Pós-modernidade e literatura: letramento literário, produção artesanal, novas formas de consumo.

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Frederico José Machado da Silva • Angela Mendonça • Anelilde Lima Eraldo Batista da Silva Filho • Joelma Gomes dos Santos Renata Soriano • Suelany Ribeiro • Ana Cristina Fonseca

Letramento literário, produção artesanal, novas formas de consumo

Anais Eletrônicos

XIV Encontro sobre o Ensino de Língua e Literatura

Pipa comunicação recife, 2019


Copyright 2019 © Frederico José Machado da Silva • Angela Mendonça • Anelilde Lima • Eraldo Batista da Silva Filho • Joelma Gomes dos Santos • Renata Soriano • Suelany Ribeiro • Ana Cristina Fonseca [Orgs.] É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa dos autores e organizadores. Por se tratar de uma publicação do tipo ANAIS, a comissão organizadora do XIV EELL isenta-se de qualquer responsabilidade autoral de conteúdo, ficando a cargo do autor de cada artigo tal responsabilidade.

Marca e Identidade Visual do Evento Equipe Interna da FACHO

CaPa, Projeto Gráfico e DIAGRAMAçÃO Karla Vidal e Augusto Noronha. Pipa Comunicação (www.pipacomunica.com.br)

Revisão Os autores

Catalogação na publicação (CIP) Ficha catalográfica produzida pelo editor executivo Si383

SILVA, F. J. M. et al. Pós-modernidade e literatura: letramento literário, produção artesanal, novas formas de consumo. Anais eletrônicos. XIV Encontro sobre o Ensino de Língua e Literatura / Frederico José Machado da Silva; Angela Mendonça; Anelilde Lima; Eraldo Batista da Silva Filho; Joelma Gomes dos Santos; Renata Soriano; Suelany Ribeiro; Ana Cristina Fonseca (orgs.). – Pipa Comunicação, 2019. 312p. : Il., Fig., Quadros. (e-book) 1ª ed. ISBN 978-85-66530-97-1 1. Língua. 2. Literatura. 3. Escola. 4. Anais. 5. XIV EELL. I. Título. 410 CDD 81 CDU c.pc:08/19ajns


Prefixo Editorial: 66530

Comissão Editorial Editores Executivos Augusto Noronha e Karla Vidal

Conselho Editorial Alex Sandro Gomes Angela Paiva Dionisio Carmi Ferraz Santos Cláudio Clécio Vidal Eufrausino Cláudio Pedrosa Leila Ribeiro Leonardo Pinheiro Mozdzenski Clecio dos Santos Bunzen Júnior Pedro Francisco Guedes do Nascimento Regina Lúcia Péret Dell’Isola Ubirajara de Lucena Pereira Wagner Rodrigues Silva Washington Ribeiro


Ficha Técnica XIV Encontro sobre o Ensino de Língua e Literatura Letramento literário, produção artesanal, novas formas de consumo

Apoiadores Curso de Letras da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda

Equipe de Organização Frederico José Machado da Silva - Coordenador (FACHO) Angela Mendonça - Coordenadora (FACHO) Anelilde Lima - Comissão Científica (FACHO) Eraldo Batista da Silva Filho - Comissão Científica (FACHO) Joelma Gomes dos Santos - Comissão Científica (FACHO) Renata Soriano - Comissão Científica (FACHO) Suelany Ribeiro - Comissão Científica (FACHO) Ana Cristina Fonseca - Comissão Científica (FACHO)

Marca e Identidade Visual do Evento Equipe Interna da FACHO


Apresentação Este ano (2018), tivemos o prazer de discutir, no XIV Encontro Sobre o Ensino da Língua e Literatura da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO), sobre novas perspectivas do ensino e do consumo de literatura. Como é de amplo conhecimento, o EELL, desde sua origem, é um importante ponto de partida para pesquisadores, inclusive os iniciantes, apresentarem seus trabalhos. É com muita alegria que recebemos os estudantes da casa e os colegas de outras faculdades e universidades. Consideramos este encontro um espaço vital para a discussão e ampliação da educação. Que em 2019 recebamos ainda mais pesquisadores. Boa leitura.

A Comissão Organizadora


Sumário 13 A CONSTRUÇÃO DIEGÉTICA DA NARRATIVA

DISTÓPICA DEGEORGE ORWELL EM “1984”: A estratégia narrativa espacial e a realidade contemporânea Fernanda Érica Silva de Lima Frederico José Machado da Silva

31 A LÍNGUA PORTUGUESA E AS SUAS VARIEDADES

NO ESPAÇO DEMOCRÁTICO: Trabalhando variações através da sequência didática Ramona Gabriela Oliveira de Freitas Paz

51 A TRAGÉDIA E O SUBLIME EM MEDEIA DE

EURÍPEDES: RELAÇÃO ENTRE LITERATURA E FILOSOFIA MODERNA Igor de Serpa Brandão Pereira Leite

63 ALBERTO CAEIRO ENTRE O PANTEÍSMO E O

CRISTIANISMO: o sagrado na leitura poética Izabelly Maria da Silva Mota


81 ANITA MALFATTI - EXPOSITORA DE ARTE

EXPRESSIONISTA NA SEMANA DE ARTE MODERNA Bruna Maria Paz de Lira

95 AQUISIÇÃO DA LE INGLESA E O SEU PROCESSO

DE ENSINO APRENDIZAGEM APLICADO E O DESENVOLVIMENTO DAS COMPETÊNCIAS LINGUÍSTICAS EM DISCENTES Lílian das Neves Henrique da Silva

115 CAPITÃES DA AREIA: O universo dos capitães

e a atemporalidade em seu contexto histórico e social na obra de Jorge Amado Everton Felipe Tenório da Silva Santos Jonatas Nicácio Cardoso da Silva Frederico José Machado da Silva

131 DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIA E MEMÓRIA EM

VINTE E ZINCO DE MIA COUTO Suelany C. Ribeiro Mascena


157 DO PÓS-MÉTODO À LITERATURA:

ENSINAR/APRENDER INGLÊS NO SÉCULO XXI Dulce Porto Rodrigues

177 LETRAMENTO LITERÁRIO E A POESIA NAS

ESCOLAS: um estudo sobre a leitura, a formação do leitor e a construção do senso crítico por meio dos textos poéticos Alexandre da Silva Bezerra Viviane da Silva Gomes

197 MEMÓRIA DA DITADURA MILITAR E

AUTOFICÇÃO NO ROMANCE A RESISTÊNCIA João Ricardo Pessoa Xavier de Siqueira

223 MULTIMODADELIDADE E MULTILETRAMENTOS:

Algumas considerações teóricas e metodológicas Maria Lúcia Ribeiro de Oliveira


245 O Adultério Feminino no Romance

Realista Dom Casmurro Mônica Maria Amaral Barros

257 O DIVINO E O URBANO: DUAS FACES DA POESIA

INDEPENDENTE PERNAMBUCANA Mariana Botelho Matheus Araújo

275 O efeito discursivo na formação da

identidade da personagem Rachel Àdria Izabel Rodrigues da Silva

283 “O ESTRANGEIRO” RELIDO NO CINEMA E NA

LITERATURA: CAMUS, VISCONTI E KAMEL DAOUD Ariane da Mota

299 O MODERNISMO PECULIAR DE MANUEL BANDEIRA

André Cervinskis


Resumo O presente trabalho se propõe a analisar a obra 1984, de George Orwell, buscando evidenciar como é construída no texto a ambientação da distopia e, também, evidenciar quais os recursos estilísticos são utilizados no processo de construção da narrativa. Primeiramente, apresenta-se a noção de espaço geográfico e de como é estruturado os textos narrativos que recorrem à construção espacial como ferramenta responsável pela solidez narrativa, com o auxílio das análises de Joseph Frank com a obra Spatial form in modern literature (1982). Em segundo lugar, apresenta-se de que forma os recursos linguísticos podem ser condutores fundamentais para a estruturação no quesito espacial. Por último, apresentam-se os recursos utilizados na obra de George Orwell, para o qual utilizou-se as teses de Käte Hamburguer em A Lógica da Criação literária (1989), bem como a relação mimética com texto com a modernidade contemporânea em Mímesis e modernidade (2003), de Luiz Costa Lima. Dessa forma, conclui-se que a obra em questão é abastecida pela utilização desses recursos e em detrimento da suspensão de outros elementos narrativos sendo esses os condutores responsáveis para a clareza da narrativa mediante a intenção do narrador. Palavras-chave: Distopia, Narratologia, 1984, Literatura.


A CONSTRUÇÃO DIEGÉTICA DA NARRATIVA DISTÓPICA DE GEORGE ORWELL EM “1984”: A estratégia narrativa espacial e a realidade contemporânea Fernanda Érica Silva de Lima1 Frederico José Machado da Silva 2

Introdução Publicado em 8 de Junho de 1949 a obra mais conhecida de George Orwell, 1984, garantiu um lugar relevante no século XX entre as obras escritas no contexto de uma ambientação distante dos padrões idealizados de uma civilização pautada pela perfeição. A obra em questão ocupa espaço na literatura distópica por conter características como as citadas. A distopia ou antiutopia no viés literários é a narrativa que configura em destaque actantes3 que assumem posições autoritárias influenciando o centro da narrativa em torno da repressão e regressão social e política apresentando um contraponto à utopia, e esta por sua vez apresenta uma realidade ideal fundamentada em leis práticas e justas.

1. Graduanda no curso de Licenciatura em Letras na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda - FACHO 2. Doutor em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE. É Professor e Coordenador do Curso de Letras da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda – FACHO Professor Colaborador do Mestrado Profissional em Letras da Universidade Federal de Pernambuco – UFPE e Professor Colaborador do Curso de Especialização em Literatura Brasileira da Faculdade Frassinetti do Recife – FAFIRE 3. Utilizaremos este termo adotado por A.J. Greimas do qual possui origem linguística e que substitui o nosso entendimento comum de “personagem”. 13


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Na literatura essa dicotomia popularizou-se com mais vigor por volta dos anos 1930 e formou diversos escritores que ainda permanecem como referências deste gênero, como Ray Bradbury com Fahrenheit 451 (1953) e Anthony Burgess com A Laranja Mecânica (1962). A utopia, que logo faria surgir uma face contrária, teve seu surgimento a partir da narrativa Thomas Morus em Utopia (1516), conhecido atualmente como “pai da utopia”. Em 1984 (1949) George Orwell, pseudônimo de Eric Arthur Blair, narra a história de Winston Smith, um operário de uma enorme indústria que passa a questionar o poder do estado que atua de forma autoritária na figura do Big Brother, descrito como um enorme rosto transmitido através de teletelas, estrutura que também filma as atividades diárias de todos. A narrativa em questão contextualiza uma consequência social referente às sequelas deixadas pela Segunda Guerra Mundial e utiliza-se do espaço ficcional para montar estruturas que garantem a proposta do narrador quanto formador de um pensamento filosófico que aproximasse da realidade atual. Para além da função conduzida pelos actantes, ainda que muitas vezes suspensos, o espaço narrativo do texto citado é o condutor mais claro e é através dessa clareza que é possível atingir o pensamento do narrador compreendendo a proposta não como apenas uma construção ficcional, mas como principalmente um material capaz de atingir os mais diversos setores artísticos provocando a reflexão acerca do tema, e enfatizando o espaço narrativo como ferramenta relevante em um texto ficcional. Dessa maneira, guiando-nos pelas teses analisadas por Käte Hamburguer em A Lógica da criação literária (1986), Massaud Moises em A criação literária (2014), Joseph Frank em Spatial form in modern literature (1982) para discutirmos sobre a contextualização espacial dentro do texto narrativo, e bem como a relação mimética com o texto em questão em Mímesis e Modernidade (2003) de Luiz Costa Lima. 14


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UNIDADE GEOGRÁFICA NO TEXTO NARRATIVO Os textos romanescos possuem uma pluralidade geográfica percorrida pelo herói, sem esse recurso a trama seria classificada como incapaz na sua sequência narrativa, essa dotada de superficialidade. O autor é possuidor de autonomia na construção do espaço e a influência para com os actantes, seja uma longa travessia com interferências variadas que fazem ligação direta a contextualização do drama, seja pelo espaço limitado de uma casa com elementos que auxiliam para um entendimento mais amplo. A deslocação topográfica de personagens ainda que possua intenções relacionadas ao texto, necessita de recursos bem elaborados para que a ideia proposta pelo autor seja bem esclarecida. Ainda considerando o espaço de longo percurso, ou limitado, Moises (2014, p. 176) ratifica que os dois recursos geográficos necessitam de ponderação afirmando que: Quanto mais desloca topograficamente as personagens, mais fica sujeito a fazer um exame rápido e superficial do seu drama, sem o qual o romance não se organiza. E como o deslocamento físico implica novas aventuras, o narrador corre risco de prender-se mais ao anedótico que ao dramático.

Se nos propusermos a compreender o espaço do qual as personagens facilmente se deslocam, temos clara a ideia de um espaço dotado de variados recursos, que quando não mais definidos, o drama suspende elementos importantes para a compreensão integral do texto narrativo. Dessa forma o texto, ainda que ganhe por sua pluralidade e performance dos actantes, perde em concentração.

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Nesse caso a ação é o recurso receptivo na construção do drama, que pode muitas vezes funcionar na ambientação limitada de uma sala com objetos que contribuem para os diálogos provocados pelos personagens, como nas viagens de peregrinação de um actante que tem como o trajeto sua ação. Temos definidos que ainda que se utilize um dos tipos de ambientação, nem sempre será funcional para o texto romanesco. Moises nos apresenta, contudo, uma solução como referência ideal: Exemplo de sábia solução é Le Diner em Vile, de Claude Mauriac: o casal Carnéjoux recebe para jantar, em Paris, a seis amigos de idade e talentos diversos. A narrativa dura o tempo exato de uma refeição. Enquanto dialogam protocolarmente, as personagens vão revelando sua personalidade e seu drama através dos pensamentos e associações que lhes habitam a memória; na verdade, o romancista procura examinar as relações entre a vida objetiva e a subjetiva. (MOISES, 2014, p. 177)

O recurso utilizado mostra a funcionalidade bem elaborada da limitação do ambiente, configurando que, desde que os actantes possuam intenção bem estabelecida na ação, o texto fará um uso relevante do seu espaço e na identidade do herói e as demais personagens. Dessa maneira, não importa o lugar onde se passam as ações promovidas pelos personagens, mas esse possui muitas vezes um papel decisivo na configuração da narrativa. Não existe, portanto, uma independência integral com os condutores da ação, ainda que o espaço da narrativa seja em muitos casos o responsável pela condução e análise mais profunda de um texto literário, ao considerar isso anulado por hora o personagem com condutor principal de um texto romanesco. Para além da geografia espacial dos textos narrativos, os elementos que exigem dos actantes uma ação também nos serve como recurso, se pensarmos em um diálogo construído em um dia chuvoso do qual os personagens se banham e solucionam questões referentes às suas intimidades. 16


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A chuva, em nosso exemplo, nos serve como condutor, compreendendo que dificilmente aquele determinado diálogo não funcionaria em um ambiente cercado por elementos que não trabalham diretamente pelas ações propostas pelos personagens. A ação dos actantes e a relevância do espaço no drama romanesco atuam de maneira horizontal, ainda que sejam independentes na composição. Em muitos casos a ideia espacial no texto é previsível, em tantas outras o texto apresenta particularidades que exigem do autor um visão retinta diante da proposta do autor em uma determinada situação dentro da narrativa, ao utilizar Ullysses (1922) de James Joyce como campo de análise dentro da literatura moderna, Joseph Frank (1945, p. 56) em Spatial form in modern literature nos diz que: Joyce pretendia […] construir na mente do leitor uma sensação de Dublin como uma totalidade, incluindo todas as relações dos personagens entre si e todos os eventos que entram em suas consciências. À medida que o leitor avança no romance, ligando alusões e referências espacialmente, gradualmente tomando consciência do padrão de relacionamento, esse sentido deveria ser imperceptivelmente adquirido; na conclusão do romance, quase poderia ser dito, Joyce literalmente queria que o leitor se tornasse um Dubliner.4 (Tradução nossa)

4. Joyce intended […] to build up in the reader’s mind a sense of Dublin as a totality, including all the relations of the characters to one another and all the events which enter their consciousness. As the reader progresses through the novel, connecting allusions and references spatially, gradually becoming aware of the pattern of relationship, this sense was to be imperceptibly acquired; at the conclusion of the novel, it might almost be said, Joyce literally wanted the reader to become a Dubliner. 17


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Temos nesse caso um exemplo em que o autor proporciona, através de seus recursos estilísticos, sensações ao receptor, estes guiados por sua intenção em descrever a imagem de Dublin e se tornar o leitor parte integrante da narrativa.

ADVÉRBIOS COMO INDICADORES DA CONSTRUÇÃO ESPACIAL ROMANESCA

É comum que no texto narrativo a noção temporal seja descrita tendo um advérbio de tempo como recurso estilístico, bem como advérbios de espaço que são utilizados com mais vigor para uma noção relevante e completa do texto narrativo. A adequação dos advérbios como “aqui” e “lá” sofre uma perda significativa quando se trata de uma construção ficcional, sendo facilmente substituídas com indicadores que descrevem posições quase reais, como “à direita, à esquerda” transportando o receptor sem haver nenhuma quebra na estrutura do texto, mantendo a imagem espacial proposta pelo autor. A não funcionalidade do “lá”, por exemplo, indica a distância precisa, um enorme intervalo, o que impossibilita uma interferência produtiva do espaço na narrativa. A transferência espacial provocada pelo autor para o leitor confia com veracidade na orientação imaginativa; uma ação que depende do espaço para que o personagem aconteça, e consequentemente o drama em seu total aconteça, depende da imaginação. Por mais difícil que seja a transferência na imaginação, ela só é possível quando o narrador atinge um nível elevado, para isso é necessário que faça uso de um discurso que seja capaz de movimentar-se dentro do campo demonstrativo, ou seja, quando sua ideia tátil se combina a uma cena visual imaginária, o receptor sabe não ser real, mas é transportado devido aos indicadores utilizados no discurso. Observemos no trecho de Processo (1995) de Franz Kafka a seguinte descrição: “A sala 18


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ao lado, na qual K. entrou mais devagar do que queria, parecia à primeira vista estar exatamente como na noite anterior”. (p. 108). O indicador “ao lado” transfere o leitor de um espaço para outro espaço, sem que se percam dados importantes para o entendimento do texto em questão, considerando que apenas o narrador é detentor do eventos que se antecedem e se seguem ao utilizar “exatamente como na noite anterior”. Esse índice puramente linguístico funciona de maneira independente se comparado ao personagem, deixando para o receptor uma noção tátil corpórea do ambiente, e enfim sua visão imaginária os transporte e os conduza ao decorrer do drama, são conhecidos como romance de espaço os romances que fazem a utilização do espaço como condutor da narrativa, que quando bem estruturado, permite que o personagem disponha de nenhum tipo de limitação espacial e possibilita um entendimento social e histórico no quais decorre a intriga, muito comuns nos romances brasileiros. Ao entendemos que a narrativa romanesca de espaço se utiliza muitas vezes de suas aberturas para produzir contextualizações sociais e histórias compreendemos que o texto adquire um empréstimo de uma estrutura tátil, ou seja, real, para o campo da ficção, tornando esse elemento, seja uma cidade ou um país, parte integrante e com isso um espaço ficcional. Afirma-nos Hamburguer (1986, p. 132) que: [...] a experiência do real não é determinada somente pela coisa em si, mas também pelo sujeito que a experimenta. E se este é fictício, qualquer realidade geográfica e histórica conhecida é incluída no campo ficcional, é transformada em “ilusão”.

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Os advérbios que nos servem como recurso, que Hamburguer (1986) descreve como adjetivos dêitios, assumem um comportamento diferente quando inclusos dentro da trama romanesca servindo como estratégia dentro do processo textual, conforme indica Koch (2003, p. 54): Falar em processamento estratégico significa dizer que os usuários da língua realizam simultaneamente em vários níveis passos interpretativos finalisticamente orientados, efetivos, eficientes, flexíveis, tentativos e extremamente rápidos; fazem pequenos cortes no material “entrante” (incoming), podendo utilizar somente informação ainda incompleta para chegar a uma (hipótese de) interpretação. Em outras palavras, a informação é processada on-line.

O advérbio que antes assumia em sua independência uma natureza puramente linguística, dentro do texto perde sua essência e eleva o transporte do receptor como ação dentro do drama, e são justamente esses advérbios de tempo e espaço que funcionam como critérios especialmente adequados para definir noções de estrutura na construção romanesca.

O ESPAÇO NARRATIVO EM “1984” E SUA RELEVÂNCIA NA REALIDADE CONTEMPORÂNEA

A obra 1984 (1949) de George Orwell possui hoje um espaço de relativo respeito dentro da literatura moderna, principalmente em tempos políticos em que os leitores compreendem a obra como um material profético dos tempos atuais. É importante compreender que os elementos que circundam o texto de Orwell influenciam para que a obra permaneça como um clássico e receba esse título de material profético. Para além dos actantes 20


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que conduzem as emoções muitas vezes comparadas aos sentimentos de histeria da modernidade, o espaço da narrativa contribui para que a obra em questão permaneça em tal posição e possibilite o leitor a um entendimento abrangente, que como citado, obras como as de Orwell utilizam-se do espaço para um recurso de elevação de contextualização social, nesse caso a opressão promovida pelo estado e o reflexo da desesperança sob uma população operária. Observemos: Em todos os patamares, diante da porta do elevador, o pôster com o rosto enorme fitava-o da parede. Era uma dessas pinturas realizadas de modo a que os olhos o acompanhem sempre que você se move. “O grande irmão está de olho em você”, dizia o letreiro, embaixo. (ORWELL, 2009, p. 12)

O espaço construído pelo narrador, neste caso um edifício, é descrito que forma que ao perceber os detalhes o leitor terá reações sobre a ambientação, sobre o lugar para onde foi de fato transportado. A elevação dos andares de estruturas idênticas possuir o indicador da trama, o opressor, esclarece sobre a intensidade do texto, os limites da opressão descrita pelo narrador, e as reações emotivas dos actantes. “Em todos os patamares” e “diante da porta do elevador” representa, a grosso modo, a real descrição da situação central do drama na imagem do Big Brother . 5

Estava atravessando o longo corredor do Ministério quando, ao se aproximar do ponto onde Julia colocara discretamente o bilhete em sua mão, percebeu que alguém com um porte mais avantajado que o seu caminhava às suas costas. A pessoa, fosse quem fosse, pigarreou, sinalizando que pretendia lhe falar. Winston estacou e virou-se. Era O’Brien. (ORWELL, 2009, p. 188)

5. Nome utilizado da versão original do texto. 21


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Temos conhecimento de que o espaço e o tempo são elementos que em muitas vezes andam de forma horizontal dentro do texto narrativo, e que eles em sua natureza predominante, considerando a intenção do narrador, atuam no texto com uma identidade própria para além de sua contextualização. A obra 1984 (1949) de George Orwell popularizou-se por sua ambientação pessimista de uma contextualização social distante da realidade da época em que foi publicado, esperado de um texto distópico. Ainda que seus elementos narrativos e sua discursão social e política o eleve em certo grau de relevância entre os textos modernos, seu aparato espacial o conduz com mais riqueza e o torna distinto também em sua estrutura narrativa. A figura de Winston, personagem condutor do drama, tem o claro compromisso de conduzir as ações e deixar abertas as intenções propostas para transportar o receptor de maneira que não seja necessário nenhum grau de suspensão de elementos. Os fatos se estabelecem a partir das inquietações do actante, e ele responde com reflexos que surgem a partir da ambientação. Há a imagem de um quarto com elementos que não interagem diretamente com o desfecho, exato pela gaveta manipulada constantemente pelo personagem, provocando os sentidos que se iniciam e se encerram de inquietações, o que torna a obra alinhada com a proposta de uma narrativa distópica. Quando apoiou a mão na maçaneta, Winston percebeu que havia deixado o diário aberto em cima da mesa. Cobrindo o papel com letras garrafais, as frases ABAIXO O GRANDE IRMÃO quase podiam ser lidas do outro lado do aposento. Um descuido de uma estupidez inconcebível. Contudo, Winston se deu conta de que mesmo em pânico ele não quisera borrar o papel creme fechado o diário com a tinta ainda úmida. (ORWELL, 2009,p. 31)

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Ainda que o enredo transporte o leitor entre o edifício onde habitam os antagonistas, e na grande fábrica onde a ação é efetiva, os efeitos se dão pela limitação do espaço em que o personagem central apresenta as primeiras inclinações sobre possíveis dificuldades no drama, exigindo atenção de quem o recebe. O espaço concentrado para essa relação autor-leitor serve como gatilho para os mais variados sentidos, mesmo considerando a relevância do actante em questão, seus pensamentos e emoções não teriam nenhum grau de eficiência se não fosse construído em um ambiente estreito com uma mesa e um diário. É possível analisar amplamente a narrativa sobre pontos considerávais, e em clara maioria, o tempo e os personagens que o cercam são influências pontuais, mas ainda sim haveria faltas na forma com que o texto faria ligação com outros elementos também demasiado importantes. A ação provocada pelo personagem não surte efeito se não ouver uma interferência temporal, em muito a condução espacial. Mas o espaço, quando estruturado para possuir autonomia sobre o que se quer dizer, pode agir independete e nos dizer tanto sem que haja um excessivo esclarecimento de fatos pela voz dos personagens. É possível compreender os possíveis fatos antes mesmo de eles acontecerem e ainda causar estranheza apenas com uma mesa e um diário, dessa maneira podemos entender que o que é escrito tem seu efeito mais cristalino quando posto nesse cenário. O leitor é transportado frequentemente para se certificar que ainda que haja uma necessidade de um questionamento de uma verdade criada pelo autor, tudo se trata de uma construção meramente ficcional, ainda que não seja possível fugir do óbio. As imagens desgastadas dos ambientes, que aqui será descrito como ambientes de passagem, anunciam o futuro pessimista e o efeito de causas orientadas pelos excessos: poluição, avanço tecnológico, regime comportamental, o que na época em que se cercava o conflito era algo distante, mas ainda sim possível. 23


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Winston avançava pelo caminho em meio a um mosqueado de luz e sombra, pisando em poças douradas sempre que os galhos das árvores se distanciavam uns dos outros. Sob as arvores à esquerda, o sol era um nevoeiro de jacintos. (ORWELL, 2009,p.143)

A compreensão se valeria apenas pela relação da personagem com os elementos propostos, mas o deslocamento detalhado atinge uma perspectiva mais ampla quando percebida pelo leitor. Os elementos dêiticos responsáveis por esse transporte atuam como influenciadores diretos para o resultado final das percepções propostas pelo narrador. Esse processo e seu funcionamento podem ser analisados se visto numa perspectiva distinta. Se o texto houvesse de ser reconstruído com a finalidade de excluir tais elementos, permaneceria com sua função informativa ficcional, assim como a ação das personagens. Observemos uma experiência do trecho: Em todos os patamares, o pôster com o rosto enorme fitava-o da parede. Era uma dessas pinturas realizadas de modo a que os olhos o acompanhem sempre que você se move. “O grande irmão está de olho em você”, dizia o letreiro, embaixo. (ORWELL, 2009, p.19)

Ao retirar o elemento deslocador “diante da porta do elevador”, neste caso puramente visual, foi possível perceber que o texto não sofreu com essa extração e segue por esclarecer a narrativa e sua contextualização. Ainda que o texto narrativo trabalhe em conjunto com indicadores e descrições de fluxo narrativo, a inclusão de elementos dêiticos aparece como modificadores e conduzem o leitor a uma experiência próxima à proposta que a descrições das emoções, especificação do clima ou o ritmo narrativo não contemplariam unicamente.

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A ficção é em sua natureza abastecida de esclarecimentos prévios a todos os leitores que entram em contato com qualquer texto que possua uma etiqueta desse seguimento. O receptor conhece os limites e as possibilidades que existe dentro da narrativa e interpreta os eventos de tal forma que tudo fica alinhado a uma distância significativa, ainda que haja uma significação afetiva emocionação com os conflitos, os personagems ou o narrador. Os recursos mediadores da narrativa que justificam a influência espacial na relevância da obra de Orwell são responsáveis pelos limites e trajetória dos personagens que esclarecem os eventos discutidos no texto. Podemos considerar, dessa maneira, que os recursos utilizados para centralizar a ideia principal do texto dão a luz aos pensamentos dos personagens e com isso a trama se conduz mediante a proposta. O espaço desenvolvido pelo narrador possibilita a interação de Winston e suas vontades escritas em seu diário a desconhecimento de todos os outros agentes de ação, lugar onde nada mais influencia visualmente para a sua funcionalidade. A suspensão de elementos cenográfios mais espefícios tornaria a ação do personagem como segundo plano, e todos os objetos, cores e formas ao seu redor teriam que interagir diretamente, e isso reduziria toda a natureza proposta na anunciação feita pelo actante. A relevância da obra de George Orwell é inquestionável e perdura até nosso tempo. Os efeitos provocados pelas intrigas na narrativa geram diferentes reflexões acerca da obra e da “profecia” feita pelo autor ao apresentar uma realidade ficcional semelhante ao que supõe-se que pode se tornam o mundo contemporâneo em que vivemos. Para além das suposições, compreendemos a relação de um texto dessa natureza com um viez mimético a partir de questionamentos como estes, e consideramos não apenas sua abordagem social, mas a imagem próxima ou de um empréstimo visual e qual a relação que existe entre o que é dito com real. Costa lima (2003, p. 24) acrescenta que: 25


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Ser capaz de mímesis é transcender a passividade que nos assemelha a nossos contemporâneos e, da matéria da contemporaneidade., extrair um modo de ser, i.é., uma forma, que nos acompanharia além da destruição da matéria.

A conjuntura em que é ambientada a narrativa muito nos diz sobre a realidade ainda que sejam utilizados recursos que nos esclarecam a condição de um texto como construção ficcional. George Orwell em sua inquietante “profecia” configura a ficção como campo aberto para possibilidades reais e ireais, mesmo que a ficcção atue como ilusão dos fatos existantes. A obra existe pela intenção e pela construção de conflitos, mas a maquinaria não teria nenhum tipo de funcionalidade sem que houvesse um conjunto de elementos espaciais para tornar tudo possível referente a convenção ou do real. Nos indica Wood (2008, p. 121) A convenção em si, tal como a metáfora em si, não é algo morto; mas ela está sempre morrendo. Assim, o artista está sempre tentando vencê-la, está sempre estabelecendo outra convenção agonizante.

O contexto narrativo nos indica naturalmente sem muitos esforços todas as possiblidades e impossibilidade com base no que pode ser dito como referencial: o leitor confere com seu referencial particular os limites ficcionais construídos pelo narrador. O texto literário, disserto, não tem qualquer intenção de representar, ele constrói uma atmosfera puramente orgânica com seus referenciais fantásticos o do dito “real” para transmitir seu objeto através da linguagem. Em 1984 (1949) sua elaboração se segue através dos recursos que compõem a utopia, resultado adquirido pela junção dentre a linguagem e os referenciais espaciais que rodeiam os processos situacionais das personagens. O “real” referente do narrador se abastece de 26


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uma linha que aproxima o real particular do indivíduo leitor e uma construção estabelecida pelo possível, dado sua abordagem política e social. É possível perceber um indicador de “causa e efeito”, se em Moby Dick (1851) somos apresentados por um imaginário distante das possibilidades que criamos do “real”, em Orwell estamos convincentes dos resultados como polos passivos de uma noção de realidade funcional. É importante compreender que o “real” se dispõe a visão mimética contextual, e não de sua ideia de realismo como gênero literário. Podemos encontrar em Barthes a funcionalidade dos resultados quando nos esclarece em Crítica e Verdade (1970, p. 73) que “naturalmente a visão realista e imediata, dizendo respeito a uma realidade alienada, e não pode ser de modo algum ‘apologia’”. Dessa maneira, temos na obra uma discussão de um mundo que questiona através de seus próprios recursos sendo a liberdade seu objeto.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS O presente trabalho se propôs em discutir e ampliar a visão teórica da obra 1984 (1949) de George Orwell que até hoje possui incontestával relavância entre as obras distópicas modernas por apresentar reflexões acerca de um futuro construído sob o enraizamento de questões não reparadas, um futuro contextualizado pela opressão, escacez e medo. Sua importância percorre a filosofia, a antropologia, e os estudos sociais até os dias atuais, tornando sua obra um clássico distante do esquecimento. Considerando a obra como ferramenta que dá margem à questões das mais variadas, foi possível ampliar o campo de visão para a estruturação diante da construção narrativa adotada por Orwell na obra em questão. Ao adotar a análise espacial da obra como centro que conduz a obra ao patamar que se sustenta até então, foi possível encontrar um aparato estilístico que abre margem às discursões propostas, mas, sobretudo servem como principal responsável – trabalhando juntamente na formulação e movimentação dos actantes – para o esclarecimento da contextualização da obra e suas variadas avaliações referenciais sendo a obra um instrumento formador de resultados.

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Resumo Este trabalho analisa o uso das variações linguísticas em algumas escolas da rede de ensino privada, ou particular, no município do Paulista, Pernambuco. Baseado em pesquisa feita com a aplicação de questionários, tenta investigar como esse tipo de fenômeno acontece nas instituições escolares e como a disciplina de Língua Portuguesa pode contribuir como elemento democrático nesse tipo de organização, ao rechaçar ou não, por exemplo, o uso de gírias em sala de aula, variante da língua. Assim, aplicaram-se 13 questionários direcionados aos professores de Língua Portuguesa do segmento médio. A pesquisa segue o tipo de investigação descritiva, ou seja, busca especificar as características e o perfil de pessoas, grupos, comunidades, objetos, ou qualquer fenômeno que se submeta a uma análise. Seu enfoque é quantitativo, não experimental com parâmetro de corte transversal, pois foi coletada em um único momento. A investigação tem como objetivo determinar a interação dos professores no processo de ensino aprendizagem em língua portuguesa e suas variantes através de uma democracia nas escolas privadas do município de Paulista, Pernambuco, entre os anos de 2016 e 2017. O resultado obtido ao finalizar a pesquisa foi que professores dizem fazer parte de uma gestão democrática, porém não aceitam o uso da variação linguística, gíria, no âmbito escolar. Sendo a língua falada tratada ainda como algo cristalizado e imutável. O trabalho é embasado pela teoria de Mikhail Bakhtin,1983; Nestor Beck, 1996; entre outros. Palavras-chave: Democracia. Ensino. Escola. Língua portuguesa. Variação linguística.


A LÍNGUA PORTUGUESA E AS SUAS VARIEDADES NO ESPAÇO DEMOCRÁTICO: Trabalhando variações através da sequência didática Ramona Gabriela Oliveira de Freitas Paz1

INTRODUÇÃO Esta pesquisa tentar investigar como o uso das variações linguísticas são aceitas ou não dentro das escolas particulares do Paulista, município de Pernambuco, caracterizada atualmente como uma das mais promissoras regiões, no que se relaciona ao seu desenvolvimento, e como a disciplina de Língua Portuguesa é trabalhada no espaço educacional, assim podendo contribuir como elemento democrático, ao rechaçar ou não, por exemplo, o uso de gírias em sala de aula, variante da língua. Tendo por principal meta a reflexão do que seja, de fato, uma gestão escolar que valoriza a democracia, o extremo oposto de uma ditadura que prioriza o calar, o estado burocrático, a não permitir divergências como motor do crescimento pessoal e profissional, é que este trabalho justifica seus métodos. Busca-se o tipo de pensamento que norteia o professor nas demandas sociais, dentro da escola. E combate-se, além de tudo, a ideia de gestão que não participa dos problemas e situações corriqueiras e diárias de seus docentes e discentes, a se isentar das questões de ordem pedagógica:

1.Professora da rede privada/PE. Mestre em ciências da educação – UA/PY. ramona-gabriela@gmail.com 31


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A democratização da gestão na escola possibilita o crescimento e a melhoria de toda a escola e dos agentes nela inseridos. No entanto, ainda são muitos os desafios que rodeiam a efetivação da gestão democrática nos espaços educacionais, sendo um deles a percepção burocrática da gestão escolar. Uma concepção burocratizada e hierarquizada da gestão, em que o papel do diretor é o principal autor, faz com que os contextos escolares tornem-se espaços fechados, sem momentos de discussão, crescimento e melhoria da educação. (OLIVEIRA, 2016)

Apresentação do problema

A problemática desta pesquisa se apresenta diante de um cenário em que se faz imprescindível a reflexão de uma gestão escolar que gire em torno do diálogo, do ato de escutar as diversas vozes que compõem o ambiente educacional. Afinal, dentro do espaço escolar cabe o uso, a ideologia da interação, atitude singular e essencial, a caracterizar o século XXI, diante do corpo docente e discente que almejam administrar.

Pergunta geral

Há aceitação das variações linguísticas por parte dos docente nas escolas privadas do município de Paulista, entre os anos de 2016 e 2017?

Objetivo geral

Determinar a participação das variações linguísticas no processo de ensino aprendizagem em língua portuguesa nas escolas privadas do município de Paulista, Pernambuco, entre os anos de 2016 e 2017.

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Perguntas específicas Qual a importância do uso das variações linguísticas para o ensino-aprendizagem em língua portuguesa, nas escolas do município do Paulista, Pernambuco? Quais os meios para que a instituição escolar se torne um ambiente democrático e apto a aceitar os mais diversos níveis de variação da língua(gem) nas escolas do município do Paulista, Pernambuco? Quais as metodologias apropriadas que apresentem a língua como meio fluido e passível de variação, dentro de tipologia e gêneros textuais, inseridos em várias realidades sociais em língua portuguesa?

Objetivos específicos

Descrever a importância das variações linguísticas processo de ensino-aprendizagem em língua portuguesa nas escolas do Município de Paulista, Pernambuco. Identificar os meios para que a instituição escolar se torne um ambiente democrático e apto a aceitar os mais diversos níveis de variação da língua(gem) nas escolas do município de Paulista, Pernambuco. Estabelecer metodologias apropriadas que apresentem a língua como meio fluido e passível de variação, dentro de tipologia e gêneros textuais, inseridos em várias realidades sociais em língua portuguesa.

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Justificativa Justifica-se essa pesquisa por pretender analisar meios e ideias que possam vir a fundamentar a possibilidade dos docentes dialogarem e refletirem um pouco mais, a fim de consolidarem o processo de ensino-aprendizagem, a aquisição, a sistematização e o estudo da língua portuguesa dentro de moldes interacionais e de uma gestão democrática. Pois é essencial uma estrutura democrática dentro do ambiente escolar, a traçar metas de desenvolvimento que respeitem as múltiplas semelhanças e diferenças inerentes aos protagonistas do processo de ensino-aprendizagem. Entre tantas outras metodologias, a sequência didática é um dos meios que atualmente cada vez mais entende o estudo de línguas através dos gêneros textuais, priorizando, assim, as variações e adaptações que a língua(gem) assume em sociedade. E no desenrolar desse estudo, ela será uma metodologia sugerida, já que amplamente divulgada nos meios educacionais do Brasil, por compreender que a aquisição de qualquer linguagem se dá através de contexto de fala e escrita, produção de gêneros textuais, dialogismo etc.

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LÍNGUA E DEMOCRACIA Língua Todos os seres humanos sempre teve a necessidade da comunicação, isso se dá devido à necessidade de interação e existência num meio social. Para esta interação, uma das ferramentas existente é a língua. A língua não deve ser algo compacto, acabado, em forma final. Não estamos falando de algo deve ser homogênio, falamos de um sistema heterogênio assim como afirma Freire (2007, p. 150); É importante termos em mente que as línguas não são sistemas perfeitos, prontos, acabados. Pode haver nelas heterogeneidade de origem externa ou interna à língua, e a heterogeneidade de um tipo pode gerar também heterogeneidade de um outro tipo.

Partindo desta teoria ideia, entendi-se que o discente possa ser protagonista desse processo de mudança da língua a qual está associada à linguagem.

A escola comumente leva o aluno a pensar que a linguagem correta é a linguagem escrita, que a linguagem escrita é por natureza lógica, clara, explícita, ao passo que a linguagem falada é por natureza mais confusa, incompleta, sem lógica, etc., nada mais falso. A fala tem aspectos contextuais e pragmáticos que a escrita não revela, e a escrita tem aspectos que a linguagem oral não usa. (CAGLIARI,2007, p. 37)

Não se deve desprezar aquilo é falado por um aluno, estando pronunciado de acordo com as regras gramaticais ou não. Por se tratar de um ambiente escolar, muitos acreditam que a forma “correta” de ser falar seja através de uma gramática normativa. 35


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Democracia O professor que investe na participação dos seus alunos, valorizando e respeitando as diferenças de cada um, deste modo, fundamenta-se num princípio mais valioso e básico da humanidade: o princípio da democracia, do governo para todos. Democracia, portanto, é o poder centralizado e organizado nas mãos do povo. A demanda social, a necessidade dos indivíduos, a busca pelo bem-estar de cada um devem ser algumas das obrigações desse tipo de governo. E ser democrático implica necessariamente ser participativo. Os indivíduos não devem se abster de sua posição e voz social – enquanto sujeitos críticos, cidadãos e transformadores, integrantes da democracia, devem participar e representar sua opinião nos diversos debates e discussões sobre seus direitos e deveres: a condição sine qua non para a realização de uma forma democrática de governo é a existência de uma sociedade participativa. Depreende-se que somente por meio da experiência da participação, os indivíduos desenvolvem habilidades e competências sociais e políticas para participar mais e melhor. (GUIMARÃES, 2009, p. 34)

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A LÍNGUA PORTUGUESA E SUAS VARIAÇÕES ATRAVÉS DA SEQUÊNCIA DIDÁTICA É fato reconhecido: os alunos chegam a escola falando sua própria língua materna. Cabe a instituição escolar, na figura de seus professores da área de linguagem, sistematizar as regras gramaticais da variante conhecida como padrão, oficial, sem, entretanto, condenar ou perpetuar preconceitos linguísticos, tendo uma ótima oportunidade de apresentar as outras formas variantes da língua. Pois, como afirmou Bakhtin, “a fala é, por sua natureza, social. A palavra não é um objeto tangível, mas um meio sempre móvel e alterável de comunicação social.” (BAKHTIN, 1983, p. 482) Como limitar a prática pedagógica do professor de língua portuguesa a mera transposição dos conteúdos gramaticais, da chamada língua padrão, por muitos tradicionalistas considerada imutável, pura? A língua, tanto escrita quanto falada, tem vida, circula em sociedade, não se prende nem tem sua existência justificada pela invenção da escrita. Como organismo vivo, é passível de sofrer alterações que, longe de serem refutadas em sala de aula, devem ser estudadas, observadas e incentivadas por uma gestão escolar democrática, e não só pelo professor da disciplina. Desta forma, é de extrema necessidade as instituições escolares terem em vista, dentro de sua gestão, dialogando com todas as disciplinas, qual a visão ideológica de língua estão defendendo em seu Projeto Político Pedagógico e pelos corredores e salas da instituição: se mero produto e instrumento de comunicação, com única e correta forma gramatical, ou fenômeno fluido e interativo, dinâmico e mutável, tomando forma de acordo com o contexto em que os interlocutores estarão vivenciando.

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Neste estudo, como se apreende até agora, defende-se a ideia de que tanto a gestão escolar democrática, quanto a língua portuguesa, ambas possuem aspectos e funções sociais, intimamente ligadas às necessidades de adaptação do ambiente em que se materializam, cultivando a interação e participação dos protagonistas da educação. No que se refere ao conceito de língua, esta pesquisa tem como principal suporte teórico o pensamento bakhtiniano: [A língua falada-escrita] Nunca remete a uma única consciência, a uma única voz. Seu dinamismo consiste em passar de um falante para outro, de um contexto para outro, de uma comunidade social para outra, desta para aquela geração. Através deste dinamismo, a palavra não esquece sua via de transferência e não pode se libertar, completamente, do poder que têm sobre ela os contextos concretos em que entrou. De maneira alguma ocorre que cada membro da comunidade de falantes aprenda a palavra como um elemento neutro da língua, livre das intenções e desabitada das vozes de seus usuários anteriores. Pelo contrário, ele recebe a palavra de um outro e conduzida pela voz do outro. A palavra entra no seu contexto a partir de outro contexto, permeada pelas intenções de outros falantes. Seu próprio pensamento já encontra a palavra ocupada. (BAKHTIN, 1983, p. 482)

Eis que a didática do ensino de línguas vê surgir, para fundamentar a teoria de que o ensino é processo de interação e trocas, um instrumento que concebe a linguagem em sua natureza dinâmica, não apenas em seu aspecto estrutural: a sequência didática.

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Uma “sequência didática” é um conjunto de atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em torno de um gênero textual oral ou escrito. [...] tem [...] a finalidade de ajudar o aluno a dominar melhor um gênero de texto, permitindo-lhe [...] escrever ou falar de uma maneira mais adequada numa dada situação de comunicação. (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, p. 97)

A metodologia da sequência didática, que por seu turno pode ser estimulada por gestores educacionais ao seu corpo docente, resume-se basicamente nas seguintes palavras: partindo sempre de algum gênero textual, o professor, de qualquer área do conhecimento, deverá ensinar os conteúdos para seus alunos observando as estratégias de como o gênero foi composto: linguagem utilizada, o contexto em que geralmente circula, as intenções do autor, para quem se destina etc. Apesar de ser um recurso relativamente novo, a sequência didática não abre mão de um conhecido hábito do método pedagógico: o planejamento. Planejar enquanto “processo de reflexão” (BAFFI, 2015), ou ainda “processo de busca de equilíbrio entre meios e fins, entre recursos e objetivos, visando ao melhor funcionamento de empresas, instituições, setores de trabalho, organizações grupais e outras atividades humanas.” (BAFFI, 2015) Deste modo, tendo em vista que o planejamento e a sequência didática compartilham a ideia de que o ensino de língua é eterna construção e interação de saberes, ao docente caberá se atualizar nestas questões. Responsabilidade não apenas sua: o corpo diretor, supervisor e coordenador da escola deverão apoiar sempre a renovação, a atualização de seus profissionais, oferecendo oficinas, palestras, reuniões a esclarecer possíveis dúvidas. Contudo, sempre lembrando que tais metodologias devem ser discutidas, pensadas e não impostas por puro modismo ou obrigação – a gestão democrática deve conceber, como se viu durante todo este trabalho, sempre o espaço para o diálogo e decisão de cada educador. 39


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A metodologia de ensino que dialoga com a sequência didática entende a língua enquanto fenômeno social, que se molda de acordo com o contexto em que se realiza. E isso fica claro quando, após o professor ter trabalhado com módulos que contemplem, além das questões gramaticais, os recursos que fazem um determinado gênero ter específica forma, passa a pedir de seus alunos uma produção do gênero que foi alvo dos estudos. É essencial, nessa forma metodológica de ensino e gestão, dizer que a visão discutida através dessas sugestões é interacionista e concebe as etapas por que irão passar os discentes como processo. Nada mais democrático e educativo do que a preocupação do docente de língua materna em estudar com o educando não a simples regra da língua, mas, antes de tudo, saber usá-la dentro dos gêneros textuais cotidianos. São, portanto, temas da gestão escolar: a sequência didática, processo de ensino aprendizagem, conceito de língua e texto. Debates que não devem se restringir ao universo dos professores. Ensinar, manter a rotina dentro das escolas não é apenas preparar o alunado para o vestibular: é ter em vista o respeito, o convívio em sociedade, a aceitação das diferenças comportamentais, culturais, etc. Elementos e atitudes que tornam uma instituição escolar democrática. Um último ponto a ser ressaltado: a sequência didática não pretende trabalhar gêneros comumente usados pelos alunos. Sua função é levar textos poucos conhecidos, de difícil acesso, para que possam ser produzidos e futuramente se tornem mais fáceis de serem identificados. Não se pretende ensinar o óbvio, pois não instiga a sede de saber. O processo do ensinar e do aprender é um constante desafio:

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O trabalho escolar será realizado [...] sobre gêneros que o aluno não domina ou o faz de maneira insuficiente; sobre aqueles dificilmente acessíveis, espontaneamente, pela maioria dos alunos; e sobre gêneros públicos e não privados. [...] As sequências didáticas servem [...] para dar acesso aos alunos a práticas de linguagem novas ou dificilmente domináveis. (DOLZ; NOVERRAZ; SCHNEUWLY, 2004, pp. 97-98)

METODOLOGIA

A investigação segue o tipo quantitativa, pois ela consegue assegurar os resultados de forma mais objetiva. O desenho é não experimental, o estudo se realizou sem manipulação das variáveis e se observou os fenômenos em seu ambiente natural. Corte transversal: todos os dados foram recolhidos em um único momento. A pesquisa é participativa, cuja zona geográfica compreendeu dez escolas privadas do município do Paulista, numa população e amostra censal (a quantidade da amostra corresponde à população), de 13 professores pesquisados. Acerca das técnicas e dos instrumentos de recolhimento dos dados, para obtenção do corpus da pesquisa que este estudo se propôs a realizar, foi elaborado um questionário, aplicados em 10 instituições escolares privadas, também conhecidas por particulares, localizadas no município do Paulista, Região Metropolitana do Recife, no estado de Pernambuco: direcionado aos professores de Língua Portuguesa. O período de aplicação desses instrumentos se deu entre os meses de dezembro de 2016 e janeiro de 2017. Os questionários foram apresentados e entregues, pela pesquisadora do tema, diretamente aos professores da disciplina supracitada.

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A estrutura de cada questionário conteve 10 perguntas, ora apresentadas em formato fechado, isto é, de assinalar com um X, ora aberto, para que o profissional questionado se sentisse a vontade para escrever seu ponto de vista acerca dos questionamentos.

ANÁLISES DOS RESULTADOS

Uma das perguntas iniciais foi sobre o nível de graduação dos professores, todos possuem graduação; entretanto, do total, um pouco mais da metade, 8 docentes, disseram que possuíam pós-graduação, a nível de Especialização, nas áreas que lecionam. Em relação à quantidade de escolas que trabalham: 4 responderam que lecionam em uma; 4 trabalham em duas; 3 ensinam em três; 1 não respondeu a essa questão; e apenas 1 marcou a opção que trabalha em mais de 3 instituições. Em relação a aceitar o uso de gírias em sala de aula, ocorreu um resultado curioso, afinal, diante das novas concepções de língua e linguagem enquanto interação, através dos estudos das variedades linguísticas, os docentes de português se viram divididos: 7 disseram que aceitam; 6 docentes marcaram que não. Quando perguntado se o profissional já repreendeu o aluno por fazer uso de uma varição linguística a qual não está inserida numa gramática normativa se teve o seguinte resultado; 8 professores disseram que já repreendeu e 5 disseram nunca terem repreendido. Agora, passa-se a selecionar alguns comentários feitos pelos professores, no que diz respeito às questões que pediam para que discorressem sobre o que seria gestão escolar a permitir democracia e participação dos seus com42


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ponentes; como a Língua Portuguesa poderia contribuir nesse tipo de gestão; entre outros temas. Sobre o que os docentes entendiam por uma gestão democrática, eles foram unânimes ao afirmarem que este processo inseria todos os que faziam a escola, em busca de uma participação que resultasse na organização nos mais variados aspectos que se apresentam à instituição. Observe algumas respostas: • Professor 1: Parte responsável, em uma escola, que lida com a organização tanto financeira quanto, e principalmente, pedagógica. Que também saiba administrar conflitos, escutar toda a comunidade escolar (pais, professores, alunos, etc.). • Professor 2: Gestão democrática é quando uma instituição possibilita a participação e a democracia em todos os aspectos de sua organização. • Professor 3: É a participação da comunidade escolar nos processos que se evoluem e implementação coletiva de metas, objetivos, estratégias e procedimentos da escola. Onde a comunidade escolar construa proposta e alternativas que fortaleçam a união em torno da gestão do ensino. • Professor 4: A Gestão Democrática está organizada e que possa servir, ter referencial, ou seja, fonte de consulta com o objetivo para reflexo e debate. • Professor 5: Uma gestão favorável onde todos participam. • Professor 6: Aquela em que o gestor aceita opiniões de todos os segmentos da escola.

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Após a leitura destas respostas selecionadas, verifica-se que os professores de Língua Portuguesa, que se dispuseram ao questionário, apresentaram uma visão atual, a caracterizar a gestão escolar comungando com os ideais de uma nova era, a conceber a organização de uma escola ouvinte e atuante, isto é, que escuta e se preocupa com cada um que a compõe. Administra para todos, não para alguns. Indagados sobre a possível contribuição que a disciplina de Língua Portuguesa pode dar para a gestão escolar democrática, eis que se selecionam as seguintes respostas: • Professor 1: A Língua Portuguesa tem suma importância na elaboração de projetos esclarecedores, de linguagem adequada e clara. • Professor 2: A partir do momento em que o docente de L. P. passa a compreender todos os fenômenos da linguagem em relações interacionais. Afinal, a escola, a priori, se estabelece como meio de interação plena. • Professor 3: A Língua Portuguesa pode auxiliar na elaboração e execução de projetos, bem como na produção de textos que serão utilizados no ambiente escolar. • Professor 4: Sabemos que a língua portuguesa é fundamental para o domínio da linguagem oral e escrita para participação social efetiva, pois só desta forma é que o ser humano tem acesso à informação expressando e defendendo pontos de vista. Partilhando ou construindo visões do mundo. • Professor 5: Através do diálogo entre todos os segmentos em favor de uma unidade dentro da escola. 44


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• Professor 6: No processo de construção do PPP (Projeto Político Pedagógico), denotando falhas no texto, que a gestão precisa corrigir. • Professor 7: O estudo da Língua Portuguesa é fundamental em todos os aspectos. Na leitura e formação da consciência crítica podemos obter um melhor desenvolvimento da comunicação social. • Professor 8: Políticas educacionais e metodologias de ensino centradas no desenvolvimento das capacidades de leitura e interpretação. • Professor 9: Ela pode contribuir à medida que a Língua é o patrimônio comum a nós brasileiros.

Nota-se que os comentários dos docentes não tornam a relação da Língua Portuguesa com a gestão escolar democrática utópica. Seja pela elaboração de projetos, documentos, ou até mesmo com os alunos, a esclarecer que a língua é um meio de interação e democracia, os professores mantiveram em seu discurso o pensamento de que a linguagem contribui para o desenvolvimento das relações interpessoais. Muito se tem afirmado, no campo da ciência Linguística, que língua é poder. E que ao mesmo tempo, todos têm o direito e dever de usá-la, tendo a noção de que o idioma é mutável e dinâmico, a adaptar-se aos diversos contextos de fala e de escrita, isto é, situações sócio-comunicativas. Portanto, se esta pesquisa pretende analisar a língua portuguesa como elemento democrático no ambiente escolar ,como princípio fundador e formador da educação, nada mais natural do que indagar aos docentes de Língua Portuguesa se permitiam o uso de gírias na sala de aula, ou se os mesmos recriminavam essa variante linguística. A reação de alguns professores, perante tal situação, se mostra a seguir. Com a palavra, os docentes: 45


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• Professor 1: Apresento as variedades da nossa linguagem, que poderão ser substituídas pelas gírias, proporcionando um enriquecimento no vocabulário do estudante. • Professor 2: Aceito e não recrimino. Contudo, aviso que em determinadas situações de fala e escrita o uso da gíria é indevido. • Professor 3: Por ser a escola um espaço social e diversificado é importante deixar que o aluno utilize a linguagem que achar melhor para se expressar. • Professor 4: Devemos com naturalidade diante da situação acreditarmos que cada aluno tem sua cultura doméstica. • Professor 5: Respeitamos o seu linguajar, pois somos conscientes que vivemos em uma sociedade diversificada, porém tentamos aproveitar a gíria e criamos uma didática, para conscientizá-lo que pode ser usada, mas não faz parte do vocabulário. • Professor 6: Procuro mostrar que faz parte de uma variação social da linguagem e que não pode ser usada em todos os locais. • Professor 7: Não recrimino, mas esclareço que há determinados lugares em que deve-se adequar a maneira de transmitir o que se pretende, ou seja, que ninguém vai à praia de terno e gravata. • Professor 8: Utilizando as devidas informações e orientações sobre o uso da gíria. A gíria é só mais uma variante da Língua Portuguesa e pode nos ajudar a conhecer melhor os seus usuários. • Professor 9: Compreendo que faz parte da realidade dele e respeito a diversidade linguística.

Notório verificar que em todas as respostas, os docentes de Língua Portuguesa foram unânimes em aceitar a gíria enquanto variante linguística. Contudo, eles ressaltaram que nem todo ambiente, contexto de fala e escrita, essa variação da língua é aceita. Há momentos e lugares específicos de seu 46


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uso. Muitos chegaram a afirmar até que, no momento em que a gíria fosse usada, a mesma seria reaproveitada como tema da aula, discorrendo sobre as faces da linguagem. Com base nessas afirmações, os professores pesquisados apresentaram uma ideia de língua como interação verbal, em pleno diálogo com as correntes linguísticas que entendem a linguagem como fenômeno múltiplo, democrático, indissociável do ambiente em que está sendo produzido: “não é possível descartar as condições de produção que presidiram à constituição do enunciado linguístico”. (WEDWOOD, 2002, p. 155) Pode-se concluir, então, que os educadores que responderam às questões propostas, em sua maioria, afirmam participar de uma gestão democrática, sendo-lhes proporcionado meios e modos de se expressarem, e também o seu alunado, no que se refere ao uso de um vocabulário variante da norma padrão.

CONCLUSÃO

O processo de ensino-aprendizagem não deve ser pensado apenas dentro da sala de aula, unicamente pelo professorado. A escola, como um todo, deve repensar o seu papel e, através de uma gestão democrática, apresentar aos docentes e discentes os melhores meios e caminhos para juntos produzirem, não apenas reproduzirem, conhecimentos a desenvolver a democracia pura e plena. É essencial entender a escola como continuação da sociedade, e não como algo superficial, longe da realidade do aluno, sociedade esta que não foge as suas contradições, ambiguidades. Importa perceber que não é mais cabível aos membros de uma escola, em todas as instâncias, ter a visão de língua única e exclusivamente como estrutura imutável e plenamente cristalizada, através de suas normas. Linguagem também é democracia. 47


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Assim, interrompe-se, e não se finaliza, este estudo, afinal há muitos debates por vir, que deixaram questões ainda em aberto, sobre a democracia na escola, rodeada de muitos obstáculos, mas que procura terreno para se fincar cada vez mais. É um processo longo, por isso terá muito caminho a seguir. Mas ele já começou a ser trilhado. Para tanto, o arcabouço teórico dialogou com temas que tinham como prioridade a interação, a democracia das relações escolares e de estudos. E indicou um posicionamento crítico à época em que as coisas constantemente estão mudando, com urgência do diálogo, da empatia, das relações interpessoais eficazes, de compreensão das particularidades e diferenças do outro.

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Resumo O presente trabalho propõe abordar a relação entre literatura e filosofia, desde a concepção da linguagem trágica e do efeito trágico e do trágico e do sublime. Dado ao exposto, a obra de Eurípedes, Medeia, problematiza a tensão entre a liberdade humana e a culpa trágica, porém esta questão de cunho filosófico remete, primeiramente, ao problema da linguagem trágica e de seu efeito catártico, de acordo com Aristóteles (1991). Por outro viés, a apropriação da filosofia moderna acerca do efeito trágico parte do seguinte conceito do sublime que indica uma preocupação da ética moderna e da formação moral do homem pelo fundamento da estética. Palavras-chaves: literatura e filosofia; Linguagem trágica e efeito trágico; Trágico e sublime; Liberdade humana e culpa trágica; Filosofia moderna.


A TRAGÉDIA E O SUBLIME EM MEDEIA DE EURÍPEDES: RELAÇÃO ENTRE LITERATURA E FILOSOFIA MODERNA Igor de Serpa Brandão Pereira Leite1

INTRODUÇÃO A Tragédia grega costuma apresentar personagens em estado de profunda aflição. A dimensão humana é logo vista a partir de um prisma caótico, considerando a expectativa trágica como elemento primordial para reflexão da condição humana. A tragédia, segundo a definição aristotélica (1991), deve suscitar temor e piedade aos desígnios da conduta humana. Os eventos trágicos são problematizadores desde o efeito que produz. A estupefação vai ao encontro de uma realidade excepcional, confusa e humilhante à luz do drama trágico. O personagem trágico é aquele que deve suscitar um profundo compadecimento diante de sua origem e estirpe social elevado. A desgraça humana é ainda maior quando o herói trágico contraria a sua origem elevada com alguma ação avassaladora. Levando isso em consideração, a obra de Eurípedes (Medeia) revela para o leitor/espectador a representação da personalidade trágica que indica a problematização da liberdade humana sob a luz ambígua da moral individual (direito natural) e da culpa trágica (responsabilidade moral). O conflito da liberdade humana desde o destino trágico de Medeia remete à amplitude do efeito trágico em si para o espectador/leitor e certamente levanta uma outra discussão na filosofia moderna acerca deste efeito trágico 1. Pós-graduado em práticas docentes para o ensino de língua espanhola pela Fafire (PE). Email:igorser8pa@ hotmail.com 51


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a partir da ideia do sublime e do belo, conforme a concepção de Schiller, que se baseou no pensamento kantiano sobre a estética. Assim, o fundamento da ideia do sublime junto à reflexão da experiência trágica, de modo geral, direciona ao problema de formação moral/estética do homem como ser da razão. O presente trabalho, portanto, pretende abordar inicialmente a questão da tensão entre a liberdade humana e a culpa trágica desde o modo da linguagem trágica e do seu efeito catártico, segundo a visão aristotélica. Da catarse à concepção do sublime por meio das cenas mais trágicas, pode-se elucidar uma dada relação entre literatura e filosofia moderna.

MEDEIA E A SUA PERSONALIDADE

Logo no começo da peça de Eurípedes, Medeia está plenamente fora de si, anunciando a todos a profunda tristeza do seu destino pelos lamentos que ecoam no cenário trágico. O cenário é agora outro. Vislumbra-se para o espectador ou leitor pavor e piedade aos lamentos injuriosos de Medeia. Medeia tem consciência de sua situação trágica. Na verdade, Medeia sabe realmente da sua condição de vingança. A ação trágica é “possível que (...) seja praticada a modo como a poetaram os antigos, isto é, por personagens que sabem e conhecem o que fazem, como a Medeia de Eurípedes, quando mata os próprios filhos” (ARISTÓTELES,1991, p.262). O lado mais problematizador desta peça de Eurípedes é a própria tragédia que anuncia Medeia. Por outro lado, o efeito trágico pode trazer para o leitor outra concepção da personalidade forte de Medeia. O que importa não é a situação trágica de Medeia em si, é o próprio caráter moral de Medeia. O efeito trágico vai além dos meros sentimentos de piedade e temor. O leitor se depara com a própria condição trágica humana e uma personalidade 52


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peculiar que é Medeia. A dramatização da situação de Medeia remete à voz do personagem que fala diante de si. Medeia anuncia que é uma mãe odiosa e vitupera Jasão e o valor sagrado do Oikos para os gregos. O lamento de Medeia precede a ação derradeira; a consciência dela indica o efeito trágico em forma crescente.

LIBERDADE HUMANA

Será a liberdade humana uma razão suprema e justificável desde a reflexão da ação trágica? A resposta, infelizmente, não é precisa. São os conflitos e a ambiguidade acerca da ação trágica que deixa um questionamento peculiar da condição humana. O crime praticado por Medeia é oriundo de uma vontade humana obstinada por um senso de justiça próprio (pretensões de um direito natural). Medeia fala por si e age com consciência para o trunfo do crime que está prestes a ser consumado nesta passagem da obra de Eurípedes: “MEDEIA–Ai! Ai! Sofri, desgraçada, sofri males muito para lamentar. Ó filhos malditos de mãe odiosa, perecei com vosso pai, e a casa caia toda em ruínas.” (EURÍPEDES, 2006, p.9, grifo nosso). Assim, a conduta trágica de Medeia se toma por um desejo inconsciente e obstinado de procurar uma satisfação do seu próprio feito. Na consciência de Medeia, ela fora traída por Jasão que havia anunciado que iria desposar com a filha de Creonte. A vontade obstinada de Medeia pela vingança indica uma razão própria, uma razão humana como potência superior a qualquer desígnio contra. Um determinado sentimento de contrariedade e desonra irá acompanhar esta vontade cega. Para os gregos, esta vontade cega revela uma conduta dominada pelo pathos (paixão) como uma desmedida. Este sentimento que carrega Medeia torna-se uma causa própria em nome de uma justiça que lhe é própria em cima do que fora violado. Assim, a ação trágica que está por surgir já encontra uma 53


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justificativa subjetiva por meio deste sentimento exorbitante, logo na reprodução inicial dramática da obra. Eurípedes problematiza sobre esta causa de Medeia, ou melhor, sugere uma problematização de dada legitimidade da liberdade humana. Medeia, após praticar o ato de envenenamento, sacrifica os próprios filhos em nome de uma lei própria que fora violada por Jasão. Medeia não aceita o destino que lhe foi posto; ela luta em defesa de sua causa e uma justiça apropriada contra quem violou uma lei conjugal. Este conflito assombroso é digno de uma problematização fulcral que vai além da dicotomia pathos/ razão e hybris/logos. Diante do exposto, a inserção de uma reflexão da ética na filosofia moderna não se dá sem o conflito mesmo da liberdade humana (vontade) que encerra uma inclinação do direito natural. Para Schelling (S/D) apud Thibodeau (2015): No conflito da liberdade humana com a potência do mundo objetivo, no conflito em cujo curso o mortal, se esta potência é uma superpotência –(um factum)- deve necessariamente sucumbir, e, entretanto, porque ele não sucumbira sem combate, ser punido por sua própria perda. O fato de que o criminoso punido, que, entretanto, sucumbira apenas à superpotência do destino, era ainda um reconhecimento da liberdade humana, uma homenagem a qual a liberdade tinha direito. (p.25).

Medeia tinha duas escolhas. Ela poderia ouvir a voz plena da razão e resignar-se à tomada de decisão de Jasão sobre o seu futuro. Mas algo ainda permanece relativamente trágico senão a própria submissão do destino em si. Outra escolha seria a necessidade da liberdade humana que rompe com qualquer barreira imposta. Certamente, a liberdade humana e trágica de Medeia demonstra por outro viés determinado sentimento de culpa. Isso indica acerca do peso da própria responsabilidade da liberdade humana. Assim é Medeia. 54


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Para Benjamin (2011):

mas isso não acontece por meia da superação (...) de culpa e redenção pela pureza do homem redimido e reconciliado com o deus puro. O que acontece na tragédia é que o homem pagão se apercebe do que é melhor do que seus deuses, (...) não coloca a culpa e a redenção, como medidas diferentes, nos pratos da balança, mas mistura-as e confunde-as. Não se fala de um restabelecimento da ordem moral do mundo, é o homem moral que, ainda mudo, (...) tenta erguer-se no meio do grande abalo daquele mundo de dor. (p.8, grifo nosso).

Medeia representa uma força da liberdade moral e da culpa trágica diante da sua própria tragicidade.

REFLEXÃO MODERNA DA ARTE TRÁGICA

A poética de Aristóteles preocupou-se em identificar os principais elementos da tragédia, e principalmente sobre o efeito que a tragédia pode causar ao espectador como ato de purificação, ou seja, a catarse. O espectador, ao sair do espetáculo cênico, não tinha dúvidas sobre a diferença entre um caráter elevado e um caráter medíocre, ou mesmo entre um caráter elevado e o destino. A piedade e o temor eram o principal elemento do jogo dramático, fazendo que a tragédia conduzisse o homem a algo superior, seja pelo sentimento elevado, seja pelo sentimento da fragilidade humana diante da culpa trágica. Além do efeito trágico, há algo que não se pode ocultar sobre a reflexão da ação trágica. A filosofia moderna preocupou-se com a arte trágica desde o princípio do mundo ético moderno. Agora tem-se um problema filosófico à luz das preocupações do iluminismo alemão (aufklärung). A reflexão sobre 55


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a estética trágica era uma questão fundamental para pensar a totalidade do mundo ético moderno que se origina na reflexão da formação humana pela ideia da razão. Friedrich Schiller (1759-1805), dessa maneira, abordou o fenômeno trágico a partir da reflexão estética sob o conceito do sublime:

Sob tal perspectiva, belo e sublime são compreendidos como dois elementos complementares e indispensáveis para o processo de educação estética que levaria o homem a realizar de modo pleno sua destinação, superando a cisão entre suas duas naturezas- sensível e racional- de que os comportamentos bárbaros e selvagens do século XVIII davam testemunho. O contato com os objetos do primeiro tipo nos ensinaria a reconhecer a nossa liberdade natural, que tem lugar quando as inclinações sensíveis se harmonizam às leis da razão. (VIEIRA, 2011, p.15).

Sob este ponto de vista, o efeito trágico, para Schiller, pode causar ao espectador ou leitor aquela sensação de elevação moral através das cenas mais dramáticas. Schiller desenvolveu a ideia do sublime como efeito da elevação moral que a arte trágica, por exemplo, pode proporcionar aos leitores/espectadores desde fatores do espetáculo cênico, mas também discursivos e retóricos. O estilo sublime: Tem uma parcela importante de técnica discursiva ou retórica, estudada segundo a divisão de cinco fontes que o produziriam: (1°) capacidade de se elevar a pensamentos grandiosos; (2°) emoção veemente e inspirada; (3°) determinada moldagem das figuras, do pensamento e da palavra; (4°) nobreza de expressão; (5°) composição com vistas à dignidade e elevação. (SCHILLER, 2011, p.79).

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De acordo com isso, a ideia do sublime remete à elaboração de certo comprazimento à representação do sofrimento trágico. Isso indica que a linguagem trágica é uma linguagem forte, significando o peso da dramaticidade nas esferas das situações adversas e não menos sublime. O sublime, pois, para Schiller, é um conceito estético sobre as inclinações sensíveis da natureza humana que se eleva a partir dos fundamentos de certo comprazimento à luz da razão. O efeito trágico, segundo este modelo teórico, pode demonstrar a superação da razão enquanto se situa em certa complacência a partir da representação dramática do sofrimento de outrem.

O SUBLIME E A TRAGÉDIA

Antes de começar sobre o conceito do sublime e a relação com a tragédia, será importante abordar o belo e o sublime desde uma perspectiva kantiana, associando com a obra aristotélica sobre a arte trágica. A realidade para o autor trágico se dá por meio da estrutura do mito e o desenvolvimento da ação trágica, conforme dizia Aristóteles (1991). Na modernidade, a concepção do belo importa como “ajuizamos na simples contemplação” (KANT,1995). O juízo estético pode ser formado desde o princípio do efeito trágico, ou seja, o modo como a ação trágica se desenvolve e culmina com a amplitude moralizadora ou filosófica depois de várias representações dramáticas. Assim, o espectador contempla o belo por meio da engenhosidade do autor trágico e do espetáculo cênico, mas o entendimento é fruto da elaboração de determinado juízo estético. Para Kant, o “entendimento é sublime, o engenho é belo” (1995). Para Aristóteles (1991), este entendimento, certamente, advém da estrutura da tragédia como gênero poético e dos seus elementos constitutivos. A ênfase aristotélica está na harmonia destes elementos constitutivos que demonstram dada criatividade engenhosa do poeta trágico. 57


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Por outro lado, a filosofia moderna do século XVIII e XIX preocupou-se com a estética, pensando na ideia da razão moderna. Na poética de Aristóteles, pelo contrário, há uma síntese dos gêneros poéticos, pensando na engenhosidade do poeta. Logo, a arte trágica à luz do pensamento kantiano está para o entendimento e o belo. Para Aristóteles, o poeta ressignifica o mito e a realidade a partir da imitação (mímesis) pela sua engenhosidade. Isso leva ao seguinte entendimento: Aristóteles pensou no efeito que a arte trágica pode causar ao espectador desde a estrutura da obra e da capacidade do autor em organizar harmonicamente diversos elementos dispersos próprios da linguagem trágica. Com outro olhar, Kant e, posteriormente, Schiller, trataram o fenômeno da emoção trágica pensando na faculdade da imaginação (engenho e fruição do belo) e do entendimento a partir do juízo estético e da reflexão moral. Segundo Schiller: belo já constitui uma expressão da liberdade; mas não daquela que nos eleva acima do poder da natureza e nos dispensa de toda influência corpórea, e sim da liberdade de que gozamos como homens dentro da natureza. Sentimos-nos livres frente à beleza porque os impulsos sensíveis se harmonizam com a lei da razão. (SCHILLER, 2011, p.58).

A supremacia do entendimento humano se revela pela superioridade da razão como elevação do espírito humano. Como bem elabora Schiller, o sublime implica em algo perturbador que “consiste numa junção de um estado de dor, que se exprime no seu grau máximo como um horror” (SCHILLER, 2011, p.60) e um certo prazer pela autonomia moral da razão humana.

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Para Schiller, as duas leis fundamentais de toda arte trágica são: “em primeiro lugar, a apresentação da natureza que sofre; em segundo lugar, a apresentação da autonomia moral no sofrimento.” (2011, p.51). É legítimo afirmar que a totalidade do efeito trágico frente à concepção schilleriana desde o conceito do sublime condiciona-se ao propósito da elevação da autonomia intelectual e moral do homem, desde determinada diretriz pedagógica/moralizadora da qual se nutre a arte trágica. O vínculo com a autonomia moral pela razão se revela pelas diretrizes estéticas. Tanto a definição da tragédia por Aristóteles quanto ao fundamento do sublime e do belo se debruçam sobre uma mesma ideia fixa: a constituição da formação ou da elevação moral do homem.

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CONCLUSÃO A tragédia implica em diversos questionamentos acerca da moral humana, mas também da própria linguagem trágica em si. O que se exprime acerca de algo elevado e significativo exige por si mesmo uma amplitude do fazer estético com caráter sério e profundo. Certamente, o efeito trágico pretende trazer certa perturbação e pavor à luz do drama e do sofrimento humano. A linguagem trágica, segundo a visão aristotélica, possui um caráter sério e problemático nos gêneros da poética, devido a amplitude da moral humana e social sob o efeito catártico, purificador das emoções. Com outra perspectiva, a concepção do sublime e da tragédia na filosofia moderna sugere uma forma de abordagem sobre a fundamentação estética da linguagem trágica (estilo sublime) em diálogo com a perspectiva ética na modernidade e da razão moderna, uma vez que o contexto histórico e filosófico nos séculos XVIII e XIX se assentou numa crítica da razão pura e prática por meio do idealismo transcendental. Diante destas duas concepções acima expostas que vai ao encontro da importância da criação estética da tragédia e do seu efeito trágico para a poética aristotélica. Na filosofia de Schiller, acentua-se a relação entre literatura e filosofia sob os pontos de vista da liberdade humana (direito natural) e da culpa trágica (responsabilidade moral), que, certamente, estão subsumidos na reflexão moderna da formação do homem pelos parâmetros da razão e da estética.

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REFERÊNCIAs ARISTÓTELES. A poética. São Paulo: Nova Cultural, 1991. BENJAMIN, Walter. Destino e caráter. Tradução de João Barrento. Covillã: Universidade da Beira interior, 2011. EURÍPEDES. Medéia. Tradução e organização Flávio Ribeiro de Oliveira. Editora: Odysseus. São Paulo, 2006. KANT, Immanuel. Crítica da faculdade do juízo. Tradução de Valerio Rohden. 2 ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1995. SCHILLER, Friedrick. Do sublime ao trágico. Organização Pedro sussekind; tradução e ensaios Pedro Sussekind e Vladimir Vieira. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2011. THIBODEAU, Martin. Hegel e a tragédia grega. Tradução Agemir Bavaresco e Danilovaz Curado R.M. Costa. 1 ed. São Paulo: É Realizações, 2015.

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Resumo Alberto Caeiro é um heterônimo criado pelo poeta Fernando Pessoa, sendo considerado, pelo próprio autor e pelos demais heterônimos, como um mestre. Sua principal obra, a série de poemas “O Guardador de Rebanhos”, contém muitas marcas pelo panteísmo, mas, apesar desse forte aspecto, também apresenta referências cristãs em algumas passagens. À luz dessa condição e para entender a articulação entre os dois eixos, analisam-se elementos do Panteísmo e do Cristianismo em peças de “O Guardador de Rebanhos”, contrapondo-as a passagens bíblicas e à tradição cristã. Percebe-se que o heterônimo, mesmo posicionando-se contra o Cristianismo, carrega elementos da religião em sua obra. Também é visível, nos versículos bíblicos e nos poemas, a representação divina no Cristianismo e Panteísmo, respectivamente. Sem desprezar a tradição cristã, assim, Caeiro oferece-lhe novas cores, num diálogo produtivo entre duas formas de se compreender o sagrado. Palavras-chaves: Alberto Caeiro; Panteísmo; Cristianismo.


ALBERTO CAEIRO ENTRE O PANTEÍSMO E O CRISTIANISMO: o sagrado na leitura poética Izabelly Maria da Silva Mota1

INTRODUÇÃO O interesse pela obra de Fernando Pessoa se desdobra numa volumosa bibliografia, que investiga tanto a sua poesia quanto a prosa. A cada dia, surgem novas contribuições, em diferentes línguas, que focam variados aspectos dos escritos realizados pelo autor e somam-se aos anteriores, formando uma cadeia de estudos ininterruptos. É possível prever que continuará acontecendo assim futuramente, dadas à imensa capacidade criativa do escritor luso e a consequente riqueza do que escreveu, o que proporciona o reconhecimento praticamente unânime tanto do leitores quanto da crítica. São múltiplas as facetas da produção pessoana. Em seus textos, ocorre uma constante alteração de perspectiva, que permite diversas interpretações, por vezes até contraditórias. Em não poucas situações, os heterônimos criados por Pessoa são complementares – o que um sustenta, o outro questiona; o que, num, expõe-se por meio de uma perspectiva, no outro, enxerga-se diversamente. Alberto Caeiro é o mestre dos demais heterônimos e do próprio Fernando Pessoa. Na biografia construída por Pessoa, ele não possuía educação e ocupação quase alguma e, embora nascido em Lisboa, viveu a maior parte da vida no campo. Se tivesse de declarar sua ocupação, diria ser poeta e nada mais; sendo, assim, um poeta pretensamente natural. Caeiro idealiza esse 1. Graduanda do curso de Letras Português e Espanhol da Universidade Federal Rural de Pernambuco e bolsista do Programa Residência Pedagógica da mesma instituição. E-mail: izabelly.mm@hotmail.com. 63


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imaginário natural através dos seus versos, que possuem espontaneidade e naturalidade, além do pensamento filosófico. Sua obra-mestra, “O Guardador de Rebanhos”, é marcada pelo panteísmo. Neste artigo, observa-se, em poemas da série e na interface com a Bíblia, a questão da presença da divina, como ocorre e de que modo é retratada.

FERNANDO PESSOA E A HETERONÍMIA

Fernando Pessoa é um dos casos mais complexos e estranhos, se não único, dentro da Literatura Portuguesa e, mesmo, Ocidental. Tudo quanto for dito sobre Pessoa será passará sempre pela tentativa de avaliar a sua personalidade e a obra multifacetada que criou. Levando em conta a assimilação da tradição poética lusitana, o poeta ultrapassou essa integração, através da sua genialidade.

[...] Pessoa não só absorveu o passado lírico português como também repercutiu as grandes inquietações presentes no primeiro quartel deste século. Com suas sensíveis antenas, captou as várias ondas que traziam de lugares diversos a certeza de se viver então uma profunda crise de valores e de cultura, quem sabe uma nova Renascença. O mundo romântico-realista agonizava; o moderno, em suas incontáveis modalidades, despontava como aspiração, medida e alvo. (MOISÉS, 1998, p. 46).

Por ter recebido educação inglesa, o escritor sofreu influências de poetas como William Shakespeare, Edgar Allan Poe e Lord Byron. Entre os nomes de língua portuguesa que influenciaram Pessoa, estão Cesário Verde e Mário de Sá-Carneiro; este, seu grande amigo.

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Quando se pensa num grande autor, é normal suas ideias e seu projeto estético não se encaixarem num sistema fixo. No caso de Pessoa, entretanto, essa inadequação é levada a um outro nível, com experimentos por vezes paradoxais. Porém a sua voz busca e consegue achar ritmos, ajustando a língua a seu modo, sendo ela a constante que guia, diante do emaranhado de seus paradoxos. O poeta traz diversas inovações para a poesia portuguesa. [...] a expressão intelectual de uma emoção, a troca dos vocabulários da emoção e da inteligência, uma nova linguagem, que já não era a da razão, nem a do sentimento, que aludia a um plano até aí ignorado pela nossa poesia, e – coisa de primacial importância – a voz mais musical que jamais nela se fizera ouvir. (MONTEIRO apud PERRONE-MOISÉS, 2001, p. 9).

Fernando Pessoa utiliza o paradoxo com frequência para ponderar a (sua) verdade e a partir dela extrair o belo das ideias. Para o poeta, a realidade – fosse concreta ou abstrata – era um grande campo, dotado de contradições e verdades complementares, paralelas e opostas. A linguagem por ele usada nasce de proposições ambíguas, resultado de um pendor analítico. Acaba, assim, por lançar dúvidas ao leitor, causando um impacto em suas mentes, tornando obrigatório o esforço de rever conceitos e “verdades” estabelecidas, até a ocasião de ter contato com o texto. Pessoa projetava colaborar para o desenvolvimento cultural do seu país, Portugal. Usando a contradição como método, ele percebia a importância da dúvida, no desenvolvimento intelectual da nação. [...] o poeta gira num vasto mundo de dúvidas, contando ainda com que outras venham adicionar-se na mente do crítico: as suas dúvidas não são apenas suas; são dos heterônimos e são, ou devem ser (pelo menos, ele assim o deseja), nossas. (MOISÉS, 1998, p. 35). 65


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Ele aspirava à formação de dúvidas na consciência da sociedade, isto é, instigar as pessoas a pensarem, duvidarem e questionarem os saberes estabelecidos. É possível perceber que tal método tinha como objetivo conduzir a nação a uma regeneração, por meio do pensamento. O questionamento levaria a sociedade portuguesa a obter um grande desenvolvimento cultural. No propósito de conseguir tal feito, não ousava sacrificar a própria vida.

Não conto gozar a minha vida; nem em gozá-la penso. Só quero torná-la grande, ainda que para isso tenha de ser o meu corpo e a (minha alma) a lenha desse fogo. Só quero torná-la de toda a humanidade; ainda que para isso tenha de a perder como minha. Cada vez mais assim penso. Cada vez mais ponho na essência anímica do meu sangue o propósito impessoal de engrandecer a pátria e contribuir para a evolução da humanidade. (PESSOA apud MOISÉS, 1998, p. 35).

Pessoa foi influenciado por algumas correntes artísticas tais como o Simbolismo e o Decadentismo, sendo mais próximo ao Saudosismo de Teixeira de Pascoaes, com o culto religioso da Saudade para o Paulismo. O Simbolismo influenciou o poeta no que diz respeito à subjetividade presente em sua obra, o interesse pela visão particular e individual do sujeito, além da musicalidade utilizada na poesia, como o uso de aliterações e assonâncias. Já a influência do Decadentismo é marcada pela presença do tédio, do cansaço e da urgência de novas sensações em sua obra; a falta de sentido para a vida e o desejo de fuga à monotonia. Os temas mencionados são recorrentes nos poemas do heterônimo Álvaro de Campos, sendo eles publicados na revista literária Orpheu, dirigida por Luís de Montalvor e contando com a participação de nomes como o do próprio Fernando Pessoa e de Mário de Sá-Carneiro, tornando-se evidente a influência recebida pelo poeta através do movimento Simbolista em Portugal. 66


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Além dessas correntes, criou tendências estéticas. O Interseccionismo, o Paulismo e o Sensacionismo, modelos requintados da doutrina saudosista, aliadas ao Cubismo e ao Futurismo. O poeta propôs intelectualizar o que, no Saudosismo, era algo emotivo. Apesar da influência de diversos “ismos”, o Sensacionismo predominará, não apenas em seu fazer poético, mas também nos seus escritos teóricos, que serão marcados pela questão da sensação. O Sensacionismo surgiu como uma fase de busca de caminhos num cenário repleto de tendências modernas que se hostilizavam. A sensação continuará como um suporte em sua visão de mundo, sendo, até o fim, um poeta sensacionista, principalmente em Alberto Caeiro e em Álvaro de Campos. A questão heteronímica é, possivelmente, o objeto mais intrigante na obra de Fernando Pessoa. A multiplicação de personalidades não é exclusiva do poeta, mas, do modo como ocorre com Pessoa, é rara; provavelmente, única. De acordo com Jacinto do Prado Coelho (apud MOISÉS, 1998, p. 78), “Cada heterônimo é uma entidade autônoma, com caráter próprio, vida própria e uma visão pessoal do mundo, não obstante se completarem entre si e mais o seu criador, numa unidade na diversidade […].”. Pessoa possui a capacidade de alterar o ângulo de análise e assumir diferentes concepções dialéticas, que nascem os heterônimos. O nascimento heteronímico implica a questão do conhecimento; para investigar a gênese, é necessário recorrer a tal fator. É a inquietação pelo conhecer que se encontra em sua raiz, é a propriedade da sabedoria o objetivo que governa a sua existência. Cada heterônimo, alter ego que é, propõe-se a um modo preciso de adentrar no labirinto do conhecimento. Assim, o poeta dedica-se a refletir sobre si e o mundo como sendo inúmeros seres, observando em diversos ângulos, buscando a percepção a respeito da realidade. A multiplicação de Pessoa em outros poetas possibilitou-lhe compreender a realidade e almejar uma utópica totalidade. 67


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Multipliquei-me, para me sentir, Para me sentir, precisei sentir tudo, Transbordei, não fiz senão extravasar-me, Despi-me, entreguei-me, E há em cada canto da minha alma um altar a um deus [diferente. (PESSOA, apud MOISÉS, 1998, p. 86).

É possível perceber que ele necessitava ser todos sem deixar de ser o que era, mas ao mesmo tempo ser todos como se deixasse de ser o que era. Ser Alberto Caeiro, Álvaro de Campos, Ricardo Reis e Bernardo Soares e diversos outros, sem deixar de ser Fernando Pessoa, o que se pode entrever nos primeiros versos de “Autopsicografia”. O poeta é fingidor Finge tão completamente Que chega a fingir que é dor A dor que deveras sente. (PESSOA, 2013, p. 5).

O que Fernando Pessoa é representa a sua habilidade de fingir-se que não é ele mesmo, que é o(s) outro(s), porém em momento algum deixando de aparecer, o “eu” sempre lateja nos versos, sua identidade, está na possibilidade de fingir-se outro, com a naturalidade, com que se afirma a si próprio ou se nega. O “eu” finge ser “outro” para conhecer melhor a si e ao mundo, mas ao realizar tal ação, não apenas nega o “eu”, como ignora o conhecimento, pois o “pensar destrói” (PESSOA, 2013, p. 56). O poeta criou os heterônimos para expor as suas contradições livremente. Ao inventar outros, extraindo do próprio “eu”, deixava de ser contraditório, pois não é contraditório cada heterônimo possuir um modo de pensar, como se fossem personalidades vivas e independentes. 68


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Pessoa escreveu uma carta a Adolfo Casais Monteiro em 13 de janeiro de 1935, em que fala da existência e características dos seus principais heterônimos. [...] punha em Caeiro todo o seu “poder de despersonalização dramática” – faculdade não raro lembrada como cerne do processo heterônimo –, e em Ricardo Reis toda a sua “disciplina mental, vestida da música que lhe é própria”, e em Álvaro de Campos “toda a emoção que não dou nem a mim nem à vida” [...] (PESSOA apud MOISÉS, 1998, p. 78).

O turbilhão heteronímico dava evasão à genialidade presente nessas contradições e paradoxos. Não sendo esquizofrênico, multiplicou-se, a contradição permanece intrínseca a produção heteronímica, porém ao exteriorizá-la, pode coexistir com ela. Como é possível perceber em outro trecho da carta de Pessoa a Adolfo Casais Monteiro:

A origem dos meus heterônimos é o fundo traço de histeria que existe em mim. Não sei se sou simplesmente histérico, se sou, mais propriamente, um histeroneurastênico. [...] Seja como for, a origem mental dos meus heterônimos está na minha tendência orgânica e constante para a despersonalização e para a simulação. (PESSOA apud MOISÉS, 1998, p. 78).

Se a esquizofrenia for tomada como uma divisão racional, não psíquica, é óbvia a impossibilidade do domínio da loucura sobre ele, pois a multiplicação do(s) seu(s) “eu(s)” ocorre entre seres, como se fosse entre ideias e visões de mundo, não entre pensamentos desencontrados e a realidade. O paradoxo e a contradição são como métodos de compreensão, para entender que, no fundo, existe uma certa “lógica” presidindo ao surgimento dos heterônimos.

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Alberto Caeiro Alberto Caeiro faz parte dessa criação de Pessoa, sendo considerado mestre do próprio criador e dos demais heterônimos. De todos os heterônimos, grandes e pequenos, ele é o mais radicalmente diferente do “próprio” Pessoa autor do Cancioneiro, e do homem Pessoa, o da biografia. Podemo-nos sentir repelidos por aquela “poesia”, que recusa todos os atributos habituais do gênero: o canto, a emoção, a inspiração, a elevação do espírito, o metro, a rima, os ornamentos, as imagens. Nela não encontramos metáforas, nem metonímias, nem sinédoques, mas muitas tautologias [...] (BRÉCHON, 1998, p. 209).

Na biografia construída por Pessoa, ele não possuía educação e ocupação quase alguma e, embora nascido em Lisboa, viveu a maior parte da vida no campo. Se tivesse de declarar sua ocupação, diria ser poeta e nada mais; sendo, assim, um poeta pretensamente natural. Caeiro idealiza esse imaginário natural através dos seus versos, que possuem espontaneidade e naturalidade, além do pensamento filosófico. Sua obra-mestra, “O Guardador de Rebanhos”, é marcada pelo panteísmo. A poética de Caeiro é permeada de elementos naturais; em alguns momentos, chega a disseminar o divino na natureza, como se dá na série de poemas há pouco citada; ou seja, a presença do divino encontra-se nos elementos da natureza. Além disso, Caeiro ensina aos heterônimos a arte poética, pois, pelo fato de desejar ser um poeta “puro”, não o ser, afinal, sua poesia perpassa a prosa. Mestre de poesia, porque seus escritos corriam o risco de não ser considerados poesia, de simbolizar a não poesia (não a poesia que era feita até o momento), pois era diferente, não atendia a algumas características comuns à época. Pessoa mostra-se um mestre dos paradoxos, pois Alberto Caeiro fingia-se mestre, fingindo-se poeta e fingindo-se natural. 70


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É mestre, pois por fingir-se natural; sua poesia não é natural; deseja-se natural, finge-se natural, natural como as coisas da Natureza o são, mas sabendo (ou pressentindo) que a poesia é por definição antinatural. De qualquer modo, pretende-se natural, à imagem e semelhança da Natureza, mostra-se natural para servir aos heterônimos, não como modelo de poesia, senão como estímulo para o percurso no rumo da Natureza, matriz da poesia. Percorresse ele o caminho para a Natureza, poderia ser poeta, e poeta que exemplificasse aos heterônimos o que é ser poeta (natural), mas deixaria de ser mestre. O “natural”, nele, deve ser fingido, porquanto, se autêntico, faria dele tudo, menos um mestre de poetas: ele é mestre por saber que a naturalidade é o alvo dos poetas, mas ao mesmo tempo por saber que não lhe cabe ser natural – apenas fingir que o é, visto ser mestre de poesia. (MOISÉS, 1998, p. 161).

Caeiro repudiava os poetas, em favor da Natureza, rejeitava-se como poeta, para apresentar-se como teórico e mestre que ensina o caminho para a Natureza, onde, em seu ponto de vista, habita a poesia, “E assim escrevo, querendo sentir a Natureza, nem sequer como um homem, mas como quem sente a Natureza e mais nada” (PESSOA, 2006, p. 85). Ensinando, desse modo, o mecanismo do fazer poético, como o mestre que é, pois ensina a fazer mostrando como é feito, não esperando ser imitado no modo que faz, os seus discípulos aplicarão ao seu objeto a lição ensinada pelo seu mestre. Caeiro não espera que os demais heterônimos tenham a sua pretensa naturalidade, mas que procurem construir a sua poesia a partir da visão de mundo por ele suscitada.

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O mestre, Alberto Caeiro não propõe a leitura dos poetas, mas que a Natureza seja vista, incluindo-se entre os que devem ser evitados. Não espera ser lido como os poetas o são, mas como teórico, prefere ser visto, como se vê a Natureza, ou como ele mesmo nega-se como poeta, “Eu nem sequer sou poeta: vejo” (PESSOA, 2006, p. 83). Ele desejava ser natural, justamente por não o ser, buscando na natureza, a “cura”, para o seu intelectualismo descomedido.

O PANTEÍSMO NA FILOSOFIA, NA TEOLOGIA E NA LITERATURA

O termo panteísmo tem origem do grego pan, que quer dizer tudo, e theos. Na doutrina panteísta, Deus não é visto como um ser superior, ele é o próprio universo e a natureza. Sendo assim, “Universo + Deus: configuram duas facetas da mesma concepção; como os lados de uma mesma moeda, tornando as metonímias ‘Deus é matéria/energia’; ‘Deus é Universo’ configurações retóricas imediatamente evidentes” (BARBIER, 2009, p. 119). A percepção de Deus não é pensada de modo inerente à concepção do universo. O divino está totalmente vinculado aos elementos da natureza, pois esta “é a divindade do panteísta, fonte suprema de inspiração, ela é o seu templo” (BARBIER, 2009, p. 119). Divergindo de outras matrizes religiosas, os panteístas não dispõem de locais sagrados para seus rituais, acreditam apenas em um princípio, que é a lei natural, esta, vigora também no meio científico:

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Não há, no âmbito dessa compreensão metafísica essencialista espaço para sectarismo, monopólio ou massificação; do reconhecimento imediato da essência decorrem reflexões, deliberações: posicionamentos naturalistas [somos Natureza]; eco-humanistas [interdependência]; panteístas [o conceito Deus refere-se, radicalmente, a Universo]: pareceres acrescidos de singularidades, evidência de que somos únicos (BARBIER, 2009, p. 4-5).

De acordo com Pierre Teilhard de Chardin (2010), há os panteísmos modernos, em que diversas vertentes possuem destaque. Algumas dessas definições são importantes para entender a proposta poética realizada por Alberto Caeiro como o:

Panteísmo Imanentista: visão panteísta quanto à identidade entre Deus e as coisas materiais, que dilui o divino entre as coisas, equiparando-se, assim, ao ateísmo; Pseudopanteísmo: em que a divindade torna-se tudo, ou seja, tudo é Deus. (CHARDIN, 2010).

Na doutrina panteísta de Alberto Caeiro, ele se mostra adepto da ideia de Deus ou de divino que está conectada aos elementos da Natureza. Dessa forma, os seguidores do panteísmo buscam na natureza a essência da sua individualidade e existência, “cada indivíduo é uma expressão genuína e ímpar da Natureza, narrada à luz de uma cultura: uma compreensão original, única, e, por isso, as duas colunas do templo essencialista, sede deste panteísmo filosófico, configuram o estado natural, Natureza e Ser” (BARBIER, 2009, p. 119). Os seguidores desse dogma anseiam, por meio das relações entre Natureza e Ser, atingir a divindade, que seria a “aspiração filosófica: unidade e transcendência” (BARBIER, 2009, p. 5). O panteísmo é uma das matrizes religiosas em vigência no Ocidente que mais se assemelha a compreensão filosófica oriental. Manifesta conexões ideológicas com princípios variados 73


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como pagãos, taoístas, doutrinas provenientes do hinduísmo, ioga, budismo, estoicismo e epicurismo.

ANÁLISE DOS POEMAS

A principal obra de Alberto Caeiro, “O Guardador de Rebanhos”, apresenta muitas marcas do panteísmo. A série de poemas exalta a natureza e as sensações proporcionadas por ela como algo divino, mas que, a priori, não foram criadas por Deus, são Deus. A poética de Caeiro é permeada de elementos naturais; em alguns momentos, chega a disseminar o divino na natureza, como se dá no poema “XVII” de “O Guardador de Rebanhos”; ou seja, a presença do divino encontra-se nos elementos da natureza. No meu prato que mistura de Natureza! As minhas irmãs as plantas, As companheiras das fontes, as santas A quem ninguém reza... […] (PESSOA, 2006, p. 55).

O trecho do poema evidencia outro exemplo desse entendimento que associa o sagrado e o humano: o eu lírico se declara irmão das plantas, sendo, a planta, um componente do meio divino. Esse vínculo entre homem e divindade chega a um ponto de ser tão próximo que ele utiliza um parentesco familiar para demonstrar esse grau de conexão. Como no trecho do mesmo poema “Sem pensar que exigem à Terra-Mãe/A sua frescura e os seus filhos primeiros,/As primeiras verdes palavras que ela tem, [...]” (PESSOA, 2006, p. 55); mais uma vez, o eu lírico emprega a relação familiar, dessa vez de mãe e filho, para expressar a proximidade entre o sagrado e o humano. Ele constrói a imagem da terra como a mãe que gera e concebe os seus filhos, os frutos, que as pessoas utilizam para se alimentar. 74


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Apesar de, em tese, negar a crença num Ser uno e supremo e renegar o Cristianismo e seus dogmas, Caeiro mostra algumas tentativas de pertencimento ao mundo ao seu redor, e que acredita e vive essa crença. No trecho, também do poema “XVII”, é possível perceber uma ocorrência desse fato. [...] As primeiras coisas vivas e irisantes Que Noé viu Quando as águas desceram e o cimo dos montes Verde e alagado surgiu E no ar por onde a pomba apareceu O arco-íris se esbateu... (PESSOA, 2006, p. 55).

Caeiro traz para o poema, a figura de Noé, um personagem bíblico que Deus dá a missão de construir uma arca, para abrigar sua família e os animais durante o dilúvio.

Então o Senhor disse a Noé: “Entre na arca, você e toda a sua família, porque você é o único justo que encontrei nesta geração. Leve com você sete casais de cada espécie de animal puro, macho e fêmea, e leve também sete casais de aves de cada espécie, macho e fêmea, a fim de preservá-las em toda a terra. Daqui a sete dias farei chover sobre a terra quarenta dias e quarenta noites, e farei desaparecer da face da terra todos os seres vivos que fiz”. (Gn 7, 1–4).

Também é utilizada a imagem da pomba, o animal é responsável por avisar a Noé, que o nível da água está diminuindo, trazendo para ele uma folha de oliveira, “Noé esperou mais sete dias e soltou novamente a pomba. Ao entardecer, quando a pomba voltou, trouxe em seu bico uma folha nova de oliveira. Noé então ficou sabendo que as águas tinham diminuído sobre a terra” (Gn 8, 10 – 11).

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Além dessas figuras, o heterônimo também traz a do arco-íris no poema, o fenômeno da natureza simboliza a aliança entre Deus e os seres que vivem na terra. E Deus prosseguiu: “Este é o sinal da aliança que estou fazendo entre mim e vocês e com todos os seres vivos que estão com vocês, para todas as gerações futuras: o meu arco que coloquei nas nuvens. Será o sinal da minha aliança com a terra. Quando eu trouxer nuvens sobre a terra e nelas aparecer o arco-íris, então me lembrarei da minha aliança com vocês e com os seres vivos de todas as espécies [...] (Gn 9, 12 – 15).

O eu lírico mesmo negando a sua crença no Cristianismo, apresenta elementos bíblicos em sua obra, que contradizem tal concepção. No trecho do poema “XXXVIII”, o poeta, mais uma vez, retrata um elemento da natureza como algo divino. […] Ao homem verdadeiro e primitivo Que via o Sol nascer e ainda o não adorava. Porque isso é natural — mais natural Que adorar o ouro e Deus E a arte e a moral... (PESSOA, 2006, p. 77).

A figura do sol é retratada como um elemento a ser adorado, o eu lírico ainda aponta ser mais natural o adorar, que a Deus, o ouro, a arte e a moral. Isto é, o sol seria o único item que as pessoas deveriam render adoração. Já a bíblia, concebe a adoração como algo que é mercecido apenas por Deus, “E Jesus, respondendo, disse-lhe: Vai-te para trás de mim, Satanás; porque está escrito: Adorarás o Senhor teu Deus, e só a ele servirás” (Lc 4, 8). Nesse trecho bíblico, Jesus está sendo tentado por Satanás e ele pede que o adore. Jesus se nega a adorá-lo e afirma que, só Deus é digno de adoração.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Após as definições e análises realizadas, é possível verificar que, Caeiro mostra sua pretensão de independência de um ser superior, diluindo essa divindade nas coisas palpáveis do mundo, aproximando-as dele e fazendo-o mais “pertencente” ao mundo. Esse panteísmo imanentista, observado nos trechos de seus poemas confirma a visão entre a relação de Deus e as coisas empíricas “que dilui completamente Deus nas coisas e assim se equipara ao crasso ateísmo materialista” (CHARDIN, 2010, p. 311). Em seu posicionamento de não filosofar “Ver como pela primeira vez”, sem pensar, o divino se torna simples, uma vez que é o tudo. É importante atentar também para a exaltação da natureza, Caeiro exalta-a como o próprio divino. O heterônimo é, em certa medida, adepto da doutrina panteísta e busca na natureza a sua individualidade e existência, por isso indica não se preocupar com o seu destino, pois possui o egoísmo natural das flores e segue o percurso dos rios; assim como a natureza existe, ele tem apenas a missão de viver. Todas as divindades estão ligadas aos elementos da Natureza, pois esta “é a divindade do panteísta, fonte suprema de inspiração, ela é o seu templo”, (BARBIER, 2009, p. 119). Seus poemas exaltam a natureza e as sensações proporcionadas por ela como coisas divinas, mas que não foram criadas por Deus — são Deus. Na religião cristã, essa presença divina ocorre de maneira diferente, começando pelo fato de, nela, acreditar-se em apenas um Deus. A presença divina na Bíblia se manifesta de diversas formas, algumas delas são: através de anjos, da bênção de Deus e do próprio Senhor falando por meio dos sonhos com os seus servos. Percebe-se que o heterônimo, mesmo posicionando-se contra o Cristianismo, apresenta elementos da religião em sua obra. Também 77


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é visível, nos versículos bíblicos e nos poemas, a representação divina no Cristianismo e Panteísmo, respectivamente. Sem desconsiderar a tradição cristã, assim, Caeiro oferece-lhe um novo enfoque, com amplo potencial dialógico entre duas formas de se compreender o sagrado.

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REFERÊNCIAS BARBIER, Régis Alain. Bíblia panteísta: a religiosidade do presente. Disponível em: http://http://pt.scribd.com/doc/38404093/PANTEISMO-A-Religiosidade-DoPresente. Acesso em 30 de junho, 2018. BÍBLIA Sagrada. Nova tradução na linguagem de hoje. São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2000. BRÉCHON, Robert. Estranho estrangeiro: uma biografia de Fernando Pessoa. Rio de Janeiro: Record, 1998. CHARDIN, Pierre Teilhard de. O fenômeno humano. São Paulo: Cultrix, 2010. GAMA, Rinaldo. O Guardador de Signos: Caeiro em pessoa. São Paulo: Perspectiva, 1995. MOISÉS, Massaud. Fernando Pessoa: o espelho e a esfinge. São Paulo: Cultrix, 1998. PERRONE-MOISES, Leyla. Fernando Pessoa: aquém do eu, além do outro. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2001. PESSOA, Fernando. Antologia poética. Portugal: Luso livros, 2013. PESSOA, Fernando. Poemas completos de Alberto Caeiro. São Paulo: Hedra, 2006.

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Resumo Nesta pesquisa tem a proposta de expor a arte expressionista decorrente pela artista Anita Malfatti , além do mais sendo inserido esse tipo de arte na Semana de Arte Moderna , então atribuído de criticas e elogios. Quando nós poderíamos imaginar que a essa artista chamada Anita Malfatti, um dia se tornaria uma das principais pintoras brasileiras. Alguém que tivesse tanta coragem de apresentar algo novo e revolucionário que é a Arte Expressionista Dentro da terra Brasilis, num tempo onde tudo era representado como uma linha reta, sem curva e aquilo que podemos definir como: “normal” mas o que podemos definir como normal, você saberia me dizer? Seria ser acadêmico europeu do “rococó” que o crítico Monteiro Lobato critica, ou romper os laços do tempo criando novas linguagens? Suas pinturas, geraram espanto, risos e até comentários e críticas maldosas, geral do abalo ,mas nada disso levou a artista a abandonar aquilo que foi a sua paixão “ a pintura e o desenho.Através das telas impactantes de Anita tem a ver com seu aspecto expressionista, novo para os padrões da arte brasileira de então. Tendo estudado em Berlim e nos Estados Unidos - e não na França e na Itália, caminho preferencial de nossas elites ilustradas. Dentro de uma pesquisa bibliográfica, são recolhido dados dos autores: A concepção é baseado nas teorias históricas de :NICOLA, José de (1998), ALMEIDA, de Paulo Mendes (1976), AMARAL, Aracy (1970), e entre outras fontes. Palavras-chaves: semana de arte mordena;anita malfatt.


ANITA MALFATTI - EXPOSITORA DE ARTE EXPRESSIONISTA NA SEMANA DE ARTE MODERNA Bruna Maria Paz de Lira1

INTRODUÇÃO Iniciando o artigo através das telas impactantes de Anita tem a ver com seu aspecto expressionista, novo para os padrões da arte brasileira de então. Tendo estudado em Berlim e nos Estados Unidos - e não na França e na Itália, caminho preferencial de nossas elites ilustradas -, a pintora exibe um percurso distinto, tendo os seus estudos artísticos em Berlim, entre 1910 e 1914, quando é aluna de Fritz Buerger, e da Academia Lewin Funcke, onde estuda com os pintores Lovis Corinth (1858 - 1925) e Ernst Bischoff-Culm (1870 - 1917) dentro dos seus ateliês. Seu breve retorno ao país, em 1914, faz-se notar por uma primeira exposição individual realizada na Mappin Stores, na rua 15 de novembro, quando apresenta estudos de pintura (por exemplo, desenhos como Mãe e Filho e algumas águas-fortes). “Esta minha exposição de 1914”, segundo ela numa conferência de 1951, “era composta de estudos expressionistas feitos no ateliê de Lovis Corinth; realmente era a semente do que seria o trabalho apresentado então” – Anita Malfatti reafirmando a origem das suas táticas criativas e artísticas. Nos Estados Unidos, para onde segue no mesmo ano, trabalha com Homer Boss (1882 - 1956) na Independent School of Art, em Nova York, quando intensifica seu interesse 1. Mestranda em Ciências da Educação - ATENAS COLLEGE UNIVERSITY; Especialista em Linguística Aplicada ao Ensino da Língua Inglesa - FAFIRE; Especialista em Gestão Educacional – FUNESO; Licenciatura em Letras/ Inglês – FUNESO. Email: maryjack13@hotmail.com 81


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pelo expressionismo. A bibliografia faz menção ainda a uma mostra que ela teria realizado em junho de 1917, na Casa Garroux, em São Paulo, poucos meses antes da célebre exposição de dezembro. As grandezas das suas telas expressionistas apresentadas por Anita Malfatti na Exposição de Pintura Moderna representam um conjunto inédito para o público da época. Nas obras expostas - como Homem Amarelo, por exemplo - são incorporados procedimentos básicos da arte moderna: a relação dinâmica e tensa entre a figura e fundo; a pincelada livre que valoriza os detalhes da superfície; os tons fortes e usados de forma não convencional; as sugestões de luz que fogem ao claro-escuro tradicional; e uma liberdade de composição. A novidade da pintora é apreendida pelos jovens artistas da época: “Não posso falar pelos meus companheiros de então”, sobrepões o apontamento de Mário de Andrade (1893 - 1945), “mas eu, pessoalmente, devo a revelação do novo e a convicção da revolta a ela e à força de seus quadros”. Em sentido semelhante, segundo o modernista Di Cavalcanti (1897 - 1976): “A exposição de Anita foi a revelação de algo mais novo do que o impressionismo” Di Calvacanti ressalta mais uma vez sobre Anita Malfatti. Se Lasar Segall (1891 - 1957) já havia exposto na cidade, em 1913, sua exposição parece ter passado despercebida naquele momento. Nesse sentido, o caráter de precursora do modernismo de 1922 é atribuído a Anita Mafaltti pelos críticos e participantes da Semana de Arte Moderna. Em A Gazeta de 13 de fevereiro de 1922, Mário de Andrade é, mais uma vez, enfático: “quem manifestou primeiro o desejo de construir sobre novas bases a pintura? São Paulo com Anita Malfatti”. A imediata incorporação da pintora recém-chegada pelos jovens modernistas pode ser aferida também pelo destaque a ela concedido na programação da Semana de Arte Moderna: Anita é a maior representação individual na exposição com 12 telas a óleo, oito peças entre gravuras e desenhos. 82


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Se os comentadores enfatizam o sucesso da Exposição de Pintura Moderna – Anita Malfatti, apontam também a polêmica que cerca o evento, em função da crítica feita por Monteiro Lobato (1882 - 1948) em O Estado de S. Paulo, de 20 de dezembro de 1917, “A propósito da exposição de Anita Malfatti” (republicado em 1919 na coletânea Idéias de Jeca Tatu, com o título Paranóia ou mistificação?). Os argumentos críticos de Lobato giram em torno dos supostos equívocos da arte moderna – seu elitismo, hermetismo, adesão aos modismos, sua “falta de sinceridade” –, a despeito do “talento vigoroso” que ele reconhece na artista. As palavras de desaprovação do crítico arregimentam jovens poetas e escritores – como Mário de Andrade (18931945), Oswald de Andrade (1890-1954) e Menotti del Picchia (1892-1988) - em torno de Anita Malfatti. As réplicas se sucedem nos jornais da época (além de Menotti e Mario de Andrade, Mario da Silva Brito e Paulo Mendes de Almeida), defendendo a pintora e desautorizando o crítico, geralmente tratado nos textos como “pintor”. Além de desqualificado como crítico de arte, Lobato é ainda responsabilizado, pelos modernistas e por seus herdeiros, pelo recuo de Anita em relação às vanguardas. Se entre 1915 e 1917, Anita realiza as obras mais importantes de sua carreira – como A Estudante Russa, O Japonês, O Farol de Monhegan, A Mulher de Cabelos Verdes -, no seu regresso ao país já é possível entrever certo distanciamento das vanguardas e uma adesão ao Retorno à Ordem, do qual participam vários artistas modernistas. Para o crítico Tadeu Chiarelli o refluxo de Anita em relação às vanguardas - perceptível em trabalhos expostos já em 1917 - coincide com o contato com o ambiente nacionalista do país em geral e de São Paulo em particular. A sua conversão à temática nacional é contemporânea, indica o crítico, ao distanciamento em relação à radicalidade vanguardista, flagrante na célebre mostra de 1917 e que se acentua na produção posterior da artista. 83


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Para se tiver uma ideia sobre essa artista dentro do contexto da Semana de Arte Moderna, vamos ter uma compreensão passo-passo da sua evolução conceitual.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA SOBRE A PARTICIPAÇÃO DA AUTORA NA SEMANA DE ARTE MODERNA

A concepção é baseado nas teorias históricas de: José de Nicola, Paulo Mendes de Almeida, Aracy Amaral, e entre outras fontes.

A origem da autora e da Semana de Arte Moderna

O que precisa ser estabelecido e faz ligação de se ter a compreensão da origem dessa grande artista que será abordado neste artigo. É no contexto que a artista expressionista, tem sua vida histórica vinda ao nascimento e filha da Bety Malfatti (norte americana de origem alemã) que não imaginava que sua pequenina menina Anita, fosse superar suas deficiências (atrofia congênita no braço e mão direita) com vontade e determinação através de aulas de pinturas e superação ao falecimento do pai que as mantinha financeiramente, voltando a sua dificuldade passando a utilizar a mão esquerda para escrever, desenhar e pintar, já que aos 3 anos foi levada a terra do pai ,Samuel Malfatti (italiano, naturalizado brasileiro – engenheiro – trabalhava com estradas de ferro e na construção civil), para tratamento médico, mas sem sucesso. A vida de Anita Malfatti, foi esculpida de um currículo vasto de superação e o glamour artístico, onde tudo começou praticamente em 1909, com suas primeiras pinturas, indo estudar em escolas de arte na Alemanha e EUA. Em sua passagem na Alemanha, entrou em contato com o expressionismo que sofreu bastante influência. Nos EUA teve contato com o movimento. 84


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Segundo com os teóricos Aracy do Amaral e Paulo Mendes de Almeida (1970 a 1976) apontam, Anita percorreu o mundo, os museus. Conheceu muita gente importante, adquiriu experiência e sabedoria, deu aulas, colecionou títulos que a levaram a ser conhecida como: “REVOLUCIONÁRIA” alguém a frente do seu tempo, capaz de mexer com integrantes da classe social mais conservadora, capaz de chocar a sua arte dos olhares conservadores e cativar aos olhares ansiosos pelo algo moderno e novo , pois suas obras retratavam principalmente os personagens marginalizados dos centros urbanos. Além de que suas pinturas fugiam dos padrões até então aceitos. Limitações inerentes, diferentes potenciais para construção de sentido e valores sociais específicos a determinados contextos sociais. Além compreender a cultura A Semana de Arte Moderna, também chamada de Semana de 22, ocorreu em São Paulo no ano de 1922, nos dias 13 a 17 de fevereiro, no Teatro Municipal da cidade. Introduzindo a Semana de Arte Moderna , mas apesar ser chamada de “semana”, o evento ocorreu em três dias. Cada dia da semana trabalhou um aspecto cultural: pintura e escultura, poesia, literatura e música. O evento marcou o início do modernismo no Brasil e tornou-se referência cultural do século XX. O presidente do estado de São Paulo à época, Washington Luís, deu o apoiou ao movimento, especialmente por meio de René Thiollier, que solicitou patrocínio para trazer os artistas do Rio de Janeiro Plínio Salgado e Menotti Del Pichia, membros de seu partido, o Partido Republicano Paulista. A Semana de Arte Moderna representou uma verdadeira renovação de linguagem da arte em todos os sentidos, na busca de experimentação, na liberdade criadora da ruptura com o passado e até corporal, pois a arte passou então da vanguarda, para o modernismo. O evento marcou época ao apresentar novas ideias e conceitos artísticos, como a poesia através da declamação, que antes era só escrita; a música por meio de concertos, que antes só havia cantores sem acompanhamento de orquestras sinfônicas; e a arte plástica 85


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exibida em telas, esculturas e maquetes de arquitetura, com desenhos arrojados e modernos. O adjetivo “novo” passou a ser marcado em todas estas manifestações que propunha algo no mínimo curioso e de interesse. Então teve a participação, não somente da artista Anita Malfatti , mas de outros nomes consagrados do modernismo brasileiro, como Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Víctor Brecheret, Plínio Salgado, Menotti Del Pichia, Guilherme de Almeida, Sérgio Milliet, Heitor Villa-Lobos,Tácito de Almeida, Di Cavalcanti entre outros, e como um dos organizadores o intelectual Rubens Borba de Moraes que, todavia, pois estava doente não pode participar literalmente na Semana de Arte Moderna. Na ocasião da Semana de Arte Moderna, amiga de Anita Malfatti, Tarsila do Amaral, considerada um dos grandes pilares do modernismo brasileiro, se achava em Paris e, por esse motivo, não participou do evento.

Fotografia da Anita Malfatti.

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Arte Expressionista Sobre a arte Expressionista, conceitua-se ao explorar o conhecimento o seu prévio surgimento da oposição ao Impressionismo, o Expressionismo surge no final do século XIX com características que ressaltam a subjetividade. Neste movimento, a intenção do artista é de recriar o mundo e não apenas a de absorvê-lo da mesma forma que é visto. Aqui ele se opõe à objetividade da imagem, destacando, em contrapartida, o subjetivismo da expressão. A sua história e características decorre o seu marco que ocorreu na Alemanha, onde atingiu vários pintores num momento em que o país atravessava um período de guerra. As obras de arte expressionistas mostram o estado psicológico e as denúncias sociais de uma sociedade que se considerava doentes e na carência de um mundo melhor. Pode-se dizer que o Expressionismo foi mais que uma forma de expressão, ele foi uma atitude em prol dos valores humanos num momento em que politicamente isto era o que menos interessava. O primordial e principal precursor deste movimento foi o pintor holandês Vincent Van Gogh, que, com seu estilo único, já manifestava, através de sua arte, os primeiros sinais do expressionismo. Ele serviu como fonte de inspiração para os pintores: Érico Heckel, Francisco Marc, Paulo Klee, George Grosz, Max Beckmann, etc. Há ainda muitos outros pintores, entre eles, Pablo Picasso, que também foram influenciados por esta manifestação artística. Outro importante pintor expressionista foi o norueguês Edvard Munch, autor da conhecida obra O Grito. Além de sua forte manifestação na pintura, o expressionismo foi marcante também em outras manifestações artísticas, tais como: literatura, cinema, teatro, etc. Na literatura, há muitas obras que refletem a crise de consciência que tomou conta da sociedade antes e depois da Primeira Guerra Mundial. 87


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Na década de 40, surge o expressionismo abstrato, este movimento foi criado em Nova York por pintores como Pollock, de Kooning e Rothko. Aqui os estilos eram bem variados e buscavam a liberação dos padrões estéticos que até então dominavam a arte norte-americana. O surgimento do Expressionismo no Brasil em nosso país o movimento também foi importante. Podemos destacar, nas artes plásticas, os artistas expressionistas mais importantes: Candido Portinari, que retratou em suas telas a migração do povo nordestino para as grandes cidades e a vida dos agricultores, operários e desfavorecidos. Tendo representantes do expressionismo brasileiro como: Anita Malfatti sendo considerada a artista que introduziu as vanguardas européias em território brasileiro. Retrataram em suas obras retratos nus, cenas populares cotidianas e paisagens. Usou cores fortes e violentas em suas obras. O artista Lasar Segall , também sendo considerado o primeiro artista a introduzir o expressionismo alemão em território sul-americano. Uma de suas obras mais conhecidas é “Emigrante Navio” de 1939. Osvaldo Goeldi (autor de diversas gravuras). Salientando o centenário, escritor Nelson Rodrigues, nas suas peças teatrais, apresentava em nelas estruturas de significativas características do expressionismo.

Quadro da artista expressionista Anita Gonçalves: O farol de Monhegan (1915).

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A grande exposição realizada na Semana de Arte Moderna. A grande exposição de Anita Malfatti aqui no Brasil ocorreu Em 1914 ,realizando-se sua primeira exposição individual, em São Paulo, mas foi em 1917, onde tudo eclodiu de fato, causando espanto, risos e críticas. Com a primeira exposição de arte moderna, no qual o escritor Mário de Andrade riu muito ao se deparar com os quadros: O Homem Amarelo, A Mulher de Cabelos Verdes, A Boba e entre outros. Mas, no entanto mais tarde, seus risos transformaram-se em admiração, amizade, e uma intensa troca de correspondências (dizem alguns relatos de teóricos, que viveram um amor platônico) Tanto que anos depois o escritor acabaria adquirindo a tela “ O Homem Amarelo” tornando seu grande defensor, numa das críticas recebidas pelo escritor de literatura brasileira por Monteiro Lobato, que publicou artigo dizendo: Paranóia ou mistificação? Argumentava que a nova pintura de Anita Malfatti, não representava o brasileiro e sua natureza com fidelidade. Chegando a ponto de insultar a pintora, taxando-a de “louca”. A crítica de Lobato repercutiu entre os modernistas e pouco depois, Oswald de Andrade e Menotti Dell Picchia saíram na defesa de Anita. E isso será falado mais adiante no segundo tópico deste artigo. Daquela exposição a que se seguiu surgiu a divisão entre conservadores e modernos, que iria desaguar na Semana da Arte Moderna – em 1922, onde Anita expos seus trabalhos sendo premiada e consagrada. Pois até então só a literatura reinava absoluta nas artes das terras brasileiras, tendo que ceder lugar para as atividadesplásticas.

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Após a critica da sua exposição na Semana de Arte Moderna Após a crítica de Lobato, publicada em O Estado de S.Paulo, edição da tarde, em 20 de dezembro de 1917, com o título de A propósito da exposição Malfatti, as telas vendidas foram devolvidas, algumas quase foram destruídas a bengaladas; o artigo gerou uma verdadeira catilinária em artigos de jornais, contra Anita. Mas Anita teve sorte de ter amigos da área artística para defendê-la. Então a primeira voz que se levantou em defesa da pintora, ainda que timidamente, foi a de Oswald de Andrade. Num artigo de jornal, ele elogiou o talento de Anita e parabenizou pelo simples fato dela não ter feito cópias. Pouco depois, jovens artistas e escritores, começando a entender aquele jeito de pintar e possuídos pelo desejo de mudança que as obras de Anita suscitaram, uniram-se a ela, como: Mário e Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Guilherme de Almeida. Anita inicia estudos com o pintor acadêmico Pedro Alexandrino no ano de 1919, e também com o alemão George Fischer Elpons um pouco mais avançado do que o velho mestre das naturezas mortas. Foi nessa ocasião que conheceu Tarsila do Amaral que tinha aulas com os mesmos professores. Depois do pai, o tio Jorge Krug, que a havia ajudado tanto, também faleceu e Anita precisou buscar caminhos para vender suas obras. Pedro Alexandrino já era um pintor de renome e vendia com muita facilidade seus trabalhos. Anita busca essa aproximação sendo sua aluna, embora muitas interpretações apontem para a versão de que ela o procurou para reestruturar sua pintura. Seus biógrafos e teóricos sobre o Modernismo acreditam que o artigo de Monteiro Lobato foi agressivo e até maldoso e que deixou marcas profundas na vida e na obra da artista. Mas, essa versão é contestada por alguns poucos, pois ao ler na íntegra a crítica de Monteiro Lobato, verificamos que o título original nunca foi “Paranoia ou Mistificação” e sim, “A propósito da exposição Malfatti”, e em 90


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muitos trechos Anita é elogiada pelo crítico. Mas o certo é que Anita ficou arrasada com a crítica de Monteiro Lobato, tendo sequelas e depressão. Ficou magoada pelo resto da vida, mas não o suficiente para destruir sua força de mulher destemida e ousada. Apesar da mágoa, Anita ilustrou livros de Monteiro Lobato e na década de 40 participou de um programa na Rádio Cultura chamado “Desafiando os Catedráticos”, juntamente com Menotti Del Picchia e Monteiro Lobato. Os ouvintes telefonavam fazendo perguntas para que o trio respondesse. Após a enorme confusão causada por Monteiro Lobato, a vida de Anita Malfatti começou a ter certa normalidade. O tempo que se seguiu após a exposição, foi de assimilação do novo, da percepção daquilo que até então não fora nem sonhado. Voltando-se sobre a Semana de Arte Moderna , a análise das reações culturais daquela exposição abriu um novo leque de inspirações artísticas . De acordo com Mário de Andrade, afirma que “Parece absurdo, mas aqueles quadros foram a revelação. E ilhados na enchente que tomara conta da cidade, nós, três ou quatro, delirávamos de êxtase diante de obras que se chamavam O homem amarelo, A mulher de cabelos verdes.” “Assisti bem de perto essa luta sagrada e palavra que considero a vida artística de Anita Malfatti um desses dramas pesados que o isolamento dos indivíduos apaga para sempre feito segredo mortal. O povo passa, povo olha o quadro e tudo neste mostra vontade e calma bem definidas. O povo segue seu caminho depois de ter aplaudido a obra boa sem saber que poder de miserinhas cotidianas maiores que o Pão de Açúcar aquela artista bebeu diariamente com o café da manhã” - Afirma Mário de Andrade sobre a Pintora sobre o seus talento artístico. Após o período de recesso da sua vida artística, Anita na Semana de Arte Moderna, mais uma vez, teve uma movimentação da sua vida artística insípida de São Paulo. Anita participou dela expondo 22 trabalhos. 91


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“Recordo-me que no dia da inauguração, o velho conselheiro Antônio Prado, com grande espanto da comitiva, quis comprar meu quadro O homem amarelo, porém, Mário de Andrade acabava de adquiri-lo. A plantinha havia vingado” “Foi a noitada das surpresas. O povo estava muito inquieto, mas não houve vaias. O teatro completamente cheio. Os ânimos estavam fermentando; o ambiente eletrizante, pois que não sabiam como nos enfrentar. Era o prenúncio da tempestade que arrebentaria na segunda noitada” – Anita Malfatti sobre exposição , na Semana de Arte Moderna e falando sobre a reação do público. Anita estava feliz entre o círculo modernista, uma vez que ele vinha ao encontro de suas aspirações artísticas, entraria também para o comentado grupo dos cinco.

CONCLUSÃO

Um professor de Literatura brasileira, além de aborda os escritores poéticos expostos naquela Semana de Arte, tem que introduzir a artista expressionista que deu um ar da graça, e elaborou uma exposição dentro do contexto do modernismo, além de ter feito um choque na arte dentro da terra brasileira , para alguns foi contagiante e outros foi um conflito gritante após ter visto aquela arte , levantando questionamentos da sua veracidade como arte. Então, o papel da pintura de Anita parece estar em um eterno descompasso com sua cidade, portanto na Semana de arte Moderna. O São Paulo cosmopolita irá se constranger ao observar as telas toscas, adocicadas e falsamente ingênuas que Anita passa a produzir após a primeira fase modernista. A artista que pintou obras como “O homem amarelo”, “A Boba” e “Mulher de Cabelos Verdes”, não quer mais ser vanguarda, nem acadêmica. Ela quis expor a sua pintura simples, facilmente compreendida por todos e que dificilmente será aceita por alguns apreciadores da arte. 92


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Resumo O artigo científico sobre a Aquisição da LE Inglesa e o seu Processo de Ensino Aprendizagem Aplicado e o Desenvolvimento das Competências Linguísticas busca analisar como as teorias influenciam acerca da aquisição da LE inglesa por parte dos discentes. Como objetivos específicos para esta investigação, busca-se ponderar sobre as teorias usuais que estão sendo aplicadas no que tange a Aquisição da Língua Inglesa; bem como, compreender o processo de ensino-aprendizagem entre os estudantes através de alguns métodos e/ou estratégias, como também observar qual o desempenho destes diante da nova linguagem. O enfoque e o método quantitativo foram escolhidos por apresentarem uma abordagem objetiva e concisa dos dados analisados; o alcance do estudo foi descritivo com o desenho não-experimental por se tratar da observação dos fenômenos de acordo com seu contexto natural. Nas análises realizadas em duas Universidades (em Recife e em Assunção), depreende-se que o discente desenvolveu todas as habilidades necessárias esperadas para se tornar proficiente na LE inglesa. Pode-se concluir que é preciso sempre aprimorar a metodologia em sala de aula, como também incentivar esses discentes a buscar o conhecimento fora dela, proporcionando cursos em institutos de LE ou até o intercâmbio, para o aprendiz viver a LE em aprendizado. Como referencial teórico que dá fundamento ao trabalho, podemos citar Paiva (2014), Kail (2013), Antunes (2007), Bagno, Gagné, Stubbs (2002), Saussure (1916), Krashen (1981), Littlewood (1984), Wedwood (2006), Chomsky (1983), dentre outros. Palavras-chave: Aprendizagem; Aquisição; Estratégias; LE; Métodos


AQUISIÇÃO DA LE INGLESA E O SEU PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM APLICADO E O DESENVOLVIMENTO DAS COMPETÊNCIAS LINGUÍSTICAS EM DISCENTES Lílian das Neves Henrique da Silva1

INTRODUÇÃO Ao falar-se em aquisição da Língua Inglesa, se quer nada mais que a culminância no ensino-aprendizado dessa língua, pois aquisição nada mais é que dominar todas as modalidades da língua: escrita, fala, compreensão. Quando se direciona o ensino da Língua Inglesa ao Ensino Superior, imagina-se o sucesso desta na sua aplicabilidade, partindo da prerrogativa que este discente vinha com um grau de conhecimento, antes visto no Ensino Regular. E que devido a maturidade deste discente, a LE (Língua Estrangeira) deveria ser trabalhada com mais afinco, afim de aprimorar conhecimentos previamente vistos por ele no ensino Regular. Com esta motivação, parte-se para um estudo mais detalhado, procurando avaliar 2 turmas de ensino superior, uma no Brasil e outra no Paraguai, com intuito de verificar como estão sendo desenvolvidas as aulas de Língua Inglesa, afim de que esses discentes desenvolvam as habilidades necessárias para se tornarem falantes dessa Língua. Durante o desenvolvimento deste trabalho dissertativo, foi ponderado acerca da Aquisição da Língua Estrangeira Inglesa, a qual tentou-se avaliar 1. Professora do Governo do Estado/ PE * Mestre em Ciências da Educação – UA. Email: neveslilian10@ gmail.com 95


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sobre as diversas técnicas ou/e métodos com os quais foram e ainda são sugeridos para instruir essa língua, como também as estratégias que podem ser aplicadas, com intuito de adquirir sua proficiência. Cientes de que esta pesquisa representa uma pequena amostragem da realidade do ensino de LE tanto no Brasil como no Paraguai. O corpus do trabalho foi montado a partir de questionários aplicados no Curso de Comércio Exterior, no Paraguai, na Universidad Americana (UA) e, no Brasil, na Faculdade Guararapes (FG). Em relação ao repertório de teorias acerca da aquisição da segunda língua, é notório que muitos autores compartilhavam e corroboravam de um mesmo conceito, de que é necessário que sejam criadas situações comunicativas reais para o desenvolvimento da Linguagem. Por isso, o estudo faz-se relevante para que se possam aclarar quais as reais necessidades para tornar de fato o ensino da Língua Inglesa mais significativo. A pergunta geral acerca da investigação é:

• Como as teorias mais recorrentes auxiliam na aquisição de uma 2ª língua, no processo de ensino aprendizagem aplicado e no desenvolvimento das competências linguísticas dos estudantes? Perguntas específicas são:

• Quais são as teorias mais recorrentes que auxiliam na aquisição de uma 2ª língua e que interferem na formação dos estudantes de Comércio Exterior? • Em que consiste o processo de ensino aprendizagem aplicado pelos docentes e estudantes na formação dos estudantes? 96


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• Quais as competências linguísticas desenvolvidas pelos docentes e estudantes na formação dos estudantes? • Como se relacionam as teorias acerca da aquisição de uma 2ª língua, o processo de ensino aprendizagem aplicado e o desenvolvimento das competências linguísticas dos estudantes de Comércio Exterior?

Como objetivo geral para a investigação:

• Analisar as teorias mais recorrentes que auxiliam na aquisição de uma 2ª língua, no processo de ensino aprendizagem aplicado e no desenvolvimento das competências linguísticas dos estudantes dos estudantes de Comércio Exterior nas cidades de AssunçãoRecife, respectivamente nos países Paraguai – Brasil. Os objetivos específicos são:

• Estabelecer as teorias mais recorrentes que auxiliam na aquisição de uma 2ª língua e que interferem na formação dos estudantes de Comércio Exterior; • Descrever o processo de ensino aprendizagem aplicado pelos docentes e estudantes na formação; • Identificar as competências linguísticas desenvolvidas pelos docentes e estudantes na formação dos estudantes.

Esta investigação se justifica pelo fato de expor que o cenário do ensino da Língua Estrangeira Inglesa vem se modificando, pois enquanto antes era priorizado o ensino através de métodos repetitivos e que pouco contribuíam 97


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com a independência do aprendiz, hoje, prensencia-se um cenário no qual o aprendiz está muito mais seguro e desenvolvido acerca da aquisição da mesma.

AQUISIÇÃO DA LE INGLESA E O SEU PROCESSO DE ENSINO APRENDIZAGEM APLICADO E O DESENVOLVIMENTO DAS COMPETÊNCIAS LINGUÍSTICAS EM DISCENTES Aquisição da linguagem

Ao longo dos anos, muitas teorias sobre a aquisição da linguagem foram desenvolvidas e para que possamos compreender essas mudanças, faz-se necessário uma breve explicitação sobre o que é linguagem e como ela se classifica. Consoante Kail (2013, p. 75), “ adquirir linguagem consiste, para a criança, em aprender e em pôr em ato as unidades essenciais de sua língua materna, um léxico relativamente extenso e as construções sintáticas mais usuais”, ou seja, aquelas atreladas as práticas sociais. Linguagem é a faculdade que têm os homens de comunicar-se uns com os outros, exprimindo seus pensamentos e sentimentos por meio de vocábulos, que se transcrevem quando necessário; pelo modo de se exprimir por meio de símbolos, formas artísticas e, é claro, pela maneira de falar através de língua materna ou estrangeira. A língua preenche com toda evidência uma função de comunicação que permite aos indivíduos comunicar-se uns com os outros. Esta função repousa na possibilidade da intercompreensão e supõe necessariamente um código comum, um conjunto de variantes compartilhadas. Igualmente evidente, embora sua função ideacional (ou, em outros ter98


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mos, cognitiva, heurística, referencial) da linguagem permite nomear e conceitualizar o universo e ajudá-lo a compreendê-lo. (BAGNO, STUBBS, GAGNÉ, 2002, p. 182)

Antunes (2007, p. 31), traz informações sobre estudos que foram centrados em “perspectivas como a língua como sistema em potencial, como conjunto de signos à disposição dos falantes, outras mais voltadas para os usos reais dos interlocutores fazem da língua, nas diferentes situações sociais de interação verbal.” Para Antunes (2003), essa língua pode ser representada de forma oral ou escrita. Aquela, normalmente vista de forma espontânea, há uma tendência à informalidade e no discurso pode haver repetição de palavras; enquanto que esta tende a ser mais formal, mais elaborada, por isso, geralmente, é ligada a regras semânticas, a coesão e a coerência, ou seja, mecanismos que mantêm o sentido textual. Não importa se oral ou escrita, a linguagem é a exteriorização daquilo que se quer dizer, sobre estímulos, influenciada pelo meio ou não. Consoante Bagno, Gagné, Stubbs ( 2002, p. 32) a língua é como “uma atividade social, cujas normas evoluem segundo os mecanismos de autorregulação dos indivíduos e dos grupos em sua dinâmica histórica de interação entre si e com a realidade”. Já para Saussure (1916), a língua compõe a linguagem no âmbito social. A língua é parte social da linguagem, exterior ao indivíduo, que, por si só, não pode nem criá-la nem modificá-la; ela não existe senão em virtude duma espécie de contrato estabelecido entre os membros da comunidade. Por outro lado, o indivíduo tem a necessidade de uma aprendizagem para conhecer-lhe o funcionamento, somente pouco a pouco a criança assimila... A língua, distinta da fala, é objeto que se pode estudar separadamente. (SAUSSURE, 1916, p. 22)

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Consoante Krashen (1981), a aprendizagem ocorre quando nos apropriamos dos mecanismos linguísticos necessários, regras e vocábulos, para aperfeiçoar ou melhorar a nossa declaração ou fala e que a fluência só é adquirida através da comunicação ativa. Essa linguística é o estudo da língua ligados aos fatos empíricos, ou seja, as práticas e as experiências dos indivíduos. Durante o seu estudo, podemos observar: • Dados Sincrônicos, relacionados a época, versus dados diacrônicos, relacionados as suas mudanças ao longo do tempo; • Linguística teórica versus a Linguística aplicada; • E por fim, sua estrutura macrolinguística versus sua estrutura microlinguística.

Quando falamos em aquisição estamos nos remetendo a esse ato de adquirir, obter, ter domínio sobre algo. Com a linguagem, não é diferente. Quando atrelada a esta, refere-se ao seu conhecimento e a sua proficiência que é a capacidade que o falante tem de dominar algumas habilidades inerentes a língua (falar, compreender, interpretar, escrever e ouvir), é o conhecimento perfeito. Já para Krasshen (1981), para se ter aquisição, não é prerrogativa dominar todos as habilidades inerentes a língua ( ler,escrever, falar, etc), pois a aquisição não será só completa durante a conversação, por exemplo, tomando como premissa que os grupos sociais variam e que nem sempre haverá o contato com as pessoas que dominam a língua e que quando se usa a língua de forma rápida e espontânea, não há tempo para pensar em aplicar qualquer regra.

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A língua e seus paradigmas Segundo Littlewood (1984), partindo do pressuposto da teoria Behavorista, a linguagem depende exclusivamente dos estímulos externos, desenvolvida a partir da imitação e do esforço. Consoante Paiva (2014, p.13), acerca da teoria behaviorista “o principal pressuposto é que a aprendizagem em geral é sinônimo de formação de hábitos, cujos princípios são que a aprendizagem acontece através de repetição de estímulos; que os reforços positivos e negativos têm influência fundamental para a formação dos hábitos desejados; e que a aprendizagem ocorre melhor se as atividades forem graduadas. “ E que o nome mais notado é o de Skinner quando se menciona esta teoria. Paiva (2014) cita a teoria behaviorista-estrutural por esta ser amparada pelo fator linguístico e pelo psicológico. Aquele por se referir à apreciação de língua como um apanhado de estruturas e este à aprendizagem como a concepção de costumes automatizados. Ainda para Paiva (2014, p.26), a teoria behaviorista não apresenta argumentação convincente sobre a aquisição da segunda língua, mas reconhece sua influência no ensino de línguas até os dias atuais. Já para Chomsky (1983), com a sua teoria Inatista, a linguagem é gerada a partir de estruturas inatas, ou seja, que não adquirimos com a experiência, pois estão conosco desde o nosso nascimento, é algo intrínseco. À esta teoria não se associa estímulo e resposta. A criança adquire uma dessas gramáticas (de fato, um sistema de gramáticas desse gênero, mas limitar-me-ei ao caso mais simples, ao caso ideal) a partir dos dados limitados que lhe são acessíveis. No seio de uma certa comunidade linguística, crianças cujas experiências pessoais variam, adquirem gramáticas comparáveis e largamente subdeterminadas pelos dados que lhes são acessíveis. Pode-se considerar uma gramática, 101


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representada de uma maneira ou de outra no espírito, como um sistema que especifica as propriedades fonéticas, sintáticas e semânticas de uma classe infinita de frases possíveis. A criança conhece a língua assim determinada pela gramática que ela adquiriu. Essa gramática é uma representação de sua “competência intrínseca”. Em sua aquisição da linguagem, a criança desenvolve igualmente “sistemas de desempenho” para começar a usar esse saber (por exemplo, estratégicas de produção e de percepção). O que se sabe a respeito das propriedades gerais dos sistemas de desempenho é tão escasso que só se pode especular sobre os fundamentos do seu desenvolvimento. (CHOMSKY, 1983, p. 50-73)

Segundo Wedwood, (2006, p. 133), para Chomsky, “os falantes usam sua competência para ir muito além das limitações de qualquer corpus, sendo capazes de criar e reconhecer enunciados inéditos, e de identificar erros de desempenho.” Acerca da língua, conforme Paiva (2014, p.72), “para Chomsky cada língua tem uma quantidade de parâmetros, e pequenas mudanças nas configurações podem gerar uma grande variedade aparente de output, pois o efeito prolifera através do sistema. Cada língua resulta da ação recíproca do estado inicial e do curso da experiência.” Consoante Chomsky (1983), Piaget com a sua teoria Cognitiva diz que deve haver o domínio da estrutura conceitual do mundo físico e social para adquirir a linguagem e que o desenvolvimento desta é o resultado do desenvolvimento cognitivo que só é adquirido com a maturação biológica e com a construção do conhecimento partindo do individual para o social, aproximando as crianças às concepções dos adultos. Piaget apresenta dois argumentos fundamentais: (1) as mutações, próprias da espécie humana, que poderiam ter dado lugar às estruturas inatas postuladas, são “biologicamente inexplicáveis”; (2) aquilo que pode ser explicado de acordo com a hipótese das estruturas fixas ina102


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tas também pode ser perfeitamente explicado como sendo “o resultado ‘necessário’ de construções próprias da inteligência sensório-motora… (CHOMSKY, 1983, p. 50-73)

Para Piaget, também citado por Chomsky, a linguagem equivale à inteligência, sendo importante, mas não primordial, pois:

[...] não é menos evidente que quanto mais refinadas as estruturas do pensamento, mais a linguagem será necessária para complementar a elaboração delas. A linguagem, portanto, é condição necessária, mas não suficiente para a construção de operações lógicas. Ela é necessária, pois sem o sistema de expressão simbólica que constitui a linguagem, as operações permaneceriam no estado de ações sucessivas, sem jamais se integrar em sistemas simultâneos ou que contivessem, ao mesmo tempo, um conjunto de transformações solidárias. Por outro lado, sem a linguagem as operações permaneceriam individuais e ignorariam, em consequência, esta regularização que resulta da troca individual e da cooperação (PIAGET, 1967, p. 92).

E sobre essa troca individual, consoante Ivic (2010, p. 13), “ Vygotsky insiste nos aportes da cultura na interação social e na dimensão histórica do desenvolvimento mental”, ou seja, com a sua teoria Interacionista, a linguagem é adquirida a partir de alguns pré- requisitos, dessa interação social e da troca comunicativa. Pois para Vygotsky, a construção do conhecimento parte do social para individual, como, por exemplo, as crianças que já estão inseridas no meio social, e a partir daí passam a internalizar tudo que é vivenciado. Por isso, se varia o ambiente, o desenvolvimento também varia. A análise de Vygotsky sobre as relações entre desenvolvimento e aprendizagem, no caso da aquisição da linguagem, nos conduz a definir o primeiro modelo de desenvolvimento: em um processo natural de desen103


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volvimento, a aprendizagem aparece como um meio de reforçar esse processo natural, pondo à sua disposição os instrumentos criados pela cultura que ampliam as possibilidades naturais do indivíduo e reestruturam suas funções mentais. (IVIC, 2010, p. 19)

Consoante Littlewood (1984), até 1960, foi adotado o método Behavorista, por ser aparentemente o mais completo e mais coerente, mas com tempo foi observado que os aprendizes eram estimulados apenas a imitar ou repetir, pois a sua essência era captar o exterior para daí criar sua percepção, muitas vezes de forma errônea ou insuficiente. Essa prática bancária, assim chamada por Freire (1987), que dá ênfase a repetição, faz com que o professor vá preenchendo o aprendiz de falso saber, que para Freire são conteúdos impostos e que não estão ligados com uma realidade que está em transformação, como também, inibe o poder criador do aprendiz. E sobre o professor, é visto por Martinez (2009, p. 71) que “não há dúvida de que ele ainda continua a ser referência linguística, aquele que corrige com moderação e avalia os desempenhos em um momento ou noutro”, ou seja, deve-se o foco da aprendizagem ser voltado para autonomia, sem tantas interferências do docente, mas incentivando a interação para o desenvolvimento da comunicação, contribuindo assim no aprendizado. Essa autonomia também precisa fazer parte da vida acadêmica do professor, consoante Antunes (2003), pois ressalta que este não este não deve estar preso ao material didático, mas que precisa desenvolver um trabalho crítico, diferenciado e comunicativamente relevante. E partir da constatação dessas falhas, foram ocorrendo modificações ao longo do processo de aprendizagem, ou seja, sendo aplicados novos métodos na aprendizagem. No processo de aquisição da 1ª língua, a aprendizagem ocorre de maneira natural e lenta, devido a grande exposição em diversos contextos sociais que fazem com que nos apropriemos dessa língua de forma gradual. 104


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Consoante Paiva (2014, p. 30), há cinco hipóteses trazidas por Krashen para auxiliar no desenvolvimento da aquisição, são elas: hipótese da aquisição-aprendizagem, hipótese da ordem natural, hipótese do monitor, hipótese do input, hipótese do filtro afetivo. Consoante Paiva (2014, p. 32), O input , trazido por Krashen, é uma condição necessária, mas não suficiente para aquisição, pois o aprendiz precisa estar disposto ao aprendizado e as novas experiências. Ainda para Paiva (2014, p. 35), “Krashen tem sido acusado de não considerar o output, mas isso não é totalmente verdadeiro. Ele não descarta o output, porém não o considera prioritário.” Segundo Krashen (1981), há dois meios dos adultos desenvolverem a linguagem, através da aquisição por meio de duas vertentes: a influência e o “Intake”, este último considerado obrigatório para alcançá-la com êxito. Aquela é constituída de estratégias de comunicação com Routines/Patterns (Termo culto), como também com jogos, escrita, Role playing, etc. Após adquirida a fluência, inicia-se o próximo passo, o “Intake”. Este constituído por exercícios que favoreçam a comunicação, leitura extensa, métodos naturais, intercâmbio, total physical response, meaningful. A aquisição da linguagem está ligada ao subconsciente e é caracterizada por mais importante, pois considera a aprendizagem como suplemento da aquisição; a aprendizagem da linguagem está ligada ao consciente e pode ser monitorada, ou seja, o aprendiz ele pode se corrigir. Esta autocorreção requer do aprendiz tempo, foco na forma e conhecimentos das regras, estes são pré-requisitos da Monitor Theory mencionada pelo Krashen (1981), como também citada por Littlewood (1984). Ou seja, a aquisição é desenvolvida de forma subconsciente, enquanto que a aprendizagem é de forma consciente. Nesta é desenvolvida a estrutura da linguagem e pode ser opcional, vista apenas para apreciação. 105


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O próximo passo são Rules of Thumbs (learnable rules for editing, limited errors correction. Após concluídos esses passos, a aprendizagem leva ao processo da fluência, iniciando assim o ciclo da aquisição; o autor não descarta a influência da primeira língua sobre a segunda. Quando se fala em aquisição de segunda língua, as habilidades que são exigidas são as mesmas que são desenvolvidas na primeira língua, porém essa aquisição pode ser mais trabalhosa devido as interferências tanto de fatores externos (ambiente) como internos (envolvendo personalidade do aprendiz).

metodologia

A investigação quantitativa ofereceu a possibilidade de determinar os resultados de forma mais ampla e objetiva, que confere o controle sobre os fenômenos estudados, traz o enfoque sobre pontos específicos acerca de alguns desses fenômenos, como também facilita a comparação entre estudos análogos. O alcance o tipo do estudo foi descritivo, pois buscou-se descrever os contextos com quais foi oferecido o ensino da Língua Inglesa. Essa investigação metodológica foi ampliada através de um processo de coleta de dados feita a partir de um questionário e posteriormente cometida à análise, acompanhada de revisão de documentos bibliográficos. Enfoque: foi utilizado o enfoque quantitativo através da coleta de dados, sem a necessidade de provar hipótesis por ser um estudo particularmente descritivo. Foi realizada a medição numérica e estatística, para estabelecer padrões de comportamento e descrever as informações que foram adquiridas de forma objetiva e sem a interferência pessoal. O desenho da investigação: foi caracterizado como não-experimental, pois foi escolhido por se observar os fenômenos de acordo com seu contexto natural, para posteriormente serem analizados, ou seja, tentando reportar a realidade que eles vivem. Não há manipulação de variáveis (idade, sexo, 106


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classe social etc), pois foram elaborados questionamentos apenas com a intenção de apresentar o desenvolvimento cognitivo dos participantes durante o aprendizado. Esta investigação também possui o desenho com corte transversal, pois os dados foram recolhidos em um mesmo tempo acerca de uma situação específica, o grau de conhecimento dos alunos de um curso específico, em duas comunidades acadêmicas. A unidade de análise ou população foi uma grupo de alunos do Curso de Comércio Exterior que cursava o 3º perído na UA (Universidad Americana – Paraguay) e um Grupo da FG (Faculdade Guararapes- Brasil). População: foi escolhida uma População de 44 graduandos que possuem a Língua Inglesa como disciplina na grade curricular, sendo que 22 alunos da UA e os outros 22 da FG. Amostra: foi não Probabilística, pois foi realizado um procedimento de seleção informal com os participantes, apenas com um propósito, não esperando que estes fossem representativos da população. Foi realizada a eleição de cursos iguais e períodos equivalentes para abordar o tema discutido no levantamento do problema, não se levando em conta idade, sexo ou classe social. Foi utilizado como instrumento avaliatório o Questionário Autoadministrado, sendo aplicado diretamente aos participantes, sem intermediários; permitindo-os também que o indagassem. Foi aplicado individualmente, entregue ao participante para respondê-lo de imediato, após uma breve exposição do referido documento. Como técnica para análise dos dados, foi utilizado a enquete, através de um questionário como instrumento. O formato horizontal para as perguntas fechadas, com opções de respostas previamente delimitadas e feita a précodificação dessas perguntas. O método e o enfoque foram o quantitativo. 107


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ANÁLISES DE RESULTADOS Esta sessão trata da análise dos dados obtidos de acordo com o questionário aplicado nas duas unidades de ensino superior anteriormente citadas, tendo como base metodológica para sua produção as teorias explicitadas ao longo deste trabalho acadêmico. Os resultados apresentados são consequências do tratamento realizado nos questionários respondidos pelos discentes do curso de Comércio Exterior, 22 de cada instituição; onde também ocorreu a coleta de dados de forma presencial, no intervalo entre as aulas. O questionário aplicado compreende 9 questões subdivididas em itens com os quais se procura atender os objetivos dessa investigação, que estão delimitados na introdução desse trabalho. São 9 questões objetivas o formato horizontal, que apresentam 5 opções como alternativas de respostas com as seguintes legendas: 0 1 2 3 4

SEMPRE BASTANTE REGULARMENTE POUCO NUNCA

Para a tabulação das informações, foram feitas as análises dos questionários por universidades e depois confrontados para averiguar se havia correlações ou a ausência delas.

Comparação dos resultados por pergunta

Para adquirir as informações pertinentes ao assunto e compilação dos dados, foi utilizado um questionário autoavaliativo, respondido por 22 dis108


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centes no Paraguai e 22 no Brasil, onde foi utilizado o formato horizontal para as 9 questões. Através do questionário, obteve-se o seguinte resultado: Em relação à 1ª pergunta, se a universidade cria oportunidade para o desenvolvimento de habilidades necessárias para se atingir a competência desejada no desempenho profissional, a UA apresentou um percentual de 63,63% dizendo que sempre e a FG apresentou um percentual de 54,54% dizendo que bastante. Em relação à 2ª pergunta, se a universidade induz a reflexionar de forma analítica e crítica sobre a linguagem como fenômeno psicológico, educacional, social, histórico, cultural, político e ideológico, a UA apresentou um percentual de 54,54% dizendo que sempre e a FG apresentou um percentual bem dividido de 50% dizendo que bastante e 45,45% dizendo regular. Em relação à 3ª pergunta, se a universidade desenvolve sua criticidade em relação às perspectivas teóricas adotadas nas investigações linguísticas e literárias, que fundamentam sua formação profissional, a UA apresentou um percentual de 63,63% dizendo que sempre e a FG apresentou um percentual de 50% dizendo que bastante. Em relação à 4ª pergunta, se a universidade prepara o profissional, de acordo com a dinâmica do mercado de trabalho, a UA apresentou um percentual de 81,81% dizendo que sempre e a FG apresentou um percentual bem dividido de 40,90% dizendo que bastante e 36,36% dizendo sempre. Em relação à 5ª pergunta, se a universidade apresenta diferentes contextos interculturais, a UA apresentou um percentual de 68,18% dizendo que sempre e a FG apresentou um percentual bem dividido de 45,45% dizendo que bastante e 40,90% dizendo regular. Em relação à 6ª pergunta, se a universidade ajuda valer-se dos recursos da informática, como ferramenta auxiliar na aprendizagem, a UA apresentou um 109


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percentual de 59,09% dizendo que sempre e a FG apresentou um percentual de 36,36% dizendo que bastante. Em relação à 7ª pergunta, se a universidade apresenta os conteúdos básicos que são objeto dos processos de ensino e aprendizagem no ensino fundamental e médio, a UA apresentou um percentual de 59,09% dizendo que sempre e a FG apresentou um percentual igual de 59,09% dizendo que bastante. Em relação à 8ª pergunta, se os professores dominam os métodos e técnicas pedagógicas que permitam a mediação dos conhecimentos para os diferentes níveis de ensino, a UA apresentou um percentual de 63,63% dizendo que sempre e a FG apresentou um percentual de 50% dizendo que bastante. Em relação à 9ª pergunta, se os professores dão prioridade à abordagem pedagógica centrada no desenvolvimento da autonomia do aluno, a UA apresentou um percentual de 50% dizendo que sempre e a FG apresentou um percentual igual de 50% dizendo que bastante. No geral:

• A UA – Sempre obtive êxito em todas as competências desenvolvidas durante o curso. • A FG – apresentou a opção Bastante na maior parte das vezes.

Nenhum aluno, em ambas instituições, optou pela opção “nunca” e na opção “pouco”, a porcentagem não foi significativa, se comparada às demais medições.

CONCLUSÃO

Devido à grande relevância da Língua Inglesa no cenário mundial, é necessário que seja verificado SE/POR QUE esta está sendo instruída e/ou adquirida com êxito pela grande parte dos discentes, na maioria dos cursos que a 110


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oferecem como cadeira obrigatória, para que sempre sejam feitas as correções necessárias. Não só os discentes se beneficiam com o teor da investigação, pois esta também reflete diretamente o trabalho dos docentes e da instituição que serve de apoio para que o aprendizado seja concretizado com sucesso. O objetivo geral desta investigação foi alcançado, pois buscou-se analisar teorias recorrentes que influenciam no processo de ensino-aprendizagem dos estudantes, no curso citado, que estão sendo aplicadas no que tange a Aquisição da Língua Inglesa. Os objetivos específicos também foram alcançados, que foram descrever as teorias relacionadas a aquisição dessa língua com língua estrangeira; identificar qual o processo de ensino-aprendizagem aplicado dessa língua; determinar quais as competências linguísticas adquiridas pelos estudantes através da conferência dos dados fornecidos. Ao longo dessa descrição, foi notório que, apesar das inovações trazidas por muitas teorias, algumas delas ainda possuem características Behavioristas, mas que tentam sanar as dificuldades ao longo do processo de ensino-aprendizagem. Em relação à escolha de identificação do melhor processo, pode-se observar que devido as diversas formas de intervenção às várias personalidades dos discentes, não há um único meio de desenvolver essa aquisição. Há sim diversas possibilidades de se desencadear e aprimorar o conhecimento.

RECOMENDACÕES

A partir das observações realizadas e do posicionamento diante da problemática apresentada, sugeriu-se inicialmente que o docente de uma LE esteja capacitado e qualificado, pois apenas a formação científica não é suficiente, o mestre precisa também ter conhecimentos sobre a cultura e dominar as habilidades inerentes à língua (listening, writing, comprehension, reading) necessárias para lecionar uma LE. 111


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Seria interessante que as Universidades também ofertassem cursos em institutos especializados em LE de credibilidade ou bolsas de estudos para estimular a prática de intercâmbio, para proporcionar ao discente um local diferenciado para prática da língua falada. É provável que alguns alunos, por conta própria, já façam este tipo de escolha; mas se as universidades mediassem esse contato, poderia haver uma adesão maior por haver a possibilidade de descontos e o acordo com empresas de confiança.

referÊncias

ALVES, Thelma Panerai; GAMA, Ywanoska (orgs.). Educação: discursos e reflexões interdisciplinares. Recife: Baraúna, 2008. ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. ANTUNES, Irandé. Muito além da gramática: por um ensino de línguas sem pedras no caminho. São Paulo: Parábola Editorial, 2007. BAGNO, Marcos. Língua materna: letramento, variação e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2002. CARVALHO, José Eduardo. Metodologia do trabalho científico. Goiânia: Editora Escolar, 2015. CHOMSKY. & PIAGET, J. Teorias da linguagem, teorias da aprendizagem. São Paulo: Cultrix, 1983. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. Editora EGA, 1996. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. IVIC, Ivan. Lev Semionovich Vygotsky. Recife: Editora Massangana, 2010. KAIL, Michêle. Aquisição de linguagem. São Paulo: Parábola, 2013. KLEIN, Wolfgang. Second language acquisition. Cambridge University Press, 1986. KRASHEN, Stephen. Second language acquisition and second language learning. Pergamon Press, 1981. 112


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LITTLEWOOD, William. Foreign end second language learning: language acquisition research and its implications for the classroom. Cambridge University Press, 1984. MARTINEZ, Pierre. Didática de línguas estrangeiras. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. PAIVA, Vera Lúcia Menezes de Oliveira e. Aquisição da segunda língua, São Paulo: Parábola Editorial, 2014. PALANGANA, Isílda Campaner. Desenvolvimento e aprendizagem em Piaget e Vygotskí: a relevância do social. 6 ed. São Paulo: Summus, 2015. PANERAI, Thelma. GAMA, Ywanoska (orgs.). Educação: discursos e reflexões interdisciplinares, Recife: Baraúna, 2008. PIAGET, J. O raciocínio na criança. Rio de Janeiro: Record, 1967. PIATELLI-PALMARINI, Massimo (org.). Teorias da linguagem, Teorias da aprendizagem: o debate entre Jean Piaget e Noan Chomsky. São Paulo: Cultrix, 1983. Disponível em: Http://www.Ufrgs.Br/Psicoeduc/Piaget/Chomsky-Para-Piaget. Acesso em 14/07/2016. RÉ, Alessandra Del (org.). Aquisição da linguagem: uma abordagem psicolinguístca, 2 ed. São Paulo: Contexto, 2015. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de lingüística geral. São Paulo: Cultrix. 1969. SAUSSURE, Ferdinand de, 1857-1913. Curso de lingüística geral. Ferdinand de Saussure. São Paulo: Cultrix, 2006. WEDWOOD, Barbara. História concisa da lingüística. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. • http://portal.mec.gov.br/seb/arquivos/pdf/pcn_estrangeira.pdf. Acesso em 28.07.16. • http://www.mec.gov.py/cms_v2/resoluciones/702-ley-n-4995-de-educacion-superior> Acesso em 28.07.16. • https://www.americana.edu.py/content/comercio-internacional-presencial. Acesso em 24/09/2017. • https://unifg.edu.br/graduacao-tradicional/comercio-exterior/. Acesso em 24/09/2017. • http://portal.mec.gov.br/index.php?option=com_content&view=article&id=12907:legislaco es&catid=70:legislacoes. Acesso em: 25/09/2017.

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Resumo O presente artigo analisa a relação entre construção dos personagens e o contexto histórico social da época da escrita em Capitães da Areia, de Jorge Amado. A finalidade deste artigo é evidenciar como a problemática se faz pertinente nas épocas anteriores e posteriores à obra. Ao desenvolver o trabalho, usou-se a pesquisa bibliográfica, para mostrar a problematização do menor abandonado na literatura brasileira e sua ligação com o que se convencionou chamar de literatura modernista, tendo como base autores como Durval Muniz (1999) retratando a sociedade do romance de 30. É deixada explícita ao decorrer da leitura, a crítica às desigualdades da sociedade vigente e não vigente à obra, baseando-se em autores canônicos como Clarice Lispector (1992) e Azevedo (2004) a fim de nortear a discussão, como objetivo de mostrar que tais concepções não foram restritas aos textos entre as fases modernistas, levantando, através disso, questionamentos em relação aos menores de rua, que vivem em condições precárias de exclusão, marginalização e pobreza, fazendo presente na ficção amadiana. Palavras-chaves: Capitães da Areia; Personagens; Desigualdade social; Narrativa.


CAPITÃES DA AREIA. O universo dos capitães e a atemporalidade em seu contexto histórico e social na obra de Jorge Amado Everton Felipe Tenório da Silva Santos1 Jonatas Nicácio Cardoso da Silva 2 Orientador: Profº. Dr° Frederico José Machado da Silva.3

INTRODUÇÃO Escrito por Jorge Amado na década de 1930, Capitães da Areia teve sua primeira publicação no Brasil em 1937, sendo o 6º livro de um total de 37, publicados pelo autor. O livro conta a história de um grupo de meninos que fazem das ruas de Salvador sua moradia, praticando pequenos furtos para sobreviverem, cometendo delitos, que são apresentados na obra como produtos do próprio sistema social, vivendo em situação de vulnerabilidade. Enfatiza a pobreza e a ineficiência de sistemas governamentais, retratando suas necessidades, anseios e dramas no decorrer da narrativa.

1.Graduando em Letras – Português e Inglês pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda – FACHO. everton5529@hotmail.com. 2.Graduando em Letras – Português e Inglês pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda – FACHO, Graduado em Pedagogia, pela Faculdade de Igarassu – FACIG. nicacio1534@gmail.com 3.Doutor em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Mestre em Letras pela Universidade Federal de Pernambuco – UFPE, Graduado em Licenciatura Dupla em Letras - Inglês e Português pela Faculdade Frassinetti do Recife – FAFIRE. professorfred@gmail.com 115


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Assim, observa-se que a bondade, ingenuidade e inocência representam um contraponto inicial e bastante apresentado na obra, onde Jorge Amado construiu para denunciar a situação das crianças, retomando a sua própria humanidade e identidade, “Deus é tão bom (mas não tão justo também...) pelos seus pecados e dos Capitães da Areia. Mesmo porque eles não tinham culpa. A culpa era da vida...” (AMADO, 1993, p.98). Sua obra mostra as marcas que persistem aos dias atuais, em uma sociedade marginalizada, abafada e esquecida, tida como normal, e sem problemas algum.

É aqui que mora o chefe dos capitães da areia: Pedro Bala. Desde cedo foi chamado assim, desde os seus cinco anos. Hoje tem quinze anos. Há dez que vagabundeia nas ruas da Bahia. Nunca soube de sua mãe, seu pai morrera com um balaço. Ele ficou sozinho e empregou anos até conhecer a cidade [...] Quando incorporou aos Capitães da Areia atraiu para suas areias todas as crianças abandonadas. (AMADO, 1993, p.26)

Neste sentindo, a obra apresenta o desejo de retratar uma sociedade calejada e sofrida frente às adversidades, tendo em Salvador seu cenário ideal para trazer essa representatividade explícita no desenrolar da obra, reconhecendo o sistema social como principal responsável por desenvolver suas próprias mazelas. Com isso, a tentativa de conscientização abordada pelo narrador deixa evidências em relação ao leitor. Na obra, permite-se a observação de vários fatores da sociedade baiana, de modo evidente, “Capitães da Areia” é um grito de liberdade, uma narrativa em prosa recheada de ação, aventura e comédia, vista pelo viés sociológico que escancara as feridas de um sistema político, problemático e individualizado, que são pertinentes dentro do cenário baiano. Um poema que nasce da união entre a realidade vivida e o sofrimento no eixo social.

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A voz o chama. Uma voz que o alegra, que faz bater seu coração. Ajudar a mudar o destino de todos os pobres. [...] Dentro de Pedro Bala uma voz o chama: voz que traz para a canção da Bahia, a canção da liberdade. Voz poderosa que o chama. Voz de toda a cidade pobre da Bahia, voz da liberdade. A revolução chama Pedro Bala. (AMADO, 1993 p, 232-233)

Com uma linguagem objetiva e acessível, o livro é uma espécie de manifesto contra as desigualdades inerentes aos modelos políticos e econômicos predominantes na época. Observam-se os personagens com nomes populares: Pedro Bala, João Grande, Dora, Dalva, mostrando a simplicidade do povo e suas marcas, retratados com suas sofridas características, sua realidade nua e crua, em todos os cenários tidos na obra, em suas falas, em suas ações, que permeiam todo o texto, em um misto de drama e um pedido de socorro. Eles roubavam e furtavam, brigavam nas ruas, xingavam nomes, derrubavam negrinhas no areal, por vezes feriam com navalhas ou punhal homens e policias. Mas, no entanto, eram bons, uns eram amigos dos outros. Fazia-se tudo aquilo é que não tinham casa, nem pai, nem mãe, a vida deles era uma vida sem ter comida certa e dormindo num casarão quase sem teto. Se não fizessem aquilo morreriam de fome por que eram raras as casas que davam de comer a um, de vestir o outro. E nem toda a cidade poderia dar a todos. (AMADO, 1993, p. 100).

Amado traz dentro de suas especificidades, uma maneira simples e direta na composição dos elementos da narrativa, que estão estruturalmente interligados, compondo seu mundo ficcional, fatores que levam o leitor a sentir uma comoção e ao mesmo tempo uma revolta com o sistema predominante de cunho social, que perpetuam na história, e tornam-se atemporais, através da organização dos acontecimentos em ações dos Capitães da Areia e o desenrolar da história. 117


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No decorrer do artigo, analisaremos a obra Amadiana e suas características trazidas com suas peculiaridades dentro da realidade vivida pelos “Capitães da Areia”, como também uma identificação nacional, oriunda do reflexo social e político presente em grande parte das obras do autor. Jorge Amado tratou das tensões sociais e escolheu Salvador como palco de suas obras, enfatizando as mazelas de uma sociedade desigual e egoísta, frente aos seus problemas. O universo dos meninos em si, traz marcas da atemporalidade dentro do texto, partindo das características dos personagens e como o narrador faz esse paralelo. Inevitavelmente, o leitor é induzido a simpatizar com o grupo de crianças, cuja delinquência é produto da organização capitalista que não os acolhem, tendo em sua narrativa a exaltação, e um olhar com muito sentimentalismo, com foco nas injustiças e suas atribuições, e o egoísmo da sociedade que perdura até os dias atuais, frente à problemática do menor abandonado e sua marginalização.

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O rOMANCE Longe de ser um romance que se caracteriza por uma escrita unicamente poética, Capitães da Areia traz como um de seus principais objetivos, a denúncia referente às mazelas sociais. Contudo, Jorge Amado utiliza em sua linguagem trechos com traços relacionados ao lirismo, mesmo que sutilmente, em algumas colocações e passagens em sua obra, fazendo-se do poder de despertar emoções e sentimentos no leitor. Na madrugada, Pedro põe a mão na testa de Dora fria. Não tem mais pulso, o coração não bate mais, o seu grito atravessa o trapiche. Desperta os meninos João grande a olha de olhos abertos. Diz a Pedro Bala: Tu, não deverias ter feito. Ele assim responde: Foi ela quem quis. Explica e sai para não rebentar em soluços. [...] O padre pega no pulso de Dora, bota a mão na testa e afirma; Ela está morta! (AMADO, 1993, p.210)

Em 1937, ante uma sociedade etnocêntrica, a segunda geração modernista recepciona a obra literária ‘‘Capitães da Areia’’. Nessa narrativa, tem-se uma grande influência de padrões político-sociais que continua perpetuando no Brasil em pleno século XXI. Em meio a essa diegese, faz-se presente o uso de elementos estruturais para que se possa haver uma desconstrução de ações mecanizadas ou padrões isentos de questionamentos. A obra apresenta um anti-heroismo em especial com o personagem Pedro Bala, que demonstrava liderança e bravura dentre o grupo, e que buscava ter ideais fixos em relação à defesa da família na qual ele fazia parte, demonstrando ter autonomia e conhecimento de si mesmo para enfrentar seus conflitos sociais e saber lidar com suas relações com outras pessoas, ou até mesmo personagens se aventurando na luta pela sobrevivência indo de encontro às convenções sociais, querendo demonstrar maturidade. 119


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Assim, na arte da linguagem, é possível lembrar, tratando-se de gêneros literários, da definição mais comum de literatura : a representação da realidade através da escrita. A obra utiliza o grupo de meninos para recriar uma sociedade que apresenta descasos sociais com crianças desprivilegiadas na sociedade. A literatura como reflexo da sociedade ascende sua função ao decorrer da narrativa, pois se percebe, em algumas passagens, a presença de jovens desprezados, sem preparo para vida algum. O recurso utilizado pelo narrador parece colaborar para a feição realista do romance. Dentro do mundo ficcional, seria como se o narrador quisesse passar a impressão para o leitor que, os fatos que serão narrados, e consequentemente acontecer, são absolutamente de cunho verdadeiro, havendo uma dissonância, onde a narração contará a história, e definirá sua sequência até o desfecho final. Com o título ‘’Cartas à redação’’, faz-se, no início da obra, a utilização de recursos do gênero textual carta para enfatizar o relato de repúdio da população local ao grupo apresentado: Esse bando que vive da rapina se compõe, pelo que se sabe, de um número superior a 100 crianças das mais diversas idades, indo desde os 8 aos 16 anos. Crianças que, naturalmente devido ao desprezo dado à sua educação por pais pouco servidos de sentimentos cristãos, se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa. (AMADO, 1993, p. 3)

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Posicionando seu ponto de vista, e sua crítica, construída através de uma narrativa pensada para surtir um efeito, dentro de sua temática proposta, Capitães da Areia representa a mimese de um passado histórico, extremamente presente no contexto social atual. Candido (2004, p. 186) afirma que a literatura é uma necessidade universal que deve ser satisfeita sob pena de mutilar a personalidade, porque ao dar forma aos sentimentos e à visão do mundo, ela nos organiza e nos liberta do caos.

IDENTIFICAÇÃO NACIONAL E MARCAS DA ATEMPORALIDADE

A relação problemática social e literatura sempre se fez presente no Brasil. Pode-se perceber isso na obra no cânone anterior à literatura amadiana por meio de marcas em trechos abordando a desigualdade. Obras anteriores à época da leitura dos Capitães da Areia evidenciava essas questões. É através da escassez de saneamento que trazia como marca naturalista na obra ‘‘O cortiço’’ de Aluízio de Azevedo a elevação da desigualdade social. Personagens alojados em ‘’pedaços de terra’’ de forma aglomerada e sem qualidade de vida alguma, deixa claro seus conflitos sociais escancarados para a sociedade Baiana.

E os quartos do cortiço pararam enfim de encontro ao muro do negociante, formando coma continuação da casa deste um grande quadrilongo, espécie de pátio de quartel, onde podia formar um batalhão. Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem. (AZEVEDO, 2012. p, 18)

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Mais à frente, por meio de reflexões sociais no modernismo, Clarice Lispector mostra no livro ‘‘A descoberta do mundo’’, a temática da desigualdade na sua obra, em geral, através de uma narração homodiegética para enfatizar a problemática entre narrador e algum outro personagem. Pode-se obter como exemplo o conto ‘‘As caridades odiosas’’ que ao decorrer da leitura, apresenta um menino carente de comida e sujo próximo a uma confeitaria onde nenhum cliente o ajudava. Perante o conto, a literatura de Clarice traz questionamento sobre o quão solidário faz-se o ser humano.

O fato é que o pedido deste pareceu cumular uma lacuna, dar uma resposta que podia servir para qualquer pergunta, assim como uma grande chuva pode matar a sede de quem queria uns goles de água. Sem olhar para os lados, por pudor talvez, sem querer espiar as mesas da confeitaria onde possivelmente algum conhecido tomava sorvete, entrei, fui ao balcão e disse com uma dureza que só Deus sabe explicar: um doce para o menino. (LISPECTOR, 1992 p, 165)

Percebe-se, então, que a sociedade brasileira, dentre fases canônicas, sofreu e ainda sofre impasses em conjunto deixando exposta a notoriedade da problematização em coletivo e mostrando que os conflitos humanos, seja ele socioeconômico ou não, sempre existiu. Em vista disso, é na literatura modernista que as janelas da panfletagem se abrem indo de encontro ao sistema político vigente. Passando, porém, mais adiante, na segunda fase da época, a literatura Amadiana, enfaticamente em Capitães da Areia, não se faz diferente. O romance modernista traz Jorge Amado com sua marca nacionalista, abrindo leques aos conflitos baianos e mostrando através da narrativa que impasses sociais como desigualdade populacional ainda persistem. Utilizando de uma linguagem mais clara, com marcas de variações linguísticas da Bahia o narrador nos traz a protagonização de um grupo de meninos que, sem afeto 122


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e instrução social alguma, sobrevive pelo furto e roubo. Os mesmos vivem em uma situação de precariedade, expostos a riscos de doenças, sendo forçados a viverem com ratos caminhando nos seus locais de dormida, e mais diante o mar que vez ou outra os molhavam. Seria bem melhor dormida que a pura areia, que as pontes dos demais trapiches onde por vezes a água subia tanto que ameaçava levá-los. E desde esta noite uma grande parte dos Capitães da Areia dormia no velho trapiche abandonado, em companhia dos ratos, sob a lua amarela. Na frente, a vastidão da areia, uma brancura sem fim. (AMADO, 1993. p, 20)

De acordo com Durval Muniz, ‘’As dicotomias Deus e Diabo, tradicional e moderno, mar e sertão, inferno de miséria, fome, seca e profecia de salvação atravessam a constituição desta identidade regional’’. (MUNIZ, 1999. p, 138) são grandes ‘’temas regionais’’ que marcam a precariedade da vida nordestina presente no romance de 1930 e que persiste no cenário contemporâneo. A presença do crescimento desproporcional socioeconômico perante as classes fazia presente no cotidiano do Nordeste relacionando-se, portanto, ao universo dos Capitães da Areia, onde se percebe a relação de um personagem desacreditado com o pobre vivendo dignamente.

Os pobres não tinham nada. O padre José Pedro dizia que os pobres um dia iriam para o reino dos céus, onde Deus seria igual para todos. Mas a razão jovem de Pedro Bala não achava justiça naquilo. No reino dos céus seriam iguais. Mas já tinham sido desiguais na terra, a balança pendia sempre para um lado. (AMADO, 1993, p, 87)

Dentro da diegese na obra, temos como personagem enfático com um perfil mais revolucionário, o Pedro Bala. Entretanto, ao relacionar ficção e realidade, deixa-se à mostra a protagonização do povo brasileiro, sua iden123


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tificação regionalista, a linguagem tratada e falada entre os personagens, a harmônica construção do espaço onde se passa à narrativa, onde se cria uma forma de protesto e visibilidade, que atinge os padrões tidos como normais dentro do contexto social em vigor. Essa manifestação através da palavra vem se tornando cada vez mais atemporal, se considerarmos o panorama social brasileiro do século XXI, através de uma linguagem pouco rebuscada e mais objetiva. Jorge Amado utiliza marcas da cultura religiosa afro-brasileira na narrativa através de alguns personagens como Don’ Aninha, mãe de santo que se faz presente de forma solidária entre o grupo dos capitães, para deixar visível o preconceito entre as classes mais desfavorecida socialmente. Don’Aninha disse aos meninos com uma voz amarga: - Não deixam os pobres viver... Não deixam nem o deus dos pobres em paz. Pobre não pode dançar, não pode cantar pra seu deus, não pode pedir uma graça a seu deus sua voz era amarga, uma voz que não parecia da mãe-de-santo Don’Aninha. -- Não se contentam de matar os pobres a fome... Agora tiram os santos dos pobres... (AMADO, 1993, p. 87)

Percebe, então, que a leitura abre interrogações sobre como as ações de indivíduos, não como seres individuais junto a seus impasses, mas sim como seres sociais, pode afetar o outro. Nos leva a refletir que uma preconcepção de fé pode gerar problemas cada vez maior ao próximo quando se estabelece uma relação de desrespeito à religião. A verossimilhança à sociedade, portanto, ganha ênfase ao evidenciarmos problemas de intolerância presentes ainda no século XXI.

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ESTRUTURA DA NARRATIVA NA LITERATURA AMADIANA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Em vista de todo o aspecto de denúncia, a atemporalidade da narrativa passa por uma linearidade nas ações dos personagens por meio de classificação narratológica plana. Entretanto, é com a quebra de expectativa causada no capítulo ‘’as luzes do carrossel’’ que o narrador apresenta uma personalidade redonda entrelaçando-se a poesia da linguagem e da música. A leitura reforça o estado natural do ‘’ser criança’’ voltando à tona no grupo. Logo, por meio dessa passagem, percebemos o quão transcendente ao tempo faz-se a literatura amadiana. Então a luz da lua se estendeu sobre todos, as estrelas brilharam ainda mais no céu, o mar ficou de todo manso (talvez que Yemanjá tivesse vindo também ouvir a música) e a cidade era como que um grande carrossel onde giravam em invisíveis cavalos os Capitães da Areia. (AMADO, 1993. p, 59)

Na trama, temos o personagem principal, Pedro bala, que é caracterizado como o anti-herói da narrativa, e também um personagem ágil, chefe do bando, filho de um estivador, morto por fazer parte das greves no cais, e é conhecido também pelo cabelo loiro e cicatriz no rosto herança de uma briga. Mais adiante da narrativa se envolve com Dora, única mulher e capitã da areia no grupo. Dora, apesar de bastante resistência por membros do grupo, acaba conquistando-os já que é análoga à figura materna e de esposa, considerando o romance embasado por aventuras e emoções ao decorrer do capítulo ‘’Dora esposa’’ indo até o momento do seu falecimento causado por uma elevada febre. 125


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Tratando-se de tipologia, o narrador heterodiegético e omnisciente, ou seja, não fazendo parte da situação no universo narrativo, e demonstrando aprofundamento no interior dos personagens, deixa claro para o leitor o sentimento de ódio e abandono por meio dos mesmos. Agora um menino pobre e órfão viera bater à sua porta. Depois da morte de seu filho ela não quisera ter outro, não gostava mesmo de ver e brincar com crianças para não avivar a dor das suas recordações. Mas um, pobre e órfão, aleijado e triste, que se dissera chamar Augusto como seu filho, batera em sua porta pedindo pão, pousada e carinho. (AMADO, 1993. p, 112)

O Sem-pernas, ao adentrar na casa de uma família com boas condições financeiras e fingindo ter o mesmo nome do filho da proprietária, logo entra em conflito entre a distância do sentimento de afeto em sua vida, a recepção de carinho ao personagem, que se torna contrário à vida no trapiche, e o sentimento de saudade das ações corriqueiras, como o fumo, entre o grupo. Nessa questão, a leitura mostra o jovem sendo obrigado a inibir suas atitudes do trapiche e distanciar-se de sua verdadeira família, os capitães da areia. A construção dos personagens e a presença do anti-herói, portanto, evidencia a ausência de instrução educacional e afeto, resultando em práticas anticonvencionais na sociedade brasileira. O julgamento por parte da população na diegese torna-se mais fácil por não perceber o que de fato resultou a precariedade de vida e o furto em pró da sobrevivência. É através dessas personalidades para o personagem presente na obra, que Jorge Amado se faz presente em muitas épocas, identificando-as, como a ruptura de personagens planos para mostrar a infância perdida e o olhar de desprezo da sociedade que deixa em questão uma cultura baseada em padrões de classes onde grupos considerados inferiores passam a não ter voz, resultando, dessa maneira, em lutas extremas por sobrevivências. 126


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CONSIDERAÇÕES FINAIS A obra Capitães da areia, em sua singularidade, aborda em aspecto de denúncia a luta por uma realidade mais justa e igualitária de menores abandonados à própria sorte. Jorge Amado traz em sua obra marcas que perduram ainda nos dias atuais, em uma sociedade marginalizada, abafada e esquecida, frente à problemas de caráter social. Dentro de sua narrativa, o romance antecipa de modo escancarado a vida das crianças que esmolam nas ruas da Bahia, ‘’Crianças que devido ao desprezo dado se entregaram no verdor dos anos a uma vida criminosa’’ – (AMADO, 1993, p.30), onde seus sonhos ganham configurações diferenciadas dos que a maioria das crianças almeja para si. A obra de Jorge Amado obtém um imensurável valor artístico, passando por uma linearidade nas ações e relações dos personagens entre si, e a todo o enredo da obra, pois se utilizam de recursos retóricos, de criação poética, agregados ao tema da crítica à exclusão social, cores do universo baiano. Indo além da linguagem poética, “Capitães da Areia” traz como um de seus principais objetivos, a denúncia referente às mazelas sociais e suas consequências, como também um grito dos excluídos em caráter de emoções e frustrações que geram sofrimento frente à problemática do menor abandonado e sua marginalização, o que se assemelha com a obra Amadiana, no que diz respeito ao enaltecimento da cultura, tradições e religiosidade, fator imprescindível na construção da identidade do povo baiano em suas obras. Foi possível comprovar, desse modo, que, além de apresentar preocupações com problemas sociais, a obra se utiliza da poesia da linguagem e demonstra o valor afetivo presente nas imagens criadas dentro da ficção, onde leitor é induzido a simpatizar com o grupo de crianças, cuja delinquência é produto da organização capitalista que não os acolhem. 127


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Logo, tem em sua narrativa a exaltação, e um olhar com muito sentimentalismo, com foco no universo dos meninos e as consequências trazidas e presentes nos valores afetivos, que correspondem à relação de familiaridade e identificação sociocultural e suas dimensões. Jorge Amado traz em suas obras, essa discussão frente ao tema, que nos faz refletir na dimensão da possibilidade de um mundo melhor, igualitário nas questões sociais, econômicas e políticas, que mesmo com o passar do tempo, se fazem tão presentes em nosso mundo contemporâneo e cruel, dentro da realidade da qual vivemos. Foi possível concluir também que, além da narração abordar variadas temáticas da vida no Nordeste, a literatura em questão não se restringia à época. Alguns autores canônicos já refletiam sobre os conflitos sociais. Clarice Lispector também na época modernista ou até mesmo Aluísio de Azevedo no naturalismo faziam e ainda nos fazem levantar questionamentos sobre as desproporcionalidades de classes frente às privações de vida digna em sociedade. Partindo desse pressuposto, pode-se dizer que nas leituras das obras amadianas há presença de releituras da sociedade antes mesmo da época de Jorge Amado, não o restringindo ao tempo no qual ele esteva inserido.

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Resumo Vinte e zinco (2004) é o terceiro romance de Mia Couto cujo título enfatiza a pobreza da periferia de Moçambique, lugar onde o zinco serve de teto para as moradias, ele se passa de 19 a 30 de abril de 1974, período pré, durante e pós Revolução dos Cravos. Sabe-se que a obra resulta de uma encomenda da editora Caminho, em virtude da comemoração dos 25 anos do 25 de Abril Português, resultando no: “cumprimento de um dos célebres D do Manifesto do MFA, descolonizar, e, portanto, a ascensão de Moçambique, e de todos os territórios africanos de língua portuguesa, à independência” (ROTHWELL, 2013, p. 143). Esse momento histórico é carregado de uma série de mudanças na vida da população, que caminha para a independência. Nesse sentido, pretendemos investigar quais são as relações entre a memória e a história de Moçambique no romance Vinte e zinco (2004). Para isso, utilizaremos como suporte teórico José Luís Cabaço (2009), Patrícia Villen( 2013) e Lincoln Secco(2004). Palavras-chave: Mia Couto. História. Memória. Moçambique. Romance.


DIÁLOGOS ENTRE HISTÓRIA E MEMÓRIA EM VINTE E ZINCO DE MIA COUTO Suelany C. Ribeiro Mascena1

INTRODUÇÃO Ao analisarmos a obra Vinte e zinco (2004) de Mia Couto, é notório observarmos no romance, após situá-lo em seu contexto de produção, o entrelaçamento entre a história e o texto ficcional. Isso se dá, sobretudo, pelas numerosas marcações de tempo que há na obra e que fazem alusão à guerra dos Cravos. Esse momento histórico é carregado de uma série de mudanças na vida da população, que caminha para a independência. De acordo com José Luis Cabaço (2009, p. 151): Aos primeiros minutos do dia 25 de abril de 1974, Leite de Vasconcelos, um jornalista moçambicano trabalhando então na Rádio Renascença em Lisboa, colocou no ar Grândola, vila morena, uma das canções de Zeca Afonso proibidas pela censura do Estado Novo. Era a senha de confirmação para o golpe militar que derrubaria um regime instaurado em Portugal há quase meio século.

Após o 25 de Abril, o movimento de libertação pela independência de Moçambique ganha uma considerável força e reitera a esperança da população moçambicana se livrar do domínio português. Assim, se faz importante dialogar com esse período a fim de compreendermos construções importantes dentro da obra e de também, evidenciando os propósitos de sua elaboração. 1. Doutora em teoria da literatura, professora do curso de letras da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda - FACHO. suelanyribeiro@gmail.com. 131


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DESENVOLVIMENTO A revolução resulta de um movimento social que depõe o regime ditatorial fascista português, instituído desde 1926, contemplando um novo momento, principalmente, para as colônias africanas. Mas para chegar até ele há um longo caminho que carece de ser explicitado para compreendermos as relações existentes entre Portugal e as colônias. De acordo com Lincoln Secco (2004, p. 88-89), “Portugal era um Império Periférico. Oxímoro que quer dizer que o país se alimentava das bases coloniais”. Isto é, necessitava dos lucros financeiros, oriundos das colônias e de investimentos estrangeiros para a manutenção econômica, e mesmo assim não conseguia ter um equilíbrio financeiro. A crise de 1960-1970 não envolve apenas as questões com as colônias, mas também as relações internacionais de um modo geral. Secco (2004) informa-nos que mesmo nesse período de crise, Portugal recebe um número considerável de turistas europeus e junto com eles, consequentemente, as críticas e comparações negativas com os demais países da Europa. O regime fascista não deixava transparecer essa insatisfação e sufocava os que iam de encontro ao modelo imposto, controlava as Universidades e punia os intelectuais que se manifestavam contra o Governo. A lista de autores proscritos, divulgada depois do 25 de Abril, mostrou que o governo impedira a publicação de Bocaccio, Casanova, Sade e Henry Miller, talvez por serem contrários à boa moral. Mas também Schopenhauer, talvez por seu ceticismo. E certamente tinha mais motivos para impedir Mao Tse-Tung, Gramsci e Althusser, entre tantos outros (SECCO, 2004, p. 95).

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A censura, assim como os demais países que têm como base um sistema opressor, limitava os avanços científicos e, sobretudo, o conhecimento crítico acerca das ciências humanas. Apesar desta realidade, o país lia bastantes livros de literatura e assistia a filmes estrangeiros, mas só os de interesse do Estado. A negação de direitos e o regime antidemocrático ocasionaram o surgimento de partidos de oposição como o Partido Comunista Português (PCP). A grande maioria desses grupos se organizava clandestinamente e difundia seus ideais de cunho socialista e comunista pouco a pouco. De acordo com Secco (2004), em 1968, os grupos oposicionistas acreditaram em uma remota alteração de regime devido ao derrame cerebral sofrido pelo líder Salazar, ideia frustrada, pois, logo após, o militar Marcello Caetano assume o cargo de Primeiro-Ministro e as esperanças de um governo liberal são tangenciadas. Os grupos de esquerda cresciam juntamente com a insatisfação do atual regime e difundiam-se, principalmente, nos meios estudantis. O PCP era hegemônico entre os operários, ainda que contasse com a presença de outros grupos revolucionários. A década de 1960 é marcada pela crise do Império Português juntamente com a insatisfação de militares, que eram a favor da colonização africana, devido ao agravamento dos problemas sociais e políticos. Conforme Secco (2004, p. 100-101), “as forças armadas portuguesas se encontravam às voltas com uma encarniçada guerra colonial sem perspectivas de vitória”. Ademais, o surgimento de movimentos de libertação nacional nas colônias, como em Angola, Moçambique e Guiné-Bissau, piorava a situação dos militares. Os grupos africanos mais importantes foram o Movimento pela Libertação de Angola (MPLA), a União para a Independência Total de Angola (UNITA), a Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO) e o Partido Africano da Independência da Guiné e Cabo Verde (PAIGC), liderado por Amílcar Cabral. Esses conflitos resultaram em uma perda razoável de militares e, mesmo assim, o governo português mantinha-se insensível as suas reivindicações. 133


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Desse modo, ao passar dos anos, a partir da década de 1960, os portugueses foram perdendo o interesse em fazer parte das forças armadas. O número de inscritos decaía anualmente e pela ausência desses profissionais, foram abertas vagas para oficiais milicianos e recrutas africanos. Essa postura ia de encontro ao que propunha o Estado Nacional, porém não havia outro caminho, senão a democratização do exército para permanência na guerra colonial. Em busca de estratégias militares e principalmente da sobrevivência, em meio às florestas africanas, vários oficiais portugueses se deparavam com leituras de grandes líderes, como Samora Machel, Che Guevara e Mao Tse-Tung (SECCO, 2004). Apesar de os portugueses manterem o domínio dos céus, era em solo que eles permaneciam em desvantagem, pois tanto os armamentos como as estratégias utilizadas pelos africanos eram superiores e eficientes. As ações anticolonialistas cresciam na África de língua portuguesa e, em 1973, a Guiné-Bissau proclama a sua independência e obtém o reconhecimento diplomático. A condenação geral da Organização Das Nações Unidas (ONU) e dos países democráticos ao colonialismo lusitano, a insatisfação dos militares com os combatentes na África, a desmoralização progressiva das Forças Armadas, que recebiam a culpa pelos insucessos do regime, a insatisfação popular e as demandas corporativas dos militares se somaram. O império ruía. E ao se desmanchar dava seus últimos e mais pungentes golpes. Não o sabia. Mas o fazia. Em 20 de janeiro de 1973 tombava, assassinado, o líder maior, Amílcar Cabral. Mas não a Revolução Africana. E menos ainda a Revolução Portuguesa em silenciosa marcha (SECCO, 2004, p. 106).

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O cenário contribuiu para várias articulações políticas, principalmente dos militares, como o general Spínola e os majores Otelo Saraiva de Carvalho e José Eduardo Sanches Osório, que tramavam o golpe contra o Primeiro-Ministro Marcello Caetano. O vinte e cinco de abril de 1974 revelava um exército que não era mais submisso ao governo fascista português e, dessa forma, deu oportunidade para o país libertar-se da política imperial e para que a sociedade civil trilhasse caminhos após o fim do Império. Patrícia Villen (2013) explica-nos que esse cenário de crise portuguesa é bem diferente do “período de ouro”, inaugurado com o Estado Novo, em 1930, momento marcado por uma forte política de valorização das ideologias coloniais, assim como as de igualdade racial. O marketing apresentava Portugal como um país antirracista e de convivência pacífica com as diferenças étnicas. A pseudodemocracia racial portuguesa desse período tenta mascarar a real postura imperialista que ela mantinha com os povos colonizados. Do final do século XIX até 1930, há uma supervalorização do preconceito racial nas práticas coloniais. Os estudos sobre raças e a frequente inferiorização do negro, como indivíduo subalternizado, estabelecem uma hierarquização entre a classe dos senhores e a dos escravos. A constante referência à inferioridade da civilização africana à incapacidade de autogoverno, é o principal argumento de justificação do regime administrativo unitário adotado pelo sistema colonial português da época. Segundo esse modelo de subordinação política, era incontestável a necessidade de um regime de total concentração de poderes nas mãos das autoridades coloniais. O destino das populações das colônias africanas – no que concerne à totalidade dos aspectos econômicos, políticos e sociais – vinham assim, por força e por direito, decidido pela metrópole e exclusivamente ao seu interesse. As bases ideológicas que justificam esse regime autoritário emergem nas palavras de Eduardo Costa, em seu ensaio Princípios da administração colonial, apresentado no Congresso Colonial Nacional de 1901 (VILLEN, 2013, p. 56, grifo do autor). 135


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Já que os povos africanos eram vistos como incivilizados, Portugal desempenhava ativamente a “missão civilizatória” no continente. O suposto atraso cultural da raça negra servia como justificativa para as ações de exploração nas colônias e também para a criação de uma legislação específica para as populações nativas. De acordo com Cabaço (2009), em 1928 é criado o Código do Trabalho dos Indígenas – indígena se refere aos indivíduos de raça negra e seus descendentes – que contribui para medidas como a do Acto Colonial, em 1930. Posteriormente, essa medida vira lei e submete o indígena a um sistema cultural e político complicado, estabelecendo uma política racista que limitava o acesso aos bens comuns, à terra e aos direitos civis. Além disso, o controle dos indígenas, os nativos, a repressão das revoltas e a imposição da obediência eram elementos cruciais da opressão, utilizados para sufocar qualquer manifestação popular. Conforme Patrícia Villen (2013), podemos observar a grande maioria desses discursos, das práticas racistas e da política imperialista portuguesa na Antologia Colonial, obra publicada em 1946 por Marcello Caetano, na época ministro das colônias. As ações nocivas do governo português perante as colônias não se encerram com essas leis, visto que, em 1953, é publicado o Estatuto dos Indígenas Portugueses da Guiné, Angola e Moçambique, que regulamenta a política assimilacionista e segregatória. Os valores difundidos por ele eram de uma missão civilizatória, que visava, a longo prazo, a inserir os assimilados a uma cultura civilizada, desconsiderando os costumes tradicionais dos indígenas. O Estatuto “produzia portugueses” em Moçambique, conforme José Luís Cabaço (2013), e os disciplinava como “bons católicos”, seguidores dos hábitos da metrópole. O colonialismo português pretendia “modernizar” os povos africanos e para a efetivação do projeto ocorreu um genocídio cultural, em detrimento da nova ordem imposta. O indígena só será reconhecido como sujeito, a partir do momento que ele “apaga” os valores da tribo e assimila a cultura portuguesa. Contraditoriamente, vários países do mundo discutiam 136


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a questão racial e a libertação das colônias, o anticolonialismo ganha força e aliados irão lutar, anos depois, nas guerras de revolução. De acordo com Cabaço (2013), em 1945, ocorre o V Congresso Pan-Africano que exigia a imediata libertação das colônias. Em Paris, o órgão Présence Africaine tornou-se um dos principais centros de debates culturais acerca do pensamento africano e contava com a colaboração de Mário Pinto de Andrade, um jovem escritor que se tornará um dos dirigentes do MPLA. Em Lisboa, a Casa dos Estudantes do Império, criada no governo salazarista, que deveria controlar os estudantes oriundos das colônias, serviu como um importante local para se discutir o colonialismo, unir forças contra o monopólio português e também arquitetar as lutas de independência. Embora o governo ultramarino mantivesse medidas impopulares e tentasse sufocar qualquer manifestação insatisfatória, as articulações contra o colonialismo cresciam ao redor das colônias e em países europeus que reprovavam essa medida. Com o passar dos anos, o sentimento de libertação toma conta dos colonizados e culmina nas guerras de libertação. Durante as primeiras décadas do governo de Salazar, Portugal não hesitou em difundir o discurso de inferiorização racial, utilizado por diversas vezes em pronunciamentos públicos. Ironicamente, essas atitudes são negadas, anos depois, pelo próprio Salazar, que repudia as posturas racistas e as vê como elemento exógeno da cultura cristã portuguesa. Essa mudança de pensamento é oriunda das ideologias pós Segunda Guerra que pregavam um princípio da igualdade racial. Há agora uma alteração do foco, ao invés da discriminação das raças, observa-se o caráter cultural do colonialismo português. O país propaga a ideia de universalidade da cultura portuguesa e a sua maneira diferenciada de se relacionar com a pluralidade étnica. De acordo com Villen (2013), seria um tipo de colonialismo missionário que reproduz um discurso de ética cristã e igualdade dos povos, excluindo qualquer tipo de dominação cultural. A relação da cordialidade portuguesa com os colonizados dialoga com os pensamentos de Gilberto Freyre na obra A integração portuguesa 137


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nos trópicos (1958). O sociólogo impele, no argumento central, que o homem português sabia conviver com os nativos e ainda controlava os conflitos existentes. O Brasil segue como exemplo de uma civilização luso-tropical, fruto da junção de portugueses e africanos. Integração portuguesa nos trópicos já é um resultado do entusiasmo do autor pela adopção, se bem que seletiva, do discurso “lusotropical” pelo salazarismo. O discurso gilbertiano passa a assumir um caráter explicitamente ideológico: nessa obra, ele defende a criação de um “corpus” político lusotropical que cubra o conjunto da acção portuguesa nas colônias, desde a cultura à economia, e a assumpção, por todos os colonos, de uma prática de “democracia racial” como afirmação do seu nacionalismo (CABAÇO, 2013, p. 184, grifo do autor).

A construção desse pensamento de Freyre dá-se ao longo da sua carreira acadêmica, fruto de teses e pesquisas que o sociólogo desenvolveu por décadas. O discurso propagado nesses trabalhos é utilizado com bastante eficácia durante o governo salazarista para justificar o imperialismo nas colônias. Anos antes, Casa-Grande & senzala: formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal, publicado em 1933, busca as raízes da cultura brasileira a partir do relacionamento entre portugueses e escravizados. Nesse período, o Brasil buscava a afirmação identitária, iniciada no movimento modernista e solidificada na década de 1930. Conforme Cabaço (2013), Freyre faz um estudo da mistura racial, sustentando-se na própria história, e, para isso, descreve o cotidiano, a culinária, a linguagem, o comportamento, a casa-grande e a senzala. O pensamento de Freyre traduzia a capacidade de adaptação dos portugueses nos trópicos, como se eles possuíssem vocação para interagir com os negros e índios, supondo uma ausência de preconceito racial, visto que o povo mestiço era resultado deste contato. Após a publicação da obra, a conotação que se tinha sobre o mestiço muda de 138


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perspectiva, pois ele passa a ser visto positivamente, um elemento da cultura nacional. De acordo com Villen (2013), a raça deixa de ser um problema e o negro é observado como parte da conjuntura social do país, diferente do que se estabelecia, de maneira negativa, no discurso científico do final do século XIX. Segundo o sociólogo Renato Ortiz (2006, p. 42): Ao retrabalhar a problemática da cultura brasileira, Gilberto Freyre oferece ao brasileiro uma carteira de identidade. A ambiguidade da identidade do Ser nacional forjada pelos intelectuais do século XIX não podia resistir mais tempo. Ele havia se tornado incompatível com o processo de desenvolvimento econômico e social do país. Basta lembrarmos nos anos 1930 procura-se transformar radicalmente o conceito de homem brasileiro. Qualidades como “preguiça”, “indolência”, consideradas como inerentes à raça mestiça, são substituídas por uma ideologia de trabalho.

É nesse sentido que chegamos à tese de Freyre, a mudança da carga negativa do mestiço o coloca em outro patamar, o da sociedade híbrida e equilibrada. Através da mistura racial, chegava-se a um novo território civilizacional, o luso-tropical. Ao se falar desse caráter específico do mulato, fruto da colonização portuguesa, afirma-se que o homem português mantinha um diferencial, era universalista e conciliava a dicotomia entre a Europa e os países tropicais. Portanto, reconhecemos a importância do conjunto da obra de Gilberto Freyre, não apenas no contexto Brasil, mas de nível internacional. A partir da defesa das suas teses, há uma mudança de conjuntura, um “salto” ao se tratar de análises culturais e de reconhecimento acerca da importância das etnias negra e indígena na formação social brasileira. No entanto, afirmamos que as teorias apresentadas referem-se à cultura como um veículo de legitimação das práticas coloniais portuguesas e, conforme Villen (2013, p. 90): 139


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O colonialismo aparece aqui, sobretudo, como uma necessidade cultural, como algo muito diferente de uma prática de exploração exercitada tão somente a serviço de interesses econômicos. A alusão à tese de Gilberto Freyre revela claramente o esforço do discurso colonial desse período para definir um ideal de cultura portuguesa. É a cultura portuguesa e não a raça que definiria a identidade do ser português. Uma cultura universalista – porque essencialmente cristã e igualitária – e que se confirma, por meio da tese de Freyre, como aquela que menos se comprometia com o etnocentrismo ocidental.

É necessário refletir sobre estas práticas a fim de compreender as relações entre o Brasil e as colônias portuguesas na África. A guerra colonial, por exemplo, teve apoio da comunidade europeia e, principalmente, dos Estados Unidos e da Espanha. Aqui no Brasil, o presidente Juscelino Kubitschek defendia-a e valorizava-a como uma missão portuguesa em solo africano. A obra com a qual iremos dialogar expõe minúcias da guerra, da desigualdade, da injustiça e da supremacia racial entre brancos e negros. O narrador ora nos mostra a face dos oprimidos pela guerra, ora a loucura de quem a comanda. São dicotomias que caminham no mesmo plano e que são desmembradas por vozes que “bebem” do mesmo cenário: a guerra colonial.

Vinte e Zinco: memória e história

A narrativa se inicia com a dedicatória de uma das personagens, a vidente Jessumina – mulher temida pelos seus poderes sobrenaturais e o fazer das feitiçarias. O aforismo relata que o vinte cinco (data simbólica que representa o dia independência moçambicana) é dedicado aos pretos e pobres, viventes do solo pátrio, responsáveis pelas lutas contra o sistema opressor do colonialismo. Apesar de fazer alusão a um momento da história de Portugal, Vinte e Zinco (2004) entrelaça-se com a história de Moçambique, principalmente por 140


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tratar de embates entre colonizado x colonizador, brancos x negros e guerra de libertação. É nesse sentido que pretendemos aproximar o texto fictício à história. Para isso, utilizamos a memória coletiva das personagens para evidenciar as relações entre a narrativa e a história. O primeiro vestígio da memória que podemos encontrar na obra são as dedicatórias, os provérbios, as adivinhas e os aforismos. Elas são marcas orais, deixadas ao longo da narrativa e que ganham sentido à medida que os capítulos são desenvolvidos, ou seja, entrelaçam-se com o tecido narrativo de forma cabível. A palavra, seja ela oral ou escrita, é a voz geralmente de desconhecidos, que inicia cada capítulo. A narração relata o dia de um dos agentes da PIDE (Polícia Internacional e de Defesa Do Estado), Lourenço de Castro – filho do falecido Joaquim de Castro – e também aponta os horrores que se passam em sua residência, bem como na prisão que ele comanda. Embora Lourenço tenha um comportamento infantil em casa, no local de trabalho é cruel e sem piedade. A mãe enxerga-o como um pobre homem que trabalha bastante e não perde nenhum tempo com diversão. A chegada dele vem acompanhada com desassossegos do trabalho de inspetor na savana africana: O inspector Lourenço arrasta-se para a casa de banho e lava as mãos. A água corre como se não bastasse um rio para o limpar. — Por que não confessam? Custava alguma coisa... O sangue vai gotinhando na bacia, Ele estende os braços, ainda húmidos, A mãe enxuga-os, com terno vigor (COUTO, 2004, p. 2).

Lourenço sempre chega do trabalho com as mãos sujas de sangue e responsabiliza os próprios prisioneiros, que são negros, por essa situação. As vítimas ocupam o lugar inverso e são responsáveis pelas agressões que ocorrem com eles mesmos na prisão. Lourenço é o perfil agressivo do processo 141


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colonial2, aquele que causa dor e pratica as mais terríveis formas de tortura. No colo maternal é infantilizado, volta a ser criança, só dorme se estiver com uma fralda e com um cavalinho que o acalenta. De acordo com Carmem Lúcia Tindó Secco (2008), ele não se via insano, pelo contrário, acreditava que suas ações eram “normais”, em casa ou no trabalho. A loucura é um estado que se faz presente na residência de Lourenço, chamada de casa colonial, e também é observada em sua Tia Irene, já a tristeza e a melancolia são vistas em Dona Margarida, irmã de Irene e mãe de Lourenço. Os comportamentos desses personagens se agravam, justamente, pela existência do colonialismo e da guerra entre Portugal e Moçambique. Lourenço de Castro é o que mais nos chama a atenção, ele mantém uma postura civilizatória em África, porque acredita que a missão dos portugueses seja “domesticar” povos pagãos. Esse pensamento é o grande alicerce do colonialismo e acompanha-o desde o século XVI, como discurso reproduzido para os povos colonizados. Portugal cumpria essa “missão”, gradualmente, pois expandia estrategicamente seu monopólio aos países africanos de língua portuguesa. De acordo com Albert Memmi (2007), o colonizador cumpre muito bem a função de menosprezar o subalternizado, colocando-o em uma condição cultural e socialmente inferior aos padrões da “civilização”.

2. Na verdade, cremos que a existência do processo colonial é por si só, abusiva e agressiva. Sobre esse aspecto, citamos a inferência de Anibal Quijano (2014) ao destacar que a população do mundo foi classificada por raças e dividida entre os superiores europeus (dominantes) e os inferiores não europeus (dominados). Quijano (2014) completa que a cor da pele foi definida como uma marca racial significativa, que é reproduzida pelos dominantes aos povos dominados. Nesse contexto, encaixa-se a personagem Lourenço, que expõe, claramente, o ódio que mantém pelos moçambicanos e pelos negros. Assim, observamos que esse acontecimento não se relaciona apenas com as tensões de poder, mas também pelas questões raciais. 142


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A desvalorização do colonizado se estende assim a tudo o que ele toca: inclusive ao seu país, que é feio, quente demais, espantosamente frio, malcheiroso, de clima viciado, com a geografia tão desesperada que o condena ao desprezo e à pobreza, à eterna dependência (MEMMI, 2007, p. 104).

Portanto, há a reprodução de um discurso opressor com o intuito de transformar-se em uma verdade para, assim, o próprio colonizado absolvê-la e ver-se em condição inferior. São essas as estratégias utilizadas pelo personagem Lourenço a fim de justificar a presença da polícia ditatorial portuguesa em Moçambique. O agente da PIDE faz lembrar, por suas ideias, vários líderes do salazarismo, como o primeiro-ministro português, Marcello Caetano, que pregava a postura paternalista sobre a África. Inclusive, segundo Cabaço (2009), o Brasil foi um dos refúgios que o abrigou após a Revolução de 1974. Marcello Caetano chegou até a publicar um livro intitulado Testemunho e nesse material fica claro o itinerário luso-tropical, que Portugal adotou após o término da Segunda Guerra. Lourenço é quem comanda as ações da PIDE no país; a mãe é imparcial e encobre suas ações; e a tia, tida como louca, rejeita o modo europeu de ser e, desde a chegada a Moçambique, mantém contato fraternal e amoroso com os habitantes do lugar, para desgosto dos familiares. Eles são os únicos brancos do local e isso nos revela realidades dicotômicas: brancos colonizadores e negros colonizados. O ódio que Lourenço nutre contra os negros é outro reflexo da intolerância colonial. Conforme Cabaço (2009, p. 262):

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Os colonos viviam protegidos em seus privilégios pela legislação e pelo racismo reinante. As precárias condições de subsistência e os salários baixos, quando não a miséria, dos africanos estavam na origem da acumulação que permitia sua elevada qualidade de vida e de sua acumulação. Como Romeu Ferraz de Freitas menciona em seu relatório, não era a competência o critério predominante, pois mesmo quando a capacidade do colonizado “por vezes superava” a do colono, este permanecia em posição de superioridade social graças à cor da pele. Exploração e discriminação eram indissociáveis da vida dos detentores do privilégio, de suas motivações e anseios.

Albert Memmi (2007) também problematiza essas questões e conclui que, apesar da colônia ser vista como um lugar desimportante, é nela que os direitos e as regalias são assegurados, o salto na carreira profissional, o avanço nos negócios e para os bem formados têm-se as melhores promoções. Notamos que a cor da pele é outro fator importantíssimo para a permanência desses privilégios. Sendo assim, a colônia se tornar o lugar ideal para os lucros e a satisfação pessoal do homem branco europeu. Lourenço e sua família desfrutavam de muitas regalias: moravam na casa-grande e tinham ao redor várias pessoas que não ganhavam absolutamente nada para servi-los. A maneira racista e hostil com a qual ele enxergava os moçambicanos foi a força motriz para alimentar cotidianamente as torturas na cadeia. As ações realizadas por essa personagem, e que chegam através de uma voz preocupada com tensões referentes à intolerância racial e ao monopólio cultural europeu (é como se o narrador cumprisse a “missão” de denunciar a subalternização dos moçambicanos perante o Estado português), fazem lembrar passagens da ocupação colonial no país e da severidade desse processo. A PIDE, citada várias vezes na obra, foi um órgão que realmente existiu durante a guerra de libertação e serviu para controlar e oprimir posturas e 144


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manifestações que se opunham ao sistema colonial. Inclusive, a ideologia que solidifica o colonialismo português é a da supremacia racial: os brancos são indiscutivelmente superiores aos negros e isso perpassou os séculos como uma “verdade” para aprisionar os povos colonizados. Na verdade, esse discurso ilustra bem as relações de poder criadas no e durante o colonialismo e que são tencionadas na narrativa, por conseguinte consideramos pertinente demonstrá-las e relacioná-las à história do país. Outro ponto que nos chama a atenção na construção do texto é a inserção dos aforismos no início dos capítulos. Eles cumprem um papel importante no desenvolver da narrativa, por dialogarem com a composição das personagens. As datas, também postas na parte inicial, são marcadas pelos pensamentos de Irene, que se misturam e ora mostram a face da sonhadora, ora a da feminista, defensora das minorias e da liberdade feminina. Sendo assim, destacamos um deles, paráfrase de Simone de Beauvoir, que ratifica a ideia de transculturação que defendemos neste mesmo capítulo, 3“Ninguém nasce desta ou daquela raça. Só depois nos tornamos pretos, brancos ou de outra raça qualquer” (COUTO, 2004, p. 12). Esse olhar nos lança indagações sobre as trocas culturais existentes entre os sujeitos sociais, mas que as concepções racistas/autoritárias desconsideram/negligenciam a possibilidade de sermos multifacetados e encaminham-nos para um pensamento homogêneo. Ademais, o fato de ser branco ou negro é visto como imposições construídas socialmente, no caso da narrativa pelo próprio colonialismo. O poder e a questão racial são os detentores das formas de aprisionamento dos povos 3. A frase citada faz uma intertextualidade com a célebre passagem “Ninguém nasce mulher: torna-se mulher”, presente na obra “O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir. A escritora francesa discorre sobre os lugares sociais de pertença para homens e mulheres, bem como os mitos, as construções biológicas entre ambos. Ensaios de gênero. Disponível em: <https://ensaiosdegenero.wordpress.com/tag/simonede-beauvoir/page/2/>. Acesso em: 17 out. 2016. 145


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colonizados e são descritos pela personagem. Ela escreve, em seu diário, sobre as atrocidades cometidas pelo sobrinho, oriundas da cultura de intolerância racial que marginaliza uma etnia em detrimento de outra. Irene tem um comportamento diferente dos demais familiares. Amiga dos negros, incomoda a irmã e principalmente o sobrinho. Ela não era a única que causava desconforto ao agente da PIDE, que mantinha um ódio de raça, em especial, ao cego Andaré Tchuvisco e ao mulato Marcelino. O cego desempenhava uma função importante: O cego Andaré Tchuvisco: o que ele via eram futuros. Nada em actual presença. Sabia de suas tintas, seus pincéis. Ele, pintor de um único objecto: a cadeia da PIDE. Andaré pintava e repintava apenas as paredes da prisão. As gentes se duvidavam: como alcançava esse moço pintar, ele que não via nem nariz nem palmo. Na verdade, Tchuvisco conhecia a prisão de cor e salteado (COUTO, p. 17).

O trabalho do cego é valoroso, pois tanto Lourenço como o seu falecido pai manchavam as paredes da cadeia de sangue, por isso tinham que as pintar de branco e o chão de vermelho e Andaré fazia isso cotidianamente. O reparo deveria ser feito todos os dias para evitar a aparição das marcas de tortura. Os prisioneiros eram espancados, muitos até ao óbito. A pintura era uma forma de ocultar as denúncias de maus-tratos e abusos de poder. A partir dessas informações inseridas na narrativa, podemos imaginar o quanto era opressora a realidade. As cadeias da PIDE abrigavam aqueles que contestavam, confrontavam o sistema ou se aliavam ao partido Comunista e disseminavam ideais socialistas. A postura adotada pela polícia se assemelha também à medieval, em que as vítimas sofriam torturas cruéis até a morte. Apesar de séculos de diferença, a animalização dos seres humanos e a suspensão dos direitos civis retornam com voracidade na guerra colonial. Segundo o filósofo Michel Foucault (1999), o suplício é uma pena corporal 146


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valorosa que visava à crueldade. Desse modo, podemos transferir essa visão das cadeias francesas do século XVIII para as da PIDE, pois os objetivos são os mesmos, ou seja, causar o sofrimento dos presos, a degradação, a privação do direito de viver e a manifestação do poder. São esses elementos constitutivos da tortura que perpassam a personalidade de Lourenço de Castro e dos seus fiéis ajudantes. Já o mecânico Marcelino representava a classe de oposição: era filho de uma negra e foi criado sem conhecer o pai, um branco português que não assumiu o filho. Marcelino era revoltado com o sistema opressor, lutava a favor da libertação colonial e da implantação do socialismo. Diariamente, tentava convencer quem o rodeava a lutar pela liberdade. O seu tio Custódio, dono da oficina onde ele trabalhava, debatia com ele acerca da problemática em questão, no entanto, o tio aceita uma proposta de trabalho para ser responsável pelos serviços de manutenção das viaturas portuguesas, a contragosto da família que o vê como um traidor até o dia do seu falecimento. Entretanto, Custódio roubara do quartel vários papéis de cunho político e entregava-os a Marcelino. A posse desses documentos portugueses contribuiu para a futura prisão do mecânico, prática que durante o salazarismo, torturou e matou opositores do regime. Apesar de a estória se centrar no dia a dia de Lourenço de Castro, as mulheres, Irene e Jessumina, atuam como portadoras de vozes plurais, por resgatarem memórias e transitam entre os dois mundos, o natural e o sobrenatural. Irene encanta-se com as terras africanas e deixa em segundo plano a cultura europeia. Ela escreve em seu diário reflexões sobre o estar em África e, a mulher tida como louca, revela ser uma pessoa sensível e crítica. As atrocidades da repressão e o racismo desenfreado são pontos que não passam despercebidos do seu olhar. As atitudes dela são as que mais irritam Lourenço de Castro, racista, torturador dos negros. 147


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Irene resgata, em sua escrita, não apenas uma memória do horror, da desigualdade, mas também de sonhos. Os que partiram de modo cruel, vítimas da guerra, são lembrados com versos carinhosos e perpassados de metáforas que ilustram quão sofrida foi a luta pela liberdade. O grande amor de Irene, Marcelino, o protagonista dessas ações, contrapõe-se ao sistema em vigor e não desiste de suas ideologias, mesmo que elas o levem para um caminho sem volta, o da morte.

O homem tinha ingressado nas tropas coloniais – em vez de cumprir fidelidades à pátria lusitana ele encontrou lá uma outra pátria: Moçambique. Veio contaminado por essa doença – sonhar com futuros e liberdades. Parecia que ele tivesse presenciado horrores e massacres lá nas frentes de batalha. Também o doutor Peixoto e o padre Ramos lhe haviam falado de atrocidades. Excessos, protestava seu filho Lourenço, em que guerra não há excessos? O que dá estranheza na guerra é que ela não nos sai da memória de tal modo que dela não recordamos exactamente nada. É como se a memória fosse, faz conta, um mapa dos sítios que não há (COUTO, 2004 p. 47).

A fala acima é de Margarida, mãe de Lourenço. Ela também não concordava com o envolvimento da irmã e o fato de o mulato não servir à pátria portuguesa. Mas por qual motivo ele ajudaria “os irmãos” do além-mar? Jamais conhecera o pai, a mãe sempre fizera questão de afirmar que ele havia morrido. Marcelino cresceu sem conhecer uma parte das origens, manteve contato com um lado dela, a do horror e da dominação. Devido a isso, nutria uma revolta dentro de si, que comportava um sentimento, oriundo das mazelas sociais que era obrigado a vivenciar cotidianamente. Era tratado com hostilidade e por isso não teria razão para servir àqueles que escravizavam o seu povo.

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Em virtude do envolvimento com a política, o mecânico foi preso. No cárcere é torturado pelas próprias mãos de Lourenço de Castro, motivado pelo ódio racial e pelo relacionamento que o mulato mantinha com a portuguesa. Ele não resiste à forte violência e tira a própria vida, cortando os testículos com um osso de galinha e sangrando até a morte. Após sua prematura morte, aconteceu, em Portugal, a Revolução dos Cravos. Esses dois eventos são encadeados, o que nos leva a refletir sobre o caráter simbólico da morte do mecânico, um personagem que durante a narrativa se opõe aos desmandes do governo autoritário e que, mesmo sabendo das consequências que a sua escolha causaria, não hesitou em lutar contra o sistema em prol da expulsão das tropas portuguesas de Moçambique. O romance descreve o impacto que esse acontecimento causou em Moçambique, como: o desespero de Lourenço, o alívio de Margarida, a revolta dos oprimidos, a libertação dos presos e o bálsamo de sentir-se livre. Após a Revolução, a vida do agente da PIDE, Lourenço de Castro, mudou repentinamente. De homem opressor e respeitado passou a comportar-se tal qual uma criança, vulnerável e fazendo birra por não aceitar a queda do regime autoritário. Se não podia mais matar, espancar e humilhar os moradores do local, o que lhe restava fazer? Embora tenha tratado muito mal Jessumina e Andaré Tchuvisco, recebeu deles ajuda. Ambos tentaram explicar a real situação em que o país se encontrava a fim de despertá-lo, mas para Lourenço a “África teve duas grandes tragédias: uma foi a chegada dos brancos; a outra vai ser a partida dos brancos” (COUTO, p. 87). Ele não aceitou o término da política vigente, bem como os governantes portugueses que não se assombravam com os números de militares mortos em conflitos em terras africanas. A postura de Lourenço dialoga com o próprio slogan que Portugal criou nos últimos anos da guerra na colônia: “Moçambique só é Moçambique porque é Portugal” (ROSÁRIO, 2007, p. 180). Isso implica dizer que a essência de um 149


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país só era possível, mediante a vigência do colonizador. Ora, esse pensamento de superioridade não nos impressiona quando se trata de colonialismo. A supremacia está tão incorporada ao cotidiano que faz com que personagens como Lourenço de Castro não se deem conta do término da guerra e permaneçam com a mesma postura de antes. Ao voltar para a composição pessoal do personagem, deparamo-nos com uma revelação surpreendente acerca do pai do rapaz, contada pelo cego Andaré. Joaquim, que tanto disseminava ofensivamente a superioridade racial dos brancos sobre os negros, após as sessões de tortura, mantinha relações sexuais com as vítimas. Descobrir esse fato fez o agente ficar ainda mais confuso: o pai nunca foi carinhoso, pregava “macheza” e não admitia fragilidades. O filho crescera imerso nesse ambiente de secura e poucas palavras amáveis. Talvez a raiva que sentisse dos negros fosse oriunda dessas frustrações familiares, mas que ganhavam corporeidade nas atitudes xenófobas do rapaz, um ódio alimentado pelo sistema colonial. Frantz Fanon, em Pele negra, máscaras brancas (2008), analisa como se dá a negação do racismo na França, além de problematizar os seguintes temas: diáspora africana, a psicologia, a descolonização, as ciências e a filosofia. No capítulo “Sobre o pretenso complexo de dependência do colonizado”, ele critica as teorias de Monsieur Mannoni por dar explicações falaciosas sobre o racismo colonial. Fanon é cirúrgico ao examinar as ligações entre as questões raciais e as conjunturas da sociedade. Trazemos essa alusão para a discussão, porque se relaciona diretamente com o racismo promovido pelo colonialismo português, já que, para o autor, a segregação racial não está dissociada das expansões coloniais, seja ela em qualquer parte do mundo. Seguindo o percurso narrativo, chegamos ao encontro da mãe de Lourenço. Após a morte do cônjuge, vivia apenas para servir ao filho e tentava aconselhar a irmã, em vários momentos, a não se misturar com os nativos –, na verdade, sentia uma imensa inveja, pois Irene era feliz. Margarida achava 150


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que a irmã era louca – até ler o seu diário e descobrir que Irene, apesar de sofrer pela perda do amado Marcelino, reconstruiu-se, lutou pelos ideais dos que partiram e, além disso, para manter a memória dele viva em seu corpo, melou-se de lama para relembrar os tempos de amor. Assim, soube o porquê do comportamento de Irene. A Margarida é dada a voz da subserviência. Ela sai da terra natal para a África, em virtude do trabalho do esposo, anula-se por toda uma vida e, no término da narrativa, parece que um sopro de determinação ingressa em sua alma, pois segue o curso do rio e parte do país sem se despedir da família. É para as terras do além-mar que ela regressa, sem remorso do que ficou para trás. A adivinha Jessumina contribui para a fuga da portuguesa. Cheia de mistérios, conhece as águas muito bem, diz que morou durante alguns anos no fundo do rio, consegue enxergar o futuro e também desvendar fatos do presente. Ela é uma mulher querida na região, exceto pelos brancos que temem os efeitos dos feitiços elaborados por ela. Por fim, Lourenço de Castro e Chico Soco-Soco são assassinados na prisão que antes coordenavam. Entende-se que Irene seja responsável pela morte do sobrinho devido à seguinte fala: — Mataram Lourenço? — Nós matámos o pide preto. — Então quem matou o branco? — Cada qual mata o da sua raça. E o preso, sem mais, se extingue no escuro do corredor. O cego fica só, com essa dúvida roendo-lhe a mente. Quem matara Lourenço de Castro? Por momentos, naquele silêncio de tumba, lhe parece reconhecer um perfume familiar. É aroma de mulher. Num instante, as memórias se avalancham. Passam Custódio, Marcelino, Dona Graça, os idos e revindos, cores antigas que agora se convertiam em sons. Das lembranças emerge uma indefinível voz que murmura o que ele, no momento, deve executar (COUTO, p. 91-92).

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Andaré Tchuvisco encontra o corpo de Lourenço dentro da cadeia e surpreende-se ao encontrá-lo naquele local, pois o lugar que antes era utilizado como tortura dos negros agora abrigava a morte de um branco, o chefe. Por mais que os presos quisessem vingar-se do indivíduo, o texto deixa claro que eles não foram os responsáveis por sua morte. A mãe de Lourenço partiu mais cedo e é a única branca, residente na ilha seria Irene, vista pelos arredores da prisão minutos antes. Os ex-presidiários exterminam o torturador Chico-Soco, o traidor que servia ao governo português. Desse modo, observamos, no decorrer da construção narrativa, traços, situações e episódios que levam à Revolução dos Cravos e ao fim das tropas portuguesas em Moçambique. O texto tem o propósito de demonstrar, através de vestígios da memória dos personagens, partes da história de Moçambique, evidenciando as atitudes racistas e arbitrárias das tropas coloniais e de seus respectivos representantes. A missão colonial em África serviu para aumentar o número de mortos, desgastar as relações políticas entre as colônias e expandir a fome e a miséria nos países africanos de língua portuguesa. Lourenço de Castro representa apenas uma pequena parte, uma breve alusão do que realmente aconteceu nos anos da guerra colonial. Sendo assim, citamos Francisco Noa: Entre outras funções, a memória funciona como ordenação, reconstituição, restituição. Mas sobretudo ela garante a dotação de sentido para o que, aparentemente, não tem ou perdeu sentido. Transversal a quase todos os textos analisados, prevalece uma memória coletiva, que é uma memória comunitária, isto é, espaço compartilhado de significações ou, de solidariedade sentida (afetiva ou tradicional) dos indivíduos (NOA, 2015, p. 85).

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CONCLUSÃO A memória recupera esses fragmentos históricos mimetizados pela ficção. Desse modo, Vinte Zinco (2004) narra a presença das forças portuguesas em Moçambique, bem como as torturas cometidas pela PIDE nesse período. Essas sensações são vivenciadas devido à conexão entre texto/leitor. A memória, fio condutor da estória, traz à tona traços históricos, que de fato aconteceram, mas que são reinventados no espaço ficcional, ao passo que avançamos na narrativa e se faz presente a partir de datas, aforismos, alusões históricas e também no diário de Irene. Nessa obra, o narrador em terceira pessoa adentra no dia a dia da família Castro, dos moradores da redondeza e nas reflexões dos cadernos da tia de Lourenço. A memória, oral e coletiva, perpassada no texto a partir das confissões dos personagens, leva o leitor aos dias que antecedem a Revolução dos Cravos. A característica temporal é posta na narrativa através das alusões das datas postas no início dos capítulos. Sendo assim, o leitor que conhece o fato histórico é conduzido a imaginar, ao menos, o que acontecerá no dia 25 de abril, dia importante para os portugueses, mas, sobretudo, para os moçambicanos, e que contribui para a efetivação da guerra de libertação, ocorrida um ano depois. O evento de 25 de abril poderia ser narrado pelo olhar de um português, porém a impressão que ficamos é de uma estória contada sob a ótica do colonizado, principalmente, por destacar as atitudes segregatórias dos colonizadores. É nesse sentido que a recuperação da memória é imprescindível para evitar o esquecimento das atrocidades coloniais e da opressão neocolonialista.

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Apesar de dolorosa, a reconstituição do passado é necessária, mas nem sempre ela acontecerá de forma “natural”, seguindo um fluxo de acontecimentos. Em outros romances do autor, destacaremos que ela também não será bem-vinda, visto que recupera situações que já não cabem no presente ou que comprometem o andamento do futuro, principalmente porque o sentimento de utopia quanto ao rumo da nação é substituído pelo da distopia, tendo em vista a série de frustações sociopolíticas que vão acompanhar os moçambicanos, após a independência. Não obstante, percebemos que em Vinte e Zinco (2004), a narração dos traumas da guerra é parte constituinte da tessitura romanesca do autor, elucidada pelo diário da personagem Irene. Nesse sentido:

A memória continua a pontuar como elemento fundamental da literatura de Mia Couto, a necessária interrogação do presente sobre o passado e sobre o futuro. Essa questão aparece na obra ficcional de Mia Couto e também nos seus textos de opinião, o que demonstra que a memória é uma constante que toma forma variada na obra do escritor. Muitas vezes, o passado é tão desconhecido como o futuro. Se dele só existem ruínas, tais ruínas, no entanto, hão de servir ao apagamento de certa história, e permitir a criação de outra ordem (MACÊDO; MAQUÊA, 2007, p. 51).

A memória é um elemento presente na literatura miacoutiana, mas ela não é construída de maneira uniforme, pelo contrário, é pluralizada, como as críticas acima mencionam. Inclusive, Vinte e zinco é uma publicação que não possui um grande prestígio literário, ao se comparar com outras obras do autor como é o caso de Terra sonâmbula, A varanda do frangipani e O último voo do flamingo. Isso ocorre por alguns motivos, por exemplo: o texto é advindo de uma encomenda de editora; aborda um tema controverso; mantém uma linguagem que se diferencia bastante do primeiro romance, pois não se preocupa em enfatizar elementos estéticos já conhecidos como a prosa poé154


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tica e os neologismos; em virtude desse e de outros fatores, apresenta uma qualidade literária inferior. No entanto, essas características não restringem o nosso recorte de análise, pois o que pretendemos discutir é como a memória de guerra é reconstruída e se entrelaça com os episódios históricos.

REFERÊNCIAS

CABAÇO, José Luís. Moçambique: identidade, colonialismo e libertação. São Paulo: Unesp, 2009. CÉSAIRE, Aimé. Discurso sobre o colonialismo. Lisboa: Sá da Costa, 1978. COUTO, Mia. Vinte e zinco. 2 ed. Lisboa: Caminho, 2004. FREYRE, Gilberto. A integração portuguesa nos trópicos. Lisboa: Ministério do Ultramar, 1958. FREYRE, Gilberto. Casa-Grande & Senzala. 51 ed. São Paulo: Global, 2006. FANON, Frantz. Pele negra máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008. MACEDO, Tânia; MAQUÊA, Vera. Literaturas de língua portuguesa: Moçambique. São Paulo: Arte e Ciência, 2007. MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido de retrato do colonizador. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. NOA, Francisco. Perto do fragmento, a totalidade: olhares sobre a literatura e o mundo. São Paulo: Editora Kapulana, 2015. ORTIZ, Renato. Cultura brasileira e identidade nacional. São Paulo: Editora Brasiliense, 2006. ROSÁRIO, Lourenço Joaquim do. Singularidades II. Maputo: Texto Editores, 2007. SECCO, Carmem Lucia Tindó Ribeiro. A magia das letras africanas: ensaios sobre as literaturas de Angola e Moçambique e outros diálogos. 2 ed. Rio de Janeiro: Quartet, 2008. SECCO, Lincoln. A revolução dos cravos e a crise do Império português: economia, espaços e tomadas de consciências. São Paulo: Alameda, 2004. VILLEN, Patrícia. Amílcar Cabral e a crítica ao colonialismo: entre a harmonia e a contradição. São Paulo: Expressão Popular, 2013.

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Resumo Analisa-se que ser professor inglês no século XXI é concatenar metodologias e abordagens apropriadas ao nível intelectual do aluno, visando sua motivação, observando seus estilos de aprendizagem e inteligências, e a regência de sala que resulta positivamente, além de levar o aluno a desenvolver uma aprendizagem de cunho educacional-pedagógico e ético-inclusivo e competências cognitivas. Na “era pós-método”, o professor fundamenta sua prática em princípios pedagógicos para o “tratamento” do que deve ser ensinado/aprendido, avalia o aluno a partir da experiência do aprender e para o aprender, é reflexivo, levando o aprendiz a entender que um ensino/aprendizado baseado na estrutura da língua não mais corresponde às necessidades daqueles que estudam a língua inglesa, em um contexto de interculturalidade no sentido de desenvolver seu conhecimento a partir de suas experiências e das vivenciadas por outros indivíduos, encontrados em textos literários, resultando, assim, um novo conhecimento. Palavras-chave: Ensinar/aprender inglês. Professor reflexivo. Pós-método. Interculturalidade. Literatura.


DO PÓS-MÉTODO À LITERATURA: ENSINAR/ APRENDER INGLÊS NO SÉCULO XXI Dulce Porto Rodrigues1

INTRODUÇÃO A partir dos anos 80 do século XX, o ensino de língua estrangeira, no caso, o ensino da língua inglesa, passou por grandes transformações, tomando uma visão mais ampla do que é ensinar/aprender uma língua estrangeira a partir de novas perspectivas que não apenas valorizam métodos e técnicas, mas, principalmente, pedagogias. Dessa forma, mais e mais, surgem novas abordagens de ensino/aprendizagem da língua inglesa baseadas em princípios pedagógicos que têm proporcionado desafios não apenas ao aprendiz, como também ao professor, desde que, mais e mais, os objetivos vão da comunicação efetiva ao estímulo, à motivação para a aprendizagem através de tudo que faz parte da vida do aprendiz, dentro de uma visão intercultural. Com a nova era – a “era pós-métodos”, vários fatores devem ser levados em consideração – da preparação do professor, sua qualificação, ser um profissional reflexivo, às abordagens metodológicas e pedagógicas e à visão holística do desenvolvimento do aluno que perpassa, não apenas sua cultura, como também a do outro. Nesse sentido, a história, a cultura e, consequentemente a literatura da língua alvo é inserida nessa sala de aula, trazendo um novo pensar sobre a língua, a partir de diferentes situações e pontos de vista. 1. Professora de Língua Inglesa, Literatura Inglesa e Norte-Americana da FAFIRE. Atua nos Cursos de Pós-Graduação Língua e Literatura Inglesa, Linguística Aplicada ao Ensino de Língua Inglesa e Língua Inglesa: metodologia da tradução. Mestre em Educação pela Framingham State University. E-mail – ddporto@globo.com 157


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DESAFIOS DE UMA ERA O ensino de língua estrangeira, especialmente da língua inglesa, tem mudado bastante desde as últimas décadas do século XX, tornando-se uma tarefa mais complexa e dinâmica, desde que seu objeto de conhecimento – o uso efetivo da língua, passou a ser a prioridade. Até o começo dos anos 1970, a regência de sala de aula era vista como algo à parte do ensino propriamente dito e, dessa forma, apenas alguns poucos professores levavam em consideração, de forma critica, essa característica provavelmente determinante para o sucesso, ou não, de seus alunos. Essa atividade pedagógica envolve aspectos tais como trabalhar em um ambiente acolhedor, utilizar diferentes métodos e as mais várias abordagens pedagógicas, ferramentas e materiais, aspectos que podem ser decisivos no desenvolvimento do conhecimento, a partir de um planejamento eficaz. Hoje, no século XXI, tem-se a consciência da importância da regência de sala de aula e sabe-se que esse aspecto do processo ensinar/aprender é a base, o terreno em que todo e qualquer componente do referido processo vai se caracterizar como bem-sucedido, ou não. Assim, constata-se que a regência efetiva será determinante para o sucesso do aluno, com implicações não apenas intelectuais como também, sociais. A regência efetiva cria condições necessárias ao desenvolvimento do conhecimento, o que vai do planejamento às regras de sala de aula, do uso de metodologias e abordagens apropriadas ao nível intelectual do aluno, ao estímulo e à motivação, como também aos seus estilos de aprendizagem e inteligências. Como afirma Howard Gardner(1993, p.6) “Em uma visão pluralista da mente, identifica-se variadas facetas de cognição, reconhecendo-se que as

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pessoas têm diferentes e contrastantes poderes cognitivos e contrastantes estilos cognitivos”.2 Ser professor deste século, então, caracteriza-se por, especialmente, alguém ser capaz de concatenar de forma efetiva e ética, todos os aspectos que essa profissão por si demanda. É expectativa geral que o professor possa ser aquele que antecipa e resolve problemas de difícil resolução, é aquele que vai fazer seu aluno desenvolver o pensamento crítico e fazer esse aluno tornar-se engajado, de forma que, este atinja suas aspirações e satisfaça suas necessidades acadêmicas. É a partir da reflexão diária que o professor consciente faz sobre o que precisa ser construído e reconstruído, tanto em relação a si próprio como em relação ao seu aluno, que ele confirma seu fazer profissional, uma vez que “O processo de ensino reflexivo dá suporte ao desenvolvimento e manutenção do profissional especializado.[...]. Dada à natureza do ensinar profissionalmente, aprendizagem e competência nunca deveriam parar(POLLARD, 2008, p. 5).3 Dentro dessa visão, a sala de aula torna-se um ambiente complexo e dinâmico onde ocorrem oportunidades de aprendizagem e interação ético-social. Como diz Douglas Brown(in: RICHARDS e RENANDYA, 2002, p.11) “Que as abordagens aplicadas ao ensino de línguas sejam aquelas teorias que tenham por base tudo aquilo que acontece em uma sala de aula”.4 Portanto, o professor é a chave de qualquer mudança e progresso de uma sala de aula e, 2. Tradução nossa. “It is a pluralistic view of mind, recognizing many different and discrete facets of cognition, ackowledging that people have different cognitive strength and contrasting cognitive styles”. 3. Tradução nossa. “The process of reflective teaching supports the development and maintenance of professional expertise [...].Given the nature of teaching, professional development and learning should never stop”. 4. Tradução nossa. “One’s approach to language teaching is the theoretical rationale that underlies everything that happens in the classroom”. 159


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como tal, é imperativo que este tenha também como prioridade, seu desenvolvimento profissional. Penny Ur (apud RICHARDS e RENANDYA, 2002, p. 385) levanta questões fundamentais à formação continuada do professor: Como parte de uma comunidade de aprendizes qual de nós está interessado em adquirir novos conhecimentos e experimentar novas ideias? Nos comprometemos a alcançar novos padrões profissionais? Somos suficientemente autônimos a ponto de estabelecermos padrões de competência que realmente atenda às necessidades pedagógicas de nossos alunos?5

Dessa forma, a partir da qualificação do professor, a aprendizagem ganha um caráter humanístico, dentro um contexto educacional-pedagógico e ético-inclusivo, em que todos têm oportunidade de chegar ao estado desejado, de alcançar o objetivo daquilo que estudam - a aprendizagem efetiva; e quanto ao professor, suas habilidades devem sempre ir além do domínio daquilo que ensina. Este deve desenvolver sua capacidade de tomar decisões que visam prevenir e resolver problemas e introduzir em sua sala de aula a organização do espaço necessário, o que segundo Freiberg e Driscoll (2005, p. 132) deve chagar a “Ajustes rotineiros que possam acomodar qualquer número de alunos o que não é necessariamente difícil, mas que requer cuidado e preparação.”6 Uma vez que, ensinar uma língua estrangeira é levar o aluno a criar uma re5. Tradução nossa. “Are we a learning community which is interested in acquiring new knowledge and experimenting with new ideas? Are we committed to achieving certain desirable standards in our profession?Are we autonomous enough to set professiona lstandards so as to make sure that only those meeting the standards can take part in educating our students?”. 6. Tradução nossa. “ Adjustments in routines to accommodate class size are not necessarily difficult, but they require careful thinking and preparation”. 160


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lação entre a língua em questão e a sua própria língua, uma relação entre a sua e a nova cultura, é um fato que, somente através da efetiva formação do professor isso se tornará realidade. De acordo com Rodrigues (ResearchGate FORUM, 2018, s/p) Além destes aspectos que envolvem a questão cultural do ensino/aprendizagem da língua, podemos incluir questões como a motivação para aprender a língua de destino, uma vez que esta pode desencadear no aluno o aceite da cultura estrangeira por razões de ordem práticas ou até mesmo, o despertar para sua própria identidade cultural, através do que vem de fora, ajudando, de alguma forma, desenvolver uma compreensão de sua própria identidade através da cultura do outro.7

Assim, dentro de uma perspectiva que prioriza os aspectos educacional-intercultural e ético-inclusivo em detrimento do metodológico, a experiência que o aluno traz para a sala de aula e o desenvolvimento esperado, devem estar conectados diretamente com o propósito claro em que “Esta condição só é satisfatória quando o educador entende o processo ensino/ aprendizagem como algo contínuo da reconstrução da experiência (DEWEY, 1963, p. 87).”8 Reconstrução de experiências que possibilitem o aluno fazer uso de sua e da experiência dos outros, levando-o, assim, a uma maturidade total. Ainda de acordo com Dewey (ibidem, p.82) “[...] o educador não pode começar com o conhecimento já organizado e utilizá-lo em doses. Mas em 7. Tradução nossa. “Besides these aspects cultural language teaching/learning involves we can include issues such as motivation to learn the target language since it may trigger students´ openess to foreign cultures by action of practical reasons or finding features of their own identity in what comes from the outside, helping them somehow develop a comprehension of others´cultural identity and theirs as well”. 8. Tradução nossa. “This condition is satisfied only as the educator views teaching and learning as a continuous process of reconstruction of experience”. 161


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um processo ativo de organizar fatos e ideias em um processo educacional ativo sempre presente”.9 Tendo como propósito o processo um ensino/aprendizado funcional, o professor deve ter como objetivo de sua prática pedagógica, antes de tudo, a integração do antigo e do novo conhecimento e a aplicação deste e, finalmente, o desenvolvimento das competências cognitivas que levem o aluno a aprender a aprender. Dessa forma, ao aplicar toda sua habilidade cognitiva utilizada em outras áreas do conhecimento no aprendizado efetivo de uma língua estrangeira, especialmente, da língua inglesa, este aluno seja bem-sucedido.

ENSINO/APRENDIZAGEM DE INGLÊS COMO LÍNGUA ESTRANGEIRA/INTERNACIONAL

No mercado global, operações são feitas através da Internet, o que requer um novo formato de lidar com a informação. Esse novo formato exige precisão de comunicação e essa comunicação sempre acontece através do uso de uma língua comum – a língua inglesa, que tornou-se a mais utilizada, em número de usuário, por aqueles que não a têm como primeira língua. Nesse sentido, o fato da língua inglesa ter se tornado a língua internacional, ou global, David Graddol(2000, p.2) diz que “Da mesma forma que o mundo está em transição, a língua inglesa está tomando novas formas”.10 Essa transição também acontece no ensino dessa língua que, parte do tradicional ensino que valoriza apenas a sintaxe e o léxico e chega à comunicação efetiva, 9. Tradução nossa. “[...] the educator cannot start with knowledge already organized and proceed to lade it out in doses. But as an ideal the active process of organization facts and ideas is an everpresent educational process”. 10. Tradução nossa. “As the world is in transition, so the English language is itself taking new forms”. 162


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e dessa forma, o ensino/aprendizado baseado na estrutura da língua inglesa, não mais corresponde às necessidades daqueles que utilizam a referida língua, quer seja com propósitos econômicos, de informação, acadêmicos ou outros. Até mesmo para um uso de lazer, essa língua precisa ser aprendida de forma comunicativa, uma vez que, os aprendizes/usuários interagem através de componentes culturais subjacentes a qualquer língua, incluindo aí as possíveis variações linguísticas.

Escolhas pedagógicas, pensamento crítico e conhecimento

A educação beneficia o indivíduo, como também a sociedade. Dessa forma, o pensamento básico da educação que se deseja para o século XXI, quando se espera mais do indivíduo em termos operacionais – conhecimento efetivo, inclui implantar práticas pedagógicas que garantam a este, as condições básicas para chegar ao seu objetivo, construído a partir de sua reflexão. É a reflexão que leva ao desenvolvimento do conhecimento, o que deve ser a base de qualquer processo de ensino/aprendizagem e, a partir dessa perspectiva, o conhecimento, no que se refere ao ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira, não poder ser diferente, como defende Brown(in: RICHARDS e RENANDYA, 2002) em relação ao ensino eficiente de inglês como língua estrangeira na era pós-método. O autor destaca que os professores do século XXI devem contar com o maior número possível de métodos para sua prática, a qual, será sempre direcionada por princípios pedagógicos, cujas escolhas dependerão do propósito e do contexto de cada grupo de aprendizes. Dessa forma, serão essas “escolhas” pedagógicas que determinarão o que será aprendido dentro de uma concepção holística que parte de princípios que visam à aprendizagem efetiva. Como 163


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fala Pennycook(1989, p. 609) “[...] a concepção de Método é primordialmente prescritivo, em vez de descritivo. Em vez de analisar o que acontece em uma sala de aula de línguas, funciona como prescrição de comportamento em sala de aula“.11 Nessa perspectiva, vemos que o trabalho desenvolvido com vistas à estrutura, apenas, contradiz a prática interativa e dialógica que o ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira deve propiciar, através de estratégias direcionadas para o sucesso do aprendiz. Ainda dentro dessa perspectiva de valorização da estrutura e dos métodos, Kumaravadivelu (2008, p. 162) diz que “A concepção de método tem limitações tremendas e tem sido supervalorizado por muitos. Estes relacionam ambiguamente uso e aplicação ao ponto de considerarem exageradamente o que é proposto por aqueles que o defendem, levando gradualmente à erosão de sua utilidade”.12 Dentre os princípios que Brown cita(in: RICHARDS e RENANDYA , 2002) como conducentes à aprendizagem significativa, à motivação intrínseca, à autoconfiança, às conexões culturais e à competência linguística serão os responsáveis pelo sucesso do aprendiz. Brown ainda coloca como princípio fundamental, para se atingir qualquer tipo de conhecimento o diagnóstico e o tratamento que seriam dados em relação ao trabalho do professor e do aprendiz, dos conhecimentos a serem trabalhados e a avaliação. O “tratamento”, em especial, é que promoverá a aprendizagem efetiva do novo conhecimento. Esse tratamento desenvolverá no aluno a coragem de correr riscos e desenvolver sua auto-estima, condições básicas para a cooperação, a tolerância, como também para aceitar seus próprios erros e 11. Tradução nossa. “[...] the Method concept is ultimately prescriptive rather than descriptive: Rather than analyzing what is happening in language classrooms, it is a prescription for classroom behavior”. 12. Tradução nossa. “The concept of method has severe limitations that have long been overlooked by many. They relate mainly to its ambiguous usage and application, to the exaggerated claims made by its proponents, and, consequently, to the gradual erosion of its utilitarian value”. 164


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usá-los para atingir seus objetivos. Como diz Sue Warton (in: JANE WILLIS e DAVID WILLIS, 1996, p. 156) “Não devemos ter por certo que algum tipo de conhecimento tenha sido adquirido apenas baseados no fato de que o referido assunto foi apresentado em sala de aula, mesmo que esse assunto tenha sido de grande interesse para o aluno.”13 É preciso que ele seja significativo para que o aprendiz consiga gerar algo novo, resultante deste e de seu conhecimento prévio. Dentro dessa percepção de uso da língua inglesa como língua internacional, lingua franca, pergunta-se o que faz uma língua ser reconhecida como global. David Crystal (2003, p. 7)14 diz que [...] o que faz uma língua tornar-se global pouco tem a ver com o número de falantes dessa língua. Tem muito mais a ver com quem são esses falantes. Latim, tornou-se uma língua internacional ao longo do Império Romano não porque os romanos eram em maior número do que aqueles povos por eles subjugados.

Assim, a educação, no que se refere ao ensino/aprendizagem de uma língua estrangeira, deve ser vista de muitas e diferentes perspectivas, inclusive cultural, o que implica a compreensão do que esse conhecimento significa e como se desenvolve. Dentro dessas perspectivas, o conhecimento faz a diferença, amplia possibilidades de desenvolvimento intelectual e competência de atuação e compreensão, quando uma língua estrangeira representa o 13. Tradução nossa. “ One can never assume that na item will have been acquired simply because it was present in the exposure, even if it was the subject of particular attention”. 14. Tradução nossa. “Why a language becomes a global language has little to do with the number of people who speak it. It is much more to do with who those speakers are. Latin became an international language throughout the Roman Empire, but this was not because the Romans were more numerous than the peoples they subjugated”. 165


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diferencial. A partir dessa concepção, a educação linguística torna-se um componente importante dentro de uma visão democrática de indivíduo que pertence a um contexto internacional, e é isso que atualmente torna o professor e o aluno partes fundamentais no processo de ensinar/aprender, os quais enfrentam desafios no ensino e na aprendizagem de uma língua estrangeira. Dessa forma, Enquanto a urgência do inglês não havia batido à porta, fazíamos corpo mole para o arrematado fracasso do ensino de língua estrangeira na escola pública, situação não diferente na escola particular, com o atenuante de que sua clientela pode pagar por um curso livre de idiomas, lugar projetado como ideal para a aquisição do inglês. A incompetência da escola pública em fazer dos filhos das classes menos favorecidas usuários do inglês vem colaborando, ano após ano, para a reprodução da atual ordem econômica e social. (ASSIS-PETERSON e COX, 2007, p.6)

Língua, cultura e intercultura

Qualquer língua, por si, já traz um componente cultural, o que faz desta uma matéria propícia à integração de suas culturas internas, visto que, uma língua é usada por um povo com diferentes propósitos, atrelados à ideia de cultura. A concepção de cultura, como normalmente é mencionada, quando relacionada ao aprendizado de uma língua estrangeira, especialmente à língua inglesa, foi sempre tida de forma pejorativa, embora que essa visão não mais faça sentido no século XXI, uma vez que, desde o final dos anos 1980, estudar uma cultura estrangeira, significa entender melhor um mundo globalizado e sua própria cultura. Quando falamos em intercultura, ideia dominante nos dias atuais, apesar de seu reconhecimento – o da interculturalidade, culturas ainda vivem em uma posição marginal. Uma outra concepção que tem a cultura como base é 166


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aquela da transculturalidade que surgiu justamente como forma de integrar o novo mundo globalizado. Esse termo, então, seria o mais adequado dentro de uma visão educacional, em relação ao ensino e ao aprendizado de inglês como língua estrangeira ou global. Para Halliday (1978, s/p, apud KRAMSCH, 2000, p.5) “O ensino de inglês e sua cultura significa ir além do que a gramática e o vocabulário expressam [...].”15 Assim, ensinar inglês e cultura é mostrar ao aluno que ele necessita fazer escolhas, porque precisa construir relações. E essas relações são construídas, ou não, através da escolha da palavra no que dizer, como dizer e para quem dizer algo. Assim, variedades da língua inglesa têm sido bem-vindas e usadas de forma crescente na cena internacional e têm funcionado como uma ponte como Alastair Pennycook(1994, p.34) afirma “ A mundalidade do inglês acontece no sentido do que sua posição significa no que local e no que é global, [...]”.16 A língua inglesa tornou-se o idioma das ciências, das relações sociais, profissionais, econômicas e culturais desde o término da segunda grande guerra, no século XX. Ao longo desses anos, tem-se observado a utilização da referida língua como mediadora no entendimento de pessoas das mais variadas comunidades do mundo, e esta tem se desenvolvido, sobremaneira, a partir da segunda metade do século vinte com a globalização e a criação da Internet, quando se intensificou o uso da língua inglesa na tecnologia. Dessa forma, situações existem em que o não domínio da língua inglesa pode resultar em perdas de oportunidades profissionais, como também perdas no contato e no entendimento social e cultural, assim como o prejuízo em relação 15. Tradução nossa. “Teaching English as culture means showing the students how grammar and vocabulary express [...]”. 16. Tradução nossa. “The worldness of English refers both to its local and to its global position, [...]”. 167


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à ciência e à tecnologia. Para que haja o domínio efetivo dessa língua, escolas e professores devem assumir seus papéis, isto é, ter como objetivo maior a formação do indivíduo a eles confiados, uma vez que, a aprendizagem de uma língua estrangeira é garantida oficialmente a todos que frequentam uma escola, seja esta pública ou privada, visando a oportunizar o uso da língua como instrumento de integração social e cultural. Ainda de acordo com o linguísta H.D Brown (in: RICHARDS e RENANDYA, 2002) o ensino do século XXI - de forma geral, e especialmente o ensino de inglês como língua estrangeira, tem como objetivo sair de uma percepção mais estreita do processo ensino/aprendizagem, que é baseado em métodos, e priorizar abordagens pedagógicas que visam ao sucesso, ao desenvolvimento efetivo do aprendiz em sua área de conhecimento, perspectiva que não pode deixar de fora a cultura do aprendiz e a cultura da língua alvo que inclui, especialmente, a literatura.

Integrando língua e experiência – interpretação significativa e a literatura

A leitura de um texto literário vai além da compreensão pura e simples das palavras, especialmente quando essa leitura parte da compreensão de um texto escrito em uma língua que não seja aquela do leitor. Ler um texto literário escrito em uma língua estrangeira, envolve muito mais que a simples relação autor, obra e leitor, embora que essa relação seja o ponto de partida para qualquer tipo de leitura – mensagem, emissor e decodificador. Para se ler, entender e interpretar um texto literário na língua inglesa, portanto, precisa-se da interação autor/texto/leitor. É necessário, sobremaneira que se utilize textos que propiciem oportunidade de contato com os mais variados gêneros na língua alvo. 168


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Contudo, para se obter esse ganho, a interpretação significativa de um texto dessa natureza, faz-se necessário que haja uma maior interação entre texto, professor e aluno. Este último, se descobre capaz de manipular todo o seu conhecimento prévio em relação aos componentes da língua alvo para alcançar seu objetivo linguístico, o que o leva a desenvolver a autoconfiança e consequentemente, sua realização pessoal, como dizem Carter e McCarthy (1994, p.148) “[...] a repetição de estruturas-chave serve para reforçar para um ponto de vista particular de uma maneira que envolve o leitor ou ouvinte que o leva a um possível papel de co-criatividade”.17 Os referidos autores ainda dizem que “[...] esses padrões servem para gerar resposta emocionais e psicológicas por parte do escritor/leitor e do falante/ouvinte (1994, p. 149)”.18 Junto a esses aspectos, deve-se levar em consideração os mais variados momentos histórico-sócio-culturais do(s) texto(s) em questão, que este(s) possa(m) dar oportunidade de desenvolvimento pessoal ao aprendiz da referida língua e propiciar a este contato com os mais diversos textos escritos na língua inglesa, quer sejam de alcance universal ou local. Em relação a esses aspectos, Carter e Long(1992, p.2) afirmam que

A literatura expressa o que há de mais significativo em ralação a ideias e sentimentos produzidos por seres humanos e ensinar literatura representa uma maneira pela qual os alunos podem entrar em contato com um leque de expressões – frequentemente, de valor universal e legitimidade de um ou mais períodos históricos. Ensinar literatura dentro de um modelo cultural que os capacita a entender a tradição no que concerne a pensamentos, sentimentos e formas artísticas através de

17. Tradução nossa. “[...] repetition of key structures serve to reinforce a perticular point of view in a way which involves the reader or the listener in as direct and co-creative a role as possible”. 18. Tradução nossa. “[...] patterns are reative of meaning and that these patterns serve to generate emotional and psychological responses on the parto f the writer/reader or the speaker/listener”. 169


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culturas e ideologias que são diferentes de sua própria em um tempo e espaço que a literatura e a herança cultural propiciam.19

O professor, então, ao fazer uso desse tipo de texto, provoca no aluno o sentimento de que “Interpretação é um ato de fazer algo significativo, o ato de estabelecer significado”(GRIFFITH, 2002, p.3).20 Além da interpretação significativa, o uso desse tipo de fonte para o ensino da língua, propriamente dita, cria espaço para que a língua seja utilizada em toda a sua extensão – o léxico, a semântica, a sintaxe, a fonologia e as quatro habilidades linguísticas: ouvir, falar, ler e escrever. Como dizem Carter e Long “[...] do aprender a ler como um todo – o que propicia a base a partir da qual uma leitura bem mais detalhada será encorajada e praticada”(1992, p.5).21 Ainda sobre o processo de interpretação Christopher Brumfit (1985, p. 119, apud, CARTER e LONG, 1992, p.5) afirma que “O processo da leitura é o processo de criação de significado, integrando as necessidades de cada leitor, compreensão e expectativas em relação a um texto escrito”.22 De acordo com Griffith(2002, p. 11) “O processo de leitura é a prática de criar significado pelo leitor a partir de suas próprias necessidades e expectativas em relação ao 19. Tradução nossa. “ Literature expresses the most significant ideas and sentiments of human being and teaching literature represents a means by which students can be put in touch with a range of expressions – often of universal value and validity – over na historical period oor periods. Teaching literature within a cultural model anables students to understand and appreciate cultures and ideologies different from their own in time and space and to come to perceive tradition of thought, feelings, and artistic form within the heritage the literature of such cultures endows”. 20. Tradução nossa. “Interpretation is the act of making sense of something, of establishing its meaning”. 21. Tradução nossa. “[...] from learning to read in breadth – Will provide the basis from which more accurate reading can be encouraged and practiced”. 22. Tradução nossa. “The processo f reading is a practice of meaning creation by integrating one´s own needs, understanding and expectations with a written text”. 170


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texto escrito”. É a estratégia da conexão o que projeta o leitor ativamente na busca que objetiva o entendimento e a interpretação de trabalhos literários. Essa projeção, leva o leitor/aprendiz da língua em questão a tentar entender e interpretar sentimentos e circunstâncias dos personagens em relação a sua própria vida. O leva a entender que, experiências de sua vida como ser humano poderão ser encontradas naqueles personagens, lugares e tudo mais que faz parte de um texto literário, quer seja em um poema, ou em um outro tipo de texto literário. Para tanto, entender e interpretar literatura em uma aula de língua estrangeira, as atividades propostas pelo professor serão determinantes - que estas sejam realmente promotoras da descoberta, que ajudem o aluno a desenvolver estratégias e idéias condutoras a compreensão e interpretação do texto alvo, reforçando, assim, a necessidade da compreensão de um texto para uma eficaz interpretação.

Integrando língua, cultura e literatura

Partindo-se do princípio que, um texto literário contém um discurso autêntico, e que esse tipo de texto pode ser a base para atividades que vão dos aspectos sócio-histórico-culturais à comunicação genuína, como tal, texto genuíno, este é, por vezes, temido por professores e alunos. Os primeiros temem assustar aqueles que são responsabilidade sua no processo ensinar/ aprender e o aluno, vê, no texto literário, dificuldades que eles, como aprendizes de uma língua estrangeira, temem por causa, talvez, de sua visão de literatura na língua materna. Contexto cultural e propósitos do texto, a escolha do texto que atenda às necessidades de aprendizagem em relação ao léxico, à sintaxe e à fonologia, são aspectos que devem ser lavados em consideração. Apesar desses fatores serem prioridade no ensino de uma língua estrangeira que tem como base para atividades linguísticas um texto literário, deve-se deixar fluir um outro 171


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tipo de leitura fonte da interação autor/leitor em um processo psicolinguístico, levando, assim, o leitor a desenvolver sua capacidade de decodificação do texto. Todos esses aspectos, em conjunto, possibilitam a formação da base, pré-requisitos para a fluência e independência do aluno como leitor de uma língua estrangeira. Quanto aos aspectos culturais inseridos em um texto literário e os aspectos formais da língua no texto escrito em inglês, possivelmente, com a intenção de atingir antes de tudo o leitor nativo, atenção especial é devida à ideologia do texto, como também aos aspectos literários e aos efeitos do confronto entre a literatura da língua estudada e a nacional. O encorajamento à flexibilidade de pensamento e à visão cultural do outro, à descoberta e ao conhecimento de uma outra cultura, também merecem atenção especial no momento de selecionar um texto, ao se planejar uma aula que tenha por base essa fonte. A leitura, que pode começar como um processo cognitivo, se estende, assim, como um processo que abrange literatura, língua e cultura, propiciando ao aluno a descoberta das possibilidades que um texto literário pode oferecer ao seu desenvolvimento holístico. Em termos de experiência pessoal, os alunos podem identificar nesse tipo de fonte, sua realização pessoal no que diz respeito à satisfação de estudar a língua alvo, através de uma forma de expressão de alto valor sócio-histórico-cultural de uma nação. Ao mesmo tempo, esse aluno pode chegar à conclusão que, ele pode desenvolver suas habilidades linguísticas ao se dedicar ao exame de aspectos literários do texto, tornando-se, assim, um leitor capaz de utilizar a leitura do texto em questão criticamente, buscando, entre outros aspectos, o fato social e histórico que embasam o referido texto. Assim, chega-se à descoberta do texto, autêntico ou simplificado, como base para um estudo semântico-gramatical, de onde o leitor pode extrair 172


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vários significados. Significados estes resultante de sua própria experiência, quer seja como leitor, quer seja como ser humano passivo de mudanças intelectuais e pessoais. Como conseqüência maior, chega-se ao aprendizado de um língua que não é desconectado da vida real, uma vez que, esta envolve a literatura, que quer dizer língua, sociedade, história e cultura. Todos esses aspectos dentro de uma implicação pedagógica prioritária no processo ensino/aprendizagem da língua alvo, no caso, a língua inglesa.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Para concluir, reiteramos a constatação que professores devem levar em consideração o que atualmente os torna, juntamente com os alunos, partes fundamentais do processo de ensinar/aprender o que, ordinariamente, começa inconscientemente logo ao nascermos, e se prolonga progressivamente, nos transformando como indivíduos, inundando nossa consciência, formando nossos hábitos, adequando nossas idéias que nos ajudam a enfrentar desafios. Assim, entre outros desafios, o ensino/aprendizado de uma língua estrangeira, aqui particularmente, a língua inglesa pode ser transformador. E isso significa o professor ter a consciência de que o processo de ensino/ aprendizagem deste século XXI vai além da adoção desse ou daquele método, mas que prioriza objetivos pedagógicos, visto ser mais relevante trabalhar a adaptação de conhecimentos gerais para se chegar ao conhecimento mais específico, e que, tanto professor quanto aluno, precisam se tornar conscientes do sistema da referida língua. E ter em mente que, o professor reflexivo está sempre atento, sempre provendo seu aluno com o que é necessário para a construção e reconstrução de seu conhecimento. O processo de ensino/ aprendizado de inglês como língua estrangeira/internacional beneficia-se 173


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de ações pedagógicas trabalhadas em sala de aula a partir de atividades que contemplem, entre outros meios, a leitura de textos literários, atividade que, pode começar como um processo cognitivo e se estender como um processo que abrange literatura, língua e cultura, visando a descoberta das possibilidades que um texto literário oferece. A descoberta do texto, autêntico ou simplificado, como base para um estudo semântico-gramatical, pode levar o leitor a extrair vários significados. Significados estes resultado de sua própria experiência, quer seja como leitor, quer seja como ser humano passivo de mudanças intelectuais e pessoais. Finalmente, temos um ensino/aprendizado de uma nova língua que não é desconectado da vida real, desde que esse processo envolve a literatura, que quer dizer língua, sociedade, história e cultura.Tudo isso dentro de uma implicação pedagógica prioritária no processo ensino/aprendizagem da língua alvo, no caso, a língua inglesa.

REFERÊNCIAS

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Resumo Propomos reflexões e apontamos teorias que possibilitam melhores entendimentos a respeito de uma problemática muito recorrente nas escolas, que é o ensino-aprendizagem de literatura. Também fazem parte dos estudos: a leitura e a formação do leitor. Portanto, aprender a despertar o senso crítico dos leitores é muito importante para o letramento literário. Nesse sentido, as afirmações de Cosson (2014-2016) permitiram o enriquecimento das abordagens sobre os paradigmas do ensino de literatura, bem como das explicações a respeito das habilidades e/ou estratégias que podem favorecer o ensino, se forem aplicadas adequadamente. Outros pesquisadores como: Carlos Alberto Faraco (2016), Vincent Jouve (2002) e Irandé Antunes (2017), dentre outros, compõem os embasamentos teóricos das argumentações apresentadas. Desta forma, as observações presentes foram trabalhadas dentro do que a problemática necessitou e os objetivos foram cumpridos comprovando, com isso, a assertividade desta investigação. Palavras-chaves: letramento literário; leitura; formação do leitor.


LETRAMENTO LITERÁRIO E A POESIA NAS ESCOLAS: um estudo sobre a leitura, a formação do leitor e a construção do senso crítico por meio dos textos poéticos Alexandre da Silva Bezerra1 Orientadora: Profª. Drª. Viviane da Silva Gomes2

INTRODUÇÃO Observando o cotidiano dos alunos do ensino fundamental II da rede municipal de ensino do município de Olinda em Pernambuco, sobre a relação do ensino-aprendizagem da língua portuguesa e algumas das suas ramificações, como: leituras, compreensões e interpretações textuais, notou-se grande limitação no sentido de aquisição e ampliação de conhecimentos sobre a língua e os contextos em que se inserem os alunos deste nível de ensino. Para tanto, a busca por melhores condições dos trabalhos, metodologias e abordagens do ensino-aprendizagem por parte dos professores e toda a rede que compõe o sistema de educação é de suma importância para o desenvolvimento do estudante e seu crescimento como leitor.

1. Graduando em Letras pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda – FACHO. 2. Doutora em Linguística pela Universidade Federal da Paraíba, Mestra em Teoria Literária pela Universidade Federal de Pernambuco, Especialista em Literatura Brasileira pela Faculdade de Vitória de Santa Antão. Pesquisas orientadas em Literatura infantil, comparada, indígena, gêneros, surdez, inclusão e afins. 177


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Sobre esse “estudante leitor” mencionando, faz-se necessária uma melhor abordagem para que se tenham ações mais diretas e eficazes, pois, normalmente, ao se falar em leitura o que se percebe é que os alunos não têm as capacidades básicas de um leitor, nem encontram atrações nos textos levados a eles. Ainda, ocorrem problemas por causa das negações antecipadas (trata-se daquele aluno que se nega a ler) que se utilizam de diversos artifícios para justificar o seu desgosto pela leitura, entendemos que este fato confirma o déficit das capacidades básicas que um leitor deve possuir, e, que se coloca em uma posição desfavorável, e inferior, aos demais em salas de aulas (e até mesmo fora dela). Neste sentido, as compreensões das abordagens e afirmações que se sucederão a esta introdução será de suma importância para a concretização dos objetivos antes expostos, e aqui trabalhados, com o intuito de gerar formadores de leitores literários capazes de, não apenas lerem, mas, compreenderem e interpretarem, adequadamente, os textos lidos. Sobre as abordagens de leitura e entendimento de um texto é interessante observar o que diz Faulstich (2014), pois, afirma que: Leitura pressupõe busca de informação. Por isso é importante escolher bem o texto para ler. Para que o leitor se informe é necessário que haja entendimento daquilo que ele lê. [...] entender um texto é compreender claramente as ideias expressas pelo autor para, então, interpretar e extrapolar essas ideias. Neste momento o leitor deve ajustar as informações contidas no contexto em análise às que ele possui em seu arquivo de conhecimentos. (FAULSTICH, 2014, p. 13-25).

Considerando as disposições acima, entenderemos os processos de formação do discente leitor de textos diversos e do leitor de textos literários, para isso, será necessária a diferenciação entre os tipos de textos para que se tenha a noção correta do que é, ou não, texto literário. Por fim, iremos estudar 178


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a inserção do educando à poesia, uma avaliação importante será a de como ocorre a transição do leitor comum para o literário, sua iniciação no mundo literário, suas experiências e reflexões enquanto leitor.

LETRAMENTO LITERÁRIO: E a formação do leitor por meio dos textos poéticos

Continuando a discussão no mesmo sentido, entende-se que tal reflexão possibilitará modificações consideráveis nos modi operandi das instituições de ensino e, não sendo exagero afirmar, auxiliará os profissionais da educação, confirmando, com isso, os benefícios para o corpo discente tornando-os leitores mais ativos e menos ávidos. Para que o letramento literário e a formação do leitor por meio dos textos poéticos tornem-se uma prática cômoda nas escolas, no sentido de encontrar-se um ensino acomodado no seu devido lugar e não sob uma interpretação de que se trate de deixar tanto os professores quanto os alunos acomodados em seus comportamentos, sem que externem sequer uma atitude frente às necessidades de cada um, algumas explicações são necessárias sobre os conceitos dados aos textos poéticos. Em uma oportunidade à parte (dada a situação que ocorrera com o autor desta investigação durante as diversas pesquisas sobre a temática) surgiu a seguinte interrogação: “quando que um texto será poético?” Então, entendeu-se que incluir os conceitos referentes aos textos poéticos é deveras importante para auxiliar as compreensões e discutir de forma mais segura esta temática. Considerando isto, para conceituar seguramente, e responder assertivamente, a indagação acima, tem-se uma explicação pertinente sobre os textos poéticos no livro da autora Neusa Sorrenti (2009), que nos afirma: 179


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Poesia é o nome genérico que se dá ao gênero lírico, designando também a produção poética de um poeta. Ex.: a poesia de Drummond; a poesia de Bandeira; a poesia de Cecília... Poema é uma composição em verso. (SORRENTI, 2009, p. 58-59)

Dessa forma, é possível separar o texto poéticos dos demais textos, mas a autora faz uma distinção importante, e que merece aqui ser observada, pois, segundo ela:

É oportuno observar que à medida que lemos e conhecemos diferentes tipos de textos notamos que nem todo texto em versos, linha debaixo de linha, contém poesia. Por outro lado, há textos que não são construídos em versos e contém poesia. (Ibidem, p. 59)

Tendo este conhecimento o ensino do letramento literário e a formação do aluno leitor poderá, efetivamente, ser feito de forma mais aprazível aos estudantes e menos decepcionante para os profissionais da educação. Pois, os olhares ampliam-se para formas textuais que superam os conhecimentos básicos inicialmente estudados. Percebe-se este fato quando ler-se no mesmo livro citado acima, que: “[...] Paisagens, cenas, olhares, pinturas podem ser essencialmente poéticos, mesmo não sendo poemas”. (Id, p. 59) De certo, quando a autora faz questão de deixar clara a definição de textos poéticos, reforça ainda a ideia de utilizarem-se textos adequados para o ensino literário, nessa perspectiva, encontra-se uma ampliação desta discussão quando a autora se utiliza de um fragmento textual de João Domingues Maia (2001), para distinguir a poesia do poema. Assim:

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[...] a poesia (conteúdo) não se manifesta apenas por meio do poema (forma). É possível encontra-la em diversos tipos de texto que não são necessariamente poemas. Pode-se conhece-la na pintura, na música, num pôr do sol, numa flor nascida entre a aspereza das pedras. Isso porque: “Poesia é a qualidade de tudo o que toca o espírito provocando emoção e prazer estético”. Ele ainda acrescenta: “enquanto a poesia é um elemento abstrato, o poema (a combinação de palavras, versos, sons e ritmos...) é um elemento concreto” (MAIA, 2001, v.3 p.2 apud SORRENTI, 2009, p. 59)

O exposto refere-se a dois fatores que precisam de observações pontuais no que se refere às qualificações e especificações que os diferenciam tornando-os duas peças fundamentais para o ensino do letramento literário com foco na formação do leitor por meio dos textos poéticos. Assim, é importante entender as conceitualizações diferenciativas sobre a poesia e o poema (sendo a poesia: conteúdo, enquanto o poema a: forma), pois, depois disso, as escolhas textuais poderão ocorrer de forma direcionada e de acordo com as pretensões dos professores e as necessidades dos alunos. Neste caso, torna-se real a possibilidade de separar os textos a serem utilizados nas aulas de literatura e as abordagens surtirão efeitos mais individualizados e os resultados surgirão mais abertamente a todos os envolvidos no processo de ensino-aprendizagem. Salienta-se, então, que saber escolher os textos não será mais um problema, e sim, uma questão de atitude e disposição por parte dos responsáveis por promover a educação literária. Percebe-se, a partir disso, que formar leitores e fazê-los transcender à leitura de textos básicos é fundamental para o despertamento do senso crítico do aluno. Permiti-lo transitar entre textos de diversos tipos será vigorosamente pertinente ao seu crescimento como leitor literário. Além dos fatores apresentados acima, e dos conceitos dados à poesia e ao poema, outra questão que requer um entendimento direcionado ao melho181


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ramento do ensino-aprendizagem da literatura por meio de textos poéticos é a questão da coerência, e neste ponto é que precisa-se, colaborativamente, ler-se o que está disposto no livro: Textualidade: noções básicas e implicações pedagógicas, da professora Irandé Antunes (2017), que com maestria remete à poesia uma significação e uma contextualização baseada na coerência textual. Para tanto, observaremos o que ela diz sobre: “a coerência no texto poético”. (c.f. ANTUNES, Irandé, 2017, p. 85-91) [...] o texto poético é, pacificamente, admitido como uma especificidade funcional bastante particular. Seus padrões de realização situam-se numa ordem que muito o distancia dos textos de outras funções. Nele, a manipulação das unidades linguísticas serve não tanto ao plano do significado, mas, sobretudo, ao plano do significante, contrariando o que se poderia esperar de uma ação de linguagem. Consequentemente, a organização temática de um poema, por exemplo, deixa de respeitar os esquemas previsíveis das interações comuns. (idem, p, 86)

As afirmações da professora permitem-nos perceber que os textos poéticos podem contribuir com o ensino de literatura de uma forma peculiar e particularizada, pois, ao afirmar: “[...] o texto poético é, pacificamente, admitido como uma especificidade funcional bastante particular” (loc. cit. p, 86), nos faz entender que cada indivíduo é dotado de capacidades poéticas inerentes a ele, mas, dependentes dos reconhecimentos e ações em favor do despertamento e das práticas poéticas nas escolas e/ou na sua vida cotidiana, afirma-se isto pelo fato que será apresentado logo mais à frente. Contudo, introduzindo-o, refere-se à questão de ser prestigiado, ser assistido e ter a sua arte reconhecida. Logo mais adiante esta discussão será ampliada. Com esta abordagem torna-se válida a seguinte observação: na ocasião, os utilizadores do paradigma de formação do leitor tiveram a oportunidade de 182


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destacar o ensino-aprendizagem da literatura como fuga, como a busca por um “mundo melhor” que a literatura promove por meio dos seus textos, entende-se aqui que a poesia, argumentativamente, em favor do ensino literário, age como utilitário complementativo durante as aulas de língua portuguesa e literatura básica que de tempos em tempos é aplicada introdutoriamente às turmas que compõem o ensino público regular (deve observar com um olhar inclusivo a modalidade EJA em paralelo). Isto, por se tratar de uma construção textual que sensibiliza, que gera reflexões diversificadas, às vezes, genéricas, outras vezes, específicas, mas, sempre gerará no leitor sensações que o farão reconhecer-se em algum mundo, seja fictício ou realístico. Quando se fala em “fuga” é o mesmo que falar sobre transposição locatária do leitor (TLL), ou seja, o leitor passa a ocupar provisoriamente um local que inicialmente não era o seu, mas que em dado momento, absorvido pelo conteúdo do texto que lera, passa a ocupá-lo provisoriamente. Entendemos, a partir dessa observação, que o leitor se torna um inquilino do texto que a ele fora apresentado. Um reforço à teoria levantada acima encontra-se no que a professora Irandé Antunes (2017), afirma, pois: [...] o texto poético é, eminentemente, arte. E toda arte, por definição, é uma idealização do real, o que significa que se move em um plano totalmente ideal, sem compromisso com os limites da realidade concreta. Assim, o ‘real’ da poesia se identifica com a própria criação ideal do poeta, um plano onde não existem contradições nem ‘limites para as palavras’,[...]. (loc. cit, p. 86)

Ao lado do que fora afirmado, entende-se que a poesia, quando utilizada adequadamente, pode transformar o ensino em uma prática mais satisfatória e eficaz. Ainda, ao utilizarmos os artifícios necessários, os alunos conseguirão desenvolverem-se intelectualmente e é neste ponto que as próximas 183


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abordagens irão focar, para tanto, conhecer as habilidades e estratégias de ensino será de fundamental importância para este pleito. Logo, partamos, então, para os estudos sobre estes fatores que são deveras importantes para a consolidação dos objetivos desta investigação. Para mais, abaixo seguirão os estudos dirigidos para as habilidades ou estratégias do ensino da leitura buscando melhores compreensões sobre os avanços do ensino-aprendizagem do letramento literário por meio dos textos poéticos.

LETRAMENTO LITERÁRIO: Uma prática para além do ensino

Sabemos da importância da leitura, bem como da literatura na formação do indivíduo crítico que, acumulando conhecimentos diversos sobre vários temas, segue em uma continuada jornada em busca de mais conhecimentos sobre outras áreas, que dantes não possuía. Há pontos favoráveis e desfavoráveis nesta jornada incessante, pois existem vantagens em possuir conhecimentos variados e em grandes proporções, quando utilizados adequadamente e compartilhados com outras pessoas, criando, com isto, uma corrente em prol do crescimento intelectual torna-se, portanto, um ponto favorável. Contudo, uma prática que desfavorece em demasia todo este processo é a questão de conhecer apenas pelo mero prazer de ser um conhecedor, solitário, inerte ao que lhe rodeia e sem promover o crescimento coletivo por meio dos conhecimentos adquiridos, pois, poderiam permitir aos indivíduos um crescimento sem igual. Sobre isto, observa-se que:

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Na leitura e na escrita do texto literário encontramos o senso de nós mesmos e da comunidade a que pertencemos. A literatura nos diz o que somos e nos incentiva a desejar e a expressar o mundo por nós mesmos. E isso se dá porque a literatura é uma experiência a ser realizada. É mais que um conhecimento a ser reelaborado, ela é a incorporação do outro em mim sem renúncia da minha própria identidade. No exercício da literatura, podemos ser outros, podemos viver como os outros, podemos romper os limites do tempo e do espaço de nossa experiência e, ainda assim, sermos nós mesmo. É por isso que interiorizamos com mais intensidade as verdades dadas pela poesia e pela ficção. A experiência literária não só nos permite saber da vida por meio da experiência. Ou seja, a ficção feita palavra na narrativa e a palavra feita matéria na poesia são processos formativos tanto da linguagem quanto do leitor e do escritor. [...]. (COSSON, 2014, p. 17)

E, baseando-se no argumento acima, pode-se afirmar que o letramento literário, mesmo sendo uma área nova do conhecimento das ciências humanas, pode servir como um agente em favor do ensino-aprendizagem da leitura e da literatura, e ainda um forte auxiliador no processo de formação do leitor crítico. Isto, baseando-se no que afirma Cosson (2014). Sendo assim, vamos entender um pouco do funcionamento das habilidades ou estratégias para a leitura que o teórico salienta em seus estudos, porém, é importante salientarmos que o professor Rildo Cosson faz uma breve abordagem sob as perspectivas do pesquisador Pressley (2002). Portanto, segundo o seu resumo, as habilidades ou estratégias da leitura são sete e vamos conhece-las logo abaixo. Sendo assim, temos:

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Conhecimento prévio: deve-se trabalhar os conhecimentos dos alunos em relação ao texto apresentado a ele. Conexão: há três tipos de conexão, que são: texto-leitor – quando se faz uma ligação entre o assunto do texto com a sua própria vida. texto-texto – é a comparação do texto lido com outros textos, músicas ou até filmes assistidos. texto-mundo – é a conexão com fatos da sociedade, do bairro e das coisas transmitidas por televisões e rádios (vale acrescentar a conexão com o texto virtual que pode ser representado pela internet por se tratar de um termo mais abrangente e, por isso, mais adequado). Inferência: nesta estratégia o leitor consegue dar sua opinião, mudar o possível fim de uma história, e tentar decifrar os mistérios contidos no texto. Visualização (ou, observação): é a atenção voltada para o livro, ou para as imagens contidas nele, pois, há detalhes que só as imagens revelam por não estarem escritos. então, tão fundamental quanto a leitura do texto é a observação direcionada às imagens. Perguntas ao texto: ensinar os alunos a fazerem perguntas ao texto também auxilia na compreensão da história. Essa estratégia ajuda as crianças a aprenderem com o texto, a perceberem as pistas dadas pela narrativa e, dessa maneira, facilita o raciocínio. os alunos podem aprender a perguntar ao texto e essas questões podem ser respondidas no decorrer da leitura com base no texto ou com o conhecimento do próprio leitor. Sumarização: nesta fase o aluno se utilizará de registros de leitura em tópicos (assemelha-se a um fichamento). Síntese: feitos os registros ele poderá produzir um texto com seus recortes. 186


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Logo, salienta, pois, o professor, que:

Assim, tornar visível o invisível, ou seja, fazer com que os alunos percebam o que vem em mente quando leem é função do professor. A sugestão é que ele estabeleça em sua rotina não só momentos de leitura individual, mas também espaços em que molde o ato de ler. Para tanto, um texto deve ser escolhido e sua leitura em voz alta iniciada com interrupções do próprio docente que, ao perceber uma habilidade de leitura, a comenta e a exemplifica aos alunos. (COSSON, 2014, p, 104)

Estas sete colocações somadas às questões estudadas na pesquisa do professor Rildo Cosson (2014), agregam um conjunto de ações que podem modificar por completo as estruturas do ensino-aprendizagem da leitura e do letramento literário que nesta investigação está enfatizando o uso dos textos poéticos, mas, que torna-se de suma importância a observação de que estes conceitos perpassam a utilização de, apenas, os textos poéticos, pois, estas práticas podem ser aplicadas em diversas metodologias que permeiam o âmbito educacional. Pensando no dito logo acima, discutiremos no tópico seguinte os contextos que permeiam o letramento literário e a formação do leitor, isso para promovermos melhores interações entre as discussões levantadas até aqui e as que ainda surgirão logo mais adiante. É importante, ainda, salientarmos que entender os contextos que envolvem a nossa temática é um dos pontos cruciais para a conquista de bons resultados na prática do letramento literário. Afirmamos isto por sabermos das demandas existentes nas escolas e da insuficiência das ações de melhorias.

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LETRAMENTO LITERÁRIO: Sobre os contextos discutidos A importância em entender os contextos sociais tanto de um lado, como do outro, serve para esclarecer os motivos pelos quais há tanta rejeição por parte de uma parcela da sociedade sobre os estudos literários, bem como, sobre os avanços da leitura para a criação de um leitor consciente de todo o seu potencial crítico-literário. Orlandi (1998), afirma que todo o leitor é detentor de uma história de leitura, por isso é muito importante ensinarmos a literatura, buscarmos a efetivação do letramento literário, mas, sempre considerarmos as histórias individuais de cada discente:

[...] Todo leitor tem sua história de leitura e, portanto, apresenta uma relação específica com os textos, com a sedimentação dos sentidos, de acordo com as condições de produção da leitura em épocas determinadas. O sujeito se constitui como leitor dentro de uma memória social de leitura. (ORLANDI, 1998, p. 25)

Se todos os leitores possuem “uma relação específica com os textos” (como a citação acima nos afirma), logo, o letramento literário só será assertivo se aplicado na forma de consideração das especificidades que cada aluno possuir, então, entendemos que o letramento literário precisa se adequar para que venha a ser uma prática costumeira e produtora de leitores capazes de evoluir nos conceitos e contribuir com a permanência do ensino-aprendizagem literária nas escolas, ampliando-se as percepções e discussões em torno da Literatura um ensino mais producente será possível ser posto em prática. Nesta ocasião, fica a reflexão de que os contextos sociais dos envolvidos em todos os processos de ensino-aprendizagem são protagonistas do ensino da Literatura, e, neste sentido, faz-se necessária a efetivação da Literatura como uma disciplina da rede de ensino, isso viabilizaria um crescimento 188


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exponencial e ajudaria na criação de uma sociedade mais literária. Compreendendo as abordagens até aqui, torna-se possível dizer que a Literatura é capaz de mudar o mundo de cada indivíduo. Isto é dito por causa de uma das afirmações encontradas em Cosson (2016) que diz: “a Literatura é uma linguagem dialógica”. Se a literatura tem dentre vários conceitos, o diálogo, como o modelo de ensino-aprendizagem aplicado nas escolas consegue englobar e abordar todos os contextos dos discentes? A resposta é bem simples, não conseguem. Isto pelo que está descrito no estudo sobre as: Contribuições de Bakhtin para a leitura literária: Instrumentalizar para desenvolver o leitor estrategista. Nesse estudo a pesquisadora nos ajuda a entender as relações dos alunos com a escola e os processos de ensino-aprendizagem da literatura e tudo que a rodeia. Em um dos trechos do estudo a autora identifica um dos motivos pelos quais os alunos não conseguem obter melhores resultados frente aos estudos literários, verifica-se, então, que: No que concerne ao ensino da literatura, a leitura está voltada para o estudo de informações técnicas do texto abordado, no sentido de que se ensina na escola as características que contemplam o conteúdo da formação das escolas literárias no tempo e no espaço, assumindo dessa forma um ensino de base historicista, realizada por meio da leitura de fragmentos dos clássicos da literatura. Infelizmente a leitura escolar tomada em seu contexto real, está voltada muito mais para informar a partir de uma prática do modelo ascendente, do que formar leitores: a partir dos modelos interativos e discursivos. (NASCIMENTO, 2011, p. 2)

Considerando o estudo em questão, fica clara a falha do sistema utilizado diariamente nas escolas, porque não possibilitam ao aluno o crescimento intelectual existente no diálogo com as obras literárias que por sua vez são repletas de significados geradores da capacidade de percepção das carências 189


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do alunado. Portanto, o que se entende até aqui, é que o ensino literário não deve ser limitado a apenas estudos estruturais da língua, por serem bem maiores e importantes do que possivelmente pensam os utilizadores do sistema limitador do ensino. Os problemas ganham maiores proporções quando Nascimento (2011), entende que: “o estudo da literatura está voltado para a aprendizagem de vocabulário e ainda se confunde com a sistematização de contextos históricos, anulando as possibilidades que o prazer da leitura pode proporcionar.” (NASCIMENTO, Priscila Rodrigues, 2011, p. 13) É sobre este ponto que paira a reflexão desta investigação, pois, há o conhecimento de onde estão as dificuldades, os problemas e os erros de todos os processos, mas, ações mais efetivas são sempre colocadas como suposições ou hipóteses. Quando, na verdade, deve ocorrer uma mudança de estratégias, uma aplicação diferenciada de metodologias de ensino e, não sendo ousadia afirmar, até um enfrentamento para romper com as dificuldades e promover um ensino literário mais rico e promotor de leitores não apenas de peritos em análises estruturais dos textos. É interessante observar que desde o início das investigações referente ao ensino-aprendizagem do letramento literário está notadamente disposta à qualidade do ensino ofertado ao corpo discente em contradita com a sua real necessidade, pois, suas capacidades intelectuais dificilmente são postas à prova e em diversos casos nem são motivados a saírem das suas zonas de conforto e não são incentivados a debruçarem-se nas leituras e estudos literários. Sendo assim, e considerando o disposto até este momento, no próximo tópico será feito um estudo visando a continuidade do que fora apresentado até então, com acréscimos importantes sobre as evidências do leitor crítico, o “como identificar” o perfil crítico do aluno leitor, baseando-se nas afirmações do teórico Carlos Alberto Faraco (2016). Isso, pelo fato de o senso crítico ser um dos elementos centrais para que o leitor consiga extrair das suas leituras 190


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o máximo de informações possíveis, e em dado momento, desenvolver-se como um indivíduo produtor de outros textos partindo das ideias iniciais daquilo que lera, pois, seja concordando ou não, o aluno leitor que alcança o entendimento crítico sobre suas leituras torna-se um produtor de textos. Consideremos o termo “textos” no campo semântico ampliado e apoiado pela fuga do senso comum e estimulado pela vontade de mudança. Portanto, passemos para a próxima discussão.

AS EVIDÊNCIAS DO LEITOR CRÍTICO

[...] um leitor crítico é aquele capaz de atravessar os limites do texto em si para o universo concreto dos textos, das outras linguagens, capazes de criar quadros mais complexos de referência. E esta multiplicidade de pontos de vista está presente em qualquer gênero da linguagem; toda palavra é uma entre outras e para outras... (FARACO, 2016, p. 204)

A definição acima é rica em significados que possibilitam o surgimento de uma variedade de estilos, perfis e status de um leitor. Os entendimentos gerados pelo fragmento citado revelam quão importante é para o leitor o seu próprio reconhecimento e é sobre este fator que este artigo fará uma breve abordagem. Sendo assim, fica clara a compreensão do recorte: “[...] um leitor crítico é aquele capaz de atravessar os limites do texto em si para o universo concreto dos textos, [...]”. (idem) Pois, o entendimento de: “atravessar os limites do texto em si”, subentende-se que o leitor não deve considerar apenas o léxico isoladamente, e ainda, não é interessante para a construção semântica trabalhar a leitura fora de uma contextualização, porque um fator complementa o sentido e a intenção do assunto que o texto aborda e a sua construção contribui para a harmonia estrutural tanto do seu discurso como da sua elaboração escrita, por este motivo foi que logo acima surgiu o termo: “léxico-semântico e interpretativo”. 191


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Perceber as afirmações acima é fundamental para que se concretize o surgimento do leitor crítico dotado das capacidades básicas que o constitui como tal. Seguindo o mesmo sentido trabalhado logo atrás, entende-se que a construção do senso crítico do leitor torna-se possível de ser concretizada por meio do letramento literário, mas, não limitando a apenas este fator, e sim, acrescentando-se que a utilização dos textos deve ser conduzida no sentido de não sobrecarregar nem os discentes e nem os professores. Assim, esta pesquisa entende que a maneira mais apropriada para executar uma ação mais assertiva e menos danosa para ambas as partes envolvidas em torno deste processo é a pratica da leitura dos textos poéticos, salientando-se neste momento que as abordagens sobre os textos poéticos devem seguir as explicações anteriores constantes, também, nesta pesquisa. Por este, e demais motivos apresentados em toda esta construção argumentativa, é que se afirma sem dúvidas que os textos poéticos viabilizam a prática do letramento literário de forma leve, sem causar danos e nem traumas durante os estudos. Neste sentido, quando o corpo docente consegue entender que os textos poéticos perpassam suas compreensões básicas e alcançam níveis muito superiores aos iniciais conseguem promover um ensino-aprendizagem rico e diversificado, com isso, além de alcançarem o seu senso crítico, os alunos ainda se tornam capazes de propagar o que aprenderam construindo, assim, uma rede de conhecimentos literários capacitados e fundamentados. Para tanto, o letramento literário por meio dos textos poéticos é uma saída para diminuir o déficit no ensino-aprendizagem da leitura e da literatura em toda a rede de ensino. Sendo assim, a problemática levantada, e que originou esse artigo, observou o seguinte: Como trabalhar a poesia nas escolas e romper com as dificuldades gerando leitores capazes de compreender e interpretar os textos 192


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poéticos, despertando, neles, o senso crítico? Então, depois de alguns estudos foi possível entender que a questão que brotara na cabeça do produtor dessa pesquisa ganha considerável acentuação e relevância, mais ainda, que a resposta dada a ela é capaz de promover uma mudança comportamental nos discentes e torna-los leitores capazes de promover mudanças por meio das suas interpretações. Então, a pergunta do parágrafo anterior tem a sua resposta na seguinte explicação: observando e nos aprofundando na pesquisa pudemos perceber que há uma dependência direta entre o trabalhar a poesia e o agir poeticamente. O que estamos dizendo é que não se impõe o gostar de poesia, o gostar da leitura (e isso se amplia para outros setores do saber), e sim, que si introduz gradativamente a prática poética nos ambientes escolarizados de forma a despertar o querer e o gostar literários nos discentes de um jeito mais natural, que nesse caso salientamos a poesia como o objeto central da nossa discussão. Assim, precisamos entender que um docente leitor gera o gosto pela leitura nos seus alunos de forma voluntária, sem obrigatoriedades, logicamente, que o professor não convencerá a todos os alunos, mas o objetivo será o de ir enxertando aos poucos a vontade e o prazer em ler. Desta forma, o resultado a ser obtido será a transição do aluno que dantes era um leitor comum e sem estímulos para um leitor com visões críticas do mundo que o rodeia.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os estudos destes teóricos possibilitaram uma amplitude conceitual e uma abertura discursiva a respeito das relações entre texto-leitor e leitor-mundo que culminaram em uma compreensão sobre uma posição diferenciada para o letramento literário. Sendo assim, todas as breves releituras contidas nestas considerações servem para a construção da efetiva colabo193


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ração desta pesquisa com o processo de ensino-aprendizagem do letramento literários nas escolas por meios da poesia, esta, por sua vez, explorada conceitualmente para consolidarem-se às suas aplicabilidades e usabilidades diversificadamente. Assim, surge a seguinte questão: o que se construiu com toda essa discussão? Não há apenas uma resposta para essa indagação, pois, os estudos sempre estarão abertos à discussão e ao melhoramento, que por sua vez é continuado e não estático. Contudo, é possível afirmar que esta pesquisa conseguiu construir uma ampliação dos estudos teóricos discursivos referentes ao ensino literário, e, é deveras importante salientar que a contribuição maior fica por conta da construção do ‘fazer literário’, do entendimento das diferenciações direcionadas ao leitor e das abordagens sobre a leitura e suas nuances conceituais e usuais. O efetivo sucesso desta pesquisa estará sempre calcado no fato de que os objetivos anteriormente mencionados foram, todos, alcançados e explorados ao máximo possível buscando em todos os momentos a mais perfeita clareza argumentativa na construção da maior, e principal, conquista dentre todas até aqui: a construção do leitor literário. O mencionado “leitor literário” é todo aquele que uma vez lendo um fragmento textual consiga retirar dele o máximo de informações, e depois ser capaz de formular suas opiniões de acordo com o que entendera do dado trecho lido. O reconhecimento deste leitor, bem como, do “lugar deste leitor” e a construção da sua postura crítica é a comprovação do sucesso desta pesquisa.

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REFERÊNCIAS ANTUNES, Irandé. Textualidade: noções básicas e implicações pedagógicas. São Paulo: Parábola, 2017. BRASIL. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lei 9394, 20 de dezembro de 1996. Disponível em http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L9394.htm. Acesso em: 24/02/2018. CEALE DEBATE. Literatura: a formação de um leitor todo seu. Disponível em: https:// www.youtube.com/watch?v=S9Cs3yk2eqI. Acesso em 14/11/2017. COSSON, Rildo. Letramento literário: teoria e prática. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2014. COSSON, Rildo. Letramento literário: uma proposta para a sala de aula. 2014. Disponível em https://acervodigital.unesp.br/bitstream/123456789/40143/1/01d 16t08.pdf. Acesso em: 19/08/2017. FARACO, Carlos Alberto. Práticas de texto para estudantes universitários. Petrópolis: Vozes, 2016. FAULSTICH, Enilde L. de J. Como ler, entender e redigir um texto. 27 ed. Petrópolis: Vozes, 2014. LÚCIA, Berta. Alfabetização e letramento literário. Centro de Estudos em Leitura e Literatura Infantil e Juvenil – CELLIJ/UNESP Presidente Prudente. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=lOzakTgjfBg. Acesso em 19/09/2017. NASCIMENTO, Priscila Rodrigues. Contribuições de Bakhtin para a leitura literária: instrumentalizar para desenvolver o leitor estrategista. Disponível em http://www. ileel.ufu.br/anaisdosilel/wpcontent/uploads/2014/04/silel2011_1036.pdf. Acesso em 25/02/2018. SORRENTI, Neusa. A poesia vai à escola: reflexões, comentários e dicas de atividades. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

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Resumo O romance A resistência (2015), do escritor brasileiro Julián Fuks, intercala episódios das histórias recentes do Brasil e da Argentina, tendo como pano de fundo a busca pela origem do irmão adotivo do narrador personagem. O presente trabalho objetiva analisar o referido romance enquanto espaço de exercício da autoficção, abordando-a como um dos aspectos constituintes da ficção brasileira contemporânea. Tendo o texto literário como corpus principal, buscou-se dialogar com as contribuições teóricas de autores que versam sobre aspectos inerentes ao romance. A partir de um trajeto metodológico que se inicia com a análise dos elementos que compõem a narrativa, buscou-se dialogar com um corpo de construtos teóricos previamente selecionados e verificando o modo como eles se materializam e se articulam na tessitura da narrativa, com destaque em trechos específicos do romance. Na tentativa de compreender a escrita de si enquanto exercício estético buscou-se atentar para como a narrativa pode evidenciar movimentos nos quais as vozes do sujeito que narra/escreve dialogam com o corpo comunitário/coletivo que o constitui. Palavras-chave: Romance brasileiro; Memória; Autoficção; Escritas de si; Ditaduras militares.


MEMÓRIA DA DITADURA MILITAR E AUTOFICÇÃO NO ROMANCE A RESISTÊNCIA João Ricardo Pessoa Xavier de Siqueira1

INTRODUÇÃO O modo como o mercado cultural e midiático vem correspondendo à efervescência do cenário político brasileiro na atualidade pode ser definido como não pejorativamente oportunista em um primeiro plano. A dimensão do político tem sido incorporada como demanda de um público consumidor a ser atendida por setores específicos, como o editorial, o televisivo e o cinematográfico; uma prospecção quantitativa à produção desses setores poderá servir como demonstração do aumento de obras/produções com viés político/ideológico. É nesse contexto que se insere o romance A resistência (2015), do escritor brasileiro Julian Fuks, obra a qual este trabalho se propõe a analisar. O enredo apresenta como justificativa a busca pela origem do irmão adotivo do narrador personagem Sebastián. Ao longo dos quarenta e sete capítulos que integram a narrativa intercalam-se exercícios de autoficção (escrita de si) junto à rememoração de episódios recentes (e traumáticos) das histórias argentina e brasileira ocasionados pelas experiências das ditaduras militares em ambos os países. Vale dizer que o autor, ele próprio, é filho de pais argentinos que migraram para o Brasil na tentativa de escaparem do regime de exceção implantado em seu país, daí decorre a tônica autoficcional 1. Doutorando em teoria da literatura pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco - UFPE. Integrado à linha de pesquisa Literatura, Sociedade e Memória. E-mail para contato: jricardopxsiqueira@hotmail.com 197


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intrínseca à obra, posto haver confluência entre as figuras do autor, narrador e personagem. A resistência (2015) pode ser classificada no rol das chamadas “escritas de si” que, nas palavras de Diana Klinger, são um “sintoma” da época atual, na medida em que se voltam para a própria experiência do autor, marcando assim a exaltação do sujeito. Para a autora: “Assistimos hoje a uma proliferação de narrativas vivenciais, ao grande sucesso mercadológico das memórias, das biografias, das autobiografias e dos testemunhos (...)” (KLINGER, 2008, p. 14). Tais narrativas podem assumir um tom notadamente biográfico/autobiográfico por excelência, demarcado pela pesquisa documental ou recurso a fontes de pesquisa, mas é sobre a matéria ficcional que este trabalho pretende se deter; em um outro dizer, a realidade, a vivência e a experiência aqui servem de base à composição da ficção. Diante do exposto, o presente trabalho tem como objetivo analisar o romance A resistência enquanto espaço de exercício da autoficção, abordando-a como um dos aspectos constituintes da ficção brasileira na contemporaneidade. Tendo o texto literário como corpus principal a ser explorado, buscou-se estabelecer um diálogo entre as contribuições teóricas de autores que versam sobre aspectos inerentes ao romance, tais como: memória, autoficção/escrita de si, trauma e violência nas ditaduras militares. No que concerne à discussão sobre autoficção, autobiografia e escritas de si, foram-nos úteis as contribuições de Klinger (2008, 2012) Lejeune (2008), Butler (2015), para compreender a formação de uma literatura que toma como base a presença de um outro, mas que parte de um si. Sobre o papel que a memória e o trauma exercem na composição da narrativa, destacam-se as contribuições de Ricoeur (2007), Sarlo (2005, 2007), Seligmann-Silva (2013) e Assmann (2016), dentre outros. Partindo-se do arcabouço teórico mencionado acima, pretendeu-se estabelecer uma análise que deslindasse, a partir de trechos selecionados da 198


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obra, a forma como se constitui, se processa e se materializa a memória do trauma e a autoficção na obra literária em questão, considerando-se a escrita como um ato político que parte de si (indivíduo), mas que congrega também o espaço do outro (coletivo).

BREVES CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS SOBRE AS ESCRITAS DE SI: AUTOBIOGRAFIA E AUTOFICÇÃO

Lejeune (2008) afirma que a palavra autobiografia2 foi importada da Alemanha no decorrer do século XIX, tendo por principal objetivo a designação de duas ocorrências: a primeira referente à escrita do próprio sujeito sobre si mesmo e a segunda, contrariamente à primeira opção, designa o processo da escrita de alguém sem que este seja propriamente o sujeito “fundador” da sua biografia, tendo por principal objetivo contar uma trajetória de vida. Uma vez que, no romance objeto de análise deste trabalho, temos um “autor-personagem” tomaremos como definição a primeira designação do conceito de autobiografia. Ainda segundo Lejeune (op. cit.), este recurso literário constitui na modernidade um estilo novo de escrever sobre si, cujo principal objetivo consiste em uma escrita que se volte para representação do “eu”, por meio de uma demonstração da individualidade que se apresenta na escrita biográfica. Desta forma, a autobiografia trata-se de uma maneira de veridicção com o propósito de subjetivar os sujeitos a partir de uma relação que se estabelece com ele mesmo, ou seja, uma relação de si para consigo. Sendo assim, tal modalidade de escrita trata-se de um “jogo” estabelecido entre o “eu” escritor e 2. A definição de autobiografia nos é dada por Philippe Leujeune como sendo a “narrativa retrospectiva em prosa que uma pessoa real faz de sua própria existência, quando focaliza sua história individual, em particular a história da sua personalidade” (LEJEUNE, 2008, p. 14). 199


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o “eu” leitor, através de uma auto-representação que busca uma constituição da estética de si. Portanto, não podemos considerar o gênero em questão como algo pautado em verdades, mas sim a representação de uma identidade pautada nas memórias do sujeito que escreve sobre si mesmo. Contardo Calligaris (1998) situa os relatos autobiográficos como frutos da era moderna3, na medida em que “vivemos em uma cultura em que a marca da subjetividade de quem fala ou escreve constitui um argumento e uma autoridade tão fortes quanto, se não mais fortes que, o apelo à tradição, ou a prova dos “fatos”.” (CALLIGARIS, 1998, p. 44). De maneira complementar, Bella Jozef afirma que “a crescente importância da autobiografia é parte da revolução intelectual caracterizada pelo surgimento de uma forma moderna de consciência história, englobando uma série de escritos ligados à emergência do eu no espaço da modernidade.” (JOZEF, 1998, p. 296). Diana Klinger (2008) classifica as escritas de si como um “sintoma” da época atual, na qual muitas obras literárias se voltam para a própria experiência do autor, marcando assim a exaltação do sujeito. Assistimos hoje a uma proliferação de narrativas vivenciais, ao grande sucesso mercadológico das memórias, das biografias, das autobiografias e dos testemunhos; aos inúmeros registros biográficos na mídia, retratos, perfis, entrevistas, confissões, reality shows; ao surto dos blogs na internet , ao auge de autobiografias intelectuais, de relatos pessoais nas ciências sociais (a chamada antropologia pós-moderna), a exercícios de “ego-história”, ao uso dos testemunhos e dos “relatos

3. Em “A invenção da biografia e o individualismo renascentista”, Peter Burke (1997) sinaliza para a importância do Renascimento enquanto período no qual o primado do antropocentrismo favoreceu uma virada que subverteu a lógica coletiva medieval, e instaurou o “desabrochar do indivíduo”. Para o autor a profusão de textos biográficos (e autobiográficos) nessa época não desabona, contudo, os esforços envidados em torno de registrar a vida dos indivíduos em períodos anteriores à Renascença, devendo ser cada texto em si interpretado como fruto de sua época. 200


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de vida” na investigação social, e à narração autorreferente nas discussões teóricas e epistemológicas (KLINGER, 2008, p. 14).

É interessante pensar a narrativa de A resistência, considerando-a uma escrita de si e a partir da perspectiva proposta por Diana Klinger (2008) que percebe o caráter performático intrínseco a obras dessa natureza. Nas palavras da autora: “A arte da performance supõe uma exposição radical de si mesmo, do sujeito enunciador, assim como do local da enunciação, a exibição dos rituais íntimos, a encenação de situações autobiográficas, a representação das identidades como um trabalho de constante restauração sempre inacabado” (KLINGER, 2008, p. 25). Como condicionantes, o fluxo do tempo, o contexto social, a relação do “eu” que narra (é narrado, ou se faz narrar) com o(s) outro(s) que lhe constituem (o passado em si, o público leitor, ou uma determinada experiência), ditam o ritmo de como se representará o vivenciado e sob qual regime de “verdade” serão julgadas as experiências que se fazem narrar.4 O “eu” que narra, passa a ser então agente da escrita e objeto da escritura, diferenciando-se da noção de sujeito clássico, como bem pontua Derrida quando afirma: “O sujeito da escritura é um sistema de relações entre as camadas: do bloco mágico, do psíquico, da sociedade e do mundo. No interior dessa cena, é impossível encontrar a simplicidade pontual do sujeito clássico.” (DERRIDA, 2002, p. 222). A clivagem do sujeito encontra vazão no ato autobiográfico entendido como performance na medida em que: 4. A promessa de dizer a verdade, a distinção entre verdade e mentira constituem a base de todas as relações sociais. Certamente é impossível atingir a verdade, em particular a verdade de uma vida humana, mas o desejo de alcançá-la define um campo discursivo e atos de conhecimento, um certo tipo de relações humanas que nada têm de ilusório. A autobiografia se inscreve no campo do conhecimento histórico (desejo de saber e compreender) e no campo da ação (promessa de oferecer essa verdade aos outros), tanto quanto campo de criação artística (LEJEUNE, 2008, p. 104) 201


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é o objeto (re)presentado por seu discurso reflexivo, mas tampouco é o efeito, por assim dizer, gramatical de seu discurso. Falando e escrevendo, literalmente, ele se produz. Narrar-se não é diferente de inventar-se uma vida. Ou debruçar-se sobre sua intimidade não é diferente de inventar-se uma intimidade. O ato autobiográfico é constitutivo do sujeito e de seu conteúdo. (CALLIGARIS, 1998, p. 49).

Para Philippe Willemart (2005), a escritura literária se constitui no decorrer das idas e vindas da mente do escritor, por sua mão/corpo, pautada sobre um fio condutor no qual os significantes linguísticos não correspondem (necessariamente) aos significantes do inconsciente. Esse movimento de idas e vindas dialoga, de certo modo, com o expresso por Michel Foucault (2001) em O que é um autor, quando afirma: “na escritura, não se trata da manifestação ou da exaltação do gesto de escrever, nem da fixação de um sujeito numa linguagem; é uma questão de abertura de um espaço onde o sujeito de escrita não deixa de desaparecer.” (p. 270). No caso específico do texto de natureza autobiográfica mais do que o processo de desaparecimento do autor, o trânsito dos significantes evidencia o encontro do eu textual com o eu narrador, o que consagra a autobiografia como espaço dialético entre o eu e o outro (JOZEF, 1998). É esse trânsito entre autobiografia e autoficção que se faz perceber quando da leitura de A resistência e se tem conhecimento acerca da vida e das vivências do autor e da sua família.

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MEMÓRIA E TRAUMA DA DITADURA MILITAR NO ROMANCE BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Dentre os acontecimentos que contribuíram para a caracterização do século XX como sendo a “era das catástrofes”, ou “dos extremos”5, as ditaduras militares instauradas na segunda metade do século no continente latino-americano podem ser consideradas como fenômenos que reforçam esta ideia. Regimes de exceção por natureza, em que pese o seu caráter notadamente antidemocrático, autoritário e totalitário, as ditaduras militares latino-americanas situam-se como rasgos que maculam o recente e prematuro histórico democrático desses países. Sustentado pelo jugo do militarismo e fomentado pela ideologia cega de uma elite política em prol de uma falsa ideia de desenvolvimento e “ordem”, o passado ditatorial latino-americano é permeado por um histórico de repressão e violência responsável pelo surgimento de várias vítimas - dentre as quais estão os milhares de mortos, desaparecidos, torturados, perseguidos e exilados -, além de contribuir para o processo de inscrição do trauma na memória coletiva representado por esse período. Em Sobre o conceito de História, Walter Benjamin afirmou que “não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie” (BENJAMIN, 2016, p. 13). Desse modo, uma análise das narrativas que têm como pano de fundo a ditadura militar brasileira não pode ser desvinculada da barbárie da qual são resultantes na medida em que, enquanto registro, buscam dar vazão à experiência daqueles que a ela foram submetidos. Materializa-se a dor e o sofrimento; funcionam como um espaço de lamentação e rememoração, sinalizando para as gerações presentes e futuras, o horror e os efeitos do cerceamento da liberdade e da prisão do corpo. 5. HOBSBAWM, Eric. Era dos Extremos: o breve século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. 203


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Voltamo-nos, pois, para as narrativas que se comprometem paradoxalmente com a transmissão do inenarrável, exercícios de rememoração que implicam em uma atenção voltada e mediada pelo presente, na medida em que não se ocupam unicamente de não esquecer o passado, na medida em que se constituem como um compromisso com os mortos, os desaparecidos, os anônimos. “O dever de memória é o dever de fazer justiça, pela lembrança a um outro que não o si” – a afirmação de Paul Ricoeur (2007, p. 101) afina-se com a obsessão pela sobrevivência relatada por Primo Levi (1995) em É isto um homem? – a esperança de sobreviver alimentava-se pela expectativa de poder (e pelo dever de) relatar o vivido; um relato que, embora individual, comportasse as vozes e fizesse representar os ausentes. É nesse escopo que se situam as narrativas constituídas a partir de experiências vivenciadas na ambiência do real6 e que se configuram segundo um fluxo performativo de memórias individuais de modo a ressignificar o tecido histórico e intervir na memória coletiva. Aqui nos encontramos novamente diante de um dos traços ético-estéticos que balizam a literatura, qual seja o componente da liberdade, operador poético e político que torna possível a manifestação múltipla de vozes na celebração de um páthos perene, e que se faz imprescindível ao exercício autônomo da arte literária em sua difícil tarefa de muitas vezes ter que “dizer o indizível”. Em Literatura e ética: da forma para a força, Diana Klinger (2014), ao refletir sobre a experiência do trauma no campo literário, indaga se o enfrentamento do medo seria uma forma possível de reconhecê-lo enquanto elemento intrínseco à vida. Para a autora, “o medo e a literatura convivem. Porque parece não haver mundo fora da literatura e do mal. Mas a literatura 6. O “real” não deve ser confundido aqui com a “realidade” tal como ela era pensada e pressuposta pelo romance realista e naturalista; o ‘real’ que nos interessa aqui deve ser compreendido na chave freudiana do trauma, de um evento que justamente resiste à representação” (SELIGMANN-SILVA, 2013, p. 273) 204


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não é uma compensação do mal do mundo, pelo contrário, está imersa nele, está contígua a ele, faz parte desse mesmo mal.” (KLINGER, 2014, p. 133). A noção de medo destacada acima é partidária da discussão suscitada por Georges Bataille que, em seu livro A literatura e o mal, ao buscar o “sentido da literatura”, afirma, taxativamente: “a literatura é o essencial, ou não é nada.” Para o autor, na composição dessa essencialidade entra o Mal – do qual seria a literatura uma das formas de expressão – e cuja admissibilidade não implicaria necessariamente na “ausência de moral”, mas sim a conformidade com as regras de uma “hipermoral” que balizaria a literatura enquanto ato de comunicação7 (BATAILLE, 1989). Diante desse quadro, delineia-se uma relação de conflito provocada pela perturbação/tumulto na noção de literatura enquanto representação do belo e do harmônico; daquilo que é capaz de sublevar e fazer transcender evolutivamente o espírito humano. A literatura aqui é espaço de reprodução e figuração do mal, do horror, do trauma e da dor, concebidos não a partir de um matiz fantasioso, mas derivados da experiência vivenciada pelos sujeitos que a elaboram as narrativas a partir do real, do que foi vivido e sofrido. Relatos que se constituem a partir de experiências subjetivas em contextos de cerceamento da liberdade individual, da violência institucionalizada por regimes políticos de exceção e que resultaram em traumas que se expurgam por meio do exercício literário. A literatura é, pois, esse lugar de memória8 posto constituir uma espécie de “memória-dever” dos que sobrevivem (e buscam não esquecer) apoiada 7. A literatura é comunicação. A comunicação impõe a lealdade; a moral rigorosa, neste aspecto, é dada a partir de cumplicidades no conhecimento do Mal, que estabelecem a comunicação intensa. A literatura não é inocente, e, culpada, ela deveria enfim, se confessar como tal. (BATAILLE, 1989, p. 9-10). 8. Para Pierre Nora, “os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora.” (NORA, 1993, p. 12). 205


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em uma “memória-arquivo” – haja vista a necessidade de suportes exteriores, referências tangíveis (e visíveis) – concretizando a vontade de memória. (NORA, 1993). Neste ponto, faz-se necessário admitir que um determinado tipo de consciência histórica transcende a noção de conhecimento sobre o passado para adquirir o status de memória, haja vista a sua relação com o conceito de identidade. Afinal, “memória é conhecimento dotado de um índex dotado de identidade, é conhecimento sobre si (...) é a identidade diacrônica própria de alguém, seja como indivíduo ou como membro de uma família, uma geração, uma comunidade, uma nação ou uma tradição cultural e religiosa” (ASSMANN, 2016, p. 112). Nesse sentido, a narrativa de Julian Fúks se insere em um espectro literário de micro-histórias cujo escopo se perfaz na (re)ativação memorialística que contribui para a elaboração de uma macro-história das ditaduras; uma história que incorpore a visão a dos desaparecidos políticos à dos arquivos oficiais. São narrativas que, produzidas em contextos cerceadores da liberdade, apresentam uma capacidade de resposta moral a uma lógica militar que restringiu a capacidade de resposta moral à violência de maneiras incoerentes e injustas. Assim, “(...) a força esmagadora do luto9 e da perda transforma-se em um instrumento de insurgência e mesmo um desafio à soberania individual” (BUTLER, 2015, p. 92). Do culto ao luto e à persistência da memória/lembrança flui a necessidade de narrar o horror. Cumpre lembrar as alegorias atribuídas à figura do narrador por Walter Benjamin (1994) com base nas narrativas do pós primeira guerra: 1) o narrador seria a figura do justo na qual se encontra consigo 9. O luto público está diretamente relacionado à indignação diante da injustiça ou de uma perda irreparável, possuindo um enorme potencial político “(...) se estamos falando de luto público ou de indignação pública, estamos falando de respostas afetivas que são fortemente reguladas por regimes de força e, algumas vezes, sujeitas à censura explícita (BUTLER, 2015, p. 66).” 206


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mesmo; uma figura com raízes na mística judaica cuja principal característica seria o anonimato; 2) o narrador também seria a figura do trapeiro, do lixeiro, cujo objetivo não é deter-se sobre grandes feitos, mas recolher os fatos que aparentemente não teriam valor para o discurso histórico oficial. Beatriz Sarlo (2005) afirma que as narrativas sobre as ditaduras e o trauma constituem uma espécie de convite que impede o esquecimento, sendo uma forma de manter viva a memória do horrível, do sinistro, do trágico, com toda a carga de irracionalidade que pode envolver o ser humano. Para a autora, a narração situa a experiência numa temporalidade que “não é a do seu acontecer (ameaçado desde seu próprio começo pela passagem do tempo e pelo irrepetível), mas a de sua lembrança. A narração também funda uma temporalidade, que a cada repetição e a cada variante torna a se atualizar.” (SARLO, 2007, p. 25). Nesse aspecto, as representações que subjazem a esse tipo de narrativa possibilitam, além do confronto com uma realidade demarcada pela subjugação individual a uma lógica repressiva e totalitária, o cruzamento de saberes e lembranças que são ativados mediante a experiência literária.

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A MEMÓRIA COMO MATÉRIA PARA A COMPOSIÇÃO AUTOFICCIONAL EM A RESISTÊNCIA: ANÁLISES POSSÍVEIS Vencedor dos prêmios Jabuti e Oceanos no ano de 2016 na categoria romance, A resistência (2015) de Julián Fuks apresenta exercícios de escritura que traduzem bem o cenário da literatura brasileira contemporânea. Sobre o enquadramento da obra no contexto da contemporaneidade, pode-se dizer que se justifica não só pela sua recente publicação, mas também pelo modo como se estrutura a narrativa e pela maneira como adentra a escrita de si encetando uma dinâmica que favorece a autoficção que se materializa entre a experiência daquilo que foi vivenciado e a tessitura ficcional. Parte-se aqui do conceito de autoficção que nos é fornecido por Azevedo o qual define autoficção como “uma estratégia da literatura contemporânea capaz de eludir a própria incidência do autobiográfico na ficção e tornar híbridas as fronteiras entre o real e o ficcional, colocando no centro das discussões novamente a possibilidade do retorno do autor” (AZEVEDO, 2008, p. 31). Essa definição é complementada por Diana Klinger, que a respeito dessa feição performática, afirma que “o que interessa na autoficção não é a relação do texto com a vida do autor, e sim a do texto como forma de criação de um ‘mito do escritor’” (KLINGER, 2007, p. 48). Diante desse cenário, ao longo dos quarenta e sete capítulos o leitor é conduzido pela prosa de Fuks e pelo olhar de Sebastián - narrador personagem; prosa essa que oscila entre o tom confessional/(auto) biográfico e o (auto)ficcional/mimético, na medida em que se confundem, por vezes, as trajetórias do próprio autor com a do narrador personagem. Sobre a natureza do romance e a forma como se intercalam ficção e realidade (vivência/ experiência) no processo de criação literária, afirma Julián Fuks: 208


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é uma narrativa de autoficção, construída a partir de uma série de vivências familiares. Tem como ponto de partida a adoção do meu irmão, antes que eu nascesse, e a militância dos meus pais durante a ditadura militar argentina, a perseguição de que foram vítimas, o exílio no Brasil. Para tratar de assuntos tão íntimos, tão pessoais, me pareceu importante abordar a questão da forma mais direta e sincera possível, e a voz em primeira pessoa, em tom que evoca o confessional, foi a única possível para isso. Mas é claro que o livro não retrata de maneira literal a experiência vivida: há ficção na medida em que há construção estética, a constante escolha da forma mais expressiva de narrar essas histórias. 10

O enredo apresenta, pois, como mote norteador a busca empreendida pelo personagem principal pela história do seu irmão adotivo; nessa busca mesclam-se tempos e cenários nos quais se intercalam as recentes histórias (e memórias) dos regimes ditatoriais impetrados na Argentina e no Brasil. Assim como os pais de Julián Fuks, os pais de Sebastián migram para o Brasil de modo a escapar dos rigores da ditadura argentina, e, em aqui chegando, deparam-se também com um cenário de repressão política. À medida que empreende uma viagem à Argentina em busca das raízes do irmão adotivo, o personagem principal reconstrói a história familiar, traçando uma saga que se inicia com a vinda dos avós da Europa – assolada pela ameaça do totalitarismo em países como Itália e Alemanha – cheios de esperança de reiniciar suas vidas no continente sulamericano. Nesse sentido, a procura pelas raízes do irmão serve como uma espécie de “pretexto”, de motivação para Sebatián recompor a sua própria história, uma história marcada pelo exílio, pela busca (de si e do outro) e pela violência recente perpetrada pelos regimes de exceção, tanto na Argentina, como no Brasil. A marca genealógica, e o peso 10. Disponível em: http://www.diariodepernambuco.com.br/app/noticia/viver/2017/06/07/internas_ viver707720/julian-fuks-faz-autoficcao-com-narrativa-confessional.shtml. Acesso em 20 abr. 2018. 209


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do passado, da migração e da incerteza quanto ao possível futuro se fazem vislumbrar no trecho que segue, no qual se percebe o questionamento do personagem principal não só como forma de estabelecer um diálogo direto com o leitor, mas também como forma de tentar apreender-se de si mesmo, de sua própria história e da formação de sua identidade: Sei que se tratava de um exílio, de uma fuga, de um ato imposto pela força, mas não será toda migração forçada por algum desconforto, uma fuga em alguma medida, uma inadaptação irredimível à terra que se habitava? Ou estarei, com estas ponderações insensatas, com estas indagações inoportunas, desvalorizando suas lutas, depreciando suas trajetórias, difamando a instituição do exílio que durante anos nos exigiu a maior gravidade? (FUKS, 2015, p. 34)

Apesar do forte cunho historiográfico, tendo em vista a menção a episódios recentes da história sulamericana, trata-se de um romance no qual o apelo identitário se sobrepõe aos demais aspectos. A narrativa transcorre em meio a um tempo presente, no qual se instaura a busca e a escrita do romance em si, e a flashbacks – quando da retomada de lembranças dos tempos em que viviam na Argentina e quando da mudança para o Brasil. A variação de tempos e cenários verifica-se nos trechos transcritos abaixo: Caminho pelas ruas de Buenos Aires, observo o rosto das pessoas. Escrevi um livro inteiro a partir da experiência de caminhar por Buenos Aires e observar o rosto das pessoas. Queria que me servissem de espelho, que em cada esquina me replicassem, que eu me descobrisse argentino pela simples aptidão de me camuflar, e que assim pudesse enfim passear entre iguais. (FUKS, 2015, p. 18) (...)

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O que fazíamos nas incontáveis noites em que dividimos o quarto? Quem dormia primeiro, relegando o outro ao silencio e à escuridão inabitável, ao medo das sombras, ao susto dos estalos? (...) Por oito anos convivi com meu irmão no mesmo quarto, nos mesmos quartos sucessivos, e não consigo recordar como conversávamos, se nos divertíamos (...) Era fértil a imaginação daquela época, fecunda ficção que hoje me abandona. Não consigo lembrar como era passar um minuto, dez minutos, uma hora ao seu lado, e também não consigo inventá-lo. (grifo meu) (op. cit. pp. 20 – 21)

Os trechos destacados funcionam não só de modo a situar o leitor em espaços e tempos distintos, como também servem como amostra de uma reflexão por parte do autor-narrador-personagem em torno do próprio oficio da escrita. Percebe-se certa inquietação e até mesmo um tipo de desconforto materializados na narrativa através da denúncia da falibilidade e fragilidade da memória e da recordação. O narrador afirma não conseguir lembrar e, no entanto, nos conta sua história, deixando à deriva o leitor no que concerne a ser fiável (ou não) a sua narrativa. Aliás, esse é um recurso amplamente utilizado por Fuks ao longo do romance; questionar-se, colocar-se (e nos colocar) à deriva quanto à procedência do que foi experienciado, são formas de sobrepor o processo de construção da narrativa ao estatuto verossímil e pretensamente factual da ficção, assim entendida em seu sentido tradicional. Entender a memória como seletiva, e por vezes incompleta e traiçoeira, em nenhum momento compromete o andamento do romance, tendo em vista que ao longo de sua construção não há necessariamente um compromisso com a verdade, com a exatidão afeita aos registros históricos; até porque a própria incerteza e inexatidão que cortam o discurso do narrador se mostram como elementos que compõem e atravessam, estrategicamente, o tecido da narrativa.

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A falha e a incerteza da memória, antes de serem uma fraqueza na narrativa de Fuks, se mostram como um de seus pontos fortes, tendo em vista que são exploradas como recurso na exploração de um exercício que nos conduz a pensar o romance como espaço para a metaficção. É o que se depreende a partir dos trechos que seguem: Na minha lembrança os olhos do meu irmão estavam lacrimosos, mas desconfio que essa seja uma nuance inventada, acrescida nas primeiras vezes que rememorei o episódio, turvado já por algum remorso. (...) O caso é que não me olharia, não viraria para trás. Talvez fossem os meus, os olhos lacrimosos. (op. cit., p. 14)

Isto não é uma história. Isto é história. Isto é história e, no entanto, quase tudo o que eu tenho ao meu dispor é a memória, noções fugazes de dias tão remotos, impressões anteriores à consciência e à linguagem, resquícios indigentes que eu insisto em malversar em palavras. (...) sei bem que nenhum livro jamais poderá contemplar ser humano nenhum, jamais constituirá em papel e tinta sua existência feita de sangue e carne. Mas o que digo aqui é algo mais grave, não é um formalismo literário: falei do temor de perder meu irmão e sinto que o perco a cada frase. (...) Estarei com este livro tratando de lhe roubar a vida, de lhe roubar a imagem, e de lhe roubar também, furtos menores, o silêncio e a voz? Não consigo decidir se isto é uma história (op. cit. pp. 23-25)

A instabilidade do narrador quanto à fiabilidade da sua própria narrativa – o que se denota por termos como talvez, turvado, noções fugazes, impressões, resquícios – instaura uma espécie de “pacto” entre autor-narrador-personagem e o leitor, cabendo a este último aceitar a relutância e a fluidez que conduzem o romance. O status do narrador contemporâneo, aquele destituído de certezas absolutas e da constância e fixidez do discurso, é bem traduzido no ensaio “O narrador”, de Walter Benjamin, sobre o qual escreve Jeanne Marie 212


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Gagnebin (2014), cujo argumento se encaixa em uma tentativa de compreensão da figura e da posição ocupada por Sebastián:

‘O narrador’ formula outra exigência; constata igualmente o fim da narração tradicional, mas também esboça como que a ideia de uma outra narração, uma narração nas ruínas da narrativa, uma transmissão entre os cacos de uma tradução em migalhas. (...) Podemos reter da figura do narrador um aspecto muito mais humilde, bem menos triunfante. (...) O narrador também seria a figura do trapeiro , do catador de sucata e de lixo. Esse narrador sucateiro não tem por alvo recolher os grandes feitos. Deve muito mais apanhar tudo aquilo que é deixado de lado como algo que não tem significação, algo que parece não ter importância nem sentido, algo com que a história oficial não sabe o que fazer” (grifo meu) (GAGNEBIN, 2014, pp. 53-54)

A memória é tratada ao longo do romance em seu aspecto de escombro, de rastro, de resquício, de ruína, algo que não se depreende de maneira imediata como um todo coeso e homogêneo, mas que se materializa por meio do exercício de rememoração, do esforço tensional que se traduz pelos movimentos que oscilam entre o lembrar e o esquecer. Nas palavras de Márcio Seligmann-Silva “a memória só existe ao lado do esquecimento: um complementa o outro, um é o fundo sobre o qual o outro se inscreve” (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 53). O presente argumento é reforçado nos trechos seguintes: Há algo que não quero lhes perguntar. Há muitas coisas que não quero voltar a perguntar, que prefiro evocar de palavras guardadas na obscuridade da memória, palavras que já esqueci mas que minha mente cuidou de transformar em vagas noções, turvas imagens, impressões duvidosas. Com esses escombros imateriais tenho tratado de construir o edifício da história, sobre alicerces subterrâneos tremendamente instáveis.

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Há algo, no entanto, que não conheço sequer nos limites dessa precariedade, algo que jamais me contaram, e que ainda assim não quero, ou não posso, lhes perguntar. (FUKS, 2015, p. 90) (...) Visito o museu da memória, transito pelos corredores sinistros, me deixo consumir ainda uma vez pelos mesmos destinos trágicos, as mesmas tristes trajetórias. (op. cit. p. 93)

Os trechos destacados reforçam não só a ideia de memória (e lembrança) tratada como ruína, rastro, resquício, mas também como fenômeno que é recorrente no tempo presente. De fato, embora inicialmente calcado em um passado, o exercício de rememoração só pode ser materializado quando da ocorrência de um presente que evoca, organiza e sedimenta a memória. Como bem articulam Gagnebin e Seligmann-Silva nos excertos abaixo colacionados:

A rememoração também significa uma atenção precisa ao presente, em particular a estas estranhas ressurgências do passado no presente, pois não se trata somente de não se esquecer do passado, mas também de agir sobre o presente. a fidelidade ao passado, não sendo um fim em si, visa à transformação do presente. (GAGNEBIN, 2014, p. 55). Aquele que se recorda deve percorrer essas paisagens mnemônicas descortinando as ideias por trás das imagens. Essa anedota que está na origem da tradição clássica da arte da memória deixa entrever de modo claro não apenas a profunda relação entre memória e o espaço, e portanto notar em que medida a memória é uma arte do presente, mas também a relação entre memória e catástrofe, entre memória e morte, desabamento. (SELIGMANN-SILVA, 2003, p. 56).

No que concerne especificamente ao papel da memória e da lembrança atinentes à ditadura militar (tanto a brasileira como a argentina), percebe-se que no desenrolar da trama ele funciona não só como pano de fundo aos 214


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acontecimentos que antecedem a vinda da família de Sebastián para o Brasil, mas também como uma espécie de “sombra”, de “fantasma” que acompanham o narrador-personagem na busca e na construção da narrativa11. Sombra essa que ronda a história em torno da origem do irmão adotivo, tendo em vista ser comum no caso argentino a figura do desaparecido; entre as vítimas era usual encontrarem-se não só os perseguidos políticos, mas também se denunciam casos de crianças, raptadas de seus pais, ou mesmo nascidas no cárcere e posteriormente destinadas à adoção por famílias argentinas, ou estrangeiras12 . É transparente e inegável a tônica em torno do componente político que permeia o romance de Julian Fuks, não só pela retomada de episódios traumáticos de uma história recente, mas também pelo alerta subjacente à necessidade do não esquecimento na atualidade, como nos trecho seguintes: A quem, é o que pergunto, que se interessaria hoje por tão mesquinhos meandros de um tempo distante, e a resposta que meu pai repete é uma absurda mescla de devaneio e lucidez: as ditaduras podem voltar, você deveria saber. As ditaduras podem voltar, eu sei, e sei que seus árbitros,

11. O modelo argentino de repressão traz consigo além da figura do desaparecido - cuja força e permanência na memória se faz representar por movimentos/associações tais como Las Madres y Abuelas de la Plaza de Mayo – uma estrutura em rede que tornava a face do terror muito mais explícita, qual seja: os campos de concentração e extermínio. Localizados em dependências de órgãos de segurança e operados pelas polícias e Forças Armadas, os campos de concentração eram, no dizer de Pilar Calveiro (2013) “máquinas de torturar, arrancar informação, aterrorizar e matar”, tendo como objetivo a desumanização permanente dos prisioneiros. O processo de desumanização tornava mais “fácil” a tortura para o torturador, já que castigava um corpo sem face, despojado de identidade, haja vista ter sido suspenso qualquer padrão de humanidade à época naquele país. 12. Destaca-se o filme argentino A história oficial, ganhador do Oscar em 1985, no qual é demonstrada a história de uma mãe em busca da história das origens de sua filha adotiva. O filme retrata de maneira precisa o contexto histórico e social da Argentina, quando da recente abertura democrática no pósditadura, bem como ressalta o papel da organização Abuelas de la Plaza de Mayo. 215


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suas opressões, seus sofrimentos, existem das mais diversas maneiras, nos mais diversos regimes, mesmo quando uma horda de cidadãos marcha ás urnas bienalmente – é o que penso ao ouvi-lo mas me privo de dizer, para poupá-lo da brutalidade do mundo ou por algum receio de que não me entenda. (op. cit., p. 40)

Os capítulos finais encetam o clímax do romance, aparecendo como cenários onde Julián Fuks exibe-se com destreza no exercício autoficcional. Trata-se do desfecho do percurso do narrador-personagem, no qual a mescla entre ficção, autoficção e metaficção combinam-se de modo a conferir à narrativa a tônica do deslize e da ambiguidade instaurada entre o binômio realidade e criação, resultando no verossímil.

Na noite passada meus pais leram o livro que lhes enviei, enganaram a insônia com estas páginas, por algum tempo estiveram depurando o que poderiam comentar, como lidariam com esta situação um tanto exótica. (...) sentiram-se partidos entre leitores e personagens, oscilaram ao infinito entre história e história. É estranho, minha mãe diz, você diz mãe e eu vejo meu rosto, você diz que eu digo e eu ouço a minha voz, mas logo o rosto se transforma e a voz se distorce, logo não me identifico mais. Não sei se essa mulher sou eu, me sinto e não me sinto representada, não sei se esses pais somos nós. (...) Você não mentem como costumam mentir os escritores, e no entanto a mentira se constrói de qualquer forma; não sei, talvez eu queira apenas me defender com este comentário (...) você é fiel à sequência dos fatos, fiel como se pode ser fiel às instabilidades da memória. (...) Me lembro e não me lembro de muito do que você narra, dos vários episódios ásperos, mas é evidente o seu compromisso com a sinceridade. (...) Apreciei em todo caso, que houvesse ao menos um desvio patente, vestígio de outros tantos desvios, apreciei que nem tudo respondesse ao real ou tentasse ser seu simulacro. (op. cit., p. 135)

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As divagações da mãe de Sebastián funcionam no trecho destacado como parâmetros atestadores dos exercícios auto (e meta ficcionais) de Julián Fuks, na medida em que se denuncia no enunciado uma série de duplicidades tensionais que se vêm se confirmando ao longo da narrativa até então, a saber: realidade-ficção, lembrar-esquecer, ser narrador-ser personagem da própria história. A afirmação é corroborada pelo componente identitário referente ao narrador-personagem, pois, em sendo a identidade um elemento não fixo, e, portanto, mutável, também se encontra em oscilação, em transformação constante. É o que se percebe quando do capítulo final, oportunidade de encontro entre os dois irmãos, no qual Sebastián entregará ao irmão o romance escrito: Sou e não sou o homem que atravessa o corredor (...). Na memória indelével do corpo guardo ainda o menino que tantas vezes ali hesitou, o menino que alguma vez fui, ou sou apenas o homem que chega à porta e ergue o punho cerrado com decisão? (...). Súbito sou eu, menino ou adulto, que se faz objeto de um escrutínio, sou eu que devo responder aos ecos discretos do tempo. E então já não sei se fui suficiente, se fui o irmão possível, se fui bom o bastante, se fui sincero, se fui sensível. (...) Meu irmão abre a porta e não me traz respostas: em sua presença as perguntas se dissipam. (...). Entro de cabeça baixa no quarto e é como se o ocupasse, como se não restasse espaço para mais nada: noto que no quarto não cabem palavras. Em segundos lhe darei o livro, e talvez as palavras encontrem o seu lugar. Por ora, agora sim, me limito a olhar meu irmão, ergo a cabeça e meu irmão está lá, abro bem os olhos e meu irmão está lá, quero conhecer o meu irmão, quero ver o que nunca pude enxergar (FUKS, 2015, p. 138-139).

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Embora não se possa negar que a autoficção é mais um recurso estilístico do que elemento necessariamente o fio condutor do romance – haja vista a afinidade patente entre a biografia do autor e a trajetória da personagem – o que nos fica da apresentação dessa análise de leituras possíveis de A resistência, é a tônica fortemente identitária impregnada à obra. Uma busca na qual não deixam de ser desveladas a fragilidade e a inconstância do sujeito que se deixa conduzir e se permite se perder nos deslizes e inconsistências da memória; como dito, longe de ser apontado como fraqueza essa aparente incongruência é utilizada com desenvoltura por Julián Fuks que soube manusear a incerteza de modo a cativar o leitor, tornando-a um forte em sua poética.

CONCLUSÕES

“Se certamente sempre se escreveram histórias de vidas, por outro lado, a ideia de que a vida é uma história é moderna.” A afirmação de Contardo Calligaris (1998) aponta não só para o marco histórico que sinaliza a modernidade enquanto berço da valorização das escritas de si e dos textos autobiográficos, mas também nos fornece indícios de uma possível crise do narrador/narrativa sinalizada por Adorno (1995) a partir da constatação de que a ficção não daria conta de abarcar em totalidade a realidade. Na tentativa de compreender a escrita de si enquanto exercício estético buscou-se atentar para o modo como a narrativa pode se compor coletivamente, evidenciando movimentos nos quais as vozes do sujeito que narra/escreve dialogam com a presença do corpo comunitário/coletivo que o constitui. No caso específico, à voz do narrador somam-se as sombras do passado histórico às quais subjazem as perdas, mortes e traumas resultantes do período das 218


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ditaduras militares no Brasil e na Argentina. O sujeito que escreve, confronta-se e se vê refletido no processo de constituição de sua própria narrativa; no buscar-se a si mesma há um embate doloroso, porém necessário, com um(ns) outro(s) que a constituem no tempo da escrita. No caso da obra em destaque a memória funciona não só como fio condutor da narrativa, mas como elemento capaz de despertar nos leitores a sua porção de humanidade na medida em que propõe um exercício de resgate histórico mediado pela alteridade. Reforça-se, assim, a qualidade do homem enquanto animal político, posto ser um animal literário, capacitado a se desviar de seus instintos naturais graças ao trabalho com as palavras; elementos que, quando manejados de modo a se atingir um determinado objetivo estético, trazem consigo a carga de sentimento imanente aos corpos que as liberam.

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Resumo Este estudo, recorte de uma pesquisa voltada para a multimodalidade e os multiletramentos nos anos finais do ensino fundamental, tem como objetivo destacar a importância de um ensino de língua materna que considere as novas e múltiplas formas linguísticas dos nativos digitais, em toda sua multimodalidade, no intuito de proporcionar um ensino de língua materna mais significativo e associado à realidade dos alunos. Nessa perspectiva, levamos em consideração os postulados teóricos de Dionísio (2006), Lima (2015), Queiróz (2005), Rojo e Moura (2012) dentre outros; bem como analisamos as resenhas contidas no PNLD 2017 para observar as atividades com gêneros multimodais, notadamente no que concerne ao letramento visual. Os resultados dessa análise indicam que muito ainda precisa ser feito nesse campo e que a pedagogia dos multiletramentos precisa ser mais levada em consideração. Palavras-chave: Ensino de língua materna; gêneros multimodais; multimodalidade e multiletramentos; letramento visual.


MULTIMODALIDADE E MULTILETRAMENTOS. Algumas considerações teóricas e metodológicas1

Maria Lúcia Ribeiro de Oliveira 2

INTRODUÇÃO Com o advento das novas tecnologias no mundo contemporâneo, a sociedade atual passa por uma das mais significativas revoluções, esta que não se limita ao campo técnico, mas se expande para o âmbito comportamental e isso pode ser evidenciado em nossas salas de aula. Nesse sentido, faz-se necessária e urgente, no meio pedagógico, mais especificamente na área do ensino de língua materna, uma pedagogia voltada para esse novo mundo da multimodalidade que demanda novos e múltiplos letramentos. A linguagem, como sabemos, é um sistema vivo e dinâmico, sempre disposto a diversas modificações em prol da comunicação entre os seres; e essas mudanças se dão em conformidade com o meio social, o qual, de acordo com as necessidades de interação, vai moldando os modos de significação de uma mensagem, ou mesmo a maneira de simbolizar os elementos do mundo. Nessa perspectiva, devemos observar que, na era atual, apenas o signo linguístico não é mais a única forma de interação, mas as imagens vêm sendo, 1. Este trabalho é um recorte da pesquisa desenvolvida no NUPIC (Núcleo de Pesquisa e Iniciação Científica), na FAFIRE, sob o título Multimodalidade e multiletramentos nos anos finais do ensino fundamental, juntamente com o aluno-pesquisador Lucas Santana de Souza Ferreira, no ano de 2017. 2. Professora da graduação e da pós-graduação da Faculdade Frassinetti do Recife e mestra em Letras/ Linguística pela UFPE. E-mail: ribeirodeoliveiraml@gmail.com. 223


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a cada dia, elementos indispensáveis à comunicação. Desta forma, vemo-las em livros didáticos; nas redes sociais; nos outdoors; nas produções cinematográficas, que a cada dia, produzem formas mais refinadas de alta definição, tudo em prol de uma experiência real e dinâmica. Sendo assim, nosso estudo consiste em apresentar algumas considerações teóricas e consequentes implicações metodológicas, com base nos estudos teóricos e metodológicos de Dionísio (2006), Lima (2015), Queiróz (2005), Rojo e Moura (2012), dentre outros. Nosso estudo também analisa alguns livros didáticos no sentido de observar como os gêneros multimodais estão sendo abordados em suas sugestões de atividades como proposta de multiletramentos. Este artigo está organizado em quatro seções, a saber: 1) Multimodalidade e multiletramentos, na qual conceituamos esses dois elementos e fazemos algumas considerações quanto ao ensino de línguas; 2) Gêneros multimodais, onde demonstramos as características intrínsecas aos modos de manifestação textual da alta modernidade; 3) Letramento visual, na qual abordamos a importância de um ensino que leve em consideração as mais diversas formas de comunicação, o qual deve ocorrer de modo crítico, principalmente por meio das imagens, ou seja, pelo letramento visual; 4) Multimodalidade e multiletramentos, nos livros didáticos, onde apresentamos os resultados de uma breve análise feita nas resenhas contidas PNLD, 2017, nos quais buscamos a abordagem dos gêneros multimodais.

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MULTIMODALIDADE E MULTILETRAMENTOS: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Sabemos que o ensino de línguas, no Brasil, por muito tempo pautou-se em práticas de letramento centradas no signo linguístico, deixando de lado os saberes dos educandos apreendidos em seu contexto social. Com o advento da pós-modernidade, a escola vem recebendo coerções significativas no que compete tanto ao ensino de línguas quanto à sua metodologia, como afirmam Rojo; Moura (2012, p. 147), no sentido de que essas coerções “relacionam-se aos novos modelos discursivos que permeiam as relações sociocomunicativas dos sujeitos”, ou seja, os diferentes gêneros textuais organizados por diferentes modalidades de linguagem verbal oral, não verbal, imagética e sonora, dentre outras. Dessa forma, torna-se imprescindível a abordagem da multimodalidade e multiletramentos na sala de aula, ou seja, a combinação de diversos elementos ou gêneros na formatação de um determinado evento. No que compete aos multiletramentos, seu conceito vai além do termo letramento, pois este se compromete apenas com o uso social da modalidade escrita, enquanto aquele leva em conta as diversas modalidades vigentes na sociedade como um todo: linguagem verbal oral/escrita e não verbal. Como afirmam Rojo e Moura (2012, p. 8):

[...] trabalhar com multiletramentos pode ou não envolver (normalmente envolverá) o uso de novas tecnologias da comunicação e de informação (‘novos letramentos’), mas caracteriza-se como um trabalho que parte das culturas de referência do alunado (popular, local, de massa) e de gêneros, mídias e linguagens por eles conhecidos, para buscar um enfoque crítico, pluralista, ético e democrático - que envolva agência – de textos/discursos que ampliem o repertório cultural, na direção de outros letramentos. 225


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Sendo assim, o uso da multimodalidade e multiletramentos no ensino de línguas, notadamente da língua materna, além de proporcionar um ambiente de estudo dinâmico e abrangente, por levar em conta a realidade do alunado, promove a interação dos saberes conhecidos pelos alunos e os saberes oferecidos pela escola em que o saber científico passa a dialogar com outros saberes; no caso da escola, com o dos alunos; acrescente-se ainda que essa metodologia não se restringe apenas ao ensino de línguas, podendo ser transposta para o âmbito extraescolar, a partir do momento em que faz com o que o indivíduo esteja apto a reconhecer e atuar sobre as diversas tipologias culturais e ideológicas que circundam a sociedade através dos gêneros multimodais. Conforme afirma Rojo (2012, p. 23), “os multiletramentos são interativos e, mais que isso, colaborativos; faturam e transgridem as relações de poder estabelecidas (máquinas, ferramentas, ideias, textos [verbais ou não]); e são híbridos, fronteiriços, mestiços (de linguagem, modos, mídias e culturas)”. Rojo (2010) afirma, também, na questão dos multiletramentos, levando-se em conta a multimodalidade, que todo texto é multimodal, isto é, não havendo apenas uma única modalidade, mas havendo sempre uma delas como predominante. Quanto à utilização das novas tecnologias por docentes, Rojo (2010, p.54) afirma ser: “uma nova forma de entender como as tecnologias da informação e comunicação podem auxiliar no processo de construção e compartilhamento de conhecimentos, explorando novas práticas de letramento”. Portanto, é notória essa necessidade de variação entre os diferentes meios de letramentos, através da interculturalidade, interdisciplinaridade, plurilinguagens, multimídias (por meio dos equipamentos midiáticos) e com uso dos hipertextos (um dos que requerem novos letramentos) e das hipermídias, onde possa haver essa multissignificação e complexidade dentro de um todo, pois como afirma Lima, 226


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Os multiletramentos estão relacionados à diversidade de culturas e de linguagens incorporadas ao nosso cotidiano graças aos avanços tecnológicos. O nosso meio social é eminentemente marcado pelo plurilinguismo e pela multissemiose. Para uma abordagem pluralista da cultura e da linguagem, é necessário considerarmos os multiletramentos e seus pressupostos (LIMA, 2015, p.23)

Nesse sentido, uma escola que se queira preparada para atender às demandas dessa sociedade, tão diversa quanto dinâmica, deve considerar o ensino da multimodalidade e multiletramentos, posto que, até mesmo na forma de lidar com o texto, a era atual difere das gerações anteriores, as quais o concebiam como mero instrumento intermediado pela littera. Atualmente, segundo Lima (2015, p.23-24),‘’Os textos apresentam imagens, arranjos de diagramação, cores, formato das letras, movimentos, sons etc...’’e essa multissemiose intrínseca aos textos da alta modernidade pode ser melhor entendida de acordo com os pressupostos de Garcia-Canclini enquanto citado por Lima (2015, p. 24) [...] as produções culturais atuais são marcadas por textos híbridos, oriundos de diferentes letramentos e de diferentes campos. (...) as misturas têm assumido um lugar de destaque, abrindo espaço para novas formas de comunicação privilegiando as variedades de uso da linguagem (GARCIA-CANCLINI, 2008 [1989], apud LIMA, 2015, p. 24).

Partindo dessa afirmação, podemos nos certificar de que a variedade semiótica incorporada pelos textos pós-modernos não pode ser compreendida por via de um ensino linear ou quase mecânico, mas por meio de um ensino abrangente, dinâmico que integre as mais variadas produções textuais presentes nas esferas sociais dessa geração, como aponta Lima (2015, p.24): ‘‘[...] 227


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é preciso desenvolver nos alunos competências voltadas para o domínio de práticas letradas em relação à linguagem em suas variadas combinações’’ e essa competência só pode ser fomentada se levarmos em conta os multiletramentos, como afirma Rojo, uma pedagogia de multiletramentos: [...] é necessário que se busque incorporar a pedagogia dos multiletramentos, levando em consideração pedagogias específicas, que envolvam todas as formas de linguagem (verbal e não verbal), tendo como foco o aprendiz, que passa a ser o principal nesse processo dinâmico de mudança e de produção de conhecimento (ROJO, 2010, p.138).

Em suma, integrar a multimodalidade e os multiletramentos no âmbito do ensino de línguas é mais do que abranger as novas tecnologias ao ambiente escolar, embora essa atitude em si seja um avanço notório para a atual conjuntura em que se encontra a escola, distante das demandas de uma sociedade em intenso fluxo de mutação, mas ensinar com base nos pressupostos dessa pedagogia é capacitar o indivíduo a ter um olhar panorâmico da sociedade em que vive, conscientizá-lo de que muitas sãos as linguagens assim como muitas sãos as culturas e permitir que ele, autonomamente, construa o seu saber e a sua atuação no meio social, e como muitas são as esferas sociais, muitos são os gêneros produzidos por elas, esses, que se mesclam, hibridizam-se em uma contínua relação de toques semióticos e interculturais, dos quais trataremos no tópico seguinte.

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GÊNEROS MULTIMODAIS É comum ouvirmos falar em gênero carta, poesia, e etc., e essa concepção pode nos levar a um aspecto redutor e normativo dos gêneros discursivos ou textuais, como ressalta Fiorin: Depois que os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) estabeleceram que o ensino de Português fosse feito com base nos gêneros, apareceram muitos livros didáticos que veem o gênero como um conjunto de propriedades formais a que o texto deve obedecer. O gênero é, assim, um produto e seu ensino torna-se, então, normativo. Sob a aparência de uma revolução no ensino de Português, continua-se dentro da mesma perspectiva normativa com que se ensinava gramática (2016, p.67).

Dessa forma, os gêneros, longe de ser “um conjunto de propriedades formais’’, embora essa noção tenha sido fomentada de modo fecundo durante a Antiguidade Clássica por gregos e romanos, e herdada por escritores renascentistas, são, segundo Marcuschi,

[...] entidades sócio-discursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa. No entanto, mesmo apresentando alto poder preditivo e interpretativo das ações humanas em qualquer contexto discursivo, os gêneros não são instrumentos estanques e enrijecedores da ação criativa. Caracterizam-se como eventos textuais altamente maleáveis, dinâmicos e plásticos (2002, p. 19).

Nesse sentido, nos deparamos com a segunda concepção, centrada no aspecto interativo dos gêneros discursivos/textuais, os quais estão plenamente ligados às esferas sociais.

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Sobre isso, Bakthtin (1997, p.279) ressalta que “A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável’’. Ora, se os gêneros estão amplamente atrelados às ações sociais, isto significa que, tal qual a sociedade, eles renovam-se, modificam-se, mesclam-se, devido a sua natureza maleável e dinâmica, assim, a era da informação não está isenta da presença dos gêneros discursivos, os quais possuem peculiaridades que os diferem dos produzidos pelas gerações anteriores à nossa. Nessa perspectiva, a alta modernidade trouxe consigo uma nova forma de expressão dos gêneros, que se caracterizam como multimodais, os quais, de acordo com Queiróz (2005, p.84) “[...] podem ser definidos como sistemas mistos compostos por elementos pictoriais e línguísticos’’. Assim, essa fusão entre imagens e palavras só pôde ser concebida com o intermédio das novas tecnologias que, de acordo com Dionísio (2006, p.131): ‘’[...] com muita facilidade (...) criam novas imagens, novos layouts, bem como se divulgam tais criações para ampla audiência’’, Dessa forma, os gêneros multimodais têm a sua presença já consolidada na era atual, por exemplo: facilmente nos deparamos com outdoors em cada esquina por que passamos, alguns possuem, além da imagem e da palavra, movimentos e sons tornando ainda mais expressiva a publicidade e no meio virtual são ainda mais recorrentes, manifestando-se em posts, memes, gifts, videoclipes, blogs, redes sociais e etc... Segundo Rojo e Moura (2012, p.151),” Os gêneros multimodais circulam no nosso cotidiano e muitas vezes não nos damos conta do quanto eles já impregnaram nossas ações comunicativas’’, pois, de acordo com Dionísio (2006, p.133) ‘’ [...] quando falamos ou escrevemos um texto, estamos usando no mínimo dois modos de representação: palavras e gestos, palavras e entonações, palavras e imagens, palavras e tipográficas, palavras e animações e etc.’’ Dessa maneira, podemos considerar que a multimodalidade opera até mesmo nos gêneros considerados textuais/discursivos. 230


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Em suma, diante das premissas aqui apresentadas acerca dos gêneros multimodais e sua intrínseca relação com as ações sociais nesta época de inovação tecnológica e de alto acesso ao saber, consideramos que se faz de suma importância a sua aplicação no âmbito escolar, pois a escola deve estar atenta às nuances empreendidas pela sociedade e, por conseguinte, à multimodalidade de gêneros produzidos pelas mais variadas esferas sociais desta época. Sendo assim, diante dessa nova etapa que se nos apresenta no ensino de línguas, consideramos que um ensino pautado em prescrições normativistas não consegue dar conta da multiculturalidade presente nas salas de aula atuais como também um ensino que privilegia, antes de mais nada, as formas de letramento historicamente cultuadas, intermediadas pela letra, pois com as novas tecnologias, a maneira como concebemos a linguagem e os textos em que ela se materializa, falados ou escritos, mudou drasticamente. Sobre isso Rojo (2010, p.28-29) afirma que ‘’ [...] se os textos mudaram, mudam também as competências/capacidades de leitura e produção de textos requeridas: hoje, é preciso tratar da hipertextualidade e das relações entre as diversas linguagens misturadas nos textos.’’ É nesse contexto que se fazem profícuas as propostas de um letramento visual e critico para formação de leitores, do qual trataremos na subseção a seguir.

Letramento visual

A relação entre o homem e a imagem é um processo que se mantém vívido desde a pré-história da humanidade, quando os primeiros hominídeos desenhavam sobre rochas, argila e outros objetos, as imagens que representavam as caçadas, os animais tudo isso em uma constante tentativa de, possivelmente, representar o mundo que lhes circundava.

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Nesse sentido, atualmente, a imagem consegue suplantar os demais sentidos, legando à visão a função de apreender as expressões mais complexas que o mundo nos pode oferecer, fato este que lhe conferiu aderência ao longo da construção da história, mesmo a escrita, em um primeiro estágio, advém da expressão visual (KATO, 1993), dessa forma, situando-nos na era da informação, mais do que nunca o uso da imagem foi tão utilizado através das novas tecnologias, as quais com o apoio de ferramentas digitais, mesclam, cortam, adicionam cores e outros elementos às imagens tornando mais tangente e dinâmica a relação da visão com o imagético, sendo assim, os nativos digitais já nasceram em uma época em que a imagem é um fator primordial para a constituição dos gêneros textuais, os quais, se apenas compostos por letras ou números, dão a sensação de tédio e vagarosidade, tendo em vista o comportamento desses indivíduos, pois, segundo Prensky: [...] estão acostumados a receber informações muito rapidamente. Eles gostam de processar mais de uma coisa por vez e realizar múltiplas tarefas. Eles preferem os seus gráficos antes do texto ao invés do oposto. Eles preferem acesso aleatório (como hipertexto) (PRENSKY, 2001. s.p).

Dessa forma, ao preferirem os gráficos antes dos textos, os indivíduos dessa geração demandam um ensino em que a imagem tenha a sua presença garantida, o que pode ser feito através da proposta do letramento visual que, para Lima (2015, p. 26), “[...] é a leitura competente de imagens nas diversas práticas sociais, é a habilidade de ver, compreender, atribuir sentido e expressar o que foi interpretado através da visualização.’’ Sendo assim, o letramento visual propõe uma interação intrínseca entre o indivíduo e a imagem, esta que será mais do que mero aparato ilustrador do código escrito, passando a ser uma unidade de sentido da qual o aluno deve apreender toda a gama de construção para poder construir inteligibilidades através das imagens que 232


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se lhe apresentam, para tanto, a escola deve estar disposta a integrar esse modo de ensino que é fruto das demandas atuais. Segundo Dionísio (2006, p.132) ‘’ Na sociedade contemporânea, à prática de letramento da escrita, no signo verbal, deve ser incorporada a prática de letramento da imagem do signo visual.’’ Dessa forma, imagens e palavras se fundem no novo contexto do ensino de língua materna para a promoção do indivíduo crítico, esse que não só decodifica letras, mas as internaliza raciocinando-as assim como não comtempla passivamente as imagens, mas consegue agir sobre elas sendo o design dos layouts multimodais do mundo pós-moderno.

MULTIMODALIDADE E MULTILETRAMENTOS NOS LIVROS DIDÁTICOS

Observando as resenhas das coleções disponíveis no PNLD 2017, constatamos que os gêneros discursivos são um denominador comum entre todas as obras, visto que, através deles, são desenvolvidas as atividades inerentes aos quatro eixos do ensino de língua materna: oralidade, produção textual, leitura e conhecimentos linguísticos; dessa forma, a presença dos gêneros discursivos/textuais garante que em todas as coleções aborde-se uma variedade significativa de textos, estando estes em conformidade com as premissas dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), os quais tomam o texto como unidade mínima a ser contemplada no ensino de língua materna, tendo em vista a ineficiência do ensino de elementos estruturais como a frase, o fonema e etc... (BRASIL, 1998). Não obstante, em se tratando de uma época em que as novas tecnologias predominam nas diversas esferas sociais, sobretudo, nos círculos adolescentes, notamos que a pluralidade de temáticas presentes nos textos ainda se encontra circunscrita ao espaço escolar, fato que retira do 233


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aluno a possibilidade de interagir com a diversidade social, além de que, em muitos textos, algumas complexidades intrínsecas tanto à linguagem quanto às temáticas geram dificuldades aos alunos, pois não atendem ao nível do leitor do ensino fundamental II, em outras palavras, são descontextualizadas. A presença dos gêneros multimodais, em alguns casos, deu-nos a impressão de que são utilizados a título de ilustração do texto escrito, embora sejam tão importantes quanto eles para a compreensão; dessa forma, notamos que o texto composto apenas pela norma culta; por temáticas inerentes às esferas privilegiadas da sociedade; por atividades gramaticais deslocadas do seu contexto que deveria ser uma unidade mínima; caracterizam em boa parte a metodologia de ensino da maioria das coleções. Nesse sentido, constatamos que o ensino postulado por alguns dos manuais didáticos analisados ainda estão aquém das novas demandas sociais, as quais necessitam de um ensino multimodal, pois de acordo com Dionísio (2006, p.131), “Na atualidade, uma pessoa letrada deve ser uma pessoa capaz de atribuir sentidos a mensagens oriundas de múltiplas fontes de linguagem, bem como ser capaz de produzir mensagens incorporando múltiplas fontes de linguagem.” Sendo assim, o ensino atual deveria privilegiar tanto a escrita quanto a imagem, tanto os textos literários como os não literários, tanto as esferas privilegiadas quanto as não, oferecendo um equilíbrio em suas práticas em prol de um ensino que possibilite ao aluno o conhecimento devido a essa nova geração. Em meio às coleções analisadas, através das resenhas contidas no PNLD 2017, mesmo tendo encontrado algumas inconsistências, consideramos duas que merecem atenção por suas propostas inovadoras: são elas as coleções Universos- língua portuguesa e Tecendo linguagens, pois observamos a presença de uma variedade de gêneros textuais e multimodais assim como de suas esferas de produção, além de que, oferecem um ensino coerente com o está234


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gio de aprendizagem em que os alunos se encontram, abordando temáticas vivenciadas por eles em seu meio social. Em suma, são coleções que melhor se adequam às premissas dos multiletramentos e da multimodalidade.

Coleção Universos – língua portuguesa

Analisando a resenha referente a esta coleção, destacamos dois trechos que denotam uma abordagem voltada para a diversidade de contextos sociais e culturais, destacando atividades que exploram a intertextualidade, relações entre o verbal e o não verbal em textos multimodais, explorando a imagética em diferentes gêneros discursivos como quadrinhos e charges, principalmente. Vejamos os trechos em destaque:

Para o trabalho pedagógico com os textos, há diversidade de contextos sociais de uso, bem como diversidade de contextos culturais. As atividades exploram diferentes estratégias sociocognitivas envolvidas no processo de leitura, elementos constitutivos da textualidade e relações entre o verbal e o não verbal em textos multimodais. (BRASIL, 2016, p. 54). As atividades trabalham diferentes estratégias sociocognitivas envolvidas no processo de leitura, tais como ativação de conhecimentos prévios, formulação e verificação de hipóteses, compreensão global, localização e retomada de informações, produção de inferências. Há atividades que exploram intertextualidade, relações entre o verbal e o não verbal em textos multimodais[...] (ibid, p. 56).

Assim, observando a coleção em foco, constatamos que, realmente, há um trabalho muito consistente quanto aos elementos constitutivos da textualidade e as relações entre o verbal e o não verbal. No início de cada unidade, há uma imagem com atividades de abertura, preparando o aluno para o tema a ser abordado, no sentido de despertar sua curiosidade, como podemos ver na figura 1, a seguir, já com uma proposta de letramento visual. 235


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Figura 1. Atividade de abertura. Fonte: Coleção Universos Língua Portuguesa: 7º ano (p.12-13)

Em seguida há atividades inseridas em sessões denominadas: Antes da leitura, Durante a leitura e Depois da leitura, todas elas voltadas para os multiletramentos, sempre apoiadas em imagens, culminando com um texto também bastante imagético, explorando o conhecimento prévio dos alunos e sua cultura leitora: como na figura 2, na sessão Antes da leitura, na qual são apresentados alguns personagens das histórias em quadrinhos que fazem parte do contexto cultural dos alunos, extrapolando o contexto da sala de aula e de suas disciplinas; na figura 3, temos a sessão Durante a leitura, na qual são apresentadas atividades variadas, sempre explorando a imagética do texto da figura 4.

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Figura 2. Antes da leitura. Fonte: Coleção Universos Língua Portuguesa: 7º ano (p.14-15)

Figura 3. Durante a leitura. Fonte: Coleção Universos Língua Portuguesa: 7º ano (p.16-17) 237


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Figura 4. Texto. Fonte: Coleção Universos Língua Portuguesa: 7º ano (p.18-19).

Coleção Tecendo linguagens Vejamos, a seguir, um trecho da resenha referente a essa coleção:

O eixo da leitura inclui textos verbais, imagens e textos multimodais, como quadrinhos, propagandas e partituras musicais. As atividades promovem a ativação de conhecimentos prévios sobre os temas e gêneros focalizados, contextualizam os textos e orientam sua compreensão e interpretação, explorando diferentes estratégias de leitura. Propões ainda comparações intertextuais, exploram as características funcionais e formais dos gêneros e exploram a linguagem do texto [...] “(ibid, p. 67).

Interessante ressaltar que, na apresentação da coletânea, os autores chamam a atenção dos leitores para a multimodalidade, ou seja, as várias 238


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formas de interagir com as pessoas e o mundo, os múltiplos caminhos para nos comunicar. Vejamos o trecho em destaque dessa apresentação:

Mas não estamos rodeados apenas de textos escritos. Vivemos em um mundo em que a imagem, o som e a palavra falada ou escrita se juntam para construir atos de comunicação. Por isso, precisamos desvendar o sentido de todas essas linguagens que nos rodeiam para melhor interagir com as pessoas e com o mundo em que vivemos. Assim, descobriremos os múltiplos caminhos para nos comunicar (SILVA et al, 2015, p.3).

Analisando a coleção em foco, observamos que cada capítulo tem início com um momento denominado Para começo de conversa, que propõe uma discussão sobre o gênero ou o tema a ser estudado em que há uma proposta de letramento visual, como podemos constatar na figura 5, a seguir:

Figura 5. Atividade de abertura. Fonte: Coleção Tecendo Linguagens: 7º ano (p.14).

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Há, em seguida, a sessão Prática de leitura, estruturada em vários momentos de leitura de textos verbais e não verbais, conforme figuras 6 e 7, a seguir:

Figura 6. Prática de leitura verbal e não verbal. Fonte: Coleção Tecendo Linguagens: 7º ano (p.29).

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Figura 7. Prática de leitura não verbal. Fonte: Coleção Tecendo linguagens: 7º ano (p.32).

Assim, através dessa breve análise, observamos que essas duas coletâneas atendem à pedagogia dos multiletramentos preconizada por Rojo (2012), bem como corroboram com os fundamentos teóricos preconizados por Dionísio (2006), Lima (2015), Queiróz (2005) e Rojo e Moura (2012) referentes à multimodalidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Com base no referencial teórico utilizado para respaldo desta pesquisa, notadamente as constatações de Dionísio (2006), Lima (2015), Queiróz (2005) e Rojo e Moura (2012), chegamos à conclusão de que a multimodalidade e os multiletramentos são fenômenos presentes na contemporaneidade e que se completam, principalmente com o impacto das novas tecnologias. Nesse sentido, observamos que os gêneros multimodais estão presentes no dia a dia de todos nós e que a escola não pode estar ausente desse processo de multiletramentos, ou seja, urge que a escola adote uma pedagogia de multiletramentos como preconiza Rojo (2012). A análise das resenhas contidas no PNLD 2017 certificou-nos a necessidade da inserção das novas tecnologias e formas linguísticas dessa nova geração nas aulas de língua materna e o quanto os gêneros multimodais devem ser explorados em nossos livros didáticos, notadamente a imagética em todo seu potencial crítico; e isso já está começando a ser feito, como pudemos evidenciar em duas coletâneas dentre as seis aprovadas. Sabemos que este estudo ainda merece ser ampliado com um maior detalhamento nas análises dos livros, no sentido de verificar como o professor poderá contribuir para essa pedagogia dos multiletramentos, embora saibamos das lacunas nesse sentido na maioria de nossos livros didáticos. Nesse contexto, esperamos que esta e outras pesquisas possam contribuir para essa transformação necessária e que levem professores e alunos a construir uma sociedade mais justa e fraterna com a ajuda das novas tecnologias na formação de leitores críticos, ou seja, multimodalidade e multiletramentos: novas formas de linguagem e de interação com o mundo.

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REFERÊNCIAS BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. 3 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. BRASIL. Ministério da Educação. PNLD 2017: língua portuguesa. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2016. DIONISIO, A. P. Gêneros multimodais e multiletramento. In: Gêneros textuais: reflexões e ensino. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2006. FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2016. LIMA, Eliete. Multimodalidade e leitura crítica: novas perspectivas para o ensino de língua portuguesa. Pau dos Ferros: 2015. MARCUSCHI, L. A. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: Angela Paiva Dionisio; Anna Rachel Machado; Maria Auxiliadora Bezerra. Gêneros textuais & ensino. 2 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2002. PAIVA, A. M.; PEREIRA, C. S.; BARROS, F. P.; MARIZ, L. Universos. Língua portuguesa. 3 ed. São Paulo: SM, 2015. PRENSKY, Marc. Nativos digitais, imigrantes digitais. 2001. Disponível em http:// www.colegiongeracao.com.br/novageracao/2_intencoes/nativos.pdf. Acesso em 04 Jan 2018. QUEIRÓZ, Karine. Gêneros visuais multimodais em livros didáticos: tipos e usos. Dissertação de mestrado. Letras, UFPE. Recife: 2005. ROJO, R. Alfabetização e letramentos múltiplos: como alfabetizar letrando? In: Oliveira, R; Rojo, R. Língua portuguesa: ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica, 2010. (Coleção explorando o ensino, v 19). ROJO, R; MOURA, E. Multiletramentos na escola (orgs.). São Paulo: Parábola Editorial, 2012. SILVA, C. O.; SILVA, E. G. O.; ARAÚJO, L. A. M.; OLIVEIRA, T. A. Tecendo linguagens. 4 ed. São Paulo: IBEP, 2015.

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Resumo O presente artigo faz uma abordagem do romance realista Dom Casmurro, de Machado de Assis, no tocante à visão do adultério feminino sob o enfoque de um narrador masculino. Como todo texto literário, a obra reflete o contexto histórico no qual surgiu e retrata a sociedade patriarcal do século XIX. Em Dom Casmurro, existe um narrador autodiegético, que participa da história como personagem principal – narrador protagonista, sendo, portanto, a narrativa contada de forma parcial, e, portanto, reveladora de seu perfil autoritário, dominador do homem dessa sociedade. Respalda-se o trabalho em Aguiar e Silva(1984); Massaud Moisés(1984/2001). Palavras-chaves: Realismo; D. Casmurro; adultério feminino, sociedade patriarcal do século XIX.


O Adultério Feminino no Romance Realista Dom Casmurro Mônica Maria Amaral Barros1

INTRODUÇÃO Todo texto literário espelha o contexto histórico no qual está inserido. Assim, a obra pretensamente mostra ao mesmo tempo a individualidade do autor e o “Grande Século”(MAINGUENEAU, 2001, P.3). O estudo do texto vem fortalecer um saber histórico constituído independentemente dele, ou seja, os grandes acontecimentos, as revoluções, os movimentos sociais, influenciam os ideários de um povo, de uma nação, de uma sociedade. As últimas décadas do Século XIX foram palco de grandes movimentos, revoluções, desenvolvimento das ciências naturais e a Revolução Industrial na Europa. De um lado, o enriquecimento da burguesia; de outro, a divisão de classes. Em contrapartida, a exploração do operariado, a face injusta das classes sociais. No Brasil, a escravatura fora abolida, porém os alforriados sem perspectiva de uma vida digna, passavam a ocupar os bolsões de miséria no país. A República ainda estava por vir. Nesse contexto, os escritores da época são motivados a retratar a face nunca antes revelada: a do cotidiano massacrante, do amor adúltero, da falsidade e do egoísmo humano, as patologias sociais. Já não cabia mais o culto do “eu” romântico, do objetivamente incapaz de resolver os conflitos com a sociedade, do sentimentalismo exacerbado.

Em vez dos heróis altivos e dominadores, relevantes, quer no bem, quer no mal, tanto na alegria como na dor, característicos das narrativas ro-

1. Graduanda do Curso de Licenciatura em Letras da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda. 245


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mânticas, aparecem, nos romances realistas as personagens, e os acontecimentos triviais e anódinos extraídos da baça e chata rotina da vida” (AGUIAR E SILVA, 1984, p. 683).

Marco do romance realista na Europa, Madame Bovary, de Gustave Flaubert, 1857, inaugura a narrativa que aborda o adultério feminino, na sociedade burguesa do século XIX. No Brasil, o expoente dessa fase literária foi Machado de Assis, escritor, jornalista, cronista, contista e teatrólogo que, através de seus contos e romances, numa narrativa genial, destaca-se por imprimir um realismo interior, adentrando no mundo psicológico das personagens. Questiona-se, no presente trabalho, a visão do adultério, em Dom Casmurro, porquanto é abordada do ponto de vista do narrador protagonista, e, portanto, tendencioso, levando ao leitor uma visão consentânea com a sociedade patriarcal burguesa daquele século. Por outro lado, Dom Casmurro focaliza, tão somente, o adultério feminino, em cores berrantes, aplicando à mulher a pena do exílio. A traição masculina é vista como algo comum, tolerável. Desse modo, os casos patológicos da sociedade, a que os realistas tratavam como o adultério, denominado uma das patologias da sociedade, atém-se tão somente à traição feminina. Se o texto literário espelha o contexto social em que está inserido, Dom Casmurro é prova dessa assertiva, retratando, através do narrador protagonista, a face real da sociedade em que vive e da qual forma suas convicções.

Dom Casmurro

Romance realista, Dom Casmurro, retrata a sociedade patriarcal da cidade do Rio de Janeiro, em fins do século XIX, na qual é narrada a história de Bentinho(Bento Santiago) e sua amiga de infância, Capitu(Maria Capitulina), que viria a se tornar sua esposa. 246


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O amor vira tragédia, havendo o rompimento do casamento e exílio de Capitu, imposto por Bentinho, que suspeitara do adultério da esposa com seu amigo Escobar. A obra tem início com a narrativa do protagonista, na sua fase madura, aos cinquenta anos de idade, passando a descrever sua vida atual, solitária. Reporta-se ao passado e revela: “meu fim evidente era atar as duas pontas da vida e restaurar na velhice a adolescência. Pois senhor, não consegui recompor o que foi nem o que fui” (ASSIS, p. 13). A narrativa subjetiva de Bentinho, que na maturidade passa a ser conhecido por Dom Casmurro, busca restaurar o que supostamente foi vivido. Bentinho tenta recuperar o passado através do resgate de memórias e talvez assim, apaziguar conflitos antigos. Nesse tipo de texto, a realidade ficcional é embaçada, não pode ser reconstruída por inteiro e o objetivo do narrador é de persuadir o leitor para assim justificar/satisfazer seu ponto vista. O narrado é manipulado, baseado em imprecisas memórias do passado vindas de um narrador que se encontra desgostoso, em conflito, na sua velhice.

O OLHAR DE CAPITU – As personagens secundárias

Aos quatorze anos, a jovem Capitu já se destacava das demais moças, sendo uma menina esperta, perspicaz, mostrando-se atrevida aos olhos dos outros, o que lhe rendera observações das pessoas que com Bentinho conviviam, tais como as do Sr. José Dias, quantos aos olhos da amiga, definindo-os por “olhos de cigana oblíqua e dissimulada”; “olhos de ressaca” (ASSIS, p. 68), assim como a observação da prima Justina: “era um pouco trêfega e olhava por baixo” (ASSIS, p. 51). O olhar dessas personagens secundárias, José Dias e a prima Justina tem muita importância na narrativa. Não é à toa que participam da trama, convergindo para o núcleo central do romance, que no caso se resume a Bentinho e 247


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Capitu. Essas personagens secundárias vão reforçar a consciência do estereótipo da mulher “avançada” para seu tempo; da pecha de atrevida, que seria a “base” para a mulher adúltera construída pelo narrador. Através de seus gestos, seus olhares, suas citações, esses actantes dão o tom da narrativa, estão associados aos personagens principais do romance. Tais observações feitas pelos agregados da casa de Bentinho incidirão, de forma determinante para se aflorar o que o protagonista já teria em seu interior: o ciúme dessa amada. Capitu fugia à regra, sendo esperta, extrovertida e dominadora, a jovem que tomava as decisões e, portanto, suscitavam-se suspeitas a respeito de seu comportamento que a diferenciava das outras moças. Como já se discorreu de início, o texto literário retrata o contexto histórico em que se passa a narrativa. Não é diferente na obra Dom Casmurro, em que se passa no final do século XIX, numa sociedade patriarcal, em que cabe ao homem gerir os negócios da família, sendo seu principal provedor. É ele quem sai diariamente de casa, para o trabalho rentável, cabendo à mulher os trabalhos domésticos e o confinamento. Ainda que a sociedade do século XIX passasse por grandes transformações, a mulher ainda estaria sob a autoridade do pai ou do marido. À mulher desse século ainda estaria reservada a função primordial da cuidadora do lar e da formação dos filhos. A mulher da vida real, naquele momento da formação da sociedade brasileira, exercia as atividades domésticas e cumpria o destino traçado pela força do patriarcalismo, inclusive sua educação estava relacionada à lógica prevalente de que sua obrigação seria a de tornar-se esposa e mãe exemplar, condutora da formação dos futuros cidadãos e cidadãs. Dessa forma submetia-se ao homem, apesar de ter aberta a estreita porta do magistério que lhe garantia alcançar uma pequena parcela de participação social no mercado de trabalho. (OLIVEIRA, Lilian Sarat de. Acesso em junho de 2018). 248


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OS CIÚMES DE BENTINHO Em suas recordações, Bentinho/Dom Casmurro, amargurado, analisa o perfil de sua amada: Como vês, Capitu, aos quatorze anos, tinha já ideias atrevidas, muito menos que outras que lhe vieram depois; mas eram só atrevidas em si, na prática faziam-se hábeis, sinuosas, surdas, e alcançavam o fim proposto, não de salto, mas aos saltinhos (ASSIS, 2016, p. 45).

Há várias passagens de Bentinho e Capitu, juntos, nas quais o moço observa o comportamento de sua amada. Assim, na visão de Bentinho, ao fitá-la: “Deixe-me ver os olhos, Capitu. Tinha-me lembrado a definição que José Dias dera deles, olhos de cigana oblíqua e dissimulada” (ASSIS, 2016, p.68). Bentinho, reservado; tímido, já sentia ciúmes de sua amada. Capitu, por sua vez, teria o poder de dominar as situações. Visitado por José Dias, no Seminário, Bentinho pergunta por Capitu, recebendo por resposta: “Tem andado alegre, como sempre; é uma tontinha. Aquilo enquanto não pegar algum peralta da vizinhança, que case com ela”(ASSIS, 2016, p. 122). Em outro trecho, Bentinho está com Capitu. O cavaleiro não se contentou de ir andando, mas voltou a cabeça para o nosso lado, o lado de Capitu, e olhou para Capitu e Capitu para ele, o cavalo andava, a cabeça do homem deixava-se ir voltando para trás. Tal foi o segundo dente de ciúme que me mordeu. (ASSIS, p. 142).

Já casados, vão a um baile, no qual Capitu trajava um vestido que deixava os braços à mostra, e os olhares de homens, despertando os ciúmes de Bentinho – (p. 188-189). 249


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Passados alguns anos, Capitu engravida. O pequeno Ezequiel cresce, chamando a atenção da família, por imitar as pessoas, inclusive o jeito de olhar e de andar de Escobar. Escobar morre nas águas do mar. Em seu enterro, Capitu olhou alguns instantes para o cadáver: [...] “tão fixa, tão apaixonadamente fixa, que não admira lhe saltassem algumas lágrimas poucas e caladas...” [...]. Momento houve em que os olhos de Capitu fitaram o defunto, quais os da viúva, sem o pranto nem palavras desta, mas grandes e abertos [...] (ASSIS, 2016, p. 217).

Em toda a narrativa, Bentinho enfoca o olhar de Capitu, favorecendo uma “sondagem da psicologia humana, às insinuações, evocações, meias-verdades”, característica do realismo interior, de Machado de Assis – (MOISÉS, 1984, p.29-30). Trata-se a narrativa de cunho realista interior, próprio de Machado de Assis, buscando enxergar o mais íntimo que o ser humano traz consigo, como bem retrata pelo imortal escritor Massaud: “É o mundo subterrâneo de cada indivíduo, onde moram as grandezas e misérias da condição humana, que Machado desvenda, com a volúpia de alquimista mancomunado com Satã”. (MOISÉS, 1984, P.106). É a preocupação do escritor realista com a análise psicológica das personagens, voltando-se para o interior destas.

BENTINHO, O PROTAGONISTA – O narrador autodiegético

No século em que se passa essa obra, o homem escrevia os romances que eram lidos pelas mulheres. É importante observar que no romance Dom Casmurro há um narrador autodiegético. Ele fala como primeira pessoa na 250


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narrativa; participa da história, sendo o personagem principal – narrador protagonista e, portanto, sua visão, suas considerações serão transmitidas no texto. Assim, descreve Aguiar e Silva, em seus ensinamentos:

O romance de focalização autodiegética revela-se especialmente adequado para o devassamento da interioridade da personagem nuclear do romance, uma vez que é essa mesma personagem quem narra os acontecimentos e que a si própria se desnuda. As mais sutis emoções, os pensamentos mais secretos, o ritmo da vida interior, tudo enfim, o que constitui a história da intimidade de um homem, é miudamente analisado e confessado pelo próprio homem que viveu, ou vive, essa história (AGUIAR, 2001, p. 772).

Desse modo, quando a narração possui esse tipo de foco narrativo, a história será contada de forma parcial, “buscando no homem comum – nele mesmo decerto, pois se alimentava das próprias entranhas para a criação de sua arte diabólica – o objeto da sondagem no abismo da condição humana” – (MOISÉS ,1994 p. 107). Grifo nosso. A narrativa autodiegética está impregnada, portanto, do ponto de vista de seu narrador, do seu estado de espírito, de suas teorias, retratando o contexto social da época que vive, sendo Dom Casmurro a obra que revela os primeiros passos de autonomia da mulher, na figura de Capitu e seu ensaio de liberdade, sob a vigilância de uma sociedade cujas normas, criadas pelo homem, determina até onde a mulher pode ir. O romance Dom Casmurro como obra literária retrata a realidade das mazelas do meio social, expressando, seu narrador o que a sociedade da época ditava para a mulher, tendo o homem o comando das regras impostas a essa mulher. O possível adultério feminino teria, por consequência, uma pena rígida, impiedosa, aplicada pelo marido, podendo chegar à morte. 251


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Não sendo dado à mulher o direito ao prazer sexual, devendo a mesma, ver no lar, no casamento, o coroamento de seus sonhos, de todas as suas expectativas, ver-se-ia o adultério por ela praticado, uma patologia – fora do comum; o do homem, tolerado. É o perfil da mulher adúltera que se mostra, pois, o adultério masculino, corriqueiro, escancarado, não é tratado nas páginas dessas narrativas. Ainda que numa aura velada, através de suspeitas, diante de um perfil da mulher, traçado pelo narrador, preparativo para se fazer a associação com o adultério, é do adultério feminino que se aborda. É à mulher, que se atribui olhar peculiar; É à mulher que se atribui o domínio da situação cotidiana; É à mulher que, ao final, é imposto o castigo pela suspeita da infidelidade, por um Bentinho a princípio, ingênuo, apaixonado, porém homem, do qual emerge o Dom casmurro com toda a sua autoridade de patriarca: “respondi-lhe que ia pensar, e faríamos o que eu pensasse. Em verdade vos digo que tudo estava pensado e feito”. Determinado, antes do enfrentamento com Capitu, assiste à tragédia grega: O último ato mostrou-me que não eu, mas Capitu devia morrer. Ouvi as súplicas de Desdêmona, as suas palavras amorosas e puras, e a fúria do mouro, e a morte que este lhe deu entre aplausos frenéticos do público. (ASSIS, 2016, P. 231).

Por outro lado, a vida exterior masculina, seja o homem, casado ou solteiro, é tratada de somenos importância, ou de forma comum. Dessa forma, o adultério feminino não passaria de suspeita, e mesmo assim, estaria caracterizado, sendo efetivo e digno de penalidade; o do homem, tolerado. Veja-se em D. Casmurro, quando se diz que Escobar, nos primeiros anos de casado, trai a esposa Sancha:

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Escobar e a mulher viviam felizes; tinham uma filhinha. Em tempo ouvi falar de uma aventura do marido, negócio de teatro, não sei que atriz ou bailarina, mas se foi certo, não deu escândalo. Sancha era modesta; o marido, trabalhador (ASSIS, 2016, p. 187).

Do exposto, constata-se que a tal patologia social, referência ao adultério, tratada no realismo, na verdade atém-se tão somente ao adultério feminino, sendo as normas dessa sociedade ditadas pelo homem. Assiste-se, em Dom Casmurro, aos primeiros passos de autonomia da mulher, na figura de Capitu e seu ensaio de liberdade, sob a vigilância de uma sociedade cujas normas, criadas pelo homem, determina até onde a mulher pode ir. Bentinho, o menino dominado por Capitu, o menino condescendente, tímido, apaixonado, guarda em seu interior o homem reflexo da sociedade patriarcal burguesa, que impõe as regras dessa sociedade para a mulher, determinando o destino da esposa e do filho. Assim ele se expressa: “Respondi-lhe que ia pensar, e faríamos o que eu pensasse. Em verdade vos digo que tudo estava pensado e feito” (ASSIS, 2016, p.238). Capitu, de sua parte, resignada, porém, sem alarde, responde: “Confiei a Deus todas as minhas amarguras (...). Ouvi dentro de mim que a nossa separação é indispensável e estou às suas ordens” (ASSIS, 2016, p.237). Capitu, a menina extrovertida, dominadora, perspicaz, deixa-se dominar, recolhendo-se ao exílio determinado pelo marido. Assim, a despeito do caráter despojado, extrovertido e dominador da então jovem Capitu, com o casamento essa mulher cede completamente às determinações do marido. Ainda não soaria o grito de liberdade da mulher, o que só aconteceria, um século mais adiante, nos anos sessenta do século XX, com suas lutas para conquistar sua autonomia, o que ainda neste século XXI não se concretizou. 253


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Considerações finais Dom Casmurro retrata a sociedade carioca do final do século XIX, sociedade essa, patriarcal, na qual era reservado à mulher apenas uma vida doméstica, como cuidadora do lar e formadora dos filhos. Ainda estaria sob a tutela do pai e, com o casamento, sob a tutela do marido, que detinha palavra final no comando da família. O romance conta com narrador protagonista masculino, pintando as cores berrantes para o adultério feminino, adultério esse, duvidoso, para a época – século XIX, em que à mulher era determinada uma vida doméstica, vigiada... Emerge, da referida obra, o poder de mando, o autoritarismo do homem, que chega às últimas consequências: exílio da esposa, concluindo-se, do exposto, que à capa ingênua do marido, esconde-se o homem inculcado do medo que ronda todo homem, em ser traído; daí sua vigilância; o controle “das rédeas” sobre a mulher, confinada no mundo doméstico daquela sociedade burguesa. No romance em tela, o marido apaixonado e, durante todo o matrimônio, aparentando ingenuidade e condescendência, dita, ao final, o destino da esposa, determinando seu exílio, omitindo da sociedade em que vivia, a provável infidelidade da amada, não havendo, contudo, prova cabal (no romance), quanto a esse adultério. Como narrador protagonista, Bentinho/Dom Casmurro, narra a história de forma parcial, impregnada de suas emoções, reveladoras de uma sociedade patriarcal, vindo a traçar o destino da esposa. Cabe, portanto a brilhante análise do tema adultério, pelo renomado Massaud:

Com o adultério, regride o homem à condição de troglodita, incapaz de sujeitar-se às normas culturais que inventou para conter o apelo à bruta animalidade, recalcado no subconsciente à custa de milênios de progresso científico, filosófico e artístico. Eis a tese machadiana em Dom Casmurro, 254


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substancialmente diversa da tendência naturalista para explicar o adultério como simples desordem dos sentidos (MOISÉS, 2001, pg. 90).

Daí a exaltação à personagem feminina desse drama, transbordante, na análise desse grande mestre, invertendo, com razão, a interpretação literária, que se dá às personagens centrais do romance: “(...) Ela é a esfinge indagadora; ele, o seu contemplador, tolhido nas malhas duma sedução ante o mito, se transfigura e se anula” – MOISÉS, 2001, p. 90.

A menina de Matacavalos é, com toda a evidência, a protagonista central de Dom Casmurro; é personagem redonda – o seu amigo de infância desempenha o papel de coadjuvante; é personagem plana (MASSAUD, 2001, p. 89).

Diante dessa última exortação, fica a impressão da genialidade do escritor, que deixa ao leitor a possibilidade de interpretar; recriar o texto literário.

Referências

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Resumo Este artigo pretende analisar dois autores: Alberto da Cunha Melo e Miró da Muribeca - poetas pernambucanos, independentes e de gerações distintas - buscando evidenciar as semelhanças temáticas e as diferenças técnicas nos dois fazeres poéticos. Problematizando, portanto, a existência de poéticas opostas para expressar a mesma realidade do meio urbano. Para isso, utilizaremos autores da crítica tradicional tais quais Moisés (1989), Bosi (2003) e Wellek e Warren (1962); depoimentos de poetas como Rilke, (1994) e Tolentino (2003); estudiosos do assunto específico, tais quais Godoy (2014), Rosário (2008) e Dantas (2017); e a opinião de um dos autores sobre a questão, Melo (2009). Como resultado desta investigação, obtivemos a demonstração da pluralidade de formas poéticas na poesia pernambucana - principalmente na vertente independente - e da possibilidade de expressar sentimentos em comum dentro de prismas formais diametralmente opostos. Palavras chave: Poesia. Independente. Pernambuco


O DIVINO E O URBANO: DUAS FACES DA POESIA INDEPENDENTE PERNAMBUCANA Mariana Botelho1 Matheus Araújo2

INTRODUÇÃO A Teoria Literária e a História da Literatura, têm, como objetivo – nas suas mais diversas escolas – promover a investigação de autores, tendências e ferramentas poéticas vigentes em um certo lugar e em um certo tempo, podendo variar a escala formidavelmente. Pode-se investigar toda a história literária, desde o surgimento da escrita até os dias de hoje; igualmente é possível sistematizar a literatura de todo um país e seus momentos mais importantes; do mesmo modo em que se pode selecionar apenas autores específicos, representantes de certas tendências, para que seja feita uma comparação, extraindo daí uma imagem mais completa do cânone literário de um local específico. Este é um trabalho que deve ser executado constantemente pelos estudiosos da área, pois, no mundo contemporâneo, surgem sempre novas vertentes literárias, e caso determinados autores não venham a ser devidamente examinados, formam-se lacunas que dificultam o estudo do objeto geral. Com esta intenção, o presente artigo procura investigar duas faces da literatura pernambucana, em especial, na sua vertente independente: o 1. Graduanda em Letras Português - Inglês na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO). Email: marianabotelho1297@gmail.com 2. Graduando em Letras Português na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Email: m.araujosousa98@gmail.com 257


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poeta Miró da Muribeca, um dos principais expoentes da poesia marginal no estado, herdeiro do trabalho feito pelo MEIP (Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco) na década de 80; e Alberto da Cunha Melo, poeta extremamente imprescindível da chamada Geração de 65, mas que similarmente sempre flertou com a poesia independente, participando do segundo encontro do MEIP e publicando por meios geralmente alternativos enquanto vivo (editoras pequenas, com tiragens breves), mas que começa a tomar outra dimensão, uma proporção nacional, com a publicação de sua Poesia Completa, pela editora Record, no ano de 2017. Desta forma, primeiro exploraremos as características poéticas, linguísticas e temáticas de Miró da Muribeca, sua individualidade urbana e materialista; logo após mergulharemos a fundo na poiésis de Cunha Melo, seus simbolismos cristãos e imagens metafísicas; e, por último, tentaremos sintetizar as semelhanças e diferenças entre os dois, procurando constatar a pluralidade da poesia pernambucana que, mesmo empregando múltiplos métodos e procedimentos, consegue representar realidades demasiadamente similares.

O urbano

João Flávio Cordeiro da Silva, mais conhecido como Miró da Muribeca, recifense nascido em 6 de agosto de 1960, é um poeta de caráter independente e marginal, que sempre marcou presença nos recitais de rua, declamando seus versos livres, nos quais encontramos temáticas voltadas para a vida periférica e a violência policial como em “Notícia de última hora”: “Quem pensava achar num caminho/uma bala perdida/no exato momento em que nada procurava”. (MIRÓ, 2013, p.22) 258


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A poesia de Miró conta, segundo Melo (2009, p. 201), com muitos poemas “minuto/piada/sarcasmo/erótico/crítico”, que talvez, seja a marca mais característica dos poetas contemporâneos, de Pernambuco ou de outros estados. Utilizando-se de vários trocadilhos e jogos de linguagem, Miró busca, em diversas vezes, retratar seu cotidiano de forma irônica e breve, exemplificada no poema “Finalmente, onde é que vamos parar?”: “O policial perguntou/- tá indo pra onde boy?/- estou voltando, senhor!/foi preso por desacato” (MIRÓ, 2013, p.27) Miró fez parte do MEIP (Movimento de Escritores Independentes de Pernambuco), grupo de escritores que se reuniam principalmente em Recife, distribuindo poesia através de zines, panfletos, livros de papelão e recitais, a maioria deles vindo de classes mais baixas da sociedade, fundamentando a denominação concedida a eles por Melo (2009, p.200) de “Poetariado”. Rosário chama atenção para este aspecto dos escritores marginais, explicando que a “marginalidade literária diz respeito aos mecanismos que contribuem para concentrar ainda mais a péssima distribuição da riqueza produzida no Brasil. Gerando os mais variados tipos de exclusão.” (ROSÁRIO, 2008, pág. 37) Esta condição fundamenta a opção de Miró pelos versos livres e pela linguagem informal, pois ele almeja que qualquer indivíduo, de qualquer classe social, sem a exclusão das classes mais baixas (a qual ele mesmo pertence), compreenda e tenha familiaridade com sua poesia. Com estas mesmas palavras o poeta costuma a dizer, em encontros e recitais, que quer seus versos sendo compreendidos “desde um empresário até um engraxate’’. E quem lê os textos de Miró consegue compreender facilmente a mensagem que o poeta transmite. A poética de Miró, portanto, está consoante ao pensamento de Rosário de que 259


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a poesia marginal é híbrida de oralidade e literatura. Pois tanto reincorpora elementos que funcionam bem em situações de comunicação interpessoal, com o uso da voz e do corpo, dentre tantos outros fatores; quanto também traz elementos próprios da literatura, por dependerem da venda de sua poesia em impressos, e pela própria formação dos poetas que, em geral, são grandes leitores de poesia publicada em livros e outros gêneros do mercado editorial. (ROSÁRIO, 2008, pág. 37)

Podemos perceber estes aspectos em um dos trabalhos mais famosos do poeta, “Carla”, onde torna-se clara a junção da temática urbana, agregada com a violência e a opressão às classes mais pobres, com linguagem simples e direta, sem deixar de lado as metáforas e as imagens fortes, com associações sempre contundentes e coerentes. Conheci Carla catando lata Seus olhos brilhavam Como alumínio ao sol São Paulo ardia Num calor de quase quarenta graus Pisou na lata Como pisam os policiais Nos internos da Febem Jogou no saco Com a precisão que os Internos jogam Monitores dos telhados E rápido foi embora, Tal qual sequestro relâmpago Deixando a lembrança De um tempo que Não havia sequestros Febem,

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Nem tanta polícia, Muito menos catadores de lata, Os olhos de Carla Nem desse poema precisavam. (MIRÓ, 2013, p.133)

O poeta marginal, em seus escritos, procura retratar um cosmos, de certa forma, desordenado, confuso e opressor dos centros urbanos, costurando os versos com tons de ironia que costumam causar surpresas, criando uma atmosfera um tanto tragicômica. Segundo Dantas:

“Apesar da forte presença da paisagem recifense e sua poesia, Miró também lança perspectiva sobre a caótica e modernizada São Paulo, onde chegou a viver um curto período de tempo. De tom irreverente e sarcástico, o poeta tece duras críticas à miséria e à marginalização.” (DANTAS, 2017, p.121)

Estes aspectos mostram-se presentes no percorrer de toda obra do poeta, como demonstrado no poema a seguir: Quantos sacos di cimento Há em ti São Paulo? Quiçá meu coração não fique concreto Alguma coisa acontece? A elite vai em massa a eletra Substantivo concreto Quem lê os campos? Substantivo abstrato Náufragos dessa onda Atenção para o toque di 8 segundos. (MIRÓ, 2013, p.173, sic)

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Agora que já temos uma compreensão do que é a poesia de Miró da Muribeca, suas faces temáticas, o tipo de linguagem e suas metáforas, a tonalidade, a poética e a filosofia por trás de seus versos, partiremos para o estudo de Alberto da Cunha Melo e como a arte destes dois poetas pernambucanos se relacionam.

O divino

José Alberto Tavares da Cunha Melo, ou simplesmente Alberto da Cunha Melo (08 de abril de 1942 – 13 de outubro de 2007) foi um poeta pernambucano nascido em Jaboatão dos Guararapes, filho do também poeta Benedito Cunha Melo, autor do hino de sua cidade. Alberto foi um dos principais expoentes da chamada Geração de 65 (que também contava com Tereza Tenório, Lucila Nogueira, Jaci Bezerra, Ângelo Monteiro, José Mario Rodrigues, entre outros), formada por poetas que não tinham uma proposta estética unificante, mas ideias e poéticas semelhantes insurgindo num mesmo local e numa mesma época com grande força. Melo é um escritor contemporâneo de formação clássica. Versa sobre assuntos do cotidiano - relações amorosas, amizades, política, violência, injustiça, histórias da cidade, celebridades, paisagens – com uma linguagem frequentemente erudita, formal, de acordo com a gramática normativa; utilizando-se de simbolismos tradicionais, cristãos - apesar do agnosticismo/ ateísmo do poeta – e metáforas extremamente sutis; dispondo o metro em versos livres numa concepção eliotiana, mas também empregando métricas pré-estabelecidas - principalmente de octassílabos -, rimas, ocasionalmente escrevendo haikais. Melo também foi o criador da forma chamada “retranca”, composta de um quarteto, um dueto, um terceto e outro dueto, onde cada verso possui oito sílabas poéticas. 262


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Seus principais livros (Meditações Sobre os Lajedos, Yacala, Oração Pelo Poema e O Cão de Olhos Amarelos) estão reunidos em sua Poesia Completa, lançada sobre a organização da viúva de Alberto, Cláudia Cordeiro Tavares da Cunha Melo. O livro é a amostra definitiva dos versos do Poeta de Jaboatão: clássicos, eruditos, com forma e metro trabalhados, cheios de alegorias tradicionais. Podemos comprovar a partir do poema “O Quarto Evangelho”, que faz parte de “Meditação Sobre os Lajedos”: “Já pertinho do fim, Francisco Cansado de viver, já velho Curva-se, no meio da noite, Às laudas do Quarto Evangelho,

E encontra um deus sem limousines, Que não se compra nas vitrines, Que vem, coroa de cardeiros, Salvar deste arame farpado Os enlouquecidos cordeiros; Um Deus, dos nascidos sem Deus, Fará de Francisco um dos seus.” (MELO, 2017, p.456)

Este poema também demonstra um dos principais aspectos da poética de Cunha Melo: a transcendência. É constante a observação de que o poeta nunca simplesmente paira sobre a nossa realidade, mas regularmente a compara com outra, mais elevada, onipresente e talvez salvadora, muitas vezes divina. Presente em outro plano, para qual a nossa existência deveria se voltar, esta realidade é constante na obra de Cunha Melo. Não se fixa apenas nas “limousines” ou nas “vitrines”, mas em algo que vem do além, acima de nós. 263


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Isto se esclarece na última estrofe da primeira parte de “Oração pelo Poema”: “Senhor, protege meu poema/ e obscurece com tua sombra/ os versos mortos, as palavras/ que sobram, o tempo perdido” (MELO, 2017, p.55). Para Melo, o próprio fazer poético volta-se para o transcendente, como o mesmo deixa claro ao longo desse livro. Reconhecendo a transcendência imanente nos poemas de Alberto da Cunha Melo e a relação intrínseca do poeta com os clássicos é que Bruno Tolentino, no “Posfácio a Dois Caminhos e uma Oração”, escreve que Yacala é uma “opus nigrum de um mestre da dor musical, o que este conciso drama em menos de oito mil palavras nos dá é o acesso imediato ao salão maldito dos mais esplêndidos e arrepiantes delírios metafísicos deste nosso abastado e atormentado Ocidente” (TOLENTINO, 2003, p. 345). Também sobre Yacala, Alfredo Bosi, percebendo esta individualidade poética de Cunha Melo, escreve: A dor de viver provém de determinações inescapáveis: o sangue, o sexo, a cor da pele, a classe social, o lugar da origem, o tempo e o espaço do cotidiano; a sina, enfim. O poema aceita estoicamente os sinais do corpo e os estigmas da circunstância; e os transforma, transfigura ou, se a voz é sublimadora, os transcendentaliza. (BOSI, 2003, p.161)

O plano transcendente de Alberto não é unicamente religioso. É tudo aquilo que excede e ultrapassa o indivíduo: nossa vocação, nossa obra, o social, o cosmo, e, principalmente, o confronto face a face com a morte. É quase permanente na obra do poeta a noção de que a morte pode surgir a qualquer momento e que o ser humano deve defrontar-se o tempo inteiro com o fim de sua vida, pelo menos nesse plano.

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Sua Morte, sob encomenda, Ajustada a si como roupa, Não a prêt-à-porter, contra entrega, Mas bala a bala, gota a gota, Era, no entanto, igual à vida Que antes viveu, sob a medida Da ordem, da métrica demência, A que distribui a matança De acordo com a procedência E o cadastro da freguesia Da morte, a crescer todo dia. (MELO, 2017, pp.438)

Esta idiossincrasia na obra de Cunha Melo também surge no aspecto histórico. Em sua construção poemática se tratando de lugares e paisagens, o transcendente – ou divino – aparente é a História, que ainda pesa sobre aquele local. Se, ao tratar de indivíduos, seres humanos de carne e osso, o elemento metafísico é o futuro – a realidade que está por vir, seja outro plano, a morte ou a realização de um feito social –, quando Alberto versa sobre lugares e paisagens, o elemento metafísico é o passado. As Bicas de Olinda: as feridas Da terra sangram nos cântaros Das Madalenas sofridas.” (MELO, 2017, pp.556) “Lá no Mosteiro escutais Os cantos gregorianos E os ventos coloniais. (MELO, 2017, pp.547)

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A condição metafisicalizante dos poemas se dá, provavelmente, pela sensação de incompletude e insatisfação ante a circunstância em que o poeta se situa. Godoy crê que esta característica se dê pela situação de mal-estar-no-mundo de Cunha Melo, sendo um aspecto fundamental para entender o fazer poético do mesmo: Ao longo dos anos de convívio com a poesia de Alberto da Cunha Melo, percebemos um sentimento motivador da palavra, espécie de nascedouro poético, ao qual nomeamos de matriz socioexistencial; categoria de impulso criador indicativa do mal-estar do poeta no mundo, ou seja, do seu envolvimento crítico-humanista com o contexto histórico-social de seu tempo. (GODOY, 2014, p.168)

Sendo assim, compreendendo os principais aspectos, temas, situações, escolhas e tendências poéticas de Alberto da Cunha Melo, devemos agora buscar entender em que medida ele se relaciona com Miró da Muribeca em termos de realidade socioexistencial, em temas abordados e em linguagem.

Duas faces da poesia independente pernambucana

Esclarecidos e investigados, desta forma, nossos dois objetos de estudo – as obras de Alberto da Cunha Melo e Miró da Muribeca – nos cabe, afim de obter uma imagem mais completa da poesia pernambucana, estabelecer uma síntese de semelhanças e diferenças entre os dois poetas. Primeiramente será analisado o aspecto social, geográfico e econômico; segundamente, as características técnicas, correntes literárias e a linguagem empregada nos versos. O estudo das características e condições sociais em que os escritores estão inseridos, mesmo que breve e apenas para situar-nos no contexto histórico geral, é essencial, pois, assim como demonstraram Wellek e Warren: 266


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A literatura é uma instituição social que utiliza, como meio de expressão específico, a linguagem – que é criação social. Processos literários tão tradicionais como o simbolismo e o metro - são, por natureza, sociais. Constituem convenções e normas que só podiam ter surgido em sociedade. (WELLEK; WARREN, 1962, p.117)

Portanto, devemos entender em que condições surgiram nossos objetos de estudo. Alberto e Miró chegaram a conviver juntos, mas são de gerações diferentes e cidades diferentes. O nascimento de Miró e o de Alberto são separados por 18 anos de diferença, enquanto o primeiro ainda era uma criança pobre, o segundo já lançava seu primeiro livro, convivendo com outros poetas insurgentes da época (Geração de 65) e participando de movimentos literários. Melo absorve uma cultura classicista herdada de seu pai, Benedito, também poeta. Miró herda a herança das ruas, no improviso. Já em 1981, Alberto participa do segundo encontro de escritores independentes de Pernambuco, movimento do qual Miró faria parte mais tarde, pelo menos em “espírito” e ideias, convivendo proximamente com os autores líderes do movimento, como Cida Pedrosa. Esta entrada de Miró na cena local e no MEIP é um fato que animou muito Alberto, um dos principais padrinhos e animadores do movimento que disse regojizar-se “por ter a honra de conhecer poetas como Erickson Luna, Lara, Miró, Malungo e Marinho” (MELO, 2007, p.201). Melo identificava-se com os escritores do MEIP pois também não tinha grandes meios de publicar sua própria poesia, tendo, durante a vida, feito circular seus versos por pequenas editoras, sem muita expressão no mercado. Outra proximidade importantíssima entre os dois poetas é que eles, na maior parte da vida, viveram em Recife, cidade marcada por graves obstáculos econômicos, altos índices de violência e injustiça social. Não à toa, quando os dois escritores versam sobre dilemas urbanos, dificuldades da 267


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vida comum e a realidade das classes menos abastadas, os problemas surgem bastante semelhantes. Até mesmo partindo da própria condição de poetas, percebem-se marginalizados do mundo ao redor, que sofre tanto com outros problemas, pensa em tantas outras coisas, que não prestam atenção no que falam os poetas. Poema nenhum, nunca mais Será um acontecimento: Escrevemos cada vez mais Para um mundo cada vez menos, Para esse público dos ermos, Composto apenas de nós mesmos, Uns joões batistas a pregar Para as dobras de usas túnicas, Seu deserto particular, Ou cães latindo noite e dia, Dentro de uma casa vazia. (MELO, 2017, p.415)

Cidade das pontes E das fontes De miséria. Poetas mendigando passes Pra voltar pra casa. E sua poesia Passando despercebida, Aliás Nem passa. (MIRÓ, 2013, p.151)

Com o exemplo destes dois poemas podemos perceber a capacidade dos poetas de expressar realidades extremamente semelhantes por meio de técnicas diametralmente opostas: Enquanto os dois versam sobre a marginalidade do poeta e da poesia em seu meio social, sendo desprezados e esquecidos, 268


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indignos de qualquer atenção, estudo ou bem, recitando e produzindo apenas para um “público dos ermos”, Alberto da Cunha Melo utiliza sua forma da retranca, com métrica e rimas, empregando a linguagem culta e formal presente na gramática normativa da língua portuguesa, e aplica tanto simbolismos cristãos (a figura de João Batista no deserto) quanto metáforas corriqueiras (a imagem do cão latindo na casa vazia, imagem senso comum no Nordeste do Brasil); Miró da Muribeca, por sua vez, opta por versos livres, sem qualquer trabalho de escansão ou métrica clássica, sem rimas recorrentes, priorizando uma sonoridade mais carregada de oralidade, onde prefere escrever a forma coloquial da preposição “para” (pra), engendrando trocadilhos (pontes e fontes miséria), busca retratar a realidade com mais crueza. Uma semelhança poética entre os dois, neste caso, seria encaixar-se naquilo que Massaud Moisés denomina poesia épica, que parte do eu-lírico para o mundo, assim como ambos partiram de suas condições de poetas num meio social e investigaram o ambiente ao redor, ultrapassando, desse modo “a contemplação narcisista de sua imagem refletida em espelho côncavo, postura característica do poeta lírico, e cria poesia a-confessional e a-emocional, ou melhor, supra confessional e supra-emocional.” (MOISÉS, 1995, p. 239) Ambos também seguem, ao situarem-se bem e com clareza nas próprias realidades e as utilizarem como meio de representação, o conselho de Rainer Maria Rilke, em seu Cartas a um Jovem Poeta: “Relate suas mágoas e seus desejos, seus pensamentos passageiros, sua fé em qualquer beleza – relate tudo isto com íntima e humilde sinceridade. Utiliza, para se exprimir, as coisas de seu ambiente, as imagens de seus sonhos e os objetos de suas lembranças.” (RILKE, 1994, p. 23)

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É fundamental ressaltar que, além das diferenças técnicas e linguísticas, ambos escritores possuem uma divergência óptica, de visão de mundo. O modo como enxergam a realidade e a traduzem em poesia é bastante distinto: Miró busca a realidade “nua e crua”, sem atenuações, sem distrações, desprovida (na maioria das vezes) de uma perspectiva metafísica ou de um acesso a um plano divino – Miró sugere, muitas vezes, que Deus desistiu do mundo, como nos últimos versos de “Não Esqueça da Minha Caloi” : “Deus largou a bicicleta/ Pegou um foguete/E voltou pra casa” (MIRÓ, 2013, p. 73) –; já Alberto, como fora explicado, tem uma tendência transcendental, buscando exceder e sobrepujar a simples materialidade. Esta divergência se torna explícita quando os dois poetas exploram o sensualismo erótico em suas obras: Uma manhã assim de frio ameno, Ao menos você ligasse, Nem que fosse pra protestar Contra a tarifa fixa, Mesmo que fosse pra dizer Que ainda vota em Lula. Uma manhã assim, se você volta, Eu me dispo até unhas, mudo as digitais E que dane-se se me pedem os documentos. Numa mancha assim Uma blitz embaixo dos lençóis Minha língua úmida flagrando tua calcinha chover E a previsão do tempo prevendo uma manhã ensolarada. (MIRÓ, 2013, p.105) Todo corpo, em seu esplendor, Divide em duas esta vida, Mas este êxtase existe mesmo Para ocultar uma descida

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Da carne, no único momento Em que do cosmo é instrumento. Truque do eterno é todo amor: Toca por baixo o fogo alto Que aquece o sonho ao sol se pôr, Porque logo devolve aos dois O nada de antes e depois (MELO, 2017, p.439)

Percebe-se, claramente, analisando os dois poemas, que o poeta da Muribeca mesmo utilizando-se, desta vez, de mais metáforas e figuras de linguagem, procura ater-se à materialidade da realidade, tratando do erotismo sexual como qualquer outro elemento do cotidiano; já Melo é inteiramente devotado ao lado espiritual do ato.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Dispostas as investigações acerca das características fundamentais das poesias de de Alberto da Cunha Melo e Miró da Muribeca, a comparação de suas semelhanças e diferenças embasadas em diversos autores das mais variadas linhas de pensamento, faz-se claro, em primeiro plano, que: ambos, como representantes de certas partes da literatura pernambucana, demonstram a pluralidade de ideias, formas, técnicas, estratégias e óticas presentes no corpus literário do estado. Pudemos perceber, através dos dois poetas estudados, que a bibliografia da poesia pernambucana possui uma série de peculiaridades para ainda serem desvendadas e postas mediante crivo acadêmico. Por intermédio deste breve estudo, torna-se evidente a necessidade de mais exames comparativos entre nossos escritores, sejam poetas ou prosadores, no intuito de obter um panorama mais completo da nossa área de pesquisa. 271


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Em um segundo plano, mais amplo, foi possível demonstrar a possibilidade de retratar e traduzir vivências muito similares mediante ferramentas linguísticas e poéticas completamente diferentes, que, segundo Massaud Moisés, é característica fundamental da literatura, pois a expressão literária se dá “por meio de palavras de sentido múltiplo e pessoal” (MOISÉS, 1995, p.38); criando, assim, diversas maneiras de retratar o mesmo objeto. Cabe a nós, estudiosos da teoria da literatura e da arte literária, investigar e esmiuçar que meios são esses, com o objetivo de compreender melhor o aparato técnico dos escritores em geral; objetivo este que também foi um dos fins de nosso estudo.

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REFERÊNCIAS MELO, Alberto da Cunha. Poesia completa. Rio de Janeiro: Record, 2017. MELO, Alberto da Cunha. Marco zero. Recife: Cepe, 2009. MURIBECA, Miró da. Miró até agora. Recife: Fundarpe, 2013. MOISÉS, Massaud. A criação literária. Poesia. São Paulo: Cultrix, 1995. WELLEK, René; WARREN, Austin. Teoria da literatura. Lisboa: Publicações EuropaAmérica, 1962. RILKE, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. São Paulo: Globo, 1994. GODOY, Norma Maria. A matriz socioexistencial na poética de Alberto da Cunha Melo. In: Liliane jamir (org.). Entrelinhas da literatura pernambucana. Recife: Bagaço, 2014. ROSÁRIO, André Telles do. Poesia marginal no Recife. In: Matos et al. Da Letra à Voz. Recife: Fundação de Cultura Cidade do Recife, 2008. DANTAS, Ítalo. Miró da Muribeca. In: Roberto Mac Queiroz (org.) Literatura pernambucana. Uma disciplina necessária. Recife: Edições Audax, 2017. TOLENTINO, Bruno. Posfácio. In: Alberto da Cunha Melo. Dois caminhos e uma oração. São Paulo: Girafa, 2003. BOSI, Alfredo. Uma estranha beleza. In: Alberto da Cunha Melo. Dois caminhos e uma oração. São Paulo: Girafa, 2003.

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Resumo Objetiva-se com esse artigo identificar aspectos da estrutura do gênero literário Romance, da obra Rachel’s Holiday (Férias), colocando em evidência o efeito discursivo na construção da identidade da personagem Rachel através de sua narrativa, observando aos detalhes contidos na obra, que permitem a interação do leitor através dos fenômenos linguísticos da análise do discurso. Identificar o dito não dito, negação da personagem sobre sua condição toxicômana. Para o alcance dos objetivos propostos, serão úteis os conceitos sobre os gêneros Narrativa e o Romance baseados na obra de Georg Lukács (1965) e os aspectos linguísticos da análise do discurso na obra de Introdução à Linguística II de Mussalim & Bentes (2004). Palavras-chaves: romance; teoria; linguística.


O efeito discursivo na formação da identidade da personagem Rachel àdria izabel rodrigues da Silva1

Introdução Os debates sobre a importância da obra, autor, leitor, vem sendo explorada por muitos anos através de vários teóricos e amantes da literatura. Cada vez mais é perceptível à importância da recepção do leitor e de como a obra se torna a partir de sua leitura. Um dos gêneros em que se tem essa percepção mais aguçada é a Narrativa, pois, em sua estrutura, faz conexões com a realidade, oferecendo ao leitor uma experiência única e totalmente pessoal através das relações em que ele fará com seu âmbito de convivência. Entretanto os elementos que compõem uma obra, não são apenas elementos literários, existem fenômenos linguísticos que esclarecem as percepções do leitor, neste caso em específico o fenômeno análise do discurso. A análise do discurso, é um fenômeno linguístico em que seu campo de estudo é o próprio discurso baseado em quem fala e nas implicações feitas pelo falante. Através desses conceitos será identificado as concepções ideológicas na fala da personagem Rachel, Reconhecendo o narrador heterodiegético na construção da imagem da personagem e os elementos que aproximam essa relação de leitor e obra. As obras contemporâneas têm se apropriado cada vez mais desse tipo de estrutura. Fazem com que os seus leitores tenham uma maior afinidade com a obra e facilidade de compreensão dos textos. 1. Graduanda em Letras na Faculdade de Ciências Humanas de Olinda - FACHO. E-mail: adriafacho@ gmail.com 275


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Observam-se esses elementos nas obras da autora Marian Keyes, uma escritora Irlandesa, que utiliza do Romance para tratar com temas complexos de uma forma leve e intimista. Especificamente em sua obra “Rachel’s Holiday” (Férias), em que discutiremos nesse artigo analisando sua estrutura.

O gênero romance e a Obra

Embora o gênero Romance seja sempre comparado a história tipicamente romântica, protagonizada por um casal, não é essa a característica que classifica o Gênero. As classificações estabelecidas para identificação do romance, estão ligadas a sua estrutura. Obras do gênero romance, tem particularidades em seus textos que desvinculam-se dos textos clássicos. Uma das características que trazem essa particularidade ao gênero é a forma da organização do texto, os elementos utilizados propositalmente para causar sensações nos leitores, fazendo com que o leitor sinta o texto de uma forma completa. Se tratando de um texto humorístico por exemplo, utiliza-se elementos para que o leitor perceba a sacada de humor contido na história. No romance a intenção, a ética, é visível na configuração de cada detalhe e constitui portanto, em seu conteúdo mais concreto, um elemento estrutural eficaz da própria composição literária. Assim o romance, em contraposição à existência em repouso na forma consumada dos demais gêneros, aparece como algo em devir, como um processo. (Lukács, 1965 p. 72.)

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Para Lukács (1965), o romance trata-se de uma forma mais realista das obras, vinculadas com a frequente realidade humana. Foge de um texto engessado, indiscutível, para um texto encarregado de pluralidades. Na obra em evidência neste artigo, encontra-se em sua estrutura detalhes que mostram como o autor quis aproximar o leitor do texto. O livro trata-se de uma Narrativa contada através de um narrador homodiegético, Rachel. Uma toxicômana que obrigatoriamente têm suas “Férias” adiantadas. Levada para um centro de reabilitação, tem experiências conflitantes, pois não consegue assumir seu vício. Passa por situações cômicas no centro de reabilitação (Claustro) e vive um processo parecido com o de qualquer pessoa comum. É interessante a perspectiva da estrutura nessa obra, em que Marian Keyes (2014) utiliza das fraquezas de Rachel, gatilhos para a comicidade pretendida pela história, assim como em diversas obras no romance, a autora, permite que o leitor consiga identificar na estrutura a minuciosidade intencional dos sentimentos de Rachel. Por volta da hora de dormir já estava enlouquecida de dor. A palavra “dor” não chegava nem perto de descrever as fagulhas elétricas, quentes, metálicas de dor que se irradiavam do meu crânio até a mandíbula era horrível. (Keys, 2014, p. 295)

Portanto, mesmo não contendo o “romântico”, a obra caracteriza-se romance pois. as relações com a realidade está explícita em todo o texto. As convenções exprimidas na obra, trazem questionamentos reais do cotidiano, permite ao leitor aproximação ao texto. Em todo o decorrer da história a personagem Anti-herói, mostra sua vulnerabilidade humana, características que dão a obra a contemporaneidade do romance, a principal expectativa que o gênero produz no leitor. 277


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O efeito discursivo na construção da personagem A personagem Heterodiegética, narra o momento da descoberta de sua condição toxicômana, é inconsciente pois não percebe o que de fato acontece na história. Anti-heróica, preserva a sua face através do discurso, negando o seu vício, por não perceber a gravidade do seu estado. Através da negação de sua fala, o dito não dito, observa-se a confirmação do seu estado. Para Mussualim (2001)

[...] Calcada no materialismo histórico, a AD concebe o discurso como uma manifestação, uma materialização da ideologia decorrente do modo de organização dos modos de produção social” [...]

ou seja, os aspectos sociais, as ideologias são espremidas nos discursos dos falantes, tornando perceptível a construção de sua imagem através de sua fala, ela ainda acrescenta:

[...] Sendo assim o sujeito do discurso não poderia ser considerado como aquele que decide sobre os sentidos e as possibilidades enunciativas do próprio discurso, mas como aquele que ocupa um lugar social e a partir dele enuncia, sempre inserido no processo histórico que lhe permite determinadas inserções e não outras [..]

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Complementando que as implicações feitas por quem ler - ouve- o discurso, são quem trazem os elementos de suas próprias concepções sociais ideológicas, formando a imagem do falante. No discurso da personagem Rachel observa-se a que através da negação a sua doença, existem construções ideológicas sobre como deveria ser um toxicômano, e sua repugnância a esse condição social. [...] Diziam que eu era toxicômana. Eu achava essa ideia difícil de aceitar - afinal, era uma mulher de classe média, educada em colégio de freiras, que usava drogas para fins estritamente recreativos [...]

A personagem busca em toda a obra comprovar que não é uma toxicômana, enquanto seu discurso aproxima-a ainda mais de sua condição, esse efeito está interligado ao discurso de qualquer pessoa viciada, que tende esconder a real situação da sua doença. Observa-se então que o discurso da personagem interage com os aspectos sociais do leitor, ao fazer conexões com pessoas que tenham o mesmo discurso que a personagem, confirma que o efeito discursivo caracteriza a personagem como toxicômana. [...] Podiam beber uma ou duas vodcas com tônica e se descontrair um pouco; eu cheirava duas carreiras de cocaína e obtinha o mesmo efeito [...]

A análise ao efeito do discurso da personagem confirma a fragilidade da personagem, suas implicações sociais. Através do seu discurso percebe-se as marcas ideológicas que compõem sua construção social.

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Considerações Finais A importância da compreensão sobre o gênero romance, está vinculada ao conhecimento da estrutura do texto. Através do romance, compreende-se as particularidades contidas no texto. A facilidade da leitura de livros nesse gênero, instiga o leitor a buscar compreender a obra e identificar-se com o texto, fazendo parte dele. Especificamente em Rachel’s Holiday (Férias), uma obra que quebra os paradigmas relacionado ao romântico, utilizando questionamentos sobre vícios e doenças psíquicas. Conclui-se que a narrativa da personagem é construída no dito não dito, observado através do seu discurso, quando ao negar sua situação de toxicômana, sua justificativa afirma sua condição, percebida pelo leitor através do fenômeno linguístico análise do discurso, com elementos oferecidos pelo narrativa, na construção do texto.

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Referências GEORGE, Lukács. A teoria do romance. São Paulo: Editora 34. 1965. KEYS, Marian. Rachel’s holiday. 17 ed. Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil, 2014. MUSSALIM, Fernanda. Análise do discurso In: MUSSALIM, Fernanda & BENTES, Anna Christina (org.). Introdução à linguística: domínios e fronteiras, v II, 3 ed. São Paulo: Cortez, 2003.

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Resumo O trabalho discute como “O estrangeiro” (1942), de Camus, é ressignificado no filme “O estrangeiro” (1967), de Luchino Visconti, e no romance contemporâneo argelino de Kamel Daoud, “O caso Meursault” (2013). Focaliza-se, a partir dos estudos pós-coloniais, em especial do pensamento de Edward Said (1995), como cada releitura reapresenta as cidades argelinas em diálogo com seus respectivos contextos de produção. Palavras chave: Camus; Visconti; Kamel Daoud; Reescritura; Crítica pós-colonial.


“O ESTRANGEIRO” RELIDO NO CINEMA E NA LITERATURA: CAMUS, VISCONTI E KAMEL DAOUD Ariane da Mota1

INTRODUÇÃO Este trabalho surge do meu desejo particular de pensar sobre a seguinte questão: como Argel e Orã, cidades da Argélia, são representadas na literatura e no cinema? Mais especificamente: como essas cidades têm suas imagens espalhadas pelo mundo a partir de um imaginário em torno de O estrangeiro (1942), de Camus? Será que essas cidades receberam olhares, atenção, em décadas atravessadas pela obra camusiana, a qual perdura e se refaz em outras obras literárias e diversos meios semióticos? Ou mesmo, pergunto: essas cidades vagariam apagadas na nossa memória, ofuscadas pela filosofia do absurdo, pelos dilemas existenciais e ocidentais do narrador-personagem Meursault, que viveu na Argélia? Falo, a partir da minha subjetividade enquanto analista de textos, falo do meu lugar de intelectual latino-americana, que conviveu (pouco) com argelinos e franceses, que visitou rapidamente a França, mas nunca a Argélia e que me vejo, como subalternizada pelo centro ocidental, interpelada por essas questões. Nunca visitei Argel, a não ser pela mímesis. Confesso que meu lugar de fala me faz se sentir intrigada com a subalternidade conferida a essas cidades argelinas. Dessa maneira, meu olhar de analista quer recortá-las numa “dança” onde as vejo em movimento, deslizando no ar da ficção – a dança 1. Doutoranda em Teoria da Literatura pela UFPE e Mestre em Teoria da Literatura pela UFPE. E-mail: arianedamota@hotmail.com 283


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entre três obras: 1) O estrangeiro (1942), romance de Camus; 2) Lo straniero (1967), adaptação de Camus para o cinema, do italiano Luchino Visconti; 3) o romance O caso Meursault (2013), de Kamel Daoud, que reescreve o francês do ponto de vista árabe. Como a memória dessas cidades se erige a partir dessa coreografia triangular? A minha escolha analítica, segue o que Walter Mignolo (2008) chama de “La opción descolonial”. Na sua visão, as metodologias analíticas derivam de escolhas que denotam posições políticas. As nossas opções, remarca, desde escolher um restaurante ou um automóvel numa loja, revelam nossas posições no mundo. Como o intelectual argentino, faço a opção descolonial e pretendo analisar essas obras na perspectiva de apontar como elas se relacionam com que ele chama de retórica da modernidade-colonialidade, a qual pode ser entendida como uma matriz de práticas eurocêntricas de organização econômica, política e cultural que subjugam o imaginário de países colonizados. Outras metodologias de leitura da relação entre as três obras recortadas em estudo seriam possíveis e legítimas, mas demarco a minha escolha e a ponho em prática com a consciência de que a variabilidade de escolhas analíticas é o que faz do campo acadêmico um lugar fértil para o pensamento crítico e sua necessidade de diversidade e renovação. Introduzo a abordagem refletindo sobre o que é uma cidade, a partir de Raquel Rolnik (1995). A autora destaca que o movimento de construção de uma cidade, centrado em unir tijolos, conectar prédios, interseccionar ruas, é o mesmo movimento da escrita. Rolnik remarca que a cidade constrói e é também construída por textos variados que a erguem no plano da memória. Cito Rolnik:

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Na cidade escrita, habitar ganha uma dimensão completamente nova, uma vez que se fixa em uma memória que, ao contrário da lembrança, não se dissipa com a morte. Não são somente os textos que a cidade produz e contém (documentos, ordens, inventários) que fixam esta memória, a própria arquitetura urbana cumpre esse papel” (1995, p.17).

Aproveito as palavras da autora para considerar a partir dela que Literatura e Cinema são meios semióticos arquitetos de cidades, escrevendo-as no tempo, no espaço, no campo cultural. Que cidades arquitetaram Camus, Visconti e Kamel Daoud? Que escrita/ imagem de memória os autores sugerem para a cidade na Argélia? Os autores em estudo as arquitetam de lugares e com meios diferenciados. Os referenciais de Camus e Visconti são eurocêntricos, os de Daoud dialogam com as necessidades de se reconstruir, como escritor nascido numa Argélia “independente” da França, uma cidade pós-colonial. Cada um imprime em sua obra a sua subjetividade de local enunciativo. Em As cidades invisíveis (2017), de Ítalo Calvino, Marco Polo, personagem que tem a função de descrever ao imperador Kublai Khan as diversas cidades do seu próprio império por ele desconhecido territorialmente, recebe a seguinte interpelação do nobre; cito a obra: – Resta uma cidade que você jamais menciona – Veneza. – Disse o Khan. Marco Sorriu. – E de que outra cidade imagina que eu estava falando? – No entanto, você nunca citou seu nome. E Polo: - Todas as vezes que descrevo uma cidade, digo algo a respeito de Veneza (2002, p.83).

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Calvino, assim, nos põe diante dessa ancoragem subjetiva na nossa cidade natal, que levamos no olhar, ao falarmos de outras cidades. Do pertencimento ao nosso lugar de origem que se imprime na nossa forma de escrever/ construir cidades. No caso de Camus e Visconti, seus referenciais subjetivos de pertencimento são o Ocidente: Camus fala como Pied Noir, como francês que nasce na Argélia colonial; Visconti fala como representante de uma elite italiana erudita. È a partir dessa ancoragem ocidentalizadas que suas obras vão fazer das cidades argelinas, a própria França, de um modo análogo ao mecanismo das “ideias fora do lugar”.

CAMUS E A CIDADE

Em O estrangeiro, o narrador protagonista, Meursault, é o emblema do homem-absurdo, conceito filosófico que dialoga com a atmosfera existencialista do pós-guerra na Europa, onde as ilusões da figura de Deus, as referências de segurança na transcendência após a morte, estavam minadas e o ser humano deveria enfrentar essa falta de sentido da vida na solidão. O romance tem seu duplo na obra filosófica do autor O mito de Sísifo, publicada também em 1942. Nela, Camus define o conceito de absurdo: Um mundo que se pode explicar mesmo com raciocínios errôneos, é um mundo familiar. Mas num universo repentinamente privado de ilusões e de luzes, pelo contrário, o homem se sente um estrangeiro. É um exílio sem solução, porque está povoado das lembranças de uma pátria perdida ou da esperança de uma terra prometida. Esse divórcio entre o homem e sua vida, o ator e seu cenário é propriamente o sentido do absurdo (CAMUS, 1942, p.20).

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Meursault, como homem-absurdo, assim, segue uma vida que não se encaixa nos sentidos uniformes de sua sociedade e seu tempo. Ele é indiferente à morte da mãe, à própria promoção profissional, ao casamento com a namorada Marie, a Deus. Mas é importante destacar que a obra seleciona ficcionalmente a sua ação de matar um árabe (não um francês) e ele próprio justifica o assassinato, em pleno desenrolar de seu julgamento no tribunal, pelo sol que haveria interferido nos seus sentidos. Não há, desse modo, indicação em Camus de nenhuma motivação específica, nenhum nexo de causalidade afetiva na narrativa, além do sol, para que Meursault mate o árabe, o qual também não recebe identidade, ele não tem nome ou endereço, ou religião, ou emprego, nada. No romance, o árabe não fala, apenas toca uma flauta. O silêncio árabe faz parte da paisagem da praia de Argel, da cadeia da cidade, onde a maioria dos detentos são árabes com bocas, mas sem voz. E, assim, a obra se passa como se a cidade fosse apenas uma praia dominada por franceses que gozam do banho de mar, de um lugar ao sol ou, como se resumisse a uma sala de julgamento do crime de Meursault, ou a uma cela, onde o narrador se revolta contra um padre. A cidade de Argel é um pano de fundo para que dilemas especificamente de uma filosofia francesa possam ser encenados. O conflito com Deus e seu protagonismo pode ser lido como uma espécie de negação da cidade de Argel, onde se passam os fatos narrados; ou mesmo é a cidade de Argel tomada pela dominação colonial da França. A esse respeito, se faz fundamental a leitura de Edward Said (1993), na obra Cultura e imperialismo, num ensaio específico sobre “Camus e a experiência colonial”. Diz Said:

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Camus é um romancista que não descreve os fatos da realidade imperial, evidentes demais pra ser mencionados; como em Austen, permanece um ethos que se destaca, sugerindo universalidade e humanismo, em profundo desacordo com as descrições do palco geográfico dos acontecimentos, feitas de maneira chã na ficção. [...] A França abarca a Argélia e, no mesmo gesto narrativo, o assombroso isolamento existencial de Meursault (1993, p.224)

questionar e desconstruir a escolha da locação geográfica de Camus para L‘étranger (1942). Por que a Argélia foi o local escolhido para narrativas cuja referência principal (no caso dos dois primeiros) sempre foi interpretada como sendo a França de modo geral, e a França sob a ocupação Nazista em termos mais particulares? [...A escolha não é inocente e boa parte do que aparece nas narrativas (por exemplo o julgamento de Meursault) é uma justificação sub-reptícia ou inconsciente do domínio francês ou uma tentativa ideológica de embelezá-lo (p. 226-227).

O empreendimento de Camus explica o vazio e a ausência de qualquer contextualização do árabe morto; daí também o senso de devastação de Oran, que se destina implicitamente a expressar não tanto as mortes de árabes, e sim, a consciência francesa (p.232).

VISCONTI E A CIDADE

Sobre Visconti, destaco as observações de Marcelo da Rocha Lima (UFRJ), que aponta ser a leitura do cineasta italiano, pela série de restrições contratuais a que esteve submetido, mais uma ilustração do clássico, do que propriamente uma interpretação crítico-criativa. A esse respeito, transcrevo suas palavras:

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O contrato com o produtor Dino De Laurentiis e com os detentores dos direitos autorais é firmado em 1962, e Visconti declara a princípio seu projeto de fidelidade à obra de Camus: “Não o traduzirei. Quero respeitar a essência e submeter-me humildemente ao texto. (...) Vejo [o filme] exatamente como Camus o escreveu. Não quero nem escrever um roteiro” (apud Micciché, 2002, p.56). Essa intenção, que surgira em um primeiro momento de aproximação do romance, ainda distante de sua produção objetiva, e como um desejo do cineasta, é em seguida reforçada contratualmente pela viúva do autor, que zelava pela inviolabilidade da obra do marido. Francine Camus exigiu que o roteiro final fosse aprovado por ela, que o rubricaria em cada página, e que da equipe de elaboração do roteiro fizesse parte um conhecedor da obra de Camus em quem ela tivesse confiança (2009, p. 4).

Assim, como os direitos autorais de Camus estavam sob a tutela de sua viúva, Francine Camus, e esta exigiu a fidelidade total ao núcleo narrativo do romance, Visconti se viu condicionado a elaborar uma adaptação que, na minha leitura, traz uma continuidade da tendência camusiana de construir Argel como uma cidade em que os dilemas franceses a ofuscavam enquanto arquitetura e escrita argelina. Em Visconti, em contrapartida, as imagens da cidade ganham formas, podemos ver o barulho das ruas, as construções, os letreiros comerciais estampando nomes como pâtisserie, o que aponta a tendência da direção em remarcar a hegemonia da língua francesa. A figuração nos espaços públicos também sugere uma maioria étnica francesa, de modo que reconhece-se quem não faz figuração francesa pelo uso do Jibba, túnica árabe. Nessa conjuntura, na praia, os árabes aparecem vestidos de estereótipos orientalistas; na cadeia, a maioria árabe veste turbante e véu. Vestem silenciados, transeuntes afônicos, figurantes de seu próprio país. Sobre tal representação estereotipada das subjetividades árabes na tradução intersemiótica do texto original para o cinema, Lima assinala: 289


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A diferença nodal entre os registros verbal e visual transparece nas aparições sucessivas – conforme descritas no romance – dos árabes no filme. Contrariamente ao que seria esperado, é no livro que há um fading desses personagens, e não versão para o cinema. A movimentação deles na praia, aparecendo, desaparecendo e reaparecendo, é suave e verossímil no papel; na tela, feita subitamente, a insinuação da palavra é substituída por uma imagem peremptória e as figuras caricatas dos árabes acabam por se assemelhar a gênios saindo da lâmpada. O filme cumpre sua função como mise-en-scène do livro, realizando uma reconstituição de época e local primorosa e oferecendo algumas imagens vigorosas, como, por exemplo, o corte súbito da leitura da sentença à guilhotina para o pescoço nu de Meursault/Mastroianni; mas o apelo ilustrativo é, inegavelmente, aquele que rege sua composição (2008, p.6).

Faz-se interessante destacar que Visconti, concede um mínimo de identidade à mulher árabe, que é a prostituta ligada ao pied noir Raymond. No original, Camus escreve: “Quando me disse o nome da mulher, vi que era moura” (2016, p. 39), mas não nomeia a moça. Visconti, porém, lhe dá nome (Yasmine) e imagem. Contudo, embora deixe de ser uma mulher árabe sem nome, ganha também uma imagem estereotipada, com uma tatuagem na testa e um corpo adereçado com um figurino que hiper-sexualiza a sua figura, o que revela mais uma marca do orientalismo (SAID, 2007) presente na adaptação. O cinema de Visconti, neste aspecto, contribui para o que Said denomina “generalizações históricas” (2007, p. 31) do povo árabe a serviço da construção de uma identidade subalterna e bárbara oriental, que necessita de correção e civilização constantes, através de processos de dominação e violência por parte da Europa, traço que justifica a necessidade da colonização. Cito Said:

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É a hegemonia, ou antes o resultado da hegemonia cultural em ação, que dá ao Orientalismo a durabilidade e a força de que tenho falado até o momento. O Orientalismo nunca está muito longe do que Denys Hay chama de “a ideia de Europa”, uma noção coletiva que identifica a “nós” europeus contra todos “aqueles” não europeus, e pode-se argumentar que o principal componente da cultura europeia é precisamente o que tornou hegemônica essa cultura, dentro e fora da Europa: a ideia de uma identidade europeia superior a todos os povos e culturas não europeus. Além disso, há a hegemonia das ideias europeias sobre o Oriente, elas próprias reiterando a superioridade europeia sobre o atraso oriental, anulando em geral a possibilidade de que um pensador mais independente, ou mais cético, pudesse ter visões diferentes sobre a questão (2007, p. 34).

Desse modo, o filme, como parte da cultura europeia, ao selecionar imagens árabes estereotipadas, reforça o Orientalismo e seus mecanismos de violência. As cidades argelinas sob a supervisão Viscontiana no écran, assim, estão a serviço do Orientalismo.

DAOUD E A CIDADE

Kamel Daoud, vem operar uma quebra crítica nesse domínio da França filosófica que encobre a arquitetura e a textualidade histórica da Argélia, das violências da colonização, da guerra da independência. Ele reconta a história através do narrador Haroun, irmão do árabe assassinado, que agora tem nome e perfil psicológico: Mussa, um fundamentalista agressivo e estivador no cais de Argel. Daoud traz a arquitetura das cidades de Argel e Oran: as fachadas com letreiros franceses num região de língua árabe, as mesquitas, a divisão dos bairros na Argélia colonial entre os bairros franceses e os argelinos; ressignifica as relações da cidade com o mar, traz os problemas urbanos, como a sujeira das ruas como marcas da desocupação francesa; traz as crianças 291


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com véus nas ruas, mesmo sem que ainda saibam o que é o corpo e o desejo. Ele escreve na cidade as marcas críticas à violência colonial, mas também do fundamentalismo islâmico que governa o país e interdita os bares. Cito Daoud: HOJE MAMÃE AINDA está viva. Ela não fala mais, mas poderia contar muitas coisas. Ao contrário de mim, que de tanto remoer essa história já quase nem me lembro dela.

Devo dizer que é uma história que remonta há mais de mio século. Ela aconteceu de fato, e foi muito comentada. As pessoas ainda falam dela, mas com o maior descaramento, evocam apenas um morto, sendo que havia dois: não um morto, mas mortos. Sim, dois. Qual o motivo dessa omissão? O primeiro deles sabia contar histórias, a tal ponto que conseguiu fazer com que o seu crime fosse esquecido, enquanto o segundo era um pobre analfabeto que Deus pôs no mundo, ao que parece, unicamente para levar um tiro de revolver e retornar ao pós, um anônimo que não teve nem sequer tempo de ter um nome. Digo logo de cara: O segundo morto, o que foi assassinado, era meu irmão. Não sobrou nada dela. Sobrei eu, apenas, para falar por ele, sentando aqui neste bar esperando por condolências que ninguém jamais me apresentará. Você pode achar engraçado, mas é um pouco esta a minha missão: Reapresentar um segredo de bastidores enquanto a sala se esvazia. Foi por isso, aliás, que aprendi a falar essa língua, e a escrever nela também; para falar por um morto, prolongar um pouco as frases dele. O assassino ficou famoso e a sua história é demasiado bem escrita para que eu pense em imitá-la. Era a língua dele. É por isso que farei o que se fez neste país depois da sua independência: pegar uma a uma as pedras das velhas casas dos colonos e erguer com elas uma casa minha. As palavras do assassino e suas expressões são o meu imóvel desocupado. O país está, aliás, inundado de palavras que já

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não pertencem a ninguém e que observamos nas fachadas das velhas lojas, nos livros amarelecidos, nos rostos, ou, ainda, transformadas pelo estranho dialeto que a descolonização forja (2016, p.9-10).

Gostaria de assinalar neste trecho o tom de crítica às marcas da colonização aparente nas ruas das cidades, visíveis nos imóveis e suas fachadas. A marca da colonização é arquitetônica e o narrador faz essa denúncia da cidade invadida e que continua a violentar os olhos de quem lê pelas ruas e pelos livros um passado de disputa territorial, de hegemonia francesa e apagamento da identidade cultural e linguística do povo árabe. Aqui se pode notar que semelhante à já aqui mencionada ideia de Rolnik, de que a cidade e a escrita estão correlacionadas, está o desabafo do narrador. Cito novamente Kamel Daoud num trecho onde o narrador descreve as cidades argelinas: Lembro-me do caminho para Hadjout, ladeado por campos cujas colheitas não eram destinadas a nós, o sol a pino, os viajantes no ônibus empoeirado. O cheiro do combustível do motor me causava náuseas, mas eu gostava do seu ronco viril e quase reconfortante, como uma espécie de pai que nos tirava, minha mãe e eu, de um imenso labirinto feito de prédios, pessoas esmagadas, favelas, moleques sujos, policiais mal-humorados e praias mortais para os árabes. Para nós dois a cidade seria sempre o local do crime ou da perda de alguma coisa pura e antiga. Sim, Argel, em minha memória, é uma criatura suja, corrompida, ladra de homens, traidora e sombria.

Por que razão eu estou de novo afundado em uma cidade, aqui, em Orã? Boa pergunta. Talvez seja para me punir. Observe um pouco à sua volta, aqui, em Orã ou em qualquer outra parte, parece que as pessoas têm raiva da cidade, e só vem aqui para saquear uma espécie de país estrangeiro. A cidade é um butim, as pessoas a veem como uma velha prostituta, insultam-na, maltratam-

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na, atiram-lhe lixo na cara e a comparam sem parar com a aldeia saudável e pura que ela era antigamente, mas já não conseguem abandoná-la, pois é a única saída para o mar e o lugar mais distante do deserto. Anote essa frase, que ela é bonita, rá-rá-rá! Há uma velha canção daqui que diz que “a cerveja é árabe e o uísque é ocidental”. É mentira, claro. Quando bebo, eu sempre a corrijo: esta canção é oranense, a cerveja é árabe, o uísque europeu, os barmen são cabilas, as ruas, francesas, os velhos pórticos, espanhóis... isso não acaba nunca. Vivo aqui há algumas dezenas de anos e me sinto bem. O mar fica na parte de baixo, lá longe, esmagado ao pé das grandes construções do porto. Ele não roubará ninguém de mim e jamais conseguirá me atingir (2016, p. 31-32).

A passagem está carregada da memória magoada do narrador pela colonização francesa. “A colheita que não era para nós” traz o pesar de uma terra saqueada, roubada. A cidade ganha a imagem que não recebeu ênfase em Camus. Tratam-se de cidades marcadas pela sujeira, pelas cicatrizes coloniais. O olhar dos cidadãos argelinos para a cidade é uma novidade que não foi sequer tateada por Meursault. Haroum assinala a semelhança entre a cidade e uma prostituta, figura que vende prazeres e, assim, transgride a moral comum, mas que também perpassa os caminhos da exploração e da subalternidade. O patriarcalismo no processo de colonização está aí presente nessa imagem da cidade argelina como uma mulher que pode ser explorada em troca de “migalhas” e ter sua moral defasada no campo das representações sociais. A ambivalência é também uma figura presente no desenho que o narrador daoudiano projeta da cidade: ora degradada, ora um oásis frente ao deserto. As ruas, novamente, como no trecho anterior, ressoam a França, também evidenciam os conflitos entre os sujeitos europeus e árabes, e o lugar tem evidenciado o mar, o qual recebe em Daoud o peso da morte, do assassinato do povo árabe, da dor e da memória daquela família que perdeu Moussa para a pretensão de uma filosofia eurocêntrica do absurdo que tomava um narra294


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dor de cacoetes eurocêntricos e que se tornava um assassino de um cidadão argelino não francês. Estes desenhos, antes silenciados em Camus, ganham primeiro plano na ficção de Daoud. Tem-se aí, a representação decolonial da Argélia. No trecho seguinte, remarco a religiosidade presente nas ruas da cidade, grafada na descrição dos corpos das meninas que vestem véu. Cito: Veja aquele grupo que está passando ali, aquela menina com o véu cobrindo a cabeça sendo que ela nem sabe ainda o que é um corpo, o que é o desejo. O que você faria com essas pessoas? Hein? (2016, p.86).

Aí, o autor apresenta o traço islâmico e fundamentalista que ronda as cidades argelinas, criticando o machismo presente no Corão e que povoa a cidade pelos corpos controlados das meninas que habitam a Argélia. O fato de serem meninas e não mulheres selecionadas para andarem pela escrita de Daoud já aponta que sua obra contesta a cidade que as mesquitas ajudam a criar. O véu na ficção argelina também é traço da arquitetura da cidade. Este aspecto na obra do escritor aponta que seu projeto tanto ataca o imperialismo francês, quanto o fundamentalismo islâmico que governa a Argélia contemporânea.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Daoud não só reconstrói com resistência pós-colonial O estrangeiro, mas ao tematizar as cidades com tais contornos, afronta o sistema político argelino. Sua reescritura do texto camusiano não só redimensiona o passado, mas problematiza a Argélia contemporânea, as questões conflitantes de seu cenário político: o fundamentalismo islâmico e o nacionalismo, as quais são construtos resultantes também da relação colonial com a França. A di295


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nâmica que a Argélia mantém com o sagrado islâmico interfere na liberdade de expressão do país e da escrita literária no país. Abordar o sagrado, nesse contexto, escrevendo na língua francesa é um ato político de coragem. Daoud já foi alvo de mais de uma ameaça por parte das forças político-religiosas que dominam a gestão do país. Sua coragem é enfrentar pela escrita o ódio selvagem de seus espectadores. Deixo, então, o convite para que os leitores interessados visitem as cidades de Argel e Orã, a partir de Kamel Daoud. Trata-se de um convite para que se reconheça uma outra memória desses lugares, uma outra arquitetura e outra escrita, dissonantes das imagens eurocêntricas; memórias que fogem do absurdo que habita a retórica da modernidade-colonialidade, matriz cerceadora na Literatura e no Cinema, em muitas produções ocidentais, da alteridade de cidadãos argelinos, cerceadora das memórias de tantas cidades subalternizadas da África e da América. Dancem com Kamel Daoud. E por que não uma coreografia do Raï, um ritmo da tendência pop argelina?

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REFERÊNCIAS CALVINO, Ítalo. As cidades invisíveis. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. CAMUS, Albert. O estrangeiro. 38 ed. Rio de Janeiro: Record 2016. CAMUS, Albert. O mito de Sísifo. Rio de Janeiro: Guanabara, 1942. DAOUD, Kamel. O caso Meursault. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016. LIMA, MARCELO DA ROCHA. Linguagens de passagem: lugares de fala estrangeiros em Camus, Visconti, Cure e Neshat. Darandina revisteletrônica, v 1, n 2, p. 1-15. Disponível em https://mafiadoc.com/lugares-de-fala-estrangeiros-em-camusvisconti-cure-e-ufjf_5a0057141723dd17c300ec2c.html. Acesso em 17 set de 2018. MIGNOLO, Walter. La opción descolonial. Letral, 1, 2008, P. 4-22. ROLNIK, Raquel. O que é a cidade. São Paulo: Brasiliense, 1995. SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SAID, Edward. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

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Resumo Pleno de si, dominando tanto o verso livre e branco quanto o soneto, Manuel Bandeira fez do Modernismo a escola de sua vida. Ajudou inúmeros autores iniciantes a começar a escrever poesia e participou intensamente da vida cultural do Brasil entre 1920 a 1960, quando veio a falecer. Falou de artes Plásticas, música, teatro, cinema e outros assuntos considerados triviais, inclusive concurso de Miss Brasil. Sua obra em prosa (crônica) e versos é considerada o espelho da alma nacional, pois carregava em si os afetos, desafetos, sofrimentos, mas esperança e labuta do brasileiro comum. Esta comunicação destacará o papel moderador e equilibrado de Manuel Bandeira frente à chamada 1ª Geração modernista (1922) e seguintes. No reconhecimento de que a temática de nossas identidades culturais encontra-se elaborada e discutida, a partir das mais variadas fases de nossa vida social, e manifestada nas mais diversas linguagens — a descritiva, a ensaística e a literária -, nos voltaremos para o estudo dessa recorrência discursiva em nossa literatura. Para tanto, elegemos como objeto de análise a obra de Manuel Bandeira, em especial os suas crônicas, pois nessa poética a construção simbólica de nossas feições encontra-se de forma mais expressiva e manifesta. Os focos de análise serão as crônicas de Manuel Bandeira, sendo utilizadas, principalmente, sua antologia Seleta de Prosa (1997) e as Crônicas Inéditas I e II, de Júlio Castation Guimarães. Nosso artigo pretende esmiuçar a contribuição de Bandeira no debate sobre Modernismo e Tradição, provincianismo e regionalismo; sua relação com o primo e mestre de Apipucos, Gilberto Freyre, que, através do manifesto regionalista de 1926, por ele liderado, impôs duras críticas e campanhas contra as vanguardas emergentes no Brasil das décadas de 1920 e 1930 no país. Palavras-chave: Manuel Bandeira. Modernismo. Manuel Bandeira e Modernismo. Tradição e Modernidade em Manuel Bandeira.


O MODERNISMO PECULIAR DE MANUEL BANDEIRA André Cervinskis

Nosso Modernismo literário inicia-se em resistência ao academicismo conservador, lusitano e dissolvente que ganhara ascendência na própria Academia, ainda que esta mal se fundara. Literariamente menos oco do que o Arcadismo dos Esquecidos, Renascidos e Felizes, o academicismo do século XX não possui sequer a apagada significação social. Apesar do caráter de bajulação escancarado, tiveram as famosas academias do Século XVIII, refletindo esporadicamente anseios locais em roupagens de barroca “literatice”, numa época em que foi mais cúpida a exploração colonial e mais cruenta a dominação da metrópole portuguesa. Nesse sentido, a Semana de Arte Moderna de 1922, ao invés de marco inicial dessa revolução, foi, na verdade, o momento-chave da virada, uma mudança estético-cultural que já vinha se processando desde as primeiras décadas do século. Em 1912, o jovem escritor e jornalista Oswaldo de Andrade toma conhecimento, na Europa, das idéias do Futurismo, posteriormente divulgadas em São Paulo. Em Portugal, funda-se a revista Orpheu, assinalando o início da vanguarda modernista em Portugal, tendo à frente, dentre outros, o brasileiro Ronald de Carvalho. No ano seguinte, em 1916, a Revista do Brasil consolida essa nova visão crítica e nacionalista (TUFANO, 2003). Esse conflito entre tradição e modernidade, porém, não foi uniforme em todos os escritores modernistas. Havia o grupo paulista, mais revolucionário e iconoclasta, defendendo abertamente a oposição ao tradicionalismo; e o do Rio de Janeiro, que, embora reconhecendo a necessidade de mudanças, considerava importante manter alguns valores advindos da tradição, inclusive na estética. O grupo de São Paulo, liderado por Oswald e depois por Mário 299


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de Andrade, operava paralelamente a este outro, num sentido de consciente ruptura com a realidade brasileira. O elemento informador não é nacional, mas internacional, fazendo cedo repercutir os ecos do “Manifesto Futurista” de Marinetti, e os fermentos do expressionismo e do cubismo. O que caracterizou a vanguarda brasileira como movimento de ruptura que conseguia manter em suas estruturas o sentido da tradição – sem com isso negar-se como categoria ou sistema revolucionário – é o fato de que o Brasil, sendo uma nascente sociedade nacional, isto é, com um passado histórico limitado, pouco tinha a oferecer naquele setor das “formas” tradicionais. É uma virgindade de experiências que felizmente permitia aos jovens modernistas o direito de não lutar contra um passado cultural. O que é um dos tantos dados que, a partir de 1922, identificam a vanguarda histórica brasileira e que a conduz a uma diferenciação imediata em confronto com as correspondentes correntes européias. Mais adiante, o autor esclarece tal diferença política entre os grupos, destacando o papel inovador de Bandeira: Os jovens escritores do Rio de Janeiro recolhem a tradição simbolista e criam uma expressão moderna a partir dessa coerente sequência histórica. Já em 1917, Manuel Bandeira, com A Cinza das Horas, propõe a renovação elaborada pela corrente dos herdeiros de Cruz e Sousa, poetas voltados diretamente à superação do espírito oitocentista e á conquista de uma poesia nova.(...). Com Adelino Magalhães e Manuel bandeira, o código linguístico brasileiro se abre para uma perspectiva de revolução, a partir da logicidade da evolução do processo literário (Op. cit., p. 98-99)

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A posição de Manuel Bandeira em face dos parnasianos e a sua aproximação do grupo de São Paulo, notadamente de Mário de Andrade, com quem troca correspondência de 1922 a 1944, não o faz, contudo, reivindicar para si o título de modernista. Havia o romantismo, no qual Bandeira buscava inspiração, especialmente em sua temática do local e da musicalidade. Assim, convivendo, desde a infância, em meio ao mundo da literatura, Manuel Bandeira desempenharia um papel atuante nos contextos literários de renovação de nossas letras, ora emprestando aos modernistas de São Paulo, em 1922, o texto que lhes faltava para a demarcação do novo em nossa poesia, “Os sapos”, escrito em 1918; ora elaborando, para os modernistas nordestinos, o poema “Evocação do Recife”, escrito em 1925 e publicado em Libertinagem (1930). Sobre essa atuação poética de Bandeira no período inicial do Movimento Modernista do Nordeste, assim se referiria Gilberto Freyre, espécie de co-autor de Bandeira, como revela, em entrevista, a D’Andrea: O poema de Manuel Bandeira – “Evocação do Recife” – é de forma modernista, valorizando, entretanto, valores regionais e tradicionais. Uma inspiração minha... Por inspiração minha, como Manuel Bandeira reconhecia. Ao mesmo tempo, nesse livro, você vê desenhos modernistas de Joaquim do Rego Monteiro. Estão lá! Isto confirma o que era a minha concepção paradoxal de juntar esses contrários: Regionalismo, Tradicionalismo, Modernismo (FREYRE, apud D’Andrea, 1992, p. 204)

Ao se voltar para a sua participação no movimento liderado por Gilberto Freyre, Manuel Bandeira apreciaria essa inserção, através de um olhar marcado pela positividade, ressaltando que, graças à sensibilidade pernambucana de Freyre, se reconduzira a Pernambuco, denominado, em seu texto, como província:

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Lista [de amigos] a que devo juntar, depois de 1925, o nome de Gilberto Freyre, cuja sensibilidade tão pernambucana muito concorreu para me reconduzir ao amor da província e a quem devo ter podido escrever naquele mesmo ano a minha “Evocação do Recife”. (BANDEIRA, 1997, p. 326 – grifos nossos)

Veja-se que Bandeira expressa a Freyre uma gratidão dupla: a de ter elaborado a Evocação e a de tê-lo reconduzido ao mundo da “pernambucanidade”. Seria essa, então, a primeira demonstração explícita do reconhecimento de Bandeira aos valores defendidos pelo Modernismo do Nordeste (regionalismo). Segundo Neroaldo Pontes Azevedo, Bandeira não só contribuiria com o Movimento Modernista do Nordeste com a sua “Evocação do Recife”, como também ajudaria a divulgá-lo, tanto em Pernambuco quanto no Centro-Sul do país, como se vê, em sua crônica “Impressões de um cristão-novo do regionalismo” (1928), na qual se observa uma declarada filiação à perspectiva que anima Gilberto Freyre, como bem observa Castañon Guimarães, em nota a essa crônica. Assim, Bandeira participaria tanto das experiências modernistas do grupo paulista, quanto das elaborações estéticas do Modernismo nordestino. Isso nos deixa entrever que Bandeira se apercebe, desde o início, das similaridades entre as duas mais importantes vertentes do Modernismo brasileiro. Dessa forma, Manuel Bandeira se anteciparia, criticamente, à perspectiva teórica que, longe de acentuar as diferenças entre as nossas principais modalidades modernistas, procura pontuar os traços de aproximação entre elas, como procede, hoje, Heloísa Toller Gomes, estudiosa do Modernismo do Nordeste:

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O sentido de brasilidade da produção literária nordestina, embora bem diferente daquele exibido pelos modernistas de São Paulo e do Rio de Janeiro, era também ambicioso em suas propostas estéticas, indo além da manipulação do rico repertório imagístico e temático nacional. [...] Na verdade, complementavam-se as duas perspectivas, a do Sul e a do Nordeste, em relação a um Brasil que se encaminhando de maneira incerta para uma controvertida e avassaladora modernidade, necessariamente dramatizaria e confrontaria, na cena literária de então e das décadas subseqüentes, a sofisticação e a miséria das metrópoles aos grandes sertões e às decadentes casas-grandes, com sua “senzala dos tempos do cativeiro” (GOMES, 2003, p. 646)

Semelhante discrepância entre perspectivas ideológicas dos dois grupos – o Modernismo do sul e o do Nordeste - deu-se graças a uma realidade bem palpável: ao contrário do que possa parecer à primeira leitura, não havia uma ligação permanente entre os modernistas do Sul e do Nordeste. Isso refletia a realidade de um país continental, com distâncias enormes entre as capitais das regiões e das regiões entre si. Lembremos que a viagem de Recife ao Rio só era possível ser feita de navio e demorava-se quase uma semana. Nesse sentido, Joaquim Cardozo dará o seguinte depoimento: Nenhum de nós jamais tomou conhecimento do movimento modernista de São Paulo, que Mário de Andrade incumbiu Joaquim Inojosa de difundir ou implantar em Pernambuco (CARDOZO apud SOUZA BARROS, 1984, p. 165 – grifo nosso). Em carta de 03 de fevereiro de 1926, Bandeira comentará com Carlos Drummond de Andrade a simpatia com que encara a ação de Gilberto Freyre e de outros regionalistas, especialmente se comparados com os que se auto-denominavam “modernistas” do Recife:

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Gilberto Freyre é um rapaz de 24 anos, creio. Informaram-me que já esteve quatro anos nos Estados Unidos. É inteligentíssimo. Não é modernista, mas gosta muito de nós. Está fazendo no Norte uma campanha em favor das boas tradições brasileiras (BANDEIRA apud AZEVEDO, 1984, p. 137-138 – grifos nossos)

As correspondências entre ambos se intensificam, até que, ao regressar do Congresso Panamericano de Jornalismo, nos EUA, Freyre vai ao Rio de Janeiro e trava conhecimentos com Manuel Bandeira e os demais modernistas cariocas. Em poema intitulado Casa Grande & Senzala, do livro Mafuá do Malungo, de 1948, Bandeira vai elogiar o Mestre de Apipucos como legítimo representante do regionalismo, exaltando a descoberta do Brasil crioulo que Casa Grande & Senzala proporcionou: “Casa Grande & Senzala”/ Grande livro que fala/ Desta nossa leseira/ brasileira/ Mas com aquele forte/ Cheiro e sabor do Norte/ Dos engenhos de cana (Massangana!)/ Com fuxicos danados/ E chamegos safados/ De mulecas fulôs/ Com sinhôs!/ A mania ariana/ Do Oliveira Viana/ Leva aqui a sua lambada/ Bem puxada [...] “Casa Grande & Senzala”./ Livro que à ciência alia/ a profunda poesia/ que o passado revoca/ E nos toca/ a alma de brasileiro,/ Que o portuga femeeiro/ Fez e o mau fado quis/ Infeliz (BANDEIRA, 1993, p. 308)

Esse apego ao tradicional, aos valores regionais, pregado pelo regionalismo e não obstante a sua importância para a Semana de 22, o eleva à condição de o “São João Batista do Modernismo”1, como o denomina Mário de Andrade[1]. Dessa feita, a ligação entre Manuel Bandeira e os modernistas de São Paulo não se processaria sem dificuldades e restrições. Isso reconhece o 1. A expressão é de Mário de Andrade, apud Mário da Silva Brito, Poesia do Modernismo (Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1968; p. 59) 304


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próprio poeta ao justificar sua ausência, como também a de Ribeiro Couto2, à homenagem que a primeira revista modernista Klaxon (1922), prestou a Graça Aranha, assim como aos eventos da Semana de Arte Moderna de São Paulo, conforme se lê na citação abaixo, um tanto longa, mas necessária à nossa compreensão, da visão de Bandeira, acerca do universo dos modernistas de São Paulo e de sua posição em face deles:

Também não quisemos, Ribeiro Couto e eu, ir a São Paulo por ocasião da Semana de Arte Moderna. Nunca atacamos publicamente o soneto nem, de um modo geral, os versos metrificados e rimados. Pouco me deve o movimento; o que devo a ele é enorme. Não só por intermédio dele vim a tomar conhecimento da arte de vanguarda na Europa (da literatura e também das artes plásticas e da música), como me vi sempre estimulado pela aura de simpatia que me vinha do grupo paulista (BANDEIRA, 1997, p. 326)

Essa é uma inclinação mais resguardada em relação à iconoclastia, apregoada pela primeira geração modernista, fruto do conhecimento histórico-literário, que tem do percurso da literatura em nosso país. Tal inclinação pode ser exemplificada através de apreciação que Bandeira faz à obra antropófaga de Tarsila do Amaral, de sua Exposição de 1929, efetuada no jornal A Província (1929), periódico de Pernambuco, no qual reivindica o estilo e o gosto ocidentais, aliados à cor local, da qual se nutriam as obras anteriores de Tarsila, como se observa a seguir: 2. Sobre a amizade com Ribeiro Couto, assim confessa Bandeira em seu itinerário de Pasárgada (1957): “Dessa geração paulista, uns dez anos mais moça que eu, já me era conhecido Ribeiro Couto, que mudara para o Rio e foi levado à minha casa por Afonso Lopes de Almeida. Couto, esse tornado em forma humana, escondeu o jogo na primeira vez em que nos vimos.[...] Esse primeiro encontro foi o princípio de uma amizade que dura até hoje e me tem sido fonte de grandes alegrias, grandes ensinamentos. De algumas grandes raivas também... (BANDEIRA, 1997, p. 321) 305


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Nos quadros recentes de Tarsila, a estética antropofágica se manifesta na escolha dos assuntos tanto quanto no processo de expressão. Por exemplo: um sapo apresentado em solidão monstruosa, urutu enrolada num ovo, mandacarus assombrativos. [...]“Preferia a Tarsila até dois anos atrás, a Tarsila cristã pela graça de Deus, em cujos quadros, de gosto e técnica bem ocidental, locomotivas e bichos nacionais geometrizam as atmosferas nítidas” (cito um poema do Pau-Brasil) e onde há “um cheiro de café no silêncio emoldurado”; a “Tarsila que pintava com o azul e cor-de-rosa dos bauzinhos” e das flores de papel, que são as cores católicas e tão comoventes da caipirada (BANDEIRA, 2006, p. 196-197)

Como se pode aferir do fragmento, a visão de Bandeira sobre a obra de Tarsila do Amaral não nos credencia a encará-lo como, simplesmente, um conservador estético. Sua atitude de desprazer, em face da obra antropófaga de Tarsila, não se deve apenas ao abandono da técnica e do gosto ocidental, mas à ausência do cheiro do café e das cores católicas e tão comoventes da caipirada, ou seja, dos traços do Brasil arcaico, como se deduz de seu discurso crítico, acima transcrito. Contudo, a concepção plástica de Bandeira não o impede, de assumir uma atitude de defesa dos artistas modernistas de São Paulo. Isso é demonstrado graças à sua posição pública diante da polêmica discussão pró e dos contra da arte modernista, travada pela imprensa após a 38.ª Exposição Geral de Belas-Artes (1931), da qual participara na condição de membro da Comissão Organizadora. A postura independente de Manuel Bandeira frente aos modernistas do Sul, também, foi ressaltada em palestra realizada por Ângelo Monteiro, em um seminário que rememorou os 40 anos de falecimento do poeta, em 13 de outubro de 2008:

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Bandeira não fez poesia a partir do receituário do Modernismo de 1922, pois desde antes de 1912, antecipando-se mais de dez anos à Semana de Arte Moderna, já praticava o verso livre. [...] Deplorava a resplandecência italiana e recusava-se a aceitar, em face da evidência conflitante, que o Futurismo tivesse exercido qualquer influência real no Modernismo brasileiro (MONTEIRO, 2008 – grifo nosso)

Dessa maneira, aberto à inovação estética que representou o Modernismo do Sul, mas ligado às tradições do regionalismo, Manuel Bandeira assumirá uma perspectiva mais equilibrada e menos aguerrida, de centro, como se poderia dizer, transitando e contribuindo para a consolidação dessas duas correntes do Modernismo. Nesse sentido, Ângelo Monteiro (2008) fala da empatia que Bandeira sentia frente aos regionalistas, em vista de algumas características cultivadas pelos seus integrantes, como a espontaneidade popular, compreendidas nestas as tendências da fala cotidiana de todo brasileiro e não apenas da gente chamada de povo: No Norte — é certo — apenas contra aquelas convenções em conflito mais forte com a espontaneidade popular, compreendidas na espontaneidade popular as tendências da fala cotidiana de todo brasileiro e não apenas da gente chamada do povo. Gilberto Freyre por isso sempre se refere a alguns modernistas do Sul de maneira um tanto pejorativa, como quando, por exemplo, comenta sobre a “ação literária daqueles excelentes moços contra tudo que fosse gosto de tradição, espírito de região, ou amor de província brasileira”. Não é por acaso que, no Brasil de hoje, os novos pregoeiros da modernização, nem sempre se dão conta de que mais não fazem que aprofundar as bases de uma civilização paleotécnica, para usarmos uma eficaz e atualíssima expressão dele. (MONTEIRO, 2008)

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Essa atitude de independência de Bandeira frente às principais correntes modernistas do país (Nordeste e Sudeste), para alguns críticos, seria conseqüência de sua maturidade e do equilíbrio que existiria em sua poesia. Assim, em 1967, a partir da obra Poesia Completa e Prosa, Sérgio Buarque de Holanda trata da singularidade poética de Bandeira, que, conforme ele, advém da não obediência a qualquer programa definido e não se prende a qualquer compromisso estético, ainda que atraído pelo movimento modernista. Para Holanda, a poesia bandeiriana percorreu um longo caminho até chegar à concretude modernista: A popularidade atual de sua poesia não se fez, aliás, rapidamente, pois sujeita, embora, a uma técnica extremamente cultivada, ela não visa efeito exterior, e muitas vezes se dirige tanto ao sentimento, ao “coração”, como a regiões menos exploradas da alma. (HOLANDA, 1967, p. 13)

Demonstrando esse apego à região, preconizado por Holanda, Manuel Bandeira escreveria a crônica “Impressões de um cristão novo do regionalismo” (Crônicas de Província do Brasil, 2006) e compara-se a Joaquim Nabuco, assumindo-se como “ex-regionalista” – uma vez que saiu muito cedo de sua região, indo tentar a vida com a família no sul do país, conforme lemos a seguir:

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Esse ex-regionalista fora como ele. Escrevera sobre cozinha pernambucana, sobre os descendentes dos fidalgos vianeses que vieram com Duarte Coelho, sobre os negociantes portugueses que comiam nas calçadas da Rua Nova em porcelana azul de Macau, sobre as sinhás que as mucamas espiolhavam na modorra das sestas, tudo com abundantes citações de KJoster e Tollenare. Para acabar tomando leite condensado de Horlick... [...] A expectativa sarcástica do ex-Regionalista ficou lograda. O Regionalista só tinha encontrado motivos de prazer. É verdade que não contou par ao outro a sua impressão do famoso cheiro quer embriaga para a vida inteira quando respirado na infância. Pareceu-lhe que pode ser sentido numa simples xícara de mel de engenho e dispensa a infância. O que não dispensa é o dom de poesia, como existiu em Nabuco (BANDEIRA, 2006, p. 191)

Dessa forma, saudoso do Recife de sua infância, tempo evocado pelo poeta em três poemas nos quais se refere à sua cidade (Evocação do Recife, de Libertinagem, 1930), e dois com o título Recife: um, de Estrela da Tarde, 1960; outro, também, de Libertinagem), bem como em crônica intitulada “Recife”, Bandeira, regressando de uma viagem a trabalho de sua terra natal, vai reclamar do ar moderno que tomou conta dela:

Há tempo que não te vejo!/ Não foi por querer, não pude,/ Nesse ponto a vida me foi madrasta,/ Recife.[...] Mas não houve dia em que não te sentisse dentro de mim:/ Nos ossos. Nos olhos, nos ouvidos, no sangue, na carne,/ Recife. /Não com és hoje,/ Mas como eras na minha infância, / Quando as crianças brincavam no meio da rua/ (Não havia ainda automóveis) / e os adultos conversavam de cadeira nas calçadas./ (Continuavas província,/ Recife)./ Eras um Recife sem arranha-céus, sem comunistas,/ sem Arraes, e com arroz,/ Muito arroz,/ De água e sal,/ Recife (BANDEIRA, 1993, p. 249 – grifos nossos)

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Este mês que acabo de passar no Recife me repôs inteiramente no amor da minha cidade. Há dois anos atrás, quando a revi, depois de uma longa ausência, desconheci-a quase, tão mudada a encontrei. E sem discutir se essa mudança foi para melhor ou para pior, tive um choque, uma sensação desagradável, não sei que despeito ou mágoa. Queria encontrá-la como a deixei menino. Egoisticamente, queria a mesma cidade da minha infância. Por isso diante do novo Recife, das suas avenidas orgulhosamente modernas, sem nenhum sabor provinciano, não pude reprimir o mau humor que me causava o desaparecimento do outro Recife, o Recife velho, com a inesquecível Lingüeta, o corpo Santo, o Arco da conceição, os becos coloniais... Mesmo fora do bairro do Recife, quanta diferença! Quanta edificação nova em substituição às velhas casas de balcões esses balcões tão bonitos, tão pitorescos, com os seus cachorros retangulares fortes e simples como traves. (Um arquiteto inteligente aproveitaria esse detalhe tradicional bem característico do Recife). Os cais do Capibaribe, entre Boa Vista e Santo Antônio, sem os sobradões amarelos, encarnados, azuis, tão mais de acordo com a luz dos trópicos do que esta grisalha que os requintados importaram de climas frios (BANDEIRA, 2006, p. 109)

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REFERÊNCIAS BANDEIRA, Manuel. Estrela da vida inteira. 34 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1993. BANDEIRA, Manuel. Seleta em prosa e verso. Rio de Janeiro: José Olympio/INL, 1971. BANDEIRA, Manuel. Crônicas da província do Brasil. São Paulo: CosacNaif, 2006. BANDEIRA, Manuel. Seleta de prosa. 4 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1997. CERVINSKIS, André. Manuel Bandeira, poeta até o fim. 2 ed. Olinda: Livro Rápido, 2006. CERVINSKIS, André. A identidade do Brasil em Manuel Bandeira. Olinda: Livro Rápido, 2008. D’ANDREA, Moema Selma. A tradição (re)descoberta: Gilberto Freyre e a literatura regionalista. Campinas: Editora da UNICAMP, 1992.

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ISBN 978-85-66530-97-1


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