que podem condicionar o discurso produzido. Tal prática discursiva estaria montada sobre o estatuto da verdade, da qual disse Foucault (1996) que, para gerar credibilidade por parte do leitor, o discurso da notícia se dividiria em categorias estruturais, cada uma cumprindo funções específicas, entre elas a manchete, o lead, o fato principal, o contexto, os comentários, entre outras. Pela também visão de Foucault (1993), pode-se aferir que a relação das mídias e sujeitos aproxima-se do conceito de poder, pois se caracteriza em uma esfera determinar, por completo ou em parte, a conduta de outra esfera, e de micro-poder, pois o poder não está concentrado no Estado, mas em outras relações 237


Mídias e apropriações na comunidade Cearazinho

sociais que são múltiplas, neste caso, as empresas de comunicações e os sujeitos, um interferindo no outro. Adorno e Horkheimer (1947) dizem que para entrar no campo das reflexões do ser humano, a indústria cultural não fornece tempo para o individuo pensar ou promove a reflexão somente do modo necessário para o funcionamento do sistema. Os jogos de imagens e informações são rápidos a ponto da indústria, por meio das comunicações de massa, controlar o tempo da sociedade. Os produtos culturais são consumidos de forma que os indivíduos, neste caso tratado como público, se percebem sempre em um terreno seguro e sabem como os programas, filmes, novelas ou qualquer outro produto terão desfecho, pois os conteúdos são feitos para impedir a atividade mental com fatos rápidos, descontraídos, não comprometidos e objetivos. Ou seja, o produto por si só descreve as reações da massa se caracterizando diferente do ideal da individualidade. O que os autores descreveram são as regras que caracterizam os discursos das mídias de massa, ou seja, o que esses meios usam para atingir seus objetivos, entretanto, por mais forte que seja o seu impacto na sociedade as apropriações e rejeições são formadas a partir da formação dos sujeitos e são nas relações de fronteira e nas situações de interação que os discursos sociais são construídos e apropriados. Conceitos sobre multidões e suas funções econômicas e sociais são desenvolvidos, para Adorno e Horkheimer, em meio às concepções que partiam das relações de poder e controle, pois a minoria precisava controlar a maioria para permanecer no lugar de poder. São nesses espaços simbólicos de controle que surgem as teorias do movimento intelectual sobre as relações massa e sociedade, segundo o qual o centro dessa relação é o poder. Não se pode negar este fato, porém é importante salientar que um exerce poder sobre o outro.

As análises Tomando as narrativas pela perspectiva de Foucault (1996), ao dizer que os discursos são controlados, selecionados, organizados e redistribuídos por meio de procedimentos de exclusão e de interdição, os quais exercem influência exterior e pertencem ao discurso à parte que retrata poder e desejo, percebe-se que a fala de 238


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Manoel se aproxima do que o autor chama de tabu, pois relata que não costuma dar importância às propagandas de alimentos com condimentos, como bolachas e achocolatados, porque afirma ser políticas de mercado. O discurso mostra claramente a concepção da comunidade sobre a economia capitalista e as manifestações da economia solidária na comunidade. O fato está explícito também na fala de Bruna que diz que adquirir tais produtos é estar de acordo com interesses de compra, mostrando a compreensão sobre alimentos saudáveis que foi ensinado a ela durante a vida inteira. Porém, é importante observar que esses discursos aparentemente contra a economia de mercado capitalista, se chocam com outros comportamentos do local, como ter nas residências eletrodomésticos e materiais para trabalho que estão longe das características tradicionais. Neste discurso, é possível perceber a relação de poder que dizem Adorno e Horkheimer ao ser explícito a tentativa de manipulação dos discursos das mídias para o público. Observam-se também as apropriações e resistências dos moradores do local com os produtos comercializados. Eu vejo televisão assim, quando não tem nada pra fazer, quando eu chego e tá ligada lá, eu não sou de prestar muita atenção ao que as propagandas dizem de comida. Quando vou comprar alimentos eu não sou muito de comprar achocolatados porque faz mal, né? Nós comemos muita fruta, aqui nós comemos bem, as frutas são a nossa coca-cola. Não é igual a propaganda que diz que comer bem é comer coisa que faz mal. Eu gosto mais de rádio, da Educadora, mas não todo dia porque eu vou vender a farinha e pra cooperativa também, gosto de escutar rádio para a informação e a televisão para a informação e esporte. (Manoel, 47 anos) Eu não compro essas coisas de supermercado, só o básico mesmo, porque faz mal. Eu dou para o meu filho fruta, mingau, essas coisas. Eu comi isso a vida toda e acho que tá certo. Tem gente que comi muito essas coisas de bolacha e depois passa mal. Roupa também eu gosto de comprar roupa de rapaizinho, nada de desenho na frente. Eu vejo televisão todo dia, escuto rádio muitas vezes, mas não gosto de comprar essas coisas porque eles falam porque querem vender. (Bruna, 22 anos)

No discurso também se percebe o que Adorno e Horkheimer relatam sobre massificação, cujo conceito se dá a partir da análise da lógica da indústria na qual 239


Mídias e apropriações na comunidade Cearazinho

é desenvolvida a cultura da produção em série e a associação entre a produção e a criação de necessidades. Segundo os autores, a indústria cultural tem a sociedade sob seu poder ao agir sobre os aspectos das necessidades e faz das massas não o sujeito da indústria, mas o objeto dela. E, ao mesmo tempo em que induz, faz a sociedade acreditar que possui autonomia própria sobre suas decisões e desejos. No discurso de Manoel é citado que os moradores da comunidade possuem aparelhos de televisão e rádio para o acesso a informações científicas que são apresentadas em jornais e em programas temáticos-jornalistícos, desta forma estes sujeitos explicitam acreditar nas informações que os meios de comunicação da área jornalística possam levar até eles, pois em suas concepções estão apoiadas em instituições científicas. Para Foucault trata-se sobre o sistema de exclusão sobre a verdade. Ora, essa verdade, como os outros sistemas de exclusão, apoia-se sobre um suporte institucional: é ao mesmo tempo reforçada e reconduzida por todo um compacto conjunto de práticas como a pedagogia, é claro, como o sistema dos livros, da edição, das bibliotecas, como as sociedades de sábios outrora, os laboratórios hoje. Mas ela é também reconduzida, mais profundamente sem dúvida, pelo modo como o saber é aplicado em uma sociedade, como é valorizado, distribuído, repartido e de certo modo atribuído. (FOUCAULT, 1996, p. 17).

Na narrativa de Manoel está exposto o que Orlandi (2009) tratou como as transferências que ocorrem com o sentido das palavras de acordo com o lugar que o sujeito ocupa e a inscrição do que diz em formações discursivas diferentes, desta forma, quando Manoel diz “aqui comemos bem” ele se reporta às qualidades nutricionais da alimentação, como a farinha e as frutas do lugar, que difere do “comer bem” que remeteu aos discursos da televisão o qual se refere a alimentos gordurosos, geralmente das propagandas. O lugar que o morador da comunidade ocupa, como produtor rural, dificulta de tomar para si o “comer bem” que as mídias de massa comunicam. Nos discursos, os sujeitos reproduzem o sentido central que o trabalho com a produção de farinha possui para a comunidade e que possibilita a compreensão do papel de subsistência que ela representa assim como possibilita o lazer. A tra-

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dição do trabalho, e neste caso há a ênfase da cultura da produção de mandioca, está amplamente presente no cotidiano dessas pessoas e, mesmo que algumas famílias também possuam outras fontes de renda para complementar a da farinha, a relação do trabalho com o consumo é exposto nas falas. Eu criei os meus filhos através do trabalho com a farinha e comprei quase tudo o que eu tenho em casa. A geladeira, a televisão e o rádio foram do dinheiro da farinha, mas o fogão foi do Bolsa Família. A farinha pra nós é muita coisa aqui, eu tenho meu trabalho, sustento meus filhos, eles trabalham também, quer dizer que não tenho preocupação porque não vão ficar sem emprego. Quando eles querem roupa eu dou dinheiro pra eles comprarem. Quando a gente sai para passear nós vamos porque a farinha nos deu sustento e se eles assistem a novela deles lá é porque nós tivemos como comprar. (Manoel, 47 anos)

Em todas as narrativas existe a perspectiva da memória como interdiscurso, ou seja, a memória discursiva, que é “o saber discursivo que torna possível todo o dizer e que retorna sob a forma do pré-construído o já-dito que está na base do dizível” (ORLANDI, 2009, p. 31) e que possui reflexos de discursos de tempos anteriores nos atuais. O lazer para os moradores é preenchido pelo consumo das mídias, como assistir televisão e ouvir músicas nos rádios, e os trabalhos domésticos são realizados com o auxilio de eletrodomésticos, como as geladeiras e fogões elétricos, que foram comprados de acordo com padrões globais de uso que a mídia cria, como a necessidade de ter um fogão elétrico em casa mesmo possuindo o fogão a lenha e usando-o com menos frequência por se identificar em maior grau com o tradicional. A gente usa o fogão elétrico só de vez em quando porque o vento bate e gasta mais o gás. É melhor usar o tradicional que é o fogão a lenha. De vez em quando a gente usa pra fazer café o fogão elétrico. Quando a gente foi comprar eu escolhi pelo conhecimento de energia que a melhor é a A e perguntamos para os técnicos também da loja qual era o melhor. (Manoel, 47 anos)

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Mídias e apropriações na comunidade Cearazinho

Resultados quantitativos Constatou-se que o consumo é a forma com que os moradores da comunidade Cearazinho usam o montante advindo do trabalho e que o mesmo não constitui apenas a posse de produtos, pois representa o resultado do trabalho, desta forma, adquirir algo possui uma produção de sentido mais ampla. Quanto mais a família produz e comercializa, mais ela compra objetos domésticos de usos sociais, ou seja, objetos que toda a família é beneficiada. De 100% da renda mensal, 40% são para alimentos não perecíveis e carnes, de 5% a 10% para a melhoria de materiais de trabalho, 30% para o consumo de eletrodomésticos como televisão, DVD, rádio, celular, móveis e roupas e 20% são para economias e necessidades futuras. No território da comunidade, são raros os espaços que sinais de telefonias móveis funcionam, entretanto os moradores já conhecem os locais e possuem celular. Na amostra pesquisada, 28 famílias possuem celular que, por hora, fica com um membro da família que sai da comunidade e, em outras, permanece na residência para uso da família. Da amostra total entre jovens e adultos, em todas as casas há televisões, em 30 DVDs e em 38 rádio. Existem antenas para melhorar o sinal das emissoras de TV e, em todas as casas, as famílias assistem a programas de canais abertos, pois nenhuma residência possui acesso a canais fechados. Dos entrevistados, 37 jovens assistem novelas, 20 programas de auditório e 14 jornais. Entre os adultos, 27 são telespectadores de novelas, 21 de programas de auditório e 39 de jornais. Nenhum dos entrevistados foi ao cinema, porém, é comum a reunião em família, ou entre vizinhos, para assistir filmes chamados piratas comprados em municípios próximos. A preferência entre os jovens são filmes de ficção, pois 36 optaram por este estilo, já 6 escolheram a comédia. Dos adultos, a preferência são também por ficção e ação com a escolha de 34 moradores e 8 priorizam o romance. As músicas, que escutam diariamente nos rádios, são sertanejo, melody e, como chamam, do passado. Quando interrogados a respeito de outros estilos

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RAFAELLA CONTENTE PEREIRA DA COSTA

musicais regionais como o brega, o carimbo e a marujada responderam que são músicas comuns a festas típicas e não fazem parte do cotidiano. Entre os adultos, somente os mais jovens entre 22 e 30 anos já acessaram a internet, onde 10 já acessaram ou estavam ao lado de quem estava conectado na internet, porém somente 04 usam-na para pesquisas escolares e 9 para redes sociais. Destaco também que no interior da comunidade existe apenas uma mercearia onde são comprados alguns artigos de necessidades alimentícias e que, portanto, os moradores do Cearazinho não são expostos a carros de som, placas, outdoors ou faixas de publicidade. Deste modo, as exposições às mensagens midiáticas ocorrem por meios de comunicações de massa como televisão, rádio e internet. As demais mídias são vistas em municípios vizinhos quando os mesmos saem para trabalhar, estudar ou passear.

Considerações finais Adentrar na comunidade Cearazinho significa sentir que estamos no passado com a observação da paisagem recheada de aspectos não característicos dos centros urbanos. As técnicas da produção de farinha, os objetos de barro e as crianças se alimentando de frutas nos fazem pensar onde estará a modernidade. E esta é uma característica do lugar, pois o moderno está lá mesmo, dentro das residências nos móveis e eletrodomésticos. Apesar da capacidade de poder da comunicação de massa no consumo dos moradores da comunidade, destaco que o poder dessa influência também é determinado pelas crenças que essas pessoas possuem. As informações passadas pelos meios de comunicação de massa fazem parte do imaginário tanto quanto as crenças repassadas há anos que os transporta para o conhecimento da diferença que é necessária ao processo identitário. Não só natureza e comunidade devem ser tomadas para a compreensão do que é a sociedade amazônica, mas também as tecnologias de informação e comunicação que fazem parte da vida cotidiana dos moradores da Amazônia e são necessários para o melhor entendimento desta realidade. 243


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QUEM CONTA UM CONTO, AFIRMA UM PONTO: O REALISMO MARAVILHOSO EM NARRATIVAS ORAIS DA REGIÃO BRAGANTINA Luciana Vieira Pinheiro (PIBEX-UFPA) Savana Cristina Lima Cardoso (PIBEX-UFPA)

Introdução Antes de tudo, lembremos que o homem sempre buscará contar histórias. Essa arte ainda é muito viva desde a pré-história, quando os homens das cavernas deixavam registradas, nas paredes das suas cavernas, imagens dos acontecimentos que se davam com eles, eventos figurativos que retratavam a caça, as lutas com animais, danças, entre outros detalhes. Tal prática de contar histórias, reconhecida a evolução do conhecimento e técnicas humanas, ainda perdura e faz parte do percurso cultural popular. Entre gerações e gerações, as histórias vão caminhando, modificando-se ou perdendo, por vezes, seu valor cultural inicial, porém nunca deixam de existir, ainda que ressignificadas. Dessas histórias contadas e recontadas sabemos que boa parte delas trazem em sua essência acontecimentos irreais, seres sobrenaturais, encantados, objetos falantes, animais falantes – aproximando-se, por vezes, de um gênero vizinho, a fábula. Em resumo, essas histórias flertam com o maravilhoso, com um mundo e “personagens [que] podem fazer qualquer coisa”, como descreve Frye (1973, p. 58) ao caracterizar as histórias e heróis míticos. É importante elencarmos que, mesmo com toda a evolução em todos os segmentos do conhecimento humano, não podemos negar a presença dessas histórias em nossa cultura, muito menos as suas contribuições para a sociedade em geral. Consideremos, por ilustração, que foram tais histórias ricas em maravilhoso que explicaram, no passado, eventos e episódios que, para o homem, eram no mínimo incomuns e não obedientes à ordem natural (neste caso, os mitos). Por conta disso, precisamos entender o papel do mito para as sociedades; para

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o homem. Para Eliade (1972, p. 14) ele é essencial. E o é “não somente porque os mitos lhe[s] oferecem uma explicação do Mundo e de seu próprio modo de existir no Mundo, mas sobretudo porque, ao rememorar os mitos e reatualizá-los, [o homem] é capaz de repetir o que os Deuses, os Heróis ou os Ancestrais fizeram ab origine”. O homem entendia melhor o mundo em que vivia por conta dessas narrativas. Não podemos esquecer – e isso vai ser detalhado posteriormente – que elas são sim verdades, para quem nelas assim crer. Aqui, o “Eu vi”, o “Eu não vi, mas acredito”, entre outras construções têm muito valor e muita importância, afinal, respeitar as crenças e as perspectivas do outro faz parte do respeito à cultura em todas as suas formas. Além do mais, essas narrativas muito dizem a respeito do seu lugar de origem, ou seja, são representações culturais de uma sociedade ou grupo social que acredita no que conta, daí sua importância. Sabendo disso e, levando em conta que todo ser humano traz consigo uma bagagem cultural de um conteúdo riquíssimo, percebemos a importância de verificar uma porção desse conteúdo presente na bagagem cultural de acadêmicos da Universidade Federal do Pará (UFPA), do Campus Universitário de Bragança, oriundos da cidade de Bragança e de municípios vizinhos. A iniciativa veio dos trabalhos desenvolvidos nos projetos de extensão Alunos em (Re)vista e Audiovisual, da mesma instituição de ensino. O projeto Alunos em (Re)vista, mediante o grupo de estudo, proporcionou reflexões e discussões acerca da literatura maravilhosa e outros gêneros literários e o projeto Audiovisual, em atividade parceira, voltou-se aos registros das narrativas, por meio das gravações de vídeos/documentários, para que, enfim, fosse possível realizar os estudos sobre as narrativas que tratam do sobrenatural, considerando, ainda, a sua importância para um determinado grupo social: acadêmicos dos campi de Capanema e de Bragança, mais especificamente, e advindos desta cidade e da circunvizinhança bragantina. Inicialmente, buscamos seguir uma trajetória que nos conduzisse a entender a presença do elemento maravilhoso, como elemento iterativo nas narrativas populares contadas pelos alunos. Tomando os estudos de Alejo Carpentier, nos aventuramos por terrenos do realismo maravilhoso, reconhecendo uma retórica do maravilhoso, dispostas em um discurso que valoriza o extraordinário, tornando-o ordinário. Em seguida, propusemo-nos a tracejar um perfil dos alunos 246


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que participaram do projeto, isto é, alunos que contaram as histórias e revelaram como lidam com elas. Seriam para eles somente puras fantasias ou teriam algum fundamento histórico, valor etc.? Tal dúvida nos conduziu a outra: como esses alunos lidam com os saberes da tradição e os saberes acadêmicos? Estes, então, foram questionamentos que nos nortearam.

Realismo maravilhoso: naturalização do irreal A priori, é válido comentar os gêneros da Literatura Fantástica abordados por Todorov (1975), em seu livro Introdução à Literatura Fantástica, sendo eles: o fantástico, o maravilhoso e o estranho. Os dois últimos o autor considera como “entre gêneros”, os quais são basicamente a representação da divisão “mundo real e mundo sobrenatural”. Assim, o maravilhoso é entendido como a condição em que não há alteração na sensibilidade do personagem, o que não altera também a do leitor. O elemento sobrenatural é aceito de forma natural, sem questionamentos. Por vezes, tem-se a consciência de que se está de frente com o absurdo, contudo tudo é aceitável e não se busca explicação. Contrário ao maravilhoso, temos o gênero estranho, o qual apresenta certa explicação, ou seja, o personagem ou leitor chega a uma conclusão de que o que está à sua frente tem uma explicação racional/científica/biológica. Apresentadas as duas “pontas do fio”, resta-nos agora apresentar seu meio, que é justamente a verdadeira confusão “real ou irreal?”; o gênero fantástico, a hesitação entre o natural e o sobrenatural. De forma sintética, vejamos as discussões de Todorov acerca dos referidos gêneros (2006, p. 148): Num mundo que é bem o nosso, tal qual o conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não pode ser explicado pelas leis deste mundo familiar. Aquele que vive o acontecimento deve optar por uma das soluções possíveis: ou se trata de uma ilusão dos sentidos, um produto da imaginação, e nesse caso, as leis do mundo continuam a ser o que são. Ou então esse acontecimento se verificou realmente, é parte integrante da realidade; mas neste caso ela é regida por leis desconhecidas para nós. Ou o diabo é um ser imaginário, uma ilusão, ou então existe realmente, como os outros seres vivos, só que o encontramos raramente. O fantástico ocupa o tempo dessa incerteza; assim que escolhemos uma ou outra

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resposta, saímos do fantástico para entrar num gênero vizinho, o estranho ou o maravilhoso. O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que não conhece as leis naturais, diante de um acontecimento aparentemente sobrenatural.

Dessa forma, se estivermos de frente a acontecimentos que podem ser explicados pelas leis desse nosso mundo familiar, entramos no estranho. Se estivermos em meio a situações que fogem das nossas leis naturais, mas que são aceitas por nós sem nos causar qualquer reação particular, estamos no maravilhoso. Porém, o momento em que estivermos em completa dúvida se se trata de estranho ou maravilhoso, entramos na essência do fantástico. Entendido o gênero maravilhoso, é importante que ressaltemos de forma clara a presença desse sobrenatural em narrativas tradicionais presentes em nosso meio. Assim, os estudos do ficcionista cubano Alejo Carpentier, autor que faz uso das expressões “Realismo maravilhoso”, puderam nos auxiliar no que diz respeito a um gênero muito presente na cultura da nossa América Latina. Nei Clara de Lima (2003, p. 40), sobre discussões de Carpentier, diz que (...) o maravilhoso latino-americano encontra-se, histórica e culturalmente, incorporado aos universos mentais das populações dessa região, chamando a atenção para o não-esgotamento de seu caudal de mitologias, ele está apontando para uma relação profundamente estreita entre as formas literárias e a história de grupos sociais particulares de culturas particulares. É por detectar o maravilhoso como parte da realidade latino-americana que ele pode afirmar: “o que é a história de toda a América Latina senão uma crônica do real maravilhoso” (CARPENTIER, 1971, p. 119).

O realismo maravilhoso é um dos elementos que, para Carpentier, intervém decisivamente na caracterização, na significação da arte da América Latina1. Um gênero que Carpentier não entendeu apenas só como maravilhoso, mas sim como um maravilhoso que adjetiva agora um novo substantivo: realismo; uma realidade maravilhosa; o sobrenatural está inserido no cotidiano; as diferenças no modo de conceber essa tendência estão ligadas também à questão geográfica, 1. Ao lado do realismo maravilhoso, o Barroco é outro elemento que o autor diz intervir decisivamente na caracterização, na significação da arte da América Latina. O Barroco, assim, caminha lado a lado com o realismo maravilhoso.

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uma vez que o realismo maravilhoso é o maravilhoso da América Latina; de um grupo particular. Acrescenta, então, Nei Clara de Lima (2003, p. 39): (...) muito distante, então, de suas manifestações europeias burocratizadas, o maravilhoso latino-americano, ao transferir o sobrenatural, por efeito da crença, para o mundo ordinário, torna-se o real maravilhoso, especificidade primeiramente cultural e depois literária, pois é o universo dos mitos, lendas e histórias latino-americanas que fornece, por meio da crença, a unidade das ordens natural e sobrenatural, eixo paradigmático da novela realista.

Entre outros aspectos, o realismo maravilhoso compreende o sobrenatural, a magia, o metamórfico, e procura dar conta especificamente da realidade do homem latino-americano. Neste sentido, o homem é visto como mistério em meio aos dados realistas. “[...] o realismo maravilhoso incorpora o insólito no cotidiano popular, sem questionamentos...” (BOTOSO, 2011, p. 204); serve como amparo para compreender o sobrenatural. O realismo maravilhoso começa a sê-lo de maneira inequívoca quando surge de uma inesperada alteração da realidade (o milagre), de uma revelação privilegiada da realidade, de uma iluminação não habitual ou particularmente favorecedora das desconhecidas riquezas da realidade, de uma ampliação das escalas e categorias da realidade, percebidas com especial intensidade em virtude de uma exaltação do espirito que o conduz a um modo de “estado limite”. Para começar, a sensação do maravilhoso pressupõe uma fé (CARPENTIER, 1987, p. 140-141).

Ora, Carpentier afirma que o realismo maravilhoso demanda uma fé. Logo, “[...] os que não acreditam em santos não podem curar-se com milagres de santos” (CARPENTIER, 1987, p. 140). Em outras palavras, o incomum faz parte da realidade vivida porque se acredita nele. E é aí que precisamos considerar as formas de demonstrar a crença, como por exemplo: “eu vi, aconteceu comigo”, “eu não vi, mas acredito e tenho medo”, entre muitas outras maneiras de demonstração de fé no que se refere a algo que se encaixa no mundo do real maravilhoso. Ademais, “[...] o insólito, em ótica racional, deixa de ser o ‘outro lado’, o desconhecido, para incorporar-se ao real: a maravilha é (está) (n)a realidade” (CHIAMPI, 1980 apud BOTOSO, 2001, p. 206), seja na literatura escrita ou na oral.

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Entram em cena seres sobrenaturais, objetos mágicos, seres que se metamorfoseiam, encantados, animais falantes, entre muitos outros. A realidade sofre transformação e todo o contexto recebe tal transformação sem questioná-la, aceitando o sobrenatural como parte integrante do mundo natural, podendo, este fato, ser visto como naturalização do irreal, simplesmente por ser introduzido na realidade, passando a ser constituinte dela. O realismo maravilhoso faz o extraordinário tornar-se ordinário.

Quem conta um conto, afirma um ponto: os narradores e suas crenças Além do propósito de estudar o realismo maravilhoso nas narrativas contadas pelos acadêmicos, o trabalho também procura saber como estes lidam com esse saber popular (referente às narrativas) – trazido de casa, e o saber científico – adquirido na academia. Os estudantes acreditam no extraordinário presente nas narrativas, tornando-o ordinário? Esse saber é camuflado diante do saber científico ou, simplesmente não existe crença? Seria o triunfo do realismo maravilhoso? Respostas a questões como essas, conseguimos encontrar no decorrer das entrevistas feitas com os contadores das histórias. Ademais procuramos traçar o perfil de alguns acadêmicos do campus de Bragança2, e conseguimos registrar narrativas que já se encontravam esquecidas e outras que são desconhecidas no restante da região. No que se refere ao ato de contar histórias, é importante termos em mente que narrar é um tipo próprio da comunicação, uma vez que as narrativas orais são uma das formas de expressão da comunicação humana. Dentre outras funções, essas narrativas servem para o armazenamento e transmissão de conhecimentos. Acerca das narrativas orais, Nei Clara de Lima (2003, p. 13) afirma que pertencentes ao repertório popular das localidades pesquisadas, elas enfeixam um grande número de imagens mentais e afetivas, segundo as quais os moradores in-

2. Consideremos que os narradores são oriundos tanto de Bragança, cidade do nordeste do Pará, quanto das cidades circunvizinhas.

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terpretam a si próprios, o seu passado e a sociedade em que vivem. Condensando e entrelaçando crenças religiosas e moralidades, acontecimentos históricos e ficcionais, concepções de tempo e espaço, estas narrativas constroem uma espécie de poética da vida social, por contarem eventos através de alegorias.

As narrativas orais são partes integrantes da cultura de um povo, justamente porque dizem muito a respeito de cada comunidade, de cada grupo social que conta e crê em todo conteúdo presente nessas histórias. São histórias carregadas, por meio da tradição oral de gerações a gerações, desaparecendo, por vezes, ou dando vida a outras. E, sendo a universidade um local onde o saber científico é dominante, o referido trabalho mostra que essas narrativas estão presentes neste meio, mesmo que escondidas. Por essa razão achamos relevante ter como objeto de pesquisa o aluno acadêmico, tendo em mente que todo ser carrega consigo saberes tradicionais/populares. Em relação às crenças, todos os estudantes, após suas narrativas, deixaram claro o que pensam a respeito de todo esse mundo sobrenatural presente nessas histórias. De um lado, aqueles que acreditam, afirmando que esse mundo não lhes é estranho; de outro, os que afirmam ser isso apenas mais uma artimanha da imaginação criadora, que enriquece a literatura, seja ela oral ou escrita. Assim, temos relato como: [...] eu, como fruto da comunidade, eu não posso negar... A questão de acreditar ou não, eu acredito que sim, que isso deve ter acontecido, até por ser fruto de lá. Eu fui criada com essa crença, então, não posso negar, de fato, que há pelo menos uma porção de medo, né, de que esse João de fato exista e que ele queira pegar uma criança pra levar pra substitui-lo. [...] Você conhece outros estudos, você conhece as teorias, mas você não deixa de acreditar... - Narrativa: João, o menino encantado3 (Narrativa oriunda da zona rural do município de Capanema).

Como vimos, o meio em que o indivíduo vive tem bastante valor e contribui de forma significativa para com a sua forma de pensar, uma vez que o indivíduo sofre influências dos que o rodeiam, como é caso do narrador acima que afirma 3. A referida narrativa conta a história de João, um garoto encantado pela mãe d’água, o qual tenta encontrar outra criança para substitui-lo para que ele, finalmente, volte para sua casa.

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acreditar por estar inserido numa comunidade que crê na narrativa do menino encantado. Porém, temos ainda quem considere situações como essa apenas criações da população. Vejamos: [...] Pra mim, acho que não se passa de uma lenda, de um mito aqui da cidade, porque toda cidade tem a sua e aqui não seria diferente, e eu acredito que não seja de verdade não. Acredito que é inventário popular. [...] porque as pessoas mais antigas tinham uma outra visão e acabavam acreditando... – Narrativa: Maria cahorro4 (Narrativa oriunda da zona urbana do município de Capanema).

Diante disso, percebemos a diversidade de opiniões no que diz respeito à crença no sobrenatural, no incomum. Entre o “acredito” e o “não acredito”, os discursos são diversos e vão se formando, levando em conta o lugar de origem, o lugar onde se encontra o indivíduo (o acadêmico) contador da história, as situações vividas por ele durante a vida etc.; tudo isso caminhando a uma conclusão que explica os porquês do crer ou do não crer. Assim, cada um que conta uma história esclarece seus pensamentos, opiniões. Ora, se há quem conta um conto e aumenta um ponto, há também os que contam o conto e afirmam um ponto, ou seja, deixam claro seu ponto de vista em relação às histórias e aos seres e situações presentes nelas, se estes existem, de fato, ou são meras criações da imaginação humana.

A presença do realismo maravilhoso em narrativas contadas pelos acadêmicos Nessas narrativas repletas de fadas, animais falantes, pessoas transformando-se em animais, encantamentos etc., contadas pelos estudantes5, o realismo maravilhoso desfila, sem dúvida, com grande força, visto que todas as histórias contadas tratam de seres e situações incomuns. Dentre as narrativas coletadas,

4. Esta narrativa conta a sina de uma mulher, devota de São Cipriano, que saía à noite pelas ruas da cidade transformada em cachorro. 5. É importante que ressaltemos que nossas conclusões no decorrer das discussões versam sobre todas as narrativas coletadas, mesmo a maioria delas não configurarem aqui, já que este trabalho é parte de uma pesquisa maior.

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acompanharemos exemplos dessa forte presença desse insólito tão citado no decorrer deste trabalho. Temos, então: João, o menino encantado e As fadas de Caratateua. As duas trazem em seu conteúdo o sobrenatural, apresentando divergências apenas no local de origem e no elemento sobrenatural. A primeira história nos apresenta um garoto de oito anos, João, que fora levado ao fundo das águas de uma pedreira por uma linda e loira mulher, numa comunidade do município de Capanema – PA. Tal mulher nada mais é que a conhecida mãe d’água6, ser que habita as águas dos rios, segundo os moradores e crédulos deste episódio. João, desde o final da tarde em que brincara com os amigos, nunca mais foi visto. O garoto habita o rio da comunidade, onde desembocam as águas da pedreira. Segundo o narrador, houve tentativas de resgate, porém, por interrupções no momento do ritual de resgate7, o garoto, intimidado, voltou às aguas em forma de sapo, como sempre aparecia – segundo o narrador. A outra narrativa nos apresenta o trabalho de fadas que habitavam uma grande árvore na vila de Caratateua, nas proximidades da cidade de Bragança – PA. Elas contavam aos moradores da região novidades a respeito das comunidades vizinhas. Quem estivesse interessado em saber o que se passava ao seu redor, bastava recorrer a elas e logo ficava sabendo das novidades. Porém, o proprietário, sentindo-se com medo e ameaçado pelo que estava ali acontecendo, resolveu cortar a grande árvore, mandando embora para sempre as fadas que ali se escondiam. Como podemos perceber, essas histórias em muito se assemelham, independente do local de origem8. Se olharmos, por exemplo, os contos do livro Contos Tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo, vamos encontrar contos com te6. Essas características desse ser que encanta pessoas se assemelham às de Câmara Cascudo. No conto O marido da mãe d’água, Cascudo assim descreve a mãe d’água: “uma moça bonita como um anjo do céu, cabelo louro, olhos azuis e branca como uma estrangeira” (CASCUDO, 2001, p. 72). 7. O narrador não deixa claro em que consistiu o referido resgate. Conta apenas que às seis horas da manhã, um pajé e os pais do garoto se encontravam à beira da pedreira para uma espécie de reza, podemos dizer. Porém, o restante da população soube deste fato e correu ao local, o que interrompeu o resgate de João. 8. Vladimir Propp, em seu Morfologia do conto maravilhoso (2001), afirma que os contos maravilhosos apresentam funções que se repetem. A personagem, segundo ele, não tem tanta relevância assim, mas sim as ações. Propp analisa contos russos, porém as similitudes com as nossas histórias são presentes. As metamorfoses, os encantamentos, as carências de personagens, entre muitas outras funções, podem ser vistas em narrativas da nossa região. (O referido estudo não intenciona mostrar tais semelhanças. Elas constam em nosso Trabalho de Conclusão de Curso).

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máticas muito semelhantes às das narrativas citadas acima. São seres encantados levados para o fundo das águas por serpentes más, ou até mesmo pela famosa loira de olhos azuis – mãe d’água, como acontece com João; seres falantes e inteligentes que tudo sabem e de tudo dão informação9, o que se sucede nas narrativas das fadas de Caratateua. Em cada uma dessas narrativas vimos que o elemento não natural prevalece e uma retórica do maravilhoso se constrói. O clímax das narrativas se dá pelo aparecimento dos seres maravilhosos. Na narrativa do João, o menino encantado, é o aparecimento da mulher, tipo de mãe d’água, que torna o evento sobrenatural, assim como a metamorfose10 do menino em sapo; Maria cachorro, ser insólito de outra narrativa, é quem traz para a história o ser sobrenatural; as poderosas Fadas de Caratateua nos conduzem ao realismo maravilhoso. São eventos que estão presentes no cotidiano das pessoas, tanto é que as personagens são pessoas próximas aos narradores ou, em algumas vezes, os próprios narradores são as personagens, os protagonistas. Analisando as seguintes narrativas, e as muitas outras presentes na região, não resta dúvida que neste tipo de narrativa as personagens podem fazer qualquer coisa e as situações são puramente insólitas. Para alguns narradores, como podemos perceber, o extraordinário entrelaçou-se ao ordinário, tornando o episódio crível. O sobrenatural invade a realidade, torna-se parte dela sem ser questionado, sem ter reação de estranhamento, principalmente, por parte de quem vive/viveu a história.

Considerações finais Como dito no resumo, o referido trabalho é parte de uma pesquisa maior, trabalho de conclusão de curso, no qual procuramos estudar o realismo maravi9. Ver: “Os três companheiros”, no livro Contos tradicionais do Brasil, de Câmara Cascudo – 2001, p. 86-87. O referido conto assemelha-se às histórias citadas tanto no que se refere ao encantamento, quanto aos seres sábios. 10. O tema “metamorfose” é muito recorrente em narrativas que tratam do sobrenatural. Temos grandes exemplos nos contos populares, como: o lobisomem (transformação do homem em lobo), a mula sem cabeça (mulher que se transforma em mula), entre muitos outros casos. Franz Kafka nos apresentou Gregor Samsa, um homem comum que “despertou, certa manhã, de um sonho agitado, viu que se transformara, em sua cama, numa espécie monstruosa de inseto” (KAFKA, 1985, p. 13).

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lhoso em narrativas contadas por acadêmicos e analisar as estruturas delas. São narrativas de diversos pontos da região bragantina, mas que se assemelham em determinados assuntos, principalmente, pela presença do ser sobrenatural. Assim, com o trabalho desenvolvido aqui, já podemos perceber que os alunos do Campus Universitário de Bragança conhecem, de fato, histórias maravilhosas de diversos temas e, inclusive, muitos acreditam no que nelas contém, sendo até personagens delas. Porém, sendo essas narrativas tema colocado em discussão pouquíssimas vezes dentro do ambiente acadêmico, elas acabam sendo camufladas, ficando assunto vivo apenas para quem com elas trabalha, ou se detém a conhecê-las e estudá-las. Sendo assim, faz-se necessário e importante um trabalho dessa natureza que funciona, acima de tudo, como um resgate de grandes fontes de conhecimento – narrativas maravilhosas –, sem falar que elas geram bons temas para grandes pesquisas. Percebemos que a maioria dos estudantes acredita no sobrenatural presente nas histórias contadas11, afirmando ser esta crença uma questão de cultura, de crescer em um meio onde se vive e se acredita fortemente em histórias e seres dessa natureza, o que não pode ser negado, independente dos estudos teóricos feitos na academia, como foi afirmado por um dos estudantes. A forma como o acadêmico lida com o que conta foi considerada; o modo como ele afirma a presença do sobrenatural presente em sua história. Assim, conseguimos arrancar diferentes pontos de vista em relação ao contado, assim como crenças diferenciadas no que diz respeito sobre os temas das narrativas. Conseguimos, ainda, chegar à conclusão de que nossas histórias ganham mais forças com a presença do sobrenatural e que, mesmo inserido num local onde o conhecimento científico se processa, o acadêmico tem espaço bastante em sua bagagem cultural para as narrativas maravilhosas, para o conhecimento popular, no geral, sabendo e gostando de discutir sobre elas, quando se é dado o espaço.

11. Além das histórias citadas no corpo deste trabalho, temos ainda outras que fazem parte do real maravilhoso e que também foram “redescobertas” pelos acadêmicos. Temos ainda O pesadelo, O café das almas, A Matinta Pereira, O Ataíde antropofágico, entre outras, que constam em nossa pesquisa maior – Trabalho de Conclusão de Curso. Citamos apenas algumas para mostrar que o realismo maravilhoso está presente nas histórias de forma forte, sendo a temática mais importante quando o assunto é “narrativas da região”.

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RAIMUNDA, ROSA E IZABEL: A TEATRALIDADE DE TRÊS MATRIARCAS DE SANTA LUZIA DO PARÁ Patricia Sobrinho Reis (UFPA) São os que sofrem que produzem beleza Rubem Alves

Raimunda, Rosa e Izabel: a teatralidade de três matriarcas de Santa Luzia do Pará Em busca de uma nova experiência na arte, algo que me ensinasse para além da sala de aula, mas que fosse relevante para minha prática pedagógica, algo que falasse de vida, que estivesse relacionado ao lugar onde nasci e às pessoas com quem convivo, e que pudessem imiscuir tudo isso a uma prática teatral, essas foram ideais norteadores desta pesquisa. O olhar sobre a teatralidade do cotidiano me levou à composição de partituras corporais, tendo como enfoque alguns dos princípios e caminhos apontados pela mimese corpórea1, técnica desenvolvida pelo LUME2 na criação de espetáculos e utilizada também por atores paraenses do Grupo Usina Contemporânea de Teatro3, dentre eles a professora orientadora Valéria Andrade. Processo de criação, desafios para uma educadora tocada pelo teatro e disposta a jogar com o público, a partir de algumas faíscas de vida que também nos sensibilizam. 1. Processo de criação de personagens a partir do cotidiano de seres que são, primeiramente, observados, estudados, recriados e revividos no corpo do ator para poder reviver em cena esse outro ser. 2. LUME –, Núcleo Interdisciplinar de Pesquisas Teatrais, criado em 1985 por Luis Otávio Burnier, juntamente com a musicista Denise Garcia e o ator Carlos Simioni, que no decorrer do tempo cresceu e incorporou novos membros (SILMAN, 2011, p. 28, 241). 3. Grupo surgido em 1989, em Belém-PA, fazendo teatro de rua, e também ligado na época ao movimento político estudantil. Em duas décadas, o grupo gerou três núcleos de criação que trilharam seus próprios caminhos estéticos: teatro político feito nas ruas, até o uso do palco italiano para montagem de textos clássicos; da poesia com teatro de bonecos à contemporaneidade das experimentações visuais (PACHA, 2011, p. 165).

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Três mulheres da cidade de Santa Luzia do Pará foram escolhidas para fomentar este trabalho: elas são mães, resilientes às adversidades contumazes do dia-a-dia, aprenderam desde cedo a trabalhar e tirar da terra o sustento para os seus; têm em comum o fato de terem vivido numa comunidade do município de Santa Luzia do Pará, próximo à travessa Sta. Terezinha, no ramal do Cabeça de Porco, e também tiveram que se afastar do lugar onde moravam e estabelecer domicílio no centro urbano da cidade a fim de investir na educação dos filhos, e ainda em comum a relação com a pesquisadora, já que todas nos conhecemos. Trata-se, assim, de um olhar interno a esse grupamento humano luziense. Nessa travessa interiorana, a quatro quilômetros do centro da cidade, minha família possui uma pequena propriedade rural. Nela passei boa parte da minha infância e adolescência, terra que nos alimentava e também a outras famílias, que produziam ali feijão, farinha, milho, malva. Uma dessas lavradoras, e também uma das entrevistadas, é minha mãe, outra é avó do meu esposo, e outra é minha vizinha – delas ouvia falar quando criança; com elas converso e ouço ensinamentos. Essa relação de amizade e parentesco me aproximou delas e possibilitou que as entrevistas fossem filmadas e não ocorressem de forma invasiva, já que uma das metodologias adotadas para realizar essa pesquisa foi a história de vida. Assim, as três matriarcas contariam narrativas sobre si mesmas, suas memórias, e eu atentaria para captar os seus corpos, as vozes, os silêncios, as pausas, os discursos e as sensações. Deleuze (apud BOIS; RUGIRA, 2006, p. 32) compreende que “um corpo deve ser definido pelo conjunto de relações que o compõem [...]. Um corpo tem fundamentalmente algo de escondido”. As entrevistas deram-se de forma semiestruturada com perguntas abertas, feitas oralmente, às quais se poderia acrescentar esclarecimento ou instigar as respostas do entrevistado. Bois e Rugira (2006, p. 33) consideram que durante toda a sua vida, o ser humano é tocado pelos acontecimentos, que a qualquer momento podem ser reativados, recordados. Nesse processo de pesquisa faz-se pertinente as orientações de Passos e Barros (2009, p. 20) sobre o método cartográfico, ressaltando a ausência de neutralidade do conhecimento e a necessidade de expor os atravessamentos ine258


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rentes ao “campo” de pesquisa. Utilizando dessa metodologia no exercício de registrar todo o processo de construção desse breve exercício cênico, atentando para todas as etapas deste fazer, tomando-me como parte integrante deste universo a ser recriado, observando as matriarcas e a mim mesma, utilizando todos os sentidos corporais para captar a vida dessas mulheres, como orienta Kastrup (2009, p. 32), a fim de explorar ao máximo cada encontro com elas. O termo teatralidade também me foi cativando, no decorrer do percurso fui percebendo suas implicações conceituais e semânticas. A forma de abordagem, contudo, foi um dos entraves, porém no primeiro encontro de orientação a professora sugeriu que fosse realizado um exercício cênico para abordar a teatralidade através da técnica da mimese corpórea. Isso me entusiasmou, pois poderia gerar estados poéticos e não me restringir apenas a conceitos. A teatralidade é um termo muito amplo e de difícil definição, Armindo Bião, filiado à corrente teórica da etnocenologia4, para definir teatralidade, busca na etimologia a explicação desta palavra que, como as demais derivadas desse radical, estão semanticamente organizadas para o olhar do outro. Considera-a como parte de todas as interações humanas, já que todas as ações estão situadas em função do olhar do outro. Ela faz parte dos “microeventos da vida cotidiana” (BIÂO, 1990, p. 158). As matrizes desta pesquisa foram Raimunda, Rosa e Isabel, matriarcas, lavradoras, exemplos de vida para os seus, são, assim, nutrizes e matrizes que unem. É a partir da história de vida delas que se dá o processo de criação das partituras que compõem o exercício cênico, para que se observe a teatralidade presente no cotidiano e através da mimese corpórea e da minha relação com as três matriarcas essas vidas são recriadas. Por suas trajetórias, são dignas não apenas de respeito, mas de uma homenagem que é o objetivo de toda a construção textual e corporal proposta por este trabalho. Elas são as matriarcas que como aponta Nepomuceno (2012, p 396) passaram a ter maior visibilidade nessas últimas décadas, quando legitimou4. Trata-se da etnociência das artes do espetáculo e dos comportamentos e práticas humanos organizados, que busca articular teoria e prática, arte e ciência, criação e crítica, tradição e contemporaneidade, experimentação e profissionalismo. Sua proposição ocorreu em 1995, na sede da UNESCO, em Paris, França. (V Colóquio Internacional de Etnocenologia – Bahia, 2007).

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se o papel da mulher como líder, principalmente nas famílias negras e menos abastadas. Conforme Perrot (2012, p. 166) a mulher é protagosnista da história, muitas vezes silenciada e que por isso deve ser tratada com a mesma igualdade dos homens. Numa história que durante muito tempo foi escrita por eles e até na própria gramática é legada a um segundo plano pelo masculino. As trabalhadoras têm um papel muito relevante na construção da sociedade brasileira e, mesmo na sombra, quase invisíveis, dividem-se entre o trabalho e os afazeres domésticos (GIULANI, 2012, p. 640). No campo não há separação entre os limites desses trabalhos e até da educação dos filhos e da vida comunitária (GIULANI, 2012, p. 644). E essas características estão latentes no cotidiano das famílias entrevistadas. No decorrer da história, a mulher na cena de Santa Luzia do Pará, também tem lutado por mais dignidade, por autonomia, não só pelos direitos de outros, mas por elas próprias, como uma das entrevistadas diz: “e agora é trabalhando, pra não ficar pesado a filho, pesado a marido, pesado a ninguém”. Na cidade as mulheres participam ativamente de diversas atividades, não só em casa. Há a Associação de Mulheres Olímpia da Luz 5 antiga Pastoral da Mulher, com uma sede bem ampla para atividades de produção de costura e artesanato, entre outras. Local onde, no dia 27 de junho de 2013, tive a oportunidade de estar com algumas dessas trabalhadoras e partilhar a apresentação do exercício cênico num intervalo entre uma costura e outra de saias de carimbó6 para as festas juninas do município, como mostram as imagens:

5. Organização sem fins lucrativos, inicialmente atrelada à Igreja Católica local, traz em seu nome uma homenagem a uma professora que lutava pelos direitos das mulheres. 6. Dança regional na qual a mulher é a líder, é ela quem dá o ritmo e escolhe o par (JASTES, 2009, p. 51).

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Figura 1 — Apresentação na Associação de Mulheres Olímpia da Luz – AMOL. Fonte: Acervo pessoal

Histórias que inspiraram a dramaturgia de “Faíscas de Vida” na qual o entrevistado e as entrevistas são interpretados por mim. A arte imitando a vida, através de um brincar de ser outro, um caminho de aprendizagens pessoais e cênicas. Uma vivência que requer treinamento e representação e que, nas asserções de Burnier (2001, p. 190), são elementos essenciais da prática atoral, já que o primeiro desenvolve e aprimora a prática e trabalha a relação do ator consigo mesmo e sua arte, e o segundo envolve uma relação com o espectador, o que Ferracini (2006, p. 190) chama de “zona de turbulência” ou “zona de jogo”, que possibilitam afetar quem vê, como ser afetado por eles. O real transforma-se em ficcional em cena, isto é, não se trata de uma cena real acontecendo ao vivo e assistida por um público, proposta de Artaud, mas um “modelo de base”, como sugere Brecht (FINTER 2003, p. 1). No caso específico desta pesquisa, as matrizes são as matriarcas e a situação cotidiana é o meu encontro com cada uma delas. Será o corpo da pesquisadora que irá explorar e decodificar a teatralidade dessas mulheres, que durante a apresentação cênica será redecodificada pelo público, um olhar diverso. 261


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Assim, as histórias que se imiscuem a minha trajetória de vida se tornarão espetáculos no palco, pois além de vidas, lugares e paisagens partilhadas, as matriarcas, que com um modo particular de ser, ensinam e encantam em suas falas; seus gestos e costumes são recriados por mim em cena e se transformam em extracotidianos e espetaculares. Corpos singulares que trazem consigo particularidades que as universalizam, por isso potências para cena do cotidiano e da arte. Sendo, assim, sementes que germinam em mim.

Semeaduras – o processo de criação do exercício “Faíscas de vida” Uma proposta aparentemente simples, mas que requer muita pesquisa, leitura e atenção à questão humana envolvida, não só a alteridade, mas principalmente a ética, já que o exercício de buscar o outro em si exige todo um cuidado consigo e com o outro, até pela proximidade e objetivos pretendidos, posto que não se pretenda caricaturizar as mulheres. Assim, primeiramente recorri aos vídeos, o que causou certa angústia por não conseguir ser aquele corpo/voz. Por isso preferi me afastar desta fonte e colher dela o texto e a partitura corporal. Durante as sessões de orientação, a professora Valéria expôs sobre a questão de ser o outro recriado, como também ressalta Ferracini (2009, p. 239), destacando que mimese não é imitação, mas recriação, o que me fez pensar nas faíscas de vida como algo livre para criação, tendo fragmentos do cotidiano como rascunho. Alguns dos exercícios para auxiliar no processo de aquecimento e gerar estados extracotidianos em mim e chegar à corporeidade� dos corpos da pesquisa foram a caminhada, caminhada com enraizamento, salto com impulso, expressão vocal com impulso, base e energia. A lavra deste exercício cênico são as “Faíscas de vida”, cotidiano transformado em arte, processo de composição criado a partir do olhar e do ouvir as três matriarcas: Raimunda, Rosa e Izabel, matrizes que inspiraram as partituras da cena, as ações físicas, percebidas por mim e “codificadas para serem recriadas no momento da atuação” (FERRACINI, 2006, p. 150) por meio da mimese corpórea.

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Ações que não “morreram” no encontro da entrevista, mas que foram buscadas nos corpos dessas mulheres, trabalhadas em meu corpo a fim de recriar essas vidas no palco, numa busca por um devir Raimunda, Rosa e Izabel. E sendo “busca e transbordamento no corpo, do corpo e através do corpo” (FERRACINI, 2006, p. 152) não apagar-se-á a chama de cada ação, com suas intenções e impulsos (RICHARDS, 2012, p. 92). Valéria Andrade (2010, p. 88) também comenta sobre a relevância das ações físicas na abordagem da mimese corpórea, diferenciando atividade cotidiana, na qual existe apenas o movimento, de ação física, na qual há movimento, mas ligado à intenção. No decorrer do processo decidiu-se encenar todas as mulheres e também o homem com a mesma indumentária: uma blusa e saia, com aparência de velhinhas, usadas e desgastadas, peças do guarda-roupa de minha mãe. Como já há em mim semelhanças com ela, usar suas vestimentas acentuou ainda mais nossas similitudes. A técnica visagista utilizada foi a de envelhecimento, com cabelos presos com um coque, e para evidenciar a mudança de enunciador na cena em que há um casal conversando, tomou-se como um dos indicadores o foco no olhar. Um fala, dirigindo-se para a direita, a outra para a esquerda, o que pode ser utilizado ainda como uma metáfora para a falta de entendimento entre eles, sendo que a mulher poderia andar pelo espaço, durante a sua fala, expandindo sua área de atuação ao narrar sua história. O trabalho com a mimese corpórea propõe uma maior organização das possibilidades estéticas da cena. Ferracini (2009, p. 214) comenta que “mais ricas que as próprias lendas são as pessoas com seus corpos e vozes, que contam e vivem esses ‘causos’. As histórias, sejam elas fantásticas ou cotidianas, estão impressas não somente na oralidade dessas pessoas, mas principalmente em seus corpos”. Essa poética subsidiou toda a construção do exercício cênico, tendo em vista “encontrar toda a dimensão teatral desse material” (BURNIER, 2001, p. 191), compondo as pautas poéticas desse trabalho. A fim de fazer o público sentir as “Faíscas de vida” a partir da teatralidade cotidiana de três matriarcas de Santa Luzia do Pará.

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As três mulheres eram os sujeitos da cena que seriam recriadas em mim. Tentei, assim, seguir orientações da mimese corpórea, utilizando ao máximo os encontros com elas; colhendo o texto na entrevista, num movimento de apropriação e desapropriação desses recursos, como comenta uma das artistas-pesquisadoras do LUME, Ana Cristina Colla, É como se eu mergulhasse na essência da matriz, que no caso é dona Maria. A voz, antes, quando imitada precisamente, não dava a noção da velha. À medida que fui me abandonando à sensação dessa voz, ela mudou ligeiramente, mas ao mesmo tempo, encontrei a essência orgânica da matriz. Agora, ela é muito mais precisa que antes, pois parece que estou imitando sua vida, e não simplesmente suas ações (Ana Cristina Colla apud FERRACINI 2003, p. 215).

Ferracini (2003) ressalta sobre distanciar-se da matriz a fim de encontrar um equivalente pessoal para a recriação. A mimese corpórea é defina por Raquel Hirson, outra integrante do LUME, como uma brincadeira, um “brincar de ser outro”, “brincar de ser vários num só”. Senti isso durante a primeira apresentação com as trajetórias das três mulheres pulsando em mim. Meu foco não fora apenas copiar gestos, ações físicas, mas carregar um pouco a vida delas em meu corpo – essa foi a principal potência que tentei expressar durante a representação. Cada nova apresentação significava mais um encontro entre estas mulheres, o público e eu, o que implicava sempre a necessidade de preparação. Com o passar do tempo já sentia domínio do texto, mas criava novas expectativas, porque algo diferente poderia acontecer e teria que estar preparada para estar nesta “zona de turbulência” e jogar, improvisar, enfim, criar estados poéticos, fazer jorrar o tempo. A preparação do ator para entrar em cena gera estados corporais diferentes, já que, no palco, tradicional ou não, se está numa situação extracotidiana, espetacularizada, num fazer dirigido ao olhar do outro, e embora tente recriar a teatralidade de mulheres, o cotidiano delas, em cena essa teatralidade está imbuída de espetacularidade. Construir esta experiência não foi um processo árduo, sofrido, pelo contrário, partindo de um desejo, tornou-se uma descoberta de mim mesma, da minha

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história, da maternidade em mim, e hodiernamente possui autonomia própria. É interessante porque sempre havia sido instruída a registrar as vivências, mas só agora, com todas as leituras, vislumbro o quanto a cartografia nos auxilia e é relevante para nossa formação, o quanto ela nos faz cônscios do que fazemos e nos traz maturidade crítica sobre nós mesmos. Este exercício me exigiu compromisso cênico, pois mesmo sendo apenas uma atriz em devir, havia uma cobrança interior pela busca “ética” do fazer teatral, como ressalta Stanislávski (2012, p. 334). Confesso que não sei se alcancei tudo o que idealizei, se de fato consegui, com o exercício, construir uma ode às mulheres, no entanto, minha inspiração no cotidiano de pessoas próximas a mim me fez sentir artista, criar metamorfoses, fazer mágica, como ressalta Ferracini (2006, p. 209): “A função da arte é criar potência de vida. Deveria ser esse o desejo de cada ator, em relação ao público: mediante seu trabalho, convidar o público não somente a fruir o espetáculo, mas a criar com ele faíscas de vida”. “A arte confere beleza e dignidade e tudo o que é belo e nobre tem o dom de atrair” (STANISLAVSKI, 2012, p. 330). Assim, fazer este exercício é uma forma de dignificar as mulheres. Por mais que a realidade não seja tão bela, desnudá-la em cena é mostrar o que as mulheres vivem e, como quem não quer nada, fazer pensar através do corpo, das ações, das partituras, recriando vidas em nosso ser. Sei que existe não só a vontade de mostrar algo ao público, mas que isto que quero mostrar está em mim, não só por essas mulheres fazerem parte da minha história, mas por me identificar com elas, e vê-las na história de outras mulheres, daí um caráter não só particular, mas até universal. Talvez exagere em dizer que as faíscas de vida, colhidas por meio das entrevistas no início desta pesquisa, possam subsidiar toda a mundividência que percebo nelas e nem sei se consigo transportar toda a potência dessas mulheres para a cena. Foi um processo de desvendamento do próprio criar, árduo, mas também gratificante, por aprender muito com essas pessoas, com as histórias delas e, por tudo isso, me fazer conhecer mais a mim mesma através de outros corpos, tanto na cena quanto fora dela.

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As três matriarcas de Santa Luzia do Pará foram os sujeitos da pesquisa, eu também o fui. Assim, passava a me perceber no experienciar o exercício cênico, enquanto atriz, artista, educadora, ser. E nesse fazer, tanto prático como reflexivo, fui me desnudando, mostrando não só memórias das matriarcas, mas as minhas também e, assim, me redescobrindo e adentrando nas entranhas do meu ser. Vestindo-me de outros e ao mesmo tempo sentido a descoberta do encontro da atriz com o público.

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Memória e suas Interfaces

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RASTROS: CONCEITO EM CONSTRUÇÃO Larissa Fontinele de Alencar (PPGLS-UFPA) Tânia Maria Pereira Sarmento-Pantoja (UFPA)

Introdução Este artigo é resultado de pesquisas realizadas no decorrer do mestrado em Linguagens e Saberes na Amazônia, ao debruçar-me sob o objeto de análise “Marujada de São Benedito” como uma manifestação cultural presente em narrativas literárias, a busca por um método plausível que entrecruzasse a Memória e a Literatura. Para se chegar ao método, é necessário ir ao encontro das bases teóricas. Por isso, lançarei mão dos estudiosos da memória, principalmente daqueles que poderão responder o rastro, sob o critério do esquecimento e do silêncio. Para tanto, em um primeiro momento direcionarei o olhar para a ideia de memória e, por conseguinte, para a noção de rastro enquanto categoria de pensamento que surge a partir de um procedimento metodológico. Portanto, serão utilizados conceitos e práticas, mais precisamente diante da categoria de memória, enquanto produto de uma prática discursiva, afinal a nossa relação com o mundo ocorre por meio do discurso. Assim, este artigo tem como meta entrecruzar definições, conceitos de diferentes áreas do conhecimento, mas que convergem para esclarecer mais precisamente, o rastro.

Rastros: a ausência presente O rastro é a ausência presente, paradoxo contundente do esquecimento. E que permanece no silêncio, com sentido e consenti-

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Rastros: conceito em construção

do. Memória, esquecimento e silêncio são as três faces do rastro, uma busca às minúcias esquecidas, singelamente apagadas, esvaziadas de sentido. Nossa memória é produto da cera mole marcada em relevo, o que persiste é lembrado, e aquilo que não se imprime ou que não se releva e revela paira na zona sombria do temido rio do esquecimento. Como diz Platão, em alguns a marca permanecerá calcados firmes na cera da alma, noutros nem relevarão, a cera dura não permitirá a impressão, já dizia Sócrates (1973) em seus diálogos com Teeteto. Ricoeur, principia sua obra A memória, a história, o esquecimento fazendo observações sobre a herança grega da memória, elucidando o grande pensador e os perigos de se pôr os pés na pegada errônea, mencionando o rastro, dentro do âmbito do esquecimento e apagamento através da “falta de ajustamento da imagem presente à impressão deixada como por um anel de cera”. E ressalta mais à frente que “a metáfora da cera conjuga as duas problemáticas, a da memória e do esquecimento” (RICOEUR, 2007, p. 27). Mnemósine, a mãe de todas as Musas, carrega solenemente consigo o peso do lembrar e do esquecer, o que incide a ideia de rastro, que surgirá juntamente com a ideia de impressão. E daí, observa-se o que propõe Ricouer: “[...] Ora, a hipótese – ou melhor, a aceitação – da impressão suscitou, no decorrer da história das ideias, um cortejo de dificuldades que não deixaram de pesar, não somente sobre a teoria da memória, mas também sobre a da história, com outro nome, o de ‘rastro’.” (RICOEUR 2007, p.32). Segundo o autor, existe uma linha tênue que separa a ideia de impressão, enquanto escrita, e de rastro. E faz a distinção entre “três empregos da ideia indiscriminada de rastro: rastro escrito num suporte material, impressão-afecção ‘na alma’, impressão corporal, cerebral, cortical” (RICOUER, 2007, p. 34). Reitera, ao mencionar Aristóteles, que: “de fato, cabe à noção de inscrição comportar referência ao outro; o outro que não a afecção enquanto tal. A ausência, como o outro da presença!” (2007, p. 36). Para se chegar a um conceito único de rastro é necessário averiguar todas as possibilidades da significação. A princípio, qualquer vestígio deixado por alguém ou animal no seu caminho pode ser um indício, uma pista. Diante do rastro que persigo na memória, devo passar pelas fabulosas pistas-metáforas, que Santo Agostinho evidencia em suas Confissões: 270


LARISSA FONTINELE DE ALENCAR E TÂNIA MARIA PEREIRA SARMENTO-PANTOJA

Chegarei assim diante dos campos, dos vastos palácios da memória, onde estão os tesouros de inúmeras imagens trazidas por percepções de toda espécie. Lá também estão armazenados todos os nossos pensamentos, quer aumentando, quer diminuindo, ou até alterando de algum modo o que nossos sentidos apanharam, e tudo o que aí depositamos, se ainda não foi sepultado ou absorvido no esquecimento. (AGOSTINHO, 1999, p. 53)

Assim, a ideia de memória como algo que armazena, absorve, retém pensamento experiências, enfim percepções da realidade, do mundo e em “vastos recessos, em suas secretas e inefáveis sinuosidades, para lembra-lo e trazê-lo à luz conforme a necessidade” (AGOSTINHO, 1999, p. 53-54). A memória, o grande armazém-labirinto onde se foca a claridade segundo a perspectiva que pretende fazer notar, e se o foco não nos mostra, deve-se penetrar por entre os labirintos, minar as escavações, afinal, como o próprio Agostinho afirma, todas as imagens penetram sinuosamente a memória por suas diversas portas, e ali vão sendo armazenadas, umas se deixam revelar, outras pairam e algumas penetram as mais profundas camadas desse terreno labiríntico. E como não se “lembrar” de Sigmund Freud, em seu texto de 1925, Uma Nota sobre um bloco mágico, em que o pai da psicanálise metaforiza o aparelho mnêmico, sabiamente mostrando que: “A superfície do Bloco Mágico está limpa de escrita e mais uma vez capaz de receber impressões. No entanto, é fácil descobrir que o traço permanente do que foi escrito está retido sobre a própria prancha de cera e, sob luz apropriada, é legível” (FREUD, 1996, p. 258). O modo de focar, a incidência da luz da pesquisa é que dará o sentido precioso retido na memória. Sigmund Freud ousa metaforicamente com seu brinquedo de criança que escreve e apaga, para escrever mais uma infinidade de vezes, mas o primeiro traço, o original está impresso nas camadas mais profundas do bloco, marcando, formando e deformando o traço seguinte, e este já modificará o próximo. Sendo assim, formando um rastro original, que demarcará todas as outras inscrições que se sucederão, permanecerá quase intacto na camada mais profunda do bloco mágico, mas se fará notar, mesmo que fragmentado, na superfície. Tanto Santo Agostinho quanto Freud intercalam a ideia de que a memória se evidencia através do rastro, um modo de focar a luz da interpretação pode 271


Rastros: conceito em construção

deixar fazer notar o que se esconde, esquece e silencia, nas camadas mais profundas do bloco mágico ou nas vias mais obscuras do labirinto-memória. Desta forma, ao percorrer os caminhos da memória, nos deparamos com conceituações sobre a ideia do que seria o rastro, muito além das definições simplórias que o delimitam como vestígios deixados por uma pessoa ou animal ao rastejar-se pelo chão, pegadas. De fato, rastro são marcas, mas para muito além das pistas inscritas aparecem as pistas silenciadas, o “não dito” que precede um relance de significação, tudo é rastro, portanto, passível de ter sentido conhecido. Ao nos apropriarmos do conceito de rastro, enquanto metáfora da memória, que elucida Jeanne Marie Gagnebin em sua coletânea de textos Lembrar escrever esquecer observa-se que a escrita, por si só, já é um rastro, mas no sentido de que foi deixado aleatoriamente, “sem intenção prévia, que não se inscreve em nenhum sistema codificado de significações, que não possui, portanto, referência linguística clara”, pois quem deixa rastros, não faz com finalidade de transmitir uma significação, “é fruto do acaso, da negligencia, às vezes da violência; deixado por um ladrão em fuga, ele denuncia uma presença ausente - sem, no entanto, prejulgar sua legibilidade” (GAGNEBIN, 2006, p.113). Nesse sentido, a autora nos chama atenção para o deslize com que o rastro foi deixado, são pistas jogadas ao vento, portanto, os decodificadores do rastro também trabalham sempre em um processo de desvendar, adivinhar, como nos diz: O detetive, o arqueólogo e o psicanalista, esses primos menos distantes do que pode parecer à primeira vista, devem decifrar não só o rastro na sua singularidade concreta, mas também tentar adivinhar o processo, muitas vezes violento, de sua produção involuntária. Rigorosamente falando, rastros não são criados - como o são outros signos culturais e linguísticos -, mas, sim, deixados ou esquecidos. (GAGNEBIN, 2006, p. 113)

Gagnebin procede com suas especulações sobre rastro, e provoca a ideia a partir da leitura de Aleida Assmann, de interpretação das práticas artísticas contemporâneas, que menciona desde o começo de seu texto, fazendo um comparativo entre rastros e restos, parafraseando-a da seguinte maneira:

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Com efeito, diz ela, assistimos hoje a mais uma transformação no conceito de ‘rastro’: desprovido da durabilidade que – podia ligá-lo à escrita, entregue à caducidade e mesmo à clandestinidade, o rastro se aproxima, justamente porque quem o deixou não tinha nenhuma mensagem que quisesse transmitir, dos restos, dos detritos, da sucata, do lixo (GAGNEBIN, 2006, p. 116-117).

O descartado, tudo que passa por nós e é rejeitado, os restos e detritos são marcas, inscrições de tudo que de alguma maneira fez história na nossa existência. Pensar o rastro como lixo nos leva a outra possibilidade de acepção da própria palavra, afinal tudo que produzo e recuso é o resquício, que me sobra, e que se acumula formando os indícios de uma vida. A partir desse resto, o rastro se forma, assim como os sentidos. Sendo assim, o rastro é a marca da presença no ausente, paradoxo próprio da memória. Registra-se na lacuna, na falta, por isso paira sob o silêncio, e está sempre entre a linha tênue do esquecimento, do apagamento. Como propõe Gagnebin “[...] seja sobre tabletes de cera ou sobre uma ‘lousa mágica’ — essas metáforas privilegiadas da alma —, o rastro inscreve a lembrança de uma presença que não existe mais e que sempre corre o risco de se apagar definitivamente” (2006, p. 44). Apaga-se ou apenas esconde-se, escamoteia-se, obliterase? Penso o presente como o tempo em que se rememora e que se projeta, o rastro está nele como uma incrustação de passado que se abre para uma interpretação do possível, e quando paro para lembrar, vivencio a diferença entre o real do passado no presente. E esquecer é perder, mas mesmo se perdendo, o rastro permanece. Corroborando com a ideia de rastro reitero, com as palavras de Gagnebin (2006), ao elucidar que a memória vive a tensão entre a ausência e a presença, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente que cai na paradoxal fragilidade do próprio conceito, diante da linha tênue e esfiapada da memória e do esquecimento. Por fim, o sistema de signos constituídos por nossos rastros é tudo que é depositado em torno de nós, do ínfimo hábito cotidiano ao discurso. Tudo é passível de se compor na memória, até mesmo as ausências. Se não se diz, ou se 273


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se cala, já temos aí um possível sentido, afinal todo rastro que se forma esconde outros, cada silêncio se estende em vozes.

Rastro: busca por um processo metodológico de interpretação Aleida Assman (2011, p. 174), ao enfatizar que Freud compara o trabalho do psicanalista com o do arqueólogo, mas se para o arqueólogo são raras as exceções em que ele se depara com partes intactas, para o “arqueólogo da alma” mesmo o que aparentemente esteja esquecido ainda está disponível, visto que está apenas soterrado e de alguma maneira ainda se encontra intacto. Essa ideia introduz a noção de profundidade da memória, de camadas inacessíveis ou indisponíveis da mente. Ao suscitar a ideia de profundidade e escavação interliga a psicanálise freudiana a diversos pensadores, dentre eles se apropria do que Walter Benjamim (1987) elucida a relação entre a memória e o discurso: A língua tem indicado inequivocamente que a memória não é um instrumento para a exploração do passado; é, antes, o meio. É o meio onde se deu a vivência, assim como o solo é o meio no qual as antigas cidades estão soterradas. Quem pretende se aproximar do próprio passado deve agir como o homem que escava. Antes de tudo, não deve temer voltar sempre ao mesmo fato, espalhá-lo como se espalha a terra, revolvê-lo como se revolve o solo. (BENJAMIM, 1987, p. 239)

Todo escritor é esse homem que escava e toda a atividade de produção textual é, ao mesmo tempo, um sítio que se escava e um sítio que resguarda a memória; o texto fixa o pensamento, as ideias, os sentimentos. E com essa ideia de que a memória é um meio, quiçá, um método, um ato do pesquisador de escavar, buscar pistas, sinais, rastros, se apropriar de interpretações, tecer redes de significâncias em torno do vestígio, nas busca que o levam ao encontro com seu objeto. Diante das busca incessante por uma possível realidade, pouco provável, Benjamin reitera que os “fatos nada são além de camadas que apenas à exploração mais cuidadosa entregam aquilo que recompensa a escavação”. (BENJAMIN, 1987, p. 239) As representações da realidade distribuídas nas camadas da

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memória são rastros preciosos na zona sombria do nosso entendimento. O ato de escavar metaforicamente remete ao procedimento que deverá ser adotado para a própria interpretação dos rastros da memória que se estabelece nas relações sociais, nas manifestações culturais e na literatura. Partindo das leituras metafóricas de Walter Benjamin sobre a (in)definição de memória e rastro, Jaime Ginzburg (2012) em seu artigo A interpretação do rastro em Walter Benjamin propiciará uma leitura que contextualiza o conceito de rastro diante de questões suscitadas pelo filósofo, assim como fará uma relação com a proposição de paradigma indiciário do historiador Carlo Ginzburg. Para quem sabe assim, descobrir uma metodologia possível para perscrutação do rastro. Jaime Ginzburg interpreta que a observação do rastro, seja um traço no chão, um bilhete de passagem, uma fotografia, dentre outros possíveis rastros interpretáveis devem ser observáveis “à luz das perdas”, visto que são fragmentos, restos do que existiu que pode nos levar entender o passado de maneira ampla, nos levando a “entender o tempo como processo, em que o resto é também imagem ambígua do que será o futuro”. E assim, esclarece que “A politização da interpretação do conceito de rastro sugere seu entendimento como um termo de mediação” (GINZBURG, 2012, p. 109). Ainda segundo Jaime Ginzburg (2012), o rastro exige um trabalho interpretativo, não imediato, uma percepção apurada para conseguir enxergar os indícios de passado, de origem. Para interpretar o rastro é necessário observálo diante de sua própria ambiguidade temporal, está no presente como marca do passado, afinal o que restou é componente marcante para interpretar o que ocorreu. E assim Jaime Ginzburg nos leva a perceber que a pesquisa e interpretação do rastro é o meio, um método plausível capaz de intermediar o passado no presente, a presença na ausência. Do entrecruzamento de interpretações possíveis poderemos chegar a um arremate conclusivo, ou pelo menos a tentar desatar “nós” históricos e culturais. Por isso a interpretação, desatadora de nós das redes de sentido que os rastros tecem, é tão importante, e precisa ser altamente contemplativa para perceber os sinais na realidade, cada rastro em seu latente sentido do não dito, que 275


Rastros: conceito em construção

poderia ter sido, mas por algum motivo não pode ou não quis se fazer presente. E daí, advém o silêncio e o esquecimento. Em outras palavras, é o que nos diz Ginzburg (2012, p. 110): Não é no olhar rotineiro do cotidiano, em princípio, que podem residir chances de perceber o potencial de um resíduo. É necessário, em uma situação contemplativa, agir como observador capaz de perceber a realidade imediata e, ao mesmo tempo, entender cada objeto como uma potência latente do que não foi dito, por ter sido silenciado ou por ter havido esquecimento. [...]

Diante do não dito, o rastro se faz existir, se faz meio de descoberta de conhecimento. E como diz, Ginzburg (2012, p. 112): “Em um universo de eterna fugacidade, um rastro é uma chave do conhecimento”. A chave do portal que só poderá ser aberto através da interpretação, das conexões da aparência e da insuficiência de sentido, da presença e da falta, do conteúdo e do vazio. E por isso se faz, ambíguo: “sua presença é a indicação de uma convergência entre o que está ausente e o que está diante dos olhos. Tratar um objeto como rastro significa admitir que ele tem mais de um significado possível. [...]” (GINZBURG, 2012, p. 112). Ciente dos diversos significados, o perscrutador do rastro deve estar atento, talvez nele também deva permanecer o não dito, a ausência para dar o sentido que pretende, interpretações provêm das faltas. Por isso a interpretação, através da busca do rastro, incidirá no que propõe o outro Ginzburg, desta vez o historiador italiano em seu Mito, Emblemas e Sinais, em que realiza a conceituação do complexo apurado que denominará de paradigma indiciário, em que o historiador em sua busca se comparará ao Sherlock Holmes, investigando assiduamente os sinais que revelarão as possiblidades de interpretação. Jaime Ginzburg relaciona os teóricos, e efetua o paralelo ao considerar a relação produtiva de sentido da teoria dos sinais e dos rastros, no entanto ressalta que o entendimento do rastro para a teoria benjaminiana diverge da de paradigma indiciário, nos esclarecendo que: “[...] os rastros perante o caçador, para o historiador italiano, permitirão que seja obtida uma conclusão, capaz de sustentar uma ação prática. Para o pensador alemão, diferentemente, rastros não propiciam totalizações conclusivas”. (2012, p. 125).

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Necessário frisar, ao tratar de conclusões, de se encerrar uma interpretação através do rastro, é apenas mais uma das interpretações e não se deve ter a pretensa certeza do que se observa. Deve-se entender que são conexões possíveis, intercâmbios de sentidos e desvelamentos de possíveis ocultações. E assim, “o rastro ocupa um ponto intermediário entre conceito e imagem, proposição e metáfora, e essa posição acentua a sua pertinência” (GINZBURG, 2012, p. 125). E assim, a essencialidade do rastro é ser fragmento de um passado, e nunca poderá ser recomposto, como um quebra-cabeça, é só uma peça perdida, que pode ter se encaixada em outro quadro. Fragmentário, interpretativo, incerto, mas passível de compor sentido, assim é o rastro. Afinal, Fragmentos fazem parte de um esforço para elaborar um passado que nunca poderá ser configurado como uma unidade perfeita. Acompanhar rastros não é uma condição para construir um conhecimento unificador, totalizante e capaz de ter efeitos práticos. A observação de rastros leva a incertezas. Sobre o outro: por que se ausentou, o que significa que seu rastro esteja aqui, mas não ele? E sobre o próprio observador: se eu estou aqui e percebo a ausência desse que não vejo, quem percebe minha ausência pelos rastros que deixei? [...] (GINZBURG, 2012, p. 126).

Não podemos reconfigurar o que já passou, não temos como através do rastro verifica-lo em íntegra a constituição daquilo que ousamos chamar de realidade. A explicação do rastro pode ser hipotética, mas não é por isso que perde a força, talvez a legitimidade só possa ser alcançada a partir do documento factual, o rastro totalizador, no entanto, os rastros silenciosos também se fazem presentes em seu todo de significado, repleto de possíveis sinais de sentido que intercambiam o passado ausente com o presente. Como expõe Ginzburg (2012) em suas interpretações e questionamentos, que aparecem exatamente para que o observador também se observe, pois também é rastro. E ainda, a busca do rastro é pertinente em “terras sem memória”, ao tratar de tempos de escassez e violências, o silêncio impera e o rastro engendra na zona esfumaçada do esquecimento. Enfim, em terras de genocídios, escravidão, ditaduras... Assim, o rastro está além de um traço em um papel, um traço marcado na memória, este rastro cabe no vazio do escrito e do dito, são pequenos traços in-

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Rastros: conceito em construção

completos que se permitem marcar na memória para esvaziar semanticamente o trauma e perpetuar apenas aquilo que o discurso hegemônico permite, metamorfoseando-se em uma diversidade de traços, cortes e recortes, marcados de vazios.

Considerações finais A interpretação do rastro poderá acontecer através do não-dito, do que se cala e silencia, do que se esquece, mas não se esvaí com o tempo, pois afinal, permanece em fragmento, em resto. Um movimento, um som, um timbre, uma cor, uma nuance, uma peculiaridade, um simples e pequeno ritual, um solitário e adverso gesto, rastros silenciosos que caíram no limbo do esquecimento, que se ressiginificam com o tempo, traspassam as tradições, reacendem as interpretações. Assim, da representação do que o fragmento menciona e aciona em suas conexões possíveis de intercambiar com o silêncio, que se impõe ou que se deixa calar. O trabalho do intérprete é esmiúçar delicadamente o rastro, esquivo e “quase” perdido. Cabe a ele revelar o ausente, com pretensa ousadia que a própria interpretação permeia, afinal no rastro em si, o que se percebe é o que se vê, a presença simbólica do ausente. A ausência está na presença e o sentido está na falta, no silêncio. Por isso, “para pensar o rastro, é preciso pensá-lo, simultaneamente, como efeito presente e signo de sua causa ausente. Ora, no rastro material não há alteridade, não há ausência. Nele, tudo é positividade e presença” (RICOEUR, 2010, p. 434). Talvez não seja possível, ter a compreensão do que de fato aconteceu, mas a marca, o rastro, a cicatriz, está lá, presente e se faz perceber, mesmo não carregando em si o fato ou aquilo que referencia. Sendo assim, a marcas do passado, os rastros do esquecimento surgem no presente, permanecem e por vezes recrudescem na tradição. Assim vislumbrase o rastro do presente, que evoca significativamente a origem, mas sem necessariamente pertencer aos mesmos sentidos.

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Desta forma, está presente, mas sem se manifestar visivelmente, ou ainda está presente através de pequenos rastros que referenciam sentidos mais obscuros, que por algum motivo, não são ditos, e assim, são os rastros silenciados que estão na margem do rio do esquecimento, permanecem latentes, vez ou outra são recorridos, perpassam o discurso, desencadeiam significações, figurando o esquecimento como um fator positivo da memória, na contramão da sua própria perda. Portanto, este artigo buscou o rastro como uma possibilidade de conceito e de método para pesquisas que exigem a interpretação de vestígios que irrompem e afloram em palavras. E vestígios que surgem mesmo em meio ao campo quase infértil do interdito e seus alcances.

Referências ASSMANNN, Aleida. Espaços da recordação: formas e transformações da memória cultural. Campinas, São Paulo: Editora UNICAMP, 2011. AGOSTINHO, Santo. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 1999. BENJAMIM, Walter. Rua de mão única. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987. FREUD, Sigmund. Uma nota sobre o bloco mágico. In: FREUD, Sigmund. Edição standard brasileira das obras psicológicas de Sigmund Freud. Trad. Jayme Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996. V. XIX. GINZBURG, Jaime. A interpretação do rastro em Walter Benjamin. In: SEDMAYER, Sabrina & GINZBURG, Jaime (org.) Walter Benjamin: rastro, aura e história. Editora da UFMG, 2012. RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Editora da UNICAMP, Campinas, SP, 2007.

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RELIGIOSIDADE, CULTURA E IDENTIDADE NA FESTIVIDADE DE SÃO BRÁS NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DO JACAREQUARA Antonio Edson Farias (SEDUC-UFPA)

Introdução O século XXI traz-nos, como todo início de época, e, neste caso, as perspectivas se ampliam por entrarmos, também, no terceiro milênio, novos olhares e percepções acerca dos saberes e representações culturais da humanidade. Para nosso contento e para as nossas inquietações as primeiras décadas trouxeram um perspicaz e produtivo olhar sobre a região amazônica e, neste caso, sobre a escravidão negra e seus desdobramentos, como, por exemplo, as comunidades quilombolas e suas representações culturais. Muitos autores têm contribuído para o conhecimento ou esclarecimento destas questões que vão desde os trabalhos do prof. Vicente Salles: O Negro na Formação da Sociedade Paraense, O Negro no Pará: sob o regime da escravidão, perpassando pela obra de José Maia Bezerra Neto: Escravidão Negra no Grão-Pará – sécs. XVII-XIX, ambos pela Paka-Tatu, bebendo nas fontes da religiosidade apresentadas por Raymundo Heraldo Maués, dentre outros. Estas pesquisas tem contribuído grandemente para o conhecer e o entender acerca da escravidão na Amazônia e suas resistências, principalmente através das pesquisas de comunidades quilombolas com suas múltiplas especificidades. Alessandra Schmitt, Mª Cecília M. Turatti e Mª Celina P. de Carvalho em seu artigo sobre A atualização do conceito de quilombo: identidade e território nas definições teóricas dão-nos uma contribuição ao discutirem a atualização do conceito de quilombo, perpassando pelo Art. 68 das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição Federal de 1988, que traz o seguinte: “Aos remanescentes das comunidades de quilombos que estejam ocupando suas ter-

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ras é reconhecida a propriedade definitiva, devendo o Estado emitir-lhes os títulos respectivos.” Assim, chegamos à comunidade quilombola do Jacarequara, do tupi jacaré + quarar, ficar ao sol, com o objetivo de produzir um trabalho cuja finalidade é fazer um estudo sobre religião, cultura e identidade na festividade de São Brás na comunidade quilombola do Jacarequara. A história nos mostra que religião e religiosidade são vistas como expressão cultural de homens e mulheres que em condições específicas se manifestam. Assim, pesquisar a Comunidade Jacarequara e suas manifestações culturais e religiosas é a oportunidade de entender um pouco mais estas percepções acerca da formação das mesmas em seus múltiplos aspectos. Religião e religiosidade são produções humanas situadas na esfera da cultura, ou da superestrutura, se quiserem; são históricas, portanto, mas que por vezes são interpretadas como a-históricas e, além disso, se propõem elas mesmas, estabelecerem um conceito e uma filosofia da história. Por religião entendo o conjunto de doutrinas e práticas institucionalizadas, cujo objeto e objetivo são fazer a ponte de ligação entre o sagrado e o profano, o caminho de reaproximação entre criatura e criador, o Homem e Deus. Não por acaso, os sumos sacerdotes da maioria das igrejas, também são denominados Sumos Pontífices, os Supremos Construtores da Ponte Sagrada. A religiosidade, na sua condição de característica exclusivamente humana, revela um atributo humano de busca do sagrado, sem especificar o que seja esse sagrado, tanto como fuga, quanto como explicação para o real vivido, ou ainda mesmo para negociações e entendimentos com a ou as divindades na procura de resoluções de problemas cotidianos. Por essa razão, as práticas da religiosidade, muitas vezes entendidas como bruxaria, feitiçaria, “espiritismo”, nada mais são do que manifestações não institucionalizadas da religiosidade e exatamente por isso são sincréticas, livres e além de qualquer ortodoxia dominante. (MANOEL Rev. Bras. de História das Religiões – Ano I, no.I).

Levando em consideração as palavras de Clifford Geertz que afirma que a religião produz uma visão de mundo que informa o comportamento humano (GEERTZ, 1989, p. 72-80), procuraremos compreender como os membros da Comunidade se comportam ao longo da Festividade. Em seguida, discutiremos as tensões por posição ao longo da mesma. Na sequência, discutiremos as

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relações entre o sagrado e o profano, considerando a ladainha de São Brás e a festa leiga de aparelhagem na sequência da mesma. Os leigos fazem a festa de santo nessa manifestação de catolicismo popular eivada por hibridismos ou mesclas culturais. “Há registros de muitos quilombos, sendo bem conhecidos os de Ourém, Turiaçu e Bragança...” (CASTRO, 2006, 16.). A Comunidade quilombola do Jacarequara localiza-se as margens do rio Guamá, no município de Santa Luzia do Pará, cerca de 20 km da sede Santa Luzia, fronteira com Capitão-Poço. O trajeto para a mesma se faz por vicinais de acesso relativamente difícil, quer por Santa Luzia, quer por Capitão-Poço, que ainda apresenta a dificuldade da Travessia do Guamá, feita por uma canoa que fica a disposição dos que precisam da travessia, a outra forma de viajar é de barco, pelo Guamá, até as comunidades mais próximas como Muruteuazinho (Comunidade quilombola), Narcisa (Comunidade quilombola), Lindas Palmeiras, Carrapatinho e com a sede do município de Ourém, o que dificulta a esta população o acesso à educação e ao saneamento básico, e, por conseguinte, à participação em discussões e mobilização das comunidades negras, mas que se afirmam, como ela, como comunidades quilombolas.

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Mapa 1 — Estado do Pará e do município de Santa Luzia do Pará.

A comunidade tem na sua origem e formação as características quilombola, população ribeirinha que tem nas memórias e nas expressões culturais as reconstituições dessa origem. De acordo com a oralidade local, na região às margens do rio Guamá onde está situada a vila de Jacarequara existiam várias fazendas nas quais era comum a existência do trabalho escravo. Além disso, essa região fica muito próxima à zona bragantina e à fronteira com o Maranhão onde também existia uma intensa presença de escravos. (ALMEIDA, ANPUH: XXVII.)

A comunidade leva vida simples, na qual se destacam a pesca e a coleta de frutos, assim como a cerâmica. “Nas terras do alto rio Guamá alcançando os rios Gurupi, Turiaçu e Caeté, encontravam-se fazendas grandes e médias, e pequenos sítios” (CASTRO, 2006; 14.), assim percebemos que a formação do território se deu em consonância aos grandes rios que banham a região, cuja economia perpassava pelo que a região oferecia naturalmente, pesca e coleta de frutos. 284


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As festas religiosas são marcadas pela fé, pelas crenças e valores de um povo afeito ao sagrado, ao espiritual. Assim, analisaremos a festividade de São Brás a partir dos seus rituais e componentes, analisaremos, também, o fortalecimento da identidade quilombola levando em consideração o processo de entendimento das representações ao longo da festa, assim como quanto à disputa de poder sobre a mesma. Nossa análise perpassará, dentro da Festividade, aos diversos desdobramentos da mesma, a saber: a Matança, a Mordomagem, a Comilança, a Procissão, a Ladainha em latim caboclo e a festa dançante. A festividade se inicia pela MATANÇA, que é o ato de abater os animais, que serão servidos na COMILANÇA, feita, geralmente, pelos homens. A MATANÇA começa na madrugada que antecede a Festividade e vai manhã afora, quando as mulheres assumem o preparo dos pratos que serão servidos no jantar, após a ladainha de São Braz. A MORDOMAGEM são os membros da Festividade, que logo após a ladainha podem ser escolhidos para serem JUÍZES ou PRESIDENTE da Festividade do ano seguinte. A PROCISSÃO E A LADAINHA são o auge religioso da Festividade e dáse no horário das 06 da tarde, logo após a ladainha é feito o sorteio entre os MORDOMOS para a escolha do próximo Presidente e demais autoridades, que ficarão a frente dos preparos da Festividade do ano seguinte. A COMILANÇA é o jantar que é servido indiscriminadamente a todos os presentes, encerrando assim a parte religiosa da festividade. Na sequência, acontece a festa comum, geralmente com banda ou som eletrônico, que dura toda a noite. Levando essas informações em consideração, acredita-se que a Festividade é de fundamental importância para o fortalecimento cultural da comunidade, pois a mesma nos dá diversas vertentes deste fortalecimento, assim como temas para investigações, leituras e análises. A festa é uma chave para acessar a dinâmica cultura em uma comunidade amazônica: nos possibilita discutir a disseminação do catolicismo no interior da Amazônia, mas também a resistência cultural e religiosa dos leigos. A especificidade é que se trata de um estudo 285


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sobre festa de santo em uma comunidade negra rural, que teve que assumir-se como comunidade quilombola. Outra especificidade do objeto da pesquisa é que vamos investigar uma festa de santo em comunidade negra marcada, também, pela proximidade com grupos indígenas. A relevância gira em torno das possibilidades de análise e discussão sobre a dinâmica cultural, os processos de hibridização de culturas, que nos permitem conhecer um pouco mais sobre as linguagens e culturas na Amazônia. Esta pesquisa é fundamental por ver neste trabalho a possibilidade de fortalecer ainda mais as identidades e memórias que formam a história de nosso município e, principalmente, da comunidade quilombola do Jacarequara, pois a mesma está nas origens das lutas por melhorias, por mudanças, por reconhecimento. Desde cedo ouvi histórias sobre os quilombolas, ou negrinhos comedores de chibé, como alguns políticos a eles se referiam, como professor pude perceber melhor as nuances e significações destes discursos, como Secretário de Educação, através da Diretoria de Cultura, participei efetivamente do processo de titularização das terras quilombolas de Santa Luzia do Pará, processo que resultou na legalidade de 04 comunidades: Jacarequara, Pimenteira, Tipitinga e Muruteuazinho, como Vereador procurei elaborar leis que fortalecessem essa identidade, como a lei que dispõe sobre a lei Gilberto Vitorino Ramos que institui o ensino de história e cultura afro-brasileira em Santa Luzia do Pará, projeto de lei que dispõe sobre a comenda Pornusena de Santa Luzia do Pará e o projeto de lei que dispõe sobre a Semana dos povos quilombolas de Santa Luzia do Pará e cria o feriado municipal do 20 de novembro, Dia da Consciência Negra. Esse artigo surge pela necessidade de continuar produzindo, unindo essas experiências ao fazer científico e, buscando nos vários campos da pesquisa científica, retribuir o muito que aprendi quer na UFPA, quer nas comunidades ribeirinhas, quilombolas como o Jacarequara, onde aprende-se pelo senso comum. Por tudo isso, busca-se fortalecer esses saberes, por saber que isto significa fortalecer a história da Amazônia, a nossa memória. Na tentativa de conhecer as relações entre o sagrado e o profano, na formação da cultura e identidade na Festividade de São Braz na comunidade quilom286


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bola do Jacarequara, pretendemos entender como essa Festividade se presentificou nesta região e como a mesma se fortaleceu ao longo dos anos. “Seu” Jacinto Correia dos Santos, 65 anos. Dá-nos suas impressões, dizendo que naquele tempo “não tinha escritura de terra. Faziam mutirão para plantar roça, depois faziam festas comunitárias. O meu pai chamava-se Manoes (Braz) Correia dos Santos, Braz era apelido, por conta dos ancestrais. Seu Jacinto fazia a festa de São Braz há uns 25 anos. Depois passou pra Lucrécia e pro Cid Braz. O Duca Braz que trabalha com a festa agora”. Maria do Duca, 48 anos, uma das organizadoras da festa há 08 anos. “Ah, a festa começou faz muito tempo, com os tataravós do Duca, começou lá na Narcisa (Comunidade Quilombola, no município de Capitão Poço.) começou com uma promessa que o tetravô fez. A festa parou por uns três anos. A irmã do Jacinto, D. Diocrécia, mudou de religião e queria jogar fora o santo (imagem), e aí o sr. Jacinto pegou o santo e assumiu a festividade. O santo é muito forte, eu tenho a maior fé nele.” E assim a festividade chegou ao Jacarequara, migrando de tão longe... São Braz nasceu em uma família rica, recebeu uma excelente educação cristã vindo a tornarse bispo de Sebaste, Capadócia, atual Armênia quando ainda era bem jovem. Juntamente com seu trabalho religioso, era médico e nas duas tarefas procurava estar ao lado tanto dos pobres, quanto dos ricos, a qualquer hora do dia ou da noite. Começaram as perseguições aos cristãos, promovida pelo governador da Capadócia, o que o obrigou a refugiar-se em uma caverna no meio da floresta. Ali curava os animais doentes com o sinal da cruz e, com isso, até os animais mais perigosos não lhe faziam mal algum. Acabou sendo encontrado por alguns caçadores, que impressionados com seu magnetismo sobre os animais, levaram-no ao governador. Como São Brás não quis renegar a Cristo foi trancado em uma cela para morrer de fome. Porém, uma bondosa mulher que já havia sido ajudada por ele, levava-lhe comida às escondidas. Quando o governador descobriu, ordenou que cortassem a pele de São Brás com pentes de ferro. São Brás suportou os maiores sofrimentos até ter sua cabeça degolada. Foi um dos primeiros mártires do cristianismo. É invocado desde a mais remota antiguidade como santo dos males da garganta. Já ouvimos muito a invocação de São Brás, quando uma criança ou adulto se engasga com alguma coisa. Essa tradição se deve ao fato de São Brás ter livrado da morte um menino que estava com uma espinha de peixe presa na garganta. Seu culto é um dos mais difundidos no oriente e no ocidente. (Wikipédia.).

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Ao longo da pesquisa encontramos os antropônimos do santo em várias línguas: castelhana: Blas; francesa: Blaise; inglesa: Blaise; italiana: Biagio; latina: Blasius; e em língua portuguesa encontramos as versões São Brás e São Braz, adotei a forma São Brás por entender que esta melhor representa a expressão da língua portuguesa no Brasil. Nessa primeira parte, procurei reproduzir o que se encontra, em uma pesquisa rápida, sobre a história desse santo, na rede mundial de computadores. Embora nosso objetivo seja ultrapassar essa descrição e alcançar as formas como as pessoas da comunidade narram sobre quem é São Brás e o significado que este santo tem em suas vidas. Maria do Duca traz-nos uma idéia desta importância. “O meu filho, uma vez, engatou a espinha na goela... espinha de gancho. - Mamãe, eu vou morrer. Olha pra vocês verem a minha fé é grande, escarra... vai lá dentro pega numa fita de São Braz amarra na garganta e senta. - Mamãe, não vai dar, eu vou morrer... Ele fez, amarrou 03 vezes e o sangue correndo. - e agora mãe. Tire a fita e vá escarrar. Ele escarrou e a espinha saiu. Agora ele tai, ajudando na festa. Olhem, prestem atenção na imagem. O olho está fechando, sempre que um Braz morre o olho fecha mais um pouquinho. O primeiro que fez a festa morreu, o segundo morreu, a família vai morrendo e o olho da imagem vai fechando também. A religião produz uma visão de mundo que informa o comportamento humano (ZUMTHOR, 1989: p. 72-80). Assim, busca-se entender como a religiosidade produz e/ou reproduz um conhecimento original sobre o homem, no sentido individual ou coletivo, na sociedade, na qual o mesmo está inserido. Analisar a Festividade de São Brás é fundamental para o entendimento do processo de migração da fala e da escrita, ou segundo Zumthor da letra e da voz, para tanto faz-se necessário entender o que o autor apresenta em sua obra acerca da literatura medieval, a qual ressalta a importância da voz no texto nos âmbitos antropológico, cultural, histórico e literário. Para tanto, nos embasaremos em um dos momentos mais dramáticos da Festividade, que é a reza da ladainha de São Brás. Quando uma codificação simbólica qualquer permite aos homens interpretar sua situação no mundo, ela se torna uma grade interpretativa que permite ao homem não se tornar uma espécie de monstro uniforme. (GEERTZ, 1989: p. 73). Sabendo que a voz encontra-se presente na história desde a origem dos contos, da poesia, dos rituais e das narrativas místicas, Zumthor diz-nos que

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“voz não é sinônimo de oralidade, pois está além do sentido linguístico de comunicação por meio da fala”, daí a percepção da performance do orador ao longo da Festividade e, principalmente, da ladainha, transformando-a de acordo com seu desempenho. Zumthor traz-nos a percepção da movência da voz e remete-nos a “índices incomparáveis de oralidade em várias formas de relatos curtos, contos piedosos, milagres de Nossa Senhora...” (ZUMTHOR, 2004: p. 52), esperamos a partir daí entender como a ladainha de São Brás chegou a essa comunidade quilombola a partir das práticas orais de ensino também discutidas pelo autor e que são “confiadas à memória dos intérpretes”. Pela boca, pela garganta de todos esses homens (...) pronuncia-se uma palavra necessária à manutenção do laço social, sustentando e nutrindo o imaginário, divulgando e confirmando os mitos, revestida nisso de uma autoridade particular (ZUMTHOR, 2004: p. 67).

E, principalmente, em se tratando de uma Festividade na qual um dos pontos cruciais é uma ladainha em latim em homenagem ao santo padroeiro da garganta. Entender essa migração e sua força atual é entender um pouco desta movência que marca nossa origem e nossa produção contemporânea. O senhor Prisco Alexandre dos Reis, 58 anos, diz-nos que sua esposa rezou a ladainha uma vez, mas não é a mesma coisa de quando os rezadores tiram a ladainha. Nesta Festividade de 2014 o rezador por problemas familiares não compareceu e pudemos perceber a falta da ladainha, pois ninguém se atreveu a tirá-la. Retirando e muito o brilho e a força da festa. Geertz, em sua obra “O saber local: novos ensaios em Antropologia interpretativa”, analisa o direito como um fato cultural, tal qual a arte e a religião, e considera que o mesmo é desenvolvido numa relação direta com os contextos culturais. Ao pesquisar e analisar a religiosidade na Festividade da Comunidade Quilombola Jacarequara procuraremos perceber e/ou entender como o processo de apropriação da Festividade foi construída ao longo da história. São Brás é oriundo da Capadócia, século III, d.C, e compreender como essa apropriação se 289


Religiosidade, cultura e identidade na festividade de São Brás na comunidade quilombola do Jacarequara

faz nas relações de poder entre a família responsável pela Festividade, a Associação de Quilombolas, os “mordomos” e demais personalidades que compõem a Festividade. Prisco Alexandre dos Reis, 58 anos, diz-nos que “São Benedito de Ourém passa pela comunidade. Pede licença, tem organização. Eu já fui mordomo, abandonei por não aceitar os rumos da Direção. Quando o “tio Brás” faleceu, a tradição ficou na família com o Duca Brás. Os mordomos estão se afastando, a última festa foi muito fraca. O Jacinto Correia Brás foi embora, mora em São Miguel. Minha esposa, a Carmelina, é a atual presidente. A imagem fica na casa da família do Duca Braz.” Entender essas causas e consequências, só será possível ao nos aprofundarmos melhor nas obras do próprio Geertz, por conta da discussão sobre a cultura como um código que precisa ser decifrado, interpretado. Assim como de outros autores que contribuam para estes entendimentos, como Pierre Bourdieu, pelas discussões sobre o poder simbólico, Claude Levi-Strauss, pelos estudos sobre a estrutura dos mitos, as relações entre magia e religião, sobre o trabalho analítico das culturas, Foucault, Paul Zumthor, Roberto Cardoso de Oliveira, para melhor desenvolver noções de trabalho de campo e também as discussões sobre identidade e etnicidade, Raymundo Heraldo Maués, por conta de suas análises sobre o catolicismo na Amazônia, que nos ajudam a entender as dinâmicas do catolicismo popular, o poder dos leigos e suas resistências às tentativas de controle eclesiástico, e porque nos indica os hibridismos entre as matrizes européia, indígena e africana, dentre outros que possam surgir ao longo da pesquisa. Partindo dos pressupostos de entender essas legitimações de poder, Bourdieu, em sua obra “Os usos sociais da ciência – por uma sociologia clínica do campo científico”, aponta-nos para a impossibilidade de uma autonomia total das ciências e na busca desta autonomia científica espero, neste Mestrado, encontrar as respostas que tanto anseio e os resultados os quais pretendo, a saber: produzir pesquisa e fortalecer a identidade amazônida, dispondo dessa idoneidade para entendê-las.

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Compreender o relativismo cultural, ao qual, segundo Geertz, as leis são submissas, seria uma das formas de vislumbrar as relações sociais e de poder nesta comunidade. Analisar tais fatos e enveredar por caminhos complexos, linhas tênues que imbricam as relações entre as questões jurídicas, a Antropologia e a Etnografia, e descrevê-lo remetem-nos as concepções de Geertz que lembra-nos que descrever um fato é representá-lo, o problema seria como representá-lo. E é esta uma das linhas que fundamenta esta pesquisa. Para Le Goff (Leitão, 2003), a memória, como propriedade de conservar certas informações, remete-nos em primeiro lugar a um conjunto de funções psíquicas, graças às quais o homem pode atualizar impressões ou formações passadas, ou que ele representa como passadas. Como pretendo fazer um trabalho etnográfico, o trabalho de campo vai incluir entrevistas, priorizando relatos daqueles que fazem a festa na comunidade – especialmente os mais velhos. Trabalhar com a oralidade é analisar a questão da memória, considerando que a memória é o presente atualizando, re-significando o passado. A memória é o presente que aciona o passado, como afirma o livro da Marieta de Moraes Ferreira - Usos e abusos da história oral. Levando essas informações em consideração, acredita-se que a Festividade é de fundamental importância para o fortalecimento cultural da comunidade, pois a mesma nos dá diversas vertentes deste fortalecimento, assim como temas para investigações, leituras e análises. Meu interesse em trabalhar com a Festividade se deu quando assumi a Secretária municipal de Educação, o que me permitiu ter um contato com a Festividade. Percebi então que a análise dos aspectos que formam a Festividade permite-nos mergulhar em infinitas descobertas. Levando essas informações em consideração, acredita-se dar a conhecer a Festividade, através de fotografias, entrevistas e outros possíveis recursos.

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Figura 1 — Estátua de São Brás cultuada na Festividade, Acervo do autor.

Como afirma-nos Simonian (2006, p. 07) “de todo modo as imagens em si têm intrinsecamente um poder cultural e histórico, em especial pelo que representam nos contextos culturais local, regional e mundial”. No caso em questão, as simbologias carregam uma gama de significados e informações que, esperamos, nos levem a entender as representações na Festividade de São Brás ao longo do processo histórico da mesma na comunidade Quilombola Jacarequara. Esperamos para tanto ler toda a documentação de forma crítica e idônea, cruzando as informações e documentos coletados, relacionando-os com a bibliografia disponível, questionando quando necessário estas bibliografias, para assim produzir um trabalho com a qualidade e a seriedade que esta Instituição UFPA tanto prima. A metodologia empregada nesse trabalho se pauta basicamente em pesquisa de campo e bibliográfica, pois se fará uma investigação a respeito da Festividade. É válido frisar que será primordial o uso de pesquisa através de entrevistas.

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A SÉTIMA ARTE APORTA NA PÉROLA DO CAETÉ: CINE OLÍMPIA... REGISTROS DE UMA HISTÓRIA CULTURAL Ariane Baldez Costa (PPGLS-UFPA)

Introdução No âmbito da história cultural, os pesquisadores que tinham até então privilegiado as temáticas econômicas e sociais passaram a dar maior atenção para as questões culturais, focando seus estudos nas interpretações e representações de uma determinada cultura, mas não a da alta cultura, e sim a cultura de um cotidiano, na qual inclui os costumes, valores e modos de vida de certo período e local. Suas abordagens ocorrem de forma interdisciplinar, entrelaçando assim os campos da história, antropologia, sociologia, entre outros. Para Burke (1997) vivemos em uma época do multiculturalismo, o que proporciona uma abertura para as práticas culturais que até então eram marginalizadas pelas manifestações culturais padronizadas pela alta cultura eurocêntrica, esta representava o discurso legítimo, padronizando e ditando o que poderia ser considerado cultura ou não. Ao entrar em cena, o relativismo cultural considera não somente as práticas de sociedades colonizadas ou “periféricas” como também inclui as práticas e as representações sociais do cotidiano dessas sociedades, o que o autor denomina de “fenômenos culturais a longo prazo”. Na cidade Bragança, por algumas décadas o cinema fazia parte da rotina dos habitantes, é comum ouvirmos, constantemente relatos sobre um período no qual o ele era considerado um dos principais espaços de interação social, de lazer e entretenimento. Dessa forma, o trabalho visa conhecer e entender as práticas sociais referentes aos hábitos de ir ao cinema, mais especificamente pelo período das décadas de 60-70 na cidade de Bragança, descortinando tais costumes, a relevância desse espaço, o público que frequentava e as suas motivações.

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Portanto, o estudo partiu não somente de fontes oficiais, como também por meio de relatos memorialísticos (história oral) do público frequentador desse espaço, considerando a memória também como fator importante na construção da história do cinema, uma vez que, alcançar a condição de ‘modernidade’ implica em mudanças significativas não só em relação aos novos espaços como também nas formas de adaptação, de hábitos, de interação, de socialização, de representação social entre os indivíduos de uma determinada sociedade.

A Indústria Cultural A indústria cultural é decorrente da industrialização capitalista dos EUA que disparou como potência econômica após a segunda Guerra Mundial, tornando-se uma das grandes nações responsáveis pela distribuição de produtos culturais pelo resto do mundo. A cultura de massa, que também é chamada de indústria cultural, é caracterizada por possuir um objetivo específico, isto é, atingir a massa popular por meio dos veículos de comunicação de massa – rádio, TV, cinema, folhetins. Logo, ela corresponde a um processo de transformação da cultura em mercadoria, sendo dessa forma relacionada diretamente a uma ordem econômica e ao consumo. O fato é que milhões de pessoas participam dessa indústria imprópria de métodos de reprodução que, por sua vez, tornam inevitável a disseminação de bens padronizados para a satisfação de necessidades iguais... os padrões teriam resultados originalmente das necessidades dos consumidores: eis por que são aceitos sem resistência.... a técnica da indústria cultural levou apenas à padronização e à produção em série, sacrificando o que fazia a diferença entre a logicada obra e a do sistema social. Isso, porém não deve ser atribuído a nenhuma lei evolutiva da técnica enquanto tal, mas à sua função na economia actual [...] (ADORNO & HORKHEIMER, 1985, p. 57).

O aspecto mais criticado pelos autores é o fato da indústria cultural ser financiada por detentores de capital e ter transformado a produção cultural em um negócio onde a arte passou a valer pelo seu valor no mercado e não em virtude dos seus efeitos estéticos e poéticos. Os produtos culturais se tornaram pro296


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duções de caráter consumista, em series, com suas sagas e temáticas previsíveis onde prevalecem as criações clichês destinadas ao público certo. A indústria cultural teve seu desenvolvimento a partir do final década de 40, o termo foi criado pelos sociólogos e filósofos Theodor Adorno e Marx Horkheimer membros da Escola de Frankfurt. Segundo os autores, a partir de uma concepção negativa, a indústria cultural é distribuída pelos meios de comunicação de massa, que por sua vez são manipuladores e aniquiladores da consciência e do pensamento crítico humano, dentro desse sistema de comunicação estaria inserido o rádio, o cinema, os folhetins como partes coerentes de uma economia industrial capitalista. Dessa forma, “O cinema e o rádio não precisam mais se apresentar como arte. A verdade de que não passam de um negócio eles a utilizam como uma ideologia destinada a legitimar o lixo que propositalmente produzem. Eles se definem a si mesmos como indústrias [...]” (ADORNO; HORKHEIMER, 1985, p. 57). É notório que essa prática perdura até nos dias de hoje e possivelmente prevalecerá por muito tempo, pois a TV demonstra isso diariamente com suas novelas, programas, propagandas etc., com o rádio e com o cinema também não é diferente. De fato, as receitas de sucesso persistem até hoje, com obras que são produzidas em séries e organizadas para êxito rápido, as quais são consideradas manipuladoras ideológicas, uma vez que transmite uma mensagem homogenia quando apresentam tendências que padronizam valores, padrões, hábitos, crenças e costumes. A partir do início dos anos 60, surgiam estudiosos que demonstraram ser contrários a essa concepção, pois passaram a perceber que neste tipo de indústria a possibilidade de democratização do acesso da massa à cultura. Neste caso, a produção e o consumo de massa também contribuíram para tornar possível a aproximação de estilos de vidas, isso implica na democratização e acesso aos bens de consumo. Para compensar as críticas mais radicais, há os que lembram o caráter socializador dos meios de comunicação de massa, que dariam a todas as classes o mesmo nível de informação e, vez por outra, ministrariam elementos para que o espectador forme um juízo desalienado a respeito do sistema em que vivem. Igualmente os de297


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fensores insistem no caráter pedagógico que alguns programas assumem, quando elaborados por pessoas de cultura artística ou científica mais complexa. Historicamente, na verdade, fica em aberto o julgamento de um processo de comunicação que ainda está bem longe de ter esgotado todos os seus frutos (BOSI, 1992, p. 322).

Independente dos pontos divergentes existentes em relação à indústria cultural, o fato é que, ela é um produto de uma atividade econômica estruturada em larga escala e de porte internacional, hoje global, vinculada, inevitavelmente, ao poderoso capitalismo industrial e financeiro. Como um dos bens de consumo simbólicos dessa indústria cultural, o cinema é considerado um poderoso produto que se propagou mundialmente e ainda mantem, um público em grande escala motivado e estimulado a consumilo. Dessa forma, falar em indústria cultural implica em diversos aspectos como, tecnologia, ideologia, bens de consumo simbólicos, fatores estes imprescindíveis para o seu desenvolvimento e propagação pelo resto do mundo. Logo, isso implica um constante processo dinâmico de comportamentos, hábitos, costumes, produções, organizações e interação social na sociedade em que ela se propaga.

A Sétima Arte aporta na Pérola do Caeté: Cine Olímpia... Registros de uma História Cultural Na cidade de Bragança (PA) o cinema fez parte do cotidiano de muitos moradores como um dos principais meio de lazer e entretenimento no meio urbano. Devido a dificuldades de encontrar fontes, ainda não se sabe exatamente quando ocorreu a primeira exibição cinematográfica na cidade, mas há indícios já da presença de projeções desde 1915, com o Recreio Cinema localizado no antigo centro histórico da cidade; já nos meados da década de 20 o Cine Teatro Kosmos, pertencente da firma Braga & Braga é inaugurado e depois fora comprado, em 1936, pelo Sr. Manuel Ferreira Dias, um dos grandes empresários de Bragança do ramo do comércio, hotelaria, entre outras atividades comerciais, ele recuperou-o e o denominou de Cine Olímpia. Em 1960 vendeu ao Sr. Luiz Silva, o qual continuou com as atividades de exibições cinematográficas.

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Dois importantes centros de diversões cinematográficas nossa cidade possui: “Olimpia” de propriedade do Sr. Luiz Silva, ao lado do seu “Bar São Benedito”, situados à Praça “Deodoro da Fonsêca” e o outo, “Cine Amazônia”, de propriedade dos herdeiros do falecido e saudoso conterrâneo, Perilo Rosa. (...) Esses cinemas possuem telas panorâmicas e moderna aparelhagem. Todos os filmes que se exibem em Belém, vêm em escala para os nossos cinemas (PERREIRA, 1963, p. 167).

Como é possível notar, pelo período da década de 60, a cidade possuía duas salas de cinemas uma denominada de Cine Olímpia e a outra de Cine Amazônia. O cine Olímpia funcionava diariamente e possuía uma estrutura própria de cinema, com poltronas (de madeira) distribuídas pela ampla sala com capacidade aproximadamente para 300 pessoas. Por meio de alguns relatos, ele foi o mais frequentado e mais popular, se mantendo em atividade por muito tempo até em 1995. [...] olha passou um filme argentino aqui, eu tenho andado atrás desse filme eu nunca achei... preto e branco o filme. Foi filmado na argentina e um pedaço no Brasil também, então era A noiva, escrito La Noiva, La noiva com o artista argentino, mas também tinha brasileiros trabalhando, A Noiva com Antonio Prieto, mas um filme muito bonito assim, ééé um filme musical, muito bonito o enredo, o enredo do filme... eu assistir umas 3 vezes... foi a primeira vez que eu vi lá nas cataratas do Iguaçú, foi filmado ali também.... isso éeee hoje isso ééé... mas naquela época meu amigo, isso era uma novidade muito grande[...]1

O trecho acima faz parte do relato de um frequentador da sala de cinema falando emocionado de um dos filmes que mais lhe vem à memória ao lembrar-se, do período que frequentava o cine Olimpia. Por meio deses relatos já foi possível notar como este espaço interferia no cotidiano das pessoas. O cinema, como entretenimento, gerava outros hábitos e outras formas de interação social, os assuntos discutidos eram sobre os filmes e os atores, e a programação durante a semana e o final de semana era o cinema com sessões lotadas. Tudo isso, pode-se dizer, foram aspectos marcantes proporcionados em um período que a distribuição de energia elétrica ainda não ocorria em toda a cidade e a cultura audiovisual não estava presente dentro de suas casas diariamente como nos dias atuais.

1. Informante 01.

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Ortiz (1998) fala sobre a modernidade no Brasil que estaria “fora do lugar” uma vez que ela ocorreu de forma muito defasada, dentro de um contexto forçado já que ela antecipa uma realidade que de fato não estaria acontecendo, dessa forma, a modernidade ocorre no Brasil sem modernização. Neste caso, a cultura áudiovisual presente na cidade é um típico exemplo da falta de modernização a qual o autor se refere, uma vez que o cinema se instalara na cidade, neste caso de Bragança, com condições precárias, principalmente em virtude da distribuição de energia elétrica a qual ocorria somente no centro da cidade, onde hoje é conhecido como centro histórico da cidade. Os costumes foram se reorganizando em virtude de um espaço social, por exemplo, no cine Olímpia, a sexta-feira Santa se tornara tradição, as sessões de filmes sobre Jesus Cristo, onde se tinha mais de uma sessão e todas, com a “casa cheia”. [...] colocavam os cartazes ou passa o carro anunciando O Martírio de Cristo, quinta-feira, sexta-feira então enchia (...) filme ruim que só a técnica né, a técnica preto e branco mal... aí o pessoal ia mesmo, ia, ia porque não tinha outra coisa né eu lhe digo que a energia era muito ruim, muito fraca, então muitas vezes não tinha energia nas casas não tinha só tinha aqui no centro [...]2

A expectativa de se ir ao cinema iniciava desde o momento da divulgação dos filmes a qual ocorria das mais diversas formas possíveis, em cartaz na porta do cinema, carro de som nas ruas e pelos jornais da época, como afirma um antigo espectador: “quando o filme era famoso a gente tinha propaganda na rua, quando não, a gente já sabia. Nos cantos, nos principais cantos eles deixavam aqueles cartazes e no cinema a gente ia lá ver qual filme que passava...” 3. Outro fator importante que não deixaram de citar era o momento de interação social entre os telespectadores no bar São Benedito, localizado ao lado do cine Olímpia, aliás, pertencia ao mesmo proprietário do cinema, essa concentração ocorria nos momentos antes, nos intervalos e após o final dos filmes, o que deixa claro que o cinema também estava vinculado a outras atividades 2. Informante 01. 3. Idem.

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comerciais, igualmente como acontece atualmente em volta dos cinemas nos grandes centros. As sessões do cine Olímpia contavam com um público diversificado, com a presença de homens, mulheres, jovens e crianças; nesse período o ingresso era acessível, em sua grande maioria, os filmes que passavam no cine Olímpia da cidade Bragança já tinham sido rodados várias vezes nos cinemas em Belém. Vale ressaltar que a meio entrada já tinha sido conquistada na capital a partir da década de 40 pelos estudantes, conquista esta que já fazia parte do restante das outras cidades do interior, portanto, sendo um dos fatores que também tornara os ingressos mais acessíveis para os estudantes. Com uma plateia variada, as motivações que levavam esses espectadores evidentemente eram também distintas, não somente com intuito de assistir aos filmes, como também com o objetivo de namorar, encontrar conhecidos, exibirse, fazer conexão com a vida moderna, dessa forma configurando-se, como um espaço de interação e prática social. Prática esta mais conhecida também como “socialização”, o termo foi criado a partir das relações entre individuo e sociedade. Segundo Georg Simmel, qualquer forma de interação entre seres humanos deve ser considerada uma forma de socialização, ocorrendo assim em todos os contatos sociais. Para o autor, o mundo social é constituído por um conjunto de relações, as quais estão em constante processo onde os atores sociais assumem simultaneamente os papeis de agentes e produtos da interação social. Portanto, o processo de socialização nada mais é que as formas de interações sociais que ocorre nas diversas fases de vida do individuo, na família, na escola, no trabalho, nos relacionamentos de amizades, namoro, grupos sociais etc. Nesse contexto, o cinema como o espaço de socialização vem a possibilitar a interação entre indivíduos diferentes, que embora apresentassem motivações diferentes para ir ao cinema, ainda assim possuíam uma função de valores, interesses e objetivos em comum, “parece ser desse modo que determinadas experiências culturais, associadas a uma certa maneira de ver filmes, acabam interagindo na produção de saberes, identidades, crenças e visões de mundo de um grande contingente de atores sociais.” (DUARTE, 2009. p. 18). 301


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As exibições eram tanto a nível nacional e internacional, de variados gêneros: romances, comédias, aventuras, ação e, inclusive, os até então, chamados na época pelos informantes, como “filme de sexo”, que na realidade pertenciam às produções do movimento da “Pornochanchada”, gênero este pertencente à década de 70, conhecido assim pelo fato de mesclar elementos dos filmes do gênero conhecido como “chanchada” da década de 30 e pela dose alta de erotismo. [...] já quando na década de 70.... já passava filme pornográfico, o filme mais pesado que passou eu não assistir, que hoje já tem ai nas bancas né.... era como era, era o filme japonês, era oooo, o império alguma coisa assim, do império do gringo, era de sexo, não era coisa medooooonha assim, mas pra época era, é segundo eu soube, eu nunca vi esse filme, já achei nas bancas, mas não comprei não, que a mulher, o final do filme, a mulher chega a cortar o pênis do homem, então pra época, meu deus, era um escândalo ....ah, O império dos sentidos, mas o resto não, o resto era filme que todo mundo podia ver.4

Quanto a essas exibições de filmes, como os espectadores chamavam, “filme impróprio” existia todo um cuidado para que não tivessem a presença de menores, o que garantia isso era os profissionais do cinema chamados “juiz de menor”, este era responsável em manter a ordem e o controle de entrada de somente adultos nos filmes impróprios e até mesmo naqueles que eram julgados como inadequado para a criança e o adolescente, seja por apresentar cenas mais eróticas, sensuais ou violentas. Como podemos observar no seguinte trecho da narrativa abaixo: [..] quando fosse filme impróprio, ai tinha o, tinha o fiscal não, como era que a gente chamava.... o juiz de menor. Então era o juiz de menor que tava lá, a gente nem tentava. Existia aqueles impróprios né, filme de crime.... eu me lembro quando rodou O Poderoso Chefão, então a fiscalização, os juízes de menor né, tavam lá.... é eles já sabiam que o poderoso chefão era filme pesado assim pra criança ver, era um filme do mafioso, e pra nós não.. mas pra criança aquilo poderia chamar atenção.5

Quanto aos filmes nacionais, na década de 60, traziam já os seus “heróis” brasileiros como o famoso Mazzaropi, reconhecido como o artista cômico, com 4. Informante 01. 5. Idem.

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O Lampião: o rei do cangaço, que por sua vez tinham grande aceitação do público. Mas as exibições de filmes internacionais, principalmente os americanos e os astros os quais encantavam ao estarem expostos em cartazes protagonizando algum filme, eram os que faziam mais sucesso no que diz respeito à preferência do público, tanto que, quando o filme tinha grande repercussão, o próprio público pedia para repetir. [...] Eu sempre gostei de filmes faroeste, bang bang, dia de sábado, também eu sempre assistia mais em dia de sábado, ou bang bang ou filme épico, passava muitos filmes épicos... filme épico o pessoal falava assim: é filme de espada, olha, olha vai passar o filme de espada, então o comentário era mais nas ações do filme né as brigas as lutas, tinhaaaa, a gente nem tinha ideia do que fosse assim éeee aquele pessoal que lutava naquelas arenas é como é nome que se dá aqueles.... (CLADIADORES) era gladiadores [...] Charlton Heston trabalhou nos dez mandamentos trabalhou também no Bem- hur, éé outro, Steve Reeves também era importante, outro Gordon Scott muito bom... agora faroeste tinha Giuliano Gemma, tinha Anthony Steffen outro... é deixa ver se lembro não me vem na memória mas muitos tinha bastante ahaha oooo é tinha John Wayne, que a gente chamava Geovani olha é com Geovani é bom ... (risos).6

Outro tipo de filme estrangeiro que fez sucesso no cine Olímpia de Bragança foram os filmes mexicanos, pois segundo alguns relatos quando se passava esses filmes o cinema lotava, no entanto, o que chamava a atenção do espectador era a musicalidade dos filmes. [...] o pessoal gostava mesmo era faroeste daqueles antigos né, o alguns, ah sim, faroeste, mexicanos, a gente assistia mais por causa das músicas, as músicas bonitas, das músicas mexicanas porque a música popular é desses países que falam espanhol, a música fica muito muito bonita, parece que a própria língua ajuda a música né e agente ai assistir, apreciar por causa da música... o mexicano cantava naquela rodada com aquele sombreio, mas muito bonito, muito bonito mesmo, a gente nem ia muito nem por causa do enredo né, mas por causa da música.7

Segundo Pedro Veriano, o cinema mexicano foi muito popular no norte brasileiro, pois os filmes mexicanos ganharam espaço nos cinemas do norte com os seus “filmes boleros”, os melodramas mexicanos viraram moda e enchiam as 6. Idem. 7. Idem.

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bilheterias, a pesar da crítica se referir como “subcinema”. O que reforça a concepção de cultura de massa, independente da opinião da crítica, o de um padrão artístico ou não, a preocupação predominante era atingir a massa e consequentemente fortalecendo a indústria cultural. Vemos que por parte dos empresários do ramo o interesse era o financeiro tanto que o cinema perdurou até enquanto representava uma fonte de renda, logo, tudo nos leva a crer que o fechamento do cine Olímpia não ocorreu em virtude do declínio da produção cinematográfica em termos de quantidade e de investimentos tecnológicos e financeiros, (pelo contrário, essa indústria cresce cada vez mais), mas sim principalmente porque a televisão, que até então era artigo de luxo, quando entrou na fase de popularização, ocupou um lugar importante na casa das pessoas, pois era uma forma de entretenimento, e no decorrer das décadas a competitividade com as locadoras de filmes, acabou por privar muitos dos telespectadores os quais passaram a preferir ficar em casa. O cinema já foi caindo de produção né já tinha filme assim o pessoal já alugava, nos grandes centros... aí foi chegando o progresso né , foi chegando TV a gente assistia na tv e depois veio o DVD... aí o cinema caiu porque a pessoa compra um filme e vê em casa com a família toda e tal... então quando tava fracassando tinha é vamos dizer assim sessões pra as mulheres... de graça pra as mulheres...ééé aquilo também varia, você com o seu namora, só ele pagava você não, o marido com a esposa, só o marido pagava ela não, que dizer, era um jeito também de atração.8

Dessa forma, isso não deixa de representar mais opções ao telespectador, pois é mais conveniente assistir um filme da sua própria escolha ou preferência na hora que quiser. O cinema já se tornara uma coisa defasada, ultrapassada e a televisão e o vídeo cassete passaram a representar o progresso, como podemos notar no relato acima, contribuindo assim para sua fase de decadência da sala de cinema.

8. Informante 01.

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Considerações finais O cinema tem a seu dispor infinitas possibilidades de produzir significados, seja através da imagem, da linguagem, da música, ou pelo conjunto completo da obra. Isso dentro de uma visão em que o cinema é considerado arte, que possui o poder de transportar o telespectador ao mundo da imaginação criada a partir da sua própria realidade, pois ela não se resume em uma tentativa de “captar o ‘real’ como acontece, mas de inventar uma realidade a partir da escolha da forma de filmar e da seleção dos planos a serem utilizados na montagem do filme, criando a ilusão da realidade que é própria do cinema” (DUARTE, 2009, p. 24). No entanto, seu poder pode ir além quando considerado como indústria cultural, uma vez que o cinema também é uma forma de entretenimento popular e meio de comunicação de massa possuindo o poder de influenciar, “educar”, doutrinar e de criar ideologias. É claro que hábito de apreciar e de ir ao cinema está ligado tanto à origem familiar quanto a origem social. No contexto em que a sétima arte chega a Bragança, podemos perceber que cidade não possuía necessariamente uma estrutura para receber a dita ‘modernidade, pois a parte urbana era minúscula, resumindo-se apenas onde, é hoje, o centro histórico da cidade. As projeções cinematográficas naturalmente influenciaram em hábitos os quais foram incorporados no cotidiano de quem vivia na cidade e até mesmo de quem morava no interior e vinha para a cidade a procura de diversão. A partir daí, como podemos perceber os filmes, os cenários, as histórias de amor, os épicas, as comédias, os heróis, enfim, os personagens Hollywoodianos, brasileiros, entre outros se inseriram também no imaginário local com todo o seu poder encantador e consequentemente contribuiu para a formação ideológica desses sujeitos frequentadores das salas de cinema da cidade. Logo, é notório o quanto a força do capitalismo industrial, através do fenômeno da globalização alcançou os países colonizados inserido práticas culturais que surgiram a princípio na Europa e depois foram se adaptando, de uma certa forma, em outros locais. De fato, para os empresários locais o cinema represen-

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A sétima arte aporta na Pérola do Caeté: Cine Olímpia... Registros de uma história cultural

tava uma fonte de renda e, independente dos anseios de modernidade ou não, foi com esse objetivo que ele permaneceu por algumas décadas nesta cidade. Para o espectador, era uma forma de lazer, distração, e que ia muito além de uma interação social. Vale ressaltar que o intuito da pesquisa não é inserir esses saberes em uma ordem do conhecimento científico e sim reconhecer esses sujeitos e a contribuição desses saberes na sociedade a qual fazem parte. É importante enfatizar também que aqui não se tema pretensão de mostrar uma versão única e legítima da história do cinema em Bragança, pode-se dizer que é apenas um rascunho dela que vem a contribuir para a sua história seja em um aspecto global ou local, e que pode ser complementada, questionada, re/significada e re/construída.

Referências ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. A Indústria Cultural: O Esclarecimento Como Mistificação das Massas. In: Dialética do esclarecimento: fragmentos filosóficos. trad Guido de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, p. 57-79. BOSI, Alfredo. “Cultura brasileira, culturas brasileiras”. In: Dialética da colonização. São Paulo: Cia. Das Letras, 1992. BURKE, Peter. Culturas populares e cultura de elite. Diálogos, UEM, 01: 01 - 10, 1997. DUARTE, Rosália. Cinema &Educação. 3ª ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009. PEREIRA, Benedito Cezar. Sinopse da História de Bragança. Belém: Imprensa Oficial, 1963. FÉRRIZ & FREIRE. Adriana, Ermaela. Indústria cultural e cultura de massa: simetria ou assimetria, ideologia ou cultura?. Disponibilidade em: <www.inicepg.univap.br/cd/INIC_2009>. Acesso em: 22 de Abril. 2013. JÚNIOR, José A. O conceito de Socialização em George Simmel. Disponibilidade em: <www. nucleohumanidades.ufma.br/pastas/>. Acesso em: 20 de Abril. 2013. ORTIZ, Renato. Cultura e Sociedade. In: A moderna tradição brasileira. São Paulo, Brasiliense, 1988. VERIANO, Pedro. Olympia- imagens de épocas. In: Cinema Olympia: cem anos de história social de Belém. Org. Pedro Veriano e Maria Luzia M. Álvares. Belém: Gepem, 2012, p. 27-44.

Fontes orais Informante 01: Santana Guimarães Informante 02: Assis Barbosa

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ORALIDADE, IMAGINÁRIO E MEMÓRIA EM QUARTO DE HORA DE MARIA LÚCIA MEDEIROS Aline de Fátima da Silva LUCENA (PPGLS-UFPA)

Introdução No presente trabalho, temos como meta estudar aspectos do discurso literário de Maria Lúcia Medeiros, a partir dos recortes da obra Quarto de Hora, visando problematizar as representações da memória no discurso literário. Buscase refletir sobre o funcionamento de interdiscursos, focalizando o apagamento e a recorrência de elementos da memória discursiva na obra em análise. A obra em estudo possui um discurso pautado pela memória e imaginação, aproximando-se dos aspectos mnemônicos (lembrança, rememoração, esquecimento). Em Quarto de Hora o caráter memorialístico do relato vai sendo desnudado aos poucos, nas linhas/entrelinhas do discurso narrativo. Uma memória coletiva que se constrói pelos destroços, pelos fragmentos das lembranças individuais de uma narradora-personagem. Através de memórias literárias, como exercício de linguagem, ficcionalizase histórias de vida, imaginárias e eventos, inventando memórias de si/outro, de identidades e de sociedades, tornando tênue o distanciamento entre o eu/nós ficcional e o eu/nós referencial. A memória, ativadora do imaginário, é fixação de imagens em espaços de estabilidade do Ser. O espaço, então, torna-se convite à profundidade e ao devaneio, por ser a categoria da narrativa favorecedora do imaginário. Deste modo, a literatura apresenta-se como um âmbito de possibilidades discursivas, um complexo plurissignificativo. Um processo criativo que supera de forma imanente a condição de objeto fechado em si mesmo, abrindo possibilidade de intercambio e interação entre o real, o fictício e o imaginário. Assim, a obra literária recria o mundo num jogo dialético entre o Eu e os Outros, num jogo de inter-comunicação entre discursos.

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Oralidade, imaginário e memória em “Quarto de hora”, de Maria Lúcia Medeiros

Memória e oralidade em Quarto de Hora Nesse espaço a memória inscreve, pela ausência, história e personagem, a passagem nossa, nossa ida e nossa volta, trajeto e rota que vai do lugar de sombra deste quarto à esfera azulada e mítica de onde deito olhar de dor para narrar-te. (Quarto de Hora, p.57)

Das múltiplas possibilidades de pensar memória e literatura, destacamos as relações entre lembrar e narrar. Em Quarto de Hora, a oralidade é encenada pelo viés memorialístico presente em sua textualidade. Entre o esquecer e o lembrar a narradora-personagem recria a imagem da “lenda da cidade branca”, ao rememorar a história narrada por sua mãe, que por sua vez ouviu de seu pai. Aproximando-se das narrativas orais própria dos contadores de história, a personagem tece outras histórias que são incorporadas a narrativa principal repassada por uma cadeia ancestral. Quarto de Hora preserva em sua textualidade resquícios de oralidade, proveniente da tradição oral. Tal fenômeno proporciona a ilusão do relato oral no corpo de sua escritura e a vibração da voz. Paul ZUMTHOR (1993, p.18) denomina oralidade secundária, própria dos textos que, embora escritos, conservam acentuadas e profundas marcas orais, como neste fragmento: Vigilante, minha mãe percebeu que alguma coisa começava a abreviar-se, que eu iniciava por descobrir naquela história as fibras do infortúnio. Assim, na hora em que ela narrava a batida dos corpos na água, eu insistia com ela para me fazer confidências, para dizer-me de onde vinham os soluços, para onde iam os gemidos. [...] A despeito da convicção contida nas palavras dela, imaginava eu que nem todos retornassem para suas casas [...] (Quarto de Hora, p. 14).

A memória, sob esse prisma, é uma fruição da imagem. Fruição que é ampliada pela reflexão e leva a imagem ao acontecimento do passado como uma recordação. A matéria da recordação, como propriedade exclusiva do homem, é algo que deriva e implica a inteligência visto que auxilia o reconhecimento de algo já passado, em tempo pretérito. Assim, a memória literária não passa

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apenas pela autoria, por aquele que lembra, mas pelo narrador, enquanto entidade fictícia, que traz para a urdidura textual uma somatória de experiências de linguagem. No que concerne à imagem poética Gaston Bacherlad (1996) diz que: ... A imagem poética nova – uma simples imagem torna-se assim, simplesmente, uma origem absoluta, uma origem de consciência. Nas horas de grandes achados, uma viagem poética pode ser o germe de um mundo, o germe de um universo imaginado diante do devaneio de um poeta. A consciência de maravilhamento diante desse mundo criado pelo poeta abre-se com toda ingenuidade [...] A imagem poética é uma imagem psíquica. (p. 1).

Maria Lúcia Medeiros, em seu ensaio “O lugar da ficção” fala a todo momento da importância dos caminhos apontados pela memória para a construção do seu universo ficcional. Universo tecido pela memória que emana da experiência, e potencializado pela sua imaginação criadora. Uma vida lembrada, guardada para vir a ser fonte de inspiração para o fazer literário, a criação poética. “Acho que a realidade e a ficção deslizam no fio da navalha” (MEDEIROS, 1998)1 Ah, a matéria da criação...! Ah, os esconderijos da memória! Curvas, paralelas, quebradas, linhas, linhas, linhas, a linha imaginária do poeta por onde o verso se faz e se desfaz. Que lugar é esse, estímulo que dispara em direção à memória, fonte secreta e cumulativa, viva ou adormecida de onde se levantam os fantasmas e vagueiam, assustadores ou não necessariamente, edificando aqui e ali universos recortados, projeções de EUS, de ELES, de NÓS, cidades inteiras tecidas pela imaginação criadora, MACONDOS inesquecíveis, habitadas, vivas, saídas do precioso lugar da ficção. (MEDEIROS, 2004)2

Sua relação com o leitor é mediada por uma linguagem que encarna o objetivo de aproximar-se do universo infantil por meio da transgressão da memória efetivada pelos jogos imaginários. Muitas vezes as memórias são atravessadas por sonhos que confundem o mundo passado. No processo de rememoração, 1. Em entrevista à revista ‘Troppo’, do Jornal O Liberal (1998). 2. In: O lugar da ficção. Belém: SECULT, 2004, p. 8.

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Oralidade, imaginário e memória em “Quarto de hora”, de Maria Lúcia Medeiros

entrecruzam-se lembranças e esquecimentos, misturam-se temporalidades diversas, sobrepõem-se o real e o imaginário, interpenetram-se espaços, fundemse fantasmagorias e concretude. Mas sempre num jogo de luzes e sombras projetadas sobre fragmentos do vivido. Vejamos essa passagem: Não me lembro ao certo por quanto tempo foi feita a travessia, mas ao romper cautelosa a manhã, sem mais Lua, com romaria transportada a outras plagas, minha mãe apressou nossa marcha, nós que retornávamos da região dos mortos, daquele campo desnudo com seiva e húmus a escorrer pelos cabelos. Levada para dentro da casa, minha mãe agasalhou-me e dormi profundamente por um longo tempo. (Quarto de Hora, p. 16).

A missão do poeta consiste em atrair essa força poética que se encontra no imaginário para convertê-la em descarga de imagens. É, pois, pela imaginação que o homem consegue dar forma às coisas mais tênues e encontrar seu ponto de equilíbrio enquanto ser no mundo. Compreende-se, por essa via, que o processo imagético e onírico é perene no ser humano e a imaginação faz parte do processo criador. Poesia e imaginação são dotadas de uma magia encantatória que desperta no homem a cosmologia da imagem, ao transformar as palavras em símbolos que transmitem sonhos e memórias partilhadas. No segmento abaixo temos uma bela paisagem poética: Ao alcançarmos o que parecia ser um patamar, agarrei-me ao corpo de minha mãe chorando. É que vislumbramos estendida à nossa frente a mais infinita ponte que eu jamais vira. Então, ainda em silêncio, minha mãe aninhou-me e, comigo em seus braços, iniciou a travessia em meio à escuridão e ao vento. Cessado o medo, fui tomada por tão intensa sensação de quietude ao perceber que não havia sinal de tropeço nem vacilo em sua caminhada. Fechei os olhos porque acreditei que minha mãe possuía asas e que, se perigo houvesse, ela e eu nos distanciávamos dele cada vez mais. (Quarto de Hora, p. 18).

Paul Ricoeur em A memória, a história, o esquecimento cita Santo Agostinho nos postulados acerca da memória: De um lado, as lembranças distribuem-se e se organizam em níveis de sentido, em arquipélagos, eventualmente separados por abismos, de outro, a memória con-

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tinua sendo a capacidade de percorrer, de remontar no tempo, sem que nada, em princípio, proíba prosseguir esse movimento sem solução de continuidade. É principalmente na narrativa que se articulam as lembranças no plural e a memória no singular, a diferenciação e a continuidade. Assim retrocedo junto à minha infância, com o sentimento de que as coisas se passaram numa outra época. (2007, p. 108)

A palavra que se funda no real se forma como um todo significante que muda constantemente e não apenas de acordo com a singularidade do sujeito que pensa e fala, mas também a cada novo contexto histórico-social e cultural, a cada mudança de conceito, imagem de conceito, porque assim o forjamos. E algumas palavras surgidas como manifestações da memória são como fotografias, ainda que reveladas ou aparentemente desbotadas, apagadas, continuam guardando dentro de si um mistério, e esse mistério de quem as vê desvela o oculto do olhar, desvelando de uma janela para a alma a fresta ou um vasto para o re-encantamento do mundo. A criação literária para a escritora é sua matéria feita de vieses de lembranças, de fragmentos de memórias, de memórias inventadas, de memórias feitas de esquecimento. É preciso esquecer às vezes para relembrar no texto criado “todas as vidas que outrora tive”, diria o poeta Fernando Pessoa. O reencontro dessas lembranças parece alimentar a ficção de Maria Lúcia, imagens que os olhos contemplam e que a memória guarda; a matéria da qual se formam as imagens gera uma prosa poética cheia de mistérios, devaneios.

O imaginário simbólico A escrita memorialista é uma escrita que passeia entre os fatos e os devaneios, entre as imagens da imaginação e da memória, entre os tempos pretéritos e o desejo do tempo futuro. O texto de Maria Lúcia Medeiros é marcado pelo imaginário mítico amazônico. Esses elementos são simbolizados na obra por vultos, cavalo de fogo, velha roufenha (arquétipo da bruxa), rituais, mistério e imagens oníricas. Um cenário produzido num espaço simbólico que tem como pano de fundo a Amazônia, o rio, a floresta, a terra, a lenda e o encanto da noite. 311


Oralidade, imaginário e memória em “Quarto de hora”, de Maria Lúcia Medeiros

De acordo com Medeiros: [...] Talvez a Amazônia impulsione esse olhar universal do escritor. Vejo nesta região um emaranhado de símbolos, a começar pela simbologia própria da “floresta” de todos nós, latino-americanos ou europeus, resultado de sonho de sair de si mesmo à procura do “outro” que somos nós ainda, numa expressão dialética do próprio ser. (MEDEIROS, 1994, p. 198).

Em Quarto de Hora, a escritora reproduz uma lenda disseminada pela cultura oral. “A lenda da cidade toda branca” transmitida em uma dada comunidade isolada, fonte da tradição, partilhada pelos moradores daquele lugar. “De tudo somente sei que se passou há muito tempo, numa cidade toda branca à beira de um rio não tão largo mas de verdade tão profundo e de águas muito escuras”. (Quarto de Hora, p. 11). Ao invocar a imagem do rio, a narradora-personagem funde espaço, tempo, personagem e mito, instaurando uma narração que cria seu próprio mundo, absorvendo os significados mais ocultos. O rio torna-se uma constante em sua obra, sendo citado em várias passagens de Quarto de Hora. O rio e a floresta são ambientes reveladores ao devaneio amazônico. O imaginário simbólico da vida amazônica como componente social é permeado por fenômenos naturais e sobrenaturais. Seres mitológicos que povoam florestas e rios da imensa diversidade amazônica são cenários vivos da relação homem e natureza. A crença em mitos, assim como as influências deles na vida ribeirinha cotidiana, possibilitam a visualização de um equilíbrio antropológico sendo exercitado constantemente no contexto amazônico. Paes Loureiro fala sobre o poder encantatório do rio: Prestigiador da realidade, ele transfigura, hipnotiza, solapa, restaura, faz aparecer e reaparecerem ilhas, escode embarcações encantadas nas manga de sua casaca de ondas, devora cidades, alimenta populações, guarda em suas profundezas ricas encantarias habitadas pelos botos, uiaras, anhangas, boiúnas, cobras-norato . (LOUREIRO, 2000, p. 118).

No fragmento abaixo, as imagens-lembranças rememoradas pela narradora-personagem transfiguram uma atmosfera mítica. As imagens construídas

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representam os impulsos do sujeito e as pressões do meio que, considerando as singularidades do espaço amazônico, formam um imaginário específico, um imaginário amazônico, fruto do sujeito que vive em singularidades históricas, geográficas e naturais amazônicas e com estas singularidades estabelece uma relação criadora pulsante para equilibrar dialeticamente sua existência. Pela primeira vez, naquele dia, pensei em minha mãe e a imagem dela não chegou sozinha. Veio ela e veio o rio, veio o fio da história, explícito luar a tudo envolver, fio retomado e devidamente seguido, os corpos voltando a banhar-se e o desfecho avermelhando as águas. (Quarto de Hora, p. 23).

Encontrar-se com a natureza, no espaço amazônico, é transitar entre seres imaginários, crenças. É Deixar-se adentrar em uma quimera, criando um mundo encantado, seja para preencher um vazio existencial ou para explicar fenômenos naturais. Assim como nos dizeres de Paes Loureiro. “Na Amazônia, inventamos nossos mitos encharcados de poesia para podermos viver na desmedida solidão de rios e florestas” (LOUREIRO, 2001, p. 285). O espaço é caracterizado principalmente por imagens, contando com a representação de lugares específicos e simbólicos. Nestes cenários, numa relação por vezes muito estreita com a personagem, cada imagem suscita a própria subjetividade do homem. Imerso nesses lugares, o lirismo narrativo propõe uma reflexão acerca da condição humana. A narrativa poética surge, portanto, oferecendo possibilidades de questionamento, numa busca incessante e eterna. Como se vê no seguinte trecho: No quarto dia, precipitou-se em correntes a tempestade e minha mãe valeu-se dela para fazer-me a narrativa das águas e das lágrimas [...] De olhos secos minha mãe provocava em mim meu sangradouro, apontando para o campo encharcado, repassando devagar legendas de mágoa em espaço que sabia semovente, transitório [..] (Quarto de Hora, p. 17).

O imaginário desenvolve-se, atualmente, em torno de sua relação com a antropologia, a literatura, a memória, etc. No caso da literatura, o imaginário compartilha com o gênero (poético) movido pela imaginação criadora que ma-

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Oralidade, imaginário e memória em “Quarto de hora”, de Maria Lúcia Medeiros

terializa nas imagens literárias – uma realidade íntima para um além-psicológico. É o que se comprova nesta passagem de Quarto de Hora: À medida que concentrei lembranças e soltei a imaginação, foi como se eu tivesse tomado assento em cavalo de fogo e dar coices, [...] a dar meia volta e sacudir enlouquecido a crina para que me corpo fraquejasse, para que eu não tivesse mãos tão fortes para a sustentação. [...] (Quarto de Hora, p. 24).

Sobre a lógica do imaginário, Gilbert Durand (1997) explica que ela é composta por um conjunto de relações imagéticas que atuam como memória afetivo-social de uma cultura. Pode ser entendida também, como um substrato ideológico mantido por uma comunidade. É por meio dessa lógica que se podem atingir as aspirações, os medos e as esperanças de um povo. Essa esfera da mente humana chamada de imaginário existe na vida real, sendo constantemente ativada, seja pelas experiências, pela consciência, ou pela própria psique individual ou coletiva de uma sociedade. O que favorece as múltiplas formas de manifestações humanas. O universo simbólico em Medeiros percorre as trilhas do imaginário do eu-poético imerso em uma atmosfera de devaneio. Assim, tem-se que o poeta – revestido de alma-poética – tece no seu imaginário o mundo percebido e vivido, essencialmente no nível do inconsciente. A memória, a imaginação, via oralidade, revelam-se, em Quarto de Hora, como canais que buscam manter a tradição e ajudam a entender o fenômeno que ocorre na consciência humana. Vejamos o seguinte fragmento: [...] Tochas acesas, a cidade enchia-se de sombras e iam todos lavar os corpos no rio, água tépida àquela hora da noite. Essa parte da história eu sorvia com tal prazer que minha mãe adivinhava-me e aninhando-me em seu regaço adocicava de tal modo a voz e repetia sem cansaço, o rumor das águas, os corpos emergindo e submergindo, os cabelos que eu imaginava crinas, secando ao vento da noite. [...] eu, exausta de tanto sonhar, adormecia embalada pelos ruídos dos corpos nus batendo nas águas do rio. (Quarto de Hora, p. 13).

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Nota-se nesta passagem, que o espaço noturno, caracteriza o mistério, o delírio. As imagens enlaçam realidade e sonho, numa linha tênue transfigurada pela memória de uma narradora-personagem, incendiada pela imaginação criadora de um Eu-poético cúmplice dessa paisagem enigmática. Munido de imaginação criadora, o poeta, por meio de sua apreensão, e dotado de um corpo sensível, cria outros mundos, outros “eu”. A partir de sua percepção, apreende essa criação, e se identifica com as imagens por ela suscitadas, dando continuidade a esse processo criativo. Segundo Gaston BACHELARD (1996, p. 5-6), é pela imaginação que se dá força às imagens poéticas, porque na fenomenologia do devaneio poético, qualquer imagem é capaz de revelar o mundo. A poesia é o fio condutor das imagens e da imaginação, e representa a tomada de consciência dos fenômenos que ocorrem na alma do sonhador. O imaginário simbólico amazônico intercruza natureza e cultura, tendo como síntese o homem. Por meio dessa relação é possível estabelecer significados, transitar entre ficção e realidade, transformar narrativas em poesia. A natureza inspira o homem na sua empreitada antropológica, este por sua vez, encena a realidade, embalado pelas águas do rio, invoca o Narciso, o boto, a cobra-grande, é a mitopoética amazônica, o local e o universal imbricados, traduzindo saberes, crenças, como representação simbólica da cultura. A obra Quarto de Hora como mitopoética do espaço amazônico paraense, aproxima-se das narrativas orais, sendo estas míticas, são porta-vozes da tradição, e a tradição é fator da memória, e a memória por sua vez engendra imagens. O espaço, então, torna-se convite à profundidade e ao devaneio favorecendo a criação de mitos e lendas. A prática mitopoéica em Medeiros ressignifica a realidade por meio do imaginário simbólico, verificando no espaço amazônico a presentificação da tradição poética.

Interdiscurso e memória Entender o literário como impregnado constitutivamente pelo interdiscurso, na medida em que o eixo motriz de uma memória discursiva interliga a inte315


Oralidade, imaginário e memória em “Quarto de hora”, de Maria Lúcia Medeiros

rioridade com a exterioridade, refrata e costura os lugares do eu e do Outro. A interdiscursividade relaciona-se diretamente com aquilo além do que é dito no discurso e que os sujeitos já compartilham através de um mecanismo conhecido como memória discursiva. Na memória discursiva, não há apenas aquilo que os sujeitos já viveram e, sim, a existência de ideias já concebidas. Interessa-nos observar o que diz Orlandi (2003, p. 31) acerca da memória, quando pensada em relação ao discurso. Nessa perspectiva, segundo a autora, a memória é tratada como interdiscurso, e este é definido como Aquilo que fala antes, em outro lugar, independentemente. Ou seja, é o que chamamos memória discursiva: o saber discursivo que torna possível todo dizer e que retorna sob a forma do pré-construído, o já dito que está na base do dizível, sustentando cada tomada da palavra. O interdiscurso disponibiliza dizeres que afetam o modo como o sujeito significa em uma situação discursiva dada.

Assim sendo, a obra literária configura-se sempre transportando percursos interdiscursivos, que podem ser entendidos como um processo através do qual temas e/ou figuras de um discurso se incorporam em Outro. Esta interdiscursividade é composta dos processos que acarretam a busca na nossa memória discursiva. As memórias, em Quarto de Hora, se constroem amparadas, não apenas pelos fatos ou pelo o supostamente vivido, mas por aquilo que se atribuem sentidos, ou seja, por aquilo que se escolhe ficcionalizar, lembrar e esquecer. Esse discernimento se realiza no discurso, o qual se constitui por lembranças e esquecimentos, que ele organiza, uma vez que a memória é seletiva e organizativa, resultando de processos de negociação. No discurso e por meio dele, indubitavelmente, partilham-se recordações e, simultaneamente, constroem-se memórias para si e para o outro. Nesse dinamismo, podemos inferir que as memórias, como lembranças, advindas do ato de esquecer e de lembrar, se configuram como práticas discursivas de si e/ ou do outro, desenhando-se como elementos de identidade individual e coletiva.

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Considerações finais Neste trabalho, analisou-se a obra Quarto de Hora como um espaço de feitura de memórias. Evidenciando as memórias literárias, como práticas discursivas. Neste sentido, a arte da palavra reinventa o vivido e o presentifica não como ocorreram, mas como o narrador/voz poética recordam e desenham o presente e o porvir permeados de lembranças, banindo aquilo que não se deseja que faça parte de memórias individuais e coletivas. No que tange à obra em suas duas facetas (memorialística e ficcional) Quarto de Hora é permeado pelos interdiscursos, pelas condições de produção e pelas formações discursivas que se constituem na imanência da memória. Dos pedaços de memória que vão ficando ou se perdendo: palavras. Esses fragmentos e os próprios sujeitos vão se constituindo, nas práticas sociais, na teia do discurso. Através do discurso memorialístico da obra, identificou-se outros elementos presentes na tessitura literária, como o imaginário, a oralidade que interligados constroem um universo poético demarcado pela imaginação simbólica. O espaço da narrativa configura-se como mítico-poetizante que desnuda-se em imagens cósmicas sintetizado pela representação do universo sociocultural amazônico. Em Quarto de Hora o imaginário medeia a relação entre o real e o ficcional caracterizando a narrativa pela ligação com o mítico, típico das sociedades que possuem o imaginário como fator estético-poetizante como constituição identitária de sua cultura. Assim, indagar sobre as representações da cidade branca na escritura de Quarto de Hora é, basicamente, reconstruir a lenda que transita pelos buracos da memória e se transforma em imagens, voz e palavra poética; num discurso em que se cruzam o imaginário, a história, a memória da cidade e a cidade da memória.

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TRILHOS DA MEMÓRIA: ANÁLISE DOS CONTOS “CRÔNICAS DE MINHA PASSAGEM” E “CASA QUE JÁ FOSTE MINHA”, DE MARIA LÚCIA MEDEIROS Euciany Nascimento Costa (UFPA) Mayra Patrícia Corrêa Tavares (UFPA)

Introdução “Uma lavra poética densa e (in) tensa”. É assim que Amarílis Tupiassú (2005, p.01) classifica a obra da grande escritora bragantina, Maria Lúcia Medeiros, em especial referindo-se ao livro de contos Céu Caótico (2005), o qual é composto de onze contos, nos quais a autora deixa-se eternizar em cada enredo. Contos apaixonantes, intrigantes, fascinantes, sugestivos, que revelam confissões, anseios, angústias, entreditos. Assim é o Céu Caótico de Maria Lúcia Medeiros. Bom seria, se pudéssemos tratar cada uma dessas relíquias sagradas de modo particular, de modo a desvendar o fantástico universo poético da escritora. Entretanto, como a ocasião não nos permite tamanha façanha, contentar-nosemos em destrinchar as fissuras de apenas dois destes contos, a saber, “Crônicas de minha passagem” e “Casa que já foste minha”, respectivamente. São contos aparentemente simples, contudo, um estudo mais aprofundado nos faz entender que estes são extremamente exigentes em sua leitura e, mais ainda em sua compreensão, uma vez que nos levam a percorrer os vários caminhos da recordação, isto é, da memória, e isso requer cuidados para não nos enredarmos por caminhos equivocados de interpretação, como nos adverte Tupiassú, quando diz que o entrecruzamento de sentidos que subjazem aos explícitos conclama o leitor a retardar o ritmo da leitura e refrear o fluxo das frases para dar lugar à significação. É neste sentido, de estudar a memória, a passagem, que pretendemos discorrer sobre esses dois contos, buscando compreender o desvelar da memória presente na narrativa.

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Trilhos da memória: análise dos contos “Crônicas de minha passagem” e “Casa que já foste minha”, de Maria Lúcia Medeiros

Leitura do conto “Crônicas de minha passagem” Tratando-se, aparentemente, de um texto simples, a julgar pelo seu formato curto e sua linguagem singela, o conto “Crônicas de minha passagem”, contido na obra Céu Caótico, como o próprio título nos sugere, trata-se de um conto pequeno, o qual traz uma narrativa histórica da vida da autora. Esta relação histórica estende-se por todo o conto, haja vista que, a partir de um tempo presente, há um retrocesso à época da infância da autora vivida em outro lugar, isto é, seu lugar de origem: a Amazônia. Destaca-se neste conto uma espécie de nostalgia, isto é, o desvelar de lembranças melancólicas, que causam na autora grande pesar, principalmente quando ela aborda a mudança do tempo, aspectos de sua infância e adolescência, isto é, quando ela recorda de todo o seu passado. Este passado, por sua vez, revela fatos felizes que se misturam com lembranças dolorosas, que causam angústia, pavor, mas que ainda assim ela o mantêm preso a si, às suas recordações, como um tesouro precioso, que deve ser guardado, protegido, eternizado, como se vê no trecho que se segue: Cenas felizes, infelizes, amargas, insuportavelmente doces, de medo e coração destemido, pavor e a um só sopro o avesso disso: o prazer sem medida quase uma eternidade só pra mim. Destrinçado, mantive o passado sob meu domínio e quase o tornei um ornamento, um fio de prata ao redor da imagem pantanosa. (MEDEIROS, 2005, p.25).

Podemos perceber neste trecho uma espécie de contradição constante, expressa por meio do jogo antitético, isto é, por meio do uso recorrente de antítese: feliz/infeliz, amargo/doce, medo/destemor, sopro/eternidade, isso reflete as incertezas e inconstâncias da vida. Revela ainda a passagem, ou seja, a brevidade da vida e das coisas, e que, no conto, perpassa a existência da narradora, mas que, no entanto, ficaram registradas em sua memória e que vão, a partir de então, ser narradas. Logo no início do conto, nos dois primeiros períodos, percebemos que a autora encontra-se em um instante de recordação e confissão. “Talvez seja acon320


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selhável não omitir nada. Nem mentir e eu ouço minha própria voz soprando no meu ouvido” (MEDEIROS, 2005, p. 25). Neste momento entra em jogo um aspecto primordial da memória: a sua seletividade, ou seja, o que se deve e o que não se deve contar, ou ainda, o que se quer, pode e vai ser contado e o que fica relegado à memória individual, confessional, particular. Entretanto, ao falar de memória, não se pode pensar em algo guardado na íntegra, ao contrário, em se tratando de memória, parece que quanto mais tempo ela fica aninhada, mais ela absorve elementos que a enriquecem, enquanto guardadas. Ou seja, os fatos vão adquirindo novas formas e, consequentemente, novos sentidos. Sabemos que não se podem recordar com precisão todos os momentos e experiências vividas, pois a memória expressa-se por meio de lapsos, de flashes, deixando também o espaço dos interditos: “[...] à memória não cabe guardar tudo, ela é e precisa ser seletiva” (MARTINS, 2011. p.167). Isto é, na memória fica o que significa, isto é, aquela que é de fato importante, são exatamente estes momentos mais significativos da vida da narradora personagem que são expressos no conto. A partir deste instante recordativo, a narradora começa a relembrar e a revelar um pouco do seu passado, quando diz: “surpreendo-me a me sentir tão distante deste lugar que eu percorria de trem e de todo um olhar derramado sobre o meu passado que, há de se convir, eu o mantive arrumado ao alcance da voz”. (MEDEIROS, 2005, p. 25). Ou seja, suas lembranças estavam latentes, guardadas em sua memória, e estava, segundo ela, arrumado, pronto para ser contado. Mas seria realmente possível manter o passado tão arrumado de modo a poder conta-lo com todos os detalhes e com perfeição, como afirma a narradora? E possível confiar plenamente na memória ou desconfiar um pouco do que nela fica? Martins (2011, p. 167), ao citar Freud, nos diz que “a memória não é confiável porque ela é contaminada pelo desejo e este é produto do inconsciente e o consciente procura, das mais diversas formas [...] inibir, camuflar os murmúrios desse desejo, em função, principalmente de mecanismos repressores impostos pelas ideologias, normas, valores, etc., de determinada época”. Esta afirmação pode ser relativamente comprovada no momento em que a autora diz: 321


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[...] foi só por volta dos onze anos que ficou mais detalhado o meu olhar sobre mim mesma. Como se eu tivesse a chance de subir num patamar impossível e de lá pudesse olhar sem um só ponto obscuro meu lugar e o lugar dos meus. Antes disso, só vaguezas de imagens, uma confusão de sons, vozes de adultos, o hino cantado à entrada das aulas, minha dificuldade com a tabuada, tanta claridade desperdiçada como se gaze translúcida cobrisse o ar levando embora a tarde. (MEDEIROS, 2005, p. 26).

Como poderiam estar arrumadas as suas lembranças se elas só aparecem de forma mais precisa depois dos onze anos? Ou seja, antes disso, elas aparecem de forma misturada, embaralhada. A lembrança não está fixada de maneira absolutamente precisa ao que ela se refere. Diante disso, o que seriam essas vaguezas de imagem? Uma incompletude da memória, uma metáfora que julga certa incerteza genuína quanto à aplicabilidade de expressões a certos objetos. Isto ocorre devido ao fato de a memória ser apenas um recorte daquilo que se passou, ou seja, são na verdade flashes de memória, fragmentos de instantes importantes que se eternizaram, ou seja, são os fragmentos dos momentos que foram selecionados pela memória no instante da recordação. Essa seletividade da memória fica expressa no conto quando a narradora diz: Quais as imagens que arrebanharei para que me acompanhem na jornada? Quem não poderei arrancar do coração e desaparecerá comigo? De onde buscarei palavras e quais versos me seguirão ditados pela memória? Qual tempo escolherá a memória, o tempo dos amantes? O da infância, indelével? O da solidão, a ocupar os segundos das horas mortas? (MEDEIROS, 2005, p. 26).

Tais perguntas vão sendo respondidas ao longo do conto, ou seja, no decorrer da leitura é possível perceber qual o tempo que foi ditado pela memória. Assim sendo, poderíamos dizer que, neste conto, o tempo escolhido, ditado pela memória, foi o tempo da infância. A partir de algumas imagens feitas da época de sua infância, a narradora nos permite imaginar como seria o espaço percorrido por ela. Ela refere-se a uma janela de trem, de onde ela apreciava a paisagem. Poderíamos entender esta janela do trem, como a passagem de uma vida, uma espécie de museu, memorial da infância da narradora. É como se ela fosse narrando a sua vida de 322


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infância percorrida de trem. Como se o trem parasse em uma pequena estação e uma criança entrasse nele e que daí para frente não fosse simplesmente um trem, mas que agora tornaria o trem da sua vida, das suas lembranças, dos seus sonhos, dos seus ditos, de suas recordações vivas, vividas e divididas com pessoas que estivessem no trem com a própria narradora, ou porque não dizer com pessoas que faziam parte da sua vida. Foram essas pessoas que talvez acabaram se tornando o trem da vida dessa criança, pois a medida que o trem parte as pessoas que a rodeiam também se vão ou simplesmente ficam para trás. As recordações também irão percorrer por pontes, por portes, pastos, o sopro do vento, o cheiro das flores, o jardim, as verdes garrafas chegando cheias de leite, assim, um filme de lembranças passa nesta janela chamada memória. Até porque não se trata de uma janela de um trem qualquer, é a própria vida que ela vai lembrando, recordando dessa janela memorialista. São várias as estações. Pessoas sobem, pessoas descem, isto é, algo já lhe adiantava que viriam várias etapas da vida, que algumas pessoas ficariam guardadas na memória, mas que outras iriam ser esquecidas. Por essa janela talvez avistaria os amigos, a escola, os parentes, um rememorar inefável, onde passava ponte, porte, pasto, mas as lembranças da infância não passavam, isto é, tudo deixava-se para trás, menos as recordações da infância. Seu olhar pela janela trazia a visão das brincadeiras na rua, no quintal, com os primos, assim como no cair da tarde via a felicidade de encontrar os primos, os amigos para brincar. Podemos perceber que todas as suas lembranças estão afloradas, no entanto, suas lembranças mais vivas, poderíamos assim dizer, remetem a época de sua infância, e dessa infância é marcante a lembrança de uma casa e sua senhora, isto é, a sua dona como podemos ver no excerto seguinte: Mais palpável vem a casa de frente para o rio e a dona dela, Senhora daquelas salas azuis, cruzando, como se voasse baixinho, espaços enormes, verificando, tomando providências, aparecendo e desaparecendo por trás do biombo da varanda, para que eu pensasse que ela fugia para molhar as plantas do jardim. (MEDEIROS, 2005.p.26)

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É nesta recordação que se solidifica o relato propriamente dito, as imagens da casa, da “Senhora” - esta que de tão venerada parece um ser mítico- do rio e de tantas outras coisas que vão, pouco a pouco sendo destrinchadas pela narradora, sendo reveladas, denunciando lembranças de uma infância feliz. Até porque, “o território percorrido por Maria Lúcia Medeiros é a infância” (BOGÉA, apud, Moraes, 2011, p. 83). A lembrança mais marcante desta fase da vida da narradora é, sem dúvida a figura desta senhora, forte, corajosa, generosa, dedicada à família, à vida, ao amor. Entretanto, deparamo-nos aqui com um dilema: em alguns trechos imaginamos essa senhora como uma pessoa, uma mulher, dona de casa, mãe de família e que, em função de alguns relatos da própria autora, como os que se seguem, poderia ser alguém de sua família: Como se não bastasse o conforto de estar presa a ela por laço de sangue e viver colada ao seu calcanhar, deixava-me voar e, agarrada às suas asas, essa Senhora do Tempo e dos Espaços, repartia comigo suas salas azuis e verdes, seu piano, o jardim, a amoreira, o violino, o cão Fly. (MEDEIROS, 2005, p.26).

Outras vezes, imaginamos ser essa “Senhora do Tempo e dos Espaços”, a própria Amazônia, que também abriga seus filhos, os ribeirinhos, os rios, a fauna, a flora, e como em toda família, os problemas, como a escritora Amarílis Tupiassú relata em seu texto “Amazônia, das travessias lusitanas à literatura de até agora”: “o rio e a floresta são organismos vivos — pontas, joelhos, cotovelos, braços, pernas, olhos, bocas, bocainas, gargantas de rios em grandíssimo porte” (TUPIASSÚ, 2005, p.300). E a Amazônia é isso, uma grande família de diversidades e riquezas. Um outro mundo com formas grandiosas e exuberantes, dotado de tons verdes e azuis, lugares obscuros, histórias fascinantes e uma riqueza que, aos olhos de muitos, é a única riqueza deste lugar. A figura dessa senhora e dessa casa são, portanto, as lembranças que permanecem mais vivas na memória da narradora, uma lembrança nostálgica que permite descrever os atributos e o carinho que lá habitavam.

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À mesa, rodeada dos filhos adultos, exercia seu doce mando e eu, beneficiada, acarinhada, coberta por manto tão especial, sem a mais leve suspeita de que ela seria permanência na minha vida. O jardim, o poço, a loja de tecidos, o terço, as verdesgarrafas chegando dos campos com leite mugido, recados do vaqueiro, o ir e vir da Senhora amenizando a dor dos desvalidos, a espargir sobre minha fronte brandura e fortaleza, exemplos que ficariam para sempre. (MEDEIROS, 2005, P. 26).

Cada um desses personagens e objetos representa uma experiência vivida, uma aventura afetiva da narradora. Lembranças de pessoas amigas e entes queridos que persistem na memória, independentemente do tempo ou do espaço. A ordem desse espaço nos une e nos separa da sociedade e é um elo familiar com o passado, passado este que não pode ser rompido. Poderia ser transformado, mas jamais esquecido. A narradora encontra fatos significativos no rememorar de sua infância, isto é, as lembranças “mais palpáveis”, mais vivas do seu consciente fornecem detalhes do seu habitat e do cotidiano vivenciado pela mesma, quando ficou mais detalhado o seu olhar sobre si mesma. Lembranças essas que nos permite imaginar a transparência da infância da narradora como uma criança, ora de infância brincalhona ora como uma criança de responsabilidades domésticas. Essas características revelam como era o seu modo de vida, simples, feliz, com direitos e deveres; as vezes rodeada de visitas, que aparecem sempre quando o avermelhar das nuvens aparecem, isto é, com o cair da noite. “As visitas chegavam para que eu pudesse acompanhar o borbulhar das palavras, todas trançadas em fio de encantamento a se desenrolar diante dos meus olhos, o novelo escorregando para o chão de tábuas brilhosas da bonita casa dela (...)” (MEDEIROS, 2005, p. 26). Vemos então uma certa “infância amadurecida”, acompanhada de experientes visitas, pois estas que fazem ganhar experiências como “menina moça” por meio do borbulhar das palavras. Por ser um conto pautado na memória, certos recortes, vestígios da memória podem ser percebidos durante todo o conto, pois em certos momentos nos deparamos com algum retrocesso ou algum avanço na narrativa. O conto iniciase com a intenção da autora de contar algo, “talvez seja aconselhável...”, e em seguida, há uma volta ao passado, “Por falar em sopro, como são recorrentes...”. 325


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Mais à frente há outro salto na narrativa e ela parece nos levar para um tempo mais adiante, “Um dia - quem dera fosse um domingo – recuperei a fala tão grande fora o susto e nunca mais foi possível fazer de conta de que tinha estado ausente tanto tempo”. (MEDEIROS, 2005). Dessa forma, percebemos os vários lances e artimanhas que a memória possui, pois como afirma Martins, as lembranças brincam na mente de quem a busca, e acabam por embrenhar-se umas nas outras fazendo uma imbricação com o tempo e o espaço, dessa forma a maneira como se conta ou se recorda algo é um exercício-jogo de juntar acontecimentos que se passaram a tempos distantes, mas que, no entanto, pode ser colocadas no mesmo tempo, o passado e o presente, o sonho e a realidade. A narrativa faz uma espécie de percurso nas vastas zonas da memória da narradora, desvendando lembranças que vão desde cenas felizes e infelizes e encerra-se com a recordação de uma constatação dolorosa “A angústia do que era impalpável - e eu não sabia - se aproximava. Se aproximava e eu não sabia.” (MEDEIROS, 2005, p. 26). Talvez pudéssemos pensar nessa angústia como uma lembrança dolorosa de um tempo bom, contudo passageiro, ou seja, é como se ela sentisse que se aproximava o momento de se desapegar, de se desprender daquela infância feliz, daquele lugar dos sonhos, da Pasárgada de sua vida. Noutras palavras, é como se ela pressentisse que estava chegando a hora em que sua vida mudaria por completo. Novos ambientes, novos costumes, novas pessoas, um novo jeito de ver e viver a vida, mas ainda com recordações infantis que o acompanharam a vida toda. Essa angústia poderia ser na verdade, o desespero pela constatação de tudo o que ela estava para abrir mão, para perder, não por sua opção, mas por imposição do destino implacável. É como se ela estivesse interiormente desiludida por algo que foi deixado na infância e que não volta mais, uma angústia que atravessa o peito, sabendo que jamais tornará a viver uma fase que foi extremamente importante, a infância. Poderíamos inferir ainda, que esta angústia decorre da confirmação de um fim iminente, como ela mesma define como algo impalpável. Isto pode referir-se tanto ao seu desligamento daquela vida e infância doce,

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ou seja, da sua partida de sua terra natal, como também ao seu próprio desligamento deste mundo, isto é, a sua própria morte. Deixar registrada sua história foi a forma que a narradora encontrou para manter-se viva e eternizada “Porque estarei viva, meu grito soará tão alto, que será confundido com sinais de chegada, um porto no meio do mar de onde se pode também partir.” (MEDEIROS, 2005, p. 25). Diante disso, percebemos a angústia desse ser que quer tornar-se eterno, que não quer ser apagado, esquecido. Há uma eterna busca pela vida, não no sentido da existência, posto que todos um dia partiremos, mas tenta se fugir da morte por esquecimento. Percebemos então a busca inconstante e desesperada por um meio de deixar-se viva, antes que chegue a hora do silêncio, em que nada mais poderá ser dito, pois aquilo que era impalpável se aproximava.

Leitura do conto “Casa que já foste minha” Neste conto encontraremos implícita e explicitamente os lamentos traduzíveis e intraduzíveis de alguém que se encontra em pleno momento de sofrimento, seja por estar vivenciando este momento ou por estar simplesmente recordando dele. Entramos novamente em contato com relatos confessionais, entretanto, aqui tais relatos são feitos, na maioria das vezes, em sua forma mais enigmática. Daí o uso recorrente e abundante dos interditos, implícitos e de simbologias. “Casa que já foste minha” concentra em si toda sorte de recursos expressivos que proporcionam uma densa profusão de sentidos, de significações a nós, leitores. Podemos dizer que de tal sorte se impõe o entrecruzamento de sentidos subjacentes aos explícitos, em tal ordem, os tons e timbres, ao compasso das derivações do texto, que a si mesmo conclama o leitor exigente a, todo tempo, retardar o ritmo da leitura e refrear o fluxo das frases para a remissão pausada às significações embutidas e também nos avessos do discurso. Ao primeiro olhar sobre este conto, percebemos que perpassa um rememorar de ideias, num retorno a uma casa. “Aproximo-me de ti casa que já foste minha, atravesso as paredes que ouviram lavrar minha sentença de morte por 327


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esquecimento” (MEDEIROS, 2005, p. 19). Perpassa ainda pelo conto uma ideia de despedida, de partida, um ser que em uma atitude de recordação faz uma espécie de retrospectiva de sua existência, percorrendo vários momentos de sua vida para depois afastar-se para sempre. Ao aproximar-se dessa casa, é como se viessem à tona todas as lembranças de um tempo em que se fez presente neste lar, coisas vividas, divididas, e ainda vivas. Neste momento, começa um percurso por esta casa, percurso este que vai desde a entrada, passa pelo corredor, chega até o quarto, vai à porta dos fundos até chegar ao lugar mais obscuro, mais esquecido da casa: o porão. Ou seja, faz-se a partir de então, um tour por todas as zonas da memória, por cada compartimento minúsculo deste universo do rememorar, com seus salões, com suas curvas, suas áreas de convívio e também as áreas ocultas, restritas, isto é, vai desde as lembranças compartilhadas até aquelas extremamente particulares. E o percurso vai se desenvolvendo a cada nova recordação, no contato com cada cômodo da casa. Esta casa, todavia, pode ser entendida de dois modos distintos: casa no sentido de residência e casa como uma metáfora da memória, neste sentido, a casa seria a caixa craniana deste sujeito poético. Seus cômodos, por sua vez, seriam as zonas, as salas, os diversos compartimentos da memória e este percurso se daria justamente por cada etapa da vida e as imagens evocadas neste percurso seriam as lembranças dos momentos vivenciados pela narradora. Assim, quando observamos o trecho: “Aproximo-me de ti, porta dos fundos da casa que já foste minha. E surpreendo minha sombra recurva, o pranto que joguei por terra” (MEDEIROS, 2005, p. 19), percebemos que estes dois universos se entrecruzam, se misturam, pois ao mesmo tempo em que visualizamos a cena da narradora à porta desta casa material, vemos também que este instante se transporta rapidamente para um outro instante, o instante de recordação, de dor, de pranto, de desespero e esta casa passa agora a ser entendida como a sua memória. Mais adiante, vemos que seu percurso vai aprofundando-se cada vez mais. Se antes ela encontrava-se à porta dos fundos da casa, isto é, em um espaço de circulação, do convívio das pessoas, agora ela se encontra no porão da casa, isto é, em um lugar sombrio, escuro, e de certa forma cabalístico, posto que o porão. 328


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Da mesma forma, se antes ela recordava fatos marcantes, agora ela recorda fatos mais que íntimos; confessionais. São memórias obscuras e intraduzíveis. O contato com o trecho que se segue nos leva à essa dimensão, a ideia de um lugar obscuro. “Desço aos teus porões, casa que já foste minha, busco o fantasma da negra embrulhada em suas rezas a invocar castigo e salvação, tiranos e inocentes, minha proteção” (MEDEIROS, 2005, p. 19). Assim, quando ela fala dessa negra, nos leva à ideia de personalidades curandeiras que usam seus conhecimentos para a cura de certos males, ou ainda, aos praticantes da umbanda, quem sabe. Ou seja, no momento de profundo sofrimento, tanto Deus quanto outras entidades foram recorridas. Isto torna-se transparente, para nós, pelo uso recorrente das antíteses, que indicam dois lados opostos, castigo/salvação, tiranos/inocentes, que indicam que duas forças foram evocadas, ou seja, o bem e o “mal” utilizados lado a lado por um único fim: a proteção da narradora. A partir do quinto parágrafo do conto deparamo-nos com um evento chamativo, cativante, interessante. Neste momento, é como se a personagem se despedisse desse mundo e vislumbrasse outra dimensão e desse vislumbre surgisse um desejo impetuoso de estar nesta dimensão. “Afasto-me de ti casa que já foste minha, dou as costas para um poente sem astro e quero arremessar meu corpo em grande velocidade, para longe, para fora” (MEDEIROS, 2005.p.19). Semelhante ao efeito de um imã parece haver neste momento uma atração intensa e ao mesmo tempo involuntária, como se houvesse chegado a hora decisiva do adeus final e não houvesse meios de voltar atrás. É como se uma força superior arrastasse este ser deste mundo em fração de segundos, sem dar-lhe tempo de olhar para trás e retornar, e neste rapto, arrancasse desse eu qualquer desejo de continuar aqui, e surgisse opulento e feroz, o desejo de partir, como se já não mais pertencesse a esta dimensão, gerando assim, um sentimento de incompletude no ser se continuar neste lugar, como podemos constatar nos versos que se seguem: “Quero afastar-me de ti. Outro tempo me diz que sou só metade” (MEDEIROS, 2005.p.19). A partir de então, temos o momento do ultrapasse, deparamonos com o sobrenatural, com o momento, podemos assim dizer, da passagem de 329


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uma dimensão para outra, o que se dá, como que em um sonho, isto é, em um instante mágico, translúcido, indescritível. “Sonhei que Deus, Nosso Senhor me arrancava de ti e ia curar minhas feridas à beira de um rio. Do outro lado do rio eu ouvia os ais de minha mãe” (MEDEIROS, 2005.p.19). Aqui retomamos novamente a ideia de casa como o corpo, onde nosso espírito habita por um determinado período de tempo até que chegue o dia da despedida e retornemos ao lugar de onde viemos. Desse modo, quando ela diz que Deus a arrancou desta casa e a levou ao outro lado do rio, depreendemos o momento do ultrapasse de uma vida para outra; a hora triste da morte e ao mesmo tempo, a hora feliz do descanso, do gozo, do prazer daqueles que partem. Este momento de despedida, de partida, confirma-se nas duas últimas linhas, quando são trazidas para o conto duas palavras que configuram dois grandes símbolos na liturgia cristã: Monte Sinai e Bodas de Canaã. Tais palavras revelam-nos um momento ímpar que poderíamos qualificar como o instante do encontro com Deus, pois segundo a liturgia cristã, comprovável na Bíblia Sagrada, este monte a que é feita referência neste conto era o local escolhido por Deus em todas as ocasiões em que desejava falar com Moisés quando este, juntamente com o povo hebreu, após haverem saído da terra do Egito, peregrinavam pelo deserto em busca da terra de Canaã, uma terra que manava leite e mel, ou seja, um lugar de gozo, de felicidade, onde todos viveriam felizes, e que Deus havia prometido ao seu povo. Desta feita, sempre que precisava dar instruções a Moisés para que este repassasse ao povo Suas palavras, Moisés subia ao Monte Sinai e lá Deus falava com ele. Foi neste monte, por exemplo, que Deus deu a Moisés as tábuas da lei, isto é, os dez mandamentos tão bem conhecidos por todos os cristãos. Diante disso, podemos associar essas duas linhas a esta ideia de encontro com Deus, ou seja, do encontro deste ser que partiu com o seu Deus, com o seu Senhor, como a narradora nomeia nas linhas acima. Ou seja, após uma vida de momentos felizes, mas mais ainda de momentos de padecimento, chega o momento em que é necessário este ser partir para encontrar-se com Deus e festejar e descansar eternamente, o descanso e o gozo dos justos. Sair deste mundo e viver eternamente ao lado de Deus. 330


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Considerações finais Depreende-se a partir da análise deste conto, o qual tem por foco o estudo da memória, que esta não é infalível, que não dá conta de recontar todas as experiências vivenciadas por um indivíduo do mesmo modo como estas aconteceram. Constatou-se ainda, que relembrar tudo, tim-tim-por-tim-tim só é possível para as coisas de rasa importância, que a reconstituição completa do passado é impossível, uma vez que só fica na memória aquilo que é importante e muitas vezes isso ocorre de forma fragmentada, lacunar. Entendemos que, em se tratando de memória, parece que quanto mais tempo ela fica aninhada, mais ela absorve elementos que a enriquecem, enquanto guardadas. Podemos dizer, então, que o importante é contar, é narrar e que toda e qualquer pessoa é capaz de fazer isto, a partir do que ficou em sua memória. Concluímos, por fim, que não se reproduz uma narrativa na íntegra, mas que, apesar das alterações feitas no momento em que se reconta ou se reescreve uma narração, um relato, alguns elementos podem se manter e são estes elementos que compõem as mais diversas obras existentes, desde as mais antigas até as mais recentes. Diante disso, concluímos que, não obstante o uso das metáforas, e de todos os recursos estilísticos, a memória em Maria Lúcia Medeiros é, por vezes, transparente, o que faz com que pensemos estar frente á uma situação de confissão da própria autora, relatos que incidem verdades.

Referências MARTINS, Bene. Nos fios da Memória, a Emaranhada Tessitura do Ser. In.: Ensaio Geral, Belém, v3, n.5, jan-jul|2011. MEDEIROS, Maria Lúcia. Céu caótico. Belém: SECULT, 2005. MORAIS, Elizabeth Conde de. Velas. Por quem? e Era uma vez: Memórias e histórias de mulher. Revista A Palavrada, n° 1 – Bragança: UFPA/ Faculdade de Letras. p. 196. TUPIASSÚ, Amarílis. Amazônia, das travessias lusitanas à literatura de até agora. In: Estudos Avançados, v. 19, n. 53, p. 299-320, São Paulo, 10 fev. 2005. ______. A poética de Maria Lúcia Medeiros. In: Céu caótico. Belém: SECULT, 2005. p. 01-04.

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Ensino-aprendizagem e suas abordagens


EDUCAÇÃO POPULAR FREIREANA COM JOVENS E ADULTOS DE UM HOSPITAL PÚBLICO DO MUNICÍPIO DE BELÉM DO PARÁ Lyandra Lareza da Silva Matos (PPGED-UEPA) Cristiana Gomes dos Santos (NEP-UEPA) Ivanilde Apoluceno de Oliveira (PPGED-UEPA)

Introdução Este artigo apresenta algumas reflexões sobre os relatos de uma experiência de Educação Popular Freireana em um hospital público de Belém no Estado do Pará. Estas ações socioeducativas são realizadas através do Núcleo de Educação Popular Paulo Freire (NEP) vinculado a Universidade do Estado do Pará (UEPA). Como educadoras do Grupo de Estudo e Trabalho - GET em Ambiente Hospitalar do NEP, problematizamos o exercício das práticas educativas desenvolvidas com educandos acompanhantes de crianças que se encontram internadas em um hospital público. O grupo do NEP atuando no espaço hospitalar tem como proposta educacional promover uma educação humanizadora, que concebe que o educando é capaz de construir o conhecimento, fazer e refazer sua história, fomentando, aqueles que pretendem, a re-inserção ao universo escolar. Assim, o grupo proporciona ações socioeducativas visando à alfabetização e à pós-alfabetização de Jovens e Adultos através de discussões e diálogos críticos acerca de sua vivência cotidiana. Estes sujeitos geralmente foram obrigados a interromper seus estudos na infância ou juventude por questões de sobrevivência de suas famílias e tiveram que optar pelo trabalho, muitas vezes trabalhadoras do lar ou da roça. 333


Educação popular freireana com jovens e adultos de um hospital público do município de Belém do Pará

Neste sentido, os encontros pedagógicos iniciam com a pesquisa socioantropológica realizada através do diálogo entre educadores-educandos e educandos-educadores, visando o reconhecimento da realidade social e cultural dos sujeitos. Os resultados obtidos com a pesquisa socioantropológica são fundamentais para a construção de conteúdos significativos a ser discutidos pelo grupo a partir de seus próprios saberes e em integração com os conhecimentos formais, legitimados pela ciência. Neste relato de experiência o grupo era composto de educandas, mães das crianças em tratamento de saúde - algo comum neste espaço por se tratar de uma pediatria, provenientes de àreas periféricas de Belém sendo a maioria oriunda de municipios ribeirinhos do interior do Estado do Pará. Este deslocamento de seus municipios em busca de tratamento de saúde para seus filhos provoca o afastamento destas pessoas da vivência com a sua comunidade e cultura. Estas educandas geralmente relatam suas vivências na escola trazendo uma representação negativa sobre o ensinar e o aprender, pois compreenderam através da educação tradicional que os estudantes devem estar atentos apenas às explicações do professor sobre determinado assunto que nem sempre condiz com a realidade deles e delas. No espaço hospitalar são estabelecidas novas relações interpessoais com os funcionários e principalmente entre as mães acompanhantes dos pacientes marcadas por laços de amizade, solidariedade nos momentos dolorosos que enfrentam e também conflitos inerente aos seres humanos. Estas educandas muitas vezes apresentam conhecimentos ínfimos acerca de direitos e deveres enquanto pessoas humanas e cidadãs. Após o primeiro contato com os sujeitos a partir da pesquisa socioantropológica partimos para o segundo momento do processo educativo que consiste no desenvolvimento de dinâmicas sociopedagógicas, a exemplo, citaremos a dinâmica denominada “cartaz de apresentação”, onde os/as educandos/as dispõem de materiais pedagógicos como cartolina, canetas hidrocolor, revistas ou jornais, tesoura e cola.

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LYANDRA LAREZA DA SILVA MATOS, CRISTIANA GOMES DOS SANTOS E IVANILDE APOLUCENO DE OLIVEIRA

O objetivo da atividade é fazer com que os sujeitos expressem suas vivências, suas particularidades e identidade através de imagens, desenhos e/ou escrita. A atividade culmina com a explanação dos participantes acerca de sua produção manifestando os aspectos socioculturais e o nível de alfabetização, assim como questões existenciais, em sua maioria, representada por momentos dolorosos pelo qual estão passando e reflexões sobre saúde, família, religiosidade, vida e morte. Durante a realização das dinâmicas os educandos costumam expressar a preocupação sobre o estado de saúde de seus filhos, a saudade da família, a fé na cura das crianças através da religião somada a intervenção da medicina e frequentes reflexões acerca da valorização da vida. A ação sócio-educativa do NEP na comunidade hospitalar articula as práticas educativas populares às produções políticas e culturais e de educação na Amazônia, aproximando educandos-educadores das especificidades tão múltiplas e diversas de uma região tão particular quanto a Amazônia.

A educação popular freireana na comunidade hospitalar As condições de apreensão dessa concepção de hegemonia do saber científico e legítimo do ambiente escolar em detrimento do saber construído nas práticas sociais cotidianas apresentam-se ligadas à relação o que sei e o que sou, portanto, não ter tido acesso ao saber sistematizado na prática escolar significa não saber, não ter conhecimento, ser inferior. (GÓES, 2009, p. 26).

A Educação Popular significa um movimento de inclusão educacional e social visando um saber crítico e o exercício da cidadania. Este movimento de inclusão pode ser desenvolvido em diversos espaços, inclusive em espaços não formais de educação como nas comunidades hospitalares. O Núcleo de Educação Popular Paulo Freire (NEP) em conformidade com a proposta de inclusão educacional e social desenvolve ações de pesquisa ensino e extensão em educação popular numa abordagem freireana de educação nas comunidades hospitalares com crianças, jovens, adultos e idosos em tratamento ou com seus acompanhantes. 335


Educação popular freireana com jovens e adultos de um hospital público do município de Belém do Pará

Este artigo traz algumas reflexões sobre as práticas pedagógicas freireanas em um hospital público de Belém com jovens e adultos acompanhantes de crianças em tratamento de saúde que acontecem no refeitório da pediatria. A comunidade hospitalar de acordo com Góes (2009) caracteriza-se por relações interpessoais estabelecidas entre as pessoas em tratamento, seus familiares e os diversos profissionais atuantes no hospital. Estes sujeitos formam a comunidade hospitalar possibilitando relações interpessoais conflituosas, contraditórias e sólidarias presentes no cotidiano dessas comunidades onde são construídos os saberes sociais. A educação popular em ambiente não formal tem suas especificidades, assim como as comunidades hospitalares também possuem suas variantes de acordo com a rotina do hospital. As atividades no referido espaço acontecem no período noturno, no refeitório da ala pediátrica, duas vezes por semana, mas podem ser interrompidas quando as crianças precisam ser medicadas e os acompanhantes, geralmente as mães, tornam-se ausentes. A flexibilidade se torna indispensável para os educadores inseridos neste processo, em alguns momentos encontramos os educandos indisponíveis para o encontro por conta do insatisfatório estado de saúde de suas crianças. Além disso, é importante salientar a rotatividade dos sujeitos no espaço não impede o desenvolvimento de nosso trabalho. Sendo que a maior parte dos acompanhantes é oriunda de cidades ribeirinhas e áreas periféricas da região metropolitana de Belém, na grande maioria mulheres que não tiveram oportunidade de estudar. Isto comprova o que Galvão e Di Pierro (2007) expõem a respeito da questão do analfabetismo, sendo o maior número referente às mulheres que são de países pobres ou apresentam um alto nível de desigualdade social. Ao nos referirmos especificamente às mulheres, não significa que estamos falando de um grupo homogêneo, pois Fleuri (2006) problematiza as relações entre sujeitos e culturas, os quais comumente apresentam diferenças dentro da diferença e não apenas o reconhecimento da diversidade. Outro fato bastante presente nos encontros é o constrangimento que muitos educandos possuem por conta de sua baixa escolaridade, consideram-se in336


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capazes de participar das atividades. A baixa auto-estima é comum nesse espaço assim como a dificuldade dos sujeitos em dizer a sua palavra é uma constante a ser superada em nosso trabalho, a qual o educador consegue ao obter a confiança do educando (FREIRE, 1996). Sendo interessante salientar a questão do analfabetismo porque geralmente os educandos sentem-se absolutamente responsáveis por sua condição de analfabetos, culpados pelo “fracasso” pessoal, de ignorância, de falta de entusiasmo diante da educação formal. Para Galvão e Di Pierro (2007) a pessoa analfabeta atribui a culpa como algo individual e não ao coletivo de todo um sistema que violou os seus direitos educativos. Os educandos(as) participantes, geralmente, são provenientes de famílias, numerosas, vindas em sua maioria do interior do Estado. Estes sujeitos apresentam situações econômicas desfavoráveis, portanto, o trabalho - na maioria braçal, na roça, lavouras – significa uma alternativa para sua subsistência e de sua família. O trabalho apresenta-se precocemente na vida desses sujeitos, culminando para o seu afastamento da escola. Para Santos (2006, p. 104) de acordo com a lógica produtivista, “a não existência é produzida sobre a forma do improdutivo”, ou seja, o trabalho relacionado diretamente à natureza representa esterilidade e desqualificação profissional, portanto não condiz com o tempo linear do capitalismo. Entretanto, apesar de não terem acesso à educação formal “a ecologia dos saberes consiste em aprender novos e estranhos saberes sem necessariamente ter de esquecer os anteriores e próprios. É esta a ideia de prudência”. (SANTOS, 2006, p. 106). Na análise de Góes (2009) o fato da pessoa não saber ler proporciona a exclusão de um mundo letrado e o impedimento à informação por meio da leitura, contribui para o sentimento de inferioridade desvalorizando os conhecimentos não escolares que possui para superar tal condição. De acordo com essa lógica, a não existência é produzida sob a forma de inferioridade insuperável porque natural. Quem é inferior, porque é insuperavelmente inferior, não pode ser uma alternativa credível a quem é superior (SANTOS, 2006, p. 103). 337


Educação popular freireana com jovens e adultos de um hospital público do município de Belém do Pará

No entanto, Oliveira (2008) defende que “os saberes de uma população devem ser entendidos como a dimensão cognitiva de sua cultura, exigindo um estudo aprofundado sobre as formas de produção e socialização”. (p. 22). As práticas de educação popular na comunidade hospitalar promovidas pelo NEP visam sempre a uma educação humanizadora - ser humano como ser mais- e a valorização dos sujeitos. Isto ficava evidente durante os Encontros pedagógicos, pois os jovens e adultos sentiam-se bem, dispostos a participar pela forma como são conduzidos os diálogos.

Ações sócioeducativas desenvolvidas na comunidade hospitalar Seria uma agressiva contradição se, inacabado e consciente do inacabamento, o ser humano não se inserisse num permanente processo de esperançosa busca. Este processo é a educação.” (FREIRE, 2000, p. 114).

As ações socioeducativas do NEP no refeitório da pediatria são realizadas às terças-feiras e quartas-feiras, no horário das 18h30min até às 20h30min, com encontros para os planejamentos às quintas-feiras às 17h00min na sala do núcleo. O NEP tem como objetivo o processo de alfabetização de jovens e adultos, alguns que não iniciaram este processo na idade regular de ensino, outros estudaram na infância e/ou juventude, porém não chegaram a concluir o ensino fundamental. Apresentaremos a seguir alguns relatos sobre atividades sociopedagógicas realizadas na comunidade hospitalar no ano de 2010. Neste período, o grupo de educadores (as) que atuavam neste espaço era composto por quatro estudantes do curso de Pedagogia, sendo três mulheres e um homem. As educandas eram mães jovens e adultas na faixa etária de 20 a 45 anos em processo de alfabetização e pós-alfabetização, geralmente proveniente das classes populares, moradoras da periféria de Belém sendo a maioria oriunda do interior do Estado do Pará, principalmente de municípios ribeirinhos, trabalhadoras do lar ou da roça. Os planejamentos dos Encontros pedagógicos devido à especificidade do espaço são marcados pela flexibilidade, simplicidade e rigorosidade metódica.

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LYANDRA LAREZA DA SILVA MATOS, CRISTIANA GOMES DOS SANTOS E IVANILDE APOLUCENO DE OLIVEIRA

As dinâmicas sociopedagógicas são elaboradas a partir do tema gerador sendo o diálogo e a reflexão fatores indispensáveis nas ações. O processo das ações sociopedagógicas na comunidade hospitalar inicia com a pesquisa socioantropológica, para levantar um perfil inicial dos sujeitos com perguntas relacionadas aos aspectos socioculturais envolvendo temáticas como a família, o trabalho, a educação e o lazer. A família foi um tema trabalhado a partir da pesquisa socioantropológica, iniciamos o encontro com um diálogo sobre o tema, no segundo momento solicitamos as educandas a escrita ou a produção de cartazes através de recorte e colagem que visa expor o contexto cultural e social dos jovens e adultos, bem como as atividades efetivadas no espaço escolar. Durante o encontro apenas uma educanda apresentou dificuldades para realizar sua tarefa alegando não conhecer todas as letras do alfabeto, mas fez questão de assinar, dizendo que repetiu três vezes a 3ª série. A educadora sugeriu que ela escrevesse com seu auxílio, ela afirmou: “Eu não sei, não consigo”. [...] o analfabetismo não é percebido como expressão de processos de exclusão social ou como violação de direitos coletivos, e sim como uma experiência individual de desvio ou fracasso, que provoca repetidas situações de discriminação e humilhação, vividas com grande sofrimento e, por vezes, acompanhadas por sentimentos de culpa e vergonha. (GALVÃO e Di Pierro, 2007, p. 15).

Na comunidade hospitalar o constrangimento dos sujeitos é comum devido à experiência negativa na sua vivência escolar, estas representações sobre o ensinar e o aprender destas educandas conforme Freire (2005) ocorre por conta de sua vivência na escola marcada por uma educação bancária onde o sujeito apenas recebe os conhecimentos advindos do professor negando sua capacidade de produzir o conhecimento. Outra educanda que se encontra no processo de pós-alfabetização produziu o texto a seguir sobre a família revelando sua desmotivação para continuar os estudos e seu empenho para que seus filhos não abandonem a vida escolar: A minha família Eu tenho três filhos que gostam muito de estudar mais eu já perdi o desejo de estudar. Porem gostaria muito de fazer um corso técnico de enfermagem meu maior sonho era ser uma enfermeira

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Educação popular freireana com jovens e adultos de um hospital público do município de Belém do Pará

mas não fico triste por isso. Pois minha maior alegria é poder manter meus filhos na escola não vivo há 11anos com o pai deles, mas com sigo trabalha e através do meu esforço insentivar meus filhos a não para de estudar

Na análise de Giroux (1987) não se trata apenas de técnicas pedagógicas para evidenciar as experiências dos sujeitos, mas também para demonstrar “como o poder, a dependência e a desigualdade social capacitam ou limitam os estudantes em torno de questões de classe, raça e sexo”. (p.96). A prática educativa conforme Freire (1996) acontece por meio da afetividade, da alegria, da capacidade científica e dominío técnico que podem estar a favor da mudança ou de acordo com o discurso neoliberal que nega a historicidade humana e defende “a permanência do hoje a que o futuro desproblematizado se reduz”. (p.143). Assim, Giroux (1987, p. 97) enfatiza: [...] Está em questão aqui a necessidade de se fazer a asssociação teórica entre conhecimento e poder, de tal maneira a dar aos estudantes a oportunidade de apreenderem mais criticamente o que são como parte da formação social mais ampla, ajudando-o a compreender como têm sido formados pelo contexto social e como são aí posicionados.

A religiosidade também é um tema bastante recorrente na comunidade hospitalar sendo manifestada por duas educandas ressaltando a situação de adoecimento de seus filhos e a fé na cura como demostra a escrita de uma educanda: [...] Deus vai curar todas as enfermidades do corpo dele e também vai voltar a brincar. A sorrir e ser muito feliz.

Outra educanda apresentou seu texto com o tema Superação na vida de uma criança, relatando as dificuldades que passou com sua filha à espera de um transplante de fígado, a saudade da rotina famíliar e a fé na recuperação da saúde de sua criança:

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LYANDRA LAREZA DA SILVA MATOS, CRISTIANA GOMES DOS SANTOS E IVANILDE APOLUCENO DE OLIVEIRA

[...] Quando a minha filha nasceu ficamos junto com ela só quatro meses, depois nossa vida mudou só hospital. Mas tenho fé em Deus que a minha filha vai ficar curada.

Assim, para Giroux (1987, p.96): [...] Somente começando por esssas formas subjetivas, os educadores críticos poderão desenvolver uma linguagem e um conjunto de práticas que confirmem e engagem a natureza contraditória do capital cultural que constitui o modo como os estudantes produzem os significados que legitimam formas especificas de vida. (GIROUX, 1987, p. 96).

Por ser a reflexão uma atividade especificamente humana, Brandão (2002) analisa que o ser humano diferente dos outros seres vivos passou de uma consciência reflexa para a consciência reflexiva, pois compreende o mundo a partir de símbolos e significados possibilitando o criar e o recriar do mundo em que vivem. Ao final do Encontro as educandas expuseram seus textos e em seguida juntamente com os(as) educadores(as) fizeram as correções gramaticais em torno da ortografia e da estrutura do texto. De acordo com Freire (2005) é possível trabalhar não somente a questão da escrita e a correção ortográfica como reflexões acerca do estar no mundo e com o mundo. Em um Encontro, nos depararamos com notícia da morte de uma criança, abalando emocionalmente e suscitando a solidariedade entre as pessoas da comunidade hospitalar. Este momento extremamente delicado impossibilitou a efetivação das atividades, exigindo dos(as) educadores(as) a escuta sensível e o diálogo, elementos fundamentais neste processo educativo. Nossas instituições de ensino e de formação profisssionais têm se negado a discutir temas tão esssenciais como questões relativas à morte e ao sentido da vida. Nossa tradição educacional não tem oferecido tal formação, pois nossos educandos raramente experenciam momentos em que se possa pensar na vida e na morte. Não estamos preparados para a morte. (OLIVEIRA, 2004, p. 15).

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Educação popular freireana com jovens e adultos de um hospital público do município de Belém do Pará

Educadores educandos e educandos educadores se encontram neste processo educativo, ambos formam-se nesta relação demonstrando que a educação está além de transferir conhecimento, pois consiste em um processo criador, evidenciando os sujeitos capazes de produzirem o conhecimento. (FREIRE, 1996). As práticas de educação popular desenvolvidas na comunidade hospitalar evidenciam os saberes dos sujeitos amazônidas que tem seu direiro à educação escolar historicamente negado. Oliveira (2008) argumenta que o discurso ecológico desconsidera os sujeitos que habitam a diversidade amazônica. Neste sentido, aponta a necessidade do diálogo possibilitando às reinvidicações destes sujeitos considerando os tempos de globalização. Diante do exposto podemos considerar que as atividades desenvolvidas pelo NEP são sempre efetuadas atendendo aos princípios da educação participativa e libertadora de Paulo Freire, em que os(as) educandos(as) são permanentemente estimulados para atuarem como sujeitos ativos no mundo e com o mundo. Com base no estudo, compreendemos que as ações promovem ensino de caráter humanista de comprometimento e que prima pelo desenvolvimento dos sujeitos na sua plenitude.

Algumas considerações A ação socioeducativa do NEP na comunidade hospitalar evidencia uma proposta de educação contrária à educação tradicional que nega a participação crítica do estudante no processo educativo. As dimensões políticas e culturais são reveladas neste espaço não-formal de educação trazendo à tona aspectos culturais e sociais da vida do estudante geralmente negados no ensino tradicional. Inicialmente é comum a resistência dos sujeitos em participar das atividades, pois geralmente acreditam que são incapazes de aprender, principalmente quando estão em processo de alfabetização. Sendo necessária a aproximação através da pesquisa socioantropológica para em seguida propiciarmos com os educandos atividades com dinâmicas visando à interação entre eles. 342


LYANDRA LAREZA DA SILVA MATOS, CRISTIANA GOMES DOS SANTOS E IVANILDE APOLUCENO DE OLIVEIRA

Os educadores do núcleo acreditam que o interesse nos Encontros se dá na medida em que partem da perspectiva dos sujeitos, isto é, do interesse, do jeito de ser e de estar no mundo de educandos populares, sendo isto indispensável para que caminhem pelos campos do conhecimento. As temáticas como Família e Religiosidade são uma constante no ambiente hospitalar já que se trata da vivência dos sujeitos, imersos no problema de saúde de seus filhos e com saudades de suas famílias por estarem geralmente um longo período distante de suas comunidades. Essa proposta de educação libertadora parte da concepção de que a leitura da palavra deve estar em conformidade com a leitura de mundo, contrária a decodificação de palavras sem sentido. Neste contexto, a palavra é significativa provocando a reflexão crítica capaz de intervenção na realidade opressora dos sujeitos. O trabalho educativo do NEP baseados no diálogo e na reflexão crítica possibilita a fala do educando, buscando compreender a existência de antagonismos vivenciados pelos sujeitos em suas culturas do cotidiano. Além disso, busca para o campo da educação as vinculações com todos os outros eixos internos e exteriores das experiências sociais e simbólicas da vida da pessoa, da sociedade e da cultura.

Referências BRANDÃO, Carlos Rodrigues. A educação como cultura. Campinas. SP: Mercado de Letras, 2002. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. – São Paulo: Paz e Terra, 1996. ______. Pedagogia do oprimido. 42 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2005. ______. Pedagogia da indignação: cartas pedagogicas e outros escritos. São Paulo: Editora UNESP, 2000. FLEURI, Reinaldo Matias. Políticas da diferença: para além dos estereótipos na prática educacional. – São Paulo, campinas. 2006. GALVÃO, Ana Maria de Oliveira. DI PIERRO, Clara. Preconceito contra o analfabeto. São Paulo: Cortez, 2007. GIROUX, Henry. A escola crítica e a política cultural. São Paulo: Cortez, 1987. GÓES, Wany Marcele Costa. Educação popular em ambiente hospitalar: construção de identidades como processo de afirmação cultural. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em Educação. Universidade do Estado do Pará. Belém. 2009.

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Educação popular freireana com jovens e adultos de um hospital público do município de Belém do Pará

NEP. Projeto Núcleo de Educação Popular Paulo Freire. Belém-PA: UEPA-CCSE, 2002. OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de (Org). Cartografias ribeirinhas: saberes e representações sobre práticas sociais cotidianas de alfabetizandos amazônidas. 2e. Belém: EDUEPA, 2008. OLIVEIRA, Ivanilde Apoluceno de. Caderno de Atividades em Educação Popular. In: Oliveira, Kássia Cristina, et al (Org.). Educação em ambiente hospitalar: a complexidade vida e-morte. N 1, Belém: CCSE-UEPA, 2004. SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006.

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O SISTEMA EDUCATIVO RADIOFÔNICO DE BRAGANÇA: SABERES DA PRÁTICA EDUCATIVA NA EDUCAÇÃO DE JOVENS E ADULTOS (1960- 1970) Rogerio Andrade Maciel (PPGE-UEPA) Maria do Perpétuo Socorro Gomes de Souza Avelino de França (GHEDA-UEPA)

Introdução Na tessitura de minhas experiências, as interpelações discursivas ressignificaram a minha prática vivenciada pelos espaços e lugares, tempos, percepções/ sensações, objetos, sons e silêncios, aromas e sabores, texturas e formas das experiências educativas acumuladas ao longo do tempo, colocando-me diante das escolhas e decisões, que deram os tons e cores da minha dissertação de mestrado junto ao Programa de Pós - Graduação em Educação da Universidade do Estado do Pará, na linha de Saberes Culturais e Educação na Amazônia. No ano de 2005, ainda como aluno de graduação, ingressei por meio da extensão, no Projeto de Alfabetização de Jovens e Adultos do Nordeste Paraense: Alfa-Cidadã, desenvolvido pelo Grupo Universitário de Educação de Jovens e Adultos (GUEAJA), Campus de Bragança, com recursos do Programa Nacional de Educação na Reforma Agrária - PRONERA/MDA/INCRA. O projeto abrangia 07 Municípios do Nordeste Paraense, entre eles o município de Aurora do Pará, do qual fui bolsista. Durante a realização do projeto visitei dezessete comunidades, dentre elas algumas localizadas em área de assentamentos. Minha função era organizar, orientar e planejar as atividades para os educadores alfabetizadores. Nesta trajetória sensibilizadora, verifiquei que a educação é um desafio quando se configura numa perspectiva do e no campo, o que me impulsionou 345


O sistema educativo radiofônico de Bragança: saberes da prática educativa na Educação de Jovens e Adultos (1960- 1970)

no processo de escolha desta modalidade de ensino: a Educação de Jovens e Adultos (EJA). Ao término da Graduação em Licenciatura Plena em Pedagogia, em 2008, realizei o Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) com a temática “Inclusão Social: Um desafio para os educadores do campo no Município de Aurora do Pará”. Os desdobramentos deste trabalho marcaram minha trajetória acadêmica em face ao acúmulo de experiência no campo da pesquisa e avanço em relação às discussões teóricas e práticas vivenciadas na Universidade. Sobre a memória desta trajetória acadêmica, recorro a Halbwachs (1994), quando afirma que a memória deve ser considerada na condição social do sujeito, permitindo registrar suas experiências vivenciadas, enquanto área de conflitos, permitindo assim, a construção de lembrança de um grupo, de um lugar, de um espaço. Os primeiros passos na profissão docente foram como coordenador pedagógico em escolas públicas, mais especificamente, na EJA, desenvolvendo atividades de formação docente numa perspectiva Freireana, processo que me possibilitou pensar e refletir a práxis docente (FREIRE, 2011). No ano de 2011, ingressei na Universidade Federal do Pará – Campus de Bragança, como professor substituto, inserindo-me nesta experiência educativa de educação superior, ministrando disciplinas de Estágio Supervisionado da EJA para as turmas de Licenciatura em Pedagogia e atuando como formador de professores da Educação de Jovens e Adultos. Nesse mesmo ano, fui convidado para mediar o planejamento anual dos professores do Sistema Educativo Radiofônico de Bragança (SERB). Nos diálogos estabelecidos com os professores tomei conhecimento do trabalho desenvolvido por esse sistema na educação de jovens e adultos. Naquela ocasião perguntava-me como se deu o processo de implantação desse sistema no Município de Bragança. Essa indagação me instigou a pesquisar esse sistema em suas origens.

A tessitura da escolha do objeto e os objetivos da pesquisa A partir do encontro com o SERB, submeti no ano de 2012 uma proposta de pesquisa ao processo seletivo da UEPA, intitulado “Memórias de professores 346


ROGERIO ANDRADE MACIEL E MARIA DO PERPÉTUO SOCORRO GOMES DE SOUZA AVELINO DE FRANÇA

e alunos do sistema educativo radiofônico no Nordeste Paraense”, onde tencionava discutir a criação desse sistema por meio das memórias de professores e alunos. A referida proposta foi aprovada no processo seletivo em 2012. Para compreender a importância da memória enquanto construção individual e coletiva de cada sujeito, minhas referências se assentavam nas reflexões de Bosi (1994), a qual afirma que a memória do indivíduo depende do seu relacionamento com a família, com a classe social, com a escola, com a igreja, com a profissão, enfim, com os grupos de convívio e os grupos de referência peculiares a esse indivíduo. Na medida em que avancei na pesquisa exploratória realizada nos arquivos da diocese de Bragança e no arquivo público Municipal de Bragança redesenhei o tema da minha dissertação que passa a ser intitulada: “Sistema Educativo Radiofônico de Bragança: Saberes da prática educativa na educação de jovens e adultos (1960-1970)”. As questões aqui tratadas me permitiram delimitar uma década de trabalho realizado na rádio do Município de Bragança – Pará, bem como os saberes provindos desta prática educativa radiofônica e a presença da educação de jovens e adultos neste sistema de ensino. O cenário que marca o sistema educativo radiofônico é a cidade de Bragança – Pará, situada no Nordeste paraense com uma área de 2.091, 930 km² e 113.227 habitantes. (IBGE, 2010). Neste ano (2014) o município completa 400 anos de história e tradição. Buscando conhecer o que já foi produzido sobre o meu objeto de estudo, realizei um levantamento de dissertações e teses no banco de dados da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, (CAPES), no período de 1995 a 2012 e na Biblioteca Municipal Professor Armando Bordallo, da Universidade Federal do Pará- Campus de Bragança. Pesquisei as seguintes palavras chaves: rádio, rádio educadora e sistema educativo radiofônico, no banco de dados da CAPES, tendo encontrado sete dissertações e sete teses, efetuei somente a leitura dos resumos. Conforme pode ser observado nos quadros 01 e 02, no qual cito o título das obras.

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O sistema educativo radiofônico de Bragança: saberes da prática educativa na Educação de Jovens e Adultos (1960- 1970)

AUTOR

TÍTULO

ANO

A. R. O.

A recepção de rádio e televisão pelos jovens do movimento dos atingidos por barragens: representações identitárias das classes populares.

01/12/2007

A. A. T.

Radioweb: outra rádio, diferentes processos de produção, roteirização e edição.

01/03/2012

R. B.

Movimento e educação de base: ação e repercussão em mato grosso na década de 1960.

E. M. A.

S. Patrulhando a cidade: o valor do trabalho e a construção de estereótipos em um programa radiofônico.

01/12/2000

E. B. H.

Serviço público de radiodifusão: tecnologia, sociedade e direito à informação.

01/09/2000

F. A. Q. L.

Paixões, pecados, picardia e poesia na publicidade (radiofônica).

01/06/2006

F. G. Barros

F.G.Barros. Movimento de educacão de base (MEB) em Sergipe: 1961-1964 - uma reconstituição histórica.

01/02/1995

Quadro 1 — Dissertações.

Fonte: www.capes.gov.br/cadastro

Nas dissertações é possível observar tanto uma discussão sobre os movimentos de educação de base no Nordeste Brasileiro, onde iniciou-se a implantação dos sistemas educativos radiofônicos para os jovens e adultos, quanto a tecnologia da rádio como um ensino à distância. É possível observar ainda a sua utilização como um direito de cidadania do povo brasileiro, bem como as representações que são criadas pelos jovens e adultos, mediados pela rádio.

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ROGERIO ANDRADE MACIEL E MARIA DO PERPÉTUO SOCORRO GOMES DE SOUZA AVELINO DE FRANÇA

AUTOR

TÍTULO

ANO

B. R. C. M.

Marabaixo, ladrão, gengibirra e rádio: traduções de linguagens de textos culturais.

01/08/2012

H. V. G.

Processos interativos midiáticos da rádio sutatenza com os camponeses da Colômbia. (1947-1989)

01/12/2009

L. B. C. A. M. F.

"São Paulo - o rádio de idéais"

01/02/1999

R. A.

Política educacional e as tecnologias de informação e comunicação: o rádio na educação escolar.

01/02/2008

S. M.

A interatividade no diálogo de viva - voz na comunicação radiofônica

01/04/2009

V. R. M. Z.

A construção histórica da programação de rádios públicas brasileiras

01/03/2010

Quadro 2 — Teses. Fonte: www.capes.gov.br/cadastro

Em relação às teses verificou-se que à maioria discute a origem da rádio no Brasil fazendo um paralelo com os sistemas a nível internacional, nacional e local. Vale mencionar, ainda, que estas produções, discorrem sobre a interatividade dos sujeitos pertencentes a este ensino; a rádio como processo educativo e as políticas públicas sobre as rádios; além do que apresentam uma concepção de educação numa abordagem sócio-antropológica nos moldes de Paulo Freire. As dissertações e teses pesquisadas permitem compreender o Movimento de Educação de Base no Nordeste Brasileiro. Elas trazem para debate a implantação de sistemas radioeducativos nessa região do país. Não encontrei no levantamento realizado, nenhum trabalho que tratasse sobre o sistema educativo radiofônico de Bragança- Pará.

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O sistema educativo radiofônico de Bragança: saberes da prática educativa na Educação de Jovens e Adultos (1960- 1970)

Na Biblioteca Municipal Armando Bordallo foram localizados quatro trabalhos de Conclusão de Cursos: O primeiro trabalho versava sobre “Grau de Participação da População em Comunidades Cristãs de Base de Bragança” (1976) de autoria de Zilah Theresinha de Souza; do Curso de Serviço Social. Este trabalho parte do II Encontro Inter-regional de Pastoral em Manaus de 15 a 22 de Maio de 1974, com o intuito de verificar até que ponto as comunidades cristãs de base suscitaram a participação popular no processo de desenvolvimento nacional, regional e local. Sendo este, desenvolvido em 08 comunidades cristãs de base no Município de Bragança. O segundo trabalho “Educação a Distância em Bragança – PA: Do sonho a realidade um estudo de caso (1999); de autorias de Antônio Carlos Barros Borges; Danilo Augusto da Silva e Fernando Cassiano da Costa, do Curso de Licenciatura em Pedagogia; apresenta um estudo da rádio educadora, discutindo a importância da educação à distância, com vistas a garantir a visibilidade da universalização do ensino de qualidade. Nesse trabalho os autores analisam a formação da cidadania rural e a luta contra os problemas educacionais no Brasil. O terceiro trabalho intitulado “História da Educação no Município de Augusto Corrêa” (1992) de autorias: Maria Romana Gonçalves Reis; Osmarina Matos da Cunha e Tereza Maria Ribeiro Rodrigues, do Curso de Licenciatura em Pedagogia, resgata e registra fatos históricos sobre a educação no Município de Augusto Corrêa na década de 1960 a 1990. Apresenta, ainda, o Movimento de Educação de Base, no período de 60 a 66. O quarto trabalho trata de “Eliseu Coroli, o Educador de Educadores: Perspectivas Educacionais pioneiras da influência barnabítica na região bragantina no século XX” (2004) de autoria Leila do Socorro Oleto Rotterdam, do Curso de Licenciatura Plena em Pedagogia. A autora estuda a faceta educacional e o legado de Dom Eliseu Maria Coroli, explorando suas discussões pedagógicas na região Bragantina no início do século XX - (1938- 1946). Verifiquei que há vários estudos sobre rádio voltados a educação à distância, construída pelos radialistas- locutores, trazendo experiências de alguns Estados Brasileiros, porém, nenhum deles trata sobre os saberes da prática educativa radiofônica neste sistema de ensino. 350


ROGERIO ANDRADE MACIEL E MARIA DO PERPÉTUO SOCORRO GOMES DE SOUZA AVELINO DE FRANÇA

Para compreender o sistema educativo radiofônico no Município de Bragança – PA, elegi as seguintes questões investigativas: Como se deu a implantação do sistema Radiofônico de Bragança (SERB), na década de 60 a 70 do século XX? Qual a concepção de educação presente nesse sistema educativo? Quais os saberes da prática educativa presentes no sistema educativo radiofônico? Os saberes dessa prática educativa se constroem por meio de uma educação, via rádio, que não se restringe a uma educação escolar, pois acontece para além deste sistema de ensino. Sobre saber, Brandão (1997), diz que ele está emerso à vida, circulando entre as pessoas, as quais constroem e reconstroem nas relações sociais o saber local, que é utilizado nas práticas cotidianas dos sujeitos e caracterizados como saberes populares. Esses saberes são denominados de populares, porque são fruto de experiências de vida e trabalho, vivência ao qual o grupo se identifica como tal, troca informações entre si e interpreta a sua realidade. Neste movimento de educação popular a educação como cultura, a religião, a ciência, a arte e tudo mais, é, também, uma dimensão ao mesmo tempo comum e especial de tessitura de processos, de produtos, de poderes, de saberes e de sentidos de âmbito mais abrangente de processos sociais de internações chamado cultura. O saber em Charlot (2000), possui diferentes formas e relações com o mundo, e está submetido aos processos de legitimação pelo campo científico, o que perpassa pelo produto das relações epistemológicas concretizadas pela humanidade. Logo, não há “saber sem uma relação do sujeito com esse(s) saber(es)”. Assim, o saber é uma relação de um sujeito com o mundo, com ele mesmo e com os outros, como conjunto de significados, mas, também, como espaço de atividades, e se inscreve no tempo. Freire (1987), em sua obra “Pedagogia do Oprimido”, esmiúça as relações opressoras de nossa estrutura social e indica diversas possibilidades de mudança para a prática de liberdade da mulher e do homem, legitimando os saberes dos sujeitos oprimidos pelo círculo de cultura, pelo diálogo, pelas camadas populares que constroem na sua ação educativa um cunho político de emancipação, isto é, mediado pela experiência de cada um que passa a modificar a sua exis351


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tência na sociedade. Logo, essa experiência, expressa à cultura de cada lugar, espaço, território, práticas que constituem o saber de cada povo e a sua história. Sobre prática, destaco Zabala (1998), em seu livro “A prática Educativa”, elege como unidade de análise básica, a atividade ou tarefa do professor na sua relação com o aluno e seus procedimentos, como: exposição, debate, leitura, pesquisa, bibliografia, observação, exercícios, estudo, etc. Isso implica a realização docente com todas as variáveis que incidem nos processos de ensino/ aprendizagem. Logo, esta prática é considerada como um processo formativo necessário à atividade humana, sendo um fenômeno universal e social a todas as sociedades. Fávero (2006) analisa o conceito de prática, por meio do MEB, no Nordeste Brasileiro, no período de 1961 a 1966, onde estabelece que a prática deste movimento não se restrinja ao discurso, pois o autor compreende que o discurso encobre, mascara a prática. No caso do MEB, o discurso fundamenta a prática pelo movimento de educação popular - com o povo. Este movimento além de ser designado numa ação da igreja e do Estado, buscava em seus princípios uma educação pautada para a libertação do povo, que é explicitado como um modelo pedagógico de educação. Vale ressaltar, que no auge do populismo e na crise política deste período, surgiram vários movimentos populares com uma concepção de educação de base, isso configurou a diminuição do elevado índice de analfabetos no Brasil. Wanderley (1984), discutindo as práticas educativas do MEB destaca que elas são práticas sócio-educativo-políticas, voltadas a um determinado grupo de cristãos, os quais vão gerar modificações significativas na concepção de igreja em seus vínculos com a realidade social. A prática educativa se desdobra em outras práticas que irão propiciar o desenvolvimento das comunidades como elemento para uma democracia de base que está atrelada dentro de cada condicionante da realidade inclusiva. Sobre esta ótica, a igreja, segundo Wanderley (1984), criou vários projetos de cunho popular voltado para os jovens e adultos. Entre esses o movimento de educação de base que instituiu no país os sistemas educativos radiofônicos como uma das suas ações educativas para educar jovens e adultos. 352


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Na sua obra “Educar para transformar” Educação popular, Igreja Católica e Movimento de Educação de Base, Wanderley (1984), informa que a maioria das experiências dos sistemas educativos radiofônicos surgiu no Nordeste: a) Porque foi palco de maior tensão social no período; b) foi a área de presença mais maciça do movimento; c) Foi onde o MEB começou a operar de maneira sistemática. (...) No Norte, (de cujas equipes foram extraídos alguns textos), e Minas Gerias apresentaram elementos comuns, características peculiares e variações significativas que impedem uma generalização do que se analisou neste trabalho para aquelas regiões. (WANDERLEY, 1984, p. 28).

Neste enunciado, verifica-se na obra do autor uma ênfase sobre os sistemas educativos criados no Nordeste brasileiro. É quase inexistente estudos sobre as práticas educativas dos sistemas educativos radiofônicos da região Norte. As produções de saberes e práticas, que mencionei anteriormente sejam elas populares, provindas da experiência dos sujeitos e da relação do homem com o seu espaço social, demonstram que não existe uma única relação de saber, ou seja, existem saberes que são construídos por cada sociedade e de certa forma não estão desatrelados de uma prática, que podem se circunscrever na relação da cultura, nos processos de ensino/aprendizagem, na prática vivenciada no movimento de educação de base. Para compreender, que as ações em que o MEB possuía estavam atrelados aos bispos e padres, no Município de Bragança não era diferente, pois governo não tinha condições de resolver de imediato a abertura de escolas, com professores habilitados para atender as centenas de povoado existentes em Bragança na época. Foi para ajudar milhares e milhares de pessoas – adolescentes e adultos – a sair do analfabetismo e fazer seu curso primário que D. Eliseu Maria Coroli deu total apoio ao Pe. Miguel1 na iniciativa de instalar a rádio Educadora de Bragança e de pôr em funcionamento o Sistema Educativo Radiofônico de Bragança – SERB (ANUÁRIO DA DIOCESE, 1990, p. 05). 1. A história da rádio teve início quando Pe. Miguel Giambielli, então Vigário Geral, indo ao Sul do país, entreteve-se longamente com um bispo de Minas Gerais, Dom Giovanni Cavati, que falou do vivo interesse e da importância e das vantagens de uma emissora católica na prelazia do Guamá. (LIVRO DOS BARNABITAS; 2003; p. 93)

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Diante dos desafios sobre a educação para os jovens e adultos analfabetos nas diversas comunidades do Município de Bragança, foi através da rádio e do SERB, que a Prelazia realizou iniciativas de promoção humana, não somente por meio das aulas radiofônicas, mais em diversos treinamentos para as equipes de seus monitores e supervisores do quadro, e inúmeras programações agrícola e artesanal. Além disso, o sistema educativo radiofônico de Bragança participou em seu percurso inicial, em uma concepção de movimento de educação de base para os jovens e adultos.

Figura 1 — Escritório do SERB, instalado em 19602. Fonte: Livro dos Barnabitas (2003, p. 94).

Outro fator presente na proposta de educação do SERB foi a iniciativa referente ao problema agrícola, à assistência social e a educação escolar radiofônica para os centros mais isolados e afastados da prelazia, com a finalidade de superar o problema da distância em seus empreendimentos. Essa foi talvez a mais ousada das realizações guamaenses, medida que revelava a maior adaptação às formas e mais moderna e eficaz do trabalho evangelizador, utilizando-se do providente recurso da comunicação – A rádio educadora de Bragança (LIVRO DOS BARNABITAS, 2003). Feitas essas considerações este trabalho tem por objetivos: Identificar as condições da implantação do Sistema Educativo Radiofônico de Bragança

2. Desde 1990 a rádio educadora funciona no escritório do SERB.

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(SERB), na década de 60 a 70 do século XX, analisar a concepção de educação desse sistema educativo e mapear os saberes da prática educativa que lá circulavam.

O percurso metodológico O estudo em foco fundamenta-se na história cultural. Nessa perspectiva busca estabelecer um diálogo com a cultura, com o cotidiano, enfim, com os valores e as regras, criadas por cada grupo. (BURKE, 2005). A pesquisa em desenvolvimento é de natureza documental e bibliográfica. Segundo Gil (1999), a pesquisa bibliográfica se faz principalmente como o uso de livros e artigos e a documental com documentos. O autor menciona, ainda, que a pesquisa documental assemelha-se a pesquisa bibliográfica, a diferença entre elas está na natureza das fontes, a bibliográfica traz consigo a discussão de diversos autores sobre um determinado assunto, enquanto que a documental baseia-se em materiais que ainda não receberam um tratamento analítico ou podem ser reelaborados de acordo com os objetivos da pesquisa. Para Rodrigues e França (2010), historicamente só os documentos escritos e ou manuscritos eram considerados como uma única forma para compreender as relações sociais do mundo. O discurso recorrente era que o pesquisador só poderia ter acesso aos documentos, nas bibliotecas, nos acervos particulares e em centros de memória. Hoje, as concepções de investigação de documentos ultrapassam essa lógica de pensamento, pois, as informações sobre um determinado objeto de estudo podem ser encontradas nos mais diferentes fontes: produções iconográficas, em filmes, diários, noticiários de rádio, na internet, correspondências entre outros. Considerando que os documentos existem nas mais diferentes formas e em diferentes espaços busquei reunir um número significativo de documentos. Na Secretaria e Diretoria do SERB, localizei os documentos: “O anuário da Diocese de Bragança –Pará- 1990/ 60 anos de caminhada;” O livro dos Barnabitas 100 anos”. “O livro SERB O Pioneiro em Tele Educação na Amazônia – O que é O que faz” e “Um Jornal do SERB.” No levantamento dessas fontes, utilizei uma 355


O sistema educativo radiofônico de Bragança: saberes da prática educativa na Educação de Jovens e Adultos (1960- 1970)

máquina fotográfica Ex. 300 - digital modelo Sony, Zoom de 50, uma vez que os materiais que se encontravam na instituição não poderiam ser cedidos e nem xerocados. À medida que localizei os documentos fui selecionando-os tendo como referência as orientações contidas no artigo “Uso de Documento em pesquisa sócio-Histórica” de Rodrigues e França (2002), publicado no livro “Metodologias e Técnicas de Pesquisa em Educação” organizado por: Marcondes; Teixeira e Oliveira (2010) da EDUEPA. Diante disto, Rodrigues e França (2002), comentam que para o pesquisador desenvolver uma pesquisa documental, este precisa compreender a história dos documentos, quem os escreveu e com que propósito, além de identificar o seu conteúdo, quando foi escrito e a sua importância para o estudo em desenvolvimento. É preciso ter clareza que os sentidos e significados dos documentos localizados, possibilitam compreender o sistema educativo radiofônico de Bragança.

Figura 2 — Capa Anuário da Diocese. Fonte: Secretaria do SERB.

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Figura 3 — Livro do Barnabitas. Fonte: Diretoria do SERB.


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Figura 4 — Documento das atividades do SERB. Fonte: Diretoria do SERB.

Figura 5 — Jornal da Rádio educadora. Fonte: Secretaria do SERB.

O anuário publicado em 06 de novembro de 1990 é uma edição comemorativa do 60º aniversário da Igreja, sendo 50 anos como Prelazia, 10 anos como diocese e o Jubileu de prata das comunidades Eclesiais de Base. Além do que este ano, comemora-se o 30º aniversário da rádio educadora de Bragança – REB, a coluna mestre do SERB. É notório afirmar que este livro apresenta as ações desenvolvidas por Dom Miguel e Dom Eliseu, desde o período em que a prelazia desenvolvia seus trabalhos com as comunidades eclesiais de base, o que propicia identificar o surgimento da rádio educadora. O livro “Os Barnabitas no Brasil 100 anos” (2003), apresenta a origem desta congregação religiosa no Brasil e sua vinda para Bragança, sua filosofia religiosa, bem como a constituição do SERB e suas ações de evangelização. O livro “SERB O Pioneiro em Tele Educação na Amazônia O que é O que faz”; discute as características das atividades do SERB: “A prelazia do Guamá; Estrutura de uma comunidade cristã de base” Campos de Atuação do SERB; Metas alcançadas; Entidades que colaboram com o SERB. Este livro não possui autor e ano, entretanto, verificando o seu conteúdo é perceptível que o trabalho

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desenvolvido abrange a primeira década dos anos de 1960. Enfim, informações pertinentes para compreender por meio dessa prática educativa radiofônica os saberes educativos. O “Jornal do SERB”3 apresenta o idealizador da rádio educadora de Bragança Dom Eliseu, este jornal foi redigido por Gerson Alves Guimarães; Dom Miguel Giambelli; irmã Maria José de Sousa e Celso Orlando da Silva Leite. Ele apresenta, ainda, a implantação do SERB; a sistematização deste sistema; a construção do prédio da rádio, a transmissora da rádio onde as irmãs eram responsáveis de operacionalizar a emissora; a inauguração da rádio e os sujeitos que fazem parte deste sistema. Fui autorizado pela diretora do sistema educativo radiofônico a pesquisar no arquivo da Arquidiocese de Bragança, onde se encontram alguns livros de tombos, inclusive sobre o SERB, ofícios referentes à legalização da rádio, e a alguns decretos que sobre o MEB Bragança. No Arquivo público Municipal, pesquisando os documentos, identifiquei um ofício, um jornal da Província do Pará e um decreto do Ministério da Educação e Cultura (1968). Esses documentos tratam sobre o envolvimento do sistema educativo radiofônico na educação de jovens e adultos e recursos financeiros para o funcionamento deste sistema. Neles contém ainda informações sobre a alfabetização no Brasil. Vale mencionar que tanto no arquivo Municipal de Bragança quanto no arquivo da Arquidiocese de Bragança, todos os documentos foram fotografados e catalogados em pastas com identificação para análise. Os arquivos para Derrida (2001) são como, inscrições, marcas, impressões, assim como a decodificação das inscrições e o armazenamento e a preservação das impressões, enfim um lugar de reunião de signos. Além destes materiais, trago para ilustração fotografias que se encontram tanto no SERB quanto no memorial de Dom Eliseu, localizado no Instituto Santa Teresinha. Essas fotografias expressam a vivência, os sentidos, os significados, dos sujeitos pertencentes a este ensino. Para Kossoy (2005), a fotografia apresenta a vida de cada personagem, o contexto que per3. O presente jornal não possui o ano que foi redigido.

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mitiu a sua materialização. Além dos pensamentos e sentimentos há uma realidade interior que está para além da aparência imobilizadora da fotografia. A organização das fotos, dos livros de tombos permite olhar a cultura dos sujeitos pertencentes a esta experiência. Diante dessas considerações, o presente trabalho apresenta, inicialmente, a minha experiência acadêmica e profissional, a qual me levou a fazer escolhas, o objeto de estudo e os objetivos da pesquisa. Em seguida, menciono o percurso metodológico que fui tecendo para compreender o meu objeto, trazendo à tona os aportes teóricos que sustentam a investigação.

Conclusão A proposta de pesquisa apresentada sobre o Sistema Educativo Radiofônico de Bragança, faz parte de uma experiência que aconteceu na primeira década de trabalho, 1960 a 1970, no Município de Bragança – Pará. Este sistema tinha uma política institucional dos Barnabitas em Bragança, estando a frente Dom Eliseu Maria Coroli e Padre Maria Giambelli que desenvolveram diversas ações para diminuir o índice de analfabetismo, por meio da rádio educadora. Neste primeiro período de trabalho, várias políticas de movimento de educação, em prol da alfabetização de adultos estavam acontecendo no Brasil, entre elas o Movimento de Educação de Base - (MEB). O MEB, desenvolveu suas ações por meio dos sistemas radiofônicos a nível nacional e local. Neste sentido este trabalho fortalece a educação de jovens e adultos no Município bem como demonstra a implantação e os saberes das práticas educativas existentes no sistema educativo radiofônico de Bragança.

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O sistema educativo radiofônico de Bragança: saberes da prática educativa na Educação de Jovens e Adultos (1960- 1970)

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ROGERIO ANDRADE MACIEL E MARIA DO PERPÉTUO SOCORRO GOMES DE SOUZA AVELINO DE FRANÇA

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O GÊNERO SEMINÁRIO ESCOLAR COMO OBJETO DE ENSINO NA 7ª SÉRIE DO ENSINO FUNDAMENTAL Debora Regina Silva da Paixão Borges (UFPA) Maria Helena Rodrigues Chaves (UFPA)

Introdução A motivação para a realização desta pesquisa surgiu não só de um estágio, mas também de uma preocupação, como futuras professoras de língua materna, com a falta de sistematização didática nas atividades relacionadas às práticas de linguagem oral na escola de nível fundamental. Percebemos que a exposição oral, ainda é pouco explorada no meio escolar, parece que alunos e professores não têm conhecimento a respeito de como se estrutura uma exposição oral ou de como fazer do gênero oral objeto de ensino. Assim, por vezes, ele é usado, apenas, como método avaliativo para ajudar na soma das médias dos alunos, sem que se oriente o aluno, desde seu ensino básico, a lidar com situações de expor um assunto em público. No espaço da sala de aula, o gênero oral, muitas vezes tem permanecido limitado a atividades como leitura em voz alta e discussões informais sobre temas relacionados aos conteúdos das diversas disciplinas; no entanto, os professores dessas disciplinas não têm por objetivo propiciar o desenvolvimento da competência linguísticocomunicativa dos alunos, pois, para eles, o essencial é verificar o domínio do conteúdo escolar apresentado. Incomodados com essa realidade das escolas brasileiras, em especial da região bragantina, optamos por fazer esta pesquisa, levantando uma breve discussão acerca da importância do trabalho com a exposição oral como objeto de ensino, ampliando uma reflexão sobre o gênero Seminário Escolar, bem como apresentando os resultados obtidos a partir das análises da situação observada dentro da sala de aula.

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O gênero seminário escolar como objeto de ensino na 7ª série do Ensino Fundamental

Assim sendo, este artigo está organizado em três tópicos. No primeiro, abordaremos conceitos importantes de teóricos que tratam a língua em seus aspectos discursivos e os procedimentos metodológicos para o ensino de gêneros orais, segundo Schneuwly & Dolz (2004) e Chaves (2008). No segundo tópico, descreveremos os procedimentos metodológicos que situam esta pesquisa no quadro dos estudos de cunho etnográfico de base colaborativa. E no terceiro tópico, apresentaremos a análise dos aspectos constitutivos da produção inicial e da produção final dos alunos.

Pressupostos teóricos Para darmos início, apresentaremos os principais conceitos teóricos que serviram de base para nossa pesquisa. Descreveremos, brevemente, os princípios filosóficos que sustentam a concepção interacionista da linguagem, segundo Bakhtin (1986; 1997); algumas discussões a respeito do ensino de língua, a partir dos estudos de Marcuschi (2008), e Antunes (2003); apresentaremos, ainda as reflexões e orientações procedimentais de Schneuwly & Dolz (2004) a respeito dos gêneros textuais como objetos de ensino, bem como as peculiaridades a respeito do oral, tendo por base Chaves (2008).

Embasamentos interacionistas de linguagem Uma das concepções adotadas neste trabalho é a concepção interacionista filosófico-marxista da linguagem, proposta por Bakhtin, segundo a qual, a principal característica da linguagem é o seu caráter dialógico. Para Bakhtin “a enunciação é o produto da interação de dois indivíduos socialmente organizados e, mesmo que não haja um interlocutor real, este pode ser substituído pelo representante médio do grupo social ao qual pertence o locutor” (BAKHTIN, 1986, p.112). Significa dizer que a enunciação se dá num caráter de relação social entre vários indivíduos do mesmo grupo ou não, presentes ou não, determinada por uma ideologia, na qual o signo linguístico é espaço de interação. O indivíduo se 364


DEBORA REGINA SILVA DA PAIXÃO BORGES E MARIA HELENA RODRIGUES CHAVES

apropria da linguagem e a renova conforme suas intenções e finalidades. Pois, o uso da língua efetua-se em forma de enunciados (orais e escritos), concretos e únicos, dentro de uma esfera da atividade humana. De acordo com Bakhtin, cada esfera da atividade humana organiza seus tipos específicos e relativamente estáveis de enunciados denominados de gêneros do discurso. Segundo Bakhtin (1997): A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando-se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa. (BAKHTIN, 1997, p. 279).

Ou seja, cada enunciado que consolida os gêneros é individual e torna visíveis os traços da personalidade particular de cada indivíduo. Com isso, Bakhtin (1997) discorre acerca da importância do interlocutor no enunciado, levando em consideração o papel do outro “toda compreensão é prenhe de resposta e, de uma forma ou de outra, forçosamente a produz: o ouvinte torna-se o locutor”. (BAKHTIN, 1997, p. 290). Assim pode se dizer que o ouvinte é um sujeito de responsividade ativa, a importância do outro no enunciado é o que demonstra a dimensão interativa da linguagem. Nessa dimensão, o enunciado é sempre uma resposta a outros enunciados, com os quais conversa, o que o torna polifônico, conservando as diferentes vozes que dialogam no enunciado. É dessa forma que abrangemos a linguagem no contexto de sala de aula, um lugar de discursividade, onde a comunicação entre professor e aluno aconteça de maneira ideológica e interativa. Veremos adiante algumas visões acerca do ensino de língua.

Ensino de línguas O destaque de que as línguas existem para promover interação entre as pessoas nos leva a admitir que a concepção interacionista de linguagem é a mais ampla para fundamentar o ensino de línguas. Marcuschi (2008, p. 55) enfatiza 365


O gênero seminário escolar como objeto de ensino na 7ª série do Ensino Fundamental

que o núcleo do trabalho de se ensinar a língua deve estar no contexto da compreensão, produção e análise textual, isso de forma geral. Nessa perspectiva, o ensino de língua parte do enunciado e suas maneiras de produções para entender e produzir textos. Por isso, deve-se dar aos alunos mais possibilidades de ler, de escrever textos, de se expressar, de aprender gramática e ortografia de forma mais dinâmica em função da comunicação. “(...) A escola não deve ter outra pretensão senão chegar aos usos sociais da língua, na forma em que ela acontece no dia a dia da vida das pessoas”. (ANTUNES, 2003, p. 108). Desse modo, o objetivo de se ensinar a língua materna é de que o educando aprenda a se comunicar eficientemente. Nesse sentido, o aprendizado dos gêneros textuais, tanto escritos como orais, se tornam importantes, pois nas aulas de Português a língua pode ser estudada em diferentes formas, dependendo da situação, fazendo com que o aluno construa seu conhecimento na interação com o objeto de estudo. Como bem nos acrescenta Rojo (2000) ao incluir os gêneros como objetos de ensino: A noção de gênero permite incorporar elementos da ordem social e do histórico (que aparecem na própria definição da noção); permite considerar a situação de produção de um dado discurso (quem fala, para quem, lugares sociais dos interlocutores, posicionamentos ideológicos, em que situação, em que momento histórico, em que veículo, com que objetivo, finalidade ou intenção, em que registro, etc.); abrange o conteúdo temático - o que pode ser dizível em um dado gênero, a construção composicional - sua forma de dizer, sua organização geral que não é inventada a cada vez que nos comunicamos, mas que está disponível em circulação social - e seu estilo verbal- seleção de recursos disponibilizados pela língua, orientada pela posição enunciativa do produtor do texto (ROJO, 2000, p. 152).

Neste sentido, tomamos por base em nosso trabalho a concepção interacionista de linguagem e, é desse modo que pensamos os gêneros enquanto objetos de ensino. Para fazê-lo, e com mais propriedade, convocamos os estudos de Schneuwly e colaboradores (2004) do grupo de Genebra que teorizam a respeito da didatização dos gêneros do discurso.

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Os gêneros textuais como objetos de ensino Neste artigo tomamos por base os estudos da equipe de Didáticas de Línguas da Universidade de Genebra, liderada por Schneuwly, que concebem os gêneros textuais como instrumentos de comunicação que podem tornar-se objetos de ensino, ou seja, é possível ensinar tendo por base as produções orais e escritas que se realizam nas diversas situações de comunicação, tanto no contexto escolar como fora da escola. Eles entendem que os gêneros de textos não são os objetos reais de ensinoaprendizagem, porém eles partem da hipótese de que é “através dos gêneros que as práticas de linguagem materializam-se nas atividades dos aprendizes” (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 74), tornando o aluno competente para o uso das práticas de linguagem. Assim, para se ensinar um gênero o professor em sala de aula precisa arquitetar seus próprios objetos, ou seja, construir um modelo do gênero a ser trabalhado para poder didatiza-lo. “O professor precisa primeiro conhecer o gênero, descrevê-lo minuciosamente, construir um modelo idealizado dele para ensinar aos alunos ou para, nesse ideal, situar os tópicos que elegeu para ensino” (CHAVES, 2008, p. 50). Nesse sentido, conforme De Pietro & Schneuwly (2008), o modelo didático é um produto que precisa ter uma certa estrutura, assim esse produto é o resultado dessa construção e o modelo didático é finalmente um instrumento de construção de sequências de ensino. Sendo assim, o modelo didático é o ponto de partida e de chegada de um trabalho com gêneros discursivos. Desse modo o modelo didático é essencial para o processo de transposição didática. Assim a sequência didática é entendida como um “conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito” (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 97), a sequência didática é, pois um suporte para o aluno dominar melhor um gênero discursivo permitindo-lhe escrever ou falar de forma mais apropriada em determinada situação de comunicação, pondo o aluno em contato com as práticas de linguagem novas e não domináveis. Por fim, de tudo o que foi apresentado, ire-

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mos agora, discorrer acerca do oral como objeto de ensino, tendo como gênero principal o seminário escolar. Finalmente, apresentaremos, em nosso estudo, o gênero seminário escolar, conforme os conceitos de Chaves (2008). Para essa autora, o seminário escolar é um gênero peculiar do ambiente escolar, que ocorre dentro da sala de aula, podendo ser monitorado pela professora/orientadora, uma vez que tem caráter avaliativo. Podemos apreender que, o gênero seminário é de caráter discursivo, característico do ambiente escolar que envolve o aluno, a participação entre grupos, interação com a classe e com o professor. Nesse sentido, podemos considerar que o seminário escolar pode ter caráter avaliativo, mas também é uma forma de analisar, discutir, levantar questionamento, confrontar e defender suas ideias e explicações sobre o trabalho exposto. Portanto, é uma forma de diálogo em classe em que a consciência dessa interação torna o aluno mais competente. Para melhor analisarmos o seminário escolar como objeto de ensino, faz-se necessário entendermos as dimensões ensináveis da exposição oral. A exposição oral pode ser classificada em três dimensões: a dimensão da situação de comunicação, a dimensão da organização interna da exposição e a dimensão das características linguísticas. Essas três dimensões são importantes para interpretarmos as representações que os alunos, por nós observados, têm do gênero seminário escolar. Essa importância é ainda maior se considerarmos que, no contexto didático “ensinar o gênero ‘seminário’”, portanto, provavelmente, não só traria um retorno imediato no que diz respeito ao desenvolvimento de competência de uso da linguagem oral e da escrita, mas também permitiria a ampliação significativa da aprendizagem dos alunos nos diversos campos dos saber”. (CHAVES, 2008, p. 71). Assim, podemos concluir que, o gênero seminário escolar é de fundamental importância para o desenvolvimento dos alunos, pois estimula a fala, assim como também a escrita, tornando-se um grande instrumento para o processo de ensino-aprendizagem.

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A trajetória metodológica Nesse tópico apresentaremos os pressupostos metodológicos que orientam esse estudo e o percurso que fizemos para constituir os dados. Descreveremos o contexto onde a pesquisa se realizou, caracterizaremos os participantes e os instrumentos utilizados para a constituição dos dados. Desse modo, explicitaremos a orientação metodológica que seguimos para constituir nossos dados.

A abordagem etnográfica de caráter cooperador na sala de aula A abordagem etnográfica foi a metodologia mais lógica para a nossa pesquisa, esta escolha justifica-se pelo fato desta constituir-se na abordagem que, apropriadamente, possibilitou a inserção das pesquisadoras no lócus da pesquisa, a sala de aula, com o objetivo de observar e descrever em colaboração com os informantes (professora e alunos) como têm sido efetivadas as práticas de linguagem oral na escola. Todos esses fatores demandavam uma metodologia direcionada para o registro diário da escola, que permitisse a descrição de tudo que ocorria no ambiente escolar. A investigação etnográfica que respalda este trabalho é, pois, aquela que se preocupa em estudar os sujeitos (os alunos) inseridos em uma determinada esfera socialmente definida (a sala de aula), a fim de investigar como estão sendo efetivadas as práticas de linguagem oral e como esses alunos estão fazendo uso da palavra durante as apresentações de seminário nas aulas de Língua Portuguesa. Por esse motivo, nossa pesquisa pode ser denominada de observação qualitativa com observador participante, conforme André (1986).

Contextualização da pesquisa Nossa investigação surgiu a partir da disciplina Estágio Supervisionado II Regência Compartilhada no Ensino Fundamental, disciplina essa, que compõem a grade curricular do curso de Letras- habilitação em Língua Portuguesa. A turma que nos foi concebida para a pesquisa foi a da 7ª série que funcionava no 369


O gênero seminário escolar como objeto de ensino na 7ª série do Ensino Fundamental

período da manhã. A mesma contava com 25 alunos, com faixa etária entre 12 e 14 anos. Elaboramos, para esta turma, uma proposta de didatização do gênero seminário escolar, que se compõe do modelo didático do gênero e da sequência didática que será descrita a seguir. Porém, não de forma completa, pois o modelo que preparamos apresentou um recorte bem sintético do gênero, em função do tempo extremamente reduzido de que dispusemos para ensinar nesta turma (um período de três aulas, apenas). Observemos, então, a sequência didática do gênero seminário escolar:

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Oficinas

Exposição inicial dos alunos (Apresentação da situação mais detalhadamente)

Avaliação da exposição inicial (As fases estruturais do gênero seminário)

Exposição final (Avaliação da exposição final e da sequência didática)

Objetivo

• Observar os desempenhos dos alunos e quais são as dificuldades que precisam ser trabalhadas • Presentificação do gênero seminário escolar

• Avaliar as competências e dificuldades dos alunos com vistas à reelaboração da atividade • Promover nos alunos a consciência através de uma avaliação coletiva das apresentações que foram feitas

• Avaliar a aprendizagem em relação ao seminário inicial • Criar a oportunidade para que os alunos avaliem o seu próprio desempenho e aprendizagem

Atividades

• Apresentação de exposições em equipes de cinco alunos • Discussão sobre o gênero

• Amostra do vídeo das exposições dos alunos • Socializações das dificuldades encontradas nas exposições, avaliação coletiva • Planejamento de uma reformulação do seminário, uma exposição final

• Exposição das equipes • Discussão das performances dos grupos


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Materiais

• Cartazes, quadro, data show (critério dos alunos) • Esquema de como apresentar um seminário, anotações no quadro branco

• Quadro, caderno de anotações e data show • Vídeo das exposições iniciais Material teórico e ilustrativo para os alunos.

• Caderno de anotações • Cartazes (critério dos alunos)

Duração

07/01/13 - Segundafeira / 90min

09/01/13 - Quartafeira / 90min

10/01/13 - Quintafeira / 90min

Quadro 1 — Sequência didática do gênero seminário escolar

Na primeira oficina, os alunos fizeram as exposições iniciais. Foram apenas duas equipes, filmamos e observamos os desempenhos dos alunos e, quais as dificuldades que precisavam ser trabalhadas, principalmente no que diz respeito às características linguísticas que regem a fala durante a apresentação. Em seguida, apresentamos o gênero seminário escolar, com suas características e estruturas, conforme Schneuwly & Dolz (2004) e Chaves (2008). Na segunda oficina, nós avaliamos as exposições iniciais, juntamente com os alunos, e ensinamos a eles as fases estruturais do gênero seminário escolar, conforme Chaves (2008). Fomos para a sala de leitura para mostrar os vídeos das apresentações anteriores dos alunos. A partir desses vídeos fomos avaliando as competências dos alunos e as dificuldades encontradas na exposição, os mesmos também se auto avaliaram, foi um momento de bastante interação na classe. Desse modo, planejamos a exposição final dos alunos. No último dia de oficina foram feitas as versões finais de exposições das equipes e comparação com o primeiro seminário. Três equipes se apresentaram. Foi visível a diferença da produção inicial com a produção final. Finalizamos discutindo sobre as exposições e quais aprendizados foram levados dessas oficinas. Assim, no processo de construção de nossa pesquisa, alguns dados puderam ser gerados, através da sequência didática, tais como: os vídeos da exposição inicial; os vídeos da exposição final e as transcrições grafemáticas dos vídeos de cada equipe.

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O gênero seminário escolar como objeto de ensino na 7ª série do Ensino Fundamental

Análise dos dados Neste tópico, iremos fazer uma breve leitura dos dados constituídos durante a nossa pesquisa. Desse modo, interpretamos os dados constituídos na sequência didática durante a produção inicial e a produção final dos alunos, considerando três níveis: o primeiro nível diz respeito aos aspectos não-verbais, a gestualidade, a expressão facial e o olhar, movimentados pelos alunos nos momentos de apresentação dos seminários; no segundo nível de análise verificamos os aspectos verbais, relacionados mais diretamente com a estrutura do gênero seminário escolar, a organização composicional dos textos orais ditos pelos alunos, durante as exposições; e no último nível, ainda no que diz respeito aos aspectos verbais, analisamos a prosódia e os marcadores conversacionais. Desse modo, fizemos a análise desses aspectos confrontando a produção inicial com a produção final dos alunos. A partir dessa breve análise, na produção inicial dos alunos a estrutura do gênero seminário escolar foi pouco explorada, os alunos apresentaram aquilo que eles já sabiam a respeito de como apresentar um seminário. Os problemas com a oralidade são bastante visíveis, o que nos remete a Schneuwly e Dolz (2004, p. 225) que falam que, “a oralização deve, em primeiro lugar, favorecer uma boa compreensão do texto: falar alto e dis-tin-ta-men-te, nem muito rápido, nem muito lentamente, gerenciar as pausas para permitir a assimilação do texto”. E na produção final, os alunos conseguiram aprender sobre o gênero seminário escolar, conseguiram ter domínio de muitos aspectos que presentificamos nas intervenções didáticas. No mais, os alunos tiveram uma melhora bastante significativa, muito deles falaram que nunca tinham aprendido realmente como se trabalha o seminário na escola. Por fim, foi um trabalho produtivo, pois os alunos cooperaram e conseguimos chegar a resultados satisfatórios mesmo sendo em tão pouco tempo, pois conseguimos ver as mudanças na competência de como os alunos realizaram a sua produção final.

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Considerações finais Resgatando o que dissemos na introdução, este estudo foi motivado pela preocupação com a falta de sistematização didática nas atividades relacionadas às práticas de linguagem oral na escola de nível fundamental. Esse interesse surgiu após termos percebido que a exposição oral, é pouco explorada no meio escolar. Ao longo do desenvolvimento desta pesquisa, realizamos uma discussão mostrando a importância do trabalho com o gênero seminário escolar e a necessidade de transformá-lo num objeto de ensino. A partir dessas análises, chegamos à conclusão de que o ensino do oral, quando se faz tomando por objeto o seminário escolar, amplia significativamente a competência comunicativa dos discentes para o uso do oral formal público. Essa conclusão resulta do fato de que houve uma significativa mudança nos alunos, ao entrarem em contato efetivamente com ensino sistematizado do gênero seminário escolar, ainda que de forma breve. Em síntese, esperamos que esta pesquisa tenha conseguido mostrar que o trabalho com gênero seminário escolar, em ambientes escolares, pode ser muito gratificante e que, mais do que isso, pode realmente propiciar interações significativas para os sujeitos, principalmente dentro da escola.

Referências ANDRÉ, Marli Eliza Dalmazo Afonso de. Pesquisa em educação: abordagens qualitativas. São Paulo: EPU, 1986. ANTUNES, Irandé. Aula de Português: encontro & interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovich. Estética da criação verbal. (Tradução feita a partir do francês por Maria Em Santina Galvão G. Pereira). — 2 ed. São Paulo, Martins Fontes, 1997.p.277-326. BAKHTIN/VOLOSHINOV. Marxismo e filosofia da linguagem. Editora Mussite, São Paulo, 1986. CHAVES, M.H.R. O Gênero seminário escolar como objeto de ensino: instrumentos didáticos nas formas do trabalho docente. Universidade Federal do Pará, 2008. DE PIETRO; SCHNEUWLY. O modelo didático do gênero: um conceito de engenharia didática. In: GOMESSANTOS; CAMPOS (ORGs). Revista MOARA, n:º 6, 2008, Tradução de Sandoval Nonato Gomes Santos. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Da fala para a escrita: atividades de retextualização. 6º Ed. São Paulo. Cortez, 2005.

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O gênero seminário escolar como objeto de ensino na 7ª série do Ensino Fundamental

MARCUSCHI, Luiz Antonio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo. Parábola Editorial, 2008. ROJO, Roxane & CORDEIRO, Glais Sales. Apresentação: gêneros orais e escritos como objeto de ensino:modo de pensar, modo de fazer. In SCHNEUWLY; DOLZ et al (org). Gêneros orais e escritos na escola. Mercado de Letras, São Paulo, 2004.p.7-18. ROJO, Roxane. A prática de linguagem em sala de aula: praticando os PCN’s. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2000. SCHNEUWLY & DOLZ. Gêneros orais e escritos na escola. Tradução e organização: Roxane Rojo e Glais Sales Cordeiro. Mercado de Letras, São Paulo, 2000.

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SABERES E PRÁTICAS EDUCATIVAS NO PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DE COMPLEXOS TEMÁTICO NA FORMAÇÃO EM REDE DA SECRETARIA MUNICIPAL DE EDUCAÇÃO EM BRAGANÇA – PARÁ Robson Feitosa (UFPA) Lena Saraiva (UFPA) Maria Adriana (UFPA) Introdução Este trabalho surgiu a partir de uma experiência que está sendo vivenciada na Secretaria Municipal de Educação (SEMED) em Bragança – Pará e tem como objetivo analisar a proposta de reorientação curricular e a formação continuada de professores, via complexo temático, por meio do planejamento anual e no chão da escola, entre a equipe técnica da SEMED, os gestores, coordenadores e professores da rede municipal. Segundo o IBGE (2010), a cidade de Bragança – Pará situa-se no Nordeste Paraense tem uma área de 2.091, 930 km² e 113.227 habitantes. A fundação da cidade ocorreu em (08/07/1613), e durante este período as entidades religiosas influenciaram demasiadamente a organização da vida cultural da cidade. Em 2013, a cidade completou 400 anos de história e nessa constituição histórica, integra-se a Secretaria Municipal de Educação, em Bragança- Pará. O primeiro momento da construção do complexo temático foi definido em reunião pedagógica com a equipe da SEMED e os profissionais da rede municipal. A partir da história do município surgiu o tema gerador, Bragança 400 anos: Cultura, cidadania e sustentabilidade. Para que se compreenda a estrutura da articulação do complexo temático, busca-se enquanto abordagem o complexo, baseado na discussão teórica de Moisey Mikhaylovich Pistrak na qual se concebe a escola do trabalho como um instrumento que capacite o homem, a mulher, as crianças, os jovens, adultos e 375


Saberes e práticas educativas no processo de construção de complexos temático na formação em rede da Secretaria Municipal de Educação em Bragança - Pará

idosos a compreender seu papel na luta internacional contra o capitalismo, rompendo assim com as velhas estruturas. Referendando, ainda, Pistrak (2000), o complexo possui um campo conceitual, que sustenta um conjunto de elementos conceituais, relacionados às chamadas áreas do conhecimento, apresentado sob a forma de conteúdos que permitam interdisciplinarmente, pesquisar-estudar os complexos temáticos, trazendo as demandas de saberes específicos emergidos na elaboração de problemas em cada cotidiano escolar, no que diz respeito às aprendizagens escolares já construídas nos diferentes níveis e modalidades de ensino, surge então à ideia de construção de uma organização de ensino via complexo temático. A respeito do conceito temático, articula-se a sustentação teórica em Paulo Freire, por entender que esta explícita a abordagem sócio-antropológica, como fator de compreensão de uma organização de ensino, de forma coletiva, respeitando as especificidades locais e regionais do Município. Assim, as bases epistemológicas dos eixos temáticos, se discutem quando mulheres e homens são sujeitos existentes da sua própria história, que constroem e reconstroem suas aprendizagens em diferentes espaços, lugares e tempos. Isso configura uma prática existencialista de mediações de aprendizagens entre educandos e educadores na sua realidade, experiências, autonomia, reflexões críticas, mudança de posturas e articulação de saberes nos diferentes espaços educativos com cunho coletivo, em cada cotidiano escolar. Nesta base, os eixos temáticos possuem uma organização sistemática de ensino e pesquisa, pautados num conjunto de elementos que propiciam a formulação de questões e hipóteses, cujas dimensões socioculturais melhor expressam as totalidades e os significados das questões captadas na realidade social da comunidade (FREIRE, 1994). Mediante a abordagem Freireana e Pistrakiana, o currículo que vem sendo desenvolvido na Secretaria Municipal de Bragança está na relação sócio-antropológica, na relação do trabalho e comunidade, com um viés da reflexão crítica dos sujeitos, nas suas relações existenciais. Portanto, este currículo é pautado com a terminologia de currículo integrado, que baseia-se em uma educação contextualizada, que vem rompendo com uma visão fragmentada de organização de 376


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ensino, pois, articula as diferentes áreas de conhecimento, o diálogo, a pesquisa, a autogestão entre educadores e educandos no processo de construção do conhecimento, onde parte das problematizações emergenciais de cada momento existente no espaço escolar. O que caracteriza a construção do complexo temático e lhe permite a autonomia na dimensão administrativa e pedagógica em cada contexto educativo, inclusive na SEMED de Bragança-PA. Segundo Beane (2003), o currículo integrado é toda a concepção curricular que movimenta a capacidade de criar determinado tipo de relações de uma ou de outra espécie - com o passado, com a comunidade, atravessando disciplinas, etc. Portanto é uma concepção de currículo que procura dialogar e refletir sobre as diferentes áreas do conhecimento. Subjacentes a esta ideia de integração curricular encontram-se dois propósitos importantes. Por um lado, ajudar às crianças, jovens, adultos e idosos a integrar as suas próprias experiências, por outro lado, promover a integração social democrática entre eles. Logo, a integração curricular propicia um conhecimento integrado, por meio da construção dos complexos temáticos, em cada contexto, que devem ser assumidos e aprendidos não somente para preparar os sujeitos a um determinado futuro, mas relaciona-se com as necessidades de aprendizagens imediatas. Nesse ínterim, o conhecimento, também passa a ser uma vivência enquanto processo de uma relação local com o conhecimento universal. Essa forma de um pensamento curricular integrado a uma política de formação docente, de maneira interdisciplinar, alicerçada a uma concepção teórica e prática, está baseada a uma práxis pedagógica que possibilita a formação do professor pesquisador que se rompe com a visão fragmentada de conhecimento na formação de educadores pautada na figura do professor como detentor do conhecimento, construída historicamente no Brasil (ALVES; GARCIA, 2002). A formação de educadores no Município de Bragança- Pará tem ocorrido como um processo dialógico entre os profissionais da rede municipal, pois se entende que a reorientação curricular mediada pela formação dos educadores deve acontecer de maneira horizontal, coletiva, contrapondo a formação linear, ordenada, hierarquizada que se estabelece pelos padrões da sociedade capitalista e individualista, por entender que esta individualidade acelera as desigualdades 377


Saberes e práticas educativas no processo de construção de complexos temático na formação em rede da Secretaria Municipal de Educação em Bragança - Pará

sociais e impossibilita uma aprendizagem significativa entre educadores e educandos. Compreende-se que o conhecimento não é neutro, estático, como foi e é legitimado pela ciência, excluindo as outras formas de conhecimento, de saberes e de fazeres de cada sujeito. Mediante o exposto, articula-se entre os profissionais da Secretaria Municipal de Educação de Bragança-PA a seguinte investigação: De que maneira os educadores visualizam, na formação continuada, a proposta em construção de reorientação curricular, via complexo temático nas suas práxis pedagógicas? Esta é uma indagação que permite verificar se a construção do pensamento curricular por complexo temático tem contribuído ou não para a práxis pedagógica dos educadores. Neste sentido, serão apresentados os caminhos trilhados sobre a política de formação desenvolvida pela Secretaria Municipal de Educação em Bragança – Pará.

Metodologia A formação de multiplicadores em rede esteve embasada na concepção teórica e filosófica dos princípios educativos de Freire e Pistrak, que deram toda a sustentação desta pesquisa. A pesquisa tem uma abordagem qualitativo-descritiva que segundo Minayo (2001) trabalha com universo de significados, motivos, aspirações, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço de relações, dos processos e fenômenos que correspondem ao universo mais profundo das relações sociais, não se restringindo a variáveis quantificáveis. Assim, entende-se que os educadores envolvidos no processo de formação de multiplicadores em rede são sujeitos históricos mediados pelos conflitos e contradições refletidos no cotidiano escolar, por isso o percurso dessa formação deu-se com tensões, embates e discussões com intenção de buscar a transformação da realidade na perspectiva de uma educação de qualidade e socialmente referenciada. A elaboração da reorientação curricular de multiplicadores em rede do plano de formação continuada da SEMED de Bragança-PA apresenta os seguintes passos: 1- Formação da equipe técnica da SEMED pelo professor da Universidade 378


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do Federal do Pará, Evandro Costa de Medeiros4; 2- Técnicos da SEMED que formaram Gestores e Coordenadores das escolas da rede pública Municipal; 3Estudo dirigido com Gestores e Coordenadores para a reafirmação da proposta e construção de referenciais norteadores da proposta do currículo integrado via complexo temático; 4 – Formação dos professores da rede municipal mediada pelos Gestores e coordenadores; 5 – Construção do complexo temático por escola, de acordo com sua realidade, problemáticas e possibilidades das práxis pedagógicas dos educadores.

Quadro 1 — Formação de multiplicadores em rede

A dinâmica de produção e socialização do conhecimento produzido coletivamente durante todo o processo de formação de multiplicadores em rede deu-se por meio de apresentação de vídeos: Ilha das flores – em que foi problematizado, como se constrói o conhecimento? O conhecimento é um complexo integrado com sentidos e significados; Vida Maria – trouxe como discussão a importância da educação na vida dos sujeitos; Munduruku – que retrata a educação indígena que se constrói de forma contextualizada a partir do estudo da realidade, o dialogo intercultural. Ocorreram, também, leituras de textos dos principais autores em questão Freire e Pistrak (Pedagogia da autonomia, Pedagogia do Oprimido,

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Fundamentos da Escola do Trabalho), textos sobre o currículo integrado e currículo e desenvolvimento humano (BEANE, 2003; LIMA, 2007) e círculos de diálogos, com apresentação de atividades dirigidas entre os gestores/ coordenadores e professores para a construção do complexo temático e avaliação do processo dessa construção. Assim, para a construção da formação de multiplicadores em rede foram utilizados a abordagem de Pistrak e Freire que constituíram 06 princípios educativos: a pesquisa como principio educativo, que tem como foco o procedimento de estudo e análise da realidade, sob a ótica problematizadora e dialógica; a teoria do complexo temático, que está embasada no plano social, permitindo aos construtores do conhecimento, além da percepção crítico real, uma intervenção ativa na sociedade, com seus problemas, interesses, objetivos e ideais; educadores e educandos como sujeitos da produção de conhecimento, este princípio busca a auto-organização coletiva e autônoma, dos sujeitos escolares, com vista à transformação para uma sociedade mais humanizada; a interdisciplinaridade como atitude filosófica, em que o objeto/fenômeno em estudo deve ser verbalizado, contextualizado e problematizado nas múltiplas dimensões e possibilidades; o planejamento integrado e formação integral, entendido enquanto totalidade e ação coletiva dialogada a partir da realidade e necessidades de todos os envolvidos no processo ensino-aprendizagem; e por último a escola, como espaço coletivo de ação cultural, idealizado a partir da realidade dos sujeitos com enfoque na valorização da cultura e no saber local. Esses princípios educativos estão propiciando a base para a construção do complexo temático em todo o processo de formação continuada na perspectiva de educadores multiplicadores, o que refletiu ações efetivas e concretas para a resolução de situações-problemas no chão de cada escola da rede pública municipal. A construção do complexo temático inicial da Secretaria Municipal de Educação de Bragança-PA que se deu a partir do tema gerador: Bragança 400 anos: cultura, cidadania e sustentabilidade, fundamentados nos princípios supracitados é composto por 07 etapas integralizadas dentro de uma totalidade.

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1. Tematizar: Questões sobre a temática. (Perguntas sobre a temática); 2. Questões Problemas: Levantamento das questões problemas; acerca da sua realidade; 3. Noções de conteúdos interdisciplinares sobre a temática: Que conteúdos são necessários para compreender/aprender a temática levantada? 4. Proposta de Atividades Pedagógicas: Pesquisa da realidade, pesquisa de campo, pesquisa bibliográfica, pesquisa na internet, observação participante. (As atividades e os conteúdos devem dialogar no sentido de responder as questões sobre a temática); 5. Organização dos dados da pesquisa. Como organizar os registros, os produtos; a partir da pesquisa. – organização/análise /apresentação; 6. Aprofundamento de atividades/estudos: Aumentar/buscar formas para elaborar ações das quais precisam ser desenvolvidas na busca da formação do aluno, por meio das outras áreas do conhecimento, que podem se constituir em: passeios, palestras, aulas, novas pesquisas, leitura de textos, vídeos, oficinas, ouvir outras pessoas e etc; 7. Construção de sínteses sobre a temática: Exposição do material produzido na forma de: teatro, museu, painel, do artesanato, álbum, construção de dicionários da linguagem local, livro de receitas da culinária local, cordéis, produção de vídeos, painel de fotografia, construção de mapas, maquetes, história em quadrinhos, construção de textos, livro das brincadeiras de ontem e de hoje, livro dos causos contados na comunidade.

Quadro 2 — Passos de construção do complexo temático

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A reelaboração curricular, descrita na metodologia, da formação de multiplicadores em rede foi construída sob uma perspectiva interdisciplinar, crítica e coletiva com a intenção de que todos os esforços desse trabalho se efetivem no chão da escola com vistas à transformação social da realidade que está posta e à construção de sujeitos históricos emancipados. Dessa forma, a avaliação de toda a trajetória percorrida da referida formação deu-se por meio de um questionário que segundo Gil (2010) pode se definir como uma técnica de investigação composta por um número mais ou menos elevado de questões apresentadas às pessoas por escrito, tendo como objetivo o conhecimento de opiniões, crenças, sentimentos, interesses, expectativas, situações e vivencias etc. Nesse sentido, o questionário avaliativo trouxe informações sobre o andamento da reformulação curricular na perspectiva de diagnosticar e delinear novos caminhos e possibilidades na práxis pedagógica dos educadores.

Resultados e discussão Como já foi mencionado anteriormente, o trabalho trata sobre uma pesquisa em andamento de currículo integrado e a formação de professores. Neste ponto de vista, as atividades desenvolvidas no planejamento anual culminaram com a análise dos profissionais da rede sobre a proposta via complexo temático. Logo, estes resultados foram avaliados no segundo momento de culminância que ocorreu em dezembro 2013 onde foi apresentada a diversidade de ensino-aprendizagem de acordo com as realidades locais entre campo e cidade. Neste processo de socialização de conhecimento locais foi possível avaliar algumas dinâmicas as quais são importantes para avaliarmos o perfil dos profissionais de educação do município de Bragança-Pa no que refere à formação continuada dos profissionais. É importante ressaltar como a dinâmica do conhecimento que é pensada pelos demais profissionais da rede e principalmente os que estão na base educacional, onde ainda encontramos uma realidade dinâmica ao nível de formação. De acordo com o levantamento profissional no quadro a seguir: 382


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Magistério

Graduandos

Graduação

Cidade

5%

30%

70%

Campo

50%

30%

20%

Quadro 3 — Níveis de formação dos profissionais municipais-2013 Fonte: Secretaria Municipal de educação do Campo/2013.

Com base nos dados do desse quadro, é importante destacar que a rotatividade de sujeitos no âmbito educacional implica num impasse a ser repensado e restruturado na formação continuada desses profissionais que iniciam um processo de concepção das bases curriculares iniciais que muitas vezes é interrompido pela determinação do sistema de ensino. A pesquisa iniciada no primeiro semestre de 2013, com restruturação das bases curriculares via complexo temático, mostra que a continuidade deste profissional é de extrema importância para a efetivação do ensino-aprendizagem.

Considerações finais A elaboração da proposta de formação continuada e reorientação curricular via complexo temático no Município de Bragança – PA tem sido construída de forma democrática entre os técnicos das SEMED e os profissionais da rede pública municipal de ensino. Esta democracia esta pautada na construção dialógica delineada por Freire e consolidada para uma reflexão de autogestão crítica de cada espaço vivenciado, referendada por Pistrak. Logo, essas abordagens foram articuladas a todo momento da formação continuada, o que possibilitou inúmeras ações norteadoras da equipe para os próximos planejamentos. Assim, a proposta que norteia o complexo temático e os planejamentos propiciados pela SEMED, que vem sendo ocorrida no chão da escola, tem sido operacionalizada na busca de uma reorientação curricular mais fundamentada teoricamente, o que possibilita a ação- reflexão-ação a todo o momento da constru-

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ção do conhecimento dos sujeitos existentes nas escolas enquanto fator relevante para a proposta baseada na realidade sociocultural dos sujeitos. Sabe-se, ainda, que há dificuldades encontradas em torno da proposta uma vez que os educadores estão estudando para compreender a nova organização de ensino por complexo temático, percebe-se que as próprias escolas estão construindo suas propostas via complexos temáticos. Assim, a organização do ensino está baseada na resolução de situações problemas encontradas em cada espaço educativo. Neste sentido, acredita-se que o processo educacional deve vincular-se à uma totalidade, onde os professores devem ter a possibilidade de relacionar suas ações dentro da dinâmica escolar com a autonomia efetiva sobre seu trabalho, e assim sendo possível a construção de uma educação pautada no princípio para a formação humana, que possa assumir a função de sujeito e não de mero objeto desse processo. Sendo de suma importância um projeto compromissado com uma concepção de homem, mundo, sociedade e educação, que visem à formação humana a partir de princípios superadores da realidade que está posta e que pode ser transformada pelo viés educativo. Portanto, os resultados revelam que esta proposta redimensiona diferentes formas de olhar, ouvir e escrever sobre um ensino articulado ao contexto de uma escola bragantina, trazendo à tona, ainda, a essência de um professor pesquisador em sua práxis pedagógica.

Referências ALVES, N; GARCIA, R. L. A construção do conhecimento e o currículo dos cursos de formação de professores na vivência de um processo. In: ALVES, N. (Org.). Formação de professores: pensar e fazer. 7 ed. São Paulo: Cortez, 2002. BEANE, A Jean. Integração curricular: A essência de uma escola democrática. Currículo sem fronteiras, v.3, p. 91-110, Jul./dez.2003. Disponível em:<www.curriculosemfronteiras.org >. Acesso em: 10 maio 2013. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Cidades – Bragança -Pará. IBGE, 2010. Disponível em: <http://www.ibge.gov.br/cidadesat/xtras/perfil.php?codmun=150170&search=para|braganca>. Acesso em: 29 jul. 2007. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia. São Paulo: Editora Paz e Terra, 1997. ______. Pedagogia do oprimido. São Paulo: Editora Paz e Terra,1994.

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ROBSON FEITOSA, LENA SARAIVA E MARIA ADRIANA

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A NARRATIVA E A TECNOLOGIA COMPUTACIONAL NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM Aldiléia Lopes de Morais (SEDUC) Alessandra Fabrícia Conde da Silva (UFPA)

Introdução O presente artigo busca mostrar que as narrativas e a tecnologia computacional, se utilizadas pedagogicamente no processo de ensino-aprendizagem, podem contribuir em demasia à formação das crianças quanto à leitura, à interpretação e à produção textual. Tomando como base essas informações, podemos proferir, infelizmente, que muitos professores ainda empregam as narrativas e os computadores no âmbito escolar, apenas como meros transmissores de conhecimento, em que as crianças são submetidas apenas a atividades conteudistas, as quais estão mais direcionadas às reproduções dos conhecimentos, não proporcionando às crianças as suas diversas contribuições. As narrativas são uma fonte de conhecimento, possibilitando ao ser humano, tanto conhecer o mundo real, quanto o da fantasia. Por intermédio disto, as narrativas oferecem às crianças diversos benefícios ao seu desenvolvimento, principalmente em relação à sua formação enquanto leitor e produtor de textos. Por conta disso, este trabalho pretende discorrer sobre a importância do uso das novas tecnologias, aliada à narrativa, em nosso caso, a narrativa oral e oferecer uma proposta pedagógica. A qual será utilizada numa sequência didática, utilizando tanto a tecnologia computacional, quanto à narrativa. Estas duas ferramentas serão utilizadas na criação de uma historinha, a da vaca Mágica, utilizando-se o software Hagáquê. Objetivamos demonstrar aos educadores que as narrativas e a tecnologia computacional, se empregadas pedagogicamente no processo de ensino-aprendizagem, podem proporcionar ao desenvolvimento dos educandos, diversas

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contribuições e, entre elas, a sua formação enquanto leitor e produtor de texto. Esta proposta pode ser empregada aos alunos do 4º ano /9, uma vez que tais educandos possuem mais condições de construir as narrativas no software. Mas, isto não impossibilita aos educadores de utilizarem esta tecnologia com outras crianças que estão inseridas noutra série do Ensino Fundamental.

A importância das novas tecnologias na formação de futuros leitores e produtores de textos A tecnologia computacional é hoje um dos recursos mais utilizados e empregados pelo ser humano. Por estarmos em um mundo tecnológico - no qual, a todo instante novos conhecimentos surgem -, a tecnologia computacional passa a ser uma ferramenta pedagógica importante no processo de ensino-aprendizagem, por contribuir significativamente na aprendizagem dos alunos. Maria Elizabeth de Almeida (2000, p. 12) assevera-nos que os computadores “(...) possibilitam representar e testar ideias ou hipóteses, que levam à criação de um mundo abstrato e simbólico, ao mesmo tempo que introduzem diferentes formas de atuação e de interação entre as pessoas”. Assim sendo, entende-se que os computadores dão maior possibilidade de representação, o que facilita a criação do mundo simbólico, possibilitando ao aluno de forma atraente e criativa o ingresso ao mundo da leitura e escrita. As tecnologias computacionais por disporem de mecanismos diferenciados, atraem e fascinam mais rapidamente a nova geração. Para Marcuschi (2004, p.13), o sucesso das novas tecnologias deve-se ao fato de reunir, num só meio, várias formas de expressão, tais como texto, som e imagem. Sendo, por isso, a tecnologia computacional, uma imprescindível ferramenta de aprendizagem. Valente (apud ALMEIDA, 2000, p.15), ressalta-nos que a verdadeira função do aparato educacional não deve ser a de ensinar, mas sim a de criar condições de aprendizagem. Dessa maneira, é essencial que o computador, como as demais ferramentas educacionais existentes no contexto escolar, sejam utilizadas pedagogicamente no auxílio da aprendizagem dos alunos, de forma a contribuir na sua formação enquanto leitores e produtores de texto. 388


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O computador precisa ser usado, no contexto escolar, não para reforçar um ensino “conteudista” e “mecanicista”, mas sim, necessita ser utilizado em prol de um ensino em que o aluno possa ser o construtor de seu próprio conhecimento. Como Valente enfatiza (1999, p.1), a atividade de uso do computador pode ser tanto para continuar transmitindo a informação para o aluno e, portanto, para reforçar o processo instrucionista, quanto para criar condições de aluno construir conhecimento. Pelo fato de as crianças nascerem em mundo tecnológico, elas estão cada vez mais familiarizadas com as novas tecnologias; muitas passam muito mais tempo na frente da tela do computador, que lendo um livro. Por isso, faz-se necessário que as novas tecnologias comecem a ser empregadas no processo de ensinoaprendizagem, de maneira a possibilitar aos alunos um ensino mais dinâmico, divertido e criativo, em que a leitura e escrita, sejam apresentadas a eles através de novas metodologias. Por acreditarmos que a tecnologia computacional pode proporcionar aos alunos inúmeras contribuições no processo de ensino-aprendizagem, principalmente na leitura e escrita, explanaremos umas das possibilidades de empregá-las. Utilizando o software Hagáquê, o professor poderá desenvolver em suas aulas metodologias que contribuem para a leitura e escrita dos alunos. Esse software, por não exigir um conhecimento acentuado na área de informática, permite, ao professor, empregá-lo no ensino sem ter tido uma formação específica na área de informática. O software Hagáquê foi desenvolvido com o objetivo de facilitar o processo de criação de histórias em quadrinhos por crianças ainda inexperientes no uso do computador. Trata-se de um editor de histórias com banco de imagens com diversos componentes para a construção de cenário, personagens, etc. Por dispor de variados recursos, contribui tanto para o desenvolvimento da imaginação das crianças como especificamente a escrita e leitura delas. O software Hagáquê será empregado pedagogicamente como ferramenta de ensino, em que a leitura e a escrita serão trabalhadas por meio da construção de narrativas ou reconstrução das histórias já existentes. Assim, o software Hagáquê é uma ferramenta pedagógica que pode aprimorar as narrativas no 389


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processo de ensino-aprendizagem, pois as narrativas são excelentes ferramentas pedagógicas que instigam o educando na formação da sua imaginação, do seu pensamento crítico, como no processo de leitura e escrita.

Narrativas: um dos melhores caminhos para se chegar à imaginação, à leitura e à escrita As narrativas sempre estiveram presentes na sociedade. É um tipo específico da comunicação cotidiana. Foi por intermédio da narrativa que se tornou possível ao ser humano estabelecer-se no mundo. Através da capacidade de narrar seus atos e de se comunicar, o homem constituiu, ao longo de sua trajetória, uma narrativa de significados, que dá sentido à sua própria existência e também as das gerações futuras. Conforme Coelho (2003, p. 87), houve um período em que a população não conseguia explicar racionalmente os acontecimentos vivenciados, como por exemplo, “as forças da natureza (chuva, tempestade, seca, sol, dia, vegetação, água etc.)”, assim como também “compreender o nascimento das crianças, dos animais, das flores, frutas, doenças e mortes”; as respostas para esses acontecimentos eram feitas somente pela intuição. Com isso, o pensamento que imperava entre os povos se dava somente entre o “mágico ou o mítico”. Dessa forma, a literatura nesse período foi essencialmente fantasiosa ou maravilhosa, como acrescenta-nos Coelho (2000, p. 52). As primeiras narrativas endereçadas às crianças receberam como herança a fantasia e a magia das narrativas arcaicas. Esse fato se explica pela não existência de uma literatura infantil para os pequenos da época, os quais tiveram que compartilhar das mesmas narrativas dos adultos por muito tempo. Foi somente com o passar dos séculos que as narrativas, antes endereçadas ao público adulto, passaram a ser direcionadas às crianças e transformaram-se propriamente em literatura infantil. Devido às narrativas literárias terem surgido no “domínio do mito, da lenda e do maravilhoso”, a natureza da literatura infantil possui “uma matéria que atrai espontaneamente as crianças” conforme afirma-nos Coelho (2000, p. 40). 390


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A literatura infantil apresenta uma infinidade de textos distintos, são eles: “contos de fada, fábulas, contos maravilhosos, lenda, histórias do cotidiano, como biografias romanceadas, romances históricos, literatura documental ou informativa”. (COELHO 2000, p. 44). Percebe-se que a literatura infantil é bem diversificada e com isso dispõe de alguns benefícios que nenhum outro instrumento oferece às crianças. Assim, apesar de muitos acreditarem que o contar estória aos pequeninos, a exemplo dos contos de fadas, signifique apenas um mero entretenimento e passatempo, acreditamos que esse simples ato – herdado dos nossos antepassados - proporciona ganhos que serão futuramente repassadas às novas gerações, pois para Coelho (2000, p. 32), “o ouvir estórias é muito mais uma aventura espiritual que engaja o eu em experiência rica de vida, inteligência e emoções”. Ou seja, as crianças no momento que estão ouvindo as estórias, não são indivíduos neutros diante das narrações, mas desenvolvem uma interação por intermédio de sua imaginação, que passam a construir os atos narrados de forma imaginativa em sua mente. Sendo por isso, de acordo com Sisto Celson (2007, p. 40), que “nenhum contar é definitivo e pronto e acabado. Toda história contada oralmente é antes de tudo, uma obra em processo, que precisa do outro para ser completada”. Conforme Northrop Frye (apud EGAN, 2007, p. 22), “a arte de ouvir histórias é um treino básico para a imaginação”, ou seja, as crianças não trazem em sua carga genética a capacidade de imaginar, mas elas adquirem a imaginação se for instigada para tal, e as narrativas são a porta na qual as crianças podem adentrar e descobrir o fascinante mundo do imaginário. Assim, o que precisamos fazer segundo Coelho (2000, p. 11), é descobrir urgentemente as narrativas como fonte de conhecimento, principalmente na era tecnológica em que vivemos, cujas formas de comunicação estão a todo o momento se modificando. Começamos com a linguagem oral, depois passamos para a escrita e hoje possuímos outros meios de comunicação que podem transmitir informações, como os meios de comunicação televisivos e radiofônicos, assim como o celular, a internet etc.

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Desta forma, acreditamos que a narrativa é o caminho pelo qual as crianças podem construir conhecimento cultural, sendo por isso, uma ferramenta educacional riquíssima. Por meio disto, objetiva-se mostrar aos educadores as inúmeras contribuições que as narrativas orais, ricas em maravilhoso – como as advindas das populações de determinadas regiões – proporcionam à formação das crianças, concernentes à sua imaginação, leitura e escrita. Infelizmente, muitas escolas estão empregando as narrativas apenas como entretenimento e passatempo, em que os alunos apenas ouvem ou lêem as narrativas, não lhes dando possibilidades de interpretarem-na e construírem através delas novos conhecimentos. Almejando empregar as narrativas em prol da construção do conhecimento dos alunos. Por meio disto, estaremos relatando, posteriormente, uma proposta pedagógica que os educadores poderão executar nas instituições de ensino. Para isso, utilizaremos, o software Hagáquê, para construirmos uma narrativa. A ideia é construir uma historinha em quadrinho, demonstrando que a narrativa e a tecnologia computacional podem proporcionar uma construção de conhecimento muito mais criativo, participativo, prazeroso e produtivo às crianças, contribuindo dessa forma à sua formação enquanto leitores e produtores de textos.

Uma proposta pedagógica em prol da formação de leitores e produtores de textos Esta proposta pedagógica tem como objetivo mostrar como as narrativas e as novas tecnologias computacionais podem ser trabalhadas no processo de ensino-aprendizagem das crianças, em prol da sua formação enquanto leitores e produtores de textos. A presente proposta utilizou-se de uma ferramenta computacional, mais especificamente o software Hagáquê, buscando demonstrar como o computador pode ser aproveitado no processo de ensino-aprendizagem das crianças, de modo a possibilitar aos alunos a construção de seus conhecimentos e não apenas a mera transmissão de saberes.

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O Hagáquê foi desenvolvido com o intuito de facilitar o processo de criação de uma história em quadrinhos por crianças ainda inexperientes no uso do computador, mas com recursos suficientes para não limitar a imaginação deles. Trata-se de um editor de narrativas, que possui um banco de imagens, com diversos componentes, os quais dão possibilidades aos seus usuários de criarem suas próprias narrativas com uma variedade de cenários, personagens etc. As narrativas, como sabemos, possuem um mundo repleto de conhecimentos reais ou de fantasia, por isso, elas são essenciais ao desenvolvimento das crianças, na prática de leitura e de escrita. Entretanto, como abordamos anteriormente, muitos professores, nas instituições de ensino, estão ainda empregando as narrativas, nas práticas pedagógicas, apenas para entreter e passar o tempo dos pequeninos; poucos a usam em prol da construção do conhecimento, por isso, a idéia central da proposta é que o professor conduza o aluno a ler, interpretar e reconstruir a história, para isso, ele pode utilizar qualquer narrativa e, se quiser, um software de história em quadrinhos, conforme apresentamos nessa proposta. Na verdade, o que queremos sugerir é que a nossa proposta seja utilizada numa sequência didática, buscando o estudo do gênero narrativo e o uso de um software de história em quadrinhos. Para Dolz e Schneuwly (2004, p. 51), sequência didática é “uma sequência de módulos de ensino, organizados conjuntamente para melhorar uma determinada prática de linguagem. Por meio da sequência didática os alunos colocam “em prática os aspectos da linguagem já internalizados, e aqueles que eles ainda não têm domínio, possibilitando-lhes aprender e compreender melhor o conteúdo trabalhado pelo professor”. (SEGATE, s/d, p. 5). Segundo Dolz e Schneuwly (2004), as sequências dividem-se em quatro partes: “apresentação da situação”, “produção inicial”, “módulos” (atividades) e “produção final”. Na primeira parte, o professor fala sobre o gênero, conceituando-o, mostrando exemplos, expondo suas particularidades e seu uso na sociedade, isto é, apresenta toda a situação referente ao gênero. Na segunda parte, o professor conduz o aluno à produção inicial (em nosso caso um texto narrativo – história em quadrinhos). Na terceira parte, o professor, ao avaliar a produção 393


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inicial, proporcionará, mediante os módulos, atividades que permitam a diminuição ou eliminação das dificuldades, apresentadas durante a produção inicial, isto é, todos os caminhos equivocados tomados durante o percurso da escrita. Na quarta parte, o professor poderá conduzir o aluno à refacção do texto, suprimidas já as dificuldades e equívocos presentes na primeira produção. Queremos, por meio desta proposta pedagógica, demonstrar aos professores, que as narrativas podem ser usadas no processo de ensino-aprendizagem com o auxílio das tecnologias computacionais. A proposta pedagógica que construímos busca mostrar aos educadores uma nova possibilidade de metodologia de ensino: a construcionista, segundo o ideário de Papert. Nesta metodologia, a narrativa aparece como base para a constituição de novos conhecimentos, os quais poderão ser construídos pelos próprios alunos, tendo como auxílio o software Hagáquê. A seguir, apresentaremos a história em quadrinhos construída por nós e que poderá ser tomada como modelo de produção escrita a ser construída pelos alunos, sob o auxílio do professor.

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Como podemos observar, houve a preocupação em utilizar um software que garantisse às crianças, condições de criarem novas histórias. Por isso, as ferramentas utilizadas foram basicamente uma narrativa e o software Hagáquê, para que tanto os professores como os alunos possam usá-las sem nenhuma dificuldade. No momento que estávamos construindo a narrativa Vaca Mágica, no software Hagáquê, percebemos que os mecanismos oferecidos neste programa, são bastante acessíveis às crianças. Eles estão sendo oferecidos tanto em linguagem verbal quanto não-verbal. Dessa forma, tanto as crianças que sabem ler, quanto as que ainda não sabem, poderão utilizá-las nas construções das narrativas. Objetivou-se, neste trabalho, mostrar que as narrativas possuem um mundo repleto de conhecimento, os quais podem proporcionar condições suficientes às crianças de criar, imaginar, refletir e produzir. Dessa forma, a presente proposta pedagógica construída, contribui em demasia para a formação das crianças, concernentes à leitura e à produção textual, pois as narrativas e a tecnologia computacional se forem empregadas de forma pedagógica no processo ensino-aprendizagem proporcionarão, aos pequeninos, tanto o encontro com o conhecimento quanto a produção de outros conhecimentos.

Considerações finais Este trabalho teve como ponto primordial, realizar um estudo sobre a narrativa e a tecnologia computacional, objetivando demonstrar, primeiramente, as muitíssimas contribuições que estas duas ferramentas podem oferecer aos educandos, referentes à leitura e a produção textual, se estiverem sendo empregadas pedagogicamente no processo de ensino-aprendizagem. Nossa pretensão, na pesquisa, estava voltada a uma construção de uma proposta pedagógica, na qual a narrativa e a tecnologia computacional estivessem sendo desenvolvidas, em prol da construção do conhecimento dos educandos. Haja vista, que muitos educadores estão ainda usando estas duas ferramentas, apenas como meros transmissores de conhecimentos, não contribuindo para a formação das crianças. Queríamos por intermédio desta, oferecer aos profes397


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sores, uma possibilidade de se empregar as narrativas no processo de ensinoaprendizagem, tendo como auxílio a tecnologia computacional, pois ela é hoje uma ferramenta pedagógica que pode conduzir os alunos à uma construção de conhecimento, muito mais criativo, crítico e participativo. A proposta construída demonstra, claramente, que as narrativas podem fornecer conhecimentos suficientes às crianças para elas construírem o próprio conhecimento. Nossa finalidade era comprovar que as narrativas possuem um repertório imenso de conhecimento, que podem levar os alunos a conhecer, interpretar e construir um mundo completamente novo.

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