Língua e literatura para todos

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Frederico José Machado da Silva • Angela Mendonça Anelilde Lima • Eraldo Batista da Silva Filho Joelma Gomes dos Santos • Renata Soriano Suelany Ribeiro • Ana Cristina Fonseca

Língua e Literatura para todos Anais Eletrônicos

XV EELL

Encontro sobre o Ensino de Língua e Literatura



Frederico José Machado da Silva • Angela Mendonça Anelilde Lima • Eraldo Batista da Silva Filho Joelma Gomes dos Santos • Renata Soriano Suelany Ribeiro • Ana Cristina Fonseca

Língua e Literatura para todos Anais Eletrônicos

XV EELL

Encontro sobre o Ensino de Língua e Literatura

PIPA COMUNICAÇÃO RECIFE, 2020


COPYRIGHT 2020 © FREDERICO JOSÉ MACHADO DA SILVA • ANGELA MENDONÇA • ANELILDE LIMA • ERALDO BATISTA DA SILVA FILHO • JOELMA GOMES DOS SANTOS • RENATA SORIANO • SUELANY RIBEIRO • ANA CRISTINA FONSECA [ORGS.] É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa dos autores e organizadores. Por se tratar de uma publicação do tipo ANAIS, a comissão organizadora do XIV EELL isenta-se de qualquer responsabilidade autoral de conteúdo, ficando a cargo do autor de cada artigo tal responsabilidade.

MARCA E IDENTIDADE VISUAL DO EVENTO Maturi Comunicação

CAPA, PROJETO GRÁFICO E DIAGRAMAÇÃO Karla Vidal e Augusto Noronha. Pipa Comunicação (www.pipacomunica.com.br)

REVISÃO Os autores

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (eDOC BRASIL, Belo Horizonte/MG) L755

Língua e literatura para todos [recurso eletrônico] / Organizadores Frederico José Machado da Silva... [et al.]. – Recife, PE: Pipa Comunicação, 2020. Formato: PDF Requisitos de sistema: Adobe Acrobat Reader Modo de acesso: World Wide Web Inclui bibliografia ISBN 978-65-87033-09-9 1. Análise do discurso literário. 2. Linguística. 3. Literatura e filosofia. I. Silva, Frederico José Machado da. CDD 410 Elaborado por Maurício Amormino Júnior – CRB6/2422


Prefixo Editorial: 87033

COMISSÃO EDITORIAL Editores Executivos Augusto Noronha e Karla Vidal

Conselho Editorial Alex Sandro Gomes Angela Paiva Dionisio Caio Dib Carmi Ferraz Santos Cláudio Clécio Vidal Eufrausino Cláudio Pedrosa Clecio dos Santos Bunzen Júnior José Ribamar Lopes Batista Júnior Leila Ribeiro Leonardo Pinheiro Mozdzenski Pedro Francisco Guedes do Nascimento Regina Lúcia Péret Dell’Isola Rodrigo Albuquerque Ubirajara de Lucena Pereira Wagner Rodrigues Silva Washington Ribeiro


Ficha Técnica XIV ENCONTRO SOBRE O ENSINO DE LÍNGUA E LITERATURA Letramento literário, produção artesanal, novas formas de consumo

APOIADORES Curso de Letras da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda

EQUIPE DE ORGANIZAÇÃO Frederico José Machado da Silva - Coordenador (FACHO) Angela Mendonça - Coordenadora (FACHO) Anelilde Lima - Comissão Científica (FACHO) Eraldo Batista da Silva Filho - Comissão Científica (FACHO) Joelma Gomes dos Santos - Comissão Científica (FACHO) Renata Soriano - Comissão Científica (FACHO) Suelany Ribeiro - Comissão Científica (FACHO) Ana Cristina Fonseca - Comissão Científica (FACHO)

MARCA E IDENTIDADE VISUAL DO EVENTO Maturi Comunicação


Apresentação Este ano (2019) tivemos o prazer de discutir no XV Encontro Sobre o Ensino da Língua e Literatura da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO) sobre as práticas de literatura e as possibilidades de inclusão em vários segmentos e setores de produção e consumo cultural1. Como é de amplo conhecimento, o EELL, desde sua origem, é um importante ponto de partida para pesquisadores iniciantes apresentarem seus trabalhos. É com muita alegria que recebemos os estudantes da casa e os colegas de outras faculdades e universidades. Consideramos este encontro um espaço vital para a discussão e ampliação da educação. Que em 2020 recebamos ainda mais pesquisadores. Boa leitura. Comissão organizadora

1. Por se tratar de uma publicação do tipo ANAIS, a comissão organizadora isenta-se de qualquer responsabilidade autoral, seja de conteúdo ou de estrutura, ficando a cargo do autor de cada artigo tais responsabilidades.


Sumário 13 A ALTERIDADE GÓTICA EM EDGAR ALLAN POE

Bianca de Carvalho Lopes Barros Taciana Maria Ferreira Guedes Nascimento Dulce Porto Rodrigues

27 A CONSTRUÇÃO DA CRITICIDADE NO

ENSINO MÉDIO: UM PROJETO DE MATERIAL DIDÁTICO DIRECIONADO À LEITURA CRÍTICA DE TEXTOS NOTICIOSOS SOBRE PESSOAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE MARGINAIS Richard Fernandes de Oliveira Gláucia Renata Pereira do Nascimento

59 A CONSTRUÇÃO DO FEMININO NO CONTO DE

FADAS RAPUNZEL, DOS IRMÃOS GRIMM E NA ADAPTAÇÃO FÍLMICA ENROLADOS, DA WALT DISNEY ANIMATION STUDIOS Gabriela Brasilino de Melo Simões Marcia Cristina Xavier

77 A NOÇÃO DE DISCURSO ALHEIO NA PRÁTICA PEDAGÓGICA: O LIVRO DIDÁTICO E AS VOZES DISCURSIVAS Alexandre Duarte Gomes

99 A TRADUÇÃO LITERÁRIA: QUESTÕES

INDISPENSÁVEIS PARA COMEÇAR Wendell Batista dos Santos


115 COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO: AS

ESTRATÉGIAS DE LEITURA EMPREGADAS NOS CONTOS MARAVILHOSOS DO LIVRO DIDÁTICO DO 6º ANO Cícera Leidiane Lima da Silva

137 CONTEXTO E COMPREENSÃO: PERCEBENDO

OS SENTIDOS PROFUNDOS DO TEXTO Stenio Lima de Oliveira

161 DIFICULDADES EM COMPREENSÃO E

INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS PELOS DISCENTES DO ENSINO MÉDIO Maríllia Gabriela Tavares da Cunha

191 E SE A UTOPIA TOTALITÁRIA FOSSE REAL:

A LITERATURA DISTÓPICA COMO ALERTA A SOCIEDADE Érico Monteiro da Silva

211 EDUCAÇÃO NÃO LIBERTADORA:

HOMOFOBIAE NEGAÇÃO DAS IDENTIDADES DE GÊNERO NA ESCOLA Suelany C. Ribeiro Mascena

223 FELICIDADE CLANDESTINA: SADISMO E MASOQUISMO NA NARRATIVA CLARICEANA Maria Cristina Barbosa dos Santos Frederico José Machado da Silva


237 GÊNEROS TEXTUAIS: OS ÊXITOS DE SE

TRABALHAR A CARTA EM SALA DE AULA André Luiz da Silva Nascimento Suelany C. Ribeiro Marcena

247 GÊNEROS TEXTUAIS: REFLEXÕES TÉORICAS

E PRÁTICAS DE ENSINO Everton Felipe Tenório da Silva Santos Sheyla Felix Castro Suelany C. Ribeiro Mascena

259 GIBI COMO ARTEFATO PEDAGÓGICO PARA

INCENTIVAR A LEITURA NO FUNDAMENTAL: ANOS INICIAIS Eliane Tavares da Silva Ivis Chagas da Silva Áurea Maria Costa Rocha

277 KAMEL DAOUD E A RELEITURA DE

ALBERT CAMUS: MEMÓRIA ARGELINA E REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA FICÇÃO FRANCÓFONA PERIFÉRICA CONTEMPORÂNEA Ariane da Mota Cavalcanti

291 MENINO DE ENGENHO, DE JOSÉ LINS DO REGO,

E A MEMÓRIA COMO FUNDADORA DE UM CICLO ROMANESCO Taffarel Bandeira Guedes

305 NORMA CULTA E NORMA PADRÃO: ENTRE

ADEQUAÇÃO E PRECONCEITO Everton Felipe Tenório da Silva Santos Anelilde Maria de Lima Farias


319 O LUGAR DA LITERATURA NO CONTEXTO

ESCOLAR: PROMOVENDO O LETRAMENTO LITERÁRIO A PARTIR DAS NOVAS MÍDIAS O MODERNISMO PECULIAR DE MANUEL BANDEIRA Anderson de Santana Lins

333 O PRETÉRITO PERFEITO E IMPERFEITO NO

PORTUGUÊS E EM LIBRAS: ESTRATÉGIAS DE DIFERENCIAÇÃO Ana Beatriz Freire de Almeida Gláucia Renata Pereira do Nascimento

349 O ROMANCE BRASILEIRO

CONTEMPORÂNEO COMO LUGAR DE MEMÓRIA DA DITADURA CIVIL-MILITAR João Ricardo Pessoa Xavier de Siqueira

363 OS (MULTI?)LETRAMENTOS NA OLIMPÍADA DE

LÍNGUA PORTUGUESA ESCREVENDO O FUTURO Tatiana Simões e Luna

393 UMA LITERATURA PARA ESCOLA, UMA

ESCOLA PARA VIDA: OFICINA LITERÁRIA NA ESCOLA DE APLICAÇÃO DO RECIFE (2018) André Cervinskis

423 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM LIVRO DIDÁTICO

Severino Manoel de Oliveira Sandro Luís da Silva


Resumo Edgar Allan Poe é conhecido por sua contribuição para os gêneros literários do terror e do grotesco através da exploração de novas facetas do Gótico. Além disso, ele é considerado o precursor do romance policial com a trilogia de contos que narra as aventuras do detetive Dupin. Ao trazer a perspectiva do medo através da insanidade, reflexo de sua vida conturbada, o autor consolida nas Américas um ideal gótico que se distancia daquele popularizado na Europa onde as narrativas influenciadas pelas obras de Lorde Byron priorizavam monstros e castelos longínquos. Assim, Poe inaugura um subgênero que seria posteriormente revisitado com as figuras dos detetives Sherlock Holmes e Hercule Poirot. Este artigo pretende analisar o conto detetivesco de Edgar Allan Poe Os Assassinatos na Rua Morgue, sob o ponto de vista de temas que permeiam seus mistérios como a insanidade, o grotesco e o medo da realidade associados ao campo da mente. Palavras-chaves: Alteridade; Edgar Allan Poe; Gótico; Grotesco; Os assassinatos na Rua Morgue.


A ALTERIDADE GÓTICA EM EDGAR ALLAN POE BIANCA DE CARVALHO LOPES BARROS1 TACIANA MARIA FERREIRA GUEDES NASCIMENTO2 DULCE PORTO RODRIGUES3

INTRODUÇÃO Edgar Allan Poe é conhecido por sua vasta contribuição para a Literatura Mundial, em especial para a norte-americana que ele ajudou a consolidar. Uma mente profundamente criativa que expandiu conceitos de sua época e inovou ao trazer a narrativa Gótica para a realidade humana. A ele é atribuída a criação do subgênero policial dentro das histórias de mistérios que seriam grande influência para célebres autores como Arthur Conan Doyle e Agatha Christie. Nascido em Boston no ano de 1809, Poe teve uma infância difícil: foi abandonado pelo pai biológico ainda bebê, perdeu a mãe pouco tempo depois, sendo separado dos dois irmãos quando foi informalmente adotado pela família Allan que vivia na cidade de Richmond. Apesar da boa educação que recebeu por parte da nova família — que o permitiu estudar na Europa, ter chances na universidade e a possibilidade de ingressar numa carreira 1. Aluna do curso de especialização em Língua e Literatura Inglesa da Faculdade Frassinetti do Recife - FAFIRE. E-mail: barrosbianca@live.com 2. Aluna do curso de especialização em Língua e Literatura Inglesa da Faculdade Frassinetti do Recife - FAFIRE. E-mail: taci.guedes@hotmail.com 3. Orientadora do artigo e coordenadora do curso de especialização em Língua e Literatura Inglesa da Faculdade Frassinetti do Recife - FAFIRE. E-mail: ddporto@globo.com 13


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militar —, o jovem Edgar mantinha um relacionamento complicado com o patriarca que não o deu o afeto paternal pelo qual ele ansiava. Anos depois após a deterioração da relação, ele foi morar com uma tia e uma prima — Virginia Clemm de apenas treze anos — com quem ele viria a se casar. No entanto, a vida do autor continua difícil, pois ainda que tivesse sucesso como crítico, editor, poeta e autor, Poe não detinha poder financeiro para prover para a esposa de saúde frágil que acabou falecendo aos 24 anos. Ele não se casou novamente e acabou morrendo alguns anos depois em 1849. A breve história do autor nos possibilita entender a sua atração pelo Romantismo Gótico. Muitas de suas personagens são ecos de pessoas que passaram pela vida de Poe como sua esposa Virginia que se acredita ser a principal inspiração para o poema Annabel Lee. O estilo de escrita popularizado na Europa por Lorde Byron e seus seguidores fazia alusão a monstros e castelos longínquos e foram importantes para Poe que os adaptou para a vida norte-americana, tratando de temas sombrios e, ao mesmo tempo, inerentes ao ser humano como o medo provocado pela realidade. Ao invés de evocar essa emoção através de seres imaginários, Poe se voltava para a mente humana ao ilustrar a insanidade e a crueldade do mundo real. Como supracitado Poe foi o “criador” do subgênero policial ao lançar a trilogia de contos do Detetive Dupin (Os assassinatos na Rua Morgue, O Mistério de Marie Rogêt e A Carta Roubada). Nela, ele explora as habilidades de raciocínio de um detetive brilhante que habita a Paris do século 19 e traz elementos que mais tarde seriam estudados pela psicologia e pela psicanálise. Inspirado pelo boom das agências de investigação privada, a “fórmula” desenvolvida por Poe renovou as histórias incipientes que já haviam sido publicadas no mesmo estilo e são responsáveis por inspirar o gênero policial até hoje. Escrito em Março de 1841 e publicado no mês seguinte na Graham’s Magazine — revista na qual Poe era o editor — o conto Os assassinatos na Rua Morgue é o primeiro a envolver o Detetive Dupin. Nessa história, que será o 14


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foco deste artigo, o autor nos apresenta os preceitos básicos que conhecemos em toda boa história detetivesca: o assistente que narra a história e o detetive brilhante que resolve todos os mistérios, ainda que eles pareçam impossíveis. Além disso, ela traz conceitos que seriam analisados pelos mais variados campos científicos que pretendem “desvendar” a mente humana. Este artigo tem como objetivo analisar a obra supracitada e, para tanto, divide-se em quatro partes: Enredo que mostra a trama principal; Detetive que trata de aspectos particulares de Dupin; Assassino que elucida a concepção de grotesco na obra de Poe; e Alteridade em Os Assassinatos na Rua Morgue que aborda essa temática a partir dos conceitos de dualidade, alma bipartida e o binômio lacaniano Outro x outro.

ENREDO

Ambientada em Paris do século XIX, a primeira das três histórias envolvendo o detetive Dupin leva o leitor por diferentes ruas parisienses no encalço do detetive e de seu companheiro. Originalmente concebida sob o nome de ‘‘Os assassinos da Rua Trianon’’, a história teve seu título modificado pelo autor para ter conotação mais macabra e ser mais facilmente associada à morte. De modo semelhante a um prólogo, um monólogo antecede a aventura do detetive em questão sobre as características e os tipos de raciocínio além de oferecer vários exemplos de maneiras de estimular o raciocínio lógico e exaltar a superioridade daqueles que possuem a habilidade analítica. As faculdades mentais referidas como analíticas são, por si só, pouco suscetíveis de análise.Nós as apreciamos somente em seus efeitos. [...] Assim como o homem forte exulta a sua capacidade física, deleitando-se com atividades nas quais possa exercitar os músculos, o analista aprecia com entusiasmo as atividades morais capazes de desembaraçar a mente. (POE, 2017, p. 170) 15


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Porém, é nos assuntos que extrapolam os limites das regras que a habilidade do analista sobressai. Ele faz, em silêncio, uma horda de observações e deduções. É possível que seus companheiros também as façam, e a diferença na quantidade de informações obtidas encontra-se mais na qualidade da observação do que da validade da dedução. (POE, 2017, p. 119)

Seguido o monólogo, o leitor é então apresentado à estória e duas das personagens centrais que são o narrador (do qual não sabemos o nome) e o detetive Dupin. É revelado que os dois personagens se conhecem em uma livraria parisiense em algum momento no século XIX, possuem hábitos excêntricos ligados à introversão e a reclusão que os levam a compartilhar a mesma moradia e as futuras aventuras detetivescas. A aventura que se desenrola em Os Assassinos da Rua Morgue tem como pano de fundo a notícia do assassinato de duas mulheres na referida rua em condições brutais e inexplicáveis as quais a polícia local não consegue explicar. Diante da incompetência da força policial local em solucionar o crime, o detetive Dupin oferece o serviço de sua excelente habilidade de raciocínio, utilizando fatos e situações que de acordo com o próprio são percebidos, mas não vistos. Além de Dupin e do narrador não identificado, o assassino, o marinheiro, as vítimas e as testemunhas são também importantes personagens para a narração desta aventura.

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O DETETIVE

A personagem central de Os Assassinatos na Rua Morgue, Charles Auguste Dupin — ou simplesmente Dupin — é apresentado ao leitor através dos olhos do narrador não identificado. Pouco é revelado sobre a vida pregressa de Dupin e o que se sabe são informações um tanto quanto superficiais. No que diz respeito à origem do detetive, sabe-se que vem de família parisiense ilustre e rica, mas que situações adversas desconhecidas causaram a perda de sua fortuna. Tal perda, no entanto, não parece incomodar o detetive, que, segundo o narrador, não conservava luxos a não ser o hábito da leitura. O hábito de leitura é precisamente o que reúne essas duas personagens em uma livraria e a descoberta de hábitos ‘‘excêntricos’’ de reclusão os levam a compartilhar também a mesma moradia e passeios noturnos. É em um desses passeios que o leitor pode ter uma prévia da personalidade detetivesca que Dupin por vezes manifesta. O detetive também é descrito como dotado de uma habilidade analítica impressionante, chamada por Poe como ‘‘raciocínio’’. Tal particularidade é tão excêntrica a ponto de transformar completamente o detetive e com frequência levar o narrador ao espanto e a pensar que seu amigo possui dupla personalidade ou “alma bipartida”. Em tais ocasiões, não podia deixar de perceber e admirar em Dupin (embora, levando em consideração sua imaginação prodigiosa não pudesse ser diferente) uma capacidade analítica bastante peculiar. Era com afã que também parecia deliciar-se com esse exercício — ou em sua exibição — e não hesitava em confessar o quanto aquilo lhe dava prazer. Gabava-se dizendo, com uma risadinha abafada, que, para ele, a maioria dos homens trazia janelas no peito, e parecia-lhe prazeroso evidenciar tais afirmações oferecendo-me provas diretas e bastante impressionantes de seu íntimo conhecimento a respeito de minha própria intimidade. Nesses momentos, a postura de Dupin era fria e abstrata, os olhos pa17


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reciam vazios de expressão e a voz, normalmente um tenor encorpado, erguia-se um timbre trêmulo que poderia parecer petulante, não fosse a intencionalidade e a distinção de sua fala. Observando-o nesse estado, eu muitas vezes ponderava acerca da velha filosofia da alma bipartida e entretinha-me com a fantasia de que havia dois Dupins — o criativo e o investigador. (POE, 2017, p. 122) Grifo nosso.

Naturalmente surgem questionamentos sobre quem ou o que inspirou Edgar Allan Poe no retrato de seu detetive analítico. Não há um consenso quanto à resposta para essa pergunta. Há estudiosos que afirma que a inspiração surgiu a partir do francês François Vidocq. Este, foi um ex-criminoso que, ao ser liberto, passou a cooperar com a força policial parisiense na resolução de crimes. Após esse período, o ele publicou uma coletânea de memórias sobre a sua experiência junto à força policial o que, para alguns teóricos, teria contribuído para a criação do detetive de Poe. Outros estudiosos, no entanto, afirmam que a inspiração teria sido Pierre Charles François Dupin, o barão de Dupin. Este era matemático, engenheiro, economista e político católico francês. Poe era um grande admirador do raciocínio lógico, dos métodos de estímulo desse raciocínio e do então barão e teria extraído dessa admiração a base (e até o nome) para o detetive. Independentemente da real inspiração para o detetive, é fato que a postura analítica e um tanto fria e objetiva do detetive Dupin diante das investigações certamente remete o leitor às posturas de outros famosos detetives como Sherlock Holmes e Hercule Poirot. Ainda que de semelhante modo ao primeiro, os últimos também causem espanto em seus companheiros (e narradores das aventuras) Dr. Watson e Arthur Hastings, respectivamente, como também em seus clientes ao entrarem no ‘‘modo investigativo’’ e utilizarem detalhes e fatos aparentemente ignorado pela ‘‘mente comum’’ para chegarem as suas conclusões. 18


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O ASSASSINO A segunda figura central no conto de Edgar Allan Poe é o assassino. A brutalidade dos assassinatos das duas vítimas é tamanha que o próprio leitor tem dificuldades de descobrir o culpado entre as personagens que são apresentadas. Ao comentar a cena do crime, Dupin nos aponta peculiaridades sobre a cena e a ineficácia da investigação conduzida pela polícia: [...] Parece-me que este mistério é considerado insolúvel exatamente pelo mesmo motivo que deveria fazer com que o vissem de fácil solução: a saber, pelo caráter outré de suas particularidades. A polícia está desconcertada pela aparente ausência de um motivo; não pelos assassinatos em si, mas pela sua atrocidade. Também está intrigada pela suposta impossibilidade de conjugar as vozes ouvidas em discussão no andar superior da casa com o fato de que não havia ninguém lá em cima além da falecida mademoiselle L’Espanye, e que a única rota possível de fuga era pelas escadas, onde o criminoso teria sido surpreendido pelo grupo que subia. A desordem absoluta que encontraram no aposento, o cadáver entalado na chaminé de cabeça para baixo, o modo como o corpo da velha fora mutilado de maneira grotesca; todos esses aspectos, mais as considerações que acabo de mencionar e outras que dispensam comentários, foram suficiente para paralisar os agentes do governo, pois colocaram em xeque a perspicácia da qual costumam se vangloriar. [...] Em uma investigação como a que estamos nos engajando agora não devíamos perguntar “O que aconteceu?”, e sim “O que aconteceu, mas nunca aconteceu antes?” [...] (POE, 2017, p. 136) (Grifo nosso)

Antes de revelar o verdadeiro culpado pelos crimes, Dupin explica passo-a-passo sua linha de pensamento e questiona seu assistente — e dessa forma o leitor — sobre a compreensão do caso. A descrição do caso e a análise do que poderia ter acontecido naquele cenário indicam uma ação que beira o 19


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animalesco. Nesse momento, cabe ao leitor seguir a dica que o próprio detetive dá anteriormente, isto é, procurar saber o que jamais aconteceu antes:

Tendo em mente os pontos para os quais chamei sua atenção: a voz peculiar, a agilidade extraordinária e a chocante ausência de um crime tão hediondo, examinaremos a natureza da carnificina em si. Temos uma mulher que foi estrangulada até a morte por força manual e empurrada por uma chaminé de cabeça para baixo. Assassinos comuns não costumam recorrer a tais excessos. E muito menos se desfazem de tal modo de suas vítimas. Avaliando a maneira como o cadáver foi empurrado chaminé adentro, você terá de admitir que há um elemento excessivamente outré, algo irreconciliável com nossas noções comuns de ação humana, mesmo supondo que os criminosos fossem os mais depravados dos homens. Considere também quão bruta deveria ser a força necessária para empurrar o corpo por uma abertura tão estreita, uma tarefa árdua que até mesmo o esforço coletivo de diversas pessoas não foi suficiente para realizá-la!” (POE, 2017, p. 144)

De início, o narrador se confunde e afirma que o culpado é um louco, o que, considerando o estilo Gótico desenvolvido por Edgar Allan Poe não seria impossível de imaginar. No entanto, ao contrário de outras histórias do mesmo gênero, o responsável pelo cometimento dos crimes é um orangotango que traz à tona o caráter grotesco da narrativa. Ele havia sido capturado por um marinheiro que o prendia numa cela da qual o animal havia conseguido se libertar pouco antes de cometer os crimes. De acordo com o dicionário Routledge de termos literários, o Grotesco é caracterizado por explorar as semelhanças entre homens e animais e geralmente se posicionando contrariamente ao Realismo; ao mesmo tempo ele significa uma imagem distorcida da realidade humana como no caso de Os assassinatos na Rua Morgue. De acordo Kayser (apud FARIAS, 2019) com estilo grotesco carrega elementos da Literatura Clássica, em especial as comédias satíricas na Grécia 20


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Antiga. No entanto, o termo Grotesco surgiu apenas durante o Renascimento sendo primeiramente representado pela pintura ao mostrar a contraposição do belo ao feio. Essa temática foi absorvida séculos depois por outras representações artísticas e teve seu conceito ampliado. Ele explica ainda que “[...] no tocante a essência do grotesco, não se trata de um domínio próprio, sem compromissos, de um fantasiar totalmente livre (que não existe). O mundo do grotesco é o nosso mundo e não o é.” (KAYSER, 1986, p. 40 apud FARIAS, 2019, p. 29) Nesse sentido, é possível perceber que o grotesco em Os assassinatos na Rua Morgue se utiliza de artifícios para representar a realidade. A monstruosidade dos crimes cometidos só poderia ter vindo de um animal, ou seja, uma criatura de força extrema que não tem controle de seus atos justamente por não ter a capacidade de raciocínio própria ao homem. Ao mesmo tempo, tal comportamento é um reflexo daquilo a que ele é exposto, isto é, uma existência enclausurada sem contato com a vida em sociedade.

A ALTERIDADE EM OS ASSASSINATOS NA RUA MORGUE

Os Assassinatos na Rua Morgue constitui narrativa inovadora por muitos fatores, mas principalmente pela exploração do campo da mente e da influência que os impactos psicológicos advindos das experiências têm sobre o comportamento humano. Ao associar o campo da mente às narrativas góticas, Poe inaugura um subgênero narrativo que se distancia do praticado na Europa, especialmente na Inglaterra, pois mostra o medo através da insanidade e se utiliza do gótico e do grotesco para revelar o pior do ser humano e espelhar ou revelar as semelhanças comportamentais entre seres humanos e animais, respectivamente. 21


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A habilidade analítica de Dupin ao investigar e solucionar o crime que acontece em Os Assassinos da Rua Morgue constitui característica surpreendente de sua personalidade e habilidade mental como também constitui motivo de espanto para o narrador. O dualismo que Dupin apresenta durante seus momentos investigativos leva o narrador a pensar que o colega possui dupla personalidade — uma criativa e outra investigativa — e o remete a uma antiga noção conhecida como ‘‘alma bipartida’’. Craighill (2010, p. 25) afirma que a origem da noção da alma bipartida ainda é desconhecida. No entanto, a autora propõe a associação desta noção à filosofia aristotélica da psicologia bipartida. Por meio de nova edição das obras de Aristóteles em Berlim, as teorias do filósofo teriam atraído novamente interesse e Poe teria tido acesso a elas através de sua educação em escola inglesa. Apesar da incerteza da origem para o uso dessa noção nas obras de Poe, é possível, por um lado, compreender a dualidade de Dupin como essência da sua própria genialidade, como afirma o autor de estórias policiais Leroy Panek (apud CRAIGHILL, 2007, p. 26). Por outro lado, ainda de acordo com Craighill (2007, p. 33), tal característica dupla diz respeito a natureza gótica da narrativa policial e do enredo que a constitui. O tema de duplicidade presente nos contos de Poe pode ser visto em outras obras do período como Frankenstein e O Fausto (ibidem, p. 27). A noção de dualidade também traduz a temática de alteridade presente neste conto e pode ser analisado por uma perspectiva psicanalítica através da equiparação da alma bipartida com o binômio Lacaniano “Outro x outro”. Nesta perspectiva, a duplicidade é manifesta no campo psíquico, permitindo a distinção entre alma x mente e entre o real x imaginário. Considerando ainda o período literário no qual a narrativa em questão é inserida, o dualismo permite maior uso de carga emocional e psicológica nas personagens, conferindo a elas maior profundidade e complexidade. 22


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CONSIDERAÇÕES FINAIS Edgar Allan Poe foi um autor único em sua produção literária. Apesar de não conseguir reverter seu sucesso como autor em êxitos financeiros, através de seus contos, poemas e ensaios críticos ele entrou para a posteridade ao criar novos gêneros e subgêneros literários e, dessa forma, solidificar uma Literatura norte-americana que se distanciava dos ideais europeus. Atento às tendências da sociedade que no século 19 começava a popularizar as agências de investigação privada, Edgar Allan Poe trouxe o detetive Auguste Dupin para o centro da narrativa e, consequentemente, criou um novo tipo de história que seria revisitada muito depois pelos autores Arthur Conan Doyle e seu Sherlock Holmes e Agatha Christie com Hercule Poirot. A trilogia que conta as aventuras do detetive Dupin e seu assistente possuem todas as características que seriam utilizadas pelos escritores posteriormente como um detetive brilhante e de método perspicaz e um assistente que narra as histórias e está intelectualmente abaixo do personagem principal. Publicado em 1841, Os assassinatos na Rua Morgue é o primeiro conto da trilogia com Dupin. A trama se passa na Paris do século 19 e é iniciada com um monólogo sobre as capacidades de raciocínio e segue apresentando o personagem principal e contando um pouco de sua vida e de seu método. O desenrolar da história se dá quando a notícia dos assassinatos da Madame L’Espanye e de sua única filha é publicada no jornal: uma série de testemunhas relata os acontecimentos de forma genérica enquanto a polícia luta para descobrir o culpado e acaba prendendo um homem inocente. Dupin age para solucionar o mistério e, em poucos dias, chega à conclusão que pareceria absurda ao assistente e também ao leitor. Um dos maiores destaques desse conto é a figura do detetive: ele é inteligente, carismático, possuidor de um grande poder de observação e tem um método próprio para a resolução dos casos policiais. As falas dele são longas 23


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e explicam um raciocínio meticuloso que surpreende o narrador e o leitor. Não há registros da pessoa que inspirou de fato o autor, mas as suposições são o Barão de Dupin e o ex-criminoso François Vidoq. Alguns admiradores do escritor, como Charles Baudelaire, supõem que ele seja um alter ego do próprio Edgar Allan Poe. A outra figura central é o assassino e o que ele representa. Poe abrange a concepção do grotesco e o leva para além das sátiras e caricaturas associadas ao termo até então. A brutalidade do crime chama a atenção e quando é descoberta a autoria dele há o fator surpresa: o responsável pela barbárie havia sido um orangotango. Apesar de parecer absurdo, pode-se inferir que o comportamento do animal é reflexo de uma existência aprisionada e revela a natureza instintiva do homem que não é parte da sociedade. Um dos principais temas identificados em Os assassinatos na Rua Morgue é a questão da alteridade. A origem da ideia de alma bipartida ainda é incerta, mas ela pode ser associada à filosofia aristotélica e à psicologia ao ser entendida como uma manifestação da genialidade da personagem principal. Outro fator que contribui para a discussão é a noção de dualidade que permeia a obra. Através da psicanálise e do binômio Outro x outro estudado por Lacan que representa alma x mente e realidade x imaginário. Assim fica claro que Edgar Allan Poe traz conceitos inovadores para a sua obra e o faz de modo envolvente em sua narrativa sem jamais subestimar a inteligência do leitor. Com sua prosa diferenciada entre os autores de sua época ele ajuda a consolidar a Literatura nos Estados Unidos, mostrando um novo estilo de contar histórias e originando gêneros e subgêneros narrativos que seriam replicados por novos autores e estudados por vários campos da ciência além da teoria literária, em especial a psicologia, a filosofia e a psicanálise.

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REFERÊNCIAS CRAIGHIL, Stephanie. The influence of duality and Poe’s notion of the ‘Bi-Part Soul’ on the genesis of detective fiction in the nineteenth-century. Disponível em: https://www. napier.ac.uk/~/media/worktribe/output-211971/theinfluenceofdualityandpoesnotiono fthebi-partsoulonthegenesisofdetectiv.pdf. Acesso em 19 de novembro de 2019. CHAVES, Rosangela. Edgar Allan Poe e a gênese do romance policial. Disponível em http:// ermiracultura.com.br/2019/04/04/edgar-allan-poe-e-a-genese-do-romance-policial/. Acesso em 3 de novembro de 2019. Edgar Allan Poe dualism. Disponível em https://www.coursehero.com/file/23913749/ dualism-paper/. Acesso em 19 nov. 2019. FARIAS, Jéssica Limeira de. Góticos em Poe: o terror e o grotesco em O gato preto e o coração denunciador. 2019.74 f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras) - Unidade Acadêmica de Garanhuns, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Garanhuns, 2019. FRATUCCI, Amanda da Silveira Assenza. A monstruosidade humana: a literatura gótica como base para a construção do fantástico. Disponível em: http://www.abralic.org.br/ anais/arquivos/2017_1522185721.pdf. Acesso em 3 nov. 2019. POE, Edgar Allan. Os assassinatos da Rua Morgue. In: Edgar Allan Poe: Medo clássico: coletânea inédita de contos do autor. Rio de Janeiro; Darkside Books, 2017. The murders in the Rue Morgue. Disponível em https://en.wikipedia.org/wiki/The_ Murders_in_the_Rue_Morgue. Acesso em 19 de out. 2019. WELTON, Benjamin. ‘‘The real-life inspiration of Edgar Allan Poe’s first detective story’’. Disponível em: http://airshipdaily.com/blog/04182014-edgar-allan-poe-murders-ruemorgue-eugene-vidocq. Acesso em 19 out. 2019.

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Resumo Este trabalho, cuja metodologia é bibliográfica, apresenta o resultado parcial da pesquisa que deu origem ao TCC (Trabalho de Conclusão do Curso) de Licenciatura em Letras Língua Portuguesa pela UFPE e disserta sobre a importância da leitura crítica na formação de indivíduos críticos e autônomos. Buscamos aplicar o que os Parâmetros de Língua Portuguesa para a educação básica do Estado de Pernambuco (PERNAMBUCO, 2012) orientam sobre esse tema, em um material didático destinado a uma turma do 3º ano do Ensino Médio. A aplicação teve como objeto de estudo o gênero notícia, por meio de cinco textos noticiosos publicados no jornal Folha de S. Paulo, nos anos de 2016 e 2017, sobre a vivência ativa de pessoas de gênero e sexualidade abjetos. Para a fundamentação teórica, selecionamos os/as seguintes autores/as: Melo (2013) e o Manual da Folha (2007) para a compreensão do gênero notícia; e Solé (1998) e Silva (2009) para dissertar sobre os aspectos da leitura e da leitura crítica. Como resultado parcial, apresentamos duas questões que compõem o material didático produto deste estudo. Palavras-chave: Leitura crítica; Objetivos de leitura; Ensino de leitura; Gênero notícia; Material didático.


A CONSTRUÇÃO DA CRITICIDADE NO ENSINO MÉDIO: UM PROJETO DE MATERIAL DIDÁTICO DIRECIONADO À LEITURA CRÍTICA DE TEXTOS NOTICIOSOS SOBRE PESSOAS DE GÊNERO E SEXUALIDADE MARGINAIS1 RICHARD FERNANDES DE OLIVEIRA 2 GLÁUCIA RENATA PEREIRA DO NASCIMENTO3

INTRODUÇÃO Este trabalho foi elaborado como planejamento à realização do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Licenciatura em Letras Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Pernambuco. Nesse contexto, o que será abordado são direcionamentos da pesquisa realizada, bem como os primeiros resultados alcançados. É importante deixar claro também que os resultados finais deste estudo estão postos no TCC ao qual deu

1. Estudo realizado para compor o meu projeto de Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Licenciatura em Letras Língua Portuguesa pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), sob orientação da profª Dr.ª Gláucia Renata Pereira do Nascimento, docente do Departamento de Letras da UFPE. 2. Estudante do curso de Licenciatura em Letras Língua Portuguesa pela UFPE. E-mail: rfo.richard@ gmail.com. 3. Professora Associada do Departamento de Letras da UFPE e Doutora pela mesma instituição. E-mail: profa_glaucia@yahoo.com. 27


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origem. Como objetivo principal deste trabalho, propomos a aplicação, em um material didático destinado a turmas do 3º ano do Ensino Médio, das Expectativas de Aprendizagem (EA) elencadas nos Parâmetros para a educação básica do Estado de Pernambuco (PERNAMBUCO, 2012), de agora em diante, PCE-PE, para o ensino de leitura em aulas de língua portuguesa. Antes de adentramos nas nossas discussões, é preciso deixar claro que falar de leitura na sociedade moderna brasileira, sobretudo a que este trabalho determina de leitura crítica, é falar do contexto social e político no qual estamos inseridos. Concordando com isso, Silva (2009, p. 23) escreve: “para explicarmos a necessidade e a importância da leitura crítica, precisamos, antes de qualquer coisa, centrar nosso olhar e nossa atenção sobre a realidade social brasileira, buscando o desvelamento do seus modos de convivência, existência e sobrevivência”. A partir disso, dar destaque às violências sociais agravadas no atual governo e apoiadas pelo representante máximo da República é imprescindível, pois uma leitura de mundo que se realiza criticamente pode ser um vetor de transformação dessa realidade e de subversão das normas opressoras vigentes. Nesse cenário, ensinar leitura é um desafio que se faz necessário aceitar, pois o ensino de leitura prevê aprender a compreender, a interpretar, a inferir informações, a gerar sentidos, a dar significados às coisas e, mas não só, a questionar as verdades sociais e intervir no mundo de maneira ativa. “Dessa forma, pela leitura crítica, o sujeito abala o mundo das certezas (principalmente as da classe dominante), elabora e dinamiza conflitos, organiza novas sínteses; enfim, combate qualquer tipo de conformismo, qualquer tipo de escravidão às ideias referidas pelos textos” (SILVA, 2009, p. 28). Para que essa prática escolar tenha sucesso e alcance esferas sociais fora da escola, é preciso deixar claro os objetivos e intenções da leitura,

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pois é por meio de intenções bem claras que os/as estudantes adquirem segurança para a interação com determinado texto, realizando leituras sistemáticas e planejadas para cada nível de aprendizagem. Acerca disso, Solé (1998, p. 41) destaca que os objetivos de leitura são necessários para o encaminhamento de uma boa compreensão do texto e devem ser estabelecidos pelo próprio leitor, ou por outro alguém que entre em acordo com quem lê. Todavia ler com determinada(s) finalidade(s) não é caminho apenas para a compreensão; segundo a autora, esses objetivos “também estabelecem o umbral de tolerância do leitor com respeito aos seus próprios sentimentos de não-compreensão”. Estabelecer intenções ao que será lido, portanto, não é apenas encaminhar a(à) ação de ler, mas fazer da leitura um momento de autoconhecimento e autoavaliação. Tendo isso em vista, selecionamos 5 (cinco) textos noticiosos publicados entre 2016 e 2017, pelo jornal Folha de S. Paulo, cuja veiculação e cujo número de tiragens está registrado entre os maiores do Brasil4. As notícias escolhidas tratam de relatos sobre a vivência ativa de pessoas de gênero e sexualidade marginais e são utilizadas para compor um material didático que propõe aplicar a teoria base deste estudo e as EA dos Parâmetros de Pernambuco para o desenvolvimento de estudantes críticos e agentes de transformação social. Esse material também sugere que aprendizagem, ensino e avaliação relacionem-se para a formação de uma competência de leitura analítica e avaliadora, indo na contramão de materiais de avaliação que mecanizam o aprendizado e objetivam quantificar o desenvolvimento do/a aluno/a. Como já percebido, a abordagem transversal do tema gênero e sexualidade no material didático também é defendida por nós neste es-

4. Informação segundo www.anj.org.br/maiores-jornais-do-brasil, site da Associação Nacional de Jornais, fundação que, desde 1979, promove investigações sobre os veículos brasileiros de comunicação noticiosa e ampara diversos trabalhos acadêmicos com os resultados desses estudos. 29


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tudo, em concordância com os temas transversais ao ensino, igualmente previstos pelo documento oficial em evidência5. Para desenvolver essas ideias, organizamos este artigo nas seguintes seções: uma para esboçarmos a problematização que nos guia, bem como os nossos objetivos e as justificativas para a proposição deste trabalho; um tópico seguinte no qual apresentamos a metodologia de trabalho para o alcance dos objetivos, também o corpus; um outro tópico onde discutimos um pouco das teorias que nos guiam neste trabalho; ainda escrevemos uma seção na qual apresentamos e descrevemos analiticamente duas questões que estão presentes no material didático final; por fim, lançamos mão das considerações que defendem a relevância deste estudo para uma sociedade que apura criticamente seus fatos.

POR QUE DESTE TRABALHO E PARA QUE SEU DESENVOLVIMENTO? Por se tratar de um projeto de trabalho, este momento do estudo exige que sejam apresentados os principais questionamentos que o guiarão. Assim sendo, elaboramos as seguintes perguntas, que nos surgiram de incômodos, sentimentos e também de curiosidade acadêmica para fins de pesquisa: (1) O que os Parâmetros para a educação básica do Estado de Pernambuco

5. Os temas transversais são um grupo de assuntos (conteudísticos ou não) que aparecem transversalizados no currículo prescrito pelo Estado, tentando suprir a necessidade de um trabalho escolar que se engaje com questões sociais. São temas que partem da compreensão da complexidade social, das realidades que a cruzam e em como a escola pode ser um forte instrumento de intervenção para modificar as estruturas sociais que causam problemas às pessoas individualmente, mas, sobretudo, a grupos de pessoas que sofram algum tipo de violência ou exclusão social. No caso do tema transversal Orientação Sexual, a escola propõe-se a educar seus alunos e alunas no que diz respeito à consciência de suas sexualidades, à autorresponsabilidade e ao respeito às diferenças de gênero e de expressão sexual. 30


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(PCE-PE) do Ensino Médio de Língua Portuguesa projetam de expectativas nos estudantes e nas estudantes a fim de que eles sejam formados leitores críticos? (2) O que esses parâmetros dissertam sobre o gênero de relato é suficiente para compreender criticamente o gênero notícia? (3) É possível que os e as estudantes apreendam criticamente os sentidos de textos noticiosos que notificam ações de pessoas de gênero e sexualidade marginais a partir de um material didático elaborado com base no que os PCE-PE apontam? A partir dessas perguntas, intentamos, enquanto objetivo principal, compreender o que os Parâmetros de Língua Portuguesa para a educação básica do Estado de Pernambuco dissertam sobre leitura crítica do gênero relato. Somado a ele, mais especificamente, é nosso propósito aplicar as expectativas de aprendizagem dos PCE-PE em um material didático elaborado para direcionar o aprendizado acerca da leitura crítica de notícias sobre pessoas de gênero e sexualidade marginais. Acrescendo ainda, que almejamos instigar a reflexão escolar e social acerca da vivência de pessoas de gênero e sexualidade abjetos, por meio de um gênero textual consagrado historicamente e que resiste às mudanças sócio-culturais, a fim de visibilizar a realidade desse grupo de pessoas, promovendo o respeito às diferenças e o estancamento das violências sociais sofridas por esses sujeitos. Este trabalho surgiu, inicialmente, conforme já mencionado, de nossas inquietações em relação ao atual contexto histórico, marcado pelo retrocesso da política brasileira. No momento do ‘agora’ em que escrevemos, o Brasil está vivenciando o governo de um homem cujos ideais ferem violentae explicitamente a sociedade brasileira e, mesmo assim, percebemos uma sociedade que não está atenta aos acontecimentos e, por uma provável falta de instrução, não apura criticamente os eventos que estão se sucedendo. É com base nisso que dissertamos sobre a importância de uma sociedade formada por sujeitos que reconheçam o valor indispensável de uma leitura de mundo que se realiza dentro de (e é parte de) práticas sociais que medeiam as inter31


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-relações. Por uma sociedade que perceba criticamente o que a constitui e viva uma causa que acabe com as violências e marginalizações sociais. Nos últimos anos, o mundo viu se desenvolver uma forma de veiculação de notícias chamadas de Fake News. Esses textos consistem em correntes de mensagens que propagam notícias falsas e são veiculados em larga escala, a milhões de indivíduos, por e-mail pessoal ou aplicativos de mensagens instantâneas. Aqui no Brasil, esse recurso foi utilizado, segundo o jornal Folha de S. Paulo6, pela equipe do candidato eleito, contra seu rival nas eleições. Mesmo com esse ato criminoso realizado por meio de caixa dois, nenhum impacto foi sentido pelos executores do crime. Em tempos assim, portanto,é que se faz indispensável trabalhar com o gênero notícia, mais especificamente as veiculadas pelo jornal Folha de S. Paulo, empresa midiática que se desponta dentre os jornais de maior tiragem e circulação do Brasil. Ainda registramos que, sendo um dos autores deste artigo um indivíduo que se encaixa dentro do espectro de gênero e sexualidade abjetificado socialmente, precisamos falar desse segmento social e, assim, para fins da abordagem do texto noticioso, trabalhar transversalmente com questões que envolvem gênero e sexualidade, de um modo que é previsto pelos documentos oficiais do estado. Para além da identidade pessoal, esse tema surge da emergência de dar visibilidade às agências e às violências cotidianas sofridas por esse grupo aqui no Brasil, o país que mais mata pessoas LGBT7. Além de que o discurso do novo presidente eleito no Brasil é totalmente a favor da morte e exclusão social desses indivíduos. Falar desse tema, então, é falar

6. Informação disponível no link https://www1.folha.uol.com.br/poder/2018/10/empresarios-bancamcampanha-contra-o-pt-pelo-whatsapp.shtml. 7. Segundo dados listado por notícia do Catraca Livre, disponível em https://catracalivre.com.br/ cidadania/brasil-mais-mata-lgbts-1-cada-19-horas/. 32


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de pessoas que precisam sobreviver, sobretudo nas escolas regulares, onde os índices de exclusão e violência são altíssimos8. Por fim, nos sustentamos epistemologicamente pela corrente decolonial de elaboração do conhecimento, em conformidade com ideias e posicionamentos políticos de Spivak (2010). Isso quer dizer que este estudo tentará, ao máximo, fugir das imposições europeizadas e positivistas de elaboração do conhecimento, sobretudo em questões de linguagem – elemento social que carrega a identidade individual e coletiva dos sujeitos, além de elemento constituinte do mundo. O ‘nós’ que fala, neste estudo, é um ‘nós’ que dialoga com as referências, que reconhece autoria do próprio conhecimento e, por esse motivo, consciente dos outros que perpassaram na construção do saber que se registra neste texto. A nossa voz marcada em primeira pessoa, embora plural, é singular e, portanto, não parte da negligência aos outros que nos sustentam teoricamente, mas da consciência desses outros para a formação de sujeitos autores, que rasgam e não reconhecem a condição de colonizados e registram o conhecimento a partir daquilo que nos constitui.

MÉTODO, PROCEDIMENTOS E OBJETOS Esta pesquisa possui caráter bibliográfico e se propõe a entender o que é leitura crítica e suas aplicações a fim de elaborar um material didático para alunos(as) do 3º ano do Ensino Médio. Sobre essa abordagem bibliográfica enquanto metodologia ao trabalho científico, Heerdt & Leonel (2007, p. 67) dissertam que esse tipo de pesquisa tem seu desenvolvimento centrado na explicação de um problema a partir das teorias das fontes consultadas para o

8. Miskolci (2015, p. 33) reflete sobre/denuncia esse assunto; segundo ele, “são meninos femininos e meninas masculinas, pessoas andróginas ou que adotam um gênero distinto do esperado socialmente, que costumam sofrer injúrias e outras formas de violência no ambiente escolar”. 33


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trabalho como, por exemplo: “livros, artigos, manuais, enciclopédias, anais, meios eletrônicos, etc”. Os autores ainda apontam para a indispensabilidade desse tipo de pesquisa, escrevendo que “é fundamental para que se conheça e analise as principais contribuições teóricas sobre um determinado tema ou assunto”. (p. 67). Acerca da escolha desse tipo de pesquisa e seus fins, Koche (1997, p. 122, apud HEERDT & LEONEL, 2007, p. 67) afirma que a pesquisa bibliográfica pode ser realizada: a) para ampliar o grau de conhecimentos em uma determinada área, capacitando o investigador a compreender ou delimitar melhor um problema de pesquisa; b) para dominar o conhecimento disponível e utiliza-lo como base ou fundamentação na construção de um modelo teórico explicativo de um problema, isto é, como instrumento auxiliar para a construção e fundamentação de hipóteses; c) para descrever ou sistematizar o estado da arte, daquele momento, pertinente a um determinado tema ou problema.

Este trabalho, conforme essas colocações, se encaixa na categoria ‘a)’ da descrição de Koche, afinal, é nosso objetivo entender o que os Parâmetros para a educação básica do Estado de Pernambuco, enquanto texto primário, anotam acerca da leitura crítica do gênero relato, cruzando com as considerações de autores que falam sobre esse tipo de leitura, enquanto textos secundários. Essas diferentes etapas na produção de um trabalho bibliográfico são asseguradas por Gil (2002, p. 60, apud HEERDT & LEONEL, 2007, p. 67) ao afirmar que qualquer tipo de modelo de seleção bibliográfica é totalmente arbitrário em seu desenvolvimento, pois se encaixa nas demandas da pesquisa e varia significativamente de autor para autor. Por estarmos utilizando um documento de educação oficializado pelo estado, esta pesquisa também se encaixa na categoria ‘documental’. Esta é 34


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muito semelhante da bibliográfica, pois ambas adotam a mesma metodologia de coletar dados, diferindo-se, essencialmente, em utilização de textos primários (documental) e utilização de textos secundários (bibliográfica). Heerdt& Leonel (2007, p. 76) escrevem que “a pesquisa documental pode apresentar algumas vantagens e limitações”. Para destacar as vantagens, os autores citam Gil (2002, p. 46): “a) os documentos consistem em fonte rica e estável de dados; b) baixo custo; e c) não exige contato com os sujeitos da pesquisa”. Acerca das desvantagens, é possível identificar críticas frequentes que dizem sobre a subjetividade na escolha e registro do conteúdo e a não representatividade autoral do trabalho. Assumimos, portanto, a crítica do registro subjetivo, pois qualquer tipo de construção de sentidos que façamos sobre os conteúdos dos PCE-PE será de caráter subjetivo, embora ainda amparado pelas considerações de autores que dissertam sobre leitura crítica. Já à respeito da representatividade, por causa da postura pós-colonial e da defesa do nosso lugar enquanto autores no próprio processo de elaboração do conhecimento, sentimos que estamos sendo representados. Dessa forma, no proceder metodológico deste documento de conclusão de curso seguimos, basicamente, o esquema oferecido por Heerdt& Leonel (2007, p. 68), com algumas adaptações necessárias para alcançar os objetivos: a) escolha do tema; b) delimitação do tema e formulação do problema; c) seleção das expectativas de aprendizagem dos PCE-PE; d) identificação, localização das fontes bibliográficas; e) leitura dos aportes teóricos; f) elaboração do plano de desenvolvimento da pesquisa (pré-projeto); g) seleção dos textos noticiosos que comporão o material didático. h) redação do material didático para o 3º ano do Ensino Médio Regular. i) escrita do trabalho de conclusão de curso.

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Por fim, é importante destacarmos que os textos noticiosos que serão utilizados para a composição do material didático fazem parte do corpus da pesquisa de iniciação científica de um dos nosso autores, ocorrida entre agosto de 2017 e julho de 20199; esse movimento de diálogo entre pesquisas enriquece ambos os trabalhos. Acerca das EA que exploraremos para a construção do material didático, são elas: 2, 3, 7, 8, 9, 10, 13, 15, 16, 18, 22, 23, 24, 25 e 26 e as expectativas de aprendizagem da sessão Discurso de Relato (88 a 94). Acredito, portanto, na consistência metodológica deste documento de conclusão de curso para alcançar os objetivos previstos, pois estão bem delimitadas e fundamentadas as seleções textuais e o passo a passo a ser seguido.

DIÁLOGOS E FUNDAMENTOS: UMA DISCUSSÃO SOBRE NOSSAS BASES TEÓRICAS Por se tratar de um estudo bibliográfico, esta seção, que se faz a mais importante, se dedica a dissertar sobre os diálogos teóricos realizados ao longo do processo de elaboração dos conhecimentos planejados para este projeto, bem como do material didático. Para facilitar a compreensão, dividimos em subseções que agrupam temáticas que se aproximam, são elas: (4.1) Leitura é uma atitude de engajamento: objetivos e criticidade aliados à ação de ler, onde reflexões sobre leitura, leitura crítica e ensino de leitura são lançadas; e (4.2) A notícia jornalística: um gênero textual do ontem e do agora, onde a lógica jornalística é descrita, sua estrutura e seus aspectos

9. Pesquisa de iniciação científica realizada por Richard Fernandes de Oliveira, financiada pelo Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), vinculada à Universidade Federal Rural de Pernambuco, sob orientação do prof. Dr. Iran Ferreira de Melo, tento por título Análise da visibilidade de gênero e sexualidade periféricos na imprensa hegemônica brasileira. O corpus dessa pesquisa é constituído por 191 notícias, publicadas entre 2001 e 2017 pelo jornal Folha de S. Paulo, que relatam sobre as vivências ativas de pessoas de gênero e sexualidade marginais. 36


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discursivos e como o gênero notícia pode ser abordado em sala de aula. As discussões acerca de pessoas de gênero e sexualidade marginais e suas vivências estarão reservadas ao produto final deste projeto de pesquisa, o TCC, ou a outro trabalho que, porventura, venha a ser publicado por nós10. Cabe-nos aqui, então, abrimos espaços paras as duas discussões mencionadas à título de introdução e apresentação da nossa proposta de pesquisa.

Leitura é uma atitude de engajamento: objetivos e criticidade aliados à ação de ler Falar de leitura, neste trabalho, é falar de uma ação agentiva que modifica a realidade do leitor e do mundo. Para que isso se torne possível, é preciso que leitor e autor estabeleçam uma interação mediada pelo texto, seja este falado, escrito, sinalizado etc.; no caso deste estudo, levaremos em consideração as interações possibilitadas pelo contato com o texto escrito. Conforme Solé (1998, p. 24), esse modelo interativo de leitura geram no leitor uma série de expectativas ao entrar em contato com o texto. Essas expectativas seguem diferentes níveis de elaboração e realização, que vai desde as estruturas das palavras à construção dos sentidos.

10. Para a elaboração dessa discussão, caso você leitor queira entrar em contato com nossas fontes diretas, levamos em consideração pressupostos de: (1) Milkosci (2015), que disserta sobre a história, a luta e as vivências das pessoas queer (inclusive dentro do espaço escolar); (2) Butler (2017), em um artigo ao jornal Folha de S. Paulo, após sua passagem pelo Brasil, onde ela fala acerca da concepção de queer, da importância de se falar em gênero e sexualidade, e das posturas epistemológicas que sustentam esse tema; e Butler (2008) numa entrevista conjunta com Paul Preciado (teórico também queer) à revista Têtu, da França, com texto traduzido por Luiz Morando, onde ambos debatem sobre o corpo queer, a (des)construção da identidade dos indivíduos e sobre estruturas de poder que regem o funcionamento social para as pessoas queer (título da entrevista: A vida não é a identidade! A vida resiste à idéia da identidade, publicada pela revista Resista! Observatório de resistências plurais, em 2018). 37


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Assim sendo, é válido dizermos que ler é um processo complexo e que exige do leitor, num primeiro nível, conhecimentos do sistema linguístico no qual se insere o texto. Ou seja, para juntar letras, em seguidas palavras e em seguidas frases e orações para ação de ler, é necessário conhecer o código linguístico do texto escrito. Ter esse sistema adquirido de maneira sistematizada e ensinado em contextos formais de ensino-aprendizagem é de fundamental para o desenvolvimento de uma capacidade de leitura que não apenas se realiza dentro de espaços seguros à aprendizagem, mas também que se constitui um elemento das práticas sociais de transformação. Solé (1998) ainda considera um segundo nível da leitura, que deve igualmente acontecer em espaços formais de educação, é a construção dos sentidos de um texto escrito e a atribuição de valores por parte de quem lê. Interpretamos então que, tendo-se conhecimento do código da língua, suas regras, permissões e variações, é preciso que se avance para a etapa de significar o texto e o mundo ao redor. Para que isso aconteça, é preciso que leitor e texto tenham um grau de proximidade que permita ao leitor, por meio da ativação de seus conhecimentos de mundo, acessar as informações do texto, inferir os primeiros sentidos, adquirir novos conhecimentos, elaborar novas informações e significados a partir da interação motivada pela leitura. Ao mesmo tempo em que não é viável acabar com todos os distanciamentos entre que lê e o texto, pois este precisa ser novo ao leitor, de modo que haja interesse e curiosidade que o motive a ler. Ainda conforme a autora, para que esses níveis sejam alcançados, é preciso um ensino mediador e direcionador da leitura. Ler com finalidades bem determinadas, além de não permitir que o leitor de afogue no mar de possibilidades de um texto, também sistematiza a ação de ler, apontando caminhos por onde leitor e textos devem andar, numa constante interação. Solé (1998, p. 42) ainda afirma que traçar objetivos para a leitura, além de

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possibilitar o aprendizado direcionado, ativa no/a estudante “um grande número de estratégias, aprendem que a leitura pode ser útil para muitas coisas”. Estabelecendo um diálogo com Silva (2009), concordamos com o que esse autor afirma sobre os espaços educacionais: mesmo com objetivos de leitura determinados, as escolas não promoverem ações que instiguem a leitura crítica dos estudantes (p. 27). Para o autor, esse tipo de leitura de um texto consiste em “raciocinar sobre os referenciais de realidade desse texto, examinando cuidadosa e criteriosamente os seus fundamentos” (p. 33). Ler criticamente, ainda conforme esse teórico, é acessar os níveis do texto de modo a analisar essas partes em prol de um posicionamento social frente às realidades que se apresentam; além de, sobretudo, tornar-se um/a cidadão/ã que, a partir dos conhecimentos gerados pela leitura e por meio dos sentidos elaborados, intervenha no mundo ao redor em busca de transformações. Tendo isso em vista, Solé (1998, p. 32), estabelece uma indispensabilidade para a leitura, pois, conforme essa autora, adquirir a capacidade de ler “é imprescindível para agir com autonomia nas sociedades letradas”, e a não aquisição dessa capacidade “provoca uma desvantagem profunda nas pessoas”. Além dessa desvantagem, a não aquisição da leitura dificulta que os indivíduos de uma sociedade pautada nas relações de escrita e leitura não consigam se posicionar frente à realidade, muito menos modificá-la e transformar a si e aos outros. Devido a isso, se faz urgente acrescentar a esse pensamento uma reflexão levantada por Silva (2009, p. 33): “numa sociedade como a nossa, onde se assiste à barbárie, a presença de leitores críticos é uma necessidade imediata, de modo que os processos de leitura e os processos de ensino da leitura possam estar diretamente vinculados a um projeto de transformação social”.

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A notícia jornalística: um gênero textual do ontem e do agora Historicamente, o gênero notícia se consagra como um dos gêneros textuais de maior impacto no funcionamento social, isso se deve ao fato de ser responsável por relatar os acontecimentos da realidade. Desde sua tradição oral, impressa, televisionada e, atualmente, por suportes on-line, o texto noticioso se mostra vivo e orgânico às mudanças da sociedade. Por ter esse caráter de se reinventar e de se adaptar ao tempo e aos espaços, a notícia se mantém importante e indispensável ao ensino e à abordagem em outros espaços para além da escola formal. Por essa importância, apurar criticamente a realidade contada por uma notícia é vital para uma boa interpretação da sociedade na qual o sujeito leitor está inserido. Melo (2013, p. 170) afirma que as empresas de mídia, responsáveis pela criação e veiculação de relatos noticiosos sobre o mundo, possuem um lugar privilegiado de reforço e de circulação de sentidos, “servindo como um sensível barômetro de transformação social”. Unido a isso, esse autor também discorre que a mídia, em sua prática, é formadora de identidades individuais e coletivas, “bem como na produção social de inclusões, exclusões e diferenças”. Em outras palavras, não apenas a notícia detém o poder de transformar-se e transformar a sociedade, mas também a responsável pela sua criação: a mídia, ou o jornalismo, ou ainda empresas jornalísticas. Esse mesmo teórico, citando Van Dijk (1996), afirma que não é tão simples de se definir o que é uma notícia, pois “nenhuma definição será suficientemente satisfatória. Isso porque a noção de notícia é ambígua, tem um uso bastante extenso e não se refere apenas ao domínio do discurso jornalístico” (p. 178). A partir disso, ele enumera 3 possíveis usos do termo notícia:

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1. nova informação sobre fatos, objetos e pessoas; 2. um programa (de televisão ou de rádio, por exemplo) no qual se apresentam itens jornalísticos (sendo sinônimo de noticiário); 3. um item ou informe jornalístico, como, por exemplo, um texto de rádio, da televisão ou do jornal, no qual se oferece uma nova informação sobre acontecimentos recentes. (MELO, 2013, p. 179).

Conforme esses apontamentos do autor, concordando com ele, é possível dizer que a notícia é mais uma atividade discursiva que se insere no domínio jornalístico, sendo configurada como um processo de ação: noticiar (p. 179). Devido a isso, é mais viável definirmos as partes constituintes de uma notícia, pois estes possuem forma fixa e pouco variável, sendo cada parte responsável por uma função tanto formal, quanto discursiva. Essas estruturas, à medida que são inseridas em uma notícia, também expressam o grau de informatividade do texto noticioso, pois cada elemento é responsável por uma informação nova ou agregadora à(s) informação(ões) principal(is) . No quadro 1 seguinte, elencamos, utilizando parâmetros e definições do Manual da Redação da Folha de S. Paulo (2007) e de Melo (2013), os elementos constitutivos de uma notícia e suas descrições e funções: Quadro 1. Descrição de elementos de notícias do jornal Folha de S. Paulo.

Elemento de notícia

Descrição

Título

Elemento obrigatório de contextualização do texto noticioso.

Olho

Pequena unidade de texto, geralmente um parágrafo, que fica destacado na notícia, apresentado maior do que o texto normal ou em cor diferente; pode dar relevo a citações diretas.

Linha fina

Tem função de resumir a notícia a ser acessada.

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Chapéu Lide Sublide Relato

Intertítulo Textolegenda

Outros elementos

Estrutura que consiste em uma palavra ou conjunto de poucas palavras que se posiciona acima do Título, a fim de caracterizar o tema da matéria. Representa a abertura da notícia e, por isso, é um dos itens obrigatórios. Corresponde ao primeiro parágrafo e deve responder às questões “O quê?”, “Quem?”, “Onde?”, “Quando?” e “Como?”.

É uma continuação do Lide, pois responde a perguntas secundárias como “Por quê?” e “Para quê?”. Bloco de texto que sucede oSublide, não tem forma determinada. Qualquer outro título ou subtítulo utilizado na notícia.

Texto que aparece na legenda da fotografia associada à notícia, tem função de completar alguma informação em uma ou duas linhas.

Nesta pesquisa, agrupamos, nessa categoria, elementos como: infográfico, quadro-síntese de pesquisa, agenda de show, mapa etc., que se agregam à notícia para aumentar seu grau de informatividade.

Além de determinar seu grau de informatividade, a estrutura de uma notícia também pode revelar o grau de visibilidade que o texto dá ao seu tema, aos seus fatos e, principalmente, às suas pessoas, sobretudo por serem os indivíduos sujeitos ativos ou passivos de determinado acontecimento. Essa visibilidade é aumentada se, associada à notícia, estiver uma referência na capa do jornal que torne o texto ainda mais fácil de ser acessado. Bem como no texto noticioso, a imprensa, em sua dinâmica, determina a estrutura de uma capa, seus elementos e, a partir disso, como se apresenta seu conteúdo. A seguir, no quadro 2, é possível conferirmos os elementos constitutivos de uma capa na ordem decrescente de visibilidade proporcionada a uma notícia e a seu conteúdo.

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Quadro 2. Descrição de elementos de capa do jornal Folha de S. Paulo.

Elemento de capa Manchete Abertura

Foto-legenda

Chamada Frase

Descrição Estrutura textual de maior destaque, escrita, geralmente, em caixa alta, grifada em negrito e posicionada no todo ou no centro da capa do jornal. Cada edição de jornal apresenta apenas uma Manchete. Texto que resume a notícia a ser acessada; pode ser escrito em um ou mais parágrafos e apresentar Chapéu (elemento de notícia que pode aparecer ligado a elementos de capa). Dificilmente indica notícias simples, já sendo escrita em formato de Lide e Sublide do texto noticioso.

Elemento semiótico em forma de imagem que possuiu uma legenda de, no máximo, 4 linhas. Outro elemento de capa pode aparecer vinculado a ela. É um recurso imagético que tem facilidade de atrair a atenção do leitor à notícia referenciada. Recurso textual de poucas linhas, de período simples, que apresenta o resumo com informações essenciais da notícia. Pode possuir Título, Chapéu ou um dos dois elementos, além de possivelmente aparecer associado a outros elementos de capa.

Componente textual que apresenta informações básicas da notícia, de período simples. Dificilmente aparece com algum elemento indexador ou descritivo, ou ainda com outros elementos de capa.

Dar acesso a uma notícia, a seu conteúdo e às pessoas que participam do fato relatado é determinante para se entender a discursividade de um veículo de imprensa. A visibilidade, portanto, é uma carta do jogo que está também sob a posse da mídia, mas que especifica seu dano ou favorecimento apenas às pessoas ou grupos sociais que são marginalizados pela sociedade. Em outras palavras, conferir o quanto e como os sujeitos desses grupos são relatados dentro do texto noticioso é também conferir se a mídia está favorecendo ou desfavorecendo a realidade e a existência dessas pessoas. No caso deste estudo, sugerimos o aprofundamento reflexivo e crítico acerca do 43


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domínio social estabelecido pela mídia, levando em conta pessoas de gênero e sexualidade dissidentes. Mas deixamos claro que essa lógica se estende a qualquer grupo social, sobretudo os menos favorecidos: mulheres, negros, pessoas com necessidades específicas, idosos etc. O pontapé a essa análise e ao contato crítico com o texto jornalístico pode - e deve - acontecer em sala de aula. Este espaço de formação de meninos e meninas, desde cedo, precisa criar e adaptar condições para que seus/ suas estudantes mergulhem dentro de seus próprios contextos e dentro da lógica de manutenção de poder das instituições que influenciam diretamente as suas vidas, por meio da leitura ativa, crítica, reflexiva e avaliadora. Nesse sentido, pelo fato de a leitura ser especificidade de aulas de língua portuguesa, mas não só nela que deva acontecer, professores e professoras de língua precisam estar atentos/as a essas necessidades e fazer de suas aulas espaços formais e dinâmicos de incentivo ao sujeitamento e à consciência crítica e engajada de seus alunos e suas alunas perante a sociedade, criando um ambiente propício à aprendizagem crítica e significativa. Acerca desse ponto, Silva (2009, p. 31) escreve: “Convém mais uma vez lembrar que o desenvolvimento e o aprimoramento das competências em leitura crítica estão condicionados ao tipo de atmosfera que prevalece nos contextos escolares”.

LEITURA CRÍTICA: UM JORNAL PARA ESTUDANTES ENGAJADOS O material didático que será desenvolvido como resultado deste projeto de pesquisa tem o objetivo maior de proporcionar ao processo de ensino-aprendizagem-avaliação um mergulho analítico e crítico no gênero notícia, sobretudo em textos noticiosos que tratam da vivência de pessoas de gênero e sexualidade dissidentes. Esse mergulho proporciona não apenas

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o conhecimento acerca da estrutura do gênero, como também de seus aspectos discursivo e de seu impacto social enquanto gênero responsável por registrar os fatos sociais tidos como verdades. Com isso, pretendemos que os/as alunos/as desenvolvam ainda mais seu senso crítico no sentido de isolar as mazelas sociais que são as fake news e as violências contra o grupo marginalizado em evidência neste estudo. Também é nossa intenção aplicar o que os Parâmetros Curriculares orientam para o ensino de leitura, em aulas de língua portuguesa no Estado de Pernambuco, projetam de expectativas para o aprendizado dos/as estudantes do Ensino Médio (esse documento usa o termo Expectativas de Aprendizagem - EA). Sendo assim, nós possibilitaremos a imersão dentro do gênero não apenas levando em conta as teorias que nos baseiam, como também o que sugere o documento oficial mencionado para o processo de aprendizagem dos/as discentes. Verificaremos, de igual modo, se o que esse documento sugere para o ensino de leitura leva em consideração o desenvolvimento de capacidades de leitura crítica; ou seja, se incentiva os/as professores/as a mediar um ensino-aprendizagem-avaliação que forme o/a estudante um sujeito de transformação social. No quadro 3 abaixo, transcrevemos as EA, que podem ser aplicadas a qualquer gênero, selecionadas para nosso trabalho:

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Quadro 3. Expectativas de aprendizagem previstas pelos Parâmetros Curriculares de Pernambuco para o ensino de leitura em aulas de língua portuguesa, destinados a qualquer tipo de gênero. EXPECTATIVAS DE APRENDIZAGEM PARA QUALQUER GÊNERO TEXTUAL

Número

Descrição

EA2

Identificar as especificidades do gênero de um texto: seu objetivo comunicativo (propósito), seus interlocutores previstos e suas condições de produção.

EA7

Reconhecer as especificidades de suportes textuais (jornais, revistas, blogs, portais) que circulam em esferas sociais diversas.

EA3

EA8 EA9

EA10 EA13

EA15 EA16 EA18 EA22 EA23 EA24 EA25 EA26

Identificar o gênero de um texto, considerando a situação discursiva.

Localizar informações explícitas em textos de diferentes gêneros. Inferir o sentido de uma palavra ou expressão.

Inferir informação implícita em textos não verbais, verbais e/ou que conjuguem ambas as linguagens. Reconhecer efeitos de sentido produzidos por recursos lexicais, recursos da linguagem figurada e recursos morfossintáticos. Reconhecer efeitos de sentido decorrente de escolha do vocabulário.

Relacionar recursos verbais e não verbais (figuras, mapas, gráficos, tabelas, dentre outros) na produção de sentido do texto.

Identificar os tópicos e subtópicos (ideias centrais e secundárias) dos parágrafos. Identificar o tema de um texto.

Inferir o sentido global ou ideia central em determinados gêneros. Relacionar o sentido global de um texto ao seu título.

Identificar as vozes que se manifestam nos diversos gêneros textuais literários e não literários. Relacionar título e subtítulo

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É possível notar, nesse conjunto de EA, que, de fato, todas elas podem ser aplicadas a qualquer gênero textual, a uns mais do que a outros11. Essa organização dos Parâmetros ajuda a esclarecer as aplicações e os níveis de aprendizagens aos gêneros textuais, bem como prevê esferas de aprendizagem que vão desde o reconhecimento do gênero até os sentidos gerados por ele. Todavia, nessas EA selecionadas para este trabalho, existe uma carência de aprendizagens, pois nenhuma prevê, por exemplo, o desenvolvimento das capacidades de análise discursiva de um texto, muito menos as críticas; todas elas se concentram em aprendizagem de interpretação e compreensão, seja de texto escrito ou multimodal. Mas não só isso, esse documento oficial também organiza as EA por gênero textual. Abaixo, no quadro 4, seguem as EA para o gênero relato: Quadro 4. Expectativas de aprendizagem previstas pelos Parâmetros Curriculares de Pernambuco para o ensino de leitura em aulas de língua portuguesa, destinados ao gênero relato. EXPECTATIVAS DE APRENDIZAGEM PARA O GÊNERO RELATO

Número

Descrição

EA88

Reconhecer especificidades composicionais de gêneros do relatar (título, subtítulo, lide, corpo do texto, conclusão).

EA90

Identificar o fato ou evento principal de um relato.

EA89

Distinguir fato de ficção.

11. Foram selecionadas as EA com maior proximidade ao gênero notícia, mas os Parâmetros, na mesma seção de EA gerais, apresentam outras EA que se distanciam do gênero do relato e se aproximam mais de outros gêneros. Ainda assim, as que estão nessa seção do documento não se encaixam nas seções de EA específicas aos gêneros. 47


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EA91 EA92 EA93 EA94

Reconhecer mecanismos de textualização de discursos citados ou relatados dentro de um texto ou sequência de relato. Identificar efeitos de sentido do uso de mecanismos de coesão textual verbal empregados em um texto ou sequência de relato.

Reconhecer recursos linguísticos e gráficos de estruturação de enunciados de relato (escolha lexical, estruturação sintática).

Reconhecer estratégias discursivas de exposição de opinião relativa ao fato relatado.

Para o caso desse quadro, duas coisas mais nos chamaram a atenção: (1) a EA88 insere nomes de três elementos de uma notícia, mas utiliza os termos “corpo do texto” e “conclusão” para, provavelmente, se referir ao elemento relato de um texto noticioso; (2) a EA91 utiliza o termo “discurso” apenas no sentido das falas, diretas ou indiretas, das pessoas que aparecem em uma notícia, associando a isso “mecanismos de textualização”. No primeiro caso observado, guiar o/a professor/a a utilizar termos que não se preveem para a nomeação de partes de uma notícia pode comprometer a real aprendizagem do/a aluno/a. Como discutido neste trabalho, na seção 4.2, cada elemento de um jornal é responsável por uma informação específica e a ela está relacionada fortes índices de discursividade do jornal. Sobre isso que, considerando a observação (2), é também grave fazer uso do termo “discurso” como mera referência à fala de pessoas, sem aprofundamento, ou inserção de mais EA que especifiquem a importância da aprendizagem discursiva. Em Leitura Crítica: um jornal para estudantes engajados, preocupamo-nos em dar condições e conhecimentos aos/às discentes de conhecerem cada elemento composicional de uma notícia, e da capa de um jornal, e o quanto essas partes de um texto de relato podem ser determinantes para se perceber o posicionamento social do jornal no que diz respeito às desigualdades de 48


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gênero e sexualidade. Os Parâmetros, portanto, devido a essa insuficiência e inconsistência nas descrições e informações das EA, são apenas norteadores para a elaboração de cada questão, mas não determinantes. Expressos esses pontos, ainda à respeito do material didático, organizamos da seguinte maneira: a proposta é que tenha as dimensões de um jornal impresso para que o/a aluno/a tenha a sensação de estar lendo um jornal. Na capa desse jornal/material didático, deverá estar a apresentação do material e um objetivo geral para a leitura dos textos e das questões a eles associadas. Antes de cada texto, estarão dispostos dois objetivos ligados ao texto em evidência. Quanto aos enunciados, quando material estiver no formato para o/a professor/a, é possível conferir as EA previstas pela questão, seja em comando único, seja em mais de um comando na mesma questão. Cada enunciado foi construído também com a intenção de ser um passo a passo de uma aula ou sucessão de aulas de leitura, ficando à critério do/a professor/a o seu modo de uso. Na sequência, é possível conferir a primeira questão do material: i) Antes de ler o texto 1, leia o título e reflita sobre informações que possivelmente você irá encontrar nesse texto. Essa ação se denomina ‘inferência’. Registre no seu cadernos as informações que você inferiu pela leitura do título. ii) O objetivo da leitura do texto 1 é conhecer especificidades do gênero textual em que este se realiza. Vamos iniciar fazendo uma leitura silenciosa, durante a qual, é importante que você destaque palavras e expressões cujos significados você desconhece, a fim de descobrir esses significados com uma consulta a um dicionário ou por meio da interação com o professor. Boa leitura!

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TEXTO 1

Fonte: FERNANDES; MELO. Análise da visibilidade de pessoas de gênero e sexualidade dissidentes. 2018. Questão 01. [EA89] Já na primeira leitura do texto 1, percebe-se que se trata de um gênero textual bastante conhecido, que possui circulação em vários espaços e é um dos principais meios de acesso à informação: a notícia. Esse gênero relata, utilizando a norma padrão da língua, um determinado acontecimento da sociedade, que é chamado de fato, e circunstâncias e pessoas ligadas a ele. Realize uma nova leitura e, em seguida, responda ao que se pede abaixo, tentando identificar as características do fato:

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[EA2] [EA3] [EA8] [EA88] a) Qual o acontecimento que está sendo relatado no Texto 1? [EA2] [EA8] [EA88] b) Existe um lugar e um tempo bem determinados? Caso sim, quais são eles? [EA2] [EA8] [EA88] c) Quais as causas e as consequências do acontecimento? [EA2] [EA8] [EA88] d) Quem participa diretamente e indiretamente do fato relatado? [EA2] [EA8] [EA24] [EA88] e) Com as informações anteriores, é possível dizer que o título representa o que está sendo relatado? [EA2] [EA16] f) A imagem que está associada ao texto ajuda na compreensão do relato? O que ela representa nessa notícia?

No produto didático elaborado, sugerimos que, a cada questão que avalia as aprendizagens, estejam ligados conhecimentos que agregam mais aprendizagens. Pretendemos, então, além de lançar comandos, fazer de uma questão fonte de aquisição de novos conhecimentos, preocupando-nos em estabelecer uma ligação entre o enunciado-aprendizagem à questão-avaliação. Dessa maneira, o material didático ganhará um caráter extenso, mas, sobretudo, enriquecedor ao/à estudante. Para além de aprender e avaliar, esse material se propõe a ensinar conhecimentos acerca do gênero notícia, sua forma, função social e caráter discursivo. Conectado a esse ensino está a abordagem de conteúdos sobre a visibilidade de pessoas de gênero e sexualidade dissidentes, com o intuito que provocar a reflexão e a aprendizagem sobre a vivência desse grupo de pessoas. Assim sendo, ao entrar em contato com o material, o/a estudante entra em contato com a promoção de um espaço de ensino-aprendizagem-avaliação que o/a forma sujeito de reflexão, respeito e ação. Na questão seguinte é possível perceber essa descrição:

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i) Antes de ler o texto 3, leia o título e reflita sobre informações que possivelmente você irá encontrar nesse texto. Essa ação se denomina ‘inferência’. Registre no seu cadernos as informações que você inferiu pela leitura do título. ii) O objetivo da leitura do texto 3 é verificar seu conhecimento de especificidades do gênero textual Notícia. Vamos iniciar fazendo uma leitura silenciosa, durante a qual, é importante que você destaque palavras e expressões cujos significados você desconhece, a fim de descobrir esses significados com uma consulta a um dicionário ou por meio da interação com o professor. Boa leitura! TEXTO 3

Fonte: FERNANDES; MELO. Análise da visibilidade de pessoas de gênero e sexualidade dissidentes. 2018. 52


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Questão 06. A visibilidade de uma notícia não apenas é conferida na análise de seus elementos composicionais ou referenciais. Todo relato jornalístico fala sobre algo e/ou alguém; dependendo de quem ou de que vozes o jornal traz para a reportagem, é possível perceber o sentido que se constrói sobre o assunto relatado. Assim sendo, pode-se afirmar que nenhuma notícia é imparcial - por mais que a sua premissa seja a imparcialidade - pois a seleção das informações ou das pessoas que aparecem no texto revela o posicionamento da imprensa sobre o fato. [EA8] A partir dessas informações, a fim de conferir a visibilidade interna do Texto 3, preencha a primeira coluna do quadro seguinte com as pessoas que aparecem na notícia que não são apontadas como LGBTs, e a segunda coluna com as pessoas indicadas como sendo LGBTs. Pessoas não-GBT

Pessoas LGBT

Realizada a leitura do texto e com as informações da questão e do quadro, responda às perguntas abaixo: [EA22] [EA23] [EA26] [EA90] a) Qual o principal assunto abordado na matéria? O título e a linha fina representam bem esse assunto? [EA18] b) Que outro(s) assunto(s) poderiam ser destacados na reportagem que não está(ão) representado(s) pelo título e pela linha fina? [EA8] [EA94] c) A partir da leitura do título e da linha fina, é esperado que a notícia relate sobre que tipo de pessoas? O quadro preenchido revela que o corpo da notícia fala sobre as mesmas pessoas que o título e a linha fina apresentam? 53


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[EA8] [EA94] d) Para quem o texto 3 dá maior visibilidade considerando as informações do quadro? [EA23] [EA94] e) Escreva sua interpretação sobre o posicionamento do jornal na notícia apresentada. Utilize trechos do relato para sustentar seu argumento.

Prevemos, ainda, que, por meio desse material, o/a discente desenvolva capacidades de autoavaliação de suas aprendizagens e de suas ações no mundo, tornando-o sujeito de interação e intervenção social a partir do contato com a leitura do texto jornalístico e do mergulho profundo nesse gênero e em seus sentidos, impactos sociais e discursividades. Conforme sugere Silva (2009, p. 29-30, grifos do autor), “o leitor crítico, em seus projetos de interlocução com materiais escritos, analisa e examina as evidências apresentadas, e, à luz dessa análise, julga-se criteriosamente a si mesmo para chegar a um posicionamento diante deles”. Com base nisso, afirmo que fazer das notícias do jornal Folha de S. Paulo experiência para essas finalidades é, na ótica deste trabalho, fazer da hegemonia social opressora o próprio mecanismo para torná-la passível de intervenção.

CONSIDERAÇÕES FINAIS? Levando em consideração tudo que foi escrito até este ponto, discutir sobre leitura, sobre ensino de leitura e sobre como essa prática de língua e de linguagem pode ser inserida dentro da sala de aula é também discutir posicionamento social e, devido a isso, nunca será possível dizer palavras finais e/ou considerações finais a esse tema, pois sempre haverá uma nova forma de se posicionar. A leitura é o principal meio de acesso aos conhecimentos da realidade, seja uma leitura de mundo, uma leitura do outro, uma leitura de si, ou uma leitura de um texto escrito. Este pode, em suas linhas e entre-

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linhas, acolher, inclusive, todos os outros tipos de leitura mencionados. Ler, portanto, é uma ação de intervenção no mundo e deve ser tratada como tal. Ainda que façamos um recorte acerca do que ler, é possível, facilmente, expandir o que será posto pelo TCC, que terá origem a partir deste projeto, a qualquer outro tipo de leitura de texto escrito. Sendo o/a profissional de ensino de língua o/a principal responsável por dar acesso a uma prática de leitura formal e sistematizada, a aulas de linguagem precisam, e devem, ser um oceano de possibilidades de ler, reler, compreender, interpretar, interagir, analisar, criticar… Tudo isso sempre considerando o contexto no qual se inserem os/as estudantes e em como, por menor que seja, pode ser a influência social que venham a empreender; bem como levando em conta objetivos expressamente delimitados, a fim de proporcionar uma leitura clara aos fins desejados e por meio de procedimentos que colaborem para a formação crítica dos/as estudantes. Em se tratando do gênero textual notícia, é importante destacar ainda que, por mais que seja um gênero historicamente consagrado e de constante aparecimento em aulas de português, sempre haverá um novo ângulo pelo qual poderemos vê-lo. Se mudam os contextos, mudam-se os fatos, muda-se a realidade, mudam-se as relações e as pessoas, e novas formas de registros aparecem, daí também a importância de falar de texto noticioso, sua utilização no ensino e seus impactos sociais. A notícia, enquanto houver fatos, sempre será vigente, não importa sua forma: impressa, falada, televisionada, on-line etc. Acrescentamos a isso que propor-nos a elaborar um material didático que sugere a relação entre aprendizagem e avaliação será um processo desafiador desde seu início, pois é comum e tradicional existirem materiais que são construídos para avaliar, mas os comandos de suas questões tratam o conhecimento do/a aluno/a como um depósito mecânico de armazenamento

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que deve ser acessado por meio de uma questão, preocupando-se pouco - ou quase nada - com a articulação de diversas aprendizagens, conhecimentos e realidades dos/as estudantes. Fazer com o que o/a discente aprenda com o enunciado, com suas respostas às questões e com sua autoavaliação enquanto indivíduo de ação será uma preocupação latente deste trabalho. Por fim, entrar em contato com as contradições do sujeito que pesquisa a partir de sua representatividade também é um desafio, pois significa estar passível à constante influência subjetiva e política, sobretudo em se tratando de ensino em um momento político de repressão e violência contra quem se posiciona a favor de minorias sociais. Por saber desse lugar, é nele mesmo que nos colocamos e nos fazemos, por meio deste trabalho, professores que tentam levar a outros/as professores/as um pouco da nossa visão de mundo e um pouco de como nos propomos a trabalhar com leitura, criticidade e gênero notícia que trata de pessoas marginalizadas em gênero e sexualidade. Desejamos, então, mais estudos, pesquisas e trabalhos que se assumam nesse lugar.

REFERÊNCIAS BRASIL. Parâmetros curriculares nacionais: apresentação dos temas transversais, ética. Secretaria de Educação Fundamental. Brasília: MEC/SEF, 1997. BUTLER, Judith. O fantasma do gênero: reflexões sobre liberdade e violência. Folha de S. Paulo. São Paulo, 19 nov. 2017. Ilustríssima, p. 4-5. BUTLER, Judith; PRECIADO, Paul. A vida não é a identidade! A vida resiste à idéia da identidade. Tradução de Luiz Morando. [Entrevista concedida a] Ursula Del Aguila. Têtu, França, 138, novembro, 2008. Disponível em https://resistaorp.blog/2018/05/08/a-vidanao-e-a-identidade-a-vida-resiste-a-ideia-da-identidade. Acesso em 10 mai. 2018. COLLING, L. (org.). Stonewall 40+ o que no Brasil? Salvador: UFBA, 2011. (Coleção Cult). FOLHA DE S. PAULO. Manual da redação da folha de S. Paulo. São Paulo: Folha de S. Paulo, 2007. 56


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GREEN, J. N. Mais amor e mais tesão: a construção de um movimento brasileiro de gays, lésbicas e travestis. Cadernos Pagu, n. 15, p. 271-295, 2000. HEERDT, M. L.; LEONEL, V. Metodologia científica e da pesquisa: livro didático. 5 ed. rev. e atual. Palhoça: UnisulVirtual, 2007, p. 57-84. Disponível em http://www.joinville.udesc. br/portal/professores/cristala/materiais/Unidade3aPesquisaCientifica.pdf. Acesso em 12 nov. 2018. KÖCHE, J. C. Fundamentos da metodologia científica: teoria da ciência e prática de pesquisa. 14. ed. rev. e atual. Petrópolis: Vozes, 1997. MELO, I. F. Ativismo LGBT na imprensa brasileira: análise crítica da representação de atores sociais na Folha de S. Paulo. 2013. Tese (doutorado em letras) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. MISKOLCI, Richard. Teoria queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. PERNAMBUCO. Parâmetros para a educação básica do estado de Pernambuco: parâmetros curriculares de língua portuguesa para o ensino fundamental e médio. Undime | PE. Pernambuco: SEC-PE, 2012. SILVA, E. T. Leitura na escola e na biblioteca. 3 ed. Campinas: Papirus, 1985. SILVA, E. T. Criticidade e leitura: ensaios. São Paulo: Global, 2009. SOLÉ, Isabel. Estratégias de leitura. Trad. Claúdia Schilling. 6 ed. Porto Alegre: Artmed, 1998.

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Resumo Diante do crescente número de adaptações de obras literárias para o cinema contemporâneo, o presente artigo busca tratar acerca da figura feminina instituída no clássico conto de fadas dos Irmãos Grimm, Rapunzel, e na sua adaptação cinematográfica com o longa-metragem Enrolados, da Walt Disney Animation Studios. Por essa razão, este trabalho tem como objetivo apresentar uma breve discussão sobre as escolhas da adaptação da personagem Rapunzel, do conto de fadas: Rapunzel dos irmãos Grimm para o filme Enrolados da Disney, na qual fica explícito a mudança da personagem feminina para uma figura feminina atual e com aspectos feministas. Ou seja, na narrativa do conto teremos a representação clássica da princesa, enquanto na narrativa fílmica encontramos uma nova perspectiva da identidade feminina que vai interferir em uma nova caracterização de princesa. Para esta pesquisa bibliográfica qualitativa, utilizamos trechos do conto e descrição das cenas mais frames do filme para analisar as características da personagem enquanto o argumento teórico é realizado através dos teóricos: João de Brito (2006), Linda Hutcheon (2011) e Robert Stam (2000), autores estes que discutem sobre adaptação, questão teórica que justifica as mudanças das personagens do conto para o filme. Já com relação a definição de feminino e feminismo é necessário para entendermos as diferentes construções do feminino, a partir da personagem Rapunzel das obras, para isso trabalhamos com Perrot (1998), Butler (2003), Vieira (2005) entre outros. Palavras-chave: Adaptação; Contos de fadas; Personagem; Feminino; Feminismo.


A CONSTRUÇÃO DO FEMININO NO CONTO DE FADAS RAPUNZEL, DOS IRMÃOS GRIMM E NA ADAPTAÇÃO FÍLMICA ENROLADOS, DA WALT DISNEY ANIMATION STUDIOS GABRIELA BRASILINO DE MELO SIMÕES1 MARCIA CRISTINA XAVIER 2

INTRODUÇÃO Atualmente, o cinema está fazendo constantes releituras de contos de fadas para as telonas e estas novas/antigas personagens apresentam características comportamentais de acordo com a época atual. Sendo assim, este artigo apresenta uma pequena discussão sobre esta figura feminina no conto de fadas Rapunzel e no filme Enrolados, bem como traz aspectos da adaptação que auxiliaram na mudança desta personagem, a partir das escolhas realizadas pela Disney. Vale salientar que esta mudança apresenta traços de uma personagem que busca romper com os paradigmas de seu tempo e por vezes apresentando traços do feminismo. Dessa forma, este trabalho faz-se importante, pois além de levantar questionamentos quanto aos novos modelos de princesas, também contribui para estudos sobre a literatura infanto-juvenil e o universo cinematográfico para o público também infanto-juvenil. 1. UPE - Campus Mata Norte. gabrielabrasilino@hotmail.com. 2. UPE - Campus Mata Norte. marcia.c.xavier@oi.com.br. 59


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Vale destacar que esta pesquisa é de caráter bibliográfico e qualitativo e tem como teóricos e teorias atuais sobre adaptação, como Stam (2000), Hutcheon (2001), Xavier (2003), e Brito (2006), assim como os aspectos de gênero com Magalhães (1995), Ramalho (1999), Zinani (2006) e Vieira (2005), para que assim torne-se perceptível a adaptação de duas obras de épocas distintas e a figura feminina que nelas aparece, também com atitudes e personalidades também divergentes.

CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS A intersemiose e a adaptação

Quando trabalhamos a intersemiose, verificamos o signo em ação, porém dialogando em diferentes linguagens. Julio Plaza nos explica a intersemiose, a partir do processo de tradução. De acordo com o autor a tradução seria buscar equivalências de um signo de uma linguagem para outra. Vale salientar que traduzir não significa ser fiel em levar um texto de uma linguagem para outra, mas sim como um processo de adaptação, nas quais as obras não possuem dependência uma da outra. Ou seja, ao realizar estudos intersemióticos estamos observando o signo como elemento constitutivo da linguagem, na qual sua interpretação irá variar de acordo com o contexto sociocultural e conhecimento de mundo do leitor. E quando trazemos a expressão tradução, junto com o termo intersemiose, é importante observar que haverá uma intertextualidade entre dois textos, podendo estes pertencerem no mesmo campo textual, como também entre estruturas diferentes. Neste processo de intertextualidade e/ou podemos chamar de adaptação, vamos encontrar diferenças e semelhanças no processo de traduzir o signo de um texto para outra linguagem e até mesmo para o 60


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mesmo tipo de linguagem (a verbal). Isto ocorre, pois não há como adaptar sem que o signo não altere. É importante frisar que ao criar uma outra obra a partir de uma preexistente a essencialidade da primeira obra é que se pretende buscar e não fazer uma cópia. Por isso que neste percurso intertextual iremos encontrar algumas equivalências, bem como mudanças de signos, pois a proposta é estabelecer um diálogo entre as obras e não reproduzi-la. O processo de adaptação também deve ser compreendido como “uma forma de dialogismo intertextual” (STAM, 2000, p. 64), ou seja, quando estudamos a adaptação, devemos verificar a linguagem cinematográfica e as intertextualidades nela existentes, além de observar e respeitar o olhar do cineasta. Pode-se evidenciar que quando pensamos em dialogo não nos referimos a uma obra que depende de uma outra para a produção de sentido, porém apresentamos como forma de trazer elementos/informações do texto fonte para um novo texto, ou obra. E é neste processo de criação de um novo texto que o signo normalmente é modificado, às vezes permanecendo com o mesmo sentido do texto original e em outros momentos produzindo novos significados. Como explica Hutcheon (2011, p. 30): Em resumo, a adaptação pode ser descrita do seguinte modo: Uma transposição declarada de uma ou mais obras reconhecíveis; Um ato criativo e interpretativo de apropriação/recuperação; Um engajamento intertextual extensivo com a obra adaptada.

É importante ressaltar este processo de criação, pois a obra adaptada não é dependente da obra original, desta maneira ela não será uma cópia fiel do texto fonte. Trazendo como exemplo: a literatura e o cinema, podemos apresentar alguns aspectos negativos ao buscar uma relação de fidelidade entre as obras. Neste caso ao se tratar de obras com linguagens diferentes é 61


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inevitável a mudança dos signos, pois ao tentar reproduzir o texto literário para o cinema o que ocorrerá é que a linguagem cinematográfica não será trabalhada como deveria.

[...] livro e filme estão distanciados no tempo; escritor e cineasta não têm exatamente a mesma sensibilidade e perspectiva, sendo, portanto, de esperar que a adaptação dialogue não só com o texto de origem, mas com o seu próprio contexto, inclusive atualizando a pauta do livro, mesmo quando o objetivo é a identificação com os valores expressos. (XAVIER, 2003, p. 62)

Outro ponto, são os recursos narrativos que são distintos, pois enquanto na literatura a figura do narrador é apresentada de maneira mais delimitada no texto, na linguagem cinematográfica ela pode ser realizada por diferentes aspectos, entre eles pela forma tradicional de narração, podemos citar o narrador cinemático.

Vannoye explica a adaptação: • Redução: elementos que estão no texto literário (romance, conto ou peça) e que não estão no filme. • Adição: Elementos que estão no filme sem estar no texto literário. • Deslocamento: Elementos que estão em ambos, filme e texto literário, mas não na mesma ordem cronológica, ou espacial. • Transposição propriamente dita: Elementos que, no romance e no filme, possuem significados equivalentes, mas tem configurações diferentes. • Simplificação: Uma transposição que constitui em, no filme, diminuir a dimensão de um elemento que, no romance, era maior. • Ampliação: Uma transformação que constitui em, no filme, aumentar a dimensão de um ou mais elementos do romance. (Apud BRITO, 2006, p. 20) 62


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Deste modo, fica explícito como a adaptação de um texto ocorre, podendo assim afirma que são duas obras distintas, porém elas dialogam.

Feminino ou feminismo?

Sempre ao tratar do feminino as pessoas confundem com feminismo. Desta forma, é importante entender que quando abordamos a questão do feminino, entende-se o que é inerente ao universo da mulher, o que a faz identificar com o comportamento pertencente a este gênero, como menciona Magalhães (1995): [...] identificar indicadores de uma outra sensibilidade, de uma outra percepção do real, de uma outra lógica, expressar literariamente nos textos e afins à experiência das mulheres: à sua experiência corporal, interior, social, cultural. (MAGALHÃES, 1995, p. 23)

O cotidiano, a feminilidade, a ternura são alguns dos aspectos comuns encontrados quando olhamos a partir do feminino. A atenção direciona-se aos pressupostos sobre a natureza feminina que alimentam representações normativas da mulher, aos limites ficcionais e cerceamentos ideológicos (silenciamento, invisibilidade e exclusão) nos processos de construção simbólica, [...]. (RAMALHO, 1999, p. 32)

Sendo assim, já o feminismo tem como característica a busca pela igualdade dos gêneros, no sentido da mulher e do homem terem as mesmas oportunidades, escolhas e direitos sociais. A figura feminista apresenta características que vão de contra a sociedade patriarcal, pois buscam romper com as regras impostas que delimitam o comportamento e ou oportunidades das mulheres na sociedade. Como explica Butler “a crítica feminista também deve compreender como a categoria das ‘mulhe-res’, o sujeito do feminismo, 63


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é produzida e repri-mida pelas mesmas estruturas de poder por inter-médio das quais se busca a emancipação” (BUTLER, 2003, p. 19 APUD PINTO, 2010, p. 20). Pode-se observar que para se conceituar feminino faz-se necessárias as teorias e discussões do movimento feminista, pois só apenas no século XX, mais especificamente a partir do movimento feminista nos anos 50 e 60, as mulheres iniciaram um processo de “autonomia” quanto sua produção artística. O conceito sobre o feminino começa ser observado como ponto importante na construção da identidade feminina, ou seja, nas discussões sobre gênero. Cecil Zinani (2006, p. 66) alerta que, [...] para discutir a formação do sujeito e da subjetividade feminina”, é necessário construir uma fundamentação teórica através da desconstrução da teoria androcêntrica. A nova formulação proposta, além de questionar as estruturas teóricas vigentes, precisa estabelecer modelos interpretativos que dêem conta não só da experiência feminina, mas de uma abordagem de aspectos que a mulher considera relevantes e que marquem sua posição como sujeito gendrado.

Em outras palavras podemos observar que “as verdades, os limites, as noções sobre o sujeito alteraram-se profundamente [...]; a construção social da subjetividade das mulheres”. (VIEIRA, 2005, p. 210). A partir de questões levantadas no movimento feminista fora iniciados estudos sobre o sujeito e subjetividade desse ser até então limitado na sua produção artística aos moldes do patriarcalismo. A criação deste espaço feminino também foi discutido por Michelle Perrot (1998, p. 10), que aborda o universo feminino e masculino observando o campo da produção artística,

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Para os homens, o público e o político, seu santuário. Para as mulheres, o privado e seu coração, a casa. Afinal, esse poder sobre os costumes não é o essencial? Os homens são na verdade, os senhores do privado e, em especial da família, instância fundamental, cristal da sociedade civil, que eles governam, e representam, dispostos a delegar às mulheres a gestão do cotidiano.

Diante destas características ficam evidentes como podemos identificar as personagens através do um olhar quanto ao gênero.

O CONTO DE FADAS RAPUNZEL E A FIGURA FEMININA

O conto de fadas Rapunzel, que estamos analisando, é dos irmãos Grimm e a versão utilizada foi a tradução realizada por Monteiro Lobato, no livro: Novos Contos de Grimm. Vale salientar que este conto, no original a história é contada em versos e no caso desta tradução a escolha de Lobato, foi colocá-lo em prosa, a qual narra a história de uma princesa raptada por uma feiticeira e que com o passar dos anos, permanece presa em uma torre até que o príncipe encantado a salve. Como se sabe esta e as demais histórias contadas pelos irmãos Grimm vêm da tradição oral e foram por eles adaptadas para o universo infantil, pois estas narrativas apresentam um caráter violento, inclusive com as figuras femininas que em muitos casos, nas versões orais, eram estupradas nas histórias. Neste conto temos a história de um casal que gostaria muito de ter um filho e quando conseguiram, a esposa, certa vez, teve desejo de comer rabanete do quintal da vizinha. Porém, a vizinha era uma bruxa e ao ver o homem pegando seus rabanetes só o permitiu sair da casa se ele prometesse entregar a criança quando nascesse. E assim ele fez. A menina foi criada pela bruxa e aprisionada no castelo. A bruxa sempre que ia visitá-la pedia que jogasse as 65


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tranças. Certo dia, um príncipe que passava pelo local ouviu uma linda voz cantarolando e em seguida ouviu outra voz feminina chamando por Rapunzel. Vendo como a mulher subia na torre, ele fez o mesmo depois da bruxa sair. Ao subir e ver Rapunzel ficou encantado com ela e a pediu em casamento. A bruxa quando descobriu deu uma surra em Rapunzel, cortou os cabelos dela e a jogou no deserto. Para pegar o príncipe a bruxa usou o cabelo de Rapunzel para ele subir na torre e ao ver a bruxa a mesma disse que Rapunzel morreu. No desespero quanto a notícia o príncipe pula da torre e cai numa touceira de espinhos, motivo que o ajudou a não morrer, porém o causa cegueira, pois os olhos foram furados pelos espinhos. O príncipe sai vagando e um belo dia encontra Rapunzel que com suas lágrimas curam os olhos dele. Rapunzel e o príncipe voltam para o castelo e vivem felizes para sempre, enquanto a bruxa, provavelmente tem um final triste, conforme trecho: “A bruxa ninguém soube que fim levou. Com certeza engasgou-se com seus rabanetes e morreu asfixiada. Se foi assim, bem feito!” (LOBATO, 1967, p. 82) Sendo assim, observamos que nesta história a princesa é representada socialmente como a mulher de sua época que espera um casamento para se ver livre. E quando finalmente o moço indagou se ela queria casar-se com ele, Rapunzel compreendeu que o casamento era o único meio de livrar-se daquela prisão. E aceitou a proposta. — Sim, disse ela, estendendo a mão ao príncipe. Estou pronta para casar consigo; só não sei como descer desta maldita torre. (idem, 1967, p. 79)

Como menciona Guedes, podemos compreender o comportamento desta personagem em ver sua liberdade em um casamento, pois:

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[...] a sociedade passa a se denominar como patriarcado, modelo no qual cabe à mulher as incumbências domésticas, e concomitantemente, ao homem representação da fortaleza emocional e física e quem deve apresentar o veredicto final de qualquer decisão a ser tomada. “Nesta sociedade patriarcal, alicerçada na propriedade privada, a família e a superioridade masculina, além da natureza feminina que possibilita a reprodução, transformaram as mulheres em elementos de exploração e opressão” (GRISCI,1994, p. 34 Apud GUEDES, 2010, p. 3)

Neste trecho fica explícito a relação de liberdade com o casamento. A prisão em que ela vivia a motivava não em buscar sua individualidade saindo do local onde estava, mas sim a liberdade apenas em sair de “casa”. Rapunzel é a representação da princesa clássica, que espera um príncipe encantado para salvá-la e todo seu poder diante do masculino está restrito nas relações pertencentes ao feminino, tais como a sua beleza, doçura e obediência. Acredita que a mulher existe no contexto patriarcado como significante do outro masculino. A mulher estaria presa a um lugar de portadora de significado e não produtora de significado; enquanto o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões por meio do comando linguístico. (TONETTO, 2011, p. 166)

Por conseguinte, é comum encontrar nos contos de fadas clássicos princesas que não demonstram por completo um posicionamento ativo em relação a si mesmas, pois sempre estão com dependência em outra figura da história. Em Rapunzel, pode-se observar que além da dependência para com o príncipe encantado, a jovem também possui dependência com a bruxa, figura esta que a mantém presa durante anos. Portanto, dificilmente Rapunzel conseguirá exercer um papel que lute contra a vilã e os seus ideais.

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— Oh, desgraçada! exclamou a bruxa furiosa. Eu fiz tudo para separá-la do mundo e não é que você me anda com príncipes por aqui? E agarrando-a pelos cabelos arrastou-a para sala e deu-lhe uma grande surra; por fim cortou-lhe o cabelo com uma tesoura. Não contente com isso levou-a para um deserto, onde a abandonou sozinha na mais triste miséria. Voltou então à torre e amarrou a cabeleira cortada à janela. (LOBATO, 1967, p. 80)

Por essa razão, dentro do conto Rapunzel, por mais que a princesa seja considerada como a personagem principal, sua figura propriamente dita está à mercê de um outro personagem: o príncipe. A figura feminina apenas ganha espaço como algo que está constantemente em perigo e que possuirá os seus conflitos resolvidos apenas a partir da figura masculina, detentor de proteção e sabedoria. Diante disso, os contos de autoria dos irmãos Grimm e perpassados de geração em geração por tradutores, tais quais: Monteiro Lobato, poucas ou nenhuma vez trarão a princesa como agente da ação, mas sim como objeto passivo, isto é, portadora de significado e não produtora de significado.

ENROLADOS: UMA PRINCESA DIFERENTE

Na animação Enrolados, de 2010, encontraremos a história de uma princesa que foi raptada e aprisionada por uma bruxa, Gothel, em razão dos cabelos da princesa serem mágicos e trazerem a juventude eterna para quem os penteie. Com o passar dos anos, Rapunzel acostumou-se com a rotina de viver aprisionada em uma torre devido ao apavoramento que a mesma possuía perante o mundo exterior por culpa de sua “mãe” que a assustava. Entretanto, a rotina fora quebrada quando um jovem fugitivo da lei acabou que, acidentalmente, encontrando a torre que a princesa vivia e após alguns 68


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conflitos ocasionados pelo furto da coroa real, o rapaz prometeu que levaria a jovem para conhecer o reino. Dessa forma, com características humoradas e aspectos musicais, a trama desenrola-se com ambos fugindo da lei e da bruxa e ao fim obtendo uma reviravolta significativa no que se refere ao cabelo da garota. A partir de um processo intersemiótico, logo torna-se perceptível a adaptação no enredo, o qual ainda possui mantidas algumas particularidades advindas da história original, não ser criada pelos pais, a existência de uma torre que a aprisiona e uma bruxa que mente sobre a verdadeira origem da jovem. Contudo, por mais que essas peculiaridades do conto original permaneçam presentes na adaptação cinematográfica, algumas alterações consideráveis existirão no decorrer do longa-metragem, a exemplo: o cabelo mágico, o qual, diante do que fora supracitado acerca da adaptação, é um elemento de adição, pois foi um fator adicionado sob a história original. A figura feminina também demonstra-se como fator mutável de uma história para outra, pois, na animação cinematográfica, Rapunzel possui um papel mais ativo e, inclusive, salva o fugitivo, e seu futuro par romântico, em diversas ocasiões de perigo, algo que no conto original não ocorre.

Enrolados. Walt Disney Animation Studios. Reprodução: Netflix.

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Dessa forma, a princesa passa a ter opinião, criticidade, coragem e voz no desenrolar da trama, considerado algo novo nas histórias de conto de fadas, principalmente as detentoras de princesas. Por conseguinte, um simples ato da figura feminina salvar a figura masculina em diversas ocasiões, pode ser considerada mais uma vitória pelas lutas feministas que durante anos buscaram trazer a imagem da mulher como algo além de um complemento da imagem masculina, ou seja, a mulher como um indivíduo que pode possuir um posicionamento perante a sociedade.

Enrolados. Walt Disney Animation Studios. Reprodução: Netflix.

Sendo assim, como nas cenas supracitadas, a princesa agora possui a ação e não mais a passividade de apenas esperar que a figura masculina tome as atitudes e a salve em ocasiões de perigo. A princesa atual não mede esforços mentais e físicos para solucionar a problemática em que se encontra, assim como, não deixa de expor sua opinião perante os acontecimentos.

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Enrolados. Walt Disney Animation Studios. Reprodução: Netflix.

Diferente da Rapunzel do conto esta não apanha da bruxa, mas sim dá uma surra no príncipe (na verdade, um ladrão) que entrou na torre. Podemos encontrar uma personagem que mesmo com a aparência de delicadeza e doçura, sabe se defender e não depende de um homem para isso. Nesta história do filme, Rapunzel, já é princesa e o rapaz que ganha o título através dela. Como explicam os autores Pedro e Guedes: A luta das mulheres está na libertação das amarras de um senso moral construído pela cultura machista, cristalizada durante séculos. Não é apenas pela igualdade econômica e política que as mulheres conquistam seu espaço; mas são, também, na construção de uma sociedade livre de relações preconceituosas e discriminações. Trata-se de uma luta pela liberdade, para além da equiparação de direitos, e pelo respeito à alteridade (PEDRO; GUEDES, 2010, p. 5)

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Enrolados. Walt Disney Animation Studios. Reprodução: Netflix.

A partir desta personagem compreendemos que em seu comportamento e atitudes, algumas características do feminismo, principalmente no que se diz respeito a busca pela liberdade para se autoconhecer. Outro ponto importante em destacar desta figura feminina é que a mesma deseja sair da torre para realizar seus sonhos e não para se casar, até porque a mesma não espera um príncipe para isso. Sua vontade de sair era para conhecer as luzes que via da torre na época de seu aniversário. Podemos compreender que: Emancipar-se é equiparar-se ao homem em direitos jurídicos, políticos e econômicos. Corresponde à busca de igualdade. Libertar-se é querer ir mais adiante, marcar a diferença, realçar as condições que regem a alteridade nas relações de gênero, de modo a afirmar a mulher como indivíduo autônomo, independente, dotado de plenitude humana e tão sujeito frente ao homem quanto o homem frente à mulher. (CHRISTO, 2001, apud GUEDES, 2010, p. 6)

Por essa razão, a Rapunzel adaptada para o longa-metragem Enrolados busca sua liberdade em diversos segmentos da história. Além da libertação da torre, e consequentemente do aprisionamento que vivera durante anos de sua vida, o desfecho do filme nos traz uma nova libertação para a princesa: o corte de seus cabelos mágicos. 72


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Enrolados. Walt Disney Animation Studios. Reprodução: Netflix.

Os cabelos longos e, quando necessário, brilhantes, eram também fonte de aprisionamento devido a bruxa que prendia Rapunzel apenas para possuir em mãos a magia do cabelo dela. Portanto, a partir do momento em que Rapunzel teve os seus cabelos cortados não mais esteve nas mãos de Gothel, a quem a impediu de viver sua verdadeira vida durante 18 anos. Outro ponto importante no desfecho da história, demonstra-se pelo título de príncipe que José apenas ganha em detrimento a princesa. Normalmente, a figura masculina nos contos de fadas já possui o título de príncipe e passa a concedê-lo para a figura feminina quando estes se casam, entretanto, em Enrolados ocorre o contrário.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A presente pesquisa buscou, mesmo que brevemente, trazer à luz o processo intersemiótico gerado a partir da adaptação cinematográfica de Rapunzel com o filme Enrolados, demonstrando assim que não há como ocorrer uma adaptação sem que o signo seja alterado, portanto, ocasionando a independência que uma obra tem sob a outra. Diante disso, alguns elementos pontuados trouxeram a questão dos recursos narrativos e seguidamente uma abordagem sobre o que viria a ser feminino e feminismo, pois a partir da adaptação torna-se perceptível a mudança do papel da mulher na história. Por essa razão, a figura feminina fora observada em ambas obras e partir do enredo, porém pode-se notar que no processo de adaptação a personagem Rapunzel traz valores característicos do feminismo, apresentando assim, a adaptação como uma nova leitura do conto, porém contextualizada pela época.

REFERÊNCIAS

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PINTO, Céli Regina Jardim. Feminismo, história e poder. Rev. Sociol. Polit. [online]. 2010, v. 18, n. 36, pp. 15-23. RAMALHO, Christiana (org.). Literatura e feminismo: propostas teóricas e reflexões críticas. Rio de Janeiro: Elo, 1999. SANTOS, R. C. Discurso feminino, corpo, arte gestual, as margens recentes, Revista Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, n. 104, jan-mar, 1991. STAM, Robert. Beyond fidelity: the dialogics of adaptation. In: NAMORE, James. Film adaptation. Rutgers Universaty Press, 2000. TONETTO, Maria Cristina (org.). O olhar feminino no cinema. Santa Maria: Centro Universitário Franciscano, 2011. VIEIRA, Josênia Antunes. A identidade da mulher na modernidade. Revista D.E.L.T.A., v. 21, São Paulo, 2005. XAVIER, Ismail. Do texto ao filme: a trama, a cena e a construção do olhar no cinema. In: PELLEGRINI, Tânia et al. Literatura, cinema e televisão. São Paulo: Senac São Paulo: Instituto Itaú Cultural, 2003. ZINANI, Cecil Jeanine Albert. Literatura e gênero: a construção da identidade feminina. Caxias do Sul: Educs, 2006.

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Resumo A partir dos dados apresentados pelo PNLD, é possível afirmar que o livro didático ainda é um dos instrumentos mais relevantes para a prática do ensino da língua portuguesa. Justifica-se, dessa forma, a opção que fizemos de analisar como a coleção Português: conexão e uso (2018) aborda a noção do discurso alheio. Discurso alheio que, na perspectiva tradicional de linguagem, é uma mera prática de transformação sintático-gramatical, ao contrário do que preceitua a Teoria Dialógica do Discurso (BAKHTIN, 2010, 2015, 02016; VOLOŠINOV, 2017), que concebe o discurso alheio como elemento constitutivo da linguagem, isto é, todos os enunciados são posicionamentos axiológicos frente a discursos, anteriormente, já realizados. Após a análise das atividades de leitura da coleção supracitada, podemos afirmar que, em linhas gerais, a coleção dá sequência à prática pedagógica tradicional do ensino e aprendizagem das vozes discursas em detrimento de uma prática, efetivamente, enunciativa. Palavras-chave: Ensino e aprendizagem; Livro didático; Discurso alheio; Dialogismo.


A NOÇÃO DE DISCURSO ALHEIO NA PRÁTICA PEDAGÓGICA: O LIVRO DIDÁTICO E AS VOZES DISCURSIVAS ALEXANDRE DUARTE GOMES1

INTRODUÇÃO O livro didático, ainda, constitui-se como um ponto de partida relevante para se ter uma noção de como esta sendo realizada a prática da língua portuguesa em nosso país. Tal fato tem sua razão de ser, haja vista a abrangência do Programa Nacional do Livro Didático2 (doravante PNLD), bem como as condições de trabalho de grande parte dos professores das redes públicas de ensino3. A união entre esses dois fatores traçam, efetivamente, o panorama que esse material didático tem nas escolas brasileiras.

1. Atualmente, atua como professor da rede pública do Município de Recife e do Governo do Estado de Pernambuco, é doutorando em Ciências da Linguagem pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP), endereço eletrônico: alex2gomes@hotmail.com. 2. Embora tenha surgido em 1985, foi em 1996, que esse programa assume o papel pelo qual ele se notabiliza até hoje: avaliar os livros didáticos que são distribuídos em toda rede pública de ensino. O PNLD abrange todas as escolas públicas do país. Esse programa teve seus objetivos ampliados, em 18 julho de 2017, por intermédio do Decreto n. 9099, que incorporou ao escopo desse programa aquele que era desempenhado pelo Programa Nacional Biblioteca na Escola (PNBE). Também, por meio do supracitado decreto, o PNLD passou a contemplar softwares e jogos educacionais, dentre outros materiais destinados a prática educacional. 3. As condições de trabalho da maioria dos professores é marca por uma enorme carga horária (SOUZA; LEITE, 2011), o que, na grande maioria das vezes inviabiliza a formulação de atividades por parte dos professores. Dessa forma, o livro didático, muito frequentemente, é o único material didático que os professores usam em sua prática pedagógica, o que os transformam em parte fundamental da dinâmica educacional em nosso país. 77


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É valido salientar que o livro didático, no bojo das transformações propostas pelos documentos parametrizadores da educação que surgiram a partir de 1997, tem apresentado uma mudança significativa em relação ao abandono de uma prática de ensino e aprendizagem tradicional e à adoção de uma perspectiva enunciativa (BUNZEN, 2007). Contudo, há, sempre, reflexões a serem realizadas sobre esses livros, uma vez que o processo de didatização de certas noções já foram passíveis de enormes equívocos, haja vista, por exemplo, o modo como foi levada à dimensão pedagógica a noção de gênero do discurso (FIORIN, 2017). Assim, como parte do esforço de reflexão constante que requer os livros didáticos, ora apresentamos este trabalho, cuja função precípua é constatar como a coleção Português: conexão e uso aborda a noção de discurso alheio. Para a execução de tal análise, tomamos como ponto de partida a concepção de linguagem enunciativa4, uma vez que é essa acepção de linguagem que permeia os documentos oficiais que regem a educação em nosso país. Vinculada à essa concepção de linguagem, usamos a noção de discurso alheio oriundo da Teoria Dialógica do Discurso (BAKHTIN, 2010, 2015, 2016; VOLOŠINOV, 2017). Frente ao que está exposto acima, organizamos este artigo da seguinte maneira: na primeira parte, discutimos sobre as categorizações propostas 4. Usamos, ao longo deste trabalho, a concepção de enunciação como contraponto da proposta tradicional de linguagem e tal noção não deve ser entendida não como uma única teoria, mas como teorias, que têm, em comum, as seguintes características: “a) a problematização da dicotomia langue/ parole (língua/fala) é condição de formulação das teorias dos autores incluídos na lingüística da enunciação, ou seja, todos, e cada um a seu modo, discutem o pensamento de Saussure; b) percebese nos autores preocupação em formular um domínio conceitual que inclua o termo enunciação, isto é, mesmo que cada um defina a seu modo enunciação, defini-la é um princípio; c) pela inclusão da discussão em torno da subjetividade na linguagem, os autores instauram relações diferenciada da lingüística com a filosofia da ciência: as noções de método e objeto são retomadas para dar lugar à reflexão sobre enunciação” (2001, apud FLORES & TEIXEIRA, 2012, p. 101 - grifos do autor). 78


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por Vološinov e Bakhtin para a noção do discurso alheio, bem como refletimos sobre possíveis formas de didatização de tal noção; na seção seguinte, expomos a concepção de ensino e linguagem que perpassa o Manual do Professor da coleção que analisamos; na terceira parte, apresentamos a análise das atividades que foram eram realizadas e que expressam a maneira como a coleção aborda o discurso alheio; na última parte, há a conclusão, que expõe nosso pensamento conclusivo frente às análises que realizamos.

O DISCURSO5 ALHEIO COMO ELEMENTO CONSTITUTIVO DA NATUREZA DA LINGUAGEM

Ao contrário da abordagem tradicional de linguagem, nas perspectivas enunciativas, o discurso alheio6 é algo que não pode ser visto como uma simples transformação sintática. E isso fica ainda mais evidente, se tomamos como base o paradigma enunciativo da Teoria Dialógica do Discurso. Nessa perspectiva, que tem em Bakhtin e Vološinov como seus principais representantes, a questão do discurso alheio é visto como constitutivo da linguagem. Assim o é, porque 5. Frente à variação de definições que existe em torno da noção de discurso, achamos adequado evidenciar em que perspectiva tomamos tal conceito. Assim, deixamos claro que, por uma questão de coerência teórica, seguimos, neste trabalho, a perspectiva bakhtiniana de discurso: “(...) a língua em sua integridade concreta e viva, e não a língua como objeto específico da linguística, obtido por meio de uma abstração absolutamente legítima e necessária de alguns aspectos da vida concreta do discurso” (BAKHTIN, 2010, p. 207). 6. No decorrer, deste trabalho, usamos algumas formas diferentes para nos referir ao discurso alheio: discurso do outro, discurso de outrem, palavra do outro, palavra alheia. Tal variação terminológica pode ser recolhida ao longo das diferentes traduções que a obra de Bakhtin e Vološinov apresentam. Optamos por usar as várias terminologias para fugirmos da repetição exaustiva da expressão “discurso alheio”. 79


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A compreensão não repete nem dubla o falante, ela cria sua própria concepção, seu próprio conteúdo; cada falante e cada compreendedor permanece em seu próprio mundo; a palavra faculta apenas o direcionamento, o vórtice do cone. Por outro lado, falante e compreendedor jamais permanecem cada um em seu próprio mundo; ao contrário, encontram-se num novo, num terceiro mundo, no mundo dos contatos; dirigem-se um ao outro, entram em ativas relações dialógicas (BAKHTIN, 2016, p. 113).

Ora, como nos ensina o autor russo, não existe compreensão passiva, todo ato de compreender dá-se por meio de um posicionamento axiológico. Sendo assim, o discurso alheio é, antes de qualquer coisa, uma atividade de posicionamento frente ao discurso alheio, pois um falante nunca reproduz o discurso de outrem, mas dá sua interpretação sobre a palavra alheia. E as relações entre as expressões das vozes discursivas podem assumir variadas expressões, como nos aponta Castro (2009)7:

7. O estudo que Vološinov realiza, em Marxismo e filosofia da linguagem, sobre as formas de uso do discurso direto, indireto e indireto livre tem como base, fundamentalmente, a prosa literária russa. A justificativa para tal opção do autor em relação aos textos literários está na seguinte afirmativa: “Nessa relação, o discurso artístico transmite com muito mais sensibilidade todas as mudanças na orientação sociodiscursiva mútua. Diferentemente do artístico, o discurso retórico não tem tanta liberdade no manuseio da palavra alheia, em razão da finalidade da sua orientação (VOLOŠINOV, 2017, p. 261). 80


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Quadro 1. Formas de estruturação das vozes do discurso, segundo Vološinov

Formas de relações entre o discurso direto, indireto e indireto livre

Discurso Indireto Analisador do Conteúdo (DIAC): pouco usado nas prosas literárias, uma vez que deixa muito marcado a voz do autor do discurso representador e do autor citado (ou representado), o que está em relevo é o conteúdo do discurso representado, e não a forma como ele foi elaborado.

Discurso Indireto Analisador da Expressão (DIAE): essa forma é exatamente o contrário do DDAC, pois, nessa forma de construção do discurso direto, a maneira de expressão do discurso reportado recebe aqui uma enorme atenção, põe-se em relevância as especificidades do discurso que está sendo apropriado.

Discurso Indireto Impressionista (DII): seria um meio termo entre o DIAC e o DIAE, uma vez que, nessa forma de uso do discurso indireto, o discurso representador dá apenas impressões (não representa com precisão) acerca dos temas e especificidades expressividades do discurso representado. Discurso Direto Preparado (DDP): é o tipo de discurso direto, que é antecedido por um discurso indireto que prepara o que vai ser dito.

Discurso Direto Esvaziado (DDE): esse tipo de discurso direto, que pode ser interpretado como uma forma radicalizada do DDP, caracteriza-se pelo um contexto narrativo que pormenoriza de tal forma a situação pela qual um dado discurso direto vai ser enunciado, que torna o discurso direto esvaziado. Discurso Citado Antecipado e Disseminado (DCADO): é o tipo de discurso que está na fala do narrador, mas que poderia estar entre “aspas”, pois poderia ser um discurso de uma das personagens, ou seja, é quando o narrador toma da consciência de uma personagem um ponto de vista e usa-o em sua própria fala.

Discurso Direto Retórico (DDR): uso de perguntas e exclamações retóricas, as quais podem se dar tanto a partir das personagens quanto do narrador. Discurso Direto Substituído (DDS): expressa o que pensa um personagem, mas quem o diz é o narrador ― esse discurso é quase um tipo do discurso indireto livre (DIL), não o sendo de fato, porque para que exista o DIL, faz-se necessário que haja a existência da interferência discursiva.

Fonte: quadro elaborado pelo autor a partir de Castro (2009). 81


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Por sua vez, Bakhtin estabelece, em Problemas de poética de Dostoièviski (2010), uma classificação (quadro 2) sobre as formas pelas quais o discurso do outro pode ser construído. Essa classificação de Bakhtin traz a marca da posição do autor russo frente ao papel dos estudos linguísticos em relação ao estudo do enunciado concreto, isto é, Bakhtin é fiel à sua divisão de tarefas, que cabe à Linguística, o estudo do sistema e à Translinguística, o estudo das relações dialógicas. Ou seja, ele se centra nas relações dialógicas, quando da elaboração da classificação que ele propõe sobre as formas de apropriação da palavra alheia8. Para ele, não há a possibilidade de discursivização sem que seja na dimensão do diálogo. Vejamos, finalmente, o esquema de classificação de bivocalidade que o autor propõe.

8. A relação dialógica deve ser entendida a partir da seguinte definição do próprio Bakhtin: “(...) as relações dialógicas são extralinguísticas. Ao mesmo tempo, porém, não podem ser separadas do campo do discurso, ou seja, da língua como fenômeno integral concreto. A linguagem só vive na comunicação dialógica daqueles que a usam. É precisamente essa comunicação dialógica que constitui o verdadeiro campo da vida da linguagem. Toda a vida da linguagem, seja qual for o seu campo de emprego (a linguagem cotidiana, a prática, a científica, a artística, etc.), está impregnada de relações dialógicas. Mas a linguística estuda a “linguagem” propriamente dita com a lógica específica na sua generalidade, como algo que torna possível a comunicação dialógica, pois ela abstrai consequentemente as relações propriamente dialógicas (2010, p. 209 - grifos do autor). 82


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Quadro 2. Classificação bakhtiniana das formas de apropriação da palavra alheia Classificação de formas bivocais

Discurso direto imediatamente orientado para o seu referente como expressão da última instância semântica do falante Discurso objetificado (discurso da pessoa representada)

Com predomínio da definição sociotípica Com predomínio da precisão caracteriológica-individual Discurso bivocal de orientação única

Diferentes graus de concretude

estilização

narração do narrador

discurso não objetificado do herói-agente (em parte) das ideias do autor Icherzählung

Discurso orientado para o discurso do outro (discurso bivocal)

paródia em todos as suas gradações Discurso bivocal de orientação vária

narração parodística

Icherzählung parodístico

discurso do herói parodisticamente representado

qualquer transmissão da palavra do outro com variação no acento

Reduzindo-se o grau de concretude tendem para a fusão das vozes, isto é, para o discurso do primeiro tipo. Havendo redução do grau de concretude e ativação da ideia do outro, tornam-se internamente dialógicas e tendem para a decomposição em dois discursos (duas vozes) do primeiro tipo.

Fonte: elaborado pelo autor a partir de Bakhtin (2010). 83


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Tanto a classificação de Vološinov quanto a de Bakhtin têm a função de traçar um panorama de como era realizado, nas expressões literárias que lhes eram contemporâneas, o uso das vozes do discurso. A análise das vozes discursivas nos textos não literários, embora sua necessidade tenha sido expressa em algumas citações, não foram objeto de qualquer tipo de análise por parte dos dois autores russos9. De fato, eles apenas lançaram indicações, como a que transcrevemos abaixo. É necessário observar o seguinte: incluído no contexto, o discurso do outro sempre sofre certas mudanças semânticas por mais precisa que seja a sua transmissão. O contexto que moldura o discurso do outro cria um fundo dialogizante cuja influência pode ser muito grande. Através dos meios correspondentes de molduragem podem-se conseguir transformações muito substanciais de enunciado alheio citado com precisão. Um polemista de má-fé e finório sabe perfeitamente que fundo dialógico subpor às palavras de seu sentido. Por meio da influência contextual é

9. Coube a pesquisadores mais recentes a função de desenvolver estudos sobre as formas de discurso alheio nos textos não literários. Destaque deve ser dado a Jaqueline Authier-Revuz, que, através de seus estudos que envolvem a teoria de Benveniste, o conceito de sujeito advindo de Lacan e da Teoria Dialógica do Discurso, desenvolveu importantes reflexões sobre as formas de apropriação da palavra de outrem. A autora tem como ponto de partida de seu pensamento a noção de modalização autonímica, que vem a reboque seu estudo sobre o discurso citado e as aspas. A partir da distinção fundamental entre signo-padrão e signo autônimo, a autora reflete sobre a homogeneidade mostrada e a constitutiva (AUTHIER-REVUZ, 1990). Segundo Flores & Teixeira, podemos compreender da seguinte maneira a diferença entre as duas formas de heterogeneidade: “As formas que chama de heterogendeidade mostrada são linguisticamente descritíveis — discurso direto, discurso indireto, aspas, glosas — e contestam a homogeneidade do discurso, inscrevendo o outro na linearidade. Já a heterogeneidade constitutiva, não marcada em superfície, é princípio que fundamenta a própria natureza da linguagem” (2012, p. 74). Em trabalhos mais recentes (AUTHIER-REVUZ, 2018), a autora optou por trocar a nominação de “discurso reportado” por “representação do discurso outro”. No entanto, essa troca não representa um abandono de paradigma, pelo contrário, tal mudança dá o tom do aprofundamento do discurso alheio na reflexão da autora. Não nos aprofundamos nas noções elaborados pela autora, porque esse não é o escopo desse trabalho, mas as indicações contidas nesse rodapé é um bom início de aproximação ao pensamento de Authier-Revuz. 84


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particularmente fácil aumentar o grau de objetificação do discurso do outro e provocar reações dialógicas ligadas a essa objetificação; assim, é muito fácil tornar cômico o mais sério enunciado. Inserida no contexto do discurso, a palavra do outro não entra em contato mecânico com o discurso que a moldura, mas numa unificação química (no plano semântico e expressivo); o grau de influência dialogizante recíproca pode ser imenso (BAKHTIN, 2015, p. 133).

Como podemos perceber, não só na citação acima, mas também nos dois quadros de classificação acima expostos, as formas de discurso alheio descortinam uma multiplicidade enorme de possibilidades de práticas sociodiscursivas. No entanto, a prática escolar desse fenômeno linguístico parece não contemplar essa potencialidade. Assim pelo menos era, até início dos anos 2000, se levarmos em conta o trabalho de Cunha (2006). A autora, após fazer a análise dos principais livros didáticos da época, chega à conclusão que, de maneira geral, esses livros abordam o discurso alheio numa perspectiva em que o objetivo primordial era fazer o aluno dominar, unicamente, os elementos que concernem à transformação de uma voz discursiva para outra, sem que fossem problematizadas as questões relativas ao posicionamento axiológico de quem retoma o discurso de outrem10.

10. O trabalho que fazemos referência de Cunha acima, não foca unicamente a questão do discurso alheio. Em tal trabalho, a autora analisa, numa perspectiva da Teoria Dialógica do Discurso, como os livros didáticos abordam a questão estilística e, por consequência, o fenômeno do discurso alheio é contemplado nessa discussão, porque na perspectiva dialógica, esse fenômeno faz parte da natureza da linguagem. 85


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É evidente que, ao início dos anos 2000, os impactos das propostas dos documentos oficiais parametrizadores da educação brasileira (BRASIL, 1998, 1999) ainda não tinham produzido, plenamente, os efeitos esperados nos livros didáticos. Contudo, atualmente, não mais se justificaria que ainda houvesse livros didáticos que trouxessem uma maneira marcadamente tradicional de abordar a noção de discurso de outrem. Mas, de fato, os livros didáticos apropriaram-se dos avanços propostos pelos estudos referentes ao discurso alheio?

O MANUAL DO PROFESSOR DA COLEÇÃO PORTUGUÊS. CONEXÃO E USO: O CONCEITO DE APRENDIZAGEM E LINGUAGEM

Como qualquer gênero do discurso, o livro didático apresenta seus aspectos constitutivos (forma composicional, conteúdo temático e estilo) atrelados à sua finalidade discursiva11. Sendo assim, a diversidade de gêneros intercalados que o compõem, são organizados com o intuito de fazer cumprir a intencionalidade discursiva pela qual esse gênero caracteriza-se: ensinar um conjunto de conhecimentos que são tomados de teorias diversas e transpostos para a realidade pedagógica. O Manual do Professor que acompanha, atualmente, os livros didáticos, tornou-se uma exigência do PNDL, porque passou-se a compreender que não cabe ao professor descobrir quais pressupostos teóricos estão por trás das atividades que envolvem os diversos eixos pelos quais o ensino e aprendizagem da língua portuguesa se configura em um determinado livro. Contudo, 11. Estamos aqui, retomando a posição defendida por Bunzen e Rojo (2008) de que o livro didático é um gênero do discurso. 86


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não podemos dizer que os manuais que acompanham as coleções aprovadas pelo PNLD possam ser interpretados como a explicitação cabal do que é posto nas atividades direcionadas ao aluno. De fato, nem sempre as atividades estão em concordância com o que está vinculado como base teórica no manual12. Quanto ao Manual do Professor da coleção Português: conexão e uso, é possível afirmar que ele traz um rico detalhamento das bases teóricas e metodológicas pelas quais, segundo as autoras, as atividades que constituem a coleção são fundamentadas. Dois pontos basilares do Manual foram-nos objeto de mais pormenorizada análise: as noções de aprendizagem e de língua/linguagem. No tocante à noção de aprendizagem, há a explicitação que a coleção segue o paradigma interacionista, ou seja, tem na compreensão que, o desenvolvimento física não é suficiente para que haja aprendizagem, faz-se necessário, sempre, que haja o contato cultural para que ocorra a aquisição do conhecimento. Em relação ao desenvolvimento da língua/linguagem, a coleção, de forma coerente com a opção que faz do paradigma de aprendizagem, faz uso do modelo sociointeracionista de língua/linguagem para pôr em prática o ensino e aprendizagem da língua portuguesa. Assim sendo, os eixos de leitura, produção textual, reflexão sobre a língua e oralidade estão conectadas com a “concepção de linguagem que tem a língua como fenômeno integrado ao universo cultural e histórico-social.” (DELMANTO; CARVALHO, 2018). 12. Como exemplo de não concordância entre o que indica um manual do professor e as atividades direcionadas ao aluno, podemos levar em consideração o trabalho de Gomes (2017) que analisou a coleção Projeto Teláris: Português e demonstrou que, embora, no Manual do Professor, a coleção explicite que usa o paradigma bakhtiniano, nas atividades direcionadas ao aluno, assim não se concretiza completamente. De fato, ao menos naquilo que foi o foco de Gomes no supracitado trabalho, os textos verbo-visuais, o livro está longe de seguir plenamente o paradigma bakhtiniano. Por isso, afirmamos acima a necessidade de não levar como algo inquestionável o que é posto em tal tipo de manual. 87


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É inequívoco que as bases teóricas que o Manual do Professor da coleção que estamos analisando é, plenamente, de acordo com o que está exposto nos documentos oficiais parametrizadores da educação brasileira. O que buscamos saber é se o que está exposto no Manual se realiza na abordagem que é feita, nas atividades voltadas aos alunos, quanto ao conceito de discurso alheio.

ANÁLISE DO CORPUS: A ABORDAGEM DO DISCURSO ALHEIO EM PORTUGUÊS: CONEXÃO E USO

Nossa análise consistiu em busca compreender como, em atividades propostas aos alunos, a coleção aborda a questão do discurso alheio. Para isso, levamos em consideração qualquer tipo de alusão à noção de vozes do discurso. Ou seja, tudo que se referia à relação entre discurso direto e indireto, bem como ao indireto livre, à paráfrase, à parodia, à retextualização, à citação, ao argumento de autoridade seria objeto de nossa observação. Nem todos os fenômenos foram encontrados, o que pode ser explicado pelo fato que alguns desses fenômenos linguísticos podem ter sido interpretados, pelas autoras, como voltados ao ensino médio (a coleção analisada é voltado ao ensino fundamental ― volumes do 6º ao 9º ano). Frente ao que encontramos ao longo dos quatro livros, trouxemos um exemplo de cada volume para embasar nossa discussão. O primeiro exemplo é do 6º ano. É proposto aos alunos que leiam os dois primeiros capítulos de um romance. Após a leitura, segue uma atividade de compreensão textual, que é constituída por duas partes Explorando o texto e Recursos expressivos. A quinta questão da parte Recursos expressivos envolve a relação entre o discurso direto e indireto. Vejamos o exemplo que está exposto na figura 1. 88


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Figura 1. Atividade da coleção Português: conexão e uso

Fonte: Português: conexão e uso, v. 6º ano, p. 18-19. Disponível em: https://educacaobasica. editorasaraiva.com.br/pnld/edital/pnld-2020/obra/3763484/

A questão acima, como podemos observar, pontua, simplesmente, as diferenças entre o discurso direto e indireto, sem que haja qualquer tipo de proposta realmente enunciativa. Há simples a abordagem das vozes numa perspectiva meramente sintático-gramatical. Poderíamos delegar esse modo de abordar as vozes do discurso, na questão acima, à perspectiva da Zona de 89


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desenvolvimento proximal de Vigotski13, ou seja, que, no 6º ano, as autoras optaram por fazer uma abordagem do assunto de forma bastante “introdutória”, apenas privilegiando aspectos formais e que, na sequência da coleção, nos volumes destinados aos anos posteriores haveria um processo de aprofundamento do assunto. Mas não é exatamente o que acontece. Vejamos a questão abaixo que está no volume direcionado ao 7º ano. Figura 2. Atividade da coleção Português: conexão e uso

Fonte: Português: conexão e uso, v. 7º ano, p. 173. Disponível em https://educacaobasica. editorasaraiva.com.br/pnld/edital/pnld-2020/obra/3763485/

13. De fato, no Manual do Professor da coleção, há a seguinte afirmação quanto a relação do conceito de aprendizagem adotado nos quatro livros da coleção e a perspectiva de aprendizagem de Vigotski: “Nesta coleção, procuramos mover-nos tendo em vista a zona proximal de desenvolvimento, de modo a fazer propostas que levem em conta a interação dos estudantes com outros estudantes, com o professor e com a realidade circundante.” (DELMANTO; CARVALHO, 2018, p. VIII). 90


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Na questão acima que faz parte das atividades de compreensão referentes à leitura de um conto popular, podemos perceber que, assim como a questão que foi retirada do volume destinado ao 6º, essa questão também está voltada à prática do mero reconhecimento da diferença entre o discurso direto e do indireto. Como parte disso, cabe ao alunos indicar quais verbos são usados na voz que é analisada (fragmento 1, voz direta; fragmento 2, voz indireta). No passo seguinte, cabe, ao aluno, transformar um discurso em outro (essa prática é bastante característica da prática tradicional do ensino e aprendizagem da língua: primeiro reconhece, depois, repete). O último passo dessa atividade, que é determinar qual das vozes aproxima mais o leitor da personagem, tem, também, a função de fazer, simplesmente, o aluno reconhecer um determinado fenômeno linguístico. Quanto ao box que acompanha a atividade, não tem outra função a não ser reproduzir a definição clássica do discurso direto e indireto. Quanto a atividade abaixo que retiramos do volume do 8º ano, versa sobre o assunto paródia. Como podemos perceber na definição que o livro traz, a paródia é vista como um gênero do discurso que traz uma natureza que se caracteriza pela retomada da palavra alheia. Tal definição torna a paródia como um exemplo impar da posicionamento frente a palavra alheia, como se nas demais práticas comunicativas, também, não estivéssemos a buscar a imitação, a recriação, a destruição, a concordância (parcial ou total) ou discordância (parcial ou absoluta) de alguma forma composicional, de um conteúdo temático e/ou de um estilo de algum texto anteriormente produzido.

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Figura 3. Atividade da coleção Português: conexão e uso

Fonte: Português: conexão e uso, v. 8º ano, p. 163. Disponível em https://educacaobasica. editorasaraiva.com.br/pnld/edital/pnld-2020/obra/3763486/

O último exemplo que estamos trazendo é do volume destinado ao 9º ano da coleção. A atividade poderia ser um exemplo de um uso enunciativo da noção do discurso do outro, mas não o é. Vejamos as razões disso.

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Figura 4: Atividade da coleção Português: conexão e uso

Fonte: Português: conexão e uso, v. 9º ano, p. 133. Disponível em https://educacaobasica. editorasaraiva.com.br/pnld/edital/pnld-2020/obra/3763487/

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De fato, a questão poderia ter um encaminhamento bastante producente para a compreensão do uso enunciativo do assunto, caso fosse estabelecido que a apropriação da palavra alheia é um ato que tem a função de contribuir para a construção de determinadas finalidades discursivas. No entanto, a questão propõe o ensinamento que cabe, unicamente, aos verbos construir determinadas construções de sentido. Ou seja, o verbo tem a capacidade de dotar um enunciado do sentido de ironia, dúvida, julgamento etc., por isso, os alunos devem fazer uma tabela com verbos, que há de ser usada, todas as vezes, que se quiser construir o sentido pretendido. Ora, o verbo por si só não é capaz de construir um sentido de um enunciado. Então, como fazer tabelas de construção de sentido em função de determinados verbos? O contexto é, claramente, desprezado na atividade, embora a construção da tabela seja realizada em função de enunciados retirados de situações concretas. Mais uma vez, a coleção define um conceito, depois, propõe que o aluno reconheça, através de exercícios, o fenômeno linguístico definido e, para finalizar o procedimento pedagógico, propõe que o aluno repita a fórmula “indicada” para atingir o mesmo efeito que determinada situação discursiva estudada tinha. Uma prática que honra a mais sublime das formas tradicionais de ensino da língua.

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CONCLUSÃO A análise que fizemos demonstra que a coleção está, em linhas gerais, voltada para uma pedagogia da língua portuguesa que obedece aos princípios da enunciação. Isso, no entanto, não impede que encontremos, também, fortes traços da perspectiva tradicional da linguagem. Ou seja, a coleção oscila entre duas realidades teóricas diferentes. A noção do discurso alheio está dentre os aspectos que a coleção aborda a partir da forma tradicional de linguagem. Os exemplos retirados da coleção demonstram que há uma notória tendência, nos volumes analisados, de tratar as questões relativas ao discurso alheio como uma mera operação sintático-gramatical. Assim, podemos constatar várias atividades que buscam exercitar a capacidade dos alunos de transformar o discurso direto no indireto (e vice-versa). Sem dúvida, é pouco producente a prática que a coleção que foi analisada faz da retomada do discurso alheio, pois oblitera uma aprendizagem de natureza enunciativa desse fenômeno linguístico, que, segundo Bakhtin (2010, 2015, 2016), constitui a natureza própria da linguagem, isto é, não existe prática discursiva sem o já-dito. Enfim, a prática pedagógica que não contempla uma perspectiva discursiva da retomada da palavra de outrem não propicia ao educando o conhecimento necessário para que se possa ler e produzir adequadamente os reflexos e refrações do mundo em que vivemos.

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REFERÊNCIAS AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Heterogeneidade(s) enunciativa(s). Cadernos de Estudos Linguísticos, Campinas, v. 19, p. 25-42, jul/dez, 1990. AUTHIER-REVUZ, Jaqueline. Representação do discurso outro e categorização metalinguageira. In: Dóris de Arruda C. da Cunha; Evandra Grigoletto; Suzana Leite Cortez. (org.). Representação dos dizeres na construção dos discursos. Campinas, SP: Pontes Editores, 2018. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016. BAKHTIN, Mikhail. Diálogo I: a questão do discurso dialógico. In: BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. São Paulo: Editora 34, 2016. BAKHTIN, Mikhail. Teoria do romance I: a estilística. São Paulo: Editora 34, 2017. BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino fundamental. Brasília: Ministério da Educação, 1998. BRASIL. Ministério da Educação, Secretaria de Educação Básica. Parâmetros curriculares nacionais: ensino médio. Brasília: Ministério da Educação, 1999. BUNZEN, Clecio; ROJO, Roxane. Livro didático de língua portuguesa como gênero do discurso: autoria e estilo. In: Maria da Graça Costa Val; Beth Marcuschi (org.). Livros didáticos de língua portuguesa: letramento e cidadania. Belo Horizonte: Ceale; Autêntica, 2008. CASTRO, Gilberto de. Formas sintáticas de enunciação: o problema do discurso citado no círculo de Bakhtin. In: Beth Brait. Bakhtin e o círculo. São Paulo: Contexto, 2009. CUNHA, Dóris de Arruda Carneiro da. A estilística da enunciação para o estudo da prosa literária no ensino médio. In: Clecio Bunzen; Márcia Mendonça (org.). Português no ensino médio e formação do professor. São Paulo: Parábola Editorial, 2006. DELMANTO, Dilata; CARVALHO, Laiz B. de. Português: conexão e uso. Fundamental. Material de divulgação. São Paulo: Editora Saraiva, 2018. FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. 2 ed. São Paulo: Contexto, 2017. FLORES, Valdir do Nascimento; TEIXEIRA, Marlene. Introdução à linguística da enunciação. São Paulo: Contexto, 2012. 96


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GOMES, Alexandre Duarte. Os gêneros do discurso de natureza imagética no livro didático: uma visualidade dialógica? In: Sonia Sueli Berti-Pinto; Miriam Bauab Puzzo (org.). Cadernos de linguística: pesquisa em movimento. São Paulo: Editora Terracota, 2017, v. 7, p. 75-94. SOUZA, Aparecida Neri de; LEITE, Marcia de Paula. Condições de trabalho e suas repercussões na saúde dos professores da educação básica no Brasil. Educação & Sociedade: Revista de Ciência da Educação, Campinas, v. 32, n. 11, p. 1105-1121, out-dez, 2011. VOLÓCHINOV, Valentin. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Editora 34, 2017.

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Resumo A primeira tradução literária conhecida foi realizada por volta de 250 a.C., quando Lívio Andrônico, chamado “o primeiro tradutor europeu”, traduziu ao latim o poema épico Odisseia (séc. IX a.C.), de Homero. (OUSTINOFF, 2011) Desde então, tem-se perguntado se, de fato, é possível traduzir literatura e com quais princípios. Este artigo traz à tona alguns debates recorrentes acerca da tradução literária como sentido vs. forma, tradução do estilo, ideologia na tradução etc. Seu objetivo é incentivar os primeiros passos daqueles que desejam começar a traduzir literatura. Para isso, realiza uma breve pesquisa bibliográfica fundamentada em tradutores como Arrojo (2007), Rónai (2012), Oustinoff (2011), Schnaiderman (2015) e outros. Espera-se despertar o interesse pela tradução literária, bem como sanar as dúvidas primevas de toda vereda tradutológica. Palavras-chaves: Desconstrução; Estilo; Ideologia na tradução; Sentido vs. forma; Tradução literária.


A TRADUÇÃO LITERÁRIA: QUESTÕES INDISPENSÁVEIS PARA COMEÇAR1 WENDELL BATISTA DOS SANTOS2

INTRODUÇÃO Este artigo tem por objetivo discorrer sobre algumas das principais questões em torno da tradução literária como a desconstrução, a tradução do estilo, a ideologia na tradução, sentido vs. forma etc. Por extensão, visa instigar aqueles que desejam começar a traduzir literatura, seja ela em prosa (romances, HQ, novela, conto, crônica, teatro etc.) ou em poesia. Em vista da diversidade de concepções que podem ser encontradas sobre um mesmo assunto dentro da Tradução, este trabalho, exclusivamente bibliográfico, delimita algumas ideias para tomá-las como referência ao longo de seu corpus ou, em certos casos, confronta as divergências com o propósito de que o leitor tire suas próprias conclusões preliminares. Se a língua é a principal ferramenta de comunicação humana, o que dizer da tradução? Na literatura, porém, não se traduz a mensagem como se traduz um bilhete sobre ameixas deixado por um hóspede ao seu anfitrião. (ARROJO, 2007) Do contrário, há de se considerar a forma (ou “arquitetu1. Este artigo contém recortes do TCC intitulado Retratos da Tradução em O Retrato de Dorian Gray, apresentado ao Departamento de Letras da Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE) no ano de 2017 e apresentado na Jornada Tradufire em dezembro do mesmo ano, sob a orientação da Prof.ª Ma. Márcia Modesto. 2. Formado em Letras (Português & Inglês) pela FAFIRE, pós-graduando em Língua Inglesa: Metodologia da Tradução na mesma instituição. Professor de língua inglesa na rede de ensino Estado de Pernambuco. Revisor e tradutor. Contato: letras.wbs@gmail.com. Curriculum Lattes: http://lattes. cnpq.br/0925620946264559. 99


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ra”) como o texto se apresenta e, a depender dos critérios e propósitos da tradução, realizar escolhas quanto ao que vai e ao que não vai se levar para a língua de chegada. Questões como estas corporificam o trabalho, a começar pela origem das línguas sob uma perspectiva mitológica, quando relata que diversos povos antigos desenvolveram sua explicação para a primeira diáspora. Apresenta, também, a ideia da tradução, ainda tão distante da realidade do ofício quando limitada às definições do dicionário. Em seguida, apresenta os principais assuntos acerca da tradução literária, conforme supracitados nesta introdução.

NOSSA LÍNGUA ERA UMA QUANDO PARTIMOS DE TULÁN. AI! ESQUECEMOS NOSSA FALA

Para os hebreus, até certo ponto da história, a humanidade falou uma só língua, ou um só vocabulário. Por causa do desejo do rei Ninrode por poder, conta-se que uma intervenção divina veio a causar a confusão da língua original para que o projeto de construção da torre que alcançaria os céus fosse descontinuado e o desejo que Javé (heb. ‫הוהי‬, YHWH) tinha de povoar a terra se cumprisse através da dispersão, conforme relato bíblico de Gênesis 11:1-9. O mito da chamada Torre de Babel não é uma exclusividade do povo hebreu. A tradição dos povos birmaneses, africanos, maias, persas, chineses e outros também narram a mesma história sob a perspectiva de suas próprias culturas:

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“Houve uma época em que todas as pessoas moravam num grande povoado e falavam apenas uma língua”, diz uma história contada por uma tribo das montanhas, em Myanmar. Enquanto faziam uma grande torre, os construtores “aos poucos passaram a ter diferentes costumes e diversos modos de falar e agir, e [com o tempo] se espalharam por toda a terra”. Lendas similares são encontradas entre povos indígenas da África, Ásia Oriental, México e outros lugares. (WATCH TOWER BIBLE AND TRACT SOCIETY OF PENNSYLVANIA, 2013, p. 12)

Ciente disso é que Steiner (1998) afirma que não há civilização que não tenha a sua versão de Babel. A revista Superinteressante (31/05/1990) corrobora:

As lendas chinesas contam que a divisão da língua original fez com que o universo “se desviasse do caminho certo”. Na mitologia persa, Arimã, o espírito do mal, pulverizou a linguagem dos homens em trinta idiomas. E um dos livros sagrados dos maias, o Popol Vuh, lamenta: “Aqui as línguas da tribo mudaram — sua fala ficou diferente. (…) Nossa língua era uma quando partimos de Tulán. Ai! Esquecemos nossa fala”.

Estas são, possivelmente, algumas das explicações mais primitivas para a diversidade das línguas. Elas ensinam que, em algum momento da história, a humanidade falou “um só idioma e um só conjunto de palavras” (Gênesis 11:1, Tradução do Novo Mundo da Bíblia Sagrada), “apenas uma língua”, uma “língua original” que deu origem a milhares de manifestações linguísticas que ainda existem em constante transformação3.

3. De acordo com o catálogo Ethnologue: Languages of the World, estima-se que existam 7.111 línguas vivas até então conhecidas. (EBERHARD, SIMONS e FENNIG, 2019) É importante saber que muitas outras ainda não puderam ser catalogadas por se encontrarem em comunidades isoladas, além das línguas mortas (sem falantes nativos) e extintas (sem falantes nativos e que não são mais possíveis de serem aprendidas). 101


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Mitos a parte, a tradução é inerente ao ser humano, pois que a própria língua (principal instrumento de comunicação humana) é uma tradução dos processos internos. (SCHNAIDERMAN, 2015) A todo instante, os falantes de uma língua reformulam frases e ideias dentro da mesma língua a fim de que outros os compreendam e isto também é uma forma de tradução. Dessa forma, pode-se dizer que sempre existiu tradução. Contudo, na modalidade escrita e no tocante à tradução em geral, ao que se sabe, “[…] no II milênio a.C., na Ásia Menor, assírios, babilônios e hititas realizavam um trabalho especializado de escritura: traduziam a correspondência oficial dos estados.” (MOUNIN, 1965, p. 30 apud FURLAN, 2001, p. 11) Estas talvez tenham sido as primeiras traduções juramentadas da história. Traduzir, do verbo latino traducere, “significa ‘conduzir ou fazer passar de um lado para o outro’, algo como ‘atravessar’.” (CAMPOS, 1986, p. 7) Quando o texto-fonte é oralizado ou sinalizado, existe a “interpretação” (do português para a língua brasileira de sinais [libras], por exemplo). (CAMPOS, 1986) Esta deve ser a definição mais simples oferecida para a palavra. O ofício da tradução, por outro lado, mostrar-se-á, no mínimo, distante do que rezam os dicionários ou enciclopédias. Jakobson postulou pelo menos três tipos de tradução: intralingual, quando se traduz dentro de uma mesma língua (português coloquial ao português padrão e vice-versa em decorrência da variação linguística, por exemplo); interlingual, quando de uma língua a outra (português brasileiro ao espanhol, por exemplo); e intersemiótica, quando de uma linguagem verbal a outra não-verbal (da crônica às artes plásticas, por exemplo). (BERGAMANN e LISBOA, 2008; OUSTINOFF, 2011) Assim, perguntar-se o que é tradução e conceder uma resposta dicionarizada é como retirar o espírito vivente de uma tarefa que é sempre desafiadora e imprevisível nos seus 102


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fins. Por isso, Cardozo (2014, p. 10) responde (e com espírito) que “Hoje, tradução é uma e muitas coisas, ao mesmo tempo.” Porque as línguas (e, por extensão, linguagens) são muitas é que existe, também, a tradução. Esta, contudo, não é sua única razão de existir e representa uma definição relativamente ingênua para explanar o ofício do tradutor. A história da tradução revela tanto seu amadurecimento enquanto ciência quanto traz à luz os âmbitos pelos quais passou atendendo necessidades no comércio, na educação, no entretenimento, na religião, na política etc.

A TRADUÇÃO LITERÁRIA (OU POÉTICA)

O tradutor de literatura, assim como praticamente qualquer outro tradutor, não atua simplesmente com conversão de palavras (dessa forma, qualquer plataforma de tradução substituiria com sucesso o olhar humano), mas isto constitui apenas uma pequena fração de seu trabalho. É, talvez, por causa da essência singular da literatura que certos escritores não aprovam a tradução literária sob premissa de que a traduzibilidade de um texto é indício de inferioridade do trabalho. (ARROJO, 2007) “Para muitos, a tradução de poesia é teórica e praticamente impossível.” Segundo creem, a poesia tem uma “alma” ou “espírito” intraduzível. (ARROJO, 2007, p. 26, 27) Ao propor uma atividade para estudantes estrangeiros sobre encontrar os significados de um poema, Alexander (1963, p. 4) leva o leitor a refletir sobre as diversas opiniões que podem ser compartilhadas na classe:

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The answers you heard may have helped you to understand how a single poem may have different meanings for different people. Some of the answers given may have been quite wrong. But you must have noticed that none of the “right” answers were exactly the same.4

Se um trabalho semelhante fosse proposto a uma equipe de tradutores de certo departamento de tradução de uma universidade brasileira cuja formação cultural é completamente distinta daquela dos poetas ingleses do século XIX, não seria possível dizer que tais tradutores não fossem capazes de realizar uma tradução bem-sucedida se não conseguissem entender o significado do poema na primeira leitura ou não entrassem num consenso imediato. Para exemplificar esta imersão ou mergulho necessários, o escritor negro Salgado Maranhão disse em entrevista que sua pele entra no poema como parte de sua identidade. Doyle (2014) questiona, pois seu tradutor não é um homem negro. Maranhão, então, responde: “Yes, of course, but he entered, he drove in toward, or immersed himself in that aspect of my being.”5 (DOYLE, 2014, p. 228) Alexis Levitin, seu tradutor, acrescenta: “Constance Garnett translated all of Tostoy, most of Dostoyevsky, and she never was a man. […] these are interesting philosophical and political questions.”6 (DOYLE, 2014, p. 228) Assim, é vital ao tradutor entregar-se à pesquisa acerca da obra e dos autores, além de possuir o conhecimento necessário das línguas a que se 4. “As respostas que você ouviu podem tê-lo ajudado a entender como um único poema pode ter diferentes significados para diferentes pessoas. Algumas das respostas dadas podem estar completamente erradas. Mas você deve ter notado que nenhuma das respostas “certas” são exatamente as mesmas.” (a menos que haja outra indicação, todas as traduções são do autor) 5. “Sim, claro, mas ele entrou, ele levou adiante, ou mergulhou neste aspecto do meu ser.” 6. “Constance Garnett traduziu tudo de Tostoy, a maioria de Dostoyevsky, e ela nunca foi um homem … essas são questões filosóficas e políticas interessantes.” 104


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propõe traduzir (não apenas dos elementos linguísticos, como também culturais). A investigação cultural é indispensável, pois certas particularidades da cultura local manifestas na língua-fonte podem não fazer sentido ou assumir novas perspectivas se traduzidas ao “pé da letra” para a língua-alvo, seja ela estrangeira ou autóctone. Traduzir e ressignificar a literatura, pois aberta a releituras, é possível e está muito mais inclinada à transmissão da mensagem e da musicalidade do que para a fidelidade ao vocabulário do texto, ou seja, simples conversão de palavras. Ainda que a tradução literal ou palavra por palavra permitam uma maior aproximação do texto original, estas não garantem sempre o sucesso na transposição do sentido na tradução interlingual (o que pode ser visto através da tradução interlinear, também chamada lexical). Uma das questões mais inocentes da tradução literária é, possivelmente, a dicotomia sentido vs. forma, uma vez que a tradução, desde sempre e na atualidade, atende a propósitos diversos e que é sabido por todos que uma tradução apenas do sentido incorre no risco da descaracterização da estética literária, conforme pode ser visto no quadro abaixo, em tradução de Augusto de Campos.

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Texto original

Quadro 1. A rosa doente, de William Blake (1757-1827) Tradução livre

Tradução literária

The Sick Rose

A Rosa Doente

A Rosa Doente

Has found out thy bed Of crimson joy, And his dark secret love Does thy life destroy.

Encontrou a tua cama De alegria carmesim, E seu obscuro segredo de amor A tua vida destrói.

Ao velado veludo Do fundo do teu centro: Seu escuro amor mudo Te rói desde dentro.

O Rose thou art sick! The invisible worm That flies in the night In the howling storm,

Ó Rosa, estás doente! O verme invisível Que voa à noite, Na tempestade vociferante,

William Blake (posta em verso).

Tradução de: Wendell S.

Ó Rosa, estás doente! Um verme pela treva Voa invisivelmente O vento que uiva o leva

Tradução de: A. de Campos.

Fontes: Alexander (1963, p. 3); Aguilar (2004).

Na segunda coluna, a tradução feita especialmente para este artigo busca preservar o sentido do poema, mas é perceptível o quando do poema se perdeu na tradução. Por outro lado, Augusto de Campos não apenas preservou o sentido, como também a sua estética na reprodução da riqueza vocabular, a forma, o ritmo de leitura e a rima (ABCB). Claudio Abramo (2011, p. 13 apud TÁPIA, 2014, p. 61), ensaísta e tradutor de O corvo: gênese, referências e traduções do poema de Edgar Allan Poe, em defesa de que a linguagem serve para comunicar, considera irrazoável a declaração de que melodia e significado em uma tradução devem existir paralelamente:

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“a linguagem serve para comunicar ideias”, e, portanto, “traduzir (poesia ou qualquer outro tipo de texto) conferindo-se predominância a sons e ritmos e subordinando-se a semântica aos caprichos do metro constitui uma desconsideração consciente quanto ao que é mais importante”.

A desconstrução, uma reflexão filosófico-linguística criada por Jacques Derrida, defende que “O texto (escrito e falado) trama significantes e o sentido lhe será atribuído pelo próprio produtor do texto e pelo seu leitor/ouvinte. Deslocar esse texto para outro momento, para outro leitor produzirá outro sentido.” (BERGMANN e LISBOA, 2008, p. 55) A mesma ideia é compartilhada por linguistas como Kleiman (1997), Koch (2000) e Antunes (2019, p. 202), segundo a qual “Os sentidos de um texto […] resultam de uma confluência de elementos que estão, simultaneamente, dentro e fora dele.” Segundo Rónai (2012, p. 22), “As inúmeras divergências estruturais existentes entre a língua do original e a tradução obrigam o tradutor a escolher, de cada vez, entre duas ou mais soluções, e em sua escolha ele é inspirado constantemente pelo espírito da língua para a qual traduz.” Além disso, Rónai (2012) acredita que simples consulta ao dicionário não é suficiente para uma boa tradução. “Ernesto Sábato chega a afirmar: ‘A rigor, qualquer tradução é falsa, não existem equivalentes exatos’, ao que [Jorge Luis] Borges replica: ‘Isto é culpa dos dicionários, que fizeram acreditar na existência de equivalentes, o que não é verdade.’” (SCHNAIDERMAN, 2015, colchetes inseridos) Mas as escolhas não se limitam aos conflitos linguísticos pouco resolvidos pelos dicionários. Ao tomar em consideração as questões ideológicas na tradução, pode ser ingênuo considerar determinadas escolhas falhas ou malsucedidas. Deveras, o tradutor conhece bem os efeitos do resultado de seu trabalho, de modo que existe consciência em cada escolha. 107


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Na comédia grega Lisístrata, do dramaturgo Aristófanes, acontece algo interessante em certa escolha tradutológica. Na obra, a palavra grega utilizada para se referir ao pênis é traduzida ao inglês de maneiras bastante eufemistas através das décadas, o que evidencia a ideologia dominante de cada época. No final da comédia, a deusa personificadora da reconciliação, sob ordem de Lisístrata, nua, pede a paz. A ordem diz, no texto original: “se ele não te der a mão, pegue-o pelo —” (LEFEVERE, 2007, p. 74). Algumas versões ao inglês completam com “nariz”, outras “perna” e ainda outras “maçaneta”, quando nem mesmo “pênis” traduziria o sentido original, mas apenas algo como um termo de baixo calão representaria a fala da personagem. A neutralidade do tradutor, na verdade, é algo que não existe, pois toda tradução também é um processo interpretativo do tradutor, que toma sua visão de mundo como referência para o realizar do seu ofício. Para Lefevere (2007, p. 75), “a interpretação se torna, de forma bastante literal, a própria peça para aqueles incapazes de ler o original ou, em outras palavras, que a tradução projeta uma imagem da peça a serviço de determinadas ideologias.” Desse modo, para o leitor da tradução, a deusa da reconciliação, de fato, segura um nariz, uma perna ou uma maçaneta. Neste sentido, questionar-se-ia o valor democrático da tradução. A tradução, inevitavelmente, é um ofício ideológico. Mesmo aqueles que se propõem a realizar uma tradução relativamente original como ler o próprio Cervantes em língua portuguesa do Brasil (como se ele tivesse originalmente escrito nesta língua) orientam-se pelo princípio da fidelidade ao texto original, quando chega ao que chama de tradutor invisível. Mais que isso, os princípios de uma tradução estarão sempre numa relação de subserviência ao propósito e às ideias do tradutor (ou daquele para quem ele traduz: editora ou um público específico, por exemplo), inclusive, de seu estilo: “Yet style is 108


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central to the way we construct and interpret texts”,7 afirma Boase-Beier (2010, p. 1). Segundo o autor, o estilo do tradutor também se tornará parte da tradução, ou seja, passará a ser, como afirma Lefevere (2007), a própria obra. O estilo também pode ser visto como uma característica particular de um autor, bem como pode ser instrumento utilizado na definição do que pode e do que não pode ser considerado literário. Boase-Beier (2010) acrescenta: We can consider its effects upon translation and the study of translation in at least three ways. Firstly, in the actual process of translation, the way the style of the source text is viewed will affect the translator’s reading of the text. Secondly, because the recreative process in the target text will also be influenced by the sorts of choices the translator makes, and style is the outcome of choice (as opposed to those aspects of language which are not open to option), the translator’s own style will become part of the target text. And, thirdly, the sense of what style is will affect not only what the translator does but how the critic of translation interprets what the translator has done. (BOASE-BEIER, 2010, p. 1)8

O autor complementa que o conceito de estilo é muito complexo e qualquer que seja a definição dada incorre no risco de adentrar uma definição demasiado básica para o termo. Há de se considerar, ainda, o estilo de dois 7. “Mesmo o estilo é crucial para o modo como construímos e interpretamos os textos.” 8. “Podemos considerar os seus efeitos na tradução e no estudo da tradução de, pelo menos, três formas. Primeiro, no processo atual da tradução, o modo como o estilo do texto de origem é visto afetará a leitura do tradutor. Segundo, por que o processo recriativo no texto alvo também será influenciado pelas escolhas que o tradutor faz, e o estilo é o resultado da escolha (como oposto aos aspectos da língua que não são opcionais), o próprio estilo do tradutor tornar-se-á parte do texto alvo. E, terceiro, a noção do que é estilo afetará não apenas o que o tradutor faz, mas como o crítico de tradução interpreta o que o tradutor fizer.” 109


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textos, o original e o traduzido, não apenas um deles (que, em muitos casos, o de partida é tido como autoridade na questão). E, em cada caso, o estilo pode ser visto a partir de sua relação com o escritor ou com o leitor (e o tradutor também é um leitor). (BOASE-BEIER, 2010) A tradução do estilo se dará de acordo com aquilo que o tradutor concebe como estilo dentro do texto literário. Para os irmãos Augusto e Haroldo de Campos, por exemplo, “o tradutor tem que tentar traduzir a forma do poema que ele trabalha, mesmo que isso implique uma perda de conteúdo. Os irmãos Campos conscientemente tentam introduzir novas formas sintáticas, léxicas e morfológicas na língua portuguesa.” (MILTON, 2010, p. 230, 231) As traduções de poemas concretos feitas por eles como The Altar e Easter Wings, de George Herbert, e The Mouse’s Tale, de Lewis Carroll, entre outros, formam figuras idênticas. O conceito de literatura afeta a forma como um texto é visto, principalmente na contemporaneidade, quando um número diverso cada vez maior de literatura circula na sociedade. Lefevere e outros escritores “veem a literatura não como um sistema fixo, mas como um sistema dinâmico e complexo dentro do qual há uma mudança constante dos valores das várias obras e gêneros.” (MILTON, 2010, p. 208) Quando da comparação entre duas ou mais obras, Arrojo (1986 apud MILTON, 2010, p. 244) afirma que “é realmente impossível julgar qual das […] traduções é a melhor. Cada tradutor […] tem sua opinião a respeito das qualidades do poeta”. Segundo a teórica, toda tradução é nova.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Independente de se configurar como poesia ou prosa, toda literatura é aberta a interpretações diversas. A tradução, por sua vez, é também um processo interpretativo, pois requer do tradutor seus conhecimentos enciclopédicos, visão de mundo e autonomia de pesquisa e tradução para que adentre o universo do original com o fim de transportá-lo até o leitor na língua de chegada. Certamente, tratar da tradução literária requer considerações ainda outras em face tanto da vastidão das literaturas quanto do que se pode compreender por literatura através das épocas e das culturas, uma vez que não diz respeito a simplesmente transportar ideias contidas em um texto, mas também diz respeito a recriar na língua de chegada o que já fora feito antes na língua de partida. Este trabalho abre portas para as primeiras inquietudes acerca do ofício tradutológico. Questões como a corrente filosófico-linguística da desconstrução, o tradutor invisível e a ideologia na tradução podem, ainda, ser mais amplamente discorridas em trabalhos futuros que se proponham a fornecer questões indispensáveis para começar. Outrossim, discussões sobre o discurso da/na tradução, manipulação da/na tradução, escolas de tradução etc. podem, e devem, ser levantadas com o propósito de fomentar uma estudo ainda mais reflexivo e um ofício cada vez mais autônomo e criterioso.

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Resumo Este artigo tem por objetivo analisar o emprego das Estratégias de leitura aplicadas no gênero conto maravilhoso na parte de compreensão e interpretação no livro didático Linguagens, do 6.º ano do Ensino Fundamental II, tendo por base os aportes teóricos os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), as Diretrizes Curriculares da Educação Básica (2008) e autores como Solé (1998) kleimam (1989), Fiorin (2006). Realizou-se, no livro didático analisado, um levantamento de quais estratégias de leitura podem ser empregadas na leitura dos contos presentes na obra em análise, e quais são efetivamente utilizadas nas atividades de leitura e de compreensão dos textos da unidade 1, nos capítulos 1,2 e 3, e seus respectivos encaminhamentos metodológicos. Esse estudo nos permitiu perceber a importância de aplicar as Estratégias de leitura no despertar do conhecimento prévio para a compreensão leitora, bem como nas atividades de interpretação textual. Uma vez que para se ler e compreender é necessário ativar várias áreas do conhecimento. E esses são os maiores desafios do ensino da língua portuguesa, a leitura e compreensão textual. Palavras-chave: Compreensão. Livro didático. Estratégias de leitura.


COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO: AS ESTRATÉGIAS DE LEITURA EMPREGADAS NOS CONTOS MARAVILHOSOS DO LIVRO DIDÁTICO DO 6º ANO CÍCERA LEIDIANE LIMA DA SILVA1

INTRODUÇÃO Neste artigo, analisamos o emprego das estratégias de leitura na superfície textual do gênero conto maravilhoso presente no Livro Didático (LD): Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, do 6.º ano do Ensino Fundamental (EF) II, e também abordaremos a parte do Estudo do texto: Compreensão e interpretação com foco nas atividades que propiciem o despertar do engajamento do conhecimento prévio do leitor no desenvolvimento das atividades de Leitura e compreensão textual. Acreditarmos como a análise desse material, nessa abordagem do trabalho com as estratégias de leitura, em sala de aula, nas aulas de leitura e compreensão textual é de suma importância, pois por muitas vezes o suporte que o professor de Língua Portuguesa dispõe em mãos para ministrar suas aulas de Leitura e interpretação é o livro didático. Tornando-se este “o norteador das atitudes do professor, já que ele é destinado à tarefa de orientar o professor sobre o como ensinar, o quando ensinar, o que ensinar, etc ” Witzel (2002, p. 20). 1. Professora de Língua Portuguesa do Ensino Básico, prefeitura de Vitória de Santo Antão - Mestranda do Profletras pela Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: leidianelima144@hotmail.com. 115


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A escolha desse livro se justifica uma vez que este foi aprovado no PNLD e é adotado na grande maioria das redes públicas de ensino do Estado de Pernambuco, e estar de acordo com o PCN de Língua Portuguesa, e com os parâmetros curriculares de Pernambuco. Ao trazer a abordagem do gênero conto maravilhoso no 6º ano do ensino fundamental analisaremos as pistas contidas nas páginas do livro, em relação ao uso ou não de ilustrações, se há relação de novas informações ao conhecimento prévio; Identificação de referências a outros textos. e informações que ajudarão no inicio do processo leitor, se há possibilidades do emprego das estratégias de leitura para antes, durante e depois da leitura. Esta última se dará por meio do Estudo do texto, na análise das atividades propostas para depois da leitura. Buscando perceber se esse material didático está de acordo com as propostas dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998), com as Diretrizes Curriculares Estaduais (DCE, 2008) e também com as teorias defendidas por autores como, Solé (1998), Koch e Elias (2006), kleiman (1989), Fiorin (2006) e Antunes (2006). No que se diz respeito à leitura, compreensão e interpretação. Enfatizando os mecanismos que possam felicitar o trabalho do professor no tocar da utilização das estratégias de leitura nos textos do LD.

LEITURA E COMPREENSÃO TEXTUAL

A leitura é muito importante para ao processo de desenvolvimento cognitivo dos seres humanos, uma vez que é necessário construir significados de forma ativa em torno do que é lido, “a partir dos seus objetivos, do seu conhecimento sobre o assunto, sobre o autor, de tudo o que sabe sobre a língua: características do gênero, do portador, do sistema de escrita, etc”. (PCNs p. 41). Podemos dizer que “os sujeitos são seres sociais que interagem — dialogicamente — se constroem e são construídos no texto, considerando o próprio lugar da interação e da constituição dos interlocutores”. Deste modo, o 116


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ato de ler se constitui como atividade interativa e complexa no processo de produção de sentidos. Koch e Elias (2010). E o gosto pela leitura deve ser despertado na Escola, pois esse é um ambiente de construção de aprendizagens na preparação para a vida. Contudo, a Escola realmente consegue alcançar esse objetivo? Um dos problemas existentes durante a leitura pode ser a interpretação isolada das frases, o leitor (aluno), lê apenas uma frase e dela retira toda sua interpretação, ocorrendo assim um equívoco, já que num texto uma palavra, uma frase, estão relacionadas uma a outra, cada ideia depende de um todo. Como afirmam Platão e Fiorin (1999, p.15): Como se pode notar, o texto é um tecido, uma estrutura construída de tal modo que as frases não tem sentido autônomo: num texto, o sentido de uma frase é dado pela correlação que ela tem com as demais.

Sendo assim, podemos afirmar que “ uma boa leitura nunca pode basear-se em fragmentos isolados do texto, já que os significados das partes sempre é determinado pelo contexto dentro do qual se encaixam”. (idem ,1999, p13). É necessário que o professor utilize algumas estratégias que possibilitem ao aluno notar o texto em sua integridade, não por partes, uma vez que:

“o ato de ler é um processo complexo e não encontramos num livro um método rígido para ensinar a ler, mas sim estratégias para facilitar a tarefa do professor para ensinar a compreensão leitura.”.( SOLÉ ,1998, p.20):

Muitas vezes a leitura torna-se cansativa e enfadonha para o estudantes, o texto não é bem apreciado, pois serve apenas para encontrar possíveis repostas, e a preferência dos alunos, são “as explicitas” nas atividades de leitura e compreensão. Com isso não há a sensibilização do leitor, que segundo Fiorin e Platão (1999) “não é um dom inato, mas que pode se desenvolver. 117


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Porém, não basta apenas recomendar ao aluno que leia textos, muitas vezes é preciso mostrar-lhe para onde dirigir a atenção.” Nesta perspectiva surge o trabalho com as estratégias de leitura. Porém os textos encontrados nos livros didáticos nos possibilitam trabalhar na prática com essas estratégias que alguns teóricos abordam? Então vamos conhecê-las e depois analisaremos se isso é possível no aplica-las no livro Linguagens do 6º ano,

ESTRATÉGIAS DE LEITURA

O processo de leitura é complexo e não encontraremos no livro um método rígido, uma fórmula mágica para ensinar a ler, mas sim estratégias para facilitar a compreensão leitora. Solé, (1998) enfatiza isso no decorrer de seu livro Estratégias de Leitura. Para que haja leitura de fato, é necessário que o leitor esteja realmente conectado com o texto. E o mesmo ainda deve fazer previsões, antecipações, levantar hipóteses e verificá-las. Como afirma Solé (1998 p. 116), “A leitura é um processo de emissão e verificação de previsões que levam a construção da compreensão do texto”. É sabido que, para que se haja uma leitura significativa é preciso haver uma boa compreensão textual, pois ler não é apenas decodificar as palavras, e sim, compreender o que se está lendo. De acordo com Koch e Elias (2006, p.11), “A leitura è uma atividade na qual se leva em conta as experiências e os conhecimentos do leitor ”, é fundamental fazê-la ter sentido, porque existem algumas etapas que o leitor precisa percorrer, “uma série de outras estratégias como seleção, antecipação, inferência e verificação, que sem essas, dificilmente existirá uma rápida proficiência leitora” (PCN, 1998). Os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (1998, p. 41) comentam que;

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É o uso desses procedimentos que permite controlar o que vai sendo lido, tomar decisões diante de dificuldades de compreensão, arriscar-se diante do desconhecido, buscar no texto a comprovação das suposições feitas etc.

Um ponto importante que deve ser ressaltado, é que o aluno não é uma tábua rasa, mas sim, uma esponja, pois traz consigo o conhecimento de vida, de mundo. E essa sabedoria deve-se ser considerada no processo de compreensão leitora. Kleiman (1989, p. 13), nomeia esse conhecimento como prévio, ela afirma que: A compreensão de um texto em um processo que se caracteriza pela utilização de conhecimento prévio: o leitor utiliza na leitura o que ele já sabe o conhecimento adquirido ao longo de sua vida. É mediante a interação de diversos níveis de conhecimento, como o conhecimento linguístico, o textual, o conhecimento de mundo, que o leitor consegue construir o sentido do texto.

Kleiman (1989), acrescenta que por o leitor se mobilizar na utilização desses conhecimentos, a leitura pode assim, ser considerada um processo interativo, e assegura que sem o engajamento do conhecimento prévio do leitor não haverá compreensão. A referida autora aborda o conhecimento linguístico, e seu papel no processamento do texto. (KLEIMAN, 1989, p. 1415) definindo por: processamento

“aquela atividade pela qual as palavras, unidades discretas, distintas, são agrupadas em unidades ou fatias maiores, também significativas, chamadas constituintes da frase. À medida que as palavras são percebidas, a nossa mente está ativa, ocupada em construir significados, e um dos primeiros passos nessa atividade é o agrupamento em frases

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[...], e das funções desses segmentos ou frases (como sujeito, objeto) identificação esta que permitirá que esse processamento continue, até se chegar, eventualmente, à compreensão. “

Outro estudioso, (Pietri, 2007 p.18) também afirma que para obtermos uma compreensão textual devemos levar em consideração os nossos conhecimentos prévios, que para ele se divide em linguísticos, textuais e de mundo: a) Conhecimentos linguísticos - seria saber que sons compõem o sistema fonético da língua, o modo que esses sons se organizam, ou seja, seu sistema fonológico, além de conhecer o vocabulário. Quando estamos lendo um texto da nossa língua esse conhecimento é posto em prática.

b) Conhecimento textual - seria o que Solé (1998), também defende. Que é identificar a tipologia, pois cada tipo de texto possui uma característica própria e para cada um precisamos dar uma atenção específica.

c) Conhecimentos enciclopédicos ou de mundo - trata-se das experiências que cada indivíduo adquire ao longo de sua vida, sejam elas do cotidiano ou históricas. Ainda afirma que a compreensão dos textos, é possível graças aos conhecimentos prévios que o leitor possui e a interação desses conhecimentos no momento da leitura.

Pietri (2007), concorda que devemos levantar hipóteses durante a leitura, confirmá-las ou descartá-las, descobrir a tipologia textual predominante e reconhecer os gêneros textuais, pois de acordo com suas particularidades já saberemos do que o texto irá tratar, qual será a moral da história. 120


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Segundo Kleiman (1989): “ É necessário refletirmos a respeito do conhecimento e o controle sobre os processos cognitivos, pois se isso ocorrer é possível propiciar a formação de um leitor eficiente que nota as relações, e que cria relações com um contexto maior, que descobre e faz inferências sobre informações e significados diante de estratégias cada vez mais flexíveis e originais.

AS CONCEPÇÕES DE LEITURA E O ENSINO DE LEITURA NO LIVRO DIDÁTICO LINGUAGENS, DO 6.º ANO DO ENSINO FUNDAMENTAL (EF) II,

Muitas vezes o trabalho do professor está condicionado aos poucos recursos que lhes estão disponíveis. Na maioria das vezes é o piloto e o quadro branco, em outras, o livro didático, este está sendo empregado como poucas formas de documentação e consulta por educadores e estudantes. “Tornou-se, sobretudo, um dos principais fatores que influenciam o trabalho pedagógico, determinando sua finalidade, definindo o currículo, cristalizando abordagens metodológicas e quadros conceituais, organizando, enfim, o cotidiano da sala de aula. (BATISTA, 2003, p. 28) De acordo com (WITZEL, 2002, p. 20) o livro, direciona e serve como “o norteador das atitudes do professor, já que ele é destinado à tarefa de orientar o professor sobre o como ensinar, o quando ensinar, o que ensinar, etc”. É notório que essa relação ainda exista nas escolas, pois o livro didático exerce esse poder de direcionar o trabalho pedagógico do educador e também no sistema educacional, seja por falta de formação de profissionais ou comodismo. Sendo assim, é fundamental que os livros didáticos disponíveis propiciem um bom trabalho, sejam bem elaborados e tragam meios que facilitem o processo de ensino aprendizagem, no caso específico, o foco deste artigo: o trabalho com a leitura e a compreensão textual por meios das estratégias de leitura. 121


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PASSOS METODOLÓGICOS De acordo com as concepções teóricas sobre leitura e estratégias de leitura tratadas anteriormente, faremos a análise de textos e atividades de leitura de um livro didático, que envolvem a utilização das estratégias de leitura. Podemos afirmar que este estudo trata-se de uma pesquisa qualitativa, cuja abordagem é interpretativista e de foco bibliográfico e documental. Este trabalho iniciou-se a partir de leituras de teorização realizadas nas aulas do mestrado do Profletras, as quais foram essenciais para o aporte teórico sobre o tema tratado. O documento que foi escolhido para ser analisado foi um livro didático conhecido, A escolha desse livro se justifica uma vez que este foi aprovado no PNLD e é adotado na grande maioria das redes públicas de ensino do Estado de Pernambuco, e estar de acordo com o PCN de Língua Portuguesa, e com os parâmetros curriculares de Pernambuco. Ao trazer a abordagem do gênero conto maravilhoso no 6º ano do ensino fundamental analisaremos as pistas contidas nas páginas do livro, em relação ao uso ou não de ilustrações, se há relação de novas informações ao conhecimento prévio; Identificação de referências a outros textos. e informações que ajudarão no inicio do processo leitor, se há possibilidades do emprego das estratégias de leitura para antes, durante e depois da leitura. Esta última se dará por meio do Estudo do texto, na análise das atividades propostas para depois da leitura. Buscando perceber se esse material didático está de acordo com as propostas dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN, 1998), com as Diretrizes Curriculares Estaduais (DCE, 2008) e também com as teorias defendidas por autores como, Solé (1998). Koch e Elias (2006) Kleiman (1989); Fiorin (2006). No que se diz respeito à leitura, compreensão e interpretação. Enfatizando os mecanismos que possam felicitar o trabalho do professor no tocar da utilização das estratégias de leitura nos textos do LD. 122


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ANÁLISE DOS TEXTOS

Os textos que foram analisados em foram: As três penas, O patinho bonito e um cartum, de Mordillo, que também faz intertextualidade com os contos Maravilhosos., por meio de subsidips dispostos na superfície textual. Buscamos observar se nesses textos podem ser aplicadas as estratégias de leitura: como o levantamento do conhecimento prévio sobre o gênero textual. As inferências que podem ser feitas no texto, levantamentos de hipóteses, ... De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais de Língua Portuguesa (1998, p. 45 ) comentam que a leitura colaborativa:

Figuras (A)

“...é uma atividade em que o professor lê um texto com a classe e, durante a leitura, questiona os alunos sobre as pistas lingüísticas que possibilitam a atribuição de determinados sentidos. Trata-se, portanto, de uma excelente estratégia didática para o trabalho de formação de leitores

Texto 1. Linguagens ( p. 12)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães

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Texto 2. Linguagens ( p. 32)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães Texto 3. Linguagens (p. 51)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães

Na abertura de cada unidade do livro Linguagens, 6º ano, ao se trazer essas informações e um diálogo com o leitor, são fornecidas informações prévias sobre a leitura, e traz reflexões sobre o conhecimento prévio do aluno. Dando pistas sobre a sobre o texto e o gênero textual. A partir desses indicadores o leitor pode fazer “antecipações e inferências em relação ao conteúdo (tipo de portador, características gráficas, conhecimento do gênero ou do estilo do autor etc.) e à intencionalidade.” (PCN, 1998, p. 83) 124


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No texto: As três penas, há um diálogo com o leitor, o qual antecipa o assunto tratado, buscando fazer um levantamento prévio do leitor, ao trazer a oração Era uma vez... Podemos observar uma breve abordagem sobre o gênero textual, e as características desse texto. Ou seja, o capítulo do livro começa dando pistas sobre o que será tratado na leitura. “É preciso que antecipem, que façam inferências a partir do contexto ou do conhecimento prévio que possuem, que verifiquem suas suposições — tanto em relação à escrita, propriamente, quanto ao significado.” (PCN, 1998 p. 45) Essas relações também ocorrem nos outros textos.

Figuras (B) As três penas

Texto 1. Linguagens (p. 12)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães

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Texto 1. Linguagens (p. 13)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães Texto 1. Linguagens (p. 14)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães

Nas imagens apresentadas do texto 1, observamos que há várias ilustrações do que estar escrito no conto maravilhoso, fornecendo ao leitor a 126


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possibilidade de observação e pistas por meio das imagens, e ao professor o trabalho com a Antecipação do tema ou ideia principal a partir de elementos paratextuais, como título, subtítulo, do exame de imagens, de saliências gráficas, outros., o levantamento do conhecimento prévio sobre o assunto, Notamos que pode ser realizada neste texto presente no livro didático a leitura como:

[...] uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza evidentemente com base nos elementos linguísticos presentes na superfície textual e na forma de organização, mas requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes no interior do evento comunicativo. ( KOCK E ELIAS.( 2010, p. 11).

E as imagens, juntamente com o texto. Contribuem para a produção de sentidos sobre o que é lido. Uma vez que as cenas descritas no conto, são apresentadas nessas ilustrações. Texto 2. Linguagens (p. 32) O patinho bonito

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães 127


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O mesmo ocorre no texto 2, o emprego das ilustrações e partes do texto descrevem as cenas, ajudando assim na produção de sentido no texto. Contudo notamos o emprego de alguns elos coesivos Em “ Mas ovos de páscoa são embrulhados. Esse ovo não era...” que Segundo Kleiman (1989, cap. 4), os leitores devem ficar atentos durante a leitura, pois os autores, escritores em seus textos colocam pistas ou pistas formais, que são chamadas também de laços coesivos, para que nós leitores entendamos o que ele realmente quis dizer, façamos o mesmo trajeto do escritor no momento da escrita. Percebemos essas pistas nos textos do livro didático analisado. Observamos o mesmo no texto (p. 33) Em “Queria dizer que tinha jeito para ser ator de novela”. Texto 2. Linguagens (p. 33)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães

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Texto 3. Linguagens (p. 51)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães

No texto 3 o gênero muda, passa a ser um cartum, mas traz intertextualidade com os contos. Podemos aplicar nesse texto as estratégias para antes da leitura sobre as expectativas em função do suporte, em função da formatação do gênero, em função do autor ou instituição responsável pela publicação. Neste caso o suporte estar sendo o livro didático. Nesta perspectiva, Koch e Elias (2006, p. 13) parafraseando Solé diz como o leitor deve agir: “Desse leitor espera-se que processe, critique, contradiga ou avalie a informação que tem diante de si, que a desfrute ou a rechace, que dê sentido e significado ao que lê”. Isso é o que deve se esperar que o leitor faça no Cartum, pois é necessário que o leitor se engaje no processo leitor nesse gênero.

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ANÁLISE DAS ATIVIDADES DE COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO. Para realizarmos uma leitura significativa é preciso a apropriação do conhecimento linguístico, pelo qual nos faz saber os sons que compõem o sistema fonético dessa língua, além de conhecer o vocábulo. Também é preciso ter o conhecimento textual, já que segundo Kleiman (1889, p. 45) “o texto é visto por alguns especialistas como uma unidade semântica, onde vários elementos de significação são materializados através das categorias lexicais, sintáticas, semânticas, estruturais.” De forma que ” é necessário ter conhecimento enciclopédico ou de mundo. Desse modo, o leitor não só precisa ter o conhecimento linguístico (gramatical), mas também utilizar seu conhecimento prévio, fazer uso das informações que possui em sua memória pessoal para facilitar o processo de compreensão leitora. Todos esses fatores ajudam a entender melhor os textos e diante disso precisam ser evidenciados no cotidiano escolar. Vejamos as atividades propostas no livro didático: ATIVIDADE 1. Texto 1, As três penas (p. 14)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães

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Tratando-se da ATIVIDADE 1 texto 1, As três penas (p. 14), o autor trabalha as características dos personagens do texto. Essas questões são discutidas nos livros didáticos, porém as respostas são bem objetivas e podemos encontra-las facilmente no conto, não apresenta dificuldade ao aluno, pois são tradicionais e há uma pista de onde estão as possíveis respostas das perguntas, “no início do conto”. Sendo assim. Não há o emprego das estratégias de leitura. ATIVIDADE 1. Texto 1, As três penas (p. 15)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães

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ATIVIDADE 1. Texto 2, O patinho bonito (p. 34)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães

As questões trabalhadas do texto 1 texto, As três penas (p. 15) e no texto 2, O patinho bonito ( p. 34) de 1 a 4, buscam dialogar com o conhecimento prévio e de mundo do leitor, uma vez que traz perguntas que recorrem á memória do leitor, as suas experiências pessoais sobre o gênero conto maravilhoso, bem como recortes do texto lido, que segundo Kleiman (1889, p. 45) defende que: “é necessário ter conhecimento enciclopédico ou de mundo. Desse modo, o leitor não só precisa ter o conhecimento linguístico (gramatical), mas também utilizar seu conhecimento prévio, fazer uso das informações que possui em sua memória pessoal para facilitar o processo de compreensão leitora.” 132


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Todos esses fatores ajudam a entender melhor os textos e diante disso precisam ser evidenciados no cotidiano escolar. “ as experiências que cada indivíduo adquire ao longo de sua vida, sejam elas do cotidiano ou históricas facilita a compreensão dos textos.” Pietri (2007) Vejamos as atividades propostas no livro didático: ATIVIDADE 1. Texto 3, Cartum, de Mordillo (p. 52)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães

Em relação a atividade 1 texto 3, Cartum, de Mordillo, o autor também trabalha as características dos personagens do texto. É semelhante as atividades propostas no texto anterior, atividades tradicionais ATIVIDADE 1. Texto 3, Cartum, de Mordillo (p. 53)

Fonte: Linguagens, de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães 133


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No caso da ATIVIDADE 1 texto 3, Cartum, de Mordillo (p. 52), notamos que é evidenciada a intertextualidade da temática no cartum e tamtém o trabalho com as características do gênero textual, o conto Rapunzel, as perguntas fazem com que o leitor faça essa inferência, o que chamamos de Conhecimento textual — seria o que Solé (1998), também defende. Que é identificar a tipologia, pois cada tipo de texto possui uma característica própria e para cada um precisamos dar uma atenção específica. Sendo assim é perceptível a utilização dessa estratégia na referida atividade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo buscou analisar do os três primeiros capítulos do livro didático Português: Linguagens de William Roberto Cereja e Thereza Cochar Magalhães, da Editora Saraiva, Edição de 2015, constitui mais um caminho para reflexão sobre o trabalho com as estratégias de leitura que podem ser aplicadas nesse material, ou em parte dele. Pois em relação aos textos contidos do material, percebemos a possibilidade de empregar as estratégias de leitura por parte do professor na leitura dos gêneros analisados, já se tratando das atividades de compreensão e interpretação textual, notamos algumas questões são bem tradicionais podemos encontrar as respostas de explicitas no texto bem, contudo existe uma ou outra questão que visa despertar o conhecimento prévio do leitor. Sabemos que um aspecto muito importante no processo de leitura, são os objetivos de leitura. De acordo com Koch e Elias (2006, p.19) são eles que regulam a interação entre o texto e o leitor. Ora lemos por prazer, ora para nos manter informados, e assim por diante. Para ela: “São, pois os objetivos do leitor que nortearão o modo de leitura, em mais ou em menos tempo; com mais atenção ou com menos atenção; com maior interação ou com menor in134


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teração, enfim”. E com os textos analisados existe a possibilidade de realizar essas atividades por parte do professor. Sendo assim, a análise dos textos focando o emprego das estratégias de leitura não se restringem apenas as que abordamos em nosso trabalho de pesquisa, vai muito além. Acreditamos que com os textos presentes no livro didático podemos empregar algumas estratégias de leitura, uma vez que o livro é um dos suportes que o professor dispõe para o desenvolvimento seu trabalho,. Essa pesquisa contribuiu para que possamos perceber a importância de aplicar as Estratégias de leitura no despertar do conhecimento prévio para a compreensão leitora, bem como nas atividades de interpretação textual. Uma vez que para se ler e compreender é necessário ativar várias áreas do conhecimento. E esses são os maiores desafios do ensino da língua portuguesa, a leitura e compreensão textual.

REFERÊNCIAS

FIORIN, J. L.; PLATÃO, F. S. Para entender o texto. São Paulo: Ática, 1999. KLEIMAN, A. Texto e leitor: aspectos cognitivos da leitura. Campinas, SP: Pontes, 1989. KLEIMAN, A. Leitura: ensino e pesquisa. São Paulo: Pontes, 2 reimpressão, 2004. KOCH, I.; ELIAS, V. M. Ler e compreender: os sentidos do texto. São Paulo: Contexto, 2006. PIETRI, É. de. Práticas de leitura para a atuação docente. Rio de Janeiro: Lucena, 2007. SOLÉ, I. Estratégias de leitura. Porto Alegre: Artmed, 1998. CEREJA, William Roberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens, vol. 6, 6º ano do ensino fundamental. Ensino fundamental II. São Paulo: Atual, 2016. WITZEL, Denise Gabriel. Identidade e livro didático: movimentos identitários do professor de língua portuguesa. 2002. 181f. Dissertação (mestrado em ensino-aprendizagem de língua materna). Programa de Pós-Graduação em Linguística. FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se completam. 51 ed. São Paulo: Cortez, 2011. 135


Resumo O presente trabalho tem como objetivo demonstrar a importância do contexto para compreensão dos sentidos profundos do texto. Baseado na perspectiva de língua como forma de interação tendo como referencial (KOCH, 2011; 2012), (MARCUSCHI, 2008), (MARQUES, 2001), (DIJK 2008; 2018) e (ANTUNES, 2010) buscaremos esclarecer as diferentes concepções de texto e contexto e identificar as relações existentes entre os fatores textuais e os contextuais em uma atividade de interação de uso da língua. Para tanto, exploraremos, através de exemplos retirados de postagens de páginas jornalísticas, as consequências do contexto para a compreensão, revelando assim, o papel do contexto diante de casos de ambiguidade, justificativas e da inferência de sentidos em textos escritos. Após perceber os crescentes casos de posturas assumidamente preconceituosas e excludentes, buscaremos aliar o trabalho a uma funcionalidade de conscientização, fornecendo, assim, através do conteúdo exposto, uma forma de ensinar e analisar diferentes textos que apenas podem ser compreendidos em sua magnitude, através da percepção do contexto em que eles estão inseridos, o que possibilita uma ampliação do horizonte de criticidade e compreensão. Para tanto, fundamentamos nossa prática nos pressupostos de (DIJK, 2008), o qual estabelece meios e critérios para a uma análise crítica do discurso baseada no combate às desigualdades sociais. Palavras-chaves: Língua; Texto; Contexto; Compreensão; Ensino.


CONTEXTO E COMPREENSÃO: PERCEBENDO OS SENTIDOS PROFUNDOS DO TEXTO STENIO LIMA DE OLIVEIRA1

INTRODUÇÃO Vivemos em um mundo direcionados por opiniões que buscam a todo momento influênciar nossa forma de pensar. Desde o momento em que acordamos até o dormir no fim do dia, somos bombardeados por notícias jornalísticas, vídeos em plataformas on-line, postagens em redes sociais, propagandas e atos de fala das pessoas com quem nos comunicamos verbalmente. Todas essas informações a que temos acesso são direcionadas e expostas em determinados meios de comunicação, por determinadas pessoas, sempre com um objetivo e direcionada a determinados públicos, porém, a linguagem não se resume apenas aos efeito comunicativo ou à estrutura textual que compõe o texto para se comunicar ela engloba saberes preexistentes, ideologias e diferentes mecanismos extratextuais que são mobilizados no ato de interação. Assim, a necessidade de que se compreenda quais são esses saberes e como eles interferem na atividade de interação linguística faz parte da necessidade da pessoa humana enquanto cidadão consciente. A busca pela compreensão dos mecanismos extralinguísticos que estão presentes em um ato comunicativo apenas surge pelo entendimento da necessidade de compreensão mais profunda do que se apresenta a nós como atividade de uso da língua. Sobre as relações entre os parâmetros linguísticos 1. Aluno do Curso de Letras da Universidade Federal de Pernambuco. E-mail: stenioletrasportugues@ gmail.com. 137


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e extralinguísticos Cardozo (2005, p. 11) aponta algumas questões sobre a atividade de uso da língua:

Todas as práticas pedagógicas que envolvem a produção da linguagem colocam em relação, nas mais variadas situações discursivas, três elementos: interlocutores, enunciado e mundo. Nesse sentido, falar, ler, escrever, citar, analisar, produzir, repetir, resumir, criticar, narrar, imitar, parafrasear, parodiar etc., são práticas em que a linguagem enquanto discurso materializa o contato entre o linguístico (a língua enquanto um sistema de regras e de categorias) e o não-linguístico (um lugar de investimentos sociais, históricos, ideológicos, psíquicos), por meio de sujeitos interagindo em situações concretas.

No entanto, a percepção das características extratextuais que são de suma importância para a compreensão e uso da linguagem estão diretamente ligadas a contextos sociopolíticos e teóricos, uma vez que esses contextos atuam diretamente sobre a visão de uso da língua e sobre as práticas pedagógicas do professor em sala de aula. Sobre a influência que a visão de língua exerce sobre a atividade docente Cardozo (2005, p. 10) diz que: Estamos convencidos de que a dificuldade que a escola tem de alfabetizar e garantir o uso eficaz da linguagem em todos os níveis é, sim, decorrente de concepções equivocadas sobre a língua, linguagem e ensino de língua. Uma mudança de conteúdos em nossas escolas do ensino fundamental e médio deve acontecer somente quando finalmente modificarmos nossa concepção de linguagem e de ensino/aprendizagem; quando conseguirmos entender que a linguagem é um modo de produção social, envolvendo interlocutores e contexto, e que a sala de aula é um lugar privilegiado dessa produção. Que somente se aprende uma língua produzindo textos e discursos.

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Assim, a partir dos pressupostos apontados anteriormente por Cardozo (2005), faz-se necessário realizar uma breve análise das diferentes concepções de língua, para que possamos chegar às concepções de texto e contexto mais adequadas para o trabalho com a língua portuguesa. Para tanto, vamos analisar algumas das correntes linguísticas que mais foram utilizadas como base para a construção das políticas educacionais brasileiras e para direcionar a metodologia de ensino em sala de aula. De acordo com Marcuschi (2008, p. 16) são duas as concepções de uso da língua que mais foram estudadas e analisadas pelos teóricos da linguagem no decorrer do séc XX, o estruturalismo/formalismo, que busca através de análises puramente estruturais esclarecer os diferentes fenômenos da linguagem de forma “descontextualizada”, foi aos poucos colocado de lado pelo funcionalismo, que tratava a língua como capacidade inata da espécie humana e a linguagem como atividade funcional que era desempenhada com vistas a atingir determinados objetivos, no entanto, a atividade sob um viés funcionalista, levava em conta o contexto e o uso do léxico, características sociais, cognição e a interação. Cabe, no entanto, salientar que os aspectos mais interacionais, contextuais e sociais de uso da língua não foram amplamente estudados por nenhuma das correntes. Ainda segundo Marcuschi (2008) apenas depois do que se consolidou como virada pragmática, em meados do século XX, foi que os estudos voltados aos parâmetros discursivos ganharam força: “Os estudos discursivos e pragmáticos tentam esclarecer como se dá a produção de sentidos relacionados aos usos efetivos: o sentido se torna algo situado, negociado, produzido, fruto de efeitos enunciativos e não algo prévio, imanente e apenas identificável como conteúdo.” Assim considerando os estudos discursivos como fundamentais para a análise deste trabalho situaremos os estudos aqui presentes em uma perspectiva sócio interacionista de uso da língua que a partir dos estudos pragmáticos buscam analisar os fenômenos linguísticos e discursivos a partir 139


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de uma visão que considera a interação e o caráter social de uso da língua ferramentas fundamentais para a fundamentação de hipóteses de estudos. Tal perspectiva de uso da língua está ainda voltada para uma visão de prática de ensino que busca a liberdade social dos alunos enquanto cidadão e o aprimoramento do pensamento crítico, tomando como base alguns postulados amparados pelos ideais de ensino expressos em Soares (1987): É na articulação desses conhecimentos produzidos por diferentes teorias, em diferentes campos — Linguística e Sóciolinguística, Sociologia e Sociologia da linguagem, Psicologia e Psicolinguística —, que se deve fundamentar um ensino da língua materna que se incorpore ao processo de transformações sociais, em direção a uma sociedade mais justa. Entretanto, para que esses conhecimentos venham a transformar, realmente, o ensino da língua, é fundamental que a escola e os professores compreendam que ensinar por meio da língua e, principalmente, ensinar a língua são tarefas não só técnicas, mas também políticas. Quando teorias sobre as relações entre linguagem e classe social são escolhidas para fundamentar e orientar a prática pedagógica, a opção que se está fazendo não é, apenas, uma opção técnica, em busca de uma competência que lute contra o fracasso na escola, que, na verdade, é o fracasso da escola, mas, é, sobretudo, uma opção política, que expressa um compromisso com a luta contra as discriminações e as desigualdades sociais. (p. 79)

A metodologia e os objetivos deste trabalho estão, ainda, amparados nos documentos atuais que direcionam as políticas de desenvolvimento educacional tal como descrito nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) que situam as competências e habilidades a serem desenvolvidas pelos alunos do ensino médio dentro de um horizonte de perspectiva que situa o uso e estudo da língua em situações concretas de comunicação buscando, dessa maneira, a realização de atividades linguísticas que ultrapassem os meros parâmetros estruturais de uso e analise linguística: 140


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As competências e habilidades propostas pelos Parâmetros Curriculares Nacionais para o Ensino Médio (PCNEM) permitem inferir que o ensino de Língua Portuguesa, hoje, busca desenvolver no aluno seu potencial crítico, sua percepção das múltiplas possibilidades de expressão lingüística, sua capacitação como leitor efetivo dos mais diversos textos representativos de nossa cultura. Para além da memorização mecânica de regras gramaticais ou das características de determinado movimento literário, o aluno deve ter meios para ampliar e articular conhecimentos e competências que possam ser mobilizadas nas inúmeras situações de uso da língua com que se depara, na família, entre amigos, na escola, no mundo do trabalho. (p. 55)

Partindo da premissa expressa pelo (PCN) de que a educação deve buscar direcionar seus esforços para suprir a necessidade de inserção do aluno como cidadão crítico que atua em sociedade e desenvolve seu papel de cidadão, é importante refletir sobre a importância de se fazer apontamentos relacionados à melhor forma de, através do ensino, tornar o aluno cidadão consciente, no entanto, é preciso compreender também o papel do professor diante da atividade docente, uma vez que, essa atividade é antes de tudo um compromisso assumido pelo docente em sala de aula para com a liberdade de pensamento do aluno. Acerca desse compromisso do professor em sala de aula aponta Freire (1983, p. 16): “A primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido está em ser capaz de agir e refletir”. De acordo com Freire (2019), a prática docente deve prezar pela libertação da mentalidade crítica dos alunos, agindo como facilitador do conhecimento e o docente deve, pois, agir como ser humano que enxerga da mesma forma a humanidade em seus alunos, os quais devem adquirir conhecimentos para a vida. Assim, o desenvolvimento da criticidade e da cidadania deve sempre pautar as atividades dos educadores ativos e conscientes. 141


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A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundamentar-se numa compreensão dos homens como seres vazios a quem o mundo “encha” de conteúdos; não pode basear-se numa consciência especializada, mecanicistamente compartimentada, mas nos homens como corpos conscientes e na consciência como consciência intencionada ao mundo. (p. 94)

Baseado pois na objetividade de uma prática de ensino libertador Freire, (1983, p. 21) aponta que a relação ideológica que move os saberes pedagógicos apenas pode ser efetivamente útil a partir da consciência do educador sobre necessidade de se fundamentar a prática humanística em saberes científicos como forma de ampliação do conhecimento de mundo para a constante melhoria da sua prática de ensino. Dessa forma, na busca pelo desenvolvimento de uma prática de ensino libertadora que possa contribuir para promover a ampliação do senso crítico do aluno através do estudo da linguagem, que esteja amparada por uma concepção de língua como forma de interação e como atividade pedagógica libertadora, idealizamos uma proposta de ensino de língua que contempla a relação entre o contexto e os sentidos profundos do texto, com o objetivo de estabelecer meios que possibilitem a percepção por parte do aluno de língua portuguesa, no ensino médio, dos mecanismos que compõem os diferentes contextos que circundam as atividades de uso da língua em uma situação concreta de interação, trazendo assim para a vida do aluno meios de se defender do discurso manipulador. Para tanto, faz-se necessário realizarmos algumas considerações acerca das diferentes noções de texto e contexto, as quais foram percebidas de diferentes maneiras ao longo do tempo durante o desenvolvimento de diferentes concepções linguísticas. Objetivando, também, suprir a necessidade de conhecimento dos estudantes de letras como forma de oferecer uma contribuição científica para o trabalho com uma perspectiva interativa de uso da língua, através da análise 142


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discursiva em sala de aula, o presente artigo encontra objetivação pelo fato expresso por Bagno (2005, p. 66) quando ao tratar das dificuldades enfrentadas pelos professores em sala de aula:

Muitos são os estudantes que se graduam em Letras sem jamais terem ouvido falar, em sua formação, de pragmática lingüística, de análise do discurso, de lingüística textual, de análise da conversação, de letramento, de gramaticalização, de gêneros textuais e de outras áreas de investigação que, paradoxalmente, se encontram em plena ebulição nos centros de pesquisa das grandes universidades brasileiras. Outros campos de estudo, como a sociolingüística e a semântica, que chegam a constituir, em alguns casos, disciplinas com esses mesmos nomes, são abordados de forma esquemática e pouco instigadora. Todas essas áreas de estudo, no entanto, são de fundamental importância para a formação de docentes capazes de promover a plena educação lingüística de seus alunos.

DESENVOLVIMENTO E ANÁLISE DO ESTUDO A visão do professor a respeito do objeto de ensino de língua está diretamente influenciada pela visão que ele tem da língua, a respeito dessa relação aponta Koch (2011, p. 13): “A concepção de sujeito da linguagem varia de acordo com a concepção de língua que se adote”. Dessa forma, a didática de ensino está diretamente pautada nos pressupostos teóricos desenvolvidos pelas diferentes teorias linguísticas que foram se desenvolvendo com o tempo. Sobre a relação entre a forma de trabalho com a língua e as diferentes concepções teóricas da linguagem aponta Marcuschi (2008, p. 58): “Embora não seja necessário, é sempre fundamental explicar com que noção de língua se trabalha, quando se opera com categorias tais como texto ou discurso. Assim, através da reflexão trazida anteriormente sobre língua, podemos, agora, levantar uma reflexão sobre as noções de texto e contexto, tradando 143


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da importância do trabalho com o texto em sala de aula e da relação existente entre texto e contexto, para a partir dessas reflexões podermos analisar quais as consequências de se considerar o contexto diante da interação linguística através dos texto. Sobre a relação entre visão de língua e texto aponta Koch (2011, p. 16) “O próprio conceito de texto depende das concepções que se tenha de língua e de sujeito.” Marcuschi (2008, p. 72) nos apresenta uma visão sobre o que seria o texto diante da perspectiva sociointeracionista de uso da linguagem: O texto pode ser tido como um tecido estruturado, uma entidade significativa, uma entidade de comunicação e um artefato sóciohistórico. De certo modo, pode-se afirmar que o texto é uma (re)construção do mundo e não uma simples refração ou reflexo. Como Bahktin dizia da linguagem que ela ‘refrata’ o mundo e não reflete, também podemos afirmar do texto que ele ‘refrata’ o mundo e na medida em que o reordena e reconstrói.

O trabalho com as diferentes instâncias da linguagem, como visto anteriormente, depende em uma ampla gama de aspectos da visão de língua que se tem. Assim a partir da visão de língua e texto diante da visão interacionista de uso da língua nem sempre foi meio de trabalho nas salas de aula, uma vez que a visão de língua nem sempre foi a mesma. Ainda de acordo com Marcuschi (2008), foi somente a partir de estudos direcionados pela Linguística de Texto que os trabalhos voltaram o texto para uma perspectiva mais interacional de uso da língua, uma vez que antes o trabalho com o texto não davam conta dos parâmetros extratextuais e situavam o texto sob uma visão mermente estrutural considerando apenas os eventos linguísticos que ocorriam em sua estrutura linguística. Acerca dessas diferentes formas de visão do texto como evento comunicativo aponta Marcuschi (2008):

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A motivação inicial da LT foi a certeza de que as teorias linguísticas tradicionais não davam conta de alguns fenômenos linguísticos que apareciam no texto. E estes fenômenos eram resumidos numa expressão quase mágica: relações interfrásicas. Constatava-se que certas propriedades linguísticas de uma frase só eram explicáveis na sua relação com uma outra frase, o que exigia uma teoria que fosse além da linguística de frase. (p. 73)

É pois, no texto que podemos estudar as diferentes relações de sentido, tendo em vista que é a partir da busca pela compreensão do sentido que a funcionalidade do texto é expressa uma vez que o texto de acordo com Antunes (2010), todo texto é ato comunicativo dotado de intenção e significação, que ganha valor de ato funcional, uma vez que sempre que procuramos por um procuramos com um objetivo particular. Antunes (2010) complementa sua reflexão sobre o texto nos fazendo refletir sobre o aspecto funcional primário do texto que é o estudo da significação:

Consequentemente, todo texto é expressão de uma atividade social. Além de seus sentidos linguísticos, reveste-se de uma relevância sóciocomunicativa, pois está sempre inserido, como parte constitutiva, em outras atividades do ser humano. (...) Assim, compreender um texto é uma operação que vai além de seu aparato linguístico, pois se trata de um evento comunicativo em que operam, simultaneamente, ações linguísticas, sociais e cognitivas. (p. 31)

A partir da percepção dessas diferentes relações de ordens linguísticas e extralinguísticas, que surgem através do contato com o texto, que resolvemos orientar nosso estudo para esclarecer as nuances que podem ser percebidas através da percepção do contexto diante de um ato de compreensão textual, sendo que o contexto é segundo Koch (2011, p. 29) “O contexto é um conjunto de suposições trazidas para a interpretação de um enunciado. Todavia, para 145


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que possamos iniciar aa análise dos exemplos, temos que situar o contexto em uma perspectiva de uso da língua uma vez que, todo o trato para com a língua se faz através da percepção dos eventos linguísticos sob um determinado prisma teórico, assim como foi feito com o conceito de texto, que ganhou valor de atividade sociocomunicativa diante da perspectiva sociointeracionista de uso da língua. A visão de Koch (2011) sob contexto, encontra suas raízes na perspectiva de texto como evento comunicativo, este, situado em um contexto de língua como interação. No entanto, assim como o texto, o conceito de contexto, já vem sendo adaptado e readaptado desde o surgimento das primeiras correntes linguísticas mais estruturais, o qual, sob a variedade conceitual existente com relação à definição de contexto Koch (2011, p. 23) aponta que: “As concepções de contexto variam consideravelmente não só no tempo, como de um autor para outro; e ocorre mesmo que um mesmo autor utilize o termo de maneira diferente, em vários momentos sem disso se dar conta.” Assim com o passar do tempo a concepção foi se direcionando aos objetivos de estudos pautados em determinadas teorias. Koch (2011, p. 23) aponta algumas reflexões sobre o surgimento e conceituação a partir das reflexões do estruturalismo:

Na fase inicial das pesquisas sobre o texto, que se tem denominado a fase da análise transfásica, o contexto era visto apenas como o entorno verbal, ou seja, o co-texto. O texto era conceituado como uma sequência ou combinações de frases, cuja unidade e coerência seria obtida através da reiteração dos mesmos referentes ou do uso de elementos de relação entre segmentos maiores ou menores do texto. Paralelamente, os pragmaticistas chamavam a atenção sobre a necessidade de se considerar a situação comunicativa para a atribuição de sentido a elementos textuais como os dêiticos e as expressões indiciais de modo feral.

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A partir da reflexão sobre o que vinha ou não levado em conta durante a atividade de uso da língua através dos textos, surge a necessidade de se estudar as diferentes relações extralinguísticas que a mera análise puramente estrutural não dava conta. Uma vez que ainda segundo (KOCH, 2011) a relação de quem entra em conta está diretamente direcionada sob prismas sociais, já que vivem sob condições sociopolíticas que lhes direcionam atitudes e deveres sob uma ótica ideológica. Marcuschi (2008, p. 87-88) reflete sobre as questões contextuais que fogem ao mero repertório linguístico-estrutural e que merecem efetivamente serem levados em consideração além dos contextos que se estabelecem situando-se em diferentes ambientes extralinguísticos: Assim, chegamos às relações ditas contextuais. Estas relações se estabelecem entre o texto e sua situacionalidade ou inserção cultural, social, histórica e cognitiva (o que envolve os conhecimentos individuais e coletivos). Não se pode produzir nem entender um texto considerando apenas a linguagem. O nicho de significado do texto ( e da própria língua) é a cultura, a história, e a sociedade. Esta inserção pode dar-se de diversas formas e por isso um texto pode ter várias interpretações, embora não inúmeras nem infinitas.

A partir da percepção da necessidade de se tratar do contexto para se chegar aos sentidos profundos do texto que não podem ser identificados através de uma análise que leve em consideração a mera estrutura verbal, considerando os fatores sociopolíticos, históricos e culturais que envolvem os diferentes contextos em que os textos estão inseridos é que chegamos ao conceito definido por Koch (2012, p. 61) que nos remete à concepção de um contexto sóciocognitivo e das relações que apenas podem surgir diante da consideração desse contexto como base para a compreensão textual: 147


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Para que duas ou mais pessoas possam compreender-se mutuamente, é preciso que seus contextos sóciocognitivos sejam, pelo menos, parcialmente semelhantes. Em outras palavras, seus conhecimentos (enciclopédico, sociointeracional, procedural, textual etc.) devem ser ao menos em parte, compartilhados, uma vez que é impossível duas pessoas partilharem exatamente os mesmos conhecimentos. Ao entrar em uma interação, cada um dos parceiros já tráz consigo sua bagagem cognitiva, ou seja, já é, por sí mesmo, um contexto. A cada momento da interação, esse contexto é alterado, ampliado, e os parceiros se veem obrigados a ajustar-se aos novos contextos que se vão originando sucessivamente.

Assim, a partir das reflexões sobre texto e contexto iremos refletir sobre a compreensão diante da perspectiva de língua como interação e da necessidade de entender o papel dessa para identificação dos sentidos do texto, uma vez que é a partir de uma conceituação do que seria a compreensão que poderemos refletir sua importância. Entender a língua como uma atividade de interação pressupõe considerar os envolvidos no processo interacional como sujeitos ativos que agem sobre o texto de acordo com seus conhecimentos enciclopédicos, ideologias e limitações cognitivas. A partir do entendimento de que se é importante considerar os sujeitos para a partir da reflexão do olhar pessoal poder entender a interação (DIJK, 2008, p. 20-21) nos remete a refletir sobre essa pessoalidade que está presente em uma atividade de interação quando diz que: “Não obstante, os usuários da língua envolvidos podem ser muito diferentes. Podem dispor de conhecimento, crenças e opiniões diferentes, ter diferentes papéis sociais, podem ser crianças ou adultos, do sexo masculino ou feminino, podem ter diferentes níveis de escolaridade e daí por diante.” As diferenças sociocognitivas a que todos nós estamos dispostos tem relação direta com a percepção e compreensão do mundo e de textos. Assim não se pode apenas falar em uma compreensão, mas, de acordo com Dijk 148


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(2008) o correto é afirmar que existem diferentes tipos de compreensão de acordo com a visão de mundo de cada um e de acordo com a visão de mundo e de língua:

Finalmente, existem também diferentes tipos, estilos ou modos de compreensão. Já apresentamos a possibilidade de uma leitura rápida de uma estória no jornal. Por outro lado, poderemos também estudar ativamente, ou até decorar, alguma parte de um livro-texto, poderemos ler um texto prestando muita ou pouca atenção, poderemos, poderemos ser ou não distraídos por outras informações contextuais, e assim por diante. Também faremos abstração dessas diferenças e agiremos como se o usuário da língua processasse toda informação, construísse uma representação completa e processasse toda informação, construísse uma representação completa e parasse a construção da representação tão logo um certo número de condições fossem satisfeitas, por exemplo, aquelas de coerência local e global (macroestrutural). No entanto, nossa abordagem estratégica formalmente garantiria a possibilidade de os usuários da língua realmente processarem informações de maneira incompleta e incorreta, mas, mesmo assim, sentirem que compreenderam o texto. Deforma semelhante, limitamos, o modelo a uma explicação da compreensão semântica apropriada. Já acentuamos que a compreensão dos aspectos pragmáticos ou interacionais do discurso não será delineada de forma completa, mas isso também implica ignorar outros relacionamentos pessoais ou experiências do ouvinte, assim como sua compreensão social ou ideológica do discurso ou a compreensão da pessoa que produz o discurso, o que implicaria a atribuição de várias estruturas de motivação e personalidade. Não existe um processo de compreensão único, mas processos de compreensão que variam de acordo com diferentes situações, de diferentes usuários da língua, de diferentes tipos de discurso. (DIJK, 2008, p. 21)

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A partir das reflexões trazidas por Dijk (2008) podemos situar o processo de compreensão de acordo com a perspectiva sociointeracional de uso da língua que de acordo com Koch (2011, p. 17) adquire um valor específico:

Adotando-se esta última concepção — de língua, de sujeito, de texto — a compreensão deixa de ser entendida como simples “captação” de uma representação mental ou como a decodificação de mensagem resultante de uma codificação de um emissor. Ela é, isto sim, uma atividade interativa altamente complexa de produção de sentidos, que se realiza, evidentemente, com base nos elementos, mas que requer a mobilização de um vasto conjunto de saberes (enciclopédia) e sua reconstrução no interior do evento comunicativo.

Conscientes das noções essenciais de texto, contexto e compreensão diante da perspectiva interacional de uso da língua partiremos agora para a análise de três exemplos, que servirão de base para compreender como se dão as relações contextuais diante dos diferentes objetivos quando da produção do texto e da percepção por parte do leitor. No entanto cabe a nós ressaltar e lembrar que valor da abordagem está fundamentada em preceitos linguísticos e sociais que buscam o desenvolver o senso crítico do aluno em sala de aula, uma vez que de acordo com Dijk (2018) os Estudos Críticos do Discurso (ECD) devem, pois, assumir, uma postura de combate ao abuso de poder através da linguagem, sendo esse abuso, representado pela tentativa de manipulação do pensamento através do discurso. Para o estudo foram pesquisados exemplos textuais que se enquadram em objetivos de análise, os quais serão direcionados de acordo com parâmetros de estudos contextuais apresentados por Koch (2012), com vistas a entender algumas peculiaridades linguísticos-discursivas que estão presentes em uma análise de texto que leva em consideração o contexto em suas diferentes representações teóricas, que vai desde uma atividade como co-texto 150


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que exerce função de desambiguizar estruturas linguísticas, passando pela realização de justificativa da escrita até a influência na percepção do que se lê e na realização de inferências. Assim, apresentaremos, de acordo com a visão de língua aqui apresentada e defendida, um estudo que pode servir de base para uma atividade em sala de aula que pode situar o estudo do discurso em uma ação de desenvolvimento do pensamento crítico do aluno. Para a realização da atividade serão feitas considerações de cunho analítico-comparativo, uma vez que buscaremos situar o estudo fazendo apontamentos a partir do exemplo inicial, buscando descrever a diferenças existentes entre um exemplo e outro e apontando através de análises específicas características do estudo do contexto para revelar o entendimento final sobre as diferentes situações de análise do discurso situado pela consideração da compreensão através da utilização dos diferentes contextos apresentados como ferramenta para chegar aos sentidos profundos do texto em lide. Os exemplos foram retirados de fontes diversas, o primeiro é um exemplo dado por Koch (2012) e os demais foram buscados em sites de notícias jornalísticas como Editorial da Época, Folha de São Paulo e Correio do Povo, e estes, foram delineados pela busca de se refletir através de uma temática política direcionada a fatos linguísticos, de conhecimento público, que ocorreram durante as eleições de 2018. Tal perspectiva de análise busca direcionar-se ainda a um prisma social de conscientização, uma vez que segundo Soares (1987) a prática pedagógica é antes de tudo uma luta social e deve, através do ensino situar o aluno diante das adversidades políticas e sociais para que ele possa da melhor forma desempenhar sua função de cidadão ativo em sociedade. Antes, porém de realizarmos as inferências a respeitos dos exemplos que serão apresentados cabe a reflexão a respeito do que seria a conceituação de enunciado, uma vez que buscaremos enxergar através dos exemplos meios de 151


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compreensão das características discursivas do que se expõe. Diante dessa necessidade de entendimento sobre o que é o enunciado discursivo (Cardozo (2005, p. 36) nos apresenta algumas noções elementares quando coloca que: Enunciado, é para Focaut (1969), a materialidade repetível, a unidade elementar do discurso (discurso é um conjunto de enunciados que pertencem à mesma formação discursiva”). O enunciado é um acontecimento único, mas aberto à repetição, à transformação, à reativação. Um enunciado é sempre um acontecimento que nem a língua nem o sentido podem esgotar inteiramente. Está ligado não apenas a situações que o provocam e a consequências por ele ocasionadas, mas, ao mesmo tempo, segundo uma modalidade inteiramente diferente, a enunciados que o precedem e o seguem. É institucional.

Partiremos agora para a análise dos primeiros exemplos dado por Koch (2012), que trás os seguintes fatos explicitados: Ex. 1: O policial viu o ônibus acelerando em sua direção. Ele levantou a mão e parou-o. Ex. 2: O goleiro viu a bola indo em direção à rede. Ele levantou a mão e paruo-a.

Durante as análises é importante notar que os exemplos acima e os que se seguem ganham valor de texto, uma vez que comunicam e são carregados de aspectos enunciativos. Segundo Marcuschi (2008, p. 71) reflete a cerca do que poderia ser definido como texto: Todos nós sabemos que a comunicação linguística ( e a produção discursiva em geral) não se dá em unidades isoladas, tais como fonemas, morfemas, ou palavras soltas, mas sim em unidades maiores, ou seja, por textos. E os textos são a rigor, o único material linguístico observável, como lembram alguns autores. Isto quer dizer que há um fenômeno lin152


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guístico (de caráter enunciativo e não meramente formal) que vai além da frase e constitui uma unidade de sentido.

Para nós é importante perceber que o trabalho com o contexto diante desses dois exemplos acima é tido como forma de desambiguizar os significados dos termos linguísticos, uma vez que os elementos que indicam as ações de parar o ônibus remetem a dois contextos de uso diferentes. Assim a compreensão é automaticamente situada através dos conhecimentos enciclopédicos que situam o leitor nos difretentes contextos. O leitor aqui não precisa fazer muito esforço para compreender as relações semântico discursivas que estão presentes nos enunciados e o a busca para a mobilização do contexto se dá de forma quase que espontânea, já que desde cedo aprendemos o que é que um policial faz e o que um goleiro faz. Todavia, para compreendermos o segundo exemplo que foi retirado da propagando do governo de Michel Temer ao fim dos seus dois anos de mandato como presidente, no final de 2018, mobilizamos mais que simples conhecimentos que são comuns a todas as pessoas: Ex. 3: O Brasil voltou 20 anos em 2 Ex. 4: O Brasil voltou, 20 anos em 2 (Fonte: Folha de São Paulo)

A análise desses dois enunciados em comparação aos que foram analisados anteriormente não podem ser compreendidos simplesmente pela análise estrutural, uma vez que os exemplos que tratavam do policial e do goleiro surgiram pela necessidade de simplesmente servir para explicar um conceito linguístico. Todavia, esses exemplos da propagando do governo de Michel Temer, surgiram com um objetivo que está além da estrutura linguística, surgiram diante de um contexto específico e para serem percebidos através desse contexto, baseado em um ideal político, com um objetivo social e ideológico particular, ou seja, é um texto por sí só e está repleto de significados. 153


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Uma vez que a ideia inicial era remeter o leitor a um contexto de reestruturação e sucesso do governo perante as dificuldades econômicas e sociais que assolavam o país àquela época, a propaganda foi divulgada aos moldes do exemplo 3, porém a objetividade não cumpria seu papel ao, através desse exemplo, remeter o significado do enunciado para um contexto de retrocesso. A questão a ser analisada e identificada aqui é que foi pela percepção da não inserção do texto em um contexto específico que foi alterada a estrutura textual do ex. 3 para o ex. 4, ou seja, não se trata simplesmente de demonstrar aos alunos em sala de aula a função da vírgula no texto, mas de explorar o poder do contexto sobre a estrutura textual, já que foi para atender às expectativas do contexto que se alterou o texto e não ao contrário. Sobre a compreensão do texto e seus sentidos aponta (ANTUNES, 2010, p. 31): “Assim, compreender um texto é uma operação que vai além de seu aparato linguístico, pois se trata de um evento comunicativo em que operam, simultaneamente, ações linguísticas, sociais e cognitivas.” A função do contexto diante dos exemplos 3 e 4 atende ao objetivo de justificar o que se diz o, exemplo 4 está justificado pela necessidade de se situar o texto num contexto específico de situação. Os exemplos 5 e 6 abaixo que foram retirados do editorial da revista época e do portal de notícias da globo G1 (vide bibliografia), nos remetem a informações criadas ou modificadas com o objetivo de serem inseridas em diferentes contextos de acordo com os diferentes objetivos. Tais notícias ficaram conhecidas no âmbito das redes sociais como “FAKE NEWS” e serviram durante as eleições de 2018 como ferramenta de manipulação do pensamento, atingindo a compreensão do público sobre determinados assuntos que poderiam ser utilizados como forma de atacar politicamente um adversário. Assim a análise busca apresentar ao aluno diferentes formas de perceber como o contexto pode ser utilizado para modificar o significado e sentido do texto, influenciando a percepção e modificando a opinião. 154


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Ex. 5 e 6:

Imagens: Memes Reprodução da Internet

Os exemplos acima apresentam dois enunciados que foram amplamente divulgados durante as eleições de 2018, em sua maioria pelas páginas de apoio ao então candidato à presidência da república à época, Jair Bolsonaro (PSL). As páginas divulgaram as informações como sendo verdadeiras, todavia, os fatos foram criados de acordo com os interesses dos apoiadores de Bolsonaro. 155


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A primeira imagem (Ex. 5) trata da atriz Patrícia Pillar, que sim, já foi casada com o então adversário político de Jair Bolsonaro à época, Ciro Gomes, porém, a afirmativa de que ela teria sido agredida por Ciro Gomes tratava-se de uma notícia falsa que foi criada no intuito de manipular o pensamento dos eleitores à época, que ao entrarem em contato com tal informação poderiam mudar sua percepção sobre a pessoa de Ciro Gomes e decidirem não votar mais nele, assim, a afirmativa da agressão foi criada com o intuito de servir aos interesses políticos de quem a criou diante do contexto político. O contexto, aqui, direciona o fato e move a compreensão de quem lê, para que o leitor entenda o que é dito movendo suas ideologias e preceitos de certo e errado, dessa forma, há, uma tentativa de manipulação do pensamento através da manipulação da informação falsa criada, que ganha significações a partir da percepção do contexto que ultrapassa o fato da agressão. Tal agressão que aqui é situada diante da política como ferramenta para chegar ao julgamento político de que Ciro Gomes não seria o candidato ideal para as mulheres. A segunda imagem (Ex. 6), trata de uma declaração dada pelo também adversário político de Jair Bolsonaro, Fernando Haddad do Partido dos Trabalhadores (PT), o qual, também, teve um fato falso, aos moldes de uma notícia, atribuído a ele, com o intuito, também, de que o pensamento do eleitor à época pudesse ser manipulado. Trata-se de um trecho de uma entrevista que ele teria dado e teria dito que “Ao completar cinco anos de idade, a criança passa a ser propriedade do Estado! Cabe a nós decidir se menino será menina e vice-versa! Aos pais cabe acatar nossa decisão respeitosamente! Sabemos o que é melhor para as crianças!” Esse sentido foi o que foi atribuído pela postagem, tendo em vista que o objetivo era, dizer que o candidato queria tirar o poder dos pais sobre a criação dos filhos, porém a afirmativa não é verdadeira. Mais uma vez o sentido do texto criado foi criado com o intuito de situar o texto em dois contextos diferentes, o primeiro seria um contexto de afronta à criação dos 156


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filhos pelos pais e de que o candidato pertence a um partido que quer impor sua vontade à vontade dos pais. O segundo é o contexto político no qual o leitor é direcionado através do enunciado para criar a perspectiva esperada de julgamento do fato e da pessoa a quem o fato é atribuído, servindo assim aos interesses dos que criaram a Fake News. O último exemplo que será apresentado adiante foi retirado do site “Aos Fatos (2019)” especializado em checar notícias falsas, e apresenta mais um exemplo de Fake News que foi amplamente divulgado durante as eleições de 2018 pelos adversários do então candidato à presidência da república Ciro Gomes (PDT): Ex. 7: Não, eu não quero estatização nenhuma. Eu quero controle social e o fim da ilusão moralista católica, o fim da ilusão. A humanidade precisa de controle. Não adianta alguém imaginar que um anjo vingador vai descer do céu, estalar o chicote e resolver o problema nacional brasileiro” (Ciro Gomes) (o vídeo editado com a declaração pode ser conferido nas referências, assim como o original).

Nesse último exemplo evidenciamos outra forma de utilização do contexto como ferramenta de manipulação, aqui a notícia existe, o enunciado encontra-se direcionado a um determinado contexto, no entanto, o texto foi extraído da fala do então candidato à presidência Ciro Gomes, e transportado para um contexto completamente diferente, no intuito de modificar o sentido do que foi dito, assim o contexto exerce o papel de situar o discurso perante a ideologia do leitor/ouvinte. Essa movimentação do texto para um discurso diferente é movimentada mediante objetivos e busca direcionar o pensamento crítico mais uma vez aos ideais dos manipuladores.

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CONCLUSÃO Dessa forma, ao compreendermos a importância das análises contextuais podemos situar o ensino de língua em um patamar de ensino discursivo, levando o aluno a compreender as nuances particulares que, através da análise contextual, surgem como parâmetros discursivos, os quais não podem ser percebidos de outra forma se não através da movimentação atividade da compreensão e inserção do aluno nos universos discursivos que estão presentes nos textos. Além disso, a percepção das diferentes formas de manipulação discursiva oferece ao aluno ferramentas para se defender e atuar criticamente em sociedade, fazendo com que a escola atinja seu valor social quando prova que está atendendo às exigências constitucionais expressas no art. 205 da Constituição federal, promovendo a busca pelo pleno desenvolvimento do aluno e o preparo para o exercício da cidadania e atendendo ao expresso na Lei nº 9394/98 de diretrizes e bases da educação, que expressamente direciona através do inciso III do art. 35, orientar o ensino com base no desenvolvimento do pensamento crítico do aluno.

REFERÊNCIAS

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Resumo Não compreender e não interpretar atrapalha o desenvolvimento de qualquer pessoa. O objetivo desse artigo é analisar as dificuldades de compreensão e interpretação de textos dos discentes do ensino médio e para isso foram aplicados três questionários: o primeiro investiga o conhecimento de mundo do aluno, que influencia diretamente na compreensão do texto, o segundo aponta fatores que interferem para a compreensão a partir das linguagens e o terceiro destaca o nível de interpretação de texto e o modo em que o aluno expressa suas ideias através de uma análise de um conto literário. Mesmo o aluno apresentando um nível satisfatório em conhecimento de mundo, quando se depara com uso de linguagens que não estão habituados, se prendem em descobrir o significado da palavra apenas, assim não ocorre a compreensão do texto. Quando o aluno se apropria desses dois elementos ainda é necessário “arrumar” as ideias para que o texto fique claro, objetivo e conciso, algo que os alunos ainda têm dificuldades em conseguir. Palavras-chave: Conhecimento de mundo; Linguagens; Compreensão de texto; Interpretação de textos.


DIFICULDADES EM COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS PELOS DISCENTES DO ENSINO MÉDIO MARÍLLIA GABRIELA TAVARES DA CUNHA1

INTRODUÇÃO Atualmente os professores de diversas disciplinas principalmente os de história e matemática justificam por uma parte o “fracasso do aluno” pela dificuldade que tem de entender o enunciado das questões. Acusam direta ou indiretamente o professor de língua portuguesa como responsável pela não aprendizagem do aluno. Esses questionamentos têm um pouco de fundo de verdade visto que se o aluno não consegue compreender o que está escrito, também não consegue interpretar e por consequência não conseguirá desenvolver no nível que o professor desejaria. O objetivo deste artigo é analisar as dificuldades de compreensão e interpretação de textos dos discentes do ensino médio. Tem como objetivos específicos investigar as dificuldades de compreensão de texto a partir do conhecimento de mundo, apontar fatores que interferem para a compreensão dos diversos tipos de linguagens e destacar o nível de interpretação de textos através da análise de um conto. É importante não criticar o aluno que tem dificuldades de compreender e/ou interpretar, é necessário investigar quais os principais problemas que levam esse aluno ao fracasso. Existem vários autores que analisam quais 1. Especialista em Pedagogia Empresarial e Gestão Escolar, Bacharel em Administração, estudante dos cursos de Licenciatura em Letras e de Pós-Graduação em Metodologia da língua Portuguesa e literatura brasileira pela Faculdade de Ciências e Tecnologia Dirson Maciel de Barros - FADIMAB. professoramarillia@gmail.com. 161


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os possíveis “problemas”, entretanto a realidade da escola é outra, alunos e didáticas são diferentes e a investigação precisa ser pontual para que as possíveis soluções sejam aplicadas de maneira eficaz. Para identificar quais são os fatores que podem justificar o déficit de compreensão e interpretação de textos, foram aplicados três questionários; cada questionário tem um fator especifico de dificuldade. O primeiro analisa o conhecimento de mundo que influencia diretamente na compreensão do texto, o segundo verifica alguns tipos de linguagens que podem ser um empecilho para que o aluno compreenda e interprete o texto e o terceiro é apresentado um conto com cinco questões para reter informações sobre interpretação de texto e a maneira como o aluno se expressa. Entender o aluno e suas dificuldades faz parte do papel de um bom professor. Para solucionar os problemas é necessário investigar e aplicar possíveis soluções. Quando não se preocupa deixa-se também de ensinar, de aprender e de cumprir o objetivo principal do professor.

PROCESSO DE LEITURA

A leitura acompanha a maioria das pessoas desde pequenos, depois de passar pelo processo de alfabetização que para alguns é traumático, pela forma como foi aplicada ou pela pressão da família, da sociedade para que a criança aprenda logo a ler. Quando esse aluno chega ao ensino fundamental II e ensino médio o desafio muda de foco e a dificuldade é como manter o processo de leitura de forma mais produtiva e agradável. A diferença entre o que se escreve e como se fala é uma barreira que dificulta o processo de leitura. O modo como o aluno fala no seu cotidiano não é o mesmo em que é estudado na escola, por isso não é cobrado nas provas, atividades, avaliações, concursos públicos e vestibulares. Esse conflito dificulta o aprendizado do educando, porque ele acredita que fala errado, já que 162


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muitas vezes é corrigido pelos professores e pela “comunidade” que o questiona “afinal de contas por que continua a falar errado se está na escola para aprender o certo?” além de não se identificar com o que é estudado, ele não se sente representado na escola. O professor deve explicar porque utiliza a língua na norma padrão culta, além de evitar apontar que o aluno está errado apenas pela maneira de falar gírias, sotaques ou expressões que usa no dia-a-dia. Explicar que a norma padrão culta é utilizada para que exista uma comunicação sem ruídos e é uma maneira formal para ambientes e situações que pedem seu uso; por esse motivo é estudada na escola. Para ANTUNES, Irandé (2003) ”O professor de português não pode deixar de reconhecer a importância desses princípios e, por isso, não pode ficar tão preso aos conhecimentos especificamente linguísticos”. Valorizar e utilizar em algumas situações a língua falada do aluno com o objetivo que ele compreenda que sua língua também é importante e essencial para um autorreconhecimento. Apesar de várias pesquisas e avanços tecnológicos alguns livros didáticos ainda permanecem descontextualizados, e da mesma maneira que o aluno não se reconhece quando sua língua não é valorizada, ele também não se reconhece na leitura que faz, cria-se um desinteresse e prejudica a leitura, assim o desenvolvimento de leitura não acontece ou acontece de forma demorada, ou quando apenas passa-se o olho no texto e não se fixa o que acabou de ler. É necessário que haja uma motivação, um prazer para que a leitura ocorra. Mesmo que a escola/professor escolha o instrumento de leitura é preciso observar o aluno e quais são suas preferências para que ele tenha prazer em ler. A obrigação que a escola impõe a leitura não é recebida pelo aluno de maneira agradável, cria-se uma tensão, uma negação logo no inicio. O professor deve apresentar a ideia da leitura, debater, perguntar se há aceitação, dividir com o aluno as escolhas. Dar responsabilidade e compromisso ao educando, assim ele participará efetivamente do desenvolvimento. Essa maneira edu163


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cacional de construtivismo não tira o poder da escola/professor do mesmo modo que não deixa de apresentar os conteúdos obrigatórios, há apenas uma adequação a maneira de aplicar ou de executar. A leitura como interpretação em trechos de textos apenas para responder exercícios, com frases soltas, sem uma função formam os alunos “sem partido”, porque o momento que ele teria para aprender algo novo ter elementos para se tornar um ser critico é utilizado apenas para responder perguntas superficiais, muitas vezes não há de fato uma interpretação, há apenas uma compreensão do texto. Conforme ANTUNES, Irandé (2003) “É essa tríplice função, implicada na realização da leitura (ler para informar-se; ler para deleitar-se; ler para entender as particularidades da escrita), que justifica a sua tão propalada conveniência”. Pedir para o aluno achar os substantivos, os verbos, utilizar o texto para uso de análise sintática e morfológica, tira o objetivo da leitura, e utiliza esse momento para estudar gramática. Como existem muitos conteúdos para ser executado em um curto espaço de tempo o momento da leitura vira apenas mais uma aula de gramática, a leitura não é trabalhada nas escolas como deveria, não existe um ambiente físico propicio e variedades de textos para vários gostos. Alunos formados sem esse tempo para leitura não conseguem compreender textos simples e esse problema repercute para outras disciplinas, afinal se o educando não consegue entender a pergunta como irá responder? Isso atrapalha em uma proporção gigantesca já que decisões precisam ser compreendidas para serem executadas. Para uma interpretação de forma satisfatória e uma compreensão clara é importante não só fazer as decodificações das letras nos textos, o leitor deve ter um “conhecimento de mundo” que abrange várias áreas e ter domínio da linguística que ajudará a entender de forma mais profunda o sentido a que pertence o conjunto do texto e não só o significado da palavra.depois que o professor conhece algumas dificuldades do aluno em relação à leitura, é o mo164


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mento de colocar em pratica possíveis soluções para a resolução de problemas como: respeitar o conhecimento prévio do aluno, valorizar a linguagem que utiliza mas sem esquecer e lembra-lo que a sociedade exige o uso da norma padrão culta, dar um objetivo para cada leitura realizada em sala de aula, disponibilizar um momento para a leitura e informar que essa leitura será avaliada também, pois caso contrário o aluno acreditará que isso será um tempo vago e o propósito da leitura não é realizado, utilizar vários métodos para a leitura e manter-se sempre atualizado. Tenho em mente um professor de português que é além de educador, linguista e pesquisador (como propõe Marcos Bagno em toda a sua obra), alguém que, com base em princípios teóricos, científicos e consistentes, observa os fatos da língua, pensa reflete, levanta problemas e hipóteses sobre eles e reinventa sua forma de abordá-los de explicitá-los ou explicá-los. (ANTUNES, 2003, p. 44) O professor quando ajuda seu aluno a aprender, forma-se um cidadão que conseguirá compreender o texto e ir além das possibilidades para a interpretação, que passará pela leitura inicial e criará hipóteses, ideias e sua leitura atingirá um nível satisfatório. Manter-se pronto para qualquer mudança sabendo que o planejamento pode ser alterado para que a leitura seja mais eficaz, aprender a adaptar-se, conhecer o ambiente e os seus alunos podem fazer toda a diferença. A leitura elástica é um novo conceito de leitura que defende a transformação que aconteceu não só nas pessoas ao longo do tempo, mas também nos textos e na maneira como se lê. Várias plataformas surgiram e a leitura deixou de ser apenas em papel. O educador pode aplicar essas novas tecnologias no aprendizado do aluno, mantendo-se antenado ao cotidiano dos educandos. Esses recursos apareceram para ajudar na didática, todavia o professor não pode esquecer que os textos em papel e com linguagem um pouco difícil de compreensão também tem que ser utilizados, pois o ambiente para que o 165


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aluno aprenda o conhecimento cientifico é em sua maioria na escola, caso essas obras sejam deixadas de lado para apenas facilitar o aprendizado do aluno, onde ele vai aprender? Dificilmente um aluno de escola pública terá acesso ao conhecimento científico, obras literárias e textos mais complexos a não ser na escola, além de não ter o material físico, ainda tem o fato de: se não tiver um professor ao lado motivando, incentivando para que essa leitura seja realizada ele desistira no primeiro momento.

PROCESSO DE ESCRITA

Da mesma maneira que os estudos que iniciavam a leitura eram tradicionais e utilizavam a repetição e outros meios já ultrapassados, a escrita também seguiu a mesma linha, os professores/escola faziam os alunos escreverem várias folhas com as mesmas frases ou textos enormes para que “aprendesse a escrever”, depois que o aluno “dominava a escrita”, no caso só sabia mesmo copiar o que o professor colocava no quadro, essas cópias também serviam quando o aluno desrespeitava a professora e tinha como punição escrever em duas folhas “eu devo respeitar minha professora” a escrita não era valorizada como algo positivo e por prazer, tinha o mesmo estigma da leitura que era por obrigação. Além da cópia que era imposta outros pontos também deixavam os alunos chateados, a caligrafia custava um tempo e dedicação dos alunos, cujo único objetivo era a letra bonita, para isso existiam até livros exclusivamente para essa atividade, não bastava saber escrever, a letra também deveria ser agradável aos olhos e os alunos passavam a “desenhá-las”. A essência da escrita deixou de ser importante, e servia apenas para reproduzir algo, muitas vezes sem objetivo e sentido para o aluno, afinal se escrevemos é para um possível sujeito leitor e com um objetivo, já que a es166


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crita é um meio de comunicação que informa um discurso, ideias de dentro para fora, para que seja compartilhado com alguém. As regras ortográficas que o professor tanto faz questão de corrigir na produção dos alunos não garante que o aluno saiba ler, e seja um leitor crítico, sabe-se que é importante estudar as regras, pois a forma padrão culta exige esse conhecimento, e a maneira informal da escrita, utilizada na fala não é aceitável, entretanto não é o mais importante. Assim Para Calkins (1989, Apud PRESTES, 2001) “Quando os estudantes estão profundamente absorvidos nos temas de suas matérias, a instrução formal pode levá-los a novos níveis de compreensão e as intervenções feitas pelo professor podem fazer com que experimentem, testem e aprendam”. O professor deve reconhecer o autor aprendiz e suas experiências, orientar o aluno para uma escrita natural e expressiva, com planejamento, objetivos, definir as ideias, revisão e assim gerar um escritor com maturidade para escrever. Algumas dicas podem ser consideráveis como ler bastante, pois só conhece a palavra através da leitura, assim aumenta o vocabulário a cada nova leitura que deve ser diversificada, relevante, ajustada e contextualizada para o aluno; conhecer a origem das palavras já que as mudanças acontecem raramente. Não há conhecimento linguístico (lexical ou gramatical) que supra a deficiência do “não ter o que dizer”. As palavras são apenas a mediação ou o material com que se faz a ponte entre quem fala e quem escuta, entre quem escreve e quem lê. Como mediação, elas limitam a possibilitar a expressão do que é sabido, do que é pensado, do que é sentido. Se faltam as ideias, se faltam informações, vão faltar as palavras. Daí que nossa providência maior deve ser encher a cabeça de ideias, ampliar nosso repertório de informações e sensações, alargar nossos horizontes de percepção das coisas. ANTUNES, Irandé (2003, p. 45). 167


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A orientação da escrita deve se adequar ao que é proposto pelo professor, pois para cada tipo de texto existe um tipo de escrita, entretanto a maioria delas precisam ter coerência, coesão, clareza, escolha das palavras certas e precisão na linguagem. Antes da era da tecnologia/internet os meios de comunicação utilizavam a escrita como matéria-prima e produto final, eram jornais, livros (em manuscrito), bilhetes, cartas, telegramas. Esse hábito da escrita e leitura poderia ser bem aproveitado para se fazer bons escritores/leitores, entretanto nessa mesma época a educação era restringida para um classe que tivesse condições financeiras melhores, títulos de nobreza, pessoas que trabalhassem no governo, religiosos, e assim a grande parte da população não tinha acesso “a alfabetização”, até um bilhete só poderia ser escrito por essas “pessoas privilegiadas”. No momento atual essa comodidade que a tecnologia trouxe transformou os alunos e professores e a maneira de dar aula. Sabe-se da importância da inovação e o quanto ela pode auxiliar na didática com aulas mais interativas, atrativas, criativas, todavia quando se trata de escola pública esse novos avanços existem, mas não podem ser utilizados, o sucateamento da educação atrapalha o aprendizado, escolas não tem equipamentos, quando tem estão quebrados ou são insuficientes, e se o professor quiser trazer para os alunos “essa aula mais atrativa” tem que custear por conta própria. E as poucas que possuem os professores não são capacitados para o uso dos equipamentos tecnológicos. O professor de língua portuguesa diante dessa situação precisa ser criativo e tentar passar por cima das dificuldades, utilizar as ferramentas tecnológicas como apoio, não como substituição do professor em sala, entender a importância da tecnologia que já faz parte da vida de todos inclusive dos alunos, além de alguns livros didáticos que já trazem o gênero digital na grade curricular. Outra possibilidade é rever algumas utilizações da escrita 168


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e trabalhar em sala a produção de texto em forma de bilhetes, cartas, telegramas, um projeto de jornal na escola, algo que mostre a importância da escrita como meio de comunicação. Diferente da leitura que os professores dizem não ter tempo no horário para essa atividade, a escrita é utilizada muitas vezes como pretexto para “matar o tempo”, quando o professor não planejou a aula, ou acontece algo que não estava previsto passam logo uma redação que pode ter tema livre ou orientado, a única coisa que não muda é depois que o professor recolher os textos muitas vezes faz apenas a correção ortográfica, quando de fato faz, depois e entregue ao aluno, as vezes atribuem uma nota e outras vezes não, assim o aluno se depara com aquela situação da “escrita sem objetivo e/ou função”. Apesar desse papel relevante, o ensino da língua materna tem apresentado falhas no meio escolar. Na tentativa de suprir essas falhas, uma contribuição importante pode ser dada através de uma maior integração entre a leitura e a escritura no ensino. E uma das maneiras de promover essa integração é proporcionar ao educando instruções quanto à recepção e à produção de textos, para que ele possa, de maneira consciente, melhorar seu desempenho em leitura e escritura. PRESTES, Maria (2001, p. 5). É valioso considerar a produção do aluno, pois escrever é produzir leitura assim o professor poderia utilizar a obra do aluno para servir com atividade, leitura em grupo, elaboração de perguntas e até a avaliação do semestre sempre partindo da produção textual do educando. O desempenho melhoraria, pois para uma boa escrita é necessário praticar, mas com objetivo, com reflexões, mesmo que no início o professor tenha que corrigir alguns “erros” com o tempo à escrita pragmática enriquecerá o vocabulário do aluno, ele ficará mais atento e cada vez terá mais estímulos para o crescimento como escritor. O desejo de aprender a escrever, os hábitos de leitura, e a maturidade do aluno é o que podem garantir a ele ser um autor/leitor crítico. 169


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COMPREENSÃO E INTERPRETAÇÃO DE TEXTOS Quando o aluno/leitor se depara com o texto, a decodificação da palavra e a identificação da letra não garante que entenderá o que ali está escrito. De acordo com LUFT, Celso (1985) “Não tem nenhuma importância saber regras explicitas: não creio que todos os nossos bons escritores fossem aprovados num teste de português à maneira tradicional; no entanto, são eles os senhores da língua.”. As perguntas simples sobre o texto como: “quem é autor? O que ele queria dizer?” gera um leitor passivo, sem expressão, sem crítica apenas alguém que identifica palavras. Existe uma diferença entre compreensão e interpretação de texto e é importante o professor diferenciar para poder avaliar e compreender o desenvolvimento da aprendizagem do aluno. Conforme VIANA, Joi (2017) “Pode-se depreender que o ato de interpretar leva o ser a pensar, a refletir ou a desvendar o que foi transmitido em um texto. Interpretar implica conhecer o significado e o significante, buscando sempre a semântica — estudo do significado”. A compreensão na leitura requer que o leitor apenas identifique o que está escrito, não a decodificação da palavra, mas a ideia/sentido do texto, que apesar de parecer simples demanda do aluno um conhecimento prévio, de mundo, valores, cultura, linguagem e de gramática também, porque uma vírgula pode mudar a semântica de uma frase e distorcer o discurso de uma obra. Para orientar o aluno, o professor pode dizer que existe um caminho a seguir para uma compreensão satisfatória do texto: o título, palavras repetidas ou palavras chave que induz na maioria das vezes do que se trata e qual o assunto do texto. A produção escrita pode trazer uma ideia principal ou várias, que define o problema a ser tratado no texto. Em alguns casos traz a discrição do/os problema/s e a/s solução/ões, como nos textos dissertativos. Explicar a 170


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coesão e coerência, os conectivos que dependendo da maneira aplicada podem mudar os sentidos. Ensinar o aluno a identificar a microestrutura e macroestrutura dos parágrafos, os tipos de textos, os gêneros textuais e mostrar para o aluno que cada tipo de texto requer uma linguagem especifica, respeitar a linguagem poética que exige além de uma simples compreensão. Apesar de parecer muito a compreensão é o passo mais simples da pós leitura, pois depois de todas essas informações a pratica da leitura provém aos alunos que fique cada vez mais fácil o entendimento, entretanto alguns educandos/leitores ainda se queixam de não conseguirem compreender algum tipo de texto, barra na linguagem que não é habituado a ver e ouvir, ou em alguma ideia que sequer tenha pensado ou vivido; para isso ele pode conversar com os amigos, professores, sobre o que esta lendo pois poderá refletir junto com o outro e conseguir compreender o texto criando seus próprios argumentos, a leitura necessariamente não precisa ser apenas entre duas pessoas (escritor e leitor), mas pode ter vários leitores que em conjunto conversaram com o autor pra que a compreensão ocorra. Para LOPES, Marcos (2015) “o leitor é o construtor de sentidos, um inventor de significados, atuando com larga margem de liberdade em suas tarefas.” Ainda que as pessoas tenham características individuais, com pensamentos e valores distintos uns dos outros, alguns textos exigem que o leitor tenha a compreensão que se aproxime do autor, pois quando o entendimento do texto vai além do que está escrito e há questionamentos, que aparentemente não estavam explícitos esse processo não faz mais parte da compreensão se torna um processo de interpretação. Quem pretende escrever de forma coerente tem que partir de um pressuposto claro, bem definido. Isto vai depender do conhecimento que temos do mundo, das leituras que vimos fazendo ao longo do tempo. Antes mesmo 171


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de escrever, já devemos saber o que queremos passar ao leitor. (VALENÇA, 1998, p. 85). O aluno precisará mais do que nunca do conhecimento de mundo, linguístico e senso crítico para conseguir fazer uma reflexão com argumentos que darão a base para a interpretação de textos. Toda interpretação deve conter argumentos e o ponto inicial para uma boa interpretação é: conhecer os fatos/informações, com a ideia que o texto quer passar (compreensão textual), depois de descoberto por meio de compreensão qual o discurso do texto, é preciso criar hipótese para o problema, responder uma pergunta por vez do texto, porque o texto pode trazer mais de uma ideia, ou até mesmo uma única ideia pode gerar vários questionamentos, e a medida em que o aluno/ leitor vai respondendo vão surgindo outras e assim seguem durante toda a explanação das possíveis suposições. O leitor deve escolher qual crítica quer defender no texto, se concorda ou não com o autor, e assim criar um discurso para defender suas opiniões, encadeando os argumentos com o objetivo de não só responder ao que o texto propunha, mas elaborar outros questionamentos, ideias e suposições. Segundo VALENÇA, Ana (1998) “Uma das maiores preocupações de quem escreve é de não se perder dentro do tema que lhe foi proposto. A manutenção da unidade do texto e a produção de sentidos só acontecem se soubermos argumentar.”, assim os argumentos para serem bem construídos precisarão de dados colhidos da realidade, utilizar citações ou suporte teórico de pessoas especializadas no que se quer falar, e por fim de exemplos e ilustrações que comprovarão a tese na prática. Quanto mais rico o vocabulário de um indivíduo, maior a possibilidade de escolha da palavra adequada a um determinado contexto, o que contribui para a precisão, clareza e elegância da expressão. A leitura é, comprovadamente, a principal atividade responsável pela ampliação do vocabulário, por isso a necessidade de cultivar esse hábito desde a mais tenra infância. Entretanto, 172


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à leitura deve associar-se a prática constante da redação, pois só se domina o sentido das palavras quando estas passam a fazer parte do vocabulário ativo, quando se passa, efetivamente, a empregá-las. (OLIVEIRA, 2003, p. 195) A interpretação surge através das entrelinhas do texto, algo que não é explicito e que precisa ser identificado pelo leitor através de “pistas” que são construídas ao longo do texto. Como a interpretação necessita de um suporte prévio do aluno ela se torna muito pessoal. Na maioria das vezes quando oferece um texto ao aluno a compreensão deve ser a mesma entre os alunos, pelo menos a ideia principal deve ser reconhecida por todos, mas na interpretação pode acontecer vários pontos de vistas, ou até mesmo nenhum quando o aluno não tem “repertório” para que consiga desenvolver além do que está escrito. Os alunos podem questionar o professor sobre qual a importância de ler aquele texto, mas não quanto à interpretação. Para SILVA, Luiz (2005) “Nosso conhecimento de mundo deixa-nos muito mais propensos a acreditar em possibilidades.”. É importante que o aluno esteja preparado para interpretar até porque ele utilizará essa capacidade de ler entre as entrelinhas em tudo na vida, em um contrato de trabalho, nos relacionamentos, e nas provas (vestibulares) da vida. De acordo com SILVA, Luiz (2005) “A Atividade discursiva só deve ser interpretada levando-se em conta todo o processo interacional em que atuam os interlocutores.” A interpretação exerce uma função social que pode ser feita além dos textos no papel. Interpretar é além de conhecer é expressar-se, apresentar seu ponto de vista, é criar um leitor emergente sempre em busca de respostas para diversas situações.

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PROCEDIMENTO METODOLÓGICO Tipo de pesquisa Foi aplicada uma pesquisa de campo sob o método de experimentação, já que o objetivo é analisar os alunos avaliando-os em seu desenvolvimento durante a pesquisa e assim chegar a conclusões sobre a dificuldade de compreensão e interpretação de texto. Segundo MARTINS JÚNIOR, Joaquim (2014) “Uma pesquisa exploratória serve também para: Aumentar o conhecimento do pesquisador acerca do fenômeno que deseja investigar num estudo posterior mais estruturado ou da situação em que pretende realizar tal estudo”.

Local da pesquisa

A escola é estadual e fica localizada no município de Igarassu no Estado de Pernambuco. Possui aproximadamente 3.000 alunos, distribuídos em 39 turmas do 1º ao 3º ano do ensino médio regular e semi-integral, EJA e Travessia. O corpo docente corresponde a 40 professores. A escola possui 16 salas, uma biblioteca que apesar de ter um acervo e estrutura física boa, os alunos só utilizam quando solicitado pelos professores. Não tem quadra e para as atividades físicas. São 2 banheiros para os alunos e 2 para os professores e funcionários. Existem 3 bebedouros coletivos, um no refeitório para os alunos, na sala dos professores e um na secretaria, entretanto a falta de água e constante e os aluno/professores tem que trazer água de casa ou compartilhar com os amigos, situação que atrapalha o desenvolvimento da aula e a aprendizagem do aluno. Tem uma sala para a coordenação, uma para a direção, uma secretaria, uma cozinha, um auditório e a sala dos professores. Existe um refeitório que é utilizado pelos os alunos. O turno de funcionamento é manhã, tarde e noite 174


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(para as turmas do EJA e Travessia), além de algumas turmas com o horário do semi-integral que funciona em horários diferentes sendo manhã de 07:00 às 14:00 e a tarde das 14:00 as 20:30.

Público alvo

Foram selecionados 45 alunos para tabulação da análise de dados, entretanto a pesquisa foi aplicada em duas turmas, com o total de 50 alunos. As turmas são 1º ano E e 1º ano F do ensino médio do horário semi-integral da manhã, que tem a mesma professora como responsável pela disciplina de português.

Instrumento da pesquisa

A pesquisa teve três questionários, cada um com características diferentes, que juntos avaliariam de maneira mais completa qual a dificuldade de fato para a compreensão e interpretação de textos. Questionário 1 (Conhecimento de mundo) - É entregue ao aluno um Quiz com 09 perguntas e as respostas são objetivas com 4 alternativas, sobre questões da história do Brasil e de outros países, sobre ciência, química, atualidades, conhecimentos adquiridos não só por meio científico, mas pelo senso comum. Questionário 2 (Linguagens) - É exposto para o aluno um questionário com 3 perguntas, todas retiradas do Enem 2018 na parte de língua portuguesa, caderno azul. A 1ª pergunta tem um cartaz publicitário e questiona o aluno sobre a variedade linguística, a 2ª um trecho de um texto de Guimarães Rosa, exige uma interpretação literária, a 3ª uma charge pede que o aluno compreenda-a para que possa interpretar. O aluno nesse questionário será avaliado pelo conhecimento da variação linguística, duas imagens deverão 175


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ser analisadas (compreendidas) e um texto literário para que consiga fazer a interpretação. Questionário 3 (Compreensão e interpretação de texto) - É apresentado um texto do gênero literário “A menina dos fósforos” (contos de Andersen. Trad.Guttorm Hanssen. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2002.) conta a história de uma menina podre que vendia fósforos na rua e como não tinha conseguido vender nenhum, ficou com medo de apanhar em casa, preferindo dormir na rua morrendo de frio e fome. Após o texto é apresentado 5 questões com respostas dissertativas, as quais devem obter do aluno não apenas a compreensão, mas a interpretação que ele obteve com o texto. 1ª - Qual o tema do texto? Qual a ideia implícita no texto? 2ª - Como é o cenário em que encontra-se a menina? Descreva o cenário físico e social? 3ª - O cenário em que a menina está inserida traz características da atualidade, marque os trechos que podem ser encontradas essas comparações e explique. 4ª - Porque a menina não queria voltar para casa? O que você faria no lugar dela? Porque a menina riscava os fósforos? 5ª - Atualmente o tema principal dessa estória virou notícia por um comentário do atual presidente do Brasil “Não prejudica as crianças” e nas redes sociais em 05 de setembro um vídeo viralizou, mostrava um menino do maranhão que vendia geladinho e foi humilhado por colegas. Dê opinião sobre os dois fatos e comente se concorda ou não, porque?

Metodologia

A escola pública foi escolhida para a pesquisa porque a maior parte da população brasileira não tem condições de pagar por uma educação. E assim 176


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seria mais preciso um resultado da hipótese desejada. Foi escolhido o nível do 1º ano do ensino médio pois é considerado uma fase de amadurecimento intelectual e psicológico do adolescente, além de já ter passado “em tese” pela alfabetização, então acredita-se que é um período de novas descobertas dos alunos e período de construção do ser critico e criativo. O horário e dia para a aplicação do questionário foi definido pela professora regente da turma e apesar de serem aplicados os questionários para 50 alunos, foram escolhidos apenas 20 do 1ºE e 25 do 1ºF, porque foram descartados: os que se recusaram a responder, os que deixaram em branco as respostas, e os que não atingiram o mínimo desejado. Além de não querer constranger os alunos caso não fossem escolhidos para responder. Foi necessário dispor de três questionários visto que no decorrer dos estudos as possíveis hipóteses para o problema de dificuldade em compreensão e interpretação de textos precisavam ser balizadas, percebeu-se nos alunos avaliados: desconhecimento de mundo, dificuldade na linguagem e dificuldade para reunir os elementos necessários anteriores e elaborar suas próprias ideias, pensamentos em busca de um discurso coerente. Cada questionário contém uma dessas hipóteses. Poder-se-ia conseguir identificar qual o maior problema do aluno.

Análise dos dados

Questionário 1 - conhecimento de mundo Verifica os conhecimentos do aluno no que se refere ao senso comum, conhecimento científico adquirido por meio de estudos e pesquisas. Para a análise serão divididos em grupos com questões correspondentes a: ciências, atualidades, fatos históricos, conhecimentos gerais, química e português. 177


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Ciências - questões 1 e 7

É notável que no 1º quesito a maioria dos alunos das duas turmas acertaram, porque o assunto sobre planetas é visto desde o ensino fundamental I, já no 7º quesito a turma do 1º ano F teve a maior parte de erros 9,24%, entenderam a pergunta, entretanto confundiram sobre o funcionamento dos órgãos assunto correspondente ao 8º ano do ensino fundamental II. Atualidades - quesitos 2 e 3

No que corresponde à atualidade, ambas as turmas desenvolveram bem, principalmente a Tuma do 1º ano F em que todos acertaram 11% as duas questões, são alunos que fazem uso da internet e conversam com amigos e professores sobre assuntos do dia-a-dia.

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Fatos históricos - questões 4 e 5

A turma do 1º ano E conseguiu acertar a maioria no 4º quesito, que correspondia ao atentado das torres gêmeas, apesar do assunto ter sido citado um mês antes da aplicação desse questionário alguns alunos erraram. Já quando perguntado sobre a data do golpe militar no Brasil a maioria errou 4,95%. O desempenho do 1º ano F foi tão bom quanto às questões de atualidades, mostrando o conhecimento sobre parte da história do país que reside. Conhecimentos gerais - questão 6

Os alunos do 1ºE não conseguiram atingir um nível satisfatório e se complicaram com as alternativas sobre a sigla OVNI, já o 1ºF apesar de apresentar 3,96% de erro resolveu bem a questão acertando 7,04% que corresponde a mais da metade dos questionários analisados.

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Química - quesito 8

Apesar da maioria das turmas terem acertado essa questão 8,8% 1ºE e 7,7% 1ºF, alguns fatores influenciaram positivamente e negativamente: alguns alunos tinham a tabela periódica no caderno e consultaram a quantidade de elementos e outros disseram que começaram a ter aula de química há pouco tempo por isso não detinham desse conhecimento, gerando 4,95% 1ºE e 1ºF 2,2% de erros Português - quesito 9

A maioria dos alunos do 1ºF 6,6% não conseguiram diferenciar entre os verbos regulares e irregulares, já o 1ºE teve apenas um aluno que errou a questão 0,55%, mostrando que apesar de não serem atentos aos fatos históricos e a atualidades conseguiram ter um bom desempenho no que se trata aos verbos regulares e irregulares. 10,45% de acertos e 4,4% de erros.

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Quantidade total do questionário 1

Nas duas turmas os alunos acertaram mais de 70% de todo o questionário, registrando que obtém um conhecimento de mundo satisfatório. As turmas apresentam características distintas e o 1º ano F destacou-se nos conhecimentos da atualidade e fatos históricos já o 1º ano E apresentou bom rendimento nos verbos regulares e irregulares. Questionário 2 - Linguagens

Constata o aprendizado do aluno no que se refere às linguagens, apresentando questões com enfoques em três tipos de linguagens: anúncio publicitário com imagem e texto escrito, texto de gênero literário com uso de palavras rebuscadas, em desuso e de difícil compreensão por parte dos alunos; e o último apresenta uma charge com ação dos personagens, falas nos balões e uma breve narrativa que corresponde ao título de cada quadrinho.

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Na 1ª questão o 1ºF acertou 29,26%, o que corresponde a maioria da turma, conseguindo analisar o anúncio publicitário e compreenderam o que foi solicitado. O 1ºE não atingiu uma tabulação aceitável 18,26%, já que foi trabalhado questões com o gênero publicitário no livro didático e nas provas ao longo do ano. Na 2ª questão ambos saíram-se mal e não atingiram um índice satisfatório de acertos (29,88% do 1ºE e 26,6 do 1ºF de erro), a falta de familiaridade com textos do gênero literário prejudicou as duas turmas, apesar de já estar no final da 3ª unidade e de “conhecerem a literatura”, pelo menos deveria ser essa a “ideia”. A 3ª questão o 1ºE apresentou um nível de erros muito alto 26,56%, o 1ºF apresentou um bom rendimento nos acertos 18,62%, mas poderia ter sido melhor, visto que a charge é uma “velha conhecida” do aluno do 1º ano do ensino médio, sendo cobrada não apenas na disciplina de português, como em inglês, história, geografia e outras. Quantidade total do questionário 2

Foi constatado que os alunos do 1º ano E (74,70% de erro e 24,90% de acerto) tiveram mais dificuldades com as linguagens que o 1º ano F (45,22% de erro e 54,53 de acerto), mesmo assim é importante trabalhar mais com as turmas os diversos tipos de linguagens, os tipos de textos e os gêneros, além de dispor mais obras literárias, e outras leituras para que o aluno conviva 182


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com outras maneiras de se ler e escrever, visto que a licença poética permite liberdade ao que se produz. Questionário 3 - Compreensão de interpretação de textos

Analisa o conhecimento prévio de mundo do aluno, a compreensão do texto e a possibilidade de elaboração de hipóteses, ideias, para que o aluno crie sua própria perspectiva de visão a respeito do discurso do texto. 1ª questão

A turma do 1ºE conseguiu atingir um nível satisfatório de interpretação de texto, o que corresponde a 10% de acerto e apenas 1% de erro e a maioria da turma do 1ºF 6,4% não conseguiram identificar qual era a ideia implícita no texto, apesar de ser discutido em sala o conceito e de contextualizar o assunto. Consequentemente o 1ºF teve 5,6% de erros o que significa que não conseguiu responder as duas perguntas do quesito e fugiu completamente do tema.

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2ª questão

Foram apresentadas as turmas, além do texto explicações sobre termos do uso de linguagens que ele poderia não conhecer o conceito e a contextualização nos exemplos no cenário físico e social. Entretanto, nas duas turmas houve um índice muito alto de respostas incompletas 11% do 1ºE e 13,60% do 1ºF sua maioria no que diz respeito ao cenário social, muitos confundiram o estado emocional da garota com a sua representação na sociedade. Apesar disso o 1ºE teve 8% de acerto enquanto o 1ºF 5,6%. 3ª questão

Essa questão exigia que o aluno conseguisse responder o quesito anterior para que responda esse, como muitos alunos tiveram dúvida sobre os “cenários” 8% dos alunos do 1ºE deixaram em branco, enquanto foram apenas 4% do 1ºF, contudo conseguiram sair bem melhor nesse questão do que na anterior e alcançaram 9,6% e o 1ºE 8% de acertos.

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4ª questão

Esse quesito demandou do aluno respostas pessoais, todavia a última pergunta exigia que o educando tivesse a compreensão do texto e a interpretação para criar hipóteses sobre “porque a menina riscava os fósforos?”. Por causa das respostas pessoais o nível de acertos nas duas turmas foi alto. O 1ºE com 13% e o 1ºF com 10,4% entretanto ao que se refere à última pergunta eles não conseguiram captar as ideias e por isso o 1ºE atingiu 7% de erros, seguindo de apenas 0,80% da outra turma, que teve um percentual de 8,80% como incompletos. 5ª questão

Essa alternativa requeria do aluno um conhecimento da atualidade e posicionamento crítico, as duas perguntas dessa questão exigiam uma opinião pessoal, mas com convicção da ideia a ser defendida, as duas turmas saíram-se bem, o 1ºE com 13% e o 1ºF com 12,8% de acertos. No que diz respeito a erros o 1ºE alcançou 5%, enquanto a outra turma ficou com apenas 0,80%, do mesmo modo que no quesito anterior o 1ºF deixou mais incompleto do que errado que correspondem a 6,4%. 185


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Quantidade total do questionário 3

A turma do 1º F pelo comportamento, pelas discussões em sala de aula durante a realização do questionário aparentemente saiu-se melhor, pois pareceram críticos e reflexivos, entretanto não conseguiram transcrever isso para o papel, e obtiveram apenas 44,8%, enquanto o 1º E aparentemente calado e contido conseguiram atingir 52% de acertos. Os que deixaram em branco corresponderam a 10% no 1ºE e 4% no 1ºF. Deixando claro que quando deixam em branco é porque ou não conseguiram compreender ou interpretar, é mais aceitável a opção de não compreensão, porque caso o aluno não consiga interpretar entra no percentual de incompletos ou errados. O nível de incompletos também foi grande no 1ºF no percentual de 40,8%, significa que eles não são objetivos e concisos, muitas vezes escrevem muito, mas não “dizem nada” do que é pedido, é necessário praticar a produção textual para que possíveis falhas sejam corrigidas.

CONCLUSÃO

Após investigar as dificuldades de compreensão de texto a partir do conhecimento de mundo, apontar os fatores que interferem para a compreensão das diversas linguagens e de destacar o nível de interpretação de texto a partir da análise de um conto, pode-se perceber que as hipóteses criadas foram fundamentais para determinar os níveis de desajustes de aprendizagem. 186


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No questionário de conhecimento de mundo notou-se que quando o aluno adquire “esse conhecimento” consegue desenvolver bem nas outras questões no que se refere a interpretação, pois o entendimento sobre determinado assunto dá a base para que ele possa seguir. Se ele for um educando critico, reflexivo, esforçado e estudioso utilizará esse beneficio como primeiro degrau para seguir em frente, pois se ele conhecer o assunto, mas não quiser pensar de maneira mais aprofundada de nada adianta uma consciência rasa. Quanto a linguagem os alunos estão despreparados, pois saíram-se mal nas três questões, mesmo com uso de imagens em anúncios publicitários e a charge que poderia facilitar o entendimento, visto que é um recurso a mais e menos leitura porque, os alunos queixam-se com frequência de textos longos. A compreensão é ineficiente a ponto de atrapalhar a interpretação. Textos dos gêneros literários também foram “uma pedra no caminho” para o desenrolar da questão, pois a falta de familiaridade com leituras de licença poética e uso de palavras rebuscadas, que não pertence mais ao uso do cotidiano deixam o aluno tão preocupado em decifrar o significado da palavra que não observam todo o resto. O aluno com o conhecimento de mundo e a linguagem já fazendo parte do repertório, precisa apenas interpretar, algo que deveria ser fácil, entretanto mostrou-se não ser suficiente. É algo indispensável, mas não é o principal. O educando tem um desacordo entre o que sabe e como colocar no papel, no caso expressar-se, às vezes até alunos críticos e reflexivos tem discrepância em ser claro e objetivo no que se escreve e no formular hipóteses e ideias. Diante de tudo que foi abordado percebe-se que para um aprendizado satisfatório nos campos de compreensão e interpretação de textos o educador deve apresentar diversos tipos de textos e gêneros, inserir outros conhecimentos além dos determinados pela grade curricular que correspondam a compreensão de mundo, incentivar a produção textual e instigar o aluno a refletir. 187


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Resumo Este artigo tem por objetivo discutir a distopia presente em O Homem do Castelo Alto (2009) e, a partir dos conceitos da literatura utópica e distópica, analisar o funcionamento do enredo distópico que se apresenta, de modo radical, como alerta sobre as consequências de ideias sociopolíticas e tecnológicas que pretendem protagonizar o progresso humano. As distopias, ao contrário das utopias e suas sociedades racionalmente felizes, demonstram um futuro catastrófico com elementos do fantástico e ou realista, mas em sua maioria, apresentam o hoje disfarçado de amanhã. Para esse empreendimento utilizamos os conceitos teóricos utópicos e distópicos em Vieira (2010), Clayes (2010) e Clayes e Sargent (1999). A metodologia utilizada é a bibliográfica e comparativa, pois o nosso entendimento é que há as mesmas marcas presentes em outras obras do (sub)gênero. Observamos que Dick (2009), assim como outros autores do gênero em outros contextos narrativos, utiliza-se deste gênero para demonstrar como seria um mundo dominado pelo nazismo pós Segunda Guerra Mundial e como a consciência coletiva iria se adaptar nesta realidade alternativa. Palavras-chaves: Utopia e Distopia; Ficção; Totalitarismo.


E SE A UTOPIA TOTALITÁRIA FOSSE REAL: A LITERATURA DISTÓPICA COMO ALERTA A SOCIEDADE ÉRICO MONTEIRO DA SILVA1

INTRODUÇÃO A obra O Homem do Castelo Alto, de Phillip K. Dick (2009), é ambientada em um período pós Segunda Guerra Mundial, em que os países do eixo, Alemanha, Japão e Itália venceram a guerra e, a Alemanha e Japão expandiram seus domínios territoriais por todo o mundo. A narrativa demonstra a perspectiva nazista posta em prática e, a partir desta perspectiva ideológica que a história é moldada, demonstrando como seria o mundo caso a Alemanha Nazista conquistasse o seu objetivo: o controle social e o expansionismo territorial, determinando desde as atividades políticas e econômicas, até as culturais e educacionais. Em conjunto, o Japão oferece à cultura e a religião referências a serem exploradas no cotidiano dos personagens que habitam o lado Americano administrado pelos próprios japoneses. O Homem do Castelo Alto é uma obra de ficção distópica que nos apresenta, aos poucos por meio dos personagens, uma realidade alternativa totalitária. Não se trata de um futuro assustador ou desolador — apesar de alguns personagens presentes na obra precisarem viver sobre outras identidades para evitar os campos de concentração ou os negros e africanos, que dos poucos que restam, são escravos — o livro narra de fato o cotidiano de uma nação subjugada e todos os seus elementos complexos, levando a questionamentos 1. Mestre em Letras - Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e doutorando em Letras - Linguística pela mesma instituição. eric9r@gmail.com. 191


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morais mais aprofundados com a realidade do leitor, talvez esteja nesse fator a riqueza e liberdade da obra frente a outras do gênero, pois não insere o “e se” da mesma maneira que seus pares, mas constrói tal realidade a partir de acontecimentos dependentes das ações das nações opressoras. A estrutura narrativa da obra em questão possui alguns elementos que a aproxima do gênero distópico mais comuns, porém não há paralelos com a “realidade” e o conhecimento fabricado que decorre do esquecimento como manipulação e controle social; tão pouco um há um herói que acende questionador ou lugares distópicos nos quais a sexualidade e as relações são complemente diferentes; muito menos há queimas de livros como meio de censura e controle emocional tornando a sociedade apática e insensível. A realidade parte de uma entidade social que toma para si a consciência do Nazismo. Contundo, essa entidade presente é descentralizada, graças ao I Ching e O Gafanhoto Torna-se Pesado. É a partir dessa descentralização que as questões sobre a realidade vêm à tona, pois o controle social e político, em conjunto com as questões religiosas e o sonho de outra realidade possível são postas pelo autor como modeladores de algumas camadas da realidade formando a sua totalidade. Para chegar a tais evidências, precisamos apontar os indícios teóricos e marcados na própria obra, para isso passaremos por uma questão importante sobre a utopia e a distopia, por serem conceitos complexos, se pensarmos que as ideias que perpassam nas obras precisam elevar à máxima “sua utopia é a minha distopia”, e o alerta radical presente nas distopias caracterizam o gênero como um aviso à fatalidade decorrente da ideologia assumida pelo Estado totalitário.

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O HOMEM DO CASTELO ALTO A questão principal de Philip Kindred Dick, muito presente na sua extensa biografia, é o questionamento sobre a realidade. Segundo Peake (2015), Dick ganhou notável repercussão quando as obras de ficção científica estavam no auge em uma época em que as invenções tecnológicas suscitavam, no imaginário, grandes feitos. Quando aviões movidos a hélice davam lugar a jatos e jatos cediam espaço a espaçonaves lançadas por foguetes, na mesma época, o medo rondava o imaginário devido ao uso da bomba atômica, selando o fim da Segunda Guerra Mundial. Não era de se surpreender que diversas obras se debruçassem sobre o tema de guerras intergalácticas e do fim do mundo ou um mundo apocalíptico decorrente dos combates presente nas ficções científicas. Os caminhos de Dick perpassariam as tecnologias e as relações com a humanidade de forma mais complexa. Peake (2015, p. 26) explica que as ideias colhidas da ciência e da ficção científica, além de um conhecimento amplo de música, literatura, filosofia e teologia, acotovelavam-se para encontrar um lugar na mente de PKD. Humanos e androides, alienígenas e terráqueos, Spinoza e Sófocles, Deus e Belzebu, todos foram misturados na sopa “phildickiana” que girava dentro da sua cabeça.

Com tantas referências em mente, Dick viveu, apesar de controversa, de forma a contribuir com a sua criatividade adicionando “imersão em realidades paralelas mediante uso de substâncias psicoativas” (PEAKE, 2015, p. 16), lhe fornecendo ideias a partir das visões com supostos espíritos, extraterrestres e entidades além do tempo e espaço. Também possuía um estilo de escrita peculiar creditado aos efeitos de anfetaminas durante a escrita das obras, além de ser influenciado por seu precursor, A. E. Van Vogt, no desenvolvi193


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mento de diversas obras, como O Homem do Castelo Alto. A influência de Dick foi além das páginas dos livros, chegando até ao cinema com adaptações de algumas de suas obras, como a adaptação livre do romance Androides Sonham com Ovelhas Elétricas? (2014) originando o aclamado filme Blade Runner — O Caçador de Androides, dentre outros conhecidos pelo grande público. O Homem do Castelo Alto foi um dos seus primeiros trabalhos no gênero, livro ganhador do prêmio Hugo2, escrito sobre o gênero ficção científica, utilizou-se de técnicas narrativas mais realistas com traços da filosofia oriental. Apesar de revolucionário à época, Peake (2015) afirma que a obra foi inspirada por o livro Bring the Jubilee (1999 [1953]), de Ward Moore que contava uma versão alternativa da guerra civil americana e da Primeira Guerra Mundial, em que descreve um mundo dominado pelos confederados do sul (por toda a América) e os alemães (por toda Europa), além de conter, no enredo, um livro que narra outra versão dos acontecimentos da história. A partir dessas premissas, Dick desenvolve a história das realidades alternativas coexistindo e acrescentando elementos até então inéditos no gênero, como a percepção de um personagem central sobre a sua realidade ficcional, apenas vista em obras literárias do realismo mágico de Jorge Luiz Borges e Gabriel García Márquez e, mais a frente como elemento básico das ficções pós-modernistas. Outro recurso narrativo utilizado por Dick é a mudança de perspectiva a partir do personagem utilizado na trama, no caso, cada um dos personagens possuem subtramas que se conectam. Este recurso narrativo, inédito até então, torna ainda mais O Homem do Castelo Alto uma obra singular do gênero. Na trama temos os personagens: Nobusuke Tagomi, o chefe da missão comercial japonesa, contemplativo e ponderado, e bastante ligado a suas crenças budistas e confucionistas, tanto que é um dos personagens que mais utiliza o I Ching. É o único que adquiri consciência de si e sua importância na trama é intermediar, sem tomar conhecimento prévio, dos objetivos obscuros dos 194


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alemães em relação aos japoneses; Frank Frink (Fink), judeu e operário que perdera o emprego e para se manter, junto de seu novo sócio, Ed McCarthy, confecciona joias. Sua importância surge mais no efeito da sua existência e atos para os demais personagens, direta e indiretamente, além de mostrar as tensões de ser um judeu em linhas nada amigáveis, podendo ser deportado para os campos de concentração; Juliana Frink, ex-mulher de Frink, é professora de Judô em Canon City, Colorado, nas áreas neutras da EAP, se vê em uma conspiração depois de se relacionar com um suposto ex-combatente italiano que participou dos conflitos que ocasionaram o extermínio dos africanos e esvaziamento da África, Joe Cinadella. Sua trama gira em torno de um plano alemão sobre o responsável pelo livro Gafanhoto Torna-se Pesado. Outro personagem é Robert Childan, proprietário da American Artistic Handcrafts, possuí relações diretas com os japoneses graças a venda de antiguidades americanas bastante apreciadas. É a partir deste personagem que obtemos informações sobre o pensamento e ações japonesas nesta realidade. Com ambições de ser aceito por igual, Childan é o que tem um interessante crescimento na trama, graças às peças fabricadas por Frink, surge nele certo nacionalismo ao confrontar a imagem dos japoneses sobre os habitantes da EAP e seus produtos. Mr. Baynes é um rico industrial sueco que viajara a negócios e iria se encontrar com o Sr. Togomi. Mr. Baynes nos fornece algumas reflexões sobre a mente nazista e os horrores causados por tais ideais, além de nos integrar nos rumos tomados até então e nos revelar algumas surpresas. Com a morte do chanceler Bormann que chocou a Alemanha e criou uma tensão interna, causando novos acontecimentos e influenciando os passos do Mr. Baynes e do Sr. Tagomi e uma iminente guerra fria. A ambientação e os elementos filosóficos e religiosos presentes na obra tornam as características distópicas decentralizadas, pois o enredo privilegia a visão dos personagens e como estariam inseridos nessa realidade. Apesar 195


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do questionamento sobre a política imperialista do eixo e suas ideologias racistas e marginalizadoras, não há uma tensão contra este Estado, mas o estado distópico na qual os personagens estariam adaptados. Está distopia pode ser evidenciada a partir de alguns estudos que conceituam esse gênero e ajudam a entender a singularidade desta obra frente a importantes do seguimento.

UTOPIA E DISTOPIA - DOIS LADOS DA MESMA MOEDA?

Se observarmos a história Gafanhoto Torna-se Pesado, presente em O Homem do Castelo Alto e, nos questionarmos sobre o que seria utopia e distopia, veríamos que o conceito utópico ou distópico dentro desta narrativa não seria fácil de se obter a resposta. Tendo em vista que se nos lembrarmos que estamos em uma narrativa de um mundo alternativo e as inspirações e perspectivas são advindas de um mundo já totalitário, pensar em um mundo diferente com posições ideológicas diferentes em que a ordem seja controlada por outro tipo de espectro totalitário melhor do que a nazista, pode-se dar ao luxo de pensar em uma utopia. Para entendermos esta dicotomia, faremos luz a conceitos e à obra O Homem do Castelo Alto para entendermos que as utopias e distopias funcionam a partir do presente, ou seja, o estágio atual da sociedade em que fora escrito tal obra e suas aspirações futuras retratadas de modo positivo ou negativo, buscando sempre um alerta ou uma crítica social por meio da ficção científica. A utopia é um gênero literário que mescla uma narrativa sobre uma sociedade perfeita e um discurso político que expõem tal lugar como justa. Etimologicamente, significa u-topos, lugar nenhum. Segundo Vieira (2010), as definições dadas a utopia não devem ser interpretadas apenas como um neologismo, ou seja, a nomeação de algo ou nova condição pertencente a um 196


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lugar imaginário. A palavra utopia, muitas vezes utilizada como raiz para a formação de novas palavras são, de fato, neologismos de derivação, assume significados um tanto diversos a medida que o gênero ganha novos elementos. A palavra utopia utilizada por Thomas More para intitular seu livro, inaugural do gênero utópico, demonstra uma sociedade organizada, mas, segundo a autora, difere da República de Platão que também projeta uma cidade, mas essa, em comparação a More, é inferior por ser apenas um esboço. Na mesma linha de raciocino, a utopia encontrada em Santo Agostinho, nos volumes de A cidade de Deus, difere da Utopia de More, pois para Agostinho, o lugar perfeito só era possível alcançar na vida após a morte. O conceito de utopia como hoje concebemos advêm da literatura moderna, em que deixa o neologismo para se tornar uma palavra derivadora de outras, a exemplo de eutopia, distopia, anti-utopia, alotopia, euchronia, heterotopia, ecotopia, hiperutopia etc., assim, a aplicação conceitual para esta palavra se torna mais compreensível ao utilizar de narrativas tecnológicas futuristas e sociedades imaginarias avançadas, ou um pensamento político-social que pretende ditar os avanços de uma sociedade almejando um ideal. Esta dualidade entre a utopia e a politica, Vieira (2010) demonstra que o ideal político e a literatura não seguiram caminhos distintos, ambos se confundiam nas narrativas políticas2, ideológicas, especulações, criticas, dentre outros que circulam por meio de contos, romances e outros gêneros literários. O pensamento em algo novo e humano perpassou os séculos XVIII e XIX por ensaios políticos e filosóficos, uma crença em renovação da ordem natural das coisas, um sistema moral em conjunto com a felicidade política para assegurar um futuro magnífico de educação e disciplina como meios para a construção do novo homem capaz de erguer cidades fundamentadas 2. Não se refere as áreas científicas da política e da literatura que são independentes. 197


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nas leis morais advindas do intelecto. Este ideal era encontrado nos chamados socialistas utópicos, um movimento heterogêneo de ideias com um objetivo em comum, a reconstrução da sociedade. Neste contexto, Vieira (2010) afirma que Marx e Engels eram críticos do socialismo utópico, mesmos cientes que os socialistas estavam à frente do seu tempo, ao utilizar a teoria do materialismo histórico ao propor que a própria história causaria a destruição do capitalismo. Entretanto, os homens seriam fundamentais para acelerar este processo, conceituada como teoria do materialismo dialético, era utópica na medida em que imaginavam o futuro e ofereciam imagens promissoras de liberdade, estabilidade e felicidade. De certo, se as teorias do materialismo histórico e dialético, supostamente científicas, são as imagens do futuro resultante da revolução política, sem dúvida são especulativas. Com a incorporação das perspectivas utópicas de Marx e Engels, a compreensão do desenvolvimento do pensamento e da literatura utópica receberiam uma virada, passando de apenas uma busca de um lugar distante como ideal, para se tornar uma mudança local mais próxima, o nascimento de uma sociedade sobre a já existente. Segundo Clayes e Sargent (1999, p. 16), como “gênero literário, a utopia refere-se a obras que descrevem uma sociedade imaginária com algum detalhe. O pensamento utópico construído de forma mais ampla, no entanto, não se restringe à ficção e inclui também visionário, milenarista e apocalíptico”. Diante dessas possíveis categorias, os autores categorizam o gênero literário alargando os conceitos para uma melhor identificação do tipo de utopia e distopia que determinadas obras utilizam. Das definições, os autores elencam o Utopismo — sonho social, palavra derivada da “utopica”, refere-se as várias formas de imaginar, criar e ou teorizar sobre as formas alternativas, por vezes radicais, de vida. A Utopia — uma sociedade inexistente descrita em detalhes, normalmente com tempo e espaço localizados. A Eutopia ou utopia positiva — uma utopia 198


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em que o autor objetiva que o leitor contemple uma sociedade melhor em comparação a do leitor. A Distopia ou utopia negativa — com objetivos de mostrar ao leitor uma sociedade radicalmente pior em relação a do leitor contemporâneo. A palavra distopia entrou em uso não só para se referir a lugares imaginários que eram piores do que os lugares reais, mas também para trabalhos descrevendo lugares como frutos da corrupção da utopia. A Sátira utópica — uma crítica à sociedade existente. Foi o primeiro escrito que deu origem a distopia. A Anti-utopia — uma crítica do utopismo ou de alguma eutopia particular. aponta uma direção completamente oposta da utopia. Se a utopia é sobre esperança, e a utopia satírica é sobre desconfiança, a anti-utopia é sobre descrença total, seu único objetivo é denunciar a irrelevância e inconsistência do sonho utópico e como a sociedade pode ir à arruína. A Euchronia — a história era agora vista como um processo de melhoria infinita, uma narrativa dinâmica em que insere a noção de tempo e futuro levando em consideração as transformações do lugar utópico e suas projeções futuras. A Utopia crítica — uma sociedade contemporânea ideal, mas com problemas que pode ou não ser resolvidos, além de possuir na sua narrativa uma visão mais crítica do gênero utópico. Hilario (2013, p. 204) argumenta que o “utopista é aquele cuja função é deslocar a fronteira daquilo que os contemporâneos julgam possível, no sentido positivo e emancipatório”, logo, as condições que se apresentam não estariam apenas no imaginário, mas em condições reais em tecnologia assentada no progresso humano da época. Levando então a uma Eutopia, ou seja, um estado de felicidade contemplada pelo leitor que segundo Hilário (2013) a

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utopia antecipa, em certa medida, o movimento conhecido como Esclarecimento, onde a confiança na possibilidade de a Razão, livre dos dogmas, construir uma sociedade justa no decorrer do curso histórico é um pilar fundamental de sustentação ideológica. Progresso é o nome dado ao constante avanço da ciência e tecnologia na direção do controle da natureza, do conhecimento do mundo e sua transformação social em direção ao bem-estar dos indivíduos (HILÁRIO, 2013, P. 205).

Se o século XVI trouxe a ideia de utopia que visualiza um mundo baseado em ideias novas que emancipam a sociedade e a coloca no fluxo da esperança e confiança no futuro e que seguiu até o século XVIII com o discurso ideológico de ascensão como resultado dos debates sobre o racionalismo científico e a sociedade europeia, o século XX fez surgir a distopia como antítese para analisar as sombras produzidas pelas luzes utópicas, facilmente identificadas graças a degradação humana e o tipo de controle social (HILÁRIO, 2013). Silva (2018) esclarecesse que o primeiro texto considerado distópico, A Nova Utopia, de Jerome K. Jerome, de 1891, surge como uma sátira utópica ao pensamento socialista e comunista amplamente difundido na Europa do Séc. XIX. A história narra um homem que após beber e comer do bom e do melhor com amigos militantes dos ideais da igualdade, após ir para casa e cansado de tanto pensar nos discursos no qual estava simpático, adormece e acorda mil anos depois, em uma Londres futurista do Séc. XXIX. E acompanhado por um guia que lhe explica o funcionamento dessa sociedade avançada que abole qualquer tipo de diferenças naturais e sociais entre os seus habitantes. Com elementos que serão utilizados posteriormente na literatura distópica, Jerome cria uma narrativa em que narra as consequências de ideias utopicas que são corrompidas e transformadas em ideais totalitárias. Estas características são encontradas nos livros posteriores ao conto de K. Jerome, como em A Máquina do Tempo, de 1895, de H. G. Wells e Nós, de 1924, de Ievgueny Zamiatin. 200


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Segundo Clayes (2010), as distopias são, de fato, bastante críticas em relação às sociedades que refletem. Descrevem um retrato fictício de uma sociedade em que o desenvolvimento utópico social e político abarcou apenas uma parcela da sociedade, lhe concebendo vantagens, ou como uma sátira de aspirações utópicas que tentam demostrar suas falácias. Clayes (2010, p. 108), aponta que “o desejo de criar uma sociedade muito melhorada, na qual o comportamento humano era dramaticamente superior à norma, implica uma tendência intrínseca para métodos punitivos de controle do comportamento que inexoravelmente resulta em alguma forma de estado policial”. A gênese desses estados totalitários se encontram sutis nas obras. Diante dessas sutilizas, como afirma Silva (2018), é preciso observar os detalhes individuais nos personagens, pois neles estão a perspectiva do discurso totalitário a favor ou contra; da comunidade ou grupo que defendem tais ideais e os insurgentes contrários, em posições opostas nas relações de forças que tem como objetivo o poder na organização pessoal, familiar e social; o Estado que oficializa o controle e manutenção do regime pela força, medo e alienação, utilizando a estagnação social, econômica e cultural dos indivíduos que compõem tais comunidades ou grupos. Estes pontos podem servir para o reconhecimento ou hipóteses de uma obra distópica, além da sua ambientação. Esses traços estão presentes em obras como Admirável Mundo Novo, de 1932, de Aldous Huxley, ou em 1984 (1945), de George Orwell. Nestes casos, a definição serve às distopias totalitárias que claramente são distopias por explicitar as realidades refratadas. Cenários que podem estar no real, bastando eliminar os exageros narrativos, por exemplo, uma viagem a outros planetas pode ser considerada ficção científica no século XX, mas no século XXII pode ser uma realidade e explorado na literatura distópica. Outros cenários com distopias eugênicas podem ser aceitáveis, mas o mundo dominado por seres alienígenas, ou robôs, ou cenários apocalípticos retratando o final dos tempos por meio de Deus no Dia do Julgamento. 201


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De acordo com Clayes (2010), podem ambientar-se com elementos distópicos (bem como utópico, ou ambos simultaneamente), mas textos demonstrando tais eventos não são “distopias”. Podemos pensar que as questões do totalitarismo e das questões advindas do progresso científico e tecnológico que, em vez de impulsionar a humanidade para a prosperidade, tem sido fundamental para o estabelecimento do controle social e politico. As primeiras imagens de um futuro onde os resultados da pesquisa científica e do progresso tecnológico foram mal utilizados, são características básicas do cânone das distopias e, de fato, inspiraram gerações de autores. A obra de Dick, O Homem do Castelo Alto, apesar de conter outros elementos e, ainda assim, pertencer a uma obra distópica, é mencionada pouco como uma obra do cânone distópico. Por obedecer à lógica de tempo e espaço não característicos nas obras de ficção científica que se utilizam de elementos clássicos da distopia, e por ambientar o enrendo na época da guerra fria, onde o mundo estava dividido politicamente entre os EUA e a União Soviética, deixa claro que este mundo alternativo distópico é o nosso mundo refratado.

A DISTOPIA DOS VENCEDORES

Vieira (2010) alega que a distopia literária utiliza os mesmos dispositivos narrativos da utopia literária, incorporando em sua lógica os princípios de euchronia, mas prevê que as coisas acabarão de modo ruim. Na obra de Dick, a euchronia possui uma premissa macabra, a ideologia nazista alemã. Como ideologia alega que todas as manifestações histórico-sociais do homem e os seus valores (ou desvalores) dependem da raça; também segundo essa doutrina existe uma raça superior (“ariana” ou “nórdica”) que se destina a dirigir o gênero humano (…) Como o anti-semitismo era antigo na Alemanha, a doutrina do determinismo racial e da raça superior encontrou fácil difusão, traduzindo-se no apoio dado ao preconceito contra os judeus e à crença de que 202


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existe uma conspiração judaica para dominar o mundo; assim, o capitalismo, o marxismo e, em geral, as manifestações culturais e políticas que enfraquecem a ordem nacional são fenômenos judaicos”. (ABBAGNANO, 2007, p. 883-884). Por isto que essa ideologia é fundamentada no Racismo, doutrina que naturaliza preconceitos e expressa a força vital de uma raça sobre a outra, manipulando a realidade com fins violentos ou abjetos sobre a raça alvo. Evidenciado no trecho em que Childan vai ao encontro do Sr. Tagomi e precisa encontrar alguém para carregar a sua bagagem, quanto para se locomover até o local:

No fundo, pensou Childan, até que eu acharia divertido carregar minhas próprias malas dentro do Nippon Times, em plena luz do dia. Mas que grande gesto seria. Não seria exatamente ilegal, não me poriam na prisão. E eu revelaria meus sentimentos reais, o lado de um homem que nunca aparece na vida pública. Mas… Eu poderia fazer isso, pensou, se não fossem aqueles malditos escravos negros espiando por todos os lados; suportaria os olhares dos que estão acima de mim, seu desprezo... Afinal, eles me desprezam e humilham todos os dias. Mas sentir o desprezo dos que estão abaixo de mim? Como esse china pedalando aqui à minha frente. Se eu não tivesse tomado um bicitáxi, e ele me tivesse visto tentando ir a pé a um encontro de trabalho… (DICK, 2015, p. 33)

A utopia nazista conduz a essa realidade aterrorizante, mas a noção de superioridade racial também se encontra com os Japoneses que tornam os objetos de valor históricos dos Estados Unidos como meros suvenires e tratam a cultura local como exótica para os padrões orientais. Na narrativa, Childan já havia incorporado o nazismo nas suas ideias como uma raça superior e os modos nipônicos como modelos de civilização. De um ponto de vista teórico, Clayes (2010) percebe que o conceito de distopia tem sido muito contestado, muitas eutopias ou sociedades ideais com elementos distópicos afetam tais sociedades utópicas em suas narrati203


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vas, como em Admirável Mundo Novo, em que suas sociedades são descritas, a partir da visão de cada personagem, como uma sociedade ideal e considerando como contra ponto o outro como incivilizado ou animalizado, porém, as falhas eram percebidas e criavam uma ideia utópica sobre um terceiro lugar mais liberto e feliz. Entretanto, o tempo e espaço da narrativa de Dick não indica uma sociedade idealizada, mas uma sociedade em construção a partir das ideias nazistas e do controle nipônico sobre as colônias. Aliando os elementos distópicos que evidenciam a tecnologia e a ciência, é perceptível que são postas em segundo plano tais elementos, mas são utilizadas como instrumentos metodológicos para soluções de domínio, controle ou extermínio, demonstrando o viés de superioridade percebida e aceita por um dos personagens foram necessários duzentos anos para resolver o problema dos aborígenes americanos, e a Alemanha quase completara o serviço na África em quinze anos. Portanto, não era possível fazer nenhuma crítica legítima. Childan havia, na verdade, discutido o assunto recentemente num almoço com alguns desses comerciantes. Os outros esperavam milagres, evidentemente, como se os nazistas pudessem remodelar o mundo por magia. Não, aquilo era ciência, tecnologia e aquele fabuloso talento para trabalho duro; os alemães nunca deixavam de se esforçar. E quando executavam alguma tarefa, executavamna direito. (Dick, 2015, p. 35)

O desejo de criar uma sociedade modelada à imagem nazista não configura uma utopia, já que não é uma característica utópica os meios de extermínio ou uma raça ou parte de uma elite manter o controle para alcançar um ideal universalista. A distopia torna-se a expressão predominante do ideal corrompendo o ideal utópico, demonstrando os fracassos colossais do coletivismo totalitário que encarnam os desejos utópicos, mas não se preocupam com os meios para alcançar os fins. Childan é o personagem que compreende os 204


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fins nazistas e se conforma, muito consolado por uma ideia racista na qual ele não se vê vítima, apenas infortunado por não ser alemão, diz a si mesmo

o que os nazistas têm e que nós não temos... é nobreza. Podemos admirá-los pelo seu amor ao trabalho ou por sua eficiência... mas é o sonho o grande motivador. Os voos espaciais à Lua, depois a Marte; o desejo mais antigo da humanidade, nossa maior esperança de glória. Agora, os japoneses, por outro lado. Conheço-os muito bem. Afinal, faço negócios com eles praticamente todos os dias. São — vamos encarar os fatos — orientais. Amarelos. Nós, brancos, temos de nos curvar diante deles porque eles têm o poder nas mãos. Mas nós estamos vendo a Alemanha; estamos vendo o que pode ser feito nas regiões conquistadas pelos brancos, e é muito diferente. (ibidem, P. 35).

Na narrativa distópica, há a necessidade de saciar a vontade de destruir um grande número de “inimigos” locais em nome dos objetivos do regime, assim os judeus precisaram ser exterminados, devido a ser creditados a eles o controle eficaz dos meios de produção e mídia, em Dick, esse sentimento é particularmente nazista, como evidenciado no trecho “japas não mataram judeus, nem durante nem depois da guerra. Os japas não construíram fornos” (ibidem, p. 46). Apesar do desenvolvimento, o aforismo nacionalista de Childan contém elementos nazistas, demonstrando a consciência ainda moldada sobre esse espectro. Por outro lado, alguns personagens, como Baynes, que observa de forma critica os modos e o pensamento nazista, ao se questionar se realmente pertence a essa espécie, diferente de Childan, que branco crer não ser diferente, Baynes, ao retrucar um jovem alemão sobre o seu parentesco por ser branco, questiona: “Terei mesmo algum parentesco racial com esse homem?” (Dick, 2015, p. 52), neste momento percebemos que o personagem funciona como um agente com consciência sobre a sua realidade na narrativa e revela 205


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ao leitor a grande questão nazista e a utopia Alemã. Ao retratar essa realidade do lado controlado pelo Japão, as imagens distópicas nazistas são apresentadas pelos personagens centrais. O mentor das ideias totalitárias nazistas, Hitler, está em queda, fora da liderança e doente “era a vingança sardônica de Deus, do tipo das que aconteciam nos filmes mudos. Aquele homem horrível derrubado por uma sujeira interna, o castigo histórico para a maldade humana”, mas, suas “ideias já tinham agora contaminado uma civilização inteira e, como esporos do mal, as bichas louras cegas voavam da Terra para os outros planetas, espalhando a infecção” (DICK, 2015, p. 48). Com isto, Dick dá a entender que essa realidade, ao conquistar o universo dentro de um enredo da ficção científica, demonstra uma civilização hostil e expansionista. As incertezas dos personagens são evidentemente sensíveis e a dependência em algo a um livro considerado sagrado determina as ações de todos, com exceção dos alemães, tanto os Japoneses, quanto os habitantes dos EUA, utilizam o I Ching, em substituição a religião cristã, “vivemos de acordo com um livro de cinco mil anos de idade. Nós fazemos perguntas a ele como se fosse vivo. E ele está vivo. Como a Bíblia cristã” (DICK, 2015, p. 84). A religião serve de controle social, mas aqui temos duas questões, a fé nipônica em contraste com a doutrina nazista. Está dualidade implica formas de ver o mundo e compreender, de forma especulativa ou descrente, as consequências dos atos praticados. Porém, aqui, as consequências são inexistentes e o universo distópico se comporta como se fosse o lado avesso da antiutopia. O universo criado por Dick funciona como uma crítica ao pensamento nazista, na mesma linha de raciocínio, se houvesse uma outra realidade, ela seria também totalitária. No fim do livro, Dick dá a deixa, que de fato há outra realidade, mas não tão feliz assim, apenas uma perspectiva melhor, pois quem domina são os aliados EUA e Inglaterra. Com elementos mais reais no seu enredo, a narrativa presente em O Gafanhoto Torna-se Pesado, revela a 206


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forma mística que o livro fora escrito, narrado pelo personagem Abendsen, um tipo de avatar de Dick, que revela aquele mundo, cheio de intrigas, fora modelado pelo I Ching, o livro das mutações, da mesma forma que O Homem do Castelo Alto fora escrito.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O livro distópico escrito por Philip K. Dick contém elementos do gênero, mas que brincam com a noção da realidade. Não parte de ideais utópicos que fracassam e estabelece uma elite controladora que por meio do Estado que mantém seu poderio ideológico. Nas suas obras, Dick deslumbra cenários futuristas e as consequências tecnológicas nas sociedades, mas aqui, as questões tecnológicas passam para os segundo plano, conferindo destaque aos ambientes totalitários das realidades possíveis em O Homem do Castelo Alto e na obra ficcional presente na mesma, o O Gafanhoto Torna-se Pesado. Neste universo, o que há são vidas que se tocam e se conectam de alguma forma graças ao ambiente distópico. A narrativa não é presa ao gênero ficção científica e nem segue à risca o cânone. Ao introduzir elementos da euchronia, acerta na demonstração dos perigos de um mundo nazista idealizado. Ao introduzir a expansão do nazismo, os elementos realistas se fazem presente, pois a expansão e a colonização imperialista alemã vai de encontro as ideias utópicas de um lugar a ser encontrado. O elemento primordial da obra é a distopia funcionando em outro lugar, não limitada a um único Estado. Não temos uma narrativa que destaque algum personagem que toma consciência de si e das suas limitações frente a realidade vivida e enfrenta o estado distópico, mas um mundo dividido entre os brancos arianos e os amarelos japoneses e, aqueles que não fazem parte, precisam de alguma maneira se inserir. A obra aqui analisada não segue A Nova Utopia, de Jerome, mesmo com algumas semelhanças como a padronização e eliminação das diferenças 207


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naturais. Uma doutrina que visa além do homem, a urgência de deuses, Dick demonstrou o perigo de algo absurdo, perigoso até para quem se alia, visto que o plano de fundo da obra é uma iminente guerra fria, no mínimo, a vista. A obra possui muitos pontos a serem analisados, mas a questão totalitária que a narrativa utiliza é um dos pontos chaves, além de trazer atualizações para o gênero a partir do O Homem do Castelo Alto, com a inserção de mundos idealizados a partir de ideias obscurantistas que almejam um mundo perfeito com elementos da narrativa realista. A realidade alternativa de Dick possibilita a realização de uma sociedade dual, apesar da administração do Japão e a sua visão de colonizador e por consequência, de se colocar como um ser superior evidenciado na comparação cultural e na redução dos objetos ditos culturais como meros suvenires, a consciência dos personagens giram em torno do espectro nazista e toda a sua extensão social, tecnológico e expansionista espacial dos alemães, tanto que outra obra totalitária, mas sem o ideal nazista, é classificada, na própria obra, como um lugar ideal.

REFERÊNCIAS

ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de filosofia. Trad. Rev. Alfredo Bossi; Ivone Castilho Benedetti. 5 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2007. BUZELLI, José Leonardo Sousa. A nova utopia, de Jerome K. Jerome. Morus-Utopia e Renascimento, v. 9, p. 129-156, 2013. Disponível em http://www.revistamorus.com.br/ index.php/morus/article/viewFile/205/183. Acessado em 23 jan. 2019. CLAEYS, Gregory. The origins of dystopia: Wells, Huxley and Orwell. In: CLAEYS, Gregory (ed.). The Cambridge companion to utopian literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 107-134. CLAEYS, Gregory; SARGENT, Lyman Tower (eds). The utopia reader. NYU Press, 1999. DICK, Philip K. Androides sonham com ovelhas elétricas? São Paulo: Aleph, 2014. DICK, Philip K. O homem do castelo alto. Trad. Fábio Fernandes. São Paulo: Aleph, 2009. HILÁRIO, Leomir Cardoso. Teoria crítica e literatura: a distopia como ferramenta de análise radical da modernidade. Anu. Lit., Florianópolis, v. 18, n. 2. 2013, p. 201-215. 208


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HUXLEY, Aldous. Admirável mundo novo. Rio de Janeiro: Globo de Bolso. 22 ed., 2013. ORWELL, George. 1984. 29 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2003. PEAKE, Anthony. A vida de Philip K. Dick: o homem que lembrava o futuro. Trad. Ludimila Hashimoto. São Paulo: Seoman, 2015. SILVA, E. M. A utopia é a nossa distopia: a realidade moldada em o homem do castelo alto. Revista Científica Semana Acadêmica. Fortaleza, n. 156. 2019, p. 1-15. Disponível em https://semanaacademica.org.br/artigo/utopia-e-nossa-distopia-realidade-moldada-emo-homem-do-castelo-alto. Acessado em 09 dez. 2019. VIEIRA, Fátima. The concept of utopia. In: Clayes, Gregory (ed.). The Cambridge companion to utopian literature. Cambridge: Cambridge University Press, 2010. p. 3-27.

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Resumo A escola desempenha um papel importantíssimo na sociedade, especialmente quando se trata da interação e do convívio social. É nesse espaço que as crianças e os adolescentes partilham as suas experiências e frustrações cotidianas. Em contrapartida, ele também pode ser um ambiente extremamente hostil e reprodutor de estereótipos que marginalizam os sujeitos que não se encaixam nos padrões de masculinidade e feminilidade. Nesse sentido, as palavras pejorativas, utilizadas para se referir ao público LGBT, endossam o preconceito e a discriminação contra essas pessoas, além de naturalizar esse tipo de prática, tornando-se rotineiro na escola. Assim, visamos discutir nesse trabalho como as palavras homofóbicas, reproduzidas no âmbito escolar, são responsáveis pela negação da sexualidade e identidades de gênero. Para isso, fizemos uma pesquisa quantitativa numa escola pública da Região Metropolitana do Recife à luz de teóricos como Butler (2003), Freire (2015) e a atual Base Nacional Comum Curricular. Palavras-chave: Homofobia, Escola, Identidades de gênero.


EDUCAÇÃO NÃO LIBERTADORA: HOMOFOBIA E NEGAÇÃO DAS IDENTIDADES DE GÊNERO NA ESCOLA SUELANY C. RIBEIRO MASCENA1

INTRODUÇÃO É muito comum escutarmos dentro das salas de aula, sobretudo, no Ensino Fundamental e Médio o uso de expressões pejorativas vinculadas ao público LGBT. Elas, na maioria das vezes, são proferidas por garotos que tendem a seguir um caráter de heteronormatividade tóxica e as utilizam para demarcar espaços de poder. O que a maioria não tem consciência, é que esse comportamento reproduz uma comunicação violenta, perpassada cotidianamente na escola. Por sua vez, os professores e a comunidade escolar, não se posicionam a respeito, ou por não terem conhecimento necessário ou por não se reconhecerem como parte integrante de um sistema que ridiculariza a homoafetividade. Esse tipo de comportamento culmina numa série de violências simbólicas que corroboram com agressões físicas contra esses estudantes. O senso-comum acredita que a violência só existe quando se concretiza fisicamente, ignorando que a negação das identidades do outro, a falta de posicionamento das entidades escolares, acerca de comportamentos preconceituosos, sexistas, misóginos, racistas, homofóbicos, a naturalização de expressões que agridem o íntimo de sujeitos, que além de estarem numa fase 1. Doutora em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco. Coordenadora do Núcleo de Relações Étnico-Raciais e Gênero da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda. Professora do curso de Letras da FACHO e do Município de Igarassu. suelanyribeiro@gmail.com. 211


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de descoberta e aceitação, são discriminados no local que deveria acolhê-los por suas diferenças. Conforme Paulo Freire (2015):

Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer forma de discriminação. A prática preconceituosa de raça, de classe, de gênero, ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a democracia. Quão longe dela nos achamos quando vivemos na impunidade dos que matam meninos nas ruas, dos que assassinam camponeses que lutam por seus direitos, dos que discriminam os negros, dos que inferiorizam as mulheres (FREIRE, 2015, p. 37).

De acordo com o pensamento do educador acima, é preciso questionar sobre o formato de opressão instituído pela escola. O texto de Freire, escrito há décadas, é contemporâneo, pois problematiza questões que desde o século passado a educação não conseguiu solucionar. E mesmo com o avanço e a garantia de vários direitos, como por exemplo, o 2Estatuto da Criança e do Adolescente e a 3Lei de Diretrizes e Bases, hoje, vivemos no descredenciamento de vários setores dentro da educação, a começar pela difusão de fake news sobre “a ideologia de gênero”. Termo utilizado pela extrema direita do Brasil, que segundo ela, ensina e transforma crianças heterossexuais em homossexuais. Além de demonizar a educação sexual e as identidades de gêneros, esse discurso é extremamente perigoso, visto que não dialoga com a realidade escolar e reitera preconceitos contra esses sujeitos. Desse modo, a 2. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8069.htm. Acesso em 29 de outubro de 2019. O Estatuto da Criança e do Adolescente foi aprovado em 1990, hoje, com 29 anos, um dos maiores desafios é a diminuição do assassinato de adolescentes e alcançar os mais excluídos, de acordo com a UNICEF. Disponível em: https://nacoesunidas.org/unicef-apresenta-avancos-e-desafios-relacionadosa-infancia-e-a-adolescencia-nos-25-anos-do-eca/. Acesso em 29 de outubro de 2019. 3. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em 29 de outubro de 2019. 212


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sexualidade e o gênero, que já eram um tabu social, viram grandes vilãs, ou seja, são omitidas das discussões escolares. Em prol do conservadorismo e dos bons costumes, não relacionamos o ciclo de violências que as ausências da educação sexual e gênero afetam. Sendo a primeira, necessária para crianças e adolescentes conhecerem seus próprios corpos e a partir disso conseguirem identificar os abusos sexuais, denunciando seus algozes. A segunda, para instituir a cultura de respeito à diversidade e ao modo como o outro se identifica. No entanto, as construções dessas realidades vão se distanciando do executável, principalmente porque o atual Presidente da República, insiste na existência do famoso 4“kit gay ”, material, que segundo ele, foi distribuído pelo MEC nas escolas públicas da federação brasileira. Assim, objetivamos nessa pesquisa, problematizar como palavras, consideradas simples, por quem as usa, é permeada de preconceitos que culminam na homofobia. Diante disso, sugerimos que a educação precisa ser libertadora para ser mais um instrumento de luta contra a marginalização das minorias. O ponto de partida para iniciarmos a nossa pesquisa foi estudarmos sobre a educação sexual, as identidades de gêneros e as legislações que tratam da educação no país. Posteriormente, refletimos como o uso de palavras pejorativas (homofóbicas) são utilizadas comumente pelos estudantes do ensino fundamental II. Devido a essa inquietação, partimos para uma pesquisa 4. Durante uma entrevista ao Jornal Nacional, em 2018, o candidato a Presidência da República, Jair Bolsonaro, apresentou o livro “Aparelho sexual e Cia” da editora Companhia das Letras. Na ocasião, ele relatou que o material havia sido distribuído pelo Ministério da Educação nas escolas públicas do país e que era um dos itens do “Kit gay”. Essa informação, logo foi propagada pelos meios de comunicação e mesmo com o posicionamento do MEC, afirmando que a informação não era verdadeira, as pessoas acreditavam. De acordo com o jornal Brasil de Fato, 84% dos eleitores de Bolsonaro acreditavam na veracidade dessa informação. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2018/11/07/0711-aseleicoes-ja-foram-mas-a-ameaca-das-fake-news-continua/. Acesso em 29 de outubro de 2019. 213


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quantitativa. Fomos a uma escola pública da Região Metropolitana do Recife e entrevistamos 68 estudantes, do sétimo ao oitavo ano. Direcionamos perguntas bastante objetivas e após os resultados, analisamos como as respostas dadas pelos alunos se relacionam com a violência homofóbica.

DESENVOLVIMENTO

Quando falamos de identidades de gênero e sexualidade, abarcamos uma vasta lista de definições que são necessárias para compreendermos como elas se diferenciam. É de costume utilizar termos ultrapassados que denotam uma carga semântica negativa, como por exemplo, o homossexualismo, porque neste caso o sufixo “ismo” denota doença e desde 1990, a Organização Mundial de Saúde deliberou que a homossexualidade não é doença, muito menos distúrbio. Assim como o termo “opção sexual”, como se as pessoas pudessem escolher acerca de sua sexualidade, negando as construções identitárias desse processo. Para sermos pragmáticos, faremos uma breve explanação desses conceitos a fim de elucidar quais pontos nos interessam neste trabalho. De acordo com 5o guia de cidadania LGBT, organizada pela Prefeitura do Recife, o sexo biológico, se relaciona com a genitália do sujeito, ou seja, se nasceu macho, intersexual ou fêmea. Já a orientação sexual, é por quem o indivíduo sente atração efetiva, homossexual (por alguém do mesmo sexo, o gay e a lésbica), bissexual (pelos dois sexos e gêneros), heterossexual (pelo sexo oposto). Já a identidade de gênero é uma construção social, tem a ver com o modo de como você se enxerga e se identifica, por exemplo: o homem cisgênero(nasceu 5. O material encontra-se disponível gratuitamente no endereço: http://www2.recife.pe.gov.br/sites/ default/files/guia_cidadania_lgbt_final.pdf. Acesso em 25 de outubro de 2019. 214


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homem e se ver como homem), mulher cisgênero( nasceu mulher e se enxerga como mulher), homem transgênero( nasceu mulher e se enxerga como homem), mulher transgênero( nasceu homem e se identifica como mulher). E há também a expressão de gênero, que é a forma ou comportamento pelo qual você expressa seu gênero, masculina, feminina e não-binária. Para tanto, o que nos interessa aqui é como as orientações sexuais e as identidades de gêneros são tratadas no espaço escolar. Diante de tamanha diversidade e nomenclaturas sobre gênero e sexualidade, é inconcebível que educadores ainda mantenham posturas associadas ao século passado. 6Simone de Beuvouir, em sua célebre frase, “não se nasce mulher, torna-se mulher”, discutia, ainda numa perspectiva bastante embrionária, que o corpo estava diretamente ligado ao feminino e isso era um pressuposto para definir o que é a fêmea. No entanto, o movimento feminista, tendo em vista os recortes étnicos e sociais, começou a questionar a legitimidade desse conceito. Judith Butler (2003), por exemplo, problematiza: É o gênero tão variável e volitivo quanto parece sugerir a explicação de Beauvoir? Pode, nesse caso, a noção de “construção” reduzir-se a uma forma de escolha? Beauvoir diz claramente que a gente “se toma” mulher, mas sempre sob uma compulsão cultural a fazê-lo. E tal compulsão claramente não vem do “sexo”. Não há nada em sua explicação que garanta que o “ser” que se torna mulher seja necessariamente fêmea. Se, como afirma ela, “o corpo é uma situação”, não há como recorrer a um corpo que já não tenha sido sempre interpretado por meio de significados culturais; consequentemente, o sexo não poderia qualificar-se como uma

6. A frase citada faz uma intertextualidade com a célebre passagem “Ninguém nasce mulher: tornase mulher”, presente na obra “O segundo sexo”, de Simone de Beauvoir. A escritora francesa discorre sobre os lugares sociais de pertença para homens e mulheres, bem como os mitos, as construções biológicas entre ambos. Ensaios de gênero. Disponível em: <https://ensaiosdegenero.wordpress.com/ tag/simone-de-beauvoir/page/2/>. Acesso em: 17 out. 2019. 215


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facticidade anatômica pré-discursiva. Sem dúvida, será sempre apresentado, por definição, como tendo sido gênero desde o começo. (BUTLER, 2003, p. 27)

A discussão trazida por Butler (2003), além de confrontar a perspectiva de Beauvoir, elucida que o “tornar-se mulher” é uma concepção que não cabe mais na sociedade pós-moderna, visto que os aspectos culturais influenciam na construção desse corpo em trânsito, móvel, plural. A filósofa argumenta que essas amarras, ligadas ao sexo biológico, impedem a fluidez das identidades de gênero. Partindo dessa perspectiva, é comum perceber o estranhamento diante dessas reflexões, mas se caminharmos por outros caminhos, verá que as identidades construídas no pós-modernismo, já são assuntos partilhados há algumas décadas e nem por isso mantemos afinidades, em sua completude. Tendo em vista os debates que circundam o gênero e a sexualidade, a Legislação Brasileira inseriu aos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) os “Temas Transversais”, constituído de seis eixos como: saúde, ética, trabalho e consumo, meio ambiente, pluralidade cultural e orientação sexual. No caráter normativo, eles eram recomendações que deveriam atravessar as mais diversas disciplinas, mas não havia o vínculo obrigatório com uma legislação ou norma específica. Segundo as autoras:

Com a transversalidade não se criaram novas áreas curriculares ou disciplinas, mas os seguintes temas devem ser incorporados naquelas existentes e no trabalho educativo da escola: Ética, Pluralidade Cultural, Meio Ambiente, Saúde, Trabalho, Consumo e Orientação Sexual. Embora esse documento tenha pontos positivos, a sugestão de trabalho com orientação sexual limitou-se ao campo biológico, deixando de fora as discussões sobre as diversas formas de viver os afetos e a sexualidade, e nem sequer se fez referência às identidades sexuais não heterossexuais e à diversidade de gênero (BASTOS; CRUZ; DANTAS, 2018, p. 33). 216


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Apesar dos Temas Transversais não serem obrigatórios, eles se fazem importantes visto que potencializam o debate no currículo escolar, contribuindo para modificações futuras. Em 2013, os “Temas Transversais” são substituídos pelos “Temáticos e Norteadores”, regido pelo parecer 7“CNE/CEB nº 14/2000: Estabelece a interação entre a base e a parte diversificada, indissociavelmente e de forma transversal.” As recomendações das Diretrizes são bem amplas, como: trabalho em equipe e a escolha de temas a partir da interação entre estudantes e professores. Entre 2017 e 2018, houve uma nova reformulação, agora chamada de Base Nacional Comum Curricular (BNCC), pautado por “Temas contemporâneos” (Transversais e integradores). Na BNCC, há mais de 15 desses temas, entre eles a “Educação em Direitos Humanos”, por isso se faz obrigatória o trabalho com gênero e sexualidade na educação básica. De acordo com Marta Menezes (2004), a sexualidade é algo crucial para a vida do ser humano, ela se relaciona com o prazer e o respeito ao corpo, pautada pela liberdade de escolha e que não deve ter interferência dos grupos sociais, religião ou família. Para tanto, ela expõe a importância da sexualidade para o desenvolvimento psíquico dos seres humanos, independente de quaisquer pontencialidade reprodutiva. É preciso deixar explícito, que a sexualidade é construída ao longo da vida e que os seus estudos reúnem saberes de diversas áreas como: a antropologia, a história, a economia, a sociologia, a biologia, a medicina e a psicologia. Apesar de ser ancorada por diversas áreas do saber, ainda é distorcida por uma grande parcela da sociedade. Portanto, se a lei garante que é necessário trabalhar com essas temáticas, nós, professores, estamos legalmente acobertados, embora o conservadorismo 7. Esse parecer está disponível na cartilha de “ Temas contemporâneos transversais na BNCC: contexto histórico e pressupostos pedagógicos”. , disponível em : http://basenacionalcomum.mec.gov.br/images/ implementacao/contextualizacao_temas_contemporaneos.pdf. Acesso 30 de outubro de 2019. 217


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diga o contrário. Porém, quando assumimos o nosso compromisso como educadores, sabemos que não trabalhos para um único público e sim para todos (as). Assim, seria, no mínimo, antiético o discente negar as identidades plurais do outro, simplesmente, porque não as conhece suficiente para respeitá-las. A homofobia silenciosa retira a saúde mental de muitos estudantes, que por muitas vezes, abandonam à escola por medo de serem agredidos e também por continuarem inseridos no ciclo de violência, que se inicia da seguinte maneira: primeiramente, os estudantes que não seguem os padrões da heterormatividade (saem com garotas, possuem amigos, usam roupas consideradas masculinas, calças, camisetas em tons pastéis, não choram, dentre outros exemplos) passam a serem vistos como crianças e rapazes frágeis, afeminados, principalmente quando chegam à adolescência. Em segundo lugar, esse indivíduo já é observado como um ser estranho, por não atender os padrões sociais. Em terceiro lugar, as palavras que diminuem esses estudantes, passam a serem constantes, pois para a comunidade a única maneira de referir ao outro é questionando a sua masculinidade. Enquanto não há uma descoberta dessa identidade ou sexualidade, essas pessoas ouvem caladas aos abusos que lhes são direcionados. Nesse sentido, entrevistamos 68 estudantes de uma Escola Municipal da Região Metropolitana do Recife, do sétimo ao oitavo ano, com idade mínima de 12 anos e máxima de 17. As nossas perguntas foram bem objetivas e faziam as seguintes indagações: se eles sabiam o significado da palavra homofobia? Ou se fizeram ou fazem uso de palavras pejorativas como “frango, veado, sapatão”, para se referirem aos colegas de turma? Quando questionados se era em tom de brincadeira ou não, deixamos claro que independente do sentido gostaria apenas de saber se elas eram utilizadas no cotidiano escolar. Cameron (2010) classifica esse tipo de comportamento na linguagem como um “trabalho performativo de gênero”, realizado por pessoas heterossexuais, sujeitos 218


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generificados, ou seja, que seguem um comportamento pré-estabelecido socialmente, corporeificado pela linguagem. Vejamos os resultados:

O que mais nos chamou à atenção nesses dados é que o público era bem diversificado,composto por moças e rapazes de uma periferia. Apesar de saberem o signficado da palavra “Homofobia”, eles não conseguiam associar o uso dela à práticas homofóbicas, ou seja, não havia uma percepção de causa e consequência entre as duas perguntas. Sendo assim, verificamos que é 219


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necessário ampliar os debates sobre o tema de modo interdisciplinar para que os estudantes compreendam que a prática aos direitos humanos é uma necessidade básica da vida em sociedade. E que esse tipo de postura, reitera a violência contra o público LGBT. Desse modo, as crianças e os adolescentes que fazem uso dessas palavras refletem o que veem em suas casas, e como eles ainda são sujeitos em formação, podemos a partir da escola formá-los para uma educação libertadora. Isso só será possível se a escola também for “amiga” desse grande desafio.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Concluímos que precisamos lutar diariamente contra a homofobia no espaço escolar. Apesar da BNCC e da LDB garantirem a Educação para os direitos humanos, ainda é perceptível que a naturalização de palavras pejorativas contra o público LGBT é uma prática costumeira nas escolas. A nossa pesquisa, ainda embrionária, aponta um comportamento que está diretamente ligada a violências futuras como, a evasão escolar, as agressões físicas, a marginalização desse público. Nesse sentido, salientamos a importância de pesquisas como essa para que os orgãos responsáveis pela educação do país, dos estados e dos municípios, fiquem atentos e possam traçar políticas públicas que contribuam para eliminar esse problema. No entanto, enquanto soluções efetivas não são concretizadas, podemos, com pequenas práticas diárias, orientar os nossos estudantes a não fazerem uso dessas expressões, sentirem empatia pelo outro, se enxergar como fruto dessa sociedade. Para que isso aconteceça, também é preciso formações continuadas com professores e funcionários da escola, além de trazer para dentro dela a participação da família, agente fundamental de acolhimento. 220


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Para tanto, esse trabalho não se encerra por aqui, ele é apenas uma pequena parte de como podemos contribuir para essa discussão, outros profissionais e, sobretudo, vozes que foram vítimas desse sistema, são fundamentais para a perpetuação do pensamento científico.

REFERÊNCIAS

BASTOS, Denise; CRUZ, Isaura; DANTAS, Marilu. Gênero e sexualidade na escola. Salvador: UFBA, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, Superintendência da Educação a Distância, 2018. BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão de identidade. Tradução Renato Aguiar. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 2003. CAMERON, Deborah. In: OSTERMANN, Ana Cristina; FONTANA, Beatriz. Linguagem, gênero e sexualidade: clássicos traduzidos. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. 51 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015. MENEZES, Marta. Educação sexual hoje. 3 ed. Olinda: Livro Rápido, 2011.

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Resumo Este estudo aborda, na literatura de Clarice Lispector, “Felicidade Clandestina”, elementos literários no tocante ao tempo, o espaço e as problemáticas, do ponto de vista da psicanálise de Sigmund Feud (1923). Nesta pesquisa os conceitos do Eu e Id, são úteis para o estudo do psiquismo humano. A Pedagogia do Oprimido, de Paulo Freire (1987), também nos ajuda a mover uma problematização a respeito do sadomasoquismo presente no conto. Objetivamos encontrar um ponto em que seja possível o diálogo entre a psicanálise e a literatura. Ao analisar a problemática do sadomasoquismo no conto à luz da psicanálise, passando pelos tipos de narração, linguagem clariceana e pelos fundamentos psicanalíticos, foi possível perceber a complexidade da mente humana, na qual, a linguagem exerce força na literatura fazendo com que o leitor reflita sobre si mesmo. Ainda a partir do estudo realizado, conclui-se que para a psicanálise, uma palavra, uma frase, e, até mesmo o silêncio diz mais sobre o ser do que ele mesmo sabe. Palavras-chave: Literatura lispectoriana, Psicanálise, Sadismo, Masoquismo.


FELICIDADE CLANDESTINA: SADISMO E MASOQUISMO NA NARRATIVA CLARICEANA1 MARIA CRISTINA BARBOSA DOS SANTOS2 FREDERICO JOSÉ MACHADO DA SILVA3

INTRODUÇÃO As obras de Clarice Lispector são repletas de profundas reflexões acerca do homem e do mundo que o circunda, conferindo uma forma de diálogo entre o ser e ele mesmo, além da realidade na qual está inserido. O conto “Felicidade Clandestina”, publicado no ano de 1971, fala sobre a questão existencial de duas garotas em que uma era filha do dono de uma livraria e não gostava de ler, e a outra era a menina que implorou para que a anterior lhe emprestasse as reinações de narizinho, livro que, a fez entrar em êxtase. Porém, para que este livro chegasse a suas mãos, ela passou por constrangimentos e humilhações impostas pela filha do dono da livraria. Uma vez que a narradora conta uma história vivida por duas garotas, passada no Recife é possível identificar que o formato narrativo de Clarice Lispector nessa obra, torna capaz apontar elementos literários referentes ao tempo, espaço e a problemática do conto configurando-se como o sadomasoquismo. 1. Trabalho produzido na disciplina de Teoria da Literatura, com o objetivo de propor um diálogo entre a obra de Clarice Lispector intitulada Felicidade clandestina e a psicanálise, sob a orientação do professor Dr. Frederico José Machado da Silva 2. Graduanda do 6º período do curso de Letras da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda - FACHO. 3. Doutor em Letras (UFPE). Professor e Coordenador do Curso de Letras da FACHO 223


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Para aprofundar a visão não apenas sobre o corpo da obra literária, busca-se, com este trabalho, fazer uma relação desta obra com a teoria psicanalítica que estuda o psiquismo humano em sua profundidade. A psicanálise baseia-se em fundamentos, sendo que um deles postula que a maior parte dos processos psíquicos é originada no inconsciente, a instância mais profunda do psiquismo humano. Adentrando os estudos de que trata a psicanálise, busca-se uma explicação sobre o que origina e caracteriza o sadomasoquismo em associação com trechos do conto “Felicidade clandestina”. Portanto, o objetivo geral deste trabalho está em encontrar um ponto em que seja possível o diálogo entre a literatura e a psicanálise, tendo como meta identificar a linguagem, determinar a problemática do conto e explicar essa problemática à luz da psicanálise.

A VOZ DO NARRADOR EM “FELICIDADE CLANDESTINA

Em toda narrativa existe o narrador. Ele é o elemento estruturador que apresenta diferentes características em conciliação com o estatuto da persona, responsável pelo enunciado da diegese. E, é por ela produzida na obra literária narrativa, as outras falas presentes no texto, ou seja, vozes de possíveis narradores hipodiegéticos e personagens. O teórico Vitor Manuel de Aguiar e Silva (2005) confirma que: A voz do narrador tem com funções primárias e iderrogáveis uma função de representação, isto é, a função de produzir intratextualmente o universodiegético — personagens, eventos, etc. — e uma função de organização e controlo das estruturas do texto narrativo, quer a nível tópico (microestrutruras), quer a nível transtópico (macroestrutruras). Como 224


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funções secundárias e não necessariamente actualizadas, a voz do narrador pode desempenhar uma função de interpretação do mundo narrado e pode assumir uma função de acção neste mesmo mundo. (AGUIAR E SILVA, 2005, p. 759)

Os termos mais usados pelos manuais de análise literária para apontar o narrador no conto são foco narrativo e ponto de vista do narrador ou da narração. Tanto um quanto o outro, são referentes à posição dele. No conto Felicidade Clandestina a narradora participa da história sendo a protagonista e narra a própria história. Para Aguiar e Silva (2005), este tipo de narradora é autodiegética de focalização interventiva e interna, uma vez, que revela seu ponto de vista sobre os acontecimentos, fazendo seu juízo de valor sobre a antagonista e adiciona os fatos que considera importantes na diegese. A partir de suas percepções caracteriza os personagens e os acontecimentos de maneira subjetiva, fazendo com que o leitor tenha apenas acesso à sua versão, de forma a manipular a narrativa. Lispector (1981): E eu, que não era dada a olheiras, sentia as olheiras se cavando sob os meus olhos espantados. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia está estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicação as duas. (LISPECTOR, 1981, p. 11)

O narrador também constrói a verossimilhança interna, ou seja, a harmonia, a coerência entre os fatos no conto literário, de forma que o leitor acredite na história que é contada, sendo possível até mesmo visualizar as cenas. Em relação ao tempo, é importante que se observe em que época a narração acontece, pois, esta pode ser lida em uma data bem diferente da data de publicação da obra. No conto, o tempo é cronológico, contado em dias, do início ao fim. Quanto ao espaço, a história se restringe à cidade do Recife en225


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tre as ruas da antagonista e da protagonista, configurando-se em um espaço urbano. Lispector (1981, p. 9), “[...] ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. Ainda por cima era de paisagem do Recife mesmo, onde morávamos, com suas pontes mais do que vistas”.

O CONTO E SUA PROBLEMÁTICA

Como vimos, Felicidade Clandestina é um conto que fala sobre a história de uma jovem menina e sua trajetória na busca de receber da filha do dono da livraria a obra de Monteiro Lobato intitulada As reinações de Narizinho que tanto ansiava em ter em suas mãos para mergulhar em sua história. Depois de muito ir de sua casa até a casa da filha do dono de livraria, sendo submetida a humilhações e crueldade, a jovem leitora recebe emprestado o tão sonhado livro. A narradora e protagonista conta, a partir de sua percepção, as humilhações a que foi submetida pela filha do dono da livraria (considerada, pela narradora, uma pessoa cruel) durante alguns dias para receber o livro, pois esta a havia dito que o emprestaria. Fala Lispector que:

Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas, de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implorar-lhe emprestados os livros que ela não lia. (LISPECTOR, 1981, p. 9)

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Partindo desse fragmento do conto, torna-se importante postular sobre o sadismo e o masoquismo. De acordo com a pesquisadora Marta Regina de Leão D’Agord (2010), no estudo da perversão, Freud identificou o fenômeno de pares opostos chamado de sadomasoquismo, propondo que a pulsão é caracterizada pela transformação de sadismo para masoquismo e de masoquismo para sadismo. Para o pai da psicanálise, os estudos sobre a perversão mostram que esta se origina em uma fantasia infantil que poderá ser transformada pelo recalque ou pela sublimação. Ainda para a autora, na obra freudiana “As pulsões e os destinos da pulsão” (1915), Freud compreende o sadismo e o masoquismo como pulsão, em que ele destaca as flexões gramaticais, pois na primeira fase (sadismo), é usada a terceira pessoa; na segunda fase (masoquismo), é utilizada a primeira pessoa; e na terceira fase (retorno ao sadismo), a flexão é de terceira pessoa, mas o sujeito é impessoal. Ainda segundo D’Agord (2010), tomando como exemplo o texto de Freud de 1919, “Uma criança é espancada: uma contribuição ao estudo sobre a origem das perversões sexuais”, o psicanalista desconstrói a fantasia “uma criança é espancada”, em três fases ou três fantasias: 1) O meu pai está batendo na criança (flexão gramatical na terceira pessoa), designando a fantasia sádica de significado incestuoso: o meu pai ama a mim e não a essa outra criança; 2) Estou sendo espancada pelo meu pai (flexão gramatical na primeira pessoa), designando a fantasia masoquista que concorre para o surgimento do sentimento de culpa e do amor sexual relacionado à primeira fantasia; 3) Uma criança é espancada (flexão gramatical na terceira pessoa, porém é impessoal), referindo-se à fantasia sádica em sua forma, mas a satisfação é proveniente do masoquismo. 227


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Para melhor compreensão, Carolina Nassau Ribeiro (2017) ressalta que, para a teoria psicanalítica, o sadismo é visto como um fenômeno primário ao masoquismo, pois a pulsão de domínio pertence às pulsões do eu, fazendo surgir o sentimento de posse. Assim, a pulsão sádica é compreendida como a pulsão de domínio e serve às pulsões sexuais, vinculando-as, assim, à crueldade. Nesse momento, Freud não diferencia pulsão sádica de pulsão masoquista, já que ele propõe que o masoquismo, em relação ao sadismo, é um fenômeno secundário, sendo o masoquismo o retorno do sadismo sobre o próprio corpo, ou seja, são colocadas essas duas modalidades em qualquer maneira de rejeição e humilhação.

A LINGUAGEM LISPECTORIANA

Para Vânia Maria Castelo Barbosa (2008, p.81), a linguagem age de modo em que o homem acessa o mundo e vice-versa, e que tudo se expressa a partir das relações entre ambos, já que eles se constituem como fala. E foi a partir dessas relações que Clarice Lispector começou a escrever, fazendo questionamentos profundos sobre o ser e a existência. A língua adotada pela autora é de indagação sobre o ser e sua comunicação com o mundo externo e interno do homem. A linguagem de Lispector abrange o problema da existência, confrontando o ser em suas questões existenciais, fazendo com que a palavra se torne valor acima das significações cotidianas e que o leitor reflita sobre posturas cotidianas a partir das inquietações individuais das personagens lispectorianas. Olga Sá (2000) reconhece que Clarice Lispector em suas obras usa frequentemente metáforas e imagens não usuais, com possibilidade de identificar 228


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a quebra da relação de causa e efeito, o uso da ambiguidade, o fluxo da consciência e o monólogo do homem (consigo mesmo), revelando a relação entre o indivíduo e a realidade exterior, partindo da percepção que este indivíduo tem da realidade. E ainda caracteriza a obra clariceana como uma escrita metafórica, metafísica, atravessada pelo dilema entre existir e escrever.

O SADISMO PRESENTE EM “FELICIDADE CLANDESTINA E A TEORIA PSICANALÍTICA

Retomando o conto “Felicidade clandestina”, é possível perceber, que o enredo psicológico não se apresenta. O que se coloca é a relação entre duas garotas que frequentam a mesma escola, moram na mesma cidade, tem a mesma idade, mas, tinham traços opostos e financeiramente tinham posições diferentes. Sigmund Freud (1930, p. 41) explica que: “A inter-relação desses princípios seria responsável pelo equilíbrio das pulsões e da vida em sociedade”. A referida escritora Clarice Lispector, tem em sua escrita um estilo que quebra os obstáculos da linguagem, buscando em sua essência algo inacabável. Desse modo percebe-se o inconsciente na qual, a psicanálise dispõe-se a estudar, como um personagem entusiasmado com a normalidade do mundo. Pois a escritora Ana Maria Lima Valle agrega que:

Sua pesquisa se debruça na relação da literatura com os principais conceitos psicanalíticos, como inconsciente, fantasia e sublimação. Tais artefatos estão presentes na “escrita clariceana”, essa que esbarra no limiar da linguagem, tentando transmitir a complexidade da vida e da existência. “A escrita de Clarice desafia os limites da linguagem, insiste em tentar exprimir o inexprimível. Atuante na beira do abismo, ela larga

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seus limites e sempre avança um pouco mais. Sempre consegue dizer um pouco mais a respeito do que não sabe dizer, do que escapa as palavras”. (VALLE, 2006, p. 11)

Após descrevê-la, a narradora diz que a menina era rica e tinha um pai dono de livraria, e que as garotas magras e bonitas da sala, esperavam ganhar um livro de presente no seu aniversário, mas isso nunca aconteceu. A narradora caracteriza a antagonista com termos pejorativos, mas se submete à humilhação para conseguir o livro, ou ainda por querer articular de forma sutil e perspicaz, o estereótipo social pelo fato da garota ser “diferente” não deveria ser rica, ou seja, à riqueza se aplicaria a menina “normal”. Paulo Freire (1979) elucida que há diversos mecanismos psíquicos relacionados ao oprimido-opressor e compara essa relação com o sadomasoquismo, na qual haveria uma dependência emocional entre os integrantes, que ao se submeter incorporaria um pensamento mágico em um opressor invulnerável, projetando essa figura, na perspectiva em que vê na ocupação do polo sádico o único caminho para a libertação. Lispector (1981) diz que na narrativa do conto: Ela era gorda, baixa, sardenta e de cabelos excessivamente crespos. Tinha um busto enorme, enquanto nós todas ainda éramos achatadas. Como se não bastasse enchia os bolsos da blusa, por cima do busto, com balas. Mas possuía o que qualquer criança devoradora de histórias gostaria de ter: um pai dono de livraria. Pouco aproveitava. E nós menos ainda: Até para aniversário, em vez de pelo menos um livrinho barato, ela nos entregava em mãos um cartão-postal da loja do pai. [...] Mas que talento tinha para a crueldade. Ela toda era pura vingança, chupando balas com barulho. Como essa menina devia nos odiar, nós que éramos imperdoavelmente bonitinhas, esguias, altinhas de cabelos livres. Comigo exerceu com calma ferocidade o seu sadismo. Na minha ânsia de ler, eu nem me notava as humilhações a que ela me submetia: continuava a implora-lhe emprestados os livros que ela não lia (LISPECTOR, 1981, p. 9) 230


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Ao descobrir que a garota tinha o livro que ela mais gostava, passou a viver obsessivamente sujeitando-se as situações determinadas pela garota. Ainda para Freire (1979), essa identificação com o opressor é o método mais importante para perpetuar esse funcionamento, não permitindo a possibilidade de libertação, entrelaçado no conceito sadomasoquista. Lispector (1981) a respeito: Até que veio para ela o magno dia de começar a exercer sobre mim uma tortura chinesa. Como casualmente, informou-me que possuía As Reinações de Narizinho, de Monteiro Lobato. Era um livro grosso, meu Deus, era um livro para se ficar vivendo com ele, comendo-o, dormindo-o. E completamente acima de minhas posses. Disse-me que eu passasse pela sua casa no dia seguinte e que ela o emprestaria. Até o dia seguinte eu me transformei na própria esperança da alegria: eu não vivia, eu nadava devagar no mar suave, as ondas me eivavam e me traziam. (LISPECTOR, 1981, p. 10)

A felicidade da menina pobre era imensa. Ela foi buscar o livro na casa da garota rica logo na manhã seguinte e é nesse momento que começa o conflito. Pois a garota disse que tinha emprestado o para outra pessoa e pediu que ela voltasse no dia seguinte. Porém a mesma coisa se repete, mas a menina sem perder a esperança continua voltando. Freud (1924) coloca que a insegurança seria transformada em culpa inconsciente, que ainda, posteriormente reverter-se em sadismo, através da identidade do sujeito com o objeto mantendo o seu caráter masoquista. No trecho do conto, Lispector (1981):

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No dia seguinte fui à sua casa, literalmente correndo. Ela não morava num sobrado como eu, e sim numa casa. Não me mandou entrar. Olhando bem para meus olhos, disse-me que havia emprestado o livro a outra menina, e que eu voltasse no dia seguinte para buscá-lo. [...] Mas não ficou simplesmente nisso. O plano secreto da filha do dono de livraria era tranquilo e diabólico. No dia seguinte lá estava eu à porta de sua casa, com o sorriso e o coração batendo. Para ouvir a resposta calma: o livro não estava em seu poder, que eu voltasse no dia seguinte. [...] E assim continuou. [...] Ela sabia que era tempo indefinido, enquanto o fel não escorresse todo do seu corpo grosso. Eu já começara a adivinhar que ela mim escolhera para sofrer, às vezes adivinho. Mas as adivinhando mesmo, às vezes aceito: como se quem quer me fazer sofrer esteja precisando danadamente que eu sofra. (LISPECTOR, 1981, p. 10-11)

É a partir da intervenção dessa mãe que a narrativa toma direção diferente, pois esta obrigou a filha a emprestar o livro e comunicou a ela que o recebeu que ficasse com ele o tempo que precisasse. Com essa atitude, a interdição ganha um papel na história do indivíduo que tem dificuldade de assumir o próprio destino e a perda da possibilidade de oprimir. Freire (1970), diz que circunstâncias assim, estimula uma perspectiva ingênua e dual por parte do oprimido, sem a necessária crítica para transformar esse elo. Até que um dia, quando eu estava à porta de sua casa, ouvindo humilde e silenciosa a sua recusa, apareceu sua mãe. Ela devia estar estranhando a aparição muda e diária daquela menina à porta de sua casa. Pediu explicações a nós duas. Houve uma confusão silenciosa, entrecortada de palavras pouco elucidativas. A senhora achava cada vez mais estranho o fato de não estar entendendo. Até que essa mãe boa entendeu. Voltou-se para a filha e com enorme surpresa exclamou: mas esse livro nunca saiu daqui de casa e você nem quis ler! (LISPECTOR, 1981, p. 11)

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A menina se sente tão feliz como se o livro fosse dela e que poderia aproveitar e também demorar o quanto quisesse, mas, ela sabia que um momento teria que devolvê-lo. Em função disso, o conto recebe o nome de felicidade clandestina, para explicar uma felicidade que não era da menina, ou seja, uma felicidade “falsa”, porque sua alegria girava em torno do livro que não era dela. Na qual Freire (1979) a culpa inconsciente representa o opressor que estar no oprimido e na complementação a vivência edípica, o desejo de ocupar o lugar do opressor. No conto Lispector Chegando em casa, não comecei a ler. Fingia que não o tinha, só para depois ter o susto de o ter. Horas depois abri-o, li algumas linhas maravilhosas, fechei-o de novo, fui passear pela casa, adiei ainda mais indo comer pão com manteiga, fingi que não sabia onde guardara o livro, achava-o, abria-o por alguns instantes (LISPECTOR, 1981, p. 12)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após analisar o conto “Felicidade clandestina” de Clarice Lispector, apontando como sua problemática o sadomasoquismo e de fazer uma leitura sobre esta estrutura da personalidade pertencente à perversão, à luz da teoria psicanalítica, foi possível perceber que tanto o sadismo quanto o masoquismo não acontecem isoladamente. Esses elementos da personalidade perversa deslizam de um para o outro em um infortúnio sem fim e que tanto a filha do dono da livraria quanto a narradora, apresentaram comportamentos ora sádicos, ora masoquistas. Também foi possível perceber que as obras literárias não são construções realizadas fora do humano. E Clarice Lispector, com sua linguagem que exerce força na literatura, com a contribuição de suas obras, faz o leitor refletir sobre si mesmo a comprovação disso. 233


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Passando pelos fundamentos da psicanálise como inconsciente, transferência, contratransferência, libido, pulsão, sublimação para a compreensão da personalidade, nota-se o quão complexa é a mente humana. Mas através da poesia, do conto, da prosa ou de outro gênero literário é possível que uma parte do que está escondida no inconsciente venha à consciência, pois para a psicanálise uma palavra, uma frase e até mesmo o silêncio diz mais sobre o ser do que ele mesmo possa ter consciência de si, na qual, evidencia-se a possibilidade de dialogo da literatura com a psicanálise.

REFERÊNCIAS

BARBOSA, Vânia Maria Castelo; MORAES, Vera Lúcia Albuquerque de. A linguagem de Clarice Lispector como desautomatização da vida. 2008. Disponível em http:// revistadeletras.ufc.br/rl29Ar09.pdf. Acesso em 30 maio 2018. D’AGORD, Marta Regina de Leão et.al. Psicanálise, psicopatologia e literatura: modos de uso da fantasia. Rio Grande do Sul, 2010. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo. php. Acesso em 30 maio 2018. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. FREUD, Sigmund. História de uma neurose infantil [O homem dos lobos], Além do principio do prazer e outros textos. Vol.14. Tradução Paulo Cézar de Souza: Companhia das letras, 2011. FREUD, Sigmund. O eu e id. Vol.16. Tradução Paulo Cézar de Souza: Companhia das Letras, 2011. LISPECTOR, Clarice. Felicidade clandestina. Rio de Janeiro: Ed. Rocco, 1981. MINERBO, Marion. Transferência e contratransferência. Jornal Psicanalítico, v. 46, n. 84. São Paulo, 2013. Disponível em http://pepsic.bvsalud.org/scielo Acesso em 02 jun. 2018. OLIVIERI, Antônio Carlos. Sigmund Freud: um método polêmico, 2006. Disponível em https://vestibular.uol.com.br/resumo-das-disciplinas. Acesso em 31 maio 2018.

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RIBEIRO, Carolina Nassau. A metapsicologia do masoquismo: o enigma do masoquismo feminino e sua relação com a fantasia masculina. Rio de Janeiro, 2017. Disponível em http://www.scielo.br/pdf/agora/v20n2/1809-4414-agora-20-02-00477.pdf. Acesso em 02 jun. 2018. SÁ, Olga. A escritura de Clarice Lispector. São Paulo: Ed. Vozes Ltda. 1979. SILVA, Vitor Emanuel de Aguiar e. Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 2005.

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Resumo O objetivo deste artigo é discutir sobre os benefícios de se trabalhar o gênero textual Carta em sala de aula. É importante salientar que grande parte dos alunos que estão iniciando a vida escolar neste século não têm contato com esse gênero, pois, com o advento da internet e as inúmeras mudanças que ocorrem no mundo, a carta pessoal se tornou obsoleta. Neste sentido, analisaremos algumas concepções para o ensino desse gênero textual e algumas possibilidades de atividades que podem ser realizadas em sala de aula com o objetivo de estimular a aprendizagem e interação entre os professores e os alunos. Para isso, utilizaremos como aparato teórico “Aula de português: encontro e interação” (2003) e “Lutar com palavras: coesão e coerência” de Irandé Antunes; “O ensino de produção textual com base em atividades sociais e gêneros textuais” (2010) de Désirée Roth e “Didática de ensino de língua portuguesa” (2009) de Regina Pereira que nortearão a nossa análise sobre possíveis didáticas realizadas em sala de aula com os discentes e, agregado a isso, metodologias que auxiliarão o processo de ensino-aprendizagem entre os professores e os alunos. Assim, será possível abordar o gênero carta e mostrar a sua importância como processo de interação a partir de vivências em sala de aula. Palavras-chaves: Carta; Gênero textual; Ensino; Sala de aula.


GÊNEROS TEXTUAIS: OS ÊXITOS DE SE TRABALHAR A CARTA EM SALA DE AULA ANDRÉ LUIZ DA SILVA NASCIMENTO1 SUELANY C. RIBEIRO MARCENA 2

INTRODUÇÃO Quando pensamos em gênero textual, pensamos principalmente em sua integração com o seu uso e a nomenclatura que se tem de cada um deles, mas que seria quase impossível na discussão deste artigo a topicalização de todos os gêneros textuais existentes. O objetivo deste trabalho é discutir como a carta pode ser trabalhada nas aulas de língua portuguesa, tanto no Ensino Fundamental II como no Ensino Médio. Com a revolução da internet e com a troca de mensagens muito mais rápida e prática, a carta entrou em desuso. Como sabemos, era necessário escrever a carta e esperar recebê-la. Tal processo, demandava um longo tempo. O século XXI é marcado pela relação da agilidade entre seus integrantes, assim como é marcado pela era da pergunta e resposta, já que, tudo e todos são quase que obrigados a realizar atividades em um menor espaço de tempo. Com o surgimento do MSN, logo após Orkut, o Facebook, o WhatsApp, o Twitter e tantas outras plataformas de comunicação digital e envio de men1. Graduando do Curso de Licenciatura Plena em Letras: Português e Inglês e suas Respectivas Literaturas pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO). andreletras98@gmail.com. 2. Doutora em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e professora do corpo docente do Departamento de Letras da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO). suelanyribeiro@gmail.com. 237


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sagens instantâneas, o uso da carta deixou de ser trabalhado em sala de aula e muitas das vezes esquecido pelo professor. Nesse sentido, os alunos assim como parte da população deixaram de escrever, receber e enviar mensagens através do papel. Entende-se que, na discussão desse trabalho, o tipo de gênero textual que será abordado é a carta pessoal, que é utilizada como meio de comunicação entre pessoas.

A CONCEPÇÃO DO GÊNERO TEXTUAL: CARTA

Existem dentro da concepção de carta, as suas variáveis, que são: argumentativa; do leitor; aberta; comercial; pessoal, entre outras. Sendo a última, o objeto de estudo dessa análise. A definição de carta pessoal é a relação que se tem entre a comunicação entre familiares, amigos, parentes, por meio da escrita, sendo possível assim, exercer tanto a linguagem mais formal quanto a linguagem informal. Entende-se como carta, o termo que descreve um manuscrito, ou por muitas das vezes, um impresso, com o objetivo de realizar uma comunicação escrita entre pessoas, de forma particular. A carta é um dos mais antigos gêneros textuais existentes até hoje. No Brasil, vale ressaltar que o documento que é marcado como a certidão de nascimento da nossa nação, foi escrito em forma de carta, intitulada de “Carta de Pero Vaz de Caminha”, é o documento que registra as impressões dele sobre o Brasil. Marca também o princípio do Quinhentismo no ano de 1500 nas terras brasileiras, sendo caracterizada como a primeira escola literária do Brasil. Essa carta tem como objetivo retratar a nova terra em sua escrita, descrevendo assim a realidade para que após, seja enviada a Portugal com as impressões que ele viu sobre o Brasil. Sendo considerada, portanto, o primeiro documento escrito da história brasileira e passando a ser um dos gêneros textuais mais presentes desde então, permitindo assim, a comunicação entre as pessoas e a relação de comunicação que pode ser estabelecida entre elas. 238


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Mesmo sendo um gênero textual não muito utilizado nos dias atuais, a carta permanece presente e faz parte da vida das pessoas.

A INTEGRAÇÃO ENTRE A CARTA E A SALA DE AULA

Como vimos no conceito histórico, a carta tem sua importância dentro da sociedade, e a pergunta que pode gerar a partir da discussão de tal ideia é de como integrar esse gênero textual ao ambiente escolar? Se faz importante ao decorrer dos anos atualizar a língua de acordo com as mudanças que aconteçam entre a relação com o mundo e a escola. As regras de língua portuguesa a uma década atrás eram diferentes de como temos hoje por exemplo, como é o caso do novo acordo ortográfico, da inserção de novas letras no alfabeto, assim como, a adição de novas palavras no dicionário e no cotidiano das pessoas. Pode-se entender que, a sala de aula é o ambiente onde grande parte das pessoas aprendem a se comunicar, e se tem a interação social com outros indivíduos, sendo também um dos espaços mais propícios para se propagar a aprendizagem e compartilhamento de conteúdo que serão importantes para toda a vida do aluno, já que ele estará interagindo com a sua realidade, e estimula assim a autonomia necessária para a produção da atividade para o aluno e auxilia o aluno a se desenvolver mais ativamente em atividades que serão propostas. Como afirma Antunes (2003) em: O professor de português precisa ter a competência suficiente que lhe confira a autonomia necessária à condução de seu trabalho, o que, em nenhum momento, dispensa sua inserção nas preocupações do grupo com o qual atua. Autonomia não significa individualismo, isolamento e autossuficiência. Significa que o professor esteja seguro de como deve ser seu trabalho, para que não fique ao sabor dos ventos, que vêm de lá 239


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e de cá. Sou consciente das conquistas que o professor ainda tem que fazer para atingir essa autonomia: é preciso dispor de tempo para estudo e reflexão; é preciso inserir-se em projetos de pesquisa; é preciso ter oportunidade de participar de cursos de atualização e estar em sintonia com as novas orientações e propostas da área de linguagem. (ANTUNES, 2003, p. 171)

A carta, no passado, era de suma importância para o indivíduo, hoje, como vimos, já existem plataformas que podem substituí-la de maneira quase que integral, mas vale lembrar que a importância de escrever deve ser sempre valorizada, visto que, em nossa sociedade, é necessário o domínio da norma padrão da língua para que possa ser utilizada em outros contextos além da atividade de escrita do gênero textual em questão. Por mais que as pessoas sejam aptas a aceitar as variações linguísticas da língua e suas circunstâncias, a norma padrão sempre será focalizada e consequentemente, cobrada. Será requerida em exames de vestibulares, em provas, em formulários, em plataformas digitais e em inúmeras outras situações para o indivíduo, ou seja, a carta ela pode de forma ímpar auxiliar em todo esse processo de aprendizagem, auxiliando assim na escrita e interpretação textual, como volta a afirmar Antunes (2003) ao dizer que:

Em termos muito gerais, as aulas de português seriam aulas de: falar, ouvir, ler e escrever textos em língua portuguesa, dentro de uma distribuição e complexidade gradativas, atentando o professor para o desenvolvimento já conseguido pelos alunos no domínio de cada habilidade. Mais uma vez, explícito o princípio de que toda atividade linguística é necessariamente textual. Ou seja, a fala, a escuta, a escrita e a leitura de que falo aqui são necessariamente de textos; se não, não é linguagem. Assim, é nas questões de produção e compreensão de textos, e de suas funções sociais, que se deve centrar o estudo relevante e produtivo da língua. Ou melhor dizendo, é o uso da língua — que apenas se dá em tex240


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tos — que deve ser o objeto — digo bem, o objeto — de estudo da língua. (ANTUNES, 2003, p. 111)

O texto faz parte do cotidiano e da utilização entre as pessoas, sendo necessário assim, a inserção dele na realidade dos alunos, utilizando outros recursos que gerem resultados como textos dissertativos argumentativos, mensagens, ofícios, notícias, reportagens e entre tantos outros tipos textuais existentes, não se limitando portanto a relação entre texto e aluno, mas sim a utilização entre linguagem, estudo do texto, compreensão, desenvolvimento e resultados esperados pelo professor para seus estudantes. Sendo possível assim, aplicar tais concepções na carta, estimulando as habilidades nos estudantes em relação ao desenvolvimento de escrita e consequentemente no melhoramento de competências específicas, como o de escrever, ler, ouvir e falar.

POSSÍVEIS ATIVIDADES DE COMO SE TRABALHAR A CARTA EM SALA DE AULA?

As aulas de português, em sua maioria são de bastante teoria envolvida com a prática, nas quais os alunos leem e interpretam textos que os professores levam para sala de aula. Tais leituras podem ser do próprio material didático do aluno como o livro por exemplo, ou de fontes externas. Quando tratamos sobre escrita em português, uma parcela de alunos tem certa dificuldade nesse quesito, pois, eles não são estimulados a escrever ou dissertar, e muitos desses alunos só têm a primeira oportunidade de escrita na redação do Exame Nacional do Ensino Médio (ENEM), em que os alunos são de certa forma “obrigados” a escrever uma redação para a obtenção de nota e consequentemente, aprovação no vestibular. Algumas justificativas que os próprios alunos exclamam é a preguiça de escrever, a dificuldade que se 241


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tem em praticar tal atividade, a relação da escrita gramaticalmente correta seguindo as regras do português formal, que consequentemente é bastante prejudicial, porque muitos desses alunos só têm contato com a grafia em plataformas digitais como o smartphone e/ou computador. Vale salientar que o ato da ortografia no mundo digital se tem uma facilidade pois existem os corretores automáticos, que vão ajudando os alunos a desenvolverem sua escrita, entretanto, quando falamos do texto escrito a punho, é interessante entender que já não há essa facilidade, pois o aluno tem que transferir para o papel tudo aquilo que ele sabe sem a ajuda dos corretores. E é nesse quesito que a utilização do gênero textual em questão se faz importante, e pode ser trabalhada de formas dinâmicas, como no exemplo a seguir: No mês de Maio é realizada a comemoração do dia das Mães no Brasil, seria interessante se o professor pedisse aos alunos, que poderia ser do Ensino Fundamental por exemplo, para que escrevessem uma carta para as mães ou para alguém em sua família que o estudante considerasse importante e que representasse a figura materna. As etapas seriam desenvolvidas de maneira gradativa e também de acordo com a faixa etária de cada aluno de acordo com a sua turma, ou seja, primeiro o professor teria que explicar como que a carta é estruturada, fazendo uma introdução, informando assim o destinatário, remetente, a datação e demais fatores que tal gênero tema após isso, os estudantes iriam escrever e desenvolver a atividade proposta, ao final, o professor auxiliá-los para ver se há algum erro ou qualquer característica que não faça parte do gênero carta, e após, os discentes poderiam entregar as cartas a suas mães em uma data específica. Os êxitos abordados dentro de tal atividade são inúmeros, além de toda a importância que esta atividade detém, é um gesto simples e de grande valor sentimental. A escrita para as mães é um exemplo de tantos exemplos que se podem existir. 242


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Ficando assim o professor responsável em desenvolver a atividade, as mães entusiasmadas em receber um gesto como este dos filhos de dar as cartas e os alunos motivados por fazerem um trabalho que será inovador, embasando assim os conceitos os quais João Amos Comenius (1592-1970) ao deixar como legado a sua obra Didática Magna (1632).

Um dos grandes filósofos da educação João Amos Comenius (1592−1670), deixou−nos como legado sua obra Didática Magna (1632), revolucionária para a época e que exerceu grande influência sobre a prática docente. Segundo Haydt, os procedimentos a serem adotados pelo professor na visão de Comenius são: 1. apresentar o objeto ou ideia diretamente, fazendo demonstração, pois o aluno aprende através dos sentidos, principalmente vendo e tocando. 2. mostrar a utilidade específica do conhecimento transmitido e a sua aplicação na vida diária. 3. fazer referência à natureza e origem dos fenômenos estudados, isto é, às suas causas. 4. explicar primeiramente os princípios gerais e só depois os detalhes. 5. passar para o assunto ou tópico seguinte do conteúdo apenas quando o aluno tiver compreendido o anterior (COMENIUS, apud ROTH, 2006, p. 17)

Se relacionarmos essa atividade para os alunos do Ensino Médio por exemplo, poderia ser trabalhada a relação de carta para que fosse enviada ao prefeito da cidade no qual o aluno está alocado, reivindicando assim melhorias as quais os alunos acreditam que sejam importantes para a sua cidade, e assim, seguir as mesmas propostas e explicações para o envio da carta como informado anteriormente. Como são dois públicos distintos, é de importância que seja abordada de forma coerente entre as realidades de cada turma. 243


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É possível perceber que se trabalhada e desenvolvida de forma correta e integrada entre os alunos e o professor, a carta pode ser uma peça chave para o desenvolvimento intelectual do estudante, estimulando-o a pensar, refletir e desenvolver ideias que vão agregar conhecimento a vida educacional do aluno.

CONCLUSÃO

Quando o aluno é estimulado a aprender, ele exerce maior abordagem em relação a prática entre ensino-aprendizagem. A carta, é apenas mais um veículo de comunicação que se tem para auxiliar o estudante nesse processo. Portanto, é de importância que os professores estimulem propostas de atividades que abranjam esse modelo. Os resultados que podem ser esperados a partir da utilização desta visão em sala de aula podem ser os mais diversos possíveis, já que o aluno, ao se empoderar sobre a língua e a escrita da língua que ele fala, se sentirá mais confiante e consequentemente independente. A fala não se limita apenas a expressão oral, ou seja, um texto pode transmitir uma mensagem com um objetivo similar, cabe assim ao professor, estimular o aluno e apoiá-los no processo de aprendizagem que está sendo desenvolvido em sala de aula. Os êxitos que podem ser esperados a partir da resolução dessa discussão, nos levam a refletir sobre a importância de tal gênero textual na realidade do nosso século, fazendo assim, um resgate de um dos mais antigos gêneros textuais existentes até hoje, levando em consideração os inúmeros benefícios que esta abordagem detém, ficando assim a cargo do professor e demais pessoas envolvidas a elaboração e realização das propostas. Se faz necessário portanto estimular o aluno a escrever melhor, desenvolver capacidades cognitivas de interação e comunicação, assim como realizar atividades que são 244


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de extrema importância para o desenvolvimento e crescimento do indivíduo auxiliando assim em seu crescimento escolar.

REFERÊNCIAS

ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. ANTUNES, Irandé. Aula de português: encontro e interação. São Paulo: Parábola Editorial, 2003. ROTH, Désirée. O ensino de produção textual com base em atividades sociais e gêneros textuais. 2010. Disponível em http://w3.ufsm.br/desireemroth/algumas_publicacoes/ LingEmDisc_O_ensino_de_redao_com_base_em_atividades_sociais_e_g_neros.doc. Acesso em 19 maio 2019. PEREIRA, Regina. Didática de ensino de língua portuguesa. 2009. Disponível em http:// biblioteca.virtual.ufpb.br/files/didatica_do_ensino_de_langua_portuguesa_1360182473. pdf. Acesso em 20 maio 2019.

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Resumo Este trabalho analisa algumas abordagens acerca dos gêneros textuais e como eles contribuem para as interações comunicativas no espaço escolar. Nesse sentido, trazemos algumas reflexões sobre a concepção de texto e as implicações para o ensino básico. Nesse sentido, utilizamos como arcabouço teórico Antunes (2005) sobre o processo de escrita e cooperação, além de Koch (2018), apresentando os aspectos da hibridização e estruturação dos gêneros, bem como Bakhtin (2003) com a concepção dos engajamentos dos discursos na comunicação. Dessa maneira, esse trabalho, de cunho bibliográfico, demonstra as variedades textuais que podem contribuir de maneira vantajosa para o ensino de língua portuguesa, contrapondo-se à educação tradicional propagada ainda pelas escolas do século XXI. Assim, concluímos que a relação multifacetada entre a produção e a compreensão do texto corroboram para um melhor desempenho no ensino de língua materna. Palavras-chave: Textualidade; Gêneros; Práticas de ensino.


GÊNEROS TEXTUAIS: REFLEXÕES TÉORICAS E PRÁTICAS DE ENSINO EVERTON FELIPE TENÓRIO DA SILVA SANTOS1 SHEYLA FELIX CASTRO2 SUELANY C. RIBEIRO MASCENA3

INTRODUÇÃO Os aspectos da textualidade são elementos essenciais para a comunicação, especificamente, os gêneros textuais. Assim, torna-se fundamental compreender as concepções de gênero para as interações sociais. Entretanto, ainda há uma valorização das abordagens tradicionais, tratando a textualidade como algo meramente descritivo. Nesse sentido, a escola precisa aderir à concepção de que as especificações textuais sempre fizeram parte da comunicação, pois “são entidades sociodiscursivas e formas de ação social incontornáveis em qualquer situação comunicativa.’’ (MARCUSCHI, 2010, p. 19) É nessa perspectiva que o trabalho tem como objetivo analisar como os variados gêneros existentes, suas tipologias e os sentidos influenciam nas práticas em sociedade. Para isso, utilizamos a concepção de Antunes (2005) sobre o processo de escrita como ações cooperativas entre indivíduos. Na 1. Graduando em Letras - Português/Inglês pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO). tenorioseverton@gmail.com. 2. Graduanda em Letras - Português/Inglês pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO). sheilacastromeninas@gmail.com. 3. Doutora em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Professora titular do curso de letras da FACHO. suelanyribeiro@gmail.com. 247


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questão de classificações textuais, o trabalho se fundamenta nas palavras de Koch (2018), apresentando as definições de hibridização e diálogo entre variados gêneros textuais. A exemplificação desenvolvida ainda por Koch (2018) é apresentada ao decorrer da pesquisa como forma de nortear tais classificações. Bem como as palavras de Bakhtin (2003), sobre o questionamento dos engajamentos discursivos, em relação ao sujeito para mostrar a relação do ensino dos gêneros e os propósitos de produção de textos orais e escritos, entre outros teóricos. Com base nisso, é possível que não fiquemos limitados à superficialidade das abordagens tradicionais sobre textualidade, abrangendo a relação entre texto e sociedade, sobretudo, quando utilizamos o livro didático como único material a ser trabalhado em sala de aula, visto que a grande maioria não contempla as especificidades dos gêneros reduzindo-os as suas características estáveis. Desse modo, pensá-los como elementos híbridos contribui para ampliarmos o conhecimento acerca da linguagem e de um ensino que vai além das fórmulas simples de memorização, induzindo os estudantes a uma reflexão incompleta dos gêneros.

DESENVOLVIMENTO

O conhecimento das categorias textuais e discursivas é fundamental no ensino e aprendizagem da língua, pois muitas vezes as dificuldades de leitura e produção escrita advêm do desconhecimento de uma representação organizada e hierarquizada do conteúdo semântico do texto, da composição textual no seu todo e da sua adequação pragmático-discursiva à situação de interlocução. Há incontáveis aspectos peculiares dos gêneros ou das situações e ações sociais das quais a linguagem é parte integrante. Os estudos da linguagem fazem referência ao contexto como situação enunciativa, com isso, a adequamos as conversações, ou seja, que gênero 248


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textual deve ser utilizado dentro de um contexto? Uma vez que, surgem partindo de usos de linguagem recorrentes, adequando-se e reinventando-se nos diversos níveis de modernização da organização social, assim como afirma Marcuschi (2008): É importante ter presente que, se por um lado, o texto se ancora no contexto situacional com a decisão por um gênero que produz determinado discurso, e por isso não é uma realidade virtual, por outro lado, ele concerne às relações semânticas que se dão entre os elementos no interior do próprio texto. (MARCUSCHI, 2008, p. 87)

Logo, sendo os gêneros uma unidade complexa de significado, a produção atrelada ao que se é compreendido deve ser guiada pelo contexto enunciativo, interlocução, contexto histórico e social. Por isso, faz-se necessário incitar não só habilidades linguísticas, mas também extralinguísticas exigindo um gênero diferente a cada discurso. A redução da língua a um universo apenas estrutural seria abdicar das diversas possibilidades da comunicação. A importância de entender gêneros e como se apresentam — em forma de textos, orais ou escritos através de uma relação de interação — colocará em evidência também o interesse pelos elementos que se interligam entre si para formar o sentido. Uma vez que, para haver o conhecimento do texto, faz-se necessária a utilização dos recursos atrelados a ela. Como nos mostra Antunes (2005), sobressai a coesão, exatamente como sendo essa propriedade pela qual se cria e se sinaliza toda espécie de ligação, de laço, que dá ao texto unidade de sentido ou unidade temática. Esse elo é um fator imprescindível para os prosseguimentos textuais e para uma boa atuação no desenvolvimento dos diferentes textos. Funciona para dar continuidade de sentido através de recursos como reiteração, associação e conexão, na qual cada recurso apresenta suas peculiaridades. Nessa perspectiva, seguindo o pensamento de Antunes (2005, p. 52), o que 249


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difere é a forma como esse laço é conseguido. Com isso, pode-se perceber a indispensável função que os gêneros textuais realizam em torno de uma atividade enunciativa. No que tange as relações semânticas de produção textual, é interessante atribuir um sentido para que a comunicação seja efetivada. Nessa perspectiva, Antunes (2005) nos mostra que escrever é um ato cooperativo. Ou seja, para haver a escrita, é preciso também delinear para quem se escreve e o porquê de está sendo dito, para que assim a interpretação e a produção de texto não se torne uma ação mecânica, podendo dificultar o estimulo às práticas de leitura e escrita dentro e fora do contexto escolar. Assim, nessa ação cooperativa, faz-se necessário uma abordagem de gêneros que deixe à mostra o diálogo entre diferentes comportamentos textuais, para que se possa ter uma leitura mais ampla do contexto social no qual o indivíduo esteja inserido. No gênero propaganda, por exemplo, pode-se perceber esse diálogo entre diferentes comportamentos textuais. Os efeitos visuais podem juntar-se aos elementos verbais como forma de oferecer algum produto. Tem-se aqui uma ilocução4, portanto, que pode vir tanto de uma imagem quanto do que se tem escrito. Ou seja, a interligação entre os gêneros pode se dar em um mesmo texto como forma de construir os propósitos textuais. Nessa relação de hibridização, Koch (2018) apresenta o conceito de intertextualidade intergêneros. Em síntese, pode-se haver uma mutualidade entre variados gêneros em um mesmo texto. Para uma efetiva recepção desse significado, necessita-se por parte do leitor um engajamento de interação conveniente em diferentes práticas sociais, denominado pela mesma autora de competência metagenérica. 4. Para o uso dessa palavra, adotamos como referência os estudos de Austin (1990) sobre os atos de fala. 250


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Tomemos como exemplo os objetivos de uma receita, abordagem também apresentada por Koch (2018). A mesma classificação textual pode dialogar com uma tirinha. O leitor, com seu engajamento de mundo, recepcionará tais elementos e saberá que o propósito da receita, em um determinado contexto, não necessariamente deverá ser seguido. Pois pode se tratar de um humor, característica típica do gênero tirinha. Logo, torna-se claro a abrangência em relação a essa temática, não só perante sala de aula, mas também nas suas relações com a sociedade de forma geral. As funções da textualidade e os sentidos atribuídos podem contribuir na formação leitura, pois é através do texto que nos comunicamos e desenvolvemos interações sociais. É no contexto escolar, entretanto, junto à mediação do professor, que o indivíduo pode ter a oportunidade de questionamentos sobre a concepção de leitura, indo além do tradicional. Ao falar de gênero e textualidade, é sabido que, em se tratando de atos comunicacionais, o ser humano utiliza-os para desenvolver uma interação. Essas características textuais estão interligadas aos aspectos socioculturais dos indivíduos. Para isso, é preciso levar em consideração as abordagens trazidas no ensino de línguas em relação a tal questão. Pode-se considerar que cada texto tem seu propósito comunicativo, como também na presença da oralidade, como nos mostra Antunes (2005): O que vale dizer: só nos comunicamos através de textos. Sejam eles orais ou escritos. Sejam eles grandes, médios ou pequenos. Tenham muitas, poucas, ou uma palavra apenas. Assim, a competência comunicativa, aquela que nos distingue como seres verbalmente atuantes, inclui necessariamente a competência para formular e entender textos, orais ou escritos (ANTUNES, 2005, p. 30)

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Nesse sentido, apesar das limitações do tradicionalismo no ensino, às características de gêneros e tipologias, a textualidade nos mostra a função comunicativa que pode formar as relações sociais. Pois, os gêneros ‘‘surgem emparelhados a necessidades e atividades socioculturais, bem como na relação com inovações tecnológicas’’. (MARCUSCHI, 2010, p. 19) Assim, considera-se a necessidade do estudo de propósitos textuais para a compreensão da comunicação humana. Tal conhecimento não se restringe ao ensino. O indivíduo em sociedade utiliza variados objetivos de trânsito na mensagem. Uma entrevista de emprego, por exemplo, requer um tipo de linguagem formal, com posturas já delimitadas entre interlocutores. Em uma conversa descontraída, entretanto, as caracterizações desse último gênero entrevista, causaria estranhamento na comunicação, o que nos faz perceber que os gêneros se adequam as situações cotidianas. Nessa relação do leitor, texto e comunicação, Ferreira; Dias (2005) nos afirmam que a leitura, ao torna-se compreensão, torna-se também um processo de construção dos sentidos na pressuposição. Assim, o papel da escola entra em evidência, pois se torna necessário levar em consideração a relação do aluno com o contexto sociocultural no qual ele esteja inserido, para que assim seja possível desconstruir o que se entende por gêneros e tipologias como algo meramente descritivo e determinado. Nesse modelo de ensino tradicional, assim como defende Araújo:

É inegavelmente sabido que o primeiro contato do ser humano com a linguagem se dá por meio da língua falada. Esse foi um dos motivos pelos quais por muito tempo o ensino de língua materna menosprezou o trabalho com a oralidade, pois se acreditava que os alunos já sabiam falar. (ARAÚJO, 2014, p. 21)

A fala na interação social acaba se tornando um dos fatores mais usuais na comunicação, sendo um dos primeiros recursos utilizados para estabelecer 252


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a mensagem durante os percursos iniciais da vida humana. Assim, nessa implicação para o ensino, o papel dos gêneros orais acaba sendo desvalorizado em sala de aula, por criar a equivocada dedução em que os alunos já saibam expressar determinados textos. O objetivo é que possamos utilizar como ferramenta o texto oral ou escrito — que se materializa em forma de gênero — adentrando nos estudos da diversidade comunicativa, para tornar os nossos alunos capazes de utilizar a linguagem como instrumento de aprendizado. Vale ressaltar, que a utilização da base de ensino contextual não deve ser voltada apenas à área do português, mas agregar todas as áreas da educação e o cotidiano, conforme está previsto na Base Nacional Comum Curricular (2018):

Eis, então, a demanda que se coloca para a escola: contemplar de forma crítica essas novas práticas de linguagem e produções, não só na perspectiva de atender às muitas demandas sociais que convergem para um uso qualificado e ético das TDIC — necessário para o mundo do trabalho, para estudar, para a vida cotidiana etc. —, mas de também fomentar o debate e outras demandas sociais que cercam essas práticas e usos. (BRASIL, 2018, p. 69)

Uma abordagem mais profusa da diversidade textual, portanto, aproximará o aluno da situação de produção dos gêneros que estão além até mesmo do contexto escolar. “Pois cada variação de um texto significa, na verdade, uma resposta pessoal do sujeito às condições concretas de produção e circulação do seu discurso”. (ANTUNES, 2009, p. 55), obtendo assim mais propriedade de suas peculiaridades, facilitando a apreensão sobre eles. Apesar dos documentos oficiais ditarem normatizações que devem ser colocadas em prática nas escolas da federação, sabemos que as disparidades dessas aplicações são díspares, ainda mais quando pensamos na diversidade geográfica e social do Brasil. Por isso, sugerimos que além das teorias 253


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propostas nesse trabalho, possamos ter a sensibilidade de selecionar gêneros textuais que também dialoguem com o universo social dos estudantes, valorizando-os e colocando-os como protagonistas das ações linguísticas e das produções textuais. Se pensarmos nas novas tecnologias, por exemplos, podemos abrir uma variedade de possibilidades quando definimos o conceito de hibridização ou intergenericidade, porque esses recursos tecnológicos possuem, além das mudanças diárias, um contato permanente com os adolescentes. A partir deles, exemplificar essas questões tornam-se mais fácil a compreensão. Por exemplo, o whatsapp, que tinha como intuito o bate-papo on-line entre os usuários, hoje, desempenha funções de outros gêneros como o e-mail. Isso quer dizer que as necessidades dos indivíduos são acompanhadas pelas mudanças sociais e se um gênero acaba ampliando o seu campo, o falante deve saber que isso não é um erro e faz parte da própria evolução da escrita e da produção textual. Diante desses apontamentos, podem-se destacar os caminhos que sustentarão essa metodologia de abordagem em sala de aula e sobre quais vieses devemos percorrer. Seriam eles, o contexto social, a necessidade de um tema, a vontade e a intenção do locutor atrelado a uma perspectiva interacionista sobre os aspectos de quem quer dizer, para quem quer dizer, como e onde dizer. Antunes (2009) propõe sequências didáticas para viabilizar a aplicabilidade do ensino a partir dos gêneros textuais. Destacaremos, no entanto, a respeito do gênero bilhete a proposta da autora, I. Leitura: Além de outros gêneros de texto, leitura, interpretação, análise e comentários de bilhetes. II. Produção oral e escrita: Composição de bilhetes, com diferentes propósitos comunicativos e extensões (Nessa altura, também se deve dar espaço à realização de ‘recados’). III. Análise e sistematização linguística: a) formas de explicitação do objetivo particular de cada bilhete; b) previsão do destinatário para o cálculo efetivo de certas decisões textuais e linguísticas; c) normas de usos dos 254


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pronomes pessoais e de tratamento adequados a esse gênero; d) estudo das convenções ortográficas; e) exploração de pontuação específica; f) normas de apresentação de um bilhete; g) análise do nível de linguagem usada nos bilhetes, o informal, em geral. (ANTUNES, 2009, p. 62)

Assim, é possível salientar a importância de trazer um estudo mais contextualizado para as escolas sob uma perspectiva interacionista, distanciando-se da noção de diferenciação entre a língua que se fala e a língua empregada no ensino, questionando as frases descontextualizadas que não permitem a imersão no conhecimento linguístico. A insistência nessas práticas incoerentes, reiteram a visão equivocada (uma das piores línguas do mundo, regras intermináveis) que os estudantes nutrem sobre o ensino de língua portuguesa, frustrando-os em relação ao uso da gramática e de suas aplicabilidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As contribuições em torno dos questionamentos sobre a textualidade, e seus sentidos atribuídos à mesma, é inegável. As interações humanas em várias sociedades necessitavam, e ainda necessitam, de propósitos comunicativos para estabelecer a comunicação. Ou seja, os gêneros textuais influenciam nos aspectos socioculturais dos indivíduos. Na leitura, o papel da coesão entra em evidência no que se contribui para a formação leitora do sujeito. Ao utilizarmos uma linguagem, as ‘‘frases soltas’’ geralmente utilizadas como recursos para se produzir um texto na conjuntura de um ensino mais tradicional, tornam-se irrelevantes, pois tal método não dialoga com a comunicação social de fato. Em vista disso, foi possível perceber que, ao falarmos de aspectos da textualidade e gêneros, acentua-se o que está em torno da sua totalidade, 255


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não se tratando apenas de um conjunto de simples frases. Esse processo de produção é inerente à totalidade humana, cuja situação e inserção nas quais os interactantes estão inseridos são definidores da cena enunciativa. Utilizando Araújo (2014) como embasamento, ficou notório que, em sala de aula, ao deixar os gêneros orais em segundo plano, geram-se conhecimentos superficiais sobre a relação dos textos com as adequações sociais nas quais eles possam fazer parte. No cotidiano, um dos fatores que demarcam os fenômenos sociais é a linguagem. Em vista disso, é de grande importância considerar também os estudos sobre dialogismo, proposto por Bakhtin (1997). A enunciação do discurso é composta por outras vozes relacionadas ao engajamento linguístico na qual o ser humano possua. Portanto, para aplicar em sala de aula os gêneros textuais, é preciso levar em consideração a importância do conhecimento prévio no qual o indivíduo possui, considerando também o contexto social no qual o mesmo esteja inserido. Para que assim, possa adquirir uma concepção mais ampla da hibridização textual e da abrangência de suas idiossincrasias. A efetivação dessas práticas, também são de responsabilidade das gerências educacionais, que, raramente, oferecem formações continuadas aos professores de língua materna, acerca dessa problemática. Culpar o profissional da área pelo insucesso da produção e compreensão textual, não soluciona o problema, por isso as capacitações são cruciais para uma reformulação das práticas inovadoras.

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REFERÊNCIAS ANTUNES, Irandé. Lutar com palavras: coesão e coerência. São Paulo: Parábola Editorial, 2005. ANTUNES, Irandé. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. ARAÚJO, Flávia Barbosa de Santana. A avaliação da oralidade em aulas de língua portuguesa do ensino médio. 2014. 141 f. Dissertação (Mestrado em Educação e Linguagem). Centro de Educação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 2014. AUSTIN, John Langshaw. Quando dizer é fazer: palavras e ação. Porto Alegre: Artes médicas, 1990. BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal. 2 ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 1997. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília, MEC/ CONSED/UNDIME, 2017. DIAS, Maria da Graça Bompastor Borges; FERREIRA, Sandra Patrícia Ataíde. Leitor e leituras: considerações sobre gêneros textuais e construção de sentidos. Psicologia: Reflexão e Crítica. Porto Alegre, v. 18, n.3, p. 323-329, 2005. Disponível em http://www. scielo.br/pdf/prc/v18n3/a05v18n3. Acesso em 17 abr. 2019. KOCH, Ingedore. Ler e compreender: os sentidos do texto. 3 ed. São Paulo: Editora Contexto, 2018. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. Gêneros textuais e ensino. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Editora Parábola, 2008.

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Resumo Este artigo destaca a importância de se utilizar o gênero Histórias em Quadrinhos (HQs), conhecidas no Brasil por Gibis, enquanto ferramenta pedagógica para desenvolver o gosto pela leitura dos estudantes do ensino fundamental - anos iniciais. A discussão primeira se fez em volta da curiosidade sobre o que vem a ser o Gibi; e se este é, hodiernamente, considerado pela academia, literatura. Fato justificado, por se compreender ser essencial ao professor conhecer o objeto de estudo em toda sua origem e significação, para dele se apropriar e obter êxito na sua aplicação. A pesquisa de abordagem qualitativa teve como procedimento básico a entrevista (estruturada e on-line) e os estudos de McCloud (1995), Compagnon (2006), Eagleton (2006), Rezende (2009), entre outros, subsidiaram a análise. Os resultados balizaram que as Histórias em Quadrinhos - o Gibi - utilizadas, nessa perspectiva pedagógica, podem sim, aguçar o gosto e o hábito da leitura para os estudantes do ensino fundamental - anos iniciais. Palavras-chave: Gibi; Histórias em quadrinhos; Literatura; Leitura; Anos iniciais do fundamental.


GIBI COMO ARTEFATO PEDAGÓGICO PARA INCENTIVAR A LEITURA NO FUNDAMENTAL - ANOS INICIAIS

ELIANE TAVARES DA SILVA1 IVIS CHAGAS DA SILVA 2 ÁUREA MARIA COSTA ROCHA

INTRODUÇÃO As Histórias em Quadrinhos (HQs) são “[...] obras ricas em simbologia — podem ser vistas como objeto de lazer, estudo e investigação. A maneira como as palavras, imagens e as formas são trabalhadas apresentam um convite à interação autor-leitor.” (REZENDE, 2009, p. 126). Tomando como referência Rezende (2009), dentre outros autores que discutem as HQs e compreendendo o convite à atenção e interação entre a rica simbologia, imagens e formas com que se apresentam aos leitores é que defendemos a compreensão desse gênero textual, como uma ferramenta para desenvolver e incentivar o gosto pela leitura durante o ensino fundamental - anos iniciais. Desta forma, destacamos de antemão a importância de conhecer a origem e o desenvolvimento da História em Quadrinhos. Os estudos de Teixeira, Higino e Watanabe (2014), permitem compreender que a arte rupestre foi o primeiro exemplo de comunicação através de desenhos, embora as tirinhas 1. Graduanda do curso de Pedagogia da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO); e-mail: elianetavareshistoria@gmail.com. 2. Graduando do curso de Pedagogia da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO); ivis9940@ gmail.com. 259


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só tenham sido de fato desenvolvidas por um desenhista estadunidense na virada do século XVIII ao XIX. A primeira HQ brasileira foi publicada apenas em meados de 1905, e se chamava “Tico-Tico”. Nela havia um personagem de nome “Giby” que retratava um menino negro, mas devido a sociedade brasileira do início do século XX ter características racista e elitista o termo popularizou-se de forma pejorativa. Ademais, a promulgação da Lei Aurea, havia ocorrido a aproximadamente duas décadas. Todavia, em 1939, uma HQ chamada Gibi foi publicada, ressignificando assim a palavra que, com o passar dos anos, começou a corresponder, no Brasil, apenas História em Quadrinhos. É interessante observar que, assim como no Brasil, a HQ ganhou outras nomenclaturas em outros países. Como salienta Ballmann (2009), nos Estados Unidos da América e demais nações de língua inglesa, o termo usual é comics, porque as primeiras HQs tiveram propósito de satirizar. Na França, o termo mais comum é bandes-dessinées, que, em síntese, refere-se às tirinhas dos jornais como bandas de jornais. Já os italianos utilizam o nome fumetti, que tem a ver com o formato de nuvem de fumaça das falas dos personagens. Entre os espanhóis, o termo mais utilizado é o tebeo, por causa da popularização do nome de uma revista quadrinizada como também aconteceu no Brasil. E, em alguns países do oriente, a HQ é conhecida genericamente como mangás, porém, há de se destacar que dependendo do público-alvo e do conteúdo, esse nome pode variar. Sendo assim, ao longo dos decênios o gênero foi se desenvolvendo mundialmente, haja vista que foi agregando muitos autores e, por conseguinte, leitores. A arte foi se adaptando e retratando a realidade e o imaginário da época à medida que era escrita e/ou desenhada. O seu significado e a sua linguagem também sofreram evoluções fazendo com que a HQ fosse tratada como um produto cultural e educacional. Nesta, o Gibi passou a ser visto como um auxiliar no processo ensino-aprendizagem, principalmente no 260


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fundamental - anos iniciais. É observado que a partir da ludicidade, com imagem e texto, característica desse gênero, atrai a atenção dos alunos aguçando a imaginação, a criatividade, o gosto pela leitura e, consequentemente, o desenvolvimento do senso crítico. Barbosa, (2004, p.23) auxilia essa ideia ao afirmar que:

Os quadrinhos auxiliam no desenvolvimento do hábito de leitura — a ideia preconcebida de que as histórias em quadrinhos colaboravam para afastar as crianças e jovens da leitura de outros materiais foi refutada por diversos estudos científicos. [...] Os leitores de histórias em quadrinhos são também leitores de outros tipos de revistas, de jornais e de livros.

Contudo, ao abordar hodiernamente a História em Quadrinhos na perspectiva acadêmica, surge uma incógnita: ela é literatura ou não? Esta lacuna pode fazer com que o bom funcionamento do gênero como instrumento educacional seja limitado e até contrariado por alguns professores conservadores. Porquanto, a partir deste questionamento foi realizada uma pesquisa na internet no período de 10 a 16 de setembro de 2019 com duzentas e quarenta e uma pessoas entre elas professores, estudantes de licenciaturas e apenas leitores ávidos de gibis. O objetivo central dessa enquete deveu-se ao fato de que esta temática já foi pauta de debates entre diversos autores e até então, não se tem uma definição precisa, daí a inquietação, uma vez que necessário se faz, este esclarecimento para melhor subsidiar os professores que se dedicam a este estudo. Para obter a resposta à pergunta: O Gibi é Literatura? Utilizamos as seguintes questões: • Você é estudante/professor de licenciatura? • Você gosta de História em Quadrinhos (HQ/Gibi)? 261


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• No geral, você gosta de literatura? • Você acredita que a História em Quadrinhos (HQ/Gibi) pode ser uma ferramenta pedagógica importante no processo ensino-aprendizagem no Ensino Fundamental - Anos Iniciais? • Você considera a História em Quadrinhos, Literatura?

De modo a dar maior embasamento à pesquisa, também foi realizada uma entrevista estruturada com especialistas de literatura, professores universitários e profissionais de comunicação. Assim, ressaltamos que o presente estudo se faz necessário para que o professor conheça esse artefato pedagógico em sua origem, significação e nuance, a fim de saber usá-lo com criatividade de modo a aperfeiçoar o ensino dentro e fora das salas de aulas no fundamental - anos iniciais. “Pode-se dizer que o único limite para seu bom aproveitamento em qualquer sala de aula é a criatividade do professor e sua capacidade de bem utilizá-los para atingir seus objetivos de ensino.” (VERGUEIRO, 2004, p.26).

O GIBI É LITERATURA?

Em 1895, Richard Outcault publicou a primeira História em Quadrinhos (HQ) em um jornal de Nova York, e desde então o gênero vem sendo distribuído e popularizando-se pelo ocidente. Para Vergueiro (2005), a HQ, assim como o cinema, tornou-se um meio de comunicação em massa de grande influência do século XX. No oriente, as HQs também tiveram seu apogeu no vigésimo século, e foi a partir disso que começaram a expandir sua importância sociocultural ao redor do mundo. Utilizando o pictórico e, geralmente, textos, as histórias quadrinizadas tiveram diversas definições e visões desde seu surgimento. É devido a tais atualizações de significados, que fica difícil enquadrarem-na em literatura, 262


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uma vez que não se tem uma definição sucinta. Ademais, há outras barreiras existentes como, por exemplo, o fato da História em Quadrinhos não precisar utilizar textos em sua estrutura. Para Eggers (2015), um dos pontos que diferencia HQ de literatura é que, na primeira, o uso de elementos textuais é opcional, enquanto que na segunda é o fio condutor. Outro tópico que pode trazer divergência é o fato de serem artes distintas. Em 1911, o teórico de cinema Riccioto Canudo elaborou o Manifesto das Sete Artes e, assim, classificou a música, a dança, a pintura, a escultura, o teatro, a literatura e o cinema como artes que possuem características próprias. Posteriormente, com o passar dos anos, essa classificação foi ampliada. Segundo Ballmann (2009), a fotografia, a história em quadrinhos e o vídeo game foram incorporados às Artes como a oitava, nona e décima arte respectivamente. Dessa forma, pode-se observar que a literatura e a HQ têm características artísticas distintas. Em contraponto, conforme McCloud (1995), mesmo que seja possível traçar um significado para o Gibi, sua compreensão é integralmente abrangente, e seu conceito filosófico ultrapassa, algumas vezes, o de imagem justaposta deliberadamente sequenciada. Além disso, é necessário frisar que à medida que as visões acerca da História em Quadrinhos se moldam, a forma de seu consumo também se transforma. Foi, inclusive, em uma dessas ‘revoluções’ de significados que o Gibi ganhou aproximação com a literatura, e é por isso que há dúvida se são divergentes. Porém, para sanar a incógnita central, primordial se faz, sobretudo, conhecer também o significado de literatura. “A definição de literatura fica dependendo da maneira pela qual alguém ler, e não da natureza que aquilo é lido.” (EAGLETON, 2006, p. 12, grifo nosso). Coincidência ou não, o conceito desta também é amplo e tema de debates entre autores, principalmente com a contemporaneidade que quebrou o viés limitado e conservador, abrangendo assim a sua extensão. 263


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O termo literatura tem, pois, uma extensão mais ou menos vasta segundo os autores, dos clássicos escolares à história em quadrinhos, e é difícil justificar sua ampliação contemporânea. O critério de valor que inclui tal texto não é, em si mesmo, literário nem teórico, mas ético, social e ideológico, de qualquer forma extraliterário. (COMPAGNON, 2006, p. 34-35, grifo do autor).

Contudo, mesmo com a contemporaneidade desconstruindo velhos conceitos e dando uma ênfase extraliterária à literatura, a sua matéria-prima ainda é a palavra, conforme explicita Coelho (2000, p.27, grifo nosso), “[...] antes de tudo literatura; ou melhor, é arte: fenômeno de criatividade que representa o mundo, o homem, a vida, através da palavra.” Logo, a pergunta principal ganha mais uma vertente à luz da reflexão de que existem HQs com e sem elementos textuais, ou seja, há quadrinhos que podem ser adjetivados como literários da mesma forma que outros não, podendo estes serem classificados apenas como arte visual sequencial. Entretanto, é fundamental reiterar que mesmo assim não se tem um consenso entre os autores, pois as reflexões acerca do Gibi e, principalmente, da literatura têm elasticidades inimagináveis. De acordo com Eagleton (2006, p.16), “Qualquer coisa pode ser literatura, e qualquer coisa que é considerada literatura, inalterável e inquestionavelmente — Shakespeare, por exemplo —, pode deixar de sê-lo.” Neste contexto, é que foi desenvolvida uma pesquisa com estudantes de licenciaturas, educadores e apenas leitores ávidos de Gibi. É importante conhecer a opinião das pessoas que gostam do gênero, além dos profissionais que conciliam teoria e prática na sala de aula para potencializar o ensino-aprendizagem e despertar o gosto pela leitura, sobretudo, nos anos iniciais do fundamental. Para Freire (1987), a junção da prática com a teoria leva à práxis que é uma ação de transformação da realidade; por isso, reforçamos esta integração na pesquisa. 264


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A enquete foi realizada na plataforma de formulários do Google, na internet, durante o intervalo de seis dias e recolheu duzentas e quarenta e uma repostas objetivas. Conforme exposto nas tabelas abaixo, as perguntas iniciais foram feitas no intuito de distinguir os profissionais ou estudantes de educação dos apenas leitores de HQs e de analisar brevemente o gosto deles para com o gênero e com a literatura. Tabela 1. Você é professor/estudante de licenciatura? Resposta Sim Não

% 81,74 18,26

Fonte: elaborada pelos autores, 2019.

Tabela 2. Você gosta de História em Quadrinhos (HQ/Gibi)? Resposta Sim Não

% 95,9 4,1

Fonte: elaborada pelos autores, 2019.

Tabela 3. No geral, você gosta de literatura? Resposta Sim Não

% 92,8 7,1

Fonte: elaborada pelos autores, 2019.

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Tabela 4. Você acredita que a História em Quadrinhos (HQ/Gibi) pode ser uma ferramenta pedagógica importante no processo ensino-aprendizagem no Ensino Fundamental - anos iniciais? Resposta Sim Não

% 95,9 4,1

Fonte: elaborada pelos autores, 2019.

Tabela 5. Você considera a História em Quadrinhos, Literatura? Resposta Sim Não

% 90,9 9,1

Fonte: elaborada pelos autores, 2019.

Conforme mostra a tabela 4, é quase unanimidade a opinião de que o Gibi pode ser um artefato pedagógico importante para desenvolver o gosto pela leitura. Isto avigora o estudo para melhor conhecer as histórias quadrinizadas, uma vez que se faz essencial entender o instrumento educacional para usufrui-lo com êxito. Quanto ao gênero ser considerado literatura, de acordo com os dados expostos na tabela 5, mais de noventa por cento concorda que seja e isto reforça a ideia de que a HQ, na educação, não está restrita a uma breve significação. Conjuntamente a pesquisa evidencia que, para os entrevistados, a literatura também não está amarrada a uma linha de pensamento conservador, isto entra em harmonia com os pensamentos da maioria dos autores. Para Cândido (1999), a literatura vai além de um conjunto de obras, visto que ela atua na formação do homem, tendo assim uma força humanizadora que não se limita ao que o dicionário conceitua em quatro ou cinco palavras. Deste modo, na educação são notórias as semelhanças do gênero com a literatura mais do que os obstáculos existentes entre eles. No entanto, para 266


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trazer maior respaldo ao tema também foi realizada uma entrevista estruturada com três especialistas na área de literatura e/ou comunicação, sendo alguns professores universitários. As perguntas feitas foram as seguintes: 1. Você considera o Gibi, Literatura? Por quê? 2. As HQs sem textos podem ser consideradas literatura? Por quê?

O primeiro participante é professor universitário Doutor com ênfase em Literatura, este será codificado pela letra D. A segunda é educadora do ensino básico da rede pública estadual e Mestra em Literatura, será mencionada pela letra M. Por fim, a terceira participante é Graduada em Comunicação Social, trabalha com podcast e tem uma linha de pesquisa voltada aos quadrinhos, ela será identificada através da letra G. Para D, em um sentido mais amplo, a História em Quadrinhos pode ser considerada literatura, todavia, faz-se necessário modalizar tal conceito, visto que a HQ utiliza técnicas multimodais — imagens e textos. Além disso, D destaca o gibi diante dos conceitos clássico e contemporâneo da literatura, nas suas palavras: Se fomos considerar as definições mais clássicas de literatura, o gibi não entraria, porém, acho que o sentido pode ser alargado e o gibi incluído neste conceito, como afirma o teórico francês Antonie Compagnon, no seu livro “O Demônio da Teoria, 2006”. (Doutor com ênfase em Literatura e professor universitário).

A participante M, defende que o gibi com textos, em uma perspectiva contemporânea, é literatura sim. Para ela, é possível oferecer um caminho de fantasias e aventuras com o gênero no ensino fundamental anos iniciais, assim como acontece com a literatura. 267


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Já para G, apesar de algumas teorias serem usadas para estudar, simultaneamente, quadrinhos e literatura, estes não são iguais: têm muitas características semelhantes, mas são artes diferentes. A participante G destaca o fato de Literatura ser a sexta arte e HQ a nona; enquanto que a sexta existe através das palavras, a nova é estruturada por imagem, utilizando texto de forma opcional. Respondendo a segunda questão, D afirma que para HQ sem textos ser considerada literatura, depende da forma como ela é utilizada, mas, de modo geral ele não defende que imagens justapostas em sequência com ausência de texto seja integralmente literatura. O participante volta a destacar a conceituação clássica e contemporânea da literatura para com o gênero. Para M, a resposta é mais sucinta, embora ela também concorde que esta questão seja complexa, vejamos:

Não. Porque a literatura é, de forma breve, a arte das palavras. Então, só consideramos literatura, mesmo no sentido contemporâneo, a arte onde há elementos textuais inseridos nas suas mais variadas formas. Por mais que seja esta, uma questão complexa, a ausência da palavra não é literatura. (Mestra com ênfase em Literatura e professora da rede básica estadual).

Em sua resposta à segunda pergunta, a participante G reitera que HQ não é literatura:

Como os quadrinhos em si não são considerados literatura, são considerados uma arte a parte, o gibi sem texto não faria diferença para literatura. Mas sem elementos textuais, os quadrinhos continuam sendo quadrinhos, apenas pelo fato de serem imagens pictóricas justapostas em ordem. Além disso, existem HQs incríveis que mesmo sem textos podem ser analisadas por teorias literárias, mesmo que não sejam literatura. (Graduada em Comunicação Social com linha de pesquisa em HQ). 268


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Isto posto, pode-se inferir que, de fato, nesta pesquisa não se tem um consenso que responda claramente a incógnita que move este tópico. No entanto, a importância do uso de Gibi nas salas de aula, principalmente nos anos iniciais do fundamental, é destacada, uma vez que é um gênero com características próprias e, por vezes, literárias, além de ser uma manifestação artística que possui intertextualidade e interdisciplinaridade ao mesmo tempo. A pesquisa online e a entrevista evidenciam que as Histórias em Quadrinhos e a Literatura podem ser semelhantes em determinados pontos, porém, mais importante que isso é o valor cultural, pedagógico e humanístico que possuem. No processo de incentivar a leitura dos alunos durante o Ensino Fundamental - Anos Iniciais, tanto o Gibi como a Literatura têm importância imprescindível se utilizados corretamente. Desta forma, faz-se necessário, portanto, desconstruir a visão arcaica de alguns professores conservadores quanto ao gênero, que por muitos anos foi marginalizado no meio acadêmico, para que se comece a vislumbrá-lo como um artefato pedagógico essencial. Durante muito tempo as estórias em quadrinhos foram tidas e havidas como uma subliteratura prejudicial ao desenvolvimento intelectual das crianças. Sociólogos apontavam-nas como uma das principais causas da delinquência juvenil. Aos poucos, porém, foi se verificando a fragilidade dos argumentos daqueles que investiam contra os quadrinhos. (CIRNE apud KLEIMAN, 2004, p.58, grifo nosso).

HORIZONTE PEDAGÓGICO: GIBI COMO IMPULSIONADOR DO HÁBITO DE LER

De forma breve, a relação histórica-social das Histórias em Quadrinhos (HQs) foi, de certa forma, conturbada. Por ser considerado um meio de comunicação de “massa”, as histórias quadrinizadas foram menosprezadas ao longo dos decênios pelo meio acadêmico no Brasil. Em sua linha histórica, as 269


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HQs eram tidas, por teóricos, como um empecilho no hábito da leitura por gerar preguiça mental e retardar o processo de abstração. A sua linguagem também foi menosprezada, o gênero era descrito como ficção exacerbada e descuidada. No entanto, com o passar dos anos, os argumentos contra a função educacional das HQs foram evaporando e o interesse por este artefato no campo pedagógico começou a aflorar. Contudo, ainda existem alguns professores que têm uma visão não atual do gênero como já supracitado neste artigo; por isso, talvez, haja uma necessidade de articular a HQ em algo que seja referência no processo ensino-aprendizagem, no caso, a literatura. Não que sejam completamente divergentes, as histórias quadrinizadas podem ser estudadas a partir da literatura, porém, esta necessidade de mesclá-las é explicada no horizonte histórico preconceituoso que antecedeu o gibi como ferramenta pedagógica. A sociedade brasileira de anos atrás não tinha a mesma visão de educação que a atual possui, pois as responsabilidades da escola e os objetivos de cada fase da aprendizagem são diferentes, haja vista que o meio foi ficando cada vez mais comunicativo, grafocêntrico e, para Bauman (2001), líquido. Ou seja, a sociedade hodierna reflete na educação novas possibilidades atrativas para incentivar a criança a ler e a ter prazer com isto. Para Neves (2012, p. 08) necessário se faz ressignificar o formato com que são apresentados os conteúdos aos alunos, por isso; A escola tem a responsabilidade de passar o conteúdo atraente para que leve o educando ao aprendizado. Para isso, incentiva o uso de recursos didáticos que favoreçam o intercâmbio entre o cotidiano do aluno e a aplicação dessas experiências no conhecimento em sala de aula. Objetiva-se, assim, derrubar o paradigma dos conteúdos sem atratividade. (NEVES, 2012, p. 08). 270


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Diante dessa perspectiva, as Histórias em Quadrinhos, com imagens e textos conseguem atrair a atenção dos alunos. Mesmo quando não possuem palavras, ainda sim se fazem essenciais, uma vez que para entender o contexto o educando terá que interpretar e fazer uma leitura das imagens, como salienta Catunda (2018, p. 83): Os quadrinhos são uma boa ferramenta para despertar a atenção do leitor e facilitar a compreensão por um determinado assunto. Nos quadrinhos, é de suma importância a análise descritiva da linguagem visual para nortear e ajudar o leitor no processo de entendimento e leitura visual das imagens.

Desta forma, o gênero se faz um excelente aliado do professor, sobretudo, no fundamental - anos iniciais, que é quando o aluno deve ser incentivado a ler para que desenvolva um posicionamento crítico. Partindo da importância trivial que o Gibi pode exercer nessa fase do processo ensino-aprendizagem, é que a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) o defende como artefato educacional, vejamos: CAMPO ARTÍSTICO-LITERÁRIO - Campo de atuação relativo à participação em situações de leitura, fruição e produção de textos literários e artísticos, representativos da diversidade cultural e linguística, que favoreçam experiências estéticas. Alguns gêneros deste campo: lendas, mitos, fábulas, contos, crônicas, canção, poemas, poemas visuais, cordéis, quadrinhos, tirinhas, charge/cartum, dentre outros. (BRASIL, 2017, grifo nosso).

Um fato interessante é que a BNCC cita a HQ em seu eixo artístico-literário, ou seja, o documento aproxima o gênero à literatura, não de modo a camuflar a HQ, mas sim por serem artisticamente semelhantes. Esta é uma questão complexa como foi observado mais detalhadamente no tópico anterior, porém, 271


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independentemente de uma resposta clara, a função pedagógica do gibi nos anos iniciais da educação fundamental para atiçar o hábito de ler é óbvia. Não existem teóricos que refutem tal pensamento na contemporaneidade.

O uso histórias em quadrinhos como ferramenta pedagógica é um meio pelo qual podemos canalizar os interesses próprios da criança para transmitir-lhes conteúdos úteis à sua formação, favorecendo a compreensão do mundo, dos meios de comunicação da modernidade, das formas de expressão literária e gráfica e contribuindo para a criação de cidadãos apaixonados pela prática da leitura. (PINHEIRO, 2009, p.16).

É primordial destacar que dentro das histórias em quadrinhos podem haver outros gêneros, tais como a charge, o aviso, a tirinha, o cartum, a lenda, entre outros, daí as HQs são consideradas um hipergênero. Outro ponto importante em sua função pedagógica, é que além da aquisição do hábito da leitura, os enredos das histórias quadrinizadas não se limitam apenas à ficção, pois, por vezes, elas têm aproximação com a realidade do jovem, trazendo críticas sociais e fazendo um convite à reflexão. Para tanto, cabe um direcionamento do professor no modo que esta ferramenta educacional será trabalhada, pois o seu êxito, primeiro, depende da criatividade e versatilidade do educador.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Durante a realização desta pesquisa, encontramos respostas filosóficas para as incógnitas centrais, a exemplo do Gibi como artefato pedagógico e literatura. Deste modo, assumimos o desafio de investigar o que os autores mais influentes no assunto e professores têm a dizer sobre o gênero. Diante das respostas obtidas na análise bibliográfica e na entrevista virtual e estruturada, foi possível identificar que a importância, sobretudo para despertar o hábito de ler nos anos iniciais do fundamental, das Histórias em Quadrinhos ultrapassa barreiras impostas por uma sociedade preconceituosa que ainda detém pensamentos do século passado. Ao entender a necessidade da escola hodierna, fica claro a importância de propostas pedagógicas atualizadas, e o gibi entra nesta perspectiva por conseguir ser versátil, sendo desta forma um hipergênero. Dito como a nona arte e gênero híbrido, as HQs conseguem transitar por todas as disciplinas escolares, trazendo em sua estrutura uma linguagem simples e atrativa que abarca textos e imagens e, por vezes, apenas imagens sem que sua importância pedagógica seja retirada. Face a isto, há dúvida se o Gibi, gênero que não depende da palavra para existir, é Literatura, uma vez que esta usa a palavra como matéria prima. Todavia, como supracitado, a importância educacional e cultural dos quadrinhos não é inexistente, caso não há o enquadramento em literatura, haja vista que os saberes desses dois tópicos são filosóficos e se fundem algumas vezes, é por isso que o gênero é mencionado, pela BNCC, em seu Eixo Artístico-Literário.

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REFERÊNCIAS BALLMANN, Fábio. A nova arte: história, estética e linguagem dos quadrinhos. 2009, 187f, Dissertação (Mestrado em Ciências da Linguagem) - Universidade do Sul de Santa Catarina, Santa Catarina, 2009. BARBOSA, Alexandre. Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004. BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. BRASIL. Base Nacional Comum Curricular (BNCC). Educação é a Base. Brasília, MEC/ CONSED/UNDIME, 2017. CANDIDO, Antonio. A literatura e a formação do homem: ciência e cultura. São Paulo. USP, 1972. CIRNE, M. A explosão criativa dos quadrinhos. 2 ed. Petropólis; RJ: Vozes, 1970. CATUNDA, Márcia Antônia Dias. As histórias em quadrinhos no processo de alfabetização: quais estratégias as crianças utilizam para entendê-las? Revista Temas & Matizes, Ceará, v. 12, p. 75-85, junho, 2019. COELHO. Nelly Novaes. Literatura infantil: teoria análise e didática. São Paulo: Moderna, 2000. COMPAGNON, Antonie. O demônio da teoria: literatura e senso comum. 3 ed. Belo Horizonte: UFMG, 2006. EAGLETON, Terry. Teoria da literatura: uma Introdução. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2006. EGGERS, Fernanda. HQ e literatura: próximos, mas diferentes. 2015. Disponível em https:// medium.com/ideia-transitiva/hq-e-literatura-pr%C3%B3ximos-mas-diferentes-parte1-de-2-5e67d3cf0d10. Acesso em 17 set. 2019. FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987. MCCLOUD, Scott. Desvendando os quadrinhos. São Paulo: Makron Books, 1995. NEVES, Sílvia da Conceição. A história em quadrinhos como recurso didático em sala de aula. 2012. 30f. TCC (Graduação). Curso de Artes Visuais, Departamento de Artes Visuais, Universidade de Brasília, Palmas, 2012. PINHEIRO, M. C. História em quadrinhos como ferramenta pedagógica. Revista Igaipó, Amazonas, v. 1, p. 11-17, 2009. RAMOS, Paulo. A leitura dos quadrinhos. São Paulo: Contexto, 2010. 274


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REZENDE, Lucinea Aparecida de. Leitura e formação de leitores: vivências teórico-práticas. Londrina: Eduel, 2009. TEIXEIRA, Mateus; HIGINO, Nicolas; WATANABE, Pedro. A arte dos quadrinhos. 2014. Disponível em http://www.escolavillare.com.br/artigos/a-arte-dos-quadrinhos/. Acesso em 22 set. 2019. VERGUEIRO, Valdomiro. Como usar as histórias em quadrinhos na sala de aula. São Paulo: Contexto, 2004. VERGUEIRO, Valdomiro. Histórias em quadrinhos e serviços de informação: um relacionamento em fase de definição. Data Grama Zero, v. 6, n. 2, art. 04, ago. 2005.

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Resumo O trabalho discute como o romance de Kamel Daoud, “O caso Meursault” (2013), reescreve parodicamente (HUTCHEON, 1991) o clássico “O estrangeiro”, de Albert Camus, de modo que se focaliza, a partir dos Estudos Pós-coloniais, como a obra argelina põe em debate a questão de gênero tal como esta se apresenta ligada ao imperialismo francês no território da Argélia. Palavras-chaves: Camus; Kamel Daoud; Reescritura; Crítica pós-colonial; Gênero.


KAMEL DAOUD E A RELEITURA DE ALBERT CAMUS: MEMÓRIA ARGELINA E REPRESENTAÇÕES DE GÊNERO NA FICÇÃO FRANCÓFONA PERIFÉRICA CONTEMPORÂNEA ARIANE DA MOTA CAVALCANTI1

INTRODUÇÃO No texto A opção decolonial (2008), Walter Mignolo coloca que as opções epistemológicas revelam posicionamentos políticos, assim como ocorre ao escolhermos um prato num menu ou um automóvel numa loja. A escolha decolonial, afirma o crítico, pressupõe, nesse sentido, um compromisso político de luta contra a retórica da modernidade ocidental, a qual, conforme sua visão, consiste na dinâmica do Ocidente manipulando todas as formas de construções de saber diante do mundo. O que ele nomeia como “retórica da modernidade”, remarca, só se impôs ao longo do tempo em função da matriz colonial do poder (noção que busca em Anibal Quijano), da lógica imperialista, leia-se: domínio, exploração da terra e do povo nativo, não ocidental em intersecções com o racismo e o patriarcalismo. Modernidade e colonialiadade formariam, assim, um conjunto estrutural. A opção epistemológica decolonial insurge, então, contra a lógica imperialista. Esta é a escolha de Mignolo, que se faz também o norte para aqui se desenvolver um olhar sobre a ficção de Kamel Doud, cuja obra igualmente dialoga com perspectiva decolonial, articulando o imperialismo a elementos da matriz colonial do poder. 1. Doutoranda em Teoria da Literatura pela UFPE e Mestre em Teoria da Literatura pela UFPE. E-mail: arianedamota@hotmail.com. 277


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A perspectiva de abordagem analítica segue a iniciativa de buscar elucidar um passado histórico e ficcional das imagens da Argélia que estão ausentes das narrativas hegemônicas e canônicas da História da Literatura ocidental, investigando como tal imagem se associa à questão de gênero. Trata-se, pois, de uma leitura na linha dos Estudos Pós-coloniais, aqui concebidos como um amplo campo de estudos que se realizam no intercruzamento de diversas disciplinas e campos de conhecimento para problematizar as relações entre a produção cultural e os aspectos políticos contemporâneos atrelados às relações de poder marcadas pelo histórico da violência colonial europeia no contexto de seu imperialismo. Entende-se, aqui, nesse sentido, os Estudos pós-coloniais também na perspectiva de Inocência Matta: Como campo de teorias e formulações conceituais diversificadas que se aproximam pelos postulados intencionalmente contra-hegemônicos, ou, como alguns preferem, formulações epistemológicas do Sul, que têm em conta o contexto sócio-político da produção e da reprodução do conhecimento. (2016, p. 41).

Sua visão se coaduna ainda mais estreitamente com o ponto de vista aqui defendido, quando a autora esclarece que sua prática crítica na esteira dos Estudos Pós-coloniais não se limita ao estudo estrito sobre as vozes subalternizadas, mas como um exercício de busca por sentidos da diferença, isto é, daquilo que se difere do canônico, tratando-se de uma exegese comprometida com ampliar a leitura para outras formas de se escrever e criar no campo literário que não estejam sempre circunscritas apenas à escritura ocidental. Revela-se aí, assim, uma preocupação com as alteridades em vigência, contudo esmagadas ou minimizadas, mas não dentro de lógica de substituição/ negação, e sim, de alargamento do cânone. Explica Inocência Matta: 278


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Em todo caso, diferentemente da visão de pós-colonial como o privilegiamento do questionamento da “modernidade hegemônica”, ou da substituição de conceitos científicos ditos universais por outros locais, decorrentes de um conhecimento etnográfico, creio ser razoável considerar que o pós-colonial não se restringe à prática narrativa de comunidades e/ou culturas subalternas, como parece ser um certo entendimento, porventura mais maniqueísta. É que estudos sobre Mia Couto (moçambicano) e T.C. Boyle (norte-americano) podem ser realizados numa epistemologia da diferença e da alteridade (2016, p. 43)

E complementa:

Do que se trata, então, quanto a mim, é de provincializar paradigmas epistemológicos, procedendo ao alargamento do campo das representações, marcadas pela ideia de “epistemologias do Sul” e contrariando aquilo que Said referia, em Orientalismo (1978), como a “compulsão europeia” de confinar ao colonial, o “resto do mundo” (2016, p. 43)

Desse modo, a crítica que olha para a alteridade é uma crítica que aqui se põe em prática, ao se recortar para análise um romance de um escritor argelino contemporâneo voltado para a reescritura do clássico de Camus. Concebe-se que tal empreendimento exegético se compromete com a própria função ética que pode ser observada na Literatura. Como coloca Roland Walter: O efeito ético da literatura reside na sua capacidade de provocar ideações de (outras) identidades e (outros) mundos; ideações estas que abrem o pensamento racional para seus horizontes emocionais, constituindo encruzilhadas imaginativas, onde é possível avaliar as nossas escolhas. É assim que a semiótica cultural mediante a análise da diferença cultural entre os grupos sociais multiétnicos e suas formas de expressão e vivência ganhou sua maior força sociopolítica, teórico-literária e, por meio dos estudos pós-coloniais, histórica (2015, p. 609). 279


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É sob tal apoio teórico-crítico, portanto, que as ressignificações Daoudianas em torno de “O estrangeiro” (1942) serão aqui discutidas.

DAOUD E CAMUS

Kamel Daoud, escritor argelino contemporâneo, no seu romance O caso Meursault (2013), ressignifica O estrangeiro (1942), de Camus, a partir de um ponto de vista inédito: o do “árabe”. Está-se diante de um romance de um autor da Argélia pós-colonial, recontando uma narrativa de um escritor francês que vivia na Argélia colonial. As relações de imperialismo e colonização aparecem nas duas obras e é sobre este aspecto que o trabalho pretende se concentrar, atentando para como a questão de gênero se insere no texto de Daoud. Faz-se fundamental a leitura de Edward Said (1993), na obra Cultura e imperialismo, num ensaio específico sobre “Camus e a experiência colonial”. Diz Said: Camus é um romancista que não descreve os fatos da realidade imperial, evidentes demais pra ser mencionados; como em Austen, permanece um ethos que se destaca, sugerindo universalidade e humanismo, em profundo desacordo com as descrições do palco geográfico dos acontecimentos, feitas de maneira chã na ficção. [...] A França abarca a Argélia e, no mesmo gesto narrativo, o assombroso isolamento existencial de Meursault (1993, p.224) questionar e desconstruir a escolha da locação geográfica de Camus para L‘étranger (1942). Por que a Argélia foi o local escolhido para narrativas cuja referência principal (no caso dos dois primeiros) sempre foi interpretada como sendo a França de modo geral, e a França sob a ocupação Nazista em termos mais particulares? [...]A escolha não é inocente e boa parte do que aparece nas narrativas (por exemplo o julgamento de Meursault) é uma justificação sub-reptícia ou inconsciente do domínio francês ou uma tentativa ideológica de embelezá-lo (1993, p. 226-227). 280


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O empreendimento de Camus explica o vazio e a ausência de qualquer contextualização do árabe morto; daí também o senso de devastação de Oran, que se destina implicitamente a expressar não tanto as mortes de árabes, e sim, a consciência francesa (1993, p.232).

O texto de Daoud, ao reescrever o clássico camusiano, parece, curiosamente, se colocar como uma resposta às investigações da leitura Crítica de Said, desmascarando na trama toda uma subalternização da Argélia à França. O escritor argelino em seu romance denuncia, pois, em face da tradição crítica, a colonialidade e o imperialismo literário presente em O estrangeiro. Kamel Daoud vem operar uma quebra crítica nesse domínio da “França filosófica” (SAID, 1993) que encobre a arquitetura e a textualidade histórica da Argélia, das violências da colonização, da guerra da independência. Ele reconta a história através do narrador Haroun, irmão do árabe assassinado, que agora tem nome e perfil psicológico: Mussa, um fundamentalista agressivo e estivador no cais de Argel. Daoud traz a arquitetura das cidades de Argel e Oran: as fachadas com letreiros franceses num região de língua árabe, as mesquitas, a divisão dos bairros na Argélia colonial entre os bairros franceses e os argelinos; ressignifica as relações da cidade com o mar, traz os problemas urbanos, como a sujeira das ruas como marcas da desocupação francesa; traz as crianças com véus nas ruas, mesmo sem que ainda saibam o que é o corpo e o desejo. Ele escreve na construção do espaço romanesco críticas à violência colonial, mas também do fundamentalismo islâmico que governa o país e interdita os bares. A orelha da edição nacional, publicada pela Biblioteca Azul, de O caso Meursault, desenvolvida por Bernardo Ajzemberg, já sugere que o romance de Daoud seja “vendido” dentro de sua proposta decolonial, assinalando os rancores do narrador criado pelo autor em face do silenciamento quando à memória árabe e argelina. Cito Ajzemberg: 281


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O ponto central do romance de Camus é um assassinato de um árabe cometido pelo narrador, Meursault, em plena praia, sob um sol escaldante, no verão de 1942. Numa espécie de continuação às avessas, elevando à enésima potência a crueza camusiana, Kamel Daoud parte dessa cena para fazer desfilarem, aos olhos do leitor, mais de cinco décadas de história argelina, destacando o conflito pela independência contra a dominação francesa. O autor revisita Camus por meio das confidências rancorosas e ferinas de Haroum, para quem aquela tão consagrada obra traz uma gigantesca e imperdoável lacuna: em nenhum momento se atribui uma identidade ao assassinado, nenhuma palavra sobre a sua história. Pois Haroum é justamente o irmão caçula desse “árabe”, que tem então o nome por ele revelado: Moussa, um homem simples, cheio de vida. Em sua cadeira no bar, Haroum conta a história de Moussa, de sua família e de seu combate pelo reconhecimento do crime, a busca obsessiva da mãe pelo corpo do filho, que nunca apareceu. Empenha-se a se tornar visível aquilo que se oculta há décadas (Apud, DAOUD, 2016)

O romance, assim, dialoga com as ideias de Said, como se fosse uma resposta ao imperialismo em O estrangeiro, trazendo a memória ocultada da colonização da Argélia. Cita-se Daoud na abertura do romance:

HOJE MAMÃE AINDA está viva. Ela não fala mais, mas poderia contar muitas coisas. Ao contrário de mim, que de tanto remoer essa história já quase nem me lembro dela. Devo dizer que é uma história que remonta há mais de meio século. Ela aconteceu de fato, e foi muito comentada. As pessoas ainda falam dela, mas com o maior descaramento, evocam apenas um morto, sendo que havia dois: não um morto, mas mortos. Sim, dois. Qual o motivo dessa omissão? O primeiro deles sabia contar histórias, a tal ponto que conseguiu fazer com que o seu crime fosse esquecido, enquanto o segundo era 282


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um pobre analfabeto que Deus pôs no mundo, ao que parece, unicamente para levar um tiro de revolver e retornar ao pós, um anônimo que não teve nem sequer tempo de ter um nome. Digo logo de cara: O segundo morto, o que foi assassinado, era meu irmão. Não sobrou nada dela. Sobrei eu, apenas, para falar por ele, sentando aqui neste bar esperando por condolências que ninguém jamais me apresentará. Você pode achar engraçado, mas é um pouco esta a minha missão: Reapresentar um segredo de bastidores enquanto a sala se esvazia. Foi por isso, aliás, que aprendi a falar essa língua, e a escrever nela também; para falar por um morto, prolongar um pouco as frases dele. O assassino ficou famoso e a sua história é demasiado bem escrita para que eu pense em imitá-la. Era a língua dele. É por isso que farei o que se fez neste país depois da sua independência: pegar uma a uma as pedras das velhas casas dos colonos e erguer com elas uma casa minha. As palavras do assassino e suas expressões são o meu imóvel desocupado. O país está, aliás, inundado de palavras que já não pertencem a ninguém e que observamos nas fachadas das velhas lojas, nos livros amarelecidos, nos rostos, ou, ainda, transformadas pelo estranho dialeto que a descolonização forja (2016, p. 9-10).

Percebe-se no trecho o tom de crítica às marcas da colonização aparente nas ruas das cidades, visíveis nos imóveis e suas fachadas. A marca da colonização é arquitetônica e o narrador faz essa denúncia da cidade invadida e que continua a violentar os olhos de quem lê pelas ruas e pelos livros um passado de disputa territorial, de hegemonia francesa e apagamento da identidade cultural e linguística do povo árabe.

DAOUD E A QUESTÃO DE GÊNERO

Como já citada, a noção de “Matriz colonial do poder” desenvolvida por Anibal Quijano (apud Mignolo 2008) se apresenta como fundamental para se pensar a questão de gênero e imperialismo. Na visão do crítico latino 283


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americano, o patriarcalismo é um dos pilares para que a matriz colonial se estabeleça nos territórios dominados pelo Ocidente. Um exército de homens que “conquistam” a terra e fazem seus genes serem perpetuados em contato com as mulheres desta terra é um dos modelos basilares da lógica da dominação colonial. Nesse sentido, a colônia é a terra explorada, assim como o corpo feminino é explorado ao longo da história do patriarcado. A esse respeito, torna-se elucidativa a percepção da relação entre gênero e colonização da filósofa americana Rebecca Solnit. Cita-se: Como posso contar uma história que já conhecemos tão bem e até demais? O nome dela era África. O nome dele era França. Ele a colonizou, a explorou, a silenciou, e mesmo décadas depois que isso já deveria ter terminado, continuou forçando e usando a sua superioridade para resolver os negócios dela, em lugares como a Costa do Marfim — nome dado ao país em função dos seus produtos de exportação, não da sua própria identidade. O nome dela era Ásia. O nome dele, Europa. O nome dela era silêncio. O dele, poder. O nome dela era pobreza. O dele, riqueza. O nome dela era dela, mas o que pertencia a ela? O nome dele era dele, e ele presumia que tudo fosse dele, inclusive ela, e julgou que poderia toma-la sem pedir nem perguntar, e sem consequência alguma. É uma história muito antiga, embora seu desfecho tenha mudado um pouco nas últimas décadas (2017, p. 57-58).

Nota-se que a autora associa a Europa imperialista ao gênero masculino, o qual dentro da lógica patriarcal, domina a figura feminina, no seu entendimento, emblemática da colônia. A colônia é, nesse sentido, “ela”, a mulher dominada, explorada. A colônia é a África, a Ásia e seria também a América Latina. Destaca-se a passagem “o nome dela era silêncio” para se chamar atenção para o fato de que o romance de Daoud insurge contra esse silêncio, uma vez que se tem uma voz autoral argelina que escreve para retirar do 284


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silêncio a memória de uma família de árabes silenciados num romance de um escritor colono francês, escritor agraciado com o prêmio Nobel e portanto, canonizado pela tradição literária ocidental. A memória que ressurge na obra paródica de Daoud “O Caso Meursault” é uma memória da Argélia emudecida por “ele”: o colonizador/ a França e seu poder literário na História da Literatura ocidental. Diversas passagens em Daoud quanto à problematização da Argélia enquanto terra dominada, como uma mulher assim o é no sistema patriarcal, podem ser observadas. Cito, contudo, uma delas que articula a imagem geográfica da cidade de Orã ao corpo da figura feminina, associada à imagem da prostituta:

É uma cidade que tem as pernas abertas em direção ao mar. Quando você descer para ver os bairros de Sidi-el-Hourai, para os lados da Calère des Epangnols, dê uma olhada no porto: Cheira a uma velha puta a quem a nostalgia leva a ficar falando sem parar. Eu mesmo desço para o jardim denso do Passeio de Létang para beber alguma coisa sozinho e dar uma espiada nos delinquentes. Sim ali onde cresce a vegetação estranha e intensa, fícus, coníferas, aloés, sem esquecer as palmeiras, assim como as outras árvores profundamente enraizadas, proliferando tanto pelo ar quanto por baixo do solo. Para baixo, há um labirinto amplo de galerias espanholas e turcas que eu já visitei. Normalmente estão fechadas, mas eu observei um espetáculo impressionante: as raízes das árvores centenárias vistas por dentro, digamos assim gigantescas e tortuosas, flores gigantes nuas como que suspensas. Vá a esse jardim. Gosto do lugar, mas às vezes capto os eflúvios de um sexo feminino, gigante, exausto. Isso confirma um pouco a minha visão lúbrica, essa cidade tem as pernas abertas para o mar, as coxas abertas, desde a baía até as pares altas, onde fica esse jardim exuberante e de forte aroma. Foi um general — o general Létang — que o concebeu em 1847. Eu diria que o fecundou, rá-rá! (2013, p. 21 e 22) 285


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Observa-se claramente a associação do jardim descrito ao sexo feminino; um sexo “exausto” e “fecundado” por um general francês cujo nome Létang é dado ao próprio lugar “Passeio de Létang”. O general, o homem/colonizador fecunda, possui e nomeia esta terra de “pernas abertas”. A terra é “ela” em Daoud. A cidade se passa como uma prostituta: rendida, explorada. Está aí a consciência em seu texto daquilo que Quijano (apud MIGNOLO, 2008) sinaliza: a colonialidade e o patriarcado formam pilares da matriz colonial do poder. É simbólico que o trecho assinale que justamente um general “fecunda” a cidade/mulher, uma vez que a nacionalidade e a masculinidade hegemônica estiveram associadas no processo imperialista, sobretudo, no que diz respeito à instituição do exército nacional, constituído por homens desbravando e dominando terras. A esse respeito, traz-se a explicação de Mário César Lugarinho, quando o crítico discute como a nacionalidade nos séculos XVIII e XIX está atravessada por valores da masculinidade. Suas palavras: Pela própria instituição do Estado, através do Direito e da Justiça: assim, a sanidade mental e a orientação sexual, o capital acumulado e o respeito à legislação interna e à ordem política estabelecida também passaram a hierarquizar os traços identitários individuais e coletivos em relação à identidade nacional paradigmática. Por negação aos desvios, que eram fortemente descritos pela ciência emergente, o paradigma da identidade nacional se estabelecia uma paradigma flagrantemente masculino. Para Mosse (2000), nesta altura, a centralidade da identidade masculina é levada ao paroxismo a fim de dar sentido às identidades nacionais, com a criação, ao longo do século XVIII, na Europa, dos exércitos nacionais. A criação do braço armado do Estado nacional determina uma mudança drástica na cultura europeia a partir da qual o serviço ao Estado passava a agregar valor de masculinidade ao indivíduo (2017, p. 191).

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Desse modo, nada mais simbólico do imperialismo francês que um general, ícone da masculinidade atrelada ao ideal de nacionalidade francesa, ser citado por um narrador argelino (Haroum) magoado com o silenciamento “feminino” de sua terra, sua cidade cujo jardim ornamentado em folhas de aspectos genitais de uma mulher recebe o nome de um militar, líder das tropas francesas na região. Aqui, Daoud denuncia a força do patriarcado na matriz colonial do poder que abarca a Argélia. Tratar a terra como mulher é revolver a história argelina e reescrevê-la com os sinais de uma violência patriarcal, associada à exploração do país, ao ritmo imperialista da dominação francesa. Esta é uma memória da Argélia que a tradição literária ocidental precisa visitar, para que a própria memória da França seja plural, uma vez que tem a oportunidade de descentrar-se das imagens cristalizadas de metrópole “civilizadora”, promotora da “liberdade, igualdade e fraternidade”. Daoud oferece na sua ficção imagens que a Franca, muitas vezes, evita estampar em seu espelho: uma França violenta, imperialista, estupradora de terras, de uma história argelina. Mas a problematização da questão de gênero em Daoud abrange não só a relação França x Argélia, como se amplia para trazer à tona o patriarcalismo na relação da Argélia com o fundamentalismo islâmico. É o que fica evidente no seguinte trecho em que se remarca a religiosidade presente nas ruas da cidade, grafada na descrição dos corpos das meninas que vestem véu. Cito:

Veja aquele grupo que está passando ali, aquela menina com o véu cobrindo a cabeça sendo que ela nem sabe ainda o que é um corpo, o que é o desejo. O que você faria com essas pessoas? Hein? (2016, p. 86).

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Nota-se que o escritor assinala o traço islâmico e fundamentalista que ronda as mulheres argelinas, criticando o machismo presente no Corão e que povoa a cidade pelos corpos controlados das meninas que habitam a Argélia. O fato de serem meninas e não mulheres selecionadas para andarem pela escrita de Daoud já aponta que sua obra contesta a memória da Argélia que as mesquitas ajudam a criar. O véu na ficção argelina também é traço da memória nacional. Este aspecto em Daoud aponta que seu projeto tanto ataca o imperialismo francês, quanto o fundamentalismo islâmico que governa a Argélia contemporânea.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Daoud reescreve com resistência pós-colonial O estrangeiro, afrontando também o sistema político argelino atravessado pelo fundamentalismo islâmico. Sua reescritura do texto camusiano reconfigura o passado, problematizando concomitantemente a Argélia contemporânea. A relação do pais com o Islamismo compromete a liberdade de expressão no país, a liberdade, inclusive, para se escrever Literatura, de modo que questionar o sagrado, problematizando o gênero e a opressão feminina desde a infância pela vestimenta do véu, sobretudo escrevendo na língua francesa, num contexto histórico de uma Argélia extremamente nacionalista, é um ousado ato político. Sua coragem pode ser lida como uma empreitada de reescritura das memórias tanto francesa, quanto argelina. Sua literatura oferece a oportunidade de se vivenciar uma ética da alteridade na leitura de seumovimento paródico e político frente a Camus. Tem-se em Daoud um outro “ O estrangeiro”, uma oportunidade de descentramento do cânone a partir do próprio cânone. Este é o movimento clássico de um romance pós-colonial: descentrar. 288


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REFERÊNCIAS CAMUS, Albert. O estrangeiro. Trad. Valery Rumjanek. 38 ed. Rio de Janeiro: Record DAOUD, Kamel. O caso Meursault. Trad. Bernardo Ajzemberg. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016. LUGARINHO, M. Nação e gênero: intersecções para os estudos pós-colonais. In: Inocência Mata; Flávio García. Pós-colonial e pós-colonialismo: propriedades e apropriação de sentidos. Rio de janeiro: Dialogarts, 2016. MATA, Inocência. Localizar o pós-colonial. In: Inocência Mata; Flávio García. Pós-colonial e pós-colonialismo: propriedades e apropriação de sentidos. Rio de janeiro: Dialogarts, 2016. MIGNOLO, Walter. La opción descolonial. Letral, 1, 2008, p. 4-22. SAID, Edward. Cultura e imperialismo. Trad. Denise Bottman. São Paulo: Companhia das Letras, 1993. SOLNIT, Rebecca. Os homens explicam tudo para mim. Trad. Isa Mara Lando. São Paulo: Cultrix, 2017.

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Resumo O presente artigo entrega uma análise da memória como principal motor do romance Menino de Engenho (1932), obra que introduz o conhecido “ciclo da cana-de-açúcar”, decerto a mais estimada parcela da ficção de José Lins do Rego. A partir desse livro, e considerando os dois romances que o seguem: Doidinho (1933) e Banguê (1934), avaliamos a influência da biografia do autor nos textos que ficcionalizam a região açucareira do Nordeste. Mais do que sopesar experiência de vida e criação literária, buscamos em nosso estudo reconhecer o papel da memória na construção de uma trilogia de romances de formação, uma vez que as três obras citadas compreendem da infância à adultez do seu narrador autodiegético, Carlos de Melo. Em nosso proceder analítico, utilizamo-nos de obras da historiografia literária brasileira, com especial atenção à biobibliografia de José Lins do Rego e ao Romance de 30, com Martins (1973), Trigo (2002), Castello (2004), Bueno (2006) e Candido (2010); textos que teorizam memória individual e coletiva, com Halbwachs (2006), e que tratam do assunto na obra do escritor, com Lucas (2011) e novamente Trigo (2002); além de artigos de crítica literária contemporâneos ao romance Menino de Engenho, do que são exemplos Mendes (1933) e Sete (1933). Palavras chave: Memória; Ficção; Ciclo romanesco; José Lins do Rego; Romance de 30.


MENINO DE ENGENHO, DE JOSÉ LINS DO REGO, E A MEMÓRIA COMO FUNDADORA DE UM CICLO ROMANESCO TAFFAREL BANDEIRA GUEDES1

INTRODUÇÃO Compreender, mesmo a partir de um recorte, a produção ficcional de José Lins do Rego no conjunto literário da década de 30 é tarefa ambiciosa que extrapolaria os limites deste ensaio. É certo que há dissertações, teses e demais publicações que se tenham lançado a semelhante trabalho. No entanto, parece-nos inviável apreciar Menino de engenho (1932) — livro primogênito que introduz não somente a conhecida trilogia protagonizada por Carlos, mas todo um ambiente ficcional recorrente nos melhores livros do autor — sem apontarmos algumas informações conjunturais e de ordem biobibliográfica. Até o mais superficial olhar sobre o século XX leva à conclusão de que os anos 30 foram o seu período de maior efervescência cultural e literária. Na década, visualizamos o surgimento de importantes editoras nacionais, como a José Olympio; publicações decisivas na área da sociologia e da antropologia, do que são exemplos Casa-grande e senzala (1933) e Raízes do Brasil (1936), referências como interpretações do brasileiro; além de um 1. Doutorando em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (PPGL-UFPE); bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). (taffarelbandeira@hotmail.com). 291


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número expressivo de escritores em atividade, especialmente romancistas (estima-se uma média de 120 romances publicados2). No grosso dos romances do período, reconhecemos o resgate da tradição narrativa oitocentista, em especial a real-naturalista, aliada aos usos linguísticos correntes; material, enfim, de uma ficção fortemente ancorada na realidade de regiões afastadas do eixo dominante. O foco sobre o papel social da literatura, o de fazer conhecer regiões, povos e classes trabalhadoras negligenciadas, era tal no período, que alguns autores desejavam seus romances simples objetos de investigação sociológica, lenificando a sua condição primeira de arte. Exemplo célebre disso encontramos na nota3 que introduz Cacau (1933), de Jorge Amado, em que o jovem baiano intenta reduz seu romance à condição de documento. Se comparada às produções da década anterior, a literatura dos anos 30 obteve melhor reconhecimento junto a um público leitor até então fiel à Academia. Propostas de mudanças que eram vistas com desconfiança e até antipatia “se tornaram até certo ponto ‘normais’, como fatos de cultura com os quais a sociedade aprende a conviver e, em muitos casos, passa a aceitar e apreciar” (CANDIDO, 2011, p. 220). Assim, romancistas como Jorge Amado, José Lins do Rego, Amando Fontes e tantos outros, ao mesmo tempo que se beneficiaram das conquistas alcançadas pelos primeiros modernistas, receberam do público um acolhimento tal que a sua literatura passou a configurar o gosto em voga. Suas obras traziam “a depuração antioratória da linguagem, com a busca de uma simplificação crescente e dos torneios coloquiais que rompem o tipo anterior de artificialismo” (CANDIDO, 2011, p. 225), o que 2. Lista que compõe a bibliografia de Uma história do romance de 30, de Luís Bueno (2006). 3. Tentei contar neste livro, com um mínimo de literatura para um máximo de honestidade, a vida dos trabalhadores das fazendas de cacau do sul da Bahia. Será um romance proletário? (AMADO, 2010, p. 9). 292


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vai ao encontro das expectativas de uma sociedade que não mais prima pela conservação da língua como instituição acadêmica. É digna de nota a maneira como a ficção de 30, em especial o romance (principal gênero cultivado no período), figurou os homens e as circunstâncias sociais das regiões afastadas dos principais centros econômicos do período: São Paulo e Rio de Janeiro. O matuto, homem simples e em estreita ligação com a natureza rural, dotado de uma linguagem destoante da “uniformidade” urbana, em acordo com a região que habita, é representado, nesses romances, de maneira diversa da que encontramos nos contos regionalistas das primeiras décadas. E a razão está em que as obras de Graciliano Ramos, José Lins do Rego ou Rachel de Queiroz não tinham por objetivo contrastar, por meio do pitoresco da paisagem e do caricato das descrições, o homem citadino com o caipira, este último encarado como um exemplar humano cômico e ultrapassado. Antes, os romancistas de 30 se empenharam, com seriedade e objetivo claro, em representar enquanto sujeitos plenos os habitantes do ambiente rural e também do subúrbio, isso feito com “uma consciência crítica que torna a maioria desses autores verdadeiros radicais por meio da literatura” (CANDIDO, 2010, p. 106). Encontramos em Menino de Engenho, bem como no grosso dos romances da década de 30, muito do mundo externo ao qual diz respeito, e isso fica evidente quando notamos no livro parcela considerável de uma tradição cultural presente nas memórias coletiva do povo paraibano e na individual do artista.

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Nos romances do açúcar, José Lins do Rego namora o ensaio, a investigação sociológica, o inquérito social, o que deixa, é verdade, pouco espaço para uma visão romântica e refinamentos estéticos na sua narrativa. Em seu panorama do variado tecido social do Nordeste agrário, ele capta a dinâmica de chefes políticos, senhores de engenho, cangaceiros, velhas rezadeiras, contadores de história. Mas não se limita a retratar a realidade como ela é; antes inverte os termos da equação: a realidade é como ele a retrata. (TRIGO, 2002, p. 19).

Assim, toda essa tradição, ao passar pelo processo da criação e escrita literária, vem tornar-se interna ao texto, graças à fusão entre as realidades extraliterária e intraliterária. Portanto, quando nos interessamos pela análise das questões da memória coletiva a partir de um romance, como faremos, devemos atentar para a transformação por que passam todos esses elementos socioculturais no momento em que se transformam numa realidade situada nos limites da escrita e do texto. Noutros termos e nos valendo do pensamento de Halbswachs (1990), podemos entender que a memória coletiva abrange a memória individual, embora ambas não se tratem da mesma coisa. Consoante a sua memória coletiva, um sujeito pode comportar-se “como membro de um grupo que contribui para evocar e manter as lembranças impessoais, na medida em que essas interessam ao grupo.” (HALBWACHS, 1990, p. 35). Arrematando a questão aqui levantada da memória coletiva dentro dos limites do literário, vale a seguinte passagem de Paul Ricoeur: A memória coletiva não está privada de recursos críticos; os trabalhos escritos dos historiadores não são os seus únicos recursos de representação do passado; concorrem com outros tipos de escrita: textos de

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ficção, adaptações ao teatro, ensaios, panfletos; mas existem igualmente modos de expressão não escrita: fotos, quadros e, sobretudo, filmes (pensemos em Shoah de Claude Lanzmann, em A Lista de Schindler de Spielberg). (RICOEUR, 2003, p. 5)

Ricoeur, podemos entender, salienta que outros tipos de textos, entre eles o literário, podem ser carregados de representação do passado, valioso material por meio do qual é possível obter os conhecimentos que, ingenuamente, pensa-se restritos à história. Num romance como Menino de Engenho, há muito da memória, da sociedade e da cultura a que diz respeito. Contudo, vale ressaltar que, semelhantes na possibilidade de carregarem uma representação do passado, os textos literários e historiográficos possuem finalidades e consentimento de leitura distintos.

DESENVOLVIMENTO

Falamos, mais de uma vez, de José Lins do Rego em suas aproximações com o projeto literário geral do movimento. No entanto, os seus romances, embora sintonizados com a linguagem, o modo de representação ficcional e a imersão na realidade nordestina dominantes entre a literatura da década de 30, não deixam de apresentar um projeto artístico singular, coerente e vitorioso quando circunscrito à zona canavieira e ao interior do Nordeste. Na trilogia composta por Menino de engenho (1932), Doidinho (1933) e Banguê (1934), há a criação de um universo ficcional, com seus ambientes, tipos humanos, organização social e política, que será a verdadeira marca da literatura de Zé Lins. Esse universo, cuja síntese é Fogo morto (1943), último romance que se passa no entorno dos engenhos Santa Rosa e Santa Fé, é representado na trilogia sob um olhar pessimista, uma vez que o narrador 295


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autodiegético Carlos narra a paulatina ruína dos engenhos de açúcar, suplantados pelas usinas. Nesse processo, o que vemos morrer não é somente um modelo de atividade econômica, mas toda uma organização social estruturada em torno da casa-grande: [José Lins do Rego] sempre esteve voltado para o passado. Sua obra é sombria e pessimista: de Menino de engenho (1932) a Fogo Morto (1943) — para citar apenas os que se incluem no período modernista — seus romances são o retrato de uma sociedade ou de seres que se desintegram. (MARTINS, 1973 p. 272-273).

Esses romances, aos quais podemos somar ainda Usina (1936), constituem o chamado ciclo da cana-de-açúcar, terminologia que chegou a ser acatada pelo próprio autor. São, de fato, os mais famosos de José Lins e os melhor avaliados pela crítica, a tal ponto que as histórias literárias, ao tratarem de sua produção, detêm-se a essa parcela de sua obra, preterindo os romances que extrapolam os limites geográficos já descritos.

A ideia de ciclo, segundo Rachel de Queiroz, praticamente foi imposta pelos críticos ao escritor paraibano. O fato é que mais tarde José Lins aboliu a menção ao “ciclo” no subtítulo de todas as reedições de seus primeiros romances, a partir de 1943. Inicialmente, ele teria ficado lisonjeado por lhe atribuírem um sistema, um plano de trabalho balzaquiano, quando na verdade sua obra nascia espontaneamente, naturalmente, sem planta pré-fabricada. (TRIGO, 2002, p. 30)

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A despeito de rotulações, para Antonio Candido, na obra do paraibano, “são melhores os livros situados na região nordestina, sobretudo os que giram em torno da sua própria experiência de rebento duma velha família de senhores rurais.” (CANDIDO, 2010, p.108). Tomemos a palavra “experiência”, usada pelo crítico, para entrarmos na discussão do papel da memória nos romances do ciclo. É incontornável a aproximação entre a biografia de José Lins do Rego e o mundo ficcional que Menino de engenho introduz, e isso ficou ainda mais evidente com a publicação de Meus verdes anos (1956), livro de memórias que põe em xeque a prolífica dualidade entre testemunho e ficção. Quando José Lins do Rego escreveu as suas memórias em Meus verdes anos (1956), a crítica logo admitiu o paralelismo entre o vivido e o narrado, pois este livro era, na verdade, outra forma de rever o drama do menino do engenho. (LUCAS, 2012).

Os pontos de contato entre os livros não são poucos: em Meus verdes anos, salta aos olhos, em primeiro lugar, a retomada de eventos, personagens e espaços presentes em Menino de Engenho; em seguida, as semelhanças de temperamento emocional e de postura diante do mundo entre os dois narradores corroboram ao entendimento de que Carlos de Melo é um alter ego do José Lins; por fim, as relações entre os livros também se mostram em sua estrutura um tanto fragmentária, com capítulos dedicados a momentos de destaque da sua infância e adolescência, à maneira de crônicas organizadas cronologicamente. Complementa o título Meus verdes anos o referente Memórias, no plural. Certamente indica o entrelaçamento de vários momentos de memória voluntária do escritor misturada à torrente da imaginação.

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Imaginação, aliás, característica da criança narradora tanto em Meus verdes anos quanto em Menino de engenho: introspectiva, solitária, desgarrada dos carinhos e apoios maternos, em choque com o meio rude e hostil do engenho. “Memórias”, no plural, para designar o gênero literário, talvez se refira ao estilo de José Lins do Rego: descontínuo, que reúne fragmentos autônomos das lembranças e episódios. (LUCAS, 2012).

Insistimos nas aproximações entre esses livros, que, não por acaso, encontram-se nos extremos na produção literária de José Lins do Rego, para justificar a ideia de que Menino de engenho introduz uma trilogia e um ciclo romanesco que tem como base e norte as memórias biográficas do seu autor, ainda que revestidas de ficção. Segundo Wilson Martins, a publicação de Meus verdes anos somente confirmou as primeiras afirmações críticas a respeito do livro primogênito, uma vez que “os que falavam de um José Lins do Rego memorialista não calculavam, certamente, até que ponto tinham razão.” (MARTINS, 1973, p. 273). Luciano Trigo, por sua vez, não pensa diferente, pois entende que “Meus verdes anos é prova cabal de que os três primeiros romances do açúcar constituem uma autobiografia disfarçada do autor.” (TRIGO, 2002, p. 32). Resgatando as primeiras críticas lançadas sobre o livro, vemos o conhecido poeta Murilo Mendes, na edição de 29 de novembro de 1933, do jornal catarinense O Estado, observando que “Menino de Engenho é uma novela autobiográfica que não força os seus limites naturais.” (MENDES, 1933). Já Mário Sete afirma, a 15 de maio de 1933, no jornal Diario de Pernambuco, que sempre gostou “dos livros que há, nua ou veladamente, muito ou um pouco de autobiografia.” (SETE, 1933). Outra crítica, saída no mesmo jornal a 30 de setembro de 1932, mas não assinada, aponta paras as aproximações entre Menino de Engenho e O Ateneu, de onde podemos subtrair o julgamento da presença das memórias biográficas na construção do livro. 298


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Esses exemplos da recepção primeira do livro ilustram que, já quando do seu lançamento, Menino de engenho foi rotulado como uma narrativa autobiográfica, tamanha e tão evidente a aproximação entre a ficção e a biografia do autor. Tal rótulo seria corroborado por Doidinho, continuação do primeiro e que narra as angústias vividas pelo menino Carlos num colégio interno, experiência pela qual passou José Lins. Nesse sentido, torna-se difícil à crítica distinguir, nas obras do ciclo, a memória da imaginação, “mas, em caso de dúvida, poderemos sempre decidir sem erro pela primeira contra a segunda.” (MARTINS, 1973, p.273). Interessante como a recorrência à memória, louvada como valiosa matéria fundadora da obra, passa, mais tarde, a fundamentar a compreensão de que José Lins do Rego fracassa nos livros em que a imaginação assume o lugar central na ficção, isso porque os romances que não se incluem no ciclo da cana-de-açúcar, ambientando-se numa topografia outra, são justamente os mais condenados pelos críticos até hoje. Sob esse aspecto, os seus romances “nordestinos” são, no fundo, as suas memórias de homens, pois não apenas se nutriram indiretamente das cenas, dos tipos humanos, do ambiente em que se passou a sua juventude, mas, ainda, receberam, tais quais, fatos da vida real, com os nomes das pessoas que neles participaram, com as circunstâncias particulares que os envolveram. Chegou-se mesmo a dizer que ele não tinha imaginação, neste sentido de que os romances tirados de matéria estranha à sua própria existência não apresentam nem o interesse, nem a força sugestiva, nem a impressão de seiva autêntica e espontânea que são as qualidades mais evidentes dos demais. (MARTINS, 1973, p. 273).

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Concordamos que há, no projeto literário de Zé Lins, essa vitória da memória sobre a invenção, embora não esqueçamos que, à revelia das evidentes aproximações entre biografia e ficção, devemos considerar a realidade exposta nos romances como autônomas, uma vez que cada obra literária encerra um universo próprio, construído de linguagem e estilo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se está em Menino de engenho a matriz da trilogia de Carlos de Melo, bem como de todo o ciclo da cana-de-açúcar, podemos buscar nele o broto que faz rebentar a larga existência dos livros que o seguem. A intenção inicial, segundo o próprio autor, era “apenas escrever as memórias que fossem as de todos os meninos criados nas casas-grandes dos engenhos nordestinos.” (REGO, 2010, p. 29). O resultado, porém, mostrou-se mais ambicioso, extrapolando os registros das recordações infantis e alcançando a representação literária da ruína de todo um sistema patriarcal que era a base da sociedade canavieira. Dessa forma, Menino de Engenho faz erigir um mundo cercado por determinados valores e tradições no universo do Nordeste brasileiro, surpreendido numa fase aguda de mudanças. Investiga-se o abalo de estruturas de uma sociedade rural aristocratizante, latifundiária e escravocrata. Esse mundo dentro desse universo complexo é o “mundo” do Menino de Engenho, de onde partem experiências diversificadoras para a caracterização de uma realidade totalizadora e ao mesmo tempo de destino individual. (CASTELLO, 2004, p. 288).

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Assim, o que Menino de Engenho introduz, os livros subsequentes, Doidinho e Banguê, totalizam, juntos constituindo uma “perfeita trilogia” (CASTELLO, 2004, p. 289) protagonizada pelo herdeiro do Santa Rosa. E as razões disso estão no encadeamento narrativo entre os romances, especialmente entre o primeiro e o segundo; uma narrativa desdobrando-se na outra. Compartilhando o narrador-protagonista, que vemos se desenvolver à maneira dos melhores romances de formação, os três romances se dedicam a fases distintas da vida de Carlos de Melo: Menino de engenho, que se inicia com a evocação do assassinato da mãe do protagonista, narra a infância e as primeiras descobertas de uma criança que passa a viver no engenho do avô, um mundo totalmente novo para si. Doidinho, em sequência, inicia-se exatamente onde o outro termina: um Carlinhos já pré-adolescente indo a um prestigiado colégio interno, onde passará a ter o seu primeiro contato com a educação formal, até o momento em que decide fugir e voltar ao engenho. O terceiro livro, Banguê, sem dúvida a melhor realização literária dos três, traz um narrador já adulto, formado em direito, e sua história se passa cerca de 10 anos além dos eventos narrados ao fim de Doidinho. No entanto, o que dá liga e sustento à trilogia não é somente o fato das três narrativas darem conta de fases distintas e contínuas da vida de um mesmo narrador-personagem (infância, adolescência e adultez), conforme descritas. Mais do que as memórias de um ser, devemos lembrar, vítima da orfandade, deslocado e inábil para o que o futuro lhe reservava, há nos romances todo um entrelaçamento que se apoia

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em referências e evocações de pessoas, situações e fatos, disseminados de narrativa para narrativa em virtude da dependência de cada uma ao mesmo universo rural entrevisto pelo ângulo de visão de um único eu-narrador-memorialista. Sobretudo sentido e observado, o mundo evocado é também submetido à reflexão. E se o despojamos de restrições memorialistas, ele se amplia como representação de riquíssimo conteúdo ao mesmo tempo humano e social. (CASTELLO, 2004, p. 290).

Ao compartilhar, dessa maneira, espaços (os engenhos Santa Rosa, Santa Fé e outros vizinhos), personagens (tio Juca, tia Maria, a velha Sinhazinha, o avô Zé Paulino etc.) e episódios rememorados (a grande cheia do rio, o casamento da tia, as brincadeiras de infância e demais passagens) introduzidos em Menino de engenho, a trilogia tem configurada a necessária unidade por trás da autonomia de cada livro. Não podemos avaliar, tomando por base a bibliografia a que tivemos acesso, em que medida havia, quando da publicação de Menino de engenho, o projeto de criação de outros dois romances que continuariam a vida do protagonista. No entanto, para além do levantamento feito acerca das aproximações existentes entre os romances, podemos concluir que o primeiro livro gera, no leitor, o interesse em acompanhar a trajetória de Carlinhos; interesse justificado, por exemplo, pelo clima de expectativa gerado no último capítulo da obra: “No dia seguintes tomaria o trem para o colégio.” (REGO, 2008, p. 46).

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REFERÊNCIAS AMADO, J. Cacau. São Paulo: Companhia das Letras, 2010. BUENO, L. Uma história do romance de 30. São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo; Campinas: Ed. da Unicamp, 2006. CANDIDO, A. A educação pela noite. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2011. CANDIDO, A. Iniciação à literatura brasileira. Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2010. CASTELLO, J. A. A literatura brasileira: origens e unidade. Vol. II. São Paulo: EDUSP, 2004. HALBWACHS, M. A memória coletiva. São Paulo: Edições Vértice, 1990. LUCAS, F. O memorialismo de José Lins do Rego. In: José Lins do Rego. Meus verdes anos: memórias. Rio de Janeiro: José Olympio, 2011. MARTINS, W. O modernismo. São Paulo: Cultrix, 1973. MENDES, M. O Norte e o romance. O Estado. Santa Catarina, 20 nov. 1933. REGO, J. L. do. Menino de engenho. Rio de Janeiro: José Olympio, 2008. REGO, J. L. Meus verdes anos. Rio de Janeiro: José Olympio, 2010. SETE, M. Menino de engenho. Diario de Pernambuco. Recife, 18 de maio de 1933. TRIGO, L. Engenho e memória: o Nordeste do açúcar na ficção de José Lins do Rego. Rio de Janeiro: Topbooks, 2002.

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Resumo O presente trabalho visa analisar como a não compreensão das variações linguísticas e a valorização do estruturalismo linguístico geram preconceitos em contextos escolares e, consequentemente, nas práticas sociais. Tem-se especificamente como finalidade deixar algumas reflexões acerca da fala e dos elementos semântico-discursivos utilizados nas interações entre interlocutores. Para desenvolver esta pesquisa, foram de grande contribuição as palavras de Bagno (2003) sobre preconceito e diversificação linguística. Utilizou-se também a concepção de Antunes (2003) sobre oralidade e sociedade; além de Vieira (2017), com o processo de produção textual, e Andrade (2011) com a multimodalidade na língua. Além disso, utilizaram-se também as concepções de Almeida (2014) sobre o processo formativo de variação. Assim, o trabalho mostra que a língua está em constante mudança e que o ser humano está em contínuo processo de adaptação às novas linguagens, utilizando regras normativas ou não, perante a sociedade. Palavras-chaves: Linguagem; Normatividade; Preconceito; Comunicação.


NORMA CULTA E NORMA PADRÃO: ENTRE ADEQUAÇÃO E PRECONCEITO EVERTON FELIPE TENÓRIO DA SILVA SANTOS1 ANELILDE MARIA DE LIMA FARIAS2

INTRODUÇÃO Variação, palavra bastante recorrente no presente trabalho, ou mudança linguística, trata-se de fenômenos decorrentes da interação comunicativa. Há fatores que contribuem para essas variações. Como já diria Almeida (2014, p. 44), ‘‘a variação da língua ocorre devido a fatores linguísticos ou extralinguísticos, de forma que os primeiros se dão pela própria natureza linguística e os segundos, por motivos externos à língua’’. Portanto, são fenômenos que acontecem devido às relações sociais e a fatores que as cercam ao longo do tempo. Há interferências, contudo, nos processos de comunicação, quanto à relação de pessoas com mais domínio de conhecimento linguístico e outras com uma maior privação desse conhecimento, levando à preconcepção de que umas pessoas “sabem” e outras ‘‘não sabem português’’. É um grande equívoco dizer, através desses fenômenos de variação e aquisição, que a comunicação contém uma linearidade nas ações de uso da língua e que pessoas desprivilegiadas do estudo da norma-padrão não têm uma boa aquisição da língua materna. 1. Graduando em Letras (Português/Inglês) pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda (FACHO). tenorioseverton@gmail.com. 2. Professora do curso de letras da FACHO. Mestre em Linguística pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). anelildelima@gmail.com. 305


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Em vista disso, é através das leituras de Bagno (2003), sobre preconceito linguístico e diversificação, que o trabalho tem como objetivo analisar fenômenos de variação do português e algumas consequências sociais da não compreensão sobre variantes na língua, além de questionamentos sobre a crença da unidade linguística. Nessa perspectiva, buscou-se argumentar ainda sobre a ascensão do Estruturalismo no ensino de língua nos contextos escolares, que sempre deu prestígio à comunicação na modalidade escrita e uma “certa aceitação” dos desvios de regras na fala, levando ao prematuro entendimento de que os erros de gramática ocorridos na língua são majoritários no ato de falar. Utilizou-se para isso a concepção de Antunes (2003) sobre a oralidade, que se faz presente na fala dentro e fora das instituições de ensino. Evidencia-se, portanto, um preconceito que gera um privilégio aos desvios cometidos por falantes. Apresentou-se também Andrade (2011) com as palavras sobre multimodalidade na língua, bem como Vieira (2017) para que se possa falar sobre o processo de produção textual escrita. Foi levantado, ao decorrer do trabalho, que o português apresenta uma grande variedade em seus elementos linguísticos e que a língua não se limita a gramáticas tradicionais, a fim de trazer reflexões sobre idiomas ao qual o indivíduo pertença. Para isso, foi de grande importância apresentar as palavras de Almeida (2014) sobre o processo formativo de variação. Com base nessa reflexão, é possível que haja novas perspectivas sobre o que é estabelecido formalmente como certo e errado no português e reflexões sobre a grande variedade da língua.

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A UTOPIA DA GRAMÁTICA UNIFICADA Ao falarmos de língua, é comum nos depararmos com a normatividade gramatical como uma necessidade absoluta. Tal propagação veio se tornando cada vez mais presente na sociedade, principalmente a partir de contextos escolares. Essa soberania, entretanto, torna-se equivocada quando se evidencia as diferentes classes e realidades sociais brasileiras. Ribeiro (1995) traz argumentos sobre a língua como algo homogêneo, nos seus estudos sobre o povo brasileiro. Ou seja, nas ações comunicativas, a população brasileira apresenta uma linearidade nas suas mudanças. Essa teoria é refutada pelas palavras de Bagno ao evidenciar as constantes mudanças nos contextos linguísticos: Embora a língua falada pela grande maioria da população seja o português, esse português apresenta um alto grau de diversidade e de variabilidade, não só por causa da grande extensão territorial do país, mas principalmente por causa da trágica injustiça social que faz o Brasil o segundo país com a pior distribuição de renda em todo o mundo. (BAGNO, 2005, p. 16)

Com o surgimento de dialetos — a partir dos processos de variação lexical, por exemplo — é sabido que a língua está em constante mudança por meio de aspectos socioeconômicos. Logo, a concepção saussuriana de fala como fator individual nunca foi tão presente como no século atual. Cada ser humano apresenta uma variação na sua fala e cada grupo social ou região apresenta suas variações, deixando à mostra a diversificação linguística. Falar então de unidade linguística no português é de grande equívoco, ao considerar a vastidão lexical e os elementos que compõem o grande funcionamento linguístico e, ao mesmo tempo, uma desigualdade no acesso ao estudo no Brasil. Pois, além disso, ‘‘a educação ainda é privilégio de muito 307


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pouca gente em nosso país, uma quantidade gigantesca de brasileiros permanece à margem do domínio de uma norma culta’’ (BAGNO, 1999, p. 16).

SALA DE AULA E O “NORMAL“ NO ENSINO DE GRAMÁTICA

Apesar de alguns movimentos de mudança quanto à prática do ensino de língua portuguesa no Brasil, não é raro a prioridade dos professores de língua em ensinar algo apenas normativo. Porém, nas realizações dessas práticas, há consequências preocupantes e preconcepções sobre o português, pois segundo Vieira,

Mais grave é quando o ato de escrever se confunde com a preocupação em evitar os erros de gramática e com a busca por um formalismo um tanto artificial no registro e um purismo gramatical anacrônico. Tratase de uma falsa equivalência que inibe as boas ideias, engessa o texto, prejudica a fluência, favorece o lugar-comum, assassina a criatividade e a ousadia. (VIEIRA, 2017, p. 6)

Tal impasse acaba gerando uma inibição da criatividade nas ideias e produção textual por parte do discente. Logo, faz-se necessário ir além do medo do errar e considerar que o processo de aquisição da escrita é contínuo. Ao analisar uma variação reproduzindo-se através do tempo, diatópica, pode-se obter, por exemplo, grupos sociais falando expressões como ‘‘tu é’’ como mudança morfossintática. Para a gramática tradicional, tal expressão pode ser considerada um equívoco levando em conta a flexão do verbo ‘‘ser’’ concordando com o pronome em segunda pessoa do singular ‘‘tu’’. Contudo, desconsiderar o uso de determinadas mudanças linguísticas não só do aluno em sala de aula, mas da sociedade como um todo, é desconsiderar também que a língua está em constante transformação em variados 308


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âmbitos, como o lexical. De acordo com palavras de Antunes (2003, p. 24) sobre sala de aula,

No que se refere às atividades em torno da oralidade, ainda se pode constatar uma equivocada visão da fala, como o lugar privilegiado para a violação das regras da gramática. De acordo com essa visão, tudo o que é ‘‘erro’’ na língua acontece na fala.

Ainda se podem constatar concepções equivocadas em torno das próprias variações de fala, resultando na crença de um mau desempenho linguístico em momentos de uso para expressar-se. Apegando ao ensino estrutural, não é levado em conta, por alguns profissionais da educação, que todo e qualquer elemento comunicativo tem o papel social de subsidiar o ser humano na interação. Nesse sentido, conforme as próprias palavras de Andrade sobre modalidade oral e escrita,

A modalidade escrita não pode ser entendida como uma representação da fala, já que não consegue reproduzir muitos dos fenômenos da oralidade, tais como prosódia, gesto, olhar. Por outro lado, a escrita caracteriza-se por apresentar elementos próprios, ausentes na modalidade oral, como o tipo e tamanho de letras, cores, formatos, que desempenham, graficamente, a função dos gestos, da mímica e da prosódia. (ANDRADE, 2011, p. 51)

Nesse auxilio da língua à comunicação, é importante levar em consideração também que, mesmo havendo relações, a fala e a escrita têm uma grande desigualdade. Ou seja, é um grande equívoco argumentar sobre a fala como representação da escrita. Considerando a multimodalidade na língua, é possível observar que uma expressão pode ser dita de variadas formas dependendo do tom de voz, expressões faciais, ou gestos reproduzidos com as mãos. 309


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Na escrita, por outro lado, uma mesma expressão pode ser representada com formas diferenciadas. Um sinal de exclamação, por exemplo, pode revelar uma frase imperativa, porém não da mesma forma expressa na fala, podendo o interlocutor interpretar de formas diferentes. Logo, fica evidente que é de grande equívoco utilizar regras normativas da escrita como verdade absoluta para um determinado contexto de fala.

RELEVÂNCIA DA NORMA CULTA JUNTO AOS SEUS FATORES SOCIAIS

Ao tratar-se de comunicação, um grande deslize na sociedade ainda se propaga: a prática de limitar a língua à normatividade gramatical. Entretanto, considerando toda a relação das manifestações sociais com o ato de se comunicar e os estudos linguísticos, é importante buscar uma reflexão sobre o que é considerado normal na gramática ou, até mesmo, sobre a língua como algo meramente sistêmico. Se pegarmos o exemplo da estrutura sintática junto à concordância do substantivo com o verbo em número, sabemos que a variação de concordância em uma frase como ‘‘nós viu ele’’ para a gramática normativa é considerada um equívoco, e, consequentemente, construções como essas não são levadas em conta seu contexto comunicativo. A língua, por meio de suas variações, tende a adequar-se à situação comunicativa na qual o falante esteja presente. O indivíduo, assim, passa a ter um desvio de concordância, porém dizer que o interlocutor ‘‘não sabe português’’ pode ser considerado algo perigoso, porque o mesmo consegue utilizar regras gramaticais em ambientes informais, adequando, ao mesmo tempo, a sua comunicação ao espaço em que esteja inserido. Fica claro que, ao questionar sobre língua, é possível perceber que vai além do que apenas regras normativas. Cada elemento linguístico tem seu 310


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papel em sociedade para se estabelecer a comunicação, quando não se é velada pela busca de uma verdade absoluta dentro e fora de sala de aula. Pode-se considerar, então, que há um universo linguístico abrangendo grandes áreas de estudos. Para que se possa ter um maior entendimento desse meio, a normatividade é fundamental, mas é preciso levar em consideração os variados modos de se expressar na linguagem. Nas palavras de Almeida sobre variação,

A variação social resulta da diferença entre setores socioculturais da comunidade, o que implica diferenças etárias, sexuais e socioculturais. Já a questão sociocultural implica diferenças entre classes sociais, fator de suma importância para a abordagem na escola, uma vez que diferenças características de determinados extratos sociais resultam barreiras sociais, inclusive no âmbito linguístico. (ALMEIDA, 2014, p. 46)

É possível perceber que existem constantes fenômenos de variações através do léxico interligados aos fatores sociolinguísticos, trazendo cada vez mais mudanças na língua, mas ainda há grandes impasses em sala de aula, sobre essa compreensão, como a própria diferença de classes. O papel da escola entra em evidência aqui ao mostrar os impasses de interações entre indivíduos incluindo o aspecto de trânsito comunicativo. Logo, mesmo com a propagação do senso comum, percebe-se a abrangência da função do comunicar-se no que tange aos processos de variação linguística. A língua, evidentemente, vai mais além do que regras normativas ligadas à busca da ‘‘fala ou escrita perfeita’’. É possível tomar como exemplo as grandes variações de contextos informais em chats de redes sociais. Nesse caso, há uma grande descontração na conversa, pois os interactantes, mesmo intuitivamente, reconhecem a função comunicativa do gênero textual e consideram a afinidade por eles compartilhada. 311


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VARIAÇÃO E MANIFESTAÇÃO DO PRECONCEITO LINGUÍSTICO Ao falar sobre língua, é válido considerar a expectativa estabelecida pelos indivíduos para que o falante expresse a fala de uma determinada maneira. Torna-se óbvio o estranhamento quando um sotaque não é comum em uma determinada região. Entretanto, sabemos que a variação no português está em constante processo, o que acaba gerando um preconceito nessa ruptura regional. Nas leituras de Bagno, onde é apresentada a língua como uma atividade social, também se podem constatar argumentos de tal ruptura. Ou seja, a utilização de um idioma vai mais além do que normas gramaticais, não a limitando aos padrões estabelecidos pelo tradicional. Apesar disso, ainda há uma grande desproporção de acesso ao estudo de línguas na sociedade brasileira, pois como se mostra nas literaturas voltadas à sociolinguística,

É alguém das camadas privilegiadas da população que vê erro na língua dos cidadãos das outras camadas, as menos favorecidas (que, no Brasil, um país que ostenta índices de injustiça social entre os piores do mundo, constituem a ampla maioria da nossa população). (BAGNO, 2003, p. 21)

É nas classes mais privilegiadas que se percebe uma imposição aos desvios normativos e estruturalistas. Uma atitude limitada cometida pelos falantes brasileiros é a associação do prestígio social ao ‘‘falar culto’’ na língua. Cria-se o estereótipo de que se o ser humano não está em posição de destaque em sociedade, assim como em ‘‘ele erra, mas sabe a forma certa’’. Assim, fica mais propício ao indivíduo privilegiado apontar, no outro, o erro que se convencionou chamar de inferior. 312


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Logo, como nos argumentos trazidos por Bagno, ‘‘Quanto menos prestigiado socialmente é um indivíduo, quanto mais baixo ele estiver na pirâmide das classes sociais, mais erros (e erros ‘‘crassos’’) os membros das classes privilegiadas encontram na língua dele. ’’ (2003, p. 28) tal atitude acaba tratando-se de um equívoco, gerando uma concepção restrita do que seja língua ou, até mesmo, comunicação ao considerarmos que o português, ou qualquer língua que tenha sociedade, está em constante mudança.

CERTO E ERRADO NAS VARIAÇÕES COMUNICATIVAS

Na crença propagada por determinados usuários de que ‘‘tal pessoa fala certo ou errado’’, percebe-se que essas ações acabam se tornando algo cultural na sociedade. Com isso, acaba surgindo considerações como verdade absoluta em relação ao prescritivo gramatical. Bagno deixa clara a raiz dessas ações em suas leituras ao mostrar a valorização do normativo baseado nos grandes escritores literários, autores inclusive com obras escritas há séculos: Inspirados nos usos que aparecem nas grandes obras literárias, sobretudo do passado, os gramáticos tentam preservar esses usos compondo com eles um modelo de língua, um padrão a ser observado por todo e qualquer falante que deseje usar a língua de maneira ‘correta’, ‘civilizada’, ‘elegante’, etc. É esse modelo que recebe tradicionalmente, o nome de norma culta (BAGNO, 2003, p. 43)

Utilizar tal método, entretanto, para mostrar que uma pessoa fala mais certo ou mais errado, é desconsiderar que a língua é viva e está em constante variação. Pois, além disso, na própria vertente de Saussure (2006, p. 22), fala é um fator individual. Logo, há divergências de pessoa para pessoa na 313


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sua maneira de falar. Assim, no meio dessa presença de busca por um saber absoluto, é preciso trazer um questionamento maior em relação aos fenômenos linguístico. Todo idioma em que haja interação e sociedade, há variação. Ainda na linha de pensamento de Bagno (2002, p. 24), ‘‘A língua falada é que é a verdadeira língua natural, a língua que cada pessoa aprende com sua mãe, seu pai, seus irmãos, sua tribo, seus grupos sociais etc’’ é na fala que a sociedade mantém uma maior variação, por estar presente há mais tempo nas relações sociais ao longo do tempo. O linguista nos apresenta, ao decorrer da leitura, que a escrita não deve ser inferiorizada, mas que é secundária em relação à fala, tendo em vista que a escrita tem cerca de 10.000 anos, enquanto a espécie humana vem utilizando a fala há milhões de anos. Torna-se bastante ilusório, portanto, achar que a sociedade e suas ações de comunicação devem ser unificadas seguindo a regra da norma culta. Pois, variação, além de ser algo natural, faz parte da vida de qualquer população. Além disso, mesmo considerando algumas práticas canônicas do estudo da língua com base na literatura, existem vieses que trazem rupturas a esse formalismo. É de grande contribuição lembrar-se de Oswald de Andrade (1971) na leitura do poema ‘‘Pronominais”, onde o autor nos apresenta uma mudança de posição do pronome obliquo átono como forma de utilização popular no Brasil. Uma ironia presente ao padrão da valorização dos pronomes enclíticos, bastante comum nas obras Machadianas, por exemplo, mas que serve como base quando o assunto é variação. As próprias literaturas dos grandes clássicos valorizadas por gramáticas tradicionais serviram como objeto de crítica por um grande escritor modernista também valorizado na literatura. Ou seja, o estudo da língua ou o ensino dela comete grande equívoco ao isolar da sociedade as transformações presentes nesse fenômeno social. 314


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Falar, então, de certo e errado na língua de forma concreta, principalmente quando se tem em mente apenas uma análise prescritiva, baseada nos grandes escritores, é irrelevante. Mais ainda quando o próprio idioma é utilizado como meio para inferiorizar alguém pela sua maneira de falar. A ilusão a não adequação da fala ou escrita esperada é considerar que a língua é unificada, imutável e nada mais que meramente erros gramaticais. Além disso, não se levam em conta os fatores extralinguísticos, classes e desigualdades sociais suscitando apenas língua como ‘‘mais certa’’ ou ‘‘mais errada’’, assim como nos mostra Camacho em, ‘‘Quem faz pouco do modo de falar de outras pessoas acredita no mito de que o português é uma língua única, invariante, e, como tal, uma única forma é a correta e as demais nada mais são que erros’’ (2014, p. 24).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As variadas formas de expressões de uso na língua tornam-se bastante vastas na sociedade. Ou seja, é preciso que consideremos que a comunicação vai mais além do que meramente regras normativas. Há grandes linhas de estudos que contribuem para o conhecimento em relação às evoluções das interações comunicativas. Nesse sentido, houve a possibilidade de perceber, a partir desse trabalho, que se torna um discurso totalmente ilusório falar sobre língua como uma unidade comunicativa. A sociedade no Brasil passa por vários fenômenos e a língua não é uma exceção, ao considerar as diferenças como, por exemplo, as lexicais, presentes entre regiões. Por meio da base teórica apresentada, enfaticamente nas obras de Bagno, foi possível perceber que ainda há uma grande desigualdade social no país e que o preconceito linguístico ainda persiste. Além de injustificável, são irre315


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levantes tais ações ao levar em conta que não há acesso total da população brasileira à educação. Na valorização do estruturalismo linguístico, nota-se que ainda se faz presente uma limitação dos falantes mais instruídos na comunicação quanto à concepção de gramática e o contexto de fala que um indivíduo possa estar inserido. Por meio das palavras de Andrade (2011) pode se considerar também a não representação da oralidade pelo ato de escrever. Nos dogmas estabelecidos para a língua entre o certo e o errado, foi possível observar por meio das concepções de Bagno (2002) que tais ações de imposição de regras normativas não são impasses recentes, mas sim culturais. Desde grandes fases do cânone literário, muitos grupos sociais valorizavam a busca pela fala e escrita perfeita, trazendo assim uma concepção equivocada sobre fala como representação da escrita. Além disso, na expectativa do falante a um padrão de pronúncia, foi possível perceber também que o preconceito fica enraizado quando se é reproduzido o argumento do prestígio social ao ‘‘falar culto’’, pois nessa imposição ao incomum, desconsidera-se todo o contexto comunicativo como local de formalidade e informalidade, condições sociais ou até mesmo acesso ao conhecimento.

REFERÊNCIAS

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Resumo A presença da literatura na escola desempenha uma função primordial na formação de leitores competentes, uma vez que cada leitor — por meio de suas experiências individuais e seus conhecimentos prévios de mundo — é levado a ler o texto literário a seu modo. Isso ocorre porque a leitura do texto literário produz o intercruzamento entre o mundo real e o mundo imaginário. Atrelado a isso, na contemporaneidade, o smartphone — dispositivo móvel bastante difundido entre os jovens brasileiros — possibilita o acesso e a circulação de múltiplos textos informativos e interativos. Diante dessa realidade, o potencial que as novas mídias — também chamadas de Tecnologias da Informação e Comunicação — possuem em relação às práticas de ensino, promovendo letramentos múltiplos, é incontestável. É preciso utilizar essas novas ferramentas no espaço escolar, já que é comum encontrarmos alunos imersos no ciberespaço, utilizando novos suportes, novos textos, novas práticas sociais. Destarte, o fio condutor da presente pesquisa foram os questionamentos: é possível que o texto literário, objeto de estudo e componente curricular obrigatório dos estudantes, seja lido a partir de novas mídias? Isso garante o letramento literário? Portanto, o objetivo que norteia esta pesquisa é compreender essa problemática, a partir de uma pesquisa-ação, envolvendo eventos de letramento literário, numa turma de 2º ano do Ensino Médio, de uma escola pública, situada, na Grande Recife. A pesquisa ancora-se, principalmente nas discussões propostas por Chartier (1999), Freire (1999), Cosson (2014) e Ribeiro (2018). Os resultados dessa prática evidenciaram que eventos de letramento literário mediados por smartphones possibilitam formar leitores de texto literário críticos, autônomos e letrados à nível de exigência da contemporaneidade, bem como ampliar não só o repertório sociocultural dos alunos, mas também, e sobretudo, fazer da escola um espaço que co-mova, que mobilizando os estudantes de seus lugares comuns. Palavras chave: Letramento Literário; Formação de leitor; Tecnologias Digitais.


O LUGAR DA LITERATURA NO CONTEXTO ESCOLAR: PROMOVENDO O LETRAMENTO LITERÁRIO A PARTIR DAS NOVAS MÍDIAS ANDERSON DE SANTANA LINS1

INTRODUÇÃO Desde a sua chegada, nos anos 80, segunda metade do século XX, o termo “Letramento” tem sido objeto de estudo nos campos das Ciências Linguísticas e da Educação. Esse fato é uma resposta (ou busca por respostas) às recentes demandas sociais no âmbito no Ensino e Aprendizagem de Línguas e sua conseqüente formação de leitores. A crise na educação pública brasileira, desde a redemocratização do país, tornou-se o combustível de diversos professores-pesquisadores e estudiosos na tentativa de definir o Letramento, concebido como uma prática social. O cenário social, econômico, político e cultural do Brasil, ao longo das últimas décadas, resignificou-se e, com isso o espaço escolar também. Além disso, as inovações tecnológicas, impulsionadas desde o pós-guerra, modificaram a maneira através da qual os indivíduos se relacionam uns com os outros e com o mundo. Num país cuja ideologia que impera pertence a uma elite dominante, atrasada, arcaica, ecravocrata e profundamente conservadora, que e se vale dos mais diversos meios para fomentar o assujeitamento do indivíduo ante seus ideais, somente uma educação emancipatória, de qualidade, laica, que viabilize o protagonismo e dê voz às minorias discursivas, historicamente silenciadas, 1. Estudante do curso de Mestrado em Letras do Programa de Pós-graduação em Letras da UFPE. Professor de língua portuguesa da rede pública estadual de ensino. Email: andersonslins77@gmail.com 319


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é capaz de transformar a realidade, ampliar horizontes, abrir novos caminhos. É preciso lembrar que “‘ser moderno’ é ser capaz de dialogar com a realidade, inserindo-se nela como sujeito criativo” (DEMO, 2004, p. 21), isto é, devemos preparar nossos alunos diante das exigências de letramento que têm surgido com as novas formas ler e escrever. Na contemporaneidade, os textos estão cada vez mais inseridos no ciberespaço e, com isso, fazendo surgir novas práticas sociomunicativas. Isso implica dizer que novos gêneros são (re)criados, novas exigências de letramento surgem, afinal, novas práticas de linguagens são colocadas frente aos avanços tecnológicos dos sujeitos falantes, modificando, consideravelmente, modo através do qual estes se relacionam com as chamadas Tecnologias da Informação e Comunicação. Desse modo, a escola, tal qual o ensino de literatura, não pode ignorar esse fato. O objetivo deste ensaio é, portanto, problematizar o lugar da Literatura — e, sobretudo, do texto literário — na escola, diante desse contexto de novas mídias. Afinal, a crise na leitura literária é histórica e, muitas vezes,ao fracasso da escola, enquanto lócus do letramento literário, atribui-se à má escolarização dos textos literários e a hipervalorização dos clássicos e canônicos textos literários que, quase sempre, não dialogam diretamente com a realidade dos alunos. Além disso, há uma notória resistência em abarcar novas linguagens, novos suportes, novos textos, novos autores, novas tecnologias no currículo escolar. Para isso, pretendemos refletir acerca da circulação do texto literário no espaço escolar: é possível atrelar novas práticas de ensino de literatura às mídias sociais? Em quais suportes? Como promover, assim, o letramento literário? Após a discussão, o presente trabalho mostrará um breve relato de uma autoexperiência realizada numa escola pública do Município do Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife, vivenciada por alunos do 2º ano do Ensino Médio, onde ocorreram eventos de letramento literário através de suportes eletrônicos, durante as aulas da disciplina de Língua Portuguesa. 320


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EDUCAÇÃO E LITERATURA: REDENTORAS? Estando num lado da rua, ninguém estará em seguida no outro, a não ser atravessando a rua. Se estou no lado de cá, não posso chegar lá, partindo de lá, mas de cá. Assim também ocorre com a compreensão que os educandos — não importam quem sejam — estão tendo de sua própria realidade. Impor a eles nossa compreensão em nome da sua libertação é aceitar soluções autoritárias como caminhos de liberdade. (FREIRE, 1999, p. 27)

Refletir sobre o lugar que a literatura ocupa na escola é lançar luz diante do problema histórico, político e social da leitura e da escrita no Brasil. Essa dificuldade provém do equívoco que, tradicionalmente, as escolas veem cometendo ao conceber tanto o eixo da leitura como o da escrita sob o prisma da quantidade e não da qualidade. Em outras palavras, é comum encontrarmos com situações “didáticas” em que os alunos dispõem — quando dispõem — de uma lista enorme de leituras obrigatórias. Muitas vezes, essas leituras são feitas de maneiras solitárias, sem uma socialização necessária ao ato de ler. Essa prática é, quase sempre, o reflexo de uma má formação de professores que — ainda na graduação — se defrontam com extensas listas bibliográficas às quais são obrigados a ler sem um pertinente e proveitoso aprofundamento. Tal realidade gera problemas que são facilmente observados nos desempenhos que muitos estudantes brasileiros — principalmente os alunos de escolas públicas — têm obtido nas avaliações externas de leitura aos quais são submetidos como, por exemplo, SAEB, PISA e ENEM.2 2. Os resultados dessas avaliações estão disponíveis no site do INEP - Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira.

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Quando se trata da leitura de textos literários, no espaço escolar, o cenário costuma ser ainda mais pessimista: leituras reduzidas às provas escritas, às características dos movimentos estéticos ou à biografia dos autores consagrados pelo cânone da crítica literária. Grande parte dos estudantes do ensino médio brasileiro termina a educação básica sem ter passado por eventos significativos de letramento literário, componente indispensável à formação de qualquer cidadão crítico. Agir dessa forma é negar a natureza dialógica da educação e da linguagem. Ambas, bem como a literatura (enquanto manifestação de linguagem), não são redentoras de coisa alguma. A literatura não age por si mesma. É preciso um agente, um sujeito transformador: o professor/educador e, consequentemente, um paciente: o aluno/educando. Mandar ler não é aula de leitura, principalmente leitura literária. O estudante, que tem o direito de experienciar — e não simplesmente vivenciar — contínuos eventos de letramento não pode ser autossuficiente, autônomo, isto é, um sujeito desses processos em si mesmo, mas o paciente. A escola, enquanto instituição, deve garantir efetivamente o conhecimento. Ela é o lócus do saber (COSSON, 2014) e, portanto, a escola é o lócus da literatura. Nas palavras de Barthes (1996, p. 18): “A literatura assume muitos saberes. (...) Se, por não sei que excesso de socialismo ou de barbárie, todas as disciplinas devessem ser expulsas do ensino, exceto uma, é a disciplina literária que devia ser salva, pois todas as ciências estão presentes no monumento literário”. Daí a necessidade de problematizar que espaço, no contexto escolar, a literatura vem ocupando. Afinal, ler — sobretudo leitura literária — é apropriar-se da consciência de si, do outro e do mundo (COSSON, 2014), enquanto sujeitos históricos, sociais e políticos. É (re)afirmando a natureza dialógica do ato de ler que compreendemos a leitura como uma competência social inegável aos indivíduos e, por conse322


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guinte, a escola não pode negligenciá-la. A dialogicidade da leitura reside no fato de que ler é construir sentidos, relacionando um texto com outros, bem como com seus respectivos autores. Esse processo, na leitura literária, de “inter+ação” e “co+moção”, é contínuo.

A LITERATURA NA ESCOLA, A CIRCULAÇÃO DO TEXTO LITERÁRIO E AS NOVAS MÍDIAS: PROMOVENDO LETRAMENTOS

Aqueles que são considerados não leitores lêem, mas lêem coisa diferente daquilo que o cânone escolar define como uma leitura legítima. O problema é (...) tentar apoiar-se sobre essas práticas incontroladas e disseminadas para conduzir esses leitores, pela escola mas também sem dúvida por múltiplas outras vias, a encontrar outras leituras. (CHARTIER, 1999, p. 104)

A presença da literatura na escola desempenha uma função primordial na formação de leitores competentes, uma vez que cada leitor — por meio de suas experiências individuais e seus conhecimentos prévios de mundo — é levado a ler o texto literário a seu modo. Isso ocorre porque a leitura do texto literário produz o intercruzamento entre o mundo real e o mundo imaginário. Assim, escolarizar o texto literário não significa esvasiá-lo no tocante à arte; é, antes de tudo, uma necessidade e um dever da instituição. A literatura é uma prática social e sua leitura, portanto, promove o letramento de seus leitores. O desafio que muitos professores têm enfrentado é ultrapassar o senso comum ao considerar a disciplina de Literatura como algo meramente histórica, periodizada e sem dialogar com a realidade dos indivíduos. Historiografia literária não é literatura. Compreender, situar e contextualizar o texto literário é preciso, mas isso não é suficiente, não garante e não promove o letramento literário. 323


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Se considerarmos a escola enquanto o lócus de transformação e de conhecimento, então consideramos a escola enquanto lócus da literatura. Por isso, é imprescindível que não nos esgotemos e sempre questionemos: como vem sendo tratado texto literário na escola? Ele, de fato, circula? Se sim, de que maneira? Em quais suportes? Como estão as bibliotecas das escolas públicas do país? Elas promovem o letramento literário dos estudantes? O objetivo aqui não é responder a esses questionamentos, mas problematizar, refletir acerca do lugar que deveras a literatura ocupa no contexto escolar. Essa reflexão engloba os aspectos do currículo, do planejamento e da avaliação. A literatura é uma prática social e, consequentemente, historicizada, situada num determinado tempo e espaço, porém a sua leitura não deve ser esgotada apenas nos seus elementos históricos. Além disso, na contemporaneidade, é comum encontrarmos alunos imersos no ciberespaço, utilizando novos suportes, novos textos, novas práticas sociais. Daí, a necessidade de ampliar o conceito de “Letramento” não só porque houve um avanço na maneira através da qual a sociedade age no mundo, mas também às mudanças sociocomunicativas pelas quais temos passado. É evidente que, ao longo da história, a comunicação humana foi marcada por profundas modificações. Num primeiro momento, as relações humanas estava eram regidas pela oralidade — cujas situações sociodiscursivas eram materializadas exclusivamente por meio dos diálogos, dramatizações, músicas, entre outros gêneros orais; num segundo momento, a escrita proporcionou uma nova perspectiva, modificando, profundamente, a comunicação entre os atores sociais. É importante sublinhar que, através da escrita, novos gêneros surgiram — não necessariamente anulando os outros que preexistiam, mas incorporando-os, ressignificando-os. Além disso, outras duas grandes intervenções foram sentidas pelas sociedades escritas: a revolução da imprensa, no final do século 324


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XVIII; e a revolução eletrônica, impulsionada pelo pós-guerra, ainda na primeira metade do século XXI. A importância dessas breves reflexões para as abordagens pedagógicas em sala de aula é evidente, pois estamos inseridos numa sociedade hipermoderna. O ensino de língua portuguesa, bem como o de literatura, não deve desprezar as práticas discursivas no espaço digital onde os indivíduos lidam, cotidianamente, com textos multimodais que misturam diferentes signos sociais aos quais, vale lembrar, não são neutros. Eles trazem consigo uma expressiva carga ideológica. Na contemporaneidade, o celular — dispositivo móvel bastante difundido entre os jovens brasileiros — possibilita o acesso e a circulação de múltiplos textos informativos e interativos (RIBEIRO, 2010). No entanto, segundo Cosson (2014): Eternamente plugados pelos fones de ouvido, trocando incessantemente mensagens nas redes sociais, jogando on-line em sites especializados ou entretidos nos videogames, navegando de muitas formas na web, os jovens parecem não ter tempo nem concentração para a leitura de livros impressos — um hábito que se apresenta aparentemente contrário ao modo dispersivo e irrequieto com que se relacionam com os demais produtos e manifestações culturais contemporâneas (p.14)

Diante dessa realidade, o potencial que as novas mídias — também chamadas de Tecnologias da Informação e Comunicação — possuem em relação às práticas de ensino, promovendo letramentos múltiplos, é incontestável. É preciso utilizar essas novas ferramentas no espaço escolar. Como fazer isso? É possível que o texto literário, objeto de estudo e componente curricular obrigatório dos estudantes, seja lido a partir de novas mídias? Isso garante o letramento literário? As respostas a esses questionamentos estão contempladas na próxima seção na qual relatarei uma autoexperiência de um evento de letramento literário a partir das novas mídias. 325


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A ESCOLARIZAÇÃO DO TEXTO LITERÁRIO: UMA AUTOEXPERIÊNCIA A PARTIR DAS NOVAS MÍDIAS O objetivo que norteia esta seção é relatar, brevemente, uma autoexperiência de eventos de letramento literário, realizados no primeiro bimestre do ano letivo de 2018 (de fevereiro a abril), numa turma de 2º ano do Ensino Médio, de uma escola pública, situada no bairro de Cajueiro Seco, no município de Jaboatão dos Guararapes, na Grande Recife, na qual sou professor regente da disciplina de Língua Portuguesa. A supracitada escola foi fundada no ano de 1963, pertencente à Gerência Regional de Educação Metropolitana Sul (GRE METRO SUL), que abrange as escolas dos municípios Cabo de Santo Agostinho, Camaragibe, Ipojuca, Jaboatão dos Guararapes, Moreno e São Lourenço. Atualmente, a escola oferta apenas o ensino médio, na modalidade regular. Atualmente, totalizam 1528 alunos matriculados, distribuídos nos três turnos — manhã, tarde e noite. As turmas que passaram pelos eventos de letramento aqui relatados fazem parte do turno da manhã, que vai das 07h30min às 12h. Neste turno há quatro turmas de 2º anos, porém, ministro aula apenas em duas, devido à distribuição da carga horária. Apesar disso, esta experiência foi compartilhada com a professora regente das outras turmas, abarcando todo o turno da manhã.3 O espaço físico da escola é composto por treze salas de aula, laboratório de informática, uma biblioteca improvisada (pois o espaço originalmente destinado à biblioteca desabou há alguns anos), uma quadra poliesportiva, sala dos professores, secretaria, direção, coordenação e sala de atendimento às pessoas 3. Devido à extensão da escola, bem como sua complexidade, não foi possível realizar este evento de letramento literário nos outros turnos, pois um dos problemas da escola é a falta de diálogo entre o corpo docente. 326


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com necessidades especiais. Além da cozinha e do refeitório, a escola dispõem ainda de um pátio amplo e bastante arborizado. No tocante às duas turmas do 2º ano que apliquei a experiência de letramento, totalizam-se 97 alunos, tendo o 2º A 48 desses alunos, sendo 27 meninas e 21 meninos; e o 2º B, 49, sendo 28 meninos e 21 meninas. No geral, em ambas as turmas, os alunos moram no bairro periférico de Cajueiro Seco, de diferentes realidades. Alguns poucos estudantes possuem um histórico de retenção, algo que me inquieta. Nossa primeira conversa, ainda no início do ano foi a apresentação do projeto de leitura que intitulei de A PRODUÇÃO POÉTICA DAS GERAÇÕES ROMÂNTICAS NO BRASIL. Explicitei que eles utilizariam os celulares, aparelho móvel que 90% deles tinham e que as leituras ocorreriam em sala de aula e em grupos, para contemplar os poucos alunos que não dispunham dessa tecnologia. Informei que havia produzido uma coletânea de poesias de diversos autores: Gonçalves Dias, Álvares de Azevedo, Bernardo Guimarães, Casimiro de Abreu, Fagundes Varela, Luís Gama, Nísia Floresta Brasileira Augusta, Narcisa Amália e Castro Alves cuja obra Navio Negreiro, de domínio público e facilmente encontrada na internet em formato PDF, também seria lida e discutida em sala. Informei aos estudantes que todos os textos seriam disponibilizados em PDF para leitura nos dispositivos móveis. Deixei também livre a opção de, se quisessem, imprimir o material para tê-lo num suporte impresso. Ao longo das aulas, todos os alunos leram através do suporte eletrônico. Na segunda etapa, dividi as respectivas turmas em grupo. Lemos O Canto do Piaga, de Gonçalves Dias. A leitura foi realizada de modo compartilhado, em voz alta, de modo que os alunos pudessem perceber a sonoridade do texto poético. Discutimos a figura do índio no texto e no contexto romântico brasileiro. A leitura enfrentou alguns problemas: a falta do hábito de leitura de textos literários somado ao tamanho da tela do celular comprometeu o entendimento do texto. Por isso, achei válido reler, alternando os alunos — o texto em questão. 327


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À medida que os alunos iam respondendo os questionamentos feitos por mim, ia registrando, no quadro branco, as inferências feitas, e montando um roteiro de leitura para o poema indianista de Gonçalves Dias. Ao final da aula, pedi para que os alunos copiassem. Em seguida, numa outra aula, lemos Canção do Exílio do referido autor. A leitura foi realizada da mesma forma como na aula anterior: oralizada, compartilhada. Posteriormente, compartilhei, via Bluetooth, com os representantes das respectivas turmas outros textos que dialogam o poema-fonte: Canto de Regresso à Pátria, de Oswald de Andrade; Canção do Exílio Facilitada, de José Paulo Paes; Uma Canção, de Mário Quintana; e Sabiá, de Chico Buarque. Nesse momento, o objetivo era apresentar à turma a noção de intertextualidade e de como esse recurso é importante na tradição literária. Os estudantes observaram como os textos se aproximavam/distanciavam do texto de Gonçalves Dias, através da forma, dos temas e dos contextos históricos. Além disso, salientei as principais características da primeira geração romântica e seus principais autores. Na terceira etapa, os alunos foram apresentados aos textos de Álvares de Azevedo e Casimiro de Abreu: Cantiga e A valsa, respectivamente. O objetivo era reconhecer nesses textos às semelhanças e diferenças temáticas e estruturais. Eles chegaram à conclusão de que se aproximavam tematicamente. Desse modo, construí no quadro branco um esquema, evidenciando as principais características da segunda geração romântica. Na quarta etapa, a leitura de Navio Negreiro de Castro Alves foi realizada. Discutimos acerca das figuras de linguagem utilizadas pelo autor e questionei às turmas de que modo o poeta baiano se distanciava dos demais. Os alunos levantaram várias hipóteses e chegaram à conclusão de que ele se aproximava da realidade das mazelas sociais. Assim, destaquei as características do Condoreirismo, como ficou conhecida a terceira geração romântica no Brasil. 328


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Até este momento, as leituras foram realizadas sem maiores problemas. Alguns alunos, de ambas as turmas, elogiaram a metodologia adotada. Atribuo isso à possibilidade de protagonismo ofertado aos estudantes. No quinto momento, já no mês de março, levei os alunos ao laboratório de informática. Lá, exibi dois documentários através do Youtube: Mucamas, produzido pelo coletivo feminista Nós, Madalenas e Domésticas, dirigido por Gabriel Mascaro. Pedi que os alunos relacionassem o tema abordado nos documentários4 ao texto de Castro Alves, buscando problematizar o papel desempenhado pelas empregadas domésticas na contemporaneidade enquanto herança de uma sociedade escravocrata. Durante o debate, houve muitos relatos de experiências pessoas, visto que muitos estudantes são filhos/filhas de empregadas domésticas. Além disso, discutimos a polêmica da PEC das empregadas domésticas a qual muitos alunos desconheciam. Já na sexta etapa, iniciei a aula questionando os alunos: vocês conhecem alguma escritora brasileira do romantismo? O silêncio foi a resposta. Em seguida, pedi que eles abrissem o arquivo em PDF com a coletânea de poemas e lessem os textos Lágrima de um Caeté de Nísia Floresta Brasileira Augusta e Sadness Narcisa Amália. Perguntei o porquê dessas autoras serem desconhecidas e pouco lidas. Algumas alunas, de ambas as turmas, responderam “porque a sociedade é machista”. A partir daí, problematizamos a historiografia literária. Percebi o quanto que o repertório desses estudantes, de uma forma geral, estava sendo ampliada. Na última aula de leitura literária, os alunos foram impulsionados a ler os textos da coletânea dos demais autores, Bernardo Guimarães, Fagundes Varela 4. O gênero documentário faz parte do livro didático adotado pela equipe de professores de Língua Portuguesa da escola Português contemporâneo: diálogo, reflexão e uso de William Cereja, Carolina Dias Vianna e Christiane Damien. 329


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e Luís Gama para, a partir daí, produzirem seus próprios poemas. Orientei-os a respeitar apenas as temáticas românticas. Muitos optaram por parodiar a Canção do Exílio de Gonçalves Dias. As produções foram socializadas e, em seguida, eles reescreveram os textos a partir das correções feitas por mim. O encerramento do projeto se deu na oitava etapa, no laboratório de informática com a exibição do documentário Castro Alves: retrato falado do poeta dirigido por dirigido pelo cineasta Silvio Tendler. Em seguida, fizemos uma roda de conversa na qual os alunos puderam verbalizar a experiência de leitura ao longo do projeto. O projeto englobou os eixos de Letramento Literário, Leitura e Escrita. Optei por trabalhar eixo de Análise Linguística paralelamente com textos não literários: cartaz, anúncios publicitários e relatos de experiência pessoal.

PALAVRAS FINAIS

É importante ressaltar que este breve ensaio se propôs a relatar uma autoexperiência com a leitura de textos literários em turmas do ensino médio, utilizando os dispositivos móveis e, portanto, novas midas como forma de aproximação dos jovens estudantes — inseridos no ciberespaço — ao universo da Literatura. Portanto, na primeira seção discutimos o quão importante é o papel do professor no processo de Letramento, evidenciando que a Educação, assim como a Literatura, esgotadas em si mesmo, não são redentoras das mazelas. Aliás, de coisa alguma. É preciso um sujeito que faça essa mediação entre esses dois campos e o alunado. A segunda seção, por sua vez problematizou o lugar que a literatura ocupa na escola, bem como a necessidade da escolarização do texto literário e a importância da escola em aderir as chamadas Tecnologias da Informação e Comunicação. A terceira e última, a partir de um relato, evidenciou as poten330


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cialidades dessas duas ferramentas: o texto literário e as novas mídias. Para mim, professor da rede pública estadual, o evento de letramento literário por que meus alunos passaram serviu como mote para que outros projetos sejam desenvolvidos, envolvendo o texto literário. É possível, através de uma prática pedagógica que dialogue com a realidade dos estudantes, tornar a educação pública mais democrática, capaz de formar leitores críticos, autônomos e letrados à nível de exigência da Hipermodernidade. Trazer novos suportes para a sala de aula é, certamente, ampliar não só o repertório cultural dos alunos, mas também, e sobretudo, fazer da escola um espaço que nos co-mova, que nos tire de nossos lugares comuns.

REFERÊNCIAS

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Resumo O português é uma língua oral-auditiva; a língua brasileira de sinais (libras) espaço-visual. Algumas diferenças entre as duas são provenientes dessas distintas formas de expressão, dentre elas, as peculiaridades dos sistemas verbais. Como, na perspectiva do bilinguismo, a libras é a língua de instrução e o português deve ser ensinado como segunda língua (L2), é imprescindível pensar estratégias de ensino, tomando como ponto de partida as especificidades da libras. Neste trabalho, focamos no pretérito perfeito e imperfeito do modo indicativo para aprendizes de português como L2. Assim, o objetivo do nosso trabalho é refletir sobre estratégias de ensino que possibilitem a compreensão das peculiaridades dos tempos verbais do português para estudantes surdos usuários de libras e aprendizes de português como L2. Esta pesquisa tem cunho bibliográfico, pois propõe um novo olhar sobre temas já discutidos. Nós nos baseamos, principalmente, em Dias Jr. (2016), Perini (2010), Quadros (2006, 2019) e Quadros & Schmiedt (2006). Percebemos que uma forma de diferenciar o pretérito perfeito do imperfeito é pela utilização de advérbios temporais, pois eles também auxiliam na diferenciação temporal em libras. Palavras-chave: Verbos; Libras; Português como L2.


O PRETÉRITO PERFEITO E IMPERFEITO NO PORTUGUÊS E EM LIBRAS: ESTRATÉGIAS DE DIFERENCIAÇÃO ANA BEATRIZ FREIRE DE ALMEIDA1 GLÁUCIA RENATA PEREIRA DO NASCIMENTO2

INTRODUÇÃO A língua portuguesa e a língua brasileira de sinais (libras) são diferentes. Portanto, é normal que suas estruturas divirjam. Sendo a primeira de natureza oral-auditiva e a segunda de natureza espaço-visual, mais discrepâncias são encontradas entre as duas línguas. Considerando, numa perspectiva bilíngue, que o estudante surdo, que já sabe libras, estude o português como segunda língua (L2), é preciso que haja estratégias específicas de ensino, considerando sua primeira língua (L1), a libras. Aqui, focamos no ensino dos tempos pretérito perfeito e pretérito imperfeito do português, apresentando uma forma de diferenciar os dois, visando ao ensino para estudantes surdos. Nosso objetivo, então, é refletir sobre estratégias de ensino que possibilitem a compreensão das peculiaridades dos tempos verbais do português para estudantes surdos usuários de libras e aprendizes de português como L2. Para isso, realizamos uma pesquisa bibliográfica e propomos um novo olhar para o que já foi discutido. 1. Graduanda em Letras/Português pela Universidade Federal de Pernambuco. Bolsista PET-Letras UFPE. E-mail: freirewp@gmail.com. 2. Professora Associada do Departamento de Letras da UFPE e Doutora pela mesma instituição. E-mail: profa_glaucia@yahoo.com. 333


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Precisamos repensar o ensino, em geral, de pessoas surdas, em especial, de língua portuguesa, pois é nossa área, devido ao histórico da educação dessas pessoas. A filosofia oralista, que teve início em meados de 1750, proibia o uso das línguas de sinais, forçando o surdo a aprender a língua oral não apenas na modalidade escrita, ou seja, forçando-o a falar e a escutar, para que a surdez, vista como doença, pudesse ser superada. Já a Comunicação Total, em vigor no Brasil a partir de meados dos anos de 1970 (GOLDFELD, 2002), misturava o português, a libras, gestos, mímica, todo recurso que pudesse estabelecer uma comunicação, ignorando a existência da libras como parte identidade de um povo, como língua. O bilinguismo, por sua vez, considera a língua de sinais como a mais adequada para ser a primeira do indivíduo surdo; a segunda, a língua oral oficial do país, na modalidade escrita. Neste trabalho, discorremos um pouco sobre o português e a libras, apontando diferenças entre a estrutura de ambas. Em seguida, expomos o funcionamento do passado nas duas línguas. Por fim, apresentamos estratégias de ensino que podem ser adaptadas e usadas por professores de português que tenham surdos como alunos.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A LÍNGUA PORTUGUESA E A LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS

Assim como a língua portuguesa e a inglesa, por exemplo, diferem, tanto em aspectos estruturais quanto em culturais, o português e a libras também apresentam dessemelhanças. A libras não é uma versão sinalizada do português. Uma das diferenças é a natureza de ambas. Segundo Dias Jr. (2015), o português é de natureza oral-auditiva, isto é, utiliza sons articulados pelo aparelho fonador, que são recebidos pelo ouvido. Já a libras é de natureza espaço-visual, ou seja, utiliza sinais realizados no espaço, imagem que é re334


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cebida pelo olho. Além disso, há, também, diferenças na gramática das duas, como, por exemplo, a representação do tempo verbal. No português, utilizamos as palavras para enunciarmos, na modalidade escrita ou oral. Na libras, sinais são utilizados. Não podemos pensar, no entanto, que, pela mudança de palavras para sinais, haja limitação semântica. É comum que algumas expressões mudem de significado do português para o francês (e vice-versa), por exemplo. Isso também acontece em português-libras (e ao contrário). Com a libras, podemos falar sobre várias temáticas, concretas e abstratas, sem restrição de conteúdo. É importante salientar, também, que, assim como cada país tem uma ou mais línguas orais que diferem das de outros países, as línguas de sinais também diferem entre si. Gesser (2009) aponta que não há uma língua de sinais universal, reconhecida por todos os surdos da Terra. Apesar de existir semelhanças entre a libras, a Langue de Signes Française (LSF), da França, e a American Sign Language (ASL), dos Estados Unidos da América, por exemplo, as três são diferentes. Elas também não dependem da existência das línguas orais do país, no caso, respectivamente, português, francês e inglês. As línguas de sinais são dependentes das línguas orais. Os sinais não são mímicas ou gestos, eles podem ser icônicos ou arbitrários (GESSER, 2009). Os icônicos assemelham-se à imagem do referente, como “TELEFONE”; já os arbitrários não apresentam semelhança com o referente, como “PERDOAR”.

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O PASSADO EM PORTUGUÊS E EM LIBRAS O passado em português A noção de tempo, no português, está relacionada ao sistema verbal. Segundo Cunha e Cintra (2016), verbo é uma palavra variável que exprime um acontecimento. A variação dessa palavra ocorre de acordo com o aspecto (perfeito, mais-que-perfeito ou imperfeito), voz (ativa, passiva ou reflexiva), número (singular ou plural), pessoa (primeira, segunda ou terceira), modo (indicativo, subjuntivo ou imperativo) e tempo (presente, pretérito, futuro). A estrutura verbal é, geralmente, composta pelo seguinte esquema, apresentado em Monteiro (2002): V = tema (radical + vogal temática) + flexão (desinência modo-temporal + desinência número-pessoal)

No verbo “falavam”, por exemplo, de “falar”, conjugado na terceira pessoa do plural do pretérito imperfeito do indicativo, o tema é constituído pela adjunção do radical “fal” e da vogal temática “a”. Já a flexão é composta pela desinência modo-temporal “va”, que indica o pretérito imperfeito, e pela desinência número-pessoal “m”, que indica a terceira pessoa do plural. Dessa forma, podemos ver, pelas desinências que formam a flexão, que a noção de modo e tempo aparecem juntas através do mesmo morfe, assim como a noção de modo e tempo. Esses morfes são chamados de cumulativos por Monteiro (2002), porque expressam mais de um significado. Destacamos, aqui, o tempo, pois é o foco do nosso trabalho. Mais especificamente o pretérito, que é dividido em perfeito, mais-que-perfeito e imperfeito. A discussão sobre o mais-que-perfeito não é relevante para o momento. 336


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Por isso, discorreremos sobre as diferenças entre o pretérito perfeito e o pretérito imperfeito. Nós, falantes da língua portuguesa como língua materna, sabemos quando usar um passado ou o outro. Compreendemos o significado de “Eu o encontrei” e “Eu o encontrava”, ambas as frases no passado, respectivamente, perfeito e imperfeito. A primeira indica uma ação pontual; a segunda, uma ação recorrente. De acordo com Perini (2010), no entanto, nem entre os linguistas a diferença da utilização dos dois tempos é consenso. Embora não haja unanimidade, o autor descreve algumas situações nas quais é mais próspera a utilização de um tempo ou do outro. A principal diferença entre o pretérito perfeito e o imperfeito, para Perini (2010, p. 227-228), é que “o perfeito focaliza os limites temporais da situação descrita; com o imperfeito, o verbo indica um evento ou estado habitual, ou uma qualidade considerada como válida para um período extenso no passado”. Isto é, o perfeito destaca uma ação/estado limitado no tempo, porque sabemos a duração dela. Já com o imperfeito, não sabemos a limitação temporal da ação/estado. Podemos perceber essa diferença pelo exemplo dado anteriormente, “Eu o encontrei e “Eu o encontrava”. Na primeira frase, a ação aconteceu uma vez; na segunda, no entanto, não sabemos por quanto tempo o fato de encontrá-lo foi recorrente, se um mês, um ano ou outra duração. Uma outra situação em que é mais produtiva a utilização de um passado do que de outro é quando, segundo Perini (2010), o imperfeito é usado para descrever um fato do perfeito, sendo pano de fundo desse. Em “Renato era muito bonito quando nós casamos”, “era” está no imperfeito porque Renato, provavelmente, era bonito naquela época em que aconteceu o casamento, não apenas no dia. A cerimônia do casamento, entretanto, teve a possível duração de um dia, foi pontual, por isso está no perfeito. Se utilizássemos o pretérito perfeito ou o imperfeito nos dois verbos, as frases seriam inaceitáveis: “*Re337


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nato foi muito bonito quando casamos” e “*Renato era muito bonito quando casávamos”. Para expressar eventos acabados e inacabados, prefere-se, nesta ordem, o pretérito perfeito e o imperfeito. As frases “Foi um erro vender a casa” e “Era um erro vender a casa”, aparentemente, têm o mesmo significado; na primeira, todavia, a casa já foi vendida; na segunda, não se sabe se já foi ou não vendida. Ressaltamos, ainda, a continuidade e a descontinuidade expressada pelos tempos. Nos exemplos dados por Perini (2010, p. 230-231), “Ele foi rico duas vezes na vida” e “Joaquim não gostava desse vinho”, no primeiro caso, não seria possível dizer “*Ele era rico duas vezes na vida”, pois “duas vezes” indica que ocorreu em duas ocasiões pontuais. Já na segunda frase, seria possível dizer “Joaquim não gostou desse vinho”. O significado, porém, mudaria, pois passaria de um evento descontínuo (ele não gostava durante muito tempo, talvez a vida toda) para um contínuo (talvez, no dia em que provou, ele não gostou do vinho devido a outro fator, mas depois pode ter gostado).

O passado em libras

Em libras, os verbos são expressados através de sinais. Quadros (2019) classifica o sistema verbal da libras em “verbos simples” e “verbos com concordância”. Os verbos simples são aqueles que não apresentam concordância número-pessoal, como “GOSTAR”. Se “EU GOSTO” (Figura 1), o dedo indicador aponta para direção de quem fala e, em seguida, a mão aberta toca o peito em movimento circular. Se “VOCÊ GOSTA” (Figura 2), o indicador aponta para a pessoa com quem e fala e o mesmo sinal de “GOSTAR” é repetido. Destacamos que o pronome, às vezes, pode não aparecer, porque o sujeito é explicitado no discurso. 338


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Figura 1. “Eu gosto” em libras.

Fonte: Autora. Figura 2. “Você gosta” em libras.

Fonte: Autora.

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Por outro lado, os verbos com concordância apresentam-na por movimentos direcionais. É o caso do verbo “AJUDAR”. Se o enunciado for “EU AJUDO VOCÊ” (Figura 3), a mão direita aberta ficará em cima da palma da mão esquerda aberta, movendo as mãos da direção de quem fala para quem se fala. Se for “VOCÊ ME AJUDA” (Figura 4), as mãos ficarão da mesma forma, o movimento, porém, iniciará com os braços estendidos perto da pessoa com quem se fala e se moverão em direção à pessoa que fala. Ao contrário de “GOSTAR”, em que não houve movimento indicando concordância, isso ocorreu com “AJUDAR”. Figura 3. “Eu ajudo você” em libras.

Fonte: Autora.

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Figura 4. “Você me ajuda” em libras.

Fonte: Autora.

Se, no português, a desinência modo-temporal é usada para indicar outros tempos; na libras, os advérbios temporais são utilizados para distinguir passado, presente e futuro (Figura 5). É importante salientar que, muitas vezes, o “presente/agora” não aparece na sentença, pois compreende-se pelo contexto que se trata do presente pela ausência de marcador temporal de passado e futuro. Figura 5. Passado, presente e futuro em libras.

Fonte: Autora. 341


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Para falar de uma situação no passado em libras, é preciso utilizar marcadores. Se falamos, em português, “Fui à festa”, sabemos “fui” é pretérito perfeito de “ir”, a ação já ocorreu. Em libras, não existe um sinal para “fui”, é preciso sinalizar que “ONTEM FUI FESTA”, “SEMANA PASSADA FUI FESTA”, “PASSADO FUI FESTA” ou com outro marcador para indicar que a ação já ocorreu. Quando estudantes surdos falantes da libras aprendem o português, deparam-se com mais tempos do que estão habituados na sua L1. Por esse e outro motivo, requerem estratégias específicas de ensino de língua portuguesa.

ENSINO DE PORTUGUÊS PARA PESSOAS SURDAS Estratégias gerais de ensino

As metodologias de ensino de português para falantes do idioma como língua materna não são as melhores para estudantes surdos, que aprendem o português como L2. Numa perspectiva bilíngue, devemos considerar aspectos da libras para ensinarmos a segunda língua. Sousa (2015, p. 71) aponta que a língua portuguesa tem sido ensinada às crianças surdas por meio das mesmas estratégias de ensino apresentadas às crianças ouvintes, mediante rimas, parlendas, jogos de consciência fonológica, enfim, recursos que exploram o som (SOUSA, 2015, p. 71).

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As especificidades dos estudantes surdos têm sido desconsideradas, pois os docentes usam estratégias que utilizam a via auditiva. Os alunos surdos têm audição limitada, então, não aproveitam as aulas de maneira proveitosa. Eles são heterogêneos. Alguns perderam ou tiveram a audição limitada quando nasceram, outros já adultos; alguns aprenderam libras pequenos, outros depois de certa idade, uns nem aprenderam. Apesar dessas diferenças, tendo em vista que a libras é uma língua de natureza espaço-visual, recursos visuais devem ser priorizados no ensino, como imagens, vídeos e experiências físicas. O processo de alfabetização do ouvinte passa pelas fases silábicas para chegar à alfabética (SOUSA, 2015). Pelo acesso limitado dos surdos à escuta, a relação som e grafia é falha. Ele associa a palavra à imagem, não ao som. O autor sugere que o professor de português realize trabalhos com palavras com sentido, não com sons que não chegam ao estudante. Aliado a isso, é preciso que o docente saiba, pelo menos, o básico da libras, que ele entenda a estrutura da língua e veja como ela é refletida no português como L2. É possível que o aluno surdo, na aquisição do português, por exemplo, não use conectivos, porque não são utilizados na libras.

Ensino do pretérito perfeito e imperfeito

As diferenças entre os dois tempos, como já exposto, não são consenso nem mesmo entre os linguistas. Os falantes nativos do português, no entanto, sabem quando utilizá-los. Então, como ensinar para alunos surdos, que não aprendem a língua portuguesa como primeira? Devemos aproximar o português da libras, comparando as duas estruturas. Como os verbos, no português, têm desinência modo-temporal, e, na libras, não é utilizado o mesmo recurso para marcar o passado, esse método talvez não fosse o melhor para o ensino da diferença entre os pretéritos. A 343


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questão das desinências do português deve ser, sim, comentada, para que o aluno saiba e perceba a existência delas, não de forma introdutória ao assunto, mas como sistematização do que foi aprendido. Antes, é preciso haver um trabalho para sensibilização das diferenças semânticas entre os dois tempos. Isso pode ser feito com um texto narrativo, pois o passado predomina esse tipo textual. Essa é apenas uma sugestão, ficando a critério do professor a adaptação para o seu grupo-classe. Antes da leitura, é preciso que o aluno seja motivado para realizar tal ato, como sugerem Quadros e Schmiedt (2006). Dessa forma, o professor pode gerar um debate em libras sobre o assunto do texto, levantando hipóteses e instigando o aluno a realizar a leitura. Também é necessário estabelecer objetivos de leitura para que o ato de ler tenha uma finalidade. Em seguida, o docente pode interpretar o texto em libras e depois pedir a leitura silenciosa quantas vezes forem necessárias. Após uma primeira, pedir para que pesquisam o significado de palavras desconhecidas. Numa segunda, fazer perguntas sobre o texto. Numa terceira, pedir para que opinem sobre algum ponto do texto, de acordo com os objetivos de leitura estabelecidos. Depois do trabalho de interpretação textual, os passados podem ser problematizados no texto lido. Por exemplo, se tiver um trecho “Para disfarçar seu apetite, fingia-se sem vontade de alimentar-se sempre que o marido a convidava nas refeições”, o professor pode perguntar quais termos são verbos e se estão no passado, no presente ou no futuro. Seguidamente da chegada à conclusão de que o primeiro está no infinitivo e os dois últimos estão no passado, perguntar para a turma qual dos dois veio antes, já que são passados, ou se aconteceram ao mesmo tempo. Repetir o procedimento com mais trechos do texto, articulando, sempre que possível, com o significado do texto. Depois dessa discussão sobre qual passado é o mais passado, o professor pode perguntar os elementos (tirando os substantivos) que aparecem perto 344


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dos verbos no passado. No exemplo dado, “para”, “seu”, “sem”, “de”, “sempre”, “que”, “o”, “a” e “nas”. Esse momento também pode ser aproveitado para dirimir possíveis dúvidas sobre outras classes de palavras, caso tenham sido trabalhadas. É de extrema importância que os alunos já tenham visto os advérbios para, assim, perceberem que sempre aparecem com verbos. Além disso, observarem que o uso de alguns advérbios é mais produtivo com o pretérito perfeito; outros, com o imperfeito. “Antigamente”, por exemplo, é mais utilizado com o pretérito imperfeito, vejamos: “Antigamente eu usava óculos” “*Antigamente eu usei óculos”. A eficiência dos advérbios para diferenciar os tempos passados é comprovado por Fradique (2008), ao analisar textos escritos em português por aprendizes de português como L2 de diferentes nacionalidades. Uma das estratégias utilizadas pelos alunos, além da diferença conceitual, já discutida aqui (PERINI, 2010), foi a do aparecimento de advérbios. Depois de toda a discussão, é preciso de uma sistematização no quadro. O professor pode mostrar os paradigmas verbais, falar da desinência modo-temporal e realizar atividades escritas com a turma.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Vimos, nesse trabalho, algumas diferenças entre a língua portuguesa e a libras, sobretudo em relação ao tempo passado. Enquanto no português o passado é expressado pela desinência modo-temporal; na libras, ele é representado através de marcadores. No entanto, na libras, não há a divisão que se faz dos passados em português, aqui, focando no pretérito perfeito e imperfeito. Uma das formas de diferenciação dos dois tempos, além da divergência conceitual, é pela utilização de advérbios de tempo, que são mais produtivos com o perfeito ou com o imperfeito. Destacamos, ainda, a urgência de se pensar estratégias de ensino, não apenas de verbos, que contemplem as necessidades de estudantes surdos. Além disso, ressaltamos a importância da produção de materiais didáticos voltados para esses alunos. Pensamos que, com esse trabalho, contribuímos para a idealização desses materiais.

REFERÊNCIAS

CUNHA, Celso Ferreira da; CINTRA, Luis Filipe Lindley. Nova gramática do português contemporâneo. 7 ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2016. DIAS JR., Jurandir Ferreira. A aquisição de segunda língua (AL2) e ensino de língua portuguesa para surdos usuários de libras. In: NASCIMENTO, Gláucia Renata Pereira do; DIAS JR., Jurandir Ferreira (org.). Temas em educação inclusiva: alteridade e práticas pedagógicas. Recife: Pipa Comunicação; Editora da UFPE, 2015. FRADIQUE, Maria de Fátima Silva Castro. O pretérito perfeito e imperfeito: as diferenças aspectuais na aquisição de L2. Dissertação (Mestrado em Letras). Universidade da Beira Interior, Covilhã, 2008. GESSER, Audrei. Libras? Que língua é essa? Crenças e preconceitos em torno da língua de sinais e da realidade surda. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. GOLDFELD, Márcia. A criança surda: linguagem e cognição numa perspectiva sociointeracionista. 7 ed. São Paulo: Plexus Editora, 2002. 346


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MONTEIRO, José Lemos. Morfologia portuguesa. 4 ed. Campinas: Pontes, 2002. PERINI, Mário Alberto. Gramática do português brasileiro. São Paulo: Parábola Editorial, 2010. QUADROS, Ronice Muller. Libras. São Paulo: Parábola, 2019. QUADROS, Ronice Muller; SCHMIEDT, Magali L. P. Idéias para ensinar português para alunos surdos. Brasília: MEC, SEESP, 2006. SOUSA, Wilma Pastor de Andrade. O ensino de língua portuguesa escrita para a pessoa surda no contexto da educação inclusiva. In: NASCIMENTO, Gláucia Renata Pereira do; DIAS JR., Jurandir Ferreira (org.). Temas em educação inclusiva: alteridade e práticas pedagógicas. Recife: Pipa Comunicação; Editora da UFPE, 2015.

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Resumo A produção ficcional contemporânea sobre a memória da ditadura civil-militar brasileira tem instituído a literatura como um lugar de eterno retorno, na medida em que busca falar do passado sem suspender o presente, configurando-se as narrativas como movimentos/espaços inconclusos, sempre sujeitos a revisões. Diante do exposto — e partindo da concepção bejaminiana segundo a qual não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie — o presente trabalho tem como objetivo provocar reflexões sobre como uma fração considerável da produção ficcional brasileira contemporânea tem funcionado como veículo de materialização dos processos e da dinâmica da memória calcada sobre esse passado recente, na medida em que dialoga e tenta explicar o presente a partir da reivindicação da lembrança e da ressignificação histórica. O escopo teórico tem como referencias principais os aportes de T. Adorno (2002; 2012) e, W. Benjamin (2016), buscando também dialogar com constribuições desenvolvidas por S. Freud (2013), J. P. Sartre (1993), P. Nora (1993), G. Agamben (2009) e P. Ricoeur (2007). Palavras-chave: Romance; Literatura brasileira; Política. Memória; Ditadura civil-militar.


O ROMANCE BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO COMO LUGAR DE MEMÓRIA DA DITADURA CIVILMILITAR JOÃO RICARDO PESSOA XAVIER DE SIQUEIRA1

INTRODUÇÃO Um dos caminhos para se estabelecer uma relação plausível entre Literatura e Memória é a ligação com o passado. Atendendo a uma dinâmica própria e aparentemente paradoxal, a reivindicação da memória é, por si só, diacrônica, tendo em vista que a lembrança de uma experiência ocorrida no passado só acomete o sujeito no tempo presente. Deve-se ressaltar que parte considerável da ficção brasileira contemporânea vem cumprindo um importante papel no sentido de instituir a Literatura como lugar de memória por excelência2, na medida em que a partir de rastros, vestígios e fantasmas deixados por um passado histórico mal resolvido, e de certo modo incorporados a um léxico memorial coletivo, passam a ser matéria para compor romances, contos e novelas cuja temática principal é a ditadura militar. Partindo da concepção benjaminiana, segundo a qual não há documento de cultura que não seja também documento de barbárie, toda obra de arte/literária que 1. Doutorando em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) integrado à linha de pesquisa Literatura, sociedade e memória. E-mail para contato: jricardopxsiqueira@hotmail.com 2. A definição de lugar de memória seguida aqui é aquela desenvolvida por Pierre Nora, que afirma: “Os lugares de memória são, antes de tudo, restos. A forma extrema onde subsiste uma consciência comemorativa numa história que a chama, porque ela a ignora.” (NORA, 1993, p. 12) 349


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tematize e convide a refletir sobre o trauma da ditadura militar pode ser considerada como uma tentativa de esforço para a discussão sobre a natureza do lugar e do dever de memória3 relativos ao período em questão. A partir desse cenário podem-se extrair alguns componentes afeitos aos estudos da memória, a exemplo da dinâmica tensional estabelecida entre os movimentos de recordação e esquecimento, bem como a noção de resistência, que advoga em favor da sobrevivência (e persistência) de narrativas alternativas ao discurso oficialmente estabelecido. Há rasura, e possível incompletude no processo de mimetização das narrativas em si, provocada pelas lacunas que podem ser refletidas (ou não) no fluxo da simbolização/narração e na inenarrabilidade da catástrofe e do trauma. No ensaio “Crítica cultural e Sociedade” de 1949, Adorno afirma que “escrever um poema após Auschwitz é um ato bárbaro, e isso corrói até mesmo o conhecimento do por que escrever poemas” (ADORNO, 2002, p. 61) . Se por um lado é notória a dificuldade da elaboração do luto mediado pela ativação e ressignificação precária do passado, por outro surge da persistência da lembrança no presente a necessidade de narrar, representar em processos que perfazem a recordação; nos quais a memória aparece como imperativo que não permite ser deslocado, dada a sua incompletude. Tal qual a figura do trapeiro, como idealizada por Benjamin, as obras aqui destacadas buscam deslindar seus enredos por meio dos rastros, dos vestígios, traduzindo a narrativa a partir das ruínas deixados pelo trauma. O presente trabalho tem como objetivo provocar reflexões sobre como uma fração considerável da produção ficcional brasileira contemporânea tem funcionado como veículo de materialização dos processos e da 3. Para Paul Ricoeur, “o dever de memória é o dever de fazer justiça, pela lembrança a um outro que não o si. (RICOEUR, 2007, p. 101)” 350


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dinâmica da memória calcada especificamente sobre o período da ditadura civil-militar. A partir das contribuições de Theodor W. Adorno e Walter Benjamin, especialmente no tocante à narrativa do trauma e ao conceito de história, buscaremos tentar entender como alguns romances brasileiros dialogam e tentam explicar o presente a partir da reivindicação da lembrança e da ressignificação histórica. Justifica-se o trabalho pelo fato de que a produção ficcional contemporânea sobre a memória da ditadura civil-militar brasileira tem instituído a literatura como um lugar de eterno retorno, na medida em que busca falar do passado sem suspender o presente. De fato, em uma ampla gama de romances publicados no Brasil nas primeiras duas décadas do século XXI é recorrente o fluxo do tempo, o recurso a reminiscências e rastros do passado que se materializam a partir da contingência e da instabilidade de memórias individuais e coletivas, confirmando-se como modos de rememoração e configuração identitária na contemporaneidade. Nesse jogo diacrônico que caracteriza o fluxo da memória, “articular historicamente o passado não significa reconhecê-lo tal como ele foi. Significa apoderarmo-nos de uma recordação quando ela surge como um clarão.” (BENJAMIN, 2016). Elegendo como objetos de estudo o texto literário e a experiência vivida na interface da memória individual e coletiva, que no caso presente se fazem representar pelas representações da ditadura militar nos romances elencados na presente abordagem, a saber: Não falei, de Beatriz Bracher (2004), Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva (2015), Cabo de guerra, de Ivone Benedetti (2016), Noites simultâneas, de Marcelo Melo Júnior (2017) e A noite da espera, de Milton Hatoum (2017). Objetiva-se analisar tais obras guiando-se pelo caminho do estudo das relações entre a literatura e a memória enquanto componente da formação social, e levando em consideração o fator histórico imanente aos processos de produção e recepção da obra literária. 351


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MEMÓRIA DA DITADURA CIVIL-MILITAR E NARRAÇÃO NO ROMANCE BRASILEIRO CONTEMPORÂNEO Antes de adentrarmos na análise propriamente dita das obras selecionadas, cumpre ressaltar a noção de contemporâneo desenvolvida por Agamben (2009), segundo a qual:

O contemporâneo é aquele que percebe o escuro do seu tempo como algo que lhe concerne e não cessa de interpelá-lo, algo que, mais do que toda luz, dirige-se direta e singularmente a ele. Contemporâneo é aquele que recebe em pleno rosto o facho de trevas que provém de seu tempo. (AGAMBEN, 2009, p. 63)

O contemporâneo4 aqui é, portanto, direta e continuamente afetado pelos processos que envolvem o tempo passado, a vivência/experiência e a memória, considerada não só em seu aspecto individual, mas também coletivo. Sendo assim, voltamo-nos para uma ideia de contemporaneidade dialógica e partidária da noção de passado e também de memória, na medida em que “articular historicamente o passado não significa reconhece-lo tal ‘como ele foi’, mas sim apoderarmo-nos de uma recordação (Erinnerung) quando ela surge num momento de perigo.” (BENJAMIN, 2016 p. 11). 4. Faz-se oportuno trazermos aqui a concepção de Hannah Arendt que considera o tempo sob uma perspectiva lacunar e não-continua, um campo de embate entre as forças do passado e do futuro. De modo a ressaltar essa compreensão, destacamos o seguinte trecho: “Do ponto de vista do homem, que vive sempre no intervalo entre o passado e o futuro, o tempo não é um fluxo de ininterrupta sucessão; é partido ao meio (...) e a posição onde ele está não é o presente, na sua acepção usual, mas, antes, uma lacuna no tempo, cuja existência é conservada graças à sua luta constante; graças à sua tomada de posição contra o passado e o futuro. Apenas porque o homem se insere no tempo, e apenas na medida em que defende seu território, o fluxo indiferente do tempo parte-se em passado, presente e futuro. (ARENDT, 2009, p. 37) 352


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Desse modo, o estatuto de contemporâneo não se atribui as obras unicamente por ainda se encontrarem vivos seus realizadores, tampouco devido à sua recente publicação, mas sim porque, nas palavras de Agamben (2009), seus autores souberam manter fixo o olhar no seu tempo para perceber não as luzes, mas o escuro. “Em sendo todos os tempos obscuros para quem deles experimenta a contemporaneidade, o contemporâneo seria aquele que identificando essa obscuridade, é capaz de escrever mergulhando a pena nas trevas do presente.” (AGAMBEN, 2009, p. 63). Em se tratando de contemporaneidade e Literatura, faz-se imperativa uma discussão acerca da crise do narrador contemporâneo sinalizada por Adorno (2012) motivada principalmente pelos horrores perpetrados em Auschwitz. Segundo Adorno, não haveria mais lugar para a ficção e estaria ameaçado o lugar do romance, pois:

O que se desintegrou foi a identidade da experiência, a vida articulada em si mesma, contínua, que só a postura do narrador permite (...) Se o romance quiser permanecer fiel à sua herança realista e dizer como realmente as coisas são, então ele precisa renunciar a um realismo que na medida em que reproduz a fachada, apenas auxilia na produção do engodo. (ADORNO, 2012, 56-57)

Nesse sentido, a crise do narrador sinalizada por Adorno, somada à guinada subjetiva abriram espaço para instituir o romance como lócus possível de experimentação de exercícios estéticos dos quais a autoficção e a metaficção podem ser citadas como exemplos “contemporâneos”5. Embora partam com 5. Leyla Perrone-Moisés (2016) não é simpática à abordagem da meta e da autoficção como sintomas verificáveis exclusivamente na narrativa contemporânea. A autora defende de maneira assertiva a tese segundo a qual tais fenômenos já ocorriam em obras do século XVI, como em Dom Quixote, de Miguel de Cervantes e nos Ensaios, de Montaigne. 353


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frequência de um relato de si, percebe-se as narrativas como ambivalentes/ duais, tendo em vista que à voz do narrador juntam-se os escombros do passado. No caso das obras abordadas no presente trabalho trata-se de romances que integram um conjunto heterogêneo, multifacetado de obras que tem como pano de fundo a ditadura civil-militar no Brasil, e que buscam resgatar essa memória como campo de forças plurais e divergentes. Esforços no sentido de fazer emergir novos significados para um período traumático da história brasileira a partir do trabalho com o resquício, com a lacuna, com o escombro de memória que se materializa na lembrança, os romances funcionam como espaços narrativos abertos “a uma multiplicidade de pontos de vista silenciados pela vontade atual de dissolver toda opacidade, de eliminar todo corpo estranho que ameace tornar turva a visão de uma história social e cultural falsamente conciliada consigo mesma.” (RICHARD, 2002, p. 57). É o caso, por exemplo, de Não falei, de Beatriz Bracher. Publicado incialmente em 2004 — tendo uma segunda edição datada do ano de 2017 — trata-se de um romance narrado em primeira pessoa que se compõe de rastros e restos de um passado que dialogam com o presente da personagem principal, Gustavo, professor já em fim de carreira e consultor para assuntos de educação da rede pública de ensino, que militou e foi perseguido quando estudante à época da ditadura militar. O título faz referência ao fato que persegue a personagem principal durante toda a trajetória do enredo: haveria ele denunciado sob tortura o paradeiro de seu cunhado Armando, tendo contribuído para a sua morte? A morte, por sinal, é figura recorrente na obra, pois logo após morrer Armando, morre em decorrência do frio no exílio em Paris, Eliana, esposa de Gustavo e irmã de Armando. Há também a morte de Dona Esther, sogra do narrador, que se suicida após a morte de seus dois filhos. A narrativa se constrói a partir de reminiscências que trazem lembranças em constante estado tensional, intercalando passado e presente, traduzindo os movimentos de lembrança e esquecimento da personagem principal. A memória não se apresenta como um 354


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compartimento estanque, uniforme e homogêneo, o que se denota também pelos vários focos que integram o romance: à narrativa de Gustavo se sobrepõem o livro que está sendo escrito pelo seu irmão, José, as anotações de familiares, e outros relatos de personagens secundários (principalmente professores e estudantes, relatos colhidos por Gustavo em sua experiência enquanto professor e consultor da rede pública de ensino). Entendemos que esses recortes funcionam como suporte e contraponto ao processo de composição da narrativa, na medida em que o romance apresenta o aspecto de mosaico; colcha de retalhos composta por vozes múltiplas que dialogam (e por vezes se contradizem) na recomposição da história. O jogo entre passado e presente também é reforçado por meio da dinâmica instaurada a partir da figura de Cecília, jovem escritora/ jornalista, que entra em contato com Gustavo para obter dele uma entrevista, e a partir de suas memórias então escrever um romance sobre a experiência do professor nos tempos da ditadura. Ainda estou aqui, de Marcelo Rubens Paiva (2015) trata-se de uma retomada da narrativa autobiográfica iniciada com Feliz ano velho, na medida em que se mesclam aspectos do passado e do presente do autor e de sua família já abordados anteriormente no romance publicado em 1982. Embora narrada em primeira pessoa pelo autor, e também narrador-personagem, pode-se dizer que a protagonista do romance é a figura de Eunice Paiva, mãe de Marcelo e esposa do deputado Rubens Beiyrodt Paiva, cassado, exilado, preso, torturado e morto por agentes da ditadura militar. Ao longo da narrativa saltam reflexões sobre a natureza da memória, considerada tanto em seu aspecto sócio-histórico como fisiológico. Em linhas gerais, o romance tem como pano de fundo o sofrimento da família que luta pelo direito de reparação em virtude do desaparecimento político do pai, acrescentado de reflexões em torno da memória que se esvai em decorrência do mal de Alzheimer, doença pela qual é acometida a mãe. Nessa dinâmica entre passado e presente, a memória nos é apresentada como sendo algo que se pode apagar (ou ocultar), por meio da ação das instituições 355


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e processos políticos, ou se perder naturalmente, como é no caso de Eunice. Vale ressaltar que a dinâmica de recomposição memorialística da ditadura é reforçada pelo tom notadamente autobiográfico assumido pelo romance; as personagens são reais, os eventos relatados ocorreram de fato, o que se atesta por meio da colação de documentos, cartas, manchetes de jornais da época, e até mesmo peças judiciais que integram o processo referente à investigação do desaparecimento do deputado Rubens Paiva. Já em Cabo de Guerra, Ivone Benedetti (2016) se debruça sobre a construção de um tipo pouco explorado na ficção sobre a ditadura: o “cachorro”. O jargão militar designava como “cachorro” o militante da luta armada que, traindo seus companheiros, colocava-se a serviço como espião. A prática do “jogo duplo” favorecia o tráfico de informações privilegiadas sobre a militância, facilitando o serviço das forças mantenedoras da repressão. O romance apresenta uma trama construída de maneira não linear, descontínua, intercalando a narração do tempo presente - no qual o antigo “cachorro” vive preso a uma cama, sem o movimento das pernas — e recorre aos flashbacks — quando são retomadas as lembranças do tempo da ditadura e as alucinações que o atormentam desde a infância. A personagem incorpora a ambivalência e a adequação conveniente a um sistema que não lhe exige nada mais além da amoralidade e da mediocridade para o exercício da função. Em comentário sobre a obra, publicado em matéria de capa recente do Suplemento Pernambuco, Ricardo Lísias (2018) aponta que o romance em questão demonstra a fragilidade da chamada “Teoria dos dois demônios”, que afirma a existência de uma guerra polarizada entre dois lados equiparáveis em propósitos e condições. Para o autor, “o livro desmonta essa hipótese, ao mostrar que ela perdura apenas na cabeça de quem conhecia muito bem o poder e fez de tudo, até o ato ignóbil da traição, para estar ao lado dele.” O texto é narrado em primeira pessoa para explicitar que aquelas vivências pertencem a um eu real, expressando as angústias de um narrador que, ao expor suas angústias não demonstra interesse no desenvolvimento de qualquer 356


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empatia em relação ao seu contexto. Embora haja a opção pelo uso do “eu”, o que garante uma visão mais pessoal dos fatos, há também a circunscrição da narrativa politicamente engajada às aventuras de um indivíduo que não se vê politicamente engajado, deixando-se manipular pelas circunstâncias e forças que porventura cruzem o seu caminho ao longo do enredo. Publicado pela editora recifense Bagaço em 2017, o romance Noites simultâneas do autor pernambucano Maurício Melo Júnior busca traçar um perfil da militância estudantil durante os anos de chumbo. As personagens não são nomeadas, assim como não há uma determinação geográfica precisa de onde se passam os fatos narrados; talvez uma estratégia utilizada pelo autor para conferir certa “universalidade” na apresentação de possíveis estereótipos que povoam o imaginário que compõem as narrativas sobre a ditatura militar. A narrativa gira em torno da trajetória da personagem principal — o “moço” — um jovem pertencente à elite rural que sai do seio da família com o objetivo de estudar medicina na capital. Vale salientar que, embora não haja determinação precisa a respeito dos lugares, arrisca-se inferir que a ação do romance se passe em grande parte em alguma capital do Nordeste — haja vista a descrição de localidades e referências sensoriais que remetem o leitor a uma experiência de proximidade com a vivência em uma capital nordestina — e em Brasília. O idílio amoroso é recurso utilizado pelo autor que dá impulso à história na medida em que é a partir do encontro com a “moça” em uma passeata de estudantes que se inicia a trajetória da personagem principal na militância que contestava o regime de exceção. O percurso da militância do “moço” conhece instâncias várias, tendo em vista que, iniciada junto aos movimentos estudantis urbanos, passa pelo campo e culmina junto aos movimentos sindicais fabris. A memória apresenta-se como fantasma que persegue e desestabiliza a personagem principal, uma tortura constante que o faz duvidar sobre sua sanidade: “todo o meu passado mais recente fantasmagoricamente atormenta-me noite e dia, talvez tenha mesmo enlouquecido” (MELO JÚNIOR, 2017, p. 88). Interessante 357


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ressaltar também que o autor lança mão de estratégias e focos narrativos variados, mesclando ao longo da obra a voz de um narrador onisciente, narração em primeira pessoa e discurso indireto livre. Primeiro volume que compõe a trilogia “O lugar mais sombrio”, A noite da espera, de Milton Hatoum (2017) traz consigo a essência do típico romance de formação, na medida em que somos convidados, a partir das memórias do jovem Martim — personagem principal e narrador — a adentrar o período compreendido entre os anos de 1968 a 1978. No período abarcado pela obra, acompanharemos a saga do narrador, desde a separação dos seus pais e sua consequente mudança para Brasília, em 1968, até o seu exílio em Paris, em 1978. A ditadura militar, aqui retratada em seus anos mais rígidos — tendo em vista a publicação e os efeitos do AI-5 — apresenta-se como pano de fundo/ cenário para o desenrolar dos conflitos internos de Martim. Acentua-se assim o caráter de romance de formação na medida em que se apresenta a evolução da personagem a partir do desencadeamento de fatores como: a separação dos pais e o acentuamento do complexo edipiano reforçado pela relação conturbada com a figura sombria, autoritária e negligente do pai (Rodolfo) com quem é obrigado a viver; a convivência com colegas da universidade e a militância estudantil na revista Tribo - veículo de publicação de textos considerados “subversivos” à época — e no grupo de teatro cuja encenação de Prometeu acorrentado desperta os órgãos censores; a descoberta dos afetos com a jovem estudante/atriz Dinah; a fuga por Goiânia e o exílio em Paris. O mosaico das memórias de Martim é povoado por uma gama variada de personagens, de figuras que contestam a ordem vigente até as que apoiam o dito regime. A exploração dos espaços também é bem utilizada por Hatoum, tendo em vista que a recém-inaugurada capital brasileira aparece viva na trama; as personagens transitam e se relacionam com a cidade de uma maneira dinâmica e palpável. Já Paris, local do exílio, mesmo aparecendo como cidade na qual vive Martim no presente em que se narra a obra, é mostrada ao leitor de maneira distante; não 358


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há uma relação de afeto que se possa demarcar por parte da personagem principal com a capital francesa. A trama do romance é estruturada por episódios intercalados em série, sempre intitulados com a referência da data e do lugar onde vai se passar a ação (Ex. 1: “Asa Norte, Brasília, madrugada de sábado, 22 de junho, 1968”. Ex. 2: “Paris, outono, 1978”). A intercalação de tempos e o caráter episódico conferem à obra a natureza de uma espécie de “diário” que vai sendo construído a partir do resgate das reminiscências e fragmentos de lembranças de Martim. Além disso, acentua-se também a não-linearidade de uma memória que não se apresenta de forma sequencial, mas sim dinâmica e que convida o leitor a transitar e se deslocar em diferentes marcos temporais. De maneira geral, pode-se dizer que as obras buscam a problematização de um passado no qual a perda se faz presente no drama das personagens. Seja em seu aspecto mais concreto (a perda de um ente familiar como é no caso dos romances de Beatriz Bracher e de Marcelo Rubens Paiva, por exemplo), ou mais abstrato (a perda das liberdades individuais que condiciona o medo e aprisiona as personagens) paira sobre a tessitura narrativa o fantasma da perda. O regime narrativo instaura um clima no qual se faz perceber a perda de algo que poderia ter sido e não foi: perde-se não só um ideal de nação e democracia, mas perdem-se também lugares que não foram ocupados, tempos que não foram vividos, sentimentos que não foram sentidos. Verifica-se então a instauração do lugar do trauma freudiano6 que aqui busca ser trabalhado pelo exercício da narração. 6. É verificável nesse tipo de narrativa a presença do luto e da melancolia como vetores que se deixam desencadear por um processo de perda, que reverberam em um esvaziamento do mundo e do ego em si mesmos. Para Freud: “o luto é a reação à perda de uma pessoa querida ou de uma abstração que esteja no lugar dela, como pátria, liberdade, ideal etc. (...) a melancolia se caracteriza por um desânimo profundamente doloroso, uma suspensão do interesse pelo mundo externo, perda da capacidade de amar, inibição de toda atividade e um rebaixamento do sentimento de autoestima, que se expressa em autorrecriminações e autoinsultos, chegando até a expectativa delirante de punição.” (FREUD, (2006, p. 28) 359


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CONSIDERAÇÕES FINAIS A literatura enquanto ofício aqui é fruto de fratura, de cicatrizes ainda expostas advindas de feridas que ainda não se fecharam, resultantes de traumas vivenciados na carne pelos autores, ou incorporados, direta ou indiretamente, ao processo de formação de suas identidades. Fragmentados, dialógicos, multifacetados, os romances constroem-se no presente, constituindo-se na provisoriedade de um tempo que não acabou e que dialoga com a necessidade de aproximação do que ainda não foi dito, daquilo que se mantém vivo e pulsante na memória individual e coletiva. Há, portanto, inegavelmente um forte matiz social/político que não se limita à noção de literatura panfletária, ideologicamente enviesada, mas que dialoga com o engajamento necessário ao escritor referido por Sartre (1993), quando afirma que “a função do escritor é fazer com que ninguém possa ignorar o mundo e considerar-se inocente diante dele” (SARTRE, 1993, p.21). O escritor engajado tem consciência, portanto, da capacidade agenciadora da palavra, e que toda obra literária é apelo, constituindo a escrita no ato de apelar ao leitor para que este faça passar à existência objetiva o desvendamento empreendido por meio da linguagem (SARTRE, 1993). O engajamento aqui se dá mais como compromisso com a memória, no sentido de se combater o esquecimento e a flexibilização despótica de um passado mal resolvido que ora se pretende relativizar por influência de discursos que, ao despontarem no cenário social como forças políticas, buscam “apagar” ou “resignificar” unilateralmente esse período recente da história brasileira. O romancista ocupa, portanto, o lugar de voz dissidente diante da obscuridade do tempo presente, na medida em que responde ao imperativo subjacente ao ato de narrar o horror e o trauma, apresentando uma leitura do 360


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passado não só motivada pelo apelo e pela reivindicação característicos aos processos de memória, mas também calcada na necessidade de confrontar e relacionar passado e presente.

REFERÊNCIAS

ADORNO, Theodor. Indústria cultural e sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 2002. ADORNO, Theodor. Notas de literatura I. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2012. AGAMBEN, Giorgio. O que é o contemporâneo e outros ensaios. Chapecó, SC: Editora Argos, 2009. ARENDT, Hannah. Prefácio: a quebra entre o passado e o futuro. In: Hannah Arendt. Entre o passado e o futuro. São Paulo: Perspectiva, 2009. BENEDETTI, Ivone. Cabo de guerra. São Paulo: Boitempo, 2016. BENJAMIN, Walter. Sobre o conceito de história. In: Walter Benjamin. O anjo da história. Belo Horizonte: Autêntica, 2016. BRACHER, Beatriz. Não falei. 2 ed. São Paulo: Editora 34, 2017. FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. São Paulo: Cosac Naify, 2013. HATOUM, Milton. A noite da espera. São Paulo: Companhia das Letras, 2017. LÍSIAS, Ricardo. Deve haver algum sentido. Suplemento Pernambuco. n. 152. Recife: CEPE, 2018. MELO JÚNIOR, Maurício. Noites simultâneas. Recife: Bagaço, 2017. NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Prof. História, São Paulo, vol. 1. n. 10, pp. 7-27 dezembro de 1993. PAIVA, Marcelo Rubens. Ainda estou aqui. Rio de Janeiro: Objetiva, 2015. PERRONE-MOISÉS, Leyla. Mutações da literatura no século XXI. São Paulo: Companhia das Letras, 2016. RICHARD, Nelly. Intervenções críticas: arte, cultura, gênero e política. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002 RICOUER, Paul. A memória, a história, o esquecimento. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. SARTRE, Jean-Paul. Que é a literatura? São Paulo: Ática, 1993.

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Resumo A Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF) apresenta materiais formativos e didáticos que procuram integrar a cultura digital ao ensino da produção de textos. Com base em estudos sobre os multiletramentos e as novas tecnologias de informação e da comunicação no ensino de língua materna, nosso objetivo é analisar as possíveis contribuições desses materiais para os letramentos no universo multi e hipermidiático. Os resultados apontam que a OLPEF ainda é muito incipiente no que concerne à exploração de práticas digitais multiletradas, pois prevê navegadores pouco experientes no meio virtual e oferece parcas experiências de interatividade, além de promover de modo incipiente os letramentos críticos. Palavras-chave: Olimpíada de Língua Portuguesa; Multiletramentos; Material didático digital; Jogo de aprendizagem virtual.


OS (MULTI?)LETRAMENTOS NA OLIMPÍADA DE LÍNGUA PORTUGUESA ESCREVENDO O FUTURO TATIANA SIMÕES E LUNA1

INTRODUÇÃO A Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF) é um programa voltado para a melhoria das práticas de ensino-aprendizagem da língua escrita em escolas públicas, realizado pelo Centro de Estudos em Pesquisa, Educação e Cultura (CENPEC) e promovido pelo Ministério da Educação e pela Fundação Itaú Social, em parceria com outras organizações. Seu principal objetivo é a formação docente em serviço e, a partir dessa formação, bem como do concurso bianual de textos2, a ampliação do grau de letramento dos estudantes, assegurando o desenvolvimento da proficiência na escrita em seus diversos estágios (RANGEL, GARCIA, 2012, p. 12; PORTAL, 2019). Em sua quarta edição, em 2014, apresenta uma versão digital de cada categoria dos cadernos do professor, com recursos multimídia (áudios, textos para projeção, vídeos e jogos). E, em sua quinta edição, em 2016, inaugurou uma ferramenta interativa, a aba “Especiais por gêneros”, que reúne orientações diversas acerca de cada gênero (videoconferências de 1. Professora Adjunta do Departamento de Educação da Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) e Doutora em Linguística, simoes.luna@gmail.com. 2. O concurso sobre o tema “O lugar onde vivo” é subdividido nas seguintes categorias: poemas (quinto ano do Ensino Fundamental), memórias literárias (sextos e sétimos anos do Ensino Fundamental) , crônica (oitavos e nonos anos do Ensino Fundamental), documentário (primeiros e segundos anos do Ensino Médio), artigo de opinião (terceiro ano do Ensino Médio). O documentário foi introduzido na última edição da OLPEF, em 2019. 363


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escritores e especialistas, dicas de oficinas, indicações de leituras, sugestões de atividades, jogo de aprendizagem, reportagem sobre etapa regional do concurso e textos de alunos finalistas) em uma única interface. A OLPEF, portanto, considera a perspectiva dos multiletramentos em sua proposta de “letrar” alunos e professores por meio do ensino-aprendizagem de determinados gêneros escritos (poema, memória literária, crônica e artigo de opinião) e multimodais (documentário). O termo letramento e seus correlatos circulam há relativamente pouco tempo no universo acadêmico brasileiro. Foi mencionado pela primeira vez no livro de Mary Kato “No Mundo da Escrita: uma perspectiva psicolinguística”, em 1986, e vem sendo sujeito de diversos estudos após o início dos anos 2000. De acordo com Soares (2002, p.145), letramento designa “o estado ou condição de indivíduos ou de grupos sociais de sociedades letradas que exercem efetivamente as práticas sociais de leitura e de escrita, participam competentemente de eventos de letramento”, isto é, de eventos em que “a escrita é parte integrante da interação entre pessoas e do processo de interpretação dessa interação”3. 3. Apoiados em princípios bakhtinianos, autores como Geraldi (2014, p.27-28) e Goulart (2014, p.47-48) questionam a adoção do termo letramento, em detrimento de alfabetização, por diferentes razões. Para o primeiro, imputar à escola a função de letrar o aluno nos mais diversos campos da atividade humana é inexequível. O par letrado/iletrado confunde a especialização do sujeito em diferentes letramentos, devido à sua função social (um químico terá provavelmente mais dificuldades em entender um manual de linguística que um professor de línguas) com os diferentes graus de letramentos, gerados pela distribuição social desigual dos bens culturais (o analfabeto que só acessa a escrita pela oralização de outrem ou pelo reconhecimento de imagens, em comparação com o alfabetizado que compreende as parábolas bíblicas). Tentando dar conta dos múltiplos letramentos, a escola escamoteia seu papel de recortar as práticas sociais de linguagem de maior interesse para desenvolver as capacidades linguísticas dos alunos e formar sujeitos críticos, éticos e responsáveis. Goulart (2014, p.48-49) acredita que a dicotomização alfabetização e letramento confere àquela uma dimensão essencialmente técnica e apartada de seu caráter social libertador, como defendia Paulo Freire, e transforma este em um conteúdo mensurável e objetificável, como parte integrante das políticas compensatórias que, visando reparar as defasagens dos alunos, terminam por perpetuar as diferenças de conhecimento em uma 364


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O ambiente digital da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (OLPEF) — o Portal da Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro — propicia aos professores de língua portuguesa a participação em diferentes eventos de letramento, voltados para sua formação acadêmica e profissional, por meio da prática de leitura e escrita de variados gêneros, como palestras, comentários em fóruns de discussão, videoaulas, cursos virtuais, bate-papos virtuais, planos de aula, entre outros. Ajudam o professor a se letrar digitalmente, isto é, a possuir “um certo estado ou condição que adquirem os que se apropriam da nova tecnologia digital e exercem práticas de leitura e de escrita na tela” (SOARES, 2002, p.151). Além disso, fornecem aos alunos a possibilidade de participarem da cultura multiletrada através do manuseio do caderno digital, da aba “Especiais por gênero” e do jogo de aprendizagem. Veremos, mais adiante, como se dá tal letramento digital.

METODOLOGIA

Este trabalho insere-se no campo das Ciências da Linguagem que toma a abordagem sócio-histórica para a investigação qualitativa e reconhece o caráter singular e social dos acontecimentos discursivos. O paradigma metodológico em que se ancora a nossa pesquisa é interpretativista: procuramos compreender os modos como se trabalham os multiletramentos sociedade desigual. Afinal, nem todos os letramentos (científico, jurídico, digital) são relevantes para alunos de distintas realidades socioculturais e econômicas. Na visão da autora, enquanto o conceito de letramento restringe-se ao papel e sentido da cultura escrita na sociedade, a pedagogia freiriana de alfabetização a alinhava à leitura do mundo, estando mais próxima do princípio dialógico bakhtiniano em que o outro exerce papel fundamental na compreensão da historicidade do ser e do mundo. Tal discussão foge ao escopo desta tese. Interessa-nos aqui situar, mesmo que brevemente, a noção de multiletramentos que norteia a formulação dos materiais didáticos digitais para o Portal da OLPEF. 365


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nos materiais didáticos virtuais e digitais da categoria crônica da OLPEF, realizando uma análise qualitativo-interpretativa do dados encontrados. Trata-se de um trabalho bibliográfico e exploratório, em que iremos constituir três corpora: todos eles têm caráter documental, de arquivo, por serem coletados e analisados após sua publicação. O primeiro consiste no Caderno Virtual “A ocasião faz o escritor”, que guia a sequência didática do Programa. O segundo é a seção “Especiais por gênero: Crônica 2016”, do Portal da OLPEF, e o terceiro é o jogo de aprendizagem virtual Crogodó, que também se volta para o ensino do gênero crônica. A escolha da categoria crônica decorre da pesquisa que realizamos em nossa tese de doutorado acerca do ensino desse gênero no âmbito da OLPEF. As imagens aqui utilizadas estão disponíveis, gratuita e abertamente, no Portal da Comunidade Escrevendo o Futuro, havendo, portanto, direito público de uso.

REFERENCIAL TEÓRICO

A tela dos dispositivos eletrônicos (computadores, tabletes, celulares, notebooks), associada aos novos mecanismos de produção, reprodução e difusão da escrita e da leitura, por nós entendidos como mais interativos, democráticos e híbridos (multissemióticos e hipermidiáticos) que os impressos, configura “não apenas novas formas de acesso à informação, mas também novos processos cognitivos, novas formas de conhecimento, novas maneiras de ler e de escrever, enfim, um novo letramento”, característico do universo cibernético (SOARES, 2002, p. 152). O termo multiletramentos é ainda mais recente que letramento. Intitula a obra organizada por Roxane Rojo e Eduardo Moura (2012) e vem sendo retomado por outros autores, especialmente os que dialogam com o universo 366


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das novas tecnologias da comunicação e da informação (TICs). As novas TIC “diversificam e complexificam continuamente as práticas de linguagem, os perfis dos sujeitos letrados e as ideologias sobre o papel da leitura e da escrita” (BUZATTO, 2009, p.12 apud MARSARO, 2013, p.177), coexistindo com as outras tecnologias de leitura e escrita quirográficas e tipográficas. Enquanto Soares (2002, p.155) opta pelo uso do plural letramentos para designar os diferentes estados ou condições daqueles que fazem uso das novas tecnologias de leitura e escrita, e por conseguinte, de seus espaços e mecanismos de (re)produção e circulação, Rojo (2012, p.21) opta por multiletramentos para destacar dois aspectos das sociedades contemporâneas, principalmente urbanas, que vão além da diversidade de práticas letradas: a multiplicidade semiótica (integração de diferentes semioses, mídias e linguagens) e a pluralidade cultural (cruzamento e mistura das culturas erudita, popular e de massa) que originam letramentos multiculturais, multissemióticos e hipermidiáticos. Segundo Rojo (2012, p.23), os multiletramentos impõem um novo ethos, fundado na transgressão de relações de poder estabelecidas tradicionalmente entre autor e leitor e aberto a variadas possibilidades de participação do leitor no ciberespaço. Se, por um lado, isso lhe permite exercer seu direito à expressão e questionar a autoridade autoral por meio da apropriação e subversão dos textos (a exemplo dos memes). Por outro, ele precisa exercer seu papel com maior criticidade, por exemplo, apurando os resultados de pesquisas em mecanismos de buscas, verificando a confiabilidade das fontes e a veracidade das informações. Apoiados em Soares (2002), em Rojo (2012, 2013) e em Tanzi Neto et ali (2013), elencamos as principais características dos multiletramentos em paralelo às dos letramentos ditos “convencionais” (quirográficos e tipográficos): 367


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Quadro 1. Comparação entre os tipos de letramentos

Letramentos “convencionais”

Multiletramentos

Menor presença de gêneros híbridos

Maior presença de gêneros híbridos, multissemióticos e hipermidiáticos, criados a partir de novas mídias, linguagens, semioses e tecnologias4

Direito autoral e de propriedade, produção individual ou colaborativa previamente definida (autor, editor, diagramador, programador visual, ilustrador), criminalização da cópia e do plágio

Possibilidade de criar a própria coleção5 (Spotify) e de produzir colaborativamente (Google Docs, wikis), maior abertura ao público (Prezi, Youtube) e a novos intérpretes (remixer e mashuper)

Maior controle da produção e publicação dos textos por meio de editores e conselhos editorais

Maior liberdade e flexibilidade na produção, na distribuição e no compartilhamento dos textos

Monumental6, estável, permanente

Tendência a uma organização mais linear e sequencial8

Unidade espacial estrutural (página)

Instável, fugaz, impermanente e móvel7

Organização multilinear, multidirecional e multisequencial Unidade espacial temporal (tela)

4. A mídia digital facilita a modificação e (re)combinação de conteúdos oriundos de quaisquer mídias e linguagens, pois transforma textos, sons, cores, gestos imagens — estáticas e em movimento — e demais semioses em código binário. 5. Conjunto cultural do conhecimento de cada sujeito (ROJO, 2013, p.18) 6. O texto impresso é tido como um monumento a seu autor, porque persiste e sobrevive no tempo muito mais que o manuscrito (SOARES, 2002, p.153). 7. Isso é relativizado quando o leitor possui uma conta para armazenar documentos ou mídias digitais em uma nuvem. 8. Consideramos que a hipertextualidade também está nos suportes não digitais, devido a alguns fatores, como: a capacidade cognitiva do leitor de estabelecer múltiplas relações com aquilo que lê; a organização multiespacial de alguns textos (a exemplo dos poemas concretos); e a liberdade que o próprio leitor possui de subverter a organização previamente definida pelo portador do texto (seja ele impresso, seja ele manuscrito, seja ele midiático, seja ele digital), lendo a seu modo. 368


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Maior centralização e rigidez dos meios de comunicação, transmissão e informação Mais voltado à normalização, ao policiamento e à regulação da escrita e da língua (língua padrão e língua nacional oficial)

Tendência à dispersão e à desterritorialização, dada a organização em formato de rede (nós e links) e à intensificação vertiginosa e diversificada da circulação da informação

Mais propício à inovação, à experimentação, à quebra criativa de regras e fronteiras (variedades linguísticas, pluralidade de línguas e interlínguas específicas de certos contextos, tendo o inglês como língua franca)

Fonte: a autora, 2019.

O mundo contemporâneo, caracterizado pela diversidade produtiva, pela globalização econômica e política da diversidade em nível local, pelo pluralismo cívico e por identidades multifacetadas (quanto à etnia, ao gênero e à orientação sexual, ao nível socioeconômico, ao grupo sociocultural e aos aspectos físicos e cognitivos), exige uma pedagogia voltada para uma aprendizagem crítica, situada, significativa e transformadora, que contemple a multiplicidade de linguagens, mídias e culturas, ou seja, os multiletramentos. Diante desse quadro, Rojo (2012, p.31) chama atenção para a necessidade de o poder público rever a formação, a remuneração e avaliação dos professores e a organização do tempo, do espaço e das disciplinas curriculares. A pedagogia dos multiletramentos, conforme a leitura de Rojo (2012, p.30) e de Oliveira e Szundy (2014, p.194-195), vai de encontro ao paradigma da aprendizagem curricular linear, em que alguém decide o que será aprendido em determinada ordem e cronograma. É uma didática voltada para os gêneros e práticas letradas que fazem parte da cultura do alunado e que são encontrados em espaços públicos e profissionais (prática situada). Segundo as autoras, essa pedagogia pretende conduzir os alunos a uma análise compreensiva sistemática e consciente dessas práticas com a introdução de uma 369


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metalinguagem que permita descrevê-las e interpretá-las (instrução direta) e a uma tomada de distanciamento em relação a elas e de posição crítica quanto a seu contexto (posicionamento crítico). Isso permite a construção de novos significados das diferentes coleções culturais e seus valores e a transferência dessa aprendizagem para outros contextos e espaços culturais (prática transformada)9. Essa proposta apresenta vários pontos de contato com o pensamento bakhtiniano, como bem apontaram Oliveira e Szundy (2014, p.199-202), pois toma como unidades de ensino os sentidos de enunciados concretos, situados em contextos socioeconômicos e histórico-culturais específicos. Além do mais, tem por objetivo formar educandos capazes de elaborar uma compreensão responsiva ativa e de posicionar-se em relação às práticas letradas (ou socialmente referendadas), a fim de interpretar seus significados, atribuir novos sentidos e transformar essas práticas.

Ao propor uma reforma pedagógica em que as práticas de letramentos se orientam para o redesenho de futuros sociais através da imersão em experiências situadas, do desenvolvimento de uma metalinguagem para descrever e interpretar diferentes modalidades de significados, do visionamento crítico dos contextos onde significados são construídos e da transformação desses significados, a pedagogia dos multiletramentos abre espaços para processos de formação de professores e de ensino-aprendizagem voltados para o acontecimento, o irrepetível, o que é da ordem do discursivo e cujo funcionamento não se dá pela estrutura, mas em rede. Apresenta, portanto, instrumentos pedagógicos abertos ao plurilinguismo social. (OLIVEIRA, SZUNDY, 2014, p. 201)

9. Embora a ênfase dada ao universo profissional pudesse ser associada ao letramento autônomo ou funcional, como bem ressaltaram as autoras, o elemento crítico e transformador possui maior peso, aproximando do letramento ideológico. 370


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Em conformidade com essa proposta pedagógica e com base nas reflexões de Coscarelli (2016), Novais (2016), Ribeiro (2016) e Zacharias (2016) acerca do impacto das novas TIC no ensino de leitura e escrita, consideramos fundamentais para o letramento digital a adoção de atividades direcionadas à: • identificação e utilização de diferentes componentes da interfaces gráficas digitais10 (botões, barras de rolagem, links, abas, janelas, ícones, símbolos, desenhos, leiaute, entre outros) para acessar textos e outras formas de interação; • navegação e pesquisa na Internet (localizar-se nas camadas do hipertexto, acionar links e itens de menu, reconhecer e usar ferramentas de busca e de busca avançada, gerar e avaliar palavras-chave para essas ferramentas, ler e compreender os resultados dos mecanismos de busca); • seleção, organização e apuração da relevância das informações (inferir conteúdo do link a partir do rótulo; averiguar credibilidade das fontes e dos links; selecionar conteúdos pertinentes aos objetivos de leitura, separando conteúdos das páginas da Internet das publicidades que nela emergem, por exemplo); • leitura, produção e análise crítica dos gêneros hipermidiáticos; • percepção da multimodalidade (design, cores, sons, movimentos, escrita, imagem) e da integração das diferentes linguagens e dos recursos de navegação na construção de sentidos dos textos e dos ambientes digitais;

10. Tais elementos orientam a navegação e a leitura, pois padronizam os comandos (forma dos botões, cores das janelas, sequência de ações) para que se possam utilizar softwares, sites e aplicativos com uma certa rotina e estabilidade. 371


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• exploração das habilidades de observação, de reflexão, de colaboração e de compartilhamento; • formação de atitudes de respeito, de cooperação e de participação na vida pública; • apropriação das novas TIC com a finalidade de desenvolver capacidades cognitivas, estratégias discursivas e atitudes cidadãs.

A leitura, nesse âmbito, inclui não só a mobilização de capacidades cognitivas (decodificação, produção de inferências, ativação de conhecimentos prévios, elaboração e checagem de hipóteses, generalização, dentre outras) e de estratégias discursivas (reconhecimento dos objetivos da leitura, estabelecimento de relação entre linguagem verbal e não verbal, apreciação crítica etc.), como também as ações físicas exigidas pela navegação no ciberespaço (clicar, arrastar, rolar, digitar, olhar etc.). Tais atividades pressupõem, portanto, um aluno que tenha alguma familiaridade com o ciberespaço e com os dispositivos eletrônicos (saiba, ao menos, ligar e desligar os dispositivos, acessar a Internet por meio deles, usar o mouse e o teclado dos computadores e notebooks e/ou o toque nas telas sensíveis de celulares e tabletes). Dado as condições socioeconômicas desiguais dos alunos, é preciso que a escola garanta a todos o acesso a esses dispositivos e a apropriação de seus modos de usar. Do mesmo modo, o domínio dos gêneros hipermidiáticos engloba diversas habilidades, tais quais: escolher a linguagem apropriada a cada gênero; usar os recursos tipográficos (fonte, tipo e tamanho da letra, destaque em negrito, itálico ou sublinhado, organizar espaçamento de links, de páginas e configurar leiaute); compreender a função do link, sua relação com o conteúdo da página virtual, sua integração a outras mídias e a intenção do autor ao utilizá-los; reconhecer os elementos e recursos próprios de cada aplicativo, software, plataforma ou rede social para inserir imagens, tabelas, links e grá372


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ficos, enviar fotos, publicar mensagens e comentários, dentre outras formas de interação. Dentre os diversos gêneros da hipermídia, destacam-se os games pelo sucesso que fazem com o público infanto-juvenil. Segundo Leffa et ali (2012, p.218), o videogame (ou jogo digital) é um gênero do discurso multimodal que se define pela presença de determinadas características como ludicidade, interatividade, imprevisibilidade (desfecho incerto), suporte eletrônico, ação física (envolve, a depender do tipo de jogo, gestos, olhares, ouvido e movimentos corporais), regras, evasão da vida real, narratividade, voluntariedade e disponibilidade do jogador. Dada seu poder de imersão, o envolvimento físico e mental que eles exigem dos sujeitos e a atratividade que exercem sobre os jovens, os jogos podem ser ótimos instrumentos para explorar aspectos da língua e do gênero. Vários pesquisadores citados por Ribeiro (2016, p. 163-165) advogam em favor da introdução de jogos digitais na escola, alegando que melhoram o desempenho nas disciplinas escolares e contribuem com a formação da autonomia e da criatividade. Argumentam ainda que os jogos favorecem a motivação intelectual e cognitiva do estudante, a aprendizagem de valores como a cooperação e a parceria, a capacidade de lidar com desafios, regras, convenções e situações diversas e de analisar e solucionar problemas. Também promovem o letramento digital, pois levam o aluno a manusear elementos gráficos e de navegação no ciberespaço, a ajustar a coordenação olho-mão e a manipular dispositivos de entrada (mouse, teclado, controles, pedais, volantes, joysticks), programas e outros recursos disponíveis no computador e na Internet (RIBEIRO, 2016, p. 166-167). No campo específico da linguagem, Leffa et ali (2012, p. 209) defendem que os jogos podem ser importantes instrumentos de mediação da aprendizagem linguística, pois ao mesmo tempo em que exigem o conhecimento da língua e de sua inter-relação com outras semioses (vídeos, áudios, imagens) 373


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para serem jogados, propiciam sua aprendizagem. Assim, argumenta Ribeiro, os jogos podem “contribuir com a formação de bases linguísticas que permitam aos jogadores participar de práticas sociais ligadas à leitura e à escrita no ambiente digital” (RIBEIRO, 2016, p. 164).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Tentando atender a essa demanda da educação contemporânea ávida por materiais didáticos em diálogo com a cibercultura e com gêneros e práticas de letramento virtual, a OLPEF digitalizou as sequências didáticas do Caderno do Professor, criando um Caderno Virtual para cada gênero, produziu jogos pedagógicos e disponibilizou outros conteúdos na seção Especiais por Gênero do Portal. A elaboração desses materiais, no entanto, não concretiza uma proposta pedagógica voltada para os multiletramentos. Os Cadernos Virtuais reproduzem basicamente a mesma sequência didática do Caderno impresso, ainda que sejam acrescidos de novos recursos (grifo e anotação) e permeados de links. A principal diferença entre as versões impressa e virtual do Caderno do Professor é que esta permite maior interatividade entre o texto e o usuário, “reunindo recursos que vão muito além de um simples virar de páginas com o toque dos dedos: é possível navegar por hipertextos e explorar hipermídias, (...) acessar vídeos e gravações de áudio, vivenciar uma experiência de leitura multimodal que requer letramentos múltiplos” (AZZARI, LOPES, 2013, p.196). Embora a versão impressa permita uma navegação hipertextual, pois o leitor pode pular páginas, pesquisar no sumário, iniciar pelas referências e depois ir diretamente a um capítulo, a virtual potencializa a mobilidade não linear e a rapidez de acesso, permitindo que todas essas ações sejam realizadas em frações de segundos, especialmente nas versões para tabletes e celulares. 374


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As telas sensíveis ao toque propiciam ainda mais praticidade, maior facilidade de contato com mídias diversas e de pesquisa imediata na Internet, favorecendo, assim, a realização de aulas dinâmicas e mais prazerosas. A ferramenta na margem inferior da página permite ao professor circular entre as oficinas e suas etapas, sem seguir a ordem previamente estabelecida, como se pode ver no exemplo da Oficina 7: Figuras 1 e 2. Sumário das oficinas e excerto da oficina 7 do Caderno Virtual

(LAGINESTRA, PEREIRA, 2016b).

No entanto, a sequência didática segue a mesma ordenação e disposição do Caderno impresso, com atividades previamente formatadas, tornando-as engessadas. A sequência carece de uma estrutura flexível e vazada, que permitisse aos usuários docentes e discentes trilharem seu próprio percurso, e ao professor tomá-la como um protótipo para adaptá-la ao contexto escolar no qual atua. 375


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É fato que o material exige de seus usuários o manejo de variados recursos das interfaces gráficas digitais (botões, barras de rolagem, abas, janelas, ícones, símbolos, desenhos, leiaute, entre outros) para acessar links e manipulá-los. Porém, faltam atividades que mobilizem, a partir de uma mesma temática, textos escritos, imagens, vídeos e áudios ou que conduzam à análise dessas múltiplas linguagens, semioses e mídias na construção dos sentidos dos discursos. As propostas de leitura e de escrita contemplam os mesmos gêneros da versão impressa, perdendo a oportunidade de explorar gêneros próprios do mundo virtual (inclusive a crônica que circula na web), ou ainda os gêneros multimodais recomendados para leitura a partir da disposição de links, como o filme publicitário e os vídeos. A animação em stopmotion da crônica “Catástrofe” de Luiz Vilela sequer é tematizada nas atividades propostas, nem se efetiva a comparação entre a versão original da crônica e essa adaptação para se observar os novos sentidos gerados pela mudança de suporte e de forma composicional. Nem mesmo a Oficina 9 que solicita a produção coletiva de uma crônica explora as ferramentas de construção textual colaborativa, como o Google Docs. O Caderno também deixa passar a chance de trabalhar o uso dos mecanismos de busca e a avaliação das fontes de informação, quando solicita a pesquisa de notícias curiosas, na etapa 2 da Oficina 7. Outrossim, o material carece de textos híbridos e de atividades que conduzam o leitor digital a criar sua própria coleção ou a estilizar e subverter os textos da coletânea, dando-lhes sua própria interpretação. Há ainda falhas de revisão que comprometem a qualidade e a usabilidade do material. Dentre elas, destacamos a repetição do boxe “Para saber mais” nas etapas 2 e 3 da Oficina 6; o corte do último parágrafo da etapa 1 da Oficina 10 do Caderno Impresso (LAGINESTRA, PEREIRA, 2016a, p.118), que 376


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explica ao professor como adaptar a atividade, caso a escola não disponha de datashow; e a reprodução fragmentada do primeiro parágrafo da seção “De gênero jornalístico a gênero literário” do capítulo “Introdução ao gênero”: Figura 3. Parágrafos de abertura da seção “De gênero jornalístico a gênero literário” no Caderno Impresso e no Caderno Virtual

(LAGINESTRA, PEREIRA, 2016a, p.22, 2016b).

Outra falha ocorre no apagamento do boxe “Sobre suportes, olhares e palavras” por meio da diluição de seu conteúdo nas instruções da atividade da etapa 2 da Oficina 1 no Caderno Virtual:

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Figura 4. Diluição do conteúdo do boxe “Sobre suportes, olhares e palavras”

(LAGINESTRA, PEREIRA, 2016a, p. 28, 2016b).

Além disso, há links desconectados do conteúdo da página, a exemplo da crônica “Catadores de tralhas e sonhos” que aparece nas Oficinas 1 (segunda etapa) e 9 (quarta etapa) sem quaisquer correlações com os objetos em análise. Em outros momentos, há pertinência no link, mas o Caderno não estabelece ligação entre ele e o conteúdo exposto na página, a exemplo do vídeo de Marcelo Prioste sobre fontes confiáveis na Internet, exposto na etapa 2 da Oficina 7, em que se recomenda a busca de notícias curiosas como leitmotiv para o desenvolvimento das crônicas, sem se explicar em que aspecto o vídeo poderia nortear essa tarefa. Em suma, observamos que, se de um lado, o Caderno Virtual leva alunos e professores a incursionarem no mundo digital, de outro, ancora-se nas práticas de letramentos “convencionais”. 378


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A seção Especiais por Gênero: Crônica 2016 do Portal11 da Comunidade Virtual Escrevendo o Futuro contempla alguns gêneros típicos das novas mídias, como a videoaula e o bate-papo, e outros textos multimodais, como os vídeos do Youtube e a entrevista televisiva. Dada a organização não linear da seção, o sumário possibilita que o leitor tome a decisão de trafegar por diferentes caminhos e percorra os variados assuntos da página, podendo voltar a qualquer ponto com apenas um clique. Assim como o Caderno Virtual, essa seção possui navegação facilitada e intuitiva, que, embora possa ser tida como enfadonha ou pouco motivadora para o leitor previdente, pode ajudar o leitor errante a se tornar detetive (SANTAELLA, 2004, p. 178-179)12. Através desses materiais, a OLPEF não assegura a formação da réplica ativa do destinatário, pois propicia uma interação quase unidirecional entre ele e o ambiente digital, limitada às anotações ou grifos em partes do Caderno e à elaboração de comentários na seção Especiais, os quais não se encontram disponíveis para visualização dos demais usuários. A interatividade adquire caráter complementar, pois encontra-se na margem desses ambientes. Em geral, eles são restritos quanto ao uso de ferramentas digitais e oferecem poucas oportunidades de trabalho colaborativo ou compartilhado. 11. De acordo com Marsaro (2013, p.186), o portal é um ambiente permeado por diversos gêneros, que misturam linguagens, provenientes de diferentes mídias; é um espaço de compartilhamento e produção, mas também uma plataforma de marketing. 12. Para a autora, o leitor imersivo que emerge do espaço virtual possui habilidades específicas que o distinguem do leitor do impresso (contemplativo) ou das mídias (movente). A depender da sua familiaridade com o espaço alinear e descontínuo da Internet, ele pode ser classificado em três perfis cognitivos: errante (ou novato), por usar o raciocínio abdutivo para adivinhar as rotas e explorar o território desconhecido, aprendendo por ensaio e erro; detetive (ou leigo ou curioso), por conhecer as regras básicas do ciberespaço e usar a indução para alargar seus horizontes, aprendendo com a experiência; previdente (ou expert), por ter internalizado os esquemas de navegação e usar a dedução para antecipar as consequências de suas escolhas, aprendendo também com a (re)produção de conteúdos. 379


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Diante disso, lançamos a mesma questão que Tanzi Neto et ali (2013, p.157): “Que contribuições à construção de novos e multiletramentos as atividades analisadas apresentam ou o que justifica suas presenças em ambiente digital, uma vez que reproduzem práticas já superadas até mesmo em materiais impressos?” A apresentação dos conteúdos na seção Especiais e no Caderno Virtual reforça a tendência de aula tradicional que faz uso de novos meios, no caso, as novas TIC, para tornar as aulas mais atrativas, mas serve ao mesmo fim tradicional de transmissão ou aplicação de conhecimentos, configurando uma “inovação conservadora”. Ilustra isso a indicação do datashow para projeção dos traços característicos da crônica, assinalados por diferentes cores (LAGINESTRA, PEREIRA, 2016a, p.77, 2016b), a exposição de vídeos musicais para os alunos se inspirarem e construírem uma crônica (PORTAL, 2019), a exposição de características da crônica por meio de palestra e de entrevistas de escritores (PORTAL, 2019), a visualização do documentário sobre a oficina regional e do blogue Cronicanto para motivar os alunos a participarem da Olimpíada (PORTAL, 2019). Tais recursos didáticos reduzem a posição ativa do aluno na situação de aprendizagem a de mero espectador, dado não haver quaisquer orientações para o trabalho construtivo com esses gêneros. Outro recurso didático dessa seção é o Jogo de Aprendizagem Virtual Crogodó, que tem a finalidade de levar os alunos a “compreender melhor (...) aspectos de literariedade e ficção do gênero crônica” (PORTAL, 2019). O objetivo do jogo é conduzir o aluno a manejar e analisar características do gênero a fim de conquistar uma vaga como escritor no blogue Cronicanto — um blogue formado por alunos semifinalistas da edição de 2012 da OLPEF. Para vencer o jogo, o aluno deve passar pelos três desafios propostos em diferentes locais de Crogodó, a cidade ficcional das crônicas: 380


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• “Secos e Molhados”, cujo desafio é ler ou ouvir os textos inspirados em produtos vendidos na mercearia para descobrir quais deles são crônicas e quais pertencem a outros gêneros, por meio de um teste de múltipla escolha que enuncia características desses textos. • “Jargões da Peleja”, cujo desafio é acertar o gol para, em seguida, relacionar o significado de um jargão a uma das expressões futebolísticas listadas na tabela. • “Lan do Tom”, cujo desafio é um quebra-cabeças de histórias. O aluno precisa montar a mesma história em quatro versões diferentes, selecionando os parágrafos adequados para construir quatro crônicas conforme o tom solicitado (lírico, humorístico, crítico e irônico). Essa atividade explora a coesão e a coerência textuais, na medida em que exige dos alunos a articulação entre os parágrafos e a congruência entre o tom selecionado e o modo de dizer da crônica, vide a seguir. Figura 5. Lan do Tom do Jogo Crogodó

(PORTAL, 2019). 381


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Ganha a partida aquele que fizer mais pontos, vencendo, pelo menos, duas das três etapas. Em cada uma delas, há as opções de voltar ao início da partida, de voltar à própria cidade e de consultar as regras dessa etapa. Também é possível consultar a pontuação dos participantes e o link “Ajuda” sobre as regras gerais do jogo a qualquer momento da partida. Os ambientes vêm destacados (coloridos) no mapa da cidade e basta clicar em cima de um deles para iniciar a partida, como se pode observar a seguir. Figuras 6 e 7. Texto de abertura e cenário principal do Jogo Crogodó

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(PORTAL, 2019).

Os jogos pedagógicos criados pela OLPEF para cada um dos gêneros pretendem ensinar de forma lúdica e estimular a aprendizagem colaborativa e em rede. Como todo jogo digital, eles possuem um espaço (a tela do dispositivo eletrônico) e um tempo (tempo psicológico, de imersão no jogo, e tempo cronológico, de duração do jogo) definidos. Podemos afirmar que o jogo Crogodó colabora com a aprendizagem de parte dos aspectos mencionados acima. No que tange à navegação digital, os jogadores precisam manipular, se necessário, botões (voltar para cidade, reiniciar partida e regras) e janelas (pontuação e ajuda) em todos os desafios do jogo e acionar, caso desejem, os botões de parar e de continuar os áudios das crônicas no desafio “Secos e molhados”. 383


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Outras habilidades necessárias são: reconhecer figuras, como os avatares Mimi e Arthur, os cenários de cada desafio do jogo, os produtos iluminados na mercearia “Secos e molhados” e os fantasmas, assinalando os computadores quebrados da “Lan do Tom”; manejar ícones e desenhos, como a seta indicando a direção de acerto do gol no campo de futebol e o mouse indicando o tom da crônica na roleta da “Lan do Tom”. Quadro 2. Elementos de navegação no Jogo Crogodó

Recursos

Símbolos

Botões: voltar para cidade, reiniciar partida, regras, parar e continuar áudio

Janelas: Pontuação, Ajuda

Figuras: avatares Mimi e Arthur, produtos iluminados na mercearia, fantasma na lan house, cenários de cada desafio do jogo na cidade (Mercearia “Secos e molhados”, campo de futebol “Jargões da Peleja” e “Lan do Tom”)

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Ícones e desenhos: seta da direção do gol e mouse para sorteio do tom na roleta russa

Fonte: a autora, 2019.

Em relação à linguagem multimodal, o jogo faz uso de cores (o azul para o avatar Mimi e o laranja para o avatar Arthur; o verde para assinalar respostas corretas e o vermelho, as erradas; verde para o campo de futebol, azul para a lan house e laranja para a mercearia), de imagens estáticas (os cenários de cada desafio), de animações (os avatares Arthur e Mimi tentam fazer o gol, e o goleiro movimenta-se para defendê-lo no desafio “Jargões da Peleja”), de áudios (narrações das crônicas no desafio “Secos e molhados”) e de escrita (exposição das regras de cada desafio e do contexto geral do jogo), como se pode observar na figura 8 a seguir:

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Figura 8. Regras do Jogo Crogodó

(PORTAL, 2019).

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O espaço híbrido do jogo requer do estudante a capacidade de reconhecer essas diversas linguagens e articulá-las para construir o sentido do texto e superar os desafios propostos. Cada desafio trata de determinados aspectos da língua e do gênero crônica, como vimos nas seções anteriores: a “Lan do Tom” mobiliza as habilidades de articulação textual, de composição do tom emotivo-volitivo e de progressão semântica; os “Jargões da Peleja” exploram o conhecimento prévio acerca do vocabulário do futebol; e a mercearia “Secos e molhados” aborda traços característicos da crônica e de gêneros correlacionados. No entanto, com exceção da “Lan do Tom”, os demais desafios apresentam problemas metodológicos e conceituais que prejudicam seu caráter pedagógico e, consequentemente, o desenvolvimento das habilidades linguísticas e discursivas dos estudantes. Para além disso, podemos questionar o estatuto de jogo dessa ferramenta digital, pois ela carece de narratividade e é pouco interativa. Crogodó é uma cidade imaginária, tal qual cada um dos cenários que ambientam os desafios: a lan house (“Lan do Tom”), o campo de futebol (“Jargões da Peleja”) e a mercearia (“Secos e molhados”). Mas falta-lhe um conflito, bem como conexão entre essas partes para composição de um enredo. O potencial de imersão ficcional do “jogo” também é comprometido pela indicação aleatória do avatar, isto é, pela impossibilidade de escolha pelo jogador, impedindo sua identificação com quem irá representá-lo. O envolvimento do jogador é ainda prejudicado pela ausência de atividades que o incitem a criar, produzir ou compartilhar, desenvolvendo letramentos críticos. Os três desafios exigem dos estudantes apenas que respondam a perguntas (“Secos e molhados”) e que efetuem correlações (“Lan do Tom” e “Jargões da Peleja”) entre um texto (parágrafo ou verbete) e uma categoria (tom da crônica ou jargão futebolístico), sendo necessária a intervenção do professor para que se conheça a resposta correta, em caso de falha do jogador, ou que este a encontre por meio de tentativa e erro. Usando 387


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a categorização de Leffa et ali (2012, p.224), podemos dizer que Crogodó fica na fronteira entre o videogame e o exercício didático, na medida em que usa alguns recursos interativos, áudios e animação, mas os desafios propostos “não passam de atividades tradicionais travestidas como jogo, na tentativa de ensinar e divertir ao mesmo tempo”. Para esses autores,

um exercício interativo em que o aluno respondesse a perguntas feitas pelo computador com feedback automático tem um algoritmo, um suporte eletrônico e a atividade do aluno, mas não seria considerado um videogame pelo aficionado: falta-lhe o atributo da ludicidade; um videogame que diverte e vicia é mais videogame do que um que não cativa o usuário. (LEFFA et al., 2012, p.222)

Apesar de propiciar a compreensão da inter-relação entre múltiplas linguagens na composição do gênero e o manejo de alguns recursos gráficos e de navegação digital, Crogodó é pouco atrativo para os nativos digitais mais experientes. A interatividade limita-se aos aplausos para a resposta correta em “Secos e molhados” e aos gritos da torcida nos “Jargões da Peleja”. O “jogo” não concretiza o objetivo da OLPEF de estimular a aprendizagem colaborativa e em rede, pois as tarefas propostas, embora envolvam a disputa entre dois jogadores, são individuais. Como a seção Especiais e o Caderno Virtual, o “jogo” Crogodó oferece poucos “desafios” para os leitores previdentes, que já conhecem diversos esquemas de navegação e se orientam por eles para antecipar as consequências de suas escolhas de percurso.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS Na tentativa de explorar os multiletramentos articulados às atividades de leitura e de produção do gênero crônica, em foco neste trabalho, a OLPEF aponta “novas práticas”, que contribuem para o progresso do ensino e da aprendizagem da escrita no universo digital e, ao mesmo tempo, apresenta “ecos da tradição”, que reverberam uma visão engessada das novas TIC apenas como meio ou recurso para exposição do conteúdo. Como exemplo de novas práticas, podemos citar o ambiente multihipermidiático da aba Especiais por gênero e o desafio “Lan do Tom” do jogo Crogodó. O primeiro oferece ao professor a possibilidade de estabelecer diferentes protocolos de leitura e percursos formativos; e os recursos digitais do segundo, por sua vez, oportunizam ao aluno observar que o mesmo conteúdo temático pode ser tratado sob diferentes perspectivas e entonação avaliativas e que a crônica pode assumir diferentes tons. Ilustra a perspectiva tradicional a exposição dos conteúdos no Caderno Virtual como algo pronto e acabado, sem espaço para uma intervenção autoral dos docentes e com parca exploração dos recursos multimídias, pouco se diferenciando da versão impressa. Além disso, a abordagem proposta no desafio “Secos e Molhados” do Jogo Crogodó consiste em um mero teste de múltipla escolha sobre os recursos linguísticos da crônica e de outros gêneros correlacionados.

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REFERÊNCIAS AZZARI, Eliane F.; LOPES, Jezreel G. Interatividade e tecnologia. In: Roxane Rojo (org.) Escol@ conectada: os multiletramentos e as TICs. São Paulo: Parábola, 2013. p. 193-208. COSCARELLI, Carla Viana. Navegar e ler na rota do aprender. In: Carla Viana Coscarelli. (org.) Tecnologias para aprender. São Paulo: Parábola, 2016. p. 61-80. GERALDI, João Wanderley. A produção dos diferentes letramentos. Bakhtiniana, São Paulo; v. 9, n. 2, p. 25-34, agosto/dezembro de 2014. GOULART, Cecília Maria Aldigueri. O conceito de letramento em questão: por uma perspectiva discursiva da alfabetização. Bakhtiniana, São Paulo; v. 9 , n. 2, p. 35-51, agosto/ dezembro de 2014. LAGINESTRA, Maria A.; PEREIRA, Maria I. A ocasião faz o escritor: caderno do professor: orientação para produção de textos. 5 ed. São Paulo: CENPEC, 2016a. LAGINESTRA, Maria A.; PEREIRA, Maria I. A ocasião faz o escritor: caderno virtual. São Paulo: CENPEC, 2016b. LEFFA, Vilton et al. Quando jogar é aprender: o videogame na sala de aula. Estudos Linguísticos, v. 20, n. 1, p. 209-230, janeiro/junho de 2012. Disponível em http://www.leffa. pro.br/textos/trabalhos/Quando_jogar_aprender.pdf. Acesso em 19 de outubro de 2019. MARSARO, Fabiana Panhosi. Portais de editoras de livros didáticos: análise à luz dos multiletramentos. In: Roxane Rojo (org.). Escol@ conectada: os multiletramentos e as TICS. São Paulo: Parábola, 2013. NOVAIS, Ana Elisa. Lugar das interfaces digitais no ensino de leitura. Carla Viana Coscarelli. (org.) Tecnologias para aprender. São Paulo: Parábola, 2016. PORTAL da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro. 2019. Disponível em www.escrevendoofuturo.org.br. Acesso em 17 fev. 2019. OLIVEIRA, Maria B. F. de; SZUNDY, Paula T. C. Práticas de letramentos na escola: por uma educação responsiva à contemporaneidade. Bakhtiniana, São Paulo; v. 9, n. 2, p. 184-285, agosto/dezembro de 2014. RANGEL, Egon. GARCIA, Ana L. M. A Olimpíada de Língua Portuguesa e os caminhos da escrita na escola pública: uma introdução. Cadernos Cenpec, São Paulo; v. 2, n. 1, p. 11-22, julho de 2012. RIBEIRO, Andréa Lourdes. Jogos online no ensino-aprendizagem da leitura e da escrita. In: Carla Viana Coscarelli (org.). Tecnologias para aprender. São Paulo: Parábola, 2016. p. 159-174. 390


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Resumo Este é um relato fundamentado e problematizado metodologicamente sobre uma experiência de estágio docente, realizado mediante projeto pedagógico, na Escola de Aplicação do Recife, no primeiro semestre de 2018. Também refletiremos teoricamente, através de observações práticas, essa experiência de estágio (DOLS, J. & SHNEUWLY, 2004; CANDIDO, 1964; CERVINSKIS, 2008; 2010; 2018; KEIMAN, 1995; BRASIL, 2006; COSTA. 2010). Lançamos mão, para tanto, aos poemas de Lucila Nogueira e Manuel Bandeira durante 20 h/aula. Estivemos em sala de aula, observando a relação professor-aluno, sua metodologia, de aprendizagem, critérios de avaliação, enfim, todo quotidiano pedagógico e profissional de Português. Principalmente, realizaremos aulas de regência no 1º. Ano do Ensino Médio através de uma oficina de poesia para os estudantes. Apesar de trilharem caminhos distintos (Manuel Bandeira optando pelo cotidiano, o jeito simples de falar português, enquanto que Lucila Nogueira traz uma poesia mais trabalhada em mitos, fatos históricos ou performances pós-modernas), os autores escolhidos para essa regência encantaram e formaram gerações de leitores, contribuindo para formação, inclusive, docente. Lembramos que Nogueira foi professora da UFPE, enquanto Bandeira é largamente utilizado em projetos de formação de leitores. Traçam, portanto, um panorama histórico-memorialístico que toca nossos sentimentos de pertença às nossas coisas, patrimônio e cores locais. Consideramo-los autores muito adequados para estimular a leitura literária hoje, onde os games da internet e produtos de entretenimento das mais diferentes matizes prendem a atenção de nossa juventude. Organizamos sarau com os alunos, facilitando a dramatização do livro Imilce (Lucila Nogueira). Foram trabalhados, portanto, nessa oficina, os eixos preconizados pelos Currículos Nacionais do Ensino Médio e PCN+: oralidade, leitura, produção textual e análise linguística. Além disso, por tratar de temas que se identificam com todos os seres humanos, como o amor, a solidão, o desespero, a loucura, seus poemas despertaram interesse nos alunos. Palavras-chave: Literatura e ensino; Poesia e ensino; Oficina literária.


UMA LITERATURA PARA ESCOLA, UMA ESCOLA PARA VIDA: OFICINA LITERÁRIA NA ESCOLA DE APLICAÇÃO DO RECIFE (2018) ANDRÉ CERVINSKIS1

INTRODUÇÃO Este é um relato fundamentado e problematizado metodologicamente sobre uma experiência de estágio docente, realizado mediante projeto pedagógico, na Escola de Aplicação do Recife, no primeiro semestre de 2018. Também refletiremos teoricamente, através de observações práticas, essa experiência de estágio (DOLS, J. & SHNEUWLY, 2004; CANDIDO, 1964; CERVINSKIS, 2008; 2010; 2018; KLEIMAN, 1995; BRASIL, 2006; COSTA. 2010). Lançamos mão, para tanto, aos poemas de Lucila Nogueira e Manuel Bandeira durante 20 h/aula. Estivemos em sala de aula, observando a relação professor-aluno, sua metodologia, de aprendizagem, critérios de avaliação, enfim, todo quotidiano pedagógico e profissional de Português. Principalmente, realizaremos aulas de regência no 1º. Ano do Ensino Médio através de uma oficina de poesia para os estudantes. Apesar de trilharem caminhos distintos (Manuel Bandeira optando pelo cotidiano, o jeito simples de falar português, enquanto que Lucila Nogueira traz uma poesia mais trabalhada em mitos, fatos históricos ou performances pós-modernas), os autores escolhidos para essa regência encantaram e formaram gerações de leitores, contribuindo para formação, inclusive, docente. Lembramos que Nogueira foi professora da 1. Doutorando em Literatura e Interculturalidade da UEPB. Bolsista da CAPES/FAPESP (Fundação de Amparo à Pesquisa da Paraíba) desde agosto de 2018. 393


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UFPE, enquanto Bandeira é largamente utilizado em projetos de formação de leitores. Traçam, portanto, um panorama histórico-memorialístico que toca nossos sentimentos de pertença às nossas coisas, patrimônio e cores locais. Consideramo-los autores muito adequados para estimular a leitura literária hoje, onde os games da internet e produtos de entretenimento das mais diferentes matizes prendem a atenção de nossa juventude. Organizamos sarau com os alunos, facilitando a dramatização do livro Imilce (Lucila Nogueira). Foram trabalhados, portanto, nessa oficina, os eixos preconizados pelos Currículos Nacionais do Ensino Médio e PCN+: oralidade, leitura, produção textual e análise linguística. Além disso, por tratar de temas que se identificam com todos os seres humanos, como o amor, a solidão, o desespero, a loucura, seus poemas despertaram interesse nos alunos. Passaremos, portanto, para uma breve contextualização sobre o ensino de íngua Portuguesa no Brasil, ao que passaremos para dados da unidade escolar escolhida para estágio (Escola de Aplicação do Recife) e, finalmente, ao relato problematizado da oficina literária.

REALIDADE DA EDUCAÇÃO E DA DISCIPLINA LÍNGUA PORTUGUESA

Estamos passando por um momento crucial e de profunda reflexão sobre o papel da escola e do professor de português na formação do alunado brasileiro, que tem tido péssimos resultados na participação em algumas avaliações nacionais e internacionais, como no SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), no ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio) e PISA (Programa Nacional de Avaliação de Estudantes), segundo dados de 2015. Neste, o Brasil foi o último colocado entre os 56 países participantes da avaliação, mostrando que a maioria dos nossos jovens não é capaz de fazer usos com a leitura, como: recuperar informações específicas, até demonstra394


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ção de compreensão geral do texto ou interpretar e refletir sobre o conteúdo e características do texto. O tratamento dessas questões requer cuidados. Afinal, sabemos, também, que existem muitas tentativas e experiências positivas de ensino comprometido. No entanto, é necessário propor uma reflexão nacional sobre maneiras mais eficientes de se conduzir o ensino da Língua Portuguesa, ampliando a competência linguística e habilidades de uso (COSTA, 2010, p. 68). Travaglia (1998), em seu livro Gramática e interação: uma proposta para ensino de gramática do 1º. e 2º. graus, apontou que o ensino da Gramática nas aulas de Português representa um problema constante para os professores do Brasil: Observa-se uma concentração muito grande no uso de metalinguagem no ensino de Gramática teórica para identificação e classificação de categorias, relações e funções dos elementos linguísticos, o que caracterizaria um ensino descritivo, embora baseado, com frequência, em descrições de qualidade questionável (TRAVAGLIA, 1998, p. 101).

A autora também acrescenta que a maior parte do tempo das aulas é destinada ao ensino e utilização dessa metalinguagem sem avanço, pois, em todos os anos escolares, insiste-se na repetição dos mesmos tópicos gramaticais. Deve-se analisar a forma de se conduzir o ensino da língua, pois isso depende do objetivo que queremos alcançar com nossos alunos: ensino estruturalista x ensino interacionista (COSTA, 2010, p. 68). Geralmente, os exames, como vestibular ou mais recentemente o ENEM (Exame Nacional do Ensino Médio), querem avaliar o domínio que o candidato possui dos recursos linguísticos do português padrão, ao ler, escrever e interpretar (Idem). Mas, segundo os PCN (Padrões Curriculares Nacionais, 1997), “o ensino de Língua Portuguesa deve contribuir, significativamente, para que os alunos ampliem sua competência linguística e habilidade no uso efetivo de sua língua materna” (Idem). E, segundo as OCEM (Orientações Cur395


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riculares Nacionais para o Ensino Médio, 2006), “espera-se, portanto, dessa etapa de formação” (OCEM, 2006, p. 17-18) o desenvolvimento de capacidades que possibilitem ao estudante: 1. Avançar em níveis mais complexos de estudos; 2. Integrar-se ao mundo do trabalho, com condições para prosseguir, com autonomia, no caminho de seu aprimoramento profissional; 3. Atuar de forma ética e responsável na sociedade, tendo em, vista as diferentes dimensões da prática social”.

Podemos concluir, então, que, em termos de ensino da língua materna, preconiza-se o protagonismo do estudante. Baseado na reflexão dinâmica da língua, em seu caráter social e noutras diferentes dimensões linguísticas (morfossintaxe, léxico, gramática normativa, literatura, oralidade, entre outras), e não somente a memorização de regras ortográficas ou gramáticas nem de escolas, autores e datas literárias, o que, trabalhadas isoladamente, não garantem um domínio pleno, como usuário e produtor de sentido do português. Dessa maneira, trabalhamos na perspectiva sócio interacionista, baseada em didáticas mais participativas e inovadoras, como preconizado por Suassuna (2006) e Mendonça (2003; 2006). No dizer dessa última, os projetos temáticos, em cujo mote baseamos nosso projeto de regência, “são organização de sequências didáticas que girem em torno de um tema central e que conduzam, através da exploração de competências e conteúdos pertinentes à(s) disciplina(s), à realização de um produto final ou atividade de culminância” (MENDONÇA, 2003). A autora ainda destaca que o conhecimento é instrumento de compreensão da intervenção na realidade e conhecimento do mundo; sendo a aprendizagem um processo global, que não se restringe aos limites dos conteúdos e disciplinas curriculares; a construção de identidades 396


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é baseada na formação integral do indivíduo, incluindo, inclusive, discussão de valores. Por fim, os projetos temáticos, segundo Mendonça, rompem a rigidez das disciplinas escolares ao promoverem interdisciplinaridades e procedimentos específicos dos saberes enfocados. Por sua vez, Suassuna (2006) destaca a importância dessas práticas sócio interacionistas, baseadas nos PCN (Parâmetro Curriculares Nacionais), que, além dos benefícios elencados por Mendonça (2006), tem como motivações e consequências: progresso curricular, utilizando os próprios PCN; deve haver participação professor-aluno no processo didático; fundamentar a discussão político-pedagógica do ensino da LP (Língua Portuguesa); suscitar possibilidades e necessidades de aprendizagem mais interativos e interessantes, baseadas no como invés de o quê; contribuir competências para elaborar discursos; incentivar práticas de análise linguístico-literária renovadas em sala de aula, através da formação continuada dos docentes; fundamentar a discussão político-pedagógica do ensino de Língua Portuguesa. Todo esse quadro diferenciado de processo ensino-aprendizagem da língua materna esteia-se, como salienta Suassuna (2006), baseada em Wanderley Geraldi, um reconhecimento de que a produção de sentidos, numa contextualização social e integral da língua, pressupõe a participação do aluno como sujeito atuante da formação de sentidos, em plena e contínua interação com o professor, numa troca profícua e democrática de saberes. Nessa perspectiva, realizamos a oficina literária, com embasamento no teoria dos gêneros textuais e projeto didático de regência, como orientado pelo professor da disciplina Estágio Curricular IV (Letras, UFPE, 2018.1)

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A ESCOLA DE APLICAÇÃO DO RECIFE A escola possui uma infraestrutura muito boa; salas com ar condicionado, cadeiras novas, quadro branco, datashow. Segundo dados de 2015, fornecidos pela própria gestão, o número total de alunos da escola é de 148 no Fundamental e 118 no Médio, totalizando 266 alunos. Dedica-se ao Ensino Fundamental e Médio, uma turma por série, entre 35 e 40 alunos. Registra o seguinte quadro de funcionários: Professores: 30, sendo 9 contratados e 21 efetivos; funcionários: 33. A turma escolhida para o presente estágio em 2018 foi a Primeira Série do Ensino Médio. Os professores foram, respectivamente, Raimundo (nome fictício), que ensina a disciplina Português; e Letícia (nome fictício), que ensina Redação, Literatura e Português. Entendemos que essa divisão da disciplina, especialmente em relação ao Ensino Médio, é uma abordagem instrumentalista da língua, que vê a disciplina de maneira fragmentada e procura um único objetivo: o de fazer os alunos passarem no ENEM (exame nacional do ensino médio). Não há a preocupação de mostrar como a língua pode ser utilizada como instrumento de cidadania e de utilidade no quotidiano, além de favorecer, certamente, a leitura e compreensão de outras disciplinas, como História e Geografia, por exemplo. Esse comportamento certamente é influenciado pelas práticas de ensino dos professores responsáveis em outros lugares, como cursinhos Pré-ENEM ou escolas particulares. Não observamos, porém, grandes conflitos dos alunos em relação aos professores nas salas de aula da Escola de Aplicação do Recife. Os alunos eram bem-comportados; calavam-se ao ver o professor entrar e, ao conversarem em aula e serem advertidos, silenciavam. Os professores mais jovens, apesar de terem sido mais simpáticos e dinâmicos, dispõem de uma postura tradicional. A grade de disciplinas tem uma divisão convencional — Gramática e Redação/Literatura. O professor, como “detentor do saber”, que 398


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sempre traz o conteúdo pronto, através de esquemas ou fórmulas; os mais velhos, tradicionais, mas não autoritários. Não vimos, porém, nenhum caso de excesso de autoridade ou conflito maior com alunos, como discussões em sala de aula em voz alta ou mesmo agressões físicas, infelizmente, comuns em muitas escolas públicas. Poucos usam tecnologia — datashow ou outro equipamento; geralmente é aula expositiva, com livro didático ou apostilas. Isso, provavelmente, deveu-se à satisfação dos alunos em estudar numa escola de referência e ao esforço observado, por parte dos professores, em manter uma boa relação com os alunos. O que percebemos, durante anos anteriores (os estágios I, II e III foram realizados na mesma escola, respectivamente, 2014 e 2015), quando estivemos em nosso estágio de observação, é que alguns conteúdos estudados pelos alunos nessas disciplinas — como Barroco e Figuras de Linguagem , por exemplo), foram uma antecipações do 1º. Ano do Ensino Médio já no 9o. Ano do Ensino Fundamental, campo de observação do primeiro e segundo estágios. Isso, de certa forma, é motivo de orgulho para os professores, que se esmeravam em cumprir todo planejamento didático para o ano, de modo que até sobrasse tempo para rever ou antecipar assuntos de outras séries. Os alunos usaram os livros didáticos como resultado da política do Livro Didático do MEC, por ser considerada a escola como pública e de referência. Os alunos só recebiam os livros do ano seguinte ao devolver os do ano anterior, no começo do ano letivo, para não faltar para ninguém. No caso da subdisciplina Português, o professor Raimundo usou o 360º, livro-gramática da FTD (2017), que, embora siga objetivos tradicionais de exercícios para o ENEM, trabalha, também, com intertextualidade e intergenericidade. Os capítulos introduzem os assuntos, através de histórias em quadrinhos, notícias de jornal, pinturas e gravuras. O livro de Literatura, em volume único para todo ensino médio (Literatura Brasileira, de José de Nicola), começa introduzindo noções de literatura (conceito), gêneros literários (épico, lírico 399


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e dramático), nas partes 1 e 2 (capítulos 1 a 8), mas do meio para o final (cap. 9 a 20), segue a historiografia literária tradicional. Bastante ilustrado com fotos, pinturas, gravuras, inicia com texto introdutório (contexto histórico), fala das características dos movimentos e cita principais autores, concluindo sempre com exercícios para o ENEM. No caso do Modernismo da primeira geração (capítulo 17), encerra com poemas de Manuel Bandeira e Oswald de Andrade, com breves comentários críticos. Embora nem sempre usado nesse contexto, na maioria das vezes, o livro didático serviu de parâmetro para o Ensino Médio. Se não era utilizado, pelo menos era usado como bússola ou guia para orientar o conteúdo utilizado em sala de aula. Mesmo se o professor ou professora utilizasse outros materiais didáticos, a exemplo de jogos, trabalhos em grupo, etc., havia sempre uma referência ao livro didático. “Vocês vão encontrar esse assunto na página x do livro”, indicavam. No momento em que chegamos para observação do estágio (abril de 2018), estava acontecendo uma breve revisão, que cada um deu desses assuntos para as provas da primeira unidade, que, no caso dessa escola, são realizadas numa semana prolongada de 10 dias. A professora de Literatura achava-se no capítulo de narrativa, enquanto que o de Português trabalhava ambiguidade, sem seguir a sequencia do livro adotado. As aulas são realizadas no turno da tarde, com 50 minutos cada, sendo que há um contra turno de manhã, somente às segundas e terças-feiras para complementação de carga-horária. Desse modo, a disciplina Português, como um todo, incluindo Gramática, Redação e Literatura, acontece em 7 aulas por semana. Como explicitado anteriormente, a metodologia de ensino de Língua Portuguesa é baseada no tripé tradicional, em que se dá ênfase ao ensino de Gramática em detrimento de Literatura e Redação. Aliás, até mesmo no terceiro ano, último do Ensino Médio, essa divisão persiste, embora não seja mais recomendada pela Lei das Diretrizes e Bases da Educação: aulas de 400


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Português (Gramática), num dia, Redação e Literatura, em outros. Assim, podemos dizer que a metodologia da aula foi expositiva, bem convencional, muito embora inovem por vezes no formato, na tecnologia, trazendo textos de internet, filmes em DVD etc. Não há metodologia de construção do saber, baseado, portanto, no interacionismo (MARCUSCHI, 2001; SUASSUNA, 2006) ou mesmo em Paulo Freire (2005). O que não quer dizer que o ensino seja ruim e os resultados pífios. Ao contrário: a escola tem se destacado, desde que criada, como uma das melhores do Recife, comparada ao Colégio de Aplicação da UFPE, ganhadora de prêmios estaduais e nacionais. Por exemplo: a escola recebeu prêmios nas Olimpíadas de Matemática, História e Química, em 2014 e 2015. Há uma Jornada Pedagógica anual, tipo Feira de Ciências, mas com bancas, inclusive com examinadores de fora, que é realizada no segundo semestre de cada ano letivo. Há pouca ligação entre essas submatérias; se ocorre, acontece em relação à Redação e Literatura, quando, por exemplo, é utilizado um poema para servir de base para explicar um movimento ou escola literária. Em verdade, ainda é passada essa concepção arcaica da Literatura em escolas ou movimentos, fatos que a Teoria da Literatura Contemporânea já pôs abaixo. Então, um tema é previamente escolhido: o poema pode ajudar, se trabalhado juntamente com outro instrumento pedagógico auxiliar, como matérias de periódicos, filmes, quadrinhos de jornal etc. Seguindo essa observação, as aulas de Redação são exclusivamente voltadas para o ENEM, objetivando o êxito dos alunos. Questões de formação de cidadania só entram em pauta se forem cogitadas para o exame. Seguem ainda o esquema: introdução, desenvolvimento e conclusão. Os gêneros narração e descrição são citados, mas tratados à parte, não desenvolvidos num contexto de interação de gêneros ou intergenericidade a que Antônio Marcuschi (2001) se refere. 401


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Nessa esteira, o ensino de Português baseia-se especialmente na Gramática, centra-se no livro didático, embora ambos os professores, também, utilizem outros materiais auxiliares, como exercícios, análises de textos para interpretar, bem ao gosto do ENEM-Vestibular, não se observando, nesse sentido, maiores inovações de ensino-aprendizagem. As avaliações seguem a linha convencional, com uma semana ou até 10 dias separados para avaliação, suspensas as aulas, em cada bimestre. Não se utilizam relatórios de viagem, exercícios de interpretação ou mesmo de questões gramaticais, individuais ou em grupo, bem como, por exemplo, seminários, como nota principal. No máximo, são usados como notas secundárias ou testes, anteriores a essa semana de avaliação escrita. Como, originalmente, o prédio foi construído para abrigar a Faculdade de Ciências da Administração de Pernambuco, da atual Universidade de Pernambuco, antiga FCAP-UPE, sua estrutura foi adaptada para o Ensino Fundamental e Médio, no contra turno da tarde, quando a faculdade não funcionava. Desde 2012, tornou-se uma EREM (escola de referência de ensino médio) e recebe verbas diretamente da Secretaria de Educação, através de um convênio. Os professores são concursados e contratados do Estado para a Escola, o que antes gerava dificuldades. De 1991 a 2012, funcionou um curso técnico em administração, que depois foi reconhecido na categoria pós-médio. No entanto, por pressão dos pais e alunos que queriam se preparar para o ENEM-Vestibular, esse curso foi descartado e a escola ficou somente com ensinos fundamental e médio. Há uma sala de leitura, com livros, em sua maioria, didáticos; não há merenda escolar; apenas uma cantina, que é, também, a da faculdade, e um fiteiro, na calçada do prédio. Nesse sentido, não há preocupação ou trabalho com alimentação saudável, que já começou a ser preconizada hoje em dia nas escolas do Brasil. 402


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Dos anos 1980 a 2011, funcionou como escola de aplicação da UPE; o quadro de professores era da própria universidade - Campus de Nazaré da Mata, cursos de História, Geografia e Letras; outros, cedidos pela Secretaria de Educação do Estado. Portanto, a verba orçamentária era enquadrada na quota da faculdade e as dificuldades eram muitas. Não há quadra de esportes nem um lugar adequado para recreio; não há laboratório de ciências ou idiomas. O de Informática é insuficiente, pois só funcionam 12 computadores. Em relação à capacitação dos professores, a maioria tem especialização ou mestrado, até porque é uma EREM e isso é uma exigência sine qua non para uma escola desse nível. A formação continuada deles é dada pelo Governo do Estado (Secretaria de Educação) e, internamente, através de jornadas pedagógicas, no começo e meio do ano. A maioria tem carga-horária de 150 h/a, ou seja, dedicação total à escola. Nossos professores, Raimundo e Letícia, têm especialização e mestrado em Letras, respectivamente. Os alunos provêm, em sua maioria, da classe média e alta, embora haja alunos menos favorecidos de escolas públicas, graças ao regime de quotas (9 vagas ao ano). Há uma seleção para entrar na escola, a partir do 6º. Ano (início do Ensino Fundamental 2). Os alunos relacionam-se bem com a escola, pois, apesar do mostrado, há uma infraestrutura regular. Há vários profissionais de apoio na coordenação pedagógica, secretaria e outros órgãos. Eles, também, podem usufruir os demais setores da faculdade como a Biblioteca da FCAP, que é muito boa, com um acervo razoável e estruturalmente adequado. A avaliação segue o modelo tradicional, de provas escritas, em uma semana inteira dedicada a elas. Conforme dissemos, o ensino visa resultados tradicionais, “palpáveis”, como, por exemplo, notas baseadas em médias exponenciais; conceitos desenvolvidos como A, B ou C, ou como antigamente nas escolas públicas, logo após a LDB (1995), como desempenho construído, desempenho em construção e desenvolvimento construído, não são considerados. 403


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Não obstante isso, em conversa informal, os professores Raimundo e Letícia mostraram-se bem satisfeitos com os resultados dos alunos no ENEM, por exemplo, considerando a escola como “ótima” de se trabalhar, bem como modelo; mostraram-se felizes em serem professores de lá.

A OFICINA LITERÁRIA

Para as oficinas literárias, realizadas durante 20h do total e 40h da disciplina Estágio Curricular IV (Letras, UFPE), decidimos trabalhar a Literatura num contexto mais dinâmico e interativo, fugindo ao modelo de historicismo literário. Com essa decisão, percebemos que formar leitores é uma tarefa difícil. Não basta trabalhar algumas estratégias, atividades isoladas ou, ainda, solicitar leituras obrigatórias, que a escola considera importantes, para a formação do aluno-leitor. Além de colocar o aluno em contato com diferentes tipos de texto, é necessário fazer com que esses textos sejam significativos para ele: Somente quando se ensina o aluno a perceber esse objeto que é o texto em toda sua beleza e complexidade, isto é, como está estruturado, como produz sentidos, quantos significados podem ser aí, sucessivamente revelados, ou seja, somente quando são mostrados ao aluno modos de se envolver com este objeto, mobilizando os seus saberes, memórias, sentimento para, assim, compreendê-los, há ensino de leitura. (KLEIMAN, 2005, p. 22)

Nos bancos escolares, muito pouco é oferecido e, quando o é, acontece em fases erradas ou de forma a desestimular a leitura, por obrigação e não por gosto. Muitas pessoas, então, passam pela vida sem nunca terem tido contato com o mundo da literatura, sem se identificarem com essa ou aquela personagem. 404


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A escolha da temática poesia deu-se pela observação de que se trata de um gênero menos prestigiado pela academia. Há uma preferência clara e inequívoca pela narrativa, de preferência breve (contos e crônicas), não se sabendo se por falta de hábito, cultura literária ou simples mentalidade reducionista dos docentes, que, muitas vezes, preferem trabalhar gêneros já aceitos e, efetivamente, testados em livros didáticos e fichamentos. Infelizmente, desenvolveu-se a falsa ideia de que trabalhar com poesia dá mais trabalho, não sendo aceita pelos alunos ou exigindo do professor um esforço hercúleo, que o docente não estaria disposto a executar. Apesar de trilharem caminhos distintos (Manuel Bandeira, optando pelo cotidiano, o jeito simples de falar português e Lucila Nogueira trazendo uma poesia mais trabalhada em mitos, fatos históricos ou performances pós-modernas), os autores escolhidos para essa regência encantaram e formaram gerações de leitores, contribuindo para formação, inclusive, docente (lembramos que Nogueira foi professora da UFPE, enquanto Bandeira é largamente utilizado em projetos de formação de leitores, como o Programa Manuel Bandeira, da Prefeitura do Recife). Sem dúvida, constituem-se, também, de objetos de paixão e pesquisa nossa, enquanto doutorando em Literatura e Interculturalidade, engajados, que somos, em mapeamentos de bibliotecas comunitárias ou de análise de programas governamentais de estímulo à leitura, como nosso trabalho de Conclusão de Curso (TCC) em Letras: Programa Manuel Bandeira e Agentes de Leitura: ações de Letramento no Recife, defendido em 2016, na UFPE. Lucila Nogueira está sendo estudada por nós desde 2002, ainda na graduação de Comunicação Social na mesma universidade, enquanto que Manuel Bandeira foi nosso primeiro prêmio literário recebido pela Academia Pernambucana de Letras, em 1994, bem como assunto de, pelo menos, cinco livros e inúmeros artigos periódicos e virtuais. De modo que ambos nos são temas bem familiares e apropriados para essa ação docente. 405


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Durante o período de observação, percebemos que a professora de Literatura, durante uma aula, trabalhou elaboração de poemas através de um verso de Manuel Bandeira, que reproduziremos abaixo: ESTRELA DA MANHÃ

Eu queria a estrela da manhã/ Onde está a estrela da manhã?/ Meus amigos meus inimigos/ Procurem a estrela da manhã/ Procurem por toda a parte/ Pura ou degradada até a última baixeza/ Eu quero a estrela da manhã (BANDEIRA, 1993) .

O trabalho desenvolvido por essa professora resultou em diferentes poemas, corrigidos e orientados por ela pessoalmente, conforme observamos no estágio. Através do professor de Português, tivemos acesso a um desses poemas, o que me impressionou bastante pelo amadurecimento literário e nenhum erro ortográfico (nome fictício): NOITE ESCURA

Não vi mais estrela/ Nem alta, nem fria!/ Nenhuma centelha/ A luz luzia./ Era uma noite escura! Era uma noite vazia!/ A verdade era dura/ E em meu peito doía!/ Nunca já brilhou/ Essa estrela, Maria!/ Ela dizia que não/ Que era doce e real/ E eu, jogado/ Num dilema infernal! (Karina)

Surgiu a ideia então de trabalhar interpretação, oralidade e produção textual através de um poema de Lucila Nogueira, de teor lírico-romântico, que havia trabalhado na aula de Gênero poético lírico. No livro Dama de Alicante (1991), de Lucila Nogueira, a primeira estrofe desses poemas foi parafraseado, num formato “posfácio”, por outros quatro autores, todos pernambucanos: José Paulo Cavalcanti Filho, Waldemar Lopes, Nelson Saldanha e Edmir Domingues, em criações poéticas belíssimas. Trabalhei com eles, em aulas anteriores, sobre o tema Amor e Romantismo (sentimentos), o que despertou bastante interesse, por se tratar de uma classe de adolescentes, entre 15 e 18 anos em média. 406


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Após 12 horas trabalhando leitura de poemas e mofossintaxe literária (uso de adjetivos e substantivos na poesia), dia 04 de julho, durante 4 horas/ aula, desenvolvemos a oralidade através de um sarau improvisado, em sala de aula mesmo. A vantagem dessa segunda opção foi fazer com que eles ficassem à vontade e trabalhassem um pouco mais a impostação e ritmo, através de leituras seguidas dos poemas, enfatizando paradas para respiração. Procuramos fazê-los entender que a poesia é vida, pulsação, que devemos sentir cada palavra que pronunciamos. Na aula seguinte, distribuímos cópias do livro Imilce (2000), de Lucila Nogueira, em grupos de 2 ou 3 alunos, para leitura silenciosa e futura discussão numa roda de conversa. Dispusemos as cadeiras em círculo, porque isso tiraria um pouco a distância entre professores e alunos e os deixaria mais à vontade. Deu certo e eles se empolgaram muito com a discussão, perguntando sobre como a autora se inspirou para escrever os poemas, a história de Aníbal Barca e como se daria, de forma prática, a construção e um poema em 4 vozes, como é IMILCE, os elementos de teatralização e por que esse texto se configura uma tragédia e não uma comédia. Fizeram também comparações com as guerras atuais, os refugiados, como deve ser desolador o sentimento de abandono por parte da família (mulher e filhos) que permanecem como que órfãos de um chefe de família que tem de ir para a guerra. Levamos, assim, os alunos a refletir que a poesia, na verdade, parte de fatos observados pelos poetas e que o segredo é a transposição, através de palavras certas e ritmadas, para as estrofes, gerando um sentimento de catarse, através da introjeção de sentimentos e confissões do autor. Então, levei-os a entender também que Imilce (2000), além de um canto lírico, era, também, trágico, por falar de um drama (família abandonada pelo provedor que vai à guerra), com elementos miméticos (imitação da natureza), de verossimilhança e narrativos, que o tornavam um gênero híbrido entre a epopeia, o drama e a lírica. 407


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Imilce (2000), assim, apresenta caraterísticas narrativas (portanto, também exercendo a mímesis ou verossimilhança) por contar uma história em versos. Narrativa e lirismo juntos. Nesse poema, destaca-se a sina da mulher do general cartaginês Aníbal Barca, dando também voz à sua mãe e ao seu filho. Fala do sofrimento das guerras, dá voz aos esquecidos da História. Por sua vez, por contar esses mesmos sofrimentos, em forma de versos, é, também, lírico por expressar emoções e sentimentos: Dizem que enlouqueci/porque eu assisto/ dormindo a teu futuro/ e a teu passado:/ ao prazer e á beleza/ não permites/ governar tua vida/ de soldado?/ [...] Dizem que enlouqueci/ eu sou Imilce/ a virgem de Oretania/ visionária/ eu seduzi Aníbal/ e nosso filho/ um dia há de crescer/ povo de Cástulo (NOGUEIRA, 2014, p. 56)

Esse foi o momento (as oito últimas aulas) em que trabalhamos mais a poesia de Lucila, entrando numa análise e interpretação mais profunda de sua obra, especialmente a citada, para partir para a segunda parte da aula: o sarau do livro inteiro com os alunos. Foi feita primeiro uma leitura silenciosa, com nossas recomendações de que relessem quantas vezes fosse necessário para que os versos entrassem em suas mentes e corações, tornassem-se uma voz com a suas vozes. Isso demorou cerca de uma hora, com bastante tranquilidade da nossa parte, pois se tratava de uma experiência mais profunda de leitura de poesia, ao qual eles não estavam acostumados. Nenhum dos professores, mesmo a de literatura, nunca havia feito esse tipo de atividade com eles. Apesar das dificuldades e do estranhamento, por conta da agitação normal da idade, eles conseguiram entrar no clima e depois agradeceram esse momento, dizendo ter sido uma experiência única. No segundo momento desse encontro, após o intervalo, fizemos uma provocação para eles: se seriam capazes de, como os autores que parafrasearam Lucila Nogueira no poema Se inda houver amor, a partir desse mesmo 408


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verso, desenvolverem seus próprios poemas. Para tanto, relemos juntos em voz alta e procuramos orientar as demais perguntas de interpretação. Demos 40 minutos a essa tarefa, que se estenderam por uma hora, para eles escreverem. Como tivemos uma ligação profunda com a autora, sendo monitor de suas oficinas literárias, tivemos noção da técnica que ela usava, baseada em introspecção, através de músicas, filmes e inúmeras leituras de poemas, e através da técnica de sugestão, por meio de uma aula guiada, para que os participantes da oficina entrassem num momento de profunda subjetividade e escrevessem versos através de sugestões (palavras) direcionadas pela autora, durante a oficina, como uma hipnose. Não foi possível realizar exatamente essa técnica aqui, mas adaptamos. Isso foi um pequeno resumo, não tendo a intenção de esmiuçar aqui essa metodologia criada por Lucila Nogueira, que seria muito mais profunda e referenciada do que expusemos aqui. Também utilizamos a antologia poética em apostila, de organização própria, cujo poema de nessa autoria, homenageando Lucila, partindo, também, desse primeiro verso, despertou bastante interesse e perguntas sobre diversas referências que fizemos à obra da autora e à minha própria obra, citando versos de um poema que escrevemos quando da sua morte. Dessa forma, decidimos usar o poema Se inda houver amor porque já havíamos trabalhado com eles em aulas anteriores e, como dispúnhamos de pouco tempo, readaptamos as aulas, além de cumprir turnos cansativos de 4 horas seguidas. Também porque notamos que esse tema de amor e romantismo despertou interesse e ajudaria no engajamento deles nessa atividade. Confessamos que estávamos receosos dos resultados, mas eles nos surpreenderam. Apesar de sabermos que eles já tinham feito esse exercício com a professora de literatura, o cansaço pelas atividades corridas de encerramento das aulas do projeto, junto ao das provas semestrais e de recuperação a que alguns deles tinham se submetidos ao longo dos 21 dias anteriores, nos dei409


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xaram inseguros quanto às consequências disso. Ficamos orgulhosos, porém, ao perceber os resultados, conforme explicaremos na sequência. As temáticas dessas produções de poesia em sala de aula, como não poderiam deixar de ser, retratam o universo adolescente desses estudantes: a descoberta de suas sexualidades, dramas amorosos, os conflitos consigo mesmos e com os colegas e professores, a fragmentação familiar. Mas, também, ironia, irreverência e humor, como no seguinte poema (vamos usar nomes fictícios, por questões éticas): Se inda houver amor/ Não terá aula de Adim/ A paz reinará nas escolas/ E a escola viverá feliz./ Se inda houver amor/ Lamartine voltará/ As notas boas retornarão/ Se inda houver amor/ As notas de Matemática irão melhorar/ Recuperação não existirá/ E no final do ano estaremos livres (Filipe)

Como os colegas podem perceber, Filipe desobedeceu, voluntariamente, ao direcionamento da aula, que foi sugestionado pelas discussões de lirismo, romantismo (sentimento) e amor, para uma realidade cômica de estudante do Ensino Médio, preocupado com provas e notas e demonstrando afeto por determinados professores. Usou, para isso, um tom irônico e irreverente, que nos surpreendeu positivamente. Os demais alunos seguiram mais ou menos esse direcionamento (temática amor adolescente), com destaque para alguns, que já haviam sido pelo professor de Português como sendo prodigiosos e promissores, pois sempre escreviam poemas. Eis: Se inda houver amor/ Eu me atiro/ E me entrego ao desconhecido/ Como um aventureiro em busca da fortuna/ Ou os homens que, incansavelmente,/ Buscam a felicidade./ Se inda houver amor eu prosseguirei/ Atrás de você com todas a forças/ Ansiando nosso reencontro e o momento/ Em que me afogarei no teu encanto./ Ah, se inda houver amor/ Eu prosseguirei/ Buscando-a incansavelmente./ (Sergio) 410


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Se inda houver amor/ Eu não hei de chorar/ Por mais que sentisse que devesse/ Para os males apaziguar/ Se inda houver amor/ Teoricamente deveria me alegrar/ Pois na filosofia de vida eu poderia me inspira/ E cantar com o coração uma canção/ Pra acreditar./ Se inda houver amor/ Não precisarei sentir ou causar dor/ Viver uma vida pacífica sem nenhum temor/ E aproveitar todos os momentos de esplendor/ Se inda houve amor sinto que posso/ Não será necessário imaginar/ Que é possível o inferno atravessar/ Sem se machucar ou suar/ Pois se realmente houver amor/ Os guerreiros podem saber/ Que o caminho que tiveram de percorrer/ Junto às dores que tiveram e sofrer/ Os tornam símbolos da paz/ Que pode vencer cada vez mais (Vinicius)

Percebamos que o poema de Sergio reflete a realidade vivida pelos adolescentes, alunos dessa escola. Os versos de Sergio, porém, demonstram alguma trajetória de leitura e produção textual em poesia, já que sairia de um texto mais descritivo, mesmo em versos para um olhar ainda imaturo sobre o amor, mas já usando palavras de uma riqueza vocabular maior (“Se inda houver amor/ Eu me atiro/ E me entrego ao desconhecido”). Já Vinicius desenvolve um tom mais narrativo. Seus versos poderiam ser escritos em linhas corridas e passaria como um conto e não um poema. Isso não é, obrigatoriamente, um problema, pois os gêneros, na Pós-modernidade ou Literatura contemporânea, mesclam-se, se imiscuem-se. Não é possível definir um conceito claro de cada um desses, mas constatamos, nitidamente, que há um teor de leitura considerável, de um trabalho com textos nesses alunos que, inegavelmente, contribuíram para essa produção textual, resultado escrito de nosso projeto de regência em poesia. Isso já era esperado, mas se confirmou, nessa análise preliminar que pudemos fazer com esses textos poéticos. Tivemos, porém, uma surpresa grande ao ler esses versos, que agora transcrevemos, de Maria Cândida. Essa estudante já havia sido apontada por ambos os professores como sendo um prodígio, ávida leitora e poeta, com di411


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versas postagens em redes sociais (instagram, facebook e blog). Já havíamos observado seu interesse, por das quando participou, ativamente, das aulas anteriores, inclusive lendo poemas. O poema, a seguir, é de sua autoria: E se inda houver amor eu tenho/ E me exponho a cada risco e dano/ E se me atinges sem ressentimento/ Perco-me em desenganos/ Se inda houver amor/ Seis da tarde ou noves-fora/ Eu juro que tenho a dor/ Que ardendo em meu peito mora/ E se inda houver amor/ Telefone ou mande carta/ Que moverei exércitos/ Mais fortes que o de Esparta (Maria Cândida)

Como pudemos analisar, todo poema de Maria Cândida é um diálogo com o de Lucila; ela fala de “ressentimentos”, “desenganos” e “danos’ amorosos; um amor que parece uma fogueira (“Eu juro que tenho a dor/ que ardendo em meu peito mora”), como os versos na voz de Imilce (“o amor me seca os lábios: tudo ferve; meu corpo é um braseiro de perfumes, meus lábios o Etna e o Vesúvio; vem ver-me andar no fogo sobre as águas; eu desejava o mundo como um círio ardendo” (NOGUEIRA, 2000), já citados, anteriormente quando explicamos o teor do livro Imilce. Fora o talento natural da autora/aluna, remetemos esse sucesso, também, ao exercício de leitura profunda, inspirado na metodologia luciliana, como exposto acima, que gerou uma atmosfera de introspecção que ajudou na concentração dos alunos. Os versos de Imilce são aqui reinterpretados na voz autoral de Maria Candida, numa demonstração irrefutável da influência que a leitura de poemas, de uma maneira direcionada e aprofundada, fugindo da historiografia literária e fragmentação, apontadas por Hélder Pinheiro como sendo uma das causas do insucesso da literatura na escola (PINHEIRO, 2008). Nesse sentido, o artigo Caminhos da Abordagem do Poema em Sala de aula (PINHEIRO, 2008) é muito adequado para essa avaliação final do estágio-regência. Nele, Pinheiro explica a importância de falar de poesia, na sala de aula; sobre como trabalhar com o gênero lírico em turmas do Ensino Fundamental 412


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e do Médio; como, também, as dificuldades, enfrentadas pelos professores em sala de aula, fazendo olhar além do livro didático, enxergando essa educação literária tradicional através da poesia como um processo quase burocrático e se seria possível tornar essa aula mais agradável. Devemos levar em consideração também, baseados nessas sugestões de Hélder Pinheiro, o bem-estar causado pela experiência tátil com o livro impresso. Nalguns momentos, ao longo das diferentes aulas, levamos livros de Lucila Nogueira, Ângelo Monteiro e Manuel Bandeira para eles abrirem, prestarem atenção na capa; até cheirarem, se quisessem. Tal procedimento me foi inspirado no trecho do artigo de Pinheiro, citado anteriormente, além da distribuição de livros de nossa biblioteca particular, ao final da regência: Sabemos, por outro lado, que um poema não é só voz, não é apenas som. Ele também articula imagens visuais, olfativas, táteis as mais diversas. Quantas vezes, depois de fazermos a leitura de um poema, vemos crianças, naturalmente, fazendo ilustrações. Esse viés pode e deve ser trabalhado. E aqui talvez seja a hora da atitude que alia reflexão e apreciação. Pensar numa imagem que nos surpreende no meio do poema, mesmo que não tenhamos condições de fazer uma interpretação adequada, precisa ser estimulado em sala de aula. Algumas imagens deveriam ser apalpadas, sugadas, digeridas ou apenas repetidas (PINHEIRO, 2018, p. 27).

Essa experiência no Ensino Médio nos remeteu aos inúmeros projetos que vimos realizando desde 2007, em diversas subáreas da Literatura (pesquisa, edição de livros e organização de eventos literários), sempre através de incentivo governamental (FUNCULTURA), visando estimular a leitura e formar escritores jovens. Em parceria com Raimundo Carrero, nosso coordenador pedagógico, realizamos oficinas literárias, ministradas por estudantes de Letras. Sob orientação desse experiente escritor e formador literário, preconizou-se, nessas oficinas, sobretudo, a leitura de poemas e contos, quiçá 413


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de produção literária autoral, entre estudantes de escolas públicas da Região Metropolitana do Recife (LÍTERIS Formação de Jovens Escritores). Dessas oficinas, com o apoio da Editora Livro Rápido, publicamos uma antologia homônima, destacando os melhores poemas dessas intervenções. Houve algumas surpresas, revelações como os seguintes poemas, que transcreverei agora (nomes de autores fictícios): TRISTE DE SAUDADE Quem passa debaixo da minha janela/ Ultimamente não ouve nada./ SÓ SILÊNCIO./ Eu quero o guardo com luto/ Fechado em meu peito/ Amarrado com tristeza,/ Lamento e Solidão./ Aqui dentro ele dorme/ Como um cão vigia/ Meu grande medo é seu sobressalto/ Ai de mim se me toma de assalto!/ Quem por mim passa,/ Não nota o meu lento e cuidadoso movimento,/ Só mesmo o barulho do vento/ Ultimamente não quero/ Lembrar que eu existo./ (Fernanda) SÓ O AMOR Dizem que a dor e o amor/ Fazem o poeta./ Mas acho que é só o amor:/ Com ele escrevi meus primeiros versos/ Que até hoje ainda sei de cor./ Eu vejo estrelas no céu/ Estrelas do teu olhar;/ Eu ouço o canto dos anjos./ Quando te escuto falar,/ Nasce uma flor no caminho/ Quando te vejo passar./ E era verdade:/ Eu via estrelas no céu/ Estrelas no teu olhar;/ Eu via canto dos anjos/ Quando ela estava a passar./ Depois, sem ele, escrevi meu primeiro/ Poema de desilusão,/ Desses poemas que nascem/ Nas noites de solidão./ Apagou-se a estrela do céu/ A estrela do teu olhar;/ O doce canto dos amigos/ Já não posso escutar./ Até a flor do caminho/ Já começou a murchar;/ Uma vida sem caminho/ É um barco longe do mar./ Dizem que a dor e o amor fazem o poeta,/ Mas acho que é só o amor:/ Quando ele chega, é um poema lindo,/ Quando ele passa, a gente escreve: dor! (Clara)

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LÓRI Chegou e viu o prato,/ Era só prato, mais nada./ Redondo, preto./ Chegou e viu o prato./ Antes flor e prato,/ Agora,/ Prato/ Pra tirar o prato praticamente praticou a dor/ Do avante ainda amava Lóri./ Lóri era a flor, agora sem prato,/ Despedaçada do chão./ A/ Três/ Andares/ E debaixo de um céu preto preto (feito o prato)/ Ela era o que se via com dificuldade/ É que/ Lóri era flor, agora sem prato,/ Despedaçada no chão./ A terra pesada não a salvou/ De tal trágico destino de morrer como a gente/ (Havia morrido Lóri?)/ Quando vento ventou, terra disse: fic!/ Prato disse: vai!/ Mas Lóri se apaixonou pelo vento/ Abriu sua flor antes fechada/ Esticou seu caule antes morto/ Fezse em mil pedaços cor-de-própria pele/ E deu-se ao vento/ Disse que a levasse/ “Não meu em, morrerás em menos de quatro”,/ “Morreria até em três por ti”/ Mais vale três contigo a me transpassar/ Num misto de suave e dolor/ Do que por mil anos me guardar/ Em todos os botões de flor./ Lóri rimava pobre/ Porque isso é o que faz quando se está apaixonado:/ Rima-se pobre./ Desde aquele dia não mais quis saber de lugar certo/ O vento, pra não matar/ Porque descobriu que matar amando/ É mais que viver a vida inteira/ Mas morrer de amor era melhor ainda/ Lóri era flor, agora é meu prato/ Despedaçada no chão./ (Lorena)

Consideramos esses poemas apresentados como resposta positiva para os mais pessimistas, que não acreditam no potencial dos jovens. Reparem que, embora desenvolvam o tema mais comum entre os jovens (as relações amorosas), esses alunos conseguem trabalhar uma criação poética bastante elaborada. Fernanda se desmancha em confessionalismos (isso não constitui, evidentemente, uma crítica, mas de uma constatação da nossa parte), com figuras de linguagem como a comparação (“Aqui dentro ele dorme/ Como um cão vigia”). Remete, também, a seu lamento e solidão. Clara, por sua vez, aprofunda o tema amor relacionando-o à criação poética, relacionando a dor de escrever à dor da paixão, da desilusão, do “coração partido”, experiência que todos nós, algum dia, provavelmente tivemos ou teremos. Lorena, certamente, tem uma obra mais elaborada, demonstrando ser uma leitora profícua 415


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e certamente já poeta, pois trabalha versos inspirados na poesia práxis ou concertista (abaixo, transcreveremos, respeitando a métrica da autora na citação): Lóri era a flor, agora sem prato, Despedaçada do chão. A Três Andares E debaixo de um céu preto preto (feito o prato) Ela era o que se via com dificuldade.

Além de personificar elementos textuais como o vento, criando um rico imaginário na cabeça do leitor, ela faz malabarismos com a ortografia e pontuação, desrespeitando regras de pontuação, numa morfossintaxe poética irreverente; trabalha com o parto e a flor numa interessante comparação, utilizando-se com propriedade de figuras de linguagem, não deixando a desejar a qualquer outro escritor mais experiente ou adulto. Na verdade, se Cabral tira da pedra da Psicologia (A Psicologia da Pedra), Lorena faz com que Lóri tire da flor e do prato um subjetivismo poético de causar inveja. Lembrando que tratamos disso na aula sobre substantivos e adjetivos, nessa oficina da Escola de Aplicação do Recife, o que certamente não foi uma feliz coincidência. Mais que passíveis de crítica literária — confessamos que, em mais de 20 anos como crítico literário, já nos deparamos com versos bem menos trabalhados e inteligentes de estudantes, esses poemas comprovam, sem dúvida, que um investimento, principalmente de tempo com jovens não é “desperdício” ou “falta de foco”; não se está desviando do currículo ou “enchendo linguiça”, jogando fora aulas que poderiam ser eficientemente utilizadas, como afirmam alguns gramatiqueiros tradicionais, em regras gramaticais ou leituras 416


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direcionadas de texto. Essa também é a percepção de Lívia Suassuna, ao falar do perfil atual das aulas de língua materna, em suas aulas de estágio na UFPE e em seus inúmeros trabalhos sobre tipos avaliação e classificação de aprendizagem. A solução vem no sentido contrário a este, investindo-se em leitura e produção autoral, principalmente textos literários. O resultado, além de alunos proficientes na língua, como demonstrado, também está na produção autoral. Isso, indiretamente, estimula os jovens a escreverem e motiva-os a seguir, ou não, uma carreira literária. Mas, com certeza, serão leitores eficientes e produtivos autores, com originalidade e segurança. Prova disso é que alguns alunos, já apontados pelos docentes de Literatura e Português dessa escola, já demonstravam tal vocação, mas, com certeza, foram ainda mais incentivados a adentrar ou aprofundar-se no mundo literário. A formação de cidadãos, através da leitura, ainda tem um longo caminho a percorrer em nosso país; a amostragem desse projeto, desenvolvido em 20 horas/aula, dá indícios de que o Estado falhou, a família falhou, a escola falhou, no quesito educação literária e inserção cultural desses jovens. Não pretendemos — e nem poderíamos, com o curto tempo desenvolvido nesse projeto de regência, colocarmo-nos como “salvadores da pátria”, assumindo, mesmo que temporariamente, o papel de alguns docentes da rede de Educação, que, por inúmeros motivos, deixam em segundo plano a educação literária, com leituras profundas e trabalhos constantes de redação e revisão de textos literários, especialmente poemas. Mas, também, não poderíamos nos omitir em relação ao nosso papel de estagiários de regência, estimulando a leitura entre os jovens, formando leitores cidadãos e conscientes, profícuos interpretadores da realidade, através de produção poética autoral. O que tentamos e consideramos ter alcançado, ao menos, parcialmente, foi despertar esses estudantes para a poesia e também, indiretamente, fazer refletir a postura dos professores-supervisores desse estágio, provando que é possível um trabalho diferente; que é possível torná-los conscientes do mundo e da arte, 417


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através do mergulho nos textos literários e desenvolvimento de produção autoral, que são processos contínuos e interdependentes. Fica então uma lição emocionada e marcante para nós, como docente de Língua Materna, agora já formado, de usar de Literatura, e poemas, sobretudo, em nossas aulas, procurando fazer diferente; indo de encontro à corrente de acomodação e apatia que se abateu sobre os profissionais de educação, ao longo de décadas de falta de investimento público em formação de leitores e estímulo à leitura. Não será fácil cumprir essa missão, nem na escola pública — onde falta, muitas vezes, estrutura, mas se tem um pouco mais de liberdade docente; nem na escola privada, geralmente com um ensino fragmentário, voltado tão somente para o vestibular/ ENEM, dominada por uma ideologia de marcado e competição, com pressão de pais e diretores sobre os professores, no sentido de cumprir um currículo fechado e com poucas brechas para inovações. Será um grande desafio profissional. Portanto, os resultados tímidos, mas desafiadores, desse estágio-regência, devem ser encarados como iniciação dos adolescentes ao mundo da leitura literária mais aprofundada, não-fragmentária, nem historicista; através da leitura e produção poética, nessa oficina literária, vislumbraram-se nas feições desses jovens novos horizontes, fazendo-os enxergar o mundo com novos olhares. Afinal de contas, para que serviria a Literatura, se não para despertar esperança e formar cidadãos, a partir da constatação de indignação com a realidade, tão próprias da adolescência e constituição da pessoa humana?

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Resumo O presente artigo visa abordar a temática da variação linguística em livro didático do 6o ano do ensino fundamental. O objeto de estudo será a caracterização da Perspectiva Variacionista. Buscamos definir, ainda, alguns conceitos de variações linguística. Para essa análise foi consultado o Livro “Língua Portuguesa em Contexto” (LÉCIO,2015). Através da análise do livro pretende-se discutir as implicações das variações linguística, pois o mesmo, aborda a Variação Social, ao mesmo tempo é estabelecido um paralelo entre o livro analisado e o que a sociolinguística tem a dizer sobre esse assunto. Considerando que a língua é dinâmica e está sujeita a inúmeras variações, e essa pluralidade da língua é facilmente observada no Brasil, um país de extensão territorial e multiplicidade cultural significativas. Palavras-chave: Sociolinguística; Variação linguística; Livro didático.


VARIAÇÃO LINGUÍSTICA EM LIVRO DIDÁTICO SEVERINO MANOEL DE OLIVEIRA1 SANDRO LUÍS DA SILVA 2

INTRODUÇÃO Ao longo das últimas décadas, observa-se o crescimento e a preocupação em torno do trabalho com a variação linguística. Parte disso, pode ser atribuído a duas vertentes. Primeiro a constatação das línguas naturais como fenômenos heterogêneos e aptos a análise sistemática, conforme argumenta a sociolinguística (LABOV,2001), isso trouxe uma gama de possibilidades para a observação do fenômeno linguístico. Dessa forma, é evidente que as pesquisas sociolinguísticas realizadas no Brasil, há pouco mais de cinco décadas, vêm comprovando que nossa língua é composta por um conjunto de variedades que mantêm relações notadamente estreitas com as questões socioculturais dos falantes, como também das comunidades de fala das quais fazem parte. Em outras palavras, é notável essa diversidade linguística presente no nosso cotidiano, e essas variações linguísticas reúnem as variantes da língua que foram criadas pelos homens e são reinventadas no dia a dia. Em segundo lugar, nota-se que o público que frequenta as escolas residentes nas grandes cidades tornou-se mais heterogêneo, isso é, em parte 1. Graduando em Letras Pela Faculdade de Ciências Humana de Olinda - FACHO smanoel_oliveira@ hotmail.com. 2. Graduando em Letras pela Faculdade de Ciências Humanas de Olinda - FACHO Sandroluis.2019@ gmail.com. 423


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resultado dos movimentos migratórios de indivíduos que antes residiam em zonas rurais, transferiram-se para zonas urbanas (BORTONI-RICARDO, 2004). Esse êxodo rural, é impulsionado por melhores condições de vida e tem contribuído também para a pluralidade linguística urbana, e tem exigido das instituições de ensino formal condutas mais abertas e concentradas para o trato das diversas realidades sociolinguísticas. Sendo assim, a sociolinguística parte do princípio de que a variação e a mudança são inerentes às línguas e que por isso devem ser levadas em conta na análise linguística. Em outras palavras, a variação não é vista como um efeito do acaso, mas como fenômeno cultural motivado por fatores linguísticos, ou fatores estruturais. O objetivo deste artigo, será analisar os tipos de variedades linguísticas, juntamente com a exemplificação de cada um deles. Considerando que isso reúne as variantes da língua que foram criadas pelos homens e são reinventadas. Dessas reinvenções surgem as variações que envolvem diversos aspectos históricos, sociais, culturais e geográficos. O tipo de variedade linguística escolhida para essa pesquisa é a variação social, tomando por base o livro analisado de língua portuguesa em contexto do ensino fundamental do 6º ano (LÉCIO,2015), no decorrer dessa observação, veremos a diferença de linguagem no falar das pessoas e os motivos envolvidos nessa realidade são percebidos segundo os grupos ou classes sociais. Por exemplo, nos dias atuais uma situação envolvendo um orador jurídico e um morador de rua, o primeiro, é um homem que tem um grau de conhecimento formal, porque possui formação superior e está sempre imerso num ambiente jurídico. Porém, em relação ao segundo, trata-se de uma pessoa que não dispõe de certa habilidade para usar a linguagem formal e usará na sua comunicação as gírias, devido à falta de acesso a escolaridade. Todavia em ambos os casos não se pode dizer que um fala certo e o outro errado, isso seria o que podemos denominar de preconceito linguístico, o que será abordado também no desenrolar desta pesquisa. Somado a isso, será feito 424


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reflexões acerca de tudo que foi analisado no decorrer da pesquisa, e comentários levando em consideração a realidade atual das variações linguísticas algo que sempre é objeto de debates dentro da sociolinguística variacionista, pois a língua é algo sujeito a frequentes mudanças, não é algo estático, é sim uma realidade em constante observada nas sociedades humanas.

FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

Sociolinguística é o ‘‘ramo da linguística que estuda a relação entre língua e sociedade e dá ênfase ao caráter institucional das línguas, se concentra no estudo linguístico dos membros de uma comunidade e de como ele é determinado pelas relações sociais, culturais e econômicas existentes.’’ É importante fazer essa definição para se ter uma compreensão mais apurada acerca do assunto que será analisado, que é variação linguística em livro didático. É relevante frisar que a Teoria da Variação e Mudança Linguística (também chamada Sociolinguística Quantitativa ou Laboviana) tem como objeto de estudo a variação e mudança da língua no contexto social da comunidade de fala. A língua é vista pelos sociolinguístas como dotada de ‘’heterogeneidade sistemática’’, fator importante na identificação de grupos e na demarcação de diferenças sociais na comunidade. O domínio de estruturas heterogêneas é parte da competência linguística dos indivíduos. Nesse sentido, a ausência de heterogeneidade estruturada na língua seria tida como disfuncional (cf. WEINREICH; LABOV; HERZOG [1968] 2006,p.101).

Antes, porém de abordar a variação social que está relacionado ao livro escolhido para esta análise, é necessário fazer a descrição dos tipos de variedades linguísticas, com a exemplificação de cada uma delas e suas possíveis implicações, como por exemplo, o preconceito linguístico que será explorado mais adiante. 425


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A variação regional ou diatópica Variação regional está associada a distâncias entre cidades, estados, regiões ou países diferentes. A variável geográfica permite opor, por exemplo, Brasil e Portugal. O português é a língua nativa de cerca de 250 milhões de pessoas em todo o mundo, o que torna o quinto idioma mais falado no planeta, é a língua oficial de nove países e que se originou em Portugal. Aliás os portugueses representam hoje cerca de 11 milhões de falantes. Mas o que difere o português desses dois países? Vejamos, portanto, algumas diferenças entre o português de Portugal e o português do Brasil, a esse respeito Bergamasco (2016) nos mostra: Brasil. Portugal. Tampa de garrafa cápsula Chopp fino Açougue talho Banheiro casa de banho Celular telemóvel Histórias em quadrinhos Fila de pessoas bicha

banda desenhada

Além disso, na fala eles diferem de nós brasileiros, pois eliminam vogais em alguns casos, por exemplo, menino = m’nino, esperança = esp’rança, e pedaço = p’daço. Em acréscimo a isso, os portugueses não colocam pronomes oblíquos no início da frase por exemplo, ‘’Me dá um presente’’, em vez disso eles dizem, ‘’Dá-me um presente’’, outra observação está relacionada ao pronome ‘’você’’, que deve ser evitado ao máximo, por exemplo na pergunta, ‘’Você é brasileiro?’’, é substituída por ‘’Tu és brasileiro?’’. Observamos que 426


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apesar de Portugal e Brasil compartilhar o mesmo idioma, vemos que muitas palavras são diferentes em relação ao mesmo objeto, mas, como explicar essa variação regional? Para uma reposta satisfatória a essa pergunta, faz-se necessário entendermos o contexto histórico que resultou nessa variação. No período das colonizações saíram rumo ao Brasil portugueses de cinco regiões distintas de Portugal, cada um levando o seu sotaque bastante peculiar. É óbvio que de outras regiões também partiram muitos portugueses para o Brasil, mas citarei apenas 5 regiões, Porto, Lisboa, Algarve, Alentejo e Madeira. Neste período já existiam pelo menos 300 línguas e dialetos indígenas no Brasil. Vamos acrescentar aproximadamente 9 milhões de africanos de vários países que foram trazidos para o Brasil na condição de escravos com suas línguas e dialetos. Todavia, há 300 anos atrás a população do Brasil não passava de 300 mil habitantes, e a partir do século XVIII começaram a chegar ao Brasil os italianos, franceses, espanhóis, alemães, holandeses, ingleses, e mais tarde os japoneses, árabes e ao longo do tempo outras dezenas de nacionalidades de diferentes regiões do mundo chegaram ao Brasil, cada uma delas trazendo seus próprios idiomas. Todos esses povos espalharam-se pelo território brasileiro que é de 8.516.000 m², quase o tamanho de toda a Europa. Com a mistura e união de todos esses povos, originou o Português brasileiro, um idioma com vocabulário rico e repleto de expressões, variações linguísticas com sotaques e características bem particulares e marcantes de cada região deste país.

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A variação social ou diastrática Variação social está associada a diferença entre grupos socioeconômicos, faixa etária, grau de escolaridade, procedência, etc. São percebidas segundo os grupos sociais envolvidos, por exemplo, um orador jurídico e um morador de rua. Variação social, portanto, agrupa alguns fatores de diversidade. O nível socioeconômico, o grau de educação, a idade e o gênero do indivíduo. A variação social não compromete a compreensão entre indivíduos, como poderia acontecer na variação regional, o uso de certas variantes pode indicar qual nível socioeconômico de uma pessoa, e há a possibilidade de que alguém oriundo de um grupo menos favorecido, venha a atingir o padrão de maior prestígio. De acordo com Ramos (1998), na comunidade belorizontina, por exemplo, a forma reduzida do pronome pessoal de 3ª pessoa ele para ‘’eis’’ e ‘’es’’ ocorre com maior frequência e é, portanto, favorecida na fala das pessoas de baixa escolaridade, isto é que têm apenas o 1ª grau. Vejamos então dois exemplos dessa variação linguística abaixo: Chopis Centis

Eu ‘’di’’ um beijo nela E chamei pra passear. A gente fomos no shopping Pra ‘’mode’’ a gente lanchar. Comi uns bicho estranho, com tal de gergelim. Até que ‘’tava’’ gostoso, mas eu prefiro aipim. Quanta gente, Quanta alegria, A minha felicidade é um crediário nas Casas Bahia. Esse tal Chopis Centis é muito legalzinho. Pra levar a namorada e dar uns ‘’rolezinho’’. Quando eu estou no trabalho, Não vejo a hora de descer dos andaime. Pra pegar um cinema, ver Schwarzneger E também o Van Damme. (Dinho e Júlio Rasec, encarte CD Mamonas Assassinas, 1995)

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Vício na fala Pra dizerem milho dizem mio Para melhor dizem mió Para pior pió Para telha dizem teia Para telhado dizem teiado E vão fazendo telhados. (Osvaldo de Andrade)

Portanto, as diferenças linguísticas no âmbito social acontecem em função de as pessoas pertencerem a classes ou grupos sociais distintos. O meio em que vivem os falantes, o ambiente familiar ou o grupo social é caracterizado por normas de conduta e padrões culturais e linguísticos próprios a cada comunidade. Dessa maneira, a semelhança entre as formas de expressão de falantes de um mesmo grupo. As variedades sociais estão presentes também na idade por exemplo, há diferença entre a linguajar da criança e o do adulto, de sexo envolvendo homens e mulheres, e grau de escolaridade que é o caso de um médico e um mecânico.

A variação de registro

As variedades de registro ocorrem em função do uso que um mesmo falante faz da língua nas várias circunstâncias em que produz uma atividade verbal. Conforme as situações em que interação verbal se realiza, a pessoa buscará a forma de expressão que julgar mais adequada. Caso se encontre entre amigos, num jogo de futebol, o falante poderá dizes: “chuta a bola pra mim!’’. Certamente ele não dirá algo como “Solicito-lhe que impulsione a bola com o pé na minha direção’’, uma vez que essa linguagem é inadequada para a situação do momento. 429


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As modalidades da variação de registro classificam-se em: o formal e o informal. E variam conforme o grau de reflexão do falante em relação às formas linguísticas de expressão que constituem o seu conhecimento da língua. O registro formal se caracteriza pela escolha de expressões mais próprias da variedade padrão, sendo usado em situações que impõem ‘’cerimônia’’ entre eles. Conferências, reuniões de negócios, celebrações especiais etc. O registro informal por sua vez, se caracteriza pela escolha de formas de linguagem que atendam às necessidades de comunicação do cotidiano, sem a preocupação com palavras providas de gramática na maneira de se expressar. Nesse caso, exige-se omínimo de elaboração intelectual na seleção das expressões e construções linguísticas.

ANÁLISE

Diante do que já foi comentado nos tópicos anteriores, percebemos que a língua está sujeita a mudanças, não fica estática, o que é exemplificado pelas variações linguísticas existentes. Isso se coaduna com a distinção feita por Saussure entre a investigação diacrônica e a investigação sincrônica, que representa duas rotas que separam a linguística estática da linguística evolutiva. “É sincrônico tudo quanto se relacione com o aspecto estático da nossa ciência, diacrônico tudo que diz respeito às evoluções. Do mesmo modo, sincronia e diacronia designarão respectivamente um estado de língua e uma fase de evolução.’’ (Saussure,1975). Vejamos, portanto, a análise da variação social proposta pelo artigo, e descrita no livro didático do 6ª ano do ensino fundamental.

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A esse respeito, Cordeiro declara:

Chamamos essa diversidade de línguas de variação linguística, um fenômeno que não acontece apenas com o português. Todas as línguas estão em constante mudança, variação, tanto ao longo do tempo quanto durante o dia. Por exemplo: você sabia que, nos séculos XV-XVI, se dizia fror, e não flor? Como somente os nobres falavam fror, esta era a forma considerada ‘’correta’’, enquanto a forma flor, falada pelo povo, era ‘’errada’’. Hoje, entendemos que não existem formas certas ou erradas: o que existe é variação. Toda as formas variantes de uma língua são igualmente ricas expressivas e atendem a todas as necessidades dos grupos sociais que as utilizam. Apesar disso, existe ainda muita discriminação de uma língua ou de uma variante. Chamamos essa discriminação de preconceito linguístico. (CORDEIRO, 2015, p. 37)

Observa-se nessa citação, o uso da variável social flor, sendo usado por parte do povo, e flor por parte dos nobres. As formas em variação, recebem o nome de ‘’variantes linguística’’. Tarallo (1986, p.08) afirma que: variantes linguísticas são diversas maneiras de se dizer a mesma coisa em um mesmo contexto e com o mesmo valor de verdade. A um conjunto de variantes dá-se o nome de variável linguística. Dessa forma, o autor do livro pesquisado, conscientiza os alunos sobre essa realidade dizendo, não haver problema em usar ambos os termos. Uma vez que essas variações visam à comunicação, jamais devemos considerá-las erradas. Ao apontarmos essas alterações como erro, estamos cometendo o que chamamos de “preconceito linguístico’’.

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Utilizando-se de provérbios Cordeiro (2015) continua:

De grão em grão a galinha enche o papo. Beleza não põe mesa. Caiu na rede é peixe. Cão que late não morde. Devagar se vai ao longe. Faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço. Seguro morreu de velho. Filho de peixe peixinho é. Mais vale um pássaro na mão do que dois voando. Cautela e caldo de galinha não fazem mal a ninguém. Em terra de cego, quem tem um olho é rei. Um homem prevenido vale por dois. Quem semeia vento colhe tempestade.

Provérbios, são ditados populares que perduram nas culturas por meio de sua passagem oral de uma geração para outra, sem autoria identificável. Fica evidente a intenção do autor, em trazer essa variante linguística, não ficando apenas com a norma padrão culta exemplificada pela palavra flor. Com esses exemplos pretende-se mostrar que saber uma língua não significa, então, conhecer, aplicar e saber avaliar somente as regras da variedade padrão dessa língua, registradas em suas gramáticas tradicionais. Saber uma língua como o português, por exemplo, significa ter a capacidade de usá-la e, para tanto, dominar as regras constitutivas da língua portuguesa, ou seja, conhecer, aplicar e saber avaliar as regras que são seguidas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os resultados apontaram o caráter da Sociolinguística e seu objeto de estudo, caracterização da perspectiva variacionista, que contribui de forma significativa ao trazer à lume variedades linguísticas presentes em qualquer ambiente social, dentre eles, o escolar. Em função dessa reflexão, um conceito fundamental abordado no artigo é o de que não se justifica mais, no ensino da linguagem, pensar em ‘’certo’’ e ‘’errado’’ como valores absolutos. 432


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É necessário a estimulação pedagógica dos docentes no ensino das variações linguísticas. Somado a isso, é preciso relacionar a avaliação das formas linguísticas às condições em que elas são usadas, analisando sua adequação às circunstâncias da interlocução, o grupo social dos interlocutores, o grau de formalidade da situação, os objetivos e expectativas dos participantes, o gênero textual empregado, entre outros fatores. A variação linguística Para Mollica e Braga (2008) é entendida pela Sociolinguística como um princípio geral e universal passível de análise e descrição científica, como também um fenômeno presente em todas as línguas naturais.

REFERÊNCIAS

BERGAMASCO, Randal. Diferenças entre o português de Portugal e do Brasil. 2016. (5m42s). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=wMHs7zGJ_Hw. BORTONI-RICARDO, S. M. Educação em língua materna: a sociolinguística na sala de aula. São Paulo: Parábola Editorial, 2004. CORDEIRO, Lécio. Língua portuguesa em contexto. 2 ed. Ed. Construir, 2015. LABOV,W. The social stratification of english in New York City. Washington, DC: Center for Applied Linguistics, 2001. MOLLICA, M. C. Fundamentação teórica: conceituação e delimitação. In: MOLLICA, M. C. e BRAGA, M. L. (org.). Introdução à sociolinguística: o tratamento da variação. São Paulo: Contexto, 2008. RAMOS, Jânia. História social do português brasileiro: perspectiva. In: CASTILHO, A. (org.). Para uma história do português brasileiro. Humanitas, 1998. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. São Paulo: Cultrix, 1975. WEINREICH, Uriel; LABOV, William e HERZOG, Marvin. Fundamentos empíricos para uma teoria da mudança linguística. São Paulo: Parábola, 2006.

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ISBN 978-65-87033-09-9


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