Língua e literatura na contemporaneidade: o status do leitor multitarefa. Parte 1

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Copyright 2013 © Frederico José Machado da Silva, Angela Mendonça, Anelilde Lima e Joelma Gomes dos Santos (.orgs) É proibida a reprodução total ou parcial desta obra sem autorização expressa do autores e organizadores. Por se tratar de uma publicação do tipo ANAIS, a comissão organizadora do X EELL, isenta-se de qualquer responsabilidade autoral de conteúdo, ficando a carga do autor de cada artigo tal responsabilidade.

Marca e Identidade Visual do Evento Maturi Comunicação

CaPa, Projeto Gráfico e DIAGRAMAçÃO Karla Vidal e Augusto Noronha. Pipa Comunicação (www.pipacomunica.com.br)

Revisão Os autores

Catalogação na publicação (CIP) Ficha catalográfica produzida pelo editor executivo S5863 SILVA, F. J. M. Língua e literatura na contemporaneidade: o status do leitor multitarefa. Anais eletrônicos. XI Encontro sobre o Ensino de Língua e Literatura / Frederico José Machado da Silva; Angela Mendonça; Anelilde Lima; Joelma Gomes dos Santos [orgs.]. - Recife: Pipa Comunicação, 2013. 635p. ISBN 978-85-66530-27-8 1. Língua. 2. Literatura. 3. Leitor Multitarefa. 4. Anais. 5. XI EELL. I. Título. 400 CDD 82 CDU c.pc:17/13ajns


Prefixo Editorial: 66530

Comissão Editorial Editores Executivos Augusto Noronha e Karla Vidal

Conselho Editorial Angela Paiva Dionisio Antonio Carlos Xavier Carmi Ferraz Santos Cláudio Clécio Vidal Eufrausino Clecio dos Santos Bunzen Júnior Leonardo Pinheiro Mozdzenski Pedro Francisco Guedes do Nascimento Regina Lúcia Péret Dell’Isola Ubirajara de Lucena Pereira Wagner Rodrigues Silva



Ficha Técnica XI Encontro sobre o Ensino de Língua e Literatura VI Congresso Nacional sobre o Ensino da Língua e Literatura Língua e Literatura na Contemporaneidade: o status do leitor multitarefa Curso de Letras da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda Apoiadores Curso de Letras da Faculdade de Ciências Humanas de Olinda Central do Empreendedor Livraria Vozes Maturi Comunicação Equipe de Organização Frederico José Machado da Silva – Coordenador (FACHO) Angela Mendonça – Coordenadora (FACHO) Anelilde Lima (FACHO) Jacinto dos Santos Filho (FACHO) Joelma Gomes dos Santos (FACHO) Suelany Ribeiro (FACHO) Viviane Gomes (FACHO) Marca e Identidade Visual do Evento Maturi Comunicação



Apresentação É com muita alegria que vemos o Encontro sobre o Ensino de Língua e Literatura chegar à sua 11ª edição e o Congresso Nacional sobre o Ensino da Língua e Literatura à sua 6ª. Para comemorar tal feito, este ano publicamos pela primeira vez os Anais1 do Evento em e-book. Além de ecologicamente correto, nosso intuito também foi proporcionar o compartilhamento das ideias geradas pelo Encontro de maneira mais rápida e dinâmica. Nesta edição mais de 50 pesquisadores apresentaram seus trabalhos, além de contarmos com lançamentos de livros, conferências e mesas-redondas. O EELL foi, ao longo desses anos, um local para os pesquisadores iniciarem sua vida acadêmica. Muitos pela primeira vez puderam apresentar trabalhos, divulgar livremente suas ideias, conversar com seus pares. É essa a grande missão do EELL, fazer com que estudantes universitários tornem-se pesquisadores. Para nós, do Curso de Letras da FACHO, é um imenso prazer receber todos os anos vocês.

A comissão Organizadora

1. Por se tratar de uma publicação do tipo ANAIS, a comissão organizadora isenta-se de qualquer responsabilidade autoral, seja de conteúdo ou de estrutura, ficando a cargo do autor de cada artigo tais responsabilidades. 9


Sumário 15

A ABORDAGEM DA INTERTEXTUALIDADE NA NOVA RETÓRICA Gutemberg Lima da Silva

29 A CONSTRUÇÃO DA DIEGESE ATRAVÉS DA FRAGMENTAÇÃO DO

DISCURSO NARRATIVO EM “MEMÓRIAS SENTIMENTAIS DE JOÃO MIRAMAR”, DE OSWALD DE ANDRADE

Walter Cavalcanti Costa

57

A CRIAÇÃO E O DIALOGISMO EM CRÔNICAS DO JORNALISMO BRASILEIRO

Ricardo Rios Barreto Filho

69 A ESCRITA DA MULHER EM BALADA DE AMOR AO VENTO DE PAULINA CHIZIANE

Marcela Darly Mendonça

79 A NEGATIVA MACEDONIANA E A “NOVA” FORMA DO ROMANCE: UMA LEITURA DO MUSEO DE LA NOVELA

Érica Thereza Farias Abreu

103 AMORES QUE OUSAM DIZER SEU NOME: LITERATURA,

MULHERES E HOMOSSEXUALIDADE

Maria do Socorro da S. Medeiros e Hermano de França Rodrigues

119 ARGUMENTAÇÃO NA LIBRAS: ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS VÍSUO-ESPACIAIS

Nídia Nunes Máximo e Patrícia Kelly da Silva Lobo


147 BALADA DE AMOR AO VENTO E O ALEGRE CANTO DA PERDIZ: RELAÇÕES FAMILIARES INTERÉTNICAS

Ilka Souza dos Santos

163 CONCEIÇÃO EVARISTO E ESMERALDA RIBEIRO: SUBVERTENDO ASSIMETRIAS

Roberta Maria da Silva Muniz

181 ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E INTERNET: EM QUE

CONTRIBUEM OS BANCOS DE DADOS (GEO)SOCIOLINGUÍSTICOS?

Edmilson José de Sá

197 ENSINO DE LITERATURA AFRO-BRASILEIRA: representação

do negro e o uso das tecnologias

Francielle Suenia da Silva e Márcia Tavares Silva

215 FIGURA E ALEGORIA:REPRESENTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO EM ERICH AUERBACH E WALTER BENJAMIN

Lucas Antunes Oliveira

233 LITERATURA E POLÍTICA NO ROMANCE DOÑA BÁRBARA (1929) DE RÔMULO GALLEGOS: O PASSADO HISTÓRICO ATRAVÉS DA MEMÓRIA INDIVIDUAL E COLETIVA

Igor de Serpa Brandão Pereira Leite

245 GÊNEROS DISCURSIVOS COMO FORMADORES IDEOLÓGICOS NA PERSPECTIVA DOS ATOS DE FALA

Carla Bione, Geovana Felix, Grace Agra e Mariana Bezerra

295 LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS E ENSINO DE GÊNEROS DIGITAIS

Silvania Maria de Santana

313

MARCAS DA LIBRAS NA ARGUMENTAÇÃO ESCRITA EM PORTUGUÊS POR SURDOS

Camila Michelyne Muniz da Silva


333 O ESTUDO DE SUFIXOS DO PORTUGUÊS EM GRAMÁTICAS ESCOLARES: DESCOMPASSO COM A LÍNGUA EM USO

Rodrigo Fagner Araujo dos Santos Ygor Simões da Silva Pereira

357 O GÊNERO MULTIMODAL VIDEOCLIPE: PROPOSTAS DE

CLASSIFICAÇÃO

Leonardo Mozdzenski

377 O PROFESSOR DE LÍNGUA MATERNA NA CONTEMPORANEIDADE E SUA FUNÇÃO HUMANIZADORA

Maria Lúcia Ribeiro de Oliveira

387 O SOM DO “TAMBOR” RESSOANDO NAS PALAVRAS

Fabiana da Silva Campos dos Santos

399 O TEXTO LITERÁRIO E O USO DE IMAGENS NA POESIA DO

ROMANTISMO EM LIVROS DIDÁTICOS DE ENSINO MÉDIO: DIFERENCIANDO OS TIPOS DE IMAGENS QUE CONTRIBUEM PARA A RECEPTIVIDADE DO ALUNO

Kassiane Alexandra Bastos de Moura

415

OS EFEITOS MULTIMODAIS EM ANÚNCIOS PUBLICITÁRIOS FEMININOS

Raquel da Rocha Conti

439 OS PARÂMETROS CURRICULARES NACIONAIS E O ENSINO DE LÍNGUA MATERNA: ALGUMAS CONSIDERAÇÕES

Mirella Barbosa, Poliana Freire e Regina Donato

457 PROFISSÃO DE FÉ: SER MENOR

Mônica dos Santos Melo

469 PROPOSTAS DE PRODUÇÃO TEXTUAL NO ENEM

Marcela Regina Vasconcelos da Silva


487 Reflexão acerca da literatura adeliana: Representação

da mulher e utilização das mídias digitais

Laysa Cavalcante Costa

497 REPRESENTAÇÃO SOCIAL, MÍMESIS E INTERPRETAÇÃO FIGURAL:

PERSPECTIVAS PARA UMA ANÁLISE EM “A LINHA INVISÍVEL”

Hugo Lopes e Silva

517 SOBRE A HUMANIZAÇÃO DO TEMPO E CICATRIZES DE GUERRA: A CRISE DA NARRATIVA NA ESCRITA DA HISTÓRIA

Rafaela Rogério Cruz

531 SUJEITOS E LUGARES SEMIÓTICOS: O ESPETÁCULO

PERFORMÁTICO DA CULTURA

Hermano de França Rodrigues

545 TEORIAS DOS GÊNEROS E O ENSINO DA LEITURA EM FLE

Herbertt Neves

565 TRÊS CASAS, UM RIO E SEUS ESPELHOS NA DIEGESE DALCIDIANA

Joanita Baú de Oliveira

583 Tu não te moves de Ti: Tadeu (da razão) à luz de Adorno

Amanda Barros de Melo

597 VARIAÇÕES LEXICAIS SOBRE O CATIMBAU NO ATLAS LINGUÍSTICO DE BUÍQUE (PE)

Joseane Cavalcanti Ferreira

613 VARIAÇÃO LINGUÍSTICA E FAIXA ETÁRIA: INTERAÇÃO ENTRE JOVENS

Bruna Maria Paz de Lira

621 Voz narrativa e realismo literário em “A História de Venâncio, Segundo Oficial”

Wanessa Virgínia Rossiter Cavalcanti


Resumo No presente trabalho, discutimos o critério da intertextualidade como elemento formador do texto,. Apresentamos o estudo de Beaugrande (1997) e Beaugrande e Dressler (1989), quando apresentam os critérios de textualidade. A partir desses conceitos, discutimos o conceito de intertextualidade e processos de análise intertextual na visão de Charles Bazerman (2005, 2006, 2007) - com base na Nova Retórica. A metodologia utilizada consiste na revisão crítica da bibliografia dos escritos. Verificou-se que, em Bazerman, a intertextualidade concretiza-se num contínuo, em que os elementos de estudo apresentam-se dos mais aparentes aos mais implícitos, caracterizando-se por oito dimensões para análise do fenômeno. Por fim, conclui-se que o “princípio” intertextual na constituição do texto e seu uso nas relações sociais das mais diversas áreas do conhecimento são de suma importância na participação e compreensão dos eventos sociais. Palavras-chave: texto; intertextualidade; Nova Retórica; Bazerman.


A ABORDAGEM DA INTERTEXTUALIDADE NA NOVA RETÓRICA Gutemberg Lima da Silva1

INTRODUÇÃO Os gêneros textuais, na visão da Nova Retórica, são formas de ação sociais (MILLER, 1994), são artefatos sociais (MILLER, 1994), pois eles se constituem na interação social e se situam num tempo e num espaço de um determinado momento histórico. Por terem essa perspectiva, os gêneros textuais são tipificados, passíveis de serem reconhecidos e utilizados em situações retóricas recorrentes (numa interação social, numa determinada cultura, num determinado tempo e num determinado espaço), chegando a ser reconhecidos como tal em momentos semelhantes de uso (BAZERMAN, 2005). Assim, os gêneros podem se transformar a partir de necessidades sociais. Eles se modificam a partir de situações particulares e seus usuários têm a capacidade de manipular os gêneros adequando-os a partir do uso recorrente (BAZERMAN, 2006). Essa característica dá ao gênero uma flexibilidade e estabilidade relativa, que se vincula à forma, ao conteúdo e à ação produzidos pelo gênero. Miller (1994) afirma que o estudo do gênero deve descrever suas similaridades de substância e suas similaridades de forma, que nos permite proceder e se engajar em similaridades de ação - ou a tipificação, segundo Bazerman (2005).

1. Docente - IFAL, mestrando em Ciências da Linguagem - UNICAP , bolsista do PROSUP/CAPES – gutolimasilva@ gmail.com. 15


Anais Eletrônicos - XI EELL

Essa abordagem de gênero enfatiza os aspectos da dinamicidade, da fluidez e da heterogeneidade dos gêneros. Por isso, utilizam-se dos aspectos intertextuais na sua composição, uma vez que esse critério de textualidade é algo intrínseco ao processo de constituição do texto (BEAUGRANDE; DRESSLER, 2005). O texto é formado por um processo que envolve elementos constitutivos de dimensões linguísticas, cognitivas e sociais, determinando situações de uso (BEAUGRANDE, 1997). Como o gênero deve ser estudado em suas similaridades e na sua substância, há de se estudar também o processo de utilização do intertexto como elemento constitutivo do gênero, percebendo todas as nuances de uso.

INTERTEXTUALIDADE A intertextualidade surge como elemento constitutivo do processo de construção do texto, uma vez que “os textos não surgem isoladamente, mas em relação com outros textos” (BAZERMAN, 2007, p. 92), tanto na escrita quanto no processo de leitura. O conceito do termo no campo dos estudos da linguagem é muito útil, mas um tanto impreciso no campo da análise, principalmente por cada teoria configurá-lo aos seus fins e seus princípios. A intertextualidade é responsável pelas “relações explícitas e implícitas que um texto ou um enunciado estabelecem com os textos que lhe são antecedentes, contemporâneos ou futuros (em potencial)” (BAZERMAN, 2006, p.88). O termo intertextualidade surgiu na literatura. Julia Kristeva em seu trabalho: “Desejo em Linguagem: uma abordagem semiótica da literatura e da arte2”. Nesse texto, a autora afirma que qualquer texto configura-se com um mosaico de citações, uma vez que não há originalidade radical na construção de qualquer texto literário, pois buscamos no intersubjetivo coletivo, oriundo da experiência cultural, para construirmos nossa subjetividade individual. A

2. Desire in Language: a Semiotic Approach to Literature and Art 16


A ABORDAGEM DA INTERTEXTUALIDADE NA NOVA RETÓRICA

intertextualidade é, assim, “um mecanismo através do qual escrevemos a nós próprios no texto social e, desse modo, o texto social nos escreve” (BAZERMAN, 2007, p. 94). Bakhtin (1973), em Marxismo e Filosofia da Linguagem, afirma que é na interação e no processo histórico que o discurso é construído. A enunciação é feita em resposta a outras enunciações anteriores, assumindo uma posição. O autor apresenta que os meios de posicionamento perante enunciados anteriores é pelo o discurso reportado. Bezerman (2007, p. 95), ao analisar o trabalho de Bakhtim, afirma que “as relações entre os textos e outros enunciados são facilitadas por certos mecanismos linguísticos tais como a citação”. O mesmo autor (BAZERMAN, 2007) apresenta, de forma sucinta, as principais correntes da intertextualidade mais conhecidas no meio acadêmico. Kristera cunhou o termo intertextualidade para dissolver a integridade autônoma tanto do autor quanto do leitor dentro do mar de experiências culturais compartilhadas dos textos comuns. Barthes (1977) levou as implicações da intertextualidade ainda mais além do que a dissolução da autoria proposta por Kristeva, chegando à desestabilização do próprio texto, uma vez que o texto apoia-se na evocação de tantos outros textos. Riffaterre (1984) procurou estabelecer uma base para o sentido e para as interpretações textuais no ambiente linguístico, ou intertextos, dentro do qual o texto é lido. Entre os críticos literários, apenas recentemente, Genette retornou a uma análise concreta de como a intertextualidade opera dentro de textos específicos. Em várias publicações, Genette delineou metodologicamente os arranjos das possíveis relações entre textos, o que o autor chamou de transtextualidade: intertextualidade (citação explícita ou alusão); paratextualidade (a relação de circundar diretamente os textos, como no caso de prefácios, entrevistas, anúncios publicitários, resenhas, etc.); metatextualidade (uma relação de comentário); hipertextualidade (o jogo e um texto contra a familiaridade de um outro); e arquitextualidade (as expectativas genéricas em relação a outros textos similares) (1992, 1997a, 1997b). Até mesmo essa elaboração

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Anais Eletrônicos - XI EELL

tem apenas o propósito de explicar o sentido e o efeito literários. A transtextualidade é um método através do qual os textos produzem sentido em um mundo de textos circundantes. (p. 100)

A intertextualidade, devido a sua importância, passou a ser estudada por diversos campos do saber. No campo da Análise do Discurso , Maingueneau (2001), Fiorin & Barros (1994), Brait (1997), Pêcheux (1969); no campo da linguística antropológica, Bauman (2004), também apresenta seu conceito e sua metodologia de análise; no campo da sócio-semiologia, Verón (1980), como lembra Koch, Bentes e Cavalcante (2007); já Authier-Reuz (1982) elaborabora os conceitos de heterogeneidade mostrada e heterogeneidade constitutiva, como lembra Marcuschi (2008).

A intertextualidade segundo Bazerman Bazerman (2007) afirma que a Nova Retórica analisa o elemento do intertexto de maneira mais consistente que os apresentados. O modelo intertextual defendido por essa corrente de estudo perpassa a noção defendida por Bakhtin e Vygotsky, mas vai além, pois “o modo como usamos outros textos enquadra organizações, relações e ações sociais dentro de um mundo de intercâmbio textual” (BAZERMAN, 2007, p. 102). O autor, primeiramente, necessitou incluir no tradicional triângulo da comunicação aristotélico (autor – audiência – assunto), um quarto vértice, a literatura, criando uma pirâmide da comunicação. O conhecimento da audiência e do autor acerca do assunto é construído através de textos anteriores; o conhecimento e a orientação da audiência são baseados em sua leitura; e a autoridade, as fontes, os interesses e o ponto de vista corrente do autor surgem de um engajamento com a literatura.(BAZERMAN, 2007, p. 105)

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A ABORDAGEM DA INTERTEXTUALIDADE NA NOVA RETÓRICA

Com esse modelo de comunicação, a Nova Retórica apresenta uma forma mais consciente da atividade social do texto, que permite o leitor/autor interpretar, avaliar e utilizar efetivamente textos, realizando atos de fala mais precisos para os propósitos comunicativos. Enquanto leitores, às vezes, reconhecemos de forma consciente de onde vêm não só as palavras, mas também os modos como elas estão sendo usadas; outras vezes, a origem apenas sugere uma influência inconsciente. E algumas vezes as palavras estão tão misturadas e dispersas dentro desse oceano que não podem mais ser associadas a nenhum tempo, espaço, grupo ou escritor específico. Apesar disso, o oceano de palavras está sempre à volta de todos os textos. (BAZERMAN, 2006, p. 88)

O autor desenvolveu um quadro em que apresenta uma série de dimensões de apresentação da intertextualidade. Nas cinco primeiras ela apresenta o modo como o intertexto está organizado no novo texto. As três últimas dimensões chamam a atenção para os textos que “subjazem no novo texto, dos quais o escritor pode se valer ou mesmo utilizar para definir a situação do texto corrente” (BAZERMAN, 2007, p. 107). 1. A primeira dimensão é como um texto se refere a outro(s) texto(s) de maneira explícita e integral, incorporando-o. Pode aparecer de forma citada, aludida ou simplesmente não citada, nem aludida, mas servindo de pano de fundo para a construção do texto. 2. A segunda é a dimensão que se preocupa com a forma que a referência toma. Essa forma pode ser por citação direta, alusão, paráfrase até chegar a discursos reconhecíveis, apesar de não referenciados. 3. A terceira dimensão diz respeito ao quão distante o texto pode chegar quanto à referência a outros textos. Essa dimensão delimita19


Anais Eletrônicos - XI EELL

se a capacidade do texto acionar na memória discursiva textos anteriormente citados. Começa-se com o próprio texto, a partes já ditas do próprio texto; passa para uma intertextualidade intra-arquivo, no qual um texto retoma outro de mesmo campo discursivo; chegando a campos discursivos diferentes, diferentes épocas ou lugares. 4. Na quarta dimensão, o material intertextual deve ser visto como recurso de apropriação do sentido, isto é, o ponto de vista, a avaliação ou a síntese em que o novo autor situa o intertexto no novo contexto, atribuindo novos sentidos. 5. Já na quinta dimensão, analisa-se como o material intertextual é usado como elemento retórico de argumentação na construção do texto. 6. A sexta dimensão preocupa-se com a situação de uso do texto corrente. Que textos anteriores foram necessários para que o texto atual fosse feito, constituindo-se? O autor apresenta exemplos para clarificar essa dimensão: “que ementa de curso, tarefas escolares, leituras dirigidas, livros citados em aula e trabalhos anteriores levaram ao trabalho que deve ser entregue amanhã?” (BAZERMAN, 2007, p. 107) 7. Nessa dimensão, preocupa-se com a construção do gênero textual. Todo gênero em construção, sendo escrito, advém de experiências com outros gêneros anteriores, idênticos ou não, para construção de parâmetros e expectativas. Além de possibilitar modelos de escrita, o autor informa que só através desse processo há o espaço para a criatividade de modificação do gênero.

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A ABORDAGEM DA INTERTEXTUALIDADE NA NOVA RETÓRICA

8. Diz respeito ao conjunto de documentos relevantes que podem ser trazidos para dar apoio ou para serem usados como uma fonte para o documento corrente. O domínio dos conceitos e métodos do uso do intertexto é uma necessidade retórica, uma vez que esse domínio dá poder aos escritores e leitores sobre o processo de construção de texto, e ainda pode influenciar a forma como “jogamos” com o texto nos contextos de uso. Bazerman (2007, p. 109) afirma: se temos que entender como sofremos uma ação, como podemos ‘re-agir’ e como podemos agir com vigor nesse nosso complexo mundo letrado – onde as principais instituições e esferas de atividade estão saturadas por textos –, então precisamos nos deslocar para uma compreensão mais rica e participativa da intertextualidade.

Segue, abaixo, o modo como as cinco primeiras dimensões são trabalhadas metodologicamente.

Níveis de intertextualidade Os níveis de intertextualidade apresentam-se como um contínuo que segue do mais explícito, se aprofundando ao nível de implicitude que necessita um maior conhecimento do universo cultural de elaboração/processamento do texto, seguindo: • Como uma fonte de sentidos, usada como valor nominal – ocorre sempre que um texto apresenta declarações de outras fontes autorizadas, repetindo essa informação autorizada para os propósitos do novo texto.

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Anais Eletrônicos - XI EELL

• Como dramas sociais explícitos de textos anteriormente mencionados na discussão sobre o drama em questão. Nesse nível, o intertexto apresenta-se quando se apresenta no discurso os elementos já citados sobre esses dramas, construindo um histórico de discussão, em que o novo texto ajuda, ou não, na discussão atual. • Como pano de fundo, apoio ou contraposição, sempre que se deseja fundamentar uma análise. Nesse nível, a intertextualidade apresenta-se como elemento da construção retórica da argumentação. O intertexto aparece como mais um argumento utilizado na defesa de um ponto de vista. • Quando se apoia em crenças, questões, ideias e declarações amplamente difundidas e familiares aos leitores, de maneira menos explícita, percebidas como senso comum ou de fontes específicas. O uso do intertexto é um mecanismo de alusão, de forma consciente ou não, a textos consagrados ou conceitos bem conhecidos culturalmente. • Quando do uso de certos tipos reconhecíveis de linguagem, de estilo e de gêneros. “Cada texto evoca mundos sociais particulares onde essa linguagem ou essas formas linguísticas são utilizadas, normalmente com o propósito de identificá-lo como parte daqueles mundos” (BAZERMAN, 2006, p. 94). • Através de recursos linguísticos disponíveis, sem chamar a atenção de modo particular para o intertexto. Cada texto, a todo instante, depende da linguagem disponível no momento histórico e faz parte do mundo cultural de todos os tempos.

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A ABORDAGEM DA INTERTEXTUALIDADE NA NOVA RETÓRICA

Técnicas de Representação Intertextual Esses níveis de intertextualidade acima descritos aparecem, de modos específicos nos textos, através de seis técnicas, consagrando a segunda dimensão, que Bazerman (2006, p. 94) assim apresenta: • Citação direta: a citação direta é normalmente identificada por aspas, pelo adentramento do parágrafo, por caracteres em itálico ou por outro recurso tipográfico destacado das demais palavras do texto. Embora as palavras possam ser inteiramente aquelas do autor original, é importante lembrar que o segundo autor, ao escrever a citação, exerce total controle sobre que palavras serão citadas exatamente, que partes da citação serão excluídas e em que contexto serão usadas. • Citação indireta: Essa técnica, geralmente especificada a fonte, procura a partir daí reproduzir o sentido original, usando, contudo, palavras que reflitam a compreensão do autor, a sua interpretação ou a sua perspectiva diante do texto inicial. As citações indiretas filtram o sentido através das palavras e atitudes do segundo autor, permitindo que os significados sejam mais integrados aos seus propósitos. • Mensão a uma pessoa, a um documento ou a declarações. A menção a documentos ou a autores depende da familiaridade do leitor com a fonte original e com o que ela diz. Nenhum detalhe dos sentidos é especificado. Assim, com relação ao texto original, o segundo autor tem ainda mais oportunidades de deixar implícito o que quiser ou de se basear em crenças generalizadas, sem ter que evidenciá-las, como fazem jornalistas em relação aos defensores e críticos.

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Anais Eletrônicos - XI EELL

• Comentário ou avaliação acerca de uma declaração, de um texto ou de outra voz evocada. Toda vez que há explicitação linguística de concordância, desaprovação, ridicularização, etc. a um texto ou declaração evocado. • Uso de estilos reconhecíveis, de terminologia associada a determinadas pessoas ou grupo de pessoas, ou de documentos específicos. Essa técnica faz referência à determinados estilos de composição textual que estão associados a pessoas, instituições, grupos, ou documentos, que necessariamente colaboram com a construção textual, demonstrando textos anteriores em sua composição. • Uso de linguagem e de formas lingüísticas que parecem ecoar certos modos de comunicação, discussões entre pessoas e tipos de documentos. Os gêneros, os tipos de vocabulário (ou registro), as frases feitas e os padrões de expressão podem ser enquadrados nessa técnica.

Distância ou Alcance Intertextual Bazerman (2006, p. 96) ainda apresenta conceitos importantes para a construção de uma análise, num contínuo de explicitude: “com freqüência, as relações intertextuais são também mais facilmente reconhecíveis quando os empréstimos textuais envolvem alguma distância no tempo, no espaço, na cultura ou na instituição”. Essa distância do texto, é chamada de alcance intertextual. Divide-se: • Referência intertextual: quando um documento usa partes de textos que já haviam aparecido anteriormente, fazendo-as ecoar ou desenvolvendo-as.

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A ABORDAGEM DA INTERTEXTUALIDADE NA NOVA RETÓRICA

o Intretextualidade intra-arquivo (intracorporativa ou intraindustrial): um texto pode até alcançar um ponto mais distante, mas permanecer em um domínio discursivo limitado. o Coleção intertextual (intrasistema, interdisciplinar): um texto pode alcançar um ponto mais distante, envolvendo outros domínios discursivos ou conjunto qualquer, que se combinam para construir uma representação nova.

Movimentos através de Contextos/ Recontextualização Essa quarta dimensão é analisada de forma a perceber os novos contextos de utilização do intertexto, pois isso necessariamente acarreta um novo sentido ao texto evocado, a partir do novo contexto. Esse procedimento é chamado de recontextualização. “Em certas ocasiões, a recontextualização passa desapercebida, uma vez que os sentidos originais não estão distantes do sentido no novo contexto. Já em outros momentos, contudo, a mudança é significativa” (BAZERMAN, 2006, p. 98). A quinta dimensão associa-se a modelos típicos e esperados de intertextualidade para construção de uma argumentação ou defender um ponto de vista. Num estudo científico, espera-se citações de estudos anteriores; numa reportagem polêmica, espera-se opiniões contrárias; etc. “A intertextualidade não é apenas uma questão ligada a que outros textos você se refere, e sim como você os usa, para que você os usa e, por fim, como você se posiciona enquanto escritor diante deles para elaborar seus próprios argumentos” (BAZERMAN, 2006, p. 103). O uso pode ser sutil ou complexo de invocar o texto alheio. Muitas vezes estamos tão habituados a essas elaborações intertextuais que, muitas vezes, não nos apercebemos do uso e das estratégias de uso.

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Anais Eletrônicos - XI EELL

CONSIDERAÇÕES FINAIS A Nova Retórica, através de Bazerman (2005, 2006, 2007), apresenta o intertexto estabelecendo relações, organizações e ações sociais. A inclusão da literatura no modelo de comunicação aristotélico possibilitou acrescer uma nova forma de estudo do processo de interação. A intertextualidade apresenta-se como princípio da elaboração de texto, como apresenta bem Marcuschi (2008), quando afirma que o intertexto é mais que um critério, apresenta-se com caráter de princípio. As dimensões apresentadas por Bazerman (2007) apontam para a presença do intertexto, mas falta ainda uma construção metodológica para a análise de algumas dimensões, constituindo um campo de estudo fértil para os propósitos de análise do processo de leitura/escrita dos textos. Na primeira dimensão apresentada, o autor se preocupa como o autor se apropria do intertexto. Para essa dimensão, o autor apresenta os níveis de intertextualidade. Na segunda dimensão, o autor apresenta a forma que toma o intertexto no processo de incorporação no novo texto. Para essa dimensão, o autor apresenta as técnicas de intertextualidade. Na terceira dimensão, o autor destaca o potencial de referenciação do novo texto aos textos anteriores, partindo do próprio texto, passando pelos textos do mesmo campo discursivo, indo aos textos de campos discursivos diferentes. Já na quarta dimensão, o autor estabelece como o sentido original encontra-se (ou confronta-se) com o novo sentido dado/reafirmado no novo texto. Na quinta dimensão, ainda menos esclarecedora, o autor preocupa-se como se dá o intertexto a partir da construção retórica do argumento. Na sexta, o autor parece querer estudar a constituição histórica do novo texto. Na sétima dimensão, o autor preocupa-se com a intertextualidade entre gêneros a partir de sua configuração. Na oitava, o autor faz referência à memória discursiva do texto. Assim, de forma ainda não acabada, mas fruto da experiência e reflexão sobre o texto, o autor apresenta um arcabouço metodológico para as cinco primeiras dimensões, restando ainda discussão sobre as outras três últimas. 26


A ABORDAGEM DA INTERTEXTUALIDADE NA NOVA RETÓRICA

REFERÊNCIAS BAZERMAN, Charles. Gêneros textuais, Tipificação e Interação. São Paulo: Cortez, 2005. ______. Gênero, agência e escrita. São Paulo: Cortez Editora, 2006. ______. Escrita, Gênero e Interação Social. São Paulo: Cortez, 2007. BEAUGRANDE, Robert-Alain de. New foundations for a science of text and discourse: cognition, communication and the freedom of access to knowledge and society. New Jersey: Ablex, 1997. ______; DRESSLER, W. U. Introducción a la lingüística del texto. Barcelona: Ariel, 2005. KOCH, I. G. V.; BENTES, Anna Cristina; CAVALCANTE, Mônica M. Intertextualidade: diálogos possíveis. São Paulo: Cortez, 2007. MARCUSCHI, L. A. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008. MILLER, C. Rhetorical Community: the cultural Basis of Genre. In: FREEDMAN, A.; MEDWAY, P. (Eds.). Genre and the New Rhetoric. London/Bristol: Taylor & Francis, 1994, p. 67 -78. sendo que “a sobrevivência da mimese [...] define a arte como uma forma de conhecimento e sob este aspecto, como também racional” (1982, p.69). Logo,

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Resumo Resumo O presente trabalho analisa algumas narrativas presentes na obra Você me Deixe, Viu? Eu vou bater o meu tambor, O presente artigo apresenta os resultados análiseNesses, do romance Memóriascomo Sentimentais de autoria de Cidinha da daSilva. observo de João Miramar, de Oswald de Andrade, e traz como a construção da diegese, essas escritas podem se distinguir dastema escritas tradicioentendendo-se queque esta forma resulta da fragmentação da as narrativa. abordagem crítica nais e de dialogam com novasAtendências escolhida análise foi a estrutural, base nos teóricos Genette (1979), Todorov daspara escritas literárias nocom cenário brasileiro. Sobretudo, (2008),observo Pouillon (1974), (1972), Silvagrupos (2009), no que respeita à organização comoMendilow determinados escamoteados na do discurso narrativo. Já em relação às personagens, tomou-se como princípios teóricos sociedade e as relações do cotidiano, que nos passam Candido (2000), Forster (1974). ”, são situadas social, cul“despercebid@s tural e institucionalmente, por meio da literatura.

Palavras-chaves: Romance; Fragmentação da narrativa; Análise estrutural; Oswald de Andrade. Palavras-chaves:

literatura; sexualidade; gênero.


A construção da diegese através da fragmentação do discurso narrativo em “Memórias Sentimentais de João Miramar”, de oswald de andrade Walter Cavalcanti Costa1 Profª. Drª. Cristina Botelho (Orientadora)

INTRODUÇÃO A primeira metade da terceira década do século XX foi, decerto, uma das maiores manifestações culturais que o Brasil já vivenciou: trata-se do Modernismo. Encabeçado por Mário de Andrade e Oswald de Andrade, o movimento de 1922 buscou, sobretudo, atualizar as artes nacionais frente à efervescência cultural europeia e criar um estilo próprio. As Memórias Sentimentais de João Miramar, de Oswald de Andrade, estão inseridas cerca de dois anos após este contexto. Com uma repercussão bombástica e seu estilo telegráfico, Andrade (2004) atualizou o romance brasileiro frente às vanguardas europeias. Processou a cultura estrangeira e regurgitou em fragmentos o seu alter-ego “João Miramar”, sob o qual traz diversas passagens de sua vida. A diegese é o ponto de partida deste trabalho, sob o olhar da fragmentação do discurso narrativo. A estrutura da obra será contemplada sobre os aspectos de tempo, modo, voz e personagem. O artigo está organizado da seguinte forma: Primeiro são apresentadas as categorias da narrativa, embasadas nos teóricos: Genette (1979), Todorov (2008), Candido (2000), Forster (1974), Pouillon (1974), Mendilow (1972), Silva (2009). Em seguida, uma parte será dedicada para entender o autor Oswald de Andrade.

1. Artigo adaptado do Trabalho de Conclusão de Curso da Especialização em Literatura Brasileira, da Universidade de Pernambuco – Campus Nazaré da Mata, em outubro de 2013. 29


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No momento posterior, será analisada a estrutura da narrativa do objeto de estudo, na abordagem das questões tempo, modo, voz e personagem, com ênfase na diegese e fragmentação do discurso narrativo. Ao longo do artigo, por uma questão de fruição, o título do objeto de estudo, a obra Memórias Sentimentais de João Miramar será abreviada para “MSJM”. A análise da estrutura da narrativa é essencial para a compreensão de MSJM. O emaranhado de concepções críticas e abordagens teóricas dos estudiosos da área para classificação da narrativa e do romance são importantes para ser possível conseguir entender, visualisar melhor a arte. Isto é dito, pois, só gosta de arte quem entende arte e só entende arte quem conhece arte. Por isso estudar arte: a sua composição, o seu esqueleto. Este trabalho parece ser nada mais que um prelúdio. Uma breve análise desta obra MSJM, que, sem dúvida, merece algo bem maior, isto é, uma análise mais detalhada. A análise é breve, pois para entender as estruturas complexas de encadeamento textual é preciso de espaço. Este espaço ajuda a entender escritores de vanguarda, como no caso, Oswald de Andrade. Uma análise mais longa ajuda a entender a sua técnica e o significado dessa massa de significados que é MSJM. Dito isto, é importante completar que MSJM é, certamente, o romance que tem uma das maiores rupturas estéticas não só na literatura nacional, mas da literatura mundial. O que impede a sua consagração universal é o entendimento. Andrade (2004) já sabia disso, e alerta para isso em uma das duas citações escolhidas por ele mesmo antes do início de MSJM. E se achar que falo escuro não m’o tache, porque o tempo anda carregado; acenda uma candeia no entendimento... Arte de furtar. (ANDRADE apud Anônimo do século XVII, 2004, p. 67).

Categorias da Narrativa A análise estrutural da narrativa não procede essencialmente de descrição da obra, ou, muito menos, de uma descrição completa da obra. É, antes de tudo, 30


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uma abordagem que visa encontrar, sim, a estrutura abstrata da obra literária, conforme Todorov (2008, p. 80). Vale ressaltar também que este tipo de análise é propedêutico a qualquer estudo da literatura, pois norteia o entendimento de uma obra partindo da estrutura da mesma. Mesmo sem ser tão comum, Todorov (2008) faz uma análise partindo da intriga e não do discurso. Faz isso com quatro contos da obra Decameron de Boccacio para perceber uma sequência lógica nesta intriga nos quatro contos diferentes. Isso justifica a análise da estrutura abstrata da obra e não da descrição da obra completa. Existem três acepções para a palavra “narrativa” (récit) como subdividiu Genette (1979, p. 24, 25): narrativa enquanto história ou diegese (este último termo dos teorizadores da narrativa cinematográfica), ou seja, aquilo o que se conta; narrativa enquanto discurso; narrativa enquanto o ato de narrar, ato ilocutório, narração, seja escrito ou falado. Para evitar confusões, é importante perceber a diferença entre cada termo acima mencionado em itálico, pois os dois primeiros desses termos norteará a presente análise. Mendilow (1972), em suas primeiras páginas aponta a obsessão pelo tempo por parte dos autores das narrativas do século XX. Mostra a exaltação da velocidade através da clássica fórmula da Física em que esta é a relação da distância com o tempo. Distância é o espaço que se coloca um indivíduo para a realização de uma determinada atividade em determinado tempo, e tempo é dinheiro. Sucesso é a velocidade. Esta é a lógica moderna deste processo. Obviamente que, dentro deste contexto, as artes também sofreram mudanças: Para os romancistas, a simetria estática do antigo enredo autônomo não pode mais ser imposta sobre o amorfo dinâmico da vida, a qual eles sentem um fluir variável do que como um ser imutável. O princípio heideggeriano da indeterminação encontra seu equivalente na sua técnica da “corrente da consciência”: eles tentam “registrar os átomos à medida que eles caem na mente”; rompendo com as categorias da língua e da sintaxe, lutam para expressar seu senso de vida como uma sequência de

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impressões não causais, na qual se pode predizer o caminho das grandes unidades, mas nunca das pequenas componentes. Alguns deles, procurando fragmentos para escorar suas ruínas, opuseram ao confuso caos de sua visão pessoal a claridade de uma estrutura anterior, esperando, assim, encontrar um ritmo mais amplo em surgimento, um ritmo que corresponda aos arquétipos percebidos e guardados nas melhores obras de civilizações mais antigas. (MENDILOW, 1972, p. 8, 9).

O trecho acima ilustra bem como se processa a ruptura estética e como ela influencia o trabalho de um autor. O princípio da indeterminação de Heidegger exalta a “corrente da consciência”, em que o fluxo de ideias do autor corre naturalmente na escrita. Isso contribui para o rompimento da língua e da sintaxe. Os fragmentos escoram estes fluxos de consciência, acelerando arte e compondo um grito gurutal espontâneo, assim como as civilizações primórdias. Contextualizado o gênero romance, é preciso entender um ponto essencial dos romances: a tipologia. Basicamente são três: 1- romance de ação ou acontecimento; 2- romance de personagem; 3- romance de espaço. O primeiro tem foco nas ações, nos acontecimentos, nas intrigas do próprio romance e apresenta uma cronologia começo-meio-fim bem estruturados. O segundo tem por foco uma personagem central, o protagonista, é trabalhado pelo autor com muito cuidado, geralmente o título da obra tem o nome deste personagem. O terceiro valoriza ou prioriza mais o local onde acontecem as ações, muitas vezes chega a levar alguns críticos a considerar o espaço uma personagem de uma narrativa, este tipo de romance é próprio do Naturalismo brasileiro (SILVA: 2009, p. 685). Quanto à diegese, o romance pode ser fechado ou aberto. O fechado se possuir uma diegese bem demarcada, com começo, meio e fim. O aberto se não especificar sobre o destino dos personagens (SILVA: 2009, p. 726-728). O estudo sobre o discurso narrativo é bem dividido por Genette (1979). São basicamente três: tempo, modo e voz. O tempo aparece nos três primeiros capítulos, com as denominações: ordem, duração e frequência.

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No capítulo de Ordem, Genette (1979, p. 31) alerta para dois tempos da narrativa: um tempo para a coisa-contada, que equivale ao significado do texto, ao tempo da diegese; e o tempo da narrativa, que equivale ao significante, tempo da narrativa através do seu discurso. É uma das funções da narrativa a mudança de um tempo para outro. Havendo assim, no texto narrativo, o tempo da história, diegese, e o tempo do discurso. A disposição do tempo na narrativa pode ter discordância no que diz respeito à ordem da história e de narrativa. Este fenômeno é chamado de anacronia. Esta discordância não é tão moderna, sendo encontrada inclusive na Ilíada de Homero. Alguns termos essenciais também usados são: prolepse - agarrar adiantadamente e analepse – agarrar ulteriormente; elipse – avanço sem recuo e paralipse – falsa omissão, preterição (deixar passar em branco); alcance – distância temporal e amplitude – duração de história. Acronia – acontecimento sem data nem idade. Sobre este último tipo, Genette (1979, p. 83) diz: “Essa sucessão não mantém nenhuma relação com a ordem temporal dos acontecimentos que a compõem, ou, simplesmente, uma relação de coincidência parcial”. No capítulo de Duração, Genette (1979, p. 86) alerta para outra questão importante da fragmentação narrativa: não existe igualdade de tempo entre narrativa e história. A seleção de duração de fatos é o que determina o ritmo. E a descrição, é também um fato narrativo, não pode ser considerada como uma pausa narrativa. As elipses podem ser explícitas, implícitas ou hipotéticas. Segundo Genette (1979), a frequência pode ser classificada de três modos: singulativo, repetitivo e iterativo. O primeiro pode ser tanto contar uma vez aquilo que se passou uma vez (1N/1H) Ex: Ontem deitei-me cedo, quanto contar n vezes aquilo que se passou n vezes (nN/nH). Ex: Segunda-feira deitei-me cedo, quarta-feira deiteime cedo, etc... Ou seja, há uma equivalência na quantidade de acontecimentos com a quantidade de vezes que é contado. O segundo refere-se a contar n vezes aquilo que só se passou uma vez (nN/1H). Ex: Ontem deitei-me cedo, ontem deitei-me cedo. Por último há o iterativo: contar uma vez (ou antes: numa única vez) aquilo que se passou n vezes (1N/nH) Ex: Segunda-feira deitei-me cedo, terça-feira, etc...

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O Iterativo, por sua vez, pode ser subclassificado como: iteração interna ou sintetizante e pseudo-iterativo. No primeiro caso, a silepse iterativa se exerce não sobre uma duração exterior, mais vasta, mas sobre a duração da própria cena. Ou seja, há a condensação de fatos de uma única cena, não de fatos exteriores. No segundo caso, a apresentação de cenas, particularmente pela sua redação no imperfeito como iterativas, ao passo que a riqueza e a precisão dos pormenores fazem com que nenhum leitor possa seriamente crer que elas se verificaram e reverificaram várias vezes, sem qualquer variação, ou seja, as descrições, elementos externos à cena, iteram o texto (GENETTE, 1979, p. 114-121). No que diz respeito à mimese, inicialmente deu-se a origem da utilização do termo por Platão e Aristóteles. Faz-se desnecessário entender este uso para esta análise. Em dado momento de sua argumentação, Genette (1979) contesta o uso da mimese como uma imitação da história, assim como propunha os gregos antigos. Faz isso, por entender que não existe uma mimese em si, mas uma ilusão da mimese, pois é a única mimese narrativa possível, pela razão única e suficiente de que a narração, oral ou escrita, é um fato de linguagem, e a linguagem significa sem imitar e completa: “É que a mimese verbal não pode ser senão mimese do verbo. Quanto ao resto, não temos e não podemos ter mais que graus de diegésis” (GENETTE, 1979, p. 162). Outro tipo de categoria narrativa é a perspectiva narrativa, que é o modo sob o qual esta é contada. Na questão da visão, ou seja, como a narrativa é vista pelo leitor, ou melhor, apresentada para o leitor, para Pouillon (1974) pode ser de três tipos: por detrás, em que o autor conhece tudo da narrativa (onisciência), mas não participa dela; com em que a visão do narrador coincide com a da personagem; de fora, em que o narrador apenas narra o que vê, sem participar da narrativa. Em termos de focalização, Genette (1979, p. 187, 188) classifica três tipos: 1- Não-focalizada ou focalização zero : representa a narrativa clássica. 2- Focalização interna, que pode ser: fixa, se mantém a visão de uma personagem; variável, se passa por mais de uma personagem; múltipla: quando a alternância é

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em maior grau. 3- Focalização externa: quando vemos o herói desenvolver suas ações sem saibamos o que ele sente, o que se passa dentro dele. No que se refere a voz, consoante Genette (1979), seria esta a ação verbal em relação às personagens e a quem relata os acontecimentos, no caso, o narrador. Sobre o papel do narrador na narrativa Genette (1979, p. 243, 244) difere na questão da nomenclatura e concepção teórica em relação a Pouillon (1974) e classifica como heterodiegético, homodiegético e, num caso mais específico, autodiegético. Na primeira classificação, o narrador encontra-se ausente da história que conta. Como exemplo de narrador heterodiegético, Genette (1979) aponta Homero na Ilíada. As peripécias de Ulisses são contadas por um narrador que não se relaciona diretamente com a diegese. Na segunda classificação, o narrador apresenta-se como personagem na história que conta – ou o narrador é o herói da sua narrativa ou tem papel secundário. O primeiro tipo de narrador homodiegético é chamado de autodiegético, por ser o grau mais forte de intromissão do narrador. Brás Cubas, em Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, é um narrador autodiegético, por ser o protagonista da narrativa. O segundo tipo de narrador homodiegético pode ser exemplificado por Watson, fiel companheiro de aventuras de Sherlock Holmes, de Sir Arthur Conan Doyle, por contar e desempenhar um papel secundário na narrativa. Uma vez sabido e classificado que em uma narração existe um narrador – aquele que conta determinada narrativa, e que, dependendo do seu grau de aproximação pode ser heterodiegético, homodiegético, ou ainda, autodiegético: variação do grau homodiegético – há de se perceber que ainda é necessária outra entidade no processo narrativo. Se há alguém que conta, com certeza há alguém que escuta, especta, participa de alguma forma da narrativa no papel de receptor e às vezes serve de retorno ideal do narrador, ou seja, aquele que recebe a obra. Narratário é a quem o narrador escreve, um tipo de leitor imaginário a quem o narrador se dirige:

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Como narrador, o narratário é um dos elementos da situação narrativa, e coloca-se, necessariamente, no mesmo nível diegético; quer dizer que não se confunde mais a priori, com o leitor (mesmo virtual) de que o narrador com o autor pelo menos não necessariamente (Genette, 1979, p. 258).

Quanto ao tempo da narrativa, há quatro possibilidades, segundo Genette (1979): ulterior, anterior, simultânea e intercalada. A primeira é classificada de tal forma se tiver a posição clássica de narrativa no passado. A segunda, geralmente no futuro, mas pode ser conduzida no presente. A terceira, se estiver ambientada no presente, contemporânea. A quarta, entre os momentos da ação. Quanto aos níveis narrativos, Genette (1979, p. 227, 228) separa-os em dois níveis. Assim, no primeiro nível temos: extradiegético. Num segundo nível: intradiegético. Extradiegético é o nível na narrativa primeira, da narrativa primordial. Dentro da perspectiva de segundo grau, intradiegético, os acontecimentos são chamados de metadiegéticos, e metanarrativa esta segunda narrativa. Vale atentar que Genette (1979) sempre trabalha com a dicotomia diegese/narrativa, por isso há necessidade de sempre inserir esta análise. Em dado momento, explica: – metadiegese e metanarrativa – e explica: “Definiremos essa diferença de nível dizendo que todo o acontecimento contado por uma narrativa está num nível diegético imediatamente superior àquele em que se situa o ato narrativo produto dessa narrativa” Genette (1979, p. 226). Em suma: Usa o prefixo meta- (passagem para o segundo grau): Metanarrativa – Narrativa da narrativa. Metadiegese – universo da narrativa segunda. Uma narrativa teria, pois, pelo menos dois níveis: um primeiro, dos acontecimentos mais importantes de uma história e um segunda com os acontecimentos secundários. Sobre personagem, Forster (1974, p. 58, 59) alerta que o escritor cria o personagem de acordo com uma linha de coerência, pois as personagens são mais coerentes que os seres vivos. Assim, podemos partir para a classificação das personagens, que pode ser esférica ou redonda, se a personagem for complexa e sofrer muitas modificações no seu caráter e nas suas atitudes, como pode ser 36


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plana ou linear, se a personagem se mantiver estável, com um caráter uno do começo ao fim da diegese. Vale observar o seguinte trecho para ratificar este raciocínio: Pois devemos admitir que as pessoas planas não são, em si, realizações tão notáveis quanto as redondas e que também são melhores quanto cômicas. Uma personagem plana séria ou trágica tende a tornar-se enfadonha. Cada vez que aparece gritando: “Vingança!” ou “Meu coração sangra pela humanidade!” ou qualquer que seja sua fórmula, nosso coração desfalece. Um dos romances de um popular escritor contemporâneo gira em torno de uma fazendeiro de Sussex que diz: “Tenho que arar esse tojal!”. Lá está o fazendeiro, lá está o tojal. Ele diz que vai ará-lo, como de fato acontece, mas não é a mesma coisa do que dizer: “Nunca irei desemparar Mr. Micawber”. Estamos tão entediados com a sua persistência, que não nos importamos mais se ele é bem sucedido ou não com o tojal. Se sua fórmula fosse analisada e associada ao restante do equipamento humano, não mais nos entenderíamos: a fórmula deixaria de ser o homem, e tornar-se-ia uma obsessão no homem. Quer dizer, ele se transformaria de um fazendeiro plano, em redondo. Só as pessoas redondas podem atuar tragicamente por qualquer espaço de tempo e inspirar-nos qualquer sentimento, exceto o de “humour” e adequação. (FORSTER, 1974, p. 58).

Candido (2000) também apresenta uma abordagem sobre personagem, mas difere quanto ao modo estrutural de Forster (1974), enveredando não somente pelo âmbito estrutural, mas também pelo aspecto sociológico. Candido (2000) afirma que a personagem é o elemento mais atuante do romance moderno. Não é o mais importante, por ter equivalência de importância em relação ao enredo e às ideias. Quando aborda o problema do grau de convencimento do leitor gerado por uma personagem, Candido (2000), afirma que há um paradoxo na abordagem da questão da verossimilhança de personagens. A verossimilhança é imprescindível 37


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para a personagem, mesmo sendo fictício, mas vale perceber que a ideia de verossimilhança entre um ser vivo é bem diferente de uma personagem. Candido (2000) relaciona ser vivo a personagens, observando relações de continuidade e descontinuidade. O primeiro diz respeito à percepção física, ou seja, a superfície do corpo. Ou seja, um ser vivo é perceptível enquanto entidade física, tendo também o seu aspecto psicológico não determinado em sua totalidade. O segundo relaciona personagem à percepção espiritual, o domínio do infinito, da subjetividade do ser. As personagens são dotadas somente de percepção espiritual, pois não conseguimos vê-las, mas imaginá-las. Assim, na vida, haveria modos de ser e no romance uma lógica da personagem, mais fixa que os seres vivos. Esta lógica é constituída pelas impressões do leitor ao compor os fragmentos do ser de um personagem. Este processo de composição de fragmentos é chamado de convencionalização, quando o narrador escolhe os traços específicos de uma personagem para dar uma determinada ideia a um leitor. Mais uma distinção entre personagem e ser vivo é a concepção da totalidade de um personagem após o fim de uma obra e a impossibilidade de fazer o mesmo com um ser humano.

Para entender Oswald de Andrade Entender Oswald de Andrade é, em parte, entender o Modernismo brasileiro. Para tanto, é primordial entender o contexto da época e a importância desse movimento. Na época, o termo pelo qual os Modernistas brasileiros eram designados era de futuristas. Em vários artigos, Andrade buscou contemporanizar o termo. Num destes, intitulado O meu poeta futurista, Andrade (2011, p. 27-31) apresentava para a classe intelectual o seu amigo Mário de Andrade e sua obra Pauliceia Desvairada, dizendo: “Conhecem, além dos mestres calmos que são Guilherme e Menotti, o meu poeta futurista?” Andrade (2011, p. 29).

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Vale ressaltar que tal título não agradou a Mário de Andrade: “Mário de Andrade protestava não enquadrar-se, como poeta, entre os seguidores de Marinetti. Nem mesmo admitia a sua inclusão como integrante de um tipo paulista de futurismo, conforme deixava claro no seu artigo de réplica a Oswald de Andrade” (BRITO: 1971, p. 249-251). O termo “Futurista” tinha, de certa forma, um cunho pejorativo, uma vez que Marinetti, autor do primeiro Manifesto Futurista, que era muito curto, vale ressaltar, tinha a alcunha de belicista. Além disso, o tom imperativo ao dar ordens de Marinetti, a estipulação de diretrizes de como deveria ser a arte, era visto de maneira negativa. São onze pontos que compõem o Manifesto do Futurismo, de 1909. Além disso, tinha o título de favorável à guerra, a maior desgraça em escala mundial da época e, sem dúvida, uma das maiores da história da humanidade. O trecho a seguir é o melhor exemplo disso: “Nós queremos glorificar a guerra – única higiene do mundo – o militarismo, o patriotismo, o gesto destruidor dos anarquistas, as belas ideias que matam, e o menosprezo à mulher” (MARINETTI apud TELES: 1992, p. 92). Mesmo com os aspectos tidos como negativos, a velocidade da escrita de Marinetti, agradou aos Modernistas de 1922. No final das contas, era preciso desvencilhar o Futurismo Paulista do Futurismo de Marinetti. Andrade faz questão de deixar claro esta diferença. No artigo O Futurismo tem tendências clássicas, Andrade combate o academicismo, sob a acusação de engessar o pensamento criador e prezar apenas pela cópia de modelos e tradição e exalta o espírito criador que compõe aquilo que ele considera como clássico: o poder de renovação das artes. Ao desenvolver este raciocínio, Andrade afirma: E se se disser a sério que o futurismo (não confundir com o marinettismo que nele se inclui) tem tendências clássicas, isso fará de certo um dia de gozo risonho para os que só enxergam blague e bom humor no movimento de renovação estética que vimos tentando (ANDRADE, 2011, p. 32).

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No prefácio de sua outra grande obra de ruptura, Serafim Ponte Grande, Andrade (1971) faz um balanço-geral do Modernismo de 1922, faz uma autocrítica e sintetiza o seu papel no contexto sob o qual estava inserido: “Com pouco dinheiro, mas fora do eixo revolucionário do mundo, ignorando ser burguês, passei naturalmente a ser boêmio” Andrade (1974, p. 111-114). Ele se designa então um palhaço da burguesia. Isso justifica ele ter afirmado no primeiro parágrafo do prefácio que o seu erro foi ter corrido em uma pista inexistente, ao afirmar supremacia dos versos livres sobre a tradição metrificada e nacionalista. De volta ao foco de MSJM, é comum ver livros de vanguarda sofrerem com edições que mutilam o texto literário e isso não deixa de acontecer com Oswald de Andrade. Para a realização deste presente trabalho, foi lido três edições de MSJM. Em Andrade (1973), apesar de trazer duas edições em uma: MSJM e Serafim Ponte Grande – outra grande obra de ruptura, mas lançada quase uma década mais tarde – esta edição falha com relação ao pseudo-prefácio da personagem Machado Penumbra. Além disso, só há apenas um texto biográfico introdutório feito por Carlos Alberto Iannone. A partir da edição Andrade (2001), pode-se notar a presença também do ensaio “Miramar na Mira” de Haroldo de Campos. A edição Andrade (2004) conta também com o artigo “Osvaldo de Andrade” feito por Mário de Andrade. Em ambas as edições, há o cuidado de alertar que o texto teve a consulta da primeira edição, de 1924, única em vida do autor. Só este dado já é suficiente para perceber o problema da aceitação do trabalho oswaldiano. Outro dado também muito relevante é a opção pelos organizadores destas duas edições alertar que todos os termos estrangeiros foram mantidos. Era um momento em que expressões como “bangalô”, “garagem” e “milionário” eram chamados respectivamente de “bungalow”, “garage”, “millionario”, assim como os nomes próprios, mantidos em suas grafias originais. Este problema de contato com o estrangeiro é o que caracteriza uma das mais importantes facetas do pensamento oswaldiano: a deglutição do alheio e o processamento do mesmo. No mesmo ano em que lançou MSJM, 1924, tendo

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terminado de escrever um ano antes, Oswald de Andrade lança o Manifesto da poesia Pau-Brasil. Neste trabalho, Andrade preza por uma literatura nacional sem as amarras do estrangeirismo, uma literatura brasileira para exportação. A coerência do pensamento oswaldiano é percebida anos mais tarde em País da sobremesa, em que Andrade (2011) critica o Brasil por só aparecer na sobremesa na hora da ceia. E não é só de alimentos que ele fala: País da sobremesa. Exportamos bananas, castanhas-do-pará, cacau, café, coco e fumo. País laranja! Temos Coelho Neto, Martins Fontes, Guilherme de Almeida. O sr. Mário de Andrade escreveu um livro que se chama Dar, verbo intransitivo. Tudo resultado da gula. Os olhos da nossa gente melam. Os espíritos também. O açúcar substitui o pão das populações. E os doces de ovos vêm na métrica do sr. Júlio Dantas para produzir o talharim com calda do sr. Menotti Del Picchia. (ANDRADE, 2011, p. 275).

Só por este trecho já é possível perceber a tônica, a blague oswaldiana: o nome verdadeiro do livro de Mário de Andrade é Amar, Verbo Intransitivo. O humor marca a obra de Oswald de Andrade em toda a sua vida. Seus dois manifestos de maior representatividade ilustram bem isso. O trecho acima critica a subserviência brasileira para o seu papel enquanto grande potência no mundo. Andrade pregava uma literatura, uma cultura para exportação e não somente cópia de modelos europeus. Quatro anos mais tarde, em 1928, lança o Manifesto Antropófago. Neste trabalho, Andrade preza pelo processamento da cultura nacional com a estrangeira, a fim de que se forme outra, una e plural ao mesmo tempo, a cultura nacional. Costa Lima (1991, p.26-29) considera este manifesto como existencialista: o país e a sua herança colonial, com base na expressão do próprio Andrade: “Tupi, or not tupi that is the question”. A resistência cultural do manifesto, não priorizava o puritanismo, era justamente isso o que Andrade criticava. Criticava também as “elites vegetais”, que apenas se moviam se houvesse uma pressão popular muito forte. Quanto à forma, como Andrade comunica suas ideias: “poderia ser interpretado 41


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como imitação da lógica verbosa, Oswald escolheu para seu manifesto o que poderíamos chamar uma lógica de instantâneos – o desenvolvimento das ideias por frases curtas e rápidas, fragmentárias, multidirecionais” (COSTA LIMA, 1991, p. 26). Mário de Andrade considera, no artigo Osvaldo de Andrade sobre MSJM, este autor como o maior espectador de si mesmo, mas de forma inconsciente (ANDRADE, Mário, 2004, p. 8). Em outro momento considera a potencialidade de Andrade em fotografar a estupidez. Algo que, em outras palavras, Campos (1967) considera a capacidade de Andrade de transformar trivialidades em informações originais, estéticas. Candido (2004) ressalta outra característica essencial do trabalho oswaldiano: a questão da viagem. As personagens em MSJM, especialmente João Miramar, viajam de forma considerável, tanto dentro do país, como fora. Essa ideia de movimento compõe também um traço da própria escrita, tudo é mais veloz. Mais ágil. Até a forma do discurso, da forma como a diegese é processada.

A diegese e sua relação com a fragmentação do discurso de Memórias Sentimentais de João Miramar Quando, no episódio-fragmento 94: Season, Andrade (2004, p. 119) diz: “Rosas vermelhas buscaram Madama Rocambola na gare cautelosa do Brás. Tapetei bungalow longíquo e pianal para as duas emboscadas Perdizes”, certamente ele quer dizer que foi buscar Madama Rocambola numa plataforma, mas, diz de forma bem diferente. Assim, a palavra-ação pode ser percebida como uma informação, enquanto a palavra-narrativa como discurso (TODOROV, 2008, p. 111). A palavra, para Andrade (2004), é um meio de ruptura. Foi a obra MSJM a que garantiu o passaporte oswaldiano para o Modernismo Paulista: “Com as Memórias sentimentais de João Miramar Osvaldo de Andrade incorporou praticamente ao grupo dos modernistas brasileiros”, segundo Andrade, Mário. (2004, p. 8). A ruptura estética, a plurissignificação da palavra é o que garantiu a Andrade (2001) o status moderno de fato.

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O problema da fragmentação do discurso narrativo para a formação da diegese é visto por Campos (1967) ao demonstrar de forma breve os procedimentos utilizados por Andrade (2004). Através de uma perspectiva estilística, (Jakobson apud CAMPOS: 1967) apresenta duas perturbações diferentes no sentido de um texto: 1- Operação de substituição, atingindo a relação de similaridade que dá a metáfora; 2- A combinação e formação de contexto, a capacidade de hierarquização das unidades linguísticas, a relação de contiguidade, que constitui a metonímia, com a sua ramificação sinédoque – parte pelo todo. Mais à frente, Campos (1967) aponta dois âmbitos de representação da palavra: O método analógico-imitativo e o método digital-combinatório. O primeiro é icônico, representado através de simplexos, ou representações imitativas. Este foi o método utilizado inicialmente por Oswald de Andrade em um fragmento experimental de MSJM, o episódio-fragmento 39. Cerveja, na revista “A cigarra” em 1916. O segundo método é simbólico: a palavra enquanto símbolo, isso é um método cubista. A palavra é representada através de contextos, dígitos reorganizáveis, âmbitos de palavras definidas por relações predicativas de ordem ou vizinhança. Foi este segundo método, o utilizado por Andrade (2004). Assim, para representar um objeto, utilizou-se um ícone. Vale ressaltar que o ícone de um objeto é diferente do ícone de uma estrutura. Não há semelhança gráfica com objetos, mas se refere a eles. São traços gráficos em comum. MSJM trata-se, então, de um romance de invenção, um romance de ruptura. Este é um romance de personagem e um romance aberto, romance de personagem por trazer ao público as memórias de uma personagem que conduz todo o enredo; romance aberto por não apontar para uma conclusão. MSJM são nada mais que memórias inconclusas, por opção do próprio Miramar. O discurso narrativo é o mais ágil e veloz possível. Tudo se movimenta, até as palavras. O movimento caracteriza a prosa cinematográfica, fragmentação da narrativa. É perceptível também uma série de características que norteiam a obra oswaldiana: galicismos, linguagem telegráfica, episódios-fragmento no lugar de capítulos, humorismo, brevidade e a incrível forma única de se expressar. Assim,

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a prosa oswaldiana segue por um estilo que joga as informações e força o leitor a encontrar o caminho. Conforme Campos (2004), MSJM exige mais do leitor. O que se conta em MSJM basicamente é a vida do seu personagem-título, João Miramar, desde a sua infância até a maturidade da vida adulta. Mas, decerto, a diegese apresenta algumas fases bem delimitáveis. Abaixo estão selecionados alguns trechos do discurso narrativo do livro, trechos de episódios-fragmento, seguidos de comentários sobre os mesmos, a fim de fazer perceber melhor as fases do enredo, da diegese e alguns procedimentos estéticos de Andrade (2004). O objetivo da análise dos trechos abaixo não é contar a intriga completa de MSJM, ou resumir a diegese por completo, mas observar alguns pontos cruciais da narrativa de forma ilustrada. O prazer da leitura e do descobrimento dos múltiplos sentidos só se configura com várias leituras atentas de MSJM, conforme o fragmento a seguir: “À guisa de prefácio: Pena é que os espíritos curtos e provincianos se vejam embaraçados no decifrar do estilo em que está escrito tão atilado quão mordaz ensaio satírico (ANDRADE, 2004, p. 71). Este é o parágrafo final do pseudoprefácio com a personagem Machado Penumbra. Uma blague a Machado de Assis: Machado do nome, Penumbra pelo período no qual ele está inserido: o penumbrismo. Neste pseudoprefácio, Penumbra desliza verborragia e tece elogios que, às vezes, se anulam por suas demasiadas concessões. Elogia a ausência de pontuação de Miramar, embora não adote e nem recomende. O início do livro é marcado por lembranças da infância do próprio Oswald de Andrade. No episódio-fragmento 3, intitulado “Gare ao infinito”, Miramar relata como foi a morte de seu pai,: “No desabar do jantar noturno a voz toda preta de mamãe ia me buscar para a reza do Anjo que carregou meu pai”. (ANDRADE, 2004, p. 74). A morte do pai de Miramar é uma projeção da morte do pai do próprio Oswald de Andrade. O título Gare ao infinito representa uma interpretação daquilo que seria a morte, uma plataforma para o além, para o desconhecido, para a eternidade, para o céu da cultura cristã, conforme fragmento citado a seguir:

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16. Butantã Pois como elas não têm moços para namorar elas namoram-se entre si. Todas têm um namorado como elas dizem e é uma outra menina: uma faz o moço e outra a moça/ E quando se encontram se beijam como noivos. Por mais que não se queira ficar como elas, inconscientemente fica-se. As meninas de agora não são como as de outro tempo. Logo nascerão sabendo ANDRADE (2004, p. 79).

Este trecho foi feito por uma prima de Miramar, chamada Nair, e endereçada ao primo Pântico. Ela estava vivendo num colégio interno com as duas irmãs, que Oswald as chama de bochechudas, Célia (que mais tarde vira esposa de Miramar) e Cotita. Sabemos onde fica essa escola por causa do título “Butantã”. A descoberta da sexualidade é um ponteiro para a adolescência de Miramar, como se pode observar em: “33. Veleiro: Uma tarde beijei-a na língua” Andrade (2004, p. 87). A vontade de Oswald de subverter os cânones da moral existente da época. Primeiro ele fala de lesbianismo e depois diz que beijou uma mulher que conheceu há pouco tempo na língua, numa viagem de navio que estava fazendo pela Europa. Viagens, aliás, são características convergentes entre Miramar e o próprio Oswald, como afirma Candido (2004). Já no fragmento 69, intitulado “Etnologia”, tem-se: Eloqüentes citações diziam sábios lábios trêmulos de moço em nervos. – Mil outros trechos de mil outros escritores convercer-vos-ão, senhores, que o mundo de hoje anda não só pior que o mundo debochado de Péricles e Aspásia, mas pior até que o mundo ignaro de Medioevo trevoso e pior até que o mundo das utopias científicas e revolucionárias da Revolução Francesa! Nessas intermitências de progresso e regresso, círculos de princípios que formam a base de novas babéis, novas confusões de línguas e novos rebanhos voltando a velhos apriscos, só uma lição nos assoberba, a lição severa da História! (ANDRADE: 2004, p. 104).

A dialética das nações, o diálogo cultural, a situação do mundo da época em breve comentário de João Miramar. Em meio ao caos de ideias, a visão crítica de 45


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Oswald de Andrade segue na voz do personagem-título do seu romance, tal como em: “101. O grande industrial: Célia era rica, eu pobre. Agora, com duzentos por cento que seguramente renderiam os films em que me pus sócio, eu ficaria mais rico que Célia” (ANDRADE, 2004, p. 122). Miramar, numa tentativa mais tarde frustrada de ficar rico, resolve investir em cinema, mesmo sendo uma grande novidade no Brasil com o dinheiro de Célia. Acaba por diminuir o dinheiro da mesma em maus investimentos. O título do episódio-fragmento, assim como em outros momentos, adquire uma ideia supracapitular, ou seja, completa a ideia do capítulo, por informar algo não dito no texto em si: a vontade de ser rico, de ser um grande industrial. Já no episódio-fragmento 156, tem-se: “Batem os sinos por D. Célia “‘Faleceu anteontem, na fazenda dos Bambus, comarca de Pindobaville, na juvenil idade de 28 anos, sucumbindo a uma terrível pneumonia, a Exma. Sra. D. Cornélia da Cunha’” (ANDRADE, 2004, p. 154). Este trecho trata-se do relato da morte prematura da esposa de Miramar. Foi um grande trauma até o mesmo para um bon vivant como ele. Ocorre já próximo do fim do livro e já mostra um perfil mais maduro de João Miramar após esse acontecimento. O último episódio-fragmento do livro, “Entrevista Entrevista”, chama a atenção pelo seguinte trecho: “A crítica vai acusá-lo e a posteridade clamar porque não continuou tão rico monumento da língua e da vida brasílicas no começo do século 20” (ANDRADE, 2004, p. 161). O entrevistador – personagem misterioso, não tem a sua identidade revelada – traz novamente a problemática trazida por Machado Penumbra em À guisa de prefácio: a importância da obra para a literatura. Além disso, lamenta pelo fim prematuro da mesma. O Hotel Miramare, em Sestri Levante, na Itália, realmente existe e provavelmente foi onde o próprio Oswald de Andrade terminou o seu livro. Outros aspectos que também completam o estudo da diegese e do discurso narrativo são: o tempo, o modo, a voz, e a personagem. Os mesmos serão analisados a seguir, com base no trabalho teórico de Genette (1979).

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Tempo O tempo da narrativa. MSJM é caracterizada por saltos temporais. Os procedimentos anacrônicos adotados por Andrade (2004) confirmam esta afirmação. As variações sob a forma de prolepse e analepse mostram que ora Andrade (2004) busca o tempo futuro: “Será esse o Brasileiro do século XXI?” (ANDRADE, 2004, p. 70); ora busca o tempo passado: “Na casa de tia Gabriela havia o espaço de meus livros num sofá fronteiro para mamãe me olhar” (ANDRADE, 2004, p. 78). As elipses, outro recurso indispensável do procedimento anacrônico de narrativa, são utilizadas por todo discurso, tal como em: 123. Bungalow das rosas e dos pontapés Bondes goals Aleguais Noctâmbulos de matchs campeões E poeira Com vesperais Desenvoltas tennis girls No Paulistano Paso doble (ANDRADE, 2004, p. 135).

Neste episódio-fragmento que foi copiado na íntegra é perceptível que as quebras dos versos narrativos são configuradas também como uma quebra do discurso narrativo. A quebra é feita através de avanços sem recuos. Estes avanços geram lacunas e as lacunas são preenchidas pelos próprios leitores. O recurso paralipse é configurado como uma falsa omissão, deixar passar em branco propositalmente, mas, mesmo assim, o autor deixa perceptível sua real intenção ao dizer algo. Um exemplo onde isso ocorre de maneira bem óbvia é no episódio-fragmento 75: “Minha sogra ficou avó” Andrade (2004, p. 109). O não-dito está dito pelo contexto: João Miramar e Célia tiveram um (a) filho(a) 47


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no natal. A opção por deixar entre parênteses foi usada por não se haver ainda certeza do sexo do bebê, mas apenas que existe algum bebê. A descrição de ambientes mostra uma relação entre o homem e o espaço, conforme citação: 61. Casa da Patarroxa A noite O sapo o cachorro o galo e o grilo Triste tris-tris-tris-te Uberaba aba-aba Ataque e o relógio tac-tac Saias gordas e cigarros (ANDRADE, 2004, p. 100).

De acordo com o referencial teórico, para Genette (1979), a descrição não é meramente uma pausa narrativa, mas sim a própria narrativa em execução. Neste momento o espaço sente o que Miramar sente. Para entender isso é preciso entender o episódio-fragmento que antecede e o que sucede “A casa da Patarroxa”. Patarroxa é um peixe de água doce, logo, fica subentendido que o espaço é um lago, rio, ou equilavente. Anteriormente, no episódio-fragmento 60, ele relata o namoro num título bastante óbvio, pois com uma só palavra: namoro. Enquanto isso, no episódiofragmento 62, intitulado “Comprometimento”, narra o casamento de Miramar com Célia. O capítulo elíptico, no meio do “namoro” e do “casamento”, é nada mais que a descrição do “estado geral das coisas” sob a ótica miramariana do dia do casamento. Realizado no período da noite, em Uberaba, com mulheres de saias gordas, ou gordas esposas de saias (faz parte do humor oswaldiano), e seus respectivos maridos fumando cigarros. A ansiosidade e a insegurança é demonstrada por uma aparente tristeza, que resulta na ênfase sonora Triste tris-tris-tris-te; e pela marcação temporal onomatopaica: Ataque e o relógio tac-tac. 48


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O problema do singulativo/ repetitivo/ iteração, já estudado no referencial teórico, manifesta-se na obra de forma mais intensa tanto o aspecto repetitivo, quanto o de iteração. O singulativo constitui-se como uma equivalência na quantidade de vezes que se passou determinado fato com a quantidade de vezes que se conta este mesmo fato. Torna-se desnecessário o procedimento singulativo já que são memórias, ou seja, casos acontecidos no passado, e sentimentais, sentimentos são anacrônicos. Tanto o repetitivo quanto o iterativo, configuram-se como recursos do procedimento anacrônico de narrativas. O procedimento repetitivo foge da proposta elíptica de João Miramar. Contar mais de uma vez o que se passou uma vez realmente diminui consideravelmente a velocidade e as elipses caracterizantes da prosa cinematográfica de MSJM. O modo iterativo configura-se como o procedimento para contar algo mais utilizado por Oswald de Andrade em MSJM. Na Iteração, conta-se numa única vez o que se passou muitas vezes. Dois exemplos: “Os domingos eram grávidos de sono” (ANDRADE, 2004, p. 109). “Agora todas as manhãs, eu surgia esperá-la na sala de visitas” (ANDRADE, 2004, p. 119). Os exemplos selecionados são respectivamente um pseudo-iterativo – aconteceu várias vezes, sem alteração – e uma Iteração interna ou sintetizante – menciona a duração da própria cena, e não uma exterior, mais vasta.

Modo e voz A narrativa é contada quase sempre através dos olhos de Miramar. Seja apenas descrevendo elipticamente os acontecimentos: O pensieroso Jardim desencanto O dever e procissões com pálios E cônegos Lá fora 49


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E um circo vago e sem mistério Urbanos apitando nas noites cheias (...) (ANDRADE, 2004, p.73).

Seja com um relato vivido pelo próprio Miramar, um testemunho de um acontecimento: Mamãe chamava-me e conduzia-me para dentro do oratório de mãos grudadas. – O anjo do Senhor anunciou à Maria que estava para ser mãe de Deus. Vacilava o morrão do azeite bojudo em cima do copo. Um manequim esquecido vermelhava. – Senhor convosco, bendita sois entre as mulheres, e as mulheres não têm pernas, são como o manequim de mamãe até em baixo. Para que pernas nas mulheres, amém. (ANDRADE, 2004, p. 73).

É possível perceber que no trecho há um distanciamento do narrador, apenas descrevendo ambientes. No segundo, há um relato de acontecimentos com traços narrativos bem mais definidos. Isso mostra que a mudança de foco por parte do narrador foi feita de maneira instantânea. Vale ressaltar que ambos os trechos configuram a íntegra do primeiro episódio-fragmento. Assim, através do olhar de Genette (1979), notamos uma focalização interna, e um romance autodiegético, um nível mais agudo de homodiegético, pois Miramar conduz todo o romance. Até quando ele praticamente deixa o romance se conduzir sozinho, ele é quem está conduzindo, ao selecionar quais imagens serão processadas por meio da palavra. A ideia de câmera, utilizada na parte inicial do episódio-fragmento acima, faz imediatamente emanar ao leitor duas reflexões: O problema da ilusão de mimese e a prosa cinematográfica. Este último trata da prosa cinematográfica, que é uma modalidade que se caracteriza pela elipse, simplesmente não é preocupação

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do autor estabelecer conjunções entre os períodos, ou organizá-los em prosa. A organização em versos, especialmente do primeiro trecho, serve para destacar as imagens mentais formadas por cada trecho. O problema da ilusão da mimese, citado por Genette (1979), pode ser comprovado neste episódio-fragmento. Mesmo sendo o mais distante possível do autor, apenas com a descrição de ambientes/acontecimentos, ainda a mimese é apenas uma imitação da palavra e com palavras da realidade, mesmo que artísticas. A vida das personagens secundárias configura-se como uma metanarrativa/ metadiegese. Uma narrativa segunda, algo que incrementa a narrativa de Miramar. Outros personagens também falam, e muitas vezes, conduzem todo um episódiofragmento, mas, mais uma vez, é João Miramar quem seleciona o que será dito. Com isso, é possível afirmar que a focalização narrativa é interna variável.

Personagem As personagens são todas planas, pois mantém sua atitude ao longo do romance. São caricaturas de personagens, personagens-tipo. Até o nome escolhido para as personagens, inclusive a personagem-título, teve uma intenção determinada. Além disso, como já foi mencionado, algumas personagens tem a voz durante todo um episódio, o que ajuda a entender a visão de mundo de que são possuidoras – visão muitas vezes caricatas. Machado Penumbra é crítico verborrágico que faz o pseudo-prefácio de MSJM. Célia é um retrato da esposa burguesa, o seu relato apresentado no episódio fragmento 16 “Butantã”, mostra a realidade dos internatos da época, em que as crianças eram separadas por gênero, o que contribuía para a proliferação de homoafetividade entre as mesmas. Mais tarde, já casada com Miramar, no episódio-fragmento 100 “Rabo-levas”, demonstra as ânsias da mulher adulta da época: desejosa de atenção do marido e de mais leituras romanescas para passar o tempo. O próprio Miramar é um retrato crítico da burguesia alienada: um playboy endinheirado, egoísta, bon vivant, decadente financeiramente. O primo Pântico,

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por seu lado, representa boa parte dos brasileiros da época: uma maioria semiletrada. Isso se comprova pelos seus frequentes erros gramaticais. Rolah é uma subcelebridade sensual, uma atriz de cinema, que se aproveita dos homens endinheirados, modelo típico de amante. Boa parte da fortuna de Célia fica com Rolah. Sua mãe, Madama Rocambola, é o retrato de sua filha em uma versão mais velha, se não conseguir um marido rico que banque o seu luxo. Uma senhora cheia de articulações para manter-se na burguesia. A mãe de Mimamar, cujo nome não é mencionado, é uma caricatura de uma mãe cuidadosa e uma católica fervorosa. Maria da Glória, típica criada preta, é herança de uma cultura escravagista aos moldes de Tia Nastácia de Lobato. São muitas as personagens, mas a função das mesmas é sempre bem determinada. Jackson (1978, p. 34, 35), classifica as personagens de MSJM em cinco grupos: Família, amigos, professores, mundo social, Fazenda Nova Lombardia. E ainda menciona uma série de personalidades históricas, nota-se a preocupação histórica desde o início do texto, quando Machado Penumbra diz, no começo do quarto parágrafo do pseudo-prefácio do livro, parecendo mais ser o próprio Oswald falando: “Torna-se lógico que o estilo dos escritores acompanhe a evolução emocional dos surtos humanos” (ANDRADE, 2004, p. 70). Ou seja: o autor precisa saber o que acontece com o mundo. Tal como Oswald de Andrade o fez. Há uma valorização das personagens históricas, totalizando setenta e três. As mesmas mostram que a sátira oswaldiana acompanha também a história, podendo-se afirmar que MSJM é também uma sátira histórica (JACKSON, 1978, p. 38-40). Um exemplo disso é um trecho do episódio-fragmento 135 “Passa o amor”, de comédia histórica: “A tarde suicidava-se como Petrônio” (ANDRADE, 2004, p. 140).

Considerações finais Antes de abordagem conclusiva, uma pequena recapitulação do conteúdo do presente artigo. Um parágrafo para cada seção:

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Na seção Categorias da Narrativa, foram abordados, inicialmente, os temas: a origem e usos do termo “romance” e como se procede a análise estrutural da narrativa. Deste capítulo, a citação de Mendilow (1972) resume bem a ideia do artigo: o papel da fragmentação do romance moderno do século XX, enquanto objeto de reflexo das tensões sociais. Para entender Oswald de Andrade foi a segunda seção, apresentou informações necessárias para entender o papel do autor de Memórias Sentimentais de João Miramar no seu momento-histórico e na literatura nacional. Algumas explicações, como o termo “futurista” e sobre o seu humor, bem como a sua linguagem, são libertadoras de uma visão antiquada do Modernismo Brasileiro feito por alguns estudiosos da área. Na terceira seção, A diegese e sua relação com a fragmentação do discurso de Memórias Sentimentais de João Miramar, foi tocado na relação-motriz do artigo: A diegese e a fragmentação do discurso narrativo. As contribuições de Campos (1967) propiciou um melhor entendimento dos procedimentos linguísticos feitos por Andrade (2004). Nas seções finais: Tempo, Modo e voz, Personagem, foram feitas considerações com base nos trabalhos de Genette (1979) para os dois primeiros, e Forster (1974) e Candido (2000). Estes capítulos serviram para desenvolver melhor as ideias do segundo e terceiro capítulo. Foram levantadas questões como a importância das personagens-tipos para a configuração da crítica oswaldiana em MSJM, a alternância de vozes em alguns momentos e o problema da ordem das palavras. A mudança na ordem da disposição dos fatos de uma narrativa não é novidade, pois realiza-se desde os antigos, tal como em A Odisseia, mas a fragmentação do discurso narrativo, como foi visto, é a base para a literatura de vanguarda do século XX. Com isso, a diegese narrativa ganha todo outro significado. Oswald de Andrade conseguiu, com MSJM, entrar de fato no Modernismo Brasileiro. Não é ousadia classificar MSJM como uma das maiores obras, ou como uma das maiores obras de vanguarda do ocidente. Difícil mesmo é fazer entender as palavras escuras aos mentes fechadas, é fazer perceber que a blague é um

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recurso estético extremamente presente na obra oswaldiana. Foi necessária a morte de Oswald de Andrade para que fosse feita uma segunda edição de MSJM. Difícil também é responder à pergunta de Machado Penumbra em À guisa de prefácio: “será esse o brasileiro do século XXI?” ou outra pergunta: “‘Memórias sentimentais’ – por que negá-lo?”. Através da breve análise crítica desenvolvida neste artigo, é possível, sem dúvida, afirmar que o estilo telegráfico de Oswald de Andrade em Memórias Sentimentais de João Miramar consegue ser atual. Atual de modo que nem a sua ortografia do ano de 1923, mesmo com vários acordos ortográficos sucessivos, consegue deixar de dizer o que todas as gerações de jovens clamam: “novo!”.

Referências ANDRADE, Mário. Osvaldo de Andrade. In: ANDRADE, O. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo, 2004. ANDRADE, Oswald de. Estética e Política. São Paulo: Globo, 2011. ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo, 2001. ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo: José Olimpio/ Civilização Brasileira/ Três, 1973. ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo, 2004. BRITO, Mário da Silva. História do Modernismo Brasileiro: Antecedentes da Semana de Arte Moderna. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1971. CAMPOS, Haroldo. Miramar na Mira. In: ANDRADE, O. Memórias Sentimentais de João Miramar. São Paulo: Globo, 2004. CAMPOS, Haroldo. Estilística Miramariana. Metalinguagem. Petrópolis-RJ: Vozes, 1967. CANDIDO, Antonio (org.). A personagem de ficção. São Paulo: Perspectiva, 2000. CANDIDO, Antonio. Oswald Viajante in: O Observador literário. São Paulo: Ouro sobre Azul, 2004. COSTA LIMA, Luiz. Antropofagia e controle do imaginário. In: Pensando nos trópicos: (dispersa demanda II). Rio de Janeiro: Rocco, 1991. DACANAL, José Hildebrando; FISCHER, Luís Augusto; WEBER, João Hernesto. O romance modernista: tradição e contexto literário. Porto Alegre: EDUFRGS, 1990.

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FORSTER, Edward Morgan. Aspectos do romance. Porto Alegre: Globo, 1974. GENNETE, Gérard. Discurso da narrativa: Ensaio de Método. Lisboa: Arcádia, 1979. JACKSON, Kenneth D. A prosa vanguardista na literatura brasileira: Oswald de Andrade. São Paulo: Perspectiva, 1978. MENDILOW, Adam Abraham. O tempo e o romance. São Paulo: Globo, 1972. POUILLON, Jean. O tempo no romance. São Paulo: Cultrix/ EDUSP, 1974. SILVA, Vítor Manuel de Aguiar e. O romance: história e sistema de um género literário. In: Teoria da literatura. Coimbra: Almedina, 2009. TELES, Gilberto Mendonça. Vanguarda europeia e modernismo brasileiro. Petrópolis: Vozes, 1992. TODOROV, Tzevtan. As estruturas narrativas. São Paulo: Perspectiva, 2008.

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Resumo Resumo Os gêneros do discurso têm sido objeto de estudo de diversas pesquisas nas áreas da Linguística, Linguística Aplicadaanalisa e Educação. Esses estudos servempresentes para fomentar a O presente trabalho algumas narrativas discussão acercaVocê da amplitude da linguagem, se limita a questões somente na obra me Deixe, Viu? Eu que vounão bater o meu tambor, relacionadas à estrutura linguística.da Diversas as pesquisas que utilizam de autoria de Cidinha Silva.sãoNesses, observo comoos gêneros essas discursivos (BAKHTIN, 1999) compreender com maiortradicioprofundidade o escritas podem se para distinguir das escritas funcionamento da linguagem. Neste trabalho, discutimos as características do gênero nais e de que forma dialogam com as novas tendências crônica jornalística a partir dos pressupostos teóricos da Análise Dialógica do Discurso das escritas literárias no cenário brasileiro. Sobretudo, (BAKHTIN/VOLOCHINOV, [1929] 2009; BRAIT, 2006; escamoteados CUNHA, 2009). A partir observo como determinados grupos na dos pressupostos teóricos e pesquisa bibliográfica, defendemos de crônica sociedade e as relações do cotidiano, quea concepção nos passam

despercebid@s

jornalística como um gênero híbrido, e exemplificamos o nosso pensamento a partir ”, são situadas social, cul“ da análise de euma crônica publicada em um pernambucano. A nossa análise detural institucionalmente, porjornal meio da literatura. monstrou que a crônica se insere no entremeio da literatura e do discurso jornalístico e reafirma a necessidade de trabalhar com sexualidade; o contexto sócio-histórico Palavras-chaves: literatura; gênero. para refletir sobre o funcionamento discursivo da linguagem. Palavras-chaves: crônica jornalística; dialogismo; gêneros do discurso.


A CRIAÇÃO E O DIALOGISMO EM CRÔNICAS DO JORNALISMO BRASILEIRO Ricardo Rios Barreto Filho (UFPE/CAPES)1

INTRODUÇÃO Como sabemos, Mikhail Bakhtin e Valentin Voloshinov foram estudiosos russos que influenciaram de forma relevante as ciências humanas no ocidente. Suas ressonâncias estão presentes em áreas como Filosofia, Sociologia, Teoria Literaria, Linguística, entre outras. Para nós, há um interesse muito grande em relação ao pensamento desses autores acerca da linguagem. De acordo com os princípios teóricos e metodológicos dos autores supracitados, percebemos que a forma linguística perde sua supremacia em detrimento de outros elementos que também devem ser considerados na análise da linguagem. A afirmação de que a linguagem é de natureza social é ressaltada pelos autores em todos os seus escritos e dá sustentação a todas as análises baseadas no pensamento desses estudiosos russos. Claramente, podemos perceber diferenças acentuadas entre a abordagem de Bakhtin e Voloshinov em relação a outras abordagens linguísticas. Uma dessas diferenças já foi apontada anteriormente, a queda da supremacia dos aspectos formais. Como sabemos, há uma grande quantidade de estudos linguísticos que se concentram na forma e desconsideram outros elementos que não estão imanentemente ligados à língua. Podemos dizer que o pensamento bakhtiniano se distancia de estudos linguísticos que enfoquem apenas as questões formais da língua. Além disso, outra afirmação coerente é que grande parte dos estudos contemporâneos que avançam de uma linguística formal baseiam-se nos pressupostos de Bakhtin e Voloshinov.

1. É professor substituto do Departamento de Letras da Universidade Federal de Pernambuco e também mestrando em Linguística do Programa de Pós-graduação em Letras da mesma universidade. E-mail: riosbarreto@msn.com 57


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Além de colocar em cheque algumas questões cristalizadas nos estudos da linguagem de sua época, os autores apresentam uma série de discussões que criam aparatos para construir uma análise de discurso. No Brasil, diversos autores se destacam, fazendo uso dos conceitos teóricos de Bakhtin e Voloshinov para construir suas análises (BRAIT, 2006; CUNHA, 2009). É interessante notar que a análise bakhtiniana do discurso, diferentemente de outras análises, não apresenta categorias de análise fixas e acabadas. O que encontramos nos escritos de Bakhtin e seus seguidores são reflexões que podem inspirar pesquisadores em suas análises. Configura-se, dessa forma, outra característica fundamental dessa abordagem do discurso, a fluidez. Gênero, fala, enunciação, ideologia, polifonia e outros não são categorias que devem ser meramente aplicadas a um corpus específico, e a partir disso toda a pesquisa está concluída. A reflexão deve estar presente em todas as etapas das análises e a fluidez é uma propriedade inerente ao trabalho com a linguagem. Dada a relevância do pensamento de Bakhtin e Voloshinov aos estudos da linguagem; nesse artigo, destacaremos alguns dos pressupostos teóricos trazidos por esses autores e exemplificaremos através da análise de uma crônica jornalística. O nosso trabalho não busca uma descrição aprofundada das características de um gênero. Destacar os pressupostos teóricos em relação ao funcionamento discursivo será o nosso objetivo principal; contudo as análises darão vida às considerações teóricas, fazendo, de alguma forma, considerações acerca do gênero. A crônica foi escolhida por se localizar no entremeio de duas esferas de atividades humanas, o jornalismo e a literatura. O recorrente “hibridismo” (ROSSETI E VARGAS, 2006) estimula o uso desse gênero para fins didáticos, o que também justifica a sua escolha para nossa análise. Primeiramente, traremos os conceitos advindos da Teoria Dialógica da Linguagem que serão enfocados na nossa análise, também mostraremos características gerais das crônicas jornalísticas. Finalmente, analisaremos uma crônica do jornalismo brasileiro e apresentaremos as considerações finais desse artigo.

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TEORIA DIALÓGICA DA LINGUAGEM: GÊNEROS E CRIAÇÃO Conforme falamos na introdução desse artigo, a principal tese em relação à linguagem, defendida por Bakhtin e seu círculo, é a de que esta é de natureza social. Portanto, ao analisar linguagem, devemos nos concentrar na interação verbal. Fica claro que, para os autores, é incipiente a observação da língua enquanto sistema abstrato de regras, ou como ato individual de fala. Nesse contexto, Bakhtin comenta: Toda criação é concatenada tanto por suas leis próprias quanto pelas leis do material sobre o qual ela trabalha. Toda criação é determinada por seu objeto e sua estrutura e por isto não admite o arbítrio e, em essência, nada inventa mas apenas descobre aquilo que é dado no próprio objeto2 (BAKHTIN 2005, p. 65)

Percebemos a partir dessa declaração que, na diferenciação entre os termos criar e inventar, o autor apresenta a sua visão em relação ao processo criativo. Com isso, ele demonstra que a criação está atrelada a leis que são dadas pelo próprio material, portanto pré-construídas. O processo de criação não é completamente arbitrado pelo autor, mas está imbuído de uma série de leis e condições que estão no entorno dessa criação. Em outro escrito, Bakhtin comenta sobre o estilo e afirma: “todo estilo está indissoluvelmente ligado ao enunciado e às formas típicas de enunciados, ou seja, aos gêneros do discurso” (BAKHTIN, 2003, p. 265). Ao afirmar que os gêneros do discurso são “tipos relativamente estáveis de enunciados” (op. cit. p. 262) elaborados a partir dos campos de utilização da língua, percebemos que o autor reintera o caráter social da linguagem, tese principal da Teoria Dialógica da Linguagem.

2. Grifos meus. 59


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Dessa forma, vemos como a abordagem bakhtiniana dá um tratamento diferenciado ao estilo. Enquanto outras abordagens concentram-se apenas nas intenções do locutor ou em contextos muito imediatos, Bakhtin considera o estilo sob uma perspectiva social que depende do gênero, e por conseguinte da esfera de comunicação humana. Sobre o gênero, diversas considerações são feitas; dediquemo-nos àquelas mais relevantes para a nossa análise. Primeiramente, devemos perceber uma propriedade fundamental dos gêneros na perspectiva de Bakhtin, propriedade essa que diferencia esta perspectiva de outras abordagens dos gêneros; para o autor, os gêneros emergem das esferas de comunicação, portanto uma abordagem meramente voltada para forma não seria coerente. Nos estudos bakhtinianos, a sequencialização, as características gramaticais e os aspectos linguísticos não ocupam o status de centro dos estudos sobre os gêneros discursivos. Há que se considerar a questão do estilo, mas não apenas de um ponto de vista meramente sintático ou do nível organizacional. O estudo dos gêneros deve enfocar a sua totalidade, os três elementos constituintes de qualquer enunciado: conteúdo temático, construção composicional e estilo. O conteúdo temático diz respeito aos temas abordados nos gêneros; a construção composicional à organização textual dos gêneros; e, finalmente, o estilo que diz respeito às escolhas sintáticas e lexicais, sempre levando em consideração as condições em que aquele texto aparece. Para Bakhtin, o estilo não é individual, mas está sempre atrelado a diversos estilos de linguagem e suas inter-relações com o sistema de linguagem (BAKHTIN, 2003, p. 267). Neste trabalho, será interessante observar como esses três elementos se relacionam em um gênero, que por muitos é tido como híbrido, por permear duas esferas de comunicação humana, a jornalística e a literária. Outro aspecto relevante para nós, diz respeito à questão da reacentuação inerente à linguagem. De acordo com Cunha (2009, p.25), o dialogismo:

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recobre um campo amplo: coloca a enunciação no centro das relações interdiscursivas e o enunciado no contexto imediato e na sua história: toda enunciação é apenas “um elo na cadeia da comunicação discursiva e o enunciador não é a única fonte do enunciado nem dos sentidos. (BAKHTIN, 2003, p. 229)

Como podemos observar o dialogismo, termo bakhtiniano constantemente citado, não tem uma denominação específica e limitadora, mas amplia a visão de língua corrente nas linguísticas formais. É relevante perceber que a enunciação é colocada no centro das atenções, logo vemos a necessidade de trabalhar com processos, com interpretações, não com produtos ou verdades absolutas. Com a frase de Bakhtin, citada pela autora, vemos a necessidade de estudar os enunciados como elos. Significa considerar aquilo que está ligado a ele, e aquilo no que ele se baseou, ou seja, no já-dito. Entretanto, não significa dizer que Bakhtin acreditava em uma linguagem que sempre retoma sem modificar o já dito, como o Behaviorismo norte-americano de Skinner pode levar a crer. O já-dito, dentro da teoria bakhtiniana, sempre é reacentuado, sempre é tratado de maneira única, sempre é utilizado de forma singular. Ao comentar sobre o objetivismo abstrato, Bakhtin/Voloshinov coloca: a mudança do acento avaliativo da palavra em função do contexto é totalmente ignorada pela linguística e não encontra nenhuma repercussão na sua doutrina da unicidade da significação. (...) Embora os acentos avaliativos sejam privados de substância, é a pluralidade de acentos que dá vida à palavra. (...) O problema de pluriacentuação deve ser estreitamente relacionado com o da polissemia. A linguística se desembaraça dos acentos avaliativos ao mesmo tempo que da enunciação, da fala. (BAKHTIN/VOLOSHINOV 1995, p. 100-110 apud CUNHA 2009, p. 28)

Conforme Cunha (op. cit.), é na enunciação que a palavra ganha um caráter ideológico ou vivencial. Dessa maneira, os autores reafirmam que é no discurso

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que o sentido é gerado e não nas formas linguísticas, ou na palavra cristalizada, estática, em estágio de dicionário. Com isso, percebemos que é na enunciação que os sujeitos encontrarão os sentidos que procuram. Então ao fazer uso de discursos outros de forma marcada ou não, acontece a reacentuação. Os valores e as ideologias de um discurso de outrem passam a ser outros a partir do uso preciso por parte de um sujeito. Tentamos fazer, aqui, uma explanação dos conceitos que nos serão valiosos para análise. Passemos então para uma revisão bibliográfica acerca do gênero focal de nossa pesquisa, as crônicas. Tentaremos apresentar concepções teóricas acerca do gênero e relacionar esses conceitos à concepção bakhtiniana.

CRÔNICAS DO JORNALISMO BRASILEIRO No início da era cristã, o termo “crônica” era usado para denominar listas de acontecimentos organizados em ordem cronológica (MOISÉS, 1978). Contudo, percebemos que essa denominação pouco tem a ver com a realidade do termo utilizado no Brasil. A partir do século XIX, autores como Machado de Assis e João do Rio passam a utilizar-se do jornal para escreverem textos criativos que comentavam fatos de alcance social. Os textos comentavam a sociedade, mas não de forma convencional, com uma linguagem objetiva que pretendia exibir as verdades dos fatos; mas a escrita dos autores localizava-se no entremeio da literatura e do jornalismo e expressava com ficção e muita ironia a visão dos autores acerca de acontecimentos sociais (PEREIRA, 2004). As características dos textos da época de Machado de Assis continuam a aparecer até hoje com textos de autoria de Luis Fernando Veríssimo, Arnaldo Jabour, entre outros. De acordo com Rosseti e Vargas (2006), “a crônica é um gênero híbrido que melhor marca a fusão de dois gêneros distintos, o literário e o jornalístico”. Rey (2007, p. 41) defende uma posição radical, de que a crônica é prioritariamente jornalística e brasileira. Para o autor, apesar de o gênero utilizar-se de

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recursos próprios da literatura, é no jornal que a crônica nasce e é publicada. Seis são as características apontadas por esse autor acerca do gênero: a) fidelidade ao cotidiano; b) constituição de uma crítica social; c) força narrativa que se dá através de elementos circunstanciais; d) exploração de fatos inusitados; e) leitura prazerosa e não grave; f) situa-se no limite entre a informação da atualidade e a narração literária; g) linguagem coloquial muitas vezes próxima ao sarcasmo. De forma geral podemos afirmar que a crônica é um texto curto, aparece em jornais, revistas ou na internet. Tem como função explorar fatos noticiáveis, mas não de forma sistemática, como em uma notícia e sim utilizando ferramentas da literatura com o intuito de emitir opinião, informação e entretenimento. A crônica faz parte do fazer jornalístico, mas não se limita a ele (BARRETO-FILHO e PINTO, 2010).

ANÁLISE E DISCUSSÃO DOS DADOS Para concretização do nosso objetivo, demonstrar o funcionamento do discurso no jornalismo brasileiro, nos dedicaremos à análise de um texto, que se trata de uma crônica de publicação local de autoria da pernambucana Luce Pereira. Vejamos o seguinte texto: OS INFORTÚNIOS DO REI Conta a lenda que um rei sem pressa (ou talvez sem inspiração) para conceber projetos importantes, resolveu arranjar uma briga. Para garantir alguns minutinhos na mídia, precisava de uma boa briga, urgentemente, já que as ideias maravilhosas não davam o ar da graça e ele só ouvia críticas. Retumbantes. Acachapantes, até. Foi então que decidiu expulsar do único lago do reino uns vendedores de espetinho. E então, com base em um decreto do rei anterior, mandou seus caminhões recolher as tralhas do grupo. Juntou gente, a confusão se fez e – viva – a mídia apareceu. O rei então pensou: “É agora que meu governo vai decolar”. Que nada. Atirou no pé. Os moradores da beira do lago, cuja orla não

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oferecia mais do que caminhadas e pedaladas – e mesmo assim elas poderiam ser interrompidas, de uma hora para outra, por assaltantes destrambelhados – começaram a sentir saudade do fumaceiro, da carne baratinha, dos carrinhos alegrando a passagem desolada. E os vendedores, presumindo que haviam deixado uma enorme lacuna, sentiram-se estimulados a virar o jogo e foram ao tribunal, de onde saíram com ordem provisória para retornar a atividade, desde que fora do passeio, na areia do lago. Venceram a primeira batalha. À revelia do rei – que não podia fazer mais do que levar a pendenga adiante, mesmo com o “tiro no pé” – houve festa na areia, a fumaça cobriu de novo. Porém, entre aquele dia e o fim da guerra que se desenrolava no tribunal, o reino voltou à apatia de sempre e o soberano, a experimentar as velhas e duras críticas. Já estava quase se curando o infortúnio quando a Suprema Corte decidiu expulsar, novamente, os espetinhos. Aí a real ferida abriu de vez. Decidiu, então, trazer à sua presença o mais sábio entre os sábios para pedir uma receita infalível contra atrapalhos – e foi aconselhado a meditar. Só poderia dar certo, pois, seguindo o mesmo caminho, o rei anterior havia levado oito anos de governo na valsa e se aposentado do cargo com mais de 70% de aprovação dos súditos.

Com uma primeira leitura, percebemos que o conteúdo temático do texto só pode, de fato, ser acessado se o leitor for conhecedor do fato a que o texto se refere. Os sentidos contidos no texto não poderiam ser compreendidos por um leitor que não estivesse inserido no contexto histórico do texto, por mais que fosse fluente em língua portuguesa. A crônica foi publicada em uma época em que o prefeito da cidade do Recife decidiu proibir, na praia mais famosa da cidade – Boa Viagem – o comércio de ambulantes. O fato afetou tanto a classe de trabalhadores, os vendedores, quanto os moradores e frequentadores do bairro, que segundo as notícias dos jornais pernambucanos não aprovavam a decisão do prefeito. Vários personagens são citados na história; um leitor, a par do conteúdo temático da narrativa, identifica facilmente quem representa essas personagens. 64


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Primeiramente o “rei atual” que se refere ao então prefeito, João da Costa; e o “rei anterior” o ex-prefeito João Paulo, que conseguira eleger o candidato de seu partido, o PT. Também percebemos que o único lago da cidade refere-se à praia de Boa Viagem, considerada a única praia de classe média alta no Recife. Os vendedores de espetinho representam todos os vendedores ambulantes que trabalhavam na praia. Percebemos que as escolhas lexicais dizem muito a respeito do posicionamento ideológico da autora do texto. Como sabemos, reis, corte e súditas são palavras que não fazem parte do campo semântico da política da cidade que vive em uma república e não em uma monarquia. Diversos poderiam ser os motivos que levaram a cronista a essas escolhas, mas nos parece coerente que o tenha feito para relacionar a imagem dos prefeitos a uma imagem monárquica, ou até antidemocrática. Outra escolha que reforça nosso pensamento é caracterizar o povo como súditos, ou seja, subalternos do governo. Com isso, vemos que a caracterização das personagens da cidade, na história, se deu de maneira irônica de forma que a simples nominação, aparentemente inocente, dos atores políticos da cidade do Recife se configura como uma crítica ferrenha as ações destes. Ainda no tocante às personagens, percebemos que essas foram construídas à maneira monológica (BAKHTIN, 2005). Com isso, não pretendemos adentrar profundamente nas questões relacionadas à estética polifônica tão discutida por Bakhtin em Problemas da Poética de Dostoievski, mas, neste trabalho, parece-nos relevante ressaltar o processo de composição das personagens, que são construídas a partir da voz e do ponto de vista do autor; justificando, dessa forma, a nossa afirmação de que as personagens foram construídas à maneira monológica. Acima, comentamos acerca das escolhas lexicais e das construções das personagens na crônica analisada. Percebemos que os dois aspectos levantados estão interligados e são interdependentes. É comum em crônicas jornalística o uso de uma construção composicional típica de outros gêneros. Nesse caso, por exemplo, percebemos que há uma semelhança muito grande aos contos de fadas ou

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maravilhosos. Outras crônicas podem fazer uso de diálogos informais, conversas ao telefone ou até mesmo artigos de opinião. A variação em relação à construção composicional é um traço constitutivo do gênero. Como podemos perceber no texto, há uma convergência de todos os elementos estilísticos a fim de fazer o gênero parecer com um conto de fadas. Contudo, esses elementos não atrapalham a interpretação de que o texto utiliza-se das características de outro gênero, mas continua a ser uma crônica jornalística que comenta fatos de relevância social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Nossa análise corroborou com a ideia de que a crônica é, de fato, um gênero híbrido, que está entre o jornalismo e a literatura. Essa propriedade do gênero é revelada não apenas pelos elementos apontados por Bakhtin (2003) como constituinte de todo enunciado, mas por outros fatores como a ironia conforme ressaltamos em Barreto-Filho e Pinto (2010). O hibridismo desse gênero é reforçado pela flexibilidade da forma, sobretudo da construção composicional. As crônicas jornalísticas não apresentam forma típica, sempre tomam emprestada a tipicidade de outros gêneros. Com efeito, não podemos criar uma tipologia formal para as crônicas jornalísticas, assim como seria difícil criar para a publicidade. Esses gêneros são mais claramente identificados pelo propósito do texto do que propriamente pela construção composicional ou estilo. Conforme pudemos observar, as considerações teóricas propostas por Bakhtin e seu círculo mostraram-se de bastante utilidade para analisar e entender o funcionamento do gênero em questão. De maneira geral, as propostas bakhtinianas demonstram grande coerência quando partimos para análise da interação verbal. Desse modo, acreditamos que os estudos em relação ao discurso devem ser reforçados a fim de garantir maior conhecimento acerca da linguagem humana em um contexto social e real.

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REFERÊNCIAS BAKHTIN, M/VOLOSHINOV, V. Marxismo e Filosofia da Linguagem. São Paulo: Hucitec, 2006. BAKHTIN, M. Os Gêneros do Discurso. In: Estética da Criação Verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2003. ______. Problemas da Poética de Dostoievski. Tradução de Paulo Bezerra, 3 ed, Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2005. BARRETO-FILHO, R. R.; PINTO, A. P. Crônica Jornalística: um gênero de natureza irônica. In: SINIEL, 2010, Recife. Anais do Siniel. Recife: Edufrpe, 2010. v. 1, p. 1 - 12. BRAIT, B. BAKHTIN: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2006. CUNHA, D. A. C. Circulação, reacentuação e memória no discurso da imprensa. Bakhtiniana, São Paulo, v. 1, n. 2, p.23-39, 2009. PEREIRA, L. Os Infortúnios do Rei. Diário de Pernambuco, Recife, 5 de jun. de 2009. Caderno Vida Urbana, p.5, 2009. PEREIRA, W. Crônica: a arte do útil e do fútil. Salvador: Calandra, 2004. REY, L. R. S. 2007. A Crônica é Jornalística e Brasileira e não se Fala mais Nisso! Campinas, SP: Lince. ROSSETI, R. & VARGAS, H. 2006. A Recriação da Realidade na Crônica Jornalística Brasileira. In: UNIrevista – Vol.1, nº 3, julho/2006.

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Resumo O trabalho em questão corresponde aos resultados finais alcançados com a análise do romance Balada de Amor ao Vento, produzido pela escritora Moçambicana Paulina Chiziane. Integrado ao CELLUPE – Centro de Estudos Linguísticos e Literários da UPE – trata-se de um trabalho de IC, cuja orientadora é a professora Drª. Amara Cristina Botelho. Tem por objetivo analisar a escrita da mulher. Para a fundamentação teórica utiliza-se como ponto de partida os conceitos de Lúcia Castello Branco e Ruth Silvano Brandão. O trabalho aborda de modo simples os diversos assuntos tratados na obra em análise, contrariando o que foi dito por Massaud Moisés: “A poética feminina parece sempre girar em torno do eixo amoroso”. ( BRANCO; BRANDRÃO, 1989, p.95) A narrativa problematiza e critica diversos temas que tratam da identidade social e da posição do sujeito em uma sociedade extremamente patriarcal. Sendo assim, este trabalho possibilita uma discussão mais aprofundada da problemática do gênero feminino na escrita. Palavras-chaves: análise; escrita; mulher; sociedade; patriarcal


A ESCRITA DA MULHER EM BALADA DE AMOR AO VENTO DE PAULINA CHIZIANE Marcela Darly Mendonça (UPE/Mata Norte)1 Amara Cristina Botelho (UPE/Mata Norte - Orientadora)2

INTRODUÇÃO A partir da leitura do romance Balada de Amor ao Vento da escritora moçambicana Paulina Chiziane, pode-se perceber um profundo interesse da ficcionista em revelar diversos problemas sociais que afligem o gênero feminino. E neste artigo serão expostos alguns desses temas que foram tratados com excelência pela autora em questão. A obra narra uma história de amor que vai da adolescência à velhice, cuja convivência do casal amoroso, Sarnau e Mwando, é dificultada por questões socioculturais resultantes de incompatibilidades de caráter religioso e de gênero. É a partir da personagem principal da narrativa que serão desenvolvidas as análises referentes à escrita da mulher. O Patriarcalismo é o assunto que desencadeia diversas situações de opressão, massacre, violência física e moral, silenciamento, além de tratar a mulher como um objeto sexual. Dessa forma, percebe-se que o papel da mulher Afra é subvalorizado em relação aos desejos e vontades do homem. Ou seja, através da narrativa em questão, Chiziane aborda não só aspectos voltados para o eixo amoroso, como também ultrapassa essas barreiras e denuncia a real identidade feminina negra em uma sociedade extremamente patriarcal. Para fundamentar este trabalho utilizou-se como principal recurso o conceito teórico de Guacira Lopes Louro (2010, p.37), pois segundo esta:“Os estudos femi-

1. Graduanda do curso de Letras pela UPE. Autora do projeto: Gênero e representação social em Balada de Amor ao Vento de Paulina Chiziane, financiado pelo CNPq e vinculado ao CELLUPE. celinha_darly@hotmail.com 2. Doutora em Literatura e Cultura pela UFPB. Professora de Teoria da Literatura, Literaturas Portuguesa e Brasileira na UPE / FFPNM. acristinabotelho@gmail.com 69


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nistas estiveram sempre centralmente preocupados com as relações de poder. [...] Esses estudos procuraram demonstrar as formas de silenciamento, submetimento e opressão das mulheres.” E Balada de Amor ao Vento é um romance que aborda essas questões. Dessa forma, a narrativa de Chiziane descreve os diversos modos de poder que o homem exerce sobre a mulher.

ELEMENTOS ESTRUTURADORES DA NARRATIVA O livro Balada de amor ao vento de origem Moçambicana, cuja autora é Paulina Chiziane, editado em 1990, é o primeiro romance a ser publicado por uma mulher em Moçambique. No romance em questão, a escritora utiliza a voz da personagem Sarnau para denunciar, implicitamente, a verdadeira condição social que a mulher afra ocupa na sociedade de ordem patriarcal. A narrativa desenvolve-se em Mambone, região sul de Gaza. A estória de amor entre Sarnau e Mwandoé o que move a narrativa e que conduz a protagonista as suas baladas de amor. Segundo Christina Ramalho, o amor da protagonista “[...] é o ponto onde se põe em funcionamento a memória da personagem, principal fluxo para a retomada crítica de toda sua conturbada trajetória de vida, que levou-a da riqueza à miséria, do casamento à separação, do amor à solidão.” (RAMALHO, s.d. ,p.16) O romance, Balada de amor ao vento, é escrito em primeira pessoa, pois a personagem principal da narrativa, Sarnau, conta a sua história. Segundo a teórica Lígia Chiappini Leite: “O NARRADOR, personagem central, não tem acesso ao estado mental das demais personagens. Narra de um centro fixo, limitado quase que exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos.” (LEITE, 1985, p.43). Em sua obra, intitulada O Foco Narrativo, Chiappini ainda expõe as “visões” de Jean Pouillon que são de três tipos de acordo com a relação narrador-personagem: a primeira é a VISÃO POR TRÁS, na qual o narrador é onisciente, sabe tudo, tanto quando um deus; segunda é a VISÃO COM, na qual “o narrador limita-se ao saber da própria personagem sobre si mesma e sobre os acontecimentos.” (LEITE, 1985,

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p.20) E a última é a VISÃO DE FORA, em que o narrador está limitado a descrever os fatos, sem ter acesso ao interior das personagens. Na obra moçambicana, em discussão, a VISÃO COM é a predominante, pois a narradora-personagem, Sarnau, limita-se a descrever seus pensamentos, emoções e todos os acontecimentos que a envolveram na vida. No primeiro capítulo, já é possível perceber o tipo de narrador está presente no romance: “Tenho saudades do meu Save, das águas azul-esverdeadas do seu rio. Tenho saudades do verde canavial balançando ao vento, dos campos de mil cores em harmonia, das mangueiras, dos cajueiros e palmares sem fim.”( CHIZIANE, 2003, p.11) Na obra de Lígia Chiappini, ainda há outro aspecto relevante a ser considerado. No tópico “Revisando as ‘visões’: Maurice-Jean Lefebve” há uma releitura das “visões” de Jean Poullion. Como a análise da obra em questão está enquadrada na VISÃO COM, limitar-se-á a descrever apenas esta “visão”. Maurice-Jean Lefebve afirma que no romance de VISÃO COM, que é dito como de primeira pessoa, é comum o uso do monólogo interior e do fluxo de consciência. E a narrativa Balada de amor ao vento trás vários exemplos dessa natureza, assim como é possível acompanhar no fragmento em que Sarnau, por sua condição de gênero feminino, ainda não expõe explicitamente suas reflexões para e sobre a sociedade na qual está inserida, pois tal pronunciamento seria “proibido”, partindo do pressuposto de que a mulher em uma sociedade extremamente patriarcal além de adquirir papel secundário, ainda o faz de forma silenciosa. De acordo com Massaud Moisés:“O espaço constitui outro ingrediente em que deve atentar o analista de ficção. Como se sabe, uma narrativa pode passar-se na cidade ou no campo, mas depende de seu caráter linear ou vertical a maior ou menor importância assumida no cenário.” (MOISÉS,2008,p.136) O espaço em que é narrado Balada de amor ao vento é de extrema importância, porque a denúncia que Chiziane lança ao leitor está intimamente ligada a Gaza. Segundo Adelson Gonçalves (ano, p.03 ) esta região é “a mais machista de Moçambique, nela a mulher, além de cozinhar e lavar, para servir uma refeição ao

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marido tem de fazê-lo de joelhos”. Em função desse espaço onde ocorrem os fatos, existe a presença muito forte da submissão da mulher no romance. Logo, este apresenta questões que envolvem o patriarcalismo, um dos temas criticado na obra. Como esclarecido anteriormente, Sarnau é a personagem central da narrativa e é ela quem conta a sua história. Segundo Abdala Júnior, neste tipo de personagem predomina “ o foco de interesse da história, e o discurso narrativo se organiza em função do desenvolvimento de seu conflito.”(ABDALA JÚNIOR,1995,p.44) Já a personagem oponente, ainda de acordo com Abdala Júnior (1995) , é aquela que é a responsável por colocar obstáculos na vida da protagonista, e a partir daí desenvolve-se um conflito. Esta personagem não precisa ser necessariamente uma pessoa e na obra moçambicana, este papel é atribuído pela tradição cultural da personagem, pois, é sempre o meio social que lhe impede a conquista de seus objetivos. Existem dois tipos de tempos internos na narrativa, o cronológico quando os eventos presentes no texto obedecem a ordem das datas cronologicamente. E o outro é o tempo psicológico, que é “o tempo cronológico distorcido em função das vivências subjetivas das personagens”. (ABDALA JÚNIOR, 1995, p. 54). Este último é o tempo predominante nas ações da narrativa. A narradora-personagem já envelhecida dá inicio a ficção recordando a infância, aadolescência, a sua fase adulta até os dias em que ela se encontra, no início da velhice. Para isso, Paulina Chiziane contou com o recurso da retrospectiva, onde o tempo do discurso apresenta uma volta longa ao passado, dando ênfase aos aspectos mais relevantes, tais como em: Quem me dera voltar aos matagais da minha infância, galgar as árvores centenárias como os gala-galas e comer frutas silvestres na frescura e liberdade da planície verde. Estou envelhecida e sinto a aproximação do fim da minha jornada mas, cada dia que passa, o peito queima como vela acesa no mês de Maria, o passado desfila como um rosário de recordações, mas sim vivências que se repetem no momento em que fecho os olhos transpondo a barreira do tempo. (CHIZIANE, 2003, p. 11)

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VOZ QUE DENUNCIA O romance Balada de Amor ao Vento é escrito em primeira pessoa, onde a personagem principal da narrativa, Sarnau, conta a sua história.Ao tratar de assuntos como feminismo negro e patriarcalismo, a narrativa desempenha enorme contribuição para a representatividade da sociedade africana, buscando revelar a identidade feminina afra, analisada a partir da protagonista Sarnau. Segundo Rossi, nesta narrativa é possível: Identificar a discussão da submissão feminina, o modo como tanto a poligamia como a monogamia submetem a mulher aos interesses masculinos e aos da sociedade em geral, a influência dos mais velhos na vida dos mais novos, a questão da assimilação, a negociação estabelecida entre a cultura tradicional e os diferentes discursos históricos conservando o controle patriarcal exercido sobre as mulheres.( ROSSI, 2010, p.3)

Todos esses conflitos posicionam a escrita feminina afra da escritora Paulina Chiziane voltado para uma abrangência muito maior capaz de envolver questões culturais e sociais, não ficando restrita apenas ao eixo amoroso. Ou seja,os diversos olhares, trabalhados peça escritora moçambicana são refletidos na escrita de forma a produzir impacto na receptividade do leitor. A seguir tem-se um trecho do romance que já de início procura mostrar ao leitor os nuances que serão revelados no decorrer da narrativa: Um dia disse-me que a terra é redonda. Por fora é toda verde e lá no fundo tem um centro vermelho. Como o melão. Que a terra é a mãe da natureza e tudo suporta para parir a vida. Como a mulher. Os golpes da vida a mulher suporta no silêncioda terra. Na amargura suave segrega um líquido triste e viscoso como o melão.Quem já viajou no mundo da mulher? Quem ainda não foi, que vá. Basta dar um golpe profundo, profundo, que do centro vermelho explodirá um fogo mesmo igual à erupção de um vulcão. (CHIZIANE, 2003, p.12, grifos nossos). 73


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Ao utilizar uma comparação entre a terra e a mulher, Sarnau expõe o silenciamento que a mulher afra suporta na região de Gaza, onde transpassa a narrativa e além disso, já informa ao leitor que o gênero feminino, apesar de suportar todas as dificuldades as quais lhe são impostas, demonstrando bravura e coragem, ainda assim se mostra um ser frágil que é triste e amargurado. Isto é, já são apontados para o leitor os rumos a que se tomará a narrativa.

OPRESSÃO A LONGA DATA A história nos mostrou que os homens sempre detiveram todos os poderes concretos, desde os primeiros tempos do patriarcado; julgaram útil manter a mulher em estado de dependência; seus códigos estabeleceram-se contra ela; e assim foi que ela se constituiu concretamente como outro. (BEAUVOIR, 1980, p.179)

Como observado no argumento de Simone de Beauvoir, não é de agora que há uma predominância do domínio masculino sobre o feminino, muito pelo contrário, tal prática é de longa data e constitui na mulher formas de opressão e massacre que segundo o teórico Adelton Gonçalves é muito mais vivenciado pelas mulheres de origem negra do que pelas de origem branca: Ou alguém duvida que a mulher negra sempre foi muito mais oprimida e massacrada que a branca, que vive do suor de seu próprio rosto há muito mais tempo, que responde por sua própria família desde épocas imemoriais, embora fuja à luz da razão discutir gradações de violência? (GONÇALVES, 2004, p. 03)

A revelação dessa problemática é perceptível em várias exposições no romance abordado, a seguir segue um fragmento referente às marcas das diferenças entre a mulher negra e a mulher branca que são evidentes durante o capítulo em que Sarnau é escolhida para ser a primeira esposa de Nquila.

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A sorte andou à roda e caiu sobre mim. Este lobolo estava destinado à Khedzi, mulher esbelta, de pele clarinha como os homens gostam, desde o nascimento escolhida para esposa natural da família real. (CHIZIANE, 2003, p. 37)

No trecho acima fica claro a preferência dos homens para com as mulheres de pele clara, sendo possível perceber certa superioridade da cor branca em relação à negra. Como esclarecido pela personagem narradora, ela deteve de uma sorte muito grande e tornou-se a primeira esposa do futuro de Mombone, Nguila. Entretanto, na narrativa, percebe-se que após algum tempo de casados, Nguila dá preferência a uma das esposas, a Pathi, que é a mais clara de todas as esposas, chegando a deixar de lado a primeira esposa, Sarnau, por dois anos. Chiziane ao tratar na obra tal preferência do rei pela esposa de pele mais clara revela mais uma vez as marcas das diferenças entre a mulher negra e a mulher branca. Um outro critério perceptível nessa passagem do romance moçambicano é o Lobolo realizado nos casamentos. Essa prática é uma tradição que envolve a “venda da mulher” ao futuro marido. Apesar de ter sido “comprada”, Sarnau considera-se uma mulher sortuda, pois esta foi lobolada por 36 cabeças de vacas, fato que poderá ajudar todos os irmãos da protagonistaa também se casar. Essa troca entre as famílias do noivo e da noiva resume-se a uma prática que também subvaloriza o poder de escolha da mulher. Além disso, no romance, Sarnau considera a quantia do lobolo elevado, pois ela não é o tipo de mulher que recebe uma quantia tão alta, ou seja, mais uma vez a mulher de pele mais clara é quem é, segundo a narradora-personagem, a merecedora de valores mais altos. “O número de vacas com que é lobolada é tão elevado, coisa que nunca aconteceu desde os tempos dos nossos antepassados.” (CHIZIANE, 2003, p.36) Com essas exposições percebe-se um grito de denúncia atrelado aos aspectos socioculturais, a qual a sociedade patriarcal está envolvida. Em um só fragmento percebe-se que a mulher além de ser tratada como mercadoria que desempenha papel secundário sem direito de opinião também é 75


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desvalorizada simplesmente por questões raciais. No trecho que segue, é enfatizado o valor do lobolo, quais os interesses que estão por trás dessa prática: Não se compra uma mulher para trazer prejuízos à família, antes pelo contrário,o lobolo é uma troca de rendimentos. Mulher lobolada tem a obrigação de trabalhar para o marido e os pais deste. Deve parir filhos, de preferência varões, para engrandecer o nome da família. Se o rendimento não alcança o desejável, nada há a fazer senão devolver a mulher à origem, recolher as vacas e recomeçar o negócio com outra família. ( CHIZIANE, 2003, p. 63)

Casar é um negócio, uma troca de mercadorias, onde se a mulher não cumprir a sua obrigação de servir ao marido e toda a família pode ser devolvida, como quando se compra uma calça e não lhe serve o tamanho, apenas volta-se a loja e coloca-se outra no lugar. Ou seja, Chiziane expõe claramente que a mulher é, ainda, vista nesta sociedade como um produto que se apresentar alguma “falha de fabricação” poderá ser trocada a qualquer momento. Sendo assim, na obra é imperceptível a presença da voz que denúncia problemas que atingem diretamente o gênero feminino e com mais intensidade o de origem negra. Vale ressaltar, ainda, que todos esses nuances são revelados no decorrer de uma narrativa que tem como diretriz contar a história de amor entre Sarnau e Mwando, ou seja, o eixo amoroso não impossibilitou a construção de um romance que critique e denuncie o desfalecimento social da mulher.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Conforme é analisado por Lúcia Castello Branco e Ruth Silviano Brandão(1989, p.95), em A mulher escrita, percebe-se o preconceito internalizado mediante a presença de mulheres na literatura, pois estas são sempre vítimas da escrita voltada para o eixo-amoroso, nas “ [...] tentativas de afastar o trabalho ou a atuação feminina dos territórios da seriedade [...]”. Em contraposição a esse 76


A ESCRITA DA MULHER EM BALADA DE AMOR AO VENTO DE PAULINA CHIZIANE

pensamento de ordem preconceituoso rotulado a massa feminina, Balada de Amor ao Vento, apesar de ser escrito por uma mulher, trouxe a tona em seu enredo aspectos diretamente ligados à representatividade social. Dessa forma, a obra da escritora moçambicana possibilitou a análise e reflexão da escrita mulher voltada para a estética e influência sociocultural.

REFERÊNCIAS CHIZIANE, Paulina. Balada de amor ao vento. Lisboa: Editorial Caminho, 2003. BRANCO, Lúcia Castello. BRANDÃO, Ruth Silvanio. A mulher escrita. Casa-Maria Editorial, 1989. GONÇALVES, Adelto. O feminismo negro de Paulina Chiziane. Jornal de Poesia. Disponível em <http://macua.blogs.com/moambique_para_todos/2004/06/o_feminismo_neg.html> Acesso em 21 maio de 2012. LOURO, Guacira Lopes. Gênero, sexualidade e educação: Uma perspectiva pósestruturalista. 11. Ed. Petrópolis, RJ : Vozes, 2010. ROSSI, Érica Alves. A questão do feminino e a reconfiguração da Moçambicanidade em Balada de Amor ao Vento. 2010. Disponível em<http://www.pgletras.uerj.br/palimpsesto/ num11/estudos/palimpsesto11_estudos01.pdf> Acesso em 29 de setembro de 2012. VALER, Salete. Balada de Amor ao Vento: a enunciação do EU feminino em uma sociedade patriarcal e poligâmica. Disponível em <http://www.fals.com.br/revela13/ baladadeamor.pdf> Acesso em 29 setembro de 2012.

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Resumo Resumo Macedonio Fernández esta inserido dentro da literatura argentina entre as épocas do

O presente trabalho analisa algumas narrativas presentes na obra Você me Deixe, Viu? Eu vou bater o meu tambor, ados do final do século XX. Desta podemos destacar o Museo de la Novela de la Eterna, de autoria de Cidinha da Silva. Nesses, observo como um romance no qual se propõem a romper com o modo de representação realista então essas escritas podem se distinguir das escritas tradiciovigente na literatura hispano-americana, e que na Argentina apresenta forte tradição nais e de que forma dialogam com as novas tendências com desde o romantismo até o início do século XX, o costumbrismo. Em seu projeto das escritas literárias no cenário brasileiro. Sobretudo, estético, Fernández propõe diversas negações, as mais frequentes, apresentam-se com observo como determinados grupos escamoteados na relação à tendência realista e o descaso com a publicação. . Esta atitude também é sociedade e as relações do cotidiano, que nos passam reforçada por meio de sua escritura, um complexo de escrever-pensar que plasma os “despercebid@s”, são situadas social, culcaminhos de sua atividade criadora. Assim a construção do Museo dá-se por meio de tural e institucionalmente, por meio da literatura. duplos negativos: presença-ausência, centro-margem e publicar-pensar. É por meio modernismo e das vanguardas, contudo sua produção só é divulgada ao público em me-

do tipo de leitura referenciado na obra que nos encontramos com a trama, que é feita,

Palavras-chaves: literatura; sexualidade; gênero.

suspensa, desfeita e reencaminhada “a la vista” do leitor.

Palavras-chaves: Romance ; Macedonio; Belarte; Museo.


A negativa macedoniana e a “nova” forma do romance: uma leitura do Museo de la Novela Érica Thereza Farias Abrêu1

INTRODUÇÃO Qual a função da literatura hoje? (...) No mundo contemporâneo, a arte (não só a literatura) apenas contém um potencial de negatividade: a de revelar os limites dos projetos e dos sistemas, a de ironizar as boas intenções (e, no entanto, necessárias),a de parodiar os construtores do futuro, ainda que algum futuro outro precisa ser construído. (Costa Lima: 1986, p. 73)

Macedonio Fernández: um cidadão portenho Dentro da literatura latino-americana encontramos algumas obras que romperam com o modelo ‘realista’ de representação. No Brasil, temos como referência, o grande divisor de águas, Machado de Assis, inserido na escola literária realista, que não se vincula, a não ser temporalmente ao movimento em voga2. Outro escritor, menos experimentado, mas que foi retomado e reconhecido pela crítica hispano-americana, em especial argentina, dos anos 70 do século passado é Macedonio Fernández. Um portenho que escreve durante um período de 50 anos, mas que pouco publica. Fernández assina obra original e complexa, que inclui romances, contos, poemas, artigos jornalísticos e outros textos de natureza inclassificável.

1. Mestranda em Teoria Literária (PPGL-UFPE) e Professora da FALUB. Email: ericafariasabreu@uol.com.br 2. Ver estudo realizado por Costa Lima sobre a recepção de Machado de Assis por parte da crítica. 79


Anais Eletrônicos - XI EELL

Seus primeiros veículos de publicação foram às revistas literárias que eclodiram na Argentina durante o Modernismo e as Vanguardas. Neste ínterim Macedonio começa a construir sua obra, ainda que as publicações de seus livros tenham acontecido, em sua maioria, postumamente.Se com o Modernismo de Rubén Darío e o Criacionismo de Vicente Huidobro já são lançados, na lírica, os pretéritos ecos da nova literatura. É com o Museo de la Novela de la Eterna, de Macedonio, que temos um “primer auténtico cuestionamento de la realidad misma y, por ende de la novela mimética (...) en Hispanoamerica” (SHAW: 1999, 28). Dentro do contexto de seu país aparece como elo entre dois reconhecidos escritores, Leopoldo Lugones e Jorge Luis Borges. O primeiro representa o modernismo argentino, posto que, junto ao nicaraguense Darío, publica no jornal La Nación, além de produzir obras que estimulam o desenvolvimento dos símbolos nacionais, dentre eles o “gaucho”. Já o segundo, sinaliza a ruptura da “caduca” obra modernista ao propor uma vanguarda ultraísta na América, ação que é realizada devido à formação de novas revistas literárias-culturais na cosmopolita Argentina. O advogado-pensador desde sempre participou do cenário intelectual argentino. Oriundo das elites criolhas locais sempre esteve presente nas reuniões desta sociedade. Muitas destas ocorriam nas amplas casas portenhas, tanto em casa paterna, como na residência do clã Borges, um grupo, organizava encontros para nada mais que discutir3 os temas mais variados possíveis, dentre os mais versados estavam à política e a arte. Presentes as reuniões na casa dos Fernández encontraríamos, por exemplo, o já conhecido Lepoldo Lugones e Jorge Guilhermo Borges, pai de Jorge Luis Borges. Gabriel del Mazo, comenta sobre estas reuniões: En casa de mi tía Rosa (...) había reuniones – eran alrededor el primer centenario – que deberían ser realmente sobresalientes dentro de las

3. Para aprofundar mais a questão do campo intelectual desta época consultar primeiro capítulo de Hablan de Macedonio Fernandez, com relação ao grupo que frenquentava a casa da família Fernández del Mazo e para uma visão do grupo vanguardista da Florida, ver Sergio Miceli em “Jorge Luis Borges: história social de um escritor nato”. 80


A negativa macedoniana e a “nova” forma do romance: uma leitura do Museo de la Novela

reuniones del mundo intelectual porteño.(…) Concurrían (a veces permanentemente, otras casi intermitente): el doctor Juan B. Justo, José Ingenieros, Cosme Mariño, Leopoldo Lugones, Julio Molina y Vedia, Carlos Muscaré. Mis primos Ignacio y Marcelo del Mazo y los de la casa ya nombrados, Macedonio y Adolfo Fernández. (GARCIA: 1969, 27)

É assim que então jovem estudante tem contato com o cenário das letras argentinas. Tanto em sua casa como na faculdade é rodeado de figuras da política e da cultura argentina. Além de estudar na Faculdade de Direito e Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires, com Jorge Guilhermo Borges, tem como companheiro de turma o ilustre Enrique Rodríguez Larreta. Macedonio Fernandez, imerso no contexto do final de século, publica na revista “La Montaña” coordenada por Jose Ingenieros e Leopoldo Lugones. A revista tem orientação socialista e numa atitude contestatória ao mercantilismo seus formuladores buscam na arte moderna novos horizontes de libertação. Assim no periódico figura-se a procura da “promesa de superar la fragmentación de la vida tratando de construir una nueva totalidad. La utopia del socialismo claramente se manifiesta en esa comunidad de artistas”. (BUENO, 2000: 57) O texto publicado pelo jovem Macedonio nesta revista é intitulado “La desherencia”, nele trata de expor as possíveis heranças, para ele vazias e aparentes, do século XIX em relação ao XX. Mónica Bueno (BUENO, 2000) aponta pontos relevantes no citado artigo, alguns deles são a questão da totalidade/fragmentação, a leitura irônica das representações de fim de século tensionadas numa visão paródica que leva a negatividade e ao nada e, também, a questão da quebra da continuidade sob o signo da não-herança. Bueno conclui que o argentino tende “al juego de la mezcla, al manejo corrosivo de las estructuras lingüísticas que sostienen modelos epistemológicos vigentes.” (Idem, 60)

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O entrelugar do pensador escritor Ainda que tenhamos usado a imagem de elo para tratar da figura de Macedonio, podemos dizer que matinha conexões com as duas gerações representadas pelos dois citados poetas. Temporalmente o advogado pertenceria à geração de Lugones, contudo as suas ideias afinaram-se com o grupo vanguardista, especialmente no inicio da década de 20 do século passado, chegando a ser nomeado como colaborador e mestre do grupo.4 Macedonio apresenta interesse pela psicologia e pela filosofia, sendo desde a faculdade, junto a Jorge Borges, um leitor da metafísica. Após a publicação no periódico socialista, segue com outras dispersas contribuições, voltando ao cenário das revistas, mais fortemente, junto ao jovem grupo que assumiria, com as revistas Prisma, Proa e Martín Fierro, o novo cenário literário. A batalha iniciada pelos modernistas frente aos desgastados modelos de arte segue passo com as vanguardas. Como participante da vertente ultraista argentina e advogado que era, Macedonio combate a tendência da literatura realista e junto a outros autores na época, dentre eles Jorge Luis Borges, participa do movimento expressava deseos de cambio y renovación, cada uno en su época, marcaron, junto a muchos escritores, un nuevo rumbo en la producción literaria latinoamericana, para ponerla en sintonía con las nuevas tendencias literarias y con los cambios políticos y sociales (guerras y postguerras). (Betancourt:2011)

No entanto, ainda que o mestre encontrado da geração ultraista não tenha assumido a ‘cátedra’, nem mesmo o papel de ‘precursor’, o grupo encontrava neste portenho excêntrico, uma referência iconoclasta para orientar o seu não

4. Nos diversos textos copilados por Jorge Schwartz em Vanguardas Argentinas (1992) encontra-se a referência a Macedonio como colaborador. Já com relação ao “mestre encontrado” nos textos escritos por Borges, em especial da década referida, é possível encontrar a alusão constate a figura indicada. 82


A negativa macedoniana e a “nova” forma do romance: uma leitura do Museo de la Novela

posicionamento dentro no cenário vigente. Foi assim, ainda que Fernández apresentasse “un individualismo peculiar y aparentemente inconciliable con cualquier corriente estética definida por cánones expresivos o manifiestos artísticos”, pois seu “intento antirrealista, antirretórico y anticonvencional excede todo parcelamiento y escuela determinada” (SALVADOR: 1997, 358-9) o mesmo ainda fora citado, venerado e, até mesmo, “plagiado”5. Macedonio apresenta, como foi abordado em “La desherencia”, uma posição negativista. Costa Lima resgata que a arte atualmente apresenta um potencial negativo, sendo ela “apenas aquilo que, de seu comércio com o concreto, propõe dúvidas e questões, o que permite o prazer da dúvida.” (LIMA: 1986, 71). Macedonio trabalha seus escritos com a implantação de dúvidas, questionamentos profundos, quase metafísicos, sobre a sobre a vida, o eu e a arte. Nos livros publicados postumamente por Adolfo de Obieta – compilador, publicador e filho de Macedonio –, encontramos textos que sempre giram em torno da reflexão. Inicialmente, dedica-se a escritura de poesia, ensaios e depois parte para a prosa, com contos e romances. O escritor também foi grande leitor, temos ciência que até antes da morte de sua esposa, Helena de Obieta, guardava em casa ampla biblioteca, e que possuía ainda no período de trânsito alguns livros especialmente resenhados e comentados, ainda que em pequenos cadernos, papéis soltos ou nos “espaços vazios” ofertados pelo editor6. Em seu projeto estético Fernández propõe diversas negações, as mais frequentes, apresentam-se com relação à tendência realista e o descaso com a publicação. Esta atitude também é reforçada por meio de sua escritura, um complexo de escrever-pensar que plasma os caminhos de sua atividade criadora. Macedonio possui, de acordo com Nélida Salvador (SALVADOR: 1986), três momentos em sua produção que nos ajudariam no processo de compreensão do

5. Ver o texto lido por Borges no sepultamento de Macedonio em Camblong (Camblong, 2006:26). 6. Conferir Germán García Hablan de Macedonio Fernández (1969) 83


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projeto estético aparentemente descontinuo da obra macedoniana. O primeiro seria o período de iniciação, no qual participa de números de algumas revistas da época – dentre eles o supracitado “La desherencia” na revista La Montaña –, o segundo corresponderia ao período de intenso contato entre o autor e a vanguarda ultraísta argentina, no qual em decorrência do contato reestrutura sua visão sobre a produção literária e realiza alguma publicação e, por último, o tempo que corresponde à compilação-revisão e publicação de sua poesia. Ainda sobre o período de contato entre Macedonio e a vanguarda ultraísta, podemos dizer que esta relação foi viabilizada por dois fatos da vida pessoal que tiveram importância para sua vida literária. São eles, a saber, em 1920 a morte da esposa que resulta numa reelaboração da estrutura familiar e, no ano seguinte, o reencontro com a família Borges. O primeiro leva o pensador a um período de solidão e reflexão sumamente acompanhado de uma escritura-encaminhadora, já o segundo marca o início de uma amizade importante para as letras argentinas, que teve sua continuada manutenção entre cartas e conversas. O amigo encontrado de Borges, será, como vimos o ‘precursor’ escolhido do grupo vanguardista. Durante anos 20, as revistas literárias funcionam como espaço de desenvolvimento dos projetos experimentais da vanguarda. É justo no período de eclosão dessas revistas que Macedonio figura com frequência como mestre procurado pela vanguarda portenha para contribuir com os números das revistas, estas funcionavam como un espacio valido para las discusiones, las pruebas a prueba las teorías y los combates ideológicos. Guilhermo de Torre, en los veinte, reconoce el valor de revista en la constitución de los movimientos de vanguardia. Al respeto declara: ‘La revista descubre, polemiza, el escritor de revistas anticipa, es el guerrillero madrugado, el pionero que zampa terrenos intactos. La revista es la vitrina y el cartel. (BUENO, 2000: 68)

Ainda que a vida das revistas tenha sido curta, o ambiente propício à circulação já estimulava a edição de variados periódicos. As diversas propostas funciona84


A negativa macedoniana e a “nova” forma do romance: uma leitura do Museo de la Novela

vam como laboratórios, nessas figuravam amplos espectros ideológicos e estéticos. Macedonio volta a publicar, agora dentro do círculo literário, no grupo da Florida7, aportando contribuições aos periódicos Proa e Martín Fierro. As maiorias dos textos produzidos são em prosa e, em menor escala, poesia. Os trabalhos desta época eram realizados sobre as fundações de uma “‘Belarte conciencial’ que apela “a la total liberación de restricciones, tanto las que se refieren a la temática como las que concierne a los elementos formales” (SALVADOR: 1986, 18). O advogado apresenta-se inteirado ao processo transformador dos discursos do século XIX, através da participação naqueles periódicos que incluyen entonces, junto con las expresiones de lo nuevo en la poesía, la narración, la música y la plástica, numerosos documentos, reflexiones, debates y ensayos. En el contexto de una cultura, una retorica y una lenguaje empeñados en la divulgación imperiosa de ‘lo nuevo’ y en la beligerancia respeto a lo viejo. (Manzoni: 2008, 8)

As revistas, como visto, mostram o afã reconstrutor do cenário cultural. O mesmo já sinalizava Macedonio com o seu pensar-escrever que o leva a construir uma “oficina do pensar” nos quartos de pensões que habitava. Camblong ao tratar da escritura macedoniana utiliza a imagem de artefato, considerando-o um conjunto de “procedimientos, recursos, mecanismos discursivos y artísticos”, ainda sobre o arte-facto e o seu duplo significado escreve que en primera instancia, su carácter de artificio, de constructo estético y ficcional, producto de la intervención; a la vez resuena la factura artesanal, el experimento arriesgado, pero también tributario de facturas antiquísimas del arte.” (Camblong: 2006, 31)

7. Ver Jorge Scharwz (1992) Vanguardas argentinas: anos 20. 85


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A ideia da estudiosa expõe como Macedonio organiza imbricadamente sua concepção artística e filosófica a sua produção literária. A imagem de artefato8 (arte-factum, feito pela arte, técnica) revela a complexa trama articulada da escritura do pensador que envolve a teoria-prática e a reflexão-ação sobre o objeto literário. Na belarte, também chamada “arte conciencial” ou “autorística” é destaca a “actitud lúcida y vigilante del creador frente a sus propias invenciones” (SALVADOR: 1986, 18). Como os nomes sugerem, nesta o escritor buscaria combater a tendência do romance realista que propunha a captura de uma realidade imediata e prática, além de também renegar a tradicional poesia gauchesca, representante do ‘nacional’ argentino, construído desde o período do romantismo. Ainda que as revistas dos anos 20 discutissem em suas páginas sobre a argentinidade9, não mais com o âmbito formativo do movimento romântico, encontramos nelas (…) complejos procesos de aceptación y rechazo [en el cual] se diseñan los deslindes que reorganizan las ficciones de origen de la cultura y de la historia y se promueve la búsqueda de definiciones orientadas también a caracterizar las respectivas culturas nacionales y a buscar respuestas al interrogante de la ‘identidad’ continental. (MANZONI: 2008, 8)

O grupo martienfierrista, por sua atividade renovadora, aporta em seus diversos textos a efervescência intelectual de Buenos Aires. Esta vivia período, através do porto, de intercâmbio cultural com a Europa. As viagens ao Velho Mundo, então centro cultural, trouxeram o modernismo e o mesmo desejo de

8. (Do latim ars e fatum, feito pela arte, técnica). Significaem suas acepções a) Tudo o que é produzido pela arte ou técnica humanas.b) Distingue-se do que é natural, do que surge da natureza. Os artefactos já trazem a marca do homem; são, consequentemente, produtos culturais. Dicionário de Filosofia e Ciências Culturais. Mário Ferreira dos Santos Editora Matese, 1963. 9. Ver reflexão prosposta por Salvador (SALVADOR: 1997, 353). 86


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independência artística10 frente à cultura da antiga metrópole. Logo nestas revistas ocorreram polarizações e tendências frutos de questionamentos sobre o nacional/ cosmopolita e poesia pura/ poesia engajada. Dentro destas divisões dialéticas, os grupos uniram-se frente a uma publicação polêmica que viria a unir hispano-americanos diante de uma possível tentativa de recolonização cultural11: em um artigo Guilhermo de Torre expunha que a América Hispânica seria um “prolongamento cultural” de Madrid. Diversas revistas do continente americano protestaram em especial a Martín Fierro, que chega a lançar um manifesto, escrito por Oliverio Girondo, que afirma a argentinidade diante da influencia madrilenha. A atitude iconoclasta dos martínfierristas é acolhedora da posição críticoreflexiva de Macedonio, visto que o pensador tinha su necesidad de meditar, de indagar constantemente – faceta básica de su obra creadora – se relaciona a la vez con su implacable negación de lo aparentemente lógico, sólido, concreto y sistemático. En suma: todo lo que ofrece asidero a la rutina, a la costumbre, y consecuentemente, a la mediocridad. (SALVADOR: 1986, 19)

A postura irmanada de questionamentos levaria a contribuições mútuas, sobretudo na prática e reflexões estéticas de Fernández12. A exemplo dessas contribuições citamos o projeto da escritura de um romance a varias mãos, intitulado

10. O modernismo na América Latina tem como iniciador o poeta nicaraguense Ruben Darío que ao entrar em contato com a Europa propõe algumas inovações estéticas, ainda que estas estivessem alçadas no tocante a linguagem (ordem rítmica) e também na abertura da sensibilidade a outras culturas distintas da espanhola, sobre tudo a francesa. 11. A polêmica gira em torno da publicação do artigo do espanhol Guillermo de Torre, Madrid, meridiano intelectual de Hispanoamérica, na revista madrilena La Gazeta Literária, em abril de 1927, no qual o autor, como o próprio título indica, propõe Madri como o meridiano intelectual da América Hispânica. 12. Para maiores informações consultar Camblog (2007) Ensayos Macedonianos , o segundo texto da coleção esboça de maneira mais clara as relações simbólicas entre as partes citadas. 87


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“El hombre que queria ser presidente”13 e o estimulo a divulgação e publicação da obra subterrânea de Macedonio por Borges e seu grupo de simpatizantes. Como se pode ler nas letras do advogado encontramos os vestígios dessa convivência Por culpa de la juventud artística de Buenos Aires que conocí hace cuatro años estoy abismado en un problema de estética. Me desvalijaron por aquel entonces con tanta prolijidad e inmenso provecho de mi estética pasatista que hasta la fecha no he podido recuperar una ignorancia igual. (Macedonio apud García: 2003, 106)

O papel do velho mestre nas tertúlias, nas conversas de café e nas sociedades literárias era diverso, para uns contribuía até com o silêncio dos seus olhos azuis ou com suas poucas palavras. Em outros eventos, como publicações e reuniões receptivas de estrangeiros promovidas pelo grupo vanguardista, era presença esperada para protagonizar os finais dos encontros com seu “brindis en lo cual su ingenio sorprendente aunaba la profundidad filosófica o con el chisporroteo humorístico.” (SALVADOR: 1986, 17) Depois do período de ocaso das vanguardas históricas argentinas Macedonio14 não havia publicado, mais do que dois livros “Papeles de Recién Venido” (1929) e “Ni toda vigilia es la de ojos abiertos” (1928), ambos seriam resultado da reunião de manuscritos nunca publicados e de seus textos oriundos das revistas que tinha contribuído. Contudo são nas décadas seguintes que inicia novo percurso, no qual Dos actitudes prevalecen durante este período: la intención de innovar en un terreno que nos es ya el de relato breve sino el de la novela, y el

13. Ver Carlos Garcia Correspondencia (2003) e Jorge Isaacson M.F.(año), ambos autores tratam de aclarar sobre a anedota da campanha presidencial empreendida por Macedonio e pelo grupo vanguardista. 14. Um ponto interessante sobre o escritor é que fica conhecido apenas pelo seu nome, sendo, ainda hoje, “reconhecido” apenas pela nomeação deste. Macedonio tinha sido “adotado” publicamente apenas com seu primeiro. Observação foi feita por Adolfo de Obieta em “Memorias Errantes” (Ano) e outras publicações. 88


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interés por ahondar problemas estéticos que había sugerido en reiterados pasajes de sus libros anteriores y en varios artículos periodísticos. (SALVADOR: 1986, 21)

O (ex)cêntrico escritor Ainda que participasse do grupo ultraista, como anteriormente citamos, o escritor preserva a sua identidade solitária. Como afirma Pietro (PIETRO: 2002) esta distante proximidade entre as gerações faz com que no final da década de vinte haja um silencioso desligamento entre o “mestre encontrado” e os “seus seguidores”, ainda que alguns acompanhem o pensador não mais nos quartos de pensões, mas na sua nova “estância”, o apartamento de seu filho.Esse distanciamento pode ter ocorrido naturalmente com o dissolvimento da Proa e da Martín Fierro, mas também pela viagem de um dos líderes do movimento (Borges volta a Europa), além é claro da mudança política pela qual Buenos Aires passava que resvalou no ambiente intelectual propício a circulação livre de posicionamentos políticos e de diversidade estética. A ‘escolha’ pelo grupo vanguardista de Macedonio para substituir Lugones no eixo literário provem da marginalidade15 daquele frente à centralidade do outro, posto que o advogado seja reconhecidamente “esquecido” por sua geração, mas é descoberto pela atual (sua alcunha é a de recién-venido). Encontramos assim a figura de Fernández alternando entre centro-margem, sendo este, na leitura de Pietro (2002), um vanguardista ex-cêntrico. Essa posição leva-o a uma escritura limítrofe, na qual realiza (...) una crítica radical no solo de los presupuestos formales – de la estructura interna – de la narración realista o ‘burguesa’ (convenciones

15. Assim “lo que admiran los vanguardistas en Macedonio es en primer lugar, su inadaptación e insumisión al sistema, su resistencia a insertarse en los canales ordinarios de la actividad intelectual como ‘autor’ o productor de ideas en una economía de remuneración y consumo.” (Pietro: 2002, 55) 89


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narrativas como la coherencia lineal de la trama o la verosimilitud psicológica del personaje), como en otros ejemplos contemporáneos de la narrativa vanguardista (…) sino también y a diferencia de éstos, de los mecanismos de circulación pública – de las estructuras externas – (…) una crítica, en otras palabras, de las técnicas contemporáneas de encuadernación del discurso (…). (PIETRO: 2002, 27.)

Macedonio marca, na sua escritura, a diferença ou distância em relação ao núcleo martinfierrista. Dado que criada e instaurada a “nova sensibilidade”, o novo tão apregoado pelo grupo é institucionalizado. Desta forma, o que antes era ligado a projetos experimentais torna-se modelar, o movimento de margemcentro é completado. Fernández, por seu turno, segue com sua identidade solitária, estimando seu processo de negação com seus duplos intercambiantes. (*) A sua atitude de reflexão e questionamento chega aos pressupostos da literatura. Como citamos sua inclinação ao questionamento leva a construção do seu discurso como um encadeamento de negações que redefine, pela negação, as convenções estéticas, miméticas e pragmáticas (REICHARDT: 2004, 317). Durante o intenso período de contato com o grupo vanguardista, no qual tem seus conceitos redefinidos pela visão do ultraismo-criacionismo da nascente vanguarda argentina, Macedonio dá inicio a escrita de seu mais longo projeto narrativo: o Museu de la Novela de la Eterna. Nele propõem uma experimentação narrativa, busca no tecer da obra arquitetar um romance que siga a estética da Belarte.(*) O escritor realocando-se no eixo da narrativa longa distancia-se do ambiente lírico e afasta-se algo mais do grupo vanguardista, declarando-se o “pensador” de um romance, gênero ainda não trabalhado juntos aos ares renovadores. No Museo de la Novela o escritor portenho trabalhará de maneira compartilhada a reflexão estética e o romance em si. Compondo através de prólogos e capítulos a obra que é considerada pelos críticos como seu ponto alto dentro do campo literário, e o marco, dentro da literatura nacional, diante de uma arte realista.

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A negativa macedoniana e a “nova” forma do romance: uma leitura do Museo de la Novela

A “talla” dentro do “taller del pensar”: o trabalho com o texto De acordo com os estudos de Julio Pietro sobre o início do fio da trama do Museu aponta-o como um “producto inconcluso de uma dilatado período de escritura que romântica aproximadamente desde 1925 hasta 1952” (PIETRO: 2002, 79). O próprio autor, num dos prólogos da obra, fala que ocorreram interrupções na construção do texto, começado aos 30 anos, continuado próximos aos 50 e ‘terminado’ em torno dos 70 anos. A estrutura do texto em si já se apresenta disposta singularmente, é composta de sessenta prólogos, vinte capítulos, dois epílogos e um prólogo final. O romance teve sua primeira publicação (póstuma) em 1967, contudo tem uma primeira versão publicada sobre o nome “Uma novela que comienza” (1941).Este “começo-anunciado” já apresenta uma particularidade central da desta narrativa, que apresenta uma atitude crítica frente aos modelos de romance das estéticas realistas e naturalistas surgidos na Europa no final de século XIX e desenvolvidos na América Latina. Já nos prólogos iniciais mostra o autor sua posição diante destes romances, considerados “novelas malas/viejas” e a necessidade do surgimento de “novelas buenas/nuevas”. Dado este posicionamento o autor propõe no terceiro prólogo a escritura de um duplo romance, gêmeos em essência (da forma romanesca), que contemplaria “la novela mala y la buena”. Os romances em questão seriam Adriana Buenos Aires e Museo de la Novela ainda que não tenham sido publicados de fato conjuntamente os dois se contrapõem complementariamente, sendo representantes de duas estéticas distintas e de seus respectivos gêneros “omân” y “malo” do romance (FERNANDEZ: 2011). Ao tratar do Museo de la novela Noé Jitrik (JITRIK: 1997) aponta o romance como uma tentativa de execução dessa nova forma. Sendo a negação a força estruturante do mesmo, esta negação é desenvolvida “uma dos niveles, el de la forma vieja como imagen de uma totalidad y el de los <elementos> que siendo 91


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constitutivos de la forma vieja deben ser transformados”. Para Jitrik na forma velha encontram-se presentes os elementos formativos da forma nova, o mesmo identifica posteriormente os elementos dessa organização – o romance – como sendo personagens, maneira de narrar e tema. A realização do <bom/novo> ou <mal/velho> romance – categorias propostas por Macedonio em diversos textos, que são retomadas pelo autor do Museo... e perpassadas pelo critico – são pautadas não só pela escritura, mas também pela leitura. Para a realização deste novo romance, que o crítico chama, de acordo com suas investigações, de “novela futura” é necessário um processo no qual (…) las dos perspectivas que bifurcan el sentido de la hipótesis de la novela <futura>: por un lado la <escritura>, es decir un programa de desarrollo de la hipótesis en su origen y, por el otro, la <lectura>, que es desciframiento de la hipótesis ya desarrollada, de los elementos ya inflexionados. Parece evidente que lo decisivo de la constitución de la <hipótesis> reside en la escritura, sólo ella pode definir su forma y por lo tanto, es ella la que condiciona o modela la lectura. (JITRIK: 1997, 484.)

A proposta de Jitrik é aclarar o como o autor seguiu a construção de seu texto para que este se articulasse com a hipotética nova forma. O estudioso da obra macedoniana, aponta algumas proposições resultantes da verticalização da leitura do romance que visam desvendar a proposta da “belarte” durante o desenvolvimento do texto. Esta leitura é concordante com a de Stratta, (STRATTA: 2007) ao colocar que o Museo é um rompimento com o pacto realista, no qual se acredita estar “viendo ‘vivir’ a seres humanos”, é assim que o leitor choca-se com a ficção do/no texto referenciado. A recusa das vigentes convenções narrativas é realizada através atentando contra a verossimilhança, à psicologia do personagem e ainda a coerência linear da narrativa. Contra a primeira investe toda uma prédica anti-realista, na qual todos os elementos que possam resultar, durante o ato da leitura, numa aparente

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“realidade refletida” são transformado em elementos que serviram agora a uma outra estética, a inventiva. Como vimos, Noé Jitrik relata que dentro do velho romance encontram-se os elementos do novo romance, leitura que indica a necessidade de um ‘resgate’. De maneira indireta, seguindo a proposta de Salvador (SALVADOR: 1987) e Atalla (ATALLA: 2009) é possível sentir os ecos de um leitor do Quixote, de Miguel de Cervantes. O que de fato propõe-se a realizar o autor do Museo é a retomada da ficção ao seu posto de orientadora do discurso literário, na sua vertente narrativa. O que já tinha sido de certa maneira reivindicado por outros movimentos estéticos, estava sendo destacada dentro da proposta teórico-reflexiva de Macedonio, a literatura como arte, e não como expressão de sentimentos ou de reflexo denunciante do seu contexto social. Assim sua escrita visa “ironizar acerca de la literatura omântica (...), del arte doctrinario y cientificista, del realismo que es mera copia descriptiva” (SALVADOR: 1987). Assim o que outrora fora eixo centralizador, a verossimilhança, é combatida, posto resultaria numa “alucinação”, e o seu objetivo é ratificar o pacto ficcional, como um acuerdo tácito por el cual se suspende el principio de la verificación. A partir de este pacto, la ficcionalidad de un relato se establece en grados: unos juegan con el simulacro de la correspondencia con el mundo real y otros intentan anular las semejanzas y explorar semánticas de monádas insospechadas (BUENO: 2000, 76)

A “estética inventiva” é desenvolvida em reação à estética “culinária”16. Esta alimenta a produção realista, com a verossimilhança atuando como agente organizador, na qual o autor funciona como copista de uma realidade externa e o produto desta estética seria a “novela mala”, sob o formato de uma Obra. Já na estética inventiva – que tem características de uma produção não-realista – ha-

16. Como também é chamada a estética realista. 93


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veria espaço para a ‘efetividade do autor’ (e não um copilador de existências), como criador de “inverosimilitudes” ou, como acima citou Bueno, de ficção. Além de também não haver uma obra, mas um texto em desenvolvimento, “la novela buena y futura”, posto que esta estética esta procurando o hipotético modelo. Sabemos que o discurso literário é tecido sobre o conceito de ficção. E este, por seu turno, é estruturado dentro da ideia de mímesis. Sendo assim, A arte, e portanto a literatura, é uma transposição do real para o ilusório por meio de uma estilização formal da linguagem , que propõe um tipo arbitrário de ordem para as coisas, os seres, os sentimentos. Nela se combinam um elemento de vinculação à realidade natural ou social, e um elemento de manipulação técnica, indispensável à sua configuração. (CANDIDO, 1972: 53)

De acordo com Costa Lima, a mímesis é uma modalidade discursiva gerada sobre o princípio de jogo17, no qual “um agente realiza um conjunto de ações que, do ponto de vista moldura básica (primary frame) teria um significado que, entretanto, ai não se aplica” (LIMA: 1981, 224-5). Neste sentido o produto da mímesis seria a transposição dessas molduras e realizar-se-ia quando houvesse a flexibilização desses frames. A variabilidade das recepções da experiência mimética pode ser entendida através das cadeias formadoras da mímesis: a identificação e a distância18, que se articulam através da semelhança e da diferença. (*) Em Macedonio encontramos uma forte negativa direcionada a mímesis de representação, posto que ele nega “enfaticamente la capacidad referencial de sus

17. O “jogo particularizado, onde o prazer não se esgota no próprio objeto do jogo (...) a sua ludicidade é apenas um ponto de partida, que logo se transformará numa seriedade que lhe é reservada: a de exigir pensar-se sobre o que se joga. (...) pensar sobre o jogo que se joga implica localizarem-se as convenções sociais presentes no jogo” (LIMA: 1981,224-5). 18. São os dois eixos articuladores da mímesis: a identificação/semelhança “entre a representação mimética e as representações do leitor que presidem a sua identificação” e o distanciamento/diferença, entendido como “distancia, possibilidade de questionamento, diferença (entre a representação mimética e as vivenciadas)” (LIMA: 1981,230). 94


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ficciones”(MASIELLO, 1997: 533). Assim sendo, no cotejo com a teoria de Costa Lima, a escritura macedoniana estaria articulada com a mímesis de produção, aquela que é capaz de “produzir uma dimensão do Ser [a maneira como a sociedade concebe a realidade]” em detrimento da mímesis de representação, a que tem por característica “representar um Ser previamente configurado.” (LIMA: 2003, 182). A mímesis diferencia-se de outros tipos de representação social pela maneira como se utiliza a função poética da linguagem e pela relação indireta que estabelece com o real (Idem, 93). Sendo assim ainda que Macedonio e sua estética estejam tentados a “desligar-se” de uma referenciação externa nela encontram-se ancorados. Podemos dizer o mesmo do Criacionismo de Vicente Huidobro, representado por Altazor, a negação a referencialidade da linguagem é potencialmente distendida, contudo é possível “significar” os elementos ali produzidos através da transgressão (na visão iseriana) ou flexibilização (na leitura de costalimenha) do real. Posto que a obra literária, como objeto mimético, para que seja recebido (**) pelo leitor é preciso que contenha indicadores do referente que se desfaz. A categoria de negação é assim necessariamente ressaltada, muito embora o trabalho de produção vá além do negado. A negação importa como lastro orientador da recepção, a qual, se pretende conhecer objeto, e não só entender seu comportamento, precisa ver o que se negou (LIMA: 2003, 182.)

É assim que a proposta de Macedonio de “desconocer lo conocido”, de acordo com Bueno, é “el trabajo que propone a la literatura, es la operatoria de su concepto y práctica de la ficción.” (BUENO: 2000, 82). A negativa organizadora do (e pelo) Museo deve ser pensada e (re)ordenada durante o processo de leitura, é assim que o autor desenvolve, dentro do próprio romance, um elemento que funcionará como “desrealizador”,o personagem. Ao tratar destes o mesmo cita: E mais, tenho certeza de quem ninguém vivo entrou na narrativa, pois os personagens com fisiologia, além de muito perturbados por cansaços

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e indisposições – por isso não se vê protagonistas adoecerem e se afastarem para a cura, mas somente representem adoecer como parte de seu trabalho e continuarem figuração ativa de doentes e moribundos – são de estética realista e a nossa estética é a inventiva (Prólogo 7)

Através dos vários prólogos são recuperados e estendidos o novo conceito de arte – a belarte – e da prática estética – a inventiva – que buscam suplantar o modelo realista do romance. É por meio de “reflexiones teóricas del propio autor o personaje” e “ciertos esbozos de la organización novelesca” (JITRIK: 1997, 485) que podemos vislumbrar a hipotética nova forma, desenvolvendo-se, (ainda que a mesma seja uma tentativa e não a forma em si) o que destaca o caráter experimental-artístico do autor em busca daquela forma. Como foi citado, o personagem atua no texto como um “desrealizador”, pois é manejado de forma a “quebrar los efectos de alucinación que producen la narrativa convencional en el ánimo de los sugestionables lectores” (SALVADOR: 1987, 105). O autor ao remodelar este elemento, retirando o efeito de “parecer vivir”, tenta desenvolver simultâneo ao romance uma teoria19 sobre a nova forma, calcada no elemento personagem. Para isto realiza no texto um “trabajo a la vista”, no qual desnuda a tessitura do romance, expondo correções, emendas e críticas dentro e por meio do mesmo20 Se no tomo intitulado Teorías.fica evidente a ‘incompletude’ da obra completa21 de Macedonio, posto que seu copilador aclara ,em uma das partes do referido tomo, que ela é constituída por um “libro mayor posible e inexistente”(BUENO: 2000, 100) – ou seja, um livro que seguiu sendo refeito, mas

19. Utilizamos o termo “teoria” seguindo as leituras críticas anteriores que apesar de usarem esta terminologia, adotada pelo próprio Macedonio, e seguida pelos seus críticos sem uma problematização maior sobre a nomenclatura. Em Conversaciones Imposibles (Ano) podemos encontrar uma reflexão sobre o termo adotado para análise. 20. Conferir Bueno.(BUENO:2000) p.99-121. 21. Sobre a (a)sistemática (des)ordem dos escritos de Macedonio consultar os estudos de Barranechea e Jitrik, encontrados na reflexão de Bueno (BUENO:2000) nos capítulos iniciais do livro. 96


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que nunca foi “acabado” – nos parece mais clara a construção do Museo como um “borrador infinito”, seguindo a tendência do < romance futuro>. A nova forma, ou como designa Jitrik (JITRIK: 1997), a “novela futura” darse-ia por meio de uma nova escritura delineadora de uma nova leitura. Esta já aponta a importância do leitor no processo (re)significação do texto literário. Iser propõe-nos que este, ao ler, dá movimento à obra, pois ela não pode reduzir-se nem à realidade do texto nem a subjetividade do leitor, e é dessa virtualidade que ela [a obra] realiza o seu dinamismo. Como o leitor passa por diversos pontos de vista oferecidos pelo e texto e relaciona suas diferentes visões e esquemas, e se põe a ele próprio igualmente em movimento” (COMPAGNON apud ISER, 2003: 149)

Se, como vimos, o escritor portenho tenta reformar as bases organizadoras do romance, transformando o personagem, elevando-o a uma espécie de mantenedor de um estado de ficção. Desta forma o processo ficcional segue sendo explicitado pelo modo de produção do romance, “a la vista”, no qual é possível “acompanhar”– de maneira não seguida e por assim dizer descontinua – a trama intercalada aos processos criativos que juntos implicam no romance. É sob este aspecto que retomamos a imagem de artefato, que (...) articula, en su materialidad, el trabajo de taller, el aura del pensador privado, del artista excéntrico que piensa escribe en su retiro excluido y excluyente, con los efectos de su extraña presencia en la esfera pública, en la repercusión de sus seguidores, en la contundencia de sus proyecciones y de las miradas de su corpus raro, difícil de interpretar e, incluso irritante para los horizontes receptivo normado y conservador. (Camblong: 2006, 31)

E por meio desse trabalho que objeto literário apresenta-se sob a forma de artifício. Evidenciando de tal modo que o texto não trata de <vida> e nem de sua

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cópia, mas sim de <arte>, como se vê no prólogo XVI, onde o autor tratando de expor sua visão, diz: “quero que o leitor saiba sempre que esta lendo um romance, e não vendo um viver, não presenciando vida” (FERNÁNDEZ: 2011).E por meio deste corpus raro – diferente e despadronizado, se comparado à estética culinária – que o autor mostra-se atuante na construção da “nova forma”, chamada no texto de <romance>. A efetividade do autor é reinterada constantemente, como se observa no prólogo 17: Confiei, com cuidadosa seleção, e sabendo como haviam sido conduzidos em outros romances, aos seguintes personagens o desempenho do meu romance. Doutrinei-os em tudo a que a “pessoa de arte” deve atender,fi-los ler meus prólogos, estudiosos de Estética. O que me dizer se o romance sai ruim? Como autor, fiz o que me coube:comprovar sua disciplina por conduta anterior e dar a eles a teoria que não tinham, da pessoa de arte. (FERNÁNDEZ: 2011)

Neste prólogo, como em outros, podemos vislumbrar as transformações realizadas nos personagens e observar os seus “efeitos” no Museo. Os câmbios realizados nos personagens da trama (que são nomeados, que figuram ou não, ou mesmo que apenas tentaram entrar no romance, mas não foram aceitos) sinalizam o rompimento com a modelar linearidade, destacando que os personagens seguem as “leis internas” do romance. Além de que o trabalho realizado pelo autor, na ‘educação’ dos personagens, como pessoas de arte, “trazem” os mesmos para a ficção/romance.

O Museo e o ensaio da “nova” forma Macedonio Fernández, com o seu Museo de la Novela e demais textos ensaístico-literários, projeta a recuperação – dentro do contexto hispano-americano e, principalmente argentino – do caráter ficcional da narrativa. Como aponta Noé Jitrik (JITRIK: 1997) esse projeto hipotético do novo romance parte de uma nova 98


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escritura que modelaria uma nova leitura. O leitor assim é posto em destaque, à medida que é chamado para decifrar os elementos transformados pelas negações estruturantes no Museo. Numa aproximação da maior obra macedoniana aos Atos de fingir22 de Wolfgang Iser, no que diz respeito à relação entre ficção e realidade extratextual, apontamos que o autor através do seu “trabajo a la vista” expõe os atos de fingimento para caracterizar o seu romance como um texto ficcional. É assim que promove movimentos constantes – através do articulado processo de pensar-escrever – de seleção (desrealização do real) e combinação (realização do imaginário). Ainda para ratificar a natureza ficcional de sua narrativa promove o auto-desnudamento, já em outras linhas, nas quais reflete teoricamente sobre a antiga forma do romance, <novela mala/vieja>, desmascarando-a- posto que esta não se revela como tal, obra ficcional. A visão de Ana Camblong delinea o perfil do escritor quanto a sua produção artística, aponta que “La producción macedoniana muestra una dedicación permanente, en el silencio y despojado taller del pensar, al armado y montaje de trebejos textuales , complejos, únicos y prototípicos, singulares y modélicos al mismo tiempo.”(Camblong:2006,32). Assim os duplos negativos de Macedonio são postos em destaque: presença-ausência, centro-margem, publicar-pensar, são focados no painel do histórico da literatura argentina. É por meio da leitura, seguida e/ou saltada referenciada na obra, que nos encontramos com/nos caminhos macedonianos. Neles passamos pelo enredamento da leitura das palavras. A trama é feita, suspensa, desfeita e reencaminhada “a la vista” do leitor que consegue perceber o ‘ urdido trabalho’ da escritura durante o evento da leitura.

22. Conferir Iser:1983. 99


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Resumo A literatura – em sua dinâmica ideológica, em seus intercursos temporais – acompanha as transformações do corpo social. O anjo feminino que se consolidou nas calendas de outrora, abre espaço, hoje, para uma figura que reage contra a repressão e o medo. Não só nos deparamos com corpos autônomos em relação ao Outro, mas somos confrontados com mulheres cônscias de si mesmas, de seus espaços e de seu sexo. O amor que não ousa dizer seu nome vem, aos poucos, de forma tímida, às vezes atroz, narrando suas identidades, dando concretude aos seus anseios. Justifica-se, assim, nossa proposta de trabalho: examinar, a partir dos Estudos de Gênero, as semioses que recobrem o eu feminino no conto Feliz Aniversário, da escritora contemporânea Fátima Mesquita. A narrativa encerra uma arqueologia intertextual com os ideais românticos shakespearianos, de modo a subvertê-los por meio da ironia e dos jogos alegóricos. Como arcabouço teórico, elencamos os estudos de BEAUVOIR (1970) e FÁVERO (2010). Palavras-chaves: Literatura, Gênero, Homossexualidade.


AMORES QUE OUSAM DIZER SEU NOME: LITERATURA, MULHERES E HOMOSSEXUALIDADE Maria do Socorro da S. Medeiros1 Hermano de França Rodrigues2

PRELIMINARES Ao lançarmos um olhar para o movimento Romântico no século XVIII, é necessário nos debruçarmos primeiramente sobre o contexto histórico-social que alimentou, ideologicamente, a estética. É a partir dessa análise que se estruturam os pilares característicos do que reconhecemos, hoje, como Romantismo, uma tradução ímpar de um processo social que tem como pano de fundo a Revolução Industrial e a necessidade de expressão do homem burguês. Sob o jugo de uma ideologia revisitada, este homem sente a necessidade de contemplar suas indagações a partir de uma nova “prática social” (RASTIER, 1989) advinda do capitalismo feroz. Conservadora e dominadora, tal prática perpetua um feminino envolvo aos deuses desmandes. É nessa acepção história que baseamos nosso estudo sobre o amor que ousa dizer o nome – o amor sáfico. A formulação de narrativas sobre amores utópicos, saturadas de idealizações à mulher amada (criatura sempre frágil, intocável e passiva) mostrou-se condizente aos reclames do homem romântico. Este, enquanto ser gestado no âmago patriarcal impõe-se como senhor da liberdade, capaz de agir, expressar suas subjetividades e, sobretudo, exercer o poder sobre o feminino. Temos, aqui, mais um exemplo de como as sociedades ocidentais reelaboram seus mecanismos de opressão, nas quais, de fato, há um processo de submissão advinda

1. Pesquisadora da Iniciação Científica, da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: msr_medeiros@hotmail.com 2. Professor de Literaturas de Língua Portuguesa, da Universidade Federal da Paraíba. E-mail: hermanorg@gmail.com 103


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da diferença encarnada pela genitália. O Romantismo – movimento político e estético – submeteu-se aos princípios ordenadores de uma heteronormatividade, cujas engrenagens se volatizam numa expressão sociocultural que molda, amiúde, identidades. (FAVERO, 2012) A mulher, na condição de “belo sexo”, absorta em uma visão menor, fica relegada ao casamento e ao amor como projetos de vida, obviamente determinados pelo modelo heteronormativo e patriarcal, de modo que jamais caberá, nessas instâncias, a possibilidade de uma mulher exercer qualquer papel semelhante ao masculino. Dadas as suas configurações, ergue-se uma binaridade que impede a visualização de amores que não conjecturem o estigma cristão da mulher advinda das costelas de Adão. A imagem do feminino, lapidada ao labor dos princípios românticos, remete a um ser angelical, belo, porém reduzido a um mero objeto de desejo, envolto em estereótipos que reafirmam, como único modelo de união, o heterossexual. A lésbica surge, então, como posição controversa dessa idealização feminina, uma inversão nos papéis, uma afronta ao correto, um modelo impensável e passível de abjeção. Irrompe-se, assim, o anjo negro. Este segundo anjo rejeita o papel de objeto, coloca-se como ator e provedor – assumindo desta maneira o seu lugar na hierarquia social – sem necessidade de salvamentos ou contos de fadas onde um príncipe encantado a resgatará. Esta análise encaixa-se, perfeitamente, nos estudos atuais a respeito de gênero e sexualidade. Assim, ao analisarmos o conto “Feliz Aniversário” pretende-se compreender o processo de subversão dos parâmetros do Romantismo, formulados no cerne da burguesa patriarcal do século XVIII, quando reelaborados na perspectiva dos Estudos de Gênero. Na literatura contemporânea, as mulheres vêm, aos poucos, soltando as amarras da dominação masculina, inclusive amoldando suas concepções ao próprio desenvolver de seus amores, que felizmente, ousam dizer o nome.

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A ESTÉTICA ROMÂNTICA Ah! Vem, pálida virgem, se tens pena De quem morre por ti, e morre amando, Dá vida em teu alento à minha vida, Une teus lábios meus minh’ alma à tua! Eu quero o pé de ti sentir o mundo Na tua alma infantil; na tua fronte Beijar a luz de Deus; nos teus suspiros Sentir as virações do paraíso; E a teus pés, de joelhos, crer ainda Que não mente o amor que um anjo inspira, Que eu posso na tua alma ser ditoso, Beijar-te nos cabelos soluçando E no teu seio ser feliz morrendo! (AZEVEDO, pág. 67-68, 1971).

Arrolar um conceito para o que denominamos de literatura ainda é uma tarefa difícil. Podemos constatar que esta se constitui por meio do viés associativo entre o processo social e o histórico.Voltaire, em seu Dictionaire philosophique, acolhe as nossas dúvidas em relação a um conceito pleno para esta vertente das artes. Segundo o filósofo, o termo é vago, mediante apresentar uma série de ambiguidades em seu delineamento. Ela apresenta-se como um artifício da sociedade, um mecanismo no desenvolvimento das ciências indutiva e experimental, que o sistema capitalista necessitava para esclarecer aos seus o processo pelo qual estava passando. O século XVIII acarretou grande responsabilidade. Expressões como era das revoluções, Iluminismo, Revolução Industrial, fim do Antigo Regime, o nascimento do asilo e a ascensão do Romantismo foram amplamente utilizadas para identificar as transcendentes mudanças culturais e sociais ocorridas no século XVIII na Europa e na América (GARTON, STEPHEN. pág. 129, 2009). 105


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Surge, no cenário mundial, envolto em uma nuvem de fumaça saída das chaminés das fábricas da Revolução Industrial, a qual era levada por toda a Europa pelos ventos do novo movimento, produzido pela agitação da classe burguesa – o Romantismo. Dotado de uma estética peculiar, onde se buscava reelaborar a visão do indivíduo com o meio no qual estava inserido. É, na segunda metade do século XVIII, que o processo de industrialização passa a modificar as antigas bases econômicas do continente Europeu, fator marcante para o surgimento de uma nova organização política, social e cultural. Em consequência ao processo industrial, ver-se a ascensão de uma nova camada social, a qual buscava aspirações afirmativas mais plenas dos movimentos coletivos – a burguesia. Esta, apoderada do seu “habitat”, percebe-se dentro de um universo no qual se vê motivada a ir de encontro aos ideais do século XVIII. Era preciso reelaborar como o universalismo era visto, dando-lhe pitadas de subjetividade – característica mais marcante do Romantismo. Porém, não se pode deixar de ressaltar que o movimento romântico busca incessantemente pela dimensão hierárquica do pensamento humano, apoiando-se, para tanto, na ideologia do individualismo. Segundo RASTIER (1989, p. 124), a cada tipo de prática social, corresponde um discurso. Os papéis de gênero, protagonizados em torno desses ideais, assumidos por uns e outros, parecem claramente conduzir a diferentes manifestações de intimidade, e isso parece acontecer (aparentemente) de uma forma mais expressiva nas fases embrionárias das relações. Segundo alguns/as autores/as isso se deve ao facto de, nessas fases, haver uma maior preocupação por parte dos indivíduos quanto à emissão de comportamentos socialmente definidos como esperados, desejados e adequados para cada um dos sexos. Os estereótipos tradicionais de gênero designam os homens como assumindo um papel proativo na iniciação das relações e as mulheres como assumindo um papel reativo, aceitando ou recusando as investidas masculinas. Têm-se, então, na figura masculina burguesa, seres que iam à busca de uma ideologia do individualismo, mediante estes darem ênfase nas “partes”. Deparamo-

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nos, assim, com indivíduos que fomentavam uma nova ideologia política e que a fazia por terem guardado no seu âmago “paixões” e “interesses pessoais”. É a partir dessa visão de mundo que se tem, no Romantismo, a valorização de um amor utópico, o qual se mostra entrelaçado com o procedimento da idealização. Esta idealização desemboca em um “lugar” especifico, seja este o Estado ou a mulher amada. O modelo estético e ideológico do Romantismo traz, em sua produção discursiva, um ponto essencial para os estudos de gênero. Tal fato pode ser percebido quando nos debruçamos sobre os arquétipos humanos que circulam nos séculos XVIII E XIX, os quais nos servirão de base para a nossa análise. Encontramos, neste aqueduto, uma projeção do sexo masculino como sendo o ser “capaz”. A ele é dado a possibilidade do sentir, de vivenciar as “dores” do novo modelo de mercado, o que anseia por um “lugar”, onde ele poderá retomar as suas lembranças. É ele que anseia pela jovem pálida, virgem e doce. Deste modo, podemos compreender o Romantismo como um movimento literário devoto ao Patriarcado. O patriarcado, segundo FÁVERO (2012, pág. 72) consiste no desenvolvimento de ações por meio das quais ele prova seu poder, estabelece fins, projeta caminhos para alcançá-los. Em suma, ele se realiza como ser existente. O Romantismo nos apresenta a figura masculina como a sua máxima. “Ele” é o homem capaz de sentir, de vivenciar os seus sentimentos mais nobres. Apoderado de sua condição privilegiada no âmbito social, deixa as marcas de seu gênero privilegiado em sua escritura. O sistema patriarcal surge antes mesmo do processo de civilização ocidental. De forma continua, o masculino foi se instituindo como o “senhor” do desejo feminino, organizando um perverso processo de dominação. Desta forma, legitimou-se como processo de hierarquização nas relações de gênero, impondo ao feminino o papel de subalterno. Tais fatos proporcionaram uma introjeção cultural de supremacia do masculino, a qual se mantém até os dias atuais. BEAUVOIR nos apresenta o patriarcado como um sistema que se encontra “assentado em sólidas bases econômicas e sociais” (1967). Conscientes de que este

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aparelho social estar atrelado diretamente ao poderio econômico e que durante o Romantismo as mulheres não dispunham de uma liberdade econômica forte, podemos desvelar os porquês do sexo masculino se colocar de forma tão “solta” nessa Estética Literária. Com efeito, tem-se um percurso temporal marcado pela objetificação do sexo feminino. O homem que constitui a mulher... Assim a mulher não se reivindica como sujeito, porque não possui os meios concretos para tanto, porque sente o laço necessário que a prende ao homem sem reclamar a reciprocidade dele, e porque muitas vezes, se compraz no seu papel de Outro (BEAUVOIR, 1949, p.15).

O anjo romântico A elaboração da estética romântica nos conduz a uma questão bastante peculiar dentro dos estudos de gênero. Devido o Romantismo expressar os sentimentos dos “sujeitos” do século XVIII, este movimento estético/ literário fomenta a sua produção textual a partir de uma compreensão de que o sexo feminino é colocado em um lugar “menor”. A estruturação do “belo sexo” fica arquitetada a partir de uma visão microestrutural. Podemos inferir que o leque de possibilidades dadas às mulheres no Romantismo é mínimo, visto reduzir a sua existência a duas pilastras – o casamento e o amor (casamento e amor vivenciados a partir do modelo heteronormativo). Tais fatores evocam o estereótipo de feminilidade assentando na felicidade feminina unicamente em sua união com um homem. A história da cultura ocidental, ao consolidar-se segundo a tradição do saber masculino, destinou à mulher um lugar marcado feito de silêncio e de estereótipos, introjetando no psiquismo feminino a expectativa de corresponder docilmente a esses modelos. É neste lugar que vamos encontrar a mulher representada, ao longo da tradição literária, como

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aquela que deve sempre viver a espera, a submissão, o sofrimento, a saudade, a resignação. (CARVALHO, 1990, p.36)

Exilam-se as mulheres em um “não lugar”. E a elas cabe o papel da representação de ser apenas o objeto de desejo/ cobiça no campo do imaginário masculino. Ao se observar as “heroínas”, personagens femininas nas obras românticas, deparamo-nos com estereótipos esfaceladores do feminino. Mulheres frágeis, passiveis a um “despedaçar-se”, caso não tivessem o acolhimento do seu ‘príncipe encantado’. Pálida à luz da lâmpada sombria, Sobre o leito de flores reclinada, Como a lua por noite embalsamada, Entre as nuvens do amor ela dormia! Era a virgem do mar, na escuma fria Pela maré das águas embalada! Era um anjo entre nuvens d’alvorada Que em sonhos se banhava e se esquecia! Era mais bela! o seio palpitando Negros olhos as pálpebras abrindo Formas nuas no leito resvalando Não te rias de mim, meu anjo lindo! Por ti – as noites eu velei chorando, Por ti – nos sonhos morrerei sorrindo!

O soneto intitulado Pálida, à luz da lâmpada sombria traz-nos uma caracterização típica das mulheres desenhadas no Romantismo. Tem-se, aí, a figura da mulher amada como sendo o ser inalcançável, a qual é associada à imagem de pureza e virgindade. Esta construção alegórica amalgama-se a um processo

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contínuo de sofrimento para o homem romântico. Este amor que só existe no campo do imaginário masculino, ceifa o posicionamento feminino no picadeiro social/emocional/ existencial. O machismo assume-se como código de conduta. E é a partir desta que temos uma composição de inferioridade do feminino. O poeta romântico, com frequência concebe a figura feminina sob o prisma das prerrogativas de seu sexo. A subalternidade feminina, albergada em celofane de proteção, vem de longe, atravessa mares, continentes, ilhas... Milênios vão se multiplicando por entre uma infância preconceituosa. Os valores se multiplicando por entre uma infância preconceituosa. Os valores se cristalizam e a educação formal recrudesce os conceitos, tão bem adormecidas na mente da menina. É a cultura agindo sobre o indivíduo e relevando a sua face, às vezes hostil e racionalmente ardilosa. Universal, a inferioridade arrasta-se numa saga que beneficia o masculino e reprime o feminino (QUINTAS, p. 56).

Nascer portando a genitália feminina, em pleno século XVIII, significava ter que lidar com o estar aquém do homem, margeando uma civilização que mutilava seus corpos e pensamentos. Desse modo, o feminino era controlado por via do seu apagamento. Um apagamento que consistia em ter o controle sobre o corpo e sobre a voz. Durante a segunda geração romântica, confrontamo-nos com um enfoque preciso sobre a imagem feminina. A produção literária deste período via-se impregnada da “essência feminina”. Os anjos românticos pairavam sobre o imaginário dos bons homens, os quais viviam em prol do seu objeto de desejo. Vidas eram entregues à dor do amor não vivido. A doença tornou-se constante na existência dos que se devotavam ao amor feminino. Assim, percebemos como culturalmente a égide do sexo feminino era frágil, indefesa ante o olhar perverso do catolicismo. Eram elas que disseminavam o mal, a doença, apatia sobre o sexo masculino.

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Os anjos negros A sexualidade sempre constitui um tabu que todos temeram e ainda temem. A faísca da libido sugere cuidados a mais, uma vez que encerra reservas indiscutíveis. A cautela e a ponderação são atitudes preliminares na compreensão de qualquer fenômeno, sobretudo quando este agrega um feixe suculento de preconceitos (QUINTAS, p. 41).

O sexo feminino ainda vivencia as amarras de um cárcere, que as impede se expressar livremente. O estigma de ser “costela de Adão” ainda traz consequências dolorosas e profundas para a sua existência. Para BEAUVOIR (1969, pág.18), a mulher se sente diminuída porque, em verdade, as determinações da feminilidade a diminuem. Apoderar-se de sua sexualidade é uma tarefa que exige do feminino um rompimento com as amarras que a cultura patriarcal introjetou nas veias da compreensão do que é ser mulher e ser homem. A lésbica surge como uma figura controversa dentro cenário social do Romantismo, visto que infringe e quebra inúmeras máximas impostas por código cultural. Seu comportamento é compreendido como uma espécie de “agressão” à norma social, pois elas não seguem o enquadramento prototípico para o feminino, podendo ser percebidas como eternas peças soltas do quebra cabeça da estrutura do patriarcado, já que não portam o encaixe necessário para unirem-se às demais peças. O amor sáfico porta uma espécie de metáfora invertida à afeição do Romantismo. A união entre mulheres insurge como estrutura inadequada aos protocolos desde período. Este amor revela-se ousado e agressivo, na medida em que retira da mulher a passividade inócua ao poder masculino. O amor lésbico coloca a mulher como protagonista do ato de amar. Ela é retirada da inércia do amor masculino. O fato de as sociedades, por séculos, terem aceitado como modelo único a união heterossexual, fez com que o amor entre indivíduos do mesmo sexo ficasse à margem da sociedade. Formou-se, deste modo, uma “fôrma”, na qual todos

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deveriam adentrar. Encaixasse nesta era fator essencial para dar continuidade à encenação dos contos de fadas – à família heteronormativa. O safismo coloca em cena a mulher na perspectiva de sujeito – agente, a qual se caracteriza pela insubordinação, pela subversão da ordem dos padrões estabelecidos, por seu poder de decisão e de imposição de sua vontade. [..] a virilidade das mulheres não é tanto uma maneira de recursar ou escapar da feminilidade – a não ser quando é ‘ não autentica’ –, mas sim de afirmar sua autonomia. A adoção, por uma mulheres, de comportamentos socialmente masculinos, assim como o fato de amar as mulheres, atesta um desejo de ser dona da própria vida. (ARC, pág. 66).

Não necessariamente as lésbicas apresentam, em sua performance, comportamento propriamente viril (másculo). A sua virilidade é, por fim, relativa a uma necessidade de uma produção financeira, uma energia/ vigor para o trabalho remunerado. As sáficas, por não estarem no padrão, são impelidas a apoderar-se de seu lugar na sociedade. Como não desfrutavam da estabilidade proporcionada pela instituição do casamento heteronormativo, no qual o homem é a mola propulsora responsável pela manutenção financeira do lar, há por parte destas uma necessidade de uma produção econômica. Simone Beauvoir (1967) infere que o casamento é o mais importante dos projetos que uma mulher pode empreender. Ela libertar-se-á do lar paternal e do domínio materno para então se entregar, de forma passiva e obediente, ao seu novo senhor. Nesse sentido, a mulher atua como figurante na sociedade, sua única função será procriar, manter a hereditariedade e zelar pela vida do lar. Como as lésbicas não dispunham desse “privilégio” em uma sociedade patriarcal, na qual o homem é o senhor absoluto, elas se viam impelidas ao mercado de trabalho. Evidentemente, não se pode reduzir a produção de uma mão de obra feminina a sua condição sexual, mas não podemos descartar ou mascarar este fato. Ao longo do percurso histórico, temos textos que nos documentam como o trabalho

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foi uma ferramenta marcante no universo homossexual feminino, já que estas não podiam permanecer no âmbito do trabalho apenas domestico. Assim, o trabalho que a mulher executa no interior do lar não lhe confere autonomia; não é diretamente útil à coletividade, não desemboca no futuro, não produz nada. Só adquire seu sentido e sua dignidade se é integrada a existências que se ultrapassam para a sociedade, na produção ou na ação: isto significa que, longe de libertar a matrona, ele a coloca na, dependência do marido e dos filhos; é através deles que ela se justifica: em suas vidas ela é apenas uma mediação inessencial. (BEAUVOIR, pág.209, 1969).

NECESSIDADE DE EXPOR SEUS SENTIMENTOS Notamos que a figura da lésbica é historicamente frágil ante a pseudo-natureza superior dos homens. Fator que remete à dominação masculina, ao sexismo e às fronteiras rígidas e intransponíveis entre os gêneros masculino e feminino. A visão heterossexual do mundo, na qual a sexualidade considerada “normal” e “natural”, está limitada às relações entre homens e mulheres. As outras sexualidades (homossexualidades, bissexualidades, sexualidades transexuais) são, no máximo, definidas, ou melhor, admitidas, como “diferentes”. Nessa diagramação social, apensas o homem é valorizado. E espera-se que a mulher se afaste de sua sexualidade – sendo valorizado o sexo para a reprodução –. As lésbicas, enquanto mulheres que buscam no sexo o prazer, são colocadas em sentido oposto, sendo então excluídas e invisibilizadas. Essa invisibilidade se traduz em um desconhecimento acerca da lesbianidade, suas especificidades e diversidades, e possibilita a criação de mitos em torno da sexualidade da mulher lésbica e, por conseguinte, do universo feminino. Os mitos e estereótipos formados socialmente advêm de uma construção histórico-cultural, da mídia e do senso-comum que generalizam acontecimentos ditos “negativos” a respeito de algo, formando, assim, representações limitadas e errôneas em relação às identidades. 113


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Este não falar que envolve a homossexualidade feminina vem despertando uma necessidade de uma maior exposição de vivência por parte das lésbicas. O apagamento feminino é uma herança que nos marca desde longa data. Com o objetivo de colocar, no palco social, a sexualidade feminina, a literatura gay busca quebrar o tabu que cerca as relações de prazer feminino. A sexualidade, cumpre dizer, ultrapassa a esfera do pessoal, seguindo para o viés crítico e político, condições que nos conduz a uma análise mais cuidadosa no tocante a parte histórica e sociológica que abarca a temática. Lésbicas foram forçadas a viverem entre as duas culturas, ambas dominadas pelo masculino, cada uma negou e pôs em perigo sua existência. Por um lado, existe a cultura patriarcal, heterossexista. Por outro, existe a cultura patriarcal homossexual, a cultura criada por homens homossexuais, tomando a dominância e a submissão como modelos de relacionamento, e a separação do sexo do envolvimento emocional – uma cultura marcada pelo profundo ódio às mulheres. A cultura masculina “gay” ofereceu às lésbicas a imitação de estereótipos de papel de “butch” e “femme”, “ativa” e “passiva”, cruising e sadomasoquismo, e o violento, autodestrutivo mundo dos bares “gays”. Nem a cultura heterossexual nem a cultura “gay” ofereceram às lésbicas um espaço em que pudessem construir e expressar suas identidades (nem uma imitação dos homens nem seu oposto objetificado) (Rich 1979, p.225). A construção da identidade passa pelo processo de elaboração de uma memória. Edificar a lembranças de um grupo como as lésbicas exige um trabalho árduo de coleta de dados. As personagens estão escondidas pelas páginas de diários, cartas ou em obras mais diretas que destacam, de forma mais clara, o enlace protagonizado por duas fêmeas. O mercado editorial contemporâneo vem se abrindo para a produção de obras que tem como foco o feminino. O mercado editorial vem abrindo certo espaço para o lançamento de obras que tem por foco o universo feminino. Ao passo que as mulheres adentram em esferas que antes não lhes eram permitidas. A produção literária contemporânea vem retirando do limbo as personagens femininas e deu-lhes vida. 114


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A cada dia a elaboração de obras que tem como tema a homossexualidade feminina vem ganhando espaço no rol da escrita literária brasileira. A escritora Fátima Mesquita publicou o livro Julieta e Julieta, uma coletânea composta por 15 contos, na qual ela esmiunça o âmago do amor safistico. A autora nos apresenta casos de mulheres que amam mulheres e expõem o seu desejo, suas necessidades e suas vontades. O conto, que nos serve de corpus, é o Feliz Aniversário, décimo segundo texto do livro supracitado. Este narra uma história que pode remeter à vida de qualquer pessoa. O enredo centra no cotidiano de uma professora que abre, a nossa personagem, que não recebe nome em nenhum momento da narrativa, busca conciliar a sua homossexualidade com a sua carreira de professora de reforço. [...] meus horários estão sempre lotados e a boa fama vem crescendo junto com a porcentagem de bons resultados. Estou satisfeita com quase tudo de minha vida: faço o meu horário, tiro férias duas vezes por ano, me sinto profissionalmente realizada e sempre tenho algumdinheiro no banco. Moro em apartamento próprio, tenho um carro simples e do ano, viajo, tenho pencas de amigos, e o corpo saudável. (MESQUITA, p. 107, 1998).

Ao conhecer a Patrícia – mãe do Mateus de oito anos e do Tadeu de quase treze – nossa protagonista vê a sua vida “tranquila” passar por uma reviravolta. A mulher do Fábio passa a rodeá-la, cercá-la como uma presa. E em uma sexta-feira, após o término das aulas, a Patrícia vai à casa do seu objeto de desejo. Mal entra e já vai ao ataque, ‘atirando com chumbo grosso com um bacamarte dos beijos’. Assim se dá o primeiro encontro entre Patrícia, mãe, esposa, dona de casa e a professora. O mote da “tragédia” do comercial de margarina foi o Fábio ter ido viajar para a praia com os filhos e sobrinhos e deixado a Patrícia em casa. Passível a seus desejos, liberta para amar sem medo, sem amarras. Elas se entregam de corpo e alma no sofá da casa da protagonista e, deste modo, assinam a sentença para a adesão a uma história de amor, daquelas que nascem sem poder. Shakespeare nos presenteou com a nobreza do amor entre 115


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Romeu e Julieta, dois jovens que se encontram casualmente e se apaixonam. Porém não podiam vivenciar este amor, posto se encontrarem amarrados por uma conversão social. Um Montecchio e uma Capuleto não podiam unir-se por laços amorosos, o ódio que cercavam as duas famílias não permitia a união entre os jovens anteriormente citados. Patrícia e a professora não podiam dar asas ao amor que sentiam convencionalmente. Esse afeto não podia existir. A primeira era casada e tinha uma família e a professora era uma mulher comprometida com seus filhos e trabalho. Existiam muitas correntes que as prendiam, mas, ao contrário do que ocorre na tragédia narrada por Willian Shakespeare, as personagens de Feliz Aniversário conseguem vivenciar o amor que brota entre ambas. Patrícia pede separação e presenteia a sua amada com a certidão de divórcio. A narrativa traz a palco conflitos que marcam a vida de tantas mulheres que amam seres que compartilham a genitália e que buscam reconhecimento. Estas sentem necessidade de uma produção literária que as representem, que as coloquem como protagonistas. Não se luta pela tomada de lugar, mas sim por seu lugar de direito. É preciso sair do “armário” literário, acadêmico e social.

CONCLUSÃO Sobre o espectro romântico vicejou boa parte de sua inconteste da autoridade da expressão estética. Temos uma forte influência, até hoje, da áurea romântica do final do século XVIII. Desse modo, a nossa produção literária acaba apresentando traços românticos muito fortes. O contemporâneo se mistura com a essência do Romantismo e desta mistura tem-se um compêndio de obras que nos atualiza de como o amor nos motiva. E a partir desta ideia estruturamos o trabalho aqui apresentado. As lésbicas buscam um canal de escoamento para os seus sentimentos. Elas se veem portadoras de uma necessidade de falar de si. É preciso colocar na mesa as cartas do amor sáfico. O feminino ainda se vê diante do sofrimento com a sua invisibilidade. Há pouco, as mulheres vêm adentrando nos redutos antes exclusivos dos homens. 116


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Mostrar as novas perspectivas dos enlaces amorosos e de como existe uma segunda chance para o amor, por mais que esta nova oportunidade seja fora dos padrões que a sociedade heterormativa nos impõe ao nascermos. A personagem Patrícia se vê entregue a uma nova perspectiva de amor. Ao solicitar a separação com o Fábio, ela rompe com as barreiras do patriarcado. Encontramos, neste momento, uma dramatização do dilema matrimonial, que torna mais complexa a personagem feminina, dando-lhe o direito de escolha de sua inserção (ou não) no mundo masculino, do casamento e da família. Essa liberdade teórica potencializa o poder de ação do feminino, possibilitando, além da anulação do jugo social (do pai e do marido), a capacidade de gestão e influência sobre a vida de outros. A entrega ao amor homossexual, vivenciado pelas personagens anteriormente citadas, é a representação máxima de que o feminino vem reclamando o seu lugar no mundo. Há uma contínua luta por sua emancipação, principalmente no tocante a sua liberdade sexual.

REFERÊNCIAS AZEVEDO, Álvares de. Poesias escolhidas. Rio de Janeiro: INL/ Aguilar. 1971. BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo – Fatos e Mitos. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1949. BEAUVOIR, Simone. O Segundo Sexo – A experiência da Vida. São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1967. CARVALHO, Lúcia Helena de O. V. A ponta farpada ou o lugar marcado da mulher no discurso da tradição. In: GOTLIB, Nádia Batella (Org.). A mulher na literatura. Vol. II. Belo Horizonte: UFMG, 1990. p. 35-41. FAVERO, Maria Helena. Psicologia do gênero: Psicobiografia, sociocultural e transformações. Curitiba: Ed. UFPR, 2012. GARTON, STEPHEN. História da Sexualidade da Antiguidade à Revolução Industrial. Lisboa, Ed. Estampa 2009. MESQUITA, Fátima. Julieta e Julieta, 2ª ed. São Paulo. Edições GLS, 1998. QUINTAS, Fátima. Sexo à moda patriarcal: O feminino e o masculino na obra de Gilberto Freyre. 1º ed. São Paulo: Global Editora, 2011. RASTIER, François. Sens et textualité. Paris: Hachette, 1989.

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Resumo Este trabalho visa identificar estratégias de argumentação na LIBRAS utilizadas por indivíduos surdos, os quais têm a LIBRAS como sua primeira língua (L1). Adotamos o conceito de argumentação defendido por Leitão (2000), que a define como uma atividade discursiva e social realizada através da justificação de pontos de vista que considera visões contrárias, a fim de proporcionar mudanças na representação dos participantes quanto ao tema abordado. Verificamos que, para a realização de tal atividade discursiva, os voluntários da pesquisa utilizam quatro estratégias argumentativas mais recorrentes – a expressão facial e a repetição como recursos de intensificação dos sinais; as perguntas retóricas; e o uso do espaço denominado de role-play.


ARGUMENTAÇÃO NA LIBRAS: ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS VÍSUO-ESPACIAIS Nídia Nunes Máximo1 Patrícia Kelly da Silva Lôbo2 Profª. Drª. Gláucia Nascimento (Orientadora)3 Prof. Me. Jurandir F. Dias Júnior (Orientador)4 Profª. Drª. Wilma Pastor (Orientadora)5

INTRODUÇÃO De acordo com Sousa (2009), a Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS) surgiu como possibilidade de dar “voz” ao indivíduo surdo. O termo surdo-mudo caiu em desuso, porque, pelo fato de a maioria das pessoas surdas terem condições fisiológicas de falar, a FENEIS (Federação Nacional de Educação e Integração de Surdos) promoveu campanhas a favor da utilização do termo ‘surdo’. O termo ‘mudo’ nos remete a um período no qual era negado aos surdos o pleno exercício da sua cidadania, quando eles não podiam casar, votar e realizar atividades de inserção social e cidadã, em função de serem considerados incapazes e de não terem meios para se expressarem e reivindicarem seus direito. Assim, a LIBRAS conferiu ao surdo o direito pleno de ser um cidadão com a uma língua dotada de caraterísticas que

1. Estudante do curso de Letras, UFPE, CNPQ. nidia.maximus@hotmail.com 2. Estudante do curso de Letras, UFPE. patriciaklobo@gmail.com 3. Profa. Dra. UFPE, CNPQ. profa_glaucia@yahoo.com.br 4. Prof. Me. UFPE, CNPQ. jurajr@gmail.com 5. Profa. Dra UFPE, CNPQ. wilmapastor@gmail.com 119


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atendem as suas necessidades, representando, também, a independência social e a existência, de fato, na sociedade. A LIBRAS é uma língua que caracterizada por sua natureza visual-espacial, ou seja, é uma língua que faz uso do movimento das mãos e do corpo e de expressões faciais num espaço de enunciação (que vai da cabeça ao quadril do sinalizador), para produzir sinais (equivalentes às palavras das línguas oral-auditivas) que são captados pela visão. Os indivíduos que utilizam essa língua compõem uma minoria linguística, a qual está inserida em um contexto social marcado pela interação com maiorias de indivíduos ouvintes, falantes de línguas oral-auditivas, a saber, o português. De acordo com o censo de 2010 realizado pelo IBGE, 9.717.318 indivíduos apresentam algum tipo de deficiência auditiva. Nesse grupo, 7. 281. 134 são crianças com 5 anos ou mais de idade são alfabetizados. Quanto às crianças, adolescentes e jovens de 7 a 19 anos, 813.249 frequentam escolas ou creches e 655.769 deles são alfabetizados. De acordo com o Ministério da Educação, em 2010, o número de matrículas de pessoas com algum tipo de deficiência auditiva ultrapassava 70.000. Desse número, pouco mais de 50.000 estavam matriculados em escolas comuns e quase 20.000 em escolas especiais. Esses dados nos revelam a insuficiência da escola pública no atendimento às necessidades escolares dos surdos, o que inclui o fato de a maioria dos professores que atuam em turmas em que há pessoas surdas não conhecerem a língua de sinais. Nascimento (2008) reforça o desconhecimento por parte dos professores de língua portuguesa sobre as especificidades da LIBRAS. Há, portanto, urgência do aprofundamento de mais estudos sobre a LIBRAS, assim como sobre os textos em português escritos por indivíduos surdos, para que os professores de língua portuguesa sejam instigados a rever suas práticas pedagógicas que têm sido insatisfatórias e desestimulantes para muitos desses alunos. Ao fazer isso, os professores de língua portuguesa poderão adotar atitudes que facilitem a aprendizagem e a participação dos alunos surdos para que possam galgar degraus de autonomia e criticidade (Freire, 1996) e para que o ambiente escolar seja um espaço formador da cidadania, dando aos surdos a oportunidade de atuar de forma plena na sociedade.

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Dada a importância da LIBRAS para as pessoas surdas, fazemos parte do grupo que defende que essa língua deve ser considerada a primeira língua (L1) desse grupo social, por ser a sua língua natural, embora, muitas vezes, por serem filhos de pais ouvintes, os surdos brasileiros só adquiram a LIBRAS após serem estimulados a aprenderem o português na sua modalidade falada, as mais das vezes, sem conseguirem pleno êxito. Entendemos também que os professores responsáveis pela educação formal desses indivíduos precisam conhecer essa língua, para que possam contribuir positivamente para o desenvolvimento de inúmeras habilidades e competências desse público. Conhecer uma língua implica conhecer suas diferentes formas de expressão, que se concretizam nos gêneros do discurso. Logo, compreender como se organizam os gêneros do discurso na LIBRAS é algo relevante e imprescindível aos educadores de surdos. A pesquisa apresentada neste artigo compõe com outra um estudo sobre a argumentação escrita dos surdos, intitulada Marcas da LIBRAS no discurso argumentativo escrito em português por surdos. Como o português é, para esse grupo social, uma segunda língua (L2), que é, na maioria das vezes, ensinada a eles apenas na modalidade escrita, é compreensível que os surdos escrevam nesta língua de maneira atípica, como ocorre – vale ressaltar – com qualquer aprendiz de uma segunda língua. As superfícies textuais de textos escritos por surdos esboçam o fenômeno da interlíngua (SELINKER, 1972), isto é, os textos escritos por surdos apresentam uma superfície híbrida (NASCIMENTO, 2011), em que atuam dois sistemas distintos: o do português e o da LIBRAS. Como todos os textos escritos em português por surdos apresentam marcas da LIBRAS, é preciso conhecer as estratégias usadas na LIBRAS para compreender muitos aspectos dos textos escritos por esses indivíduos. Entre os gêneros que os surdos sentem mais dificuldades para escrever, estão os que são predominantemente argumentativos. Por esse motivo, decidimos estudar a argumentação na LIBRAS, a fim de conhecer elementos que possam nos levar a compreender questões relacionadas também à argumentação escrita por surdos.

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De acordo com Leitão (2000), a argumentação, uma atividade discursiva de defesa de um ponto de vista, com o objetivo de persuasão, que também pode mediar processos de construção do conhecimento. A argumentação é uma atividade linguística recorrente no cotidiano nas interações face a face. Conhecer e compreender as estratégias que os indivíduos surdos usam em LIBRAS nesse tipo de discurso a compreender aspectos do texto argumentativo escrito em português por esses indivíduos, fato que pode favorecer também a compreensão dos modos de organização linguísticas de textos escritos de outras natureza por esse grupo social.

ARGUMENTAÇÃO Podemos definir argumentação, em linhas gerais, como uma atividade discursiva de defesa de um ponto de vista, com o objetivo de persuasão, ou seja, com o objetivo de convencer o interlocutor que o ponto de vista adotado pelo argumentador é correto e coerente. De acordo com Velasco (2010, p. 42), “um texto argumentativo é aquele que comporta ao menos um argumento, sendo possível a identificação tanto da tese central defendida (conclusão), fruto da inferência, como também das informações que embasam tal base (premissas).” Leitão (2000) concebe a argumentação como uma atividade social e discursiva efetuada por meio da justificação de pontos de vista que considera visões contrárias a fim de proporcionar mudanças na representação dos participantes quanto ao tema abordado. “Nesta perspectiva, a argumentação se define, portanto, como uma atividade de natureza eminentemente dialógica (envolve multiplicidade de perspectivas) e dialética (pressupõe oposição)”. (LEITÃO, 2000, p. 351). Além disso, a argumentação é uma discussão essencialmente crítica ao possibilitar a construção, negociação e transformação dos pontos de vista, pois pode desencadear processos de revisão de tais pontos, quando inclui enlaces de contra-argumentação. Assim, diante do confronto entre o ponto de vista do argumentador e dos pontos de vistas alternativos, surgem dúvidas e contra-argumentos que podem incitar o argumentador a examinar e rever

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sua posição. Tal revisão se dá por meio de reafirmação, ajustamento, ou abandono do ponto de vista anteriormente defendido. Para perceber o procedimento analítico que permite ao argumentador a revisão do ponto de vista, é necessário compreender a unidade triádica de análise que ancora tal procedimento. Esta unidade é constituída de argumento, contra-argumento e resposta. O primeiro é formado por um conjunto mínimo de ponto de vista e justificativa. É o argumento que permite identificar tanto a posição que o argumentador defende quanto às ideias que justificam essa posição. Vale ressaltar que em situações cotidianas em que a argumentação está presente, um desses elementos pode não aparecer pelo fato da informação já ser conhecida pelos interlocutores. O contra-argumento é qualquer ideia que desafia o argumento apresentado pelo argumentador. O contra-argumento pode ser formulado pelo interlocutor e pode ser até antecipado pelo argumentador em face da presença de um interlocutor imaginário na situação argumentativa. É importante destacar que no sentido bakhtinano o contra-argumento é o elemento que permite a captura das ‘vozes de outros’ (BAKHTIN, VOLOCHINOV, 1992). Por fim, a resposta é a reação imediata do argumentador diante dos contra-argumentos apresentados e nela estão descritas as transformações que emergiram entre a formulação inicial e a aparição dos contra-argumentos. Considerando os aspectos acima expostos sobre a argumentação, procedemos à análise dessa atividade discursiva na LIBRAS, ou seja, procuramos identificar as estratégias utilizadas por surdos para a constituição do discurso argumentativo. Para tal, precisamos compreender a estrutura da LIBRAS no que tange aos seus aspectos fonológicos, morfológicos, sintáticos e pragmáticos a fim de identificar os recursos argumentativos presentes nesta língua na constituição da unidade triádica da argumentação.

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LIBRAS Caraterização: aspectos fonológicos, morfológicos, sintáticos e semântico-pragmáticos Nível fonológico A LIBRAS é a língua oficial da comunidade surda brasileira de acordo com as disposições da Lei no. 10.436, de 24 de abril de 2002, e que foi regulamentada pelo Decreto no. 5.626 , de 22 de setembro de 2005. A referida lei concebe a LIBRAS como a língua de natureza visual-motora que permite a comunicação e expressão entre os surdos brasileiros e possui estrutura gramatical própria. Assim como as outras línguas de sinais a LIBRAS tem organização em todos os níveis gramaticais – fonológico, morfossintático, semântico e pragmático. De acordo com Quadros e Karnopp (2004), no nível fonológico estão determinadas as unidades mínimas para a formação dos sinais e estabelecem os padrões possíveis para criar combinações entre tais unidades assim como as variações possíveis no âmbito fonológico. Sousa (2009) destaca que nas línguas de sinais a fonologia é representada pela querologia, isto é, o movimento das mãos e dos pulsos. Assim, os queremas são os elementos gestuais denominados de elementos de base. Os morfemas gestuais são compostos por três queremas: pontos estruturais de posição, configuração e movimento. Segundo Fernandes (2003) o primeiro teórico a descrever o sistema querológico das línguas de sinais foi Stokoe em 1960 e de acordo com este segundo autor a gestualidade acontece em três níveis: cherology que incide sobre a análise dos queremas; morphoqueremics que analisa as combinações entre os queremas e morphemics, nível que corresponde aos âmbitos morfológico e sintático. Os queremas, portanto, correspondem à articulação dos sinais e são descritos consoante a configuração de mão, a locação da mão e o movimento da mão. Esses 124


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queremas equivalem aos fonemas nas línguas orais, os quais possuem ponto e modo articulatórios. Dessa forma, esses três parâmetros são as unidades mínimas que se dão origem aos morfemas. Vale ressaltar que as características da querologia citadas acima objetivam descrever os aspectos ligados à fonologia segmental – análise da produção dos fonemas – e suprassegmental – análise dos traços entonacionais, os quais são muito recorrentes nos diálogos de indivíduos surdos, principalmente em situações propícias a argumentação. Diante disso, a querologia se ocupa da forma como o falante compõe o sinal, seja esta lenta ou rápida, rígida ou suave que sempre está acompanhada da expressão corporal. O que é denominado de ‘palavra’ em língua portuguesa corresponde ao sinal em línguas de sinais. Quadros e Karnopp (2004) destacam que os sinais são constituídos por cinco parâmetros que ao serem combinados formam as unidades mínimas – os fonemas – que originam os morfemas nas línguas sinais, o que é semelhante nas línguas orais. Tais afirmações das referidas autoras, têm por base os estudos de Stokoe (1960), acrescentando-lhe novos dados, bem como renomeando o que outrora era querologia, por fonologia, dada a semelhança com este mesmo fenômeno nas línguas orais. Para Quadros e Karnopp (2004), os principais parâmetros fonológicos para a realização do sinal são: configuração de mão, movimento e locação conforme a figura a seguir:

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Imagem 1- Os parâmetros fonológicos da LIBRAS (In: Quadros e Karnopp, 2004, p. 51)

O primeiro parâmetro incide sobre as formas que as mãos assumem para a realização do sinal, as quais podem ser em datilologia – alfabeto em LIBRAS – ou em formas que utilizam a mão (mão direita para os destros e mão esquerda para os canhotos), ou pelas duas mãos. Sousa (2009) enfatiza que na LIBRAS o movimento necessita de um objeto, o qual é representado pelas mãos do enunciador, e do espaço que é área na qual o enunciador está circunscrito. Assim, o movimento apresenta variações quanto à direcionalidade, maneira e frequência. Nesse sentido, o movimento tem papel fundamental na argumentação, pois o alongamento ou repetição de um movimento com a finalidade de expressar intensidade podem apontar para o posicionamento argumentativo do enunciador. Quanto ao terceiro parâmetro, a locação, é o ponto de articulação, ou seja, o local onde está posicionada a mão configurada que pode ser em algum lugar do corpo ou em um espaço denominado de “espaço neutro”.

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Com o avanço das pesquisas sobre as línguas de sinais, foram acrescentados dois parâmetros: a orientação da mão e as expressões não manuais – estas são correspondentes às expressões faciais e corporais. A orientação da mão mostra a direção em que os sinais são realizados e está intimamente relacionada aos parâmetros supracitados. A orientação é, portanto, “a direção da palma da mão durante o sinal voltado para cima, para baixo, para o corpo, para a frente, para a esquerda ou para a direita.” (FERREIRA-BRITO, 1995, p. 41 apud SOUSA, 2009, p. 76). Então, os sinais são diferenciados também pela orientação da palma da mão. As expressões não manuais, por sua vez, contribuem para o entendimento do real sinal, visto que equivalem à entonação. Essas expressões estão reveladas no movimento da face, dos olhos ou do tronco e exercem duas funções. A primeira é marcar as construções sintáticas e a segunda é diferenciar os itens lexicais. Para exemplificar temos os sinais de “triste” e “exemplo” que se diferenciam pela expressão facial como podemos ver nas imagens abaixo:

Imagem 2 - Sinal de “triste”. Arquivo, GEPEL, 2013

Imagem 3 - Sinal de “exemplo”. Arquivo GEPEL, 2013

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Nível morfológico No nível morfológico, as línguas de sinais possuem um sistema de estrutura e formação de palavras que as organiza em classes gramaticais assim como as línguas oral-auditivas. O que diferencia as línguas de sinas das línguas orais-auditivas é que as primeiras são línguas sintéticas, ou seja, não possuem o artigo em sua estrutura morfológica assim como as línguas clássicas, a saber, o latim e o grego (FERNANDES, 2003). Ao compararmos a LIBRAS com o português, percebemos que a primeira apresenta um número consideravelmente reduzido de conjunções e preposições em relação ao que apresenta a segunda. Contudo, isso não implica a impossibilidade de se construir um texto coeso, pois a coesão é um fenômeno amplo que trata de “uma relação semântica entre um elemento do texto e algum outro elemento crucial para a sua interpretação” (KOCH, 1999, p. 17). A coesão é realizada por meio do sistema léxico-gramatical e dispõe de vários procedimentos que conferem unidade ao texto. Dessa forma, as preposições e conjunções não são os únicos ou mais importantes recursos para a coesão. Em LIBRAS, os advérbios de intensificação têm papel importante na construção da argumentação. Felipe (1988) destaca que alguns signos quando são antepostos a um verbo atuam como modificadores como acontece com os modais, advérbios de intensidade, negação e afirmação. A particularidade da LIBRAS e das línguas visuais-espaciais é que há a presença de advérbios faciais, isto é, certas expressões faciais ao lado de configurações de mão que não fazem parte do sinal e, consequentemente, modificam o signo. É interessante notar, na LIBRAS, o valor linguístico conferido à apontação, pois a função dêitica é marcada por meio deste recurso: o locutor insere os referentes no espaço ao apontar para locais diferentes. Esta apontação pode envolve referentes que estejam presentes através da sinalização da direção real dos referentes ou ausentes por meio do estabelecimento de posições arbitrárias no espaço. Assim, a apontação permite a constituição dos pronomes no espaço. Na contação de histó128


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rias, por exemplo, os personagens são posicionados em locais diferentes durante toda a narrativa e esses referentes são recuperados através da apontação, do olhar e do movimento do corpo do locutor (FERNANDES, 2003).

Nível sintático Na LIBRAS, a combinação dos sinais possui regras próprias que conferem a esta o estatuto de língua. Assim como todas as línguas de sinais, a LIBRAS é organizada espacialmente, pois trata de um sistema vísuo-espacial. Tal natureza faz com que as relações gramaticais se estabeleçam de maneiras diferentes no espaço, o que resulta em mecanismos sintáticos específicos (SOUSA, 2009). Sintaticamente, a LIBRAS possui aspectos estruturais essenciais: o estabelecimento nominal e a pronominalização e a concordância verbal. Assim, os sujeitos e objetos podem ser situados em um ponto no espaço de sinalização, contribuindo para a concordância verbal, especialmente no que tange aos referentes ausentes. Quadros e Karnopp (2004) apresentam os mecanismos espaciais para o estabelecimento da referência: fazer um sinal em um local específico; direcionar olhos e cabeça para um ponto específico ao mesmo tempo que sinaliza; usar a apontação antes do sinal de um referente; usar o pronome em uma localização particular em face de uma referência óbvia; usar um classificador com a finalidade de representar o referente em uma localização específica; usar um verbo direcional, isto é, verbos que têm concordância, a fim de incorporar os referentes introduzidos no espaço anteriormente. Na LIBRAS, existem sinais classificadores, que são formas que visam estabelecer algum tipo de concordância, evidenciar uma característica física e atribuir caráter de adjetivação. Os classificadores estão representados nas configurações de mãos utilizadas para expressar formas de objetos, animais e pessoas assim como trajetórias percorridas por alguns elementos. Contribuem ainda para a construção da estrutura sintática por meio dos recursos corporais que geram relações gramaticais abstratas.

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Quanto aos verbos, eles estão agrupados em duas categorias: verbos sem concordância, os quais necessitam de argumentos explícitos, visto que não há qualquer marca do verbo nos argumentos da frase, como nos verbos “amar”, “conhecer” e “falar”; e verbos com concordância que dependem de marcações não manuais e do movimento direcional, como “ajudar”, “dizer” e “entregar”.

Imagem 4 e Imagem 5 - Sinal de “amar”. Arquivo, GEPEL, 2013

Imagem 6 - Sinal de “conhecer”. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 7- Sinal de “falar”. Arquivo GEPEL, 2013

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Imagem 8 - Sinal de “ajudar”. Arquivo GEPEL, 2013


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Imagem 9 - Sinal de “dizer”. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 10 - Sinal de “entregar”. Arquivo GEPEL, 2013

No que tange à ordem das palavras na frase, esta ordem pode variar através da combinação de sujeito (S), verbo (V) e objeto (O). Em LIBRAS as possíveis ordens são: SVO, OSV e VOS. Vale ressaltar que nos enunciados com verbos com concordância, há maior flexibilidade da ordem dos elementos da frase se compararmos com os verbos sem concordância. Além disso, há a obrigatoriedade da presença de marcas não manuais em verbos com concordância enquanto essas marcas são opcionais nos verbos sem concordância (QUADROS E KARNOPP, 2004).

Nível semântico-pragmático No nível semântico-pragmático da LIBRAS, os traços são determinados a partir dos usos e do contexto assim como ocorre com as línguas orais-auditivas. A polissemia é uma característica que também faz parte do léxico na LIBRAS como acontece com outras línguas. Por exemplo, as palavras “laranja” e “sábado” possuem a mesma configuração de mão, locação e movimento. O mesmo acontece com as palavras “açúcar”, “doce” e “guardanapo”. O que nos permitirá identificar o sentido do sinal é o contexto.

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Na LIBRAS, os usuários constroem o sentido dos enunciados numa relação dialógica (BAKHTIN, VOLOCHINOV 1992) como acontece com as demais línguas. A mudança do sentido se dá através das expressões não manuais ou da forma que o sinal é feito, com maior ou menos intensidade das mãos, por exemplo. Na LIBRAS, os traços semântico-pragmáticos emergem graças aos aspectos prosódicos através das expressões faciais, manuais ou corporais (FERNANDES, 2003). Além disso, as perguntas retóricas – muito recorrentes em LIBRAS – configuram-se como um recurso semântico-pragmático que contribui para o desenvolvimento da teia argumentativa.

O uso do espaço Na LIBRAS, assim como as demais línguas de sinais, a realização dos sinais no espaço permite a concretização das relações sintáticas, possibilitando a construção de textos em LIBRAS. Quando o sinal é produzido no espaço, as relações semânticas são alteradas dependo do local de produção. Dessa forma, o valor semântico do sinal está intimamente relacionado à localização espacial. Isso faz com que o espaço seja um elemento distintivo na LIBRAS e em qualquer língua de sinais. O espaço também define os elementos presentes numa sentença. Então, quando acontece a repetição de um mesmo sinal entendemos que houve uma ênfase a um referente ou a pluralização de um mesmo referente. No uso do espaço há um recurso muito utilizado que já foi introduzido na seção 3.3, porém optamos por denominá-lo nesta seção para podermos aprofundar o recurso: o role-play. Este recurso é muito usado nas narrativas e acontece quando o sinalizador assume a posição dos personagens, realizando alternância entre eles nas situações de ações ou diálogos. Isso contribui para melhor definição dos personagens e facilita, consequentemente, a compreensão dos fatos narrados.

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RESULTADOS E DISCUSSÃO Para identificar os voluntários, adotamos códigos alfanuméricos, de modo a preservar suas identidades, a saber: R (Recife), C (Caruaru) e o número conforme ordem de filmagem. Cada voluntário foi convidado a criar um comentário argumentativo em LIBRAS a partir de uma das duas seguintes perguntas provocativas. Para os voluntários de Caruaru e Limoeiro, fizemos a seguinte pergunta: “Na sala de aula, você defende a presença de intérpretes, ou professores que usem LIBRAS?” Para os voluntários de Recife perguntamos: “Você defende escola inclusiva ou escola bilíngue para surdos?” Inicialmente, filmamos os voluntários realizando o comentário em LIBRAS. Em seguida, eles escreveram um comentário argumentativo em português, retextualizando o comentário em LIBRAS. A nós coube-nos a análise dos comentários filmados. Nos vídeos filmados com os voluntários, percebemos que a estrutura argumentativa utilizada por eles não apresenta todos os elementos da unidade triádica desenvolvidos por Leitão (2000) – argumento, contra-argumento e resposta. Contudo, isso não implica a inexistência de um texto argumentativo, visto que os voluntários utilizaram quatro estratégias argumentativas que refletem os níveis estruturantes da LIBRAS (fonológico, morfossintático e semântico-pragmático). Além disso, as perguntas propostas para que eles elaborassem um texto argumentativo já evidenciavam pontos de vista alternativos: escola bilíngue x escola inclusiva e a presença de professores que dominam a língua de sinais x a presença de intérprete de LIBRAS. Percebemos que todos os voluntários apresentam argumento, composto por ponto de vista e justificativa, como está exemplificado, abaixo, na transcrição dos vídeos em trechos extraídos de uma voluntária. Assim, concluímos que há a presença do elemento básico da argumentação, que é o argumento.

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CV1 – Justificativa 1: “É importante, o que? É preciso o uso da LIBRAS para a comunicação visual do surdo”. (14s a 18s) – Ponto de vista 1: “É preciso a presença de intérprete em sala de aula porque se o professor faz LIBRAS e oraliza ao mesmo tempo, isso causa confusão” (19s a 26) – Ponto de vista 2: “Se o surdo está em um espaço próprio pra o surdo com o professor que domina e língua de sinais e não oraliza, o surdo pode se desenvolver. Mas, na escola inclusiva é importante ter professor ouvinte e intérprete de LIBRAS”. (44s a 59s). – Justificativa 2: “Em Porto Alegre tem uma Universidade Federal onde há um espaço próprio para surdo com o professor que faz uso da LIBRAS. Não é inclusão, é um espaço próprio para surdo” (1min a 1min14s).

No texto desta voluntária, observamos um argumento composto por dois pontos de vista e duas justificativas que sustentam as ideias defendidas por ela no que tange à necessidade de um espaço escolar próprio para o surdo, ou seja, um espaço bilíngue que atenda às suas necessidades e que tenha como base o uso da LIBRAS. Vale ressaltar que em todos os vídeos os argumentos foram apresentados com a finalidade de reafirmar o ponto de vista defendido inicialmente pelos voluntários. Verificamos que os voluntários utilizaram quatro estratégias argumentativas na elaboração dos seus textos em LIBRAS: a) expressão facial que aponta para o posicionamento argumentativo; b) intensificação do sinal através da repetição; c) perguntas retóricas; d) uso do espaço denominado de role-play.

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Intensificação do sinal por meio da expressão facial Na LIBRAS, as expressões não manuais abarcam as expressões faciais e corporais, como um elemento pertencente ao nível fonológico que equivale à entonação. No caso da argumentação, percebemos que algumas expressões faciais acompanham determinados sinais que não necessitariam de tais expressões para marcar a diferença entre itens lexicais. Isso nos revela que, nesses casos, tais expressões apontam para o posicionamento argumentativo dos voluntários, uma vez que não costumam ser usadas na produção dos sinais analisados em outras situações de produção, como está exemplificado nas imagens extraídas dos vídeos coletados.

Imagem 11. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 12. Arquivo GEPEL, 2013

Nessas duas imagens, percebemos que a expressão facial que não faz parte dos sinais “oralizar” e “libras” marcam a discordância da voluntária quanto aos professores que oralizam e fazem uso da LIBRAS simultaneamente, causando confusão para o entendimento do surdo em sala de aula. A voluntária deixa isso explícito no tempo 32s a 35s de gravação. Nos outros voluntários, a expressão facial é utilizada como estratégia argumentativa conforme expomos abaixo: 135


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• RV2: usa expressão facial rígida quando fala que o MEC fechou várias escolas bilíngues, revelando sua discordância dessa decisão tomada (50s a 51s) e em relação às escolas inclusivas que foram instituídas pelo MEC (59s a 61s). • RV4: percebemos a expressão facial rígida e leve ao contrapor o professor da escola inclusiva (43s a 44s) e o professor que usa LIBRAS (3min 02s a 3min 04s), respectivamente. • RV5: identificamos expressão facial rígida com a finalidade de expressar insatisfação quanto à escola inclusiva a partir da experiência que ela teve com esse tipo de escola (06s a 07s). • CV4: usa expressão facial rígida no sinal “professor” para mostrar sua insatisfação quanto à postura do professor ouvinte em sala de aula (45s).

Intensificação do sinal por meio da repetição No nível morfológico, alguns sinais que são antepostos aos verbos atuam como modificadores, ou seja, em nosso caso, como advérbios de intensificação. Além disso, a própria intensificação do verbo através da repetição tem papel fundamental na argumentação ao lado de determinadas expressões faciais, marcando o posicionamento do argumentador. Podemos ilustrar essa constatação nas imagens abaixo.

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Imagem 13. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 14. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 15. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 16. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 17. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 18. Arquivo GEPEL, 2013

No texto deste voluntário, notamos a intensificação do sinal “fechar” através da repetição agregada a expressão facial, atuando como advérbio facial, o que revela uma particularidade da LIBRAS e muda, consequentemente, o sentido do signo. Vale ressaltar que a junção da intensificação do sinal à expressão facial torna a argumentação mais rica.

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Notamos a utilização desse recurso nos seguintes voluntários: • RV2: repete a utilização desse recurso, a intensificação do sinal “inclusão” somado a expressão facial, para explicitar sua discordância quanto à ordem do MEC de instituir escolas inclusivas (59s a 61s). • RV5: intensifica o sinal de “oralizar”, usando expressão facial rígida a fim de mostrar que na escola inclusiva os colegas de turma falavam bastante e ela não compreendia nada, além de sofrer com a exclusão dos colegas (1min 03s a 1min 06s). Ela também utilizou esse recurso nos sinais “estudar” (1min 57s) e “pesquisar” (1min 59 a 2min) para mostrar o seu esforço pessoal em tentar estudar e pesquisar na escola mesmo na ausência do intérprete; “gostar” (2min 22s a 2min 24s) para reforçar o quanto ela apreciou a experiência escolar no 3º ano do Ensino Médio em face da presença do intérprete; “os dois” (2min 29s a 2min 32s) com a finalidade de mostrar o seu interesse pelas duas línguas – LIBRAS e português; “vontade” (3min 11s a 3min 14s) para mostrar a sua vontade/interesse de aprender, estudar e pesquisar na escola. • CV4: intensificação do sinal e expressão facial rígida no sinal “oralizar” para mostrar sua insatisfação quando o professor falava (21s a 22s) e ele não compreendia porque não havia intérprete em sala.

Perguntas retóricas No nível semântico-pragmático, as perguntas retóricas contribuem para o desenvolvimento da teia argumentativa, sendo um recurso recorrente na LIBRAS, visto que possibilitam a construção do sentido numa relação dialógica quando o argumentador se dirige a um interlocutor que não está presente. As imagens abaixo exemplificam bem a estrutura sintática das perguntas retóricas:

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Imagem 19. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 20. Arquivo GEPEL, 2013

Nesse momento, a voluntária pergunta “é importante, o quê?” e ela mesma dá a resposta, se dirigindo para o interlocutor a fim de chamar atenção dele e desenvolver sua argumentação. Esse recurso é extremamente recorrente na LIBRAS e acontece várias vezes nos vídeos gravados como mostramos abaixo: • CV1: na sentença “como o surdo se sente, como?” (10s a 11s). • RV2: nas sentenças “eu tenho pensado, o que?” (13s a 14s); “precisa inclusão, não pode! Eu quero, o que?” (22s a 23s); “por quê?” (39s); “por quê?” (48s); • RV4: “como o professor ensinava?” (34s a 37s); “como eu aprendia?” (53s a 55s) • RV5: nas sentenças “eu sofri, como?” (43s a 44s); “como?” (1min 51s); “como?” (1min 57s); “como?” (2min 35s); “como?” (2min 58s). • RV3: nas sentenças “por quê?” (27s); “por quê?” (52s). • RV1: na sentença “o bilinguismo é importante para o aluno surdo, por quê?” (07s a 10s) • CV2: na sentença “por quê”? (26s) • CV3: na sentença “por quê”? (52s); “o que?” (1min); “o que?” (1min 07s) 139


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Uso do espaço denominado de role-play O uso do espaço é muito importante na LIBRAS, pois possibilita a concretização das relações sintáticas e também atua como elemento distintivo para estabelecer o valor semântico do sinal conforme a localização espacial. Percebemos bem o uso do espaço nas imagens abaixo:

Imagem 21. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 22. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 23. Arquivo GEPEL, 2013

Nessas imagens, a voluntária localiza dois referentes: o professor ouvinte e o intérprete. Ela faz isso através da apontação na primeira imagem e do recurso role-play nas duas imagens seguintes, posicionando o corpo e direcionando o olhar para pontos específicos localizar os referentes. A voluntária recupera o referente professor ouvinte posteriormente na imagem abaixo:

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Imagem 24. Arquivo GEPEL, 2013

A apontação também aparece como recurso nas imagens abaixo:

Imagem 25. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 26. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 27. Arquivo GEPEL, 2013

Nessas imagens, o voluntário retrata que aprendia LIBRAS perguntando aos amigos. Na primeira imagem ele faz o sinal o “perguntar” direcionando para um ponto específico. Na segunda faz o sinal de “amigo” de na terceira aponta para o local em que havia direcionado o sinal de “perguntar”, isto é, recorre a apontação. Nas imagens a seguir vemos o recurso do role-play quando o argumentador assume a posição de referentes distintos, fazendo as devidas alternâncias.

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Imagem 19. Arquivo GEPEL, 2013

Imagem 20. Arquivo GEPEL, 2013

A voluntária se posiciona do lado direito para se referir ao professor da escola inclusiva e do lado esquerdo para se referir ao aluno da escola inclusiva e as respectivas atitudes deles. Vale ressaltar que usa direcionamento do corpo e do olhar, tornando a argumentação mais rica. Os outros voluntários também usam esse recurso como mostramos abaixo: • RV3: usou o espaço para dividir a escola para crianças surdas do lado esquerdo e surdos maiores do lado direito, posicionando o corpo e o olhar (41s a 1min 14s). • CV4: usou o espaço para localizar o professor do lado esquerdo (20s) e o intérprete do lado direito (33s). • RV1: usou o espaço para localizar o professor surdo do lado esquerdo (33s a 41s) e o professor ouvinte do lado direito (43s a 53s). • CV2: usou o espaço para localizar o professor ouvinte do lado direito (48s a 51s) e ela mesma do lado esquerdo para mostrar as atitudes do professor de português que não facilitavam a aprendizagem e as dificuldades que ela, como aluna, enfrentava na escola sem a presença do intérprete (52s a 56s).

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• CV3: usou o espaço para localizar o professor de português do lado direito e o intérprete de LIBRAS do lado esquerdo para mostrar as dificuldades vivenciadas nas aulas de português sem o intérprete e como a sua experiência melhorou na escola com a presença do intérprete, reforçando a importância de haver a presença dos dois profissionais em um ambiente escolar inclusivo. Diante disso, através do gráfico abaixo podemos perceber a recorrência das estratégias argumentativas utilizadas pelos voluntários da pesquisa:

Gráfico 1 - Recorrência das estratégias argumentativas utilizadas por surdos na LIBRAS.

Através desse gráfico percebemos que as perguntas retóricas são a estratégia mais utilizada na elaboração de textos argumentativos, seguida da intensificação do sinal através da repetição e do uso do espaço role-play, e, por fim, a expressão facial. Diante disso, percebemos os surdos usam um pouco mais a estratégia inserida no nível semântico-pragmático, sem desprivilegiar as outras estratégias para o desenvolvimento da teia argumentativa.

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CONCLUSÕES Em todos os comentários produzidos em LIBRAS para esta pesquisa, se evidencia a argumentação. Percebemos que o maior grau de escolaridade não favoreceu alguns voluntários, ou seja, os voluntários que têm curso superior tiveram desempenho semelhante aos que só concluíram o ensino médio. A localização geográfica também não interferiu no desempenho dos voluntários. No que diz respeito ao domínio da LIBRAS, parece não haver diferenças entre os surdos que vivem na capital e os que vivem no interior do estado. Nas análises dos vídeos, percebemos a recorrência um pouco maior das perguntas retóricas, situadas no nível semântico-pragmático da LIBRAS. Contudo, é importante destacar que utilização dessa estratégia não foi muito superior à utilização das outras. Acreditamos que essa utilização um pouco maior das perguntas retóricas se deve, em primeiro lugar, à necessidade de estabelecer uma relação dialógica com o interlocutor, que, nesse caso, não estava presente, contribuindo para a construção do sentido do texto. Em segundo lugar, percebemos a utilização da intensificação do sinal através da repetição na mesma proporção da utilização do espaço denominado role-play. Isso nos revela que os voluntários se valeram da intensificação do sinal com a finalidade de marcar fortemente o seu posicionamento quanto ao tema proposto e que o uso do espaço role-play foi um elemento distintivo a fim de estabelecer o valor semântico do sinal de acordo com a localização espacial. Por fim, as expressões faciais que não integram o sinal foram agregadas, muitas vezes, à intensificação do sinal e ao uso do espaço role-play, o que enriqueceu a argumentação dos voluntários e reforçou o posicionamento que defendiam. Ao analisarmos as estratégias argumentativas utilizadas por surdos na LIBRAS, percebemos a peculiaridades de tais estratégias, considerando a natureza visual-espacial da língua através dos recursos gramaticais disponíveis nos níveis estruturantes da língua – fonológico, morfológico, sintático e semântico-pragmático. Ao abordar a estrutura da LIBRAS, especificamente como se dá o desenvolvimento da atividade argumentativa, podemos compreender melhor a importância desta 144


ARGUMENTAÇÃO NA LIBRAS: ESTRATÉGIAS LINGUÍSTICAS VÍSUO-ESPACIAIS

língua para o surdo e contribuir para que professores de língua portuguesa possam estar habilitados a perceber as marcas da LIBRAS nos textos escritos em português por surdos, a fim de ajudá-los a aprimorar suas competências e habilidades de escrita na segunda língua, que é o português.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M.; VOLOCHINOV, V.V. Marxismo e filosofia da linguagem. São Paulo: Hucitec, 1992. DIAS JÚNIOR, J. F. Ensino da língua portuguesa para surdos: contornos de práticas bilíngues. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Linguagem – Recife: UNICAP, 2010. FELIPE, Tanya. O signo gestual-visual e sua estrutura frasal na LSCB. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação do Mestrado em Letras e Linguística. Recife: UFPE, 1988. FERNANDES, E. Linguagem e surdez. Porto Alegre: Artmed, 2003. FERREIRA-BRITO, L. Por uma gramática de língua de sinais. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro: UFRJ, Departamento de Linguística e Filologia, 1995. FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática educativa. São Paulo: Terra e paz, 1996. IBGE. Censo demográfico 2010: características gerais da população, religião e pessoas com deficiência. Disponível em < http://www.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2010/ caracteristicas_religiao_deficiencia/caracteristicas_religiao_deficiencia_tab_pdf.shtm > Acessado em 25 de agosto de 2012. KOCH, Ingedore Villaça. A coesão textual. São Paulo: Contexto, 1999. LEITÃO, Selma. A construção discursiva da argumentação em sala de aula. 2000. NASCIMENTO. G. R. P. do. Aspectos da organização de textos escritos por universitários surdos. Tese de Doutorado em Linguística. Programa de Pós-Graduação em Linguística. Recife: UFPE, 2008. QUADROS, R.M.; KARNOPP, L.B. Língua de sinais brasileira: estudos linguísticos. Porto Alegre: Artmed, 2004. SELINKER, L. Interlanguage: International Review of Applied Linguistics, 10, 1972. SOUSA, Wilma. A construção da argumentação da língua brasileira de sinais: divergência e convergência com a língua portuguesa. Tese de Doutorado Programa de Pós-Graduação em Linguística. João Pessoa: UFPB, 2009. VELASCO, P. N. Educando para a argumentação: contribuições do ensino da lógica. Belo Horizonte: Autentica Editora, 2010. 145


Resumo Este estudo visa analisar as relações familiares interétnicas existentes nos romances da escritora moçambicana Paulina Chiziane: Balada de amor ao vento (2003) e O alegre canto da perdiz (2008). É característica da obra de Chiziane a abordagem de temas presentes na cultura africana, contendo relatos fictícios, entretanto, baseados em vivências empíricas de seu meio de origem. O debate sobre a etnicidade é levantado em ambas as obras, direcionando o leitor ao âmbito do contexto familiar. Tem-se, como referencial teórico, conceitos trabalhados por POUTIGNAT, STREIFF-FENART (2011) e NOA (2006). O trabalho faz parte da pesquisa de iniciação científica intitulada Gênero e Relações Interétnicas na construção familiar africana em O alegre canto da perdiz, de Paulina Chiziane, agregada ao projeto principal nomeado A ficção e o folheto de cordel produzidos por escritoras de Língua Portuguesa. E vem sendo desenvolvida pelo CELLUPE, contando com financiamento do PIBIC/CNPq. Palavras-chaves: Literatura africana; etnia; família.


BALADA DE AMOR AO VENTO E O ALEGRE CANTO DA PERDIZ: RELAÇÕES FAMILIARES INTERÉTNICAS Ilka Souza dos Santos1 Prof.ª Dr.ª Amara Cristina de Barros e Silva Botelho (Orientadora)2

INTRODUÇÃO Este trabalho tem por objetivo a análise das relações interétnicas presentes nas duas obras da escritora Paulina Chiziane, Balada de amor ao vento (2003) e O alegre Canto da Perdiz (2008), além da divulgação do acervo literário da autora moçambicana, ressaltando sua técnica de escrita e importância como difusora da cultura africana contemporânea e tradicional. O artigo tem sua metodologia baseada em perspectivas sociológicas trabalhadas por POUTGNAT; STREIFFFENART (2011) e JOHNSON (1995) para definir o termo etnicidade, e contextualiza a perspectiva literária com conceitos trabalhados por NOA (2006) no âmbito da literatura moçambicana, utilizando-se das representações de três variáveis: as linguagens, os espaços e os seres.

Contextualização crítica dos enredos As obras Balada de amor ao vento (2003) e O alegre canto da perdiz (2008), constam de narrativas fortes com enredos capazes de levantar discussões significativas sobre o meio social africano. Considerando o fato de terem sido escritos por uma moçambicana que conhece de perto os aspectos abordados, os relatos,

1.Graduanda do curso de Licenciatura em Letras pela Universidade de Pernambuco (UPE); bolsista de iniciação científica PIBIC/CNPq. E-mail: ilkassouza@hotmail.com 2. Professora Doutora adjunta do curso de Letras da Universidade de Pernambuco (UPE). E-mail: acristinabotelho@ gmail.com 147


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apesar de serem fictícios, passam a conter traços narrativos que espelham uma realidade concreta e que fazem o leitor mergulhar nesta cultura como se fizesse parte dela. A literatura africana, sobretudo a moçambicana, atinge, em sua maioria, o público ocidental, passando, por esta razão, a dispor de características ocidentais de construção literária – mas que reescrevem as linguagens, os imaginários, os seres, os espaços e o tempo do meio circundante, NOA (2006), este fato constitui uma relação interétnica e intercultural na construção literária africana com elementos do estilo ocidental. Isto acontece pelo fato de a difusão literária nas diversas camadas sociais do continente africano ser bastante limitada, devido à alta taxa de analfabetismo e maior tradição oral do que escrita. Assim, podemos reconhecer, nas duas obras, aspectos literários baseados nas três invariáveis trabalhadas por NOA (2006) no contexto da ficção moçambicana: as linguagens, os espaços e os seres. Os quais, dentro das linguagens estão: “a linguagem do corpo quase sempre carregada de sensualidade e de erotismo”; “a linguagem da imaginação, rememorativa e congeminativa, projectando, quase sempre, imagens de inação e de inadaptação”; “a linguagem da oralidade” que envolve dramas e situações do cotidiano, sobretudo no meio urbano e suburbano; e “a linguagem da tradição ritualizada, quer pelas canções populares quer pela voz implacável dos mais velhos”. Na representação dos espaços, os três que são mais englobantes são: a cidade, o subúrbio e o campo. E sobre representação dos seres podemos compreender que “[...] quase todas elas [as representações das personagens] oscilam entre a individualização e a socialização, facto que pode ser observado nas atitudes, nas acções que executam, nos dramas que protagonizam, nas falas que realizam e nos nomes que ostentam” (NOA, 2006, p. 273).

Balada de amor ao vento Em Balada de amor ao vento (2003), conta-se a história de amor entre Sarnau e Mwando, que inicia quando eles eram jovens e perdura até a idade madura, 148


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quando eles finalmente conseguem ficar juntos. O tom na narrativa é recheado de oralidade, por ser contado pela protagonista e por representar suas recordações, utilizando-se, assim, a técnica do flashback ou analepse. O espaço predominante é a região de Mambone, em Moçambique, como explicitado no seguinte trecho: “Foi em Mambone, saudosa terra residente nas margens do rio Save, que aprendi a amar a vida e os homens” (CHIZIANE, 2003, p.11), o campo, neste caso, sendo representado; a cidade a é citada pela protagonista, quando diz ter passado por Lourenço Marques (antigo nome da cidade de Maputo, capital de Moçambique); e o subúrbio vem no final, quando Sarnau se estabelece no bairro Mafalala, “Nessa altura saí de Vilanculos para Lourenço Marques, fixando-me nesta triste Mafalala” (CHIZIANE, 2003, p.134). A linguagem do corpo, caracterizada por NOA (2006) por sua carga de sensualidade e erotismo, e, neste caso, com uma boa dose de delicadeza, pode ser constatada no seguinte trecho: Só o seu olhar serenou as tempestades que me envolviam. O seu abraço destruiu o fogo de ansiedade que me consumia havia anos. A sua voz é doce, penetrante, o seu pescoço é verdura polida, as suas carícias envolvem-me como um manto suave, tão suave como a plumagem dos pintos recém-nascidos (CHIZIANE, 2003, p. 83).

A representação desta linguagem é também associada às necessidades do contexto em que se encontram as personagens: No campo é mais belo o rosto queimado de sol. São belas as pernas fortes e musculosas, os calcanhares rachados que galgam quilômetros para que em casa nunca falte água, nem milho, nem lume. São mais belas as mãos calosas, os corpos que lutam ao lado do sol, do vento e da chuva para fazer da natureza o milagre de parir a felicidade e a fortuna (CHIZIANE, 2003, p. 41).

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A história oscila entre um narrador autodiegético, sob a voz de Sarnau, e um narrador heterodiegético omnisciente, que narra principalmente os fatos que ocorrem na vida de Mwando. É possível também encontrar a linguagem da imaginação no conteúdo da narrativa, como, por exemplo: Tive um momento de felicidade aqui, porque não vivi? Que triste é ser gente. Gostaria de ser um animal, ser livre para amar livre, sem leis nem tradições. Num impulso, larguei corrida desenfreada como uma cadela enraivecida no encalço dele [...] (CHIZIANE, 2003, p. 81).

No caso da citação acima, pode-se constatar características de zoomorfismo. A linguagem da oralidade, por sua vez, pelo fato de o narrador ser autodiegético, é bem evidente, como num diálogo narrado por Sarnau: “[...] – Mas vocês ainda não viram? A Sarnau é pau de carapau. Nem curva no peito, nem curva no rabo, é estaca de eucalipto, mulher é que não, wâ, wâ, wâ![...]” (CHIZIANE, 2003, p. 15). O casal, na história, tem seu relacionamento dificultado pelas várias divergências culturais que o rodeia. Primeiro, Mwando não poderia ficar com Sarnau pelo fato de estudar numa escola católica para ser padre; segundo, após ser expulso do colégio, seu pai arranjou-lhe um casamento com outra moça, e por ser convertido ao catolicismo ele não concordava com a poligamia, não podendo, Sarnau, sequer ser sua segunda esposa; terceiro, Sarnau, após ser abandonada por Mwando, é escolhida para casar-se com o filho do rei de sua tribo, Nguila, e, como se sabe, mulher não tem direito à poligamia, apenas o homem, que neste caso passa a ter sete esposas – passando a preferir a Phati, que tem a pele mais clara e odeia Sarnau; e quarto, depois que se reencontram, vários anos depois, ela engravida dele, mas o rei pensa ser o pai da criança, eles fogem juntos deixando o menino com Nguila, Mwando não aguenta a pressão de ter sua família ameaçada pelos homens do rei, novamente a abandona, culpando-a por todas as desgraças que aconteceram em sua vida. Só no final, depois de ser exilado por quinze anos como escravo para Angola, ele retorna e os dois voltam a ficar juntos. Sarnau teve que se prostituir e passar a vender legumes para manter-se a si e a seus filhos, e 150


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ainda devolver as 36 vacas que foram pagas a sua família pelo rei, como lobolo3 de casamento. Através do que foi dito é perceptível a linguagem da tradição durante toda a obra, pela relação que as pessoas desta sociedade têm com os espíritos e a importância dada aos anciãos. Observe-se na seguinte passagem: “O rei morreu de cócoras, e de cócoras foi enterrado, com a lança de guerreiro à direita, e o escudo à esquerda, pois se outra coisa fizessem não choveria” (CHIZIANE, 2003, p. 73). E também no trecho: “Homem que teima em viver com uma só mulher, ainda por cima preguiçosa, não é digno de ser chamado homem. O galo que não consegue galar todas as frangas é eliminado, não presta” (Chiziane, 2003, p. 66). Por fim, analisando a representação dos seres, devemos recordar a importância dada às ações e aos nomes, como, por exemplo, o fato de Sarnau dar o nome de “Phati” à sua filha, mesmo ela tendo sido sua inimiga em vida (Phati, a esposa de Nguila, é morta acusada de feitiçaria e discórdia): Dormia no armazém de carvão onde também dormiam os cães. Foi nesse ambiente que a criança nasceu, saudável, mas raquítica. Dei-lhe o nome de Chivite, para marcar a angústia que me torturava. A criança viveu bem nos primeiros dias, mas quando chegou ao segundo mês, foi acometida por doenças estranhas,[...] (CHIZIANE, 2003, p. 134-5. GRIFO MEU).

Sarnau levou a filha a uma curandeira, que deu a entender que a doença da criança tratava-se da ação de um espírito:

3. Lo·bo·lo |ô| (ronga lobolo) substantivo masculino. [Moçambique]: Dinheiro ou conjunto dos bens pagos pelo noivo à família da noiva aquando do pedido de casamento (ex.: a .cerimônia do lobolo já está marcada). = DOTE Plural: lobolos |ô|. "lobolo", in Dicionário Priberam da Língua Portuguesa [em linha], 2008-2013, http://www.priberam.pt/dlpo/lobolo [consultado em 03-11-2013]. 151


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Quando voltou a si, disse-me que a criança deveria ter o nome desse espírito maligno, pois o que se passava, na realidade, é que esse defunto não aguentava a vida nas profundezas, porque sofria muito pelos mares que causara em vida (CHIZIANE, 2003, p. 135).

O alegre canto da perdiz Já em O alegre canto da perdiz (2008), os espaços que predominam são representados pela Zambézia (caracterizando a cidade e o subúrbio) e a região dos Montes Namuli, representando o campo, a região das montanhas, esta última coberta do misticismo sustentado pelas pessoas da região. O enredo inicia-se com Maria das Dores, conhecida como a louca do rio, nua, a causar espanto e julgamento às mulheres que habitam a região dos Montes: “Há uma mulher sem roupa no rio, negra e com tatuagens pelo corpo. As outras mulheres começam a hostilizá-la pela nudez, por não saberem sua origem. O rio acolhe-a. Seu nome é Maria das Dores” (CHIZIANE, 2008, p. 11). A partir daí, o narrador torna a fazer uso da técnica do flashback, quando passa a oscilar entre passado e presente, contando as histórias de outras três protagonistas, além de Maria das Dores, que são: Serafina, Delfina e Jacinta; respectivamente sua avó, mãe e irmã mulata. A representação dos seres, nesta obra, espelha bem as concepções de NOA (2006) acerca deste ponto, afinal a história é narrada a partir das relações sociais individuais estabelecidas pelas personagens, cada qual com seus conflitos e sentimentos de mundo, sendo espelhada também, esta representação, nas ações que praticam e nos nomes que ostentam. Maria das Dores, por exemplo, tem o nome correspondente a toda história que a conduz: filha de pais assimilados, recebe um nome tipicamente europeu e faz analogia a todo o sofrimento que passaria em vida, como diz seu avô: – Mas porquê atribuir a uma criança tão linda um nome de amargura? [...] – Maria das Dores, bonitinha, como a tua mãe. O que trazes no punho fechado? Dores ou alegrias? Tens dedinhos compridos como ganchos.

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Parece até que o seu destino é segurar as presas. Serás tu uma feiticeira ou uma mineira esgaravatando a terra? Tens olhos grandes, espertos. Para quê? Para fugir do predador? Pé grande, pé de viajante! Até parece que o teu destino será caminhar pelos vales, pelas montanhas, pela terra inteira, para embalar as dores, oh, pequenina! Esta mãe louca um dia hipotecará a tua vida e te arrastará por caminhos de dor, ah, Maria das Dores! (CHIZIANE, 2008, p. 155).

São três gerações que sofrem consequências diretas de suas precedentes. Serafina iniciou Delfina no mundo da prostituição em troca de uma taça de vinho, desde cedo apresentou à filha “a desgraça” que era ter a pele negra: “ – Não sonhes alto que te magoas. Ah, Delfina! Para nós, negras, sonhar alto é proibido” (CHIZIANE, 2008, p. 83). Delfina, por sua vez, tinha uma beleza exuberante que despertava a inveja das mulheres e a cobiça dos homens, entretanto era dotada de ambição e egoísmo. Nos traços de Delfina pode-se observar a linguagem do corpo, com seu tom de sensualidade característico: [...] Porque é negra e é bela. Donzela. Lampariga, de acordo com os linguarejos malandros dos homens, porque a rapariga brilha como uma lamparina.[...] Porque era recheada, bonita e atrapalhava a concentração dos rapazes. Na igreja ficava no banco de trás. A freira expulsou-a de novo. Distraía a atenção dos fiéis e enchia os padres de desejos pecaminosos, [...] (CHIZIANE, 2008, p. 78).

Apaixonou-se por um negro, José dos Montes, com quem teve Maria das Dores e Zezinho, abandonou-o, todavia, por um branco, o Soares, com quem teve seus filhos mulatos: Jacinta e Luisinho. Segregava os filhos pela cor. Maria das Dores e Jacinta são exemplos disso, enquanto Maria das Dores cozinhava e limpava, Jacinta estudava e brincava; enquanto a mulata tinha comida refinada e boas roupas, a negra comia com menor rigor e vestia roupas reaproveitadas da irmã. Depois

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que o “pai branco” abandona a família, Delfina oferece a virgindade de sua filha negra ao curandeiro Simba, para que ele “evoque”, por meio de magia, o Soares de volta, justifica-se pelo fato de ter escolhido Maria e não Jacinta para pagar a dívida com o pensamento de que “O mundo dos brancos tem outros códigos, não precisam desta viagem. Para eles é mais importante a escola dos livros que a escola da vida” (CHIZIANE, 2008, p. 255). Ele passa a manter a garota num regime de casamento forçado e polígamo, do qual ela só vai se livrar anos mais tarde, quando já tem três filhos e foge para os Montes Namuli, onde perde os filhos e passa a ser conhecida como a louca do rio. Jacinta, por sua vez, revolta-se com a mãe pelo fato de desconhecer o paradeiro da irmã. Sai de casa com os dois irmãos, sendo acolhidos por freiras e mandadas pelo conselho tutelar ao colégio, lugar em que devem permanecer longe da mãe, que definha em álcool e prostituição. As histórias dessas mulheres são recheadas de aspectos e problemas sociais que caracterizam uma Moçambique colonial e pós-colonial, as quais são espelhos de uma sociedade marcada pela hierarquia racial, presente, inclusive dentro do seu seio familiar; racismo; jogo de interesses; busca pelo embraquecimento da raça, e consequente preferência em gerar proles do sexo feminino; pelo processo de assimilação da cultura europeia, que se apresentava como uma das poucas possibilidades de vida digna; além de prostituição; casamento prematuro; e outros aspectos. O narrador é heterodiegético omnisciente, deixando claras as ações, pensamentos e sentimentos das personagens, sem, contudo, interferir ou opinar, classificando seu posicionamento como objetivo. Por este motivo, encontramos diversas vezes a linguagem da imaginação presente na narrativa, externando os anseios das personagens: “[...] O coração de Delfina constrói cidades de néon. Com muita comida e muito vinho. No seu sonho é senhora e habita uma cidade de pedra. Com vestidos de renda. Criados tão pretos como ela que tratará como escravos” (CHIZIANE, 2008, p. 77). A linguagem da tradição, neste caso, é exemplificada pela relação que as pessoas dessa sociedade têm com a magia, os curandeiros, também pela sucessão de

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mitos de origem matriarcal, que se intercalam com decorrer da narrativa, sempre colocando a África, mais especificamente os Montes Namuli, como o ventre do universo, que deu origem a tudo, como num ventre de uma mulher. Vamos tomar como exemplo a relação que José dos Montes tinha com Moyo: José dos montes apareceu numa breve visita para ver daquela boca o fluir da sapiência milenar dos patriarcas e projectar sobre ele a imagem do pai que nunca teve. Se meu pai estivesse vivo, seria assim tão bondoso como o Moyo, suspirava em silêncio. Moyo é uma pedra basilar de muitas vidas. Homem baixinho. Rechonchudo. Que maneja os objetos mágicos com as mãos de um artista, sem pressa, como se fosse seu todo o tempo do mundo. Com varinhas mágicas rendilhando vidas e almas de gente que vem de todos os ângulos para depositar-lhe nos ouvidos as mais incríveis confidências. [...] (CHIZIANE, 2008, p. 72).

Aspectos interétnicos O conceito de etnicidade tem um sentido amplo e heterogêneo, portanto torna-se um tanto complicado defini-lo com muita precisão. Usando os pressupostos de JOHNSON (1997), podemos considerar que é [...] um conceito que se refere a cultura e estilo de vida comuns, especialmente da forma refletida na linguagem, maneiras de agir, formas institucionais religiosas e de outros tipos, na cultura material, como roupas e alimento, e produtos culturais como música, literatura e arte.

Para Weber os grupos étnicos são esses grupos que alimentam uma crença subjetiva em uma comunidade de origem fundada nas semelhanças de aparência externa ou dos costumes, ou os dois, ou nas lembranças da colonização ou da migração,

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de modo que esta crença torna-se importante para a propagação da comunalização, pouco importando que uma comunidade de sangue exista ou não objetivamente (WEBER, [1921] 1971, p. 416 apud POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 37).

Logo, Barth considera que as distinções de categorias étnicas não dependem de uma ausência de mobilidade, contato e informação. Mas acarretam processos sociais de exclusão e de incorporação pelos quais categorias discretas são mantidas, apesar das transformações na participação e na pertença no decorrer de histórias de vidas individuais. [...] Em segundo lugar, [...] as distinções étnicas não dependem de uma ausência de interação social e aceitação, mas são, muito ao contrário, frequentemente as próprias fundações sobre as quais são levantados os sistemas sociais englobantes. A interação em um sistema social como este não leva a seu desaparecimento por mudança e aculturação; as diferenças culturais podem permanecer apesar do contato interétnico e da interdependência dos grupos (POUTIGNAT; STREIFF-FENART, 2011, p. 188).

De acordo com o que já foi abordado, é notável a manifestação de variadas características étnicas nas narrativas trabalhadas. Como os rituais de iniciação que os jovens têm que passar em Balada de amor ao vento (2003), eles fazem parte da tradição moçambicana desde os tempos mais remotos e consistem sumariamente em quatro fases, que são relacionadas: ao nascimento, à puberdade, ao casamento e aos momentos fúnebres (SILVA, 2009). Na primeira obra analisada, as quatro fases ficam evidentes, como na escolha dos nomes, que tem relação com os antepassados e cerimônias com curandeiros; o dia em que Sarnau conhece Mwando era de festa e ambos os jovens já tinham sido “iniciados”, a iniciação feminina acontece após a primeira menstruação, quando as mulheres estão prontas para procriar, são submetidas aos ensinamentos das mulheres mais idosas. Algumas tribos, inclusive, fazem tatuagens no corpo e no rosto, a sangue frio, para preparálas para os sofrimentos da vida, alguns rituais chegam a durar meses, consta de 156


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uma preparação para o casamento, onde elas aprendem o ofício de esposa e sua submissão ao sexo masculino. No caso dos homens No dia escolhido pelos mais velhos, os pais dos jovens rapazes entregam os seus filhos ao chefe da aldeia para participarem na [sic] cerimónia que se realiza num local especifico onde permanecem ao longo de 15 a 30 dias, vivendo e convivendo ao som da música e de danças tradicionais, passando por grandes periodos de ensinamentos feitos pelos mais velhos. A parte mais dolorosa está relacionada com o corte com uma faca, do prepúcio e a sangue frio, originando o derramamento de sangue, que é considerado sagrado, pois esse mesmo sangue, vai-se misturar ao sangue dos seus antepassados, tornando-se assim um membro produtivo da sua sociedade rural. O sangue é estancado com argila que cobrirá o orgão sexual. Em alguns locais (ex. Makondes) além do corte do prepúcio passam por momentos mais dolorosos onde são tatuados a sangue frio no rosto e no corpo. Depois dessa resistência à dor, os jovens são recebidos como membros aptos da tribo, estando preparados [para] enfrentar qualquer tipo de sofrimento e aptos para o casamento (SILVA, 2009).

No livro, podemos verificar a menção do ritual no trecho a seguir: Os tambores rufaram ao sinal do velho Mwalo, erguendo-se cânticos e aclamações. A porta da palhota abriu-se deixando sair cerca de vinte rapazes com aspecto pálido e doentio, provocado pelas duras provas dos ritos de iniciação. Os rapazes já tornados homens passavam entre alas como heróis. As velhotas aclamavam espalhando flores, dinheiro e grãos de milho que as galinhas se apressavam a debicar. Eu assistia ao espetáculo maravilhada quando descobri entre os rapazes um novo rosto (CHIZIANE, 2003, p. 13).

Para Medeiros (1995) todos os ritos de passagem tem como objectivo fundamental integrar o iniciado num novo status e numa nova dimensão ontológica da qual a 157


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morte também fazia parte. Além disso, os mesmos marcam a passagem da criança para a idade adulta e as preparam socialmente para o casamento e para as demais funções sociais (MEDEIROS, 1995, apud TALAPA, 2013).

As tatuagens que as mulheres moçambicanas carregam no corpo aparecem em ambas as obras. Em O alegre canto da perdiz, Maria das dores tem tatuagens lómwè, oriundas das montanhas, é possível ter uma ampla noção de sua importância no contexto da colonização: As tatuagens remontam ao tempo do esclavagismo, a velha sabe. Os povos africanos tiveram de carimbar os corpos com marcas de identidade. Cada tatuagem é única. É marca de nascença. No corpo, desenhando-se o mapa da terra. Da aldeia. Da linhagem. Em cada traço uma mensagem. Árvore genealógica. A tatuagem ajudou à reunificação dos membros da família, em São Tomé. Na América. Nas Caraíbas. Nas ilhas Comores, em Madagáscar, nas Maurícias e em outros lugares do mundo. Mudaramse os tempos, os africanos não precisam mais de tatuagens, terminou o tempo da escravatura (CHIZIANE, 2008, p. 31).

Elas também são citadas em Balada de amor ao vento (2003): “[...] Essa Phati, essa Phati, não sei que espécie de tatuagens ela tem no baixo-ventre para transtornar desta forma um homem a ponto de esquecer-se dos seus deveres” (Chiziane, 2003, p. 72), possuindo aspecto sensual. A hierarquia racial tanto no convívio social externo ao lar, como no seio familiar, é, em ambas as obras bem evidente, em Balada de amor ao vento (2003), Sarnau é a primeira esposa do rei Nguila, entretanto, quando a Phati chega a família, passa a ser a preferida por ter a pele mais clara, ele chega a passar cerca de dois anos sem dormir com a primeira esposa. Em O alegre canto da perdiz (2008), em pleno processo de colonização, havia a busca de “embranquecer” a raça. Nesta sociedade quanto mais clara a pele fosse, mais prestígio se tinha, tanto que se passou a ter preferências por gerar

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proles do sexo feminino, o que caracterizava uma cultura matriarcal, fato que passou a ter reflexos violentos na construção familiar. Nesta obra, como já foi dito, correlaciona-se três gerações, as quais desde a primeira, representada por Serafina, o estigma de se carregar a pele negra é apresentado, tanto que sua filha, Delfina, foi criada para procurar um marido branco, mudando inicialmente os rumos de sua história quando se apaixona por um negro, José dos Montes, porém, ela o abandona e casa-se com um branco, passando a ser mãe de filhos negros e mulatos. Delfina passa a segregar os filhos pelas cores de suas peles, a narrativa evidencia os impactos que isto causa às suas filhas Maria das Dores e Jacinta, respectivamente negra e mulata: Maria das Dores brincando com as pretas. Jacinta brincando com as mulatas. Em casa, Maria das Dores esfregava o chão e ela ficava a fazer os deveres da escola. Maria das Dores transportava lenha, cozinhava, limpava, e ela só brincava. Foi a partir desse momento que começou a olhar em volta. E viu que os negros eram muito negros. Que os brancos eram muito brancos. Diante dos pretos chamavam-lhe branca. E não queriam brincar com ela. Afastavam-na, falavam mal da mãe e diziam nomes feios. Diante dos brancos chamavam-lhe preta. Também corriam com ela, falavam mal da mãe e chamavam-lhe nomes feios (CHIZIANE, 2008, p. 247).

Antes de separar-se de Delfina, todavia, José dos Montes foi induzido por ela a ceder ao processo de assimilação, e aceita deixar para trás, assinando um documento oficial, toda a sua cultura. Ele torna-se um Sipaio. Ascende socialmente. Entretanto inicialmente não se adapta, tem constantes crises de identidade quanto à religião e com relação ao fato de passar a tirar as vidas de seus irmãos de etnia. Os rituais relacionados à morte e às crendices que os rodeiam têm grande importância em Balada de amor ao vento (2003), a protagonista narra uma série de sinais e presságios que antecedem as mortes do rei e da rainha, e também a forma como são enterrados, da forma como morreram – um de cócoras, a outra

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de joelhos – sob pena de que se não fosse feito desta forma haveria impactos na vida da aldeia. Há também uma grande relação com os antepassados e com os aspectos naturais dos ambientes em que habitam.

Considerações finais É notável a variedade de temáticas abordadas na obra de Paulina Chiziane, neste caso, ficou clara a diversidade de aspectos culturais e interétnicos que diferencia e paradoxalmente aproxima o modo de vida de pessoas dessa sociedade da nossa. Diferencia-se pelas tradições próprias àquele lugar, àquele povo. Aproximase na questão da influência que essas sociedades sofreram radicalmente do mundo ocidental, no período de colonização, passando, inclusive, pela imposição da cultura europeia espelhando o etnocentrismo que eles (os europeus) defendiam e na contribuição em nossa cultura. Os livros trabalhados neste artigo abrem espaço para diversas discussões acerca do mundo social africano e, apesar de serem baseados em narrativas fictícias, a dose de realismo e misticismo presente em ambos os conteúdos permitenos compreender os modos de vida e de pensamento inerentes àquele contexto, e também a influência que têm as tradições no modo de vida desse povo e como a contemporaneidade os afeta.

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BALADA DE AMOR AO VENTO E O ALEGRE CANTO DA PERDIZ: RELAÇÕES FAMILIARES INTERÉTNICAS

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Resumo Por muito tempo existiu a tentativa de naturalizar no imaginário mundial o fato de que a lógica desenvolvimentista foi uma etapa necessária para a configuração do progresso da humanidade. Essa ideia foi disseminada como truísmo, sobretudo pelas Ciências Sociais. Aliada a conceitos assimétricos como civilização/barbárie, dominador/dominado, centro/periferia, a lógica desenvolvimentista corroborou o projeto de “conquista” de sociedades com a pretensão de levar aos povos (tidos como) bárbaros o estatuto de civilizados. Pretende-se com este trabalho analisar, sob a perspectiva dos estudos culturais, os poemas de Evaristo (2008) e Ribeiro (2004), e averiguar se tais prerrogativas são sustentáveis e quais são os seus impactos no contexto latino-americano na contemporaneidade. Palavras-chaves: Dominação;América Latina; Evaristo; Ribeiro


CONCEIÇÃO EVARISTO E ESMERALDA RIBEIRO: SUBVERTENDO ASSIMETRIAS Roberta Maria da Silva Muniz1

INTRODUÇÃO “Nunca houve um momento da cultura que não fosse também um momento de barbárie...é por isso que é necessário escavar a história a contrapelo”(BENJAMIN, 1993). A posição que os países latino-americanos ocupam no cenário mundial de “colônias” até o século XVIII, países “subdesenvolvidos” no século XX, e “emergentes” nos dias atuais, após 500 anos de “História” e 200 de emancipação política, aliada à afirmações como as de Montaigne (1580 apud DUSSEL, 1994, p.179) “podemos llamarlos bárbaros con respecto a nuestras reglas de la razón, pero no con respecto a nosotros, que los rebasamos en toda especie de barbarie”, suscita indagações acerca da lógica desenvolvimentista tais com: sob que perspectiva conceitos dicotômicos como civilização/ barbárie foram instituídos? A partir de onde surgiram os mecanismos para o progresso? E ainda, quem é(são) o(s) sujeito(s) beneficiado(s) na lógica desenvolvimentista? O objetivo deste estudo é tentar responder esses questionamentos a “contrapelo”, como sugere Benjamin (1993 apud FIGUEIREDO, 2010, p. 166).

LÓGICA DESENVOLVIMENTISTA, UM PROJETO GLOBAL Há séculos existe a tentativa de naturalizar no imaginário mundial o fato de que a lógica desenvolvimentista foi uma etapa necessária para a configuração do

1. Mestranda em Teoria da Literatura pelo Programa de Pós-graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). Bolsista CAPES. roberttamunizz@gmail.com 163


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progresso da humanidade. Essa ideia foi disseminada como truísmo, sobretudo pelas Ciências Sociais. Aliada a conceitos assimétricos como civilização/barbárie, dominador/dominado, centro/periferia e progresso/atraso, essa lógica corroborou o projeto de “conquista” de sociedades com a pretensão de levar aos povos “bárbaros” o estatuto de civilizados. Expandidos através de um discurso dotado de uma pretensa neutralidade, tais conceitos funcionaram como mecanismos precípuos na propagação da modernidade. Nessa conjuntura, “conquista” deve ser entendida como afirmação de um “eu” autocriado e dominador ou, como argumenta Dussel (1994, p. 46) como a afirmação de um “‘Yo conquisto’ y ‘negación del Otro’ como otro”. Ressaltamos que o conceito de modernidade aqui não deve ser compreendido como um fenômeno europeu iniciado no século XVIII, mas como um fenômeno complexo que surge como uma condição “a partir da expansão europeia do século XVI, na ocidentalização que redefine o sistema-mundo a partir da consolidação dos projetos coloniais” (CORDIVIOLA, 2010, p. 10)2. Para tanto, os mecanismos de poder serviram com dispositivos na consolidação dessa lógica em escala mundial, dentre os quais o capitalismo desempenhou papel proeminente. A posição que os países latino-americanos ocupam no cenário mundial de “colônias” até o século XVIII, países “subdesenvolvidos” no século XX, e “emergentes” nos dias atuais, após 500 anos de “História” e 200 de emancipação política, aliada a afirmações como as de Montaigne (1580 apud DUSSEL, 1994, p.179) “podemos llamarlos bárbaros con respecto a nuestras reglas de la razón, pero no con respecto a nosotros, que los rebasamos en toda especie de barbarie”, suscita indagações acerca da lógica desenvolvimentista tais com: sob que perspectiva conceitos dicotômicos como civilização/ barbárie foram instituídos? A partir de onde surgiram os mecanismos para o progresso? E ainda, quem é(são) o(s) sujeito(s) beneficiado(s) na lógica desenvolvimentista? O objetivo deste estudo

2. (Cf. Mignolo (2003); Escobar (2005). 164


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é tentar responder esses questionamentos a “contrapelo”, como sugere Benjamin (1993 apud FIGUEIREDO, 2010, p. 166). De acordo com o sociólogo peruano Aníbal Quijano, a “naturalização” foi a base sobre a qual a cultura universal foi impregnada de mitologia e mistificação na elaboração de fenômenos da realidade (Cf. QUIJANO, 2000, p. 379). Durante décadas conceitos como civilização e barbárie foram naturalizados no imaginário mundial na tentativa de ratificar a modernidade enquanto projeto necessário para o desenvolvimento da humanidade. Aliado a essa pretensa naturalização, o conceito de “neutralidade” também foi utilizado como artifício na consolidação da empresa moderna. Assim, a assertiva de que a História foi, e ainda é elaborada partir de um ponto “neutro”, a partir de um “ponto zero”, como sugere Castro-Gomez (2005a, p.18 ) “un punto de vista sobre el cual no es posible adoptar ningún punto de vista”, foi internalizada como artifício. Entretanto, hoje é senso comum afirmar que todo discurso é localizado. Nesta conjuntura a pretensa neutralidade foi difundida para escamotear um ponto de vista específico no qual a História estava sendo construída, o ponto de vista eurocêntrico. Portanto, a lógica desenvolvimentista deve ser compreendida como mecanismo adotado através da perspectiva eurocêntrica que tinha como meta naturalizar no imaginário global seus projetos locais: constituir-se como poder hegemônico. Para tanto, utilizou dois mitos fundacionais como mecanismos de controle: a ideia de que a história da civilização humana, enquanto trajetória linear, parte de um estado de natureza e culmina na Europa percorrendo o sentido Oriente-Ocidente. O segundo complementa o primeiro e funciona quase como um silogismo, que é a ideia de que Europa é o ápice da civilização, e, portanto, o europeu é superior por natureza. Neste segundo mito fica implícita a ideia de “raça”, uma construção mental que, na concepção de Quijano (2005, p. 107) “expressa a experiência básica da dominação colonial e que desde então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade específica, o eurocentrismo”.

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Segundo Quijano (2005) através destes mitos será instituída a colonialidade do poder, um mecanismo de controle e domínio social pautado nas ideias de raça e trabalho, que teve início na América, no período colonial, mas não ficou restrito a esse período, pois perdura sob novas configurações até os dias atuais. Nessa perspectiva, os fenômenos modernidade /colonialidade são simultâneos e complementares, pois a colonialidade foi a condição para a modernidade se instituir. Além dos mitos supracitados, há ainda um terceiro que foi abordado com rigor nos estudos do filósofo argentino Henrique Dussel. Em 1492 El encubrimiento del outro hacia el origem del mito de La modernidad, Dussel constata que por trás do ideal emancipatório postulado sob os auspícios da razão ilustrada, havia um mito irracional que justificava a violência da dominação/colonização de povos realizada pelos europeus como uma etapa necessária para o desenvolvimento das sociedades bárbaras, pois enquanto tais estavam em um estágio de “imaturidade culpável” conforme havia formulado Kant em “Que é a Ilustração?”. A partir de então, a antiga distinção Velho Mundo (Europa ocidental)/ Novo Mundo foi implementada (Cf. DUSSEL,1994, p. 15). Na perspectiva do projeto desenvolvimentista o “eu” que está pauta é um “eu” homem, europeu e branco. Nessa conjuntura índio, negro e mulher, são (id)entidades excluídas e/ou inferiorizadas. Isso acarretou relações hierárquicas em escala global. No entanto, a contemporaneidade se torna testemunha da ampla contestação desse paradigma. De acordo com Castro-Gomez (2005b, p. 80) “A crise atual da modernidade é vista pela filosofia pós-moderna e os estudos culturais como a grande oportunidade histórica para a emergência dessas diferenças largamente reprimidas”. Em consonância com esta constatação, Dussel defende a necessidade da superação do “mito irracional” do encobrimento dos não-europeos, propiciando a “inclusión de la Alteridad negada: la dignidad e identidad de las otras culturas, del Otro previamente en-cubierto”. (DUSSEL, 1994, p. 74). De acordo com o filósofo argentino, a inclusão da “Razão do outro”, é a condição para combater

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a lógica excludente da modernidade. A superação dessa lógica ele denomina como “Transmodernidade”. (Idem). A concepção de transmodernidade na análise da condição latino-americana na contemporaneidade viabiliza uma abordagem da História não mais a partir de uma única perspectiva monotópica, hegemônica eurocêntrica e (acrescente-se norte-americana), mas propicia a inserção de uma perspectiva “pluritópica” para usarmos um termo formulado por Mignolo (2003, p. 42). A perspectiva pluritópica, longe de ser um eurocentrismo às avessas, se instaura como possibilidade de contradiscurso(s) viabilizando a inserção dos excluídos como índios, negros, mulheres, latino-americanos, africanos, judeus e asiáticos, na/da conjuntura hegemônica. Isso implica que a História seja (re)elaborada não mais a partir de uma perspectiva unidirecional. Sob a perspectiva pluritópica/transmoderna realizaremos uma breve análise de poemas de brasileiras na tentativa de elucidar seu papel de contradiscurso enunciado a partir de vozes que exprimem a subversão de uma tripla condição assimétrica: mulher, negra e latino-americana, questionando a colonialidade do ser e suas implicações no atual contexto latino-americano. Para tanto, selecionamos os poemas de Conceição Evaristo brasileira, poetisa, escritora, ensaísta, professora e ativista política que colabora através de publicações nos Cadernos Negros, um espaço emblemático de propagação da literatura produzida por afrodescendentes , um dos símbolos de união de diferentes organizações do movimento negro no Brasil. Dentre as inúmeras publicações de Evaristo citamos os romances Ponciá Vicêncio (2003) e Becos da memória (2006) e um livro de poemas : Poemas da recordação e outros movimentos (2008). Neste trabalho serão abordados os poemas: Recordar é preciso e Vozes-mulheres. Quanto à Esmeralda Ribeiro, além de colaboradora é também organizadora dos Cadernos Negros, jornalista, escritora e pesquisadora da literatura afro-brasileira. Dentre suas publicações destacamos Gênero e representação na literatura brasileira (2002) e Malungos e milongas (1988). Selecionamos para compor o nosso corpus de análise o poema Ressurgir das cinzas, publicado nos Cadernos Negros em 2004. 167


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ANÁLISE DO CORPUS Recordar é preciso Recordar é preciso O mar vagueia onduloso sob os meus pensamentos A memória vazia lança o leme: Recordar é preciso O movimento vaivém nas águas-lembranças Dos meus marejados olhos transborda-me a vida, Salgando-me o rosto e o gosto. Sou eternamente náufraga, Mas os fundos oceanos não me amedrontam E nem me imobilizam. Uma paixão profunda é a boia que me emerge. Sei que o mistério subexiste além das águas. (EVARISTO, 2008, p.9)

Uma leitura atenta do poema Recordar é preciso revela que o mar desempenha um papel preponderante e se torna figura metafórica de sofrimento pois reverbera uma questão traumática no inconsciente coletivo das sociedades colonizadas. Isso pode ser evidenciado se levarmos em consideração o fato de que foi através do mar que os europeus descobriram um “Novo Mundo”. Ademais, foi através do mar que os africanos foram transportados como mercadoria para serem escravizados e manter o lucrativo comércio transatlântico dos grandes impérios. Também foi o mar o local que abrigou os milhares de corpos de africanos descartados como mercadoria sem valor. Além disso, ele desencadeia o “vaievém das lembranças” e, enquanto espaço mnemônico, provoca lamento no eu-poético e propicia o derramamento de lágrimas que desde “os (meus)

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marejados olhos transborda(-me) a vida, salgando o rosto e o gosto”. Em uma conspiração cruel com o dominador, o mar atua como cúmplice se tornando o “entrelugar simbólico da diáspora negra, separando os africanos/afrodescendentes da África e ao mesmo tempo ligando a África ao Novo Mundo numa corrente de corpos” (WALTER, 2009, p. 140). Entretanto, em meio a tantas adversidades, o eu-poético não se deixa abater, pois é movido por uma força propulsora “uma paixão profunda” que não permite a subemersão, afinal “Recordar é preciso!”. A força admonitória do verso confere à lembrança um papel profícuo. Neste poema, lembrança constitui um ato político na medida em que funciona como denúncia de um passado atroz. Denúncia de uma história que, apesar da tentativa de Rui Barbosa, em 1890, de extinguir os algozes de um passado colonial, foi constituída por um passado manchado. Passado que continua vivo como força latente no inconsciente e que reverbera através do signo insurrecto na literatura brasileira, apesar da existência de forças que tentem imobilizá-lo, pois, com explicita Figueiredo (2010, p. 168-9) “A lembrança da escravidão como trauma da nação ficou recalcada [...] como as elites letradas brasileiras são brancas [...] a escravidão não constitui um tema maior”. Ainda de acordo com Figueiredo Os escritores que hoje se debruçam sobre a memória da escravidão pretendem justamente escrever a história a contrapelo e revelar a barbárie que estava incrustada no projeto colonial europeu, cujo discurso civilizatório encobria a exploração dos africanos aqui trazidos para trabalharem como escravos e a eliminação dos indígenas, considerados inaptos para o trabalho nos campos. (FIGUEIREDO, 2010, p. 166).

Recordar é preciso é a expressão da dor de um “eu” mulher, negra e latinoamericana que viveu/ vive experiência da colonialidade do poder. A reconstrução do impacto da colonialidade do poder na escrita de quem foi subalternizado, Maldonado-Torres (2007, p. 130) conceitua como “colonialidade do ser”.

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Vozes-Mulheres Vozes-Mulheres A voz de minha bisavó ecoou criança nos porões do navio. Ecoou lamentos de uma infância perdida. A voz de minha avó ecoou obediência aos brancos-donos de tudo. A voz de minha mãe ecoou baixinho revolta no fundo das cozinhas alheias debaixo das trouxas roupagens sujas dos brancos pelo caminho empoeirado rumo à favela. A minha voz ainda ecoa versos perplexos com rimas de sangue e fome. A voz de minha filha recorre todas as nossas vozes recolhe em si as vozes mudas caladas engasgadas nas gargantas.

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A voz de minha filha recolhe em si a fala e o ato. O ontem – o hoje – o agora. Na voz de minha filha se fará ouvir a ressonância O eco da vida-liberdade. (EVARISTO, 2008, p. 10-11)

O poema Vozes-mulheres através das “vozes mudas e engasgadas”, expressa paradoxalmente, os “silêncios e os rumores [que] constituem uma sinfonia transcultural de (não)-vozes” (WALTER ,2009, p. 140). Além de expressar o drama de quem sofreu, de alguma maneira, as consequências do tráfico de africanos, Vozes-mulheres exprime mais que um desabafo, um inquietante manifesto contra o excludente sistema capitalista que afeta cinco gerações “bisavó/avó/mãe/eu-poético e filha, que lamentavelmente, testemunham a perpetuação do mecanismo de domínio e controle denominado por Quijano de “colonialidade do poder”. Isso é nítido quando se percebe através dos terceiro, quinto e oitavo versos, que a evolução temporal foi assimétrica a evolução social, pois no passado a bisavó do eu-poético estava no “porão” do navio do colonizador, a avó permaneceu submissa ao senhor branco “detentor de tudo”, e no presente, a mãe está no “fundo das cozinhas alheias”. Evidenciado que o tempo passou, mas os mecanismos de dominação e controle permaneceram sob novas configurações. Este fato que persiste na América Latina é um legado da abolição da escravatura, pois não foi sucedida por políticas públicas que fomentassem as demandas dos “libertos”, o que teria contribuído para romper com a colonização de fato. Isso comprova que, apesar da abolição, a população negra continua presa aos grilhões do (neo)colonialismo.

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A transição do “porão” a “favela” explicita que na vida das protagonistas houve um deslocamento no tempo, mas não no espaço, pois elas permaneceram na condição de inferioridade e marginalidade, ratificando a constatação de Quijano ( 2005b, p. 124) de que “A colonialidade do poder ainda exerce seu domínio, na maior parte da América Latina”. Entretanto, Vozes-mulheres, manifesta também o anseio por mudanças, explícito nos últimos versos “Na voz de minha filha/se fará ouvir a ressonância/ O eco da vida-liberdade”. A aspiração por mudanças também é nítida se contrastarmos os “ecos” dos antepassados com “a fala e o ato” da atual geração. Explicitando que, apesar dos antagonismos impostos pelo sistema, ainda há esperança. No Brasil, é possível perceber a emergência de mudanças paulatinas no que diz respeito à elaboração de políticas públicas voltadas para os grupos tradicionalmente excluídos (negros, pobres e indígenas). Atos como os do Movimento Negro, por exemplo, a Marcha Zumbi dos Palmares realizada em 1995, vêm sensibilizando os governos na adoção de posturas com relação à discriminação racial. Atualmente, no contexto brasileiro, é nítida a preocupação do governo em atender, parcialmente, às demandas de afrodescendentes e indígenas. A título de ilustração citamos o Programa Diversidade da Universidade que visa promover o acesso de pessoas pertencentes aos grupos historicamente marginalizados ao ensino superior (Cf. FERREIRA, 2013, p. 363-4).

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Ressurgir das cinzas Ressurgir das cinzas Sou forte, sou guerreira, Tenho nas veias sangue de ancestrais. Levo a vida num ritmo de poema-canção, Mesmo que haja versos assimétricos, Mesmo que rabisquem, às vezes, A poesia do meu ser, Mesmo assim, tenho este mantra em meu coração: “Nunca me verás caída ao chão.” Sou destemida, herança de ancestrais, não haja linha invisível entre nós meus passos e espaços estão contidos num infinito túnel, mesmo tendo na lembrança jovens e parentes que, diante da batalha deixaram a talha da vida se quebrar, mesmo tendo saudade cultivada no portão, mesmo assim, tenho este mantra em meu coração: “Nunca me verás caída ao chão” . Sou guerreira como Luiza Mahin, Sou inteligente como Lélia Gonzáles, Sou entusiasta como Carolina de Jesus, Sou contemporânea como Firmina dos Reis Sou herança de tantas outras ancestrais. E, com isso, despertem ciúmes daqui e de lá,

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mesmo com seus falsos poderes tentem me aniquilar, mesmo que aos pés de Ogum coloquem espada da injustiça mesmo assim tenho este mantra eu meu coração: “Nunca me verás caída ao chão”. Sou da labuta, sou de luta, herança dos ancestrais, trabalhar, trabalhar, trabalhar, mesmo que nos novos tempos irmãos seduzidos pelo sucesso vil me traiam, nos traiam como judas sob a mesa, meu, ganha-pão. Mesmo que esses irmãos finjam que não nos vêem, estarei ali ou onde estiver, estarei de corpo ereto, inteira, pronunciando versos e eles versando sobre o poder, mesmo assim tenho esse mantra em meu coração “Nunca me verás caída ao chão”. Me abraço todos os dias, me beijo, me faço carinho, digo que me amo, enfim, sou vaidosa espiritual, mesmo com mágoas sedimentadas no peito, mesmo que riam da minha cara ou tirem sarro do meu jeito, mesmo assim tenho esse mantra em meu coração: “Nunca me verás caída ao chão”. Me fortaleço com os ancestrais, me fortaleço nos braços dos Erês. podem pensar que me verão caída ao chão, saibam que me levantarei 174


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não há poeiras para quem cultua seus ancestrais, mesmo estando num beco sem saída, levada por um mar de águas, mesmo que minha vida vire uma maré, vire tempestade, sei que vai passar. Porque são meus ancestrais que se reúnem num ritual secreto para me levantar. Eu darei a volta por cima e estarei em pé, coluna ereta, cheia de esperança, cheia de poesia e com muito axé. Por isso, desista, tenho este mantra em meu coração: “Nunca me verás caída ao chão. (RIBEIRO, 2004, p. 63-65).

Apesar de o poema ser composto por seis estrofes, por causa do exímio espaço, apenas a primeira será tomada para análise. O poema Ressurgir das cinzas, diferentemente dos outros poemas aqui analisados, exprime um elevado grau de otimismo. Apesar da consciência das adversidades pelo eu-poético, é nítida, nestes versos, a celebração à vida. Não é drama, nem tragédia, muito menos melancolia, o que reverbera nesses versos são “poema-canção” e “poesia”. Apesar da existência de forças antagônicas que desencadeiem “versos assimétricos” e “rabisquem a poesia do ser”, o eu-feminino persiste em afirmar: “nunca me verás caída ao chão”. Em Ressurgir das cinzas fica explícita a existência de forças conflitantes e antagônicas: uma externa, dotada de assimetrias e que tenta “rabiscar a poesia do ser”, e, outra interna, implícita no verso “trago nas veias sangue de ancestrais”,que se configura como forma motriz que impulsiona o eu-poético

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a jamais desistir. Tais versos podem ser interpretados com metáforas de um mundo regido por um sistema dotado de uma lógica polarizadora que inviabiliza o equilíbrio entre ele e os atores sociais, em que há uma tensão constante. Como o eu-poético é feminino, tomaremos como exemplo de “verso assimétrico” a trajetória da condição da mulher no Brasil. Em 1916, o Código civil institucionalizou a condição de subalternidade da mulher no casamento. Assim, era assegurada a relação hierárquica de gênero, onde o homem exercia o domínio. Contudo, no início do século XXI a adoção do modelo pós-neolibaral na América latina e sobretudo no Brasil, vem acarretando mudanças paulatinas no que diz respeito à adoção de políticas públicas que escutam os gritos das “guerreiras”, e procuram atender às demandas de desigualdade social dentre elas a demanda de gênero.Um exemplo disso é a reformulação do Código civil brasileiro no ano de 2002, estabelecendo direitos iguais no casamento. Além disso, em 2003, no início da gestão do então presidente Lula, houve a criação da Secretaria de Políticas para Mulheres (SPM), com o objetivo de promover políticas de igualdade de gênero. (Cf. OLIVEIRA, 2013, p. 324). A SPM tem trabalhado com o objetivo transversal. Nesta perspectiva, segundo Oliveira, transversalidade indica Olhares e ideias transversais, opondo-se às ações apenas lineares, longitudinais, horizontais ou verticais que, no geral, excluem a todos que estão na margem. A ideia do transversal tem sido apropriada como uma estratégia de ação política pela busca da inclusão e da igualdade. No âmbito da governabilidade, remete a processos de gestão institucional não mais centrados em paradigmas positivistas em relação às políticas para as mulheres. (OLIVEIRA, 2013, p. 326).

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É verdade que os Estados latino-americanos ainda não atingiram um patamar ideal de sociedade, uma sociedade livre de racismo, intolerância e injustiça; de certa forma existe a consciência disso pelo eu-poético onde os “versos assimétricos” evidenciam que há incompatibilidade entre a aspiração individual e realidade social. Contudo, a certeza de que carrega um “mantra no coração/ nunca me verás caída ao chão” demonstra a disposição de um eu ávido para contestação. É isso que caracteriza uma sociedade democrática, como sugere Laclau (2011, p. 150) “Uma sociedade democrática não é aquela em que o ‘melhor’ conteúdo domina sem contestação, mas aquela em que nada é alcançado de uma vez por todas e há sempre a possibilidade de questionamentos”.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Os poemas de Evaristo e Ribeiro explicitam um momento de turbulência e instabilidade nos paradigmas conservadores sob os quais a História foi pautada. Apesar de a sociedade atual ser testemunha de barbáries que persistem em acontecer, principalmente com grupos historicamente excluídos; concomitantemente, ela também é testemunha da transição de paradigmas. No caso do Brasil, as sociedades negras, indígenas bem como as questões de gênero, após anos de esquecimento, passaram a compor a pauta nas discussões. Vale salientar que isso não é fruto da bondade dos governantes, mas da perseverança e insistência da maioria dos excluídos. Através da literatura militante ou através da militância nas ruas, “as vozes” dos historicamente excluídos estão se fazendo ouvir na tentativa de subverter condições assimétricas legadas de uma descolonização inconclusa.

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Resumo A proposta para este trabalho visa a uma reflexão acerca do Ensino de Língua Portuguesa a partir da utilização de recursos didáticos selecionados da internet. Para tanto, serão avaliados os bancos de dados dispostos nas páginas digitais, que contemplam corpora nos quais se registra tanto a variação geográfica, quanto social. Por isso, propõe-se uma reflexão sobre os conceitos básicos da Geolinguística e da Sociolinguística, áreas responsáveis pelos dois tipos de variação, a partir de Labov (1972) e Chambers & Trudgill (1992), bem como a aplicação dos mesmos no Ensino de Língua Portuguesa (AGUILERA et al, 2004; CARDOSO & MOTA, 2006), com a exemplificação de bancos de dados encontrados na internet. No âmbito da Sociolinguística, serão apresentadas amostras do PEUL (do Rio de Janeiro) e do VARSUL; quanto à Geolinguística, usufruir-se-á de dados do Atlas Linguístico Sonoro do Pará e, a partir desses, será apresentada uma proposta metodológica para criação de um banco de dados linguísticos a se dispor na internet, baseado no falar pernambucano, de acordo com a pesquisa feita para o Atlas Linguístico do Estado. Palavras-chaves: Variação Linguística; Social; Geográfico; Internet; Banco de Dados.


ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E INTERNET: EM QUE CONTRIBUEM OS BANCOS DE DADOS (GEO)SOCIOLINGUÍSTICOS? Edmilson José de Sá1

INTRODUÇÃO Via de regra, o método utilizado para o ensino de Língua Portuguesa no Brasil não considera, particularmente, as variedades linguísticas, sejam de caráter regional, sejam de caráter social. O que se percebe é que tais variações são consideradas como erros do aluno, sendo, portanto, alvos de preconceitos e estigmas, fato que inibe a sua utilização em sala e, até mesmo, a omissão das mesmas nos livros didáticos, o que parece refletir no desconhecimento do docente quanto à importância da variação linguística para o ensino-aprendizagem da língua materna. Assim, o discente costuma se utilizar da internet para obter maior conhecimento da heterogeneidade da língua que ele fala, pois as variações estão presentes em todas as línguas, ou seja, ninguém ou nenhuma comunidade fala da mesma maneira o tempo todo. Para tratar a variação linguística, parte-se para algumas perspectivas quer visando à investigação de elementos externos como possíveis condicionadores de uma determinada construção em detrimento de outra, como a Sociolinguística, quer observando a distribuição das variantes no espaço geográfico, como ocorre com a Dialetologia, quando segue o método da Geolinguística. A descrição de dados vivos da língua falada tem sido possível a partir da criação de banco de dados linguísticos, mas esse recurso ainda é escasso, uma

1. Professor da Autarquia de Ensino Superior de Arcoverde, Mestre em Linguística (UFPE) e Doutorando em Letras (UFPB) 181


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vez que a disposição de uma página na internet bem estruturada requer recursos cada vez mais altos, o que agregado ao tempo, a torna dispendiosa também em relação à manutenção. Tomando como parâmetro a perspectiva de Bailey & Tillery (2004), a carência de pessoal gabaritado na organização de banco linguísticos e na exegese do corpus à luz dos veios estatísticos ainda contribui para que haja menos produtos de acesso. Assim, urge a necessidade de refletir sobre os bancos de dados já consolidados ciberneticamente, como o PEUL e o VARSUL, com seus corpora voltados para a divulgação da variação linguística sob a égide da Sociolinguística e o ALISPA, que traz a distribuição de variantes no Pará diatopicamente. Com isso, é lícito, ainda, apresentar como esses bancos podem ser úteis no ensino de língua portuguesa e como é possível construir bancos de dados especificamente sobre a fala de Pernambuco.

VARIAÇÃO E ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA Considerando o papel da variação linguística de qualquer modalidade, alguns teóricos se posicionam indistintamente e não hesitam em tecer comentários sobre problemas voltados para o ensino da Língua Portuguesa. Monteiro (2000, p.9), por exemplo, ao tratar de uma das linhas de investigação descritiva da linguagem, menciona que a sociolinguística: [...]tem sido uma área de ampla investigação nos últimos anos, cujos resultados se refletem não apenas nas descrições das línguas enquanto sistemas, mas também nas decisões políticas e educacionais exigidas pelas inúmeras questões que a diversidade linguística vem suscitando no mundo moderno. Tais questões, como, por exemplo a do fracasso escolar devido às dificuldades surgidas pelo pluridialetalismo, adquirem no Brasil um significado especial, face à situação em que se encontra o ensino das camadas mais baixas da população.

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ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA E INTERNET: EM QUE CONTRIBUEM OS BANCOS DE DADOS (GEO)SOCIOLINGUÍSTICOS?

O que se percebe é que o ensino de Língua Portuguesa no Brasil vem enfrentando os mesmos problemas já encontrados em outros países no que concerne ao ensino de sua língua materna. Deste modo, seja no Ensino Fundamental, seja no Ensino Médio, aqui se considera a ideologia do dom, da deficiência cultural e pouco se trata da ideologia cultural. Em contrapartida, a despeito dos cursos de graduação e especialização que buscam a primazia de um ensino voltado para o respeito às diferenças, os docentes parecem não estar aptos à aceitação das variedades linguísticas utilizadas pelo aluno, enquanto produtos de seu conhecimento de mundo. Isso deve ao fato de essas variedades terem ligação com a sua realidade regional, social e contextual, o que remete à preservação do preconceito linguístico, que leva o aluno se sentir rejeitado pessoal e socialmente por conta da sua forma de expressão linguística. A elaboração dos Parâmetros Curriculares Nacionais de 1997 busca resgatar as variedades dialetais e socioculturais, na iminência de uma compensação dos efeitos que a linguagem tida como desprestigiada surte nos alunos de determinada comunidade. Contudo, também se percebe que tais orientações não são seguidas à risca pelos professores do ensino básico. A respeito da problemática da variação dialetal apreendida pelo aluno ao chegar à escola, Lemle (1978) lembra que a meta do aluno é saber alterar um dialeto a depender da necessidade e cabe ao professor se conscientizar das regras que esse dialeto possui e transmiti-las adequadamente a ele. Tal perspectiva suscita a existência do multidialetarismo na sala de aula, ou seja, é o uso de diferentes variações ou dialetos a existirem na sala de aula. No dizer de Aragão (2010), é fato que o aluno é um caldeirão de “dialetos” [...] envolvendo, nessa mistura, os dialetos regionais, diatópicos, os sociais, diastráticos, nesses, os diageracionais, diagenéricos e estilísticos ou diafásicos. A esse respeito, Bittencourt (2003, pág.10) reforça que “[...] a escola não consegue produzir sozinha a igualdade, quando a sociedade é desigual”. Por isso, algumas mudanças são essenciais e devem ser aplicadas dentro da maior brevidade, pois é necessário transformar mentalidades, respeitar a cultura e a linguagem do aluno

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de Ensino Fundamental e Ensino Médio e a incumbência disso cabe à universidade, preparando adequadamente os corpos administrativo, docente e discente, a se juntarem à sociedade para o reconhecimento dessa nova visão de ensino de línguas.

OS BANCOS DE DADOS GEO(SOCIOLINGUÍSTICOS) JÁ EXISTENTES Quando se fala de banco de dados, vêm à tona os produtos desenvolvidos na Linguística de Corpus, uma vez que essa, segundo Sardinha (2004), é responsável por documentar dados reais, ou seja, entrevistas e leituras, preservando-as por meios digitais. Graças a isso, tem havido grande interesse por parte da escola em usufruir desses bancos, por conta das vantagens que eles podem trazer na identificação de fenômenos oriundos da fala espontânea e real do indivíduo. Na Sociolinguística, vários trabalhos resultantes de pesquisas que se consolidam em trabalhos de investigação científica, conclusão de curso, monografias, dissertações e teses, mas pouco se encontra na internet, em que a pese a infinidade de produções dispostas nos links das universidades, mas sem nenhum hiperlink com dados reais das pesquisas analisadas. Dentre os poucos bancos que resistem ao tempo, destacam-se os dados compilados pelo PEUL, abrangendo a Região Metropolitana do Rio de Janeiro e o VARSUL, que contempla os três estados do Sul do país. A sigla PEUL significa Programa de Estudos sobre o Uso da Língua e se trata de um projeto organizado por docentes da UFRJ, da UFF e da UFES, no intuito de criar um banco para possíveis análises da mudança linguística decorrente da fala dos cariocas, verificada a partir das informações decorrentes do passar dos anos. O PEUL foi criado a partir da perspectiva teórico-metodológica da Sociolinguística proposta por Labov (1972), agregando correntes linguísticas distintas, quais sejam: o Funcionalismo, o Gerativismo, a Gramaticalização e as questões discursivas. Esse projeto teve início com a amostra CENSO, contemplando gravações de 64 falantes cariocas Rio de Janeiro, realizadas entre 1980 e 1984. Os

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informantes atendiam a critérios diastráticos distribuídos equitativamente no gênero, mas abrangendo três níveis de escolaridade: os dois níveis do ensino fundamental (I e II) e o ensino médio. Idade

7-14 anos

15-25 anos

26-49 anos

+ de 50 anos

Sexo

H

M

H

M

H

M

H

M

EF-1

4

4

3

3

2

2

5

4

EF-2

4

4

3

2

3

3

3

2

EM

X

X

2

3

2

3

1

2

TOTAL

8

8

8

8

7

8

9

8

Quadro 1 - Distribuição da Amostra CENSO – 80

Após a realização das diagnoses, criou-se a página de consulta do PEUL, conforme disposto na figura abaixo, a partir da qual é possível verificar as amostras da língua escrita e da língua falada.

Figura 1 - Página do PEUL. Fonte: http://www.letras.ufrj.br/peul/

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No item relacionado ao banco de dados, há as amostras da língua falada e escrita coletadas nos anos 80, mas, para constatar a possível mudança linguística, acrescentou-se no período de 2002 a 2004, uma amostra de língua escrita, representada por textos jornalísticos de diversos gêneros. O exemplo abaixo contempla o início da pesquisa a um rapaz de 19 anos do bairro de São Cristóvão: E: Bom, eh: Alexandre, você falou que mora, né? aqui em São Cristóvão com seus pais... F: Isso. E: Quem mais? Seus irmãos, seu irmão? F: Meu irmão. E: Seu irmão, né? F: É. E: E o seu... com relação aos seus avós? F: [Eu:]...eu num conheci, eu só conheci mais [foi]...foi a minha vó, mas só que eu era muito pequeno ainda e num tenho muita lembrança dela. E: Num tem muita lembrança dela, né? mas ela era [de]...de Minas? F: Não, ela era de Santa Catarina. E: Santa Catarina, né? você <conhe...> já teve oportunidade de conhecê Santa Catarina? F: Já, já tive, já fui lá umas três vezes já. E: E você gostou? F: Gostei, muito bom lá. (Fonte: http://www.letras.ufrj.br/peul/cen00texto1.html)

Da escrita, foram inseridos textos jornalísticos quais sejam artigos de opinião, cartas, crônicas, editorial, horóscopo, notas de coluna social, notícias e reportagens. O VARSUL foi a sigla resultante do projeto Variação Linguística Urbana na Região Sul, construído nos anos 90 a fim de documentar o português falado nas áreas urbanas linguisticamente representativas dos estados do Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul, e da organização fazem parte corpos representativos 186


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das Universidades Federal do Paraná, de Santa Catarina, do Rio Grande do Sul e a Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. O corpus começou a ser coletado em 1990 e ainda hoje está sendo executado, contendo amostras representativas da fala de habitantes de 12 cidades, distribuindo quatro em cada estado da Região Sul, perfazendo 96 entrevistas por estado e chegando a 288 no total. A metodologia escolhida foi organizada com informantes escolhidos equitativamente pela dimensão diagenérica, com idade entre 25 a 50 anos e com mais de 50 anos, com escolaridade distribuída ente anos de estudo, até 5, até 8/9 e até 11/12 anos de escolaridade. Para melhor compreensão da metodologia dos informantes, o quadro seguinte teve o seguinte organograma: Idade

25-50 anos

Mais de 50 anos

Sexo

H

M

H

M

Escolaridade (5 anos)

24

24

24

24

Escolaridade (8/9 anos)

24

24

24

24

Escolaridade (11/12 anos)

24

24

24

24

TOTAL

72

72

72

72

Quadro 2 - Distribuição da Amostra VARSUL

Com a catalogação das entrevistas, foi criado o site, de modo a facilitar a consulta ao banco dados do VARSUL, conforme a figura abaixo:

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Figura 2 - Página do VARSUL. Fonte: http://www.varsul.org.br/

No link Banco de dados, é possível fazer o download de trechos pesquisados e de breves históricos dos pontos de inquérito, como mostra a figura abaixo:

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Figura 3 - Página do link para o Banco de Dados do VARSUL. Fonte: http://www.varsul.org.br/?modulo=secao&id=1

Como se observa na página do VARSUL, também é possível acessar os bancos de dados com amostra digital e amostra diacrônica, essa registrando recortes de jornais dos séculos XIX e XX. Do ponto de vista da Geolinguística, no Brasil, tem-se notícia de uma amostra do Atlas Linguístico Sonoro do Pará, organizado pelo professor Abdelhak Rasky da Universidade Federal do mesmo estado. Na página do Atlas Linguístico do Pará, ainda em construção, contemplam-se dados metodológicos, pesquisas já realizadas e algumas amostras reais, como se verifica na figura seguinte. No link referente à cartas linguísticas, o mapa do Pará possui espaços para as realizações em cada ponto de inquérito. Ao lado, também há a possibilidade de escolher que perfil de informante se quer verificar os dados investigados. Na figura do ALiPA, também é possível contemplar um exemplo das realizações da palavra ‘noite’ na fala de informantes masculinos que têm entre 18 e 30 anos. O item em evidência representa a ocorrência da pronúncia registrada em Santarém. 189


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Figura 4 - Página do link para o Banco de Dados do ALiSPA com as ocorrências para a palavra ‘noite’. Fonte: http://www.ufpa.br/alipa

CONTRIBUIÇÕES DOS BANCOS DE DADOS (GEO) SOCIOLINGUÍSTICOS PARA O ENSINO DE LÍNGUA PORTUGUESA: ALGUMAS INSINUAÇÕES A concepção de variação regional, conforme já mencionado, compete à dialetologia, que busca estabelecer relações entre modalidades do ensino da língua ou de várias línguas, seja pela identificação dos mesmos fatos, seja pelo confronto presença/ausência de fenômenos considerados em diversas áreas, como preconiza Cardoso & Mota (2006): Se a intenção de localizar os fatos linguísticos nos espaços geopolíticos é uma constante na história dos estudos dialetais, a preocupação com as características sociais dos informantes e a sua relação com o uso que fazem da língua não tem passado à margem dos objetivos da Dialetologia e, em particular, da Geografia Linguística. 190


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Já nas primeiras páginas, a matriz curricular do Ensino Médio procura apontar a heterogeneidade da língua e as funções que ela possui. No caso da variação fonética, por exemplo, verifica-se a sua influência na fala e na escrita dos alunos. Na prática, porém, a língua falada diverge da que é ouvida rotineiramente na mídia ou na sociedade, o que pode ser decorrente do fato de as línguas serem sistemas dinâmicos e extremamente sensíveis a fatores como a região geográfica, o sexo, a idade, a classe social dos falantes, além do grau de formalidade usado durante os atos de fala. Assim, percebe-se quão úteis podem ser os bancos de dados linguísticos disponíveis da internet para confirmar essa percepção sobre a língua falada e escrita. No entanto, a variação na língua tem gerado antagonismos acentuados na escola, uma vez que as classes sociais presentes seguem a visão estereotipada de se manterem historicamente ausentes de qualquer formação pedagógica. Nesse ínterim, a escola e, particularmente, o professor de língua materna talvez não tenha a consciência necessária de que os alunos não dominam um vocabulário melhor e também não entendem que sua forma de expressão linguística advém de uma herança cultural do grupo social a que pertencem. É fato que muitas pesquisas sobre o fracasso escolar, sobretudo nas localidades que não constituem grandes centros urbanos, demonstram que uma das dificuldades se constitui no âmbito da linguagem. O resultado, então, é a existência de preconceito por parte dos estabelecimentos de ensino e a desvalorização das diferenças dialetais. Isso ocorre exatamente pela imposição de uma variedade padrão imposta pela escola e pelo estigma do que é considerado não-padrão. Assim, convém a escola exponha durante a aula de Língua Portuguesa que a fala também surge em espaços distintos, momentos diferentes, conjuntura diversas e histórias de vida nada semelhantes, mas que desenvolvem falantes diferentes. Falar diferente, pois, não significa que se está falando errado. Isso se confirma na distribuição das ocorrências que são disponibilizadas nos bancos (geo)sociolinguísticos.

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O conhecimento da heterogeneidade da língua instiga, portanto, o respeito à fala do aluno, deixando-os livres para se expressarem em seu dialeto, sem, contudo, abstê-los de conhecer a forma mais valorizada socialmente. Sugere-se, portanto, que o professor, ao apresentar os bancos de dados, enfatize as variedades encontradas como uma riqueza da língua falada. Na perspectiva fonética, pode-se partir para a maneira de pronunciar palavras do tipo “prufessor” , “eu me alembro” , “cardeneta” , “pobrema”, “estrupo”, “mendingo”. Considerando, ainda, os elementos históricos e culturais nas páginas dos bancos de dados, concorda-se com Cardoso & Mota (2006), ao aludir a necessidade de o professor compreender o quadro histórico-social do país e a necessidade do conhecimento sistemático e geral da realidade linguística brasileiro e, no mesmo pensamento Aguilera et alli (p.19, 2004) considera necessário difundir um ensino adequado ao caráter pluridimensional do país, que exige, sem mais demora, um esforço coletivo na tentativa de concretizar estudos mais amplos que levem a esse conhecimento global.

BANCO DE DADOS DO PROJETO ALiPE: A PROPOSTA CIBERNÉTICA O Atlas Linguístico de Pernambuco (ALiPE) está sendo concluído com base nos dados registrados nos inquéritos realizados em vinte pontos de inquéritos distribuídos demograficamente em todo o Estado. Segundo a metodologia do ALiB, o atlas linguístico nacional, foram entrevistadas 80 pessoas, com perfil organizado a partir do gênero, de duas faixas etárias (18 a 30 e 50 a 65 anos) e escolaridade inferior ao 6º ano do Ensino Fundamental. Somam-se a esses informantes, quatro pessoas com curso superior completo e moradores da capital do Estado, no intuito de verificar até que ponto a escolaridade influencia na variação da língua falada pelos pernambucanos. Aos informantes, foi aplicado um questionário de 461 perguntas para averiguação de aspectos fonéticos, morfossintáticos, léxicos, pragmáticos e prosódicos.

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Como produto do trabalho, foram construídas 105 cartas linguísticas, sendo 48 cartas fonéticas, 48 cartas léxicas, 1 carta semasiológica e 8 cartas morfossintáticas. A organização do corpus contempla fichas da localidade, ficha do informante, gravações dos inquéritos, criação de tabelas com os resultados de cada pergunta realizada e as cartas construídas com base nas ocorrências mais produtivas. Pretende-se, portanto, após a apresentação do Atlas, que se crie um programa virtual nomeado provisoriamente de PROJETO VALPE, a ser composto pelo banco de dados catalogado dos inquéritos do ALiPE e as cartas linguísticas, com a possibilidade de inserir, ainda, trabalhos de pesquisa, publicação de produções escritas e o aprimoramento do banco com pesquisas mais recentes seja nos pontos de inquérito já usados no projeto, seja pontos que não o contemplam. Como o atlas seguiu a metodologia da Geolinguística Pluridimensional (THUN & ELIZAINCÍN, 2000), ou seja, os dados são distribuídos no mapa de acordo com as dimensões diastráticas escolhidas para a diagnose (gênero, faixa etária e escolaridade), usou-se o modelo de apresentação das ocorrências em forma de cruz, como exemplificado na figura abaixo.

Figura 5 - Carta experimental com ocorrências lexicais para pega-pega em Pernambuco

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CONCLUSÃO A construção de banco de dados, conforme exposto, não é um recurso recente de preservação de dados, pois já se tem notícia de registro de dados coletados desde os primórdios da língua portuguesa falada no Brasil, a partir de relatos informativos deixados pelos primeiros colonizadores, o que tem contribuído sobremaneira para a compreensão da história do país. No que concerne à questão linguística, a contribuição não foi diferente. Porém, nos idos dos anos 70, passaram a usufruir de elementos sonoros gravados com recursos disponíveis na época e que têm sido bastante válidos para a preservação de marcas linguísticas e para compreensão da mudança linguística que os dados permitem analisar. É fato que hoje se vive num mundo de grandes avanços tecnológicos, incluindo os computadores, videogames, ipods da vida. Assim, percebe-se que a catalogação de dados têm ido além das prateleiras e gavetas dos pesquisadores e, ultimamente, com a evolução dos gêneros midiáticos para o ensino da língua materna, os corpora estão sendo usados na sala de aula, de modo a dirimir a mesmice existente nos livros didáticos repetitivos e que, normalmente, não tratam da linguística eminentemente descritiva, o que suscita a necessidade de que a metodologia de ensino precisa ser repensada. Cabe, pois, aos professores de Língua Portuguesa a consciência de que a manutenção de uma linguagem seja delimitada diatopicamente, seja influenciada por veios diastráticos é necessária para quebrar a hegemonia responsável pela predominância da forma culta, não para limitá-la, mas para a aplicação conjunta, resultando numa espécie de “bidialetalismo” ou até “multidialetalismo” na escola. Os bancos de dados preservados na internet têm, então, a contribuição para atingir esse objetivo e a possibilidade de ratificar que o português – ou qualquer língua que exista – jamais será heterogênea.

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REFERÊNCIAS AGUILERA, Vanderci et alli (Org.). Documentos 1. Projeto Atlas Linguístico do Brasil. Salvador: EDUFBA, 2004. ARAGÃO, Maria do Socorro Silva de. Variantes diatópicas e diastráticas na língua portuguesa do Brasil. Graphos. João Pessoa, Vol. 12, N. 2, Dez./2010. BAILEY, G.; TILLERY, J. Some sources of divergent data in Sociolinguistics. In: FOUGHT, C. Sociolinguistic Variation: Critical Reflections. New York: Oxford University, 2004. p. 11–30. BITTENCOURT, Agueda B. “Como será a educação da próxima geração.” In: Folha [Sinapse]. Folha de São Paulo, 26 de julho de 2003, p. 10. CARDOSO, Suzana &; MOTA, Jacyra (Orgs.). Documentos 2. Projeto Atlas Linguístico do Brasil . 1ª ed. Salvador: Quarteto Editora. 2006. LABOV, W. Language in the inner city. Philadelphia: University of Pennsylvania Press, 1972. LEMLE, Miriam. Heterogeneidade dialetal: um apelo à pesquisa. Tempo brasileiro. Rio de Janeiro: 953/54): 69-94, abr./set. 1978. MONTEIRO, José Lemos. Para compreender Labov. Petrópolis: Vozes, 2000. SARDINHA, T. B. Linguística de Corpus. Barueri, SP: Manole, 2004. THUN, Harald & ELIZAINCÍN, Adolfo. Atlas diatópico y diastrático del Uruguay (ADDU), I, 1-2, Kiel: Westensee-Verlag, 2000.

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Resumo Os trabalhos sobre o ensino de literatura fornecem possibilidades metodológicas com as quais o texto literário pode ser utilizado em sala de aula. Considerando isto, este trabalho propõe-se a apontar possibilidades de abordagem da literatura de temática negro brasileira. O objetivo é, a partir da leitura de contos, apresentar aos alunos a representação do negro na literatura dessa temática, e quais condições se assemelham com as do negro em nossa sociedade, bem como divulgar autores que escrevem sobre essa temática e seus textos. Além disso, pretendese apresentar uma proposta que envolve a criação de um blog, o qual servirá como ferramenta de divulgação das atividades referentes ao trabalho com os textos literários de temática negro brasileira, e como forma de mostrar uma possível desconstrução de preconceitos e estereótipos dos alunos com relação à etnia negra. Como fundamentação teórica, este trabalho utilizará Amâncio (2008) quanto à questão do ensino de literatura afro-brasileira; Aguiar e Bordini (1988) sobre a formação do leitor literário; Cosson (2006) para falar sobre o letramento literário; e Wendel Freire (2008), que trata do uso da tecnologia no âmbito escolar. Palavras-chaves: Literatura afro-brasileira; Ensino; Mídias sociais.


ENSINO DE LITERATURA AFRO-BRASILEIRA: REPRESENTAÇÃO DO NEGRO E O USO DAS TECNOLOGIAS Francielle Suenia da Silva1 Márcia Tavares Silva2

INTRODUÇÃO O ensino de Língua Portuguesa no Nível Médio tem como objetivo apresentar aos alunos novas linguagens, textos, perspectivas de leitura mais aprofundadas com o propósito de ampliar o conhecimento de mundo dos educandos, além de estimular um processo de consciência crítica no qual os sujeitos participantes aliem às práticas do cotidiano os conhecimentos adquiridos em sala de aula, de forma que diversos temas e conteúdos sejam abordados por diferentes práticas pedagógicas que os auxiliem nas diversas relações interpessoais e científicas. O aluno, principalmente o que está inserido na última fase do ensino básico, tem o direito de conhecer várias formas de pensamento e culturas, para que possa desenvolver seu censo crítico e, dentro dos padrões sociais vigentes, exercer sua cidadania. É necessário, portanto, abordar no contexto escolar diversas culturas a fim de promover mais eficazmente o crescimento intelectual do indivíduo. Com base na pluralidade de etnias e de pensamentos, além de visar um crescimento intelectual e crítico dos jovens, as leis educacionais, como a 10.639/03 e a 11.645/08, que completa a anterior, incluem, obrigatoriamente, no currículo oficial da Rede de Ensino a temática “História e Cultura Afro-brasileira e Indíge-

1. Professora de língua portuguesa da rede particular de ensino, na cidade de Campina Grande. Mestranda no Programa de Pós-graduação em Linguagem e Ensino, na Universidade Federal de Campina Grande. E-mail: franciellesu@gmail.com. 2. Professora da graduação do curso de Letras e do Programa de Pós-graduação em Linguagem e Ensino, na Universidade Federal de Campina Grande. Doutora em Literatura Brasileira. E-mail: tavares.ufcg@gmail.com. 197


Anais Eletrônicos - XI EELL

na”. Essas leis federais possuem, também, o objetivo de dar visibilidade a essas culturas, visto que a escola é um ambiente no qual podemos encontrar as mais diversas formas de expressão cultural, em que os jovens são os responsáveis pela divulgação dessas diferenças através do modo de falar, vestir, do que ouvem, assistem, comentam, entre outros. A linguagem literária oferece subsídios que auxiliam o leitor de literatura a construir meios para compreender questões, não só as apresentadas pelo texto, mas também como isso pode refletir em situações do cotidiano. No caso da leitura de literatura de temática negra, o aluno-leitor, ao atribuir sentidos ao texto, pode observar até que ponto os aspectos sociais e históricos trazidos pela literatura se aproximam de sua realidade e como isso o relaciona aos sujeitos tratados pela temática afro. Este trabalho surgiu a partir dos trabalhos realizados no projeto Literatura e Afro descendência: O que há por trás disso?, financiado pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação à Docência – PIBID, na Universidade Estadual da Paraíba durante os anos 2010-2012. O projeto, realizado em uma escola pública da rede estadual de ensino, na cidade de Campina Grande, teve como alicerce o ensino de língua portuguesa, através do qual pôde apresentar, discutir e promover uma consciência da realidade social, política e econômica do cidadão afro-brasileiro, que tanto influenciou a nossa identidade cultural, a fim de que o aluno conhecesse a cultura, aprendesse as diversas formas de representação e exercesse a sua cidadania enquanto sujeito estabelecido na sociedade. Com isso, o projeto atendeu a um dos objetivos gerais do ensino de Língua Portuguesa apresentado pelos Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba (2006, p. 31), no que se refere à “construção da consciência e identidade social, a partir da interação com o outro, com outras formas de pensar”. Para este trabalho, delimitaremos algumas atividades realizadas no primeiro semestre do projeto, que compreendeu o período de março a junho de 2011. Este artigo terá como textos de análise os contos Solar dos Príncipes, que se encontra no livro Contos Negreiros, de Marcelino Freire e Boneca, que está no

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ENSINO DE LITERATURA AFRO-BRASILEIRA: REPRESENTAÇÃO DO NEGRO E O USO DAS TECNOLOGIAS

livro Negros em Contos, de Cuti. Ambos os textos abordam questões socioeconômicas e culturais. Nosso trabalho tem como finalidade apresentar aos alunos como os cidadãos afro-brasileiros foram representados nesses contos, a partir da leitura e de atividades que abordem essas questões. Além disso, tentaremos mostrar como as condições apresentadas se assemelham com as do negro em nossa sociedade; divulgar autores que escrevem sobre a temática afro-brasileira; e, por fim, apresentar uma possibilidade de utilizar mídias sociais, a exemplo do blog como ferramenta de divulgação de atividades e fomentador de uma possível desconstrução de preconceitos e estereótipos com relação à etnia negra. A relevância deste trabalho reside no fato de dar visibilidade à literatura de temática afro-brasileira, bem como o de apresentar aos jovens educandos uma das culturas formadoras da sociedade brasileira. É importante também, por trabalhar a temática a partir da literatura baseando-se na leitura e recepção dos textos por parte dos alunos, propiciando o surgimento de uma consciência étnico-racial, pois, como nos apresenta Candido (2006, p. 30) a arte é social nos dois sentidos: depende da ação de fatores do meio, que se exprimem na obra em graus diversos de sublimação; e produz sobre os indivíduos um efeito prático, modificando a sua conduta e concepção do mundo, ou reforçando neles o sentimento dos valores sociais.

Sendo assim, a arte literária, a partir de seu caráter social que vai além da escrita dividida por temáticas, apresenta um prisma social que pode produzir nos indivíduos uma mudança no agir, pensar e observar a sociedade e o local onde vive; podendo tornar-se o leitor um agente crítico, participativo e modificador de sua realidade.

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FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA A literatura, subdividida em suas várias formas de representação e recriação da realidade, é um importante subsídio para o professor em suas aulas, pois compreende questões de ordem social, intelectual, ideológica e linguística de várias épocas e culturas, além de suas modalidades discursivas que se diferem de um gênero literário a outro. Para que o aluno tenha um contato efetivo com a literatura e possa se despertar para leitura literária é preciso que os textos literários ocupem lugar de destaque nas aulas de literatura, por serem capazes de suscitar criticidade e reflexão social a partir da palavra. Tanto a leitura do texto literário quanto a prática da interpretação é um ato coletivo. Isso ocorre pelo fato de o aluno aplicar ao texto as outras vozes que o rodeiam em seu contexto social, o que ajuda a “analisar, interpretar e aplicar os recursos expressivos das linguagens, relacionando textos com seus contextos, mediante a natureza, função, organização, estrutura das manifestações, de acordo com as condições de produção/recepção” (PCN, 2000, p. 14). Os suportes utilizados para a divulgação dos textos produzidos pelos alunos, também influencia no resultado da escrita. Hodiernamente, temos os gêneros digitais como ferramenta de divulgação das atividades dos alunos que, de certa forma, os incentivam a ler, interpretar e produzir textos. Dessa forma, a escola deve fazer uso dessas novas formas para que haja a “legitimação de um fenômeno real porque participante de um processo real de interação” (FARIAS, 2012, p. 96) já que os alunos estão inseridos nesse contexto digital e fazem uso constante de blogs, twitter, facebook, entre outros. A partir de uma boa seleção de textos feita pelo professor e com aulas dinâmicas de leitura dos textos literários, o aluno chegará à conclusão de que O ato de ler é, portanto, duplamente gratificante. No contato com o conhecido, fornece a facilidade da acomodação, a possibilidade de o sujeito encontrar-se no texto. Na experiência com o desconhecido, surge

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a descoberta de modelos alternativos de ser e de viver. A tensão entre esses dois polos patrocina a forma mais agradável e efetiva de leitura (AGUIAR E BORDINE, 1988, p. 26).

A escola, a partir de práticas como a apresentada anteriormente, faz com que seu aluno tenha subsídios para fazer uma leitura crítica e consciente dos textos literários, e não mais uma leitura superficial desses textos, bem como apresentar no modo escrito e nos mais diferentes suportes, as interpretações feitas dos textos. Além disso, é importante saber como processo de fragmentação como recurso nas aulas com textos narrativos pode auxiliar os professores (no ensino de literatura), e os alunos (na leitura e compreensão dos textos). Pautado numa estratégia de fragmentação que promova aos alunos/leitores subsídios que os façam construir os significados do texto, o professor pode utilizar-se desse recurso “com o objetivo de não superficializar a leitura do texto, e, ao mesmo tempo, responder às exigências de tempo e espaço que a realidade da sala de aula impõe ao professor” (DE PIETRI, 2007, p. 73). A partir do fragmento que foi selecionado do texto narrativo, seja ele conto, romance ou novela, são elaboradas questões que auxiliem tanto na compreensão quanto na abordagem do gênero literário, além de explorar os conhecimentos prévios de cada aluno. Uma das formas de se trabalhar com esse método é a elaboração de hipóteses. Ao exibir aos alunos apenas uma parte do texto, o professor pode fazer-lhes perguntas, como, por exemplo, de que forma essa informação ajudou a descobrir/antecipar o desenvolvimento do texto. O trabalho com a fragmentação a partir de hipóteses pode remeter a aspectos extratextuais, como questões históricas, sociais, políticas e ideológicas, que, ao serem levantadas, ajudam o aluno na compreensão do texto de caráter narrativo. O objetivo do professor ao escolher os textos para o ensino de literatura com base na estratégia de fragmentação e elaboração de hipóteses deve ser o de “ensinar ao leitor em formação como resolver os problemas que o texto apresenta ao leitor em seu trabalho de construção de sentidos” (DE PIETRI, 2007, p. 56).

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Através do ensino de literatura, o professor é capaz de iniciar uma desconstrução de estigmas presentes na sociedade a qual os alunos estão ligados. A presença da literatura afro-brasileira nas salas de aula pode promover uma desconstrução dos estereótipos que envolvem os afrodescendentes brasileiros, sendo os professores e os autores dos textos também fundamentais para essa desconstrução. Os escritores por mostrarem que, no papel de vítima ou de coadjuvante na literatura, este sujeito passa a militar de forma direta, escrevendo e atuando na e pela sua história. E os professores, por trazerem para a sala de aula os estudos da afrodescendência, permitindo que “educandos e educadores interajam com a cosmovisão do africano, sua concepção do universo, da vida e da sociedade” (AMÂNCIO, 2008, p.43).

Conto O conto, enquanto texto literário pertencente ao gênero narrativo, pode ser utilizado pelo professor em sala de aula de forma que o aluno/leitor apreenda as intenções do texto e, antes disso, atenda às necessidades de leitura desta narrativa? Ao trabalhar o conto na sala de aula, o professor poderia iniciar seu aluno na leitura de uma narrativa literária curta, seja na forma clássica ou moderna, maravilhoso ou não, uma vez que, pela brevidade, em sua maioria, pelo enredo, pelas personagens e por ter um ponto alto independente, no desfecho, ou por todo o conto, desperta mais facilmente o interesse do seu alunado. A leitura de um conto mais complexo requer do aluno maior maturidade de leitura literária e maior capacidade de reflexão para apreender não só a ideia principal do texto apresentada pelo narrador, mas sobretudo para lidar com as diversas formas de como um conto literário pode ser construído. Dessa forma, o professor coloca o aluno em contato a diversidade com a qual um mesmo gênero literário pode ser escrito, dependendo da época e do autor. Existem características do conto que o professor pode trabalhar com seus alunos em sala de aula. A linguagem, uma dessas possibilidades, é caracterizada

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por ser, na maioria das vezes, objetiva, uma vez que o “contista condensa a matéria para apresentar os seus melhores momentos” (GOTLIB, 2006, p. 64). Assim, o professor trabalha a disposição das ações no conto e qual sua relação com a ideia central do texto. Além disso, o trabalho com a linguagem desse texto literário é importante por trazer implícitos e repetições que auxiliam na interpretação da obra, fazendo com que, desse modo, os alunos se tornem leitores atentos que atribuem aos textos os efeitos de sentido possibilitados pela leitura, como sugerem os Referenciais Curriculares para o Ensino Médio da Paraíba (2006). A partir de um trabalho consciente com a leitura dessas narrativas em sala de aula, o professor atua diretamente na vida social do seu aluno, pois contribui para a expansão da leitura de mundo desse sujeito, ampliando, também, a capacidade de ele interferir e atribuir sentidos aos demais textos que porventura leia.

EM BUSCA DE UMA IDENTIDADE AFRO-BRASILEIRA: A SALA DE AULA E O PROCESSO DE VALORIZAÇÃO CULTURAL A temática afrodescendente se encontra nas mais diversas expressões artísticas e em muitas formas pelas quais o homem apresenta sua realidade. Porém, para que essa temática tenha visibilidade e espaço nas escolas, é necessário que os professores tenham conhecimento sobre a cultura afro-brasileira e saibam uma maneira de como implantá-la nas suas aulas, de modo que o conteúdo e a temática estejam juntamente contribuindo para o crescimento dos alunos. Para isso, os professores ainda precisam pesquisar sobre a cultura afrodescendente, além de coletar o corpus a ser trabalhado com os alunos. É dever da escola promover esse tipo de conhecimento para seu público e incentivar seus professores, tanto com base na lei 10.639, quanto pelas próprias atitudes sociais e históricas enraizadas nessa questão, porque mais que pensar a reorganização das disciplinas há que se pensar como o cotidiano escolar – em seus tempos, espaços e relações – pode ser visto como um espaço coletivo de aprender e conhecer, respeitar e valorizar 203


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as diferenças, o que é fundamental para a construção da identidade dos envolvidos no processo educacional (ORIENTAÇÕES E AÇÕES PARA EDUCAÇÃO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS, 2006, p. 79).

Para que a construção da identidade dos alunos possa estar fundamentada na valorização das diferenças, a escola, por meio de políticas próprias e de projetos pedagógicos, precisa ser a base para o princípio do pensamento de cidadão do estudante. No estudo da língua portuguesa, a temática afrodescendente pode ser abordada tanto no eixo dos gêneros textuais quanto dos gêneros literários, pois essas duas esferas abrangem inúmeros temas, períodos e contextos históricos, além de serem suportes para um diálogo entre as culturas, trazendo, através das leituras e discussões de textos, sejam eles literários ou não, uma contribuição no tocante à divulgação e valorização da cultura afro-brasileira por fomentar o debate em torno desse tema entre os alunos-cidadãos. Além disso, fornecem materiais que, a partir de um uso reflexivo e orientado, irão propor a desconstrução dos estereótipos acerca do negro no Brasil. Uma das competências propostas para o ensino da língua portuguesa no ensino médio pelos PCN (2000, p. 24) é a de “considerar a Língua Portuguesa como fonte de legitimação de acordos e condutas sociais e como representação simbólica de experiências humanas manifestas nas formas de sentir, pensar e agir na vida social”. Desse modo, o professor de língua portuguesa, ao inserir a temática afro-brasileira em suas aulas, contribuirá para o crescimento histórico, intelectual, étnico-racial e social do seu aluno, como também colaborará para uma diminuição do preconceito existente contra os negros, que não é apenas de caráter econômico, mas também de caráter racista. O ensino de língua portuguesa, aliado ao estudo da temática afro-brasileira, torna-se um instrumento político-ideológico de luta pela causa negra e de reconhecimento da importância e contribuição do povo afrodescendente para nosso país. Isso possibilita que os alunos, ao se conscientizarem de seu papel

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de agentes multiplicadores e transformadores da parcela da sociedade na qual convivem, insiram esse aprendizado em suas práticas sociais para que haja uma valorização não apenas da cultura afro-brasileira, mas também das demais culturas não privilegiadas pelo espaço escolar, como, por exemplo, a indígena e a dos ciganos.

ANÁLISE DOS DADOS A sequência didática produzida para as aulas sobre o gênero literário conto teve como objetivos analisar de que forma o afro-brasileiro estava representado nos textos lidos; proporcionar estratégias de leitura que fizessem com que os alunos conseguissem superar as dificuldades apresentadas pelos contos; e apresentar aos alunos textos literários de autores pouco conhecidos. Os textos foram escolhidos através do eixo temático afrodescendência e envolviam o afrobrasileiro sob os aspectos da situação socioeconômica e mercado consumidor. As atividades aqui analisadas estão publicadas no blog <www.literaturaeafrodescendencia.blogspot.com>. Neste momento, iniciaremos a análise dos exercícios escolhidos para fazerem parte do corpus deste trabalho.

Solar dos príncipes O conto de Marcelino Freire, que se encontra no livro Contos Negreiros, narra a visita de cinco negros moradores de uma favela a um condomínio de classe alta, chamado Solar dos Príncipes, com o objetivo de filmar o dia de domingo dos moradores desse prédio e fazer um documentário. Porém, ao chegarem no local, eles são mal recepcionados pelo porteiro, que resolve chamar a polícia, pois confundiu Caroline, Nicholson, Johnattan e os outros dois negros com bandidos. Apesar desse problema, as personagens não desistem de gravar o filme, mesmo percebendo o medo do porteiro, que se tranca na guarita no momento em que

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Johnattan pula o portão para filmar, e a aglomeração de pessoas no local que presenciam a cena. Após a leitura feita, inicialmente, de forma silenciosa para que, em seguida, fosse realizada oralmente por um dos alunos, nós discutimos sobre a intenção do autor ao pôr como título do texto o nome do condomínio e qual a importância dessa escolha para o processo de interpretação. Em seguida, observamos o tipo de linguagem utilizada pelo narrador e, também, perguntamos aos alunos se algumas palavras de baixo calão, contidas no texto literário soavam estranhas para eles e essas palavras atrapalhavam ou facilitavam a leitura e interpretação do conto, tendo em vista a possível intenção do autor. Após esses momentos, observamos as personagens: quem eram; de onde eram; a que classe social elas pertenciam;e quais as possíveis características que aproximavam ou afastavam as personagens principais do conto. O principal momento da aula foi a atividade final: após a leitura e discussão do conto, pedimos para que os alunos modificassem o final do texto Solar dos Príncipes a partir do trecho em que o porteiro avisa que vai chamar a polícia. Como qualquer texto não deve ser produzido sem que o aluno conheça o seu interlocutor, pois “só é possível fazer as escolhas acertadas, tomar decisões do que dizer e do como dizer se sabemos com quem partilhamos o que dizemos” (ANTUNES, 2006, p. 175), informamos aos alunos que os textos seriam postados no blog da turma. Com essa tarefa, nós tínhamos o intuito de fazer com que os discentes criassem uma história com base na criatividade e nas discussões realizadas acerca do tema da aula e do conto, chamando a atenção para as personagens e para linguagem, de forma que a produção dos alunos fosse coerente com as partes anteriores do texto original. Nas duas produções que serão analisadas, encontraremos algumas inadequações ortográficas e de concordância, mas que, nesta análise, não serão levadas em consideração, pois observaremos a relevância do que foi escrito pelo aluno. Os textos encontrados aqui são transcrições fieis das atividades dos alunos.

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Quadro 1 – Desfecho para o conto Solar dos Príncipes.

Desfecho 1: E.T. E avisou: “vou chamar a polícia”. Os quatro negros e a negra pediu ao porteiro que tivesse cauma, pois nós não queria matar, roubar e sequestrar ninguém pois nós só queremos mostra o dia de almoço de domingo das pessoas da classe alta, mais mesmo assim o porteiro não acreditou e continuo a dizer que iria chamar a polícia e apareceu gente de todo tipo. E a ideia não era essa, mais filmamos tudo para mostrar a todos como é diferente o tratamento das pessoas ricas com as pessoas negra e pobres. Fonte: Acervo pessoal Quadro 2 – Desfecho para o conto Solar dos Príncipes.

Desfecho 2: W.N. – Não, por favor não chame a polícia. Nós não queremos fazer nenhum mal as pessoas que moram aí, só queremos saber o que eles fazem no domingo. O porteiro falou: – Por que vocês não procuram outro condomínio? Caroline: – Por que este é o mais bonito que nós vimos. O porteiro com medo, perguntou a alguns moradores, o que eles achavam da ideia. Os moradores pensavam que nós estavamos ali para fazer algum mal a eles, e não colaboraram com o nosso documentário, por que achavam que nós eramos ladrões. Fonte: Acervo pessoal

Nos desfechos escritos pelos alunos, podemos notar que eles deram destaque ao ato da filmagem feita pelo grupo, o julgamento feito pelos moradores do prédio, bem como os estereótipos aos quais negros e pobres estão ligados. De acordo com os textos dos alunos, o objetivo das personagens em produzir o filme era provavelmente mostrar aos moradores do Morro do Pavão o dia de domingo das pessoas de classe alta. Porém, o foco da narrativa muda a partir do preconceito do porteiro e dos moradores. Como podemos verificar, o grupo passou a filmar com 207


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o intuito de denunciar o tratamento que receberam pelo fato de serem negros e pobres filmando em um espaço que não lhes pertencia: um condomínio de luxo. Vale ressaltar que, em ambos os desfechos, o porteiro não era rico, mas, por sua função no condomínio ser a de zelar pela segurança dos moradores e, também, por compartilhar do estereótipo em torno das pessoas moradoras de morros e favelas, ele age precipitada e preconceituosamente. Os textos dos alunos evidenciam como meio de expor que o preconceito contra negros e pobres existe claramente, e que o primeiro sinal de desrespeito à diferença socioeconômica e étnico-racial é observado no instante em que o preconceituoso se sente desconfortável na presença de uma pessoa pertencente a um desses grupos: “filmamos tudo para mostrar a todos como é diferente o tratamento das pessoas ricas com as pessoas negra e pobres”; “os moradores pensavam que nós estavamos ali para fazer algum mal a eles, e não colaboraram com o nosso documentário, por que achavam que nós eramos ladrões”.

Boneca A atividade sobre o conto Boneca, de Cuti, que está presente no livro Negros em Contos (1996) consistia na criação do final alternativo do conto citado a partir do processo de elaboração de hipóteses e da leitura fragmentada do texto. Os alunos foram orientados a escrever o desfecho com base nos elementos apresentados no texto literário, como linguagem, personagens e temática envolvidas. Nesta atividade, nosso objetivo não era fazer com que os alunos adivinhassem o final do conto Boneca, mas sim “compor, com base nos elementos textuais e na sua vivência, um final com coerência” (COSSON, 2006, p. 71). Após a escrita do final da história pelos alunos, foi dada a oportunidade para que todos lessem a sua produção textual. Finalizamos a aula com a leitura do final do conto dado pelo contista, com a discussão e comparação dos finais produzidos por eles, trazendo também uma reflexão sobre a falta de bonecas negras no mercado: o que motiva essa escassez, bem como as consequências disto para a identificação

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da criança com a sua etnia. O conto em questão trata da procura de um pai por uma boneca negra. Ele procura este presente para sua filha em várias lojas, mas não encontra. Ao chegar em outro estabelecimento, ele encontra o objeto desejado e decide levá-la, mas não antes de ouvir as propostas de levar para casa bonecas loiras, ruivas e de olhos claros. Vale salientar que a boneca negra não estava em prateleiras, e sim esquecida no depósito. Depois de conseguir comprar a boneca negra, o homem sai pensativo da loja e vai até uma lanchonete, onde pede “loira gelada aí, chefe?” (CUTI, 1996, p. 13) para terminar o dia de exímia procura. Os textos que vamos encontrar nesta análise são transcrições dos finais produzidos pelos alunos. Quadro 4 – Final alternativo para o conto Boneca.

Final 1: J. K., 2º U Mas o vendedor falou para o homem: lamento, não podemos vendê-la. O homem perguntou: por quê? O vendedor respondeu: – É que não vendemos produtos incompletos, é que depois de tanto tempo ela jogada e guardada ela está faltando peças, está com o braço quebrado e vamos doar os brinquedos para pessoas carentes. O homem disse: – posso pagar o dobro e o conserto dela. Aí o vendedor disse: porque você quer essa boneca quebrada? Há muitas nas prateleiras e bonitas. O homem respondeu: não, porque essa é muito especial e diferente e quero dar a minha filha. O homem um pouco triste insistia, mas o vendedor dizia que não era possível. Depois de muito tempo, vem uma bela mulher com uma caixa e com a boneca dentro. O homem logo então abriu e sorriu e ficou bastante alegre e foi possível vender a boneca e o homem alegre mandou embrulhar e ele foi para sua casa. Ao chegar deu o presente para sua filha. Ao abrir, viu que era uma boneca diferente e a menina fez uma cara estranha. O pai pensou que ela não havia gostado e de repente ela abriu um sorriso e disse que foi o melhor presente de sua vida e ela correndo deu um abraço em seu pai. Fonte: Acervo pessoal

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Neste final, o aluno, logo nas primeiras linhas de seu texto diz: “o vendedor respondeu: é que não vendemos produto incompleto, é que depois de tanto tempo ela jogada e guardada está faltando peças”. Nesta parte, podemos verificar que o aluno insinua que as bonecas negras não são expostas à venda e que este tipo de boneca não é evidenciada, pois, na maioria das vezes, os compradores não se interessam por esse tipo de produto. Notamos que há um estranhamento do próprio vendedor com a insistência do homem em querer adquirir a boneca, mesmo estando incompleta: “porque você quer essa boneca quebrada? Há muitas na prateleira e bonitas!”. Com isso, podemos observar através dessa fala que, para o vendedor, bonecas bonitas são as completas da prateleira, que também são loiras e de olhos claros, reforçando o estereótipo de padrão de beleza europeu. E isso também pode ser notado na criança ao receber o presente: “ao chegar deu o presente para sua filha. Ao abrir viu que era uma boneca diferente e a menina fez uma cara estranha”. Mas, diferente do vendedor, a menina não prefere uma boneca valorizada pelo comércio, pelo contrário, ela demonstra sua felicidade ao ganhar uma boneca negra. Quanto à coerência com a primeira parte do conto que foi lida por meio da elaboração de hipóteses, podemos afirmar que foi satisfatório, pois não fugiu do tema da procura de um pai por uma boneca negra para sua filha, nem do discurso da vendedora e do gerente, que insistiam em oferecer outro modelo de boneca. Vejamos agora dois finais produzidos por duas alunas: Quadro 5 – Final alternativo para o conto Boneca.

Final 2: D. B. 1ºA Me desculpe a demora, mas infelizmente, devido a tanto tempo da boneca ficar guardada no depósito, ela não resistiu à queda e acabou quebrando. Mas para sua alegria, ao chegar em casa, sua esposa havia passado em uma outra loja, depois do trabalho, e encontrou a boneca que sua filhinha tanto queria. E a criança ficou tão contente, como também, os pais e assim viveram felizes, pois viram sua filha feliz com sua linda bonequinha negra. Fonte: Acervo pessoal

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Quadro 6 – Final alternativo para o conto Boneca.

Final 3: J. P. 1ºA Mas, após o acidente, perceberam que a boneca estava quebrada. – Calma! Não se preocupe. Aqui está outra boneca idêntica à outra; vimos que ainda tinha sobrado esta e está inteirinha. Então o pai da menina foi embora muito feliz por ter conseguido a linda boneca e ao chegar em casa presenteou a sua filha e ela ficou muito feliz, pois seu pai realizou o seu lindo desejo: ter uma boneca negra.

Fonte: Acervo pessoal

Notamos que as alunas retomam coerentemente o objetivo principal do conto que retrata a escassez de bonecas negras no mercado, e, consequentemente, a temática da aula. No final 2 D.B, observamos mais claramente que a aluna deixa subentendido o esquecimento da existência da boneca negra, tanto por parte dos vendedores que esqueceram a boneca no depósito da loja por “tanto tempo”, causando a fragilidade das peças, quanto dos consumidores que só procuravam por bonecas clássicas: brancas, loiras, ou seja, europeizadas. No final 3 J.P, percebemos que a existência de bonecas negras na loja só são lembradas pelos vendedores quando os clientes procuram. A partir dos resultados obtidos, entendemos que esta atividade atendeu aos objetivos da sequência didática sobre conto, principalmente no que tange a superação das dificuldades que surgiram durante a leitura do texto. Os contos selecionados para a aplicação da sequência didática auxiliaram no estudo da temática afrodescendente no que diz respeito à compreensão dos assuntos discutidos, bem como na atividade de leitura e interpretação dos textos. Desse modo, podemos constatar que o trabalho com narrativas curtas e as estratégias escolhidas para a abordagem dos textos proporcionaram uma atividade de leitura eficaz que teve na escrita sua concretização.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS A partir das análises dos textos produzidos pelos alunos, podemos perceber que o ensino de literatura voltado às questões sociais e culturais de um povo é capaz de ajudar na ruptura de estereótipos e na revisão de conceitos pré-estabelecidos sobre determinado indivíduo. Desta forma, atua na ampliação do horizonte de expectativa do aluno, na sua formação crítica e cidadã, e em sua construção identitária. Mas para que ocorra esse processo, é necessária uma formação docente que incentive a inserção não apenas da temática afro-brasileira, como cumprimento da lei 11.645/08, mas também das outras culturas existentes em nossa sociedade e que fazem parte da construção de uma identidade nacional. Neste trabalho, observamos que o desenvolvimento e aplicação de uma sequência didática contextualizada, que tem um gênero digital como forma de mostrar as atividades produzidas pelos alunos e que leva em consideração a recepção dos textos por estes, contribui na construção de cidadãos capazes de discutirem diferentes temas sociais e, também, de exporem suas opiniões tanto de forma oral quanto escrita. A partir de suas próprias estratégias de leitura e das ferramentas fornecidas pelo professor, o alunado pode compreender melhor o texto, além de interpretá-lo de acordo com seus conhecimentos. Dessa forma, o ensino de literatura no nível médio suscita nos alunos uma criticidade que vai além da escola, interferindo nas questões do cotidiano do aluno.

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ENSINO DE LITERATURA AFRO-BRASILEIRA: REPRESENTAÇÃO DO NEGRO E O USO DAS TECNOLOGIAS

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Resumo Este trabalho procura investigar a relação entre os conceitos de figura e alegoria e a representação/interpretação das narrativas ficcionais. Para tanto, partimos das origens dos dois termos, observando sua modificação conceitual ao longo das épocas, dando especial destaque para a Idade Média, quando os dois termos ao mesmo tempo se confundem e se opõem. A partir daí, observamos a conceituação da figura e da alegoria realizada por dois importantes intelectuais alemães do século XX, respectivamente Erich Auerbach e Walter Benjamin. Logo em seguida mostramos como os estudos desses dois pensadores a respeito dos conceitos citados podem contribuir para entender melhor a relação entre a obra literária e a realidade. Palavras-chaves: Alegoria; Auerbach; Benjamin; Figura; Representação/interpretação


FIGURA E ALEGORIA: REPRESENTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO EM ERICH AUERBACH E WALTER BENJAMIN Lucas Antunes Oliveira1

INTRODUÇÃO Em seu famoso ensaio Figura (publicado pela primeira vez em 1938), o romanista alemão Erich Auerbach tem a precaução de fazer a distinção entre a interpretação/representação figural e a alegórica, especialmente na conjuntura da Idade Média. Como o propósito de Auerbach é delimitar o conceito de figura, tal atitude não se revela supérflua, visto que, como o próprio autor nos mostra, no contexto medieval figura e alegoria eram muitas vezes tomadas como uma só: “Às vezes até mesmo a alegoria comum era denominada como figura, uma prática que mais tarde se tornou usual” (AUERBACH, 1997, p.31); e também: “Figura não é a única palavra latina usada como prefiguração histórica; encontramos com frequência o termo grego allegoria [...]. Tertuliano usa allegoria quase como sinônimo de figura [...]” (AUERBACH, 1997, p.41). Essa relação/confusão entre os termos feita na Idade Média é também evidenciada por João Adolfo Hansen em seu estudo sobre a alegoria, ao tratar da forma alegórica medieval: “É a que se chamou ‘alegoria dos teólogos’, recebendo muitas vezes as denominações de figura, figural, tipo, antitipo, tipologia, exemplo” (HANSEN, 2006, p.8). O destaque dessa relação entre os termos durante a Idade Média feita pelos dois autores não é arbitrária, uma vez que tanto a figura quanto a alegoria, nesse contexto, designavam, de maneira geral, a mesma coisa: um tipo de hermenêutica que, apesar de abarcar toda a realidade humana, se concentrava no exame das Escrituras Sagradas. Tal hermenêutica enxerga nos eventos narrados no Velho

1. Doutorando em Teoria da Literatura pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). E-mail: luscakanno@hotmail.com. 215


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Testamento uma promessa que, por sua vez, se cumpriria nos acontecimentos expostos pelo Novo Testamento. Assim, a interpretação figural/alegórica toma determinada passagem do Velho Testamento – o êxodo dos hebreus do Egito guiados por Moisés, por exemplo – e propõe que, numa passagem determinada do Novo Testamento, seja a ressurreição de Cristo, há uma repetição. No caso, não se interpretam as palavras do texto, mas as coisas, os acontecimentos históricos nomeados por elas. Moisés, o homem, é interpretado como exemplo (figura ou tipo) que prefigura Cristo em seu tempo. (HANSEN, 2006, p.12)

Embora tenhamos tratado a figura e a alegoria por termos, melhor seria dizer conceitos, pois, apesar da semelhança acima ressaltada, as duas palavras não são simplesmente formas diferentes de chamar a mesma coisa, mesmo no contexto medieval. Para uma compreensão mais precisa da especificidade de cada um dos conceitos no contexto citado, é preciso ter em vista as mudanças que sofreram as ideias de figura e alegoria ao passarem da Antiguidade para a Idade Média. Comecemos pela figura. O trabalho de Auerbach em seu ensaio é justamente mostrar a evolução da palavra figura desde sua primeira aparição com o poeta latino Terêncio até seu uso pelos Pais da Igreja. Segundo o filólogo alemão, em suas origens, a figura significava genericamente “forma plástica”, ou “aparência externa”; a partir dessa ideia original, figura mais tarde passa a significar a relação entre um modelo e uma cópia, ou seja, entende-se figura como uma forma de representação; por fim, no século I d.C., figura se torna um conceito retórico, indicando formas de expressão verbal não-literais ou indiretas. Percebemos, pelos dois últimos significados citados acima, que a palavra figura na Antiguidade se referia à relação entre dois elementos distintos, como a relação modelo-cópia ou a existente entre uma expressão e seu sentido figurado. Tal relação será mantida no novo significado que a palavra assume durante a Idade Média, pois, como vimos, figura nesse período é uma forma de relacionar os even216


FIGURA E ALEGORIA: REPRESENTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO EM ERICH AUERBACH E WALTER BENJAMIN

tos do Velho Testamento com os narrados no Novo Testamento. Recorrendo ao exemplo já apresentado, Moisés é, assim, figura de Cristo, e a nova vida que o primeiro ofereceu ao povo judeu ao retirá-lo do Egito é também figura da ressurreição do segundo. Há aí uma relação de promessa (Moisés e a fuga do Egito) e cumprimento (Jesus e sua ressurreição). Contudo, ao contrário do que a ideia das relações modelo-cópia e expressão verbal-sentido figurado pode sugerir (uma vez que, nessa relação, pode-se pensar que apenas um dos elementos é “original”, sendo o outro apenas uma derivação deste), a figura medieval é radicalmente concreta e, portanto, histórica: “figura é algo real e histórico que anuncia alguma outra coisa que também é real e histórica” (AUERBACH, 1977, p.27). Para Auerbach, tal concretude assumida pela interpretação figural surge como forma de auxiliar a própria expansão do cristianismo, pois, ao mesmo tempo em que tornava inteligível a religião original que fundamenta a doutrina de Cristo (ou seja, o judaísmo), a interpretação figural subordinava tal fundamento à religião nascente. Auerbach lembra que uma parte da reação ao Velho Testamento pelos novos cristãos consistiu em ignorá-lo ou mesmo interpretá-lo de maneira puramente abstrata; entretanto, tal atitude foi minoritária, e, para o filólogo alemão, uma maior insistência nela teria sido prejudicial à expansão do cristianismo: “A consequência dessa atitude seria certamente fazer com que a cristandade perdesse sua concepção de uma história providencial, com sua concretude intrínseca, e também, sem dúvida nenhuma, algo de seu imenso poder persuasivo” (AUERBACH, 1997, p.45). Para Auerbach, a concretude oferecida pela hermenêutica figural foi tão importante para a afirmação do cristianismo que transformou essa forma de interpretação em um dos elementos centrais da representação cristã da história, da realidade e do mundo de maneira geral. Passemos agora ao tratamento da alegoria. Surgida na antiguidade grecolatina, a alegoria era um tropo retórico que dizia “b para significar a” (HANSEN, 2006, p.7); ou seja, tratava-se de um ornamento do discurso que utilizava um termo segundo (o b, ou sentido figurado) no lugar de um termo primeiro (a, ou sentido literal). Se a alegoria greco-latina foi pensada, portanto, como simbolismo linguís-

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tico, na Idade Média ela foi adaptada pelos padres primitivos como “simbolismo linguístico revelador de um simbolismo natural, das coisas, escrito desde sempre por Deus na Bíblia e no mundo” (HANSEN, 2006, p.12). A partir dessa adaptação da alegoria, esta passou a ser vista como uma forma de hermenêutica, que revelava não só a já citada relação entre os dois Testamentos, como também a relação entre estes e o próprio mundo; como destaca Hansen, a alegoria medieval (chamada pelo autor de “alegoria dos teólogos”, para diferenciá-la da “alegoria dos poetas” greco-latina) tinha como pressuposto o essencialismo, ou seja, a crença de que Deus teria escrito dois livros que podem ser lidos um no outro: a Bíblia e o Mundo. Assim, vemos que a alegoria hermenêutica medieval é bastante abrangente, uma vez que analisa não só as ligações entre os dois Testamentos, mas também entre a Bíblia e o Mundo, entendido não só como materialidade, mas também (e sobretudo) espiritualidade. Essa flexibilidade da alegoria medieval gera tanto interpretações mais concretas (à maneira das interpretações figurais), quanto interpretações mais abstratas (entendendo, por exemplo, a cidade de Jerusalém como alegoria da alma humana). Além disso, como bem mostra Hansen (2006, especialmente no cap. III), a abrangência da alegoria medieval abarca sua própria conceituação, que pode ser mais ou menos precisa; por exemplo, o termo “alegórico” pode tanto se referir especificamente a um dos quatro níveis possíveis de significação do texto bíblico quanto designar genericamente todos os níveis com exceção do “histórico”, uma vez que não se referem ao sentido “literal” do texto. Podemos então dizer que, devido a tal abrangência, a interpretação alegórica engloba a interpretação figural: a relação estabelecida entre as duas figuras, ou entre a promessa e seu cumprimento, seria o resultado da hermenêutica alegórica. Contudo, como demonstra Auerbach (1997), quando se pensava numa relação de maior concretude entre os dois elementos associados prevalecia a ideia de uma relação figural, e não alegórica. Provavelmente, isso se devia ao fato de, como vimos, a figura ser um conceito mais preciso e radicalmente historicizante do que a alegoria, mais flexível e tendendo à espiritualidade e à abstralidade. Além disso, é possível que a tradição retórica da “alegoria dos poetas” tenha influenciado nessa inclinação para o abstrato da “alegoria dos teólogos”: 218


FIGURA E ALEGORIA: REPRESENTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO EM ERICH AUERBACH E WALTER BENJAMIN

A maior parte das alegorias que encontramos na literatura ou na arte representa uma virtude (por exemplo, sabedoria), uma paixão (ciúme), uma instituição (justiça) ou, no máximo, uma síntese muito geral de um fenômeno histórico (a paz, a pátria) – nunca um acontecimento definido em sua plena historicidade. Tais são as alegorias da antiguidade tardia e da Idade Média, estendendo-se grosso modo da Psychomachia de Prudêncio até Alain de Lille e o Roman de la rose. (AUERBACH, 1997, p.46)

Nesta primeira parte de nosso trabalho, vimos, de maneira bastante concisa e simplificada, os pontos de aproximação e afastamento entre a figura e a alegoria, observando o desenvolvimento dos dois conceitos desde seu nascimento na Antiguidade até a Idade Média. Como foi possível perceber, figura e alegoria são tanto formas de representação quanto de interpretação: a alegoria se inicia como ornamentação do discurso para depois se tornar leitura dos dois livros divinos; e a figura é uma forma de hermenêutica dos Textos Sagrados que passa a ser a principal forma cristã de representação da realidade. Essa dupla faceta da figura e da alegoria será retomada modernamente por dois grandes pensadores alemães: o já bastante mencionado filólogo Erich Auerbach; e o filósofo Walter Benjamin. A retomada desses conceitos pelos dois autores será investigada nas próximas secções de nosso ensaio.

DESENVOLVIMENTO: FIGURA E ALEGORIA NA MODERNIDADE Auerbach e a Figura Naquela que é considerada por muitos sua maior obra, Mimesis, Auerbach irá demonstrar como a influência do cristianismo foi crucial para o desenvolvimento do objeto de estudo de seu livro, ou seja, a literatura ocidental. No segundo capítulo de seu livro, intitulado “Fortunata”, o filólogo, analisando o episódio da negação de Jesus por Pedro que é narrado no evangelho de São Marcos, mostra como o cristianismo rompe com a separação clássica entre os dois estilos: o alto, 219


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utilizado para representar personagens de classes sociais elevadas; e o baixo, que trata de personagens das classes baixas. Ao narrar o drama de um simples pescador da Galileia utilizando um estilo elevado, o texto do evangelho de São Marcos quebra o equilíbrio entre os dois estilos, colocando em movimento, como bem destaca Edward Said, “a busca de um novo pacto literário entre escritor e leitor” (2007, p.133), ou seja, uma nova forma de representar a realidade. Para Auerbach, tal mistura entre os estilos alto e baixo seria uma das principais marcas daquilo que viria a se tornar a literatura ocidental, revelando assim a influência da representação cristã no desenvolvimento dessa literatura. E aqui a figura também assume um papel crucial nessa formação. Como vimos na secção anterior, o romanista alemão consegue sublinhar a importância da interpretação figural na hermenêutica da Idade Média, destacando como tal interpretação se torna um elemento central na representação cristã da realidade. Uma vez que a representação cristã é essencial no desenvolvimento da literatura ocidental, esta também passa a ser profundamente influenciada pela figura. Isso fica bastante evidente no tratamento que Auerbach dá a Dante, tanto em seu estudo de 1938 quanto no capítulo dedicado à Comédia presente em Mimesis. No comentário que faz a este último, Said chama a atenção para a escolha auerbachiana da obra do poeta florentino como um dos momentos seminais da literatura ocidental, afirmando que tal obra “permitiu num certo sentido a criação do que viemos a chamar literatura” (SAID, 2007, p.134); e isso se deve justamente à fusão dos estilos e à representação figural operada por Dante, que permitiu uma nova forma de realismo e historicidade na literatura. Em Figura, Auerbach mostra como personagens históricos como Virgílio adquirem existência plena na Eternidade através da representação figural: o Virgílio do Império romano é a promessa cujo preenchimento é o Virgílio que guia Dante através do Inferno e do Purgatório; ou seja, o histórico é a promessa do preenchimento literário. Já em Mimesis, o drama de Farinata e de Cavalcante é o de não conseguir se desprender de suas antigas vidas terrenas, apesar de estarem condenados ao Inferno por toda a Eternidade. Assim como Virgílio, a relação entre os Farinata e Cavalcante ter-

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renos e literários é figural, e por isso mesmo sua vida na Eternidade é repleta de historicidade: As almas dos condenados, no seu corpo espectral, têm, no seu eterno lugar, aparência, liberdade de palavras e de gestos, liberdade para realizar alguns movimentos, e portanto, dentro da imutabilidade, liberdade para certo grau de mudança; abandonamos o mundo terreno, estamos num lugar eterno, e, todavia, encontramos nele aparências e acontecimentos concretos. Isto é diferente do que aparece e acontece na Terra, e, contudo, está evidentemente relacionado com ele numa relação estrita e necessária. (AUERBACH, 2011, p.166)

Ao eleger a obra de Dante como um dos momentos cruciais da literatura ocidental, Auerbach evidencia a sua percepção da importância da figura como elemento central dessa literatura; tal percepção, por sua vez, o leva a adotar o conceito como operador metodológico de sua própria prática crítica. A figura se manifesta, por exemplo, na própria organização de Mimesis. Sendo mais um conjunto de diversos ensaios do que uma história da literatura propriamente dita, tais ensaios são, contudo, ligados uns aos outros por meio de uma relação figural: cada obra ou conjunto de obras analisadas em determinado capítulo podem ser encarados como uma promessa cujo preenchimento é a obra ou conjunto de obras analisado no capítulo seguinte, que por sua vez também se torna promessa de um preenchimento futuro. Dessa forma, é possível estabelecer uma continuidade no desenvolvimento da literatura ocidental, embora seja preciso destacar que tal continuidade não é fruto de uma causalidade pré-determinada, mas, ao contrário, é estabelecida pelo olhar crítico do próprio analista. Pois para Auerbach, a interpretação figural, justamente devido à sua profunda historicidade e consequente relativismo, não é depreendida das coisas em si, mas depende de um olhar particularizado que consegue estabelecer a ligação entre os dois elementos que compõem a relação figural.

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Contudo, o que nos interessa aqui neste ensaio é procurar entender como Auerbach pensa a figura como articulador entre realidade e texto literário. Tal articulação ficara evidente quando mencionamos a leitura auerbachiana da obra de Dante; mas tal evidência se deve, em certa medida, porque o próprio Dante faz da representação figural um elemento formal da Comédia. Auerbach se apropria, portanto, de um elemento que já estava, por assim dizer, “dentro” da obra de Dante, e dá a ele uma nova dimensão, tornando-o um conceito operatório da análise da obra literária de maneira geral. Assim, a realidade na qual o texto literário surge se torna figura cujo preenchimento é a própria realidade representada na obra. Dessa forma, podemos afirmar, seguindo o posicionamento de Figueredo (2012, p.46-47), que “‘figura’ diz respeito à noção implícita de mímesis do filólogo”. Dessa conclusão podemos tirar duas consequentes características do método de análise auerbachiano, uma positiva e uma negativa, ao menos segundo o nosso próprio entendimento. Vamos à primeira delas. Ao considerar a relação entre obra e realidade como figural, Auerbach destaca a importância de se procurar reconstruir a conjuntura histórica na qual o texto literário nascera para que se possa verdadeiramente entendê-lo. Aqui notamos a profunda influência de Giambattista Vico no pensamento do filólogo alemão. Vico distingue duas classes de fenômenos: aqueles ligados ao verum e aqueles ligados ao certum. O verum diria respeito à verdadeira natureza das coisas e dos fenômenos, estando, portanto, relacionado à filosofia; já o certum trataria das instituições humanas, fundando-se não na razão, mas sim no que Vico chama de sensus communis generis humani, e estando relacionado à filologia. Segundo Luiz Costa Lima (2007), ao submeter o certum ao sensus communis, o pensador italiano concede a mesma dignidade a cada período e objeto históricos, detalhe bem apreendido por Auerbach, que o incorporou a sua prática analítica: Essa idêntica dignidade do outro não só motivava Auerbach à latitude de interesses que viria a caracterizá-lo, negando-se a confundir seu ofício com a simples manipulação das propriedades verbais dos textos, 222


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obrigando-se ao contrário a procurar inseri-los na vida do tempo em que viveram. (LIMA, 2007, p.732)

Daí deriva também a concepção mais ampla que o romanista alemão possui acerca da prática filológica. Mais do que tentar estabelecer o caráter “genuíno” do texto, ou procurar oferecer seu significado “verdadeiro”, a filologia auerbachiana (descendente da viquiana) é a tentativa de entender um texto “como se fôssemos o autor desse texto, vivendo a realidade do autor, passando pelo tipo de experiências intrínsecas à vida do autor, e assim por diante, tudo pela combinação de erudição e simpatia que é a marca da hermenêutica filológica” (SAID, 2007, p.117). Embora tal objetivo (viver a realidade do autor) seja verdadeiramente inalcançável, ele não deixa de ser um norte positivo para a prática crítica, tanto de um ponto de vista “humanista” (que é destacado por Said em seu texto), tanto de um ponto de vista especificamente analítico. Pois, como destaca Costa Lima (1981), o produto mimético (isto é, a obra literária) é sempre uma representação das representações sociais; ou seja, é sempre uma representação de certas visões da realidade, compartilhadas socialmente e historicamente determinadas. Assim, mergulhar filologicamente no mundo do autor é entender como tais representações sociais funcionam para só então analisar a relação figural entre elas, enquanto promessas, e seu cumprimento, o texto literário. Contudo, a tentativa de estabelecer essa relação entre a obra literária e sua conjuntura acaba também por sustentar o ponto negativo que encontramos na ideia auerbachiana de representação/interpretação figural. Como afirma o autor, na figura “a relação entre os dois eventos é revelada por um acordo ou similaridade” (AUERBACH, 1997, p.27); ou seja, entre a figura e seu preenchimento a relação é de semelhança, pois só assim é possível perceber a ligação entre dois eventos distintos. Dessa forma, a semelhança também prepondera na relação entre conjuntura e obra literária. Daí a inquietação de um Costa Lima, que em diversos ensaios (por exemplo, 2007, 1994, 1974) insiste em mostrar a insuficiência do conceito de mímesis auerbachiano, chegando a afirmar que “Auerbach

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concebe a mímesis como uma rua de mão única, que só tivesse por direção o fluxo que viesse da realidade para o texto” (1994, p.228). Não é nossa intenção aqui discutir o complicado problema acerca do realismo auerbachiano ou se sua concepção de mímesis assume que a obra literária é sempre derivada do mundo social2. Entretanto, a leitura de Mimesis revela que Auerbach privilegia o sema da semelhança do produto mimético (c.f. LIMA, 2003) em suas análises, o que, efetivamente, parece indicar certa limitação de seu conceito de mímesis (pois ignora o sema da diferença, ou no mínimo diminui sua importância), cuja origem detectamos na sua própria adoção do conceito de figura como forma de entender a relação entre texto/contexto. Apresentados, de maneira geral, os pressupostos, vantagens e limites do conceito de figura como representação/interpretação de obras literárias, conforme proposto por Auerbach, passemos agora à próxima secção deste trabalho, na qual abordaremos a alegoria.

Benjamin e a Alegoria Se Auerbach recorre à Idade Média para formular sua própria concepção de figura, Walter Benjamin, em seu estudo Origem do Drama Trágico Alemão (2004), irá procurar entender a alegoria a partir não de sua manifestação medieval, mas sim barroca, utilizando como objeto de análise o drama trágico (Trauerspiel). A alegoria barroca, como o autor destaca, “regressa à Antiguidade” (BENJAMIN, 2004, p.185), o que vale dizer que aqui a alegoria não é um tipo de hermenêutica religiosa, mas uma forma de representação. Contudo, Benjamin argumenta que, diferentemente do que era pensado na Antiguidade, a alegoria “não é uma retórica ilustrativa através da imagem, mas expressão, como a linguagem, e também a escrita” (BENJAMIN, 2004, p.176). Isso significa dizer que a alegoria não é mera

2. Sobre este problema, é interessante acompanhar a discussão feita por Figueredo (2012) no capítulo 3 de seu estudo: “‘Figura’: Mímesis em Auerbach”. 224


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ilustração de uma ideia prévia que necessita apenas ser decodificada, mas que, como forma de linguagem, a alegoria cria seus próprios significados. Benjamin percebe tal característica ao analisar a relação entre a concepção barroca da História e sua manifestação alegórica. Vejamos isso em detalhe. Para Benjamin, a concepção barroca da História se afasta da medieval porque enquanto esta encarava a miséria da existência humana como uma etapa necessária para a salvação eterna que aconteceria no Fim dos Tempos, aquela, ao perder o caráter teleológico que governava a visão medieval, mergulha no desespero da falta de sentido da vida, cujo único ponto de chegada é, inevitavelmente, a morte. A alegoria barroca, profundamente influenciada por tal visão de mundo, abre-se assim para uma grande pluralidade de significados, deixando de ser apenas imagem retórica de um sentido prévio e único (como era na antiguidade greco-latina) para, ao invés disso, abrir-se à fragmentalidade e eterna remissão ao outro, em consonância como a própria impossibilidade de se chegar a um sentido último para a existência presente na mentalidade barroca. Assim, a alegoria petrifica a linguagem e faz dela um perpetuum mobile, no qual não há mais lugar para a praia do significado último esperado. A linguagem, assim como o Ser para os românticos, é vista do ponto de vista da alegoria como uma cadeia infinita de passagens entre significantes que remetem a outros significantes. (SELIGMANN-SILVA, 1999, p.31-32)

Para Benjamin, portanto, a alegoria é a forma estética por excelência da derrota e da desesperança. Porém, é justamente por revelar a existência humana em sua decadência que a alegoria consegue ser realmente significativa: na alegoria o observador tem diante de si a facies hippocratica da história como paisagem primordial petrificada. A história, com tudo aquilo que desde o início tem em si de extemporâneo, de sofrimento e de malogro, ganha expressão na imagem de um rosto – melhor, de uma caveira. (...) Está aqui o cerne da contemplação de tipo alegórico, da exposição barroca

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e mundana da história como via crucis do mundo: significativa, ela é-o apenas nas estações da sua decadência. (BENJAMIN, 2004, p.180)

Assim, a alegoria representa a história, mas esta se apresenta como ruína: “a fisionomia alegórica da história natural, que o drama trágico coloca em cena, está realmente presente sob a forma da ruína” (BENJAMIN, 2004, p.192). Dessa forma, a petrificação da história mencionada por Benjamin na citação acima não deve ser entendida como um congelamento das significações da história; se é verdade que através da petrificação a memória do passado pode ser salva do perigo da transitoriedade, também é verdade que, como ruína, tal memória é plurissignificativa. Pois, da mesma forma que a ruína apresenta os resquícios do que houve, também destaca aquilo que não houve. Isso revela o caráter contraditório da obra alegórica, bem notado por Flávio Kothe ao ler a obra de Benjamin: A obra e o documento são importantes não só como testemunhos do passado, mas também como significativos para o presente: seja na concordância, seja no desacordo. Por outro lado, a obra é a não-ruína por excelência: índice de possibilidades, concretização de um mundo possível, reconhecimento do existente, alternativa ao status quo, oportunidade de dizer o que o poder vigente não quer que se diga. (KOTHE, 1986, p.69)

A obra alegórica seria, portanto, um registro “das potencialidades não construídas na História” (KOTHE, 1976, p.42), ou seja, uma forma de ler aquilo que fora reprimido pela História, entendida aqui tanto como aquilo que “realmente aconteceu”, quanto como aquilo que foi representado no discurso histórico. O conceito de ruína, portanto, revela não só a dimensão representativa da alegoria (pois, como vimos, a ideia de alegoria como ruína da história se tornou possível devido à concepção barroca dessa mesma história) mas também interpretativa. Isso significa dizer que o pensamento de Benjamin envolve uma leitura alegórica do texto literário, que pode ser realizada mesmo quando o texto analisado não utiliza a alegoria como forma estética. É verdade que a prática crítica de Benjamin 226


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privilegia a leitura alegórica de obras pertencentes a conjunturas cujas mentalidades eram propícias à prática da alegoria: o barroco, com sua concepção de história como decadência; e a modernidade, também ela decadente, dominada pela fetichização da mercadoria e marcada pelo tédio melancólico do flâneur. Contudo, isso não impede que a leitura alegórica pensada pelo autor seja estendida aos demais textos literários não-alegóricos, ou mesmo a qualquer objeto estético, como propõe Kothe (1986) ao considerar a obra artística de maneira geral como ruína. Podemos citar como exemplo de uma leitura alegórica mais ampla a prática crítica realizada por Edward Said em seu livro Cultura e imperialismo (2011), chamada pelo autor de “leitura em contraponto” (SAID, 2011, p.123). Para Said, seria impossível entender certas obras cruciais da literatura ocidental sem levar em consideração o imperialismo, não porque este é amplamente representado nessas obras, mas sim porque a relação entre a Europa e suas colônias foi tão importante para a autoafirmação do Ocidente que não pôde deixar de exercer uma profunda influência nas representações que os países imperialistas fizeram deles mesmos. Dessa forma, mesmo que o imperialismo ou o colonialismo não sejam tematizados nas obras narrativas produzidas na conjuntura imperialista/ colonialista, tais elementos devem ser destacados, pois também fazem parte da estrutura das obras como negações da realidade representada: como argumenta Iser, as negações são extremamente importantes na construção do significado do texto ficcional, pois “ao negar a validade do segmento selecionado, ela recorta o seu sentido anterior e assinala a motivação não verbalizada, subjacente ao próprio ato de negar e responsável pelo seu direcionamento” (ISER, 1999, p.31). Assim, para Said, “ao ler um texto, devemos abri-lo tanto para o que está contido nele quanto para o que foi excluído pelo autor” (SAID, 2011, p.124); ou seja, devemos atentar para o outro do texto, e, nesse sentido, realizar uma leitura alegórica. Se nesse primeiro momento da leitura alegórica o outro é entendido como aquele negado no mundo da própria obra, num segundo momento esse outro pode ser aquele que existe historicamente no mundo do próprio leitor,

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mas que era ignorado (por não existir ainda) na conjuntura na qual a obra fora produzida. Nesse sentido, a leitura alegórica funciona como uma atualização do texto literário, como uma reintrodução da obra na história, tal como o Pierre Menard borgeano fizera com o Quixote de Cervantes (BORGES, 2008): embora o texto daquele seja idêntico ao deste, seu sentido, por pertencer a um mundo diferente, é outro – ou, no nosso caso, é o outro. Contudo, é justamente pelo fato de o olhar alegórico sempre remeter ao outro que corremos o perigo de nos perdermos nessa eterna remissão e nos desviarmos demais daquele sentido que é efetivamente possível de ser produzido pelo texto, caindo assim numa “superinterpretação”. Haverá alguma forma de evitar a armadilha desse turbilhão de alteridade? Isso é o que procuraremos averiguar na próxima secção deste trabalho, na qual também concluiremos nossa reflexão.

CONCLUSÃO: FIGURA E ALEGORIA: UMA NOVA APROXIMAÇÃO Como vimos, na primeira secção de nosso trabalho, figura e alegoria eram conceitos bastante próximos durante a Idade Média, remetendo a um tipo de hermenêutica das Escrituras Sagradas. Significavam, assim, de maneira geral, uma forma de leitura ou de interpretação de textos. Esse tipo de interpretação estava fortemente ligado com a realidade, tendesse à História, como no caso da figura, tendesse à “espiritualização”, no caso da alegoria. Assim, apesar da semelhança, a figura e a alegoria medievais apresentavam também suas diferenças, ao ponto de Auerbach (1997) opor uma à outra. Nas segunda e terceira partes deste ensaio vimos a retomada dos conceitos de figura e alegoria por dois modernos intelectuais alemães, Erich Auerbach e Walter Benjamin, observando que tal retomada significou também uma redimensionalização dos conceitos. Auerbach parte da figura medieval, juntamente com sua relação entre promessa e cumprimento, para entender o desenvolvimento da representação da realidade na literatura ocidental e chegar a uma forma de leitura da obra literária que privilegia a semelhança entre representações sociais

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vigentes em determinada conjuntura e seu “preenchimento” no objeto estético. Por outro lado, Benjamin parte da tradição greco-latina da alegoria, ou seja, que a entende como representação, para entender sua manifestação barroca e a partir daí se aproximar da tradição medieval e hermenêutica, pensando numa leitura alegórica como aquela que dá voz ao outro repreendido na história. Se o redimensionamento da figura e da alegoria empreendido pelos dois pensadores realça a diferença entre os conceitos, cabe aqui nesta última parte de nosso estudo pensar uma nova aproximação entre eles. Quando tratamos da figura na obra de Auerbach destacamos sua ênfase na semelhança como uma característica negativa de seu método crítico, uma vez que tal ênfase tende a diminuir ou mesmo apagar a diferença contida em toda obra literária e que, conforme nos lembra Iser (1999), é também central para a significação do texto ficcional. Além disso, o privilégio da semelhança em detrimento da diferença pode levar a uma hierarquização da relação realidade-obra, colocando a primeira parte dessa relação numa posição mais elevada em relação a segunda, uma vez que aquela, por ser prévia a esta, forneceria a base sobre a qual a semelhança poderia se erigir. Contudo, pensar a leitura figural em conjunto com a alegórica, com sua valorização do outro, pode evitar a diminuição da diferença e oferecer uma contraparte que balanceie a relação entre a semelhança e a diferença presente na obra literária e sua conjuntura de origem. A leitura figural se vê assim enriquecida por meio da articulação com a leitura alegórica, e chegamos a uma primeira etapa de nossa reaproximação dos conceitos. Vamos à próxima. Na secção em que abordamos a alegoria no pensamento benjaminiano, alertamos sobre o perigo de que a leitura alegórica, em sua constante remissão ao outro, acabasse por gerar uma superinterpretação do texto literário, fazendo com que sua significação ultrapassasse os limites impostos pela configuração da própria obra. Acreditamos que uma forma de evitar tal perigo é articular a leitura alegórica à leitura figural. Uma vez que esta pede um mergulho filológico no universo no qual a obra nasce, tornam-se mais claras para o analista as estreitas relações entre os textos literários e as visões de mundo que neles são represen-

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tadas. Evidentemente, a leitura alegórica não descarta tais relações estreitas, uma vez que, para que se possa buscar o outro oculto ou escamoteado, é preciso saber primeiro o que está evidente ou diretamente representado. Dessa forma, a simples consciência da relação entre a realidade e sua representação não é suficiente para evitar um possível caos da leitura alegórica. Entretanto, a leitura figural, por proporcionar um entendimento mais profundo da conjuntura na qual a obra floresce e acentuar a relação de semelhança entre essas duas esferas, pode servir como um ponto de referência que impeça a leitura alegórica de se perder durante a sua busca pela alteridade. Para Benjamin, a alegoria, embora se remeta sempre ao outro, também congela seu momento histórico. É preciso, portanto, sempre recorrer ao mundo de origem da obra para que se possa entender corretamente a imagem alegórica, e a leitura figural pode servir como forma de inserção do leitor nesse mundo. Dessa maneira, figura e alegoria deixam de ser antagônicas e tornam-se complementares: enquanto uma revela a semelhança, a outra desvenda a diferença, enriquecendo assim a leitura possível da obra literária. Cabe aqui um último comentário acerca da redimensionalização dos conceitos de figura e alegoria engendrada por Auerbach e Benjamin, que diz respeito ao caráter humanista, nos termos propostos por Said (2007), da reflexão realizada pelos dois pensadores. Tal caráter é perceptível tanto no esforço auerbachiano de entender respeitosamente aquele que está espacial e/ou temporalmente distante, quanto na procura benjaminiana em revelar aquele que foi oprimido e reprimido pela História e suas representações. Tal humanismo é admirável em intelectuais que, vítimas de uma forma ou de outra do horror nazista, poderiam cair numa desilusão fatalista para com a humanidade, mas que, ao invés disso, esforçaram-se para oferecer um contato mais profundo tanto com o outro (seja ele distante ou próximo), quanto consigo mesmo, propiciando assim uma melhor compreensão – e possível aceitação – de ambos.

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FIGURA E ALEGORIA: REPRESENTAÇÃO E INTERPRETAÇÃO EM ERICH AUERBACH E WALTER BENJAMIN

Referências AUERBACH, Erich. Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental. São Paulo: Perspectiva, 2011. ______. Figura. São Paulo: Ática, 1997. BENJAMIN, Walter. Origem do Drama Trágico Alemão. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004. BORGES, Jorge Luis. Ficciones. 4. ed. Buenos Aires: Emecé Editores, 2008. FIGUEREDO, Thiago da Camara. A mímesis através dos espelhos de Machado de Assis e de Guimarães Rosa (dissertação de mestrado). Recife: O autor, 2012. HANSEN, João Adolfo. Alegoria: construção e interpretação da metáfora. São Paulo: Hedra Campinas: Editora da Unicamp, 2006. ISER, Wolfgang. Teoria da Recepção: reação a uma circunstância histórica. In: ROCHA, João Cezar de Castro. Teoria da Ficção: Indagações à obra de Wolfgang Iser. Rio de Janeiro: UERJ, 1999. KOTHE, Flávio R. A alegoria. São Paulo: Ática, 1986. ______. Para ler Benjamin. Rio de Janeiro: F. Alves, 1976. LIMA, Luiz Costa. Auerbach: História e Meta-História. In: ______. Triologia do Controle: O Controle do Imaginário. Sociedade e Discurso Ficcional. O Fingidor e o Censor. 3. ed. rev. Rio de Janeiro: Topbooks, 2007. ______. Mímesis e Modernidade: forma das sombras. 2.ed. São Paulo: Paz e Terra, 2003. ______. Figura e Evento. In: ERICH AUERBACH: V Colóquio UERJ. Rio de Janeiro: Imago, 1994. _____. Representação social e mímesis. In:_____. Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria. Rio de Janeiro: F. Alves, 1981. ______. Realismo e Literatura. In: ______. A metamorfose do silêncio. Rio de Janeiro: Livraria Eldorado Tijuca, 1974. SAID, Edward. Cultura e imperialismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. ______. Introdução a Mimesis, de Erich Auerbach. In: ______. Humanismo e Crítica Democrática. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. SELIGMANN-SILVA, Márcio. Double Bind: Walter Benjamin, a tradução como modelo de criação absoluta e como crítica. In: ______. (Org). Leituras de Walter Benjamin. São Paulo: FAPESP, 1999.

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Resumo Pretende-se analisar o romance Doña Bárbara (1929) de Rómulo Gallegos, com o objetivo de trazer uma reflexão da viagem empreendida pelo personagem Santos Luzardo, ou seja, uma viagem à memória individual e histórica, à identidade individual e coletiva. Através da afirmação de Octavio Paz (1972) de que a modernidade latino-americana é uma tradição polêmica cuja interrupção da continuidade sob um passado histórico conflitante, define a nossa modernidade como fruto da razão crítica, examina-se a questão entre civilização e barbárie na obra, colocando em evidência a relação entre literatura e política sob o fundamento da utopia e da realidade histórica. Desde o regionalismo à pretensão de universalidade, a obra de Gallegos tem como eixo central “a violência histórica e as respostas a esta violência impune: a civilização e a bárbarie. Resposta que pode ser individual, mas que enfrenta às realidades políticas da América Hispânica” (FUENTES, 1990, p.97, tradução nossa). Palavras-chaves: memória individual e coletiva; civilização e barbárie; literatura e política.


LITERATURA E POLÍTICA NO ROMANCE DOÑA BÁRBARA (1929) DE RÔMULO GALLEGOS: O PASSADO HISTÓRICO ATRAVÉS DA MEMÓRIA INDIVIDUAL E COLETIVA Igor de Serpa Brandão Pereira Leite1

INTRODUÇÃO Doña Bárbara (1929) do escritor venezuelano Rómulo Gallegos, talvez, seja uma das suas melhores obras. Neste romance, tem-se uma nova dimensão do regionalismo e identidade cultural, sob o aspecto temático e argumentativo os quais se tornam como essenciais para a literatura hispano-americana desde o século XX. Diante da problemática entre civilização e barbárie, a América latina repensará sobre suas bases coloniais como herança histórica e desenvolvimento da sociedade moderna em confluência com os seus pilares econômicos, sociais, políticos e educacionais. Certamente, repensar o futuro da América Latina como projeto ao seu pleno desenvolvimento social e econômico, implicaria o não esquecimento a seu passado histórico, da mesma maneira o não esquecimento à natureza, às crenças, às etnias indígenas, às mestiçagens, às tradições folclóricas e míticas. Este trabalho tem como objetivo analisar a relação entre Literatura e política através da questão entre ética e estética2. Será analisado a memória individual e coletiva na narrativa ficcional, procurando estabelecer o passado histórico da

1.Estudante do curso de especialização em Práticas docentes para o ensino de Língua Espanhola, na Faculdade Frassinetti do Recife (FAFIRE). Email: igorser8pa@hotmail.com. 2. O interesse em refletir sobre a relação entre literatura e política, implicará em outro questionamento, ou seja, a interface entre estética e ética. A estética é o termo que designa as formas da sensibilidade e as experiências da subjetividade e a ética tem íntima relação com a questão do valor, da cultura e do ethos. Desde Kant e Schiller, tornou-se possível pensar a estética como um modo de sensibilidade para a vida moral. O romantismo, por exemplo, foi um movimento ideológico, filosófico, estético e nacionalista que repensou as experiências da subjetividade em confluência com a natureza, identificada com a formação do ethos, da identidade cultural e da totalidade simbólica. 233


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Venezuela, revisitado a partir da história individual dos personagens do romance: Santos Luzardo e Doña Bárbara. A partir dos paradigmas da memória individual e coletiva, e da alteridade e identidade cultural, examina-se uma nova dimensão do regionalismo que dialoga no romance sobre o qual legitima a totalidade da vida llanera ou da natureza da qual é representada pela mediação paisagem/clima/ecossistema. Do regionalismo ao nacionalismo venezuelano ou do nacionalismo venezuelano ao (trans) nacionalismo, o romance de Rómulo Gallegos impõe uma critica cultural latinoamericano que tem como eixo central em promover uma literatura nacionalista, progressista e anti-imperialista, fundamentado nas questões cruciais do latinoamericano ou povo venezuelano quanto à relação civilização e barbárie, cidade e campo, progresso e tradição, ethos e identidade cultural. Procura-se estabelecer uma abordagem da dicotomia civilização e barbárie, como uma forma de investigar a distorção do modelo de sociedade ideal e do modelo de sociedade real sobre os quais encerram as formas simbólicas da narrativa (tropos), como a metáfora, a alegoria e a sinédoque.

CIVILIZAÇÃO E BARBÁRIE: MODELO DE SOCIEDADE IDEAL E REAL A problemática vigente entre civilização e barbárie na obra Doña Bárbara pressupõe a não ruptura total com a barbárie, levando em consideração a civilização como modernização e a barbárie como práticas sociais arcaicas, individualismo e egocentrismo, diante de seus aspectos negativos. Por outro lado, a barbárie pode ser considerada uma natureza humana mais espontaneamente ingênua, sem o conhecimento de causa dos seus próprios atos socialmente impostos, ou seja, sem o conhecimento da ética. O romance de Rómulo Gallegos põe em evidência as contradições entre a civilização e a barbárie, ou melhor, a civilização contra a barbárie, a barbárie como obstáculo ao modelo ideal de civilização. Mas, antecipa-se aqui, que o romance de Gallegos não pretende superar a barbárie como a fez em Facundo o civiliza234


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ción y barbárie (1845) de Domingos Faustino Sarmiento a quem foi pioneiro na explicação sociológica e histórica da América Latina. Um bongo remonta a região Araucana desde as margens do rio Apure. Nesta embarcação, há um passageiro de boa aparência, que demonstra os comportamentos do homem citadino ou civilizado. Tal personagem é Santos Luzardo, que regressa a sua terra natal, el hato de Altamira, quando decidiu viver em Caracas onde se formou advogado e por lá adquiriu uma educação formal. Terminado os seus estudos, Santos Luzardo translada para San Fernando de Apure para tentar pôr em prática algumas ações reivindicatórias, já que as savanas de Altamira há muito tempo havia sendo usurpada por Doña Bárbara. Decidiu por vender as propriedades que tinha em Altamira, mas não havia comprador, pois ninguém queria ter como vizinho Doña Bárbara. O motivo do seu regresso à origem irá proporcionar uma série de conflitos com alguns personagens que haviam roubado e apropriado das suas terras de Direito. Nesta viagem reminiscente, Santos Luzardo volta ao passado de sua infância e das recordações que tinha guardado na memória. A história dos Luzardos é também a história dos llaneros venezuelanos que habitavam as regiões desérticas e selvagens da região de Arauca e Cunaviche, onde o rio Apure corta estas regiões. Don Evaristo Luzardo, um dos personagens, era um daqueles llaneros nômades que recorriam com seus rebanhos os imensos prados de Cunaviche até fincar suas raízes na região araucana. A trágica fama dos Luzardos foi marcada por um amplo laço de desunião entre os membros desta família, devido à contradição da herança de direito aos que pertenciam à família. Uma família também patriarcal, como muitas famílias de llaneros que habitavam os llanos venezuelanos. Tal é a história do personagem Santos Luzardo que carregava para si toda uma má fama de uma família marcada pela barbárie. Mas, Santos Luzardo era diferente, tal qual é demonstrada no romance de Gallegos. A sua formação civilizada como autoridade da lei vem a cumprir uma importante missão: rever as suas terras de Direito. Mas, o contrário do que se pensa, Santos Luzardo encontra uma terra devastada por outras leis, as leis da barbárie, representada nas velhas práticas

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sociais do Caciquismo, Caudillismo e Corrupção. A civilização é representada por Santos Luzardo contra a Barbárie, representada por Doña Bárbara. Doña Bárbara é uma personagem que tinha a fama de Bruxa, pois tinha o dom de ser visionária, além dos seus instintos mais perversos cheios de cobiça, ganância e soberba. A obra de Gallegos coloca em evidência a lenda trágica de Barbarita, antes de ser conhecida como Doña Bárbara e suas perversidades. A origem trágica da Guaricha foi engendrada a partir da violência do branco aventureiro à sombria sensualidade da índia, no dramático mistério das terras virgens, como acentua o narrador onisciente. A origem de Barbarita, portanto, foi engendrada a partir dos abomináveis instintos humanos, julgados moralmente. A memória individual de Barbarita conduzia em uma imagem de uma Piragua que sulcava nos grandes rios da selva orinoqueña. Eram 06 homens piratas a bordo e o capitão a chamava de Taita. Barbarita foi uma índia mestiça que conheceu a brutalidade dos instintos humanos cujas carícias abusavam da sua natureza virginal. Asdrubal foi o primeiro homem que havia despertado em Barbarita um sentimento digno de afeto e não de ojeriza, como costumava sentir a cerca dos homens que a miravam com interesse. Contudo, a não realização do amor que sentia por Asdrubal, havia despertado os seus instintos mais perversos. Durante muitos anos, Barbarita confundia uma intensa sensualidade com a perversidade dos homens. Lorenzo Barquero foi uma das suas vítimas, pois o sentimento que movia a cerca dos homens demonstrava o seu instinto marcado pelo ódio. Nessa união com Lorenzo Barquero nasceu Marisela, a quem a mãe havia rejeitado, e depois esta personagem despertará um interesse em Santos Luzardo. Através da lenda de Barbarita, pode-se inferir que a índia mestiça foi vítima da barbárie. Rómulo Gallegos dá um sentido trágico a barbárie da colonização dominada pela concupiscência dos homens. O ódio que dominava Barbarita era a perpetuação da barbárie sendo engendrada por ela mesma. Eis o sentido da barbárie. A barbárie na obra de Rómulo Gallegos é trágica quando perpetua os fundamentos ocultos do sofrer e reconhecer. O desejo da barbárie por Doña Bárbara em prevalecer a concupiscência, a cobiça e o ódio é trágico

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no sentido dionisíaco de sofrer e reconhecer, segundo a reflexão em Friedrich Nietzsche (2006) em A origem da Tragédia. Diferente de Sarmiento a cerca do caráter antitético entre civilização e barbárie, tal como entende-se aqui a civilização contra a barbárie, o romance de Gallegos não repudia a barbárie por completo, sendo a barbárie o próprio sentido trágico da colonização e do plano moral. Quando a dura missão de Santos Luzardo em estabelecer em nome da Lei os ideais da civilização, ele se depara com a realidade das leis da barbárie, sob o autoritarismo de Doña Bárbara em tomar tudo para si os limites de Altamira. Mister Danger, por outro lado, um estrangeiro de cabelos claros e olhos azuis, pretendia com a sua alma bárbara, conquistar a terra das gentes que eram considerados inferiores por não terem cabelos claros e olhos azuis. Os mondragones eram três irmãos oriundos das llanuras de Barinas e praticavam diversos crimes naquela região até serem adotados por Doña Bárbara. Os mondragones seriam uma espécie de bandoleiros e facinorosos. Assim, Santos Luzardo haveria de lutar contra vários tipos de barbárie: o caciquismo ou caudillismo, o despotismo, a invasão e exploração estrangeira, a superioridade étnica, os bandoleiros e facinorosos e a corrupção. Mas a luta de Santos Luzardo não poderia contar com os ideais da Lei e da Justiça numa terra onde a barbárie é a própria lei. A partir daí, a obra de Gallegos põe em questão a própria contradição de impor as leis e ideais da civilização sobre as quais são fundamentadas nos juízos éticos de valor. Santos Luzardo terá que renunciar à civilização para combater a barbárie? Será mais um bárbaro a fazer justiça por conta própria? O temor de Santos Luzardo é o seu próprio medo de se tornar uma imagem ou sombra do bárbaro. Tal é a cavilação da sua própria consciência que vacila ao longo de sua jornada na terra da barbárie. Os liames entre a sociedade ideal e sociedade real não poderão ser concretizados quando a Utopia não coadunará numa terra bárbara, marcada pela violência. Os juízos éticos de valor, sob o estatuto dos ideias da civilização utópica:

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são também normativos, isto é, enunciam normas que determinam o dever ser de nossos sentimentos, nossos atos, nossos comportamentos. São juízos que enunciam obrigações e avaliam intenções e ações segundo o critério do correto e do incorreto. Os juízos éticos de valor nos dizem o que são o bem, o mal, a felicidade. Os juízos éticos normativos nos dizem que sentimentos, intenções, atos e comportamentos devemos ter ou fazer para alcançarmos o bem e a felicidade. Enunciam também que atos, sentimentos, intenções e comportamentos são condenáveis ou incorretos do ponto de vista moral. (CHAUÍ, 2000, p. 431).

Os ideais da civilização utópica, na obra de Gallegos, pressupõe uma existência ética através do discurso em promover um modelo de sociedade ideal subsumido nos princípios nacionalista e progressista. A utopia funciona “com uma vinculação centrípeta, como instâncias mediadoras entre o querer e a realidade, entre a aspiração libertária e a situação sufocante do presente” (MATA, 2012, p. 238). Karl Mannheim (1968) considera “utópicas todas as idéias situacionalmente transcendentes que, de alguma forma, possuam um efeito de transformação sobre a ordem histórico-social existente” (p. 229). Contudo, a Utopia nunca concretizará completamente na terra marcada pela barbárie. O romance de Rómulo Gallegos não pretende impor uma superação da barbárie em detrimento do triunfo da civilização. Antes, será preciso superar a barbárie de outra forma, ao contrário de negá-la. Santos Luzardo, por exemplo, precisa superar a barbárie não apenas eliminando-a, mas saber domar o seu próprio medo. Doña Bárbara também precisa superar a barbárie da qual foi vítima, não a eliminando através do seu ódio repulsivo, mas precisa superar a barbárie através da redenção. O poder alegórico da obra de Gallegos vem a demonstrar uma reflexão do binômio civilização e barbárie através do regionalismo dialógico. Define-se o regionalismo dialógico como o local da episteme cultural (cosmovisão, ethos, identidade) sob a apropriação de espaço, paisagem, ecossistema e imaginário no processo crítico de mapeamento (trans)nacional.

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No capítulo VIII do romance de Gallegos (La Doma) a llanura é bela e terrível de uma só vez. A vida llanera será marcada pelo ímpeto de expectativas múltiplas, cuja liberdade e a vontade do llanero se atará numa terra aberta e tendida, propício ao esforço e ação heroica, ao temor do llano que assusta, à vida e a morte atroz. Sempre haverá para o llanero a verdadeira prova da origem mítica que se validará em um eterno espelhismo ou numa terra de promissão e da queda, dominado pelo Bem e o Mal. Daí o sentido metafórico. O grande valor legítimo do llanero é o ato ou efeito de domar, ou seja, saber domar é refrear-se ou dominar-se a si mesmo. É o valor de dominar o próprio medo que assusta, numa terra de promissão e queda. Mais uma vez, recai-se no sentido trágico, apolíneo e dionisíaco: Experiências psicológicas fundamentais: com o nome de “apolínico” classifica-se a permanência arrebatadora num mundo imaginário e sonhado, no mundo da aparência bela, como redenção da realização; com o nome dionisíaco torna-se, por outro lado, ativa a realização sentindose subjetivamente a evolução, como o prazer intrépido do criador que conhece, ao mesmo tempo, a fúria do destruidor. Antagonismo de ambas as experiências, e dos desejos que as fundamentam. A primeira quer a aparência eternamente; diante da mesma torna-se o homem involuntário, calmo como o mar, curado, de acordo consigo e com a existência; a segunda experiência impele à realização, ao desejo da evolução, isto é, à criação e destruição. A realização, intimamente sentida e apresentada, seria o trabalho contínuo de um descontente, arqui-rico, sempre tenso e sempre impelido, de um Deus, que só pode sobrepujar a dor da existência por eterna modificação e mudança: a aparência como sua redenção conseguida a todo momento, mas apenas por alguns instantes; o mundo como conseqüência de visões divinas e redenções na aparência. (NIETZSCHE, 2006, p. 1).

O sentido apolíneo é o mundo da bela aparência e o sentido dionisíaco é o mundo da criação ou da realização. Os ideais da civilização em Santos Luzardo estão relacionados à idéia da terra prometida em nome da Justiça e do Bem, daí 239


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o sentido apolíneo. O temor de incorporar-se à barbárie será o anverso de seu sentido apolíneo, e Santos Luzardo não precisa superar a barbárie a partir do seu sentido apolíneo, a bela aparência. Logo, a tarefa de superar a barbárie tem seu pleno sentido dionisíaco, não apolíneo, através do sofrimento e reconhecimento: “Titânico” e “bárbaro” também se afigurava ao grego apolínico o efeito, que originava o Dionisíaco; sem poder ocultar-se contudo que ele mesmo era interiormente aparentado com aqueles Titãs e Heróis caídos. Sentia ainda mais: Toda a sua existência, com toda a sua beleza e moderação descansava sobre um fundamento oculto do sofrer e do reconhecer, fundamento que por sua vez lhe era descoberto pelo dionisíaco! E, eis aí! Apolo não conseguia viver sem Dionísio! O “titânico” e o “bárbaro” tinham-se tornado, por fim, necessidade tão imperativa quanto o apolínico! (...) como se fazia ouvir nestas todo o excesso da natureza em prazer, sofrimento e reconhecimento, mesmo por gritos penetrantes. (NIETZSCHE, 2006, p.4).

Doña Bárbara é uma história de provação, à medida que a civilização precisa superar a barbárie, não negando-a, e a barbárie precisa superar a barbárie, renunciando-a. A trajetória de Santos Luzardo em Altamira é a eterna prova da sua integridade moral, assim como a história de Doña Bárbara é a história da redenção.

LITERATURA E POLÍTICA Em 1911, Rómulo Gallegos participa da revista El cojo Ilustrado que discutia temas políticos centrados na cultura. Uma das marcas mais fortes desta revista é a própria riqueza de ilustrações. Uma destas ilustrações célebres é a figura do domador llanero de Celestino Martínez, que apareceu na primeira edição da revista. A vida pública de Rómulo Gallegos foi marcada por um ideal que sempre perseguiu a sua carreira política e literária: os valores culturais que devem inspirar-se no

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nacionalismo venezuelano e na idéia do progresso. Rómulo Gallegos também foi educador e exerceu enorme influência na classe intelectual e política do seu país. Os primeiros exemplares de Doña Bárbara foi editado pela editora Araluce de Barcelona em 1929. Logo, este romance torna-se a obra literária mais aclamada pelos críticos, que tem a figura do Llanero como símbolo da questão nacional. Até que o crítico López Pacheco definiu a obra de Rómulo Gallegos dizendo que o conflito entre civilização e barbárie não é só um problema de Venezuela, mas uma questão fundamental para a América Latina. Reproduz-se abaixo um trecho da entrevista de Rómulo Gallegos sobre a obra: –¿Cómo nació Doña Bárbara? –Nació en un hato de Juan Vicente Gómez... el hato de La Candelaria. Allí asimilé ese olor a vacadas y a boñiga de que mi novela está llena. También sentí, a través del cuadro campesino, el hálito de la barbarie que afligía a mi patria. Instintivamente perseguí el símbolo, y apareció con toda su fuerza la protagonista. No era aquello intencional, pero sí intuitivo. Y a eso puede quizá atribuirse el buen éxito: a la humanidad que hay en el mismo hecho extraordinario. –¿No cayó bajo la censura?... –Se comenzó a decir –y la suposición no era descabellada– que Doña Bárbara era la imagen del gomecismo. El rumor llegó a Maracay, y esto comenzó a formarme cierto ambiente hostil. A la obra se le hacía el vacío, con excepción de los comentarios que aventuraba a veces Pedro Sotillo... Pero yo me encerré en mi vida de pedagogo y literato, a soñar en el próximo libro. (1991, p. 11, grifo nosso).

A questão da barbárie que tanto afligia os ideais políticos e educacionais de Rómulo Gallegos tem uma íntima relação com a problemática da emancipação política da Venezuela e do continente latino-americano. O escopo literário, na primeira metade do século XX, foi um dos principais meios para a irrupção das Belas Artes no contexto político e intelectual da Venezuela e da América latina. O romance de Gallegos, sobre o qual se dá neste contexto histórico específico, no qual a modernidade literária legitimará a identidade cultural em política, sob o alicerce da razão crítica: 241


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La modernidad es sinónimo de crítica y se identifica con el cambio; no es la afirmación de un principio atemporal, sino el despliegue de la razón crítica que sin cesar se interroga, se examina y se destruye para renacer de nuevo. No nos rige el principio de identidad ni sus enormes y monótonas tautologías, sino la alteridad y la contradicción, la crítica en sus vertiginosas manifestaciones. En el pasado, la crítica tenía por objeto llegar a la verdad; en la edad moderna, la verdad es crítica. El principio que funda a nuestro tiempo no es una verdad eterna, sino la verdad del cambio (PAZ, 1972, p.20).

A obra de Gallegos, tem como tema central “a violência histórica e as respostas a esta violência impune: civilização e barbárie. Resposta que pode ser individual, mas que enfrenta as realidades políticas da América hispânica” ( FUENTES, 1992, p.97). Pois a obra de Gallegos trata-se de uma “história externa, que ao ser relida, nos proporciona a sensação de estar ante um verdadeiro repertório dos temas de muitos de nossos narradores haverão de retomar, refinar” (FUENTES, 1992, p.97, tradução nossa).

CONCLUSÃO Segundo a síntese de Carlos Fuentes (1992) de que o romance hispanoamericano, desde o século XX, é uma mescla entre épica, utopia e mito, sob a fundamentação do espaço memorialístico, em que a memória e o desejo, nome e voz, são “algo mais que controvérsia política, são parte da dinâmica da cultura: o artista tenta nos dar uma versão mais completa da realidade” (FUENTES, 1992, p. 96, tradução nossa). A esta “versão mais completa da realidade” através da obra de Rómulo Gallegos, certamente, implica na própria esfera mimética, não concebida aqui como uma realidade mais completa, conforme tinha dito Fuentes (1992), mas a própria realidade crítica pela irrupção da totalidade simbólica e ficcional. Doña Bárbara (1929) é uma obra completa, não só devido ao regionalismo dialógico cujo mapeamento local, nacional e (trans)nacional por intermédio 242


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da episteme cultural (cosmovisão, ethos, identidade) que conduz à unidade do romance hispano-americano em garantir a identidade cultural em política, mas também consegue no plano conceitual, refletir criticamente a cerca da temática entre civilização e barbárie, entendido aqui a partir da violência histórica. O ponto de partida para a emancipação política e histórica será imposto por intermédio da Utopia, ou seja, a esperança de um futuro melhor para a Venezuela e América latina, tal como havia idealizado Rómulo Gallegos, tal como vários autores hispano-americano haviam projetado a identidade cultural em política rumo à questão da liberação latino-americana. Esta obra, na verdade, foi uma das obras literárias mais influentes da literatura moderna hispano-americana da qual são representados pelo realismo mágico, o real maravilhoso, o neobarroco, o Boom Latino-americano que depois culminará na filosofia da liberação.

REFERÊNCIAS CHAUÍ, Marilena. Convite à filosofia. São Paulo: Ed. Ática, 2000. FUENTES, Carlos. Valiente mundo nuevo: Épica, utopía y mito en la novela hispanoamericana. México: Fondo de Cultura económica, 1992. DOÑA BÁRBARA: Ante la crítica. (org.): Manuel Bermúdez. Venezuela: Monte Ávila Latinoamericana, 1991. GALLEGOS, Rómulo. Doña Bárbara. Rio de Janeiro: Editora Record, 1974. MATA, Inocência. Ficção e história na literatura angolana: o caso de Pepetela. Portugal: Edições Colibri, 2012. MANNHEIM, Karl. Ideologia e Utopia. Rio de janeiro: Zahar Editôres, 1968. NIETZSCHE, Friedrich. A origen da tragedia: proveniente do espírito da música. Tradução: Erwin Theodor. Versão para E-book: EbooksBrasil, 2006. Disponível em:http://www. ebooksbrasil.org/eLibris/tragedia.html. Acesso em 10 Nov. 2013. PAZ, Octavio. Los hijos del Limo. Universidad de Harvard: Charles Eliot Norton Lectures, 1972.

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Resumo Este artigo visa analisar a intencionalidade presente em determinados gêneros textuais e sua capacidade de provocar reações à população. Nosso ponto de partida neste trabalho é a hipótese de que os gêneros se manifestam o tempo todo em nosso cotidiano e que influenciam diretamente na formação das concepções do sujeito. De acordo com Marcuschi, a escolha do gênero em nossa atividade discursiva não é aleatória, mas comandada por interesses específicos. A partir da análise da presença dos implícitos no corpus formado por notícias e reportagens, podemos observar como os elementos que compõem tais gêneros servem de motivação para a mudança de postura de um sujeito em relação a um determinado assunto. O objetivo geral deste trabalho é, baseado na teoria dos Atos de Fala de Austin, mostrar que a escolha do gênero, como ato locutório, tem um papel importante nos atos perlocutórios provocados. Concluiu-se, portanto, que a escolha do gênero é determinante no efeito causado pela mensagem, já que, segundo ­­­­­­­­­­­­­­­­­­­­Eliza Guimarães, todo discurso é proferido por sujeitos dominados de intenções e propósitos definidos, que se exprimem com o intuito de convencer o outro e chegar a determinadas conclusões. Palavras-chaves: Gênero textual; Atos de fala; Sujeito.


GÊNEROS DISCURSIVOS COMO FORMADORES IDEOLÓGICOS NA PERSPECTIVA DOS ATOS DE FALA Carla Bione (Facho) Geovana Felix (Facho) Grace Agra (Facho) Mariana Bezerra (Facho)

INTRODUÇÃO A comunicação é motivada pela interação social, isto é, entre duas ou mais pessoas que utilizam um sistema simbólico para trocar informações, compreendendo-as dentro de um determinado contexto. As frases usadas para tal interação, chamadas de enunciados, possuem sentidos, símbolos e intenções, causando ou não reações em quem as interpreta. Geralmente, o proferimento de algumas palavras é uma das ocorrências, senão a principal ocorrência, das várias necessárias para a realização de um ato. Mas é preciso também que, por exemplo, as circunstâncias em que as palavras foram proferidas sejam, de algum modo, convenientes para o ato, de fato, se concretizar. Desta forma, dentre outros fenômenos, este trabalho busca verificar como no dia a dia das pessoas a língua é muitas vezes “um dizer que provoca um fazer” (Austin, 1990). É inegável a necessidade de comunicação entre indivíduos de uma sociedade. Para que esse fenômeno se tornasse possível, foi necessário que houvesse adaptações nos meios pelos quais o ato da comunicação ocorre, buscando facilidade nesta interação entre sujeitos. A partir daí, surgiram diversas pesquisas sobre estes facilitadores na transmissão de determinada mensagem. Tais estudos tiveram que considerar vários aspectos, dentre eles o público a que se destina, o veículo utilizado e o objetivo da mensagem. Chegou-se, então, ao conceito de gênero textual. Os gêneros são forma de inserção, ação e controle social no dia a dia. Neste trabalho, consideram-se, basicamente, os conceitos de Bazerman e Marcuschi. 245


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Os gêneros textuais são encontrados no cotidiano e possuem função social, estilo e composição característica. Não se trata de um termo imutável, mas dinâmico, pois estamos tratando de um fenômeno usual, que atende à evolução e às necessidades da língua de um povo. Sua circulação é específica e em ambientes próprios, pois cada um tem uma função e, para atingir determinado objetivo, assume uma forma. Portanto, não se pode considerar os gêneros textuais como estruturas estáticas, visto que são representações culturais e cognitivas de ação social e retratam a dinamicidade de uma sociedade. Para Carolyn Miller (1984), apud Marcuschi (2008, p 159), “Gêneros são uma forma de ação social”. Nossa hipótese é de que os gêneros textuais agem incisivamente nas ações e reações do indivíduo e mudam drasticamente o comportamento da população. Os gêneros são utilizados em situações específicas e com intenções prédeterminadas, trazem ao interlocutor as ideologias do locutor. Para Eliza Guimarães, a ideologia é um conjunto de representações que permitem ao sujeito reconhecer-se e estabelecer-se na sociedade unida por uma concepção comum e tem uma grande capacidade de mobilizar pessoas e massas e que determina juízo de valor sobre esta ou aquela situação. Este trabalho é relevante pois permitirá um olhar nos estudos científicos da Linguística sobre o papel efetivo dos gêneros pois comprova a força de influência implícita nos gêneros textuais e a ideologia que cada discurso perpassa veladamente a cada indivíduo. O presente artigo tem como objetivo geral estudar como a intencionalidade se expressa por meio dos gêneros presentes no cotidiano da sociedade e de que maneira influencia a conduta dos indivíduos. Tal estudo procura, especificamente, desenvolver a Teoria dos Atos de Fala (Austin), e, verificar como estes se manifestam nos diálogos encontrados em determinados gêneros textuais. Pretende-se ainda, comprovar que determinados gêneros textuais são decisivos nas posturas assumidas pela sociedade e que influenciam diretamente nos conceitos e concepções do sujeito, de acordo com Maingueneau. Como aparato teórico foram usados os conceitos de Atos de Fala, de Austin (1990), de Gênero, de Marcuschi (2008), bem como de Bazerman (2011) e ainda as concepções de Sujeito, de Maingueneau e Pêcheux. Após fichamentos e devidas 246


GÊNEROS DISCURSIVOS COMO FORMADORES IDEOLÓGICOS NA PERSPECTIVA DOS ATOS DE FALA

considerações, foram analisados especificamente os gêneros notícia e reportagem que abordam os temas política, preconceito, AIDS, bebida e trânsito, no período de 2009 a 2011, a fim de identificar, nos atos locutórios, os traços ilocucionários presentes em tais gêneros. Então, após tais análises, foram atestados os atos perlocutórios, ou seja, comprovou-se, também através de tais gêneros do período, mudança significativa na postura da população.

Gêneros textuais como representação dos atos de fala Toda forma de comunicação verbal se dá mediante algum gênero. A sociedade age e se comunica por meio de gêneros textuais. Inserto nesses gêneros encontra-se a intenção de algo, fazendo deles uma forma de ação social. Age-se por meio de algum ato de fala. Quando o indivíduo se expressa por meio de um gênero, ele executa um ato da fala. Para Austin (1990), a linguagem é ação, uma ação que ocorre de uma fala. Dessa forma, os gêneros textuais podem ser vistos como uma reprodução dos atos de fala.

Conceito de gênero textual Os gêneros textuais são diferentes dos tipos textuais, eles abordam o meio em que uma informação é passada. Podemos encontrá-los em músicas, poemas, placas de trânsito, requerimentos, notícias, reportagens, etc. Os gêneros textuais integram a estrutura comunicativa da sociedade, sendo uma forma de ação social. Todo indivíduo age por meio de algum gênero textual, seja uma conversa ao telefone, seja por uma ordem em alguma placa, ou diante de uma informação por meio de uma notícia. Cada gênero textual tem uma forma e uma função na sociedade; uma notícia tem um formato específico e a função de informar algo para a sociedade, por exemplo. As tipologias textuais estão ligadas aos gêneros, podendo conter mais

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de um tipo textual presente em um determinado gênero. Por exemplo, em uma conversa via internet, pode-se encontrar uma narração e uma descrição juntas. Os gêneros textuais, para serem compreendidos, apresentam suporte. Marcuschi (2008) define suporte como “um locus físico ou virtual com formato específico que serve de base ou ambiente de fixação do gênero materializado como texto”. O suporte fixa o texto e o torna acessível no âmbito da comunicação. São dois tipos de suporte: O suporte convencional é produzido exclusivamente para textos, o suporte incidental pode apresentar algum texto, contudo ele não foi feito para essa finalidade. Ex: o corpo humano de um indivíduo escrito com uma frase de protesto é um suporte incidental, e outdoor com alguma propaganda ou aviso é um suporte convencional. O gênero textual engloba o discurso, para analisá-lo, além de levar em consideração o discurso, é preciso também observar os aspectos socioculturais, pois Segundo Bronckart (2001), os gêneros textuais são instrumentos de adaptação e participação na vida social e comunicativa, isto é, a sociedade age por meio dos gêneros. Nessa perspectiva, esse estudo consiste em analisar como os gêneros discursivos influenciam o sujeito na sociedade e como ele age de acordo com tais gêneros.

Gênero como prática discursiva O gênero textual, de acordo com Marcuschi (2008), é uma forma de legitimação discursiva, pois é por meio dele que se constroem discursos. O discurso pode estar contido em diversos gêneros, como em propagandas, notícias, em uma conversa informal, etc. Para Orlandi (2001, p. 21) o discurso seria “o efeito de sentidos entre locutores”. De acordo com Pêcheux (1969), um discurso não pode ser estudado como um texto, é preciso fazer alusão a outros discursos plausíveis, levando em consideração as condições de produção. Enquanto Maldidier (2003) afirma que

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o discurso deve ser tomado como um conceito que não se confunde com o discurso empírico sustentado por um sujeito, nem com o texto, um conceito que estoura qualquer concepção comunicacional de linguagem. (2003, p.21)

Portanto, o discurso pode ser entendido como um espaço de legitimidades enunciativas o qual possui regras sociais e históricas definidas no tempo, que regulam determinada época a função enunciativa do indivíduo ou instituição. Ou seja, o discurso demarca uma identidade. É o que afirma Maingueneau: O discurso não é nem um sistema de “ideias”, nem uma totalidade estratificada que poderíamos decompor mecanicamente, nem uma dispersão de ruínas passível de levantamentos topográficos, mas um sistema de regras que define a especificidade de uma enunciação. (2008, p.19)

Logo, o discurso não pode ser entendido somente como um conjunto de textos, mas como prática discursiva, uma vez que produz efeitos de sentido no outro e no próprio locutor. O campo semântico da linguística, extrapolando o enunciado e a enunciação, possibilita, segundo Maingueneau (2008) “tornar esses textos comensuráveis com a “rede institucional” de um “grupo”, aquele que a enunciação discursiva ao mesmo tempo supõe e torna possível”. Segundo Orlandi (2012), não existe discurso neutro, sendo todo discurso ideológico. A língua e a ideologia estão presentes nos discurso. Todo sentido de uma palavra é determinando por alguma posição ideológica do sujeito, inserta em um contexto social e histórico. Sendo, dessa forma, o sujeito marcado ideologicamente. Dessa forma, os interlocutores podem enunciar a mesma fala e, mesmo assim, produzir diferentes efeitos de sentido para o que foi dito. Isso acontece devido ao fato do sujeito possuir ideologias diferentes do outros interlocutores.

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A teoria dos atos de fala nos gêneros Nossa língua é composta de elementos os quais nos auxiliam na comunicação com o outro e com o mundo. Esses elementos podem expressar uma ordem, uma declaração, etc. A ação de falar pode provocar diversas situações em algum tipo de gênero textual, inclusive desentendimentos por conta da estrutura gramatical que, muitas vezes, não se relaciona com o contexto. A Filosofia da Linguagem Ordinária estudou o ato de falar e percebeu como as construções gramaticais podem ser confusas. Para tanto, Austin (1990) questionou teorias que explicassem questões, exclamações e sentenças que expressam comandos, desejos e concessões. Segundo Austin, a linguagem é ação, ação advinda de uma fala. Partindo desse pressuposto, o enunciado foi dividido pelo autor em performativos e constatativos. Existem declarações que apenas dizem algo sobre o mundo, não expressa ação. Para esse tipo de enunciado, Austin chamou de constatativo. O ato constatativo trabalha com a concepção de verdadeiro e falso. Se tal declaração não foi verdadeira, ela ainda assim existirá. O exemplo “A sala está vazia” é um enunciado constatativo, pois não houve nenhuma ação expressa, apenas uma declaração. Os enunciados performativos são aqueles que expressam algo quando são ditos. Expressam uma ação quando são pronunciados. O exemplo “Ordeno que saia da sala” provoca uma ação por meio da linguagem. Austin chamou todos os verbos da primeira pessoa do modo indicativo de verbos performativos, por indicarem ação em um enunciado. Austin dá, dentre outros, o seguinte exemplo: “Batizo este navio com o nome de Rainha Elizabeth” – quando proferido ao quebrar-se a garrafa contra o casco do navio. [...] Esses exemplos deixam claro que proferir uma dessas sentenças (nas circunstâncias apropriadas, evidentemente) não é descrever o ato que estaria praticando ao dizer o que disse, nem declarar que o estou praticando: é fazê-lo. (1990, p.24)

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Enquanto o ato constatativo trabalha com a concepção de verdadeiro e falso, o performativo analisa as situações de felicidade, que são as situações as quais permitem a ação. No exemplo “Eu os aprovo”, as situações de felicidade necessárias são um ambiente acadêmico, um docente, etc. Após essa divisão, Austin percebeu que mesmo sem os verbos performativos, o ato performativo poderia ocorrer. Analisando a situação do contexto, uma estrutura constatativa poderia tornar uma performativa. No exemplo “A sala está quente”, pode ser apenas uma declaração ou pode provocar uma ação quando alguém age para ligar um condicionador de ar. Austin divide os atos de fala em três níveis de ação linguística: locucionário ou locutório, ilocucionário ou ilocutório e perlocucionário ou perlocutório. O locucionário é apenas a declaração emitida, o ilocucionário é a intenção de provocar uma ação e o perlocucionário é o efeito que tal intenção causou. Os três níveis podem ocorre em uma mesma sentença. No exemplo “Eu autorizo o aluno a ir à biblioteca”, tem-se o ato locucionário (a declaração feita), o ilocucionário (a intenção de provocar que o aluno vá ao local desejado) e o perlocucionário (quando o aluno vai ao local ordenado). Se o ato perlocucionário não ocorre, ou seja, se o aluno não vai à biblioteca, ocorre uma situação de infelicidade, isto é, não houve condição para a ação acontecer. Austin separa o ato ilocucionário do perlocucionário conforme citação abaixo: O efeito equivale a tornar compreensível o significado e a força da locução. Assim, a realização de um ato ilocucionário envolve assegurar sua apreensão. O ato ilocucionário “tem efeito” de certas maneiras, o que se distingue de produzir consequências no sentido de provocar estado de coisas de maneira “normal”, isto é, mudanças de no curso normal dos acontecimentos. (1990, p. 98)

Contudo, percebe-se que o ato ilocucionário tem relação com a produção de efeitos em determinados sentidos, enquanto o ato perlocucionário conceitua-se na produção de alguma conseqüência. Dessa forma, percebe-se que nos gêneros 251


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textuais encontramos a presença dos atos locucionário e perlocucionário, pois em uma propaganda de camisinha, por exemplo, a intenção é que o indivíduo se previna contra as doenças sexualmente transmissíveis, ocorrendo o ato locucionário, e quando o mesmo usa o produto, havendo a ação, ocorreu o ato perlocucionário. Com isso ratifica-se que o gênero é uma forma de ação social.

A influência dos gêneros textuais na formação do sujeito Todo gênero possui mais que uma mera proposta informativa, pois ele é constituído de um discurso que possui interdiscursos e, esse mesmo gênero, repassa a textos posteriores ideias que determinam mudanças sociais em vários âmbitos da vida, pois como afirma Bazerman (2011,p.22) “cada texto se encontra encaixado em atividades sociais estruturadas e depende de textos anteriores que influenciam a atividade e a organização social.” Portanto, os gêneros são formadores de fatos sociais ou atos de fala. Bazerman (2011, p.23) conceitua fatos sociais como “as coisas que as pessoas acreditam que sejam verdadeiras e, assim, afetam o modo como elas definem uma situação.” Mas, para que isso aconteça, faz-se necessário que esses fatos sociais sejam encarados como verdades. Se a informação da existência de um mosquito transmissor da dengue fosse revelada por um indivíduo embriagado, certamente o efeito que se obteria seria qualquer um, menos o de prevenção por parte da população. Pois, se as pessoas não acreditassem que a picada do mosquito da dengue poderia ocasionar danos à saúde, certamente não tomariam ações preventivas. Em contrapartida, se elas acreditassem, logo tomariam a medidas necessárias. Isso se dá porque como afirma Austin (1990) as palavras não limitam-se a afirmações, mas realizam coisas. Contudo, Bazerman (2011) declara que para que as nossas palavras sejam transformadas em atos, elas devem ser proferidas pela pessoa certa, na situação certa, com a soma exata de compreensões. Dessa forma, se esse ato enunciativo é realizado pelo Ministério da Saúde, de forma recorrente, por intermédio

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de propagandas, notícias ou é publicado nas capas de uma revista amplamente conhecida, esse “dizer” instigará um “fazer”, ou seja, um fato social. Pois, para que o ato de fala seja bem-sucedido, é primordial a existência das condições de felicidade, conforme já visto neste trabalho. No caso analisado, ocorre um fato social. Primeiro, há uma tipificação dos gêneros citados, pois entendemos que eles enunciam fatos sociais, reais. Isso difere do pacto ficcional pré-existente entre o autor e o leitor de um romance que mimetiza a realidade. Segundo, porque ao escrevê-los o autor fortalece seus argumentos com declarações de especialistas, depoimentos pessoais, resultado de pesquisas com órgãos responsáveis. Sendo assim, o texto torna-se um lugar de encontro com diferentes formas discursivas e cede lugar a essas diferentes vozes que influenciam e formam opiniões. Terceiro, porque ao ler, o sujeito direcionase para um espaço social comunicativo onde ele adota atitudes e possibilidades de ação daquele lugar. Se ele ler que evitar os focos das larvas do mosquito não só evita a dengue como é uma ação de cidadania, possivelmente ele se sentirá instigado a se reposicionar para ocupar o papel de cidadão consciente, digno de admiração. Como salientado neste trabalho, os gêneros estão na sociedade não apenas para declarar, mas para causar ações. Eles são utilizados como meio para persuadir outros a respeito do que pensamos, desejamos. E a recorrência de determinados temas nos diferentes gêneros, faz com que haja uma mudança nas formações discursivas dando continuidade ao constante processo de heterogeneidade discursiva e a formação dos atos perlocucionários.

O sujeito na perspectiva do gênero No que se refere ao sujeito há diferentes conceitos considerados pela análise do discurso, porque decorrente de cada noção de discurso, têm-se diferentes noções de sujeito.

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Para a Análise do discurso, o sujeito não é originador do próprio discurso, pois o processo discursivo é formado por uma máquina discursiva, ou seja, o seu discurso é um enunciado delimitado por regras específicas. Dessa forma, quem fala é uma instituição, uma teoria ou uma ideologia. Na Análise do discurso, o sujeito não mais representa uma unidade, ele representa a ideia de função, ou seja, a sua fala depende da posição que ele ocupa no espaço interdiscursivo. Sendo assim, para que o seu discurso faça sentido, é necessário que ele se guie pela formação ideológica atribuída a sua posição social. Na perspectiva da Análise do Discurso francesa, a noção de sujeito deixa de ser uma noção idealista, imanente: o sujeito da linguagem não é o sujeito em si, mas interpelado pela ideologia. Dessa forma, o sujeito não é a origem, a fonte absoluta do sentido, porque na sua fala, outras falas se dizem. Na AD, o sujeito constituído na e pela linguagem é sujeito do inconsciente; sujeito marcado ideologicamente. Assim, para Pêcheux e Fuchs (1975/1990), a ilusão do sujeito se dá quando ele esquece que é assujeitado pela formação discursiva em que está inserido ao enunciar e por acreditar que é consciente de tudo que diz e por isso é controlador dos sentidos de seu discurso. Como ainda afirma Marcushi (2012, p.70) “Em suma pode-se dizer que o sujeito não é nem assujeitado nem totalmente individual e consciente, mas produto da relação entre linguagem e história.” Dessa forma, um texto possui traços de textos anteriores e, como todo gênero possui discurso e todo discurso, ideologia. O indivíduo não está isento de influenciar e ao mesmo tempo de ser influenciado a agir na sociedade. Porque o discurso é formado pela interpretação textual que, ao relacionar língua e história, constrói um sentido originador de uma ideologia e sendo a ideologia a condutora das ações, o indivíduo age porque é um sujeito influenciado por ela. Vê-se então que os gêneros são poderosos instrumentos, pois ao ler um texto, o indivíduo automaticamente faz uso de sua memória discursiva e relaciona esse texto com outros antecedentes e com isso essa teia infinita de discursos que perpassam uns pelos outros seguem infinitamente criando a formação discursiva de acordo com a história, com a sociedade. Os gêneros não são escritos de forma

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aleatória, mas de acordo com as necessidades e intenções do sujeito que os escreve direcionados aos sujeitos nos quais ele se relaciona. A linguagem acompanha o tempo e o tempo é feito na e pela linguagem. Uma propaganda de lingerie não utilizará uma mulher vestida com uma lingerie do primeiro século, a menos que queira mostrar como a mulher conquistou independência sexual no decorrer da história, pois quem a produz é um ser social consciente de que atualmente esse tipo de vestimenta não supre as necessidades das mulheres,visto que a sexualidade feminina é muito mais externada do que no passado e, quando se pensa em passado nesse campo discursivo, automaticamente se atrela a isso a ideologia da subalternização, lugar do qual a mulher moderna quer distância. Ele sabe disso porque os diferentes gêneros ao longo do tempo discorrem a respeito desse tema e esse sujeito autor por assim dizer usará dessa memória discursiva para vender, para persuadir o público alvo a respeito do seu produto. Logo, para fazer uma propaganda de lingerie feminina ele usará imagem de uma mulher sedutora, com um corpo bem definido de acordo com os estereótipos modernos. Dessa forma ele não estará vendendo uma peça, mas o poder de sedução, a perfeição, liberdade sexual, o fetiche ou feitiço que, Segundo Freud, faz do erotismo uma prazerosa relação com as peças íntimas por meio do qual a satisfação pessoal se dá através de objetos ou ornamentos. E assim, o público alvo, as mulheres, passará a olhar para esse objeto com anelo, pois influenciadas por essas ideologias, se identificarão com aquela imagem de poder, sedução. Muitas movidas e assujeitadas pelas ideologias implícitas no discurso farão uso do produto achando que, ao vesti-lo, acionarão o botão da supremacia feminina ficando lindas e irresistíveis. Portanto, os gêneros são grandes responsáveis pelas ações sociais, sendo utilizados pelo sujeito e para o sujeito como mecanismos de atingir os seus desejos e dar continuidade aos diversos sistemas na sociedade.

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A persuasão implícita nos discursos como mecanismo formador dos fatos sociais Conforme ressaltado neste trabalho, todo gênero textual possui discurso que é repleto de interdiscursos e, consequentemente, ideologias, como afirma Austin (1970) quem fala possui uma intenção que, nem sempre, é meramente informativa. Nesse aspecto, a reportagem, tal como a capa de revista, são gêneros bastante representativos, pois os discursos e interdiscursos neles contidos, podem ser facilmente identificáveis por meio de uma análise dos elementos semióticos e escolhas lexicais. Um dos meios de evidenciar mais claramente isso é considerar conceitos como imparcialidade e objetividade no jornalismo, visto que, uma análise minuciosa do material – segundo os preceitos da Análise do Discurso, pode revelar, exatamente, o oposto: parcialidade e subjetividade. Para isso, iremos analisar a capa da revista (1) Veja do dia 05 de Maio de 2010 “Ser jovem e gay, a vida sem dramas”, bem como a reportagem (2) que discorrem a respeito do tema da homossexualidade. Apresentando, por meio da análise dos dois gêneros citados, como estes podem influenciar as ações sociais. Texto 1

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Ao analisar a capa da revista Veja do dia 05 de Maio de 2010, não é difícil identificar os interdiscursos presentes nos elementos fotográficos e textuais apresentados. A capa da revista apresenta a imagem de um jovem agachado e enquadrado num ângulo de 90 graus, de forma atípica, por meio da qual, a ideia de que ele está prestes a sair de algum lugar, é suscitada. Esse jogo semiótico surge acionando uma memória discursiva no receptor que remete a expressão popular “saiu do armário”, com o intuito de mostrar que há uma parte da sociedade que percebe a homossexualidade como um posicionamento fora do padrão e, por isso, alguns tendem a escondê-la. Contudo, simultaneamente, a imagem mostra alguém que não se encontra com uma expressão de temor, por se sentir ameaçado ou constrangido, pois, o jovem sorri , olha adiante. E as linhas que sucedem o título complementam: ”[...] assumiu-se gay para a família e os amigos aos 14”, o verbo “assumir” denota uma atitude de autoaceitação, ou seja, estar num posicionamento (sexual) diferente e assumi-lo, não significa sentir-se vítima, infeliz ou sem perspectiva. O título diz: “Jovem e gay”. Observa-se que essa escolha na posição dos termos, suaviza o possível impacto causado ao leitor, diferente do que seria: Gay e jovem. Além da atenuação desse impacto, há a ideia de equiparação dos substantivos, no intuito de transparecer que, ser gay é tão natural quanto ser jovem, ou seja, as escolhas lexicais e o posicionamento dos termos no título da reportagem expressam uma intenção por parte desse sujeito autor de suavizar a polêmica em volta do assunto, bem como de “naturalizá-la”. Dando continuidade a ideia expressa do gênero capa da revista (1), que possui um caráter mais imediatista visando impactar e instigar no público leitor o interesse sobre o tema, a reportagem(2) dá seguimento aos discursos apresentados na capa(1), porém, com mais amplitude. O autor fortalece os argumentos utilizados no gênero anterior (1), esmiuçando o tema.

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A reportagem1 inicia por tentar transmitir ao leitor a ideia da inerência da homossexualidade. Conforme podemos observar no trecho seguinte. (2) [...] “No início da adolescência, já me sentia atraída por meninas. Aluna de um colégio de freiras havia crescido ouvindo que o amor entre pessoas do mesmo sexo era algo imperdoável, mas nunca vi a coisa assim. [...] A mim, parecia natural. Aos 14, até tentei namorar um menino. Não funcionou. Um ano depois, quando me apaixonei de verdade por uma garota [...] Por que me sentir uma criminosa por algo que, afinal, diz respeito ao amor?”

Ao iniciar o texto com depoimentos em primeira pessoa, a reportagem, momentaneamente, oculta sua voz e dá lugar a um processo de efeito monológico, onde o leitor é envolvido pela voz de quem narra. E os termos destacados como no trecho da reportagem surgem como elementos indicadores de tempo e constância, ou seja, não há o que modificar, sempre foi assim. As expressões “o amor entre as pessoas”, “me apaixonei de verdade”, surgem conduzindo o tema para o campo discursivo do sentimento, visto que na sociedade o sexo é discutido no âmbito dos preceitos morais, mas o amor, o sentimento, é tido como sinônimo de pureza e inerência a vida, como enfatiza a indagação no final do depoimento: “Por que me sentir uma criminosa por algo que, afinal, diz respeito ao amor?” Com isso, o discurso do preconceito é enfraquecido e faz com que o leitor pergunte-se: Será que não é mesmo natural? Essa busca pela ideia de naturalidade e apelo emocional é recorrente como um forte mecanismo de persuasão, pois o termo “natural’ é citado mais de seis vezes ao longo do texto. E depoimentos das mães dos jovens representam um forte apelo emotivo. Pois o personagem da mãe apresenta-se como um sujeito dividido, por um lado ela nega a realidade e sofre e com a homossexualidade do

1. Reportagem veiculada na Revista Veja em maio de 2010. 258


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filho – “Acho que toda mãe percebe, a contragosto e com dor, quando seu filho é gay [...] Cheguei a rezar anos a fio por um milagre”, mas, a seguir, se reposiciona e enuncia do lugar de mãe – “Passado o choque, entendi que meus sonhos em relação a ele precisariam ser completamente reconstruído [...] Sinto que o fato de uma mãe tomar essa iniciativa ajuda a espantar o preconceito”. Assim, o texto se aproxima do leitor levando-o a uma atitude responsiva ativa. Ao ler o relato, o leitor é induzido a identificar-se com a figura materna, os termos “mãe” e “filho” permeiam todo o relato. Desta feita, a questão da homossexualidade perde o espaço para a relação mãe-filho e, nesse jogo emotivo, o discurso da mãe emerge e se sobrepõe. A incitação à memória discursiva do leitor também perpassa por toda a reportagem, pois citar os jovens como exemplos no que se refere à ausência de preconceito, reforça a ideia de que é necessário se modernizar, visto que a imagem do jovem é uma metáfora do futuro e diferir disso é estar no passado, ou seja, é ser antiquado, preconceituoso, intolerante e ignorante. A repetição como ênfase (a homossexualidade não é uma escolha), o forte apelo emotivo e a incitação à memória discursiva, como mencionado, são fortes mecanismos utilizados nos dois gêneros a fim de persuadir, de induzir o sujeito a agir de acordo com as ideologias ali apresentadas, pois a recorrência desses discursos repletos de interdiscursos e, consequentemente de ideologias a respeito de um determinado tema, tenderá a causar uma mudança na postura desse cidadão em relação à homossexualidade, pois como defendido neste trabalho, o sujeito enuncia inscrito num espaço discursivo demarcado pela formação ideológica que o rege. Como Brandão afirma: “O sujeito do discurso é um sujeito ideológico, isto é, sua fala reflete os valores, as crenças de um momento histórico e de um grupo social. (...) Na sua fala outras vozes também falam, o sujeito do discurso se forma, se constitui nessa relação com o outro, com a alteridade.” (BRANDÃO, 2010, p.09).

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O sujeito se constitui numa relação com o outro por alteridade, ou seja, para ser homem social ele interage e interdepende de outros indivíduos. Logo, o leitor tendo acesso a discursos em gêneros recorrentes de que a homossexualidade é natural, que pode ocorrer na sua família e que não aceitá-la é ‘antiquado’ e sinônimo de ‘ignorância’, paulatinamente ele se reposicionará para não ser visto na sociedade de forma indiferente Vê-se, que os gêneros são instrumentos formadores da cidadania, e agem de acordo com a intenção pretendida. Como Bazerman afirma: “O surgimento do gênero está intricadamente ligado às mudanças nas relações e nos papéis profissionais, às mudanças institucionais, ao surgimento de normas e identidades profissionais, à ideologia, à epistemologia, à ontologia e à psicologia. “(BAZERMAN, 2005, p.60)

Portanto, a sua circulação diversa tem uma grande importância social, pois é por meio deles que agimos na sociedade e instigamos o outro a agir. É digno de nota salientar que a reportagem e a capa da revista “Ser jovem e gay, uma vida sem dramas”, da revista Veja, não estão inseridas dentro do veículo como textos de cunho opinativo. Todavia, ao escrever sobre a homossexualidade de forma sutil, não agressiva, o autor consegue um efeito mais contundente do que se falasse diretamente a respeito do preconceito sexual. Embora se apresente primariamente como um ato locucionário, uma análise mais aprofundada poderá revelar as intenções, ou seja, os atos ilocucionários existentes nos dois gêneros, com o objetivo de causar no leitor atos perlocucionários,ou seja, o não preconceito em relação a homossexualidade. Pois como Foucault apud Mainguenau (2008 p.16) afirma, discurso é: Um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em cada época, e para uma área social, econômica, geográfica ou linguística dada, as condições de exercício da função enunciativa.

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Vê-se, portanto, que o discurso atravessa discretamente os gêneros tornandoos, por meio das ideologias, condutores de ações almejadas para a sociedade.

A propaganda e as notícias na prevenção da AIDS A notícia e a propaganda são gêneros textuais que circulam em sociedade de maneira constante, de modo que os cidadãos formam opiniões e executam ações por meio de tais gêneros. O discurso transmitido por eles faz o sujeito agir no meio social de acordo com a mensagem passada. Nos gêneros publicitários e jornalísticos encontramos discursos de prevenção, conscientização, altruísmo, etc. No âmbito do discurso sobre prevenção, tem-se o combate à AIDS, uma doença na qual já se vem lutando há alguns anos. É bastante comum encontrar na sociedade propagandas sobre a prevenção da AIDS, sobretudo em época de carnaval. Em uma campanha realizada no carnaval de 2011, no estado de Tocantins (vide anexo), a secretaria de saúde publicou em um outdoor os seguintes enunciados: Texto 2

“Não esqueça ste abadá. Preserve sua saúde para os próximos carnavais”. No canto esquerdo superior tem-se o seguinte enunciado: “Sou do bloco da vida”. 261


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De acordo com a teoria da Análise do Discurso de Linha Francesa, no enunciado “sou do bloco da vida”, encontra-se a presença do interdiscurso. De acordo com Orlandi (2001, p. 31), o interdiscurso “é definido como aquilo que fala antes, em outro lugar”. Isto é, tal enunciado já foi dito antes, em carnavais passados, e só faz sentido porque houve um já-dito. No enunciado “não esqueça este abadá”, ainda de acordo com a AD de Linha Francesa, houve um deslizamento de sentido, pois o termo “abadá” remete ao preservativo, ressignificando o sentido da palavra, que passa a ser o de prevenção. Enquanto na frase “preserve sua saúde para os próximos carnavais”, percebe-se o verbo no imperativo, comum no gênero publicitário, chamando a atenção da sociedade sobre a importância do uso do preservativo em relação à saúde. No gênero notícia, pode-se identificar fenômenos persuasivos semelhantes. A notícia publicada no portal do Diário de Pernambuco, em 28/11/2011, com o título “AIDS maior entre jovens gays preocupa Ministério” (anexo II) apresenta o ato ilocucionário que poderá permitir atos perlocucionários esperados. No título, percebe-se a ideia da repetibilidade, segundo a Teoria da Análise do Discurso de Linha Francesa, considerando que a AIDS foi descoberta anos atrás. O discurso de antes denominava a AIDS de “câncer gay”, em que o preconceito contra os homossexuais era altíssimo. Para dar credibilidade ao texto, a notícia faz uso de estatísticas em que tais apontam o público homossexual como sendo o público mais afetado, entretanto a notícia faz um contraponto notado no fragmento abaixo: Ainda que identificadas essas tendências, o Ministério da Saúde assinala que não existe população mais ou menos vulnerável e que o problema é de comportamento. “Sexo sem proteção é o fator de maior predisposição para a infecção”, Assinalou o secretário de Vigilância em Saúde, Jarbas Barbosa.

Esse fragmento mascara a ideia da repetibilidade do discurso, pois o sentido da ideia de “câncer gay” não cabe mais na sociedade de hoje, logo ele foi refutado. Hoje, o discurso é combater a AIDS e o preconceito, por isso que a discrimina262


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ção no texto não fica evidente e é logo disfarçada por fragmentos do mesmo tipo supracitado e por dados estatísticos. Pode-se notar a ludibrio do preconceito em mais um fragmento abaixo: “A AIDS não escolhe pacientes, não escolhe cara”, acrescentou o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que salientou que o estigma em torno da AIDS atrapalha o conhecimento sobre a infecção e o tratamento. “Preconceito afasta as pessoas do diagnóstico”, ponderou o ministro.

Nesse trecho percebe-se a escolha lexical para enfatizar que o preconceito contra quem é portador do vírus é mais grave do que a própria doença, nota-se isso no enunciado “preconceito afasta as pessoas do diagnóstico”. O verbo “afastar” está transmitindo a ideia de que a falta de conhecimento sobre a AIDS por conta do preconceito, faz com que a pessoa infectada não procure ajuda. Com alguns esclarecimentos sobre a AIDS, vistos no decorrer da análise, o leitor adquire conhecimento sobre o assunto, passando a conhecer melhor sobre esse universo e, com isso, o preconceito começa a diminuir na sociedade.

A notícia e a reportagem na organização do trânsito Tal como já foi ressaltado, os gêneros textuais são os textos que encontramos no nosso cotidiano e que singularizam padrões sociocomunicativos específicos definidos por composições funcionais e objetivos enunciativos. Os gêneros se expressam em situações diversas, como a notícia e a reportagem que foram estabelecidas como objetos de análises no presente texto. É muito comum reconhecermos rapidamente quando um texto pertence a um ou outro tipo familiar, porque distinguimos algumas características textuais que nos anunciam que tipo de mensagem pode ser aquela. Tratando-se de uma notícia, reconhecemos o seu propósito de nos informar sobre uma determinada ocorrência. Trata-se de um texto bastante corriqueiro nos meios de comunicação, seja impressa em jornais ou revistas, propagada pelo mun263


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do virtual ou retratada pela televisão. Por conseguinte, espera-se que a mensagem publicada seja clara, objetiva e precisa, eximindo-se de quaisquer possibilidades que possam ocasionar diversas interpretações por parte do alocutário. Bazerman (2005, p.36-37) considera os textos escritos mais complexos de serem analisados, pois cada sentença pode encerrar vários atos de fala, o que amplia a sua problematização. Não obstante, consideramos o texto de um modo geral focando em uma ou algumas ações dominantes que definem sua intenção e propósito. Por serem situados histórica e socialmente, os gêneros são adjacentes a constituição do sujeito que é representado pelo autor. É nesta função como autor que sua relação com a linguagem está submetida ao controle social. Desde que nos estabelecemos como seres sociais, estamos inseridos num espaço sociodiscursivo em que os gêneros são utilizados como instrumentos de domínio e manipulação, sendo que seu poder depende de nossa inserção e poder social. No gênero notícia, o discurso se manifesta linguisticamente no texto. A linguagem enquanto discurso é interação. É insigne que o enunciado produzido pelo autor (sujeito) incorpora atos de fala, portanto a produção de uma notícia não é neutra uma vez que todo o processo está engajado numa intencionalidade representada pelo ato ilocucionário. Observemos que, no seguinte trecho (A) extraído de uma notícia que relata um acidente de trânsito veiculada na internet, é possível ir de encontro às marcas do discurso que está intrínseco ao léxico selecionado pelo sujeito que se constitui como autor ao constituir o texto. (A) “Um homem embriagado [...] causou um acidente de trânsito e matou uma pessoa em Olinda, Pernambuco. O atropelamento aconteceu na madrugada deste sábado. [...] Segundo a polícia, o nível de álcool no sangue do suspeito estava acima do permitido.” (O globo. Mecânico embriagado pega carro de cliente, atropela e mata motociclista em Olinda. Recife, 2010. Disponível em: <http:// oglobo.globo.com/pais/mecanico-embriagado-pega-carro-de-clienteatropela-mata-motociclista-em-olinda-2969021> Acesso em: 23 maio 2013.)

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O sujeito constitui uma ideologia e essa ideologia é perpassada ao alocutário, por vezes de forma inconsciente. Ao caracterizar o substantivo “homem” com o adjetivo “embriagado”, o autor propaga a ideia de que, por estar embriagado, o homem causou o acidente de trânsito. Em outras palavras, se o homem não houvesse ingerido bebida alcoólica, o acidente não seria uma realidade. Em sequência, o autor expõe o que foi dito por uma entidade de autoridade, a polícia, de forma a comprovar que a atitude do motorista, o homem, não foi adequada. Ou seja, uma vez embriagado, não se deve dirigir. Diferentemente de uma notícia, que apresenta um caráter mais imediato, o gênero reportagem acrescenta detalhes e contextualização ao que foi relatado. Na reportagem há a necessidade de uma pesquisa mais detalhada e ampliação do fato principal. Nesse tipo de texto, a subjetividade do autor pode aparecer de forma mais explícita, por meio de expressões em primeira pessoa. Sendo assim, o discurso passado carregará algumas significações específicas de uma estrutura social correspondente a qual sujeito está imerso. Numa reportagem, o autor levanta as consequências e os dados atribuídos aos acidentes de trânsito quando o fator determinante é o motorista que consume bebidas alcoólicas. Em geral, nas reportagens aparecem comentários de especialistas entrevistados pelo autor na tentativa de obter mais dados para o texto. No caso deste fragmento (B) retirado de uma reportagem do Diário Catarinense online, foi questionado ao presidente do Movimento Nacional para Educação no Trânsito (Monatran), Roberto Bentes de Sá sua opinião sobre a imprudência no trânsito. (b) [...] “é preciso ter responsabilidade e não dirigir alcoolizado. [...] Antes de pegar o volante, faça uma reflexão. A vida é o bem maior que Deus nos deu. Tem que parar e pensar porque não é só a própria vida que está em risco, mas a vida de outras pessoas também”. [...] (Bulegon, Melissa. Embriaguez ao volante já causou 799 acidentes em rodovias federais de Santa Catarina. Santa Catarina, 2011. Disponível em: < http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/noticia/2010/11/ embriagemb-ao-volante-ja-causou-799-acidentes-em-rodovias-federaisde-santa-catarina-3106936.html. Acesso em: 02 junho 2013.) 265


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De acordo com a Análise do Discurso, o sentido é determinado pelas posições ideológicas colocadas em jogo no processo sócio-histórico em que as palavras são produzidas, logo, as palavras adquirem um novo sentido de acordo com quem as emprega. Como considerado no exemplo anterior (B), a opinião de uma autoridade ou alguém que dispõe de conhecimento sobre o tópico versado é levado em alta consideração e acrescenta veracidade e legitimação ao que está sendo debatido, pois essa autoridade é baseada numa série historicamente desenvolvida de compreensões e instituições. Se tais palavras fossem produzidas por alguém que não tivesse um reconhecimento aceito socialmente, o discurso seria tomado como vazio. Como já salientado, a reportagem levanta dados específicos de forma a autenticar os fatos apresentados pelo autor. No trecho que se segue (C), extraído da mesma reportagem em análise, o autor evidencia, ao levantar números concretos que destacam o grande número de acidentes que são relacionados ao consumo de álcool, a gravidade de tais ocorrências de modo que o alocutário se identifique como sujeito na sociedade. (C) [...] “Até 31 de outubro, somente em rodovias federais, foram 799 acidentes relacionados ao consumo de álcool, com 33 mortos e 148 vítimas graves. A rodovia campeã em quantidade deste tipo de ocorrência é a BR-101, a mais movimentada de SC, com 334 registros.”. (Bulegon, Melissa. Embriaguez ao volante já causou 799 acidentes em rodovias federais de Santa Catarina. Santa Catarina, 2011. Disponível em: < http://diariocatarinense.clicrbs.com.br/sc/noticia/2010/11/ embriagemb-ao-volante-ja-causou-799-acidentes-em-rodovias-federaisde-santa-catarina-3106936.html. Acesso em: 02 junho 2013.)

É na relação entre o discurso que está sendo expedido e o sujeito que podemos apreender o jogo entre a liberdade do alocutário (sujeito que se identifica com o discurso) e a responsabilidade do autor (sujeito que perpassa o discurso). O texto discorrido em forma de reportagem apresenta números que podem ou 266


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não serem tomados como reais, e, se tomados como verdadeiros, as pessoas agirão de acordo com a veracidade dos dados expostos, validando assim as definições de gênero textual como representação dos atos de fala por intermédio dos exemplos acima expostos.

Os gêneros textuais e a formação política Vários gêneros textuais têm sido veículo de influência nas decisões políticas. O ato ilocucionário presente revela a intenção de quem a produz, o que, muitas vezes, tem produzido efeitos desejados nessa área. Vejamos neste fragmento de um depoimento dado pelo então presidente Lula num depoimento: Fragmento 1 “Boa luta companheiros! E vamos eleger Dilma a primeira mulher presidente do país”. (http://www.youtube.com/watch?v=VBvFqOoqKWg, acessado em 15/08/2010)

Nas eleições à presidência do Brasil, em 2010, o então presidente Luiz Inácio da Silva (Lula), apoiou Dilma Rousseff como sua candidata também nas redes sociais, como foi citado acima. Ao encorajar os eleitores, Lula usa a expressão “companheiros” que significa cúmplice, colaborador, conivente, parceiro, com a intenção de enfatizar a ideia de que são íntimos, amigos. Com isso, exalta a importância de cada um dos votos de seus aliados na campanha. Além disso, o presidente convoca-os a eleger Dilma, ratificando que ela será a primeira mulher a ser presidente num país onde, desde o início da república, todos os líderes foram homens. A candidata, à época, afirmou que daria continuidade ao governo do presidente Lula, mas do seu jeito:

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Fragmento 2 “Não é por acaso que depois desse grande homem o nosso Brasil possa ser governado por uma mulher. Uma mulher que vai continuar o Brasil de Lula, mas que fará um Brasil de Lula com alma e coração de mulher”. (Texto extraído de: http://www1.folha.uol.com.br/poder/750272-dilmadiz-que-vai-governar-com-alma-e-coracao-de-mulher.shtml, acessado em: 13/06/2013)

Em suas palavras, a então candidata à presidência, a pessoa e a gestão de Lula chamando-o de ‘grande homem’ ao passo que, sutilmente, insinua que seu governo será tão bom para o povo quanto o dele. Fica claro em seu ato locutório que Dilma pretende sensibilizar a população com o fato de ser mulher. Ao afirmar que ‘fará um Brasil de Lula com alma e coração de mulher’, ela, intencionalmente, faz os eleitores perceberem que as qualidades femininas farão a diferença na sua administração. Sutilmente, pretendia tocar em especial ás eleitoras. O autor da notícia, ao colocar tal declaração, tem a intenção de sensibilizar o eleitor sobre a capacidade de fazer um bom governo da candidata através da sua suposta honestidade e fazer com que ela seja eleita. Ficou por pouco o triunfo já no 1º turno, depois de uma onda de rumores e outra de denúncias envolvendo seu passado. Dilma foi acusada de integrar grupo terrorista que visava implantar o comunismo no país. Fragmento 3 “Segundo o Serviço Nacional de Informações (SNI), a militante Dilma Vana Rousseff (ou Estela, ou Wanda, ou Luiza, ou Marina, ou Maria Lúcia)... se casou duas vezes, militou em duas organizações clandestinas que defendiam e praticavam a luta armada, mudou de casa frequentemente para fugir da perseguição da polícia e do Exército, esteve em São Paulo, Minas Gerais, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, adotou cinco nomes falsos, usou documentos falsos, manteve encontros secretos dignos de filmes de espionagem, transportou armas e dinheiro obtido em assaltos, aprendeu a atirar, deu aulas de marxismo, participou de discussões

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ideológicas trancada por dias a fio em “aparelhos”, foi presa, torturada, processada e encarou 28 meses de cadeia.” (Revista Época , em 04/01/2010)

No excerto da notícia, o uso da fonte das informações do passado da candidata é feito propositalmente a fim de dar credibilidade às informações que serão dadas. Em seguida, a exposição de diversos adjetivos dá a Dilma a imagem de falsária, impostora, desonesta. No trecho “militou duas vezes organizações clandestinas que defendiam e praticavam luta armada”, o verbo ‘defender’ diz que a candidata apoia atos de violência e o adjetivo ‘clandestina’ remete à falta de legalidade. Tanto a relação de estados onde viveu quanto a de atos que praticou, atribuem à ela um perfil marginal. A futura presidente foi capa de revistas, manchetes de jornais e tema de diversas reportagens, de maneira negativa, por um longo período. Fragmento 4 “A vitória de Dilma Rousseff nas eleições presidenciais, com o apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, é dada quase como certa, mas as acusações de corrupção contra a aliada próxima podem reduzir sua liderança ou mesmo “ofuscar o início de sua presidência em um momento crucial para o Brasil”. (http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2010/09/17/escandalotira-o-brilho-da-candidatura-de-dilma-diz-jornal.htm , em 17/09/2010)

O fragmento mostra nitidamente as consequências das acusações feitas à Dilma neste período. O autor da notícia somente ratifica o fato de que a popularidade caiu, apesar de não tê-la impedido de ganhar. Independente das acusações feitas contra Dilma, grande parcela da população passou a manifestar-se a favor da futura presidente, o que foi comprovado através das primeiras pesquisas feitas na época. Vejamos no exceto a seguir:

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Fragmento 5 “Empenhados na eleição da postulante ao maior cargo político do país, as entidades consideram o ato, como prova da reafirmação dos compromissos firmado por Dilma durante o Encontro Nacional de Negros e Negras, realizado em Brasília, em junho de 2009.” (Texto extraído de: dilmanarede.com.br/minas-vota-dilma, em 26/10/2010)

O autor da notícia enfatiza que grupo referido mostra-se completamente a favor e disposto a lutar pela vitória da candidata de Lula. Pode-se perceber claramente no uso da palavra ‘empenhados’ mostra que os seus integrantes se dedicarão com afinco e persistência para conseguir eleger aquela que acreditam ser a melhor opção à presidência do Brasil. Sua intenção é de influenciar a opinião do eleitor e fazê-lo votar na candidata, como a ‘maioria’, segundo ele.

Os atos perlocutórios dos gêneros textuais Com todas as abordagens que já foram feitas sobre o que comporta os gêneros textuais, é notório salientar o vínculo entre os gêneros, os enunciados e os atos de fala. Uma vez que o estudo dos gêneros diz respeito à língua em seu cotidiano nas mais distintas formas e é considerado como o modo em que o ser humano dá forma às atividades sociais, seria impossível estabelecer uma comunicação social sem efetivar os gêneros por meio dos enunciados. O enunciado é a unidade real do discurso em que há uma interação entre os sujeitos falantes. É por meio da linguagem que o homem se constrói como sujeito, dado que somente ao produzir um ato de fala, ele constitui-se como eu. O eu subsiste-se no tu. Essa relação é indispensável para que a linguagem se torne discurso. Todo discurso é endereçado a um interlocutor. O locutor (eu) não constrói o seu discurso à parte da imagem que convoca o seu alocutário (tu). Ao ouvir e compreender o enunciado, o alocutário toma para si atitudes responsivas, ou seja, ele atua sobre os outros estabelecendo relações contratuais, causando efeitos sobre os senti270


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mentos, pensamentos ou desencadeando ações. Esses efeitos são consequências das perlocuções. São resultados obtidos ao se realizar um ato locucionário e, por conseguinte, um ato ilocucionário.

A postura da sociedade na relação entre bebida e trânsito As pessoas criam realidades de significação, relação e conhecimento por meio dos textos que são transmitidos pelos gêneros textuais. Cada gênero se encontra em atividades sociais estruturadas e estabelece condições que levam a atividades subsequentes. Tomando como exemplos os gêneros analisados, a notícia e reportagem, constata-se que os textos sustentados nesses gêneros originam realidades ou fatos. Desse modo Bazerman (2005, p. 23) apresenta os fatos sociais e os conceitua como: [...] “coisas que as pessoas acreditam que sejam verdadeiras e, assim, afetam o modo como elas definem uma situação. As pessoas, então, agem como se esses fatos fossem verdades.”

Uma vez que a sociedade delimita a situação contemplada nos gêneros como genuína, por conseguinte suas consequências também serão reais. Os fatos sociais afetam os enunciados, que por sua vez é constituído por atos de fala. Visto que o ato ilocucionário está relacionado com a produção de efeitos em certos sentidos, Austin (1990, p. 30) versa sobre as condições de felicidade e infelicidade dos atos performativos. Para que haja um performativo feliz, é indispensável a existência de um procedimento convencional, a certeza de um efeito convencional. As palavras específicas proferidas pelas pessoas assinaladas nas circunstâncias adequadas, e todo o rito deve ser executado por todos os participantes de forma correta e completa. A forma como as pessoas recebem os atos e determinam as consequências desse ato corresponde ao ato perlocutório. No excerto de uma reportagem (A) que se segue o autor apresenta dados levantados por uma entidade pública de modo a verificar os efeitos causados em relação ao trânsito após um período de circulação de gêneros que expunham a gravidade dos acidentes ocorridos. 271


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(A) “De acordo com levantamento do Ministério da Saúde, as mortes provocadas por acidentes de trânsito caíram 6,2% no período de 12 meses após a Lei Seca, quando comparado aos 12 meses anteriores à Lei. Esse índice representa 2.302 mortes a menos em todo o País, reduzindo de 37.161 para 34.859 o total de óbitos causados pelo trânsito.” (Diário do Nordeste. Lei Seca reduz número de mortes em 6,2%. Ceará, 2010. Disponível em: <http://diariodonordeste.globo.com/materia. asp?codigo=802913> Acesso em: 02 junho 2013)

O fragmento (A) enfatiza números significativos que evidenciam uma assimilação por parte de uma sociedade em relação aos gêneros que abordavam os acidentes de trânsito. O texto propagado pelo gênero representa o ato ilocucionário (feliz) que determina a proibição do consumo de álcool ao condutor de algum meio de transporte que ocasiona uma inferência, um ato perlocucionário. Neste fragmento (A), o autor apresenta à sociedade as consequências que sucederam à criação da Lei Seca. É notável que o levantamento feito pelo Ministério da Saúde evidencia um declínio nas mortes provocadas por acidentes de trânsito (por motoristas embriagados) durante o período de atuação da lei, o que comprova que o discurso foi assimilado por uma parte da sociedade. Além do enfraquecimento do número de mortes em acidentes causados no trânsito, também foi possível vislumbrar outras consequências a partir deste contexto, como salienta a seguinte passagem (B) extraída do gênero reportagem. (B) “Os gastos com esse tipo de internação também diminuíram consideravelmente desde a implantação da Lei Seca. Nos primeiros seis meses do ano passado, foram R$ 65 milhões. Entre junho e dezembro, R$ 2 milhões, uma redução de 35,5%.” (CARDOSO, William. Internações por acidente de trânsito recuam 28,3%. São Paulo, 2009. Disponível em: <http://www.dgabc.com.br/ Noticia/338696/internacoes-por-acidente-de-transito-recuam-28-3-> Acesso em: 09 junho 2013

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Nesta reportagem ao Diário Do Grande ABC, o autor realça para além da redução do número de mortes, antes manifestada. O autor se direciona para as despesas dos hospitais ao admitir pacientes que possam ter sofrido um acidente de trânsito. Com a mudança da sociedade que parece ter admitido que misturar trânsito e bebida alcoólica é arriscado, os gastos contabilizados no período anterior à exposição feita pelos gêneros jornalísticos foram igualmente subtraídos. Logo, é indubitável o poder do funcionamento do gênero textual – notícia e reportagem – ao perpassar atos ilocucionários aos leitores, como destacar os acidentes de trânsito como causas inadmissíveis, e admitindo como resultado a minoração das mortes nos acidentes que ocorrem no trânsito tanto quanto a baixa de custos dos hospitais.

As transformações sociais em relação à homossexualidade advindas dos atos de fala Podemos observar no que diz respeito ao preconceito sexual que os discursos contidos nos gêneros capa da revista e reportagem da veja analisados no tópico anterior tornaram-se fatos sociais, porque percebemos que a preocupação em ocultar a homossexualidade está cada vez menor como representado pelas muitas celebridades nos mais diferenciados gêneros e como mostra o fragmento abaixo retirado da revista Veja em 10 de abril de 2013 que discorre a respeito da cantora Daniela Mercury sobre o seu relacionamento com uma pessoa do mesmo sexo. [...] No cabeçalho escreveu a frase que provocaria mais de 17 000 reações de “curtir “coladas à revelação: “Malu agora é minha esposa, minha família, minha inspiração pra cantar.”

O fragmento citado mostra que houve mais 17 000 ações de “curtir” o que revela uma aprovação por parte da população em relação ao tema. Como também mostra o outro fragmento retirado de uma reportagem da revista Época que discorre acerca do mesmo assunto:

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[...] Não houve outro assunto nas redes sociais na quarta-feira, 3 de abril. O nome da artista esteve nos tópicos mais comentados do Twitter. No Google, em poucas horas havia meio milhão de referências sobre o tema. O casal gostou da reação do público. “O apoio dos brasileiros mostra que somos um povo avançado e civilizado. E mais uma vez os brasileiros mostraram que Feliciano não nos representa”

O fragmento da reportagem da revista época além de demonstrar o apoio do público, revela um outro indicador dessa mudança que é a reação desaprovadora de uma considerável parte da sociedade em relação aos que se opõem a relação com pessoas do mesmo sexo. Como bem ilustrado pelas reações causadas pelas declarações da cantora Joelma indicadas pelo fragmento a seguir: Após a publicação de sua entrevista para o colunista Bruno Astuto, da revista “Época”, na qual comparava gays a drogados, Joelma, cantora da banda Calypso, causou a ira de internautas, entre eles alguns famosos, no Twitter. (Disponível em: < http://ego.globo.com/famosos/noticia/2013/03/ joelma-critica-gays-e-provoca-ira-de-internautas-e-famosos-no-twitter. html< Acesso em: 13 de Setembro de 2013.)

O site Ego enfatiza essa reação contrária por usar o termo “ira” para expressar o sentimento dos internautas. Essa mudança é reflexo dos recorrentes discursos de naturalização, do apelo emotivo e da “modernização do pensamento” mencionados no tópico anterior de referido trabalho e que atuam como transmissores de ideologias que conduzem aos efeitos perlocucionários .Outro ponto que deve ser levado em consideração é o ato ilocucionário por parte dos gêneros reportagem em destacar principalmente a reação desaprovadora do público,pois se um gênero expõe apenas um lado ele visa conduzir o leitor para o lugar de senso comum , assim as ideologias são facilmente transmitidas e a massa é assujeitada sem a execução do poder reflexivo.

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Os atos perlocuciuonários provocados na política a partir de notícias Com as notícias apresentando vozes favoráveis a Dilma, vejamos os resultados obtidos. Tendo em vista a alta popularidade de Lula, o apoio dado por ele à candidata petista foi bastante significativo para os resultados positivos tipos por ela em pesquisas feitas no período. Gráfico I - http://veja.abril.com.br/multimidia/infograficos/eleicoes-2010-presidente

É notória a disparidade entre os resultados das pesquisas sobre as intenções de votos no período. A candidata apoiada pelo presidente Lula, Dilma Rousseff, aparece com quase cinquenta por cento das intenções de voto para a presidência do país. Ela é preferência em todos os estados do Nordeste e aparece também, com representatividade significativa nas regiões Norte, Centro-Oeste, Sudeste e Sul. Em seguida, aparece o candidato da direita, José Serra, com pouco mais de 275


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trinta por cento do total nacional. É inegável que tais resultados tão favoráveis à Dilma tiveram notória influência de todas as notícias que usaram Lula a favor da candidata. De todo o trabalho desenvolvido por Lula a favor da candidata por meio de diversos gêneros textuais. Fica comprovada aí a reação popular à influência de um presidente tão bem quisto pela população. Mas as acusações feitas a ela por meio de reportagens, notícias e outros, na época da sua candidatura, fizeram com que, automaticamente, perdesse a credibilidade e despencasse no ranking das intenções de voto, o que pode ser comprovado no gráfico a seguir: Gráfico 2 - http://veja.abril.com.br/multimidia/infograficos/eleicoes-2010-presidente

Depoimento de Dilma Em suas primeiras palavras, Dilma agradeceu aos “brasileiros e brasileiras” de quem “recebeu a missão mais importante da vida”, e se comprometeu a lutar pela igualdade de oportunidades no país. Para a 276


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futura presidente, o resultado de hoje consagra o “princípio essencial da democracia”. (http://noticias.r7.com/eleicoes-2010/noticias/em-1-discurso-dilmaagradece-lula-e-diz-que-batera-a-sua-porta-20101031.html. Acessado em 10/07/2013)

Tais acusações fizeram a simpatia dos eleitores cair bruscamente, o que elevou a popularidade de Serra e, por consequência, os levou ao segundo turno. Percebe-se claramente que, antes dos cidadãos brasileiros irem às urnas pela segunda vez, a popularidade dos dois candidatos é semelhante e as intenções de voto equilibradas. Conclui-se, por tanto, que o efeito que os gêneros notícia e reportagem tiveram na sociedade no período das eleições foi bastante incisivo, trazendo os resultados supostos no início deste estudo.

Quando o dizer expressa uma ação Após a propaganda e a notícia alertando sobre a AIDS, o número de pessoas infectadas pelo vírus reduziu 33%, de acordo com o relatório da ONU, divulgado no dia 23 de setembro de 2013. Esses dados estão presentes na notícia em anexo que saiu no portal da Folha de São Paulo, este ano. A mudança na sociedade em relação à AIDS é divulgada a princípio no título da notícia, como observado abaixo: Novas infecções com o vírus Aids caem 33%, desde 2001, diz relatório da ONU

Isso se faz notar a presença do ato perlocutório, quando o ato de dizer expressa uma ação. No corpo do texto, percebemos outros dados comprobatórios em relação ao número de infectados: [...]Em 2012, foram 2,3 milhões, 1,1 milhão a menos do que 11 anos antes.

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Isto é, após a notícia e a propaganda sobre a AIDS e a prevenção, cerca de um milhão de pessoas há menos foram infectadas no ano de 2012. Esses são dados mundiais da ONU refletindo as ações dos países que combatem o vírus, incluindo o Brasil. Desde o ano de 2001, que o número de infectados vem diminuindo, como mostra o gráfico abaixo:

A notícia ainda destaca a queda pela metade do número de infetados pelo vírus em alguns países: A Unaids, órgão da ONU que cuida do combate à AIDS, acrescenta que em pelo menos 26 países o percentual caiu mais de 50% e destaca a redução

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de crianças infectadas -- ao todo, 260 mil contraíram o HIV em 2012, uma queda de 52% em relação ao período de 2001.

Percebe-se, portanto, que tais gêneros causaram um efeito na sociedade, provocaram mudanças no agir do sujeito, tendo como resultado, a redução de pessoas infectadas pelo vírus da AIDS no Brasil e no mundo.

Considerações finais Partindo do pressuposto teórico apresentado no presente trabalho, comprovase que toda ação linguística contém traços argumentativos e que toda forma de comunicação se dá através de algum gênero textual dotado de uma intencionalidade e que influencia diretamente nas ações de um indivíduo. Com a análise feita nos textos selecionados, comprovamos o processo nato da língua de persuadir e neles foram encontradas estratégias argumentativas que atestam a inexistência do mito da neutralidade da língua. O presente artigo focou os objetivos na análise da presença de atos locutórios, ilocutórios nos gêneros textuais “reportagem” e “notícia” e perlocutórios caudados por eles. Os dados foram analisados à luz dos princípios da teoria dos atos de fala. Por meio de alguns exemplos, procurou-se demonstrar como a relação entre os atos de fala produzidos pelos locutores/interlocutores causam impactos e reações esperadas. Ao analisar o contexto em que foram produzidos os atos de fala, percebemos que a intencionalidade está inscrita nos enunciados produzidos em situações de interação e interlocutores específicos com objetivos também definidos. Com esta pesquisa, atestamos que a variedade de gêneros textuais que permeiam a sociedade é reflexo da necessidade que os indivíduos têm de convencer uns aos outros sobre determinado assunto. A intencionalidade se faz presente em cada discurso transmitido por qualquer que seja o gênero e o locutor tem tal consciência e utiliza-o de modo a favorecer sua intenção. O interlocutor, por

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sua vez, muda ou não sua postura sobre o tema tratado. Analisar o que se passa nas entrelinhas, qual a intenção do locutor e a escolha lexical feita por ele nos possibilita um melhor entendimento dos fatos linguísticos. Vale ressaltar que reconhecer que a língua, em qualquer situação discursiva, traz aspectos argumentativos é de suma importância, não apenas para os estudiosos da área, mas para qualquer cidadão, já que, saber dos efeitos de sentido que a linguagem produz torna o falante/ouvinte apto a utilizá-la com criticidade e autonomia.

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ANEXOS Anexo I Especial A geração tolerância Os adolescentes e jovens brasileiros começam a vencer o arraigado preconceito contra os homossexuais, e nunca foi tão natural ser diferente quanto agora. É uma conquista da juventude que deveria servir de lição para muitos adultos. UMA TURMA COLORIDA Paulo, William, Marcus, David, Charles, Akira, Jefferson (de pé, da esq. para a dir.); e Harumi e Daniele (sentadas): eles abriram o jogo para os pais ainda na adolescência Longe do estereótipo "Sempre tive atração por meninas, só que morria de vergonha de me aproximar delas e revelar o que sentia. Precisei de alguns anos para aceitar, eu mesma, a ideia. Foi na internet que consegui arranjar a primeira namorada. Quando a coisa ficou séria e eu quis levá-la a minha casa, contei a meus pais, que, como era esperado, sofreram. Meus amigos também já sabem que sou homossexual. No começo, estranharam. Nunca me enquadrei no estereótipo da menina gay, masculinizada, mas não tenho dúvida quanto à minha opção. O melhor: depois de um processo difícil, isso acabou se tornando natural para mim e para todos à minha volta." Harumi Nakasone, 20 anos, estudante de artes visuais em Campinas Apresentar boletim escolar com notas ruins, bater o carro novo da casa, arrumar inimizade com o vizinho já são situações difíceis de enfrentar diante do tribunal familiar, com aquela atemorizante combinação de intimidade com autoridade dos

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pais. Imagine parar ali diante deles e dizer a frase: “Eu sou gay”. Não é fácil para quem fala, menos ainda para quem ouve. As mães se assustam, mas logo o amor materno supera o choque do novo. Os pais demoram mais a metabolizar a novidade. A orientação sexual ainda é e vai ser por muito tempo uma questão complexa e tensa no seio das famílias. Isso muda muito lentamente. O que mudou muito rapidamente, porém, foi a maneira como a homossexualidade é encarada por adolescentes e jovens no Brasil. Declarar-se gay em uma turma ou no colégio de uma grande cidade brasileira deixou de ser uma condenação ao banimento ou às gozações eternas. A rapaziada está imprimindo um alto grau de tolerância a suas relações, a um ponto em que nada é mais feio do que demonstrar preconceito contra pessoas de raças, religiões ou orientações sexuais diferentes das da maioria. Esses meninos e meninas estão desfrutando uma convivência mais leve justamente em uma fase da vida de muitas incertezas, quando a aceitação pelos pares é decisiva para a saúde emocional e mental. Isso é um avanço notável. Por essa razão talvez, a idade em que um jovem acredita que definiu sua preferência sexual tem caído. Uma pesquisa feita pelas universidades estaduais do Rio de Janeiro (Uerj) e de Campinas (Unicamp) tem os números: aos 18 anos, 95% dos jovens já se declararam gays. A maior parte, aos 16. Na geração exatamente anterior, a revelação pública da homossexualidade ocorria em torno dos 21 anos, de acordo com a maior compilação de estudos já feita sobre o assunto. À frente do levantamento, o psicólogo americano Ritch Savin-Williams, autor do livro The New Gay Teenager (O Novo Adolescente Gay), resumiu a VEJA: “O peso de sair do armário já não existe para os jovens gays do Ocidente: tornou-se natural”.

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Lailson Santos A mãe torce para que ele ache um bom companheiro "Aos 16 anos, quando contei à minha mãe que preferia os homens às mulheres, ela ficou possuída de raiva. Eu achava que a notícia não causaria tanta comoção. Não havia aberto o jogo sobre minha sexualidade, mas tinha certeza de que minha mãe já desconfiava. Nunca levava garotas em casa nem falava delas. O dia em que contei tudo, no entanto, foi um divisor de águas para nós dois. A relação ficou muito tensa. É interessante como a coisa, depois, vai sendo assimilada. Ela abandonou o sonho de me ver chefe de uma família tradicional e, no lugar disso, passou a sonhar com um bom companheiro para mim. Isso ainda não aconteceu. Hoje, no entanto, minha vida é ótima. Não escondo das pessoas de que mais gosto o que realmente sou." Gabriel Taverna, 19 anos, estudante de São Paulo

Os jovens que aparecem nas páginas desta reportagem, que em nenhum instante cogitaram esconder o nome ou o rosto, são o retrato de uma geração para a qual não faz mais sentido enfurnar-se em boates GLS (sigla para gays, lésbicas e simpatizantes) - muito menos juntar-se a organizações de defesa de uma causa que, na realidade, não veem mais como sua. Na última parada gay de São Paulo, a maior do mundo, a esmagadora maioria dos participantes até 18 anos diz estar ali apenas para “se divertir e paquerar” (na faixa dos 30 o objetivo número 1 é “militar”). A questão central é que eles simplesmente deixaram de se entender como um grupo. São, sim, gays, mas essa é apenas uma de suas inúmeras singularidades - e não aquela que os define no mundo, como antes. Explica o sociólogo Carlos Martins: “Os jovens nunca se viram às voltas com tantas identidades. Para eles, ficar reafirmando o rótulo gay não só perdeu a razão de ser como soa antiquado”. Ícone desses meninos e meninas, a cantora americana Lady Gaga os fascina justamente por ser “difícil de definir o que ela é”. São marcas de uma geração que, não há dúvida, é

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bem menos dada a estereótipos do que aquela que a precedeu. Diz, com a firmeza típica de seus pares, a estudante paulista Harumi Nakasone, 20 anos: “Nunca fiz o tipo masculino nem quis chocar ninguém com cenas de homossexualidade. Basta que esteja em paz e feliz com a minha opção”.

Miriam Fichtne Não era uma fase "No início da adolescência, já me sentia atraída por meninas. Aluna de um colégio de freiras, havia crescido ouvindo que o amor entre pessoas do mesmo sexo era algo imperdoável, mas nunca vi a coisa assim. A mim, parecia natural. Aos 14, até tentei namorar um menino. Não funcionou. Um ano depois, quando me apaixonei de verdade por uma garota, resolvi contar a meus pais. Minha mãe repetia: ‘Calma que passa, é uma fase’. A aceitação da ideia é um processo lento, que envolve agressões de todos os lados e decepção. Sei que contrariei o sonho da minha família, de me ver de grinalda e com filhos, mas a melhor coisa que fiz para mim mesma foi ser verdadeira. Por que me sentir uma criminosa por algo que, afinal, diz respeito ao amor?" Amanda Rodrigues, 18 anos, estudante de artes visuais no Rio de Janeiro

A tolerância às diferenças, antes verificada apenas no ambiente de vanguardas e nas rodas intelectuais e artísticas, está se tornando uma regra - especialmente entre os escolarizados das grandes cidades brasileiras. Uma comparação entre duas pesquisas nacionais, distantes quase duas décadas no tempo, dá uma ideia do avanço quanto à aceitação dos homossexuais no país. Em 1993, uma aferição do Ibope cravou um número assustador: quase 60% dos brasileiros assumiam, sem rodeios, rejeitar os gays. Hoje, o mesmo porcentual declara achar a homossexualidade “natural”, segundo um novo levantamento com 1 500 adolescentes de onze regiões metropolitanas, encabeçado pelo instituto TNS Research International. O mesmo estudo dá outras mostras de como a

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maior parte dos jovens brasileiros já se conduz pela tolerância em vários campos: 89% acham que homens e mulheres têm exatamente os mesmos direitos e em torno de 80% se casariam com alguém de outra raça ou religião. “À medida que as pessoas se educam e se informam, a tendência é que se tornem também mais intransigentes com o preconceito e encarem as questões à luz de uma visão menos dogmática”, diz a psicóloga Lulli Milman, da Uerj. Foi o que já ocorreu em países de alto IDH, como Holanda, Bélgica e Dinamarca. Lá, isso se refletiu em avanços na legislação: casamentos gays e adoção de crianças por parte desses casais são aceitos há anos. No Brasil, onde não há leis nacionais como essas, a apreciação fica sujeita a cada tribunal.

Ainda que o preconceito persista em alguns círculos, atingiu-se um estágio de evolução em que professá-lo se tornou um gesto condenável pela maioria - um sinal de progresso no Brasil. Nas Forças Armadas, onde a aversão a gays sempre se pronunciou em grau máximo (apesar de o regimento interno repudiar a perseguição aos homossexuais), a diferença é que, agora, quando surge um caso desses entre os muros do Exército, o assunto logo suscita indignação. Ocorreu com um general que, neste ano, veio a público posicionar-se contra a presença de gays nas Forças Armadas. Sob pressão, precisou retratar-se. Recentemente, o lutador de vale-tudo Marcelo Dourado, 38 anos, surgiu no programa Big Brother Brasil, da Rede Globo, dizendo que “homem hétero não pega aids”. Além de uma bobagem, a declaração foi tachada de preconceituosa - e a Globo precisou ocupar seu horário nobre com as explicações do Ministério da Saúde sobre o tema. Mesmo que às vezes usados como bandeira por bandos de militantes paparicados por políticos em busca de votos, pode-se dizer que tais episódios apontam para uma direção positiva. Afirma o filósofo Roberto Romano: “A experiência mostra que o desconforto com o preconceito cria um ambiente propício para que ele vá sendo exterminado”.

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Miriam Fichtner Assumidos, mas discretos "Aos 15 anos, depois de alguns flertes com meninos e nenhuma relação com meninas, conheci meu atual namorado. Apaixonado e angustiado por viver escondido, achei que não havia outro caminho senão abrir a questão para os meus pais. Até hoje, não falamos muito sobre o assunto, mas eles já aceitam a situação, e até levo o Leandro para dormir lá em casa. Às vezes, andamos de mãos dadas, mas não trocamos beijos em público. Não preciso ficar expondo minha sexualidade. Prefiro as boates que meus amigos, gays ou não, frequentam ao circuito GLS." Victor Guedes, 19 anos, produtor de moda (à esq.), com o namorado Luiz Leandro Caiafa, 20, estudante de ensino técnico no Rio de Janeiro

A notícia de que um filho é homossexual continua a causar a dor da decepção a pais e mães (descrita pela maioria dos ouvidos por VEJA como “a pior de toda a vida”). Com pavor de uma reação violenta do pai, meninos e meninas preferem, em geral, contar primeiro à mãe. “Quando meu filho me disse que gostava de meninos, sabia que os velhos sonhos teriam de ser substituídos por algo que eu não tinha a menor ideia do que seria”, relata a analista financeira paulista Suerda Reder, 41 anos. É com o tempo que a vida vai sendo reconstruída sob novas expectativas. Dois anos depois da revelação, o namorado de Victor, filho de Suerda, frequenta sua casa sem que isso seja motivo de constrangimento. Muitos pais já compreendem (com algumas idas e vindas) que, ao apoiar os filhos, estão lhes prestando ajuda decisiva. “Quando a própria mãe trata o fato com naturalidade, a tendência é que o preconceito em relação a ele diminua”, diz a estilista gaúcha Ana Maria Konrath, 55 anos, em coro com uma nova geração de mães - também mais tolerantes. O que elas sabem por experiência a ciência em parte já investigou. Segundo um estudo americano, conduzido pela Universidade Estadual de São Francisco, jovens gays que convivem em harmonia com os pais raramente sofrem de depressão, doença comum entre vítimas de preconceito.

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Miriam Fichtner

"Nunca me escondi" "Cheguei a beijar garotas, mas foi só quando troquei o primeiro beijo com um menino, aos 14 anos, que senti uma emoção real. Era tão claro para mim que resolvi contar a meus amigos mais próximos da escola que era gay. A princípio, eles estranharam. Cheguei a ser alvo de olhares tortos e gritos de ‘bicha’, mas logo passou. Quando contei a meus pais, no ano passado, eles no fundo já sabiam. Nunca me preocupei em levar garotas para casa só para me passar pelo que não era. Também não tenho necessidade de ficar me reafirmando gay na frente dos outros. Isso é bobo demais. Para mim, é só mais uma de minhas características." Hector Gutierrez, 17 anos, estudante do 3º ano do ensino médio numa escola particular de Minas Gerais

Um conjunto de fatores ajuda a explicar o fato de a atual geração gay ser mais livre de amarras - alguns de ordem sociológica, outros culturais. Um ponto básico se deve à sua aceitação por outros adolescentes. Para esses jovens, o conceito de tribo perdeu o valor, como chamou atenção o antropólogo americano Ted Polhemus, por meio de suas pesquisas. Ele apelidou essa geração de “supermercado de estilos” - ou só “sem rótulos”. Nesse contexto, não há mais lugar para algo como o grupo em que apenas ingressam os gays ou os negros, algo que as escolas brasileiras já ecoam. Antes fonte de tormento para alunos homossexuais, alvo de piadas, quando não de surras e linchamentos, o colégio se tornou um desses lugares onde, de modo geral, impera a boa convivência com os gays. Um sinal disso é que a ocorrência de casos de bullying por esse motivo tem caído gradativamente. “É também mais comum que eles andem de mãos dadas no recreio, sem ser importunados, ou que se tornem líderes de tur287


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ma”, conta a pedagoga Rita de Cássia, da Secretaria de Estado de Educação do Rio de Janeiro. Os próprios colégios reconhecem que, no passado, conduziam a questão à sombra de certo preconceito. “Se surgia um aluno gay, tratava-se imediatamente o assunto como um problema, e os pais eram logo chamados”, lembra Vera Malato, orientadora no Colégio Bandeirantes, em São Paulo. “Hoje a postura é apenas dar orientação ao aluno se for preciso.”

"Meus sonhos precisaram ser reconstruídos" "Acho que toda mãe percebe, a contragosto e com dor, quando seu filho é gay. Sempre tive certeza disso em relação ao Igor, mas alimentava esperanças de que ele mudasse. Cheguei a rezar anos a fio por um milagre. No dia em que meu filho finalmente se abriu comigo, aos 17 anos, fiquei sem chão. Passado o choque, entendi que meus sonhos em relação a ele precisariam ser completamente reconstruídos. Não escondo mais de ninguém que meu filho é homossexual. Sinto que o fato de uma mãe tomar essa iniciativa ajuda a espantar o preconceito. Sempre que arranja um namorado, ele frequenta a minha casa e saímos juntos. Meu filho está feliz. Não é isso que todos nós buscamos?" Ana Maria Konrath, 55 anos, estilista gaúcha, mãe de Igor Konrath, 20, estudante de comunicação social

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Para boa parte dos jovens gays de hoje, a vida subterrânea nunca fez sentido. Diz o produtor de moda carioca Victor Guedes, 19 anos: “Desde que ficou claro para mim que meu interesse era pelo sexo masculino, não pensei em esconder isso dos meus pais. Só esperei a hora certa para abrir o jogo, com todo o tato”. É gritante o contraste com as gerações anteriores, às quais lança luz o livro Cuidado! Seu Príncipe Pode Ser uma Cinderela (a ser lançado pela editora Best Seller), das jornalistas Consuelo Dieguez e Ticiana Azevedo. O conjunto de depoimentos ali reunido revela o sofrimento diário enfrentado por políticos, diplomatas e figurões do mercado financeiro que nunca saíram do armário.

Miriam Fichtner Ele conta tudo no Twitter "Solitário, aos 14 anos resolvi dividir com a minha irmã aquilo que já era muito claro para mim: gostava de meninos, e sabia que isso decepcionaria minha família. Ela chorou, disse que logo essa fase passaria, e o pior: contou para todo mundo. Minha família chegou a me encaminhar ao psicólogo. Depois, à igreja. Não foi fácil, mas o alívio de compartilhar a situação me transformou em outra pessoa. Pouco falo sobre meus namoros, e agiria da mesma forma se eles fossem com meninas. Fico, no entanto, bem à vontade para falar de minha vida amorosa no Twitter, no qual tenho mais de 1 700 seguidores. De onde menos se espera às vezes ainda vem uma agressão gratuita, mas a coisa está mudando para melhor." Lucas El-Osta, 17 anos, estudante do 2º ano do ensino médio no Rio de Janeiro

Ao longo da última década, a indústria do entretenimento tem refletido, de forma acentuada, as mudanças culturais em relação à sexualidade. Na televisão, nunca houve tantas séries retratando o universo gay. Entre as produções de maior sucesso, figuram o seriado americano Glee, que tem como um dos protagonistas um adolescente

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recém-assumido gay para o pai, e The L Word, sobre um grupo de lésbicas atraentes e chiques de Los Angeles. Nas novelas brasileiras, os homossexuais já não são mais tratados de maneira tão caricatural. “É possível exibir na TV a vida comum de casais gays sem que isso provoque a rejeição do público, como no passado. Hoje, esses personagens fazem o maior sucesso”, analisa Manoel Carlos, autor da atual novela das 8, Viver a Vida. Isso não só ajuda a levantar o diálogo sobre a homossexualidade em casa como ainda minimiza a resistência a ela. O rol de celebridades que se assumem gays também cumpre, em certo grau, esse papel. O último a deixar o armário foi o cantor porto-riquenho Ricky Martin, autor do sucesso Livin’ la Vida Loca, que, aos 38 anos, declarou ser gay em tom profético: “Hoje aceito minha homossexualidade como um presente que a vida me deu”.

A atual geração jamais espera tanto. A idade precoce com que os gays trazem à tona sua orientação sexual chama a atenção dos especialistas. Aos 16 anos, estão ainda na adolescência - uma fase de experimentação e dúvidas. Pondera a doutora em psicologia Ceres Araujo: “Esperar que essa escolha seja eterna para todos é uma simplificação. O que dá para afirmar é que esses jovens têm grande propensão de seguir se relacionando com pessoas do mesmo sexo”. Para eles, a homossexualidade está longe de ter a conotação negativa de tantos outros períodos da história. Durante as trevas da Inquisição, arremessavam-se os gays à fogueira. Na Inglaterra do século XIX, eles eram considerados nada menos que criminosos. Em 1895, num dos mais famosos julgamentos de todos os tempos, o escritor irlandês Oscar Wilde, homossexual assumido, foi acusado de sodomia e comportamento indecente. Penou dois anos na prisão. Na Hollywood dos anos 50, o agente do galã Rock Hudson arranjou, às pressas, um casamento de fachada para o ator, com uma secretária. Às voltas com fofocas sobre sua homossexualidade, ele corria o risco de perder contratos. Só em 1985, aos 59 anos e vitimado pela aids, doença que o mataria naquele ano, Hudson se assumiu gay. Num cenário inteiramente diferente, os novos gays não precisam mais passar por esse tormento. Resume o estudante mineiro Hector Gutierrez, 17 anos típico da geração tolerância: “O dia em que eu contei a verdade a todos foi o primeiro em que me senti realmente livre e feliz”.

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Recém-saídos do armário Fotos Jeff Moore/LFI, Marc Larkin/LFI, John Clifton/Zuma Press e Lisa O'Connor/Zuma Press

Reprimidas durante anos, celebridades das mais diversas áreas resolveram vir a público nos últimos meses para assumir-se gays com estardalhaço: da esquerda para a direita, a cantora gospel Jennifer Knapp, o jogador de rúgbi galês Gareth Thomas e o cantor Ricky Martin

Anexo II Aids maior entre jovens gays preocupa Ministério Redação do DIARIODEPERNAMBUCO.COM.BR 28/11/2011 | 15h46 | Jovens gays

Apesar da estabilidade na prevalência da aids na sociedade brasileira (em torno de 0,6% da população) e ligeira diminuição da incidência de casos notificados em dois anos – de 18,8 casos por cem mil habitantes (em 2009) para 17,9 casos por cem mil habitantes (2010) – o Ministério Saúde alerta para o au-

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mento de 10,1% no número de casos entre gays de 15 a 24 anos. No ano passado, para cada 10 heterossexuais vivendo com o HIV/Aids havia 16 homossexuais. Segundo os dados do Boletim Epidemiológico Aids/DST, a taxa de incidência do HIV/Aids entre rapazes daquela faixa etária subiu de 9,5 (2000) para 11,1 (2010) – acréscimo de 16,8%; enquanto entre as mulheres jovens assistiu-se à redução de 23,5% na taxa de incidência – de 10,2 (2000) para 7,8 (2010). Para atingir o público jovem, o Ministério da Saúde promete reforçar as campanhas educativas em redes sociais e locais de grande concentração.

No conjunto da população, no entanto, preocupa a evolução do vírus entre as mulheres. Em 1989, a razão era de seis homens com HIV/Aids para cada mulher; em 2010 a relação caiu para 1,7. Os homens são maioria entre as pessoas que identificaram o vírus. Em 31 anos (até junho deste ano), o boletim registra 397.662 casos masculinos (65,4%) e 210.538 casos femininos (34,6%).

Ainda que identificadas essas tendências, o Ministério da Saúde assinala que não existe população mais ou menos vulnerável e que o problema é de comportamento. “Sexo sem proteção é o fator de maior predisposição para a infecção”, assinalou o secretário de Vigilância em Saúde, Jarbas Barbosa.

“A aids não escolhe pacientes, não escolhe cara”, acrescentou o ministro da Saúde, Alexandre Padilha, que salientou que o estigma em torno da aids atrapalha o conhecimento sobre a infecção e o tratamento. “Preconceito afasta as pessoas do diagnóstico”, ponderou o ministro.

O ministro destacou que a leitura dos dados epidemiológicos da aids deve ser feita com cuidado. “Toda vez que falamos de casos, nós podemos falar de uma foto ou de um filme de oito ou dez anos”, pondera para lembrar que a identificação do vírus pode demorar e, portanto, os casos registrados hoje têm causas em comportamento do passado.

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Além de cruzamentos da incidência do HIV/Aids com a faixa etária e o sexo, o Ministério da Saúde também observou os registros entre as grandes regiões do país. Apesar do Sudeste concentrar 56,4% dos casos de aids entre 1980 e junho de 2011 (17,6 casos a cada 100 mil habitantes), a situação da Região Sul é de maior taxa de incidência, 28,8 casos a cada 100 mil habitantes (acúmulo de 123.069 casos em 31 anos). De acordo com o boletim epidemiológico, os três estados da Região Sul estão entre os cinco primeiros no ranking da taxa de incidência entre 1998 e 2010. O Rio Grande do Sul é o primeiro com taxa de 27,7 casos por 100 mil habitantes; Santa Catarina é terceiro com 23,5 casos; e o Paraná ocupa a quinta posição com 15,7 casos. Da Agência Brasil http://www.old.pernambuco.com/ultimas/nota.asp?materia=20111128154603

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Resumo O presente estudo assume uma concepção sociodiscursiva de linguagem e objetiva examinar os exercícios relacionados aos gêneros digitais nas coleções didáticas Português: linguagens e Português: linguagem e interação, como forma de verificar se os livros didáticos de português do Ensino Médio (LDP do EM), publicados em 2010, que se inserem na concepção de ensino como interação social, fomentam o ensino do gênero como prática social ou atividade escolar. Os resultados apontaram que a presença dos gêneros digitais é mínima. Observando-se a ocorrência do e-mail e blog, ou dos gêneros digitais como complemento de informações ou ilustração. Palavras-chave: Livro didático de Português; Ensino; Gênero Digital


LIVRO DIDÁTICO DE PORTUGUÊS E ENSINO DE GÊNEROS DIGITAIS Silvania Maria de Santana1

INTRODUÇÃO Os estudos diacrônicos apontam que livro didático e ensino, por serem elementos indissociáveis, sempre estiveram inseridos nos debates públicos, desde o Brasil Império. Segundo Lajolo (1993), quando a disciplina Língua Portuguesa passou a compor o currículo da escola brasileira, fato ocorrido apenas na segunda metade do século XIX, instaurou-se a preocupação dos legisladores em discutirem a qualidade das propostas de ensino do vernáculo no livro didático de português (doravante LDP). Por ser um agente controlado, por uma série de discursos institucionalizados, o LD é alvo de avaliação. Por isso, nas suas propostas de ensino da língua materna, refletem-se os saberes considerados, pelos discursos institucionais, como necessários para o ensino de uma geração. Nessa esteira teórica, devido ao amplo avanço tecnológico, os PCNs (1999, p.15) preconizaram um novo desafio para a educação brasileira advindo do volume de informações devido às novas tecnologias. Pautado nessa reconfiguração do ensino, Marcuschi (2010, p. 20) declara que o computador pessoal e sua aplicação mais notável, a internet, cede espaço para uma multiplicidade de novos gêneros e de comunicação, tanto na oralidade como na escrita. O propósito deste trabalho, portanto, é analisar atividades direcionadas ao ensino dos gêneros digitais nas coleções didáticas Portugues: linguagens e Língua Portuguesa: linguagem e interação, a fim de verifircarmos como elas direcionam tal ensino. Para tanto, tomamos como base os pressupostos teóricos da Teoria da Enunciação (BAKHTIN, VOLOCHINOV, 1997, 2010), do Interacionismo Sociodiscur-

1. Professora de Língua Portuguesa da Secretaria de Educação do Estado de Pernambuco, mestranda em Linguística, e-mail: silvaniamariadesantana.santana@gmail.com 295


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sivo (BRONCKART, 1999, 2007, 2008; SCHEUWLY e DOLZ, 2004) e da Linguística Aplicada (MARCUSCHI, 2005, 2008, 2010). O interesse de estudo pelos LDP, publicados em 2010, deve-se ao fato de observarmos o amplo interesse do Mercado Editorial de Livro Didático em difundiar as contribuições tecnológicas para o ensino da língua/linguagem como interação social. Observa-se, contudo, que os atuais LDP trazem pouca ocorrência de gêneros digitais para o ensino, priorizando os das esferas literária, jornalístca e publicitária. Deste modo, o interesse central deste estudo é entender como essas coleções didáticas abordam os gêneros digitais. Para tanto, esse trabalho apresenta os gêneros a partir da concepção bakhtiniana, a qual os concidera enunciados dinâmicos e plásticos que representam o querer dizer do enunciador. Em seguida, traz a posição didática do Intercionismo Sociodiscursivo (doravante ISD), enfatizando a importância de uma proposta pedagógica que tenha o texto/gênero de texto como principal proposta de ensino. Na sequência, analisa como os LD Português: linguagens e Língua Portuguesa: linguagem e interação abordam o ensino dos gêneros digitais.

Gêneros à luz da teoria dialógica da enunciação Por influência dos escritos bakhtianos, acerca dos gêneros discursivos, o interesse pelo estudo e pela análise deles ampliaram-se no campo da linguística, sobretudo nos anos 1990. As reflexões sobre os gêneros como a materialidade da enunciação foram essenciais para se pensar que todas as esferas de troca social representam-se por meio deles. Se elas são variadas e complexas, assim também são os gêneros, visto que o querer dizer do enunciador materializa-se na forma de um gênero. Apesar de estarem em constantes mudanças, eles apresentam especificidades singulares que nos permitem, por exemplo, diferenciarmos um e-mail pessoal de um comercial, devido ao tom que se imprime à linguagem (formal, informal, familiar, por exemplo) e à seleção linguístico-discursiva. Dessa forma, os gêneros, na teia dialógica da enunciação, podem ser representados pelo diálogo familiar ou por gêneros

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padronizados. Nesse sentido, Bakhtin (1997, p. 280) adverte que, no estudo dos gêneros, devem-se levar em consideração as suas funções particulares de enunciados que se diferenciam de outros. Além disso, para esse teórico, na trama dialógica da enunciação, a réplica ativa é elemento essencial da interação verbal. Ao tratar sobre o estilo do gênero, esse autor afirma que está indissoluvelmente ligado aos gêneros do discurso tanto orais como escritos, de instâncias sociais simples ou complexas, e mesmo que se percebam traços individuais de quem escreve, nem todos os gêneros são igualmente aptos para refletirem a individualidade do enunciador, ou seja, nem todos são propícios ao estilo individual, podemos citar, por exemplo, os documentos padronizados que circulam nas esferas profissional, acadêmica e jurídica. Conforme Bakhtin (1997), os gêneros são plásticos, maleáveis e organizadores das esferas de troca social. Dessa forma, são enunciados históricos e tipificados em uma cultura, uma vez que apresentam certa estabilidade e compartilham características comuns. Além disso, eles passam pelo controle das esferas discursivas nas quais circulam, por isso há os membros autorizados para usá-los criativamente e, segundo o autor, só os usamos dessa forma, quando também os dominamos bem. A partir das questões aqui apresentadas, constata-se que Bakhtin (1997) considera os gêneros como enunciados dialógicos e responsivos. Por isso, tanto os orais como os escritos que circulam nas esferas de troca social representam o querer dizer do enunciador. Esse teórico da linguagem aponta ainda que os gêneros do discurso apresentam três elementos relacionados – conteúdo temático, estilo e composição– que os constituem. Pode-se dizer, em suma, que os gêneros nos são dados socialmente, uma vez que não os criamos aleatoriamente. Eles mantêm, portanto, regularidades para serem aceitos pelos membros de uma comunidade, por conseguinte, são enunciados dinâmicos que circulam socialmente. Sendo assim, observamos que os gêneros, quando didatizados, são transpostos da sua esfera de circulação para se tornarem gênero a aprender. Por isso, se o LDP não direcionar o ensino do gênero de modo que o aluno perceba essa responsividade ativa, ele siginifcará apenas uma ilustração.

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DIDATIZAÇÃO DO TEXTO/GÊNERO DE TEXTO: CONSIDERAÇÕES DO INTERACIONISMO SOCIODISCURSIVO A didatização, segundo Halté (2008), representa a transposição dos saberes científicos para os saberes escolarizados e ocorre no espaço da sala de aula, viabilizada pelo professor. Ela é quase sempre orientada pelo currículo e pelos materiais didáticos (dentre o mais significativo, temos o livro didático). O professor, como principal agente do sistema didático, é responsável para que essa didatização aconteça na sala de aula, isto é, para que os saberes tornem-se escolarizados, construindo junto aos alunos um acordo didático em torno desses saberes que visa articular a intercompreensão entre professores e alunos no espaço da sala de aula. Integrado a esse cenário epistemológico de didatização dos saberes científicos, o Interacionismo Sociodiscursivo (ISD) traz para debate possibilidades de ensino da língua que busquem articular as práticas já consolidadas (ensino da gramática) às novas práticas (o ensino dos textos empíricos inseridos no seu contexto de produção). O ISD engloba uma série de fatores contextuais integrantes dos variados espaços sociais, bem como os papéis e as intenções dos leitores e produtores de textos na interação comunicativa. Para tratar de algumas considerações didáticas, concernentes ao ensino das línguas, Bronckart (1999, p. 83) centra-se nas seguintes abordagens: a unicidade da língua, considerada o sistema responsável pela intercompreensão, e a relação que os textos mantêm com o seu contexto de produção. Na primeira abordagem, a língua é considerada como sistema que possibilita a intercompreensão e, na segunda, os textos não são analisados apenas nos parâmetros de textualidade, pois a sua relação com o contexto é também foco de interesse. Essas duas abordagens são consideradas necessárias e complementares para o ensino da língua. Entretanto, como aponta Bronckart (1999, p. 84), a história das ideias linguísticas sempre deu primazia a uma dimensão em detrimento da outra: o sistema linguístico seria no ensino da língua o primeiro e os textos constituiriam apenas estímulos para o ensino desse mesmo sistema da língua. 298


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Constata-se, portanto, que para uma proposta didática ser adequada faz-se necessário atender de modo eficaz à aprendizagem e ao desenvolvimento do aluno, a partir de uma prática comprometida com o ensino que, mesmo não podendo romper efetivamente com os modelos tradicionais, possa articular o ensino tradicional ao texto empírico. Contudo observa-se, em alguns LDP, que o gênero é visto como um evento monológico, apresentando, por assim dizer, como pretexto para o ensino da gramática. Dissociado, portanto, da sua função social e histórica, representando para o aluno apenas uma atividade escolar. Dolz e Schnewly (2004, p. 45), por seu turno, trazem, como proposta para o ensino dos gêneros de texto (oral e escrito), as sequências didáticas que, segundo tais autores, “são instrumentos que podem guiar as intervenções do professor”. Tais sequências buscam aproximar o ensino com gêneros de sua prática social, uma vez que eles, quando retirados de sua circulação social, passam a ser um assunto pedagógico. Porém a escola – como a agência privilegiada para o ensino da leitura, da escrita e da oralidade –, não pode prescindir do ensino da língua/linguagem com gêneros de texto. Segundo esses autores, o ensino, a partir da sequência didática, permite o desenvolvimento de um trabalho negociável e adaptativo (assim prototípico), aproximando o aluno das efetivas práticas sociais de leitura e de escrita. Conforme Dolz e Schneuwly (2004), as estratégias destacadas nesse tipo de progressão são as seguintes: a escolha e a adaptação dos gêneros devem estar em consonância com as situações de comunicação e com as capacidades de linguagem apresentadas pelos alunos; a simplificação da complexidade da tarefa, tornando-a adaptável e progressiva; negociável com os alunos (atores do processo cênico de produção). Nessa direção, esses teóricos acrescentam que o trabalho pedagógico, a partir da sequência didática, permite a negociação entre os atores participantes nas diferentes fases de elaboração. Vê-se que tal proposta de ensino permite aproximar os gêneros de sua função social, pois questões essenciais de interação são levadas em consideração tais como: a finalidade do gênero (o porquê estou lendo e escrevendo), os interlocutores possíveis (para quem estou escrevendo, isto é, quem é minha

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audiência), a sua circulação social (qual a finalidade social do texto que estou lendo e escrevendo). Desse modo, há uma aproximação do aluno com práticas sociais efetivas de leitura e de escrita.

O ENSINO DOS GÊNEROS DIGITAIS EM LIVROS DIDÁTICOS DE PORTUGUÊS (LDP) DO ENSINO MÉDIO Ao assumirmos a concepção de língua/linguagem como atividade sociodiscursiva, consideramos o LDP como um dos significativos agentes para o ensino da leitura, da escrita e da oralidade na sala de aula. Nesse sentido, os estudos de Choppin (2004) apontam a importância do LD na formação de gerações. Verifica-se na atualidade que os LDs buscam atender às exigências tanto dos currículos nacionais, como das avaliações nacional e internacional, a exemplo do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e do Programa Internacional de Avaliação de Alunos (Pisa). Os livros didáticos Português: linguagens e Língua Portuguesa: linguagem e interação (corpus deste estudo) defendem a concepção de ensino da língua como interação social, como se pode verificar neste excerto: Quadro 1 – Concepção de ensino da língua/linguagem nos LDP do EM

LD Português:

LD Língua Portuguesa:

linguagens

linguagem e interação

Numa realidade dinâmica como a nossa, que se transforma na mesma velocidade com que se disseminam informações nos meios eletrônicos, é essencial o papel que nossa disciplina desempenha na educação formal do indivíduo, já que a linguagem permeia todas as atividades humanas, em todas as esferas sociais. (CEREJA e MAGALHÃES, 2010, p. 5)

Esta obra procura levar os alunos a refletir sobre suas práticas de linguagem e comunicação. Sendo práticas sociais que demandam diversos níveis de interação [...]. (FARACO, MOURA e MARUXO JR., 2010, p.4)

Fonte: Manual didático

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É possível verificar nessas assertivas que os LDP do EM (corpus deste estudo) entendem o ensino da língua/linguagem como interação social. Observa-se que essa concepção de ensino é a defendida por Schneuwly e Dolz (2004). Isto pode ser constatado nesta assertiva dos autores: “a aprendizagem da linguagem se dá, precisamente, no espaço situado entre as práticas e as atividades de linguagem. Nesse lugar produzem-se as transformações sucessivas da atividade do aprendiz, que conduzem à construção de práticas de linguagem.” (SCHNEUWLY e DOLZ, 2004, p. 64). Assim sendo, os gêneros, mesmo didatizados, precisam manter as suas funções sociais, para que se aproximem das efetivas práticas de leitura e de escrita, pois, se assim não for, os gêneros represetarão para o aluno pretexto para o estudo tradicional da gramática ou para extração de informações. Com o propósito de verificarmos como os LDP do EM abordam o ensino dos gêneros digitais, analisaremos atividades das duas coleções didáticas (corpus do presente estudo). A primeira coleção didática (Português: linguagens), publicada em 2010, divide-se em três volumes (1, 2 e 3). Observamos no volume 1, que esse LDP do EM traz imagem do gênero textual e-mail, na seção intitulada Trabalhando o gênero. Verifica-se nessa atividade que o ensino do gênero, nas questões destinadas à compreensão, direciona-se à extração de informações e às características do gênero, como demonstram os exercícios (1 e 5) a seguir: 1. Os programas de computador que enviam e recebem e-mails costumam apresentar campos destinados ao endereço do remetente e do destinatário, ao resumo do assunto e à data. No e-mail em estudo: a) Qual é o endereço eletrônico (e-mail) do remetente? b) E o do destinatário? c) A expressão 18:30 indica o horário em que a mensagem foi enviada. Você acha que essa informação é importante? Por quê?

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5. Reúna-se com seus colegas de grupo e, juntos, concluam: Quais são as características do e-mail? Respondam considerando os seguintes critérios: finalidade do gênero, perfil dos interlocutores, suporte ou veículo, tema, estrutura, linguagem. (CEREJA e MAGALHÃES, 2010, p. 154-155)

Na questão 1, verifica-se que a proposta é a extração de informações identificáveis na superfície do gênero, por isso não se observa a sua função social. Retomando a posição de Bakhtin (1997), concernente à plasticidade dos gêneros, constata-se que, no ambiente digital, os gêneros trazem traços de outros já existentes. O e-mail, por exemplo, apresenta especificidades das cartas pessoal e comercial, visto que quase sempre trazem vocativo e saudação final, além de ser obrigatório o endereço eletrônico do destinatário para o envio da mensagem. Segundo ainda Bakhtin (1997), o querer dizer do enunciado materializa-se na forma de um gênero. Desta forma, pode-se dizer que o e-mail é um gênero que tem como função comunicativa o envio de uma mensagem, seja ela formal ou informal, podendo ainda enviar anexos. Na atividade 5, por seu turno, observa-se a ênfase para as características do e-mail. Entretanto, não é possível verificar a função social do gênero, isto é, de um enunciado que requer do outro uma responsividade ativa. Pode-se dizer que, nessas atividades, o gênero é tratado como um artefato monológico para a extração de informações e identificação de características. Na seção intitulada Produzindo o e-mail é possível verificar a função social do gênero, visto que o aluno-escritor terá um destinatário real para envio de mensagens, um assunto que se materializará na forma de um gênero, além da responsividade ativa. Defendem Dolz e Schneuwly (2004) que os gêneros, quando assumem propósitos de ensino-aprendizagem, devem aproximar-se de práticas de linguagem para que o aluno possa atender às demandas comunicativas com as quais ele é desafiado. Vejamos, então, essas considerações ilustradas na atividade a seguir:

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a) Peça ao seu professor o e-mail de seu correspondente. b) Escolha um dos assuntos sugeridos abaixo, ou pense em outro de sua preferência, e escreva um e-mail comentando o assunto e convidando o destinatário a dar uma resposta. Assuntos sugeridos: • • • • •

troca de informações sobre programas de computador troca de informações sobre mangás e animé troca de comentários sobre livros e quadrinhos indicações de filmes hobbies

c) Preencha os campos existentes no programa de que dispõe. Depois envie seu e-mail e aguarde a resposta. (CEREJA e MAGALHÃES, 2010, p. 155)

Veja-se, nessa atividade, que os elementos constitutivos dos gêneros como atividade social são levados em consideração (interlocutores, assunto e resposta), porquanto o aluno nessa atividade estabelecerá uma interlocução ativa com o outro e compreenderá que os gêneros assumem funções comunicativas. Observa-se nessa atividade a adequação da situação comunicativa ao gênero em estudo. Os gêneros, conforme Bakhtin (1997), assumem funções sociocomunicativas, pois a relação com o outro não pode prescindir da alternância dos sujeitos falantes, uma vez que o querer dizer não se insere no contexto da fala de um único locutor, assim o outro bakhtiniano assume uma posição responsiva ativa em relação ao discurso do sujeito falante (locutor). Nessa direção, “a alternância dos sujeitos falantes (dos locutores) que determina a fronteira entre os enunciados apresentase no diálogo com excepcional clareza.” (BAKHTIN, 1997, p. 298). Observa-se que essa alternância do sujeito falante está presente em todos os gêneros, uma vez que ter um interlocutor é fator essencial no processo de interação verbal. Ainda na mesma seção, a obra didática traz para ensino o blog com informações que demonstram que esse gênero atende a uma diversidade de funções sociais, pelo 303


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fato deles serem altamente plásticos e adaptáveis. Como explica Bakhtin (1997, p. 304), “os gêneros do discurso são, em comparação com as formas da língua, muito mais fáceis de combinar, mais ágeis, porém, para o indivíduo falante, não deixam de ter um valor normativo: eles lhe são dados, não é ele que os cria. ” Ou seja, os gêneros organizam as esferas de troca social e a vida de pessoas, por serem enunciados concretos. Entretanto, mantêm certa regularidade para que a comunicação humana seja compreensível. Essas questões podem ser verificadas nos excertos a seguir. Vejamos: Quadro 3 - O gênero blog no LD Português: linguagens

[...] Com o tempo, os blogs foram se tornando a ferramenta ideal não só para a divulgação de notícias, de textos sobre política e cultura, pesquisas, negócios, debates, publicidades, etc. ”(CEREJA e MAGALHÃES, 2010, p. 156). [...] Há diversos programas de hospedagem de blogs disponíveis gratuitamente de hospedagem de blogs disponíveis gratuitsmente na Internet. Um dos mais acessíveis é bastante procurado pelos inicintes é o Blogger (blogger. com). Depois de acessá-lo, o usuário preenche um formulário com nome, e-mail e contatos, escolhe um visual para a página e lhe dá um nome. (CEREJA e MAGALHÃES, 2010, p. 156). Fonte: LD Português: linguagens

Esses excertos demonstram que o blog, assim como os demais gêneros digitais, está em constante adaptação, vê-se que esse gênero assume uma diversidade de funções comunicativas (pesquisas, negócios, debates, publicidades, entre outros). Comprova-se, pois, que os gêneros digitais integram uma série de outros gêneros, com funções variadas. Além disso, mantêm parâmetros de passo a passo lineares que precisam ser seguidos para tornar-se usuário integrante do gênero. No caso do blog, como ensina o LDP do EM, “o usuário preenche um formulário com nome, e-mail e contatos, escolhe um visual para a página e lhe dá um nome. ” (CEREJA e MAGALHÃES, 2010, p. 156). Veja-se que, embora plásticos e flexíveis, os gêneros 304


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não são inteiramente livres, visto que atendem a regularidades para que sejam reconhecidos e aceitos pelos membros de uma esfera discursiva. Na seção Produzindo o blog, esse LDP do EM traz instruções que orientam como produzir um blog. Além de trazer considerações que dizem respeito à ampla interatividade desse gênero na rede enunciativa da comunicação. Como se pode verificar no excerto que segue: Quadro 4 - Orientações para a produção do blog

O gênero e sua função sociocomunicativa

Criação do blog Existem vários sites e provedores de Internet que orientam, passo a passo, como montar um blog. Eis algumas sugestões: • blogger.com • www.viablog.com.br • www.blog.com.br

[...] crie um blog pessoal ou paricipe da criação de um blog comunitário. Se optar por um blog comunitário, ele poderá ser, por exemplo, do seu grupo de estudos, de sua turma de amigos ou da sua classe. O conteúdo pode ser escolhido por você ou por todos os membros do blog, caso opte por um blog comunitário. Quando conseguir pôr seu blog na Internet, dê o endereço dele ao maior número de pessas possível.

• www.blog.uol.com.br

Fonte: Português: linguagens (2010, p. 156)

Observe-se, no quadro 4, que as orientações para criação do blog vêm acompanhada de uma das funções sociocominicativa do gênero que é a interatividade com membros que compartilham interesses em comum. Segundo Sartori, trazido por Marcuschi (2005, p. 61), “ os blogs, por sua capacidade criadora e pelo tipo de temática e motivação que carrega, poderiam ser considerado como uma incubadora de internautas com interesses comuns.” Isto é demonstrado na proposta do LDP do EM, quando sugere ao aluno a criação de um blog comunitário “com seu grupo de estudos, turma de amigos ou de classe. ” (CEREJA e MAGALHÃES, 2010, p. 156). 305


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A verificação que fizemos no LD Português: linguagens comprovou que, apesar da obra trazer a função sociocomunicativa dos gêneros digitais, a presença deles é mínima, ou seja, só encontramos o ensino do e-mail e do blog. Outra questão verificada é que essa obra, na seção destinada à produção escrita, buscou enfatizar a função do gênero como prática social. Tal função defendida por Schneuwly e Dolz (2004) quando propõem o ensino da língua/linguagem por meio da sequência didática. No LD Língua Potuguesa: linguagem e interação, de Faraco, Moura e Maruxo Jr., por sua vez, não localizamos o ensino da língua/linguagem por meio dos gêneros digitais, apenas referência deles para complemento de informações, conforme excerto: “Essa é a página do site do jornal O Estado de S. Paulo em que aparece publicada a entrevista que você lê aqui.” (FARACO, MOURA E MARUXO JR., 2010, p. 39). Verifica-se nesse excerto que o gênero entrevista, proposto para estudo, é integrante do jornal on-line O Estado de S. Paulo. Entretanto, a página é apresentada apenas com a proposta de servir de informações complementares ao estudo da entrevista. Não se menciona, por exemplo, que o jornal seja impresso ou on-line integra uma diversidade de outros gêneros, além dos jornais on-line integrarem múltiplas semioses. Nesse sentido, esclarece Marcuschi (2005, p. 13) que “parte do sucesso da tecnologia deve-se ao fato de reunir num só várias formas de expressão, tais como, texto, som e imagem, o que lhe dá maleabilidade para a incorporação simultânea de múltipla semioses, interferindo na natureza dos recursos linguísticos utilizados.” Dessa forma, pode-se dizer que o jornal impresso, apesar de integrar imagem e escrita, diferencia-se do on-line, uma vez que este permite ao leitor com apenas um clique ter acesso ao caderno desejado, cuja rapidez de seleção não é disponibilizada pelo impresso. Entretanto, verifica-se que a página do site do jornal O Estado de S. Paulo, apresentada pelo LD Língua Portuguesa: linguagem e interação, serve como informação complementar para o estudo do gênero entrevista, a qual foi selecionada no site do jornal O Estado de S. Paulo.

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Em outra atividade, desse LDP do EM, a Home Page da Petrobras é apresentada para o estudo dos recursos visuais, extração de informações e identificação de link. Como podemos constatar nestas questões: Quadro 5 – Questões propostas para o estudo da home page

a) Na página, há diferentes tamanhos de letras, algumas com cores diferentes das outras, com predomínio do azul e preto. Em sua opinião, para que servem esses recursos visuais da página? b) Por meio da página de abertura, é possível ter acesso a outras partes do site. A que partes do site da Petrobras você poderia ter acesso pela página de abertura? c) Se você quiser saber a história e a estrutura da Petrobras, a que link recorrerá? (FARACO, MOURA, MARUXO JR, 2010, p. 163). Fonte: Língua Portuguesa: linguagem e interação

Observe-se que as questões para o estudo da home page não permitem que esse gênero seja visto como um enunciado que tem funções sociocomunicativas na teia dialógica da comunicação. Não há uma proposta de consulta à Home Page, para que o aluno possa interagir com o estilo do gênero. Ampliando tal questão, Brait (2007, p.79) afirma que falar de estilo, na perspectiva bakhtiniana, não é considerar aspectos exclusivamente da subjetividade do indivíduo ou da esfera de atividade humana, pois o estilo no pensamento bakhtiniano diz respeito a uma relação mais ampla na qual se inscreve o “lugar fundante da alteridade, do outro, das múltiplas vozes” que se posicionam para constituir a singularidade de um enunciado. Além disso, segundo a autora, o estilo no Círculo de Bakhtin inscreve-se na historicidade, nas singularidades das diferentes culturas, por isso os estilos não permanecem idênticos, visto que eles têm uma relação indissociável com o social. 307


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Devido a isso, segundo Brait (2007, p. 83), o estilo não se esgota “na autenticidade de um indivíduo, inscreve-se na língua e nos seus usos historicamente situados.” Dessa forma, embora o estilo seja constitutivo de um gênero em culturas disciplinares específicas, tal fenômeno da linguagem é influenciado pelo social e pela história. Dessa forma, os gêneros, mesmo mantendo certa estabilidade, estão sempre se renovando, objetivando o atendimento às demandas de interação verbal estabelecidas pelo social. Por isso, pode-se dizer que as questões, trazidas pelo LD Língua Portuguesa: linguagem e interação para o estudo da home page, não contemplaram a função social do gênero. A home page é uma página inicial do site que reflete na sua composição o extralinguístico, visto que os gêneros são indissociáveis de seu momento sócio-histórico de realização. Segundo Marcuschi (2010, p. 20), “a linguagem dos novos gêneros tornou-se cada vez mais plástica, assemelhando-se a uma coreografia e, no caso das publicidades, por exemplo, nota-se uma tendência a servirem de maneira sistemática de gêneros prévios para objetivos novos.” Observa-se na home page, por exemplo, semelhança com a página inicial do jornal com funções essencialmente comerciais. Constata-se, pois, na atividade concernente à home page da Petrobras, que a finalidade é o estudo dos recursos visuais do gênero. Não se observa, portanto, uma das funções dele que é da divulgação da marca Petrobras. No cápítulo 8, intitulado o diário pessoal, esse LDP do EM define o blog da seguinte maneira: “ um blog é um site que permite a escrita e a publicação, na internet, de registros pessoais.” (FARACO, MOURA e MARUXO JR, 2010, p. 244). Esse LDP do EM entende o blog não como um gênero, mas como um site. Ao trazer o texto “Confissões de adolescente”, de Fla Wonka, esse material didático ilustra-o com a foto da página do blog, na qual o texto foi retirado. Não se observa-, pois, o estudo do blog como gênero, mas como elemento ilustrativo do texto para estudo. Marcuschi (2005, p. 31) declara que os gêneros textuais emergentes na mídia virtual não são totalmente novos, visto que mantêm contrapartes em gêneros préexistentes. O blog, por exemplo, relaciona-se ao diário pessoal, às anotações e às

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agendas. Vê-se, então, que os gêneros não são totalmente novos, pois são adaptáveis e dinâmicos. Acrescenta esse autor que “os blogs têm uma história própria, uma função específica e uma estrutura que os caracteriza como um gênero, embora extramamente variados nas peças textuais que albergam.” Observa-se que os gêneros da esfera digital integram uma variedade de outros e são altamente criativos. Observa-se ainda que para manter a sua relativa estabilidade, eles trazem regularidades que nos fazem reconhecê-los como um gênero e não como outro. Consta-se, pois, que a abordagem dos gêneros nessa coleção teve como função o complemento de informações, o estudo de aspectos gráficos e, no caso da página do blog, de ilustração para o diário pessoal em estudo (Confissões de adolescente) . Não se observando o gênero digital como um enunciado que tem funções sociocimunicativas concretas, mas de um site que integra gêneros que são velhos conhecidos do aluno, como, por exemplo, o diário pessoal.

CONSIDERAÇÕES FINAIS O estudo aqui empreendido demonstrou que os LDP do EM, mesmos os publicados em 2010, quando os debates sobre as novas tecnologias se destacam cada vez mais no Mercado Editorial, ainda trazem de forma mínima os gêneros digitais para ensino. Ao examinarmos as coleções didáticas Português: linguagens, Cereja e Magalhães, e Língua Portuguesa: linguagem e interação, de Faraco, Moura e Maruxo Jr., observou-se apenas a presença do blog, e-mail e home page. Entretanto, no LD Língua Português: linguagem e interação, os gêneros digitais não foram abordados como tal, servindo, por assim dizer, como complemento de informações ou página ilustrativa de um gênero constitutivo do digital, como se verificou no ensino da entrevista e do diário pessoal, aqui apresentados. O LD Portugês: Linguagens, apesar de abordar a regularidade e as funções sociais dos gêneros digitais, apenas trouxe para estudo dois deles (o e-mail e o blog), demonstrando a presença mínima deles na composição desse material didático. Fato que nos leva a constatação que ainda falta um ollha mais representativo para

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o ensino dos gêneros digitais nos LDP, visto serem, esses gêneros, enunciados cada vez mais presentes em todos as esferas de troca social. A análise aqui realizada ainda demonstrou que o ensino dos gêneros digitais, quando a proposta é a leitura, volta-se mais especificamente para as caraterísticas do gênero e para os elementos gráficos, observando-se a função sociocomunicativa dos gêneros, como enunciado valorativo e que requer do outro uma responsividade ativa, mais especificamente, nas propostas de escrtita. Em suma, a coleção Português: linguagens, apesar de tratar os gêneros digitais como enunciados que atendem a funções sociocomunicativas que requer do outro uma responsividade ativa, trouxe para estudo apenas dois gêneros o e-mail e o blog. O LD Língua Portuguesa: linguagem e interação, por sua vez, abordou os gêneros digitais como páginas ilustrativas ou para estudo dos elementos gráficos que os constituem. Dessa forma, não se observando o ensino dos gêneros digitais como enunciado concreto que integram uma série de outros gêneros, os quais assumem funções sociocomunicativas diversas. Concluímos que, apesar de estarmos inseridos em uma realidade essencialmente tecnológica, os LDP além de trazerem timidamente os gêneros digitas para ensino, ainda aborda-os como uma página que alberga gêneros. Não se considera, pois, a multiplicidade de gêneros que os digitais trazem na sua composição e sua plasticidade.

REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da Criação Verbal. Trad. Maria Ermantina G.G. Pereira. São Paulo: Martins Fontes, 1997. 512 p. BAKHTIN, M. ( V. N. Volochínov). Marxismo e filosofia da linguagem: problemas fundamentais do método sociológico da linguagem. Tradução de Michel Lahud e Yara Frateschi Vieira.14 ed. São Paulo: Hucitec, 2010. 203 p. BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. 4 ed. São Paulo: Contexto, 2007. 223 p. BRASIL, Ministério da Educação, Secretaria de Educação Média e Tecnológica. Parâmetros Curriculares Nacionais: ensino médio, 1999. 364 p.

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BRONCKART, Jean Paul. Atividade de linguagem, textos e discursos: por um interacionismo sócio-discursivo. São Paulo: EDUC, 1999. 353 p. BRONCKART, Jean Paul. O interacionismo sociodiscursivo: questões epistemológicas e metodológicas. Ana Maria de Mattos Guimarães, Anna Rachel Machado, Antónia Coutinho (organizadoras). São Paulo: Mercado das Letras, 2007. 288 p. CEREJA, Willian Riberto; MAGALHÃES, Thereza Cochar. Português: linguagens. 7.ed. São Paulo: Saraiva, 2010. Volume 1. 333 p. CHOPPIN, Alain. História dos livros e das edições didáticas: sobre o estado da arte. Educação e Pesquisa. São Paulo,2004. Disponível em: <http://www.scielo.br>. Acesso em: 01 de nov.2013. DIONÍSIO, Angela; BEZERRA, Maria Auxiliadora (Orgs.). O livro didático de Português: múltiplos olhares. 2 ed. Rio de Janeiro: Lucerna, 2003. 160 p. FARACO, Carlos Emílio; MOURA, Francisco de; MARUXO, José Hamilton. Língua Portuguesa: linguagem e interação. São Paulo: Ática, 2010. Volume 1. 376 p. HALTÉ, Jean-François. O espaço didático e a transposição. Fórum Linguístico. Florianópoles, 2008. Disponível em: http://www.periodicos.ufsc.br/index.php/forum/ article/view/10800/11033. Acesso em: 08/11/2013. LAJOLO, Marisa. Do mundo da leitura para a leitura do mundo. São Paulo: Ática, 1993. 111 p. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Produção textual, análise de gêneros e compreensão. São Paulo: Parábola, 2008. 296 p. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: definição e funcionalidade. In: Angela Paiva Dionísio; Anna Rachel Machado; Maria Auxiliadora Bezerra (Orgs.). Gêneros Textuais & Ensino São Paulo: Parábola, 2010. 246 p. MARCUSCHI, Luiz Antônio. Gêneros textuais: configurações, dinamicidade e circulação. In: KARWOSKY, Acir Mário; GAYDECZKA, Beatriz; BRITO, Siebeneicher Brito (Orgs.). Gêneros textuais: reflexões e ensino. 3 ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2011. 200 p. 17-51.

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