Gêneros na linguística e na literatura: Charles Bazerman, 10 anos de incentivo à pesquisa no Brasil

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“Os gêneros são coleções percebidas de enunciados. Os enunciados são delimitados, têm começo e fim, ocupam lugar definido no tempo e no espaço e são percebidos como portadores de algum sentido.” — Charles Bazerman. Série Bate-Papo Acadêmico. v.1 Gêneros Textuais. Recife, 2011. Disponível para acesso em: http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/volumes


Angela Paiva Dionisio Larissa de Pinho Cavalcanti Organização

Gêneros NA LINGUÍSTICA

NA LIteratura

Charles Bazerman, 10 anos de incentivo à pesquisa no BRASIL

Editora universitária UFPE & Pipa Comunicação

Recife - 2015


imagem Da capa

O trabalho Gêneros na Linguística e na Literatura. Charles Bazerman: 10 anos de incentivo à pesquisa no Brasil organizado por angela Paiva dionisio e editado pela Editora universitária da uFPE e pela Pipa Comunicação foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercialSemDerivados 3.0 Não Adaptada. Com base no trabalho disponível em http://www.nigufpe.com.br. Podem estar disponíveis autorizações adicionais ao âmbito desta licença em http://www.nigufpe.com.br.

Picture of Dr. Charles Bazerman taken in Santa Barbara in June of 2008. Fotografia de Paul Rogers. Domínio público. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Charles_ Bazerman#/media/File:Chuck1.jpg.

capa e proJeto gráFico Karla Vidal (Pipa Comunicação)

DiagramaçÃo Karla Vidal (Pipa Comunicação) Augusto Noronha (Pipa Comunicação)

reVisÃo Nadiana Lima

promoçÃo Núcleo de Investigações Sobre Gêneros Textuais - NIG/UFPE

Catalogação na publicação (CIP) D592 Dionisio, Angela Paiva; Cavalcanti, Larissa de Pinho Gêneros na linguística e na literatura: Charles Bazerman, 10 anos de incentivo à pesquisa no Brasil / Angela Paiva Dionisio; Larissa de Pinho Cavalcanti [orgs.]. - Recife: Editora Universitária UFPE e Pipa Comunicação, 2015. 340p. : Il., Fig., quadros. Inclui bibliografia. 1ª ed. ISBN 978-85-415-0670-0 1. Linguística. 2. Literatura. 3. Gêneros textuais. 4. Ensino. I. Título. 410 CDD 81 CDU

c.pc:08/15ajns


Comissão Editorial EDUFPE Presidente: Lourival Holanda Titulares: Alberto Galvão de Moura Filho, Allene Carvalho Lage, Anjolina Grisi de Oliveira, Dilma Tavares Luciano, Eliane Maria Monteiro da Fonte, Emanuel Souto da Mota Silveira, Flávio Henrique Albert Brayner, Luciana Grassano de Gouvêa Melo, Otacílio Antunes de Santana, Rosa Maria Cortês de Lima, Sonia Souza Melo Cavalcanti de Albuquerque. Suplentes: Charles Ulises de Montreuil Carmona, Edigleide Maria Figueiroa Barretto, Ester Calland de Souza Rosa, Felipe Pimentel Lopes de Melo, Gorki Mariano, Luiz Gonçalves de Freitas, Madalena de Fátima Pekala Zacarra, Mário de Faria Carvalho, Sérgio Francisco Serafim Monteiro da Silva, Silvia Helena Lima Schwanborn, Tereza Cristina Tarragô Souza Rodrigues.

Comissão Editorial PIPA COMUNICAÇãO Editores executivos: Augusto Noronha e Karla Vidal Conselho Editorial: Alex Sandro Gomes; Angela Paiva Dionisio; Carmi Ferraz Santos; Cláudio Clécio Vidal Eufrausino; Cláudio Pedrosa; Clecio dos Santos Bunzen Júnior; Leila Ribeiro; Leonardo Pinheiro Mozdzenski; Pedro Francisco Guedes do Nascimento; Regina Lúcia Péret Dell’Isola; Ubirajara de Lucena Pereira; Wagner Rodrigues Silva; Washington Ribeiro.



Prefácio Previsões, Desafios, Agradecimentos Angel a Dionisio (UFPE)

Previsões... ... este deve ser apenas o primeiro livro do autor ... outros deverão seguir em língua portuguesa ... as ideias e as posições defendidas nestes seis ensaios (...) são frutíferas e deverão incrementar entre nós a investigação de caráter sócio-histórico sobre gêneros, além de motivar novas perspectivas para o trabalho com gêneros em sala de aula.

Tais previsões foram feitas, no início de 2005, por Luiz Antônio Marcuschi sobre Charles Bazerman, quando da publicação do livro Gêneros Textuais, Tipificação e Interação1, no Brasil. Constatar a realização de previsões pode instigar nossa curiosidade, aguçar nossa imaginação... Como não havia dúvidas de que as intui1. Bazerman, C. Gêneros Textuais, Tipificação e Interação. São Paulo: Cortez, 2005.


Prefácio

ções marcuschianas foram realizadas, tentei quantificá-las. Confesso que acreditei firmemente que os recursos tecnológicos me ajudariam; ledo engano (ou não sou tão letrada assim...). Contar os livros seria possível, como autor individual são cinco, mas e os capítulos de livros? E em Portugal? E os livros organizados com autores brasileiros e estrangeiros, resultados dos SIGET, não seriam um prolongamento do que fora previsto das ações bazermanianas em solo brasileiro? E as palestras e os cursos ministrados ao longo destes 10 anos que constituem verdadeiros livros orais? Como poderia eu ter a pretensão de quantificar? A minha ingenuidade ficou mais acentuada quando lembrei do próprio Bazerman, alertando que “ao construir um texto, o escritor torna visível aos leitores alguns elementos que entraram ali, representados de modos genericamente apropriados e colocados com outros elementos visíveis”2. Quais artefatos externos eu traria para comprovação? A indicação pela Revista Nova Escola do livro Gênero, Agência e Escrita3, como leitura fundamental para o professor? Mencionar reedições, número de exemplares? Buscar no banco de dados da CAPES as teses e dissertações motivadas pelos trabalhos do Prof. Bazerman? Quantificar os acessos da entrevista com a Profa. Carolyn Miller, disponibilizada pelo NIG? Não parecia fazer sentido. Ecoava em minha memória uma fala de Bazerman que alertava: “É difícil ler nossos textos pensando se eles farão sentido para outros leitores que não nós mesmos. Afinal, fizeram sentido para nós, que os escrevemos e, portanto, olhar para o texto de novo pode evocar apenas a significação que já temos em nossa cabeça.”4

2. Bazerman, C. Escrita, Gênero e Interação Social. São Paulo: Cortez, 2007, p.80 3. Bazerman, C. Gênero, Agência e Escrita. São Paulo: Cortez, 2006. 4. Bazerman, C. Retórica da Ação Letrada. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

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Angela Paiva Dionisio

Já havia iniciado várias versões para este prefácio, mas quando relia, elas não faziam sentindo nem para mim! Desisti de todas. E agora, Angela? Gêneros na Lingüística & na Literatura - Charles Bazerman: 10 anos de incentivo à pesquisa no Brasil está pronto, os autores aguardam a publicação, os tradutores esperavam pelo livro dedicado ao Bazerman... E agora, Angela? Instaurou-se o caos. O livro pronto, mas eu não conseguia escrever o prefácio. Materializava-se a tensão entre a produção e a recepção de textos preconizada por Bazerman. Como minimizar os riscos de interpretação e me fazer inteligível para assegurar que as previsões de Marcuschi não precisavam ser mensuradas? Como dizer a Charles Bazerman que este livro é um artefato para agradecermos o seu engajamento no Brasil nestes 10 anos? Especialmente, como dizer a Bazerman que este primeiro livro com algumas das palestras proferidas em seminários do NIG (Núcleo de Investigação sobre Gêneros Textuais –UFPE) manifesta o carinho, o respeito e o reconhecimento dos niguianos pelo seu apoio e incentivo? Como dizer que o próprio NIG-UFPE nasceu de suas inspirações? Pareceu impossível... concordei imediatamente que “depois de cinco milênios de escrita – em que o letramento se entrelaçou com quase todas as atividades humanas, (...) os recursos e as tarefas de escrita são assustadores.”5 No entanto, também sabia que o “escritor precisa aprender a ver claramente através da ansiedade para reunir a confiança e a coragem de escrever o que precisa ser escrito”.6 Compreendi que a melhor maneira de agradecer a você, Bazerman, não é dizendo “obrigado”. É o nosso agir profissional que deve demonstrar isto! Agradecer a você é continuar fazendo o que você nos ensinou em sua primeira entrevista em março de 2005, em Recife: “a maior motivação e a forma 5. Bazerman, C. Uma teoria da ação letrada. São Paulo: Parábola Editorial, 2015. 6. Bazerman, C. Uma teoria da ação letrada. São Paulo: Parábola Editorial, 2015.

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Prefácio

mais efetiva de ensinar é despertar cada estudante para o sentido de viver no mundo. Através do estudo de textos, podemos ajudar o aluno a compreender o mundo, assim como seu papel nesse mundo. estudar textos socialmente relevantes é estudar a sociedade. Assim, os alunos desenvolvem habilidades linguísticas e sociais que os ajudarão a atuar significativamente na conquista de seus interesses e necessidades.”7 Finalizo, recorrendo a Caetano Veloso, dizendo, Bazerman, que os seus ... livros (...) em nossa vida entraram São como a radiação de um corpo negro Apontando pra expansão do Universo Porque a frase, o conceito, o enredo, o verso É o que pode lançar mundos no mundo (...) https://www.youtube.com/watch?v=AkPozzLSrsM

Assim como Caetano Veloso, consideramos que “os livros são objetos transcendentes, mas podemos amá-los do amor táctil, domá-los, cultivá-los em aquários”. nós, seus amigos, reunidos neste livro, decidimos que poderíamos “simplesmente escrever um”. Pra você, Charles Bazerman, Chuck! 7. Entrevista ao Jornal do Commercio, 1 de março de 2005, caderno C, Entrevista com Charles Bazerman, “A palavra é a chave de tudo”, Recife.

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Angela Paiva Dionisio

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SUMÁRIO PARTE 1 - Linguística

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Apresentando - O tecer de fios para a rede dos estudos sobre Gêneros

Clecio Bunzen (UPFE)

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Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

Carolyn Miller (NCSU/USA)

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Equívocos no discurso sobre gêneros

Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)

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Linguística dos Gêneros e Textualidade François Rastier (CNRS, Paris/FRA)

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Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros Amy Devitt (KU/USA) & Heather Bastian (CSS/USA)

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Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita Beth Marcuschi (UFPE)

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Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização Maria Clara Catanho Cavalcanti (IFPE)

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A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG)


Parte 2 - Literatura

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Apresentando - O arquipélago dos gêneros: uma viagem intelectual Peron Rios (Colégio de Aplicação/UPFE)

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Um giro através da noção de gênero em literatura

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Literatura e Teatro: a palavra no palco

Lourival Holanda (UFPE)

Darío Sánchez (UFPE)

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Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann André de Sena (UFPE)

265

Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor Fabiane Burlamaque (UPF) & Pedro Barth (UPF)

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Poesia, Oralidade e Ensino Hélder Pinheiro (UFCG)

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Literatura dos anos iniciais ao ensino superior: contribuições do gênero entrevista à pesquisa e à formação docente Maria Amélia Dalvi (UFES)



APRESENTANDO O tecer de fios para a rede dos Estudos sobre Gêneros Clecio Bunzen (UFPE) Nós não podemos dominar a móvel rede do sentido nem alisar o líquido tapete das analogias Cada palavra é uma abertura para o insondável antes de ser uma relação horizontal com as outras palavras (...) António Ramos Rosa, in As Palavras (2001, pp.17)

Utilizo-me aqui da metáfora da “rede” – um conceito bastante utilizado nas Ciências Humanas – no intuito de chamar atenção para o fato de que a publicação de uma obra faz parte de um grande sistema de interação social. Se não podemos “dominar a móvel rede do sentido” como propõe um dos versos de Rosa; torna-se sempre um grande desafio contemplar a capacidade dos sujeitos de articulação e rearticulação permanente para compor redes de significação. Pensar em “redes” aponta também para o fato de que pesquisadores brasileiros e estrangeiros, que se envolvem com os Estudos dos Gêneros Textuais, têm trabalhado em “fluxos” de informação, saberes e conhecimentos sobre as diferentes práticas sociais e históricas de linguagem. Congressos, grupos de pesquisa, produções de coletâneas e reuniões sobre Teorias de gêneros normalmente implicam em trocas, em diálogos, em tensões, ou seja, em inúmeros “fios” interpretativos sobre a vida humana com as múltiplas formas de linguagem. 15


Apresentando - O tecer de fios para a rede dos estudos sobre Gêneros

O Núcleo de Investigações sobre Gêneros Textuais (NIG) da Universidade Federal de Pernambuco, criado em Maio de 2010, coordenado por Angela Paiva Dionisio, contribui na formação desses “fluxos” culturais de informação sobre gêneros com encontros periódicos, seminários, grupos de estudo, publicações, entrevistas em áudio e vídeo com especialistas etc. Desta forma, o NIG tem colaborado para uma memória coletiva das Teorias de gêneros com suas diversas publicações (como a série Bate-Papo Acadêmico) que são fundamentais para a formação de pesquisadores das diversas áreas, professores da Educação Básica, tradutores, jornalistas, psicólogos.... Tais redes de interação cultural – com pesquisadores nacionais e estrangeiros- dão origem a percursos, a movimentos contínuos entre diferentes teorias, conceitos, atores, agentes e contextos. O primeiro bloco da obra Gêneros na Linguística & na Literatura: Charles Bazerman, 10 anos de incentivo à pesquisa no Brasil é composto justamente por sete artigos científicos de pesquisadores que contribuíram com o NIG em diferentes tempos-espaços, participando de processos de interação, de construção e desconstrução sobre gêneros textuais e suas teorias. O resultado desta coletânea mostra que as fronteiras das diversas “Teorias de gêneros” não são estáticas, motivando inúmeras discussões e novas perspectivas de trabalho. Cada um dos capítulos objetiva problematizar inquietações teóricas e metodológicas de facetas que compõem esse mosaico em rede que é as teorias dos gêneros textuais. O primeiro capítulo – Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?- de autoria de Carolyn Miller (NCSU) – faz uma tessitura instigante com diferentes campos do conhecimento (Filosofia, Física, Biologia, Retórica, Linguística, Literatura, Estudos midiáticos) para chamar atenção para o fato de que os gêneros, na opinião da autora, “são formas particularmente úteis de se pensar a mudança cul-

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Clecio Bunzen (UPFE)

tural através do tempo”. Situada no campo dos Estudos Retóricos de Gêneros, a perspectiva transdisciplinar adotada na reflexão de Miller, com especial diálogo com os modelos gerais da evolução do campo da Biologia (a Seleção Natural de Darwin, por exemplo), traz questões importantes, tais como: como os gêneros mudam? O que permanece? Os gêneros evoluem? Se hibridizam? Se transformam? Destaco aqui três problemáticas que são centrais no texto: (i) como as Teorias de Gêneros lidam e refletem sobre as formas de nomeá-los, categorizá-los e hierarquizá-los?; (ii) quais critérios têm sido utilizados quando identificamos algo como gênero? (iii) como os estudos retóricos de gêneros podem nos auxiliar a pensar nas “forças de estabilização e adaptação” dos gêneros? Essas questões (e tantas outras!!) constituem a rede intertextual do capítulo que, ao dialogar com a teoria evolucionária no campo das Ciências Biológicas e Humanas, abrem espaço para reflexões sobre taxonomia e teleologia e suas implicações nas Teorias de gêneros. O segundo capítulo, intitulado Equívocos no discurso sobre gêneros, de Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP), retoma (em certo sentido) a discussão de Miller sobre as classificações e definições dos gêneros. Outros fios são tecidos na direção de compreendermos como as teorias de gêneros circulam e são apropriadas em artigos científicos, anais de congresso, revistas, sites educacionais etc. De maneira bastante didática e com exemplos concretos, Bezerra aponta algumas “confusões” ou “equívocos” entre “gênero e texto”, “gênero e suporte”, “gênero e domínio discursivo”, “gênero e forma/estrutura” e “gênero e tipo textual”. Sua análise revela um conjunto de apropriações que podem ser compreendidas como exemplos do que Rafael (2001) chamou de “efeito de sobreposição” entre terminologias e noções teóricas, uma vez que os sujeitos ao mobilizarem diferentes categorias (gênero e tipo textual, por exemplo) colocam “lado

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Apresentando - O tecer de fios para a rede dos estudos sobre Gêneros

a lado termos advindos de fontes diferentes (...), mas que geram uma contradição teórica ou não equivalência de sentido entre os termos” (RAFAEL, 2001, p.165). Os equívocos discutidos por Bezerra demonstram um movimento de redução dos conceitos e sinalizam “modos de apropriação” das Teorias de gêneros pelos sujeitos. Sua reflexão provoca pesquisadores, formadores de professores e agentes responsáveis por políticas públicas a refletirem sobre aspectos epistemológicos que são deixados em “segundo plano” no imediatismo das formas de produção de conhecimento na escola ou na universidade. Linguística dos Gêneros e Textualidade é o terceiro capítulo do bloco. Escrito por François Rastier (CNRS, Paris), as provocações sobre “gêneros”, “discurso” e “tipologia dos textos” polemizam abertamente (BAKTHIN, 1981) com algumas reflexões filosóficas e literárias. Ao defender a importância de uma “linguística dos gêneros”, Rastier chama-nos atenção para diferentes níveis de classificação dos textos e suas implicações para as pesquisas de base semiótica. Ele retoma implicitamente aspectos das Teorias de Gêneros discutidos anteriormente por Miller e Bezerra, apresentando para o leitor aspectos de suas pesquisas no campo da Linguística de Corpus, com ênfase para o fato de que: (i) podemos repensar a afirmação que “um texto pertence a um gênero”, invertendo-a para “o gênero pertence ao texto”; (ii) “o gênero e o texto, de certa forma, interpretam-se mutuamente” e (iii) “nenhum texto é escrito ‘em uma língua’ apenas, ele é escrito em um gênero, levando-se em conta as regras de uma língua”. Partindo de tais afirmações, é possível (re)pensar novos modos de compreender a língua(gem) e a textualidade nas inter-relações entre discursos, campos genéricos e gêneros. Após o conjunto de temáticas elencadas por Miller, Bezerra e Rastier, o artigo Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros, escrito por Amy Devitt (KU) e Heather Bastian (CSS),

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Clecio Bunzen (UPFE)

traz uma preocupação pertinente para a pedagogia dos gêneros: o que sabemos sobre os conhecimentos prévios dos nossos alunos sobre gêneros? Apesar de a pesquisa focalizar o ensino superior no contexto norte-americano, as discussões sobre conhecimentos prévios de gêneros e a relação entre os gêneros produzidos na universidade em diálogo com o que os alunos dizem sobre suas experiências no Ensino Médio sugerem uma agenda de pesquisa para os profissionais que atuam nas escolas e na universidade. De fato, se queremos ensinar algo para nossos alunos, não podemos ignorar o que já sabem, quais são seus saberes, conhecimentos, relações afetivas e quais “gêneros antecedentes” são “potenciais para futuras situações de escrita”. O ensino explícito dos gêneros – como acontece no Brasil e em outros países – pode ser “ineficaz”, segundo os autores, “se o conhecimento prévio não foi levado em consideração”. Por outro lado, ao se levar em consideração os conhecimentos prévios dos alunos sobre os gêneros, precisamos ter cautelas e fazer outros questionamentos, apreciando/ ponderando duas afirmações das autoras: (i) “o conhecimento prévio tanto auxilia quanto inibe o aprendizado de novos gêneros”, cabendo ao docente uma visão ampla do processo de aprendizagem e desenvolvimento dos gêneros em contextos formais de ensino; (ii) “o conhecimento prévio é transferido para novas situações prestativamente”, por isso é importante “se defender dos obstáculos” que o próprio conhecimento prévio cria para os produtores de textos. Beth Marcuschi (UFPE), no artigo Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita, fornece-nos importantes discussões sobre as implicações das Teorias de Gêneros e sua apropriação para o contexto educacional. Problematiza, assim, as complexas redes dialógicas entre as práticas extraescolares e a didatização dos gêneros, transformados via transposição didática (ou elaboração didática) em objetos de ensino-aprendizagem. Categorização dos gêneros (o que seriam

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Apresentando - O tecer de fios para a rede dos estudos sobre Gêneros

memórias? o que seria uma memória literária?), circulação e recepção em diferentes contextos (onde e como as memórias circulam? Apenas na literatura?), assim com a produção na escola e fora dela, são aspectos trazidos pela autora ao analisar textos de alunos, produzidos no âmbito da Olimpíada de Língua Portuguesa. Preocupada em compreender – na mesma direção de Devitt e Bastian – como os jovens escritores aprendem a escrever em um contexto complexo de produção, as análises (do tema, das condições de textualidade e do gênero escolarizado) indicam fragilidades, potencialidades e deslocamentos possíveis e necessários no trabalho com gêneros na escola. O sexto capítulo – Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização – escrito por Maria Clara Catanho Cavalcanti (IFPE), parte também dos estudos retóricos de gêneros para analisar campanhas publicitárias contemporâneas. Os textos escolhidos para análise, bem como os comentários analíticos de aspectos linguísticos, textuais e multimodais (cores, escolha das imagens e construção das cenas), dão visibilidade as formas de mobilização e de apropriação dos conceitos de “tipificação”, “situação retórica” e “exigência” – exploradas também por Miller em seu artigo. O modo como a propaganda comercial e a propaganda institucional é produzida e como seus textos circulam na contemporaneidade evidenciam a importância de estudos desta natureza. Como bem destaca a autora: “os gêneros emanam das relações humanas e também as realizam ou as concretizam”. Nessa mesma perspectiva reflexiva sobre aspectos da Teoria de Gêneros, o último capítulo do primeiro bloco – A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo – retoma as relações explicitadas em vários artigos desta obra entre “texto” e “discurso”. Produzido por Regina L. Péret Dell’Isola (UFMG), a investigação se volta para o gênero relatório de pesquisa, destacando aspectos do discurso acadêmico e do discurso de divulgação científica. 20


Clecio Bunzen (UPFE)

A questão da hibridização “como um fenômeno inerente às formações genéricas e a intertextualidade” provoca-nos a refletir sobre as múltiplas facetas das esferas das atividades humanas, com destaque para a esfera acadêmica e da divulgação científica. Sua análise detalhada do texto “Confirmado: o brasileiro é doido varrido” traz novamente para a cena da teia construída em em “Gêneros na Linguística & na Literatura”: as formas de categorização dos gêneros, dos processos retóricos de sua produção, da intertextualidade (na acepção de Bazerman, 2006), da hibridização de práticas sociais e da tessitura híbrida e heterodiscursiva dos textos (na acepção de Bakhtin, [1930-36] 2015). Isto posto, desejo que os leitores desta obra possam inspirar-se na metáfora da rede para (re)construir suas réplicas responsivas em conversas, artigos científicos, relatórios de pesquisa, memórias, e-mails, árvores genealógicas, poemas... E que a leitura dos artigos possa proporcionar sentimentos de (des)construção, de permanências e de possíveis rupturas das nossas (in)certezas, tais como as escolhas feitas pela moça tecelã de Marina Colasanti. (...) Então, como se ouvisse a chegada do sol, a moça escolheu uma linha clara. E foi passando-a devagar entre os fios, delicado traço de luz, que a manhã repetiu na linha do horizonte. Marina Colassanti, in A moça Tecelã. Global, 2006, p. 14. Referências BAKHTIN, Mikhail. Teoria do Romance I: A estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015. BAKHTIN, Mikhail. Problemas da poética de Dostoiévski. Rio de Janeiro: Ed. Forense-Universitária, 2002. BAZERMAN, Charles. Gênero, agência e escrita. São Paulo: Cortez, 2006. RAFAEL, Edmilson. Atualização em sala de aula de saberes linguísticos de formação: os efeitos da transposição didática. In: Angela Kleiman (Org.) A formação do professor: perspectivas da Linguística Aplicada. Campinas, São Paulo: Mercado de Letras, 2001.

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PARTE 1 Linguística


1 GÊNEROS EVOLUEM?1 DEVERÍAMOS DIZER QUE SIM?2 CAROLYN R. MILLER (NCSU/USA)3 “Sobre aqueles que pisam no mesmo rio fluem outra e ainda outras águas...” Heráclito (DK22B12)

Prólogo Heráclito supostamente disse que tudo está em movimento, você não pisa duas vezes no mesmo rio. Conhecido apenas por fontes secundárias e anedotas, ele supostamente sofria de melancolia e morreu de hidropisia decorrente de uma tentativa malsucedida de autotratamento em um monte de esterco. Era chamado de “obscuro” por seus contemporâneos e de “filósofo chorão” pelos Romanos, e ele teria mesmo chorado, se tivesse previsto o ridículo imposto por seus sucessores aos seus pensamentos sobre as mudanças. Platão e Aristóteles o acusaram de negar a lei da não contradição, defenden-

1. Texto publicado com a permissão da Canadian Association for the Study of Language and Learning. Há um acordo para publicação da versão original “Genre Change and Evolution,” no livro Genre Studies around the Globe: Beyond the Three Traditions, editado por Natasha Artemeva e Aviva Freedman. Edmonton, Alberta: Inkshed Publications, no prelo. 2. Tradução de Larissa de Pinho Cavalcanti (UFRPE), revisão de Rodrigo Farias de Araújo (UFPE), revisão e coordenação de tradução Judith Hoffnagel (UFPE). 3. crmiller@ncsu.edu

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Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

do a identidade de opostos, e alegando que tudo que é o mesmo é, na verdade, diferente. Até hoje, filósofos discordam em como interpretar sua afirmação misteriosa sobre o rio. Teria ele dito que o rio é e não é o mesmo rio? Ou teria ele dito, como alguns sugerem, que “rios podem permanecer os mesmos com o tempo, mesmo que, ou talvez porque, as águas mudam”, isto é, a estabilidade de estruturas maiores só seria possível devido ao fato de que seus elementos constituintes mudam (GRAHAM, 2005)?4 Tem sido menos difícil para nós, agora, aceitar a noção de que tudo está de fato em fluxo constante, nos níveis microscópico e cósmico: sabemos que o universo se expande, que há ondulações da luz, movimento Browniano, spin do elétron, placas tectônicas deslizantes, erosão dos cânions e a elevação das montanhas, a origem e a extinção das espécies. Mas minha premissa é que, no século XXI, ainda temos dificuldades para entender a igualdade e a diferença, a estabilidade e a mudança, a tradição e a inovação no mundo das experiências humanas. Os estudos de gêneros fazem parte dessa dificuldade.

Pensamentos evolucionistas nos estudos de gêneros Parece não haver dúvidas de que estamos em um período de dramática mudança de gêneros: novas formas e capacidades se desenvolvem todo dia, com alegações incessantes nas notícias online e blogs de que isto ou aquilo é um “novo gênero”. Alguém que procure no Google ou Lexis-Nexis irá encontrar inúmeras dessas

4. Ver também Kirk et al., que sugerem que “a unidade do rio como um todo é dependente da regularidade do fluxo de suas águas constituintes”; que “um todo complexo...pode permanecer ‘o mesmo’ enquanto suas partes estão sempre mudando (KIRK, G. S. et al., 1983).

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Carolyn Miller (NCSU)

alegações na mídia, nos materiais promocionais e conteúdos na internet gerados por usuários, incluindo gêneros como aristocrunk, steampunk, pornô tortura, haul videos, lolcats, fanfic, kiddie noir, chillwave, mocumentário, e dirtbags sitcoms. É atordoante. Parece que precisamos de gêneros para nos ajudar a fazer sentido dessa intensa e crescente confusão de gêneros para nos ajudar a nos localizarmos na “loucura e [no] trivial” desse mundo sociocultural mediado (HEFFERNAN, 2009). Tentando entender o processo de mudança dos gêneros e a emergência do que parecem ser “novos gêneros” em mídias novas e velhas, passamos a nos apoiar fortemente no conceito de “evolução”. Esse é um termo que, em inglês, pelo menos, é normalmente associado à mudança biológica e à diversidade, de modo que se poderia perguntar se é apropriado usá-lo para se referir a mudanças sociais e discursivas. O que ele faz ou nos impede de fazer? Quando adotamos a língua da evolução, o que importamos para nossas conceptualizações de gêneros, de ações retóricas de larga escala, e de organizações retóricas da cultura? Como Berkenkotter já havia perguntado, “quão literalmente – ou heuristicamente – devemos tomar o conceito de ‘evolução de gêneros’?” (BERKENKOTTER, 2007). A linguagem da “evolução” permeia obras recentes sobre gêneros, não somente nos estudos retóricos (JAMIESON, 1973; JAMIESON, 1975; BAZERMAN, 1984; MILLER, 1984; BERKENKOTTER e HUCKIN, 1993) e na linguística (HYLAND, 2002; HERRING et al., 2005; SKULSTAD, 2005; AYERS, 2008), mas também nos estudos literários (FOWLER, 1971; JAVITCH, 1998; DIMOCK, 2007) e estudos midiáticos (filme e televisão) (FEUER, 1992; ALTMAN, 1999; MITTELL, 2001), bem como nas ciências da informação e estudos de novas mídias (LIESTØL, 2006; CLARK et al., 2009; KANARIS e STAMATATOS, 2009; PAOLILLO et al., 2011). De fato, não parecemos ter

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Gêneros evoluem? Deveríamos dizer que sim?

nenhuma outra linguagem para descrever como os gêneros mudam com o tempo5. A linguagem da evolução (incluindo metáforas biológicas relacionadas, tais como “cromossomo”, “ancestral” e “genealogia”) invoca uma analogia entre mudanças culturais e mudanças orgânicas ou biológicas com o tempo. Essa analogia contribui para os estudos de gêneros com um modelo que inclui tanto mudanças diacrônicas quanto variações sincrônicas. Com a mudança diacrônica, percebemos as relações, isto é, uma explicação de continuidade através da herança ou influência com o tempo. Com a variação sincrônica, percebemos as formas alternativas e “semelhanças familiares”, as diferenças e semelhanças coexistentes em vários graus. Ambas as dimensões contribuem para a explicação da adaptação ou “valor adaptativo” [fitness], o resultado aparente de um processo competitivo pelo qual variações são selecionadas e preservadas, produzindo mudanças (graduais). “Valor adaptativo”, curiosamente, é um termo frequente em ambas as teorias, retórica e evolucionária: Darwin veio a usar a frase de Herbert Spencer, “sobrevivência do mais adaptado” como sinônimo para “seleção natural”6, e retóricos adotaram a expressão de Bitzer, “resposta adaptada”, como o discurso que é adaptado a sua situação (BITZER, 1968); nós também usamos a antiga noção de decorum (1968). A descrição de Schryer de gêneros como coleções de características variáveis que são “suficientemente estáveis” ou “temporariamente estabilizadas” capturam bem esse pro5. Berkenkotter sugere que o modelo revolucionário de Kuhn de mudanças de paradigma é mais descritivo, pelo menos para o estudo de caso psiquiátrico. E um importante estudo novo de Wells oferece um sistema metafórico espacial ou geográfico para compreender os gêneros, sendo especialmente útil para textos mistos ou duvidosos, como a Anatomy of Melancholy de Richard Burton (WELLS, 2014). 6. Embora não apareça na primeira edição de Origin, Darwin a adotou e atribuiu a Spencer em seu trabalho de 1868, The Variation of Animals and Plants under Domestication: “Essa apresentação, durante a batalha pela vida, das variedades que possuem quaisquer vantagens em estrutura, constituição ou instinto, tenho chamado Seleção Natural; e o Sr. Herbert Spencer tem expressado a mesma ideia em Sobrevivência do mais Adaptado” (6). http://darwin-online.org.uk/content/frameset?itemID=F877.1&v iewtype=text&pageseq=1.

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Carolyn Miller (NCSU)

cesso e poderia muito bem ser aplicada às espécies orgânicas e aos gêneros do discurso (SCHRYER, 1993). Se investigarmos a história dessas ideias, podemos ver “evolução” não como uma simples metáfora ou analogia conveniente para o processo de mudança dos gêneros, mas um conjunto de ideias que tem sido central para o pensamento acerca das mudanças culturais e das mudanças biológicas. O que é de interesse particular é que as tentativas de entender mudança e variação no mundo biológico e no humano surgem quase concomitantemente e se influenciam. São extensos os estudos sobre a história do pensamento evolucionista e não poderia abordá-lo em detalhes aqui, de modo que, para resumir uma longa e complexa estória, começarei com um esboço das fontes das ideias de Darwin acerca da origem das espécies e continuarei com um relato igualmente simples da pesquisa sobre mudança linguística e literária. Em seguida, considerarei duas questões específicas a partir das quais a teoria de gêneros poderia aprender com as discussões em biologia: as questões de taxonomia e teleologia.

Pensamento evolucionário nas ciências biológicas Versões da teoria evolucionista antecedem Darwin em quase um século, surgidas durante a transição do Iluminismo para o Romantismo, dando origem a investigações no mundo natural e na história da linguagem, ambos intrinsecamente ligados desde o começo. Ao examinar as fontes das ideias de Darwin sobre a origem das espécies em paralelo às investigações sobre a diversidade linguística e literária, o que vemos, em ambos os casos, é um processo muito longo e difícil que envolve uma transformação fundamental do pensamento do essencialismo para aquilo que o grande evolucionista do século XXI Ernt Mayr chamou de “pensamento populacional” (MAYR, E., 1982).

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Acredito que essas duas formas de pensamento estão ambas vivas nos estudos de gênero, hoje. O Essencialismo é bem representado pela teoria platônica das formas: a eide fixa, imutável, e distinta ou essências que existem independente do mundo fenomenal, o qual é meramente sua manifestação imperfeita. Para a perspectiva da eide, variações são desinteressantes, meros sinais de imperfeições do mundo empírico. De acordo com Mayr, o essencialismo “dominou o pensamento do mundo ocidental” a ponto tal que é agora difícil para nós compreender (1982). O pensamento populacional, ao contrário, o qual Mayr chama de “um conceito peculiarmente biológico, alheio ao pensamento do cientista físico” (1982), toma o indivíduo único como ponto de partida da análise, não o tipo, valorizando diversidade e variação, em detrimento de abstrações estáveis. É mais empírico e indutivo, menos matemático e abstrato. “Ao introduzir o pensamento populacional”, diz Mayr, “Darwin produziu uma das revoluções mais fundamentais no pensamento biológico” (1982). O pensamento evolucionário na biologia tem raízes nos esforços do Iluminismo para compreender o mundo natural. Os filósofos naturalistas como Lineu, Buffon, LaMettrie, Lamarck, Diderot, Cuvier, e outros incluindo o próprio avô de Darwin, Erasmus (BOWLER, 1989), lutaram para entender o grande plano harmônico pressuposto por ambos teólogos e mecânicos racionais para ordenar o universo. O trabalho de décadas de Lineu para criar uma taxonomia do mundo natural é um dos primeiros e mais importantes de tais esforços. Lineu pretendia representar o plano racional da criação divina dentro de seu sistema de classificação, uma ambição revelada pelo título de seu trabalho: Systema Naturae, publicado em 1735. Ele começou com premissas do século XVIII: as espécies são invariantes, as relações entre as mesmas refletem um sistema único ordenado, e esse sistema possui

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uma hierarquia linear comumente representada como uma torre, uma escada – a scala naturae ou “a grande cadeia de seres” – com a natureza arranjada em ordem de perfeição ou complexidade, conectando o divino através do angelical e, em seguida, o humano ao animal, vegetal e a níveis inanimados da existência (MAYR, 1982; BOWLER, 1989; ver também DENNETT, 1995). Ao desenvolver seu trabalho, todavia, Lineu veio a perceber que o florescente mundo natural não podia ser bem representado por um único sistema linear, que as espécies não eram imutáveis e que espécies similares poderiam estar relacionadas entre si, provavelmente por hibridismo (BOWLER, 1989). De acordo com um estudo de 1957, realizado pelo então presidente da Sociedade Lineana Sueca, “é bem incontestável que Lineu nos anos 1750 tenha desistido definitivamente de sua tese da absoluta imutabilidade das espécies. A evidência mais impressionante... é que... ele removeu a afirmação nullae species novae [não há novas espécies] do prefácio de sua 12ª edição de Systema Naturae [1766] e apagou as palavras Natura non facit saltus [a natureza não dá saltos] em sua cópia de Philosophia botanica [1751]” (HOFSTEN, 1957). Enquanto isso, na França, os philosophes criavam uma “visão de mundo nova, completamente materialista” que incluía as primeiras teorias evolucionárias modernas, que eram também antiteleológicas (REISS, 2009). Os múltiplos volumes de Natural History publicado por Georges-Louis Leclerc, Conde de Buffon, iniciaram o que se tornou o projeto coletivo da anatomia comparada; seu quarto volume (publicado em 1753), mais especificamente, incluía seções sobre cavalos e asnos que usavam homologias anatômicas para especular acerca da relação não somente entre esses dois animais domésticos, mas todos os vertebrados. Algum tempo depois, Georges Cuvier sucedeu seus próprios trabalhos sobre anatomia comparada com uma publicação de 1796 sobre fósseis de elefantes, o mastodonte do novo

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mundo e o mamute siberiano, comparando-os aos atuais elefantes africanos e indianos, alegando que seriam quatro espécies distintas, com a espécie fóssil aparentemente extinta; seu trabalho seguinte, de 1812, com quatro volumes, um estudo de fósseis, é hoje compreendido como o “documento fundador da paleontologia vertebrada” (REISS, 2009). De acordo com um resumo de Reis, “o problema com o mundo natural apresentado para Cuvier ao final do século XVIII era aquele da diversidade da biológica forma, em seu aspecto mais amplo. Esse problema não era somente... como melhor classificar as formas – isto é, como encontrar o sistema mais natural de classificação (o que quer que isso possa significar) – mas também como interpretar o sistema encontrado” (REISS, 2009). Tais problemas – encontrar a base para classificação e entender o que isso significa – devem ser familiares aos teóricos de gênero. A evidência acumulada indutivamente nas grandiosas coleções dos naturalistas – a de Lineu em Uppsala e as coleções reais em Paris com as quais Buffon e Cuvier trabalharam – enfraqueceram a crença em sistemas lineares, hierárquicos como a scala naturae, e as convicções sobre a estabilidade das espécies. Tornou-se possível conceber a natureza como um poder criativo e a criação como um processo aberto (BOWLER, 1989). Em um mundo onde a evidência da mudança orgânica havia se tornado inegável, o projeto explicativo de Darwin, de acordo com Dennet, desdobrava-se em dois: demonstrar que as espécies modernas haviam descendido de outras anteriores, e mostrar como tal poderia ser, isto é, encontrar um mecanismo para descendências com modificações (1995). Sua solução, combinando as dimensões diacrônicas e sincrônicas, envolvia variações aleatórias de características dentro de uma população reprodutora, continuidade e hereditariedade de variações, superprodução de prole, e “seleção

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natural” produzida por competidores para sobrevivência (ou seja, a sobrevivência do mais adaptado7). No longo processo de desenvolvimento de sua explicação, Darwin ocasionalmente representou conjuntamente as dimensões diacrônicas e sincrônicas do problema, como um diagrama-árvore. Uma primeira representação apareceu em um caderno de 1837, no qual ele estava pensando claramente em linhagens de descendência com variações; Bowler nos revela que Darwin logo percebeu que a evolução é um processo de ramificação, exemplificado nas condições de isolamento geográfico observado nas Ilhas Galápagos, e que, em 1837, ele começou a explorar a ideia de variações ordinárias serem a chave para a mudança orgânica de longo prazo (1989). A Origem incluía apenas um diagrama, de uma árvore generalizada para hipotetizar acerca da descendência com modificações e diferenciais de sobrevivência (DARWIN, 1859)8. À medida que entendia o papel da competição e da probabilidade de extinção, Darwin também aceitou que uma explicação materialista era necessária, em detrimento de uma teleológica, e que os desenhos de um Criador não eram necessários ou relevantes para o processo de mudança orgânica (BOWLER, 1989). A teologia natural, assim, foi substituída por uma mecânica natural; a noção das espécies como um tipo fixo é substituído pela população de variantes, e a hierarquia linear da grande cadeia do ser, pela figura de ramos de árvores9. 7. Ver o modelo básico de Dennett da evolução (“maximamente abstrato”) (1995) e o resumo similar de Steven Jay Gould (1977). 8. O esboço do caderno de Darwin pode ser visto em uma exibição online no Museu de História Natural Americano (http://www.amnh.org/exhibitions/past-exhibitions/darwin/the-idea-takes-shape/i-think). Gross (2007) discute a função retórico-conceptual de seu esboço bem como o diagrama publicado em Origem. 9. A importância do esquema-árvore é enfatizada na discussão de Robert O’Hara do “pensamento árvore”, após o pensamento populacional de Mayr; pensar em árvore muda questões de estados para questões de mudança (1988).

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O pensamento evolucionista nas ciências humanas O projeto de Darwin se tornou pensável não somente como resultado do empirismo racional do Iluminismo e do materialismo mecânico, mas também em decorrência da contrapartida intelectual do Romantismo Europeu. O Romantismo desafiava o poder das classificações estáveis e das relações hierárquicas para fazer sentido do mundo, oferecendo, em seu lugar, visões desenvolventes da história (a qual se tornara teleológica para alguns, tema que tem atormentado o pensamento evolucionário desde então) (BOWLER, 1989; REISS, 2009). Além disso, a analogia entre o mundo humano e o mundo orgânico se tornou explícito em muito do pensamento Romântico, bem antes de Darwin, tomando forma em discussões da história da linguagem e da história da literatura. No século XVIII, linguistas haviam estudado a linguagem para entender “o mecanismo da mente”, mas no século XIX, de acordo com Jonahtan Culler, eles se voltaram para o estudo das formas linguísticas “cujas semelhanças e vínculos históricos com outras formas devem ser demonstrados” (CULLER, 1986). A linguística histórica nasceu com ajuda, em parte, dos interesses religiosos em descobrir a “lingua Adamica”, a língua original. Os europeus, ao explorarem o que agora é a Índia, notaram similaridades entre o sânscrito e as antigas línguas europeias, grego e latim; tais observações levaram a propostas, na metade final do século XVIII, de que essas línguas antigas teriam uma fonte comum e que as línguas germânicas e celtas também poderiam estar relacionadas à ampla família Indo-Europeia das línguas (HOENIGSWALD, 1962). Os desenvolvimentos na anatomia comparada inspiraram alguns desses trabalhos. Como Friedrich Schlegel, o poeta alemão e crítico literário, disse em 1808: “o fator decisi-

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vo que solucionará tudo é... a gramática comparativa, a qual nos dará ideias totalmente novas sobre a genealogia das línguas, de modo similar àquele no qual a anatomia comparada iluminou a história natural mais alta” (citado em HOENIGSWALD, 1962). O próprio Darwin na primeira edição de Origem fez uma breve, mas explícita conexão entre a mudança biológica e a mudança linguística pela proposta de que um “pedigree da raça humana” poderia iluminar a classificação e as relações entre as línguas, vivas e extintas (DARWIN, 1859). Uma figura central no desenvolvimento da linguística histórica foi August Schleicher (1821–1868). Schleicher desenvolveu uma visão científica da língua, sem necessidade de axiomas teológicos, argumentando, ainda em 1848, que a língua deve ser pensada como um organismo natural porque línguas podem ser classificadas em gênero, espécie e subespécie (MAHER, 1966), termos que emprestara das classificações de Lineu de um século antes (RICHARDS, 2002). Talvez sua contribuição mais duradoura tenha sido a Stammbaumtheorie, a teoria da árvore genealógica, a qual introduziu diagramas-árvore para mostrar grupos de línguas relacionadas. Em seu estudo sistemático das línguas europeias, publicado em 1850, Schleicher descreveu o desenvolvimento linguístico como um processo evolucionário, “falou das línguas indo-europeias em termos de relacionamentos familiares” (KOERNER, 1972), e propôs que a história de seu desenvolvimento poderia ser representada como um Stammbaum, ou ramificações (RICHARDS, 2002). Em 1853, ele publicou o primeiro de tal diagrama e, por volta de 1860, antes de ler Darwin, os utilizava frequentemente (RICHARDS, 2002)10. Há 10. O diagrama é reproduzido em Richards (2002). Se Schleicher manteve uma visão evolucionista da espécie humana antes da Origem de Darwin (algo sobre o qual se especula), ele claramente a manteve após ler a tradução em alemão (RICHARDS, 2002). De fato, ele defendeu em um comentário em 1863 sobre a Origem que o estudo histórico das línguas poderia ajudar a substanciar hipóteses sobre a evolução orgânica: em particular, que a linguística fornecesse evidências sobre a competição,

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especulações que Schleider desenvolveu sua abordagem para a língua não diretamente de cientistas biológicos, mas de sua educação como filólogo clássico, treinado para criar árvores genealógicas manuscritas, de acordo com a doutrina de erros compartilhados (HOENIGSWALD, 1962). Seu professor, Friedrich Ritschl, também trabalhou na genealogia humana (MAHER, 1966), então a árvore genealógica talvez seja o modelo mais direto para essa forma de representação provada útil em investigações biológicas e humanísticas (MAHER, 1966). A linguística não foi a única ciência humana na qual um modelo evolucionista se fez presente. Na literatura, também, a evidência de diversidade e mudança se tornou difícil de ignorar: o romance, afinal, não encaixava na tríade essencialista do épico, drama e lírico, atribuído a Aristóteles e Horácio e incrustado no neoclassicismo literário11. A poética neoclássica, operando sob as mesmas premissas do século XVIII com as quais Lineu se debateu (a invariabilidade das espécies e a ordem hierárquica de suas relações), é conhecida por suas regras prescritivas, invocadas, diz Duff, para modernizar e cientifizar a empreitada literária (2009). Na visão de Dubrow, “o que engaja os críticos neoclássicos acima de tudo... é repetir e refinar as regras de cada gênero e testar trabalhos particulares contra aquelas normas. Eles também retornam frequentemente ao problema da hierarquia de gêneros, algumas vezes aceitando e outras desafiando o pronunciamento Aristotélico da supremacia da tragédia” (DUBROW, 1982). Como as regras eram criadas a partir de uma seleção estreita de produções poéticas (primariamente os gêneros da antiguidade clássica) a extinção, e a complexidade crescente e, de modo mais geral, que os processos de descendência linguística e descendência humana eram virtualmente idênticos, que a língua e a mente haviam evoluído conjuntamente. Schleicher também apontou que o diagrama-árvore em Origem era hipotético, enquanto seus próprios diagramas eram empíricos (RICHARDS, 2002). 11. Genette esclareceu o quão equivocada é essa atribuição (1992).

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tidas como “atemporalmente imutáveis”, elas provocaram discussões acerca dos valores de obras tal como romances medievais, tragicomédias renascentistas e o romance (FOWLER, 1982). Uma afirmação de John Baillie exemplifica a ênfase dual no essencialismo e nas regras: O genuíno trabalho da crítica é definir os limites de cada tipo de escrita, e prescrever suas distinções próprias. Sem isso, não pode haver perfomance legítima, a qual é a justa conformidade a leis ou regras daquela maneira de escrever na qual cada obra é desenhada. Mas a maneira deve ser definida antes que as regras possam ser estabelecidas; e devemos saber, por exemplo, o que a história é antes de sabermos como ela difere da novela e do romance e, antes de julgarmos como deve ser conduzida (BAILLIE, 1747).

A obsessão com ordem e regras, a qual se estendia além da literatura, para a arquitetura, a música e a pintura, tem sido atribuída a “um profundo medo da desordem na psique individual e no corpo político” (DUBROW, 1982) e caracterizado como uma “reação ao caos e fanatismo de 1640 e 1650” (DUFF, 2009). Tais medos provocaram o que Toulmin caracterizou de “Busca pela Certeza” no começo do século XVII (1990). Essa busca um tanto desesperada, diz ele, provocou uma transformação na filosofia cujos “princípios gerais eram aceitos e casos particulares eram rejeitados[;]... o permanente era aceito, o transitório era rejeitado” (TOULIMIN, 1990). Podemos ver nessa busca um ambiente propício para o essencialismo da teoria neoclássica de gêneros e resistente ao pensamento sobre variação e mudança. O sistema neoclássico de gêneros também serviu a múltiplas necessidades sociais: para poetas aspirantes, críticos cada vez mais influentes, editoras livreiros e bibliotecários, professores e leitores ordinários, o sistema era conveniente, familiar e possuía estruturas de reconhecimento (DUFF, 2009).

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Todavia, o século XVIII era mais que uma reação ao século XVII. Por volta da metade do século, de acordo com René Welleck, “a especulação biológica e sociológica... estimulava pensamentos análogos sobre literatura” (WELLEK, 1963). E a autoridade dos modelos clássicos foi testada pelo que Michael Prince chama de “fatores especificamente modernos”: A ascensão de tipos de literatura não sancionados (tais como o romance) e uma audiência que os favorecia; a tendência de autoras a habitarem gêneros novos e velhos de modos decididamente diferentes...; a fome pelo material impresso de todos os tipos; a competição entre escritores de alta e baixa cultura; a eficácia dos panfletos, das críticas, anúncios, e ensaios ocasionais e periódicos modelando debates sobre cultura; a influência da moralidade da classe média sobre o drama – esses fatores e muitos outros desestabilizaram a autoridade recebida dos gêneros neoclássicos enquanto mantendo atenção sobre os gêneros (PRINCE, 2003)

A atenção à natureza histórica e contingente das categorias culturais a que chamamos gêneros ajudou a lançar o movimento que viria a ser o Romantismo literário e se tornaria típico do mesmo. Duff chama atenção para um número de desenvolvimentos que ilustram o novo papel fluido exercido pelos gêneros, notando, por exemplo, que em várias coleções de poesia publicadas, o “uso de termos genéricos com qualificadores adjetivos [tais como ‘soneto elegíaco’, ‘balada patética’, ‘pastoral sentimental’]... aumentou consideravelmente no final do século XVIII” (DUFF, 2009). Tal mistura de todos os gêneros se tornou um ideal abertamente crítico (DUFF, 2009), com Schlegel declarando que “o imperativo romântico exige a mistura de gêneros” (citando em DUFF, 2009). O próprio título da obra revolucionária de Wordsworth Lyrical Ballads é um exemplo, misturando a lírica

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clássica com a balada popular. Duff também apontou o interesse em gêneros marginalizados e literatura folk ou “primitiva” como evidência dessa nova direção na teoria dos gêneros. Os Românticos associados com o movimento “primitivista”, pressupondo uma autenticidade em civilizações antigas, usavam um método “ramificado” similar àquele de linguistas históricos para ligar formas relacionadas a um anterior “ur-gênero” (Rajan citado em DUFF, 2009). Duff chama o abandono da rigidez estética pelo Romantismo “um episódio notável na história das ideias”, observando que “é necessário um esforço da imaginação para lembrar uma época na qual se acreditava que os gêneros eram estáticos, categorias universais cujo caráter não se alterava com o tempo” (DUFF, 2000). Em um paralelo interessante, Dennett nota que “nós pós-Darwinianos somos tão acostumados a pensar em termos históricos acerca do desenvolvimento das formas de vida que é necessário um esforço especial para nos lembrarmos de que, nos dias de Darwin, as espécies dos organismos eram considerados tão atemporais como os triângulos e círculos perfeitos da geometria Euclidiana” (DENNETT, 1995). Após Darwin, quando o pensamento evolucionista se infiltrava pelos idos do século XIX, tal foi aplicado à literatura na França por Ferdinand Brunetière e na Inglaterra por John Addington Symonds (influenciado por Spencer) (CONLEY, 1986; FISHELOV, 1993); aplicado à tecnologia por Karl Marx e Samuel Butler; e continuou a influenciar o estudo das línguas e da literatura até as décadas iniciais do século XX, quando Saussure persuadiu linguistas a deixar de lado preocupações diacrônicas (assim como já abandonavam metáforas biológicas) e tratar a língua como um sistema (CULLER, 1986). Saussure redirecionou o foco da linguística, emergindo em uma época na qual os estudos da linguagem e da literatura ambos possuíam uma distinta falta de interesse na evolução, tanto que, em 1956, René Wel-

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lek pôde alegar que “cinquenta e seis anos atrás o conceito de evolução dominou a história literária; hoje...parece ter desaparecido quase completamente” (WELLEK, 1963). Como mostra Fishelov, muito da insatisfação literária com a teoria evolucionista derivava de sua falsa aplicação ou de erros de compreensão (particularmente com relação ao determinismo, um tópico abordado adiante) (FISHELOV, 1993). À medida que o interesse no pensamento evolucionista diminuía, também diminuíam os interesses no gênero, em parte em decorrência da contínua oposição romântica à convenção e ao compromisso com a criatividade radical (DUFF, 2000), e, em ambas, literatura e linguística, os estudos de gênero caíram em desgraça durante muito do século XX. Penso que há uma história complexa e interessante a ser contada sobre a revitalização de uma teoria evolucionista de gênero nas décadas seguintes à declaração de Wellek. Não conheço essa história ainda, mas suspeito que ela envolva um número de correntes nas ciências humanas, tais como teoria Gestalt, teoria dos esquemas, teoria de categorias, da psicologia cognitiva; teorias de tipificação e estruturação da sociologia; o interesse de Langer nos “padrões”, e possivelmente a filosofia da linguagem comum, da filosofia; e inclui confluentes, como a noção de Kuhn de “paradigma” e a “teoria de frames”, da psicologia social e pesquisa de mídia. A história paralela a ser contada é aquela dos modelos evolucionistas e seu apelo contínuo aos historiadores no intuito de esclarecer a mudança cultural e intelectual. Thomas Kuhn, por exemplo, ainda que seu modelo para mudanças científicas seja geralmente posto em termos diferentes (aqueles das revoluções políticas), invoca a analogia com a evolução biológica em diversos pontos de seu argumento, notando que o processo que tem descrito é “a seleção por conflito na comunidade científica do modo mais adequado de se praticar a

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ciência do futuro” e mesmo invocando o modelo-árvore: “imagine uma árvore evolucionista representando o desenvolvimento das especialidades da ciência moderna desde suas origens comuns na, digamos, filosofia natural primitiva e os ofícios” (KUHN, 1970). Outros filósofos e historiadores da ciência têm feito da evolução seu modelo explicativo central. Um esforço proeminente é o exame de Toulmin da mudança conceptual dentro do que ele chama “empreitadas racionais” ou disciplinas intelectuais, não com base em uma analogia direta entre biologia (“seleção natural”) e disciplinas (“seleção racional”), mas na proposta de uma “forma mais geral de explicação histórica” de que ambas são exemplos (TOULMIN, 1972); essa “forma geral” é essencialmente idêntica ao modelo “abstrato” de evolução de Dennett, “a sobrevivência diferencial de entidades replicantes [variáveis]”, como Dawkins coloca, a qual é independente de qualquer substrato particular ou forma de expressão (citado em DENNETT, 1995). Outro esforço desse tipo é o “relato evolucionário de inter-relações entre o desenvolvimento social e conceptual na ciência” apresentado com grande atenção à biologia evolucionária darwiniana e pós-darwiniana (HULL, 1988)12. Mas, agora, gostaria de me afastar do esboço histórico para considerar duas áreas específicas nas quais teóricos de gêneros podem aprender a partir dos esforços extensivos e coordenados dos cientistas biólogos para conceptualizar evolução. Irei me concentrar em duas questões centrais para o desenvolvimento da teoria evolucionária: taxonomia e teleologia.

12. O modelo de Hull foi adaptado por Gross e seus colegas para explicar o gênero do artigo de pesquisa científica (GROSS et al., 2002). Arthur tem aplicado uma versão modificada de evolução à mudança tecnológica (2009).

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Taxonomia O problema da taxonomia é representado pelo diagrama-árvore que temos analisado. Que tipos de relacionamentos são mapeados? Qual a unidade de análise? Sob o essencialismo, a unidade estava nas espécies imutáveis, e afinidades e similaridades de relacionamentos. A taxonomia toda pretendia representar “o plano de criação do criador do mundo” (MAYR, 1982). Tais taxonomias auxiliaram a nomear e identificar e, portanto, apreciar a complexidade e beleza da criação. O essencialismo impedia a noção de que as espécies poderiam elas mesmas mudar, ou “transmutar”. A classificação dessas entidades imutáveis era atingida pela “divisão decrescente” baseada na lógica Aristotélica, com a suposição de que essa estrutura “natural” refletiria a “ordem e lógica no mundo criado” (MAYR, 1982). Assim, se começa com categorias facilmente reconhecíveis e amplamente aceitas – tais como árvores, arbustos e ervas – e se divide cada uma dessas em classes subordinadas de plantas com base nas “differentiae” que supostamente representam as “essências verdadeiras desses organismos” (MAYR, 1982) (ver Figura 1). O problema é que houve pouca concordância acerca dessas differentiae, sobre quais similaridades e diferenças são “essenciais”. Por exemplo, no reino animal, era de grande relevância qual a primeira differentia escolhida, se o animal possuía sangue ou não, se possuía ou não pelos, ou se era bípede ou quadrúpede (MAYR, 1982). E quanto às plantas, de acordo com Mayr, “dois botânicos no século XVII não poderiam chegar a uma mesma conclusão” (1982). Tornou-se gradualmente claro que a scala naturae e a suposição de um número fixo e administrável de espécies não poderiam ser adequadas para a complexidade e a multiplicidade no mundo natural.

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animal

inclusão, abstração

bípede

ovíparo

quadrúpede

vivíparo

pelo

sem pelo

segmentação, Variação

Figura 1. Classificação decrescente, baseada em Mayr (1982).

O crescente caos taxonômico levou a uma lenta e quase imperceptível transformação da teoria taxonômica no século após a publicação da 10ª edição do Systema Naturae de Lineu, em 1758. A abordagem alternativa que se desenvolveu – classificação crescente ou composicional – era indutiva e empírica, motivada pelo interesse na diversidade que o trabalho de Lineu havia estimulado e na contínua descoberta e descrição de novas espécies. A classificação crescente começa com a observação e catalogação da variação e diversidade e o agrupamento de organismos por múltiplos aspectos, em vez de um único (ver Figura 2). É o que Mayr chama de “pensamento populacional” (MAYR, 1982). Na classificação crescente o que está sendo classificado não são as espécies, mas indivíduos, espécimes: a espécie não é a premissa de base, mas a hipótese que precisa ser descoberta ou demonstrada. A abordagem essencialista das espécies pressupunha que todos os membros das espécies compartilhavam a mesma essência, que cada espécie era distinta de todas as outras, que cada uma seria constante no tempo, e que a variação dos membros da essência era limitada (MAYR, 1982). O pensador populacional reconhece ambas, variação e continuidades, através dos indivíduos, e o conceito de espécie se torna notoriamente difícil de pontuar. Dennet

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observa que Darwin abriu mão de definir espécie, alegando ser mais prudente considerar tal um termo de conveniência mais que um de princípio (DENNETT, 1995); ele acrescenta que “mais de um século após Darwin, ainda há sérios debates entre biólogos...sobre como definir espécie” (1995). De modo similar, Mayr alega que “provavelmente não há outro conceito em biologia que tenha permanecido tão consistentemente controverso como o conceito de espécie” (MAYR, 1982). Endopterygota

inclusão, abstração

Coleoptera besouros

Diptera moscas

Lepidoptera borboletas

Hymenoptera

moscas-serra

vespas

formigas

abelhas

segmentação, Variação

Figura 2. Classificação crescente, baseada em Mayr (1982); a escala vertical foi depois reconhecida como representando descendência, antes que a inclusão classificatória.

Tudo isso me parece muito com nossas discussões sobre como definir e reconhecer um gênero. Temos nossos essencialistas e nossos pensadores populacionais. Dentre os essencialistas podemos citar Aristóteles, Northrop Frye, e certos estudiosos linguistas e literários. Esses teoristas baseiam suas definições numa essência posta – uma teoria da comunicação que mapeia possibilidades formais, ou capacidades fundamentais da língua. Dentre os pensadores populacionais podemos incluir os etnógrafos e linguistas aplicados, tais como Schryer e Swales, os quais juntam espécimes e os examinam em bus42


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ca de similaridades de aspectos sociais ou linguísticos, desenvolvendo categorias indutivamente. Esses pesquisadores nos ajudam a catalogar a incrível diversidade da atividade comunicativa humana e os modos como ela interage com a mudança social e tecnológica. Mas há outra forma de pensamento que pode esclarecer os gêneros, uma forma que não é totalmente essencialista ou empírica, mas talvez seja algo dos dois. E, para entender esse terceiro tipo de pensamento, temos que voltar ao conceito problemático de espécie, o gênero – o tipo. Para a linguística de corpus ou para os biólogos populacionais, o tipo representa a coleção de espécimes: na prateleira, na gaveta, distribuída pelo meio ambiente. É uma descrição de uma multiplicidade empírica. Para os essencialistas, biológicos ou discursivos, o tipo representa uma capacidade ou possibilidade fundamental. Mas o que aprendemos da sociologia fenomenológica e da psicologia cognitiva é que tipos também podem ser pensados como acordos sociais, reconhecimentos partilhados, sobre o que vale a pena notar no mundo, sobre o que recorre e o que significa. O tipo representa o que nós concordamos que aconteceu e o que esperamos que possa acontecer. Essa é uma abordagem nominalista do problema, o que torna o tipo não uma coleção nem uma essência, mas literalmente um “nome”, ou melhor, o que é invocado pelo fato de nomearmos algo, um “conceito” compartilhado13. Eu já sugeri que gêneros podem ser encontrados onde há nomes para tipos de discurso, isto é, para expectativas compartilhadas sobre qual constelação de aspectos do discurso irá atingir qual ação social: “os gêneros ‘de facto’, os tipos para os quais temos nomes na linguagem cotidiana nos dizem algo teoricamente importante sobre o discurso” (MILLER, 1984). Esse palpite é confirmado pelo trabalho 13. Mayr sugere que o nominalismo medieval influenciou os primeiros empíricos, tais como Francis Bacon, e pode ter sido uma antecipação do pensamento populacional (1982).

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de Rosch na psicologia cognitiva sobre categorização e o protótipo conceitual14, o qual mostra que “categorias são geralmente designadas por nomes”, isto é, nomeamos grupos de objetos em nosso mundo que consideramos ser “equivalentes” de algum modo útil, de acordo com princípios de economia cognitiva e percepção social (ROSCH, 1978). Ademais, a categorização, assim como a evolução, envolve ambas as dimensões: vertical e horizontal (ver Figura 3).

inclusão, abstração

superordenado

animal

mobília

jogo

nível básico

cão

cadeira

video game

subordinado

golden retriever, poodle, Welsh corgi, etc.

espreguiçadeira, cadeira de balanço, poltrona, carteira, etc.

ação-aventura, de tiro, simulação, etc.

segmentação, Variação

Figura 3. Níveis de categorias conceptuais e suas dimensões, baseado em Rosch (1978).

Na dimensão vertical, os nomes mais comuns e úteis indicam o que Rosch chama “categorias básicas”, que indicam o nível mais inclusivo, ou abstrato, que também reconhece o que ela chama de “descontinuidades naturais” na percepção. O nível básico designa categorias que são relativamente fáceis de discriminarmos de variações de fundo e relativamente importantes para interagirmos e falarmos sobre. Membros de categorias superordenadas compartilham me14. Veja a conexão entre categorias e conceitos em Margolis & Laurence (2011).

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nos atributos e são, portanto, menos úteis para propósitos comuns; membros de categorias subordinadas compartilham mais atributos e, portanto, são mais difíceis de discriminar. A pesquisa psicológica se concentra nos objetos do mundo tais como gatos e cachorros, cadeiras e mesas, mas parece razoável supor que os mesmos princípios podem estar ativos com objetos discursivos tais como sonetos, elogias, blogs e videogames. Pesquisadores têm mostrado que “o conhecimento é organizado principalmente no nível básico”, testando quantos atributos as pessoas podem listar para diferentes níveis de abstração (por exemplo, móveis, cadeira, espreguiçadeira), quais categorias crianças aprendem primeiro, e em quais níveis as pessoas podem formar imagens mentais (LAKOFF, 1987)15. Rosch (1978) cita trabalhos corroborantes demonstrando que “categorias de nível básico são codificadas mais frequentemente pelo uso de sinais”: por exemplo, etnobotânicos podem apontá-lo nos nomes de plantas em várias culturas, e outros têm confirmado esse padrão com a língua de sinais (ROSCH, 1978). Na dimensão horizontal, nossas categorias dividem o mundo em unidades repetíveis, para as quais nos referimos quando usamos nomes como “cão”, “mesa”, “reportagem”, “romance”, “blog” e “tweet”. De acordo com Rosch, esses “cortes básicos na categorização são feitos nas...descontinuidades” entre “grupos ricos em informação de atributos perceptuais e funcionais” (ROSCH, E., 1978). Portanto, “a divisão do mundo em categorias não é arbitrária”, mas é baseada na “estrutura de correlação do ambiente” (ROSCH. e MERVIS, 1975). As categorias refletem e constituem a estrutura percebida do mundo social, bastante semelhante aos tipos de Schutz (1970). Uma vez que

15. Rosch cita trabalhos corroborantes mostrando que “categorias de nível básico são codificadas mais frequentemente por signos únicos”: por exemplo, etnobotãnicos podem mostrar tal para nomes de plantas em várias culturas, e outros confirmaram o padrão com a linguagem de sinais (1978).

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as percepções mudam com o tempo, com novas condições e novas capacidades e podem diferir entre grupos sociais, os sistemas de categorias podem não ser estáveis ou consistentes. Se descontinuidades perceptíveis forem relativamente estáveis, todavia, as categorias podem vir a parecer “tipos naturais”, com essências, aspectos criteriosos que discriminam o cachorro do gato, a cadeira da mesa. Mas, assim como os biólogos evolucionistas tiveram dificuldades em identificar espécies, os psicólogos cognitivos têm demonstrado que nossas categorias cotidianas são similarmente difíceis de abordar com uma abordagem essencialista. Como as espécies, nossas categorias não têm limites claros; elas mudam com o tempo, diferentes locais e grupos; elas não produzem taxonomias lógicas baseadas em critérios consistentes (LAKOFF, 1987). Gêneros, tal como Devitt observa em recente discussão de abordagens literárias, são sistemas de contrastes, existentes em relação uns com os outros (DEVITT, 2000). As categorias conceptuais, assim como as espécies biológicas, são melhor compreendias através da noção de semelhanças familiares de Wittgenstein16, em vez de uma essência ou critérios lógicos (ROSCH. e MERVIS, 1975; ROSCH, 1978). Isso significa, primeiramente, que não precisamos de critérios para julgar quão bem um espécime é adequada a uma categoria e, em segundo, que os espécimes dentro de uma categoria não necessariamente compartilham quaisquer aspectos em comum, mas que cada um compartilha pelo menos um aspecto com outro espécime. Dentro de uma família, alguns membros têm narizes parecidos, talvez muitos tenham peles semelhantes ou cor de cabelo, e alguns terão tipos de corpo semelhantes. Alguns podem compartilhar muitos aspectos com outros membros e alguns podem compartilhar apenas um aspecto com apenas alguns poucos. E todos, como uma “população”, compartilharem poucos as16. Para uma breve explicação do tema em Wittgenstein, ver Biletzki e Matar (2009).

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pectos com membros de outras famílias. Uma categoria é um grupo solto com instâncias talvez questionáveis nas margens e outras que parecem bem “centrais” ou mais representativas do conceito. Esses espécimes centrais são “protótipos” mais facilmente reconhecidos. A pesquisa de Rosch mostra que espécimes que funcionam como protótipos são “aqueles que possuem mais semelhanças familiares com outros membros de suas próprias categorias e têm a menor sobreposição com outras categorias” (ROSCH,1975). Na dimensão horizontal, então, a categoria (a espécie ou o gênero) será sempre um pouco confusa, embora o teste relevante seja de utilidade social. Na dimensão vertical, há duas escalas possíveis: uma é o nível de abstração, característico da formação de categorias decrescentes, essencialistas, como praticada por Lineu e por virtualmente todos os biólogos antes de Darwin; a outra é diacrônica, mostrando ancestralidade partilhada, relações de replicação com o tempo, e distinguida por investigações empíricas crescentes. O pensamento biológico tem rejeitado completamente níveis de abstração para o relacionamento diacrônico de ancestralidade compartilhada, pois essa é a escala que explica a evolução em duas dimensões, mudança com o tempo e a existência de categorias sincrônicas – espécie e variações. A pesquisa de Rosch na formação de categorias cognitivas funciona com a escala de abstração, concentrando-se nos níveis nos quais nossas discriminações perceptuais são funcionais. Eu diria que a teoria de gêneros precisa considerar ambas as escalas, uma vez que nossos reconhecimentos partilhados se baseiam nas concordâncias de qual nível de discriminação é funcional e na experiência partilhada com gêneros antecedentes. As consequências para as teorias de gênero são que as categorias de interação retórica que os gêneros representam não são nem “tipos naturais” essencialistas-objetivos nem corpora totalmente

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materialista-empíricos. Eles são, na verdade, conceitos sociais em nível cognitivo “básico” que correspondem com a história experiencial e as necessidades funcionais da comunidade que os postula. Como estruturas interpretativas, eles ajudam a esculpir unidades significativas da nébula de artefatos e estímulos que nos cercam. E são capazes de mudar com o tempo, pois são constituídos não por quaisquer aspectos essenciais, mas por reconhecimentos partilhados. Se quisermos entender porque a combinação de aspectos ocorre como ocorre, então a genealogia, a dimensão vertical, torna-se útil; mas se simplesmente quisermos escrever um bom blog, ou ensinar sobre blogging, precisamos olhar para a dimensão horizontal, a abrangência de variação dos aspectos que são reconhecimentos, funcionais e adequados.

propósito

situação

 evento comunicativo  objetivo (meios)

(fim)

Figura 4. Componentes da situação comunicativa e direcionalidade do propósito comunicativo, baseado em Swales (1990).

Teleologia As anotações de Darwin mostram que, ainda no final da década de 1830, ele praticamente havia abandonado as suposições amplamente aceitas da teologia natural de que a adaptação dos organismos 48


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a seus ambientes resulta de um desenho e que tal desenho requer um designer (BOWLER, 1989). Essas suposições têm se mostrado bem resistentes, todavia, e ainda temos discussões quase vitorianas sobre criacionismo (ou design inteligente), mesmo julgando somente pelos títulos de várias obras recentes escritas para rejeitá-las – O Relojoeiro Cego de Dawkins, Not by Design: Retiring Darwin’s Watchmaker de Reiss, e a obra do próprio Dennett. A “ideia perigosa” de Darwin, na formulação de Dennett, é exatamente essa de que, com o tempo, um algoritmo qualquer pode produzir os efeitos do design, que “os vários processos da seleção natural, apesar de sua subjacente inconsequência, são poderosos o suficiente para ter feito todo o trabalho de design que é manifesto no mundo [natural]” (DENNETT, 1995), que “a biosfera é... o resultado de nada além de uma cascata de processos algorítmicos se alimentando do acaso” (, 1995). Todavia, a linguagem que Darwin escolheu para expressar sua ideia central, “seleção natural”, com suas sugestões de escolha e agência, carrega constantes lembretes de um designer. Dadas a força e a predominância da teologia natural na época de Darwin, sua cautela retórica bem documentada sobre como introduzir as ideias que ele tão bem sabia serem perigosas (ver, por exemplo, CAMPBELL, 1987) e sua própria ambivalência ocasional, ele tem grandes dificuldades em não tratar a seleção natural como um agente, como nesta passagem bem conhecida: “pode ser dito que seleção natural escrutina constantemente, todos os dias, por todo o mundo, cada variação, até a mais sutil; rejeitando o que é ruim, preservando e adicionando o que é bom; trabalhando silenciosamente e insensivelmente quando e onde a oportunidade aparece, para o aperfeiçoamento de cada ser orgânico em relação a suas condições orgânicas e inorgânicas de vida” (DARWIN, 1859). O próprio Darwin aparentemente reconheceu que “seleção natural” foi um “termo ruim” (citado em DENNETT, 1995).

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Se evolução é um modelo geral de explicação histórica que se aplica à mudança cultural bem como à mudança biológica, deveríamos, nós retóricos, também abandonar a teleologia, abrir mão da quarta e final causa? Seria a evolução cultural um algoritmo irrelevante? Ou, já que pensamos em nós mesmos como seres com propósitos, e interpretamos os outros como perseguidores de objetivos, precisamos de um modelo teleológico da mudança, diferente daquele dos biólogos? Essas questões enfatizam a relação entre gêneros e seus usuários e ambientes de uso. E, apesar de alguns de nós sermos tentados a creditar um Designer Discursivo divino, é preciso considerar a questão da agência discursiva individual e sistemática. Para o presente, gostaria de dramatizar a questão através do contraste entre o foco de John Swales no propósito comunicativo com meu próprio foco na exigência retórica, pois essa é uma diferença antiga e que aponta para problemas interessantes na caracterização das dimensões pragmáticas do discurso. Em 1990, Swales apresentou uma “definição operacional” de gênero que oferecia o “propósito comunicativo” como um “critério privilegiado” para identificar os membros de um gênero (SWALES, 1990). Naquela época, e em trabalhos subsequentes, ele reconheceu algumas complicações dessa abordagem, por exemplo, que o propósito nem sempre é legível a partir de um evento comunicativo (seja por um analista ou por um participante), e que o propósito pode ser múltiplo, contraditório, não realizado, facetado, implícito, inefável, insincero e assim por diante (SWALES, 1990; ASKEHAVE & SWALES, 2001) – qualidades que não são úteis em um “critério privilegiado”. Esses reconhecimentos o levaram a não buscar alhures por um critério central, mas a recomendar como o analista pode abordar o problema da identificação do propósito mais responsavelmente: “é sensato abandonar o propósito social como um método rápido ou

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imediato para dividir discursos em categorias genéricas, retendo-o como um valioso resultado de análise de longo prazo” (ver também ASKEHAVE. e SWALES, 2001; SWALES, 2004). Esse critério central, todavia, permanece um tanto misterioso: parece estar centrado no comunicador, o “usuário” ou talvez “animador” do gênero, embora seja necessariamente social e, portanto, não pode ser o mesmo de intenções particulares dos indivíduos. Swales também usa algumas expressões alternativas, equacionando propósito ora com “função” ora com “valor de uso” (SWALES, 2004). De qualquer modo, inferindo a partir de nossa compreensão cotidiana de propósito, talvez pudéssemos dizer que o propósito é o aspecto da comunicação que direciona para um objetivo além do próprio evento comunicativo: um fim para o qual a comunicação é o meio, um estado ou situação, se atingido, que está fora e além e, geralmente, subsequente ao discurso. O objetivo “puxa” o falante ou escritor e o texto e a audiência para si, e o propósito nos liga ao objetivo avant la letter17, é antecipatório. Meu próprio foco tem residido não no propósito, mas na exigência e no termo relacionado “motivo”. Esses talvez sejam tão misteriosos quanto o “propósito” (talvez até mais), mas penso que são diferentes de modos significantes e úteis. Aprendi a palavra “exigência” de Bitzer, e ainda que pense haver muitos problemas com a formulação de Bitzer, ela permanece útil, especialmente quando complexadas com a noção de Kenneth Burke de “motivo” (BURKE, 1969). Bitzer define exigência como “uma imperfeição marcada pela urgência... um defeito, um obstáculo, algo esperando para ser feito, uma coisa que não é o que deveria ser”. Não é um objetivo para o qual se é direcionado, mas um problema do qual é necessário se distanciar: ele motiva ação, empurrando-nos pelas costas, por assim dizer. Um 17. N.doT.: avant la letter,expressão francesa que significa “antes do termo existir”, nesse sentido, Miller enfatiza o aspecto antecipatório da relação entre propósito e objetivo.

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“motivo” é o que nos “move”. A exigência recorrente de um gênero é uma questão não de forças materiais, mas de reconhecimentos, ou o que tenho chamado de “uma necessidade social objetificada” (1984). Ambos, propósito e exigência, são modos de se dirigir à questão “por quê?”, mas oferecem diferentes tipos de respostas. Propósito põe a questão do ponto de vista de um ator: por que está fazendo isso? Qual o seu objetivo ou meta? Ele é teleológico, implicando um movimento para, convidando suposições sobre progresso, melhoria, perfeição e hierarquia, todas se tornaram suspeitas na biologia evolucionista, mas permanecem prospectos tentadores para a cultura humana. Em contraste, exigência, ou o que podemos mais geralmente chamar de função, põe a questão do ponto de vista do sistema: por que isso acontece? O que isso garante não somente para quaisquer atores ou agentes envolvidos, mas também para a estabilidade e a viabilidade do resto do sistema com o tempo? Ela implica um movimento para longe de, invocando suposições sobre instabilidades, perturbações, mas também sobre continuidade e resistência (ver Figura 5). Em propósito, vemos o potencial para mudança e inovação; em função, vemos as forças de estabilização e adaptação. Minha contenção, portanto, é que a função é especificamente útil para pensar sobre gêneros porque ela nos pede para considerar recorrência, repetição, reprodução, enquanto propósito volta nossa atenção para o indivíduo, a singularidade, o momento presente. Se dissermos que um gênero é funcional, então olhamos para como ele satisfaz necessidades recorrentes, “genéricas” dentro de um sistema; se dissermos que um gênero serve a propósitos, não mais olhamos para sistemas ou para o gênero, mas para textos, pessoas e eventos comunicativos específicos, e temos que explicar replicação em função de ações múltiplas, individuais, estratégicas.

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situação retórica

situação retórica recorrente

instituições tecnologias

exigência

tradições

FUNçÃO

ação comunicativa

adoção

(fim)

pessoas

Figura 5. Componentes da situação comunicativa e direcionalidade da função comunicativa, baseado em Miller (1984).

Eu não quero sugerir que gêneros não permitem inovação, mas que requerem que nós consideremos inovação em contexto de replicações imperfeitas e estabilizações incompletas; e penso que é exatamente isso que o modelo evolucionário enfatiza. Na biologia, algumas inovações (a maioria, de fato) não são funcionais e muitas são destrutivas. Inovações não funcionais podem ser replicadas, podem adquirir função e se tornarem favorecidas, ou podem ser rapidamente eliminadas porque os organismos que as carregam não podem reproduzir. Mas elas estão sempre sendo julgadas pelo sistema, pelas interações entre o organismo e seu ambiente. O pensamento evolucionário volta nossa atenção não somente para a recorrência, mas para o sistema ecológico, o ambiente, no qual ambas, inovação e recorrência, têm significado e são julgadas. Se adotarmos o modelo mínimo da mudança evolucionária e postularmos que gêneros mudam pela “sobrevivência diferencial de entidades replicantes [variáveis]”, 53


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então qualquer gênero adquire reconhecimento como gênero, em virtude de ter sobrevivido, isto é, ter sido replicada suficientemente. E o valor de sobrevivência para um gênero significa que existe reconhecimento social, realizações práticas e satisfações no mesmo sob a forma de ação social. Isso, novamente, significa que o gênero é funcional. Mas, ao mesmo tempo, a sobrevivência pela replicação também significa que o gênero mudou, uma vez que replicar não é duplicar, e mesmo porque o fato da replicação muda a importância de sua força e padrões. Podemos aqui ver alguma similaridade com a noção de Fishelov de “produtividade genérica”, qque ele oferece como “indicação” da sobrevivência em vez de procurar a sobrevivência na recepção (FISHELOV, 1993). Como Fishelov coloca, um gênero é produtivo quando “exerce um papel ativo na cena literária”, ou seja, quando “as obras de um gênero servem como ‘estímulo’ para a produção de outros textos percebidos como ‘pertencentes’ a esse gênero” (FISHELOV, 1993). A produtividade genérica é uma noção útil, mas com duas ressalvas. Primeiro, a produtividade pode tomar formas outras além da produção de novos textos por outros retores: um gênero é produtivo também quando é reconhecido e respondido, quando é “replicado” nas mentes dos outros. Então, mesmo um gênero com poucos textos instanciadores pode ser produtivo e, portanto, sobreviver. A segunda ressalva trata da rejeição por Fishelov da recepção como marcador de sobrevivência evolucionária, uma rejeição que acompanha seu foco nos “textos” e não na ação comunicativa (e que eu atribuo a seu treinamento na literatura e não na retórica). Na evolução cultural, a produção e a recepção são marcadores interdependentes da “sobrevivência”. Como Fishelov mesmo pontua, a relação entre produção e recepção é “dialética” (FISHELOV, 1993); ou seja, a adaptação atua em ambas as direções: a produção se adapta

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ao ambiente (tanto em sua dimensão específica quanto na sistemática), e o sistema receptivo é remodelado pelas ações contínuas de seus constituintes. Os gêneros, eu sugeriria, são formas particularmente úteis de se pensar sobre a mudança cultural através do tempo: porque são veículos de reprodução cultural, eles nos fazem olhar para a produção e a recepção, para propósitos particulares (e como esses se tornam reconhecíveis para outros dentro de um sistema de limitações múltiplas) e funções sistêmicas. Quero sugerir, então, que pensar em termos de função pode nos ajudar a entender a mudança de gêneros devido a seu foco na recorrência e no sistema de gêneros como um todo, e que o modelo geral da evolução pode ser produtivo nesse sentido. Mas não deveríamos levar a analogia muito longe, além de um modelo mínimo18. Os biólogos evolucionários nos dizem que os únicos “propósitos” que genes e organismos possuem é replicar a si mesmos: essa é sua teleologia. Na teoria dos gêneros, devemos estar aptos a levar em consideração o fato experiencial de que nós somos seres com propósitos de outras formas (ou deveria dizer “adicionais”), e nossa compreensão de mudança de gênero deve ser capaz de considerar as singularidades, do indivíduo determinado ou inspirado ou disruptivo e de situações surpreendentes e inéditas, pois essas são as fontes da variação, sujeita às pressões da seleção que incluem não somente convenções culturais, condições e valores culturais, mas também o propósito de outrem. Meu argumento é que, para tornar tais especificamente relevantes para a teoria dos gêneros, devemos olhá-los sob o aspecto da recorrência e do sistêmico. O desafio para os estudos de gênero - nos estudos retóricos de gênero, em particular – é responder a ambas as

18. Para mim a teoria dos memes, sugerida por Richard Dawkins como uma maneira de pesar sobre a mudança cultural em termos evolucionistas leva a analogia longe demais, procurando análogos dos mecanismos de reprodução e seleção. Mas isso é tema para outra ocasião.

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dimensões apropriadamente, em direção ao propósito e em direção à função. Devemos estudar a variedade de influências na mudança histórica e, portanto, os múltiplos fatores que uma teoria evolucionista deve reconhecer. Quando os esforços de intenções de agentes individuais fazem a diferença? Quando instituições, forças econômicas e de mercado, sistemas e estruturas, o peso da tradição surtem efeito? Que tipo de influências possui a tecnologia? Para concluir, não quero que entendam que sugeri que nossa compreensão de mudança cultural faça empréstimos da biologia. Na verdade, estou sugerindo que a evolução é um modelo de mudança mais geral que a biologia ou a linguagem, que se aplica igualmente, mas diferente a ambas. E não estou advogando que nos tornemos taxonomistas dos gêneros, ou que desenhemos árvores genealógicas dos gêneros que ensinamos ou estudamos, ou que abandonemos a noção de propósito ou intenção na compreensão do nosso ambiente sociodiscursivo e nossos modos de interação. Eu quero instar que nos tornemos conscientes das pressuposições que fazemos sobre essências e antecedentes, de como e por que identificamos algo como gênero; que nos tornemos alerta para as diferenças entre classificar por abstração e classificar por descendência; que distingamos propósito e função e suas implicações para agência pessoal vs. pressões sistêmicas e situacionais. Temos muito que aprender sobre o processo de mudança de gênero e a emergência de novos gêneros, e precisamos de todas as ferramentas que pudermos encontrar. Espero que esse olhar sobre a teoria evolucionista possa ser útil nesse sentido.

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“Se eu acho que é educacionalmente apropriado que eles [os alunos] cheguem a um lugar ainda não familiar, posso tentar levá-los até esse lugar por um caminho que eles possam entender e negociar, em vez de ensinar coisas distantes e estranhas em termos de gênero, esperando que, por acaso, eles compreendam.” — Charles Bazerman. Série Bate-Papo Acadêmico. v.1 Gêneros Textuais. Recife, 2011. Disponível para acesso em: http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/volumes


2 EQUÍVOCOS NO DISCURSO1 SOBRE GÊNEROS Benedito Gomes Bezerra (UPE/UNICAP)2*

Primeiras considerações Parece consenso que, nos últimos anos, os gêneros entraram na ordem do dia para o estudo, a pesquisa e o ensino de língua. Em nível mundial e nacional, variadas perspectivas para a abordagem dos gêneros estão disponíveis para pesquisadores, professores e estudantes. Com as elaboração e publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o ensino de língua portuguesa na segunda metade da década de 1990, a temática dos gêneros, antes mais restrita aos círculos da pós-graduação, firmou-se também no horizonte de trabalho dos professores de língua nas escolas brasileiras, tornando-se uma questão central também para a educação básica. Entretanto, um certo tempo de experiência em lidar com o tema indica que a inserção da categoria de gênero como norteadora do ensino de língua não se fez sem problemas para as compreensão e apropriação de estudantes de graduação e pós-graduação e docentes da educação básica. 1. Usarei aqui o termo “discurso” em um sentido menos técnico, como dizem definições não especializadas, de “exposição metódica sobre certo assunto” ou “um conjunto de ideias organizadas por meio da linguagem” ou ainda como “raciocínio” sobre certo tema. Ou seja, o que certas pessoas, especialistas ou não, dizem sobre os gêneros quando falam sobre gêneros. 2.*E-mail: beneditobezerra@gmail.com

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Equívocos no discurso sobre gêneros

Em parte, a explicação para o fato parece se encontrar exatamente em que se trata de uma história recente. Os professores e por vezes, aparentemente, a própria academia ainda não teriam tido o tempo necessário para amadurecer o conceito e todas as suas implicações. Biasi-Rodrigues (2002) se perguntava se a ideia da diversidade de gêneros no ensino seria um “novo modismo com velhos pretextos”, uma vez que, na sua visão, “a apreensão do novo objeto de conhecimento ainda se encontra[va] em processo” (p. 49). Nessa mesma ocasião, a autora fazia referência a como os PCNs utilizavam o termo gênero “demonstrando uma familiaridade no uso desse termo que, muito provavelmente, não é correspondida pelos leitores, pois certamente muitos deles sequer tiveram tempo de digerir a novidade” (p. 56). Pouco mais de uma década depois, é evidente que a temática dos gêneros disseminou-se de maneira inusitada, sem precedentes, fazendo jus à afirmativa de Marcuschi (2008, p. 147), quando lembra que “o estudo dos gêneros não é novo, mas está na moda”. Na verdade, apesar da frase de impacto, o que Marcuschi realmente queria ressaltar é que “hoje se tem uma nova visão do mesmo tema” e que “seria gritante ingenuidade histórica imaginar que foi nos últimos decênios do século XX que se descobriu e iniciou o estudo dos gêneros textuais” (p. 147). Seria ingenuidade inclusive imaginar que o estudo dos gêneros nas perspectivas contemporâneas se deve exclusivamente à existência dos PCNs. Modismo, moda? Não importa. O fato é que a questão dos gêneros está posta e é preciso lidar adequadamente com o conceito para que, afinal, a sua aplicação ao ensino de língua, interesse primordial no contexto brasileiro, se dê da maneira mais produtiva possível. Herdeiros que somos de uma tradição de estudo e ensino do texto como categoria abstrata e difusa, centrada no conceito de ti-

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pos ou sequências textuais, depois de quase duas décadas de discussões mais intensas sobre gêneros, ainda nos deparamos com certas confusões em sua conceituação. Esses equívocos, conforme ilustrarei com exemplos de variada procedência, não se circunscrevem aos professores da educação básica ou aos estudantes de graduação, mas são igualmente verificáveis no discurso acadêmico em nível de pós-graduação, além, é claro, de se encontrarem abundantemente em formas mais populares de publicação na Web, tais como blogs e sites dedicados a temáticas educacionais. Entre os equívocos a que gostaria de me dedicar aqui, destaco a confusão entre gênero e texto, gênero e suporte, gênero e domínio discursivo, gênero e forma/estrutura e gênero e tipo textual. A discussão desses equívocos se apoiará em exemplos retirados de diversos trabalhos sobre gêneros, de variada procedência teórica, a maioria deles disponível na Internet. Minha pretensão, com os exemplos apresentados neste trabalho, é apenas ilustrar, à guisa de ensaio, cada um dos equívocos apontados, numa abordagem inicial ao problema. Não houve a pretensão de um rigor metodológico no que tange à seleção de um corpus homogêneo, uma vez que os textos analisados abrangem tanto trabalhos científicos como escritos mais populares de divulgação. Trata-se de escritos diversos sobre gêneros, produzidos no Brasil e veiculados em artigos científicos, dissertações, blogs e sites educacionais, envolvendo não só autores da área de Letras, mas também das áreas de Comunicação e Educação, que por razões diversas se interessam pelo fenômeno. A organização do texto é simples. Primeiramente, enfoco os pontos que designei como equívocos no que diz respeito à relação entre gênero e texto, suporte, domínio discursivo, forma/estrutura e tipo textual. Nas considerações finais, traço algumas reflexões mais

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Equívocos no discurso sobre gêneros

abrangentes sobre a relação entre os pontos discutidos e os conceitos de gênero, texto e discurso.

Gênero e texto Se, como afirma Marcuschi (2008, p. 154), “é impossível não se comunicar verbalmente por algum gênero, assim como é impossível não se comunicar verbalmente por algum texto”, os conceitos de gênero e texto se mostram tão próximos que não admira que sejam objetos de confusão teórica. Para ilustrar essa confusão, em que o texto é identificado diretamente com o gênero, vejamos o seguinte exemplo, colhido de uma dissertação de mestrado recente, então em construção: Exemplo 1. Gênero e texto em dissertação de mestrado

Os gêneros [charge e placa] são misturados e, tanto um quanto o outro são necessários para que o propósito que o enunciador pretende seja alcançado. [...] O criador da charge juntou os dois gêneros intencionalmente. (Fonte: Dissertação de mestrado em construção)

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No exemplo, o estudante apresenta a imagem da personagem Mafalda refletindo sobre os dizeres da placa e faz o comentário reproduzido acima. Percebe-se, pela análise do mestrando, que o texto em sua materialidade é tomado como equivalente aos gêneros aos quais faz referência do ponto de vista composicional. Entretanto, o gênero não deveria ser confundido com o texto que o “materializa”. Na realidade, esse modo de descrever o fenômeno, bastante comum na literatura especializada, pode se revelar extremamente enganoso. Em que sentido o gênero “se materializa” no texto? Penso, antes, que do gênero jamais se pode dizer que “se materializa”. Apenas o texto pode ser descrito como tendo um aspecto material ou uma materialidade linguística3. Quanto ao gênero, numa concepção sociológico-retórica, é bem definido por Bazerman (2005) como um “fenômeno de reconhecimento psicossocial”, passando, portanto, bem longe de qualquer aspecto material. Numa linha de raciocínio semelhante à de Bazerman, a distinção entre gênero e texto é colocada com clareza por Carolyn Miller em sua entrevista na Série Bate-Papo Acadêmico, publicada pelo Núcleo de Investigações sobre Gêneros Textuais (NIG) da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE): O gênero é [...] uma questão de acordo social. O texto tende a ser um material determinado, ou um modo de materialização de um enunciado ou de um trecho de discurso verbal. São designações de dois domínios conceituais muito diferentes. Eu de modo algum os usaria um pelo outro (MILLER; BAZERMAN, 2011, p. 21).

3. É conveniente ressaltar que os termos “material”, “materialidade” e “materializar” são empregados aqui sem nenhuma conotação filosófica especial, mas apenas no sentido de que o texto, ao contrário do gênero, tem sempre um componente material, visível na escrita e audível na fala, ao ser atualizado a partir de recursos disponíveis no sistema linguístico e noutros sistemas semióticos.

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Equívocos no discurso sobre gêneros

Assim, uma descrição mais acurada do exemplo em questão, ao invés de afirmar que o “criador da charge juntou os dois gêneros”, deverá ressaltar que o texto, tal como foi construído, remete às convenções de dois gêneros distintos, a placa e a charge, sendo afinal identificado como pertencente a este último em decorrência dos propósitos comunicativos que realiza.

Gênero e suporte Eis aqui uma questão importante, mas que raramente foi tratada com a seriedade devida, constituindo uma exceção honrosa o ensaio de Marcuschi intitulado “A questão do suporte dos gêneros textuais” (2003)4. A propósito da temática, convém evocar aqui a constatação de Fraenkel (2004): enquanto a área de história desenvolveu disciplinas inteiramente voltadas para o suporte como objeto de estudo (epigrafia, papirologia, codicologia, paleografia)5, as ciências da linguagem paradoxalmente têm ignorado quase por completo o papel do suporte na comunicação escrita. Consequentemente, a confusão entre gênero e suporte será um equívoco relativamente frequente no discurso sobre gênero, inclusive no discurso científico na área dos estudos da linguagem. Vejam-se os exemplos:

4. Também dignas de nota são repercussões do trabalho seminal de Marcuschi, como ocorre em Costa (2008), com suas “contribuições ao debate sobre a relação entre gêneros textuais e suporte”. 5. Em parte com base nessas disciplinas de natureza histórica, desenvolvi todo um capítulo de minha tese de doutoramento (BEZERRA, 2006) caracterizando e discutindo o livro como suporte de variados gêneros.

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Exemplo 2. Gênero e suporte em artigos científicos: gêneros digitais Diálogos online: as intersemioses do gênero Facebook O gênero emergente Facebook proporciona, através de sua plataforma colaborativa [...] (Fonte: Revista Ciberlegenda, n. 25, 2011) Exemplo 3. Gênero e suporte em artigos científicos: escrita convencional O gênero outdoor apresenta um discurso publicitário que atinge um público heterogêneo de grande proporção. (Fonte: Revista Interdisciplinar, v. 5, n. 5, jan.-jun. 2008)

Quanto à relação entre gêneros e suportes digitais, caso do exemplo 2, Marcuschi (2003, p. 34) apresenta a seguinte análise, que, embora não se refira ao Facebook, oferece um parâmetro para a distinção entre o conhecido site de redes sociais e a noção de gênero: Para alguns autores a homepage e até mesmo o portal é um gênero, mas para outros é um suporte. Pessoalmente imagino que se trate de um serviço no caso dos portais de servidores, mas já não teria tanta certeza no caso de homepages pessoais. De um modo geral a homepage é um suporte e não um gênero.

Concordando-se com a visão do autor, o Facebook seria mais propriamente um suporte, uma vez que ali se instanciam textos em diversos gêneros. Seria também um “serviço” no sentido de uma ferramenta virtual que possibilita a formação e a manutenção de inúmeras redes sociais, cujos membros utilizam gêneros típicos do meio para interagir socialmente. Vale dizer ainda que, entre os pesquisadores que se dedicam a estudar os gêneros digitais, pelo menos no 69


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contexto brasileiro, não há um consenso sobre qual seria exatamente o suporte desses gêneros6, mas dificilmente um desses especialistas defenderia o Facebook como um gênero. Um ponto de vista dessa natureza implicaria novamente a diluição das fronteiras entre gênero e texto, além de criar a inusitada e talvez impossível situação em que um gênero não abrangeria “uma classe de eventos comunicativos”, como define Swales (1990), pois o Facebook se constituiria como o único e enorme texto de seu próprio gênero. Ou, alternativamente, seria necessário considerar os diversos “facebooks” de cada usuário como instâncias textuais do “gênero Facebook”, desconsiderando ainda a diversidade de gêneros que efetivamente é mobilizada nos variados textos que possibilitam a interação social via Facebook. Em seguida, analisando o exemplo 3, encontramos uma identificação relativamente comum do outdoor como gênero, apesar de a experiência com a temática dos gêneros no ensino de graduação e de pós-graduação indicarem que se trata de um equívoco pelo menos em vias de superação. Não é difícil perceber que o outdoor em si é um suporte físico que, pela sua configuração material, impõe restrições específicas aos textos quanto a suas dimensão, circulação e forma de leitura. No mais, o outdoor serve de suporte para textos em diferentes gêneros, dotados de variados propósitos comunicativos, embora os gêneros do domínio publicitário estejam entre os mais recorrentes. Ao classificar o outdoor como um suporte, Marcuschi (2003, p. 26) relembra seu posicionamento anterior, sustentado em um momento que a distinção entre suporte e gênero ainda não havia sido colocada com clareza nos estudos de gêneros. 6. Desconheço igualmente a possível existência desse consenso no panorama internacional. Na pesquisa brasileira, as conjecturas em torno da identificação do suporte de gêneros digitais abrangem desde sites como o Facebook até a própria Internet, passando pela tela do computador e até pelos softwares em si (SOUZA; CARVALHO, 2007).

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Trata-se de um suporte e não de um gênero. [...] em alguns momentos eu o classifiquei como gênero, mas dada a diversidade que esse “suporte” veio assumindo quanto aos gêneros que alberga e quanto à função desses gêneros, eu o classifico hoje como suporte. [...] Ele porta gêneros bastante especializados, mas vem se generalizando cada vez mais.

Para o autor, portanto, a diversidade de gêneros que, como superfície física para a escrita, o outdoor “alberga”, tendendo a expandir suas possibilidades para além de “gêneros bastante especializados”, constitui razão suficiente para classificá-lo como suporte e não como gênero. Considero pertinente e necessária a distinção, nesse caso, porque mais uma vez contribui para evitar uma visão materialista ou materializadora do gênero. Noutras palavras, confundir o suporte com o gênero provavelmente revelaria outro aspecto da já referida confusão entre gênero e texto.

Gênero e domínio discursivo Para a discussão dessa terceira modalidade de equívoco, consideremos o seguinte exemplo, também proveniente da escrita científica, em que o jornalismo é referido como “gênero discursivo”, de modo que o autor pode se propor “buscar as delimitações do gênero jornalístico [itálicos meus]”. Exemplo 4. Gênero e domínio discursivo em artigo científico O jornalismo como gênero discursivo Este artigo tem caráter teórico e debate as características do jornalismo como gênero discursivo. [...] Discute, ainda, as condições propostas por esse contrato e busca as delimitações do gênero jornalístico[...] (Fonte: Revista Galáxia, São Paulo, n. 15, p. 13-28, jun. 2008) 71


Equívocos no discurso sobre gêneros

Claro está que o jornalismo, como atividade profissional, caracteriza-se pela construção e circulação de gêneros peculiares a essa atividade, de modo que o jornalismo “alberga” diversos gêneros “jornalísticos”, mas o jornalismo em si não é um gênero. Marcuschi (2008, p. 155) teoriza sobre essa relação entre o jornalismo como atividade profissional e os gêneros como categorias textual-discursivas que possibilitam essa atividade ao lançar mão do conceito de domínio discursivo: Domínio discursivo constitui muito mais uma “esfera da atividade humana” no sentido bakhtiniano [...] e indica instâncias discursivas (discurso jurídico, discurso jornalístico, discurso religioso etc.). Não abrange um gênero em particular, mas dá origem a vários deles, já que os gêneros são institucionalmente marcados.

De acordo com Marcuschi, portanto, há um paralelo entre a noção de domínio discursivo e o conceito bakhtiniano de esfera de atividade humana (BAKHTIN, 1997, p. 279). O jornalismo não deve ser tratado como gênero e sim como uma esfera de atividade profissional que, enquanto instância discursiva, “dá origem” a uma variedade de gêneros que são requeridos e validados socialmente para a viabilização da própria atividade. No exemplo 5, a seguir, o equívoco se repete, porém com o agravante da retomada de “gênero textual jurídico” como “tipo textual” e em seguida novamente como “gênero”, o que tanto evidencia como potencialmente contribui para uma confusão ainda maior por parte de leitores não especializados na temática (ver discussão sobre a relação gênero-tipo textual mais adiante).

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Exemplo 5. Gênero e domínio discursivo em projeto de extensão universitária O projeto pretende mostrar para os alunos a forma do gênero textual jurídico, com as suas especificidades e assim introduzir a prática desse tipo textual nas produções dos alunos para que façam o uso desse gênero tão pouco conhecido por eles. (Fonte: Anais do 8. SEMEX, n. 3, p. 1-5, 2010)

À semelhança do domínio jornalístico, o jurídico também se refere a uma instância discursiva caracterizada pela circulação de gêneros peculiares à atividade jurídica, de modo que é possível falar de inúmeros gêneros (que são) jurídicos, isto é, vinculam-se ao meio jurídico, mas não existe algo como o gênero jurídico. Considerando-se o caráter pedagógico do projeto, pode-se lamentar a falta de clareza terminológica pelas consequências que possivelmente acarretará para os alunos envolvidos.

Gênero e forma/estrutura A redução, especialmente pedagógica, do gênero a uma forma ou estrutura representa mais uma faceta da confusão conceitual entre gênero e texto. Reitera, noutras palavras, a redução do gênero a uma categoria material por aproximação com o caráter de materialidade linguística do texto. Exemplo 6. Gênero como forma/estrutura em site educacional Carta pessoal [...] As características desse tipo de gênero textual são simples, ou seja, não possuem muitas regras e estrutura para serem seguidas. [...] O tamanho varia entre médio e grande. Quando é pequeno, é 73


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considerado bilhete e não carta. [...] Quanto à estrutura, a carta pessoal deve seguir a sequência: 1. local e data escritos à esquerda, 2. vocativo, 3. corpo do texto e 4. despedida e assinatura. (Fonte: Site Brasil Escola)

Nesse exemplo, a par da estranha terminologia “tipo de gênero textual”, encontramos uma definição do gênero carta cuja ênfase se concentra decididamente na estrutura formal dos textos que o instanciam. Assim, o gênero é definido ora pela extensão do texto (“quando é pequeno, é considerado bilhete”), ora por uma sequência pré-estabelecida de informações aparentemente obrigatórias. Tal descrição, além de desconsiderar a flexibilidade na configuração formal dos textos efetivamente produzidos nesse gênero, privilegia o aspecto estrutural como se ele fosse um aspecto único ou, no mínimo, um aspecto privilegiado para caracterizar o gênero. Lembremos aqui Marcuschi (2008, p. 154), para quem, em consonância com a concepção sociológico-retórica de Carolyn Miller ([1984] 2012), “quando dominamos um gênero textual não dominamos uma forma linguística e sim uma forma de realizar linguisticamente objetivos específicos em situações sociais particulares”. Apesar da recorrência da descrição quase exclusivamente estrutural dos gêneros em sites educacionais, este está longe de ser o aspecto principal para uma caracterização adequada do fenômeno. Entretanto, o equívoco não deixa de ser compreensível se considerarmos com Miller que “a forma é a dimensão em que mais facilmente detectamos a tipificação”, correndo assim o risco de se confundir com o conjunto do processo. Contudo, segundo a autora, “o que o conceito de tipificação nos induz a ver, além das similaridades de forma, são as similaridades de conteúdo ou substância e as similaridades de ação”(MILLER; BAZERMAN, 2011, p. 34). Em suma, numa

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concepção de gênero como forma de ação social, a forma do texto é um critério claramente insuficiente para a definição do gênero.

Gênero e tipo textual Nesse último equívoco, o gênero é reduzido a uma sequência ou tipo textual, como no exemplo 7, em que o tipo descritivo é “conceituado” como um gênero. Exemplo 7. Gênero como tipo textual em blog educacional Gênero textual: descritivo Conceituando Gênero Descritivo: É a ação de descrever algo ou alguém, sendo considerado o ato de narrar, porém minuciosamente, visando sempre os mínimos detalhes, fazendo um retrato distinto e pessoal de alguém ou algo que viu. (Fone: Blog Aprendendo a Aprender)

No exemplo, o “gênero descritivo” é definido ao mesmo tempo como “ação de descrever” e como “ato de narrar”, gerando uma confusão conceitual difícil de resolver. O mais importante, no entanto, é que o autor desconsidera que essas ações ou atos constituem, no dizer de Marcuschi (2008, p. 154), “uma sequência subjacente aos textos” e não um gênero. Como sequências subjacentes ou, ainda, como “uma espécie de construção teórica”, os tipos textuais, em geral associados entre si, podem participar da composição de variados textos vinculados a diferentes gêneros. Desse modo, os tipos textuais são aspectos da composição de textos pertencentes a diferentes gêneros, não constituindo, eles mesmos, gêneros como tais nem participando das convenções sócio-históricas que definem os gêneros.

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No dizer de Marcuschi (2003, p. 17), os tipos textuais são “muito mais modalidades discursivas ou então sequências textuais do que um texto em sua materialidade”. Ainda conforme o autor, os tipos “abrangem um número limitado de categorias conhecidas como: narração, argumentação, exposição, descrição, injunção” e “constituem modos discursivos organizados no formato de sequências estruturais sistemáticas que entram na composição de um gênero textual”. Não se trata de opor o tipo textual ao gênero, mas de relacionar os tipos de texto a aspectos da composição dos textos nos diferentes gêneros, como afirmei acima.

Considerações finais Após esse breve percurso pelos “equívocos” no discurso sobre gêneros no contexto brasileiro, me parece inevitável concluir que o conjunto deles pode ser reduzido a duas subclasses centrais: primeiramente, confundir gênero com suporte, com forma/estrutura e com tipo textual revela, ao fim e ao cabo, diferentes aspectos da confusão entre gênero e texto; a confusão entre gênero e domínio discursivo, por sua vez, indica uma sobreposição pelo menos parcial entre os conceitos de gênero e de discurso7. Quando se identifica gênero com suporte, a confusão se dá mais propriamente entre o gênero e o texto ancorado no referido suporte, e não entre o gênero e a superfície material em questão, embora a nomeação do gênero se realize com base na dita superfície em um processo de alguma forma “multimodal”. É pouco provável que um outdoor sem texto de qualquer natureza, completamente em branco ou vazio, seja identificado como gênero. 7. É certo ainda que “discurso”, neste caso, remete a linguagens de especialidade, como o discurso jornalístico, o discurso jurídico, o discurso científico, e poderia também ser tratado na relação com o conceito de registro na terminologia da Linguística Sistêmico-Funcional.

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Quanto à redução do gênero a um formato ou estrutura textual, também me parece óbvio que só é possível se o texto e o gênero forem vistos como uma realidade única. Nesse caso, o gênero é reificado na forma de um dado texto. Ou seria “materializado”? Por fim, na fusão entre gênero e tipo ou sequência textual, mais uma vez temos a identificação do gênero com formas estruturais e composicionais que definem mais propriamente o texto e não o gênero. No que diz respeito ao gênero, a forma tanto pode ser uma pista segura e conveniente como um engodo e uma dissimulação. Se a aproximação entre gênero e texto implica a materialização ou coisificação do gênero, me parece que a identificação do gênero com o domínio discursivo conduz o gênero a um nível mais alto de abstração e generalização. O que seria uma das categorias do discurso jornalístico passa a ser visto como o próprio discurso jornalístico, perdendo muito de sua especificidade e contextualidade. Marcuschi (2002, p. 23) esclarece que “esses domínios não são textos nem discursos, mas propiciam o surgimento de discursos bastante específicos”. É no interior desses discursos peculiares aos respectivos domínios que circularão textos em gêneros também bastante específicos. Se essa percepção está correta, então o problema de fundo a elucidar seria a relação entre texto, gênero e discurso. Não tendo sido esse precisamente o objetivo deste trabalho, cumpre aqui apenas apontar um caminho para o tratamento da questão: o enfoque sobre o gênero como categoria mediadora entre o texto e o discurso, como visto, por exemplo, em Coutinho (2004). A inter-relação entre texto e discurso, conforme tratada por essa autora em um trabalho intitulado “Schématisation (discursive) et disposition (textuelle)”, foi descrita por mim nos seguintes termos em minha tese de doutoramento: “O discurso, por um processo de esquematização, conduziria a uma dada disposição textual, cuja manifestação

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visível, o texto como objeto empírico, se configuraria na forma de um gênero” (BEZERRA, 2006, p. 61). Ainda que essa formulação não pareça bastante clara para mim hoje, a ideia é que o gênero é a categoria que efetivamente nos permite passar do discurso ao texto sem que persista uma dicotomia entre ambos, por um lado, e sem que o gênero se reduza a um ou a outro. Nessa perspectiva, uma discussão que se veria largamente esvaziada, apesar das paixões que eventualmente desperta, seria a que separa “gênero textual” de “gênero discursivo”, mas esta também é outra história, da qual não tratarei aqui. A meu ver, é esse posicionamento do gênero como categoria de mediação que possibilita a visão mais recente da Linguística de Texto acerca da indissociabilidade de texto e discurso. Nas palavras de Cavalcante e Custódio Filho (2010, p. 61), “em qualquer quadro que delineie o estatuto do texto na atualidade, é preciso considerar a sua interdependência em relação ao discurso. Uma tendência cada vez mais dominante, então, é a da não separação total entre essas duas instâncias de uso da linguagem.” Acrescento que é precisamente o gênero que impossibilita que o texto seja visto como “uma mera materialização do discurso” (ou que se separe “gênero textual” de “gênero discursivo”, mas eu afirmei que não ia tratar dessa questão). Espero que essas poucas reflexões e provocações sejam suficientes para nos despertar para a necessidade de uma busca contínua de refinamento teórico para uma noção que, após um período intenso porém curto de trabalho, podemos apressadamente julgar bem compreendida e bem estabelecida nos meios acadêmico e escolar. O gênero ainda demanda de pesquisadores e professores um maior esforço para sua adequada assimilação e aplicação.

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3 LINGUÍSTICA DOS GÊNEROS E TEXTUALIDADE1 François R astier 2 (CNRS, Paris)

Como a questão dos gêneros é tradicionalmente tratada pela poética, o próprio nome dessa disciplina evoca frequentemente a literatura; entretanto, o conjunto das normas e dos usos linguísticos, orais e escritos, artísticos ou não, provém do que se poderia chamar de uma linguística dos gêneros, ramo importante da linguística histórica e comparada. Não querendo repetir proposições descritivas3, limitar-nos-emos nesta exposição a evocar brevemente o efeito dos desenvolvimentos da linguística dos gêneros sobre o conceito da textualidade propriamente dito.

Discurso, gêneros e tipologia dos textos Ainda pouco estudada na linguística, a noção de gênero suscita debates sobre sua definição e seu funcionamento, pois é frequentemente confundida com aquela, muito vaga, de “tipo de texto”, sendo ora definida a partir das « funções da linguagem » (Biber, 1988, p. 92), ora associada ao domínio semântico do discurso (Illouz, 1999). 1. Tradução de Rosalice Pinto (Centro de Linguística da Universidade Nova de Lisboa (CLUNL) – colaboradora) e Suzana Leite Cortez (Coordenação PIBID Letras/Português UFPE). 2. frastier@gmail.com 3. Referimo-nos a Rastier (1989, cap. 3; 2001, cap. 8).

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Enquanto os trabalhos pioneiros de Biber (1988, 1993) visavam a desenvolver uma tipologia indutiva dos textos, caracterizando-os por um conjunto de traços linguísticos, a pesquisa que temos desenvolvido combina uma classificação prévia dos gêneros e de testes empíricos para justificar sua pertinência. Os gêneros na linguística de corpus – Como os tratamentos automáticos da linguagem se ocupam dos textos, não das frases, sua tipologia é uma condição para a sua análise. Para se chegar a tratamentos automáticos específicos e eficazes de corpus, é necessário, evidentemente, que sejam considerados os gêneros, para adaptar as estatégias de questionamento e de tratamento. A determinação prévia dos gêneros permite simplificar os tratamentos, o que não se faz sem eliminar as ambiguidades: por exemplo, nos prontuários médicos « pense » corresponde apenas à terceira pessoa; o que seria diferente em um corpus de cartas aos colegas. A demanda social de uma teoria operatória dos gêneros é crescente, tanto para a linguística de corpus quanto para o acesso aos bancos textuais. O estudo de corpus “em situação” mostra sem dúvida que o léxico, a morfossintaxe, a maneira como se colocam os problemas semânticos da ambiguidade e do implícito, tudo isso varia de acordo com os gêneros. Os sistemas de análise e de produção devem levar em conta essas especificidades. Os projetos de sistemas universais são, desse modo, irrealistas, linguisticamente falando, porque, na verdade, eles se sustentam, sobre a ideia preconcebida de que a língua é idêntica a ela mesma em todos os textos e em todas as situações de comunicação. Para se alcançar tratamentos automáticos eficazes, é necessário especificar os funcionamentos próprios aos diferentes gêneros. Por exemplo, em um corpus homogêneo, conhecer a estrutura do gênero pode permitir a simplificação dos tratamentos: algumas partes dos textos podem, na verdade, ser eliminadas para

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constituir subcorpus pertinentes para uma dada tarefa. Além disso, o conhecimento dos gêneros pode se tornar útil para a pesquisa de informações: nos artigos científicos, por exemplo, a formulação das hipóteses pode ser encontrada em partes bem definidas da estrutura do texto, assim como as discussões teóricas. Entretanto, o artigo experimental não tem a mesma estrutura que o artigo teórico etc. Assim, uma descrição fina é um pré-requisito necessário. A linguística de corpus deve permitir que se refunda ou se afine a distinção intuitiva e empírica nos gêneros. Por isso, exploraremos as variações morfossintáticas, que são consideráveis. Por exemplo, os textos literários contêm significativamente menos formas passivas do que os outros; a posição do adjetivo, a natureza dos determinantes, dos pronomes e dos tempos verbais, o uso da desinência nominal (de número) também variam consideravelmente. No discurso técnico, as variações são relevantes quando se compara um manual e um folheto comercial: no primeiro, os acrônimos, os imperativos, as elipses de determinantes; no segundo, as frases longas, os pronomes com grande incidência etc. Os valores posicionais das unidades textuais e sua distribuição variam também conforme os gêneros: por exemplo, um estudo contrastivo de Biber (1993a) permitiu destacar uma lista de 6.000 palavras, sendo a maior parte concretas, próprias aos textos ficcionais - cf. (impatiently “impacientemente” ou sofa “sofá”). Ainda sobre o gênero, convém distinguir o campo genérico e o discurso. Em suma, três níveis podem ser considerados: o dos discursos (ex. jurídico versus literário versus científico), o dos campos genéricos (ex. teatro, poesia, gêneros narrativos)4, o dos gêneros propriamente ditos (ex. comédia, romance « sério », romance policial,

4. Um campo genérico é um grupo de gêneros que constrasta entre si, ou melhor, apresenta rivalidade em um campo prático: por exemplo, no âmbito do discurso literário, na época clássica, o campo genérico do teatro se dividia em farsa, comédia, comédia heróica e tragédia.

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novela, conto, relato de viagem). Os subgêneros (ex. romance através de cartas) constituem um nível ainda mais subordinado. As diferenças de status epistemológico entre esses níveis fazem com que não se possa, a não ser que por simplificação didática, representá-los através de um simples gráfico em árvore que aqui se vê, no entanto. Discursos

Campos genéricos

Gêneros

Subgêneros

Comédia Teatro

Tragédia Drama

Literário

Poesia Policial Romance

Relatos

por cartas de formação

Novela Jurídico Político Figura 1. Níveis de classificação dos textos

Responsabilidade da linguística No que se refere aos gêneros, a linguística deve elaborar suas próprias categorias descritivas, porque as disciplinas vizinhas, estudos literários e filosofia, originam-se de outras problemáticas e seu aporte permanece limitado. 84


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Os estudos literários contemporâneos quase renunciaram à reflexão sobre os gêneros, ao menos ao que se refere à literatura moderna, em que as teorias românticas e pós-românticas à Barthes minimizam o interesse por um estudo dos gêneros, defendendo que a Literalidade de um lado, e o Estilo do outro, transcendem-nos. Em outras palavras, mesmo que autores, como Le Clézio, apresentem alguma desconfiança em relação aos gêneros, os métodos da linguística de corpus mostram que as obras desmentem essas propostas já estabelecidas5. A filosofia da linguagem nos trará ainda menos informação sobre os gêneros, porque ela continua a transcender as línguas e os textos. Por exemplo, tributária da tradição do positivismo lógico que no fundo ela contesta, a teoria dos jogos de linguagem de Wittgenstein permanece dominada pelo individualismo metodológico e sem alcance empírico para descrever a incidência dos usos particulares das normas socializadas que são os gêneros. Através de um jogo de pensamento, Wittgenstein afirma, por exemplo, que a leitura é um jogo de linguagem: entretanto, ela não é de forma alguma independente nem dos gêneros nem das práticas em que estes acontecem6. O jogo da linguagem não pode instituir o gênero, pois os métodos de uso da linguagem são definidos nos gêneros: o ato de fala somente cria performance linguística em função das normas genéricas e discursivas e até demarcando-se delas. De fato, as situações não são isoladas das práticas que definem seus regimes de pertinência e permitem identificar inovações. Em suma, longe de definir os gê5. Cf. Kastberg-Sjöblom, 2002, pp. 51-55. 6. Os outros jogos são atos descontextualizados: por exemplo, fazer alarde, antigo exemplo de retórica, já presente em Dumarsais, enquadra-se como um jogo de linguagem (dentre outros), mas é consensual que o seu funcionamento é diferente em uma cena de teatro ou na sala. Longe de definir um gênero, o jogo de linguagem o pressupõe para determinar seu sentido. Ar de família, jogo de linguagem e formas de vida continuam sendo três noções com definições vagas, o que permite inseri-las com comodidade em todos os lugares.

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neros ou de substuí-los ´por outra categoria´, os jogos de linguagem os pressupõem, já que estes funcionam nos gêneros ou nas práticas singulares suscetíveis de se instalar em gêneros (mesmo sendo estes únicos/privados). Por seu turno, constantemente invocado como fundador de uma teoria dos gêneros, Bahktin descreve com todo direito a sua empreitada como uma filosofia, visto que esta não demonstrou apresentar uma capacidade descritiva notável7. Retomando de forma não explícita muitos dos temas do idealismo alemão, ancorados particularmente na dialética de Schleiermacher, ele não pôde resolver a contradição entre o desejo de apresentar uma teoria dos gêneros, de tradição filológica, e teorias da polifonia e do dialogismo que exploram o tema modernista da heterogeneidade, originário da teoria romântica do romance.

O gênero determina/condiciona a semiose textual O problema da arbitrariedade do signo, de tradição filosófica, parece não ser pertinente para a linguística. Ao ser compreendido como a relação entre signo e referente, ele não pode ser colocado de forma independente a um texto e de suas convenções miméticas. Caso se refira à relação estabelecida entre conteúdo e expressão, ele também não pode ser colocado ao mesmo nível do signo isolado – a unidade correta seria o próprio morfema. Como não há conformidade entre planos da linguagem, o problema da semiose deve ser colocado ao nível do texto, não devendo estar em termos referencias nem ao nível da palavra, nem mesmo no nível da frase. 7. Filósofo e ensaista, Bakhtin não pensou em propor critérios linguísticos para a descrição dos gêneros. Sua contribuição permanece ainda mais enigmática pelo fato de sua reputação ter vindo a ser assegurada por obras de outros autores (Voloshinov e Medvedev, notavelmente) e de textos presumidamente de sua autoria terem vindo a ser crivados de citações não assinaladas, de Cassirer a Husserl.

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Ao nível do texto, deve-se abandonar completamente a noção de arbitrário: como em uma cultura tudo é convenção, um texto só tem como legalidade interna suas normas, em primeiro lugar seu gênero – e o mesmo é válido para outros objetos culturais. A semiose textual é uma semiose, quer dizer, um ato de expressão e de interpretação. Enquanto ato, é originária de uma praxiologia das performances linguísticas, e não de uma ontologia ou de uma teoria das representações. A poética descreve normas em ação, levando em conta que essas normas são, por definição, socializadas, e que estas ações textuais decorrem de práticas sociais e constituem o nível semiótico dessas mesmas práticas. Anteriormente, definíamos um gênero, no plano semântico, pela interação de quatro componentes8 não hierarquizados. Por componentes, compreendem-se conjuntos de normas de um mesmo tipo: por exemplo, as da temática. As componentes semânticas se articulam às da expressão: sem prejulgar que o “pensamento” escolha sua expressão, como se este se infiltrasse na linguagem, podem-se descrever imbricações entre coerções semânticas e coerções no plano do significante. Um gênero define claramente uma relação normatizada entre o plano do significante e o plano do significado ao nível textual: por exemplo, no gênero artigo científico, o primeiro parágrafo, no plano do significante, corresponde normalmente a uma introdução, no plano do significado; na novela, enquanto gênero, trata-se mais frequentemente de uma descrição.

8. Mais especificamente, a temática dá conta dos temas, descritos como formas semânticas (moléculas sêmicas); a dialética estuda a sucessão dos intervalos no tempo textual, como os estados que se posicionam neste e os processos que aí acontecem; a dialética, as relações modais entre universo e mundo, leva em conta a enunciação representada; a tática considera a linearidade do significado e a disposição das unidades textuais. Este modelo modular não-hierárquico foi retomado em seu princípio por diversos gramáticos do texto (Adam, 1992; Roulet e coll, 2001).

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Em síntese, os gêneros determinam, ou melhor, permitem as relações entre os dois planos da linguagem. Observa-se, por exemplo, nos rascunhos dos escritores e dos pensadores, quer seja de Flaubert, quer de Saussure, o texto no início sem uma classificação clara se moldar pouco a pouco a um gênero. Não deixando de evocar aqui uma ilusória excelência em estabelecer correlações, a enunciação estabelece ainda uma espécie de compromisso entre as coerções da prática (na qual se define o gênero) e a situação (quer dizer, além do aqui e agora, a posição histórico-cultural do enunciador e do intérprete). A semiose limitada proposta pela língua nos níveis inferiores, da palavra à frase, só se torna efetiva se for compatível com as normas do gênero, ou melhor, do estilo que asseguram a semiose textual9. Ainda, a proposição gramatical faz sentido apenas quando presente em um período, quer dizer, enquanto passagem de um texto. Enfim, a semiose do léxico é também determinada pelo gênero ou pelo campo genérico: por exemplo, amor em poesia tem pouquíssimos contextos comuns com amor em romance, embora essas duas palavras sejam quase homônimas10. Acresce ainda o fato de que nenhum léxico é independente do discurso e as ontologias hoje florescentes (Wordnet, EuroWordnet, Semantic Web) constituem artefatos em escala mundial com grande custo.

9. O sistema da língua, tal qual o concebem geralmente os linguistas, não determina a semiose textual e só estabelece coerções à semiose ao nível de complexidade mais elementar, o dos morfemas: ao nível dos morfemas, a língua propõe, ou melhor, impõe emparelhamentos entre significante e significado (ex. re- é iterativo); mas os morfemas não têm neles mesmos uma significação definida, isto porque o (falso) problema da referência nunca foi posto a respeito. Ao nível imediatamente superior, o do léxico (o dos lexemas), as palavras já são unidades “de discurso”, pois a relação estabelecida entre seus morfemas é regulada por uma sintaxe interna: a sua significação e a sua forma de semiose já dependem das relações contextuais entre os morfemas que as compõem. 10. Assim, no romance, amor tem como antônimo casamento ou dinheiro. Na poesia, não é nem casamento, nem dinheiro. Para uma análise em corpus no banco de dados Frantext, cf. Bourion, 2001, pp. 42-45.

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Além dos regimes de produção e de interpretação dos textos, a semiose textual coíbe a forma de mimese. Em regra geral, quanto mais as relações entre os dois planos do texto estiverem sujeitas a normas, maior será o efeito de empírico real ou transcendente, como o atestam os textos gnômicos ou religiosos. A interação complexa entre planos da linguagem, relacionada à enunciação do texto como performance semiótica, não atua apenas na língua, mas também no gênero. Assim, um gênero constitui “um aro que ainda falta” dos modelos enunciativos. Suas normas substituem com muita vantagem as representações mentais intermediárias e protótipos diversos, pois permitem planificações da ação enunciativa compatíveis com a prática e a situação. O mesmo acontece com a interpretação, pois o texto deve ser lido de acordo com seu gênero: sua literalidade e até mesmo sua pronúncia dependem disso (não se lê um trecho de romance como um poema). Enfim, o problema do gênero ultrapassa as ciências da linguagem, pois encontram-se problemas análogos em outras semióticas em que se considera a existência de gêneros. Além disso, enquanto as diversas semióticas (linguagem, música, danças) são descritas normalmente como sistemas isolados, é em alguns gêneros plurissemióticos como a ópera, o cinema, o site interativo que elas encontram modos de interação que seguem regras: ou seja, o estudo dos gêneros comanda o da intersemioticidade. Dessa forma, a linguística dos gêneros ocupa indubitavelmente um lugar importante tanto na linguística quanto na semiótica.

O gênero pertence ao texto Diz-se normalmente que um texto pertence a um gênero. Essa proposição mereceria ser invertida: o gênero pertence ao texto, que

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contém indicações de seu gênero (no título, no suporte, bem como no seu léxico, na sua composição etc.). Consequentemente, não reteremos as noções comuns nem de peritexto nem de arquitexto, pois nada contribuem para a compreensão da textualidade. A menos que o texto seja reduzido a uma simples e única cadeia de caracteres, o peritexto pertence integralmente ao texto. Podem-se distinguir três níveis de análise do texto: o peritexto (títulos, títulos correntes, ligações etc.); em seguida, o intratexto (colunas gráficas, « caixas »); por fim, o infratexto subordinado (notas etc.). Esses níveis são válidos para a modalidade escrita, mas encontram análogos para a oral: o peritexto é então epilinguístico (cf. vou te contar algo que vai surpreender), o mesmo para o infratexto (detalhamentos de certos pontos). Apesar de ser localizável, o peritexto concretiza índices globais (gênero, tema geral, ponto de vista ou posição dialógica). Então, ele determina o infratexto, uma vez que o global determina o local. Citam-se frequentemente, no prolongamento de Adam e de Goldenstein, o artigo de jornal que se tornou poema em Blaise Cendrars, os artigos do dicionário Littré que se tornaram poema em René Char. A recategorização, como a retomada (seletiva) em Char de artigos do Littré transformados em poemas a partir dessa transferência, não corresponde a um simples deslocamento de uma cadeia de caracteres: a categoria do texto muda com a mudança do suporte, do autor, e com a proximidade de outros poemas. A expressão pode até parecer idêntica a partir do momento em que se suspende a interpretação, contudo ela deve ser reconhecida por ela mesma, processo que não é de forma alguma independente do contexto e da situação. A determinação do global sobre o local é de tal forma que o texto recategorizado muda de regime hemenêutico, mimético e referencial. Não há também arquitexto, considerando-se que o gênero não é nem uma classe, nem um tipo, mas uma linhagem. No centro des90


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ta, um texto leva em conta, se assim pode se dizer, ancestrais, rivais, mas não um « patrimônio genérico » que o transcenderia. Ele não corresponde a uma ocorrência de um gênero, mas um momento numa série de transmissões, em uma tradição feita de rupturas.

A semiose textual e o corpus determinam os fenômenos locais Da mesma forma que todo uso modifica e configura potencialmente a língua, cada texto atesta e modifica o gênero ao qual pertence. Mas essas modificações locais só são perceptíveis no interior de uma estabilidade global; em contrapartida, o gênero configura o texto. Assim, o gênero e o texto, de certa forma, interpretam-se mutuamente. Resultados recentes confirmam a incidência do gênero sobre as variações morfossintáticas11. A partir de um corpus de 2500 textos completos classificados por gêneros e discursos e etiquetados em 251 tipos, etiquetas morfossintáticas em sua maioria, foram encontrados e validados os diferentes níveis de classificação apresentados a seguir, utilizando percentagens calculadas nas etiquetas. Foram realizadas análises univariadas para qualificar as variações segundo as categorias das etiquetas, posteriormente uma análise multivariada utilizando métodos de classificação automática. Os resultados, ainda a serem refinados, mas válidos de qualquer forma, já confirmam a correlação existente entre as variáveis globais do gênero, campo genérico e discurso, por um lado, e as variáveis morfossintáticas, locais por definição, por outro. Assim, as condições de aplicação das regras da gramática, supostamente representativa da língua em sua pureza sistemática, variam segundo os discursos, campos genéricos e gêneros.

11. Cf. Malrieu e Rastier, 2001.

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G3: Poesia = 84% G4: Teatro = 84% G1: Relatos = 81% (XVIIIe, XIXea) Ensaios = 18% G2: Ensaios = 55% Textos científicos = 14% G5: Relatos = 87%, XXe a e b G6: Relatos = 97%, XXe b e a G7: T. jurídicos = 98,6% Figura 2: Classificação hierárquica ascendente. Primeira metade de um século: a; segunda metade de um século: b.

A oposição entre discurso jurídico, de um lado, e discurso literário e científico, do outro, domina inicialmente a oposição entre campos genéricos (teatro, poesia, narrativas) e, ainda, a oposição entre romances e ensaios. A classificação ascendente hierárquica apresenta, então, diferenças entre discursos e também entre campos genéricos. Por outro lado, no plano imediatamente inferior, esta não faz notar divisões entre gêneros narrativos e conduz evidentemente a uma tripartição das narrativas, particularmente dos romances “sérios”12. Para se perceber a existência desta não distinção, alguns esclarecimentos merecem ser feitos: os romances “sérios” do grupo 1 da classificação correspondem ao romance dos séculos XIII e XIX,

12. Não é surpreendente, pois o romance tradicionalmente é um gênero muito diversificado, rapsódico e heterogêneo, como já o observa o “pároco” no capítulo 47 de Don Quichotte.

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que partilham traços com os ensaios (filosóficos e políticos)13; os romances “sérios” do Grupo 5 são romances modernos que se aproximam do romance policial (principalmente do início do século XX); os romances “sérios” do Grupo 6 são também romances modernos mas sobretudo autobiográficos, de onde advém a sua aproximação com os diários de viagem e as memórias. A partir das variáveis morfossintáticas de que dispomos, as três técnicas utilizadas: a análise univariada, a análise em componentes principais e a classificação hierárquica ascendente contribuem para evidenciar diferenças significativas tanto entre discursos, quanto entre campos genéricos e entre gêneros. A amplitude muito evidenciada dessas variações confirma a diversidade das normas linguísticas de acordo com os tipos de discurso e o caráter instituinte do gênero. Essa diversidade ignorada – ou, em outras palavras, ainda pouco estudada – constitui um domínio de estudo futuro para a linguística: após a pesquisa sobre a diversidade das línguas, é necessário, efetivamente, estudar a diversidade interna de cada língua, tal como esta é expressa em sua diversidade de usos no oral e no escrito. Evidentemente, a análise serial de corpus ampliado constitui uma forma privilegiada desse estudo. No plano semântico, o gênero regula de forma importante as aferências socialmente padronizadas. Há algum tempo, evocamos essas instanciações de semas: estas dependem de um tópico e, consequentemente, de um gênero ou de um campo genérico. Por exemplo, em poesia barroca, um traço é luminoso, por se tratar de uma metáfora recorrente do olhar. É a redundância desse sema no corpus do campo genérico que permite inferir esse sema. Enquanto unidade mínima de análise, o texto age como instância global em relação a seus elementos, mas também como instân13. Cf. Os Miseráveis, romance que alterna capítulos romanescos e capítulos ensaísticos.

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cia local em relação a seu corpus. Evidentemente, pelo viés de seu gênero, o texto aponta sobre seu corpus e seleciona, de certa forma, os outros textos que permitem interpretá-lo. Como o gênero não é uma instância abstrata, a relação de um texto com seus vizinhos não é mediada por uma abstração arquitextual, mas pelos percursos intertextuais próprios ao gênero comum desses textos. O primeiro círculo do corpus, corpus necessário mas nem sempre suficiente, é também constituído de textos do mesmo gênero. O gênero determina, assim, um modo de regulação do contexto interno e externo (textualidade e intertextualidade). Enfim, ele permite que o texto escrito se torne compreensível, muito embora a situação que o tenha desencadeado ou que tenha servido de pretexto para a sua origem possa não vir mais a ser recuperada.

Linguística(s) da língua, da fala e das normas A leitura das lições e manuscritos de Saussure confirma que Bally apagou a contribuição de Saussure à linguística da fala. As duas linguísticas, a da língua e a da fala, ficaram separadas porque a linguística das normas ainda não foi construída. Pensa-se erroneamente que pode não existir ciência das normas: esta seria uma deontologia que fugiria, por seu caráter relativo e condicionado ao imaginário lógico-gramatical, das regras, e mesmo do imaginário cientista das leis. A relação entre língua e fala é ora pensada como uma passagem do virtual ao real, ora pensada como uma passagem dos condicionamentos a uma liberdade, e tem-se dificuldade de conciliar as virtualidades que a língua impõe com as liberdades reais da fala. Na realidade, da língua, concebida de forma arbitrária, à fala, passa-se não apenas por graus de sistematicidade decrescentes, mas também por estatutos epistemológicos diversos.

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Pode-se propor a seguinte representação: LÍNGUA

discurso campos genéricos

paradigmático

gêneros

sintagmático

FALA

Figura 3. Espaço de uma linguística das normas

Ao serem consideradas as diversidades efetivas dos discursos, campos genéricos e gêneros, o núcleo invariante a que se pode chamar língua reduz-se drasticamente ao inventário dos morfemas, a imposições como a estrutura da sílaba, a estrutura do sintagma etc.; os lexemas, por exemplo, já não fazem parte desta, por já serem fenômenos de « discurso »14. Nenhum texto é escrito « em uma língua » apenas, ele é escrito em um gênero, levando-se em conta as regras de uma língua. Aliás, a analogia das práticas e a dos gêneros decorrentes desta permite a tradução, ou ainda, de forma mais simples a intercompreensão. Notam-se, certamente, regularidades transgenéricas e transdiscursivas. Por exemplo, domínios como a literatura e os ensaios são vizinhos: pode acontecer, inclusive, que os mesmos transponham para os dois temas comparáveis. No nível morfosintático e no plano da expressão, essas regularidades provêm da língua; no plano semântico, estão relacionadas à ideologia e à doxa. 14. É por isso que o léxico, ao menos o dos lexemas, não pertence à língua.

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Enquanto a morfossintaxe permanece essencialmente alvo de regras, embora não seja de forma alguma indiferente às normas, a semântica é essencialmente alvo de normas. Mesmo definindo-se com razão, as regras como normas fixadas, é necessário que sejam destacadas as diferenças entre suas formas de evolução diacrônica. A ligação problemática entre línguas e representações coletivas permanece crucial: uma língua coíbe, mas não dita uma visão de mundo, como o pretendem, após alguns linguistas nazistas, certos culturólogos russos de hoje em dia. Para melhor apreender essa ligação, é necessário se apropriar do programa de uma linguística dos gêneros. O estudo dos gêneros faltou à escola francesa de Análise do discurso para poder ligar efetivamente a linguística ao estudo das ideologias. Com os métodos da linguística de corpus, dispõe-se atualmente de meios novos para testar hipóteses sobre a relação entre normas e regras, bem como sobre a existente entre os dois planos da linguagem. Referências Adam, J.-M. Les textes: types et prototypes. Paris: Nathan, 1992. Bronckart, J.-P. ; Bain, D. ; Schneuwly, B. ; Davaud, C. & Pasquier, A. Le fonctionnement des discours – Un modèle psychologique et une méthode d’analyse. Paris: Delachaux & Niestlé, 1985. Bourion, E. L’aide à l’interprétation des textes électroniques. Thèse, Université de Nancy II, 2001. Kastberg Sjöblom, M. L’écriture de J.M.G. Le Clézio – Une approche lexicométrique. Thèse, Université de Nice, 2002. Malrieu, D. et Rastier F. Genres et variations morphosyntaxiques. Traitements automatiques du langage, 42, 2, 2001, p. 547-577. Rastier, F. Sens et textualité. Paris: Hachette. Rééd, 1989. Disponível em: <http: //revue-texto.net>. Rastier, F. Arts et sciences du texte. Paris: PUF, 2001. Rastier, F. La mesure et le grain – Sémantique de corpus. Paris: Champion, 2011. Roulet, E. ; Filliettaz, L. & Grobet, A. Un modèle et un instrument d’analyse de l’organisation du discours. Berne: Lang, 2001.

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4 ALGUMAS IDEIAS PARA ENSINAR NOVOS GÊNEROS A PARTIR DE VELHOS GÊNEROS1 Amy J. Devitt2 (KU/USA) Heather Bastian3 (CSS/USA)

Introdução4 Quando os alunos chegam a nossas salas de aula, chegam não como tábulas rasas, mas como leitores e escritores funcionais com complexos repertórios de gêneros os quais incluem conhecimento prévio sobre gêneros acadêmicos, públicos e pessoais, e que são, em alguns aspectos, parciais, incompletos e incertos, enquanto em outros sentidos são complexos e totalmente internalizados. Quando usamos os gêneros – em qualquer pedagogia – para ensinar línguas, leitura e escrita, nosso ensino é afetado pelo conhecimento prévio sobre gêneros O conhecimento prévio dos alunos tanto pode beneficiá-los quanto inibi-los e prejudicá-los, assim como interfere positiva ou negativamente em nosso ensinar. Tem-se desenvolvido vários estudos para investigar os efeitos do conhecimento prévio de gêneros

1. Tradução de Larissa de Pinho Cavalcanti (UFRPE), revisão de Rodrigo Farias de Araújo (UFPE), revisão e coordenação de tradução Judith Hoffnagel (UFPE). 2. devitt@ku.edu 3. bastianhm@gmail.com 4. O texto desta conferência permanece em grande parte fiel ao produzido em 2009. Claro, muito de nossa pesquisa sobre transferência e conhecimento de gêneros já foi publicada desde então.

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Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

nas pesquisas de ensino de segunda língua, já iniciaram pesquisas na instrução de escrita em primeira língua. Embora possamos estar bastante confiantes no fato que os alunos possuem conhecimento prévio de gêneros, podemos estar igualmente confiantes que o conhecimento prévio pode ser transferido de um contexto para o outro? Ou de uma situação para outra? Ou de um gênero para outro? Christine Tardy (2006, p.95), em sua excelente síntese das pesquisas em segunda língua sobre o desenvolvimento do conhecimento de gêneros, conclui que “os aprendizes usam suas experiências em práticas anteriores e atuais quando constroem conhecimento de gêneros” em contextos baseados em práticas (2006, p.82). Revisando estudo após estudo, Tardy conclui que “as experiências e práticas anteriores provavelmente influenciam todos os escritores, quer estejam escrevendo em primeira ou segunda língua, mas estes também podem ser prejudicados por práticas residuais que entram em conflito com expectativas atuais”. Com o crescente número de pesquisas, se torna claro que professores podem melhorar o desenvolvimento do conhecimento de gêneros dos alunos se melhor entenderem como os estudantes usam seu conhecimento prévio sobre gêneros. Para ajudar os alunos a melhor utilizarem seu conhecimento prévio, seria importante para os professores descobrir do que consiste esse conhecimento prévio. Todavia, descobrir o que os estudantes conhecem sobre gêneros e quais gêneros eles conhecem quando chegam a nossas salas de aula não é tarefa fácil. Mesmo através de questionamento deliberado, os estudantes não são capazes de relatar confiavelmente seus próprios conhecimentos prévios. A pesquisa sobre o uso de conhecimento prévio é amplamente retrospectiva, examinando como crianças e estudantes relatam que usaram conhecimento prévio em uma situação de escrita nova ou seguindo um caso de como um escritor aprende um novo gênero. Como professo-

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res, podemos querer interferir no processo tal como ele ocorre para possibilitar aos alunos o melhor uso de seus conhecimentos prévios. Mas o que podemos descobrir sobre o conhecimento prévio sobre gêneros que nossos alunos trazem para a sala de aula? E como podemos ajudar os alunos a aprenderem a fazer melhor uso de seus conhecimentos prévios com o que descobrirmos? Para melhor compreender o uso de conhecimentos prévios sobre gêneros pelos alunos em uma aula de escrita de nível universitário, estudamos um grupo de alunos de nível superior numa universidade dos Estados Unidos, investigando o que eles relataram conhecer sobre gêneros antes de entrar na universidade e como aquele conhecimento era ou não era visível em sua escrita para o curso universitário. Esse estudo inicial, exploratório, foi sucedido por pesquisas mais elaboradas por Mary Jo Reiff e Anis Bawarshi [desde a publicação em 2011] em diferentes universidades. Aqueles estudos têm feito descobertas instigantes sobre transferências entre diferentes domínios, dentre outras. Em nosso estudo, mais reduzido, nos concentramos em casos individuais, na natureza de seus conhecimentos prévios relatados e nos traços textuais do conhecimento de gêneros visíveis no material escrito para as aulas. Neste trabalho, reportaremos o que temos descoberto acerca da natureza do conhecimento prévio desses estudantes e suas potenciais consequências para ensinar novos gêneros. Embora nosso relato parta de uma pequena amostra de alunos universitários dos Estados Unidos, esses resultados podem ser aplicados mais geralmente por nós professores enquanto tentamos usar mais eficientemente os conhecimentos prévios sobre gêneros dos nossos alunos para ajudá-los a desenvolver novos conhecimentos de gêneros.

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Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

Teoria e pesquisa sobre conhecimentos prévios de gêneros Devitt (2004) argumenta em seu livro Writing Genres que a aula de escrita no primeiro período deveria ser vista como um lugar onde os estudantes adquirem consciência de gêneros – uma compreensão consciente de como tipos de escrita modelam as respostas do escritor a situações retóricas. Estudantes de todos os níveis, falantes nativos ou de segunda língua podem se beneficiar da consciência de gêneros além dos conhecimentos específicos sobre gêneros. Com habilidade para analisar os gêneros que precisarão escrever, os alunos poderão se envolver mais criticamente com os gêneros que encontrarem e poderão agir mais deliberadamente ao modelarem tudo, do propósito e da audiência à organização e ao estilo das sentenças. Mas nossos alunos não chegam a nossas salas de aula como tábulas rasas. Nossos cursos de escrita são, de fato, espaços intermediários entre a educação básica do Ensino Médio e a universidade, entre a escola pública e a vida pós-escola. Nesses espaços intermediários, os alunos trazem consigo gêneros que já conhecem de outros ambientes; e, nesses espaços intermediários, os alunos planejam ir adiante para espaços intelectuais e profissionais que tragam gêneros que aindanão conhecem. Se ensinarmos aos alunos em nossos cursos como os gêneros operam, sua natureza retórica e ideológica, e as escolhas que os escritores podem fazer, podemos habilitá-los para adentrar esses mundos com uma consciência mais aguçada de seus efeitos, bem como maior sensibilidade retórica e habilidade de agir efetivamente na escrita. Devitt também argumenta que, no processo de ensinar a consciência de gêneros, também devemos ensinar gêneros específicos que sirvam como fundação para aprender novos gêneros. Devemos ensinar o que Devitt chama de gêneros antecedentes (estendendo o trabalho de Kathleen Jamieson (1974) com antecedentes históricos 100


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para novas situações genéricas). Gêneros antecedentes são os gêneros específicos com os quais se têm experiência e a partir dos quais se parte quando escreve um novo gênero. Mesmo se não ensinamos em um currículo baseado na percepção de gêneros, ensinamos a escrever determinados textos, sejam argumentações acadêmicas, trabalhos analíticos, artigos científicos, narrativas ou etnografias. Esses gêneros, Devitt alega, se tornam os tipos de escrita que os alunos têm em seus repertórios posteriormente, gêneros antecedentes potenciais para futuras situações de escrita. Quando diante da escrita de um novo texto, os estudantes podem partir desses gêneros conhecidos à medida que aprendem a escrever novos gêneros. Mas não estamos criando uma nova caixinha de truques para os alunos; estamos acrescentando à caixinha que já possuem. Os indivíduos possuem repertórios de gêneros, para usar o termo de Orlikowski e Yates (1994), para comunicação organizacional, um grupo de gêneros que os indivíduos adquiriram ou aprenderam. Também há um grupo mais amplo de gêneros cercando o repertório de gêneros do indivíduo, um contexto cultural de gêneros mais abrangente do qual os alunos podem estar cientes mais perifericamente, não havendo praticado tais gêneros. Quando escrevem novos gêneros, os indivíduos o fazem em um contexto de rica intergenericidade, um contexto de gêneros que existe cultural, comunitária e individualmente. Uma vez que nossas aulas exigem que os alunos produzam novos gêneros (quer sejam trabalhos analíticos de nível universitário, relatórios de pesquisa, narrativas ou híbridos multigenéricos), precisamos observar mais de perto os repertórios de gêneros já existentes de nossos estudantes e quais gêneros eles usam como antecedentes. De fato, pesquisas mostram que ensinar gêneros específicos explicitamente pode ser ineficaz se o conhecimento prévio não foi levado em consideração. Debra Myhill (2005b, p. 291) explica que o “conhecimento prévio” “articula uma conceptualização do aprendizado na 101


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qual o aprendiz constrói a relação entre o dado e o novo”. Ela defende (Myhill, 2005a) que ensinar gêneros explicitamente como nas escolas australianas e do Reino Unido nem sempre é bem sucedido se não se consideram os conhecimentos prévios das crianças. Sem observar o conhecimento prévio de gêneros, as crianças ou seguiam formas linguísticas sem entenderem suas funções, ou a retórica do gênero, ou usavam formas linguísticas “criativamente” dentro de estruturas gerais (MYHILL, 2005a, p.127). A importância do conhecimento prévio para aprender novos gêneros também é evidente nas pesquisa sobre conhecimento prévio de gêneros que Tardy (2006) revisou. Tardy (2006, p.83) concluiu, a partir de Palmquist, que escritores “se baseiam em experiências prévias” com outros gêneros ao criar gêneros não familiares – e, a partir de Myhill, as crianças britânicas “se baseavam em vários tipos de conhecimento prévio”. A pesquisa deixa claro, como Tardy (2006, p.83) relata, que “experiências e práticas em um número de domínios e gêneros podem vir a influenciar experiências com gêneros pouco familiares”. Em outras palavras, o conhecimento dos escritores sobre gêneros familiares pode ajudar a escrever gêneros não familiares. Tardy (2006, p.83) também conclui que “experiências prévias podem, às vezes, todavia, inibir o aprendizado” retomando a descoberta de Ann Blakeslee de que “as ‘práticas residuais’ dos escritores podem, portanto, funcionar como obstáculos bem como estratégias”. Em outras palavras, o conhecimento dos escritores sobre gêneros familiares pode prejudicar a habilidade de escrever em gêneros não familiares. Uma forma de o conhecimento prévio afetar nosso aprendizado são os traços daqueles gêneros conhecidos aparecerem em novos textos, uma vez que os escritores partem de gêneros conhecidos para escrever os novos. Nesses casos, gêneros não necessariamente permanecem distintos, mas podem entrelaçar-se com outros, especialmente quando os estudantes abordam gêneros não familiares 102


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através de suas experiências com gêneros de maior familiaridade. Cathy Tower (2003, p.36), por exemplo, relata que estudantes podem empregar “formas intermediárias de escrita” “em seu caminho para a competência com [um] novo gênero” e encoraja professores a aceitarem tais formas intermediárias como parte do processo de aprendizado, mesmo quando elas propiciam maior exposição aos gêneros que desejam que seus alunos escrevam. De modo similar, Robyn Woodward-Kron (2005) vê o que denomina de gêneros embutidos/ microgêneros dentro de estruturas de gêneros mais amplas e argumenta que estas mostram o que os estudantes precisam trabalhar enquanto aprendem a fazer o tipo de escrita disciplinar exigida deles: a presença de gêneros embutidos como microgêneros nos vários argumentos em estruturas expositivas [exposição tal como definido pela escola australiana] sugere que os microgêneros têm uma função didática, referidas nesse trabalho como pontes de aprendizado textual. (WOODWARD-KRON, 2005, p.38)

Outros estudos também têm reportado que características de gêneros já conhecidos aparecem em textos que tentam novos gêneros, talvez revelando andaimes necessários, mas impactando potencialmente o aprendizado bem-sucedido. Em seu próprio estudo, Tardy (2005) expõe que um pós-graduando falante não nativo usou seu conhecimento de trabalhos acadêmicos para escrever sua dissertação, percebendo suas semelhanças, mas ainda supergeneralizando alguns aspectos do trabalho acadêmico na dissertação. Mike Palmquist (2005) descobriu a partir de entrevistas com seis estudantes escrevendo documentos na web, que todos menos um website mostravam não somente as experiências dos alunos como leitores de websites, mas também a influência de documentos impressos que conheciam – por exemplo, alguns lembravam ensaios acadêmicos ou antologias literá103


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rias. Apenas um estudante criou um gênero sem modelo impresso, e Palmquist (2005, p.232) sugere que isso se deve “muito provavelmente ao seu trabalho em um tipo de site que não possui um análogo impresso – um site comercial para um pequeno negócio”. O conhecimento prévio sobre gêneros pode, claramente, interferir com o desenvolvimento de novas práticas de gênero pelos estudantes. Melanie Kill (2004, p.12) argumenta que estudantes “sabem que podem se fazer legíveis em certos gêneros, e então arriscam discordância ao incorporar aqueles gêneros, mesmo quando não são, de outro modo, necessários”. Ela continua: “a apropriação da forma antes da função claramente explica parte da discordância que pode surgir quando os estudantes começam a escrever na universidade, mas penso que o reconhecimento dessas questões de identidade explica ainda mais” para aquelas ações (2004, p.12). Blakeslee (1997) chega a uma conclusão similar ao estudar um aluno avançado de pós-graduação aprendendo a escrever como aprendiz (aprendizado situado) na composição de um artigo científico com um professor titular de física. O aluno estudado por ela usou gêneros mais familiares, incluindo relatórios de progresso e trabalhos de conferências, para esboçar o artigo. Ela observa que “a familiaridade dos calouros e seu conforto com suas habilidades e estratégias já existentes – sua dependência das práticas residuais – pode interferir no reconhecimento e uso, por parte do aluno, de novas abordagens e novas formas de aprendizado” (BLAKESLEE, 1997, p.133). Ela conclui: “práticas residuais trazidas das experiências e do treinamento prévios dos alunos podem se tornar estratégias importantes, e até obstáculos, conforme os alunos encontrem novas formas de pensar e agir em seus domínios” (1997, p.138). O grau e a dificuldade de aplicação de conhecimentos prévios a novas situações também varia de indivíduo para indivíduo. Reiff e

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Bawarshi (2011) encontraram alguns estudantes (atravessadores de fronteiras5) mais dispostos que outros a atravessar domínios de Gênero. Comparando pesquisas sobre aprendizagem baseada na prática e sobre contextos instrucionais de aprendizagem, Tardy (2006, p.94) conclui: “ambos os contextos mostram que a a experiência ou a exposição prévias a gêneros podem influenciar no aprendizado de gênero, embora nem sempre positivamente. De outro modo, o que os aprendizes trazem [sic] para um novo gênero – em termos de experiência, exposição, prática ou conhecimento prévio – é importante, embora não possamos predizer se essas experiências anteriores serão positivas ou negativas”. No final, a pesquisa deixa claro que aprender do conhecimento prévio é, como Tardy (2006, p.84) descreve, “um processo altamente individual”. Enquanto um número de pesquisas demonstra que estudantes usam o conhecimento prévio de modos úteis e pouco úteis, outro número de pesquisas questiona se o conhecimento pode ser transferido de uma situação para outra e, especialmente, de um domínio para outro. Como Tardy (2006, p.94) escreve, os alunos têm “dificuldades em transferir conhecimento desenvolvido em um domínio para outro”. Reiff e Bawarshi (2011) também descobriram que estudantes geralmente não se baseiam em um domínio para escrever em outro. Aparentemente existem barreiras entre conhecimento de gêneros públicos, profissionais e pessoais (como blogs, relatórios, emails) e conhecimento de gêneros acadêmicos. Graham Smart (2000, p. 245) chega a uma conclusão similar, sugerindo que: Expertise em escrita não é facilmente transferível de um domínio do discurso para outro, mesmo por profissionais altamente habilidosos trabalhando dentro de uma situação ocu5. O termo “boundary crossers” se refere a pessoas que têm o hábito de ultrapassar os limites conhecidos

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pacional única. Quando atingida, a reinvenção de expertise requerida para suceder em um novo domínio significa aprender a exercer um papel em um ‘jogo’ sociorretórico não familiar (para usar o termo de Wittgenstein) e envolve o desenvolvimento de vários níveis diferentes que somente podem vir da experiência.

A transferência, teórica e experimentalmente, certamente requer experiência direta e conhecimento explícito, mas a questão de transferibilidade da consciência de gênero ainda deve ser estabelecida. Movimentos entre domínios são claramente difíceis, mas e quanto à transferência dentro de domínios? Talvez alguns dos usos menos bem sucedidos de conhecimento prévio, descrito nos estudos acima, derivem das dificuldades de transferências entre domínios. As pesquisas sobre conhecimento prévio sugerem, todavia, que os estudantes irão tentar usar o conhecimento prévio em novas situações. Também pode sugerir que transferir conhecimento dentro do domínio acadêmico cria menos obstáculos que passar do domínio pessoal ou público para o acadêmico. Poderia a instrução de como transferir conhecimento, dentro de um contexto de ensino da consciência de gênero em vez de apenas gêneros específicos,, ajudar os estudantes a conectar o aprendizado anterior ao novo aprendizado mais facilmente? Tardy (2006, p.86-87) também reconhece que os achados sobre transferibilidade são baseados principalmente em entrevistas e não em textos de fato: “é possível que escritores possam transferir padrões particulares de discursos ou gêneros sem a consciência de que o fazem”, ela diz, pontuando que transferibilidade é um questão particularmente “desconcertante” para a pesquisa e para a pedagogia. Como Tardy (2006) sugere, o que mais poderia contribuir para resolver questões de transferibilidade são estudos longitudinais, que tracem o conhecimento de gênero dos estudantes através de múlti-

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plos domínios e que incluam instrução de consciência de gênero e de como transferir o conhecimento de gêneros. Com tal programa de pesquisas sobre a influência do conhecimento prévio no aprendizado de novos gêneros, professores devem certamente se perguntar quais os efeitos que o conhecimento prévio e o repertório de gêneros existentes dos alunos têm sobre o seu aprendizado em nossas aulas. Com esse estudo, levamos essas preocupações para a aula de Devitt de escrita para recém-ingressados e perguntamos: quais gêneros os alunos no curso de escrita de Devitt já conhecem quando chegam a sua aula? E como aqueles estudantes usam os gêneros já conhecidos para escrever novos gêneros para a aula? Dado o escopo limitado do estudo, podemos relatar somente nossas tentativas de ganhar acesso ao conhecimento prévio sobre gêneros dos estudantes, para aprender quais gêneros e conhecimento sobre gêneros os alunos trouxeram consigo para a aula.

Métodos Para começar a responder essas questões, desenhamos um estudo de como escritores falantes nativos, de idade universitária, retomam os gêneros que conhecem quando escrevem novos gêneros dentro de um domínio acadêmico. Como parte desse estudo, procuramos descobrir o conhecimento prévio dos estudantes de três formas primárias: perguntando quais gêneros já conheciam, pedindo que descrevessem o que sabiam sobre os gêneros mais familiares e examinando seus textos para traços de conhecimento sobre gêneros. Reportamos aqui apenas o que os alunos declararam sobre seus conhecimentos prévios e o que descobrimos daquela porção do estudo que pode informar e influenciar nossas tentativas de usar o conhecimento prévio dos alunos em nosso ensinar.

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Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

Examinamos as práticas e estratégias de escrita de um grupo de quinze alunos universitários que completaram o curso de escrita para recém-ingressados, ministrado por Devitt na Universidade do Kansas durante o outono de 20066. Catorze dos quinze participantes relataram que esse era o primeiro semestre em universidade ou faculdade, e um estudante mencionou cursos isolados em uma faculdade local. Dado que a matrícula no curso é controlada mais pela preferência dos estudantes pelo horário das aulas do que pelo instrutor, os estudantes representavam uma coleção razoavelmente aleatória de recém-ingressados, com diferentes interesses, opções de curso, classe social e experiência educacional7. Durante o semestre, usando o livro Scenes of Writing (2004) de Devitt, Reiff, e Bawarshi, e mantendo os objetivos do programa de escrita do curso, os estudantes aprenderam como observar, descrever, analisar cenas, situações e gêneros, fizeram análises e críticas de gênerose compuseram ensaios comparativos/contrastivos, artigos analíticos, autoavaliações e uma variedade de gêneros não acadêmicos de escolha própria. De cada estudante, coletamos quatro textos que haviam produzido como parte de requerimentos formais do curso e dois questionários acerca de suas prévias experiências com e do conhecimento sobre gêneros. Para capturar a escrita acadêmica que os alunos produziram antes do ensino explícito de gêneros no curso, também coletamos suas respostas a uma atividade de escrita no primeiro dia de aula. Essa atividade deixava o gênero não especificado, requerendo apenas um escrito de nível superior: “para fornecer um

6. Originalmente, dezenove dos vinte e dois estudantes matriculados no curso (86%) concordaram em participar do estudo; todavia, o curso passou por reduções (três alunos). Esses três estudantes foram levados em consideração apenas quando examinando a informação relatada no primeiro questionário, mas não nas demais análises. 7. Os estudantes também representaram a universidade tipicamente com todos à exceção de um sendo caucasianos. Não coletamos dados demográficos.

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exemplar de sua escrita, por favor, use o tempo restante da aula para escrever sobre o ensino médio (você poderá escolher o escolher qualquer abordagem ao tema que desejar)”. Tais trabalhos, escritos em uma única aula, deram um vislumbre de qual gênero cada estudante poderia escolher para escrever no domínio acadêmico dentre todos os gêneros de seu conhecimento – acrescido, claro, das expectativas dos estudantes sobre a universidade, cursos de escrita universitários e o professor.

Quais gêneros os estudantes relataram se lembrar do Ensino Médio Em uma tentativa de descobrir o que os estudantes poderiam relatar como repertório prévio sobre gêneros, nós coletamos dois questionários nos quais os alunos relatavam os tipos de escrita que lembravam ter realizado no Ensino Médio e alhures, a natureza de tais gêneros e quais gêneros gostavam mais e menos de escrever. Não estávamos tão interessados aqui no que os estudantes lembravam ter aprendido de fato no Ensino Médio, mas o que lembravam ter aprendido no Ensino Médio. Aplicamos o primeiro questionário no primeiro dia de aula, antes de qualquer aula sobre gêneros, e o segundo questionário no último dia de aula, pedindo aos estudantes para usar seus novos conhecimentos analíticos sobre gêneros para discorrer sobre aqueles relatados no primeiro questionário. Na primeira pesquisa, fizemos aos alunos duas perguntas acerca dos gêneros que aprenderam a escrever no Ensino Médio: “seus professores podem ter pedido que escrevessem diferentes textos no Ensino Médio. Que tipos de escrita lembra ter aprendido nas aulas de língua Inglesa?” e “que outros tipos de escrita lembram ter praticado no ensino médio?”. Para ambas as perguntas, solicitamos dos alunos a listagem e descrição dos tipos de escrita e dos projetos de escrita. 109


Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

Textos persuasivos/Ensaios

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Pesquisas

5

Comparar e constrastar

7

Ensaios

4

Poemas/Poesia

4

Trabalhos informativos

3

Trabalhos comparatives

2

Estórias não ficcionais

2

Trabalhos opinativos

2

Trabalhos de conclusão

2

Figura 1. Os gêneros mais comuns lembrados pelos estudantes de seu aprendizado em aulas do ensino médio.

Os estudantes relataram um total de quarenta e dois tipos de escrita aprendidos no Ensino Médio nas aulas de língua inglesa. A Figura 1 expõe as respostas mais comuns a essa pergunta. Outras respostas (aquelas mencionadas apenas uma vez) incluem trabalhos dissertativos, análise literária, escrita temporizada, contos, estórias, memórias especiais, artigos, cartas, vinhetas, ensaios detalhistas, ensaios, haiku, bilhetes, portfólio de desempenho acadêmico, resumos, textos argumentativos, redações, sumários, ensaios analíticos, trabalhos narrativos, trabalhos descritivos, currículos e instruções. Além dos tipos de escrita aprendidos nas aulas de língua portuguesa [língua inglesa, no original] a primeira pesquisa solicitou que os alunos nomeassem e descrevessem os gêneros aprendidos em outras disciplinas no Ensino Médio. Os estudantes deram vinte e duas respostas, muitas das quais se sobrepuseram às respostas da primeira questão, incluindo pesquisas (2), comparar e contrastar (1), contos (1),

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persuadir (1) e narrativas (1). Os gêneros não mencionados antes incluíam biografia, ensaio surpresa, diários, reflexões, documentos formais e escrita livre. Dois alunos também mencionaram análise, “análise de poesia” e “análise de um livro”. Se as respostas para essa pergunta são combinadas com a resposta anterior, os gêneros mais comuns reportados pelos estudantes como aprendidos durante o Ensino Médio afastam-se um pouco da Figura 1 com a adição de contos e narrativas (ver Figura 2). Textos persuasivos/Ensaios

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Pesquisas

7

Comparar e constrastar

6

Ensaios

5

Poemas/Poesia

4

Trabalhos informativos

3

Trabalhos comparatives

2

Estórias ficcionais

2

Estórias não ficcionais

2

Textos persuasivos/Ensaios

2

Contos

2

Trabalhos narrativos/ narrativas

2

Trabalhos opinativos

2

Trabalhos de conclusão

2

Figura 2. Total de tipos de escrita que os estudantes lembram ter aprendido no Ensino Médio.

Finalmente, perguntamos que tipos de escrita os alunos haviam aprendido fora do Ensino Médio (Figura 3). A lista de gêneros rela-

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Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

tados, claro, não representa todo o conhecimento prévio de gênero dos alunos. Os indivíduos conhecem bem muitos gêneros os quais não são pensados como “tipos de escrita”, a menos que sejam explicitamente levados a pensar dessa maneira (Devitt, 1991). No segundo questionário, ao final de um semestre de imersão em análise retórica de gênero e prática de uma vasta gama de gêneros, a lista de gêneros que os alunos haviam vivenciado dentro e fora do Ensino Médio foi muito mais específica em nomenclatura e abrangeu uma gama maior de gêneros, incluindo cartas de candidatura a emprego, cartas de recomendação e discursos, por exemplo. Todavia, os alunos não reportaram escrever emails, cartões ou, um de nossos exemplos favoritos, listas de compras. Poemas/Poesia

4

Currículo

3

Informativo

2

Cartas

2

Contos

2

Diários

2

Estórias cômicas

1

Cartas oficiais

1

Persuasivo

1

Pesquisas

1

Figura 3: Gêneros mais comuns lembrados pelos estudantes como aprendidos fora do ensino médio.

Mesmo que pudéssemos criar uma longa lista de todos os gêneros que um estudante possa ter em seu repertório de gêneros, ela ainda não capturaria a totalidade ou riqueza do conhecimento pré-

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vio sobre gêneros dos estudantes. Ter experiência com um gênero não significa saber tudo sobre ele, ou mesmo ser fluente no gênero. Aprender é sempre parcial, fragmentado, individualizado e mutável. Todavia, uma forma de termos pelo menos vislumbres do que a listagem de gêneros que os alunos lembram significa para os alunos é perguntar a eles. Assim, além de nomear os gêneros lembrados, pedimos aos alunos que descrevessem as qualidades desses gêneros. Embora nem todos os tenham descrito ou descrito em detalhes, aqueles que o fizeram ofereceram insights quanto à natureza do que conscientemente lembravam e reportaram sobre os gêneros que vivenciaram.

Como os alunos descreveram os gêneros que conheciam O que os estudantes relataram ter lembrado sobre os gêneros que escreveram no Ensino Médio, na primeira pesquisa é, de fato, parcial, concentrado no conteúdo e no formato em detrimento do propósito retórico e da audiência. A maioria dos estudantes, com poucas as exceções, não relatou a compreensão de seus gêneros acadêmicos em termos de situações retóricas. Um estudante, Eric, encapsula muitos dos gêneros nomeados com seu propósito: Persuasivo ‘tentar persuadir o leitor’ Comparar e contrastar ‘mostrar similaridades e diferenças’ Argumentativo ‘mostram lados + e –’ Redação ‘trabalho de ficção’ Informativo ‘explicar’ Resumo ‘revisar’

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Algumas ideias para ensinar novos gêneros a partir de velhos gêneros

Três estudantes mencionam e nomeiam diretamente o leitor como um componente ou aspecto significante do gênero: Eric descreve o texto persuasivo como uma tentativa de “persuadir o leitor”; Kristen descreve o texto persuasivo como aquele no qual se “descreve algo com o qual se importa muito e tenta fazer seu leitor se sentir do mesmo modo”; e Julie caracteriza “textos descritivos” como “éramos pedidos para descrever por escrito um cômodo usando imagética e nossos sentidos. Descrever um cômodo e lembrar que o leitor não pode vê-lo fisicamente é desafiador”. Salientamos que o propósito também possui um papel importante nessas descrições, tal como na descrição de Kristen para textos comparativos e contrastivos na comparação ou exposição de similaridades e na exposição ou descrição de diferenças. Kristen caracteriza a análise literária em função do propósito, também, mas de modo que certamente não seria bem visto por seus instrutores de nível superior: você “lê um trecho de literatura e descreve o que houve”. Curtis pode estar criando um novo gênero quando descreve que o propósito do seu professor de Ensino Médio para as tarefas escritas: “muitas vezes líamos um livro e respondíamos perguntas sobre questões morais dele. Algumas das perguntas tentavam nos preparar para a prova, outras eram apenas questões porque meu professor adorava ler nossos pensamentos”. Se excluirmos a palavra “comparar” e “descrever” apenas como constituindo uma descrição do propósito, então somente quatro dos treze estudantes que fizeram descrições usaram algum elemento da situação retórica para descrever pelo menos um dos gêneros com os quais tinham experiências anteriores. O conteúdo dos gêneros aparece nas descrições dos estudantes mais comumente que elementos de situação retórica. Doze dos treze estudantes especificaram o conteúdo de pelo menos um gênero. Conteúdo e propósito estão combinados na descrição de Andrea de

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seu trabalho de conclusão “tínhamos que ler dois livros e compará-los não somente com nossas próprias palavras, mas levando a crítica e a opinião do autor em consideração, também”. Gail combina o propósito e o conteúdo na descrição do trabalho comparativo/contrastivo: “para trabalhos comparativos[,] nós comparamos nosso tópico a outro com raciocínio e fatos”, mas ela reduz o trabalho de pesquisa à natureza de sua evidência, como “predominantemente factual”. Ela descreve os trabalhos opinativos também em função das evidências, “baseado em nossa opinião”. A descrição de Felix sobre ensaios é exemplo específico do conteúdo, “os ensaios que escrevemos se concentravam nos trechos dos romances que líamos, tais como simbolismo e estrutura”. O conteúdo se torna tudo quando Diane especifica que trabalhos de comparação e contraste eram “sempre sobre um livro e um filme ou 2 livros”. E uma estudante, Rachel, não faz nenhuma generalização ao nomear somente o conteúdo de seu trabalho: “trabalho o rei das moscas, 1984”. Três estudantes lembram o formato dos gêneros em termos vividamente específicos que deixam claro que a solicitação numérica do professor causou impacto. A descrição de Sara dos trabalhos persuasivos/informativos especifica que “trabalhos persuasivos/informativos têm tipicamente 5 páginas, alguns com páginas de obras citadas etc.”. Ela também nota que “escrita temporizada eram textos de 5 parágrafos voltados para o que estávamos aprendendo”. Oliver lembra que o “ensaio detalhado” “[deve] incluir 10-15 citações ao longo de 10-15 páginas”. Ele combina esses detalhes do formato com a descrição do processo de escrita do que parece ser uma pesquisa: “incluindo 100 cartões de anotação, cada um com um fato sobre o autor. Vinte deviam ser citações”. O processo genérico de escrever um trabalho de pesquisa aparece na descrição de três estudantes. Quentin observa que o trabalho de pesquisa envolvia “fazer anota-

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ções, bibliografia e esboços”. Similarmente, Kristen explica que em um trabalho de conclusão, você “escolhe um tópico, faz anotações, entrevistas, esboços, trabalhos citados/consultados e a versão final”. Andrea indica alguns elementos do processo em sua descrição de “trabalho de conclusão”: “tínhamos que ler dois livros e compará-los não somente com nossas próprias palavras, mas levando a crítica e a opinião do autor em consideração, também”. As memórias afetivas dos gêneros que os alunos aprenderam foram lembrados mais comumente para os assim chamados gêneros “criativos” (descritos por Eric como “obras de ficção”). Por exemplo, Andrea observa “poesia era divertido. Nós aprendíamos sobre diferentes tipos de poesia e fazíamos um portfólio de poesia nossa e dos outros”. Matthew acrescenta que “os trabalhos de escrita criativa eram meus favoritos”. Gêneros acadêmicos também tiveram memórias afetivas associadas a eles, mas frequentemente mais negativas. Trabalhos comparativos “eram divertidos às vezes”, de acordo com Diane. Sara declara que “trabalhos dissertativos eram particularmente difíceis para mim. Eles tomavam mais tempo, e às vezes era difícil expor meu ponto de vista do jeito certo”. E Peter descreve todas as suas atividades de língua inglesa de forma negativo “longos, chatos, repetitivos. Era difícil escrever sobre tópicos que não tinha interesse”. Claro, a pesquisa posteriormente questionou os alunos por quais gêneros tinham mais ou menos apreço, portanto a resposta afetiva pode ter sido suscitada por nossas perguntas.

O que fazer com essa informação na sala de aula O nosso estudo descobriu o conhecimento prévio sobre gêneros dos alunos de Devitt? Certamente que não. Outro método de pesquisa teria conseguido relatos de outros conhecimentos sobre gêneros. Grupos focais, em particular, poderiam ter lembrados os alunos 116


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de conhecimentos sobre gêneros que tivessem aprendido e de gêneros que tivessem escrito. Os textos que esses estudantes escreveram posteriormente também demonstraram que eles tinham conhecimento de características de gêneros que não eram indicados em suas respostas. Mas queríamos abordar esse estudo primeiramente da perspectiva do professor: o que o professor poderia facilmente descobrir sobre o conhecimento prévio de seus alunos que pudesse usar para ministrar aquele curso? Qualquer combinação de métodos de pesquisa muito provavelmente não poderia descobrir, de verdade, o conhecimento prévio sobre gêneros dos alunos. O conhecimento é simplesmente demasiado complexo, submerso e individual. De modo mais relevante, pesquisas existentes sobre o conhecimento prévio de gêneros podem suscitar relatos de conhecimentos a que os estudantes não teriam, de fato, acesso imediato em nossos cursos. Os estudantes poderiam alegar “saber” que trabalhos persuasivos precisam persuadir o leitor, por exemplo; entretanto, sem nosso estímulo, primeiro se concentraram no conteúdo em detrimento de qualquer audiência retórica. Se quisermos fazer uso do conhecimento prévio dos alunos em nosso ensino, precisamos fazer uso do conhecimento que os alunos podem facilmente ter, não o conhecimento que eles fingem ter para nosso benefício. Se quisermos ajudá-los a transferir seu conhecimento prévio para novas situações em nossas aulas, precisamos começar com o conhecimento a que eles têm pronto acesso. Foi isso que tentamos descobrir com nosso pequeno estudo exploratório. Um resultado desse estudo é que conhecimento prévio sobre gêneros é fortemente baseado no conteúdo, com formas superespecificadas e reações afetivas em afastado segundo lugar. Uma vez que a nossa compreensão e nosso ensino de gêneros atuais são tão retoricamente baseados, fica claro, com esses pequenos resultados, que precisaremos trabalhar para ajudar os estudantes a verem gêneros primeiro e acima de tudo como retóricos. 117


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Outro resultado notável desse estudo é quão pouco conhecimento partilhado os estudantes trouxeram para a aula. Sua atenção para o conteúdo era o maior aspecto em comum do grupo. Nenhum gênero acadêmico foi listado por sequer metade dos estudantes. Nem um vocabulário em comum apareceu em suas descrições. Novamente, um método como grupos focais poderia ter resgatado mais conhecimento partilhado, porém os autorrelatos dos estudantes registraram pouco conhecimento de mundo em comum – ainda que os estudantes da universidade fossem relativamente homogêneros, com poucas escolas fornecendo grande parte dos estudantes. Essa falta de conhecimento de mundo partilhado representa uma falha no currículo escolar ou nos padrões educacionais do estado? Talvez, mas o sistema escolar do Kansas possui um currículo específico com gêneros específicos bem como aspectos primários a serem ensinados, mesmo que tais gêneros e tal linguagem não tenham aparecido visivelmente em nossa pesquisa. Mais provavelmente, a falta de conhecimento partilhado relatada indica uma lacuna entre instrução e aprendizado e a lacuna entre aprender e reter conhecimento. O currículo pode indicar gêneros e critérios, mas a menos que todos eles consistam de números particularmente memoráveis (20 cartões ou 10 citações ou 5 parágrafos com 3 sentenças cada), esse estudo sugere que a informação não estará prontamente disponível nas mentes dos alunos quando trabalhando conscientemente para lembrar o que sabem sobre gêneros. E o que o professor pode fazer? A pesquisa sobre conhecimento prévio de gêneros deixa claro que o conhecimento prévio tanto auxilia quanto inibe o aprendizado de novos gêneros. Os estudantes em nossas aulas serão auxiliados e inibidos por seus conhecimentos prévios de gênero. Queremos ajudá-los a fazer melhor uso desse conhecimento para auxiliá-los quando possível, e queremos ajudá-los a minimizar a quantidade de interferência causada. Dada a pouca 118


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probabilidade de nosso acesso ao conhecimento prévio de mesmo um indivíduo, muito menos de descobrir como trabalhar com uma turma inteira de conhecimentos individuais variantes, nós provavelmente não poderemos desenhar um currículo baseado em conhecimento prévio de gêneros. O máximo que podemos fazer é estimular estudantes a se lembrarem de alguns conceitos previamente aprendidos e trabalhar a partir deles. Muitos dos alunos de Devitt, por exemplo, quando estimulados em aula, lembraram ter escrito redações de cinco parágrafos. Ela poderia usar esse conhecimento, lembrado por alguns alunos, para distinguir seus trabalhos analíticos de suas redações temáticos de cinco parágrafos, e poderia ajudá-los a trabalhar a partir das habilidades que haviam aprendido na escrita daquele gênero (tais como a redação) para desenvolver as habilidades das quais necessitavam (como a ideia complexa controladora). Mas tal instrução direta, baseada em um conhecimento prévio pressuposto, não ajudará todos os alunos, uma vez que nem todos os alunos compartilham o mesmo conhecimento. E nem todos os alunos estarão aptos a transferir seus conhecimentos do ensino médio para a universidade com sucesso. Uma estratégia específica pode tornar os novos gêneros que os alunos aprendem nas aulas em gêneros antecedentes que nós os ajudaremos a transferir para o próximo gênero a ser aprendido em nossas aulas. Se ensinarmos os alunos a escrever trabalhos analíticos, por exemplo, podemos usar esse conhecimento explicitamente para ensinar a criticar. Podemos demonstrar, dessa forma, como o conhecimento prévio é transferido para novas situações prestativamente e como se defender dos obstáculos do conhecimento prévio. Essa estratégia tem falhas, claro, uma vez que o conhecimento recém-adquirido mal foi processado como conhecimento prévio cognitivo e genuíno, mas talvez sirva para demonstrar aos estudantes como tal transferência pode ocorrer. Mais significativamente, ela enfatiza 119


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que precisamos ensinar consciência de conhecimento prévio sobre gêneros como parte do ensino da consciência de gêneros. Enquanto não temos dúvidas da importância do conhecimento prévio para o aprendizado, ficamos a imaginar como usar os achados dessa pesquisa no ensino. Se não podemos saber o que os estudantes sabem, como podemos ajudá-los a usar tal conhecimento para aprender? Se não podem necessariamente transferir o conhecimento para uma nova situação sem orientação, e não podemos guiá-los porque não sabemos o que sabem, como irão aprender a maximizar os benefícios e minimizar os empecilhos do conhecimento prévio? Nossa resposta final a essas questões não é tão desanimador quanto provavelmente parece. Podemos estar aptos a ensinar a percepção da influência do conhecimento prévio para que os alunos comecem a perceber quando estão recorrendo a estratégias ou gêneros já conhecidos. Podemos estar aptos a ensinar algumas estratégias de transferência, as quais poderão ser usadas independentemente do conhecimento prévio que tentem transferir: por exemplo, notar a situação retórica subjacente ao novo gênero e salientar o que é similar e o que é diferente do que já se encontrou antes. Uma vez que o conteúdo parece se destacar no conhecimento sobre gêneros dos alunos de Devitt, poderíamos ter trabalhado para ver o grande número de gêneros que recorrem a conteúdos similares e os elementos retóricos que modelam esse conhecimento. Na melhor das hipóteses, poderíamos adicionar ao nosso currículo de gêneros a compreensão consciente do conhecimento prévio para acrescentar à compreensão consciente de gêneros. Consciência não é tudo, mas pode ser tudo que temos. Referências BLAKESLEE, A. Activity, context, interaction, and authority: learning to write scientific papers in situ. Journal of Business and Technical Communication, v. 11, n. 2, p. 135-169, April 1997.

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DEVITT, A. J. Intertextuality in tax accounting: generic, referential, and functional. In: BAZERMAN, C; PARADIS, J. (Eds). Textual Dynamics of the professions: historical and contemporary studies of writing in professional communities. Wisconsin: University of Wisconsin Press, 1991. p. 336-357 DEVITT, A. J. Writing Genres. Carbondale: Southern Illinois University Press, 2004. DEVITT. A. J.; REIFF, M.J.; BAWARSHI, A. Scenes of writing: strategies for composing with genres. New York: Pearson, 2004. JAMIESON, K. M. Antecedent genres as rhetorical constraint. Quarterly Journal of Speech, v. 61, n. 4, p. 406-415, 1975. KILL, M. Transferring selves into students: uptakes and mis(up)takes in the first year composition class. Conference on College Composition and Communication. San Antonio TX, March 27, 2004. MYHILL, D. Prior knowledge and the (re) production of school written genres. In: KOSTOULI, T. (Ed.). Writing in context(s): textual practice of learning processes in sociocultural settings. New York: Springer Science and Business Media, 2006. p. 117-136. MYHILL, D. Testing times: the impact of prior knowledge on written genres produced in examination settings. Assessment in Education, v. 12, n. 3, p. 289300, 2005. ORLIKOWSKI, W.J.; YATES, J. Genre repertoire: the structuring of communicative practices in organizations. Administrative Science Quarterly, v. 39, n. 4, p. 541574, Dec. 1994. PALMQUIST, M. Writing in emerging genres: Student web sites in writing and writing intensive classes. In: MORAN, C; HERRINGTON, A. (Eds). Genre Across the Curriculum. Utah: Utah State University Press, 2005. p. 219-244. REIFF, M. J.; BAWARSHI, A. Tracing discursive resources: how students use prior genre knowledge to negotiate new writing contexts in first-year composition. Written Communication, v. 28, n. 3, p. 312-337, 2011. SMART, G. Reinventing expertise: experience writers in the workplace encounter a new genres. In: DIAS, P; PARÉ, A (Eds.). Transitions: writing in academic and workplace settings. New York: Hampton Press, 2000. p. 223-252. TARDY, C. M. ‘It’s like a story’: rhetorical knowledge development in advanced academic literacy. Journal of English for Academic Purposes, v. 4, n. 4, p. 325338, 2005. TARDY, C. M. Researching first and second language genre learning: a comparative review and a look ahead. Journal of Second Language Writing, v. 15, n. 2, p. 79-101, 2006. TOWER, C. Genre development and elementary students’ informational writing: a review of the literature.” Literacy Research and Instruction, v. 42, n. 4, p. 1430, 2003. WOODWARD-KRON, R. The role of genre and embedded genres in tertiary students’ writing. Prospect, v. 20, n. 3, p. 24-41, 2005.

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“Penso que toda a minha pedagogia de alguma forma foi moldada por uma consciência de gênero. Como fui me tornando cada vez mais consciente dos gêneros, essa consciência teve um efeito cada vez maior em moldar meu pensamento sobre o ensino.” — Charles Bazerman. Série Bate-Papo Acadêmico. v.1 Gêneros Textuais. Recife, 2011. Disponível para acesso em: http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/volumes


5 Memórias literárias: reflexões sobre práticas de escrita1 Beth Marcuschi 2 (UFPE)

Introdução Nas duas últimas décadas, temos observado, no Brasil, uma efervescente produção relacionada à pesquisa sobre gêneros (textuais e discursivos), incluindo-se aí publicações de autores nacionais e de traduções para o português. Para exemplificar, indicamos algumas das obras mais recentes que trazem a palavra gênero no título3: “Gênero: história, teoria, pesquisa e ensino”, Bawarshi e Reiff (2013); “Gêneros textuais, tipificação e interação”; “Gênero, agência e escrita”; “Escrita, gênero e interação social”, Bazerman (2005; 2006; 2007); “Gêneros textuais e cognição”, Bonini (2002); “Gêneros do discurso na escola”, Brandão (2000); “Gêneros textuais: teoria e prática”, Cristovão e Nascimento (2004); “Gêneros textuais & ensino”, Dionisio, Machado e Bezerra (2002); “Gêneros textuais, reflexões e ensino”, Karwoski, Gaydeczka e Brito (2011); “Gêneros: reflexões em análise do discurso”, Machado e Mello (2004); “Produção textual, análise de

1. Essa é uma versão revista do artigo “A escrita do gênero memórias literárias no espaço escolar: desafios e possibilidades”, publicado nos Cadernos Cenpec. São Paulo, v.2, n.1, p.47-73, julho 2012. 2. E-mail para contato: bethmufpe@gmail.com. 3. Apesar de não trazer a palavra gênero no título, que aparece somente numa das seções da obra publicada em português, não podemos deixar de citar, por sua relevância na área, o texto “Os gêneros do discurso”, em Estética da criação verbal, de Bakhtin/ Voloshinov (1997).

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gêneros e compreensão”, Marcuschi (2008); “Hipertexto e gêneros digitais”, Marcuschi e Xavier (2004); “Gêneros textuais e práticas discursivas”, Meurer e Motta-Roth (2002); “Gêneros: teorias, métodos, debates”, Meurer, Bonini e Motta-Roth (2005); “Gênero textual, agência e tecnologia”, Miller (2012); “Gêneros textuais: da didática das línguas aos objetos de ensino”, Nascimento (2009); “Gêneros orais e escritos na escola”, Schneuwly, Dolz e colaboradores (2004a); “Gêneros literários”, Soares (2007). Certamente, há muitas outras produções, em livros, coletâneas e revistas, com ou sem a expressão gênero discursivo ou gênero textual no título que tratam da temática, mas os exemplos citados nos parecem suficientes para destacar o expressivo espaço que a questão tem recebido nos estudos da linguagem e, mais especificamente, no ensino de língua materna e estrangeira. Também não podemos deixar de reconhecer que a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN) para o Ensino Fundamental, 3º e 4º ciclos (BRASIL, 1998) e para o Ensino Médio (BRASIL, 1999), o estabelecimento de critérios para um Programa Nacional de Avaliação de Livros Didáticos – PNLD (BATISTA, 2003), a consolidação do Exame Nacional do Ensino Médio – ENEM (INEP, 2005), a ampla divulgação da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro (doravante Olimpíada)4, dentre outras políticas educacionais, deram visibilidade e força ao estudo dos gêneros associado às práticas sociais como orientador dos eixos de leitura, produção de texto escrito, oralidade e conhecimentos linguísticos no ensino de língua materna. No presente trabalho, nosso objetivo é trazer algumas contribuições para a abordagem dos gêneros, mais precisamente dos gêneros vinculados ao discurso das memórias literárias, na sua relação com as práticas extraescolares, bem como do gênero memórias literárias em 4. Informações detalhadas a respeito do programa estão disponíveis em: www.escrevendoofuturo.org. br/conteudo/a-olimpiada/o-que-e-a-olimpiada Acesso em 10/03/2015.

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seu contexto de sala de aula. A escolha do gênero memórias literárias na relação com a escola está diretamente ligada ao crescente espaço a ele destinado nacionalmente no contexto da Olimpíada, aspecto que favoreceu nosso acesso a materiais que orientam sua proposta de ensino, via sequência didática, bem como a textos produzidos por alunos do sétimo e do oitavo anos5. Para darmos conta da empreitada, debatemos, nesta Introdução, conceitos básicos para a investigação, tais como as noções de gênero textual, produção escrita e processo de didatização. No item subsequente, exploramos o funcionamento dos gêneros associados ao discurso das memórias literárias, na relação com as práticas sociais nas quais esses gêneros se acham inseridos. Em seguida, trazemos para o debate as escolhas realizadas pelos alunos na elaboração de seus textos, tendo em vista as condições de produção disponibilizadas para os aprendizes nos materiais pedagógicos da Olimpíada. Nas Considerações Finais, apontamos os desafios e as possibilidades que estão postos, à escola, agência de letramento por excelência em nossa cultura, na abordagem dos gêneros como perspectiva estruturante dos objetos de ensino nas aulas de língua materna e, em particular, no tratamento pedagógico do gênero escolar memórias literárias. Bazerman, cujos trabalhos influenciaram largamente os estudos sobre gêneros no Brasil, nos ensina que “os gêneros são os lugares familiares para onde nos dirigimos para criar ações comunicativas inteligíveis uns com os outros e são os modelos que utilizamos para explorar o não-familiar” (BAZERMAN, 2006, p.23). Assim, frente a contextos próximos, nos sentiremos, na maioria das vezes, mais confortáveis e confiantes social e cognitivamente no uso de gêneros que frequentam o nosso cotidiano privado, profissional, institucional 5. Os textos analisados no presente trabalho foram escritos em 2010. Detalhes sobre o corpus analisado são apresentados na seção 3 deste artigo.

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etc. Por sua vez, diante de situações pouco corriqueiras, os gêneros que nos são familiares serão acionados para orientar nossas ações de linguagem, tendo em vista os propósitos interacionais que nos movem. Essas reflexões nos remetem à convicção de que o processo de escrita não se dá no vazio social, não é a-histórica, não ocorre à revelia de contextos culturais. Ao contrário, envolve sempre gêneros e sujeitos situados em práticas sociais das esferas pública e privada. Na perspectiva da Nova Retórica (MILLER, 2012; BAZERMAN, 2006, dentre outros), os gêneros são tidos como construções sociais que os sujeitos vão aprendendo e processando em função de suas necessidades. Nesse sentido, no dizer dos autores, os gêneros envolvem ações interlocutivas que organizam a vida das pessoas. Há, com certeza, práticas que dominamos com mais destreza, por integrarem nossa rotina, enquanto noutras não seremos tão fluentes. Um publicitário, por exemplo, conhece bem os gêneros textuais que circulam na esfera midiática, mas poderá não ter o mesmo domínio dos gêneros do âmbito do judiciário. Já um juiz estará, possivelmente, mais familiarizado com a escrita de sentenças e cartas precatórias do que com a elaboração de anúncios e jingles. Daí decorre, que, no processo de escrita, os gêneros, ao mesmo tempo em que colocam para os sujeitos condições de produção diferenciadas, deles requerem uma compreensão do contexto situacional e um repertório heterogêneo e variado de estratégias discursivas (MARCUSCHI, B., 2010). De fato, o autor precisa levar em conta, consciente ou inconscientemente, para quem, com que objetivo, sobre o que escreve; o tom (irônico, polido, formal, informal, crítico, conciliador etc.) que deseja imprimir ao seu texto; o suporte (livro, revista, jornal, encarte, mídia) em que o texto irá circular; os princípios básicos da textualização (progressão, articulação, coesão, coerência), dentre outras peculiaridades. Ele deve igualmente

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considerar que os gêneros não funcionam linearmente e, em graus bastante distintos, tanto impõem regularidades, quanto demandam escolhas e improvisos no contexto das práticas sociais. Deste modo, para ficarmos apenas num exemplo, o preenchimento de um formulário, em função de seus objetivos burocráticos, certamente coloca restrições mais salientes para o sujeito do que a elaboração de uma crônica, que oferece um espaço maior de escrita autoral. Essas breves reflexões apontam para questões relevantes que necessitam ser dimensionadas pela escola. Para Bazerman (2006, p. 53), “a sala de aula de escrita é um fórum complexo”, para onde adentram gêneros “que fluem de instituições vizinhas”. Por sua vez, como nos alertam Schneuwly e Dolz (2004b), na sala de aula, o gênero textual não é observado como constitutivo das práticas sociais apenas, mas é, ao mesmo tempo, objeto de ensino-aprendizagem. Assim, no trabalho pedagógico com os gêneros textuais, professores e alunos encontram-se num lugar social em que o espaço, o tempo e as ações discursivas do gênero de referência são comprimidos tanto espacial quanto temporalmente e funcionam de modo distinto daquele em que o gênero costuma circular. O gênero torna-se, portanto, dadas as condições escolares, em ‘gênero a aprender’. Como destacam os autores, para compreender bem a relação entre os objetos de linguagem trabalhados na escola e os que funcionam como referência é preciso, então, de nosso ponto de vista, partir do fato de que o gênero trabalhado na escola é sempre uma variação do gênero de referência, construída numa dinâmica de ensino-aprendizagem, para funcionar numa instituição cujo objetivo primeiro é precisamente este (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004b, p. 81).

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Para dar conta do desafio de tratar o gênero textual como objeto de ensino, sem, contudo, desvirtuar sua prática social de referência, os encaminhamentos pedagógicos precisam ser cuidadosa e adequadamente conduzidos. Embora alguns procedimentos didáticos sejam potencialmente generalizáveis, outros são bem mais específicos e devem levar em conta as características próprias do gênero, bem como as possibilidades de subvertê-las. Uma das conclusões que se pode extrair dessas ponderações iniciais é que o ensino de gêneros entendidos como constitutivos das práticas sociais não pode estar relacionado a um roteiro fixo de atividades. No nosso estudo, são os textos produzidos pelos estudantes, por ocasião da Olimpíada, edição 2010, na relação com o gênero de referência e com as condições de produção oferecidas aos aprendizes, que nos indicam os ganhos obtidos e os obstáculos enfrentados por professores e alunos no decorrer do processo de ensino-aprendizagem do gênero focalizado. Antes de nos debruçarmos sobre o contexto da sala de aula, sobre os materiais pedagógicos disponibilizados pela Olimpíada, bem como sobre os textos elaborados pelos alunos, exploramos, na próxima seção, o funcionamento, no contexto de diferentes gêneros que circulam nas práticas sociais não escolares, do discurso envolvido nas memórias literárias.

Gêneros, discurso e memórias literárias no contexto de práticas sociais diversas Podemos dizer que, em graus variados de abrangência, os mais variados gêneros possibilitam uma visada sobre contextos sócio-históricos passados, sem, contudo, se configurarem necessariamente como literários. Por sua vez, há igualmente textos literários que não se ocupam de questões vinculadas às lembranças das pessoas. Os

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gêneros relacionados às memórias literárias, como tentaremos deixar claro, contemplam essas condições discursivas: a remissão a tempos antigos, desde uma perspectiva contemporânea, e a valorização da singularidade e da estética literária. O desejo de compreender o universo e seus fenômenos, preservar o passado e manter as tradições da comunidade, via memórias dos mais sábios e experientes, transmitidas oralmente de geração em geração, sempre obcecou as sociedades humanas, desde seus primórdios. Daí a abundância de narrativas, mitos e lendas que floresceram no período. Para Lima (2007, p. 276), as sociedades ágrafas dependiam basicamente de sua memória para, ao longo do tempo, reter e transmitir as representações que lhes eram convenientes de perdurar. Para isso, utilizavam recursos como a dramatização, personalização e artifícios narrativos diversos, a fim de que as representações tivessem mais chances de sobreviver em um ambiente composto quase unicamente por memórias humanas.

Com o advento da escrita, as pessoas começaram a fixar na pedra, na madeira, no tecido, no pergaminho, no metal, no papel e em outros suportes, as ações, as invenções, as tragédias, as artes, os sentimentos humanos, entre outros acontecimentos, simples ou de maior magnitude. Assim, graças ao empenho de nossos obstinados antepassados, hoje dispomos de registros em razoável quantidade dos saberes e bens culturais construídos ao longo dos séculos pela humanidade. Esses registros nos permitem, a partir de um inevitável ponto de vista contemporâneo, analisar, conhecer, estudar, pesquisar e tentar reconstruir as mais diversas práticas sociais de períodos passados. É, em função desse potencial, que nos atrevemos a afirmar que a capacidade latente de acionar práticas discursivas diversas e

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de favorecer a recuperação e a investigação de contextos sociais mais antigos parece estar subjacente (em menor ou maior extensão) aos mais variados gêneros. Tomemos, como exemplo para respaldar nossas ponderações, o anúncio que, no século XIX, veiculava no Diario de Pernambuco (DP), a venda de “Uma maquina para copiar cartas, e uma burra tudo em bom estado: no Trapiche novo n.176”6. O anúncio do jornal tanto nos permite, hoje, reconstruir alguns dos costumes e necessidades sociais da época7, como nos oferece pistas a respeito da composição textual e da função sociocomunicativa8 assumidas pelo gênero anúncio no período (para ficarmos somente em dois aspectos, dentre os muitos que poderiam ser aprofundados). As condições de produção por nós reconstruídas nos possibilitam extrair algumas conclusões sobre o anúncio do DP: sua autoria não é identificada9; à época em que foi publicado, ele certamente remetia a uma ação retórica atual (oferecer um produto para venda) e não de tempos idos; parte do léxico nele utilizado não é mais de uso corrente e, para uma melhor compreensão do anúncio, hoje, precisa ser explicado e contextuali6. Diario de Pernambuco, Recife, 29 de agosto de 1842. Anúncio reproduzido na coluna “Os pequenos anúncios curiosos do Diário”, do mesmo jornal, em 16 de março de 2011, página A3. 7. Os costumes e necessidades do período precisariam ser melhor aprofundados e pesquisados, o que não é nosso objetivo aqui, mas é possível supor que ‘cartas’ eram escritas e distribuídas em quantidade razoável por certas instâncias (comércio, escritórios, judiciário, por exemplo), daí a ajuda que uma máquina poderia oferecer. Também é possível inferir que objetos valiosos eram cuidadosamente armazenados, por isso a expectativa de que uma ‘burra’ (caixa ger. de madeira em que se guardavam e/ ou transportavam coisas diversas, esp. valores, dinheiro etc.; cofre, dentre outros significados, segundo o Houaiss, Grande Dicionário da Língua Portuguesa) encontrasse compradores. 8. Sabe-se que os jornais, à época, tinham circulação restrita, mas também que o DP gozava de grande prestígio na Região. Portanto, pode-se inferir que o anúncio se dirigia a pessoas com razoável proficiência em leitura, conhecimento da linguagem quase cifrada da publicidade, algum poder aquisitivo etc.; percebe-se ainda, pela expressão “tudo em bom estado”, que o anúncio cuidava de destacar as qualidades que poderiam valorizar os produtos. 9. O que ‘personaliza’ o anúncio é a indicação do endereço, mais precisamente, do “Trapiche” (espécie de píer pequeno e de madeira associado a um armazém para embarque, desembarque e comercialização de mercadorias) em que os produtos se encontravam à venda.

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zado. Esses aspectos (por sua presença ou ausência), dentre outros, são de significativa relevância na caracterização do gênero memórias literárias, como veremos adiante. Consideremos, na continuidade de nossas reflexões, um trecho extraído de um artigo acadêmico, de autoria declarada: Até os séculos II-III d.C., ‘ler um livro’ significava normalmente ler um rolo: pegava-se o rolo com a mão direita, desenrolando-o progressivamente com a esquerda, a qual segurava a parte já lida; acabada a leitura, o rolo permanecia enrolado na mão esquerda. Essas diversas fases, bem como certos gestos e atitudes complementares, são largamente demonstrados nas representações iconográficas, sobretudo nos monumentos funerários. Neles encontramos o rolo que é seguro com a mão direita, enquanto a esquerda começa a desenrolá-lo, na fase inicial da leitura; (...) o rolo aberto no tipo chamado da ‘leitura interrompida’, seguro com apenas uma mão que, reunindo os dois cilindros nas extremidades, deixa livre a outra mão; (...) o rolo, enfim, novamente enrolado, seguro pela mão esquerda (CAVALLO, 1998, p. 78; ênfases do autor).

No trecho em questão, Guglielmo Cavallo, conhecido palentólogo e historiador italiano, descreve o que significava ‘ler um livro’ nos primeiros séculos depois de Cristo. O autor escreve, em princípio, para seus pares, e fala sobre “certos gestos e atitudes complementares” à leitura, de sujeitos que viveram há séculos atrás, em Roma. Esses atos, apesar de estarem localizados num passado distante, são apresentados como plenamente exequíveis (condição tida como relevante numa pesquisa científica), pois, no entender de Cavallo, são “largamente demonstrados nas representações iconográficas”. O vocabulário do artigo em sua tradução para o português é atual e de fácil compreensão, apesar do uso de alguns poucos termos técnicos mais sofisticados e específicos da área. 131


Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

As condições de produção do artigo acadêmico e do anúncio, aqui brevemente alinhavadas, são bastante distintas. Por ser de interesse para o nosso estudo, é importante, no entanto, trazermos à tona duas características comuns aos dois gêneros textuais: ambos permitem recuperar, por caminhos discursivos totalmente distintos, acontecimentos constitutivos de nossa memória cultural, seja local ou universal; e ambos se distanciam de gêneros da esfera literária, pois não lidam com o ficcional e também não evidenciam uma preocupação de natureza estética. Considerando a segunda característica, direcionemos então nossa atenção para o contexto discursivo da literatura. Gêneros como conto, romance, poema, crônica etc. são rotineiramente vinculados à esfera literária, enquanto gêneros como anúncio, receita culinária, reportagem, artigo científico etc. não o são. Apesar dessa constatação aparentemente simples e óbvia, não há consenso, nem entre os teóricos da literatura, nem entre os críticos literários, nem entre os aficcionados pela literatura, e nem entre os usuários de modo geral, sobre quais fenômenos essencialmente determinam as fronteiras da literariedade de um texto. Estabelecer esses limites não é tarefa simples, nem talvez possível. Conforme Paulino (2005, p. 57), “o ponto de equilíbrio entre o que une e o que separa práticas culturais nunca foi fácil de encontrar”. A noção de literariedade constitui, não há dúvida, um conceito complexo, polissêmico, histórica e culturalmente situado, e, ao debatê-lo, não é nossa pretensão esgotá-lo, nem estabelecer uma dicotomia entre o literário e o não literário, mas simplesmente situar a perspectiva aqui assumida. Cosson nos ajuda a refletir sobre a noção de literatura, ao dar saliência ao lugar único por ela ocupado em relação à linguagem. Para o autor, cabe à literatura “(...) tornar o mundo compreensível transformando a sua materialidade em palavras de cores, odores, sabores e formas intensamente humanas” (COSSON, 2006, p. 17),

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bem como proporcionar um modo peculiar “de inserção no mundo da escrita, posto que conduz ao domínio da palavra a partir dela mesma” (SOUZA; COSSON, 2011, p. 102). Paulino (2005, p. 60), por sua vez, nos ensina que “o texto literário, além de acumular esteticamente muitos outros textos, revela e questiona também convenções, normas e valores sociais”, pressupondo, nos papéis de autor e de leitor, sujeitos que se posicionam sobre o mundo. Complementarmente, entendemos que o gênero literário “tem como uma de suas características principais a ficcionalidade” (JAGUARIBE, 2007, p. 221-222), ou seja, embora se assente no real, seu discurso sobre o mundo pode subverter a lógica tida como natural. Mais explicitamente, os gêneros da literatura se distinguem (embora essa distinção nem sempre seja simples de ser identificada) dos gêneros de outras práticas sociais por uma certa transgressão do real, por um olhar próprio e reflexivo dos acontecimentos históricos e sociais, pelo uso mais intenso de recursos estilísticos da linguagem, pela aspiração de provocar experiências estéticas, éticas, ideológicas etc. no leitor presumido. Como destaca Paulino, nos gêneros da esfera literária, os automatismos de percepção textual do leitor passariam para um segundo plano, embora, por outro lado, os protocolos culturais estabeleçam limites e regras para as suas ações, como estabelecem para as textualizações. Institui-se assim um jogo entre tais protocolos e o caráter difuso, alógico, do imaginário, configurado e mobilizado pela ficção. Cria-se, ao mesmo tempo, uma ponte e um abismo entre um real social representado ficcionalmente – representação esta que, entre outras dimensões sociais, impõe uma necessidade de interpretação coerente pelo leitor – e a dimensão imaginária envolvida na leitura (PAULINO, 2005, p. 60).

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Há, certamente, um conjunto expressivo de gêneros da esfera literária que atendem aos parâmetros elencados e precisamos ir em busca de outros critérios, se quisermos distingui-los entre si, se quisermos, mais precisamente, caracterizar os gêneros que atendem às memórias literárias. Observemos, por exemplo, que, no âmbito social, há uma expectativa de que certas temáticas e/ou peculiaridades discursivas estejam mais relacionadas a determinados gêneros literários do que a outros. Assim, por sua tipificação sócio-histórica no âmbito das práticas sociais (BAZERMAN, 2005; 2006; 2007), os relatos de experiências simples do cotidiano são comumente relacionados a crônicas literárias; as narrativas envolvendo um ensinamento moral e animais com propriedades antropomórficas a fábulas; as narrativas que exploram a relação do homem com o mundo e procuram explicar, de maneira mágica, os fenômenos da natureza, o surgimento do mundo e do universo a mitos etc. Como se percebe, os gêneros citados não são, em primeiro plano, associados à recuperação, no presente, de lembranças antigas atravessadas pelo imaginário do autor e, por essa razão, não atendem a uma das especificidades mais esperadas no discurso das memórias literárias. As memórias literárias têm como propósito sociocomunicativo mais saliente recuperar, numa narrativa escrita de uma perspectiva contemporânea, vivências de tempos mais remotos (relacionadas a lugares, objetos, pessoas, fatos, sentimentos, valores etc.), experienciadas pelo autor (ou que lhe tenham sido contadas por outrem, mas que lhe digam respeito), numa linguagem que se configure como um ato discursivo próprio e recrie o real, sem um compromisso com a veracidade ou com a magnitude das ocorrências. De fato, o distanciamento temporal e as mudanças de valores, experiências e desejos a ele associadas inevitavelmente levam o memorialista a reconfigu-

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rar as passagens que as lembranças trazem à tona. Recordar é, assim, adicionar ao passado detalhes e cores que (provavelmente) não estavam lá, mas que foram sendo elaborados e reconfigurados ao longo dos tempos. Como bem aponta Saramago, na obra em que resgata histórias de seus primeiros quinze anos de vida, a criança que eu fui não viu a paisagem tal como o adulto em que se tornou seria tentado a imaginá-la desde a sua altura de homem. A criança, durante o tempo que o foi, estava simplesmente na paisagem, fazia parte dela, não dizia nem pensava, por estas ou outras palavras: ‘Que bela paisagem, que magnífico panorama, que deslumbrante ponto de vista!’ (...) Já não existe a casa em que nasci (...). Essa perda, porém, há muito tempo que deixou de me causar sofrimento porque, pelo poder reconstrutor da memória, posso levantar em cada instante as suas paredes brancas, plantar a oliveira que dava sombra à entrada, abrir e fechar o postigo da porta e a cancela do quintal (...). (SARAMAGO, 2006, p. 13-16, ênfases do autor).

Nas práticas sociais, a noção de memórias literárias tem delimitações difusas e opacas e pode ser entendida como um discurso que atravessa tanto gêneros de maior fôlego (como na obra “Anarquistas, graças a Deus - Memórias”, de Zélia Gattai; ou no romance “O filho eterno”, de Cristóvão Tezza), quanto de menor extensão (como no poema “Confidência do Itabirano”, de Carlos Drummond de Andrade). Em qualquer dos casos, o(a) autor(a) retoma lembranças por ele(a) vivenciadas ou a ele(a) relatadas, opera com múltiplas vozes, ao narrar as ocorrências em primeira pessoa, preferencialmente, ou, por delegação do narrador, em terceira pessoa, e assume graus de ficcionalidade diversos. Não há, nas memórias literárias, um compromisso com a fidelidade histórica, nem com os acontecimentos mais grandiosos ou proeminentes, mas com as vivências que afetam a me-

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mória afetiva, a memória involuntária e a memória dos sentidos. É importante, por isso mesmo, distinguir esses gêneros relacionados às memórias literárias da autobiografia. Essa retrata preferencialmente momentos e aspectos de uma vida que, por diferentes razões, se tornou célebre, via depoimentos pessoais, e que, “através de algumas pistas textuais – como nomes completos de familiares, localizações temporais e espaciais mais específicas – propõe ao leitor um pacto autobiográfico” (CORRÊA, 2007, p.166). O tempo e a experiência de vida vivida parecem ser os grandes aliados do memorialista, pois é preciso primeiro viver para depois narrar. Talvez por isso, o memorialista se configure, via de regra, como uma pessoa madura, de olhar atento, capaz de, na relação com as práticas culturais, reelaborar os acontecimentos de sua história de vida, reconstruir acontecimentos arquivados na memória, sem se importar e até lidando com o fato de que, a qualquer momento, a memória pode traí-lo, levando-o a inventar e lapidar cenas e cenários. É bastante significativa a passagem em que Pedro Nava, um dos mais reconhecidos memorialistas brasileiros, revela, em seu romance “Balão Cativo”, muito do seu processo de maturação. O autor se define como um menino, moreno, tímido, meio sonso que se esgueirava entre os grandes e gostava de ficar pelos cantos olhando tudo, ouvindo tudo, guardando tudo, tudo. Armazenando na memória (meu futuro martírio) os fragmentos de um presente jamais apanhável, mas que ele sedimentava e ia socando quando eles caíam mortos e virados no passado de cada instante (NAVA, 1977, p. 228).

Em seu estudo sobre Pedro Nava, Aguiar (1998, p. 17) nos revela a postura de arquivista do escritor, que guardava “documentos de

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família, fotografias, cartas, diários, bilhetes, frases soltas, citações de livros etc.”. Aguiar também nos ajuda a compreender a importância da etapa de ‘garimpagem’ dos acontecimentos passados no processo de escrita de Nava, pois nem tudo que está no ‘baú das memórias’ será retomado, e nem tudo que será retomado tem um compromisso com o real: Para Nava, rememorar é dar vida aos desaparecidos no tempo, assim como escrever sobre eles é convertê-los em matéria literária. As figuras mortas deixam a sua condição ‘de realidade’ e saltam para a configuração de personagens. De algum modo, rememorar está para o documento – aqui no sentido de ‘pura lembrança’ – assim como dar vida nova aos mortos está para a ficção, no sentido de lembrança transfigurada pela criação artística. Combinados, os dois processos explicam a arte do escritor das Memórias (...). Como não poderia deixar de ser, a fonte principal do trabalho literário de Nava é ele mesmo, ou seja, sua capacidade de operacionalizar criativamente a própria memória. Contudo, esta somente, sem apoio da documentação e do método, não o teria levado tão longe (AGUIAR, 1998, p. 17-18, ênfases do autor).

Poderíamos acrescentar ainda que a subjetividade criadora de Nava está estreitamente relacionada ao seu contexto sócio-histórico; às práticas sociais familiares; à convivência intensa com o Modernismo e com os escritores marcantes da literatura brasileira do período; ao espaço que ele passou a ocupar no contexto literário nacional, após a eclosão tardia, aos 65 anos, de sua obra. No âmbito da Olimpíada Escrevendo o Futuro, as condições de produção textual são didatizadas e ensinadas para os alunos via oficinas, na perspectiva metodológica das sequências didáticas propostas pela Escola de Genebra, mais especificamente, por Dolz, Nover-

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raz e Schneuwly (2004) e Dolz, Gagnon e Decândio (2010). Assim, as memórias literárias, no contexto da Olimpíada, além de absorver os efeitos discursivos das memórias, são tratadas como um gênero em si mesmo, com traços mais definidos e transparentes dos que os até aqui debatidos. Nesse trabalho de transposição didática, o gênero assume um novo e decisivo contorno: as ‘memórias’ não são propriamente do narrador/autor do texto (aluno), mas de uma terceira pessoa, cuja perspectiva, todavia, precisa ser assumida pelo narrador/ autor (aluno) em primeira pessoa. Desse modo, cabe ao aprendiz, com base no tema previamente delimitado, ir em busca de memórias de pessoas mais velhas da comunidade, que se configurem como interessantes para os propósitos previstos pela Olimpíada. Em seguida, o estudante deve relatá-las como se fossem suas próprias memórias, ou seja, em primeira pessoa. Trata-se, pois, de um processo bastante complexo para jovens escritores ainda em processo de formação e que, por isso mesmo, precisa ser devidamente dimensionado e encaminhado no decorrer das atividades de didatização. No próximo item, buscamos explicitar como os alunos cuidaram desta e de outras questões relacionadas à produção das memórias literárias no contexto de um concurso.

Os textos de memórias literárias elaborados por alunos no contexto escolar Para a construção da análise que se segue, foram lidos 385 textos do gênero memórias literárias elaborados por alunos de sétimo e oitavo ano do Ensino Fundamental participantes da Olimpíada da Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro10 , edição 2010. 10. A Olimpíada é uma iniciativa do Centro de Estudos em Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária–CENPEC, Ministério da Educação e Fundação Itaú Social. A amostra, organizada pelo

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Ao longo de uma sequência didática, organizada em dezesseis oficinas ministradas pelos professores no primeiro semestre de 201011, os alunos foram sendo preparados, como anunciado anteriormente, para a realização de uma tarefa bastante específica: redigir um texto do gênero memórias literárias que trouxesse à tona as vivências de moradores da comunidade (em primeira pessoa e em linguagem literária); atendesse ao tema “o lugar onde vivo”12; levasse em conta os leitores das várias etapas (municipal, estadual, regional e nacional) da Olimpíada; considerasse determinados critérios de textualidade (coesão, progressão e coerência próprias à lógica interna da narrativa) e as convenções da escrita. Vê-se que as condições de produção disponibilizadas no espaço escolar para o aluno, a começar pelas motivações para a escrita (participar de um concurso), delimitação do gênero a ser elaborado (no caso, memórias literárias) e do tema a ser desenvolvido (O lugar onde vivo), são bastante distintas daquelas que se apresentam nas práticas sociais extraescolares. Essa divergência é um dos desafios enfrentados pela didatização dos gêneros textuais, pois a escola precisa operar com uma espécie de modelo do gênero de referência a ser ensinado, enquanto, nas práticas sociais, esse mesmo gênero está sujeito a variabilidades de natureza sócio-histórica, cultural e até mesmo estrutural.

CENPEC, representa equitativamente os diferentes municípios, regiões e escolas do país envolvidos nas atividades da Olimpíada de 2010. 11. As oficinas foram efetivadas com base em materiais pedagógicos sobre o gênero memórias literárias elaborados e disponibilizados pelo CENPEC, a saber: “Caderno do Professor ‘Se bem me lembro...’” (ANDRADE; ALTENFELDER; ALMEIDA, 2010), com orientações para o ensino da escrita do gênero em pauta; “Coletânea: memórias literárias”, com os textos de memórias completos trabalhados nas oficinas; e CD-ROM, contendo textos da coletânea e outros complementares em duas modalidades: áudio ou para impressão/apresentação em Datashow. 12. O tema é estabelecido pelo concurso e deve ser desenvolvido por todos os participantes, independentemente do gênero textual envolvido na escrita.

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Tendo em vista as condições de produção estipuladas pelos materiais da Olimpíada, os comentários sobre os textos dos aprendizes a seguir apresentados estão organizados em três grandes focos: atendimento ao gênero textual, ao tema e à organização textual. Não há, ao longo da análise, uma preocupação com informações estatísticas, mas sim com dados indiciários que contribuam para reflexões a respeito das decisões e dos percursos assumidos pelos alunos no decorrer de suas produções. O gênero memórias literárias e os textos dos alunos Como adiantamos anteriormente, para dar conta do gênero memórias literárias, no contexto da Olimpíada, o aluno deveria: 1) recuperar lembranças sobre o passado cultural da localidade pela perspectiva de um antigo morador; 2) apresentar as reminiscências por ele recolhidas como se fossem suas, ou seja, escrever uma narrativa em primeira pessoa; e 3) cuidar para que o texto entremeasse acontecimentos reais e ficcionais, com uma linguagem própria e pertinente à esfera da literatura, buscando envolver o leitor. Na amostra analisada, poucos textos atendem aos três critérios elencados. Em grande parte, os textos reconstroem lembranças de tempos antigos, mas na forma de constatações e depoimentos objetivos. Por sua vez, o ponto de vista narrativo oscila entre a primeira e a terceira pessoa, enquanto o entrelaçamento realidade/ficção e o uso da linguagem literária são bastante restritos. Vejamos alguns exemplos13.

13. Os nomes dos estudantes, das pessoas entrevistadas por eles e das localidades a que se referem foram retirados. A estrutura e a organização formal dos textos foram mantidas tal como no original, mas, por uma questão de espaço, não são reproduzidos na íntegra. Os cortes estão devidamente indicados por sinais gráficos.

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Exemplo 1 Custo a acreditar que tudo aquilo que por nós, a molecada de minha infância, era tido como um paraíso, hoje já não o seja mais. É a influência do progresso... Tenho saudades daqueles tempos em que simplicidade das coisas e o valor a natureza, mesmo frente às dificuldades da vida, prevaleciam sempre. O meu paraíso se encontrava em uma pacata localidade do interior do Paraná, [nome do município], cidade que carrega em si traços bastante visíveis da colonização dos imigrantes poloneses, alemães e ucranianos. Me lembro bem de cada trilha que era percorrida por mim e por meus amigos A. e M. ... Em cada folha de árvore, misturado ao cheiro da mata, predominava o cheiro do poeirão. Toda vez era assim, e cada uma delas parecia única, no meio da trilha sentíamos um “click” que nos chamava para o mesmo lugar: a belíssima cachoeira [...], rio que ficava próximo de minha casa. Lá brincávamos até o sol nos abandonar. (...) Comparado, aos tempos de minha infância, [nome do município] mudou muito. Hoje vivo com minha esposa e filhos procurando passar a eles um pouco dos ensinamentos que tive e do valor representado pelas coisas mais simples da vida (...). Memórias do Sr. B. K por V.K., aluna-autora.

O aluno/autor do texto reproduzido no exemplo 1 elaborou com êxito uma narrativa em primeira pessoa. As lembranças resgatadas se reportam a vivências pessoais e à “pacata localidade”. Para caracterizá-la, o narrador salienta, por exemplo, a beleza da cascata, a proximidade do rio, o “cheiro da mata” e os “traços bastante visíveis da colonização dos imigrantes poloneses, alemães e ucranianos”. São detalhes esparsos, que apelam aos sentidos (olfato, visão, audição) e que, mesmo sendo parcimoniosamente desdobrados, permitem ao leitor acompanhar as reminiscências do autor e elaborar uma imagem sobre a topografia, o cotidiano e as brincadeiras do lugar. A linguagem literária se faz presente, ainda que de forma episódica, no

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uso de metáforas e outras figuras de linguagem, como nos trechos: “o meu paraíso”; “toda vez era assim, e cada uma delas parecia única”; “sentíamos um ‘click’ que nos chamava”; “lá brincávamos até o sol nos abandonar”. As evidências de uma narrativa ficcional que, em alguns momentos, perpassam as memórias do exemplo 1, sofrem, no entanto, uma quebra de continuidade ao término do texto. Há uma espécie de ‘retorno a uma realidade objetiva’ (comparado, aos tempos de minha infância, [nome do município] mudou muito. Hoje vivo com minha esposa e filhos procurando passar a eles...), o que causa prejuízos ao envolvimento do leitor com o gênero. Por sua vez, na indicação final de que as recordações são de ‘B. K’, enquanto a elaboração textual é de ‘V.K.’, a didatização do trabalho com as memórias fica bastante saliente. Como não se espera que alunos adolescentes já tenham acumulado vivências próprias, passíveis de serem retomadas na forma de memórias, a recomendação pedagógica de levar os alunos a buscarem contato com pessoas mais experientes da comunidade e de resgatarem suas reminiscências é, certamente, produtiva. No entanto, a objetivação dessas informações, sem a desejável integração das múltiplas vozes no discurso, acaba por distanciar o texto escolar das memórias literárias do espaço social. Para o aprendiz, essa é certamente uma condição de complexa operacionalização no encaminhamento da produção textual, que necessita ser cuidadosamente conduzida. Exemplo 2 O texto a seguir relata praticamente quase toda história de B. C. Ele gostou de relembrar junto a mim os acontecimentos e histórias do passado. “Quando era pequeno, aí pelos 5 anos, éramos pobres. As famílias eram grandes com aproximadamente 9 ir-

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mãos. Lembro que sempre íamos a igreja sem calçados, pois não tínhamos condições de comprá-los. (...). Com 7 anos eu era obrigado a ir buscar leite na comunidade de 37 [nome da comunidade] e depois ia para a escola. (...). Naquela época não existia telefone e o meio de transporte era o cavalo. Depois surgiu um ônibus velho movido a lenha. (...). Íamos aos bailes a pé, a uma distância de 8 km. Mais tarde foi comprado um caminhão e íamos em todo lugar com ele. Era uma felicidade só! (...)”. Hoje ele é feliz e adora todos e eu me senti muito feliz por poder ser seu confidente nesta história. Texto escrito por G.L.M., aluno-autor, com base no depoimento de B. C., 75 anos.

O aluno/autor inicia o texto apresentando seu entrevistado/ narrador/personagem, B.C. Em seguida, o aluno passa a palavra para B.C. (estratégia adequadamente reforçada pelo uso das aspas), que desenvolve então sua fala em primeira pessoa. Quase ao término do texto, as aspas são fechadas e o aluno reassume sua voz. Mesmo com alguns problemas na organização textual, o aluno faz uso de uma estratégia discursiva bastante plausível no âmbito do gênero memórias literárias, ou seja, demarca as vozes de quem fala no discurso e garante que as reminiscências propriamente ditas sejam relatadas em primeira pessoa. O estranhamento que fica para o leitor, no entanto, é que o autor não é parte integrante das memórias, nem mesmo como um personagem coadjuvante. Ele está ali mais como um espectador encarregado de registrar depoimentos, tal como acontece no texto do exemplo 1. A caracterização do local feita por B.C., via contexto familiar (éramos pobres; as famílias eram grandes), práticas sociais mais frequentes (íamos a igreja; era obrigado a ir buscar leite; ia para a escola; íamos aos bailes a pé) e serviços públicos disponíveis ou ausentes (não existia telefone e o meio de transporte era o cavalo; ônibus movido a lenha; íamos em todo lugar com ele [caminhão]), ajuda o leitor

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a construir uma imagem sobre o dia a dia na comunidade. Todavia, elementos ficcionais e próprios da linguagem literária, que poderiam tornar a narrativa mais vibrante e envolvente, e menos fragmentada e reificada, não se fazem presentes no texto. O término do texto basicamente reproduz a estratégia já comentada no exemplo 1. Há uma quebra na expectativa do leitor, ainda que (e isso é importante de ser ressaltado) a estratégia fique dentro dos limites postos pelos materiais pedagógicos da Olimpíada. Exemplo 3 Como sempre quis saber como era antigamente, talvez por curiosidade – tive o privilégio de poder participar deste maravilhoso trabalho de pesquisa conhecimento e sabedoria entrevistando o meu avô, então em uma determinada data peguei uma caderneta e um lápis e me passei por jornalista perguntando ao meu avô A.A.R., de 67 anos e sua companheira A.S.O. de 63 anos, algumas perguntinhas da lista que fiz. Comecei questionando como era o nosso município, disseram que a cidade era muito simples, estrada de chão, poucas casas, uma igrejinha: Nossa Senhora Aparecida. Meu avô disse até que ele tinha estudado em uma escolinha (...). Perguntei se existia luz elétrica, segundo ele luz só tinha em casa da antiga firma: [nome da firma] e quem não tinha só usavam lampiões, a água utilizada era de poços artesianos, da bica ou compravam de carroceiros. Disseram que as moças só iam aos bailes acompanhadas com os pais (...). Então perguntei se os tempos de hoje são melhores do que antigamente. Responderam com a maior certeza, de que hoje é muito melhor do que antes (...). Quando parei de entrevistá-los fiquei muito feliz, pela sabedoria dos mais velhos e pela incrível evolução que o município de [nome da cidade] preserva.

A proposta dos materiais da Olimpíada de realizar um conjunto de atividades anteriores à produção das memórias literárias acabou

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se tornando parte integrante do relato dos alunos, como no caso do exemplo 3 (sempre quis saber como era antigamente; pude participar deste maravilhoso trabalho de pesquisa; peguei uma caderneta e um lápis; me passei por jornalista; perguntinhas da lista que fiz; comecei questionando; quando parei de entrevistá-los). Assim, apesar do aluno se reportar a algumas características do lugar (cidade era muito simples; estrada de chão; poucas casas; uma igrejinha) e práticas sociais (tinha estudado em uma escolinha; luz só da antiga firma; uso de lampiões; água de poços artesianos, bica ou carroceiros; moças iam aos bailes com os pais), o texto distancia-se do gênero memórias literárias. O aluno dedica-se muito mais a relatar uma situação de entrevista e revela alguma dificuldade em operar com as múltiplas vozes introduzidas no discurso. Mais precisamente, o aprendiz não concede a palavra aos entrevistados, mas assume ele próprio o papel de mediador das trocas de falas, demarcadas por verbos de elocução ou declarativos, como perguntar, dizer, questionar, acrescentar, contar. Por essa estratégia, as reminiscências são relatadas, pelo viés do discurso indireto, de forma fragmentada. Há quebra, como se percebe, na articulação e no ritmo do texto, bem como na estrutura narrativa. Tal como no exemplo 2, o aluno também não recorre à literariedade e à ficcionalidade no desenrolar de seu texto, capacidade que, sem dúvida, se apresentou como um dos grandes desafios enfrentados pelos estudantes na escrita do gênero solicitado. O tema O lugar onde vivo e os textos dos alunos No desenvolvimento do tema O lugar onde vivo (estabelecido pela Olimpíada para todos os gêneros), os aprendizes foram orientados, no caso da escrita das memórias literárias, a realizar entrevis-

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tas14 com antigos moradores locais e a buscar, junto aos entrevistados, informações particulares, interessantes, pitorescas e relevantes sobre a comunidade em épocas passadas. Para tanto, no decorrer das entrevistas, os alunos deveriam empenhar-se em conseguir detalhamentos a respeito dos modos de viver do passado, das transformações físicas ocorridas no local, de profissões que deixaram de existir, de eventos marcantes, por exemplo. Assim, no atendimento à temática, o momento da entrevista pode ser tido como o mais crucial do processo, pois, por serem muito jovens, os estudantes não possuem, eles próprios, lembranças diferenciadas sobre um passado mais remoto de sua localidade. A entrevista seria, neste sentido, a ocasião mais propícia, senão a única, para que os alunos recolhessem subsídios que, associados a eventos ficcionais, lhes permitissem ter o que dizer sobre a vida na localidade, nos tempos de outrora. Em função dessas condições, a escolha adequada da pessoa a ser entrevistada cresce em relevância, pois ela deveria não apenas conhecer histórias antigas do lugar, mas também saber contá-las com vivacidade e envolvimento, de modo a motivar os aprendizes a reconstruir a narrativa apresentada com um enfoque pessoal e do ponto de vista literário. Além disso, a própria preparação da entrevista deveria receber um espaço considerável no encaminhamento pedagógico do processo de escrita do texto solicitado, pois perguntas que simplesmente ‘não rendem’, ou seja, que não estimulam o entrevistado a falar, ou ainda perguntas desviantes (não direcionadas para o tema em questão), tendem a oferecer pouco material para registro. Na amostra de textos explorada, embora, via de regra, reminiscências sejam recuperadas, em grande parte elas ficam restritas à 14. De preferência, a entrevista deveria ser efetuada na escola, como indicado na p. 108 do “Se bem me lembro... Caderno do professor”.

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esfera privada do autor/narrador, sem que um elo mais consistente com o lugar seja estabelecido. Deste modo, acabam retratando aspectos rotineiros, mas não singulares, aspectos situados num lugar genérico e sem identidade própria. Observemos os exemplos 4, 5, e 6, a seguir. Exemplo 4 Há muitas lembranças de meu tempo de criança que guardo em meu peito até hoje e levarei comigo a vida toda, mas nenhuma me emociona tanto quanto a de minha boneca de pano. (...). Durante toda minha infância, esses domingos deliciosos [de almoço com toda família] se repetiam, mas um deles sempre estará mais marcado no meu coração, porque nesse eu ganhei (...) a minha preciosa boneca Emília. (...). Hoje, já adulta e mãe (...) a bonequinha Emília ainda está guardada em meu quarto e quando eu a abraço sinto novamente o cheirinho e a energia de toda aquela feliz vivência (...). (Texto elaborado a partir da entrevista com M.C.C.C., 31 anos, moradora do bairro [nome do bairro] Exemplo 5 “(...) Sou o filho mais velho de oito irmãos e meus pais, J.M.A. e J.A.A., são nordestinos. (...) Nasci ali e cresci ajudando meu pai na lida das lavouras. Aos 15 anos, saí à procura de uma nova vida, pois ali não tínhamos opção de trabalho e eu queria muito crescer profissionalmente. Saí pelos caminhos do sertão nordestino só com algumas roupas na mala e dormindo pelas estradas”. (...). Esta história é da vida do meu avô que viveu 83 anos já faz 10 anos que ele veio a falecer. (...). Saudades vovô J.M.A., quantas saudades. J.P. V.P. [aluno-autor].

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Exemplo 6 Viajando pelo tempo, voltando ao passado, navegando nas lembranças do Sr. J., pessoa humilde, batalhador, com uma história de vida incrível. (...). Meados de 1929, quando tinha 8 anos, já era um garoto que ajudava o pai no campo, e ainda arranjava um tempinho para brincar de “boizinho” que era uma brincadeira onde ele pegava frutas como: manga, goiaba etc. enfiava gravetos simulando as pernas do boi e se sentia um grande fazendeiro, com sua fazenda “abarrotada de gado”. (...). Lembro-me da minha primeira professora Dna D. e de sua palmatória que me castigava todas as vezes que me atrasei para ir a escola (...).Texto escrito com base no depoimento do Sr. J.B.S., conhecido como Sr ‘J.’ de 89 anos.

Os exemplos 4, 5 e 6, associados aos exemplos 1, 2 e 3, são bastante representativos do que a amostra de textos nos proporciona em termos da abordagem temática. Assim, ora as produções trazem informações pontuais sobre características da localidade (textos 1 a 3), ora fogem ao tema proposto, por apresentarem reminiscências que tangenciam o contexto cultural e os valores do lugar onde vivem os narradores (textos 4 a 6), muito em função das informações procurarem espelhar a realidade, sem movimentos de aproximação em direção ao inventado e sem preocupação com o resgate da linguagem literária. No texto 4, o foco temático está voltado para os almoços de domingo e a boneca que a moradora ganhou em certa ocasião; no texto 5, o tema central é a história de vida do avô do aluno-autor, da infância à vida adulta, transcorrida em lugares diferentes; no texto 6, ainda há uma recuperação interessante de algumas das brincadeiras de infância do Sr. J.B.S, mas o restante do texto não constrói para o leitor memórias literárias do local em que o entrevistado vivia. É possível que, nos casos dos textos 4 a 6, as entrevistas não tenham

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sido bem conduzidas, ou ainda que as pessoas não tenham sido adequadamente selecionadas, em termos do subsídio que poderiam oferecer para a escrita do aluno. No exemplo 4, a moradora tinha apenas 31 anos à época da entrevista, idade insuficiente para que ela pudesse maturar e relatar casos mais interessantes sobre a cidade, para além de suas vivências nos almoços em família e seu apego à boneca. No exemplo 5, não houve propriamente entrevista, pois, segundo o autor relata, as reminiscências são do avô, falecido há dez anos. No exemplo 6, o aluno informa que o morador tem “uma história de vida incrível”, mas esta narrativa não se expande para a caracterização de peculiaridades da história cultural da comunidade na qual o entrevistado e o entrevistador estão inseridos. As condições de textualidade e os textos dos alunos No âmbito da textualidade, se considerados os materiais pedagógicos da Olimpíada, esperava-se que os alunos redigissem textos que atendessem à coesão, à articulação e à progressão, de forma a garantir a coerência esperada no gênero ensinado e, por esse caminho, ajudassem o leitor a atribuir um sentido ao texto. Para tanto, seria importante que o aluno-autor estivesse atento, entre outros aspectos15, ao manejo adequado da retomada dos referentes, ao emprego, quando necessário, de conectores, ao uso de tempos verbais e indicadores espaciais que recuperassem adequadamente as épocas e os lugares reportados nos textos. Outro aspecto a ser levado em conta seria a observância às convenções da escrita, tendo em vista que a situação comunicativa pressuposta – participação em um concurso de âmbito nacional – exigia uma cuidadosa releitura, revisão e, even15. Outros fenômenos, além dos aqui citados compõem a textualização. Preferimos, no entanto, nos ater aos indicados, por serem os mais salientes nos textos dos alunos.

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tualmente, também uma reescrita dos textos. Os exemplos inseridos na sequência nos ajudam a compreender como os textos dos alunos se apresentam quanto aos fenômenos mencionados. Exemplo 7 Nasci em [nome do município] em um período que as coisas eram muito diferentes de hoje, naquela época namorar era um assunto muito sério (...). Outro assunto da minha época era a vida difícil, muitas pessoas morriam de doenças que ninguém conhecia ou de fome, nós tínhamos de trabalhar na roça (...). Em 1958 houve a maior seca já vista nesta região nem sei como nós sobrevivemos, porque as roças não deram sequer um pé de arroz ou de feijão. (...). Eu lembro das danças daquela época como a dança de São Gonçalo, a família toda gostava de participar, íamos de jumento, os pequenos iam no grajau16 e os maiores iam no meio da cangalha e nós íamos a pé, outra coisa diferente era o jeito das roupas, eu gostava de comprar algodão para fazer redes e algumas peças de roupas.

Para que um texto progrida17, é importante que as informações novas sejam ancoradas em referentes anteriores, de forma que o leitor não perca o ‘fio da meada’. Este cuidado não se fez presente de modo satisfatório nos textos estudados na amostra. Com relativa frequência, os autores elaboraram grandes listagens das reminiscências que lhes foram contadas, sem a preocupação de organizá-las numa narrativa coerente e articulada. No exemplo 7, o narrador informa seu local de nascimento e, em seguida, indica como aconteciam os namoros. Posteriomente, sem estabelecer qualquer vínculo com o assunto ‘namoro’, explicita a di-

16. Pequenos cestos. 17. A progressão pode ocorrer de forma diferenciada, tendo em vista o gênero textual, o espaço social em que o texto irá circular, o leitor presumido, o conhecimento de mundo partilhado etc.

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ficuldade causada, na época (não situada), pelas mortes provocadas por doenças desconhecidas ou mesmo pela fome. O texto prossegue, introduzindo ocorrências que guardam pouca relação entre si. Do ponto de vista temporal, a única referência disponível é o ano de 1958, quando, segundo informa o texto, “houve a maior seca já vista na região”. Todavia, na sequência, o narrador diz lembrar-se “das danças daquela época”, das quais “a família toda gostava de participar”. A qual época refere-se o narrador? Provavelmente não à mesma em que ocorreu a grande seca, mas isso não é esclarecido. E mais, os fatos relatados foram vivenciados quando o narrador era criança, jovem ou adulto? Esta é uma questão que o leitor não consegue resolver, sobretudo quando se considera o trecho: “íamos de jumento, os pequenos iam no grajau e os maiores iam no meio da cangalha e nós íamos a pé” (ênfases acrescidas). Exemplo 8 (...) quando lembro do tempo em que era jovem recordo de muitas coisas diferentes. O jeito de namorar era uma delas, eu de um lado minha mãe do outro e meu namorado perto de mim. Gostava de frequentar a escola, minha professora era muito brava. (...). Minha mãe costurava, fazia balaios (...) ela também preparava as refeições, elas eram feitas num fogão a lenha. Eu usava vestidos longos abaixo do joelho. Comprava tecidos para fazer os vestidos, os tecidos e outras coisas era comprado nos armazéns. O relacionamento com meus pais havia muito respeito com eles, com os idosos e também com as demais pessoas. Aos domingos eu sempre reunia com meus vizinhos ou parentes para almoçar-mos juntas. (...). A maioria das pessoas morava na zona rural assim como minha família em pequenas casas. A escola que eu estudava era muito simples. Eu e meus colegas sentávamos em bancos e em dupla. O hospital da cidade tinha poucos recursos. (...).

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No texto 8, a autora introduz vários referentes, sem articulá-los entre si. Com isso, vai deixando lacunas que dificultam a construção da progressão textual. Observa-se que, do assunto “jeito de namorar”, o narrador passa para o prazer de “frequentar a escola” e, de forma aparentemente contraditória, justifica este prazer pelo fato da “professora ser muito brava”. Na sequência do texto, depois de apontar as atividades desenvolvidas pela mãe (costurava, fazia balaios, preparava as refeições), a jovem se reporta aos ‘vestidos longos abaixo do joelho’ que usava. Em seguida, o foco temático passa do relacionamento respeitoso com os pais e idosos para as reuniões de domingo, e deste para a constatação de que as pessoas moravam, em sua maioria, na zona rural. Evidenciando mais uma vez a quebra na progressão temática, a aluna retoma o tópico ‘escola’ e, posteriormente, declara que “o hospital da cidade tinha poucos recursos”. Pode-se supor que a aluna foi exposta a variadas informações sobre a biografia do entrevistado e não conseguiu dar uma unidade à narrativa (ou não foi devidamente orientada para isso), tangenciando a articulação temática. Outro fator que dificulta a integração das várias passagens numa compreensão global é a ausência da contextualização temporal. Exemplo 9 Eu, meus três irmãos, minha irmã e meus pais, vivíamos uma vida simples, (...) eu e meus colegas adorávamos brincar de pular corda, pega-pega. (...). Na escola, eu e minha irmã nem tínhamos muita roupa para vestir, então vestíamos as roupas iguais e o povo da escola ria muito, mas nada disso nos importava, pois nossa família vivia unida e adorávamos ir ao sítio da minha avó afinal, o ar de lá é muito puro, bebíamos leite de vaca, subíamos nos pés de frutas e havia muita plantação de roça. O momento mais marcante foi na minha formatura, onde todos nós, da nossa classe e os meus professores fizemos uma viagem de navio e tivemos um almoço

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muito especial. Esse dia foi inesquecível... Houve também um dia, na sala de aula, que uma professora chegou a quase me bater com a régua, só porque eu desenhei no caderno afinal, naquela época o ensino era muito rigoroso. O namoro na minha juventude era muito respeitoso, agora hoje em dia muitas coisas mudaram... (...).

Tal como nos exemplos anteriores, há pouca articulação entre as informações. Algumas delas, inclusive, parecem não guardar qualquer relação com a anterior nem com a subsequente. Assim, após um relato a respeito da ‘vida simples e das brincadeiras da infância’, a aluna/ autora declara que ‘ela e a irmã não tinham muitas roupas para vestir, mas isso não importava, pois a família era unida e adorava ir ao sítio da avó beber leite e subir nos pés de frutas’. Do sítio da avó, a jovem passa para o momento da formatura, para, em seguida, retornar a um fato transcorrido em sala de aula, provavelmente antes da formatura, sem que, ao longo deste percurso, seja providenciada a devida contextualização. Fica-se com a impressão de que, no processo de produção, o aprendiz elimina as perguntas preparadas para a entrevista e compõe seu texto apenas justapondo as respostas, sem atentar para a importância de articuladores adequados ao gênero. Em função destas quebras, as ideias ficam soltas e a tessitura textual sofre prejuízos.

Reflexões finais Embora o contato com histórias de vida seja bastante frequente na faixa etária em que se encontram os alunos do 7º e do 8º ano do Ensino Fundamental, a familiaridade dos aprendizes com os gêneros da escrita nos quais circulam o discurso das memórias literárias é bastante restrita. Também a experiência com a transposição de narrativas da oralidade vivenciadas por terceiros para a autoria em primeira pessoa, igualmente na modalidade escrita, é escassa. Con-

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Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

sidere-se ainda que, nas práticas sociais, as memórias literárias aparecem associadas a autores mais experientes e maduros e a gêneros de maior fôlego, como romances, ainda que sejam perceptíveis em outros, como poemas e contos. No contexto pedagógico da Olimpíada, todavia, o discurso e o gênero memórias estão estreitamente entrelaçados, e vinculados, sobretudo, a narrativas curtas, na produção escrita, e a fragmentos de romance, na leitura. Aparecem também associados a um tema fixo que deve ser alimentado por entrevistas nem sempre pródigas em subsídios para o desenvolvimento da tarefa. Assim, a tensão provocada por um certo distanciamento entre as práticas sociais extraescolares e as práticas de sala de aula poderia, pelo menos em parte, explicar a dificuldade encontrada por muitos alunos no desenvolvimento do gênero memórias literárias, tal como solicitado nas condições de produção da Olimpíada. Por outro lado, retomando as palavras de Bazerman, para quem “os gêneros são os lugares familiares para onde nos dirigimos para criar ações comunicativas inteligíveis uns com os outros e são os modelos que utilizamos para explorar o não-familiar” (BAZERMAN, 2006, p.23), na medida em que os jovens envolvidos com a escrita das memórias literárias frequentemente estão bastante familiarizados com narrativas orais, caberia à escola recorrer a esse conhecimento para ajudar os alunos a “explorar o não-familiar”, que é justamente o registro escrito dessas memórias num texto direcionado para as práticas sociais públicas não-escolares. É importante lembrar que, para muitos aprendizes, o trabalho nas oficinas, no âmbito da Olimpíada, representou/a, provavelmente, o primeiro contato sistematizado com a elaborada estratégia discursiva de lidar com as múltiplas vozes do discurso; a primeira oportunidade de ampliar, de modo consequente, sua bagagem de leitura

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literária; e uma das poucas chances de desenvolver competências de escrita para interagir com leitores virtuais, bem como de se expor à crítica na posição de autor, para além da sala de aula. Assim, na superação das questões identificadas, a Olimpíada tem uma importante contribuição a oferecer. De fato, a natureza de sua proposta é bastante promissora, pois se constitui num trabalho que investe na formação de um aluno capaz de colocar-se no papel de um leitor crítico do seu próprio texto, sem perder de vista as práticas sociais em que o gênero produzido irá circular. Ressalte-se ainda que a capacidade para a produção de textos dos jovens autores não será construída com a realização de uma única sequência didática visando à aprendizagem de um único gênero. Por isso mesmo, a participação na Olimpíada precisaria ser vista por alunos e professores como uma significativa oportunidade a mais, mas, certamente, não exclusiva, de trabalho com a escrita. Em suma, a Olimpíada oportuniza um momento rico de formação, que pode ser transposto para a prática pedagógica de escrita de outros gêneros textuais e de outros temas. Referências AGUIAR, J. A. de. Espaços da memória: um estudo sobre Pedro Nava. São Paulo: Edusp; Fapesp, 1998. ANDRADE, R. C.; ALTENFELDER, A. H.; ALMEIDA, N. (equipe de produção). Se bem me lembro... Caderno do Professor: Orientação para produção de textos. São Paulo: CENPEC, 2010 (Coleção da Olimpíada). BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da criação verbal. Trad. do francês por M. E. G. PEREIRA. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997, p. 277-326. BAWARSHI, A. S.; REIFF, M. J. Gênero: história, teoria, pesquisa e ensino. Trad. B. G. BEZERRA. São Paulo: Parábola, 2013, 284 p. BATISTA, A. A. G. A avaliação dos livros didáticos: para entender o Programa Nacional do Livro Didático (PNLD). In: R. ROJO, R; A. A. G. BATISTA (Orgs.). Livro didático de língua portuguesa, letramento e cultura da escrita. Campinas: Mercado de Letras, 2003, p. 25-68.

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Memórias Literárias: reflexões sobre práticas de escrita

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“Gênero pode ser aplicado a qualquer tipo de artefato ou qualquer tipo de declaração que possa ser visto como um enunciado significativo, portanto, não está imediatamente ligado a um texto. Outra diferença é que a delimitação do gênero o torna diferente do texto, a menos que se especifique um texto único completo.” — Charles Bazerman. Série Bate-Papo Acadêmico. v.1 Gêneros Textuais. Recife, 2011. Disponível para acesso em: http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/volumes


6 Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de conscientização Maria Cl ara Catanho Cavalcanti 1 (IFPE)

Introdução: a propaganda, suas funções e o ambientalismo Não é novidade que vivemos uma época de crise ambiental. Pelo menos, é essa a ideia sociológica que as mídias nos transmitem. Essa é uma construção discursiva típica da nossa época; se é uma realidade histórica, física ou geográfica, não podemos comprovar, nem é esse o nosso interesse, mas não podemos negar que é uma marca da atual modernidade. Preferimos chamar “atual modernidade” e não “pós-modernidade”, pois concordamos com Giddens (1991, 2002, 2003) quando afirma que vivemos o auge da modernidade, a Alta Modernidade, para usar o termo do sociólogo inglês. Modernidade Tardia ou Alta Modernidade é a nomenclatura utilizada por ele para designar as características histórico-sociais que a própria Modernidade adquiriu nos últimos cinquenta anos. As questões ambientais marcam e afligem a atual modernidade, e uma das maiores tensões envolve o ato de consumir, o qual é um dos mais conflituosos para quem produz, manipula ou adquire um bem, uma vez que essas atitudes, diante da crise ambiental que vi1. claracatanho@gmail.com IFPE – Campus Recife – DAFG

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Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização

vemos hoje, envolvem reflexões tanto das empresas quanto dos consumidores. Esse é um conflito típico da Alta Modernidade e envolve o conceito de reflexividade, ou seja, é quando a Modernidade, longe das certezas trazidas pela razão iluminista, avalia suas próprias instituições sociais. Vejamos essas questões, e outras mais, a partir da análise de dois textos. São duas propagandas em vídeo: uma, comercial; outra, institucional (ou não!). Exemplo 01. [re]pense Panasonic – 2012 Imagem 1

Imagem 2

Imagem 3

Imagem 4

Você já parou pra pensar que natureza e tecnologia podem conviver em harmonia? Repense. A Panasonic lança a primeira fábrica Eco Ideas de Eletrodomésticos do Brasil. É a tecnologia japonesa em harmonia com a nossa natureza. Repense suas escolhas. Panasonic – Ideas for life.

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Optamos por fazer um recorte nas cenas e selecionamos as quatro imagens acima. O texto oralizado, entretanto, foi reproduzido na íntegra. Esse é um dos vídeos da campanha [re]pense, da Panasonic, que foi ao ar no ano de 2012.A campanha apresenta aos consumidores perguntas que os levam a refletir sobre os critérios de escolha de produtos, passando a considerar também o impacto ambiental que tais produtos geram durante a produção e o uso. As peças publicitárias dessa campanha possuem como identidade visual as cores branca e azul, uma vez que fazem parte da logomarca da Panasonic, como podemos observar com a imagem da arara na publicidade de geladeira transcrita acima (confira as imagens 01 e 04). A inspiração para a criação da campanha surgiu do princípio sustentável dos “Rs” – recicle, reuse e reduza. A ideia foi acrescentar um quarto “R”, que incentive o comportamento dos outros três – o “repense”. Na propaganda da Panasonic, notamos a seguinte sequência: inicialmente, há a referência ao elemento da natureza – a arara azul –, que aparece em um habitat bastante verde e arborizado antes de entrar na cozinha e pousar em cima da geladeira. A escolha dessa ave se relaciona à necessidade de sua preservação, uma vez que é vítima do comércio ilegal, assim como remete à cor da logomarca da Panasonic. Na primeira imagem do exemplo, vemos a atriz Fernanda Lima posicionada à frente da arara e da geladeira. Ela faz a seguinte pergunta: “Você já parou para pensar que natureza e tecnologia podem conviver em harmonia?”. Notamos, de início, o uso do pronome “você” estabelecendo uma interação bastante próxima com o interlocutor. Quanto ao léxico, há o uso dos substantivos “natureza”, “tecnologia” e “harmonia”, os quais constituem a ideia central da campanha, que traz como ação principal o jogo entre os verbos “pensar” e “repensar”. Isso fica evidente na sequência, quando a atriz, no imperativo, aconselha: “repense” (imagem 03), fortalecendo o conselho com a posição do dedo

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Gêneros e a construção do discurso ambiental de campanha de Conscientização

indicativo na cabeça (terceira imagem). Então, inicialmente, chama-se a responsabilidade para o consumidor, o qual, logo após ser orientado a repensar suas escolhas, é apresentado às vantagens ecológicas da empresa. Assim, enquanto a atriz afirma que a Panasonic havia lançado a primeira fábrica Eco Ideas de Eletrodomésticos do Brasil, a geladeira, foco da peça em análise, vai sendo mostrada por dentro e por fora, ao mesmo tempo, a imagem salienta uma parte do painel com o sensor ECONAVI (imagem 02), cujo indicador é uma luz verde. E, na última imagem, novamente a empresa aparece como solução, como caminho para um consumo ecologicamente correto. Giacomini Filho (2004) classifica esse tipo de propaganda como “propaganda comercial”, pois sua organização textual gira em torno da função de apresentar um produto com o intuito de vendê-lo. O principal argumento da propaganda da Panasonic baseia-se no incentivo ao consumo verde, o consumidor preocupado com a sustentabilidade deve investir num produto que trará menos gastos energéticos e, portanto, uma economia para quem comprá-lo. Vejamos agora um segundo exemplo, uma propaganda institucional, na classificação de Giacomini Filho (2004); é o primeiro episódio da série Consciente Coletivo. A função desses textos é divulgar um conteúdo educacional, expor ou, até mesmo, explicar conceitos ambientais e também divulgar marcas como patrocinadoras de campanhas de conscientização ambiental. A campanha Consciente Coletivo é resultado de uma parceria de troca sociocomercial entre a HP, empresa de produtos de tecnologia da informação; o Canal Futura, canal educativo das organizações Globo; e Instituto Akatu, ONG especializada em consumo consciente. Essas instituições têm papeis diferentes na produção e na divulgação da campanha: a HP financia; o Futura divulga; e o Akatu empresta seu discurso e sua experiência ao tratar de meio ambiente e consumo.

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A campanha é composta por uma série audiovisual de dez vídeos, cada um com cerca de dois minutos, sete papeis de parede, cinco rodapés para e-mail e doze avatares. A principal peça da campanha são os vídeos para a TV, os quais possuem dois minutos e não apenas alguns segundos, como normalmente acontece com as campanhas em geral. Na verdade, os filmes da Consciente Coletivo eram interprogramas contemplados pela grade de programação do Canal Futura. Cada episódio desenvolve uma temática relacionada ao consumo consciente, como sustentabilidade, energia, água, lixo, entre outros. A reflexão sempre parte da comparação entre o homem e algum elemento da fauna ou da flora brasileira. Como são dois minutos de vídeo, reproduziremos alguns trechos do episódio 01, cujo tema é sustentabilidade. Exemplo 02. Consciente Coletivo – Episódio 01 – 2010

Essa é uma das primeiras imagens da série, todos os episódios iniciam-se dessa forma. O ônibus é uma metáfora visual resultante da polissemia da palavra “coletivo”. É importante notar alguns aspectos visuais, como o fato de a animação imitar papel reciclado.

Depois que a logomarca da campanha se forma na tela, aparece o interior do coletivo, com alguns indivíduos carregando ou segurando bens de consumo. Nota-se que os bens têm o destaque de cores vivas. O personagem principal aparece em destaque nas cenas do ônibus; ele sempre segura vários objetos ao mesmo tempo, indicando seu consumismo.

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Em todos os episódios, o personagem principal, chamado de “jovem humano”, é comparado a outros elementos da fauna ou da flora brasileira. Nesse episódio, o tatu serve de exemplo, pois, segundo o narrador, consome só o necessário para sua sobrevivência.

Enquanto o tatu é exemplo de pouco consumo, o episódio mostra o jovem humano mais cheio ainda de bens de consumo. A partir dessa comparação, a temática começa a se desenvolver. No caso do primeiro episódio, o tema é sustentabilidade.

A partir do sapato do jovem humano, o episódio vai mostrando como os bens de consumo, em sua maioria, são produzidos, enfatizando a quantidade de água e energia gastas na fabricação. Informa-se também sobre os processos de descarte de lixo e resíduos, e destaca-se a responsabilidade que as empresas devem ter nessas produções.

Ao final dos episódios, sugerem-se ações de consumo consideradas corretas, como comprar produtos certificados, apagar a luz, fechar a torneira, entre outras.

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Nesse episódio, especificamente, destaca-se que a escolha de empresas sustentáveis – certificadas, que se preocupam com o bem estar dos funcionários e com os moradores da região – é de responsabilidade do consumidor.

No final, o tatu e seus filhos aplaudem as atitudes sugeridas como corretas.

Com as análises, podemos observar que os dois textos são bastante diferentes, pois suas funções são diferentes, seus processos de produção e circulação também; assim, os textos se organizam para cumprir a exigência social que se estabelece sobre eles. A sociedade contemporânea ainda opera num modelo capitalista com base econômica em mercados. Esses mercados – ambientes onde ocorrem trocas, podendo ser um espaço físico ou virtual (SANTOS, 2005) – baseiam-se em modelos de produção intensiva, ou seja, diversos produtos são fabricados para que sejam adquiridos pela população. Tendo em vista essas características mercadológicas que marcam nossa sociedade, percebemos que a relação entre os mercados e a população é intermediada pelos textos publicitários. Sampaio (2003, p. 30) ratifica esse papel social da publicidade quando afirma:

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A propaganda adquire importância fundamental no processo econômico, uma vez que, de um lado, funciona como elemento vital para que as empresas conquistem mais consumidores e expandam suas atividades e, de outro, para que os consumidores estejam melhor informados e possam escolher adequadamente o que consumir.

Assim, notamos que, embora sua função primordial seja informar, nem sempre a publicidade teve a importância que possui nos dias atuais. Se hoje ela tem papel fundamental na composição do modelo econômico de mercado, em outros tempos não havia a necessidade de divulgação de marcas e produtos. Obviamente, a persuasão para a venda de produtos existe na sociedade desde que houve as primeiras relações de compra e venda. No entanto, a organização do mercado publicitário do modo como se estabelece hoje para a divulgação da produção em larga escala nem sempre teve esse formato. A publicidade foi se moldando às necessidades socioeconômicas à medida que a produção se intensificava, pois os mercados ficaram mais amplos, provocando o distanciamento entre o fornecedor e o consumidor. Para reaproximar mercado e consumidor, várias técnicas de comunicação foram sendo experimentadas e se consolidando pela sua eficácia. Com o tempo, ocorreu uma sistematização, numa tentativa de buscar estratégias cada vez mais específicas de comunicação entre produtores e a população. Além disso, não existia a quantidade de meios de divulgação em massa que existe hoje. Enquanto que, no início do século passado, se anunciavam produtos em jornais e quermesses, hoje temos acesso a meios diversos como TV, rádio e internet. Outro fator que impulsionou as campanhas publicitárias foi a velocidade da comunicação, fenômeno que nos integra e globaliza em tempo real.

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Apelamos para esse aparato histórico para explicar a função social das propagandas, pois, se vamos tratar de gêneros, esse é o cerne, uma vez que os gêneros emanam das relações humanas e também as realizam ou as concretizam. É marca da nossa atualidade a preocupação com o meio ambiente, e essa característica apresentou-se de forma distinta nos dois textos analisados. O primeiro é uma típica propaganda comercial, que informa sobre um produto; no caso, uma geladeira com funções de baixo consumo. Essas funções são argumentos de consumo sustentável. Já o segundo texto tem características diferentes: não vende um produto específico e possui um aspecto instrucional interessante, pois as instruções se misturam com sugestões de consumo que, algumas vezes, podem ser associadas às próprias empresas produtoras da campanha. Essas sugestões são mais sutis, mas fica evidente que essa não é uma campanha apenas pela causa ambiental; é uma organização cada vez mais comum na atualidade para construir e divulgar uma imagem empresarial sustentável. Essa é a principal função. Então, apesar de classificarmos Consciente Coletivo como propaganda institucional, ficam claros seus fundamentos comerciais.

Gêneros: exigência, recorrência e tipificação A noção de gêneros enquanto ação social é desenvolvida principalmente pelos Estudos Retóricos de Gêneros (ERG), grupo formado por pesquisadores norte-americanos e canadenses, cujo objetivo principal é investigar a natureza social do discurso. Duas importantes influências recebidas por essa abordagem são a Nova Retórica e a teoria de Mikhail Bakhtin acerca da linguagem e dos gêneros do discurso. Durante os anos de 1960 a 1970, a retórica clássica passou por uma revitalização nos Estados Unidos e foi associada ao ensino

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da persuasão. A Nova Retórica foi um movimento com preocupações pedagógicas acerca do ensino da composição argumentativa. Com relação aos pensamentos bakhtinianos, estes formam a base filosófica dos ERG. Partindo da visão dialógica da linguagem, toma-se como conceito central a ideia de gêneros como tipos relativamente estáveis de enunciados. Há uma valorização intensa de gêneros como “ressonância de enunciados com histórias de enunciados anteriores, reconhecíveis como o mesmo gênero” (Bazerman, 2007, p. 163). A partir da noção de estabilidade relativa, entende-se que os gêneros são respostas a situações sociais recorrentes e são responsáveis por organizar a experiência humana, atribuindo-lhe significado. É nesse sentido que se desenvolveu a noção de gênero enquanto ação social tipificada, tal qual defendida por Carolyn Miller (1984; 1994). Em “Gênero como ação social”, artigo publicado em 1984, no Quarterly Journal of Speech, Miller mostra que a definição de gênero proposta por ela pode ajudar a explicar a maneira que os sujeitos encontram para interpretar, reagir e criar textos particulares. Ela ratifica a posição de Karlyn Kohrs Campbell e Kathleen Hall Jamierson (1978) de que o estudo de gêneros é importante não por permitir a criação de taxonomias, mas por enfatizar aspectos sociais e históricos da retórica que outras perspectivas não faziam na época. Essa definição retórica de gênero se concentra não apenas na substância ou na forma do discurso, mas na ação recorrente que ele realiza. Os gêneros não são, portanto, apenas sócio-históricos, são também cognitivos, pois envolvem a apreensão dos fenômenos sociais. Aviva Freedman (1994), num ensaio sobre cerimoniais, mostra como gêneros e apreensões estão ligados, uma vez que, em um sistema de relações, não podemos compreendê-los completamente como ações sociais sem levar em consideração a apreensão. Ou, como aponta Bazerman (2006, p. 31), gêneros são entendidos como “fenômenos de

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reconhecimento psicossocial que são parte de processos de atividades socialmente organizadas”. Assim, esse conhecimento é aprendido, como afirmamos anteriormente, em situações retóricas recorrentes. Miller (1984, p. 156) desenvolve a noção de recorrência, afirmando que: o que recorre não é uma configuração material de objetos, eventos e pessoas, tampouco uma configuração subjetiva, ou uma percepção, uma vez que essas também são únicas de momento a momento e de pessoa para pessoa. A recorrência é um fenômeno intersubjetivo, uma ocorrência social e não pode ser entendida em termos materialistas.

Dessa forma, com relação à situação, devem-se rejeitar tendências materialistas, pois o que recorre não é a configuração material, tampouco relações individualistas ou subjetivas. A recorrência é implicada pelo entendimento que os sujeitos têm das situações como algo comparável, similar ou análogo a outros eventos por eles já conhecidos. Dessa forma, ocorrem identificações baseadas em atribuição de significado. O que precede a ação humana é a interpretação do ambiente material em que ela ocorre; os indivíduos definem ou determinam a situação. Central para essa noção de situação e recorrência é o conceito de exigência desenvolvido por Miller (1984). Entendendo a situação retórica como constructo intersubjetivo e social, a exigência não pode ser definida como percepção individual ou no âmbito apenas de circunstâncias materiais. A exigência é apresentada como motivação social, é uma forma de conhecimento social, é construção mútua de objetos, eventos, interesses e propósitos que não somente os relaciona, mas também os fez o que eles são: uma necessidade social objetiva.

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É através do processo de tipificação que se criam recorrências, analogias e similaridades. O que ocorre não é uma situação material, mas a construção intersubjetiva de um tipo. O sucesso da comunicação exige que os participantes partilhem tipos comuns, e isso só é possível porque eles são socialmente criados. Bazerman (2006, p.29), tratando de tipificação e gêneros, afirma que “uma maneira de coordenar melhor nossos atos de fala uns com os outros é agir de modo típico, modos facilmente reconhecidos como realizadores de determinados atos em determinadas circunstâncias”. Essas formas padronizadas e reconhecíveis emergem como gêneros. O autor define tipificação como “o processo de mover-se em direção a formas de enunciados padronizados, que reconhecidamente realizam certas ações em determinadas circunstâncias, e de uma compreensão padronizada de determinadas situações é chamado de tipificação” (BAZERMAN, 2006, p. 29-30). Após apresentarmos o conceito de tipificação ao lado das noções de situação retórica e exigência, é importante retomarmos a noção de gêneros do discurso definida por Bakhtin (1997[1952; 1979], p. 280) como “tipos relativamente estáveis de enunciados”, ressaltando o advérbio “relativamente”. À primeira vista, ao discutirmos sobre tipificação, pode parecer que tratamos de uma estabilidade total das interações humanas, porém o conceito de tipificação leva em conta a criação de novas formas comunicacionais. No entanto, essas formas não são totalmente novas, mas sempre se baseiam em situações reconhecidas em determinada sociedade. Por fim, a teoria da estruturação de Antony Giddens (1991; 2003), que é fundamental para os ERG, mostra a constitutividade entre sujeitos e sociedade, em que a sociedade é formada pelas ações dos atores. No entanto, tais atores estão inseridos na sociedade e têm, portanto, suas ações regidas por ela, o que, por outro lado, não inibe

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a agência dos sujeitos. Com relação aos gêneros textuais, um bom exemplo de agência e estabilidade relativa são os gêneros criados com a invenção da internet. Os blogs, e-mails, charges virtuais, reportagens interativas, entre outros, são formas de comunicação criadas a partir dos recursos fornecidos pela tecnologia, mas também remontam formas já instituídas de comunicação humana, como as cartas, os diários, as charges impressas etc. Assim, notamos que a ação parte de formas tipificadas que não suprem mais totalmente as necessidades de comunicação; então, novas formas não são criadas num vácuo estrutural, mas a partir de estruturas já compartilhadas em sociedade. Na primeira seção deste artigo, retomamos historicamente o surgimento da propaganda. Vimos que os textos publicitários tinham e têm a função principal de intermediar a relação entre os mercados e a população consumidora. Quando os mercados foram ficando mais amplos, houve um distanciamento com relação ao consumidor. Então, o texto publicitário passou a cumprir a função de reestabelecer essa comunicação, de um lado, divulgando as qualidades dos produtos e, de outro, apresentando informações para que os consumidores fizessem suas aquisições. Com relação à nossa discussão teórica sobre gêneros textuais, podemos perceber uma exigência social quanto à publicidade. Inicialmente, há a motivação. A partir de então, com a percepção da situação retórica, surge uma necessidade discursiva. No entanto, para suprir tal necessidade, o gênero – no caso do nosso exemplo, o texto publicitário – é criado a partir de situações recorrentes, já que os gêneros não surgem aleatoriamente. Encontramos, nesse sentido, a base filosófica do dialogismo. É assim que vão surgindo as formas tipificadas dos gêneros, de acordo com as exigências que emergem de situações retóricas, as quais são constructos intersubjetivos e sociais.

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Nos dois textos analisados, encontramos a demanda social do ambientalismo. No primeiro exemplo, não percebemos alterações no gênero, uma vez que, com relação à forma e à função, se apresenta como uma forma bastante tipificada na sociedade atual: um comercial de TV, de trinta segundos, que empresta seu discurso a uma personalidade como forma de argumento de autoridade e usa o argumento verde para vender seu produto. Nada além de uma resposta do próprio produto vendido à demanda de consumo sustentável. Enquanto gênero, o exemplo 01 não apresenta novidades e o exemplo 02 possui uma tipificação nova, resultado de exigências sociais mais complexas. Sua produção, como afirmamos, emerge de relações sociais bastante atuais: ONG especializada empresta sua experiência sociodiscursiva para a construção de uma campanha que não irá vender um produto específico, mas manipular a construção da identidade empresarial. Com essa necessidade de uma identidade empresarial verde, começamos a observar o surgimento de algumas campanhas tidas como “de conscientização”, com textos bastante instrucionais, com indicações de consumo e descarte de produtos de forma que se diminua a agressão à natureza. A campanha Consciente Coletivo é um exemplo dessa demanda social. No entanto, a forma como esse tipo de campanha é divulgado leva os consumidores a, desavisadamente, ou numa leitura mais superficial, entenderem tais campanhas como instrucionais ou “de conscientização”, sem perceber que, na verdade, são propagandas institucionais que têm o principal objetivo de construir uma identidade empresarial adequada às demandas sociais da atualidade.

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Finalmente... a responsabilização do consumidor Nas análises dos dois exemplos, desde o início do artigo, mostramos uma série de diferenças entre eles, mas há algumas semelhanças. A primeira e mais evidente é a presença do discurso ambiental, no entanto há outras não tão evidentes assim. Defendemos a tese de que, nas propagandas que se utilizam do discurso da ecologia, há um processo de isenção das empresas e de responsabilização do consumidor. Consolidando esse argumento historicamente, temos que a chamada Sociedade de Consumo, atualmente compreendida como “uma sociedade simbólica e de sinais e significados, enfatizando a construção e fortalecimento das identidades individuais e sociais através da aquisição e uso de bens” (PORTILHO, 2005, p. 73), começou a se instalar no mundo ocidental a partir do industrialismo, século XVIII, com a Revolução Industrial, na Inglaterra. Para Campbell (2002 apud PORTILHO, 2005), a Revolução do Consumidor ocorreu nessa época, introduzindo mudanças nas técnicas de produção industrial. Embora a necessidade de consumo crescente da sociedade tenha sido a causa principal para a Revolução Industrial, aquela era uma sociedade prioritariamente de produtores. Na contemporaneidade, tem-se cada vez menos necessidade de mão de obra industrial em massa. Em vez disso, a sociedade precisa engajar seus membros na condição de consumidores, com o dever, a capacidade e a vontade de desempenhar esse papel. O consumo passa a ser encarado, mais do que como um direito ou um prazer, como um dever do cidadão. Portanto, a diferença entre as Sociedades de Consumo que se alteram desde a Revolução Industrial até a atualidade não são tão visíveis ou estáticas. Na atual sociedade moderna, por exemplo, desponta o consumidor verde. Como vimos, os problemas ambientais se apresentam

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num patamar privilegiado na agenda global e, em decorrência disso, a mídia dá ampla divulgação aos assuntos ecológicos. Essa proeminência de discursos ecologicamente corretos, conforme Dias (2008), tem levado uma parcela de consumidores a ações concretas, como evitar a compra de produtos que agridem o meio ambiente e boicotar produtos de empresas que apresentam uma imagem ambientalmente negativa. Portanto, em todos os estágios são imprescindíveis as atividades de consumir e de produzir. A diferença é, pois, de ênfase e prioridades. Dessa forma, numa economia de mercado, não há como compreender consumo e produção fora de um processo contínuo e complementar. Dicotomizar consumo e produção tem sido uma estratégia discursiva recorrente utilizada por empresas no intuito de valorizar suas ações de responsabilidade socioambiental. Desde a década de 1960, o movimento ambientalista vem ganhando espaço e consistência. Mas foi na década de 1990, com a ECO Rio 92, que se instauraram alguns acordos de produção sustentável. Até então, as indústrias eram tidas como as grandes vilãs da degradação. Para começar a diminuir as agressões ambientais durante a produção, algumas estratégias foram sendo propostas, tais como os selos de certificação. Além disso, leis de responsabilidade ambiental foram sendo criadas. Com a pressão de leis, das certificações, da mídia e de um consumidor mais exigente em termos ambientais, houve uma crescente adesão a produções mais limpas. Sendo assim, houve e ainda há uma tendência à dicotomização entre produção e consumo. A ideologia subjacente ao discurso empresarial é de que as empresas cumpriram suas metas, agiram com responsabilidade; agora, seria a vez do consumidor. Então, as propagandas, principal meio de comunicação entre quem produz e quem consome, ao usarem o discurso ambiental, tendem a responsabilizar o consumidor como se seus atos de consumo fossem o motivo da

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crise ambiental. Como solução para que esse consumidor se torne ecologicamente correto, a empresa se apresenta como um caminho. No exemplo 01, um raciocínio bastante evidente é “todos precisam ter uma geladeira; se é para comprar, é melhor que compre da Panasonic porque é ecologicamente correta”. No exemplo 02, o processo de culpar o consumidor é absurdamente crescente durante a série. Primeiro, o jovem humano é injustamente comparado a outros animais ou plantas, e seu processo de consumo é questionado. No final de cada episódio, as ações que devem ser modificadas são sempre as do consumidor, muitas vezes, como vimos no episódio 01, a sugestão de mudança de hábito envolve a escolha por uma empresa certificada e sustentável. Ao final, obviamente, aparecem as logomarcas das produtoras da propaganda. Esse tipo de reflexão é importante porque as ações de produção continuam sendo as grandes responsáveis pela degradação ambiental. O consumidor, que aparece como indivíduo de um coletivo, termina assumindo toda uma responsabilidade num processo de dicotomização entre produção e consumo que simplesmente não existe. Muito se pode fazer com o discurso, realidades podem ser criadas. Leituras atentas podem desvelar processos de relações de poder, permitindo que o cidadão perceba melhor as estratégias argumentativas que podem o estar pressionando. Interessante é que nossas análises partiram da reflexão sobre gêneros, mas, como os gêneros são sociais, históricos e cognitivos, precisamos, algumas vezes, recorrer a aspectos históricos e apontar possíveis estratégias de reprodução ideológica e de relações injustas de poder, como foi o caso dos exemplos analisados. Assim, esperamos ter refletido sobre as ideias dos Estudos Retóricos de Gêneros de forma clara, por meio de práticas sociais relevantes para essa modernidade que vivemos.

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7 A relativa estabilidade dos textos de divulgação científica: um caso de hibridismo1 Regina L.Péret Dell´Isol a (UFMG)

Introdução Visto como prática social e prática textual-discursiva, o gênero textual opera como a ponte entre o texto e o discurso. De um lado, o texto, unidade empírica a que temos acesso, é um evento sociointerativo, um ato enunciativo em que vários aspectos da significação são materializados através de categorias linguísticas, sociais, cognitivas, culturais. Do outro lado, o discurso é o lugar de enunciação em que estão envolvidos os participantes, a situação sócio-histórica, além de aspectos pragmáticos, tipológicos, processos de esquematização, entre outros elementos. Entre ambos, textos e discursos, estão os gêneros textuais que, conforme Bazerman (2005, p.31), são fatos sociais, são os tipos que as pessoas reconhecem como sendo usados por elas próprias e pelos outros e, dessa forma, “emergem nos processos sociais em que pessoas tentam compreender umas às outras suficientemente bem para coordenar atividades e compartilhas significados com vistas a seus propósitos práticos”. 1. Este trabalho foi apresentado no NIG e o artigo é versão atualizada e modificada do texto publicado em DELL´ISOLA, Regina L. P. Dos limites entre o estável e o instável em textos de divulgação científica. In. SARAIVA, Maria Elizabeth e MARINHO, Janice. (Orgs.). Estudos da língua em uso: da gramática ao texto. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2010. p. 263 -287.

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Neste trabalho, focaliza-se a constituição do gênero relatório de pesquisa, abordam-se aspectos relativos ao discurso acadêmico e ao discurso de divulgação científica, explora-se a noção de intertextualidade inerente aos textos da esfera acadêmico-científica, com o objetivo de apresentar uma análise de um texto híbrido. Nessa análise, leva-se em conta que os textos operam basicamente em contextos comunicativos e são consideradas as relações intertextuais que se estabelecem entre o texto e sua situacionalidade ou inserção cultural, social, histórica e cognitiva – o que envolve os conhecimentos individuais e coletivos. A presente discussão focaliza um exemplo de texto híbrido, reconhecendo-se a hibridização como fenômeno inerente às formações genéricas e a intertextualidade como aspecto constitutivo dessas formas retóricas. A partir de subsídios do arcabouço teórico proposto por Bazerman (2006), nosso interesse concentrou-se no estudo do processo de organização desse exemplo de texto híbrido. Para isso, analisamos a composição prototípica do relatório de pesquisa, estabelecendo as possibilidades de interação desse gênero com públicos diferenciados: com os membros da academia e com o público externo ao meio acadêmico. Assim, considerando-se a existência de dois diferentes discursos – ­­o científico e o de divulgação científica –, focalizamos a constituição de um gênero híbrido em que são exigidos conhecimentos específicos de uma esfera social para que a intertextualidade presente seja compreendida com a clareza desejada. Tomando-se o discurso como prática social e cultural – pressuposto presente em diversos estudos (Schffrim, 1994; Maingueneau, 1989; Fairclough, 1995; Bazerman, 2004; Coutinho, 2012; para citar alguns) – e considerando-se, com Bakhtin (1981, p.96), que “a língua, no seu uso prático, é inseparável do seu conteúdo ideológico ou relativo à vida”, focalizou-se a constituição de significados sociais a

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partir da análise de um gênero híbrido que expõe as práticas sociais de determinado grupo, como se verá adiante.

As convenções dos gêneros da esfera acadêmica Os gêneros da esfera acadêmica ou científica tendem a apresentar uma configuração que lhes é peculiar e que tem servido de orientação para a escrita de outros textos que circulam em um ambiente denominado academia – uma agremiação de profissionais que atuam em universidades, centros de pesquisa, núcleos tecnológicos, grupos de investigação, associações científicas, cuja macroação consiste em produzir, contrastar, aplicar e divulgar conhecimentos sistemático-socializados, que passam a constituir patrimônio de uma sociedade. Essa macroação é basicamente de caráter linguístico e seus produtos são as investigações registradas nos chamados textos acadêmicos. O conjunto de investigadores que trabalha regularmente no meio acadêmico tem uma noção estável, embora em evolução, dos objetivos propostos pelo seu grupo e desenvolve uma gama de gêneros falados e escritos para monitorar suas propostas, seus trabalhos e pesquisas. Esses gêneros são identificados por aspectos discursivos e retóricos evidentes para os membros da academia. Vinculados a situações sociais desse âmbito, os gêneros que circulam nesse contexto caracterizam-se pela demanda de conhecimentos de formas retóricas típicas de interação entre os membros da comunidade acadêmica. Sua prototipicidade os torna familiares a esse grupo específico de pessoas e funciona como um sistema de produção de novos textos. Segundo Swales (1998), há comunidades discursivas que ‘possuem’ gêneros, impondo, a eles, suas normas, convenções e ideologias, e há outras que são possuídas pelos gêneros, na medida em que os membros da comunidade procuram reproduzir os gêneros tal

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como os receberam da tradição e da ideologia da comunidade. Ambos os fenômenos apontados por Swales (1998) ocorrem em comunidades discursivas como a acadêmica, e, reconhece-se aqui, conforme afirmam Figueiredo e Bonini (2006, s/p)2, que os membros seniores da comunidade criam e alteram gêneros, e imprimem nesses gêneros as ideologias, normas e convenções de seu grupo social. Por outro lado, os membros aprendizes, ou juniores, da comunidade tendem a utilizar os gêneros sancionados de forma tradicional, reproduzindo padrões lingüísticos, retóricos, discursivos e ideológicos. Essa ‘reprodução’ de gêneros funciona como uma forma de ingresso à comunidade.

Essa ideia está em consonância ao que afirmam Hemais e Biasi-Rodrigues (2005, p.115), segundo os quais “o discurso mostra o conhecimento do grupo. As convenções discursivas facilitam a iniciação de novos membros na comunidade, ou seja, os novatos são estimulados a usar de forma apropriada as convenções discursivas reconhecidas pela comunidade”. Assim, assume-se a visão de discurso como prática social, produzida dentro de uma comunidade socialmente situada, que possui convenções específicas sobre conteúdo e forma textuais, e que apresenta caráter interativo, inclusivo e identitário das práticas discursivas utilizadas por essa comunidade. A maior parte da produção textual acadêmica é predominantemente do tipo dissertativa. O texto dissertativo acadêmico é organizado esquematicamente por categorias canônicas e de estrutura argumentativa ou expositiva, dependendo do enfoque desejado pelo pesquisador. As modificações apresentadas no texto da esfera acadêmica dependem de suas condições de produção discursiva. Den2. Disponível em http://www3.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem acessado em maio de 2015.

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tre os gêneros científicos estão: a palestra, a comunicação oral, o seminário, o ensaio, a monografia, o artigo científico, as resenhas e outras formas típicas com que a comunidade científica lida em situações recorrentes. Esses gêneros textuais operam basicamente em contextos específicos e têm representação cultural, social e histórica. Cada vez que um gênero é produzido para atender a um contexto situacional, ele se torna modelo para outro texto, funcionando como um produto acabado. Ao mesmo tempo, um novo processo de produção se inicia e esse gênero torna-se dinâmico uma vez que, inevitavelmente, haverá alguma transformação do modelo original, como lembra Threadgold (1989). Para que seja reconhecido, esse gênero deve guardar características que mantêm sua identidade e que garantem seu reconhecimento. O discurso acadêmico é entendido como uma prática sociointerativa realizada por um determinado conjunto de pesquisadores – dispersos por todo o mundo – que constituem um grupo que produz conhecimento e está comprometido a divulgar esse conhecimento para um auditório. Em princípio, o papel dos acadêmicos ou cientistas engloba a produção de um discurso resultante de uma investigação que culmina na comunicação de resultados. O texto produzido é a unidade de manifestação, o lugar do agenciamento do(s) sentido(s) que, por meio de mecanismos de enunciação, configura-se no discurso acadêmico.

A configuração prototípica de um relatório de pesquisa Entre o texto e o discurso acadêmico estão os gêneros que resultam em escolhas dentro de uma prática que remete a esquematiza-

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ções resultantes dessa prática. Conforme Marcuschi (2002), muitas decisões de textualização – de configuração textual – devem-se à escolha do gênero. Desse modo, o gênero inscreve também formas textuais que se manifestam no artefato linguístico. Considere-se, por exemplo, uma produção textual escrita prototípica do discurso acadêmico: o relatório de pesquisa, gênero presente em qualquer área da academia. A necessidade de se produzir um relatório de pesquisa exige um tipo de configuração, ações discursivas e seleções específicas a fim de que ele seja reconhecido e aceito pela comunidade acadêmica. Assim, para escrever um relatório, o pesquisador deve contar com conhecimento de esquemas textuais convencionados na e pela academia. Para circular nesse ambiente, o relatório de pesquisa apresenta uma configuração específica. Basicamente, é constituído por uma introdução, seguida de uma justificativa ou de uma exposição, acompanhados dos resultados, discussão ou conclusão. É sabido que, na introdução, apresenta-se o assunto, permitindo ao leitor ter uma visão de conjunto do tema. Para tanto, geralmente, especifica-se o objeto de estudo, esclarece-se o ponto de vista sobre o qual o assunto foi tratado, apresentando aos interessados a síntese do que será abordado, auxiliando e conduzindo o leitor na construção da coerência geral do conteúdo do relatório. Na justificativa, o pesquisador pode citar trabalhos anteriormente realizados por outros investigadores que abordaram o mesmo tema. Espera-se que ele justifique a razão da necessidade de seu trabalho e que deixe claros os motivos que o levaram a escolher o tema, o problema da sua pesquisa, suas hipóteses de estudo e os objetivos pretendidos. De certa forma, ele deve mostrar a relevância do trabalho que realizou, cabendo ao público-alvo inferir a respeito da importância do estudo.

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Na exposição, em geral, o pesquisador descreve as etapas, define termos e conceitos que adota, apresenta os dados e as variáveis com que trabalhou, a delimitação do universo estudado e as limitações de sua pesquisa. Nessa parte do trabalho, ele pode orientar futuros estudiosos quanto aos problemas enfrentados durante a realização de sua pesquisa. Os resultados, alcançados após a análise dos dados, devem ser apresentados de modo coerente com os argumentos defendidos pelo pesquisador à luz das evidências. Espera-se que os resultados sejam expostos de forma direta, clara, objetiva e sucinta, acompanhados de significância e relevância. Nessa parte do texto, o estudioso faz saber à sua comunidade aquilo que não era sabido. Finalmente, a discussão ou conclusão é a parte do relatório em que se espera que o pesquisador interprete, critique, justifique e enfatize os resultados alcançados, mostrando as relações existentes entre os dados coletados na pesquisa e as hipóteses confirmadas ou refutadas. Discutem-se os resultados à luz das teorias, podendo ser feita uma comparação entre esses resultados com os de pesquisas anteriores, levantados na revisão de literatura. Ao final de um relatório, o pesquisador pode ou não apresentar uma conclusão definitiva a partir de seus dados analisados. Isso dependerá da complexidade de sua análise. O relatório de pesquisa é um gênero textual do discurso científico que compreende uma configuração típica estabelecida pelos acadêmicos. Trata-se do fruto de um trabalho realizado em duas etapas que se complementam. A primeira, quase sempre solitária, é organizada pelas categorias textuais: problema, métodos, análise e resultados obtidos. A segunda etapa é voltada para a divulgação da descoberta para a comunidade científica. Nesse momento, cabe ao cientista um discurso envolvente e persuasivo, em que seus argu-

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mentos objetivam convencer o leitor ou o ouvinte (público-alvo) do valor que ele, pesquisador, atribui ao seu estudo, à sua investigação, à sua descoberta. Grosso modo, esse gênero, do tipo dissertativo, é resultado de uma investigação destinada a ser divulgada oralmente ou por escrito. Quando publicado em periódicos científicos, submete-se aos critérios de publicação da revista ou a normas estabelecidas por um corpo editorial. Embora esses critérios possam variar de revista para revista, a organização textual de um relatório de pesquisa apresenta uma orientação de modo a manter racional e uniforme a sequência da produção desse gênero. Entretanto, esse relatório pode vir a ser publicado em um jornal diário e, nesse caso, como veremos adiante, seu texto sofre modificações para que seja compreendido por leigos ou iniciantes.

Discurso científico ou de divulgação científica? É sabido que os resultados dos estudos científicos não devem circular dentro da academia, é preciso que o conhecimento e as descobertas ultrapassem os muros das universidades e dos centros de pesquisa. Por isso, há o discurso do cientista – a que denominamos discurso científico – que é uma atividade exercida pelo cientista que interage, com seus pares, tratando de ciência. E há o discurso de divulgação científica que consiste na interação de um divulgador (que pode ser o próprio pesquisador, ou outra pessoa como, por exemplo, um jornalista) com um público de não especialistas, a fim de que o conhecimento seja difundido. Para propagar esse “saber científico”, no discurso de divulgação científica, tende-se a se empregar uma linguagem mais simplificada e menos técnica do que a usada no discurso acadêmico.

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Conforme Authier-Revuz (1998, p. 107), a divulgação científica é classicamente considerada como uma atividade de disseminação, em direção ao exterior, de conhecimentos científicos já produzidos e em circulação no interior de uma comunidade mais restrita: essa disseminação é feita fora da instituição escolar universitária e não visa a formação de especialistas, isto é, não tem por objetivo estender a comunidade de origem.

Nos textos de divulgação científica, nota-se um certo distanciamento do locutor em relação ao que divulga; ao mesmo tempo, percebe-se a presença da necessidade desse locutor apresentar-se como detentor de um conhecimento que lhe autorize a propagação desse saber aos considerados “leigos” no assunto de que trata o texto originado do discurso acadêmico. Segundo Agustini (2006, p.327), existe uma confluência das formas de dizer da ciência com as formas de dizer da didaticidade pedagógica, fazendo emergir aí um lugar enunciativo: o divulgador - uma espécie de efeito locutor “tradutor” da língua da ciência para a língua do cotidiano: uma lacaização de conhecimentos científicos. Por conseguinte, mesmo que o indivíduo no mundo também ocupe o lugar social de cientista, para que ele produza um texto de divulgação científica será necessário pôr-se no lugar enunciativo do divulgador. Portanto, não se trata da relação do indivíduo empírico com um texto, mas da configuração (social) de um lugar de enunciação específico: o do divulgador, elemento constitutivo do discurso de divulgação científica.

Tanto o discurso científico quanto o discurso de divulgação científica, inevitavelmente, caracterizam-se pela intertextualidade.

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Como lembra Bazerman (2005, p.25), “a intertextualidade frequentemente procura citar uma compreensão compartilhada sobre o que foi dito anteriormente e a situação atual como se apresenta. Isto é, as referências intertextuais tentam estabelecer os fatos sociais sobre os quais o escritor tenta fazer uma nova afirmação”. O saber novo adquirido está frequentemente sustentado na produção de outros saberes acadêmicos anteriores, já expressos em outros textos apresentados na e pela comunidade científica. Isso faz com que a intertextualidade seja uma característica do discurso científico.

A intertextualidade no discurso da esfera científica No caso dos textos da esfera científico-acadêmica, a intertextualidade é um fenômeno até certo ponto esperado, previsível, por integrar a organização composicional da produção acadêmica. Amplamente reconhecida como um fator de constituição do texto científico, a intertextualidade compreende algumas conhecidas técnicas, tais como: o uso de citação direta, de citação indireta; menção a uma pessoa, a um documento ou a declarações; comentário ou avaliação acerca de uma declaração, de um texto ou de outra voz evocada; uso de estilos reconhecíveis, de terminologia associada a determinadas pessoas ou de documentos específicos; uso de linguagem e de formas linguísticas que parecem ecoar certos modos de comunicação, discussões entre outras pessoas e tipos de documentos, conforme aponta Bazerman (2006). O autor distingue níveis de intertextualidade por meio dos quais um texto evoca explicitamente outros textos e se apoia nele como um recurso consciente. Assim, na tentativa de apreender as dimensões e os aspectos centrais da intertextualidade, Bazerman (2006, p.92-94) apresenta os seguintes níveis:

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1. O texto pode remeter a textos anteriores como uma fonte de sentidos, usada como valor nominal. Isso ocorre sempre que um texto apresenta declarações de outras fontes consideradas autorizadas, repetindo essa informação autorizada para os propósitos do novo texto; 2. o texto pode se remeter a dramas sociais explícitos de textos anteriores mencionados na discussão; 3. o texto pode também explicitamente usar outras declarações como pano de fundo, apoio ou contraposição. 4. de forma menos explícita, o texto pode se apoiar em crenças, questões, ideias e declarações amplamente difundidas e familiares aos leitores, quer sejam relacionadas a uma fonte específica, quer sejam percebidas como senso comum. 5. através do uso de certos tipos reconhecíveis de linguagem, de estilo e de gêneros, cada texto evoca mundos sociais particulares onde essa linguagem ou essas formas lingüísticas são utilizadas, normalmente com o propósito de identificá-lo como parte daqueles mundos; 6. através apenas do uso da linguagem e de formas lingüísticas, o texto recorre aos recursos lingüísticos disponíveis, sem chamar a atenção de modo particular para o intertexto. 7. cada texto, a todo instante, depende da linguagem disponível no momento histórico e faz parte do mundo cultural de todos os tempos.

À luz das perspectivas teóricas desenvolvidas no âmbito acadêmico anglo-americano, os gêneros devem ser entendidos como ações retóricas típicas em situações sociais recorrentes, tal como denominam Fredman e Medway (1994), e também são como estruturas retóricas dinâmicas, como apontam Berkenkotter e Huckin (1995). Nessa dinâmica, o processo da intertextualidade tem ultrapassado os limites, o que tem obrigado os estudiosos a investigar de-

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terminadas produções textuais controversas (que causam embaraço). Entendemos com Bazerman (2006) que intertextualidade não é apenas uma questão ligada a que outros textos um texto faz referência, e sim como outros textos são usados, as razões pelas quais esses outros textos são usados e como o escritor-produtor do texto se posiciona enquanto escritor diante deles para elaborar seus próprios argumentos. Outros autores, como Fairclough (1995), denominam esse mecanismo como interdiscursividade, pelo fato de os textos estabelecerem de maneira implícita posições interpretativas para sujeitos interpretantes que possuem a capacidade de fazer inferências, baseadas em suas experiências prévias para o estabelecimento de conexões através dos diversos elementos intertextuais de um texto. Assim, uma discussão interessante sobre intertextualidade é a que desperta a leitura do texto “Confirmado: o brasileiro é doido varrido” (a seguir), publicado no jornal “O Tempo” em 26 de maio de 2002. Superficialmente, observamos seu formato, sua fonte e outros componentes que nos conduzem a identificá-lo, à primeira vista, como um texto de divulgação científica. Mas estamos diante de uma intertextualidade de gêneros textuais, após uma análise mais detalhada. Confirmado: o brasileiro é doido varrido Realizado em São Paulo no mês passado, o 33° Congresso Brasílico de Patafísica em que foram divulgadas conclusões interessantíssimas de uma ampla pesquisa realizada em todo o país. A principal delas é a de que o brasileiro é doido varrido. A Sociedade Brasileira de Patafísica (SBP) é uma entidade sem fins lucrativos e congrega nossos mais im­portantes psicólogos, psiquiatras, sociólogos, cientistas políticos e historiadores. A entidade funciona de forma semiclandestina e nenhum de seus membros concede entrevistas à imprensa, mas as conclusões dos trabalhos são disputadas a tapa por revistas científicas internacionais, como “Nature”

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e “Science”. Participam das reuniões alguns observadores, quase sempre escritores, sempre selecionados por meio de sorteio. Tive dupla sorte este ano: além de sorteado, recebi permissão para divulgar com exclusividade algumas das conclusões, que sem dúvida interessam ao povo brasileiro, e também aos governantes que nos desgovernam. Metodologia de pesquisa Durante um ano inteiro (de abril 2001a março de 2002), grande equipe de estudantes universitários realizou ampla pesquisa de campo, patrocinada pela SBP. A pontuação conferida variava de 1 (sanidade-quase-completa) a 10 (doido-completamente-varrido). A amostragem da população foi estabelecida com base nas classes sociais existentes, ou seja, A, B, C, D e E. De modo geral, a classe A é constituída dos ricos e poderosos; a classe B, dos que querem ser ricos e poderosos; a classe C dos que querem ser Classe B; a classe D dos que aspiram subir para a classe C; e a classe E, finalmente, é formada pelos que esperam morrer em paz. Foram entrevistadas 70.347 pessoas, mais ou menos um milésimo da população nacional, número bastante expressivo. As despesas, financiadas pelo FMI, ficaram era US$ 170.347.000.000,00, com juros de 60% no ano, sem carência. Não se sabe quem vai pagar. Exemplos de perguntas e de respostas Existe democracia no Brasil? Quem respondeu “sim” recebeu nota 10, sendo considerado doido-completamente-varrido, pois é absurdo considerar democrático um país cuja opinião pública é formada pelos programas de televisão. Respostas do tipo “mais ou menos” tiveram pontuação 5, de doidos-mais-ou-menos-varridos. Qual é seu meio de informação preferido? Quem respondeu «televisão recebeu 10 (doido-com-som-e-imagem. Quem respondeu “rádio” recebeu 8 (doido-papagaio). Respostas tipo “conversa

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com vizinhos” tiveram nota 7 (reservada aos doidos-fofoqueiros). Respostas “livros, revistas e jornais» obtiveram entre l e 10, dependendo do livro, da revista e do jornal. Exemplificando: livros de auto-ajuda, que nunca ajudaram ninguém, exceto quem os escreveu, vale nota 10 (doido-para-ser-embromado). Leitores de revistas de variedades televisivas, também receberam 10 de doido-com-imagem-sem-som. Já a resposta livro de “colégio/universidade” teve notas en­tre 2 e 10, dependendo do colégio e da universidade. O Brasil conseguirá pagar a dívida externa? Como? Quem respondeu “sim” ganhou nota 10, é lógico, pois não existe doidice mais varrida do que acreditar nisso. A resposta “não” obteve 2, ótima pontuação, que demonstra sólidos conhecedores de economia, política e sociologia. No complemento “Como?” houve respostas bastan­te variadas. “Pagando, ué!” e “cedendo a Ama­zônia em troca” também levaram 10. Já a resposta “dando o tombo recebeu 2, por revelar inteligência, sabedoria e objetividade. Qual seu tipo preferido de mulher (ou de homem? Todas as respostas tiveram nota 10, de doido-completamente-varrido, pouco importando se a resposta foi loura(o), negro(a), morena(o), mulata(o), magra(o), gordo(a),etc. O simples fato de preferir um tipo em detrimento de outro já caracteriza, segundo os patafísicos, a doido-varridice-completa. Você acredita no amor? Interessantíssimo este item. A grande maioria dos que responderam com forte, maiúsculo e sonoro “SIM!” a esta questão é constituída de presos, e são os que mataram por amor. Assim, 7896 dos que acreditam no amor, e se declararam amorosíssimos, esfaquearam, assassinaram a tiros ou estrangularam os consortes ou namorados. “Matei por amor”, disseram todos, cheios de convicção e saudade, com os olhos rasos d’água. Em sua opinião, como é o inferno? 50% disseram o óbvio: o inferno é um buraco escuro, cheio de capetas pelados, com rabo pontudo, chifres, pés de bode e barbicha. Passam a eternidade no maior tédio, espetando os condenados com garfos e­normes e jogando-os cm caldeirões de azeite fervendo. Os mais teóricos, disseram que o

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inferno é a ausência de Deus. Os mais ligados, que inferno é morar era favela. Os mais cínicos, que o inferno é parecido com o Brasil, todos, se devorando uns aos outros. Nota 10 para todos; por acreditarem inferno, apesar de algumas respostas brilhantes. Resultado geral. Depois de análise em computador por espe­cialistas em estatística e cruzamento de dados, chegou-se ao seguinte percentual: Brasileiros doidos-completamente-varridos: 58% Brasileiros doidos-parcialmente-varridos: 12% Brasileiros doidos-mais-ou-menos-varridos: 20% Brasileiros doidos-regularmente-varridos: 9,99999% Brasileiros doidos-pouco-varridos: 0,001% Brasileiros mentalmente sadios: 0,000% Serve de consolo lembrar que é apenas mais uma pesquisa, embora realizada pelo mais sério dos institutos dedicado a esse árduo trabalho de perguntar e não responder. Fonte: NUNES, Sebastião. O Tempo, Belo Horizonte, 26 mai.2002, p.8

Intertextualidade em um gênero híbrido A partir da leitura desse texto, percebemos a presença de uma forma estrutural de um discurso prototipicamente científico em que se revela uma paródia. Como se dá essa constituição? O título Confirmado: brasileiro é doido varrido induz o leitor a acreditar que se trata de uma conclusão baseada em resultado de uma investigação: comprovado (algo que vai além de uma especulação, vai além do sen-

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so comum. Certamente, uma conclusão a que se chegou com base em uma pesquisa); brasileiro (recorte do corpus, a pesquisa teria sido feita a partir de uma coleta de dados cujos informantes – sujeitos investigados – são brasileiros); é doido (pessoa demente, insana, louca, diz-se daquele indivíduo que age de modo insensato, imprudente ou exagerado); varrido (temos aqui uma palavra que pode levar ao estranhamento, uma vez que há indícios de uma inadequação vocabular. A expressão “doido varrido” é coloquial e significa pessoa muito doida, com alto grau de loucura; corresponde a “doido de pedra”, também usual em certas regiões do Brasil.) Embora essa expressão possa parecer imprópria para o título, entendendo-se as condições de produção do texto, considerando-se que se trata aparentemente de um texto de divulgação científica, veiculado por um jornal de grande circulação, são fortes os indícios de que o suporte (esse jornal) permite o uso de uma linguagem mais coloquial para “vender” a matéria. Trata-se, portanto, aparentemente, de um texto de vulgarização do resultado de uma pesquisa feita. O texto preenche as condições mínimas que levam o leitor a associá-lo a um texto de divulgação científica, pois, além de ter sido escrito por um divulgador (jornalista), interage com um auditório formado pelos leitores do jornal, ou seja, está aberto a todos os que se interessarem pelo assunto, mesmo os que não são especialistas na temática abordada. Percebe-se claramente, nesse texto, a exploração de esquemas textuais convencionados que configuram um produto acadêmico que guarda semelhanças a um relatório final de uma pesquisa ou pode ser visto como um discurso aparentemente gerado a partir de um relatório realizado no meio acadêmico. Observando-se seu formato, sua disposição e componentes, esse texto pode ser identificado como um resultado de uma pesquisa, pois obedece a várias das convenções desse gênero tais como: título,

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subtítulos, identificação do tema, dados numéricos, supostamente estatísticos. Os subtítulos remetem à metodologia empregada, referem-se a exemplos de perguntas e de respostas (critérios avaliativos dessas respostas que fundamentam a análise dos resultados), além do subtítulo de encerramento para apresentação do resultado geral. Características lexicais e gramaticais discursivas típicas dos textos acadêmicos estão presentes. O uso do verbo no passado indica que a investigação já se completou e a temporalidade da sua realização é evidenciada no trecho “de abril de 2001 a março de 2002”. O número de pessoas que foram entrevistadas e o valor da despesa gerada com os gastos realizados também são apontados. Destacam-se, além dessas características, outros aspectos como: o emprego de verbos no presente para apresentar afirmativas irrefutáveis: “A classe A é constituída... e a classe E, finalmente é formada pelos que esperam morrer em paz”; a escolha de termos típicos do âmbito acadêmico (pesquisa de campo, amostragem, população, análise, cruzamento dos dados, especialistas); padrões coesivos e argumentativos e uma macroestrutura típica da pesquisa acadêmica, apresentada através de movimentos argumentativos como os apontados em manuais de metodologia de pesquisa. Na introdução, o divulgador situa a origem das informações que ele propaga, comunicando que as conclusões apresentadas por ele foram divulgadas em um evento denominado “33º Congresso Brasílico de Patafísica”, ocorrido em São Paulo, e promovido pela Sociedade Brasileira de Patafísica (SBP). De início, uma dúvida é gerada por qualquer leitor, ainda que tenha bom vocabulário em língua portuguesa do Brasil: o que é Patafísica?, tendo em vista que essa não é uma palavra que consta em dicionários brasileiros de língua portuguesa. A única explicação que se encontra para o termo está em enciclopédias em que consta que essa palavra remonta à segunda meta-

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de do século XX, quando surgiu um movimento cultural na França, vinculado ao Surrealismo. Nesse contexto, nasce a Patafísica, ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções, criada pelo dramaturgo francês Alfred Jarry, autor das obras “Ubu Rei” e “Dr. Faustroll”3. A palavra patafísica é uma contração de “epi ta meta ta physika”, que se refere a aquilo que se encontra ao redor do que está depois da física, entendendo por “depois da física” aquilo a que se chama metafísica. A Física é a ciência do mundo natural – ramo da filosofia que estuda o mundo como ele é – estudo do ser ou da realidade que se ocupa em procurar responder perguntas tais como: o que é real? o que é natural? o que é sobrenatural?”. Enquanto a Física trata dos componentes fundamentais do universo, as forças que eles exercem, e os resultados dessas forças, a Metafísica remete a temas que ultrapassam a física (Metha = depois, além; Physis = física), como ética, política etc., assuntos que tratam de seres não físicos existentes apesar da sua imaterialidade. O ramo central da Metafísica é a ontologia, que investiga em quais categorias as coisas estão no mundo e quais as relações dessas coisas entre si. A metafísica também tenta esclarecer as noções de como as pessoas entendem o mundo, incluindo a existência e a natureza do relacionamento entre objetos e suas propriedades, espaço, tempo, causalidade e possibilidade; trata de problemas sobre o propósito e a origem da existência e dos seres, da especulação em torno dos primeiros princípios e das causas primeiras do ser. A Patafísica teria por missão explorar os campos negligenciados pela física 3. Jarry expõe os princípios e os fins dessa “abordagem” no romance “Gestes et opinions du docteur Faustrol”, definindo-a como “ciência do particular, ciência da exceção”. Durante todo o século XX, a proposta de Jarry, aparentemente absurda, inspirou outros autores. Existe um Collège de Pataphysique, fundado em 1948, que publica uma revista os “Carnets du Collège”. Nessa publicação, apareceram os primeiros textos de Ionesco (o criador do “teatro do absurdo”, 1090-1994), muitos inéditos de Boris Vian (1920-1959), Jarry ou Julien Torma (1902-1933) e os primeiros trabalhos do grupo OuLiPo.

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e a metafísica. Como ciência, pressupõe-se que a Patafísica faria uso do método científico, recorreria a um conjunto de regras básicas para o desenvolvimento de um estudo destinado ao reconhecimento pela comunidade científica. Possivelmente, teríamos um conceito que remeteria a um Congresso (evento construído por grande diversidade de gêneros acadêmicos), Brasílico (instituição – termo ambíguo que pode se referir ao povo brasileiro como também pode remeter apenas aos povos indígenas brasileiros), de Patafísica (ciência das soluções imaginárias e das leis que regulam as exceções – o que poderia conduzir ao significado “física do nada”?). Esse Congresso acontece pela 33ª vez e, nele, reúnem-se pesquisadores de várias áreas, o que, em princípio, pode gerar surpresa dado que eventos acadêmicos congregam profissionais que têm interesse nas mesmas áreas temáticas. Apesar disso, podemos assumir que a intertextualidade até aqui presente remete ao que Bazerman (2006:95) tipifica como “uso de estilos reconhecíveis, de terminologia associada a determinadas pessoas ou de documentos específicos”, considerando-se que estamos até aqui lidando com a possibilidade de esse ser um gênero de divulgação científica que guarda características do discurso acadêmico. Até aqui temos a expectativa de que o texto traga informações resultantes de um trabalho científico. Porém, não é exatamente o que acontece de fato. Percebe-se com clareza o hibridismo que parece surgir da recontextualização; há, nesse texto, uma ressemantização, que produz uma perceptível relação entre o gênero relatório de pesquisa e a notícia sobre a pesquisa, através do discurso de divulgação em um jornal. Como percebemos que seu conteúdo não atende a essa expectativa inicial? Uma leitura atenta desperta dúvida e conduz a uma certa confusão. O estilo desse texto guarda alguma intertextualidade com o

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acadêmico, porém uma entidade de pesquisa normalmente não funciona de “forma semi-clandestina”, nem mesmo seus membros não se deixam entrevistar. O conteúdo apresentado e as expressões utilizadas não parecem vincular-se a um tópico e a uma metodologia tradicionalmente associados ao trabalho científico. A tese desenvolvida não representa uma tese plausível ou possível de ser estudada sob a perspectiva da ciência. A categorização dos seguimentos de classes sociais apresentados como A, B, C, D e E são inconsistentes e abstratos. O número de brasileiros entrevistados representa “um milésimo da população nacional” e, ao contrário do que está afirmado no texto, não é uma quantidade expressiva para a generalização das conclusões apontadas no resultado geral, ao final do texto. Expressões empregadas para a classificação do grau de insanidade do brasileiro tais como “doidos-mais-ou-menos-varridos”, “doido-papagaio”, “doidos-fofoqueiros”, “doido-para-ser-embromado”; os exemplos de perguntas feitas e o grau de subjetividade na atribuição dos pontos a cada categoria de respostas não constituem proposições esperadas para um texto de divulgação científica. A confusão aumenta à medida que avançamos na leitura, provocando riso ao longo do texto, principalmente nos critérios de pontuação e nos percentuais do resultado. Quando chegamos ao fechamento, percebemos o tom de crítica do autor que, ironicamente, faz alusão àquelas pesquisas que não apresentam respostas às perguntas que motivaram as investigações. Portanto, esse texto, embora mantenha intertextualidade tanto com o discurso científico quanto com o de divulgação científica, tem uma configuração própria. Sua função é basicamente gerar humor e promover reflexão, favorecendo a geração de inferências fundamentadas em críticas implícitas e explícitas a respeito de certos trabalhos acadêmicos.

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Que nome dar a esse gênero? Quantas possibilidades de compreensão são geradas a partir de sua leitura? A quem ele se dirige? Quais as intenções de seu autor? O que está sob o seu controle e o que ultrapassa suas intenções? Ainda que o leitor do jornal não tenha conhecimentos prévios necessários para reconhecer a intertextualidade, ela não deixa de existir. Mas, nesse caso, teríamos um leitor que, confiante na veracidade dos resultados da pesquisa, passaria a acreditar nas conclusões apresentadas. Mesmo que concordemos que seja muito difícil existir grande quantidade de leitores com o perfil de uma pessoa tão ingênua, sabemos que é possível a existência de leitores sem o letramento mínimo necessário que os capacite a perceber o aspecto humorístico e crítico do texto. Trata-se de uma paródia publicada pelo articulista Sebastião Nunes no jornal O tempo. O escritor trata de uma vasta diversidade de temas e não pode ser identificado ou reconhecido como um divulgador da ciência. A pluralidade de compreensões do texto desse autor é bastante ampla e depende do grau de letramento e da familiaridade dos leitores com os gêneros acadêmicos. São fortes os indícios de que esse texto destina-se a pessoas ligadas a instituições acadêmicas e científicas como as universidades, centros tecnológicos, núcleos de investigação, lugares ligados à produção de conhecimento. Trata-se igualmente de um texto de divulgação científica divulgado naquele jornal, que tem sido suporte pelo qual se veiculam resultados de pesquisa. Há evidências de que o autor, que escreve para esse jornal, tenha produzido um texto com a finalidade de criticar determinadas pesquisas, certos resultados de algumas investigações, dirigindo-se para a comunidade acadêmica, que compreende toda a terminologia – empregada nos gêneros acadêmicos – de que ele se apropriou para cons-

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truir seu texto. Mas, como o público do jornal é vasto, certamente, houve pelo menos duas possibilidades de reação para os leitores não familiarizados com a composição geral do texto acadêmico (tanto o da Academia para os pares quanto o de divulgação científica). Leitores mais eficientes provavelmente perceberam a crítica, e o texto pode ter promovido uma reflexão sobre o “fazer” científico. O mesmo efeito não teria sido gerado nos leitores que possivelmente acreditaram na veracidade das informações. Logo, este teria sido um “efeito colateral” de um texto dirigido especialmente para aqueles que conhecem ambientes acadêmicos e o processo de construção dos textos na academia.

Considerações finais Retomando a noção de intertextualidade proposta por Bazerman (2006) de que, através do uso de certos tipos reconhecíveis de linguagem, de estilo e de gêneros, cada texto evoca mundos sociais particulares em que essa linguagem é utilizada, normalmente com o propósito de identificá-lo como parte daqueles mundos, é necessário que sejam colocados em evidência os mundos de referência da escrita híbrida para ampliar a capacidade de percepção da intertextualidade pelos leitores. Esse texto híbrido apresentado não é um único exemplar que circula na sociedade brasileira. Escolhido para essa análise, trata-se de um entre muitos textos que apresentam a forma de um gênero acadêmico com uma função que não lhe é peculiar: a de gerar reflexão e, ao mesmo tempo, satirizar a produção de um segmento social. Com um formato que guarda semelhanças com a estrutura prototípica do discurso científico, especificamente, do gênero relatório de pesquisa, com aspectos que remetem a uma associação ao gênero de divulgação científica, mas que com função de crítica à

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academia, o exemplo estudado remete ao tipo de texto dissertativo acadêmico que é organizado, esquematicamente, pelas categorias canônicas de um relatório sobre as quais tratamos sucintamente: introdução, justificativa, exposição, resultados discussão, conclusão. Tal tipo de texto é de estrutura argumentativa para justificar de forma avaliativa a conclusão do pesquisador. A partir das práticas convencionadas socialmente para a interação humana, tanto o discurso científico quanto o de divulgação científica são definidos como práticas sociais que têm como pressuposto a necessidade de se argumentar a respeito de um “saber” não conhecido, pouco conhecido, não explorado ou mal explorado na esfera acadêmica. Na argumentação está embutida persuasão, uma vez que a ciência é movida ao serem construídos novos conhecimentos. O texto híbrido analisado, ao mesmo tempo em que contempla características do discurso acadêmico, evidencia uma recontextualização a ser identificada pelo leitor: trata-se de uma clara amostra de um texto que procura nos enganar fazendo com que ativemos uma associação com o gênero acadêmico, para mostrar uma construção irônica, uma paródia de um formato textual que jamais poderia ser um texto de divulgação científica, dado o seu conteúdo. Este estudo aqui realizado não se quer conclusivo, apenas abre uma discussão sobre o tema e permite novas perspectivas para o estudo de textos híbridos, sobre intertextualidade e interdiscursividade. Referências AGUSTINE, Carmen. Formas de dizer e gêneros textuais: levantando algumas hipóteses a partir da perspectiva teórica da Análise do Discurso. In: TRAVAGLIA, Luiz et al. (Org.). Linguisticas: caminhos e descaminhos em perspectivas. Uberlândia: EDUFU. p. 325-331, 2006. AUTHIER-REVUZ, Jacqueline. Palavras incertas, as não-coincidências do dizer. Campinas: Editora da Unicamp, 1998.

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APRESENTANDO O ARQUIPÉLAGO DOS GÊNEROS: UMA VIAGEM INTELECTUAL Peron Rios (Colégio de Aplicação/UPFE)

Uma vela panda e acesa Michel de Montaigne observou, certa vez, que só podemos estabelecer a identidade de alguém quando a morte, enfim, o abraçar1. E a frase é inteiramente aplicável a tudo quanto existe entre nós: animais e plantas, mas também língua e cultura. Qualquer paralisia que permita vislumbrar com tranquilidade um objeto nos leva à desconfiança de que o sopro vital que impõe o movimento o abandonou definitivamente. Vitalidade e metamorfose, portanto, consistem numa daquelas dualidades recíprocas, nas implicações de mão dupla que a matemática enunciaria com a expressão “a se, e somente se, b”. Os seis ensaios que seguem nesta coletânea – versando a respeito dos gêneros textuais – serão um ato, para dizer com Rimbaud, de fixar vertigens (Une saison en enfer). Reflexão que, iniciada na senda literária há pelo menos vinte e cinco séculos, não pode estancar porque seu objeto se transforma sempre, em novas realizações discursivas. Cada texto, aqui, iluminará faces específicas desse debate amplo, mas com luz concentrada sobre o papel da literatura 1. MONTAIGNE, Michel de. Os ensaios. Trad. Rosa Freire d’Aguiar. São Paulo: Penguin Companhia, 2010.

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Apresentando - O arquipélago dos gêneros: uma viagem intelectual

e de seus multimeios. A discussão, embora antiga, resguarda sua relevância: perceber como circulam as produções verbais significa, em última instância, uma tomada de consciência das novas práticas sociais e das exigências que elas impõem, frente aos modelos coletivos que se afiguram. “Curta vida. Longo mar. Por água brava ou serena deixamos o nosso cantar”, lembrava Cecília Meireles (“O Rei do Mar”). A insuficiência de nosso tempo diante de tão largo assunto pede, portanto, continuação: as gerações insistem em alimentar a chama da vela – para que os olhos vejam melhor. E no inflar do peito de uma vela outra – de modo que essa embarcação veleje. Não podemos deixar de destacar o mérito da abordagem privilegiada pelo repertório, observando sempre o duplo eixo da especulação técnica e da reflexão pedagógica. Afinal, se a função dos cursos de Letras – em cujo meio Gêneros na Linguística e na Literatura. Charles Bazerman: 10 anos de incentivo à pesquisa no Brasil se costura – é, em boa medida, formar um corpo docente respeitável, todo conhecimento ali produzido ou transmitido deve repensar suas bases epistemológicas sem jamais perder de vista uma mediação para espaços pedagógicos em diversos níveis. E qualquer rarefação meditativa que recaia sobre um desses caminhos comunicantes bloqueará inevitavelmente a fluidez e o arejamento do outro.

Provisão e aventura Para a “aventura literária” (José Paulo Paes), um quinhão seguro de provisões mentais. Lourival Holanda, com o estilo que habitualmente o singulariza, fará Um giro através da noção de gênero em literatura. Aqui, ele nos recordará de que a sanha classificatória se dá pelo desejo de ordem perante a profusão do mundo. Assim, busca-se evitar “a vitória do caos sobre a vontade augusta de ordenar a cria-

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tura”, como diria Mário Faustino, em O Homem e Sua Hora. Longe de ser uma malha justa, porém, o conceito sempre deixa uma margem da pele à mostra: porque algo da escritura lhe escapa. De fato, os gêneros são virtualmente infinitos, já que a vida à qual desejam responder é ilimitada e imprevisível. Aderindo à noção de multimodalidade, Lourival nos diz em seu ensaio: “[...] a questão de gênero, no contemporâneo, deixa de lado a pretensão à essência e mira na possibilidade, na enorme variação de classes”. Erich Auerbach, lançando mão da noção de estilo, não terá outra tese em seu clássico Mimesis: a literatura ocidental, rompendo com as gavetas da assepsia genérica verificada na Idade Clássica, ganhará novos contornos na mistura dos modos tão notórios na obra virgiliana: o estilo simples (As Bucólicas), o temperado (As Geórgicas) e o sublime (A Eneida). Fazendo o leitor perceber, de modo breve e panorâmico, a viagem do conceito de gênero – desde os tempos antigos de Platão, Aristóteles e Horácio para logo chegar aos modernos Blanchot, Curtius e Genette (passando posteriormente pelos dogmáticos Gustave Lanson e Ferdinand Brunetière) –, o autor nos mostra de modo mais palpável a transitoriedade que poreja no corpo da linguagem. Em determinado instante, com um jeu de mots, ele assevera: “Mesmo sob a forma de recusa ou paródia, a noção de texto volta; literatura vem de literatura [o mercado é que vende qualquer coisa]”. Assim como o conceito de gênero, a própria ideia de literatura – clássica ou moderna – obedece aos desígnios de Clio e somente no século XVIII passa a significar o guarda-chuva de variedades que hoje verificamos. É o que o professor Roberto Acízelo de Souza, ao organizar duas obras magistrais, busca elucidar2 . Supondo-se

2. Roberto Acízelo organizou dois volumes essenciais a quem trabalha com a genealogia literária: Uma ideia moderna de literatura. Chapecó, SC: Argos, 2011; Do mito das musas à razão das letras. Chapecó, SC: Argos, 2014.

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que ela existisse, com os escritores destacados do rio do tempo (para usarmos a metáfora problemática de E.M. Forster3), essa literatura geratriz e solicitante do literário corresponderia, de todo modo, a um determinado mercado, que igualmente não é uma realidade abstrata ou hipostasiada. Na sequência, Darío Sánchez, em seu Literatura e Teatro: a palavra no palco, pensará a relação longínqua entre a arte dramática e o texto literário. O autor destacará o quanto o teatro, gênero matricial da literatura, resulta incontornável mesmo entre os escritores contemporâneos (muitos dos quais guardando o vão intento de negar os núcleos da tradição). Mas não ingressa no debate sem antes mandar seu recado para os culturalistas mais desavisados: “[...] é curioso perceber que hoje, nos 450 anos de seu nascimento, Shakespeare parece reduzido a roteirista de filmes. As novas gerações, mais dedicadas aos estudos culturais, estão perdendo um dos maiores prazeres que a literatura pode oferecer: a leitura das obras monumentais do Cisne de Avon”. Sánchez, em síntese, esclarece que os teatros clássico e moderno se opõem na medida em que aquele apresenta intensa identidade com a literatura, ao passo que a dramaturgia moderna se divorcia das artes verbais:

3 “Scott é um romancista sobre o qual haveremos de divergir violentamente. De minha parte, não ligo muito para ele, e acho difícil entender por que sua reputação perdura. Por que ele teve uma boa reputação na sua época, é fácil entender. Há importantes motivações históricas para isso, que devíamos analisar se o nosso esquema fosse cronológico. Mas se o fisgamos para fora do rio do tempo, e o levamos para escrever naquele salão circular, junto com os outros romancistas, sua figura não impressiona tanto.” (FORSTER, E.M. Aspectos do romance. Trad. Sérgio Alcides. São Paulo: Globo, 2005. p. 57). O problema da hipótese do escritor inglês é que, justamente, não se pode sair desse rio temporal para valorar. Quando Forster pretende isso, ele se esquece de que, na verdade, está pondo Scott não fora do rio, mas em outro ponto de seu leito: aquele em que nos encontramos. E de que mais adiante o autor de Ivanhoé pode ser novamente admirado, banhado por águas e futuras.

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A oposição entre literatura e teatro obedece à evolução da prática teatral a partir do surgimento do Drama e dos gêneros híbridos, por oposição ao denominado teatro clássico, durante o século XIX, e posteriormente com o desenvolvimento das diversas correntes do teatro moderno e do teatro de vanguarda na primeira metade do século XX.

Entre as diversas distinções ali detectadas, uma que aflora é a ênfase sobre o conflito, no oitocentismo; nos novecentos, sob influência da Linguística e das teorias formalistas, a desautomatização do signo passou a ganhar primazia nas intenções dos dramaturgos. Agora, como numa vestimenta às avessas, a costura se faz explícita, instalando-se a recusa do jogo ilusionista. Desde o Período Clássico, via-se o gênero dramático enquanto uma “espessura de signos” (comunhão entre a palavra e a performance). Nessa linhagem de intersemioses, “o drama romântico e o drama moderno, o Simbolismo e o Naturalismo, o Realismo e o diretor de cena, o Teatro do Absurdo e o Expressionismo são alguns dos momentos cruciais no processo de separação entre a literatura e o teatro”. Como se poderá constatar, é um cuidadoso olhar histórico, de sucinta mas norteadora genealogia, que Darío Sánchez cultivará em seu produtivo ensaio. André de Sena, com Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann, discorre sobre o vínculo entre os dois autores destacados no título do ensaio. E digo vínculo, não oposição ou contraste porque, embora revelem em medida considerável procedimentos dissonantes nas suas composições, há ali mais uma intervalo de maturação ou prolongamento de uma percepção de mundo que propriamente qualquer negação ou variação perpendicular entre os escritores.

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Temos, na mesa de observação, Horace Walpole, autor d’O Castelo de Otranto (1764), e o célebre E.T.A. Hoffmann, prosador fantástico – na dupla acepção que a palavra agrega –, com seu conto O morgadio (1816). André de Sena irá comparar os motivos noturnos presentes em ambos os criadores, sobretudo seus modos e intensidades, para que uma certa genealogia do Gótico e do Romântico seja satisfatoriamente flagrada. Nos dois casos, estará presente a hybris – insurreição verificada na quebra da moderação racional, que tanto prezavam os classicistas –, mas deliberadamente ousada em Hoffmann, enquanto surge na criação walpoliana com timidez e ressalvas, feitas pelo próprio romancista em seus prefácios. Com efeito, em O Castelo de Otranto se verificam tanto a clássica verossimilhança quanto a extrapolação típica do Romantismo consolidado: fusão entre a mimese documental e o imaginário excedente, característico do horror gótico. E se, por um lado, o terror walpoliano se retrai e paga tributo à cartilha classicista, ali já se notabiliza, em contrapartida, o anseio romântico de desregulamentação dos gêneros, de abertura liberal das fronteiras. A mistura dos estilos, por exemplo, até então evitada, aqui receberá seu elogio, como Sena observa: “A presença de personagens plebeus, explicitada de forma negativa no primeiro ‘Prefácio’, agora será percebida sob um novo prisma, também pioneiro no que toca aos estudos sobre a binomia romântica – a conjunção entre o sublime e o grotesco. Ariel e Caliban”. Muito embora devedor dos avanços de Walpole, O morgadio, por sua vez, absorverá de modo mais arrojado os parâmetros da nova estética. Fazendo-nos vislumbrar o quanto Hoffmann leva a imaginação a limites efetivamente românticos (e não mais de moldura clássica), Sena finalizará seu elucidativo texto mencionando certa recepção negativa que, naturalmente (como ocorre a

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tudo o que rompe alguma inércia), Hoffmann experimentou. O Sir Walter Scott, digno de ressalvas como as que já pontuamos nesta apresentação (advindas de E.M. Forster) e em tudo avesso ao claro hybrismo ali presente, faria duras restrições à escrita inovadora d’O morgadio. O que, aliás, em nada nos deve causar espanto, uma vez que a criação scottiana se apoia, em pleno Romantismo, numa sensibilidade realista avant la lettre – similar à que György Lukács denuncia, em seu livro O romance histórico. O capítulo 11, Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor, subscrito por Fabiane Burlamaque e Pedro Barth, responde às urgentes demandas de seu tempo. Efetivamente, depois da polêmica declaração da escritora Ruth Rocha (“Harry Potter não é literatura”4), o debate a respeito da inclusão ou do alijamento de obras com natureza semelhante às de J.K. Rowling se inflamou. Ao retomarem o assunto de modo mais especulativo do que axiológico 5 , os autores mostram que, de antemão, tais fenômenos contemporâneos ao menos pertencem a um gênero consagrado pela literatura: a saga. Apoiados em Alberto García e em Eloy Martos Núñes, defendem a transfiguração do gênero, reemoldurado pelo público-alvo atual, experimentando formas, usos e suportes contemporâneos. Tudo isso é que mantém vivo qualquer gênero de texto: [...] Sagas fantásticas, segundo esses autores, se converteram em um fenômeno que arrasta um público muito heterogêneo e variado (não somente jovens) e cujo êxito transbordou os conceitos de autor, gênero e livro, filme ou revista em quadrinhos, para situar-se em outras coordenadas mais amplas e, 4. Cf. http://on.ig.com.br/palavra/2015-04-27/ruth-rocha-comemora-50-anos-de-carreira-harry-potternao-e-literatura.html (acesso em 10/08/2015). 5. Como se verá, à emissão explícita de juízo crítico prévio referente às sagas fantásticas, Barth e Burlamaque preferem entabular análises dos procedimentos técnicos e das circunstâncias de recepção das obras.

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além do literário, a multiplicação dessas ficções em formatos tão diferentes como a revista em quadrinhos, a televisão, o cinema ou os jogos de estratégia.

Em seguida, podemos fazer uma varredura no conceito porque os ensaístas oferecem a definição clássica de saga e relatam os processos que foram mantidos até os dias de hoje (os laços com a mitologia, por exemplo) ou que se alteraram, respondendo melhor ao nosso tempo: o hibridismo típico da “pós-modernidade” é o caso talvez mais relevante. Vale advertir, ainda, que mesmo a utilização dos mitos como cimento literário ocorre com o diferencial moderno da paródia ou da estilização. Ou seja, semas de semelhança e de diferença convivem agregando os tempos e arejando a narrativa. A relação entre psicologia e literatura é recuperada, então, para se fazer, a partir da ideia de paracosmos (mundo paralelo e imaginativo), a aferição do quanto uma criança que viveu o vigor da projeção em gêneros como as sagas contemporâneas – repletas desse destaque radical do mundo empírico – se comporta no jogo social. Na saga fantástica, a criação desse mundo que se ergue necessita de uma plasticidade, uma visualidade muitas vezes concretizada em paratextos cartográficos. Outras especificidades do novo gênero serão detectadas por Barth e Burlamaque: o caráter multimídiatico das narrativas, a presença de fanfictions (leitores interativos), a extrapolação de um único volume para a composição de verdadeiras séries etc. A defesa dessa nova literatura se fará pela pauta do leitor revigorado, com leituras extensivas que reúnem vários códigos e linguagens. Um leitor, em certa medida, até mais exigente e reivindicativo – porque pode emitir suas impressões aos próprios escritores ou ainda às comunidades de leitura a que ele pertence.

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Os dois últimos estudos vão destinar sua atenção, mais enfaticamente, ao ensino de literatura – área carreada de impasses, muito por conta da negligência dos cursos de Letras para uma de suas funções basilares: a de formar professores. O ensaio de Hélder Pinheiro (Poesia, Oralidade e Ensino), trazendo um título quase autoexplicativo, transita pelas especulações sobre três eixos: a própria ideia de poesia, a oralidade que ela pede e o instante da docência. Ao discorrer sobre o primeiro tópico, Pinheiro procura elencar algumas concepções de poesia, para mostrar seu caráter fluido, ao modo de Proteu. Aqui, ele constata que toda e qualquer tentativa de flagrar um poético paralisado é completamente vã: como na Química, o que se pode fazer é adivinhar-lhe o orbital – lugar em que é máxima a possibilidade de surpreender o poético/elétron. Ainda que propondo práticas centradas na primazia da hermenêutica, o professor sublinha um problema considerável do ensino brasileiro de literatura: a apatia docente frente ao próprio objeto com que pretendem os professores inflamar os seus alunos. O escritor André Malraux, em L’homme précaire et la littérature, observava que o discurso literário, ao contrário de tantos outros, não convence o leitor pelo rigor lógico, senão pelo contágio. Ora, mas parece evidente que não se pode contagiar alguém com uma febre que não se possui; e é pela indiferença à linguagem poética, recorrente nos formadores, que Hélder Pinheiro aconselha: “Se o professor ainda não experimentou este ‘estado poético’ a que se refere o crítico [Paul Valéry] ou se já experimentou mas não se deu conta desta experiência, seria interessante buscar uma vivência com a leitura do poema de modo mais cuidadoso”. Encontramos o ponto alto do ensaio nas inquisições a respeito da oralidade a que a poesia se submete. Aqui, Hélder Pinheiro

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é certeiro quando nos lembra que o texto deve ganhar vida com todos os recursos disponíveis da enunciação (gestos, olhar, tom de voz, movimento). Entretanto, a performance vocal deve receber primazia na realização do poema. É o que o saudoso Paul Zumthor, convocado pelo ensaísta, nos afirma: “Melhor do que o olhar, a face, a voz se sexualiza, constitui (mais do que transmite) uma mensagem erótica”. Pinheiro insiste para que a proclamada multiplicidade de leitura comece no próprio ato de emprestar som ao texto: vários alunos devem ler o mesmo poema, com variações melódicas, pausas mais longas ou mais breves etc. O poema, como na música, só ocorre com a vitalização pela voz (ainda que mental), do mesmo modo que os instrumentos fazem as notas de uma partitura realmente acontecerem. As considerações acerca do ensino, por sua vez, se ancoram em dois pontos principais: a importância de não escolarizar excessivamente a literatura (o que retira o potencial primevo da arte) e a necessidade de socializar a leitura sem que limitadoras hierarquias imponham sua presença. Quanto ao primeiro quesito, Pinheiro adverte: Os poemas trazem um saber sobre o mundo, mas um saber permeado pela vivência, pela percepção sensorial do referido mundo. Não necessariamente um saber racional, ou, menos ainda, uma espécie de didática, de lição, embora muitas vezes a escola se aproprie do texto literário apenas pensando em lições e informações que os textos possam trazer. O que me ensina, portanto, um poema? Ou ainda: como o poema me ensina alguma coisa? Enfrentar estas questões, sem cair no didatismo, me parece essencial para pensar o lugar da literatura na escola e na vida.

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A convivência entre o literário e o espaço escolar, nunca é demais sublinhar, é tensa e ambígua: infração do signo para gerar a inflação do olhar, a poesia entra em rota de colisão com uma instituição que já foi, de forma precisa, comparada às prisões. Foucault dixit6. De tal modo, a poesia na escola é uma subversão controlada – o que gera um paradoxo digno de Drummond, com seus “claro enigma”, “paixão medida” ou “impurezas do branco”. O segundo tópico abordado por Hélder Pinheiro no âmbito do ensino (a socialização) descreve a partilha da experiência literária como um modo de alargar (ou corrigir, quando for o caso) a leitura, sem que uma autoridade detentora do sentido emerja e silencie a todos, transformados etimologicamente em meros alunos, indivíduos sem luz interna ou viva inteligência. Finalizando o périplo reflexivo, Maria Amélia Dalvi oferece os resultados de uma pesquisa realizada durante um ano (agosto de 2013 a julho de 2014). Nessa investigação, o grupo representado por Dalvi dedicou-se à análise – a partir do gênero entrevista e de documentos escritos pedagógicos e oficiais – da situação docente na cidade de Vitória/ES, abrangendo o arco temporal de vinte e cinco anos (1985-2010). O artigo (Literatura dos anos iniciais ao ensino superior: contribuições do gênero entrevista à pesquisa e à formação docente) dará prioridade, porém, à análise das enquetes e dos depoimentos em vídeo. O trabalho, de largo rigor metodológico e padrão ético inflexível (o leitor terá a oportunidade de verificar), tinha como objetivo “colaborar para o engendramento de uma história da educação leitora e literária local, em correlação com a história da educação leitora e literária no Brasil, no mesmo período [...]”. Todo esse empenho contou com o teórico suporte de Mikhail Bakhtin, Peter Burke, Michel de Certeau e Roger Chartier, que abordam a leitura segundo uma voz 6. Cf. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Petrópolis, RJ: Vozes, 2015.

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plural, descentralizada e culturalista. As ferramentas da história oral pautada em Verena Alberti foram outro elemento altamente valorizado pela investigação. Um dos dados curiosos que a pesquisa nos revela: além do caráter formativo (a inquisição viabiliza a heuresis, afinal), as entrevistas proporcionaram um “efeito ‘terapêutico’ ”. Eis a linguagem, portanto, exercendo suas funções fármaca e cosmética, como Platão já reparava. É nesse momento, portanto, que o gênero entrevista extrapola sua condição instrumental para se transformar no próprio objeto de exame. Alguns resultados reforçam, infelizmente, os modelos engessados que guardamos da educação brasileira. A título de exemplo: os professores lamentam recursivamente a falta de interesse dos alunos ou de tempo hábil para que as atividades literárias sejam desenvolvidas; desconhecem o que seus alunos leem fora da sala de aula e relatam a dificuldade inicial para lidar pedagogicamente com a literatura – sintoma da pouca importância que nossos cursos de Letras dedicam à formação docente. Fundamental, porém: um dado colhido confirma hipótese da investigação e caminha na contramão de boa parte das percepções atuais do ensino de língua. É o que Maria Amélia Dalvi nos assevera: “Reiteramos, ainda, a partir de Leahy, que é possível pensar a educação literária como uma disciplina relativamente autônoma (como área apendicial de ‘Língua Portuguesa’) dentro do currículo escolar – embora não goze desse prestígio, no contexto histórico estudado [...]”. Conclusão polêmica e instigante, que vem revigorar a água parada daquilo que, uma vez revolucionário, volta inerte para adormecer no colo do senso comum. Em suma e para finalizar: estas seis ilhas, agregadas no presente volume – formando o arquipélago reflexivo sobre os gêneros de textos – foram contornadas, sem dúvida, com máxima técnica e

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paixão, pelos ensaístas acima elencados. Resta a contrapartida da atividade escritural, a outra metade imaginativa a que se referia Valéry: o ataque da leitura. E que se realize a plena degustação do que, nesse primeiro momento, foi um simples e pálido aperitivo.

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PARTE 2 Literatura


8 Um giro através da noção de gênero em literatura Lourival Hol anda (UFPE)1 Há questões que volta e meia retornam à discussão: o objeto segue sendo aparentemente o mesmo, mas a perspectiva renova sua percepção. Assim, a questão dos gêneros em literatura. A cultura contemporânea exacerbou a democratização dos valores e dessacralizou, ou pôs em suspeição, o peso de hierarquias e taxonomias. Os grandes sistemas classificatórios ficaram saturados (quase na acepção que os químicos dão à palavra); sem, no entanto, perder sua validade referencial. Se a questão volta à discussão é porque a presença das classificações ainda está aí; e seguindo os três movimentos costumeiros: a emergência do fato literário, sua produção; a necessidade de racionalizar o real de tal produção; e uma marcada retração na conformação, quando as formas literárias já ficam enquadradas nas normas classificatórias. A partir daí o costume tem força de lei: o peso do mores maiorum – ou: o que vem sendo assim desde a tradição. A escola faz interiorizar o esquema – que doravante é integrado ao sistema literário. Uma certa lógica conjuntista projeta nos gêneros a hierarquia com que o grupo organiza seu mundo e assim lhe dá sentido: direção e significação. O modo de organização e classificação é a própria época concretizada em pensamento. Serve como peneira epistemológica: por aí passam as valorações de um tempo. 1. lourivalholanda@yahoo.com.br

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Uma classe hegemônica propõe – quase sempre: impõe – certa homogeneização de mundo que, por economia mental de inércia, se mantém. É assim que o imaginário social da época de Virgílio percute em sua reorganização dos gêneros. Os estilos correspondem às hierarquias daquele imaginário: os ofícios, as árvores, os animais, tudo fica codificado. Se o poeta fala sobre pastores, o modo deve ser o stilus humilis; se sobre camponeses, então o stilus mediocris; mas, se sobre tema heroico ou guerreiro, então o stilus gravis. Ainda: a cada estilo corresponde uma árvore simbólica; o carvalho, árvores frutíferas ou o louro ou o cedro, no caso de temática guerreira. O mundo se codifica nestas “enciclopédias”, nestes protocolos. É um imaginário organizador de mundo – assim agem a ciência ou a religião: uma racionalização para amansar a fereza do absurdo possível, do sem sentido que sempre ameaça o mundo cotidiano. Sua forma de transfigurar o real em inteligível deixa de ser uma aventura de um momento histórico e se pretende razão única. A modernidade reage com veemência a essa homogeneização [no sentido dos cosmólogos: a definição de gêneros se impondo independentemente do lugar e da cultura onde foi instituída]. Novas formas pedem novas normas. Nos anos 60, especialmente na França, a questão de gênero em literatura chegou ao extremo de ficar ameaçada de extinção. Premência da paixão de certos momentos históricos. A dificuldade de classificar se resolvia pelo rechaço da classificação. Passou-se do laxismo conceitual à negação. O pensamento contemporâneo, sobretudo a partir daquele contexto e sob o impacto das ciências e das tecnologias, é cada vez mais avesso às prescrições fechadas, impositivas. No entanto, mesmo no mundo das ciências, a classificação segue sendo uma questão incontornável: é o primeiro constituinte

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de qualquer definição. E, até a Revolução Francesa, o mundo se organizou em categorias. Se as definições não têm mais o mesmo peso definitivo de arbítrio, sua pertinência permanece. [Mesmo quando, como na quântica, o cientista assume a limitação da definição, como Heisenberg; no mundo subatômico, é impossível dar conta de volume e lugar; assim o homem de ciência recorre à figura, à analogia – que em literatura é, desde muito, um modo de conhecimento]. Um giro pelos gêneros: periodicamente os gêneros são questionados. A geração mais recente conquistou sobre a nossa uma maior liberdade na discussão das questões de gêneros literários. Perdeu o temor da especulação heterodoxa. Há pouco, as discussões e controvérsias levantavam mais que os entusiasmos: às vezes, os punhos. Discussões carregadas de humores, obsessões, azedumes. Choque de encouraçados – que paralisavam o debate. À destreza da razão classificatória, os mais novos repõem a astúcia do desejo inventivo. Constroem por entrecruzamentos de registros, de possibilidades. A cultura Web 2.0: interação com outras linguagens; que, de tão rica em possibilidades, torna mais complexa a análise, por exemplo, de um poema de Jussara Salazar onde o elemento sonoro, o pictural, o textual, tudo se funde num efeito feliz de surpresa e comoção. Há que se levar em conta a contingência valorativa das classificações: os valores são, em larga parte, tributáveis da história, do momento cultural. No século XVII, Bossuet condena veementemente a comédia: o Cristo nunca teria rido... Como parte de um pressuposto de doutrina, seu sistema é deliberadamente fechado; daí diferir tanto de um Lessing, mais linkado com a sensibilidade estética moderna. Bossuet não pensa os antigos, ele os repete; por isso facilmente condena com veemência. Bem poderia ser uma fantasia de Jorge Luís Borges; ou o mesmo gesto de condenação do outro Jorge, já personagem de Umberto Eco, em O nome da rosa. No entanto, a

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base referencial dos gêneros permanece. James Joyce, em Dedalus, vai se confrontar com a tradição; com o intuito de renová-la. O épico enquanto relação intermediária entre si e o mundo. O lírico como apropriação de um mundo; ou: a relação imediata consigo. O drama como a pressão do outro; ou: a relação imediata com os outros. Mas, ao menos em literatura, as coisas não se resolvem num quadro conceitual imutável. A sátira, dita menipeia, já é a conjunção de prosa e poesia; admite, desde o início, grande variação de metro: versos longos, curtos, experimentais; um gênero mesclado, driblando temática e forma definidoras. Poetas modernos – que já embutem o crítico na sua prática poética – vão ver no poema, ser de linguagem, uma dimensão dialógica: há sempre um interlocutor fictício, virtual; toca então a tensão dramática do tu – antes, própria do drama. Ossip Mandelstam reivindica essa dimensão dialógica que o lírico também convoca. No contemporâneo, o embaralhar as cartas faz parte das regras do jogo. Por essas e outras, o entendimento de Lessing está mais próximo do nosso. E, para avançar sobre essas questões hoje, um nome irrinunciabile. Por isso, temos a recuperação das noções fundamentais de gênero – mesmo no momento em que pareciam entrar em crise conceitual, com Todorov, Genette e Barthes. Questão antiga e atual: desde Platão [em Filebo] há alusão aos gêneros: há o geral de uma figura e, segundo ele, um número enorme de modalidades. Platão põe a ênfase no modelo; nós, nas modalidades. A filosofia clássica carregava no termo “essência”; a contemporânea, suspeitosa, à essência prefere as modalidades. A hegemonia daqueles princípios traduzia um momento cultural também mais hegemônico culturalmente. No momento de Aristóteles e Platão, prevalece a noção de princípio; na nossa, a de potência. A questão lógica desemboca na questão ontológica: podemos definir um gênero como alguma coisa de imune ao tempo? Quem

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é fiel a sua carteira de identidade? Ela é o que fomos; e, ao mesmo tempo, há uma constância no nosso devir: ainda sou aquele ali retratado. A noção de identidade de gêneros pode ser entendida assim. [Não como a noção de identidade em matemática: a repete a. Não repetimos etapas da vida, mas seguimos esse gerúndio rico: vamos sendo vida a fora. Aristóteles resolveria a questão dizendo estar ali nossa substância segunda – expressão necessária, mas não de definição exclusiva (em Categorias, 5, 2b)]. Portanto, a questão de gênero, no contemporâneo, deixa de lado a pretensão à essência e mira na possibilidade, na enorme variação de classes. A ciência ajuda a ver de modo prático: as mangas já aparecem nos textos clássicos da Índia, no século IV; e as mangas advindas de enxertos e manipulações genéticas, essas nunca existiram antes, na natureza... A classificação se alarga porque o real da produção literária, sobretudo na cultura contemporânea, é mutação exacerbada, vertiginosa. Há uma marcada prevalência inaugural: um canto, uma odisseia. Só depois é que vem a expectativa de ouvir de novo. O gênero começa com essa expectativa. Depois, a classificação, a gramática daí deduzida. Assim, cada vez que há um ajuntamento em torno da expectativa de um canto, da alegria grave de ouvir uma odisseia, ali já radica um gênero. Com as variações de tom, de timbre, as variações de expectativas; e um sistema de expectativas já prenuncia o gênero que assim se cria e consolida. O contemporâneo quebrou esse pacto subliminar: o leitor espera ser surpreendido. O mercado, a mão invisível de que falou Adam Smith, cedo entendeu isso e pôs a seu favor: a novidade virou sinônimo de valor em si – sobretudo levado pela pressão permanente da trilogia mercado-tecnologia-mídia. Os critérios de classificação obedecem menos à necessidade de secionar áreas para melhor compreender e mais à pragmática da extensão do consumismo generalizado.

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Desde a entrada da Poética, Aristóteles delimita e expõe as oposições com o intuito de classificar os gêneros. Tal classificação pesou demais sobre a tradição; e dá para entender, volta e meia, o gesto desenvolto das insurgências contra as classificações. Questão antiga e atual: desde Platão [Filebo] há alusão aos gêneros: há o geral de uma figura e, segundo ele, um número enorme de modalidades. Platão põe a ênfase no modelo; nós, nas modalidades. No entanto, nem tudo é definitivo, sem espaço à controvérsia. Quando Aristóteles fala de poiètikè, deixa a noção em aberto, porque compreende muita coisa; comentadores e tradutores trabalham o termo mimese [47 a 13] como imitação, como representação e, recentemente, como ficção (Käte Hambuger e mesmo Gérard Genette). Mesmo sob a forma de recusa ou paródia, a noção de texto volta; literatura vem de literatura [o mercado é que vende qualquer coisa]. O contemporâneo é sobretudo experimental (essa agudeza é nietzschiana): os textos se indefinem pela mescla de registros: difícil classificar, sem reduzir, o texto de Michaux? O Homem sem qualidade, de Robert Musil, romance com uma boa “pegada” de ensaio? [E, já Maurice Blanchot via aqui um texto que não se submetia à distinção dos gêneros]; OPlatero y yo, de Juan Ramon Jiménez, cuja prosa poética desde 1914 já se indefinia enquanto gênero híbrido? Neste sentido, é emblemático o embaraço – fingido ou sentido – de Proust se perguntando em 1908: Sou mesmo um romancista? Cabe a dúvida, porque o que ele propunha, naquele momento, ia além do conceito consensual de romance. O texto literário se define por ter um potencial de performance que ultrapassa a noção de gênero. Nunca é demais lembrar que o gênero lírico não está contemplado no primeiro momento: na intenção de Platão e Aristóteles parece pesar, primeiro, a função social e política; fundar e armar um legislador público. E isso fica explícito já no livro III d’A República: menos

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poesia na formação do estadista... A poesia convoca uma inusitada liberdade, quando o estadista precisa deixar prevalecer o princípio da “ordem” [387b]. É só no século IV, com o gramático Diomedes, que o gênero poesia ganha ares de cidadania na república dos gêneros literários. E ele põe enquanto modelos Arquíloco e Horácio. Curtius (1957, p. 222) explana isso com clareza. A história dos gêneros, como a história tout court, retém alguns pontos, dispensa outros, de acordo com o humor dos valores vigentes. A “doutrina” dos gêneros é colocada no mesmo patamar e com tantas variações quanto as partes do discurso. Daí as forçações de barra necessárias para incluir tipos de poesia desconhecidas ainda por Aristóteles e Platão e, no entanto, tornadas clássicas depois de Virgílio: como a poesia pastoral, que sustenta nosso bucolismo; e a poesia didática, comum às escolas e ao mercado – e sem nenhuma complacência de poetas modernos, como Edgard Alan Poe, Mallarmé ou Valéry. Ainda aqui, as categorias são tributárias de um dado momento da cultura: as distinções de Horácio já não são as nossas. Para ele, poesis é a composição; para nós, é o sentimento, a percepção [alguém apaixonado cai em estado poético [...]; mas, o poema é a transcrição singular de tal experiência]; para Horácio, poema é o mesmo que as obras. A resistência à classificação dos gêneros, pelo enquadramento dogmático que trazia, ficou acentuadamente mais forte com a recente democratização cultural, que trouxe o alargamento dos cânones, e a liberação das peias classificatórias. Texto e produção eram termos correntes nos anos 70. Poesia, romance, ensaio, isso parecia reacionário. A nomenclatura antiga passava por uma dogmática; rebelde à classificação, a pragmática do texto novo bastava. Tudo era pretexto para rever a pesada herança passada – que, no entanto, era feita de convicções comuns e valores partilhados. Etpour cause. Quanto mais

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se radicaliza, mais cedo se tende a voltar ao ponto anterior. Assim como a castidade chama a luxúria, as intolerâncias se chamam: de um lado, o enquadramento fechado; de outro, a dificuldade em nomear um gato, um gato. Como se sua variedade tornasse abstrata sua realidade. Não há jogo de futebol – ou literatura – sem qualquer convenção ou obstáculo a vencer. A pertinência de se repensar a questão dos gêneros literários depois da ressaca teórica dos anos 70 é de guardar a vigilância crítica – sobretudo contra a tentação dos sistemas totalizadores, a continuação inercial das ementas departamentais; como se a memória dispensasse de repensar criticamente o que foi, em dado momento, instituído. E isso não se faz sem o sal do humor - uma desconstrução recente se fez com raiva. O deslocamento crítico dos gêneros pode ser sinal de saúde intelectual. De madurez criativa da teoria, como foi Erich Auerbach, Jean Starobinski ou Benedito Nunes. Sem as adesões tranquilizadoras aos sistemas mais em voga. Nos nossos programas não é raro encontrar, ainda hoje, o fantasma taxonômico do XIX: a Universidade prefere as certezas estabelecidas, quantificadas, tranquilizadoras. Lição de Einstein: a grande ciência procede por avanços e aventuras; a vulgata científica opera como martelo: cada golpe é por distinção, separação; a literatura prefere as conexões; salta por sobre as origens e temporalidades e assim rende homenagem à continuidade dos gêneros. Gonçalo M. Tavares refaz o gesto de Camões numa epopeia contemporânea, em Viagem à Índia (2010); a página da Wikipédia é emblemática: ali a obra é classificada como gênero híbrido entre romance e epopeia. Ainda uma observação pertinente à nossa matéria: Eduardo Lourenço prefacia a obra apresentando-a como uma anti-epopeia; seja – mas o autor, ali mesmo fala de seu texto enquanto uma epopeia. Trata-se de uma corrupção genológica, como dizem nossos amigos portugueses? Sim, por certo,

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se atentarmos para o étimo da palavra: co-ruptus – o que deliberadamente altera um trato; ali quebrou-se o modelo antigo para deixar soldar as partes de um outro modo. E é já uma outra leitura; o deslocamento é um distanciamento crítico. É o que faz Marcus Accioly quando retoma o fôlego odisseico na sua Latinomérica (2001): relê a história do Continente com agudeza de quem reverte criticamente os valores consensuais da cultura. A dogmática dos gêneros: em dado momento, sobretudo com Ferdinand Brunetière ou Gustave Lanson, o gênero tendia a definir a literatura; poucas gerações depois, o gênero era execrado por ser ideológico, essencialista, historicista; certamente, um erro de lógica: tomar um dos componentes enquanto definidor. O antídoto contém veneno – mas o veneno não o define. O dito político, a assertiva filosófica, a palavra do dogma, tudo isso pesa diferente nos genera dicendi da literatura. Mesmo a realidade fica ali suspensa – para ser pensada diferentemente. A recusa – antes mesmo que sua crítica – faz reviver a querela dos realistas e dos nominalistas: apenas os indivíduos existem, os nomes que os classificam são supérfluos; assim, a rejeição dos gêneros: apenas há, de real, os textos. No fundo, há uma forma, um modo de escritura que tangencia o espaço incerto entre o pensar e o sentir. O protocolo literário vive [e se esgota] de convenção; e de contraste. Acontece de, às vezes, sobretudo depois da modernidade, a convenção ser contrastar. O poema antilírico, o romance com o mínimo de acontecimentos, e assim segue – e se pauperiza: fica previsível; nada mais obsoleto que um poema se pretender moderno repetindo os modos de 22. E, no entanto, se aquela forma se esgotou, o espírito de experimentação, o direito à pesquisa, dizendo com Mário de Andrade, continua sendo uma exigência. As etiquetas, os protocolos classificatórios virão depois.

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Mudando de mundo mudamos o modo de pensar, o modo de encarar o texto literário. Numa sociedade mais consensual, tendendo mais a uma relativa hegemonia, a convenção é de lei. O texto devia responder a uma expectativa, agradar. No contemporâneo, quando a falta de consenso marca a presença de maior liberdade produtiva, o texto pode mover, comover, fazer agir o leitor. Em termos mais atuais: tirá-lo de sua zona de conforto. Em testemunho, Guimarães Rosa ousa dizer: Eu não crio facilidade, crio dificuldade. [Entrevista a Pedro Bloch, Revista Manchete, 15/06/1963]. Os gêneros são recebidos já por outra postura mental, no contemporâneo. Quer no gênero conto, quer no romance, o autor prima por frustrar a expectativa do leitor. Por mais singular que seja, o texto ainda guarda na forma, sua ligação com o gênero. Quando Aristóteles fala, analisa, classifica, é desde seu horizonte histórico: daí o discurso mais prescritivo: as histórias devem ser compostas assim [Poética, 47a 8]. E, como a tragédia é o modelo, tem também uma finalidade: a catharsis. Sua descrição já é normativa. Ora, já não é mais uma preocupação, no pensamento contemporâneo. Dificilmente interessa ao crítico atual, e ainda menos ao leitor consensual, o policiamento se o autor cumpre ou extrapola as regras do gênero. E, no entanto, essa postura é a de Platão n’A República: policiar o poeta, estabelecer o que o público “precisa” receber. Na cultura política contemporânea, a má memória dos momentos totalitários do século XX tornou isso um horror que se espera expurgar; mas, ainda assim, algo reconhecido, familiar. Não surpreende que ele também retire o direito ao riso – esse sal do contemporâneo. Poder e sacralização, sempre. Por isso, a pertinência de repensar os gêneros no contexto atual; quando já desconfiamos de toda cristalização – de forma ou poder. Nossa forma mental é outra. Ao leitor interessa o gozo surpreso do texto; ao crítico, rastrear o processo de criação para conjugar ao gozo a inteligência que o proporciona. Mas, ainda aqui: 226


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a noção de gênero serve enquanto referência, escala – a partir daí se pode ver o quanto uma criação renova, avança. Nosso mundo já pretende menos a estabilidade – que, no entanto, era o fundamento do mundo clássico; com apoio de Aristóteles e Platão, claro. Já a instabilidade e a mudança não nos angustiam; tudo no mundo contemporâneo nos habitua a elas. Por isso a questão da permanência do enquadramento dos gêneros nos toca menos. O desafio das gerações recentes pode ser o de lançar um olhar novo sobre a questão, resistir ao automatismo mental das classificações. Há uma poética na própria variação dos modos de apreensão poética. No suporte papiro, papel ou pendrive, questão de somenos: guardaremos certamentea memória e a pulsão dessa inscrição peculiar de nossas experiências vividas ou sonhadas, a literatura. A noção de poética do texto prevalece: Cobo Borda, crítico e poeta colombiano, diz que no contemporâneo a poesia desaguou para a prosa. Com Aristóteles, a questão se resolve cedo: a poesia é mimese – e os critérios que ele usa: poesia é metro e é também representação. Em que pese a discordância veemente e moderna encabeçada por Mallarmé e seguida por boa parte dos poetas até a contemporaneidade. No mínimo, as coisas se entrecruzam, poièsis e logos – poesia e prosa estão plenamente na sensibilidade moderna. Genette junta: há aqui a dictio e a ficcio – isso explica a concepção de poeta que a tradição popular mantém: uma máquina de fazer rimas em eco, eco, eco. Desde o início da Poética, o conceitual é mais polêmico que pacífico. Outra leitura onde divergimos do clássico: ali cada qual deve saber e fazer seu papel, como bem pede Aristóteles; a modernidade nos pede aptidão a muitos papéis. A relação com a teoria dos gêneros ali é imediata: imitar, simular, querer ser mais ou ser outro é negativo; ora, a modernidade assume a cisão do sujeito com o orgulho de uma condenação reivindicada.

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No entanto, a convenção dos gêneros segue sendo necessária. Mesmo quando instala o novo dentro do protocolo consabido. Porque o força a largar o enquadramento do consenso sobre o gênero. Rimbaud, quando impaciente e lúcido, cobra de Baudelaire uma forma mais adequada àquele momento de fratura social. Guimarães Rosa “força” o romance brasileiro a sair da dicotomia romance rural, romance urbano – a travessia no fundo da linguagem é que carrega riqueza imprevisível de índices culturais. Mas ainda guarda a convenção do romance, malgrado a violência formal inovadora, a criatividade desnorteante. O texto novo modifica, reforma – e mesmo quando, grande, se insurge contra a convenção, é ainda diante do gênero que ele se põe; e a que se opõe. É, portanto, dentro da pragmática dos gêneros que o texto se põe; seu gesto se instala dentro do protocolo, da convenção literária. Assim, em 1902, Os sertões desnorteavam leitores e críticos por já ser um texto estruturado na conjunção de registros: o sociológico, o antropológico, o histórico, com marcada pontuação científica – e nenhum desses aspectos isolados atingia a enorme força criativa e crítica, própria do modo literário ali investido. Ainda recentemente um crítico considerável feito Luís Costa Lima recusava ao texto sua legitimidade literária à partentière. Advoguei causa contrária, em Fato e fábula (1999); comigo, o crítico português Casais Monteiro e Berthold Zilly; e Leopoldo Bernucci, atualmente na cátedra Russel H. e Jean H. Fiddment em Estudos Latino-americanos na Universidade da California, em Davis, EUA. Claro, nossa querela não se arma em ponta de faca, mas em argumentações que respondem a enfoques e sensibilidades literárias diferentes frente ao texto que, grande, apesar dos equívocos, segue sendo um dos marcos constituintes e fundadores de nossa cultura literária. Seu enquadramento fosse incerto, nunca é menor o impacto no leitor atento. O nãorespeito às convenções e aos protocolos não impede o acesso à obra. É o

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caso, recente, de Aos 7 e aos 40, de João Anzanello Carrascoza (2013): a inovação do gênero aqui passa pela ousadia do estilo, pela surpresa da forma e pela diagramação proposital. A surpresa que satisfaz, anterior mesmo à noção de gênero, dá o tom do texto contemporâneo. O texto de Verônica Stigger – Opisanie Świata (2013) – desnorteava e surpreendia pela fusão de registros; ontem, com a poesia visual dos Calligrammes, Apollinaire reabria as possibilidades de um gênero. A severa lei da criação literária (porque implica esforço sobre o já feito) permite, então, a liberdade de proposição; ou de reproposição que, como no xadrez, renova, a cada lance, o jogo literário. Em outro ponto, percebemos porque não há, propriamente, uma discussão sobre os gêneros, em Platão e em Aristóteles: porque a preocupação com o projeto político prima sobre os pormenores de classificação entre o mimético e o fictício. Ou: entre o poético e o representativo. O olhar está voltado para a cidade ideal, não o texto ideal. O contemporâneo está atento menos às classificações e mais às experimentações. Nos anos 70, enquanto os franceses no entorno da Tel Quel arbitravam a extinção dos gêneros, na Colômbia, Cobo Borda apontava o deslocamento do poético para a narrativa. A alta qualidade poética da prosa latinoamericana testemunha essa fusão feliz entre prosa e poesia. Tradição da transgressão? Porque desde Baudelaire o poema em prosa e o verso livre abrem caminho para a fusão dos gêneros que define o contemporâneo. A riqueza do Livro do desassossego torna inócua qualquer classificação; Flaubert sonhando com a obra sobre nada, a Obra total arquitetada por Mallarmé. Sem sequer necessidade de um termo esdrúxulo para nomeá-la. Isso contraria o regime da cidade política em Aristóteles: cada um deve fazer uma coisa, e uma coisa só. Se alguém começa a imitar muitas coisas ao mesmo tempo, “não há entre nós ninguém assim; nem esperamos que haja”[398]. Se poeta, faça versos com essa medida; se

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trágico, com esse tom – nada disso perdura na cultura contemporânea; aquele modo diz o tempo e os valores ali vigentes. Mas, aqui, já há outro conhecimento da singularidade do indivíduo e de suas possibilidades. Importava, na república antiga, que cada qual soubesse seu papel: se soldado, se camponês, se poeta. Neste ponto convergem Platão, Aristóteles e Horácio – são os “ares de um tempo” que perduraram muito. A compreensão da modernidade é bem outra: Bakhtin louva em Dostoievski justamente a impressão que este dá de não parecer ser um, mas muitos. [Bakhtin virou evidência nas notas acadêmicas, mas aqui não é sequer citação, mas apenas referência]. Os encaixes ou a coordenação dos atos de fala, isso faz a complexidade e a força do texto literário. Baste como exemplo um romance recente, Lisario – o il piacere infinito dele donne, de Antonella Cilento (Mandadori, 2014); um contraponto feliz aos tantos tons cinzas da literatura contemporânea; aqui há a maestria de um texto literário que serve ao erotismo fabuloso; l´uso ricercato del linguaggio faz toda a diferença; e lá a autora diz: “Todas as naturezas estão dentro de mim”. Certamente Aristóteles não assinaria isso – e, no entanto, faz parte da sensibilidade contemporânea. Há uma enorme plasticidade em nossas possibilidades; e recusamos nos resignar a um papel, a um lugar. É próprio do macaco passar por muitos galhos. A mobilidade, a versatibilidade, a leveza alerta. O texto que vira teatro, que vira filme, que vira dança. A transformação rende homenagem ao momento criador inicial. Pena: depois, o inicial se torna, à força de repetição, inercial. Memória dos gêneros: é possível ver índice da classificação de Quintiliano na raiz da impregnação do “martelo agalopado” no cancioneiro popular: na Instituição oratória, Livro X, ele aconselha os poetas a ler, sobretudo, os hexâmetros; ora, são justamente os versos que ficaram, desde a tradição, introjetados na memória popular;

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porque se prestam bem ao poema narrativo e às descrições – tão ao gosto do grande público ouvinte, cuja memória se estendia e disseminava na circulação do texto oral. Há, aqui, uma exposição simples [haplèdiégesis] que o verso de dez pés facilita e entrega melhor à memória. Assim, pela frequentação, a memória do repentista sabe melhor de Quintiliano que o excesso da teoria. E é assim, de oitiva [auditiva], que se entende a enorme recepção popular dos versos de Castro Alves ou de Augusto dos Anjos. O texto fala ao público, pouco leitor, pela imagem e pelo ritmo. Com a circulação, com a reprodução, a inflação da forma no tempo, aquela ênfase findou sendo uma definição do gênero poético. Ainda aqui se percebe a questão dos gêneros enquanto depositária da memória cultural. [Razão suficiente para não suprimi-los das ementas; desafio em repensá-los constantemente na proliferação incessante de suas formas]. Porque as classificações, quando não subjugam, ajudam. É possível ver na teoria dos gêneros um conhecimento que inclua, mas também transborde o saber classificatório. Necessário, mas sempre insuficiente – sobretudo nas coisas literárias. Há a necessidade de, guardando a baliza dos antigos, encarar os gêneros de acordo com critérios mais condizentes com a sensibilidade estética contemporânea. Transgredir na questão gênero? Já se tornou um lugar comum da literatura contemporânea. Já não é tanto a originalidade, como na época dos românticos, mas a novidade o que conta – sobretudo nas contas como imperativo categórico do Mercado. A necessidade de classificar continua; é parte de nossa forma de tornar inteligível o real. “E tudo isso – arranjar, dispor, organizar – o que é senão esforço realizado – e quão desoladoramente isso é a vida!” (PESSOA, p.99). Portanto, e à guisa de conclusão dessas considerações intempestivas, a questão dos gêneros em literatura guarda ainda sua pertinência. Somos aristotélicos: apenas, a categorias fechadas, preferimos dizer

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modais nossas classificações; e porque é ainda à sua sombra que medimos divergência e memória. O giro recorrente pelas questões de gênero, em literatura, impede o apagamento a que a indiferença leva. Em alguns momentos é pela distância dele que definimos nossa posição – como Tales ao pé da pirâmide: pela sombra dando conta de sua dimensão real. Referências COMBE, Dominique. Poésie et récit: une rhétoriquedesgenres. Paris: Corti, 1989. COMPAGNON, Antoine. Le démon de la théorie. Paris: Seuil, 1998. CURTIUS, Ernest. Literatura e Idade Média Latina. Rio de Janeiro: INL, 1957. DICTIONNAIRE des genres et notions littéraires. Paris: Albin Michel, 1997. FRYE, Northrop. Anatomia da crítica. São Paulo: Cultrix, 1973. HIRSCH Jr, Eric. Validity in Interpretation. Yale University Press: Yale, 1967. LACOUE-LABARTHE, Philippe. L’imitation des modernes. Paris: Galilée, 1986. LIMA, Luiz Costa. Mímesis – desafio ao pensamento. Florianópolis: UFSC, 2014. PESSOA, Fernando. O livro do desassossego. Lisboa: Ática, 1997. RANCIÈRE, Jacques. Políticas da escrita. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995. TODOROV, Tzvetan. Os gêneros do discurso. São Paulo: Martins Fontes, 1980.

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9 Literatura e Teatro: a palavra no palco Darío Gómez Sánchez 1 (UFPE) El teatro es la poesía que se levanta del libro y se hace humana. Y al hacerse, habla y grita, llora y se desespera Federico García Lorca

Introdução Dentro do campo de pesquisa das denominadas intersemioses, cada vez é mais frequente o estudo das diversas relações que a literatura estabelece com outras manifestações artísticas, como a música e a pintura. Nessa perspectiva, uma das afinidades mais prolíficas e interessantes é a que a literatura estabelece com as artes cênicas, e mais exatamente com o teatro. Entre as múltiplas possibilidades dessa relação, temos a inclusão ou complementaridade, a exclusão ou oposição e a semelhança ou assimilação. A noção de gênero dramático nos faz pensar no teatro como parte do universo literário. Todavia, a história da literatura abunda em referências a autores de teatro. Daí identificarmos uma inclusão ou complementaridade entre as duas artes. Também é verdade que, com a modernidade, as artes cênicas começaram uma busca pela sua autonomia, com independência ou, por oposição ao componente literário, determinando o questionamento do gênero dramático e o 1. dajego@hotmail.com

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surgimento de um novo teatro. Finalmente, e desde a perspectiva da estética da recepção, todo texto literário gera uma espécie de representação durante o processo de leitura, e nesse sentido pode ser assimilado à escrita para teatro. Nas seguintes linhas, procuraremos ilustrar, de maneira mais introdutória que exaustiva, algumas das implicações que a relação entre essas duas artes possibilita, fazendo ênfase no processo de separação que aconteceu a partir do século XIX e com a intenção de gerar prováveis linhas de reflexão relacionadas com o problemático conceito de gênero dramático, dentro do vasto campo da intersemiose literatura/teatro.

O teatro na literatura Seria impossível falar do denominado cânone ocidental sem fazer referência aos autores de teatro: os grandes trágicos gregos, os mestres da Renascença, os dramaturgos modernos são nomes primordiais na história da literatura. Shakespeare, por exemplo, não é só um grande autor teatral, mas também um nome central da história literária e, em consequência, da história da humanidade: “o inventor do humano”, como o apresenta o crítico literário americano Harold Bloom. Aliás, é curioso perceber que hoje, nos 450 anos de seu nascimento, Shakespeare parece reduzido a roteirista de filmes. As novas gerações, mais dedicadas aos estudos culturais,estão perdendo um dos maiores prazeres que a literatura pode oferecer: a leitura das obras monumentais do Cisne de Avon. O famoso monólogo de Hamlet sobre a dúvida, as palavras de Julieta quando acorda ao lado de seu Romeo morto ou o estímulo à morte na voz de Lady Macbeth são textos nos quais se faz presente a poesia encarnada num corpo.

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E a poesia, em toda sua possibilidade expressiva, está também presente nos autores barrocos do teatro espanhol e nos autores neoclássicos franceses. Uma curiosidade: parece que os grandes dramaturgos vêm em pacotes de três: Pierre Corneille, Jean Racine e Jean Baptiste Molière na França neoclássica; Félix Lope de Vega, Pedro Calderón de la Barca e Tirso de Molina no barroco espanhol; William Shakespeare, Cristopher Marlowe e Bem Jonson na Inglaterra Isabelina; Esquilo, Sófocles e Eurípides na Grécia antiga. E falando do clássico teatro grego, seus personagens são tão definitivos que ainda fazem parte de nosso imaginário, como é o caso de Medeia ou Édipo. E nem falar do valor literário do Coro: esse misterioso personagem coletivo que, em ocasiões, fala textos líricos não poucas vezes herméticos e, outras vezes, sintetiza a história com parágrafos narrativos. Assim como a poesia, a narrativa também está presente no teatro, no caso dos gregos, de Shakespeare ou de um autor mais contemporâneo como Bertold Brecht e seu teatro épico. Também por esse caminho da mistura de gêneros, poderíamos pensar na adaptação de textos narrativos para o teatro, como as excelentes teatralizações de O retrato de Dorian Gray ou, no caso brasileiro, da adaptação de Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo Neto com música de Chico Buarque, sem falar das adaptações de textos literários para o cinema, o que resultaria em um extenso desenvolvimento, assim como o assunto dos roteiros de cinema que alcançam status literário. O fato é que não seria possível descrever a história da literatura sem fazer referência ao teatro. Mas, se deixamos de lado o plano histórico, também podemos evidenciar essa estreita relação de inclusão desde um plano teórico, partindo da noção de gênero dramático, a qual oferece um amplo espectro do que são as relações entre literatura e teatro, seja de uma perspectiva clássica considerando só a tragédia e a comédia, ou de uma consideração mais moderna, in-

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cluindo a ópera e o teatro musical, assim como os gêneros híbridos e o drama; seja de uma perspectiva mais contemporânea, incluindo nesse gênero formas como a teledramaturgia presente nas novelas latino-americanas, tão desprezadas no âmbito acadêmico. Mas essa riqueza incontestável do gênero dramático é também sua maior dificuldade com relação a uma perspectiva literária; isso porque, em sua diversidade, o teatro se afasta da literatura e acaba fundando um campo à parte. Falamos, então, de uma relação de oposição, de um divórcio entre literatura e teatro.

Literatura VS. teatro: a dissolução do gênero dramático A oposição entre literatura e teatro obedece à evolução da prática teatral a partir do surgimento do Drama e dos gêneros híbridos, por oposição ao denominado teatro clássico, durante o século XIX, e posteriormente com o desenvolvimento das diversas correntes do teatro moderno e do teatro de vanguarda na primeira metade do século XX. É na diferenciação entre a teoria clássica e a teoria moderna dos gêneros literários, e mais exatamente no Romantismo, que a relação de inclusão do teatro na literatura começa a ser questionada até o ponto de chegarem a ser, nos começos do século XX, mutuamente excludentes. A liberdade criativa promovida pelos românticos afeta especialmente ao teatro com a aparição de gêneros híbridos como a tragicomédia, o melodrama e, principalmente, o drama, os quais rompem com a unidade apregoada pelo teatro neoclássico e misturam elementos de diversas índoles: a comédia e a tragédia, o nobre e o popular, a prosa e o verso, todos na busca de impactar e de responder às necessidades de um novo público que já não se identifica com as grandes situações representadas durante o Renascimento. 236


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Exemplos desses dramas românticos são, na França, Hernani ou Cromwellde Victor Hugo; e no Romantismo espanhol, Don Álvaro o La fuerzadel sino do Duque de Rivas, El trovador de Antonio García Gutiérrez, Los amantes de Teruel de Juan Eugenio Hartzenbusch e, muito especialmente, o Don Juan Tenorio de José Zorrilla, cujo personagem principal sintetiza muitas das características do herói romântico. Mas esses dramas românticos, ainda que revolucionários, são caracterizados pela precisão do conflito, a progressão da intriga e a unívoca concepção da personagem; características que só começam a ser definitivamente questionadas nos finais do século XIX. Isso porque, estimulado pelas teorias psicoanalíticas que fazem do subconsciente uma “personagem”, o teatro começa a dar preponderância a um universo relativizado onde se reconhece a possibilidade dos microconflitos ou de um conflito interno e inconsciente do indivíduo. Trata-se do começo da dissolução da escrita dramática como gênero literário e cujas origens mais evidentes se encontram em obras como Casa de bonecas de Henrik Ibsen, As três irmãs de Anton Tchekhov e A senhorita Julia de August Strindberg. Graças a esses autores, o teatro quebra definitivamente as amarras que o prendem formal e ideologicamente com a concepção clássica da arte, orientando-se para novos horizontes. Por outro lado, o Simbolismo teatral, assim como o Naturalismo, evidencia a preocupação do artista diante do aparente equilíbrio da sociedade burguesa e centram o seu interesse no trágico cotidiano; mas, em oposição à concepção positivista – ainda presente em Ibsen, Tchekhov e, em menor medida, em Strindberg –, os autores simbolistas procuram aceder a outras dimensões da realidade se ocupando da sugestão, do mistério e do mundo invisível, e operando uma espécie de retardamento ou aprazamento do conflito dramático, eixo fundamental do teatro clássico.

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É o caso de Maurice Maeterlinck, quem ressalta a importância da presença da morte e das forças misteriosas, intangíveis e desconhecidas, todo o qual se materializa nos seus denominados dramas estáticos, como Os cegos. Também Fernando Pessoa escreve um drama estático: O Marinheiro. E em consonância com esse resgate do oculto,os autores simbolistas se preocupam por instaurar um lugar para a poesia no teatro, o que, paradoxalmente, acaba estimulando a progressiva separação entre o texto dramático e o espetáculo ou, em outros termos, uma liberação da tutela literária no teatro. Derivado dessa crise do drama e simultaneamente com o auge do Realismo, faz sua aparição a figura do diretor de cena, que começa uma exploração das novas linguagens cênicas: luzes, sons, recursos cenográficos. Durante a maior parte do século XIX, as ideias arquitetônicas e cenográficas se mantiveram inalteráveis, mas as exigências de liberdade criativa que começaram com os autores românticos conduziram, nos finais da centúria, a uma redefinição da arte dramática em seus aspectos mais diversos. Fundamental nesse sentido foi a construção do monumental teatro de ópera Festspielhaus de Bayreuth, na Alemanha, erigido em 1876 de acordo com as instruções do compositor Richard Wagner, constituindo a primeira ruptura aos modelos italianos. Seu desenho em abanico, com a plateia escalonada, o obscurecimento do auditório durante sua representação e a locação da orquestra num pequeno fosso, eram elementos concebidos para centrar a atenção dos espectadores sobre a ação e abolir ao máximo possível a separação entre o público e o cenário. A crescente importância concedida à figura do diretor e a exigência de integração entre o marco arquitetônico, a cenografia e a representação foram acentuadas nos últimos decênios do século XIX e primeiros do século XX com a aparição de personalidades como o alemão Max Reinhardt, autor de espetaculares montagens,o rus-

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so Constantin Stanislavski, diretor e ator cujo método de interpretação exerceria grande influência sobre o teatro moderno, e o cenógrafo britânico Edward Gordon Craig, que em sua defensa de um teatro poético e estilizado advogou pela criação de cenários mais simples e dúcteis. A aparição do teatro moderno se caracterizou, pois, pela absoluta liberdade de propostas mediante o diálogo de formas tradicionais com novas possibilidades técnicas, as quais deram lugar a uma singular transformação da arte teatral baseada na autonomia do espetáculo. A maior independência do teatro com relação ao componente verbal ou literário está diretamente relacionada com a dissolução progressiva da escrita dramática. Enquanto os dramaturgos do século XIX põem em questão a noção de conflito, os criadores teatrais dos começos do século XX (que não são só dramaturgos) geram uma ruptura com a noção de representação, a qual se manifesta, entre outras formas, a partir do questionamento da função comunicativa da linguagem. A língua é estruturalmente desarticulada com a intenção de atacar a base lógica do pensamento e também de atacar metaforicamente a organização social ou econômica da sociedade. A intenção é produzir uma alteração das funções do signo linguístico, afetando a compreensão do conteúdo e questionando a possibilidade da transmissão de uma mensagem. Assim sendo, a linguagem perde seu valor denotativo realista ou conotativo simbolista para entrar no plano da ambiguidade, o non sense e o humor. Entre os movimentos da vanguarda se incluem geralmente Futurismo, Dadaísmo, Cubismo e Surrealismo; mas,no nível teatral, a referência ao teatro de vanguarda é muito mais ampla e imprecisa, pois abarca desde o Expressionismo alemão até as performances norte-americanas, passando pelo teatro intimista, o teatro do absurdo e o antiteatro. Em termos gerais, trata-se de um teatro ali-

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mentado por uma ânsia de originalidade e provocação, pela desintegração da linguagem e a manifestação permanente de um estado de crise com o objetivo de colocar em questão os valores morais e institucionais vigentes. Historicamente vários estudiosos coincidem em considerar a Ubú Rey (1896) de Alfred Jarry e a Seis personagens a procura de autor (1921) de Luigi Pirandello, como as peças precursoras e fundadoras do teatro vanguardista. Na primeira, apresenta-se um retrato antecipado das consequências sangrentas dos abusos da burguesia com uma linguagem e uma estrutura formal revolucionárias, evidentes desde a primeira fala: “Merde!” – dela diz André Breton que é “a grande peça profética vingadora dos tempos modernos”. Pela sua parte, a obra de Pirandello – da qual diz Bernard Shaw que é “a obra mais poderosa e mais original de todos os teatros, antigos e modernos, de todos os tempos”– com seu argumento totalmente inaugural e cujo processo de gestação está detalhado num texto do próprio autor sobre a criação artística, gera múltiplas transformações cênicas, entre elas a “des-psicologização”e a relativização da personagem, a trivialização do conflito dramático e o rompimento da quarta parede: características gerais do que logo depois vai se denominar o antiteatro. É no interior desse movimento do Absurdo que surge um autor cujos revolucionários delineamentos vão ser fundamentais neste processo de catarse teatral diante da crise da modernidade: Antonin Artaud, quem, em oposição radical à verossimilhança psicológica, recorre às formas rituais e à exaltação mágica com sua proposta do Teatro da crueldade,na qual se continua com o progressivo rompimento da função preponderante do literário ou verbal. O Expressionismo alemão (alguns de cujos rasgos já aparecem em parte da obra de Strindberg) surge a princípios do século como uma oposição ao retrato naturalista individual para apresentar a ra-

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diografia, a vida interior da condição humana entendida como abstração. Seguidor dos delineamentos do Teatro Documental de Erwin Piscator, para quem o fundamental é a dramatização do cotidiano inscrito no histórico, Bertold Brecht procura mostrar o mundo tal como é e, especialmente, modificá-lo a partir da ação cênica; e, para isso, aproveita as conquistas prévias dos experimentalismos teatrais, tais como a posta em interdito da noção do conflito e do estatuto da representação, mas vai lograr transcendê-las com sua preocupação pela função social do teatro. O ponto de partida do teatro épico é a modificação das relações teatrais convencionais: entre as personagens, a cena e o público, o texto e a interpretação, os atores e o diretor. No teatro clássico– e incluso no drama burguês antes de Ibsen –, as personagens são caracteres bem definidos, o conflito está claramente delimitado, a linguagem verbal é o eixo da representação e esta se sustenta na ilusão de realidade, favorecendo assim a identificação acrítica do espectador. Para Brecht, a personagem é um ser contraditório, relativo, definido pelas ideologias e não por si mesmo; o conflito não é autônomo senão uma construção cênica, a multiplicidade das linguagens (gesto, música, palavra) é definitiva para a posta em cena e tanto o ator como o espectador têm consciência de que se trata de uma representação. Trata-se de substituir a emoção paralisante do teatro convencional por uma emoção intelectual que favoreça o diálogo entre o espectador e o espetáculo, e isto só é possível reconhecendo a realidade com estranheza, gerando distância entre as personagens e o espectador. Propõe Brecht que, para o perfeito rendimento desta interpretação que renuncia a uma transformação completa e procura distanciar a expressão e o comportamento da personagem, três expedientes poderão ser utilizados: a transposição para a terceira pessoa; a transposição para o passado; e a introdução de comentários e instruções

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técnicas; mediante a conjugação de todos estes processos, o texto se distancia no decorrer dos ensaios e, por via de regra, assim se mantém nas representações. Nesse sentido, o texto já não é mais uma expressão referencial ou emotiva, e sua função comunicativa é posta em xeque, já não com o humor ou a ironia das vanguardas, senão(,) principalmente com o reconhecimento contínuo do valor relativo, testemunhal, parcial, ideológico ao fim, das falas das personagens. O drama romântico e o drama moderno, o Simbolismo e o Naturalismo, o Realismo e o diretor de cena, o Teatro do Absurdo e o Expressionismo são alguns dos momentos cruciais no processo de separação entre a literatura e o teatro. O importante é destacar que durante esse processo se consolida a oposição entre uma escrita para o teatro, que pode ser entendida como um objeto verbal (gênero literário) ou um objeto plástico (instrução cênica), e que essa oposição pode ser expressa em outros termos: leitor vs. espectador, texto vs. representação e linguística vs. semiótica, cada um dos quais requereria um desenvolvimento particular.

O teatro como literatura e a literatura como teatro Ainda que nos dois últimos séculos o teatro tenha tentado romper definitivamente com a linguagem verbal e com a condição de gênero literário, é fato que a palavra continua sendo a ferramenta de trabalho do escritor de teatro. Mais ainda: existem estudos que falam de um retorno ao autor nas décadas finais do século passado, mas ao autor entendido como dramaturgo, no sentido originário desse vocábulo. Dramaturg, na sua acepção originária em alemão, refere-se ao fazedor teatral que reúne e organiza diversos elementos teatrais, en-

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tre eles um conjunto de atores e um texto literário. Na acepção em línguas românicas a palavra é restringida ao autor de teatro. Mas o dramaturgo e o drama reúnem ambas as dimensões: o verbal e o teatral. E é precisamente essa noção de dramaturgo que serve para confirmar essa dupla dimensão da escrita teatral, a qual implica o verbal e o cênico, o literário e o teatral. Um exemplo desse dramaturgo no sentido moderno poderia ser o nome de Heiner Müller, quem escreve textos dramáticos desde uma perspectiva performática. O mais importante neste ponto é reconhecer que o teatro é uma superposição de códigos (linguísticos, cinésicos, proxêmicos, lumínicos etc.) – espessura de signos – e nele podem ser identificadas duas dimensões: a dimensão verbal ou literária e a dimensão teatral ou performática. Mas é evidente que desde uma teoria clássica dos gêneros não é mais possível pensar essa dupla dimensão da escrita dramática. Aqui a linguística do texto e a semiótica aparecem como os instrumentos teóricos mais pertinentes ao propor as noções de texto dramático e texto do espetáculo, e entre essas duas instâncias o texto de encenação: resultante do componente linguístico, as condições cênicas nele inscritas e as lagoas mentais. É partindo desse texto da encenação (cuja manifestação concreta é o texto dramático) que o leitor (e posteriormente o diretor e o ator) realiza a representação, uma representação que, no caso do leitor, não é mais real, mas mental. E aqui entramos no espaço da estética da recepção e da caracterização do literário como uma atividade da recepção e não da produção. Assunto que reclamaria um desenvolvimento particular. Mas, para fechar essas anotações, gostaria de pensar que se todo texto dramático é um texto literário pelo fato de ser verbal, também seria possível pensar que todo texto literário é um texto dramático, no sentido que propõe uma realização cênica que não tem de ser ne-

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cessariamente real. E também no sentido de que a literatura é uma encenação da palavra. De fato, o leitor de um romance ou um conto realiza uma representação dos personagens e das ações, uma encenação da narração. E o poeta se preocupa não só pelo sentido e o som, mas também pela disposição dos significantes na página, como um cenógrafo ou como um pintor. Nessa perspectiva, toda a literatura é teatro: proposta de representação. E, como diria Shakespeare, o mundo é um teatro. Referências Hausser, A.Historia social del arte y la literatura. Tomo 2 . Trad.: A Tovar. Barcelona: Labor, 22ª ed.,1993. Rebello, L.F. Teatro moderno.Lisboa: Prelo, 1964. Strindberg, A.Senhorita Julia.(Prefacio). Trad. Mario da Silva. Rio de Janeiro: Civilização brasileira, 1977. Marinetti, F. T.“Fundação e Manifesto do teatro futurista”.In: Bernardini, A. F.(org).O Futurismo Italiano – manifestos. São Paulo: Perspectiva, 1980. Templado García, J.La crisis del lenguaje en el nuevo teatro español. Madrid:Universidad Complutense, 1996.

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10 Os Dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole a E. T. A. Hoffmann1 André de Sena (UFPE)

As pioneiras experiências estéticas relativas ao gótico literário, em sua vertente ligada ao horror, se embasaram exponencialmente nos motivos noturnos como contraproposta sui generis ao classicismo iluminista da segunda metade do século XVIII, este, grosso modo, defensor das regras de composição e decoro literários, de uma postura pragmática no plano científico e do mimetismo pautado em aspectos moralistas e propedêuticos. Digo sui generis pelo fato de que, impondo-se aos poucos como fecundo e original veio ficcional – aparentemente em tudo contrário à Aufklärung –, o gótico, em seus inícios, também endossou um tipo de mímese própria que, se por um lado, ofereceu infinitas possibi1. As ideias que servem de substrato a este artigo foram inicialmente apresentadas e discutidas na palestra intitulada “Mutações do gênero horror na literatura oitocentista”, durante o V Encontro Acadêmico Gêneros na Linguística e na Literatura, evento do Núcleo de Investigações sobre Gêneros (NIG), no Auditório do Centro de Artes e Comunicação da UFPE, no dia 19 de setembro de 2014. Posteriormente, transformou-se em artigo escrito, que foi publicado na revista semestral Soletras, de número 27 (segundo semestre de 2014, págs. 11-31), do Departamento de Letras da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ). O artigo compõe um dossiê especial sobre a literatura gótica, organizado pelos Profs. Drs. Fernando Monteiro de Barros Jr & Júlio César França Pereira. A revista possui ISSN 23168838, está indexada em Qualis/CAPES (B4) e pode ser acessada no endereço eletrônico http://www.e-publicacoes. uerj.br/index.php/soletras/article/view/11273. Esta é uma re-publicação, sem modificações, a pedido do NIG/UFPE, do artigo original publicado na Revista Soletras.

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lidades imaginativas para ulteriores diegeses, por outro, continuou atento à necessidade de um certo controle, de uma verossimilhança ainda cara aos artefatos ficcionais setecentistas como um todo. Exemplo icônico disso é o livro O Castelo de Otranto (1764), de Horace Walpole (1717-1797), em cuja composição se fazem presentes tanto a verossimilhança de base mimética (Romantismo mimético) do romance histórico, como os elementos ligados ao horror sobrenatural ou de origem humana, atinentes a uma escrita imaginativa e não mimética (Romantismo imaginativo), além de sobrevivências classicistas. No “Prefácio” à primeira edição do livro, Walpole, sob pseudônimo, opta por um procedimento que fará escola no Romantismo, quando, ficcionalmente, afirma ser a obra a publicação póstuma de um antigo manuscrito medieval, de origem italiana, que hipoteticamente estaria datado entre 1095 e 1243, épocas da primeira e última Cruzadas, respectivamente. A escolha de tal cronotopo não é aleatória, já que a ontologia medieval acataria os elementos sobrenaturais e maravilhosos: Os milagres, as visões, a necromancia, os sonhos e outras coisas sobrenaturais são hoje assunto explorado mesmo fora dos romances. No tempo em que o nosso autor escrevia, as coisas não eram assim; muito menos o seriam na época em que se supõe que a história tenha acontecido. A crença em toda a casta de prodígios estava tão enraizada nessas épocas obscuras que autor que não os referisse era infiel aos costumes do tempo. Não era obrigado a acreditar, mas tinha de representar os seus actores como crentes. (WALPOLE, 1978, p. 18)

Ao situar sua história em tempos em que – acreditava-se – as experiências sobrenaturais seriam mais comuns, Walpole estaria realizando, de antemão, uma espécie de mea culpa, defendendo-se de 246


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uma escrita que não seria unicamente pautada pelo estro mimético? A pergunta é pertinente, pois, noutras passagens do mesmo “Prefácio”, o autor revelará ânsias classicistas ao discutir o fim da obra e os caracteres de seus personagens, descritos à semelhança dos elementos que configurariam uma típica tragédia: Tudo tende para a catástrofe. A atenção do leitor nunca sofre afrouxamento. As regras do drama são sempre seguidas ao longo do desenrolar da peça. As personagens são desenhadas com mestria e segurança. O terror, que é o principal artifício do autor, evita que a história alguma vez decaia em vivacidade; tem na piedade um tal contraponto que a mente é obrigada a fixar-se constantemente na luta entre paixões tão adversas. Talvez algumas pessoas achem que as personagens dos criados são demasiado pouco sérias, se comparadas com o nível geral da história. Mais do que na oposição às personagens principais, o engenho do autor é bem visível no modo como pinta os subalternos. Há na história muitas passagens essenciais que, só pela naiveté e simplicidade deles, podiam ser trazidas à luz: mormente, no último capítulo, o terror tipicamente feminino e a fraqueza de Bianca, que, progressivamente, se ergue até ao auge da catástrofe. (...) [Não sou] tão cego que não veja os defeitos do autor que traduzo. Eu gostaria mais que ele tivesse baseado o seu plano numa moral mais útil que aquela em que se baseia: serem os pecados dos pais castigados na pessoa dos herdeiros, até à terceira e quarta geração. (WALPOLE, 1978, p. 19)

O excerto revela as preocupações usuais que norteavam a criação de obras artísticas naquele período (século XVIII). O olhar classicista e mimético está presente na configuração da catástrofe, na constatação da unidade de ação, no pedido de desculpas por se colocar numa mesma cena personagens nobres e plebeus, na neces-

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sidade de um escopo moral bem definido e até mesmo nomeado, para contrabalançar a hybristrágica... Por outro lado, a experiência do “terror” é nova, apesar de baseada, aparente e conceitualmente, nas exigências da imitativo pseudo-aristotélica típica do classicismo (lembremos ainda que o “terror” se conjuga, no excerto acima, à “piedade”, como se prefigura na Poética aristotélica). Ao fim e ao cabo, atutela conceitual servirá de apoio ao óbvio incremento do “terror” – em medidas discretas, amparadas no decoro, tão caro à irrupção da catarse nas tragédias clássicas – presente e preponderante em toda a tessitura d’O Castelo de Otranto, como fica evidente ao longo de sua leitura. Assim, baseando-se inicialmente em premissas classicistas, o gótico assegurará novos construtos ficcionais, a reverberar um imaginário (noturno) até certo ponto inaugural (sem nos esquecermos do dionisíaco existente no aticismo) e a delinear seus próprios procedimentos inaugurais referentes ao universo da narrativa: estilísticos, cronotópicos, tipológicos, tópicos etc. O incremento do “terror” nas diegeses góticas – assegurado, como dito, pela plena ocorrência do maravilhoso no cronotopo medievo – dará ensejo a todo um universo ligado à expressão do sobrenatural, ainda que modalizado pela perspectiva mimética do romance histórico. O sobrenatural, no gótico inicial, cria fissuras num universo em que o “terror” já se encontra instalado, graças às atmosferas opressivas e noturnas nas quais deambulam os personagens. As atitudes hybristas do protagonista Manfredo, príncipe de Otranto, acusam ainda a tópica medieval do desconcerto do mundo, contudo reconfigurada numa nova cravelha, que revela um novo horizonte de expectativas por parte do público setecentista, aparentemente ávido de brumas literárias. O sucesso entre os leitores realmente demandará novas edições. No “Prefácio” à segunda edição d’O Castelo de Otranto, publicada

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um ano depois, Walpole sai do anonimato e discute os conceitos de imaginação e verossimilhança, ao tratar do que chama de romance “antigo” (narrativas medievais e renascentistas) e “moderno” (setecentista), defendendo a união das características de ambos, para a geração do que hoje compreendemos como romance gótico: Grande cometimento é querer combinar dois gêneros de romance, o antigo e o moderno. Naquele tudo é imaginação e inverossímil; neste, há sempre a pretensão, por vezes conseguida, de copiar fielmente a natureza. Não há falta de imaginação; mas têm sido condenados os grandes recursos de fantasia, em favor de uma rigorosa obediência à vida quotidiana. A razão de nesta última espécie de romance a Natureza ser empecilho à imaginação, a razão está no facto de querer desforrar-se por, nos antigos romances, ter sido completamente posta de lado. Os actos, sentimentos e falas dos heróis e heroínas de antigamente eram tão pouco naturais como os mecanismos que os moviam. Achou o autor da presente obra que era possível reconciliar esses dois gêneros. Desejando deixar aos poderes da fantasia liberdade para se espraiarem pelos reinos ilimitados da invenção, criando a partir daí situações mais interessantes, houve o autor por bem descrever os mortais agentes do seu drama de acordo com as normas da verossimilhança, ou seja, pô-los a pensar, a falar e a agir como é suposto que devem agir todos os homens e mulheres que defrontam situações extraordinárias. (WALPOLE, 1978, p. 24)

Este segundo “Prefácio” é importantíssimo no que toca aos primeiros passos teóricos atinentes ao progressivo afastamento que o Romantismo autoconsciente ulterior proporá em relação ao real e à mímese, para a gestação de enredos imaginativos. A mediania proposta por Walpole para o novo romance de sua época – consensual entre os aspectos sobrenaturais e verossímeis, norteada pela “inven-

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ção” e não mais pelo decoro – constitui um dos primeiros momentos afirmadores da “imaginação” romântica pela vertente inglesa, numa longa jornada da qual participará todo o continente literário europeu. O próprio Walpole antevê isso, quando afirma: Se esta nova estrada por ele [o autor d’O Castelo de Otranto] aberta puder facilitar o caminho a homens de mais brilhantes talentos, o autor não deixará de reconhecer, com todo o gosto e modéstia, o facto de sempre também ter tido a consciência de que o seu esquema era passível de um embelezamento superior ao que a sua imaginação e a sua pintura das paixões lograram conseguir. (WALPOLE, 1978, p. 24)

De mais a mais, uma vez que o romance conquistou sucesso entre os leitores, Walpole pôde obliterar, neste segundo “Prefácio”, os aspectos ostensivamente classicistas do anterior, e assegurar, conceitualmente, os elementos imaginativos caros à/ao série/estética/ gênero/modo nascente (o gótico e a própria literatura romântica). A presença de personagens plebeus, explicitada de forma negativa no primeiro “Prefácio”, agora será percebida sob um novo prisma, também pioneiro no que toca aos estudos sobre a binomia romântica – a conjunção entre o sublime e o grotesco, Ariel e Caliban: A respeito do comportamento dos criados, a que já me referi no prefácio anterior, seja-me permitido acrescentar mais umas palavras. A simpleza dos ditos criados, que quase tende para o ridículo e que a princípio parece em desacordo com a seriedade da obra, sempre se me afigurou, mais do que apropriada, muito adaptada ao fim em vista. A minha norma era ser natural. Embora sejam graves, importantes e merencórias, as sensações dos príncipes e dois heróis não apresentam, nos seus criados, cunho idêntico; pelo menos, estes últimos não exprimem nem podem exprimir as suas paixões com

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idêntica dignidade. Na minha humilde opinião, o contraste entre o sublime de uma coisa e a naiveté da outra coloca o carácter patético dos primeiros em maior evidência [...]. Mas, mais importante do que a minha opinião a esse respeito, é a desse grande mestre do natural, Shakespeare, cujo modelo eu copiei. Deixai que vos pergunte se as tragédias de Hamlet e de Júlio César não perderiam uma parte considerável do seu espírito e das suas maravilhosas belezas no caso de o humor dos coveiros, as tolices de Polônio e as facécias desajeitadas dos cidadãos romanos serem omitidas ou transformadas em falas heróicas? (WALPOLE, 1978, pp. 24-25)

O conúbio entre o sublime e o grotesco é ensaiado por Walpole ainda no século XVIII, mais de 60 anos antes das teorias de Victor Hugo (1802-1885) sobre o mesmo tema, enfeixadas no prefácio à sua peça Cromwell (1827). A defesa walpoliana da binomia culmina num franco elogio a Shakespeare (que Hugo também repetirá) e em diversas críticas à obra ficcional e teórica de Voltaire – a antecipar também o Racine e Shakespeare (1825) de Stendhal (1783-1842) – ao longo de várias páginas, que reverberam uma postura anticlassicista e a defesa de um novo tipo de literatura, em que o real (diegético) não prescinde do grotesco e do sobrenatural. Shakespeare substitui Aristóteles – ou a leitura ideologizada que o classicismo faz das teorias deste –, como patrono da nova literatura, no segundo “Prefácio”. Por outro lado, não há cenas e passagens como esta, d’O Castelo de Otranto, no teatro do bardo de Stratford-upon-Avon: Crendo, pelo que podia observar, que estava perto da abertura da cripta, aproximou-se da porta que tinha visto entreaberta. Uma súbita corrente de ar vinda da dita porta apagou-lhe nesse momento a luz e ela ficou mergulhada na mais completa escuridão. Não há palavras que possam des251


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crever o horror em que a princesa ficou. Sozinha em tão tenebroso local, com a mente povoada pelos terríveis acontecimentos. (WALPOLE, 1978, pp. 47-48)

A cena da escuridão abrupta em que um personagem – estando ou não em fuga – se vê lançado, com óbvias associações sobrenaturais, ainda hoje é repercutida ao infinito pelo cinema de horror e tem sua origem na obra de Walpole. Neste caso específico, trata-se da personagem Isabella, perseguida ao longo dos corredores escuros e masmorras pelo príncipe Manfredo, após a morte do filho deste, Conrado, com quem aquela iria se casar. Ansioso por continuar sua linhagem e gerar um novo herdeiro, Manfredo passa a desprezar suas virtuosas filha e esposa – esta última, por conta de não mais poder conceber – e de maneira insana tenta desposar Isabella, antes mesmo da realização dos funerais de Conrado. A atmosfera de pesadelo que ressumbra da narrativa é corroborada pelos motivos de ordem sobrenatural: Conrado morre esmagado pelo peso de um elmo gigante vindo não se sabe de onde e, durante a perseguição de Manfredo, um espectro gigante (provável origem do elmo) é visto pelas galerias do castelo, enquanto pinturas ganham vida e os seres nelas representados saem das molduras. De fato, a escuridão, elemento onipresente, é o principal motivo – quase personagem – a endossar o estranhamento diegético e os elementos fantásticos d’O castelo de Otranto. O protagonista Manfredo sempre se isola em seus aposentos e permanece em meio à escuridão, prescindido de lumes (p. 40); ele vê um espectro num aposento escuro (p. 44); os serviçais do castelo percorrem os corredores escuros do castelo temendo encontrar o espectro do finado príncipe Conrado (p. 55) etc. Por vezes, as réstias de luz que deixam entrever fenômenos surpreendentes também têm origem noturna, como naquela passagem em que Manfredo, no interior do castelo, observa 252


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o estranho elmo banhado pela cambiante luz da lua: “O luar que se erguia no céu e iluminava as janelas defronte mostrou a Manfredo as plumas do elmo fatal, que se erguiam à altura das janelas, balouçando ao vento tempestuoso e produzindo enorme zunido” (WALPOLE, 1978, p. 44). Num dos ápices da peripateia de horror, o nobre Frederico, pai de Isabella, indo ao oratório do castelo em busca da princesa Hippolita, para indagar-lhe a respeito de suas suspeitas referentes a Manfredo, dá de cara com um vulto ajoelhado em meio às sombras, e pensa tratar-se do padre confessor: Não ficou o marquês surpreendido com o silêncio que reinava no aposento da princesa. De acordo com o que lhe tinham dito, julgou-a no oratório e para lá se encaminhou. A porta estava entreaberta e reinava lá dentro espessa treva. Empurrando a porta, lobrigou uma pessoa ajoelhada diante do altar. Aproximando-se, pareceu-lhe que não seria mulher, mas alguém que envergava hábito de burel e lhe virava as costas. Parecia estar absorto em oração. Ia o marquês retroceder quando o vulto, erguendo-se, se ficou por momentos em contemplação, sem para ele erguer o olhar. Enquanto esperava que a sacra personagem se aproximasse, o marquês, desculpando-se de tão indelicada interrupção, disse:- Reverendo Padre, procuro a princesa Hippolita. - Hippolita? – tornou-lhe uma voz cavernosa. – Viestes a este castelo à procura de Hippolita? E o vulto, voltando-se compassadamente, mostrou a Frederico o semblante descarnado e as órbitas vazias de um esqueleto, rebuçado na estamenha de um eremita. (WALPOLE, 1978, p. 157-158)

Os motivos religiosos são trabalhados de maneira disfórica em meio ao bizarro e ao fantasmagórico, contudo ainda não se observa a realização de uma experiência ficcional de total inversão, ou mal absoluto, como as que obras ulteriores do Romantismo soerão reali-

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zar, a exemplo de Os elixires do diabo (1813; 1816), de E.T.A. Hoffmann (1776-1822). Ao término do excerto transcrito acima, descobre-se que o espectro aparentemente nefasto traduz alegoricamente o condão da virtude, e reencaminhará – como os típicos personagens eremíticos das novelas de cavalaria medievais – o marquês Frederico às sendas da virtude. O mesmo excerto também revela um procedimento icônico da escrita de horror, que tem em Horace Walpole um de seus criadores, a saber: o retardamento do clímax, gerador de suspense, tão utilizado pelo cinema de horror contemporâneo, muitas vezes, também conjugado ao silêncio e à escuridão. Como afirmado, é em meio à escuridão que se passam os acontecimentos d’O castelo de Otranto, sobrenaturais ou não. É ela a real motivadora do estranhamento fantástico, da tensão diegética. Por sinal, os elementos efetivamente fantásticos ligados ao sobrenatural, são em geral desmistificados ao longo da narrativa, a exemplo da aparição do espectro do gigante. Só os serviçais do castelo o veem e tal fato é associado às crendices populares – quando não, à bebida –na perspectiva dos nobres. Contudo, ao término da história, o gigante é visto – quase trágico deus ex-machina – por todos os personagens, nobres e plebeus, constituindo-se algo próximo do Fantástico-maravilhoso todoroviano, embora o signo do estranhamento típico do horror não se dilua. O castelo de Otranto será base para uma série de outros romances e novelas góticas e sua influência se estenderá a todo o movimento romântico. Em O morgadio (1816), conto de E. T. A. Hoffmann, por exemplo, veremos como o imaginário noturno continuará servindo de base para novas experiências da literatura imaginativa, contudo com características bem próprias. Na trama d’O morgadio também se observa a imagem do castelo perdido em meio ao locushorrendus:

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Região selvagem e deserta. Alguns talos de erva conseguem, penosamente, furar o solo de areia movediça, aqui e ali. Em geral, um parque embeleza as cercanias da habitação senhorial, mas nessa se ergue miserável bosque de pinheiros, mais altos do que a muralha nua, de cor eternamente escura, parecendo desprezar a vestimenta da primavera. Nesse bosque, o pipilar contente dos pássaros é substituído pelo crocitar espantoso dos corvos e o silvar das gaivotas, cujo vôo prenuncia a tempestade. (HOFFMANN, [19..], p. 97)

Trata-se do castelo do barão Roderich, lugar afastado e deserto só preenchido por outros nobres convivas durante as estrepitosas caçadas invernais, anunciadas pelos altissonantes clangores dos metais. Ao lado da esposa, a melancólica baronesa Serafina – alma poética avessa a tais alaridos, nostálgica pela poesia e música delicadas que os membros de sua casta desprezam –, Roderich é outro sisudo Manfredo, a contrabalançar o temperamento despótico com os prazeres que a caça proporciona. Mas o protagonista do conto é na verdade o personagem Theodor, jovem sobrinho de um velho juiz que anualmente se desloca ao castelo de Roderich para dar consecução às atividades burocráticas e judiciárias do povoado. Theodor, uma espécie de estagiário da área jurídica, escrevente, irá ao castelo pela primeira vez, onde se apaixonará pela baronesa Serafina desde a primeira troca de olhares, com quem compartilhará dos mesmos gostos poéticos e musicais (depois de muitas reviravoltas, Theodor e Serafina conseguirão realizar – longe dos olhos do barão Roderich – alguns saraus musicais, com um piano trazido às ocultas do vilarejo, ao mesmo tempo que um amor secreto). O morgadio, apesar de todas as influências d’O castelo de Otranto, já demonstra outra experiência relativa ao gótico, ligada aos planos intertextuais e metalinguísticos, pari passu à completa assimi-

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lação da estética romântica2. Walpole – talvez mesmo por injunções de ordem biográfica – respeita e reitera as convenções aristocráticas relativas aos personagens em sua obra, enquanto Hoffmann as despreza, valorizando o típico personagem descentrado romântico, cuja sensibilidade e talentos são mais importantes do que as castas e genealogias. N’O castelo de Otranto – apesar de toda importância, como afirmado, de seus prefácios para a gestação de uma noção de binomia romântica inglesa e da utilização do sobrenatural como processo imaginativo –, o único personagem efetivamente virtuoso tido como pertencente às camadas populares, o camponês Teodoro, ao final da diegese será inserido no universo da aristocracia, com a descoberta de que descenderia da alta nobreza italiana. As últimas barreiras que impediam o liame entre as ações virtuosas e o sangue aristocrático são eliminadas, numa postura conservadora e reacionária. Por sua vez, o Theodor do conto hoffmanniano é apenas um estudante de Direito e músico (pianista) – por sinal, como seu próprio autor, Ernest Theodor “Amadeus” Hoffmann, também advogado e virtuose pianista, segundo o processo de espelhamento biográfico na ficção, tipicamente romântico –, contudo, capaz de gerar a féerie poética, os devaneios langorosos de onde promanam doses de erotismo sucinto e aquela melancolia inspiradora capaz de implodir as genealogias e outros ademanes nobiliárquicos. Personagem iconoclasta sem o desejar, incômodo por sua própria condição social e temperamento poético, Theodor é uma das grandes criações de Hoffmann, um daqueles estudantes meio desastrados chamados a participar, como protagonistas, de alguma história excêntrica, seme-

2. Lambert (1979, p. 303) avulta os aspectos intertextuais e as citações/alusões a obras de Kleist, Schiller, Shakespeare, Jean-Paul Richter, Schnabel etc., presentes à narrativa de O morgadio, os quais dão “um relevo especial” ao conto. Trata-se de um novo caminho ligado ao gótico, ou seja, a busca por uma essência efetivamente literária e sem pretensões de associar a obra ficcional ao real empírico

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lhante ao que ocorre em muitas outras obras suas.Com este personagem, Hoffmann leva o Teodoro inicial walpoliano a um novo nível de maturidade ficcional, redimensionando-o num universo que é todo seu – e não mais o dos autores romântico-classicistas das primeiras gerações românticas europeias –, composto a um só tempo de atmosfera burguesa, de registros do universo das leis e da jurisprudência, bem como de boêmia, delírio e imaginação sem fronteiras que faz do horror um dos mais lúdicos exercícios ficcionais imaginativos do período oitocentista. O Theodor hoffmanniano possibilitará a metalinguagem do horror e a experiência fantástica do sobrenatural, pois, dotado de imaginação excêntrica, deixar-se-á impregnar em várias passagens não apenas pelas ambiências soturnas e inspiradoras do castelo, mas também da literatura: Quem não sabe quantas emoções se despertam pela estrada em local pitoresco, mesmo para as almas mais frias? Quem não teve um sentimento desconhecido, em meio a um vale rodeado por rochedos, ou entre as umbrosas paredes de certa igreja? Agora, imaginem: eu tinha vinte anos, o álcool do ponche excitara meus pensamentos, e poderão facilmente compreender o estado de espírito em que me encontrava naquela sala. Imaginem também o silêncio da noite, em que o surdo murmúrio do mar e estranhos assobios do vento ressoam como sons de um órgão gigantesco, tocado por espíritos. E nuvens que passavam velozmente e que, muitas vezes, em sua brancura e fulgor, semelhavam gigantes, contemplando-me através das imensas janelas. Tudo ajustado para causar a ligeira inquietação que experimentava. Esse mal-estar, porém, se parecia com a sensação que temos, durante a narrativa de uma história fantasmagórica, vivamente contada, e que, por fim, nos causa prazer. Assim, pensei: era a veia adequada para ler o livro que trazia no bolso, o Visionário, de Schiller. Li e reli, esquentando cada vez mais a mente. Até

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que cheguei à história das bodas em casa do conde de V... tão encantadora. Bem no momento em que o fantasma de Jerônimo entra na sala, a porta que dava para a antecâmara se abre estrepitosamente. (HOFFMANN, [19..], p. 104)

A partir da última frase, o personagem dá início ao relato das fantasmagorias testemunhadas naquele salão do castelo em que lia a obra schilleriana. A típica autossugestão romântica, em grande parte, haurida inicialmente das obras de J. J. Rousseau (1712-1778) e suas experiências ligadas ao devaneio, é sugerida neste momento específico pelo ato de leitura do protagonista, no caso, de um livro de horror em meio à atmosfera sombria do castelo, sinergia entre a imaginação e o universo imanente muito cara ao romantismo alemão. O medo não é mais trabalhado como simples motivo episódico, a exemplo do que ocorre no gótico walpoliano, mas autonomeado de forma metalinguística, também a gerar o mise em abyme (um leitor de histórias mal assombradas também é o personagem de outra a que lemos, estando ou não [nós, os leitores empíricos] em espaços desencadeadores de horror...), um efeito literário que atesta a verticalização da estética inaugurada por Walpole, a qual ele próprio já havia entrevisto. O excerto iconiza as características da novela noturna alemã (Nachtstück), que, se também faz uso de todos os cronotopos ligados ao gótico setecentista, por outro lado, trabalhará o horror numa dimensão mais psicológica e subjetiva. Segundo Volobuef (1999, pp. 67-68), Para chegar a tanto [a passagem do gótico tradicional à Nachtstücke], o modo por que era considerada a noite e outros motivos congêneres (escuridão, sombras, paisagem à luz da Lua etc.) foi sofrendo alterações [...]. A noite, portanto, foi transferida para dentro do indivíduo. Tal circunstância influiu diretamente na peça noturna romântica cuja propensão

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foi a de abandonar o tipo de motivo explorado pelo romance gótico (castelos mal-assombrados, fantasmas vagando por corredores escuros, escadas sombrias, masmorras tenebrosas etc.) – os quais localizavam a origem do horror no ambiente fora do indivíduo –, para explorar o abismo soturno que o homem traz dentro de si, desfraldando todo um veio de motivos que concentraram o terror dentro do sujeito (tais como medo, solidão, loucura).

Acrescente-se a estas últimas características a imaginação desbordante de certos personagens românticos, a exemplo de Theodor, e teremos a experiência da fantasmagoria noturna mais típica da Nachtstück. De fato, muitas experiências sobrenaturais são atestadas pelo protagonista, ao tempo que revela seu temperamento poético: “minha exaltação [dava] especial ímpeto às minhas palavras, talvez porque estivesse disposta [a baronesa Serafina] a me ouvir, ela se embevecia cada vez mais com as histórias fantásticas que eu inventava” (HOFFMANN, [19..], p. 109). Ora, com tais declarações, o leitor começa a desconfiar da referencialidade ligada ao sobrenatural na diegese; contudo, há cenas em que outros personagens também o experienciam, como aquela em que o tio de Theodor chega a esconjurar um suposto fantasma, gerando-se, muitas vezes, a ambiguidade fantástica. Ao término da narrativa, este último irá explicar os fatos históricos deflagradores do sobrenatural no castelo de Roderich numa analepse, mas não teremos ainda o “sobrenatural explicado” típico do gênero Estranho que Todorov (2007) associa ao gótico setecentista (com a ulterior desmistificação dos fantasmas e fenômenos a eles ligados), devido ao fato de que Hoffmann continua possibilitando a presença do sobrenatural e do horror. O efeito estético do medo permanece ao fim da diegese, indo além do subgênero Fantástico-maravilhoso também asseverado por Torodov, caracte-

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rística da típica literatura de horror. Assim, os potenciais de estranhamento do texto são garantidos por um discurso elíptico e polissêmico que atesta a maioridade estética do gótico, que prescindirá das marcações temporais (as datas de O morgadio são construídas com reticências – [17...], e os fatos ocorridos não são possibilitados pela ontologia miraculosa medieval, mas aparentemente a de todas as épocas, pela via da imaginação), da ânsia mimética e dos ideais conservadores ainda existentes na época de Walpole. É o indivíduo poético em contraste com a frieza e a indiferença daqueles que perdem o contato com as forças criativas da natureza, que O morgadio busca evidenciar em suas entrelinhas, pondo em suspensão os sistemas hierárquicos e a própria noção de real instituído, além dos procedimentos estritamente miméticos e verossimilhantes cultivados pelo romance histórico romântico tradicional. Essa liberdade criativa e o franco incremento imaginativo, que catapultam o surgimento de uma nova verossimilhança interna ou diegética e prescindem dos efeitos de real ansiados pelo romance histórico, não foram bem compreendidos por alguns teóricos da época. São famosas as críticas que o romancista histórico Walter Scott (1771-1832) tece em relação às liberdades hoffmannianas – estendidas a toda a literatura fantástica –, especialmente quando o autor de O vaso de ouro se aproxima deste gênero caro ao crítico (o romance histórico), a exemplo do que ocorre em O morgadio. Scott inicia a crítica intitulada Sobre Hoffmann e as composições fantásticas com as seguintes palavras, que dão o tom geral de seu conteúdo: O gosto dos alemães pelo misterioso levou-os a inventar um gênero de composição que talvez só pudesse existir no seu país e na sua língua. É aquele a que se poderia chamar o gênero FANTÁSTICO [sic], em que a imaginação se abandona a toda a irregularidade dos seus caprichos e a todas

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as combinações das cenas mais estranhas e mais burlescas. (SCOTT, 1998, p. XXI)

Em seguida, após se mostrar desgostoso pelo fato de Hoffmann não ter escrito uma obra realista e histórica a respeito das batalhas que havia presenciado na cidade de Dresden contra os exércitos napoleônicos, prossegue em sua crítica biografista, ressaltando o personagem do velho juiz de O morgadio, tio de Theodor, como exemplo de fidelidade realista: Há, principalmente, no conto intitulado O Morgadio um personagem que é talvez peculiar à Alemanha e que forma um contraste notável com os indivíduos da mesma classe tal como estão representados nos romances e tal como, talvez, existem na realidade nos outros países. O justiceiro B... exerce, na família do barão Roderic de R..., nobre proprietário de vastos domínios na Curlândia, quase o mesmo ofício que o famoso bailio Macwhecble exercia nas terras do barão de Bradwardine (se me for permitido citar Waverley) [...]. Tem as manias da velhice e um pouco de seu mau humor satírico; mas suas qualidades morais fazem dele, como diz com razão La Motte-Fouqué, um herói dos velhos tempos, que tomou o roupão e os chinelos de um velho procurador dos nossos dias. Seu mérito natural, sua independência, sua coragem são antes realçadas que empanadas por sua educação e sua profissão, que supõe um conhecimento exato do gênero humano. (SCOTT, 1998, pp. XXII-XXIII)

Por outro lado – e de maneira inversa – o elogio a este personagem que mais se aproximaria da vida, logo se transmutará numa séria crítica à obra como um todo, no momento em que o autor escocês analisa outras características e personagens do conto hoffmanniano, sempre comparado às suas próprias produções de romance histórico e gótico tradicionais: 261


Os dois Teodoros: mutações do gótico de Horace Walpole e E.T.A. Hoffmann

O conto que acabamos de citar mostra a imaginação desregrada de Hoffmann, mas prova também que ele possui um talento que deveria contê-la e modificá-la. Infelizmente, seu gosto e seu temperamento o arrastam com demasiada força para o grotesco e o fantástico para lhe permitir retornar com freqüência, em suas composições, ao gênero mais razoável no qual ele teria sido facilmente bem-sucedido [...]. Às vezes podemos deter nosso olhar com prazer num arabesco executado por um artista dotado de rica imaginação; mas é penoso ver o gênio se exaurir em objetos que o gosto reprova. Não gostaríamos de lhe permitir uma excursão nessas regiões fantásticas a não ser sob a condição de que ele trouxesse de lá idéias doces e agradáveis. Não poderíamos ter a mesma tolerância para com esses caprichos que não só nos espantam por sua extravagância como nos revoltam por seu horror. (SCOTT, 1998, pp. XXIII-XXIV) É interessante observar como o julgamento do tempo seguiu na contramão da imposição de mimetismo e verossimilhança por parte da crítica de Walter Scott às obras de Hoffmann. Sabe-se hoje que a “extravagância”, o “horror”, as “excursões” às “regiões fantásticas” se impuseram justamente como os grandes impulsos criativos renovadores do Romantismo. Além disso, cumpre lembrar que críticos posteriores, a exemplo do György Lukács de O romance histórico, revelaram como o romance histórico romântico – especialmente o scottiano – antecipam a estética realista, e se dissociam, em várias perspectivas, da própria série romântica. Sem demérito às obras ficcionais do romancista escocês, apenas não mais se compactuou de sua visão crítica que afirma a negatividade daquela “índole poética e metafísica levada ao excesso [...] sujeita à influência da imaginação” (SCOTT, 1998, p. XXV) que constitui, metalinguística e intertextualmente, a caracterização do novo Theodor o qual os novos tempos demandavam.

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Referências HOFFMANN, E. T. A. O morgadio. In: HOFFMANN, E. T. A. O castelo malassombrado. Trad. Ary Quintella. São Paulo: Círculo do livro, [19..]. (pp. 95-150) LAMBERT, José. Noticeset notes. In: HOFFMANN, E. T. A. Contes fantastiques I. Trad. Loève-Veimars. Paris: Garnier-Flammarion, 1979. (pp. 301-314) LUKÁCS, György. O romance histórico. Trad. Rubens Enderle. São Paulo: Boitempo Editorial, 2011. SCOTT, Walter. Sobre Hoffmann e as composições fantásticas. In: HOFFMANN, E. T. A. O pequeno Zacarias. Trad. Marion Fleischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998. (pp. XI-XXXI) TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Trad. Maria Clara Correa Castello. 1ª reimp. da 3ª ed. de 2004. São Paulo: Perspectiva, 2007. VOLOBUEF, Karin. Frestas e arestas: a prosa de ficção do Romantismo na Alemanha e no Brasil. São Paulo: UNESP, 1999. WALPOLE, Horace. O castelo de Otranto. Trad. Manuel João Gomes. Lisboa: Editorial Estampa, 1978.

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“Gênero pode ser aplicado a qualquer tipo de artefato ou qualquer tipo de declaração que possa ser visto como um enunciado significativo, portanto, não está imediatamente ligado a um texto.” — Charles Bazerman. Série Bate-Papo Acadêmico. v.1 Gêneros Textuais. Recife, 2011. Disponível para acesso em: http://www.nigufpe.com.br/serie-academica/volumes

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11 Sagas fantásticas e o novo perfil de leitor Fabiane Verardi Burl amaque (UPF) Pedro Afonso Barth (UPF)

Sagas fantásticas na contemporaneidade Nos últimos tempos, o uso da internet está transformando a maneira com que os jovens se relacionam com a linguagem e com suas leituras. Os leitores passaram a ser ativos navegantes de diversas mídias e linguagens e, por isso, não se contentam em apenas ler passivamente. Esse novo leitor precisa vivenciar suas leituras, escrever sobre elas, discutir nas redes sociais, adentrar inteiramente nesse universo. Tais mudanças fazem com que as sagas sejam, atualmente, extremamente populares entre os jovens leitores. Harry Potter, Guerra dos tronos (Crônicas de Gelo e Fogo), Jogos Vorazes, entre outros exemplos possíveis, são obras que estão sendo consumidas fervorosamente, vendendo milhões de exemplares. Neste trabalho, temos o objetivo de refletir sobre as razões do sucesso das sagas entre os jovens leitores. As sagas, como fenômeno literário, não são ainda suficientemente estudadas pela academia. Tem-se a necessidade de se refletir sobre as configurações de uma saga e a forma com que leitores e espectadores – e o mercado capitalista de ficção – promovem e disseminam sua popularidade. Sagas são constituídas de uma interessan265


Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

te hibridação – os mitos e oralidades da ancestralidade humana são reconfigurados com os valores da modernidade, ao mesmo tempo em que a mesma história é contada por diferentes sistemas intersemióticos. Refletir sobre esses elementos, elencá-los e analisá-los é vital para a compreensão do fenômeno. Tal análise é imprescindível, pois as sagas são consumidas por milhões de leitores, e torna-se mais produtivo incorporar um olhar crítico sobre essas obras e refletir sobre seu potencial literário do que apenas etiquetar como literatura de baixa qualidade e ignorar suas qualidades. Os estudiosos espanhóis Eloy Martos Núñes e Alberto Martos García (2013) acrescentam ao substantivo saga o adjetivo fantástica para explicar o fenômeno. Assim, sagas fantásticas, segundo esses autores, se converteram em um fenômeno que arrasta um público muito heterogêneo e variado (não somente jovens) e cujo êxito transbordou os conceitos de autor, gênero e livro, filme ou revista em quadrinhos, para situar-se em outras coordenadas mais amplas e, além do literário, a multiplicação dessas ficções em formatos tão diferentes como a revista em quadrinhos, a televisão, o cinema ou os jogos de estratégia (MARTOS NÚÑEZ; MARTOS GARCÍA, 2013). O termo saga é de origem norueguesa e seu significado está atrelado ao verbo segja que significa “contar”. Originalmente, saga identificava um gênero oral específico – composições épicas, associadas às culturas nórdicas e germânicas, que narravam façanhas e feitos memoráveis. Atualmente, saga teve o seu sentido ampliado e passou a ser também referência a narrações seriais fantásticas com conteúdos imaginários (GARCÍA, 2009). Apesar de manter um forte vínculo com mitologias e histórias vindas da oralidade de diferentes povos, as sagas atualmente são narrativas híbridas, contínuas. García (2009, p. 26), em sua obra Introducción al mundo de las sagas, as caracteriza como sendo “um bom exemplo de narrativa pós-moder-

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na, que não se limita ao esquema do relato de espada e bruxaria ou do mito do herói, mas excede esses moldes e elabora utopias e distopias, heróis e anti-heróis e, a nível de linguagem, analógico e digital”. Sendo assim, uma saga não se resume a um livro ou, nem mesmo, não se restringe a uma forma única de linguagem. A saga configura um conjunto transficcional: uma história ou um universo coabitam em diversos suportes e linguagens. As sagas somente se configuram um fenômeno por cinco importantes fatores: 1) por promoverem a construção de universo autoconsciente; 2) por serem narrativas transmidiáticas; 3) por se alimentarem da mescla dos mitos, do folclore, da oralidade com tendências da fantasia moderna; 4) pelos incentivos e fomentos do capitalismo de ficção; e 5) pela existência de um novo perfil de leitor – um leitor ativo e multimedial.

Sagas fantásticas e a construção de um universo A principal e essencial característica de uma saga é a criação de uma nova realidade: um mundo completo e autoconsciente é forjado. García (2009) utiliza o conceito de paracosmos para explicar essa criação de um universo alternativo que é dotado de regras próprias. Segundo Glória García Rivera (2004), paracosmos é um conceito originário da psicologia e faz referência a um tipo de fantasia infantil que se caracteriza pela criação de um mundo paralelo pela criança, um mundo próprio em que se pode brincar, jogar, desenhar, fabular, um mundo paralelo a sua vida real. A autora salienta que a psicologia clássica ignorava e menosprezava a imaginação em detrimento da valorização do mundo real. A teórica ainda destaca que tal panorama foi transformado a partir dos estudos de Cohen e Mackeith (1993) – estudiosos que documentaram narrações de crianças que criavam

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Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

em suas brincadeiras, países ou ilhas inventadas, amigos invisíveis e aventuras de todo tipo. A principal preocupação do estudo era investigar como esses mitos pessoais influenciaram a vida da pessoa depois de adulta. Muito antes desses estudos, Sigmund Freud (1908, p. 135) já questionava se “acaso não poderíamos dizer que, ao brincar, toda criança se comporta como um escritor criativo, pois cria um mundo próprio, ou melhor, reajusta os elementos de seu mundo de uma forma que lhe agrade?”. Rivera (2004) aponta que as conclusões dos estudos de Cohen e MacKeith (1993) provaram que as crianças habituadas a imaginar desenvolvem melhores habilidades sociais e cognitivas, possuem um maior poder de concentração e, inclusive, são menos agressivas e mais diplomáticas. Essas fantasias infantis, saudáveis e necessárias foram batizadas, então, como paracosmos. Esse termo foi incorporado por estudiosos como Garcia (2009) e Rivera (2013) para explicar os mundos criados em sagas pelos autores de ficção fantástica. Assim, para os estudos literários, paracosmos seria a criação de um universo inventado, representado em formas icônicas e verbais. Criar um paracosmos seria “colocar um mundo em pé” (RIVERA, 2004, p. 65). O paracosmos é construído pelo e no imaginário individual – do(s) autor(es) e dos leitores –, o imaginário literário e o folclórico (RIVERA, 2013). Sigmund Freud nunca falou em paracosmos. Mas em um dos seus textos – Escritores Criativos e Devaneios – defende a tese de que o “escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca. Cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério” (FREUD, 1908, p.135). Dessa maneira, podemos assinalar que realmente há uma correlação entre os mundos criados por crianças e os criados por adultos. O escritor criativo – autor original de uma saga fantástica, sobretudo – cria um mundo de fantasia que ele leva muito a sério,

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porém há uma relação implícita com o ato de brincar de ser Deus, de criar uma realidade, um mundo possível. Para fazer com que o leitor compreenda esse mundo inventado, é preciso forjar meios de incorporação dos elementos do paracosmos. Por isso, a grande maioria das sagas necessita de paratextos, como mapas cartográficos, linha cronológica de acontecimentos, árvores genealógicas, brasões e símbolos heráldicos. Essa característica é denominada por Rivera (2013, p. 554) de “iconotextualidade”. Sagas fantásticas frequentemente precisam utilizar a linguagem cartográfica como apoio para estruturar as histórias. Assim, mapas costumam servir de paratextos em livros que abordam paracosmos e eles ocupam uma posição de destaque no inicio e/ou no fim dos livros. Segundo Rivera (2004), os mapas têm a importante função de guiar o leitor no mundo criado. Como exemplo do uso de paratextos para a construção do universo de uma saga, trazemos o livro A Guerra dos Tronos, de George R.R. Martin. A edição do livro traz recursos visuais e apêndices que fazem com o leitor tenha uma maior apropriação da trama. No início e no fim do livro, há mapas dos continentes em que a história é retratada – Westeros e Essos – com a localização exata de cada um dos sete reinos, além de um rico e ilustrado apêndice que é constituído de uma listagem dos membros das sete grandes casas, famílias nobres de personagens que são fundamentais para a compreensão do enredo, além dos brasões e lemas de cada família.

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Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

Figura 1. Mapa do Norte de Westeros

Fonte: MARTIN, 2011, p.2

O paracosmos de uma saga não se limita a um livro, mas se estende para continuações e, mais, ultrapassa a linguagem escrita e abarca diferentes linguagens como as dos filmes, dos seriados, dos mapas, dos games, entre outras. Assim, um livro pode dar origem a um universo que será expandido em outras plataformas e, muitas vezes, por autores diferentes. Porém, toda saga terá o mesmo paracosmos, ou seja, um espaço comum – geografia, um tempo comum – cronologia e/ou um repertório de personagens mais ou menos pré-desenhados. Um dado importante sobre a criação de um paracosmos é que, por mais elementos mágicos, míticos ou fantásticos que 270


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possam constituí-lo, não se pode afirmar que tais mundos sejam completamente diferentes da realidade do autor ou do leitor. Isso porque, segundo Garcia (2009), não se pode fabular sem ter alguma relação com a realidade comum. Os leitores, quando se identificam com uma saga, têm a necessidade de participar da construção do universo. Por isso, é comum que sagas possibilitem a criação de fanfictions, que, segundo Vargas (2005), é uma história escrita por um fã de uma obra, e envolve os cenários, personagens e tramas previamente desenvolvidos no original. Nessas histórias, não existe nenhuma intenção de quebra de direitos autorais ou a busca de lucro financeiro, pois os autores de fanfictions dedicam tempo e energia para a escrita de histórias por razões afetivas.

Exemplo de um site de Fanfics de GOT

Sagas fantásticas como narrativas transmidiáticas Martos Núñez e Martos García (2013) destacam que as sagas são narrativas que tem um caráter transliteral, ou seja, não se resumem a obras literárias, sendo também adaptadas para outras linguagens, 271


Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

como cinema, televisão, quadrinhos. Ou seja, são narrativas transmidiáticas. E essa característica explica sua popularidade, pois o leitor que acompanha uma série de televisão e descobre, posteriormente, que a série foi inspirada em uma série de livros, provavelmente se sentirá tentado a conhecer a obra literária. E o inverso também é possível. Tal fenômeno foi observado recentemente com a série Guerra dos tronos que aumentou exponencialmente a leitura e a procura da obra literária que a originou, a série de livros As crônicas de Gelo e Fogo. Martos Núñez e Martos García (2013) assinalam, ainda, que no inicio do século XX, com o desenvolvimento do cinema, livros passaram a ser adaptados para as telas, como, por exemplo, obras clássicas como Madame Bovary, de Gustave Flaubert, ou obras que passaram a ser mais conhecidas depois de adaptadas no cinema como Drácula, de Bram Stocker. Nas últimas décadas, com o advento das tecnologias, observamos outras adaptações e translados: filmes viram videogames, quadrinhos viram séries de televisão, séries de televisão transformam-se em livros. A esse fenômeno, os autores espanhóis denominam de transmedialidade e definem que tal conceito “acarreta a pertença a vários meios ou suportes, de modo que uma mesma história ou narrativa seja contada através de diferentes plataformas comunicativas”. (NÚÑES; MARTOS GARCÍA, 2013, p. 70). Os autores conceituam transmidialidade a partir dos estudos de Henry Jenkins (2009) que versam sobre narrativas transmidiáticas. Para Jenkins (2009, p. 47), narrativa transmidiática é uma estética recente que surgiu em resposta à convergência das mídias e seria “uma estética que faz novas exigências aos consumidores e depende da participação ativa de comunidades de conhecimento”. Assim, a narrativa transmidiática exigiria dos seus consumidores o papel de caçadores e coletores de narrativas, perseguindo pedaços da história pelos diferentes canais, comparando e discutindo suas observações e apreensões 272


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com as de outros fãs, em grupos de discussão online, e colaborando para assegurar que todos os que investiram tempo e energia tenham uma experiência de entretenimento mais rica. Na próxima seção, voltaremos a falar dessa postura ativa e caçadora que os leitores precisam ter para dominar a leitura de narrativas transmidiáticas. Por ora, cabe destacar que o formato de uma saga fantástica muito se beneficia de tais características apontadas. Como já referido, as sagas são relatos híbridos e fronteiriços, tanto na forma como no conteúdo. Martos Garcia (2009, p. 107) destaca que a saga moderna, além de formar-se por meio da ficção especulativa e de atualizar arquétipos épico-heroicos, pode ser transmitida em qualquer meio, qualquer linguagem ou formato. Os leitores modernos se limitam cada vez menos à leitura linear ou “isolada” de um texto, buscando associá-la com a de outros textos de mídias diversas (musicais, cinematográficos, literários etc.). Isso quer dizer que as sagas são histórias que possuem uma predisposição para serem jogadas, representadas, visualizadas, recontadas, exploradas, dramatizadas, reproduzidas e até executadas. Por exemplo, a série de livros As crônicas de Gelo e Fogo, além de inspirar a criação da série de televisão, originou vários jogos de videogames como o A Game of Thrones d20 e A song of Ice and Fire Roleplaying.

A Game of Thrones d20 273


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Sagas fantásticas e a hibridação de mitos e elementos maravilhosos Uma das razões que atrai leitores para as sagas é o fato de que, de alguma maneira, as sagas reelaboram estruturas míticas e elementos fantásticos. Ou seja, as narrativas de uma saga utilizam estruturas míticas reconhecíveis pelo leitor e as apresentam de uma maneira inovadora. Ao mesmo tempo em que as sagas reproduzem as questões contemporâneas, elas incorporam elementos do folclore e da oralidade. Assim, Harry Potter utiliza todo o imaginário ocidental sobre magia e bruxaria, Crônicas de Gelo e Fogo mobilizam dragões, magia, mortos-vivos. Os elementos mágicos e fantásticos provocam fascínio nos jovens leitores e, dessa maneira, o mito é um referente contínuo das sagas, que são construídas tendo como referências fontes míticas prévias que funcionam como um palimpsesto. Sagas fantásticas, dessa maneira, reciclam e combinam muitos materiais, desmantelando códigos e valores obsoletos e atribuindo valor a outros. Por exemplo, a presença da mulher como uma heroína ativa (MARTOS GARCIA, 2009). A gênese dos mundos criados em uma saga é um signo, sem dúvida, da pós-modernidade, com sua tendência à reciclagem e à hibridação de fontes. Um exemplo é a trajetória da personagem Daenerys Targaryen, no livro Guerra dos Tronos, que, apesar de reproduzir em partes a jornada do herói de Joseph Campbell (2007), é uma mulher, marginalizada em uma sociedade patriarcal, que precisa vencer os desafios impostos ao seu gênero. Ou seja, há uma estrutura mítica reconhecível – a jornada do herói – hibridizada com um novo elemento – a discussão sobre o papel da mulher na sociedade. Segundo Martos Núñez e Martos García (2013, p. 91), “a pós-modernidade supõe hibridação, reciclagem, e isso supõe, também, reescrever os contos clássicos, os mitos, os super-heróis e seus mundos”. 274


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Sagas fantásticas: o leitor ativo e multimidial e o capitalismo de ficção Dois fatores que são determinantes para a consolidação das sagas fantásticas são a existência de uma indústria de ficção fantástica muito fortalecida e um mercado consumidor ávido – mercado constituído por leitores vorazes. Elencamos os dois fatores na mesma seção, pois ambos estão relacionados: o capitalismo de ficção apenas vende sagas fantásticas porque existe um leitor ativo que as consome; porém, o leitor apenas consome sagas, pois o mercado as oferece. Primeiramente, é preciso destacar que o leitor de uma saga possui uma postura ativa frente ao que lê. Ou seja, vive e incorpora em sua vida os elementos do paracosmos com que se identifica. Não apenas lê os livros e assiste a filmes ou séries, como produz, escreve e discute sobre o universo do qual é fã. Participa, por exemplo, de redes sociais de leitores, como o Skoob, e de canais de vídeos sobre resenhas e comentários de livros, conhecidos como booktubers, ou até mesmo cria pequenos trailers sobre enredos de obras, os Booktrailers. Sendo assim, é natural que um leitor dos livros de um paracosmos sinta-se tentado a acompanhar séries televisivas, a produzir fanfictions ou o contrário: é possível que um telespectador se sinta na obrigação de ler os livros, de consumir os quadrinhos. É o capitalismo de ficção, segundo Martos García (2011, p. 17), o grande fomentador e responsável pelo amplo oferecimento de sagas e obras seriadas no mercado. O mercado editorial descobriu e apostou no poder do entretenimento “não somente como anestesiante, mas também como autêntica máquina de produzir identidades e de criar vínculos entre a ideologia dominante e os setores mais desfavorecidos”. No intuito de compreender a popularidade das sagas, é preciso levar em conta a existência de leitores massificados, ou seja, leitores

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Sagas Fantásticas e o Novo Perfil de Leitor

que seguem a popularidade de bestsellers, de livros mais vendidos e não os leem de forma crítica. Entretanto, Martos García (2011) alerta que é preciso perceber o surgimento de um leitor mais ativo, muito mais diversificado em seus gostos e que, além disso, não tem uma visão compartimentada das artes. O leitor pós-moderno se situa um pouco na biblioteca de Babel de Borges: em um mundo fragmentado deve recompor-se e constituir-se. Diferente do leitor tradicional, que se centrava num autor e numa obra e realizava uma leitura intensiva, o leitor pós-moderno segue consumindo livros e filmes concretos, mas tem necessidade de se aprofundar e, por isso, a necessidade de ligar-se a uma série, a um ciclo ou a uma coleção mais ampla e, assim, realizar uma leitura extensiva e multimidial. Dessa maneira, esse novo leitor, chamado por Lúcia Santaella de “leitor imersivo”, transita com muita facilidade por diferentes linguagens e sistemas intersemióticos e, assim, pode transitar da leitura de um livro à leitura de um filme ou, então, pode jogar no videogame algum jogo estratégico e, em todos eles, de alguma forma, pode haver mostras de sua saga preferida. (NÚÑEZ, 2007). Por essa razão, não podemos levianamente afirmar que é somente o mercado que torna as sagas fantásticas populares, pois se não houvesse um leitor que acolhesse tal gênero, não haveria a ênfase mercadológica. Entretanto, cabe destacar que “esse auge da fantasia encobre um comportamento mitômano próprio dos jovens, [...] teve muito mais a ver com o desenvolvimento do cinema e da televisão, os autênticos impulsores das modas juvenis audiovisuais” (MARTOS GARCIA, 2011, p. 15). Os jovens parecem ter a necessidade de serem fãs, e a ficção de fantasia permite um engajamento. Nesse sentido, Martos García (2011, p. 25) acrescenta ainda que escolher uma saga não é somente um ato mercantil, como queria o mercado; é também uma adesão e, quiçá, uma rup-

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tura, pois o fã, o blogueiro, o jogador de RPG, sempre aspiram a personalizar e completar esse mundo de ficção com outros novos elementos. O que é importante é que através das sagas o jovem apreende, de forma explícita ou implícita, universos alternativos.

A escolha de uma saga nunca é aleatória; o leitor apenas torna-se fã do ciclo que lhe possibilita uma projeção. O leitor de uma saga é um verdadeiro consumidor. Muitas vezes, alguns leitores sentem a necessidade de completar o universo da saga. Por isso, a necessidade de escrever, jogar, vivenciar a saga e, assim, criam fanfictions, participam de fóruns, de grupos de discussão. Às vezes, o leitor/ consumidor cria produtos inspirados na obra/mundo que admira e, assim, as fronteiras entre a produção e o consumo ficam embaralhadas. Porém, não podemos afirmar que esse comportamento é novo, pelo contrário; observa-se a existência de leitores/fãs desde o surgimento de fanzines, distribuídos nos corredores de escolas e universidades. A diferença é que vivemos um momento em que a internet possibilita que mais pessoas tenham acesso ao papel de produtor, seja ficcionalizando, criando enredos baseados em seus personagens favoritos (fanfictions), seja colaborando com enciclopédias virtuais sobre o universo que admira (Wikipedia). Esse fenômeno é definido por Jenkins (2009 p. 8) como Cultura de Convergência – “onde as velhas e as novas mídias colidem, onde mídia corporativa e mídia alternativa se cruzam, onde o poder do produtor de mídia e o poder do consumidor interagem de maneiras imprevisíveis”. A convergência para Jenkins (2009) não é apenas midiática, mas também cultural. Os indivíduos estão mudando comportamentos e posturas frente aos produtos que consomem. Os limites que separavam o produtor do consumidor (assim como o autor do leitor) são tênues e imprecisos. Jenkins (2009, p. 28) chega a afirmar que “ao

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invés de falar de produtores e consumidores midiáticos em papéis separados, agora podemos vê-los como participantes que interagem uns com os outros de acordo com novas regras, que nenhum de nós entende por completo”. Os consumidores manipulam e usam as tecnologias disponíveis para a interação com outros consumidores e, assim, há um fluxo livre de ideias, discussões e conteúdos. Em relação a sagas fantásticas e a sua recepção, podemos ressaltar que a cultura de convergência possibilitou a criação de espaços virtuais de discussão sobre os mundos criados adorados por fãs, leitores e telespectadores. Tais espaços são formados por indivíduos que discutem, dialogam e agem de maneira cooperativa e, dessa forma, são capazes de entender o paracosmos de uma saga de uma maneira que não fariam de forma individual. Jenkins (2009) aponta que a experiência de compartilhar e comparar informações, opiniões e recursos sobre uma narrativa midiática pode garantir uma maior profundidade de envolvimento dos espectadores/leitores já que a convergência dos meios de comunicação impacta o modo como esses meios são consumidos. Jenkins (2009) aponta que a convergência permite que adolescentes façam múltiplas tarefas como, ao mesmo tempo, fazer a lição de casa, ouvir músicas, fazer downloads, responder a e-mails e utilizar redes sociais e aplicativos de celular – tudo de forma concomitante. Da mesma forma, fãs “de um popular seriado de televisão podem capturar amostras de diálogos no vídeo, resumir episódios, discutir sobre roteiros, criar fanfiction, gravar suas próprias trilhas sonoras, fazer seus próprios filmes – e distribuir tudo isso ao mundo inteiro pela internet”. (JENKINS, 2009, p. 37). A convergência envolve uma transformação tanto na forma de produzir quanto na forma de consumir os meios de comunicação. Entretanto, não podemos ser ingênuos ao ponto de ignorar que o fenômeno das sagas possui relações com o fomento do que Vicente

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Verdú (2003) denomina como capitalismo de ficção. O professor espanhol destaca que observamos nas últimas décadas uma evolução do capitalismo: primeiro o capitalismo atingia apenas a produção e consumo, e agora o capitalismo abarca a ficção. O capitalismo de ficção “descobriu o poder do entretenimento não somente como anestesiante, mas também como autêntica máquina de produzir identidades e de criar vínculos entre a ideologia dominante e os setores mais desfavorecidos”. (MARTOS GARCÍA, 2011, p.17). Em busca de lucro desenfreado, criou-se um mercado de ficção, que alimenta e precisa de fãs, que irão consumir tudo o que se produz sobre um universo. O delicado neste panorama, segundo Martos García (2011, p.17), é quando essa indústria tende a “chegar a construir mundos alternativos, nada críticos com a realidade que impera, ou seja, quando a imaginação e a fantasia não ‘revertem’ sobre a realidade próxima, mas se distanciam dela e se convertem numa indústria de evasão que adormece, dá benefícios e não incomoda ninguém”. Da mesma maneira que existem sagas fantásticas de qualidade, que dialogam com a realidade dos seus leitores, existem obras com méritos estéticos menos evidentes e que podem, inclusive, conduzir a uma leitura preguiçosa e superficial. Podemos relacionar, de certa maneira, essas reflexões sobre o capitalismo de ficção e o consumismo desenfreado e sem criticidade com o pensamento de Zygmunt Bauman, um dos mais reconhecidos estudiosos da pós-modernidade. Bauman (2001) aponta que as pessoas atualmente são acometidas por uma espécie de agonia da insegurança, ou seja, possuem uma extrema preocupação em buscar a perfeição, a competência e, assim, têm medo de errar. Para lidar com essas questões, acabam buscando uma segurança em objetos materiais e assim há uma ânsia consumista generalizada em nossa sociedade. “É a busca incessante de deter ou tornar mais lento o

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fluxo, de solidificar o fluido, de dar forma ao disforme.” (BAUMAN, 2001, p. 97). Assim, vivemos em um mundo em que o consumo existe para o prazer imediato, não há o hábito de adiar o prazer. Assim, observamos uma incompletude de experiências que levam a um encurtamento do prazer. Parece que sempre há uma nova necessidade, sempre é necessário adquirir algo novo para a satisfação pessoal (BAUMAN, 2001). Tal tendência ao consumo desenfreado, de certa maneira, nos ajuda a entender as razões da atual ascensão de produtos literários que possibilitem mais de uma forma de consumo: através da leitura de uma saga, é possível comprar a séries de livros, obras que descrevem o paracosmos, quadrinhos, revistas com fotos de atores vestidos dos personagens, entre outros.

Sagas fantásticas, os jovens leitores e a escola Nas seções anteriores, elencamos os fatores que tornam as sagas fantásticas atraentes e irresistíveis para jovens leitores. Porém, acreditamos que não basta entender o porquê dessas narrativas serem atrativas e, sim, utilizá-las como meio para dialogar com os jovens leitores. Temos uma posição convergente com o que diz Núñez (2007, p. 62), segundo o qual “sem a capacidade crítica e de análise, sem o olhar criador e a consideração de que o que conta também é transmissão da experiência (Benjamin), as sagas seguirão aparecendo como uma mercadoria banal”. É necessário retirar essa qualificação de banalidade das sagas em geral, pois elas são lidas e reverenciadas por muitos leitores, pois possuem qualidades que merecem ser reconhecidas. É simplista demais condenar o mercado, que é acusado de causar dano à geração de leitores. É necessário que a sociedade em seu conjunto ajude a “formar cidadãos (alunos, leitores…), livres-pensadores e, inclusive, nesse caso, dissidentes, que cavem e “fucem” além da casca de

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tanta artimanha (midiática) incorporada”. (NÚÑEZ, 2007, p.63). A incorporação da tecnologia e de textos que não são tidos como canônicos na escola ainda é assunto que causa polêmica. Talvez, a maior insegurança tanto de pais quanto de educadores seja a possível substituição ou o abandono da prática leitora de livros considerados clássicos e sacralizados em detrimento de obras consideradas bestsellers, ou de qualidade estética duvidosa. As sagas fantásticas, por seu caráter inovador e transficcional, também são vítimas dessa visão. O que precisamos levar em conta no momento de refletir sobre a relação de sagas e os leitores jovens é que, atualmente, são várias as mídias de massa que desempenham o papel de mediadores, colocando-se entre o grande público e a criação artística, levando a obra àqueles que se encontram dispostos a recebê-la. Isso ocorre, por exemplo, quando um texto literário é adaptado para o cinema, para a televisão, para o teatro ou mesmo para o rádio, ficando, assim, ao alcance de todos. É através dos veículos de comunicação, também, que o leitor toma conhecimento do que lhe é disponibilizado pela indústria cultural. Acionando um sistema que envolve imprensa especializada – que inclui, obviamente, a crítica – e ações de marketing estrategicamente planejadas, o segmento editorial faz uso de todo o arsenal de recursos a seu dispor para promover a divulgação de seus produtos. Ronald Barker e Robert Escarpit (1975) salientam a relevância dos meios de comunicação nesse contexto, alertando para a necessidade de uma “harmonização geral” de modo que esses veículos atuem, efetivamente, como aliados da leitura. Os autores afirmam, assim, que, mesmo na esfera do editor, o livro precisa ser pensado e concebido em função das chamadas utilizações marginais: repercussões na imprensa e no rádio, adaptações para o cinema e para a televisão. Ele precisa agora ser encarado não como acontecimento puramente literário, mas em um contexto geral. Isso não quer dizer que qualquer livro se

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destina a criar um impacto, mas é lícito esperar de qualquer livro que ele se insira em um plano de conjunto e que, no nível da distribuição, não trave uma batalha solitária para capturar um público que tem mil solicitações desviando-o da leitura (BARKER; ESCARPIT, 1975, p. 147). Esse leitor, hoje invariavelmente bem-informado e ciente de sua importância no cenário atual, interage, discute e reivindica, ratificando sua condição de consumidor perante a indústria. Com frequência, o leitor detentor do conhecimento, que pode ser considerado, até certo ponto, um especialista – ou “culto”, como sugerem Barker e Escarpit, pelo acesso privilegiado à informação –, acaba posicionando-se, a exemplo do crítico literário, como mediador entre o que a indústria cultural disponibiliza para consumo e o leitor-consumidor prospectivo. Da mesma forma, integrantes do círculo social desse leitor, a quem a informação ainda não foi disponibilizada – família, amigos, colegas de escola ou profissão, entre outros –, desempenham o mesmo papel, muitas vezes influenciando diretamente suas opções de leitura e/ou compra. Sob a perspectiva das editoras, contudo, o maior desafio reside em levar um fato individual à vida coletiva. Em meio a esse processo, o editor também atua como mediador, conciliando interesses do autor e do leitor. Caso o projeto seja bem-sucedido, o editor pode solicitar ao escritor que continue a produzir conforme os parâmetros da fórmula testada e aprovada pelo leitor. No caso de uma saga, os editores podem incentivar a produção de obras que possam expandir o paracosmos do autor. Assim, nesse momento, o editor passa a atuar sobre o leitor, procurando formar hábitos de leitura e de consumo para, em condições tidas como ideais para a indústria dentro de um contexto de mercado, fidelizá-lo. O estudo das sagas no âmbito escolar pode contribuir para que a leitura de tais obras tenha sentido como atividade social e trazer melhores estratégias para fazer leitores, escritores ou expectadores

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mais críticos e competentes. Rivera (2013, p. 556) pontua que os paracosmos promovem letramentos1, pois se apoiam em visualizações, em imagens, que são mais do que uma rota para leitores, são cartografias cosmológicas que marcam as paisagens da história. Dessa maneira, um paracosmos possibilita um aproveitamento didático, pois permite à gênese de uma topografia imaginária, a construção de uma nova geografia, favorecem a invenção de novos códigos, usos e costumes, criação de bestiários, entre outras. Para a autora, a escola deveria compreender que “a leitura diversificada e imaginativa de um paracosmos é a antessala da leitura estética, até o ponto em que ajudar o aluno a construir mundos imaginários e completos e revesti-los de características literárias é um bom exercício de criação de modelos narrativos” (RIVERA2, 2013, p. 556). É pela escola que a educação literária e seus diferentes suportes devem começar. Em tão importante instância mediadora, tais manifestações tanto literárias quanto aquelas que envolvem diferentes sistemas intersemióticos devem ser utilizadas como recursos para fomentar a diversidade, a imaginação e a inclusão, uma vez que as sagas e seus desdobramentos abordam, frequentemente, cenários multiculturais e possibilitam a expressão de todo tipo de pessoas e grupos. REFERÊNCIAS BARKER, Ronald; ESCARPIT, Robert. A fome de ler. Tradução de J. J. Veiga. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio Vargas, 1975. CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Pensamento, 2007.

1. No texto original, Glória García Rivera (2013, p.556) utiliza o termo “nuevos alfabetismos” que entendemos como sendo novos letramentos. 2. TRADUÇÃO NOSSA. “La lectura diversiva y de imaginación de um paracosmosesla antessala de lalectura estática, hasta elpunto de que ayudarelalumno a construir mundos imaginarios completos y revestirlos de características literariases um buenejercicio de creación de modelos narrativos”. (RIVERA, 2013, p. 556).

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COHEN, David; MACKEITH, Stephen. El desarrollo de la imaginación: Los mundos privados de la infancia. Barcelona: Paidós, 1993. FREUD, Sigmund. Escritores criativos e devaneio (1908). Obras Completas. Rio de Janeiro:Imago,1970, vol. IX, p. 135-143. JENKINS, Henry. Cultura da convergência. São Paulo: Aleph, 2009. GARCIA, Alberto Martos. Ficción cartográfica y sagas (de loslibros de acompañamiento a Google Maps. Espéculo: Revista de Estudios Literarios, Nº 37, 2007. Disponível em:<http://pendientedemigracion.ucm.es/info/especulo/ numero37/cartogra.html>. Acesso em: 09 de mar. 2015 ______. Introducción al mundo de las sagas. Badajoz: Universidade de Extremadura, 2009. ______. Os jovens diante das telas: novos conteúdos e novas linguagens para a educação literária. In: RETTENMAIER, Miguel; RÖSING, Tania Mariza Kuchenbecker (Coord.). Questões de literatura na tela. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2011. p.13-36. MARTIN, George R. R. A Guerra dos Tronos: As crônicas de gelo e fogo. Tradução de Jorge Candeias. São Paulo: Leya, 2010. NÚÑEZ, Eloy Martos. Hipertexto, cultura midiática e literaturas populares: o auge das sagas fantásticas. In: RETTENMAIER, Miguel; RÖSING, Tania Mariza Kuchenbecker (Coord.). Questões de leitura no hipertexto. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2007. pp. 50-63. NÚÑEZ, Eloy Martos. GARCIA, Alberto Martos. Livros de cinema, transmedialidade e literatura nos alvores do século XXI. In: RÖSING, Tania Mariza Kuchenbecker; RETTENMAIER, Miguel. (Coord.). Questões de Ficção contemporânea. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2013. pp. 69-99. RIVERA, Glória García. Paracosmos: las regiones de la imaginación (los mundos imaginário sem los géneros de Fantasía, Ciencia Ficción y Horror: nuevos conceptos y métodos). Primerasnoticias. Revista de literatura, nº 207, 2004 p. 61-70. ______. Paracosmos. In: Red Internacional de Universidades Lectoras. Diccionario de nuevas formas de lectura y escritura. 1.ed. Espanha: Santillana, 2013. SANTAELLA, Lúcia. Navegar no ciberespaço: o perfil cognitivo do leitor imersivo. São Paulo: Paulus, 2004. VARGAS, Maria Lúcia Bandeira. O fenômeno fanfiction: novas leituras e escrituras em meio eletrônico. Passo Fundo: Ed. Universidade de Passo Fundo, 2005. VERDÚ, Vicente. El estilo del mundo: La vida en el capitalismo de ficción. Barcelona: Anagrama, 2003.

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12 Poesia, oralidade e ensino Hélder Pinheiro (UFCG) Ninguém sonharia em negar a importância do papel que desempenharam na história da humanidade as tradições orais. As civilizações arcaicas e muitas culturas das margens ainda hoje se mantêm, graças a elas. E ainda é mais difícil pensá-las em termos não-históricos, e especialmente nos convencer de que nossa própria cultura delas se impregna, não podendo subsistir sem elas. (Paul Zumthor. Introdução à poesia oral, p. 10)

Introdução Os três substantivos que compõem o título da discussão que propomos aqui, por si só, pediriam uma longa reflexão. Embora não seja possível aprofundá-los em espaço limitado, o que demandaria muitas leituras, é possível, ao menos, acenar para o sentido que atribuímos a cada um deles e, a seguir, tentar uma aproximação. O ponto de chegada é, portanto, a busca de uma metodologia para o ensino de literatura – mais particularmente para o gênero lírico – que seja capaz de contribuir para a formação de leitores. Neste sentido é que vamos encaminhar nossa reflexão, tentando responder à seguinte questão: a realização oral do poema pode se constituir num instrumento pedagógico eficiente para formar leitores de poesia? Por realização oral, entendemos a leitura em voz alta re-

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petidas vezes, buscando as várias possibilidades de entonação, diferentes tons, ritmo e andamento de cada verso e do poema como um todo. Trata-se de um trabalho de experimentação com a voz que pode seguir ou não as convenções do verso tradicional e, na lírica moderna, sobretudo a que cultivou e cultiva o verso livre, de uma busca necessária para se chegar a possíveis sentidos. Por outro lado, não é necessário abandonar a pontuação que o poema traz na sua constituição antes de potenciá-la através dos vários recursos que a voz apresenta. Percorramos alguns dos sentidos que cada palavra pode suscitar, sobretudo a poesia, sempre um enigma para os leitores e teóricos de qualquer época.

Da poesia Quando nos aproximamos dos inúmeros tratados sobre a poesia – de Aristóteles aos tempos atuais –, destaca-se a dificuldade de defini-la de modo que se contorne toda sua complexidade. A poesia quase sempre se esquiva a uma concepção fechada, que a reduza a um quadro de normas e convenções. Por melhor que se possa defini-la, sempre será a vivência da leitura – oral ou silenciosa – o que vai possibilitar, ao certo, ter dela uma concepção mais precisa, mas aquém de sua complexidade. Talvez fosse melhor dizer: a partir da experiência de leitura é que é possível ter uma percepção mais completa ou totalizadora desse gênero literário. Apresentaremos algumas concepções de poesia, de modo resumido, que se coadunem com o objetivo apresentado para este artigo. Refletindo sobre a “Natureza da lírica”, José Guilherme Merquior (1977, p. 17) lembra que “a lírica era, a princípio, apenas um gênero da poesia: porém, com o declínio do grande poema narrativo e do verso dramático, lírica e poesia terminaram por se confundir”. O ensaísta

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destaca que para outros, sobretudo modernamente, “poesia é o tipo de mensagem linguística em que o significante é tão visível quanto o significado, isto é, em que a carne das palavras é tão importante quanto o seu conteúdo” (p. 17). Esta concepção retoma toda a contribuição do pensamento formalista sobre a poesia lírica – sem dúvida a vertente que foi mais longe na tentativa de se acercar da natureza linguística deste gênero. Busquemos em Jakobson – num texto que antecede a formulação da conhecida teoria das “funções da linguagem” – uma definição que põe em destaque o efeito que a lírica pode causar no leitor. Para o teórico russo: “É a poesia que nos protege contra a automatização, contra a ferrugem que ameaça a nossa fórmula do amor e do ódio, da revolta e da reconciliação, da fé e da negação” (JAKOBSON, 1978, p. 177). No mesmo ensaio, o teórico russo afirma que a “poeticidade é, em geral, apenas um componente de uma estrutura complexa, mas um componente que transforma os outros elementos e com eles determina o comportamento do conjunto” (p. 176). Já para o poeta e pensador francês Paul Valéry (1991), “Poesia é uma arte de linguagem; certas combinações de palavras podem produzir uma emoção que outras não produzem, e que denominamos poética” (p. 205). No decorrer do ensaio, denominado “Poesia e pensamento abstrato”, ele analisa várias questões decorrentes desta definição. A certa altura, lembra Valéry que “Prosa e poesia servem-se das mesmas palavras, da mesma sintaxe, das mesmas formas e dos mesmos sons ou timbres, mas diferentemente coordenados e excitados” (p. 212). A seguir, ele afirma que o poema “não morre por ter vivido: ele é feito expressamente para renascer de suas cinzas e vir a ser infinitamente o que acabou de ser” (p. 213). No mesmo sentido, o poeta afirma que “um poema é uma máquina de produzir o estado poético através das palavras. O efeito dessa máquina é incerto pois nada é garantido em matéria de ação sobre nossos espíritos” (p. 217).

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Refletir sobre estas peculiaridades da lírica parece-nos indispensável ao profissional de ensino que deseje trabalhar com o poema no espaço escolar. Tomar consciência das peculiaridades desta linguagem, sobretudo no que se refere ao modo como, no poema, as palavras são mobilizadas. Se o professor ainda não experimentou este “estado poético” a que se refere o crítico ou, se já experimentou, mas não se deu conta desta experiência, seria interessante buscar uma vivência com a leitura do poema de modo mais cuidadoso. Por outro lado, não confundir sua necessidade de aprofundamento teórico com a do leitor em formação. O jovem leitor não precisa, necessariamente, de um aporte teórico para apreciar a poesia. Ele necessita da contribuição de um mediador que possa ajudá-lo na aproximação da linguagem poética. Para não ficarmos numa certa abstração reflexiva, visitemos, juntos, um poema. Em situação de ensino, teríamos de atentar para os possíveis estados poéticos que ele nos incitaria. Pensamos num poema de Lenilde Freitas (2001, p.35) que, já no título, parece trazer um pouco do que os teóricos apontaram: Alimento As margaridas estão em toda parte. Quarenta vezes por segundo bateram as asas do beija-flor. A tarde, ao meu dispor, urde as sombra no telhado. Desatento um homem passa e nada vê.

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Todas as portas gemerão se, desse sustento, meu coração for despojado.

Fiquemos basicamente com o título do poema, uma vez que, no contexto solitário da escrita, não é possível partilharmos os diferentes estados de poesia que ele poderá nos proporcionar. A palavra alimento remete-nos às necessidades cotidianas de nosso corpo. Um título deste num artigo de jornal cria nos leitores a expectativa de que se vai tratar de várias questões relativas à alimentação. No entanto, ao lermos o poema, percebemos que a palavra remete a outra dimensão, a outros sentidos. Poderíamos falar de um outro tipo de alimento de que o ser humano necessita, que não tem propriamente um custo, que está ligado a outra dimensão – espiritual? Interior? – cuja denominação varia entre visões de mundo e de teoria. No poema, as margaridas se constituem, para o eu lírico, o “sustento”, sem o qual o “coração” fica “despojado”. O alimento, o que sustenta, é um objeto simples, que está “em toda parte”, um certo momento do dia – que pode passar desapercebido a muitos. É, portanto, uma espécie de contemplação da natureza que nasce do sustento deste sujeito lírico. Há, aqui, uma educação da sensibilidade do leitor para partilhar o estado poético ofertado no poema. Para fecharmos estas indicações, voltemo-nos para as reflexões de Octavio Paz (1982, p.227) sobre a poesia. Para o poeta mexicano, Ao contrário do que ocorre com os axiomas dos matemáticos, as verdades dos físicos ou as ideias dos filósofos, o poema não abstrai a experiência: esse tempo está vivo, é um instante pleno de toda a sua particularidade irredutível, e é perpetuamente suscetível de se repetir em outro instante, de se reengendrar e iluminar com sua luz novos instantes, novas experiências.

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A capacidade de se “reengendrar” e de iluminar “novas experiências” é que potencializa o poema a ser revivido pelos leitores em contextos e épocas as mais diversas. E esta, podemos dizer, mágica do poema se deve ao trabalho dispensado à linguagem. Os estudos sobre esta questão muitas vezes afastam os leitores, dada à sua complexidade, sobretudo quando lança-se mão de categorias muito herméticas que mais aprisionam o poema do que o revelam. Mas a experiência leitora, sobretudo no contexto da sala de aula, deveria sempre, a nosso ver, partir dos poemas, jamais de categorias teóricas, inclusive as esboçadas aqui. É hora de nos aproximarmos do segundo substantivo que escolhemos para nossa discussão.

Oralidade Não vamos entrar na longa e significativa discussão sobre os usos da “leitura oral” versus “leitura em voz alta” na escola trazida por Bajard (1994) a partir de Chartier e Hebrard (1989). Nosso interesse volta-se especificamente para a leitura oral do poema no contexto escolar – e, por que não, na prática individual de leitura. Neste sentido, as reflexões de Zumthor (1997) é que darão respaldo à nossa discussão. Por outro lado, Bajard (1994) nos dá algumas pistas da maior importância sobre a “voz alta”. Recolhemos algumas reflexões que podem contribuir para nosso propósito com a leitura do poema. O autor destaca que A voz que diz o texto certamente leva em conta a função linguística, mas também uma outra, musical. A voz do contador é quente ou dura, apta a se dobrar à diversidade dos personagens e emoções. O valor expressivo da matéria sonora, sua musicalidade, podem assim estar desarticulados de seu valor linguístico. Uma mesma palavra, um único pronome podem transmitir múltiplas mensagens. (BAJARD, 1994, p. 97) 290


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Esta função musical não é explorada apenas pelo contador de história ou pelo recitador ou ator em geral. Em nosso cotidiano, nas conversas, lançamos mão dos vários recursos expressivos que a língua – através de sua prosódia – nos oferece. Nosso ódio, nosso medo, nossa admiração, nossa paixão, nosso respeito são carreados por um modo de dizer do qual nem sempre nos apercebemos. Para o profissional de ensino, tomar consciência desses usos seria um passo importante e evitaria dizer que não se sabe ler, que não se sabe conferir expressividade a determinadas palavras, determinados versos, estrofes ou passagens de narrativas. Bastaria, para tomar consciência de que todos nós lançamos mão dos recursos expressivos da voz, gravar e observar uma conversa em que narramos um acontecimento, expressamos nosso desacordo com uma pessoa ou situação, nossa raiva de alguém etc. Bajard (1994, p. 96) destaca a diversidade de linguagem que recortam o dizer: dimensão acústica, o olhar, o gesto, o figurino, o cenário. Estes elementos se unem no gesto de dizer qualquer palavra. E quando se trata da palavra poética estas várias dimensões podem ser usadas para descoberta de sentidos, para aproximar o leitor do poema. Mesmo que, na leitura de um poema, alguns destes elementos não se façam presentes de modo determinante, muitas vezes imaginamos situações que nos ajudam – mesmo inconscientemente – a pronunciar de modo mais expressivo determinadas palavras. O contador ou o recitador profissional busca a adequação entre o gesto e o olhar ou entre o tom de voz e o movimento. Sem necessariamente precisar ir tão longe, o professor poderá conferir a cada palavra a expressão adequada. Isto pressupõe refletir sobre cada uma delas, experimentá-las, dizê-las de modos diversos para encontrar uma adequação minimamente aproximada.

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Zumthor pesquisou por longos anos a poesia oral e mostrou o valor que a voz assume na constituição das comunidades e dos sujeitos. Para ele, a voz “informa sobre a pessoa, por meio do corpo que a produziu: mais do que por seu olhar, pela expressão de seu rosto, uma pessoa é ‘traída por sua voz’. Melhor do que o olhar, a face, a voz se sexualiza, constitui (mais do que transmite) uma mensagem erótica” (1997, p. 15). Pensar a leitura oral do poema no espaço escolar pressupõe a consciência de que “a voz humana constitui em toda cultura um fenômeno central” (ZUMTHOR, 2014, p. 14). De que modo encontrar esse valor da voz na experiência de leitura de poesia? Como lançar mão de procedimentos que contribuam para que o poema seja vocalizado de modo a provocar no leitor e no ouvinte um efeito peculiar? A experiência cotidiana de leitura de poesia comprova que o ritmo, o valor expressivo de determinadas palavras, a altura, a entonação são decisivos. Se por acaso não vivenciamos em nossa comunidade a leitura ou a recitação de poemas, o contar expressivo de contos, causos, anedotas e, portanto, estivermos desabituados de ouvir, a escola poderia ser esse espaço de educação da audição – e dos sentidos em geral – através da leitura de poemas. Nossa sensibilidade pelo auditivo é marcante, sobretudo na infância. Aprendemos parlendas motivados por apelos sonoros que ecoam em nossos ouvidos, e nos habituamos pelo resto da vida; repetimos frases sonoras, muitas vezes sem sentido, decoramos versos cheios de musicalidade – tudo quase sempre desprovido de sentidos. Porque não dar continuidade na escola a esta sensibilidade auditiva, sobretudo para favorecer a aproximação do poema? Mesmo sem ser um especialista na interpretação oral de textos, o professor pode desenvolver uma competência mínima na leitura oral de poemas – e de textos narrativos também – para utilizá-lo como instrumento detonador do interesse inicial pela poesia.

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Pensemos esta questão a partir da leitura de um poema, para sermos mais concretos. Imaginemos a leitura, numa turma de final do ensino fundamental ou de qualquer série do ensino médio, do poema “Consolo na praia”, de Carlos Drummond de Andrade, a seguir: Vamos, não chores. A infância está perdida. A mocidade está perdida. Mas a vida não se perdeu. O primeiro amor passou. O segundo amor passou. O terceiro amor passou. Mas o coração continua. Perdeste o melhor amigo. Não tentaste qualquer viagem. Não possuis carro, navio, terra. Mas tens um cão. Algumas palavras duras, em voz mansa, te golpearam. Nunca, nunca cicatrizam. Mas, e o humour? A injustiça não se resolve. À sombra do mundo errado murmuraste um protesto tímido. Mas virão outros. Tudo somado, devias precipitar-te – de vez – nas águas. Estás nu na areia, no vento… Dorme, meu filho.

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Um procedimento que ajuda a realização oral é a discussão, já de entrada, do título do poema – antes mesmo da leitura integral do poema. O que é um “consolo”? Em que situações precisamos de consolo? Apenas as crianças necessitam de consolo? O que se pode imaginar com esse título – que situações poderiam ser projetadas? Alguma vez, em nossas vidas, admitimos a necessidade de um consolo? Após esse diálogo, que pode ser enriquecido com outras questões, iniciar a leitura do poema. E realizá-lo várias vezes, com diferentes participantes, por exemplo. Como vocalizar esse “Vamos, não chores...”? Treinar várias possibilidades – pedir que repitam diversas vezes, atentando para o que vem depois – o conjunto de perdas enumeradas. A repetição de certas palavras pode oferecer dificuldade ao leitor pouco treinado na realização oral do poema. Tende-se quase sempre ao mesmo tom, sem se buscar uma particularidade para cada uma delas. Por exemplo, como repetir três vezes o verbo “passou”? Pode-se subir ou descer a altura da voz no final da enunciação, de modo a pronunciá-lo mais gravemente, ou ainda permanecer numa mesma altura, atentando para o sentido particular de cada palavra, como se enfatizássemos a sua dureza. Por exemplo, no verso “Algumas palavras duras”, esta última palavra pode ser dita com uma força maior na sílaba inicial, numa espécie de reforço da própria acentuação natural. Na mesma estrofe, o “nunca”, repetido duas vezes, convida também a uma realização de modo mais intenso. Caso os leitores tenham dificuldade de conferir expressividade às palavras, sugerir, por exemplo, que lembrem ou imaginem situações em que ouviram palavras duras ou em que tiveram que dizer um “nunca” com toda convicção. Rememorando ou imaginando, poderemos encontrar a expressividade das palavras. Observar que, nalguns momentos, o poema afirma e atenua, o que pede também uma expressividade no plano oral. Por exemplo,

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todos os versos iniciados pela adversativa “mas”. Talvez seja no detalhe que a realização oral se constitua de modo significativo. E ter sempre o cuidado para não cair no exagero, no caricatural – a não ser quando o poema o exige –, fugindo do tom e da perspectiva inscritos no poema.1 Ajuda a encontrar o tom do poema procurar dizê-lo num registro totalmente diverso do que sua semântica interna aponta. No poema em destaque, vocalizar de um modo oposto ao que se imagina e espera de um “consolo”. O procedimento suscitará discussões, novas realizações, o que torna rica a experiência de leitura e deixa claro que o texto está aberto a várias realizações, mas que há elementos propriamente textuais e contextuais que direcionam para o que é mais ou menos adequado. No âmbito da realização oral, aprende-se muito ouvindo. No caso específico do poema “Consolo na praia”, há uma interpretação realizada pelo ator Paulo Autran que poderá ajudar o professor a descobrir a riqueza do poema e a encontrar seu próprio modo de dizê-lo. Não achamos adequado iniciar a experiência de leitura já com a realização de um ator ou professor. É importante que o aluno aprenda a ir descobrindo a riqueza sonoro/interpretativa do poema. Desta forma, ele vai construindo um modo particular de leitura que poderá acompanhá-lo pela vida afora, afinal, nem sempre terá um professor para orientá-lo. E, se nosso objetivo último é a formação de leitores, aliar esforço de descoberta e conhecimento de leituras expressivas já realizadas poderá oferecer um bom caminho de formação. Outros poemas em que a dimensão oral se destaca e que podem ser exercitados no contexto escolar poderiam ser: “Evocação do Recife” e “Última canção do beco”, de Manuel Bandeira; “Caso do vestido”, de 1. Tomamos os dois conceitos do importante ensaio de Alfredo Bosi (2003), “A interpretação da obra literária”.

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Carlos Drummond de Andrade, dentre tantos outros. Aqui também o professor deve partir de sua experiência de leitura, dos poemas que são parte de sua vivência. Passemos ao próximo ponto que, de certo modo, já apareceu nos dois primeiros. Mas agora vamos explicitá-lo mais claramente.

Ensino Pensar o ensino de literatura e, mais especificamente, da poesia, como vínhamos realizando há algumas décadas, pressupõe situar o binômio ensino/aprendizagem. Embora tenhamos nos guiado, ao longo dos anos, muito mais pela intuição do que por uma perspectiva pedagógica inscrita conscientemente em teorias, nos últimos anos viemos nos aproximando da perspectiva socioconstrutivista e observando que muitos dos aspectos de nossa prática se aproximam desta abordagem epistemológica do ensino. Sempre nos guiou a ideia de que o fato de estarmos trabalhando com uma arte – no caso, a que tem a palavra como seu fundamento – deveria ser decisivo para centrar o ensino na aproximação mesma dos textos – poemas, contos, crônicas, romances, folhetos de cordel, letras de canções etc. – e não meramente numa classificação histórica ou numa categorização dos gêneros literários. Toda exploração da dimensão expressiva dos textos, ao modo como explicitamos acima, nasceu desta busca de aproximação, de vivência com o texto literário, de exploração dos sentidos. Buscamos sempre um ensino que tivesse como resultado uma aprendizagem, não de conceitos a priori, mas, diríamos, de uma vivência, da internalização de uma experiência. Noutras palavras, uma aprendizagem que nascia do projetar-se na linguagem e na experiência social que o texto favorecia. Neste sentido é que fomos constatando – a partir de alguns comentários de

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leitores e pessoas que assistiam a algumas de nossas falas – que nossa prática parecia ancorar-se numa perspectiva socioconstrutivista. Por certo, desde os anos oitenta do século passado, tínhamos como pano de fundo de nossa prática muitas das ideias do pedagogo brasileiro Paulo Freire. Sua Pedagogia da autonomia, que resume muitas de suas contribuições para pensar o ensino/aprendizagem, sempre esteve em nosso horizonte, bem como outras de suas obras. Os poemas trazem um saber sobre o mundo, mas um saber permeado pela vivência, pela percepção sensorial do referido mundo. Não necessariamente um saber racional, ou, menos ainda, uma espécie de didática, de lição, embora muitas vezes a escola se aproprie do texto literário apenas pensando em lições e informações que os textos possam trazer. O que me ensina, portanto, um poema? Ou ainda: como o poema me ensina alguma coisa? Enfrentar essas questões, sem cair no didatismo, me parece essencial para pensar o lugar da literatura na escola e na vida. Embora um poema que retome, por exemplo, a experiência de sofrimento de seres humanos num período de guerra, ou a vivenciada seca e a fome, ou as perdas amorosas possa me ensinar – indiretamente – algo sobre a história, a geografia e os sentimentos humanos, não há nas obras literárias (se não se transformariam em meras cartilhas) um saber sistemático a ser ensinado. Cada leitor é que vai experimentar o poema a partir de seu horizonte de expectativa, que envolve suas experiências humanas e estéticas. E esta particularidade é por demais significativa, dentre outras coisas, por ser bastante pessoal. Cada leitor, neste sentido, poderá recolher do texto literário aspectos às vezes impensáveis para outros leitores. E poderá recusar – consciente ou não – algo que parece, aos ditos leitores maduros, essencial, indispensável. No ambiente escolar, o confronto e a partilha de diferentes pontos de vista diante do texto são da maior

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importância para que se possa construir uma experiência sobre a obra lida. Ou seja, aprende-se não necessariamente um saber, mas um modo de ver e sentir o mundo que, na lírica, comparece sempre a partir de um viés mais pessoal. Diria, ainda, aprende-se, a partir de uma percepção sensível, intuitiva, desde que nos deixemos conduzir pelo modo como o eu lírico expressou seus sentimentos e percepções. Trata-se, portanto, de um ensino/aprendizagem bastante complexo, que não cabe taxativamente num modelo, numa concepção pedagógica fechada. Numa aula com poemas de Adélia Prado, no primeiro semestre de Letras, tivemos uma experiência que, dentre tantas outras, revela, parcialmente, como se dá esse processo de ensino e aprendizagem com/do texto literário. Numa antologia com vários poemas da poetisa mineira, constava um, denominado “Casamento”. Lidos os poemas, solicitamos que os leitores expressassem suas intuições, percepções e crítica sobre os poucos poemas. Um grupo de alunas centrou-se num comentário crítico sobre o poema “Casamento”, destacando a condição de oprimida da mulher ao ter que levantar-se a qualquer hora da noite para cuidar de peixes com o marido. Esta primeira observação nos pareceu inadequada com relação à experiência que o poema apresentava, mas não nos contrapusemos às leitoras. Solicitamos a releitura do poema e que outros leitores se pronunciassem. Passemos aqui à leitura para que fique mais claro o caminho percorrido: Casamento Há mulheres que dizem: Meu marido, se quiser pescar, pesque, mas que limpe os peixes. Eu não. A qualquer hora da noite me levanto,

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ajudo a escamar, abrir, retalhar e salgar. É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha, de vez em quando os cotovelos se esbarram, ele fala coisas como “este foi difícil” “prateou no ar dando rabanadas” e faz o gesto com a mão. O silêncio de quando nos vimos a primeira vez atravessa a cozinha como um rio profundo. Por fim, os peixes na travessa, vamos dormir. Coisas prateadas espocam: somos noivo e noiva.

Após a terceira leitura, uma aluna levantou a questão: a mulher levanta-se para escamar os peixes não por imposição, mas porque se sentia bem realizando aquele trabalho com o marido. E citou um verso que comprovava sua percepção: “É tão bom, só a gente sozinhos na cozinha”, bem como defendeu que aquela mulher mostra-se diferenciada de outras quando diz “eu não”. O debate tomou toda a aula e o grupo que externou seu ponto de vista inicial sobre o poema foi percebendo – não tão facilmente – que uma coisa são “minhas concepções” sobre determinados temas, outra é o que os poemas dizem. Pode haver ou não concordâncias, aproximações, mas também distanciamentos. No caso observado, o fato de as leitoras terem uma visão crítica sobre o modelo de casamento da sociedade atual, sobretudo o que perdura para as mulheres, não significa que não haja experiências diferenciadas, vivências outras e bastante significativas. Aprende-se numa aula como esta várias coisas: primeiro, que o mediador não deve se opor imediatamente ao pensamento do leitor, mesmo que perceba que a interpretação realizada apresente desvios claros do texto em discussão; segundo, que a “leitura compartilhada” (COLOMER, 2007) entre os leitores pode contribuir para

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percepções mais agudas do texto literário, para descobertas às quais, como leitores solitários, poderíamos não ter chegado ou mesmo para favorecer a mudança de perspectivas, como consequência do debate; e, terceiro, se o mediador favorecer a descoberta de determinadas peculiaridades da linguagem literária – imagens inusitadas, ritmos, musicalidade etc. –, que é importante postar-se diante do poema com mais atenção, tentando apreender sua construção e que é desta construção que emergem os sentidos. O percurso metodológico seguido dialoga com a concepção construtivista que defende que “é preciso realizar atividades que promovam o debate sobre suas opiniões [dos alunos], que permitam formular questões e atualizar o conhecimento prévio, necessário para relacionar conteúdos com outros” (ZABALA, 2010, p. 95). Os leitores tendem, num modelo de aula que privilegie o debate, a se sentirem mais valorizados, ou mesmos desafiados, a expor suas percepções, uma vez que sabem que não serão considerados, a priori, certos ou errados. O amadurecimento da leitura vai se dando paulatinamente, o que favorece a elaboração de conhecimentos – sobre a poesia, sobre o poeta ou poetisa estudado, sobre o tema debatido. Lembra ainda Zabala (2010, p.97) que a elaboração do conhecimento exige o envolvimento pessoal, o tempo e o esforço dos alunos, assim como a ajuda especializada, estímulos e afeto por parte dos professores e dos demais colegas. Ajuda pedagógica ao processo de crescimento e construção do aluno para incentivar os progressos que experimenta e superar os obstáculos que encontra.

Neste sentido, cada experiência com o mesmo poema poderá gerar novas aprendizagens, completamente inusitadas, uma vez que vai depender dessa interação texto-leitor e da opção metodológica

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escolhida pelo mediador o surgimento de situações pedagógicas responsáveis pelos ensino e aprendizagem. Diferentemente de se levar um texto teórico, por exemplo, sobre modelos de casamento tradicional na sociedade contemporânea. Se eu levar um texto assim para diferentes turmas, serão as informações, os conceitos que serão apreendidos de modo quase igual – embora o professor possa ser o mais criativo possível no plano metodológico.

Considerações finais O ensino da poesia, portanto, para se tornar eficaz na formação de leitores, precisará abrir-se a novos procedimentos metodológicos que, na minha experiência, nasceram da natureza mesma da poesia. Do prazer de ouvir o poema em voz alta, da alegria da descoberta de modos diversos de dizer o poema, do confronto de percepções sobre o mesmo texto – que nos leva a reforçar ou abandonar um ponto de vista – é que foi surgindo nossa opção metodológica que sempre privilegiou o encontro do leitor com o poema. A partir desse encontro, dependendo do nível do leitor com que se trabalha, muitos saberes podem ser acionados: sobre a percepção de problemas sociais, sobre as alegrias dos encontros afetivos, sobre a dor de certos desencontros, sobre ações desumanas que perduraram em determinados momentos históricos, sobre o medo (do futuro, da morte, da solidão e tantas coisas mais), sobre a beleza dos corpos humanos, também sobre a degradação do corpo e a perplexidade que isto pode gerar, sobre as dificuldades das escolhas e tantas experiências humanas que nos rodeiam e ainda nos aguardam. Tudo isso dito nos poemas de um certo modo, num certo andamento, com um ritmo peculiar, lançando mão de imagens ora inusitadas ora tão simples que nos assustam, ou explorando o próprio caráter material das palavras –

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sonoridades e visualidade. É como se a poesia, por exigir tanto de nossos sentidos, fosse um grande instrumento de educação de nossa sensibilidade. Educação que não começa nem termina na escola e que poderá nos acompanhar pelo resto da vida. Nos versos da poetisa paraibana Lenilde Freitas, somos colocados diante desta questão: Momento A poesia se aproxima marca sua presença ou esteve sempre aqui como sinal de nascença?

REFERÊNCIAS BAJAR, Elie. Ler e dizer: compreensão e comunicação do texto escrito. São Paulo: Cortez, 1994. BOSI, Alfredo. Céu, inferno: ensaios de crítica literária e ideológica. 2. ed. São Paulo: Editora 34; Duas Cidades, 2003. (Col. Espírito Crítico) COLOMER, Teresa. Andar entre livros: a leitura literária na escola. Trad. Laura Sandroni. São Paulo: Global, 2007. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Paz e Terra, 1996. FREITAS, Lenilde. Grãos na eira. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001. JAKOBSON, Roman. O que é poesia. In: TOLEDO, Dionísio (org). Círculo linguístico de Praga: estruturalismo e semiótica. Trad. Zênia de K., R. Toledo e Dionísio Toledo. Porto Alegre: Ed. Globo, 1978. MERQUIOR, José Guilherme. A astúcia da Mimese: ensaios sobre Lírica. 2ª. Ed Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. PAZ, Octavio. O Arco e a lira. 2.ed. Trad. de Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1982. VALÉRY, Paul. Variedades. Trad. de Maiza M. de Siqueiro. São Paulo: Iluminuras, 1991. ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Trad. Ernani F. da F. Rosa. Porto Alegre: Artmed, 2010. ZUHTHOR, Paul. Introdução à poesia oral. Trad. Jerusa P. Ferreira. São Paulo: Editora Hucitec, 1997.

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13 Literatura dos Anos Iniciais ao Ensino Superior: contribuições do gênero entrevista à pesquisa e à formação docente1 Maria Amélia Dalvi 2 (Ufes)

Introdução: apresentação da pesquisa A pesquisa que dá origem a esse trabalho teve como título “Ensino de literatura e leitura literária na escola e na universidade: cultura, história e memória no Espírito Santo (1985-2010)”3 (DALVI, 2013), e foi desenvolvida ao longo de um ano, entre os meses de agosto de 2013 a julho de 2014, no contexto do Programa Institucional de Iniciação Científica da Universidade Federal do Espírito Santo; os re-

1. Este trabalho sintetiza resultados de uma pesquisa desenvolvida na Universidade Federal do Espírito Santo, no contexto da formação de estudantes de graduação em Letras e Pedagogia no programa institucional de Iniciação Científica. Desse modo, embora o texto aqui apresentado seja de minha autoria e responsabilidade, é necessário destacar a participação direta, no delineamento da pesquisa, na produção de dados e nas discussões, dos estudantes Ana Cíntia Alves Machado, Ana Cristina Alvarenga, Daiani Francis Fernandes Ferreira e Josineia Sousa da Silva. Destaco, ainda, a contribuição do técnico de audiovisual Guilherme dos Santos Neves Neto e de sua equipe, que foram fundamentais à produção dos vídeos de subsidiaram nosso trabalho de pesquisa. O apoio institucional consistiu, além do fornecimento de infraestrutura básica (salas, materiais de consumo, câmeras e gravadores), na cessão de carga horária semanal para a supervisora do projeto e na concessão de bolsas para os estudantes envolvidos. 2. E-mail: mariaameliadalvi@gmail.com ou maria.dalvi@ufes.br. 3. A pesquisa foi registrada oficialmente, junto à Pró-Reitoria de Pesquisa e Pós-Graduação da Universidade Federal do Espírito Santo, sob o número 4391/2013.

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sultados obtidos por cada subprojeto estudantil foram apresentados na forma de relatórios ou de trabalhos de conclusão de curso (ALVARENGA, 2014; FERREIRA, 2014; MACHADO, 2014; SILVA, 2014) e o conjunto dos dados e análises foi apresentado na forma de um relatório unificado4 (DALVI et al., 2014). A pesquisa se deu no seio do Grupo Interinstitucional de Pesquisa “Literatura e Educação”5, que tem se dedicado, desde sua criação em 2011, a estudos e pesquisas das relações entre livros, leitura, leitores e literatura, quer sejam ou não atravessadas pelas práticas de educação formal. O objetivo geral da pesquisa era compreender como se deu o ensino de literatura e leitura literária na escola básica e na universidade no Espírito Santo, mais particularmente na cidade de Vitória, no período de 1985-2010, de modo a colaborar para o engendramento de uma história da educação leitora e literária local, em correlação com a história da educação leitora e literária no Brasil, no mesmo período (considerando-se, para tal, os resultados de pesquisas que se debruçaram sobre documentos oficiais, relatos de experiência, pesquisas participantes e/ ou pesquisas de campo). Configurou-se como qualitativa (BOGDAN; BIKLEN, 1994), e se utilizou da análise de conteúdo e da análise de imagens em movimento (BAUER; GASKELL, 2013). Como fonte, tomaram-se simultaneamente objetos culturais escritos (documentos oficiais, impressos pedagógicos, materiais didáticos de aula e cadernos escolares) e entrevistas semiestruturadas realizadas pelo grupo de pesquisa e gravadas em vídeo com professores em atividade docente no período estudado; os dados foram organizados a partir de quadros, tabelas e textos sincréticos (com recurso às lin4. O relatório em questão foi apreciado e aprovado pela comissão de pesquisa do Departamento de Linguagens, Cultura e Educação, que concedeu carga horária semanal docente para seu desenvolvimento, no entanto se encontra inédito e em circulação restrita, até o momento. 5. A página do grupo, com informações mais detalhadas sobre os objetivos, projetos, integrantes e publicações, pode ser acessada em http://www.literaturaeeducacao.ufes.br/.

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guagens verbal e visual). A orientação teórica buscou fazer convergir perspectivas: a) enunciativo-discursivas (com base no pensamento de Mikhail Bakhtin, no que diz respeito às concepções de linguagem e sujeito); e b) histórico-culturais (com base no trabalho de autores como Michel de Certeau, Peter Burke e Roger Chartier, no que diz respeito às possibilidades de uma história não hegemônica, que não se paute privilegiadamente pelas questões econômicas e que pense a cultura historicamente em contextos sociais micrológicos ou comunitários). Especialmente, privilegiaram-se as noções teóricas de práticas, representações e apropriações; mais lateralmente, as de protocolos de leitura, de objeto cultural e de comunidades de interpretação. No processo, o objetivo geral parece ter sido cumprido. Este artigo apresenta, pois, uma síntese dos resultados desse trabalho; na impossibilidade de apresentar todos os dados e todas as considerações formuladas, incidirá, prioritariamente, sobre a análise das entrevistas e depoimentos registrados em vídeo, cujo conteúdo foi transcrito, analisado e discutido pelo grupo, em face dos resultados das pesquisas anteriormente desenvolvidas, a serem mencionadas adiante. Como resultado incidental – ou seja, não inicialmente previsto –, observamos que, no processo de conceder entrevistas ou depoimentos ao grupo de pesquisa, os professores relatavam que rememorar e narrar a terceiros suas experiências docentes os ajudava a reorganizar o vivido e a rever e reavaliar o processo de trabalho docente, revendo posturas, métodos e a própria relação com a atuação profissional ao longo dos anos. Um ou outro dos sujeitos da pesquisa, inclusive, chegou a verbalizar um efeito “terapêutico” ou um efeito formativo – ambos pela via da reflexão – no processo da concessão da entrevista ou do depoimento. Essa dimensão foi também considerada para a produção do relatório unificado (DALVI et al., 2014) e será pontuada nas considerações finais deste texto.

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O contexto de interlocução institucional na realização da pesquisa O trabalho de pesquisa em foco, neste texto, deu seguimento a outros realizados anteriormente: “As disciplinas voltadas à formação do professor de Língua Portuguesa no Espírito Santo: abordagens de leitura, da literatura e dos materiais didáticos nas licenciaturas em Letras e Pedagogia”, no período 2011-2012, e “Leitura, literatura e materiais didáticos no Espírito Santo: uma história a partir de múltiplos objetos culturais escritos”, no período 2012-2013. É importante retomá-las porque elas atravessam este trabalho. A pesquisa desenvolvida entre 2011 e 2012 versou sobre as disciplinas (ementas, programas e planos de curso) existentes nos cursos de formação inicial de licenciados em Letras e em Pedagogia na Universidade Federal do Espírito Santo. Foi realizado um exaustivo levantamento dos documentos citados (ementas, programas e planos de curso), procedimento seguido de digitalização, organização, sistematização e análise de todo o material levantado. Desse modo, foram identificadas nos cursos de licenciatura em Letras e Pedagogia as disciplinas que abordavam ou não conhecimentos relacionados à leitura, à literatura e aos materiais escritos utilizados nos processos de formação de mediadores da leitura escolar e, em particular, de mediadores de leitura de literatura, no contexto escolar. Foram pontuados também os autores mais frequentemente referenciados nesses documentos, visando a compreender as perspectivas teóricas apontadas institucionalmente como norteadoras da formação inicial intentada para os licenciandos em Letras e Pedagogia. Os resultados foram cotejados com pesquisas semelhantes desenvolvidas em outros espaços institucionais análogos.

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Já a pesquisa desenvolvida entre 2012 e 2013, visando a compreender mais amplamente os resultados já obtidos na pesquisa anterior, versou sobre documentos que circula(ra)m nas licenciaturas em Letras e Pedagogia da Universidade Federal do Espírito Santo, concernentes à formação docente inicial no âmbito da leitura e, particularmente, da leitura literária. Os documentos tomados como corpus foram de diferentes naturezas, tais como projetos político-pedagógicos de curso, matrizes curriculares, cadernos de planejamento, materiais didáticos utilizados nas práticas de ensino na universidade (slides, apostilas, resumos etc.), cadernos de alunos, relatórios de estágio supervisionado e demais instrumentos de avaliação (provas, trabalhos, roteiros de apresentação de seminários etc.). Também foi realizado, como no ano anterior de pesquisa, um exaustivo levantamento dos documentos citados, procedimento seguido de digitalização, organização, sistematização e análise do material. Desse modo, pudemos aprofundar nossa compreensão sobre o desenvolvimento das disciplinas concernentes à leitura, à literatura e aos materiais didáticos no seio dos cursos de licenciatura em Letras e Pedagogia em nossa instituição-sede, tendo por esteio “rastros” ou “indícios” históricos deixados por sujeitos em objetos culturais escritos concatenados a processos formativos e práticas pedagógicas no contexto do ensino superior. Em paralelo, Evaristo, S. (2014) pesquisou documentos oficiais que embasam as práticas dos professores entrevistados (citados por eles, no processo de entrevista), com o intuito de compreender os pontos-chave desses documentos no tocante à leitura, e em particular à leitura literária; no processo, deteve-se, especialmente, nos Parâmetros Curriculares Nacionais, no Currículo Básico da Escola Estadual do Espírito Santo e nos Documentos Curriculares Municipais de redes em que os professores entrevistados na pesquisa geral já atuaram ou atuavam no momento da entrevista.

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Como produções concernentes a esses dois projetos, podem-se citar Dalvi et al. (2014, 2011), Dalvi (2014, 2012, 2011a, 2011b), Finardi e Dalvi (2012), Lemos (2012), Mariano (2012) e Novais (2013, 2012). Por sua vez, a pesquisa desenvolvida entre 2013 e 2014, cujos resultados aqui noticiamos, devotou-se a conhecer os discursos de professores que atuaram nos cursos de Letras e Pedagogia da Universidade Federal do Espírito, entre 1985-2010, e de professores formados por esses cursos que atuaram em instituições públicas de educação básica no estado do Espírito Santo, no mesmo período, em correlação com documentos que apresentavam, concernentes a essa sua atuação. Os discursos foram registrados por meio de vídeos, a partir de entrevistas semiestruturadas realizadas pela equipe de pesquisa, com foco no trabalho pedagógico com as questões do livro, da leitura e da literatura. Houve, em seguida ao registro videográfico, a edição e a transcrição do material, seguida de análise de conteúdo. Esse trabalho permitiu correlacionar os documentos analisados nos momentos anteriores aos discursos de sujeitos-agentes dos processos em foco. Paralelamente, no âmbito do grupo de pesquisa e dos seminários de trabalhos de conclusão de curso, realizam-se estudos de campo (especialmente na educação infantil e nos anos iniciais do ensino fundamental), que contribuíram para aprofundar e complexificar os dados obtidos pela análise dos documentos escritos e das entrevistas e depoimentos registrados em vídeo. Podemos mencionar, especialmente, as pesquisas de Libardi (2014), Machado e Lellis (2014), Evaristo, F. (2014), Adão et al. (2013) e Leão e De Prá (2013). Essas pesquisas de campo mostraram, a partir da observação de práticas docentes, que as concepções e as práticas atinentes ao trabalho pedagógico com a leitura e a literatura, bem como os usos dos materiais didáticos mencionados pelos professores entrevistados no

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contexto da pesquisa geral se repetiam, com relativa frequência, nos diferentes campos investigados. Isso foi importante para possibilitar ao grupo responsável pela pesquisa geral certa segurança com relação ao encaminhamento das análises das entrevistas. Na tentativa de engendrar uma história da educação leitora e literária local em correlação com a história da educação leitora e literatura brasileira, o trabalho correlaciona-se aos esforços coletivos da linha de pesquisa “Educação e Linguagens”, do Programa de Pós-Graduação em Educação e da linha de pesquisa “Literatura e Expressões da Alteridade”, da Pós-Graduação em Letras, ambas da Universidade Federal do Espírito Santo6. Essas linhas de pesquisa têm, sistematicamente, dado a público estudos sobre a história da educação leitora e literária no Espírito Santo, considerando as singularidades desse estado na correlação com os demais estados da federação. Podemos citar, a esse respeito, por exemplo, nos últimos cinco anos, os trabalhos de: a) Souza (2015) – que focalizou apropriações do livro didático de língua portuguesa e literatura, distribuído pelo Programa Nacional do Livro Didático, no contexto de uma escola pública de ensino médio do município de Cariacica (ES), nos anos de 2013-2014; b) Tragino (2015) – que focalizou a literatura produzida e publicada no Espírito Santo nos exames vestibulares da Universidade Federal do Espírito Santo, no período de 2005-2014;

6. Em paralelo, é importante frisar o apoio do Centro de Educação da Universidade Federal do Espírito Santo, quanto à disponibilização de espaço físico e equipamentos, bem como quanto aos acesso e guarda da documentação e bibliografia atinente à pesquisa, bem como a participação dos servidores técnicos do Laboratório de Audiovisual à realização da tarefa.

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c) Dias (2013) – que focalizou políticas públicas de alfabetização no município de Serra (ES), nos anos de 1995-2003, com especial atenção à implantação do Bloco Único; d) Nadai (2013) – que focalizou práticas de leitura em turmas de 4ª série/5º ano no município de Serra (ES), em duas escolas com Índices de Desenvolvimento da Educação Básica muito diferentes entre si; e) Antunes (2011) – que focalizou práticas de leitura em turmas de anos iniciais do ensino fundamental no contexto do município de Vitória (ES); e f) Oliveira (2010) – que focalizou práticas de leitura literária em turmas de educação infantil, no contexto do município de Vila Velha (ES). Esse conjunto de trabalhos, pois, com todo o esforço já empreendido no sentido de compreender a educação leitora e literária no estado do Espírito Santo, é parte inarredável das reflexões trazidas à baila neste texto.

O trabalho de pesquisa: organização de atividades e procedimentos pactuados Como mencionado, o objetivo maior que tínhamos em vista era conhecer práticas e representações do trabalho pedagógico de docentes que atuaram e atuam dos anos iniciais do ensino fundamental ao ensino superior no que se refere à educação leitora e literária (focando, especialmente, a questão da leitura literária), a partir de múltiplos ob-

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jetos culturais escritos que circula(ra)m na escola e na universidade, bem como a partir dos discursos memorialísticos, organizados a partir de entrevistas e depoimentos, de professores registradas em vídeos. Supúnhamos que esses sujeitos e suas representações e práticas engendra(ra)m uma história da educação literária no Espírito Santo, em correlação com a história educacional brasileira. É importante destacar que, inicialmente, projetávamos lidar apenas com entrevistas, razão pela qual, inclusive, nos utilizamos de questões previamente estruturadas. Contudo, em algumas das entrevistas, as respostas às questões eram tão longas que preferimos reconhecê-las, no tocante ao gênero, como verdadeiros depoimentos insertados no gênero entrevista – e deixamos que o convidado falasse sem obrigá-lo a ater-se ao ponto focalizado pela questão previamente elaborada. O trabalho, visando a uma certa organização de rotinas e procedimentos, foi dividido entre a equipe. Ficaram diretamente responsáveis pelos anos iniciais do ensino fundamental as pesquisadoras Ana Cíntia Machado Alves e Josineia Sousa da Silva; pelos anos finais do ensino fundamental a pesquisadora Ana Cristina Alvarenga; pelo ensino médio, as pesquisadoras Ana Cristina Alvarenga e Maria Amélia Dalvi; e pelo ensino superior (com foco em Língua Estrangeira ou adicional), a pesquisadora Daiane Francis Fernandes Ferreira. No entanto, a despeito da distribuição da responsabilidade entre os membros, a equipe elaborou o roteiro de entrevista conjuntamente e realizou, sempre que possível, as entrevistas em parceria; de igual modo, a discussão dos resultados foi feita em equipe. O trabalho individual de cada pesquisador disse respeito à seleção de entrevistados, ao contato com cada um deles, à transcrição das entrevistas e à produção de quadros, tabelas e textos de síntese sobre os aspectos mais destacados em cada entrevista, a serem explorados em face dos objetivos de pesquisa. 311


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No que tange às opções teóricas e metodológicas, o grupo se organizou para realizar uma autoformação prévia à etapa de seleção de entrevistados/depoentes e de registros videográficos. Esse momento, particularmente, foi subdividido em três momentos, com duração aproximada de um mês e meio ou dois meses cada: a) No primeiro momento, houve o estudo e a discussão de subsídios teórico-metodológicos da História Cultural, da perspectiva enunciativo-discursiva (com especial atenção às noções de linguagem, enunciado concreto e gênero discursivo, a partir de BAKHTIN, 2006, 2003, 1993)e da história cultural, da história da educação e da história das disciplinas escolares(a partir de BURKE, 1992, 2008; CHARTIER, 1988, 2001, 2003; CHERVEL, 1990; CERTEAU et al., 2008, CERTEAU, 2011; NUNES, CARVALHO, 1993); b) No segundo momento, houve o estudo e a discussão de subsídios teórico-metodológicos sobre pesquisa qualitativa, pesquisa bibliográfico-documental, pesquisa histórica e de subsídios teórico-metodológicos para a realização de entrevista semiestruturada, seu registro videográfico e seu uso na pesquisa interpretativa (BOGDAN, BIKLEN, 1994; CUNHA, MIGNOT, 2003; MOREIRA, CALEFFE, 2006; ROSA, ARNOLDI, 2006; GATTI, 2007; NÓVOA, 2007; PINSKY, LUCA, 2009; ALBERTI, 2010; NAPOLITANO, 2010); por fim, c) No terceiro momento, houve o estudo e a discussão coletiva da bibliografia principal da pesquisa (ROUXEL, 1996; LEAHY-DIOS, 2000; MORTATTI, 2000; CEREJA, 2005; DALVI, REZENDE, JOVER-FALEIROS, 2013).

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Em geral, um dos pesquisadores era designado para conduzir as discussões com o grupo da obra selecionada, semanalmente, para debate. Nos debates, tanto focávamos o texto em si mesmo quanto também sua aplicabilidade no contexto de nossa pesquisa – o que, por vezes, nos fez redirecionar os procedimentos previstos no projeto inicial. É importante salientar que, com a preparação prévia por meio dessas discussões bibliográficas não tivemos em foco dicotomizar teoria e prática – pois, claro, entendemos que o processo de pesquisa se faz no próprio pesquisar: bem como as decisões sobre a pesquisa são tomadas no correr do trabalho. No entanto, essa formação básica prévia antes do trabalho das entrevistas fazia parte do propósito da Iniciação Científica na instituição, em que estudantes de graduação estão tendo contato com seu primeiro projeto de pesquisa no contexto da universidade. a) Paralelamente à discussão mais técnica, no âmbito da metodologia da pesquisa e da apropriação dos aportes teóricos de interlocução, pactuamos estabelecer como nortes de nosso trabalho de entrevistadores os seguintes pilares éticos: tornar a entrevista um momento real e concreto do ponto de vista enunciativo – ou seja, considerar os sujeitos que falam não apenas como “informantes” cujo discurso poderíamos conduzir, mas ouvi-los, real e sensivelmente interessados pelo que tinham a dizer, sobre sua história docente; b) Respeitar os turnos de fala de cada um dos sujeitos, sem, contudo, tornar a situação artificial ou artificiosa, mesmo que para isso tivéssemos que mudar no processo o roteiro inicial de entrevistas;

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c) Não constranger ou coagir os entrevistados a responderem ou relatarem tópicos sobre os quais percebêssemos o desejo de silenciamento, pondo o respeito pelos sujeitos acima dos propósitos da pesquisa; d) Na transcrição7 das entrevistas, buscar ser fiel ao registrado em vídeo, mas não tomar o texto verbal como absoluto em relação ao todo do documento; e) Nas análises, não fragmentar, distorcer ou falsear as falas dos sujeitos a partir de análises isoladas ou pontuais em face de trechos, frases ou palavras; procurar sempre considerar cada enunciado no contexto em que se insere – mesmo que não se desse a ver no vídeo, que era o documento-base de análise (por exemplo, recuperando documentos ou conversas prévias à gravação da entrevista); f) Considerar que, ao trabalhar com aqueles sujeitos de pesquisa, estabelecemos uma relação humana sensível e interessada – desse modo, atentar para o fato (por exemplo, simpatias, identificações, antipatias, rejeições etc.) no momento das análises, mas sem reduzir os sujeitos a meros informantes e sem pressupor a possibilidade de distanciamento ou isenção na análise.

7. No procedimento de transcrição, adotamos convenções bem simples, haja vista que seria a primeira experiência do tipo (realizar transcrição de material) dos pesquisadores em Iniciação Científica. Portanto, para hesitações, utilizamos reticências; para trechos incompreensíveis, utilizamos, entre colchetes, a expressão “trecho incompreensível”; e identificamos cada falante pelo primeiro nome, conforme autorizado pelo termo de consentimento livre e esclarecido, assinado por cada sujeito, aprovado no contexto institucional das orientações então vigentes para protocolos éticos de pesquisa com seres humanos.

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No que diz respeito especificamente às entrevistas, o grupo ponderou que, conjuntamente com os sujeitos da pesquisa, contribuímos com a produção e o estudo de textos memorialísticos (no caso, a partir de entrevistas), que é um gênero radicalmente colaborativo. A grande questão passou a ser: quais as dificuldades, especificidades e cuidados éticos ao se trabalhar com esse tipo de fonte? Por exemplo: quando um professor, em sua entrevista ou depoimento, relata algo que fere a ética docente, como proceder para resguardá-lo e, ao mesmo tempo, não falsear a pesquisa? Iríamos ou não informar previamente os entrevistados sobre o teor das questões e como isso alteraria ou não nosso trabalho? Toda essa discussão esteve, o tempo todo, norteando nossa pesquisa. Como já ponderado, leitura e discussão semanal atenta de diversos textos e obras sobre história oral, uso de fontes orais, registros videográficos etc. Além disso, buscamos em livros didáticos e obras na área de linguística estudos sobre os gêneros em questão e suas nuances. Assistimos, via Youtube, diversas gravações de entrevistas, com distintas finalidades (perceber situações com as quais poderíamos topar; prever problemas e aprender como contorná-los a partir das práticas de entrevistadores experientes etc.). Na sequência, elaboramos: a) um quadro sistematizador das especificidades da entrevista com fins de pesquisa histórica; b) critérios para a seleção de entrevistados (formados e atuantes há pelo menos 10 anos, efetivamente licenciados em Letras ou Pedagogia, com vínculo na educação pública, que atuassem na Grande Vitória); c) um roteiro de entrevista (devidamente adaptado a cada entrevista); d) um termo de consentimento livre e esclarecido a ser lido e assinado pelos sujeitos entrevistados; e) um documento orientador para o técnico em audiovisual que realizaria as filmagens e edições dos vídeos; f) uma carta-convite padrão para os professores e para as instituições a que estão vinculados, para liberação; e g) um quadro de procedimentos para a transcrição das entrevistas. 315


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As entrevistas foram realizadas pelo grupo, no Laboratório de Audiovisual da Ufes, com o mesmo equipamento. As mesmas questões de base foram apresentadas a todos os professores. Tiveram diferentes durações, sendo a menor com 38 minutos e a maior com 3 horas e 22 minutos. Exceto uma, todas aconteceram em terças-feiras à tarde. Todas as entrevistas foram assistidas pelo grupo em formato digital e transcritas por um dos participantes do grupo de pesquisa. Os textos transcritos foram lidos e comentados pelos membros do grupo. Todas receberam tratamento técnico com inserção de créditos e emendas de trechos nos quais havia interrupção, em seguida foram salvas em arquivo digital (no computador do grupo de pesquisa) e em DVD.

Ponderações teórico-metodológicas que nortearam o trabalho No contexto da pesquisa, escolhemos seis fragmentos textuais, que denominamos “citações-chave” para todas as reflexões. Esforçamo-nos para que essas citações-chave preservassem certa integridade, em face dos textos de que foram retiradas; no entanto, temos clareza de que retirá-las de seu contexto de origem e transladá-las a outros textos e contextos as transforma. A primeira delas, dizia respeito à operação de produção de memórias e de escrita da história, e foi colhida ao pensamento de Peter Burke: Tanto a história quanto a memória passaram a revelar-se cada vez mais problemáticas. Lembrar o passado e escrever sobre ele não mais parecem as atividades inocentes que outrora julgavam que fossem. Nem as memórias nem as histórias parecem ser mais objetivas. Nos dois casos, os historiadores apren-

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dem a levar em conta a seleção consciente ou inconsciente, a interpretação e a distorção. Nos dois casos, passam a ver o processo de seleção, interpretação e distorção como condicionado, ou pelo menos influenciado, por grupos sociais. Não é obra de indivíduos isolados. (BURKE, 2000, p. 70)

Sua contribuição decisiva concerniu à problematização da construção da história e da memória. Longe de uma perspectiva que cria na transparência dos documentos ou fontes, essa perspectiva de trabalho entende que lembrar o passado e produzir discursos sobre ele (no caso dos entrevistados) ou produzir discursos sobre o que se lembra dele (no caso dos pesquisadores) não são operações neutras ou transparentes. Desse modo, mais do que as informações pontuais registradas discursivamente pelos entrevistados, interessa notar o que eles escolheram falar e o que escolheram silenciar e procurar entender as razões dessas escolhas, correlacionando-as à situação social e comunitária dos sujeitos, em face das instâncias de poder e legitimação. Quanto à segunda citação-chave, dizia respeito à noção de história e às concepções de sujeitos com que preferimos trabalhar: O objetivo fundamental de uma história que se propõe reconhecer a maneira como os atores sociais dão sentido a suas práticas e a seus enunciados se situa, portanto, na tensão entre, por um lado, as capacidades inventivas dos indivíduos ou das comunidades e, por outro, as restrições e as convenções que limitam – de maneira mais ou menos clara conforme a posição que ocupam nas relações de dominação – o que lhes é possível pensar, dizer e fazer. Essa observação é válida também para as obras letradas e as criações estéticas, sempre inscritas nas heranças e nas referências que as fazem concebíveis, comunicáveis e compreensíveis. É válida, desse modo, para as práticas ordinárias, disseminadas e silenciosas, que inventam o cotidiano. (CHARTIER, 2010, p. 49).

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A partir dessa citação, focalizamos nosso interesse em pensar a noção de história que abraçaríamos. Conforme nossas discussões, essa história não se interessa pelos (grandes) fatos ou episódios – até porque duvida de uma história linear, positivista, centrada em acontecimentos cuja verdade os documentos provam; ela se interessa, principalmente, pelos sujeitos sociais, suas práticas e suas falas. Essa opção por tal concepção de história implica em: a) não negar a existência de um poder que perpassa todas as relações, bem como a existência de relações de dominação no mundo social (com base em questões econômicas, políticas e culturais); no entanto, b) reconhecer as possibilidades de escolhas dos sujeitos e instituições, a despeito das restrições e convenções pelas quais são atravessados. Em paralelo, pensar os sujeitos da história desse modo exige uma lida diferente com as fontes de pesquisa, reconhecendo-os como documentos produzidos no contexto de relações humanas mediadas pela cultura e que constituem e indiciam modos de ser e estar no mundo. A terceira citação escolhida dizia respeito às possibilidades da história oral (já que lidávamos com entrevistas orais): A história oral é uma metodologia de pesquisa e de constituição de fontes para o estudo da história contemporânea surgida em meados do século XX, após a invenção do gravador a fita. Ela consiste na realização de entrevistas gravadas com indivíduos que participaram de, ou testemunharam, acontecimentos e conjunturas do passado e do presente. (...) A história oral é hoje um caminho interessante para se conhecer e registrar múltiplas possibilidades que se manifestam e dão sentido a formas de vida e escolhas de diferentes grupos sociais, em todas as camadas da sociedade. Nesse sentido, ela está afinada com as novas tendências de pesquisa nas ciências humanas, que reconhecem as múltiplas influências a que estão submetidos os diferentes grupos (...) Ao mesmo tempo, o

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trabalho com a História oral pode mostrar como a constituição da memória é objeto de contínua negociação. A memória é essencial a um grupo porque está atrelada à construção de sua identidade. Ela [a memória] é resultado de um trabalho de organização e de seleção do que é importante para o sentimento de unidade, de continuidade e de coerência – isto é, de identidade. (ALBERTI, 2010, p. 155, 164, 167).

Desse trecho, o que ficou mais patente para os pesquisadores foi que a história oral: a) valoriza os sujeitos e seus discursos diretos, em detrimento de fontes oficiais impessoais ou “impessoalizadas”, das quais se busca remover as marcas subjetivas ou individuais – desse modo, a pessoalidade dos registros não é um problema, mas um dado constitutivo da história que se visa a compreender; b) nasce e se sustenta em um contexto de reconhecimento dos diferentes grupos e camadas sociais, em rasura à história valorização de sujeitos e instituições tradicionalmente prestigiados; e c) negocia com os próprios sujeitos suas memórias (participando do seu processo de reelaboração) e, portanto, negocia seus processos identitários, contribuindo com a produção, guarda e estudo de registros, exigindo, portanto, um redobrado cuidado ético por parte dos pesquisadores – desse modo, nem a memória nem a identidade são entendidos como fixos, imutáveis ou dotados de uma essência que lhes confira unidade. A quarta citação-chave foi concernente às articulações e tensões entre concepções particulares e concepções sociais: As representações do mundo social assim construídas, embora aspirem à universalidade, de um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza. As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e práticas (sociais, 319


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escolares, políticas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou justificar, para os próprios indivíduos, suas escolhas e condutas. (CHARTIER, 1988, p. 17).

Especificamente em relação a essa citação, destacamos, nas discussões, que as representações dos sujeitos dadas a ver por meio de discursos e práticas não podem ser tomadas como universais e nem mesmo como representativas de toda uma categoria ou comunidade cultural. Isso porque os diferentes sujeitos ocupam e exercem espaços de poder diferentes nos diferentes contextos de que participam. As percepções do social são interessadas, o que se relaciona com a concepção de linguagem enunciativo-discursiva discutida a partir de Bakhtin. Como a quinta citação-chave, que tinha em vista a pesquisa qualitativa (com seus objetivos e com suas limitações), escolhemos a seguinte: O objectivo dos investigadores qualitativos é o de melhor compreender o comportamento e experiências humanos. Tentam compreender o processo mediante o qual as pessoas constroem significados e descrever em que consistem estes mesmos significados. Recorrem à observação empírica por considerarem que é em função de instâncias concretas do comportamento humano que se pode reflectir com maior clareza e profundidade sobre a condição humana. (BOGDAN, BIKLEN, 1994, p. 70)

Desse trecho, nos interessou, particularmente, ressaltar que nosso interesse maior não seriam, tanto, em si, os resultados da pesquisa, mas o processo, a travessia, ou, noutras palavras, a compreensão dos sujeitos que participaram conosco do trabalho e dos modos como constroem sentidos para si e suas práticas. Desse modo, mais 320


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do que mapear ou inventariar concepções oficiais, conteúdos, metodologias pedagógicas ou recursos didáticos, nosso foco estaria nos sujeitos participantes da pesquisa e nos modos como pensam e se relacionam com essas demais instâncias (concepções oficiais, conteúdos, metodologias pedagógicas, recursos didáticos). Por fim, ao pensar sobre a educação literária, consideramos trabalhar com a seguinte citação-chave: (...) partindo do pressuposto de que um dos principais papéis da educação literária como disciplina de estudos é a representação cultural de sociedades, é preciso observar que ela se submete a imposições verticais, tais como programas e requisitos de avaliação. (LEAHY-DIOS, 2000, p. 43).

Dela, especificamente, retiramos a ideia de que é possível pensar a educação literária como uma disciplina relativamente autônoma dentro do currículo escolar – embora não goze desse prestígio, no contexto histórico investigado – e que se relaciona aos modos como uma cultura e, portanto, uma sociedade, se pensa e representa. Isso sem deixar de considerar que o processo educacional (e o literário, como parte desse processo) está constrangido por instâncias de poder institucionais (escola e universidade, por exemplo) e suprainstitucionais (políticas educacionais, redes e processos editoriais, relações entre intelectuais e mercado, concepções de texto, sujeito e linguagem que circulam em dado momento histórico etc.).

Os sujeitos da pesquisa Os sujeitos da pesquisa são apresentados, a seguir, conforme sua situação (formação e vinculação) no momento de encerramento da pesquisa e produção inicial do relatório.

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Os pesquisadores a) Ana Cíntia Machado Alves: recém-licenciada em Pedagogia, participou por 3 semestres do grupo de pesquisa, primeiramente, como bolsista Ufes de ações afirmativas e, depois, como bolsista Capes; atualmente, é professora substituta em uma escola privada de ensino fundamental, enquanto aguarda sua nomeação como professora efetiva da rede municipal da Serra; b) Ana Cristina Alvarenga: estudante do 7º semestre da licenciatura em Letras-Português, atualmente está no 3º semestre de participação oficial no grupo de pesquisa, sendo dois como voluntária e um como bolsista CNPq; c) Daiane Francis Fernandes Ferreira: estudante do 8º semestre da licenciatura em Letras Português-Francês, atualmente no 5º semestre de participação oficial no grupo de pesquisa, sendo um como voluntária, dois como bolsista Ufes de ações afirmativas e dois como bolsista CNPq; além de finalizar seu TCC; d) Josineia Silva de Sousa: recém-licenciada em Pedagogia, participou por quatro semestres do grupo de pesquisa, sendo dois como bolsista Fapes e dois como voluntária; atualmente, é estudante do 1º semestre de licenciatura em Letras-Português e se prepara para o processo seletivo do mestrado em Letras, tendo sido aprovada na 1ª etapa (Inglês);

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e) Guilherme dos Santos Neves Neto: técnico em audiovisual do Laboratório de Apoio à Graduação do Centro de Educação da Ufes, responsável pela gravação e edição do material; f) Maria Amélia Dalvi: licenciada e mestra em Letras e doutora em Educação; professora dos cursos de Letras e Pedagogia da Ufes; coordenadora do projeto; Os entrevistados Conforme o protocolo ético assinado, os pesquisadores concordaram em ser identificados pelo primeiro nome: a) Cláudia – licenciada em Pedagogia, atuante nos anos iniciais há mais de 21 anos, trabalha como pedagoga em um turno e como docente em outro; b) Lenita – licenciada em Geografia e Pedagogia, com curso de especialização, atuante na educação infantil e anos iniciais há mais de 25 anos, efetiva da rede municipal de Vitória; c) Arlene – licenciada em Letras há 10 anos, com um curso de especialização, mestre em Linguística há cinco anos, atuante como técnica de secretaria de educação da rede municipal de Vila Velha, e atuante no ensino médio como professora efetiva da rede estadual; d) Héber – licenciado em Letras há mais de 15 anos, com dois cursos de especialização, mestrando em Letras, atuante no ensino fundamental como professor efetivo da rede munici-

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pal de Vila Velha há oito anos e no ensino médio como efetivo da rede estadual há 15 anos; e) Ester – licenciada em Letras Neolatinas há mais de 50 anos, tem especialização, mestrado, doutorado e pós-doutorado em Língua e Literatura de Língua Espanhola, foi professora da educação básica durante 20 anos, foi professora universitária federal durante 40 anos e é professora colaboradora de Programa de Pós-Graduação, além de escritora e tradutora; f) Mirtis – licenciada em Letras Português-Espanhol há mais de 35 anos, tem especialização, mestrado, doutorado e atualmente realiza o pós-doutorado em Língua e Literatura de Língua Espanhola; foi professora da educação básica durante 10 anos atuando nas redes pública e privada e é professora universitária federal há mais de 30 anos, atuando na graduação e na pós-graduação em Letras.

Considerações sintéticas a partir do trabalho de pesquisa Em face das considerações teóricas e metodológicas apresentadas, não foi o propósito do grupo de pesquisa expor os resultados individuais das análises das entrevistas, mas pontuar o que elas acenam de comum, no que diz respeito ao ensino de literatura e leitura literária na escola e na universidade, no contexto do Espírito Santo, no período entre 1985 e 2010. Não nos preocupamos em ponderar, por segmento, as práticas e representações mais comuns, mas optamos por enxergar que os

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professores da educação básica e do ensino superior participam de comunidades culturais híbridas, que intercambiam entre si. De igual modo, não trabalhamos com apropriações de documentos oficiais por segmento educacional, mas escolhemos tratar os professores de literatura como uma categoria (ou comunidade cultural). Optamos, também, por não apresentar nossos “resultados” como fatos ou certezas, mas como sínteses de prospecções que realizamos sobre determinados espaços-tempos históricos, a partir das representações e práticas de sujeitos sociais que participam de culturas particulares. Considerações gerais Na correlação entre as pesquisas prévias levadas a turno pelo grupo de pesquisa, as pesquisas desenvolvidas no contexto das linhas de pesquisa em “Educação e linguagens” e “Literatura e expressões da alteridade” e a análise das fontes documentais escritas da pesquisa em tela, podemos pontuar algumas considerações às quais o grupo chegou e que emergem como resultado de nosso trabalho. A primeira delas é que há muitas oscilações na nomenclatura especializada – o que não é um “problema”, mas um dado para o qual os pesquisadores têm que estar atentos e sensíveis. Por exemplo, na análise das pesquisas com as quais dialogamos, dos documentos e dos próprios vídeos, nos deparamos com algumas hesitações: a) “leitura [para esse sujeito, essa pesquisa etc.] se refere apenas à leitura de textos verbais escritos ou também a outras práticas?”; ou: b) “ensino de literatura e educação literária se referem aos mesmos processos ou não?”; ou: c) “avaliação aqui é só avaliação somativa/cumulativa/ pontual ou também se refere à avaliação diagnóstica e processual?”; ou: d) “quando o professor diz que trabalhou com a obra do autor X, ele está se referindo ao texto – supostamente desentranhado da ma-

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terialidade que lhe dá forma – ou ao livro – como objeto cultural?”. Talvez esses cuidados possam parecer “preciosistas”, mas não são, porque têm efeitos diversos na escuta e na análise das entrevistas. Essa proliferação de sentidos possíveis não é indesejável, mas aponta para a espessura da linguagem e das práticas discursivas, espessura à qual o pesquisador deve estar atento, especialmente se trabalhando com uma perspectiva enunciativo-discursiva. A segunda das considerações é que, consoante ao já apontado por Cereja (2005), há ausência de clareza quanto ao objeto literário e a existência ou não de uma especificidade linguística e discursiva em relação ao texto reconhecido socialmente como literário. Quando questionados, os professores em geral defendem haver um “algo” que diferencie o texto literário dos demais (e defendem a importância da lida com o texto literário justamente para a incorporação/apropriação dessa outra dimensão da linguagem, além das práticas cotidianas ou ordinárias ou pragmáticas), mas não reconhecem esse “algo” como fruto de uma convenção social, atinente a dada comunidade cultural – e, portanto, como transitivo e histórico. Uma terceira consideração é que há poucos estudos de relatos e memórias de professores e mesmo de relatos e memórias de leitores em processo de escolarização, seja no contexto brasileiro, seja no cenário internacional. Isso evidencia, ainda mais fortemente, a importância da opção pelas entrevistas orais, pois os documentos videográficos produzidos cooperam no sentido de disponibilizar aos pesquisadores documentos que podem ser tomados como fontes futuras. Uma quarta consideração, sintetizada a partir dos documentos e confirmada pelas falas dos professores – quando se ressentem da ausência de articulação entre universidade e escola –, é que parece haver ausência de articulação entre Teoria da Literatura, currículos de formação de professores e metodologias implementadas em salas

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de aula (de EF, EM e ES) (como já pontuavam Chiappini, 1988 e Ginzburg, 2012), além de um aparente desinteresse pela constituição de uma reflexão teórica sistemática sobre a didática da literatura. Isso tem como consequência, aparentemente, que os grandes impactos teóricos são raramente (e quase sempre tardiamente) incorporados às práticas de planejamento, produção de material pedagógico e avaliação, o que gera certa “esquizofrenia” também nas pesquisas da área. De igual modo, políticas públicas de avaliação em larga escala (ex. Enem, Enade etc.) não favorecem a efetiva leitura literária de textos e obras integrais e não exploram os aspectos estéticos dos textos, frequentemente reduzindo-os a exemplário de usos da língua (ver Zilberman, 2013), o que induz certo tratamento metodológico nas escolas e nos cursos de formação de professores. Uma quinta consideração, sintetizada a partir de dados obtidos por meio da análise de documentos oficiais, é a baixa presença de especialistas em Didática da Literatura ou Educação Literária nos programas e projetos oficiais, quando se compara à Didática da Língua Portuguesa e à Educação Linguística. Isso indicia a fragilidade da área de estudo e pesquisa – e pôde ser verificado, também, por meio de consulta por palavras-chave ou área à Plataforma Lattes, que registra o currículo de pesquisadores atuantes no Brasil. Essa mesma ausência é sentida pelos professores nas esferas locais, na proposição de documentos curriculares em âmbito municipal ou estadual, com base nas entrevistas. Uma sexta consideração concerne à dificuldade de acessar e reunir resultados produzidos por um corpo de pesquisas dispersas (plataformas isoladas, banco de teses e dissertações da Capes, pesquisa Lattes por assunto, portal Domínio Público, portal de periódicos da Capes, Scielo, Diretório de Grupos de Pesquisa no CNPq etc.). Conforme Dalvi e Rezende (2011, p.37),

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há um impulso para a mudança do ensino, com base em teorias voltadas para a recepção; persistem limitações na busca pela internet, pela aparente lentidão das instituições na inserção dos dados; o modo como os pesquisadores identificam suas pesquisas não leva em conta o suporte digital; por fim, os resumos não são suficientemente precisos quanto aos conteúdos dos textos.

Correlacionado a isso, é possível pontuar a aparente “inflação” de publicações e a falta de efetivo e amplo diálogo, apropriação, circulação do conhecimento produzido (MACHADO, 2011); parece que as bibliografias prévias são pouco exploradas; as críticas são indiretas e abertas; há uma dificuldade de delineamento epistemológico; e as revisões bibliográficas são parciais ou lacunares. Ainda atinente a esse tópico, é necessário destacar, no corpo de trabalhos, a influência das Pedagogias do “aprender a aprender” parecem reforçar uma suposta “deslegitimidade” do ensinar (no caso específico, do ensinar literatura) e, portanto, do papel do professor e dos próprios conteúdos a serem apreendidos. Outro ponto é uma possível insipiência da área, manifesta por meio de: predomínio esmagador de dissertações (e não teses); poucos trabalhos orientados pelos mesmos orientadores; poucos orientadores tiveram como percurso as inter-relações entre Literatura e Educação; poucos membros da banca com pesquisa consistente e atual nas inter-relações entre Literatura e Educação; raras instituições com mais de um trabalho (linhas e grupos de pesquisa aparentemente ainda inconsistentes); conclusões frequentemente genéricas ou previsíveis, indicando fragilmente o avanço do conhecimento em relação ao anteriormente produzido. Uma sétima consideração diz respeito ao fato de as pesquisas e o discurso dos professores apontarem, unissonamente, para um trabalho – no contexto do ensino médio e do ensino superior, sobretudo –

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centrado na cronologia histórica, na contextualização distanciada do texto, na apresentação de autores e obras e nas características “mais relevantes” de cada “período” e autor; ou, ainda, para um trabalho que toma o texto literário “apenas” como pretexto ou ponto de partida para o ensino de língua (ROCCO, 1981; MALARD, 1985; MELLO, 1998; CEREJA, 2005; DALVI, 2011). No entanto, muitas dessas conclusões não decorrem de pesquisas de campo, concentrando-se em análises documentais. Nesse contexto em que relativamente poucos trabalhos que partem da sala de aula efetivamente (muita especulação sobre o que aconteceria em sala de aula e poucos dados “concretos”), os novos influxos teórico-metodológicos têm subsidiado a valorização das práticas e do cotidiano escolar e, assim, têm viabilizado trabalhos como os de Santos (2012), Jordão (2011), Oliveira (2010) e outros. De igual modo, as preferências de leitura e as práticas e representações de leitura das crianças, dos adolescentes e dos jovens são frequentemente ignoradas (PINHEIRO, 2006; OLIVEIRA, 2013).

Considerações a partir das entrevistas No que diz respeito à análise empreendida do processo de produção e registro das entrevistas, podemos pontuar, no geral, o seguinte: a) As respostas tendem a não linearidade e apresentam muitos silêncios e truncamentos; b) Houve muita hesitação e dúvida dos entrevistados e depoentes sobre a validade, legitimidade ou importância de seus pontos de vista e da narração de suas práticas; em vá-

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rios momentos, os entrevistadores eram instados a atuar colaborativamente na produção do registro – o que se coaduna à concepção de linguagem adotada e à compreensão da entrevista como um enunciado concreto que participa de uma situação real de ação social; c) Em muitos momentos, aparecem emoções fortes e é necessário respeitar o entrevistado acima do possível interesse de pesquisa (inclusive quanto pede para suspender a gravação porque começa a chorar etc.); d) A presença do equipamento de filmagens parece ter inibido algumas falas ou direcionado outras (“Daqui a alguns anos vão assistir isso a achar um absurdo que a gente fizesse isso na escola, que dissesse essas coisas para vocês, mas as pessoas vão ter que lembrar das condições em que nós trabalhávamos”) – o que indicia também: as especificidades da pesquisa qualitativa (que lida com sujeitos e não com dados ou fatos, prioritariamente) e a consciência da historicidade das práticas e a “negociação de memórias”, que já pontuamos anteriormente; e) Inicialmente, iríamos trabalhar com entrevistas, mas, algumas vezes, a partir de certos questionamentos, pela extensão das respostas, as falas convertiam-se em legítimos depoimentos, o que mostra a natureza cambiante ou híbrida desses gêneros no contexto da pesquisa histórica – e o coloca como um gênero secundário, na acepção bakhtiniana do termo;

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f) Por se tratar de professores, houve na maioria dos entrevistados um cuidado com a forma linguística; alguns queriam se certificar se iríamos transcrever suas falas e como faríamos. (Por exemplo: “Vocês vão colocar entre parênteses assim, ó, risadas”) – o que desmistifica a rígida separação entre as atividades de pesquisador e pesquisado; e, também, demonstra que os professores têm consciência de si mesmos como sujeitos de uma comunidade de interpretação (na qual se espera o partilhamento de certos saberes) e do vídeo em produção como um legítimo objeto de cultura, a ser valorado conforme regimes sociais de legitimação ou não; g) Alguns professores, esclarecidos de antemão sobre a natureza histórica da pesquisa, buscaram levar materiais que comprovassem o que relatavam oralmente; e h) É digno de nota, ainda, o empoderamento de alguns sujeitos da pesquisa ao serem convidados para a realização das entrevistas e ao ouvirem – depois de questionarem se seriam mesmo os sujeitos “ideais” para a atividade – que sim, que suas práticas têm importância para a compreensão histórica do trabalho pedagógico com a leitura e a literatura no espaço-tempo estudado. Seguindo a análise de conteúdo empreendida a partir das falas docentes transcritas a partir das entrevistas, as principais considerações a serem apresentadas (embora não presentes em todas as falas) seriam:

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a) O desafio maior para o trabalho está relacionado à falta de interesse dos alunos e, por isso, a avaliação quantitativa é utilizada como estratégia de “mobilização” para as leituras – o que releva que há um partilhamento entre os profissionais sobre o centro social de poder, no contexto educacional; b) O segundo maior desafio é conseguir tempo escolar para a realização de leituras literárias, porque a massa de conteúdos e atividades previstos pela estrutura escolar impedem que se realizem em salas leituras longas ou debates alentados sobre os conteúdos dos textos literários – o que indicia, por parte das políticas públicas e do cotidiano escolar, uma visão auratizada e, ao mesmo tempo, elitizada da literatura: como um “luxo”, um “a mais”, um algo para quando “sobrar tempo”; c) As maiores conquistas, por outro lado, são quando esses alunos desinteressados chegam ao final do ano ou semestre com um crescimento educacional substancial – o que indicia uma consciência sobre o papel que se espera do docente, na atualidade: como alguém que participa da vida do aluno (pro)positivamente, visando a seu crescimento ou à apropriação dos conhecimentos legitimados pelas comunidades escolarizadas; d) Os professores desconhecem as práticas de leituras literárias dos alunos fora do contexto escolar ou têm apenas especulações sobre que (não) práticas seriam essas – o que mostra que o interesse pelas práticas singulares de sujei-

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tos ainda não é uma perspectiva amplamente difundida no contexto da formação docente inicial e continuada daqueles sujeitos entrevistados; e) Um dos desafios no início da carreira foi como começar a ensinar aos alunos (“falta de preparação didática e metodológica no curso inicial”) – o que reafirma uma separação entre teoria e prática ou indicia uma concepção técnica do trabalho pedagógico com a leitura e a literatura; f) Os professores veem melhoria no trabalho, porque antes não havia tempo para o planejamento escolar e agora há (1/3 da carga horária, no caso dos profissionais da educação básica); porque houve melhorias na infraestrutura física das escolas e da universidade com o passar dos anos e o maior acesso aos materiais pedagógicos e principalmente aos materiais de leitura; porque a internet e os recursos eletrônicos transformaram as práticas pedagógicas e disponibilizaram uma variedade de materiais de pesquisa nunca antes imaginada – o que revela uma consciência aguda sobre a precariedade das condições de trabalho e os resultados das lutas docentes, para garantir o mínimo, que é tempo para estudar e preparar as aulas e condições materiais dignas para o exercício da função-fim da instituição escolar; g) A julgar pelas falas e relatos docentes, o segmento de ensino em que o livro didático parece mais importante é o ensino médio – o que mostra a importância de pesquisas sobre os usos dos objetos culturais atinentes às práticas de leitura e, particularmente, de leitura literária;

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h) Os professores da educação básica enfatizam que um dos grandes desafios que a educação enfrenta atualmente seria a ausência da família na vida escolar dos alunos e de valorização das práticas de leitura e acesso a atividades do universo letrado; e apenas um dos professores pensa que a ausência de formação prévia e de condições de vida favoráveis isentaria os pais de responsabilidade com relação à vida escolar – o que, no geral, permite deduzir que a maioria responsabiliza os pais (independentemente de condição social, econômica e cultural) no tocante ao desempenho escolar dos estudantes no que tange à leitura e à literatura; i) Os professores enfatizam que as práticas vão-se transformando em função da formação continuada – o que indicia a importância dos estudos e pesquisas e a consciência da não essencialidade do trabalho pedagógico; j) Todos os professores se reconhecem como oriundos das camadas populares ou médias e destacam o papel decisivo da leitura e, particularmente, da leitura literária em suas vidas – o que permite uma prospecção futura em relação não apenas à categoria profissional, mas também à condição social para se pensar o partilhamento de imaginários ou perspectivas em relação ao trabalho pedagógico com a leitura e a literatura; e k) Todos os professores relativizam a importância ou alcance dos documentos oficiais, com relação à transformação das práticas – há indício de separação entre as ideias de “discurso” e de “prática”, como se as representações sociais

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nascidas ou forjadas nos centros de poder e decisão sobre a vida escolar (ministério e secretarias de educação) não fossem decisivas para a consignação de opções pedagógicas, reforçando a criticidade e a criatividade dos sujeitos no tocante às operações táticas cotidianas.

Considerações finais Inicialmente, o gênero entrevista constituía-se “apenas” como instrumento de produção de dados para a pesquisa. No entanto, trouxe contribuições adicionais, que talvez se tenham tornado tão ou mais relevantes que os dados produzidos/obtidos. Podemos citar, por exemplo: a) A desmistificação, na prática, da objetividade científica e desenvolvimento da capacidade de escuta atenta e do senso oportunidade/plasticidade do pesquisador b) A reflexão sobre o gênero entrevista, em relação aos sujeitos, situação social, temas e estilos etc.; c) O interesse das licenciandas, no contexto da formação inicial como pesquisadoras, pelas experiências dos professores (com dificuldade, inclusive, de produzir distanciamento analítico) e a aproximação maior com o contexto micrológico da escola; d) A possibilidade de desmistificação em relação à necessidade e à viabilidade de práticas complexas, inovadoras: ideias simples podem ter ótimos resultados, ideias comple-

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xas, sofisticadas, inovadoras às vezes não vão adiante pelas razões mais simples; e) A aproximação dos profissionais em atuação na escola há muitos anos da equipe da Universidade, com sentimento de pertença, cooperação e solidariedade; f) A oportunidade inaudita ou inédita de reflexão para os entrevistados/depoentes (“Nossa, eu nunca tinha parado para pensar nisso”, “Puxa, agora você me pegou, eu não tenho resposta para por que a gente faz isso na escola” etc.), tendo implicações para a revisitação do vivido, organização da experiência, reflexão sobre o presente e o passado; e g) Uma articulação visível e tangível entre os pressupostos teórico-metodológicos e o exercício de produção, seleção, organização e análise de dados. Haja vista a consonância – no geral – entre os depoimentos, a advertência de Peter Burke (2000) quanto ao fato de o processo de seleção, interpretação e distorção ser condicionado, ou pelo menos influenciado, por grupos sociais pareceu bastante pertinente. De igual modo, pareceu confirmar-se a observação de Chartier (2010, 1988), quanto a haver, imbricadas, as capacidades inventivas dos sujeitos e comunidades e as restrições e convenções que limitam essas ações (o que é possível pensar, dizer e fazer em dado contexto), de acordo com a posição que os sujeitos ocupam nas relações. Reiteramos, ainda, a partir de Leahy (2000), que é possível pensar a educação literária como uma disciplina relativamente autônoma (como área apendicial de “Língua Portuguesa”) dentro do currículo escolar – embora não goze desse prestígio, no contexto histórico in336


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vestigado – e que se relaciona aos modos como uma cultura e, portanto, uma sociedade, se pensa e representa: ou seja, o artístico (e mais particularmente o literário), entendidos como um luxo, um “a mais”, um privilégio – têm que estar constrangidos por uma dimensão pragmática: ensinar alguma coisa, atender a alguma finalidade concreta da vida. Isso sem deixar de considerar que o processo educacional (e o literário, como parte desse processo) está constrangido por instâncias de poder institucionais (escola e universidade, por exemplo) e suprainstitucionais (políticas educacionais, redes e processos editoriais, relações entre intelectuais e mercado, concepções de texto, sujeito e linguagem que circulam em dado momento histórico etc.). Face ao exposto, o gênero entrevista, como componente intrínseco ao trabalho com a história oral (ALBERTI, 2010) parece ter contribuído, fortemente, tanto para o desenvolvimento da pesquisa em si (produção de dados), quanto para a formação inicial dos pesquisadores em Iniciação Científica e continuada dos entrevistados. Referências ADÃO, Ana Paula et al. Literatura e infâncias: uma experiência na biblioteca da Criarte. Trabalho de Conclusão de Curso. (Graduação em Pedagogia). Universidade Federal do Espírito Santo, 2013, 40 f. ALBERTI, Verena. Fontes orais: histórias dentro da História. In: PINKSY, Carla B. (Org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2010, p. 155-202. ALVARENGA, Ana Cristina. Ensino de literatura e leitura literária no 2º Grau/ Ensino Médio: cultura, história e memória no Espírito Santo (1985-2010). Relatório final de pesquisa (Iniciação Científica). Universidade Federal do Espírito Santo; PróReitoria de Pesquisa e Pós-Graduação, 2014, 15 f. ANTUNES, Janaína Costa. Práticas de leitura nas séries iniciais do ensino fundamental em uma escola pública. Dissertação de mestrado (Educação). Universidade Federal do Espírito Santo, 2011, 172 f. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Marxismo e filosofia da linguagem. 12ª. ed. São Paulo: Hucitec, 2006. BAKHTIN, Mikhail Mikhailovitch. Estética da criação verbal. 4ª. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

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