Jornal Lampião - edição 21

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Janeiro de 2016

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Janeiro de 2016

ARTE: LÍGIA CAIRES

ARTE: LÍGIA CAIRES

Editorial

CIDADE

Opinião

Caos e esperança Sem a última que morre”. Enquanto Mariana tentava resistir graças à própria comunidade, os atingidos permaneciam – e ainda seguem – à mercê de um novo futuro, que está para ser escrito. Nas ruas da primaz de Minas, a boataria, a omissão, a submissão e a culpa se perpetuavam. Como cenário, eternidades ceifadas e pessoas em fase de readaptação, lutando contra o choque de realidade de um mundo que não lhes pertencia. “E agora?” é o que nos perguntávamos e ainda repetimos. Bento já não existe. Como sobreviver apesar disso? Esta edição do LAMPIÃO convida você a se perguntar: Quem se responsabiliza? Quem sustenta novas eternidades? Quem cuida de nós? Trazemos aqui uma tragédia que não pode ser esquecida. Mariana possui um forte espaço acadêmico e precisa ser abraçada por esta comunidade. Nos dias que sucederam o acontecido,

estudantes se comprometeram e ajudaram, reforçando o ideal de universidade pública como espaço coletivo de aprendizagens e retornos. Este LAMPIÃO é mais um efeito disso. Não somos instituição. Somos gente, somos alunos (de um curso de Jornalismo, especificamente) e buscamos, por meio deste jornal, deixar nossa contribuição a esta cidade que nos recebe de braços abertos a cada semestre, dividindo conosco seu tempo e sua eternidade. Nossos agradecimentos especiais ao Corpo de Bombeiros de Minas Gerais, à agência A Pública, à Secretaria do Departamento de Ciências Sociais, Jornalismo e Serviço Social (Decso), à Direção do Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (Icsa) e ao Setor de Transportes da Universidade Federal de Ouro Preto, sem os quais não conseguiríamos realizar esta edição.

Crônica

No meio do caminho Hariane Alves

Naquela quinta de novembro, o tempo estava esquisito, transitando entre pancadas de chuva e o aparecimento do sol na Região dos Inconfidentes. Era uma tarde comum, até que a lama veio e engoliu tudo pelo caminho. Os moradores de um Bento Rodrigues – que começava a ser tingido, quebrado, engolido, devastado – corriam para salvar suas vidas. Era uma tarde como qualquer outra… até não ser mais. “Poderia ter sido muito pior. Muito. Se tivesse sido à noite… Não quero nem pensar”, conta Verônica, enquanto olha para os destroços que outrora foram sua casa e tenta esconder as mãos trêmulas e lágrimas que insistem em cair. “Foi o pior dia da minha vida. Da vida da gente. A gente perdeu tudo,

perdeu amigos. Fomos arrancados das nossas casas... Mas a Pedra ajudou. A Pedra segurou a lama.” Tinha uma pedra no meio do caminho. Uma pedra que fez o que a Samarco não conseguiu: dar tempo para que os moradores de Bento salvassem uns aos outros. Uma pedra que diminuiu, mesmo que minimamente, a força da lama, que insistia em destruir tudo à sua volta. “Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pedra”, falou o poeta. E foi aclamado pelo povo que também não vai esquecer. Pelas pessoas que olharam uma última vez para a Pedra e para Bento e viram a lama mudar as suas vidas. Para o seu Antônio, “foi a mão de Deus que segurou a lama”. A sirene inexistente e a falta de respostas e avisos da mineradora foram substituídos pela Paula com sua moto e

seus gritos; pela Pedra que retardou o avanço da destruição; pela “mão de Deus”, que não permitiu que a barragem estourasse na calada da noite. A união e o cuidado com o outro salvaram vidas e fizeram com que a lama não levasse mais pessoas. A Pedra, que fazia parte do território do subdistrito, foi engolida pelos rejeitos. Agora é impossível localizá-la. Até isso a lama levou. Ela não conseguiu resistir ao tsunami de rejeitos, mas fez bem o seu papel. Manteve-se firme, ajudou a proteger a comunidade e depois desapareceu no deserto que agora é Bento Rodrigues. Mas o seu significado permanece na lembrança daqueles que não podem esquecer. “Não sabemos o que teria acontecido se a Pedra não existisse”, mas tinha uma pedra no caminho. Uma pedra que fez toda a diferença.

resposta Lampião

Reforçando seu ideal jornalístico e o compromisso com a região, esta edição do LAMPIÃO abre espaço para publicar parte das perguntas enviadas à mineradora Samarco e ao Governo de Minas Gerais. Não obtivemos resposta para os questionamentos em nenhum dos canais de acesso da empresa e do governo. Também publicamos aqui inquietações relativas à tragédia, as quais ainda não foram esclarecidas à toda a população de Mariana e distritos. À Samarco - Quais eram os projetos desenvolvidos pela empresa para a população de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo? - Quanto foi gasto com esses projetos de 2009 a 2014? (Especificar o valor da cada ano). Quais foram os resultados desses projetos nas comunidades de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo? - Há algum projeto realizado com os moradores de Bento e Paracatu de Baixo que vem como uma ação emergencial a fim de amparar os atingidos dos distritos? Qual a quantia até agora direcionada para essas ações? Elas ocorrem em parceria com alguma organização pública ou privada? Quais seriam? Ao Governo de Minas Gerais - Cerca de 20 dias após a tragédia foi aprovado um projeto proposto pelo governo estadual, acelerando as concessões de licenças ambientais para empresas de mineração. Levando em conta os prejuízos decorrentes do rompimento da barragem do Fundão e o caso anterior, que matou trabalhadores em Itabirito, não é um erro um projeto como este ser aprovado? - O projeto que afrouxa a concessão das licenças ambientais para

mineradoras foi debatido com algum setor, entidade ou com a população envolvida? - Parte dos moradores de Mariana estão protestando para que a empresa não termine suas atividades na cidade, temendo desemprego. O Estado pretende entrar neste assunto, uma vez que o fim da ati-vidade pode afetar também na arrecadação de Minas Gerais? - Sabendo que a economia de Mariana é majoritariamente mantida pelo setor de mineração, cerca de 83%, o governo do Estado pretende criar uma “ação antifalência” para o município? Ou se trata de uma obrigação exclusiva da administração municipal? - Segundo a Feam, erros foram detectados no volume de rejeitos. E mesmo com a constatação, os dados continuaram a ser publicados de maneira defasada desde 2012. Por que não houve nenhuma intervenção durante tanto tempo? Inquietações - O que justifica a dificuldade de se conseguir, na região de Ouro Preto e Mariana, após o rompimento da barragem, um especialista em direitos ou meio ambiente? - Que processos serão aplicados para minimizar os efeitos da lama de rejeitos que atingiu o mar? Quais as atitudes a serem tomadas para solucionar ou reduzir os danos ambientais causados? - Que ações a Samarco pretende adotar para recuperar as áreas devastadas? Em que prazo a empresa pretende executar esse processo? - O que será feito com a lama que tomou conta do subdistrito de Bento Rodrigues? Como e quando ela será retirada do local?

Charge

Jornal-laboratório produzido pelos alunos do curso de Jornalismo – Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA)/Universidade Federal de Ouro Preto – Reitor: Prof. Dr. Marcone Jamilson Freitas Souza, Diretor do ICSA: Prof. Dr. José Benedito Donadon Leal, Chefe de departamento: Profa. Dra. Virgínia Alves Carrara, Presidente do Colegiado de Jornalismo: Profa. Dra. Denise Figueiredo Barros do Prado – Professoras responsáveis: Karina Gomes Barbosa (Reportagem), Ana Carolina Lima Santos (Fotografia) e Talita Aquino (Planejamento Visual) – Editor-chefe: William Vieira – Editora de Texto: Hariane Alves – Editora de Arte: Débora Mendes – Editor de Fotografia: Pedro Menegheti – Repórteres: Agliene Melquíades, Aleone Rodrigues, Alexandro Galeno, Carol Vieira, Camila Guardiola, Caroline Hardt, Fernando Cássio, Flávio Ribeiro, Francielle Ramos, Mariana Rennó, Paloma Demartini, Priscila Ferreira – Fotógrafos: Eduardo Rodrigues, Larissa Lana, Monique Torquetti, Rodrigo Sena, Sabrina Passos, Stela Diogo, Tainara Ferreira, Thiago Barcelos – Diagramadores: Alícia Milhorance, Clarissa Castro, Elmo Alves, Lara Massa, Lígia Caires, Luísa Rodrigues – Multimídia: Caio Aniceto, Caroline Rooke, Gabriella Visciglia, Thamiris Prado – Revisão: Anna Flávia Monteiro, Pedro Guimarães – Monitoria: Catarina Barbosa, Silmara Filgueiras, Stênio Lima – Colaboração: Fernando Ciríaco e Rafaella Souza – Tiragem: 3.000 exemplares. Endereço: Rua do Catete, nº 166, Centro. Mariana – MG. CEP: 35420-000.

As causas sobre o rompimento da barragem do Fundão, da Samarco, ainda não foram esclarecidas pelos órgãos públicos e as análises contratadas pela empresa devem se arrastar por meses, segundo o diretor-presidente da mineradora, Ricardo Vescovi. Para o promotor do Ministério Público de Mariana, Guilherme Meneghin, não há dúvidas de que a mineradora foi negligente “antes, durante e depois [do desastre]”. Não há interesse de cobrar da empresa através de uma ação judicial. Vamos levantar esse valor, conversar com a empresa para que ela faça investimentos no município.” Duarte Júnior

Sem todas as respostas da tragédia que destruiu o subdistrito de Bento Rodrigues, deixando 15 mortos e quatro desaparecidos, a empresa é investigada por meio de três inquéritos criminais, quatro inquéritos civis, uma preparação de laudo e uma avaliação de causas. Até o fechamento da edição, a mineradora era processada por uma medida cautelar e 13 ações civis. O julgamento da empresa deverá ocorrer após a conclusão dos pareceres preparados individualmente pelo MP Estadual e Federal, Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM), polícias Civil e Federal e pela Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). As apurações criminais devem ser submetidas ao Ministério Público, e, em seguida, a Justiça deverá decidir se as acata ou não. De acordo com Guilherme Meneghin, a principal falha, entre uma série de outros erros, foi a ausência do aviso

sonoro para alertar os moradores sobre o rompimento da barragem. O procedimento, que deveria constar no Plano de Ações de Emergências da mineradora Samarco, era desconhecido pela Prefeitura de Mariana, pelo DNPM e pelo governo de Minas Gerais. Esse último soube do rompimento em Bento Rodrigues somente após duas horas, conforme relatório do Núcleo de Emergência Ambiental (NEA), órgão da administração estadual destinado a acidentes. Pela lei, a empresa é responsável por enviar os documentos aos órgãos de fiscalização e demais interessados, como a Prefeitura. A falta de prevenção para o subsdistrito, distante 5 km dos diques, foi confirmada por Ricardo Vescovi. Segundo ele, a ação de emergência previa contato telefônico para as autoridades da região de Mariana, como a Prefeitura e a Defesa Civil. A empresa chegou a afirmar que a comunidade foi avisada, porém não esclareceu quantas casas teriam recebido a ligação. O LAMPIÃO não encontrou moradores que confirmassem o suposto comunicado. Somente em Mariana, a Prefeitura estima por volta de R$ 100 milhões em perdas, entre as quais as 15 pontes, duas escolas e 250 casas destruídas. Cerca de 3800 pessoas foram afetadas direta e indiretamente no município. Os números de atingidos podem resultar em ações individuais contra a Samarco por danos morais, relata o promotor Guilherme Meneghin. As multas e acordos com a empresa já somam mais de R$ 1 bilhão, com possibilidade de subir para R$ 50 bilhões. Porém, o prefeito Duarte Júnior (PPS) diz que “não há interesse em cobrar os danos da empresa através de uma ação judicial. Vamos levantar esse valor, conversar com a empresa para que ela faça investimentos no município. A gente entende que se fizer uma ação contra a empresa, isso pode

demorar 15, 20 anos, e esse não é o melhor caminho.” Mais minério Em 5 de novembro, a barragem do Fundão passava por um alteamento. A obra seria útil para acomodar novos rejeitos, conforme explica o gerente geral de projetos da Samarco, Germano Lopes. A Vale, acionista da empresa em conjunto a BHP Billiton, também contribuía com o aumento de volume minerário, sendo responsável por quase 30% do total despejado em 2014, segundo laudo do DNPM. A Vale nega a informação e diz que depositou apenas “5% do volume total na barragem do Fundão”. A recente divulgação de laudos e auditorias revelou que a Samarco teve quatro vazamentos em 2005, 2006, 2008 e 2010. Além disso, paralisou um plano que iria preparar ações de emergências em 2009, obteve a licença ambiental sem o aval do Ministério Público e foi recomendada a aplicar 10 medidas de reparo no complexo de Germano. A empresa ainda esteve envolvida em um processo por impedir a fiscalização minerária. Jogo do empurra O DNPM, órgão federal vinculado ao Ministério de Minas e Energia, é responsável por fiscalizar o setor de mineração, incluindo 700 barragens de rejeitos em MG. A autarquia possui quatro técnicos no território mineiro e carece de infraestrutura. Para a Comarca de Mariana, os números são “insuficientes”. De janeiro a outubro de 2015, o Governo Federal disponibilizou somente R$ 1,2 milhão para a fiscalização de atividades minerárias; em todo o ano de 2014, foram R$ 3,6 milhões. O DNPM atribui a queda de investimento “à crise fiscal”. De acordo com Meneghin, o Governo Federal está “ausente” diante da tragédia e a prefeitura faz “papel de palhaço”. À reportagem, o prefeito minimizou a declaração e acredita que o promotor

se referiu ao Planalto. O órgão informou, pela assessoria, que “não é atribuição do DNPM fiscalizar a construção física das barragens, nem suas alterações, nem sua manutenção”, ressaltando que a obrigação principal é dos órgãos ambientais, que fazem o licenciamento das estruturas. A Vale e a BHP Billiton negam responsabilidade pela tragédia. “A Vale realmente não tem qualquer responsabilidade pelo infeliz e triste acidente”, alega um acionista da mineradora brasileira. A Samarco classifica o rompimento da barragem como “acidente”. A Samarco e o governo de Minas não responderam as perguntas feitas pela reportagem do LAMPIÃO. Poço sem fundo Mais de 600 pessoas perderam casas, plantações, animais e bens na tragédia de Bento Rodrigues. A Defesa Civil planeja demolir o que não ficou submerso, mas ainda não há definição sobre o que será feito com o lugar onde era a comunidade ou se a lama será retirada. Também não há data para as derrubadas do que restou. Mais de 11 mil pescadores e ribeirinhos foram afetados com a morte de milhões de peixes ao longo do percurso do Rio Doce, entre Minas Gerais e Espírito Santo. Mesmo pressionada pela Justiça, a mineradora Samarco ainda não se comprometeu a pagar os R$ 1.500 mais 30% por dependente, pedido feito pelos próprios moradores, que estão limitados a apenas um salário mínimo mais 20% por dependente. A empresa pretende dar R$ 10 mil para cada família recomeçar sua vida, e descontar desse valor anunciado eventuais indenizações judiciais. Até o fechamento do LAMPIÃO, a Samarco se negava a cumprir os 21 itens propostos pelas comunidades e representados pelo Ministério Público por meio de um acordo. A negativa gerou uma ação civil pública contra a mineradora e suas acionistas.

FOTOS: SABRINA PASSOS E RODRIGO SENA

Quem matou o tempo? No século XIX, o escritor e poeta estadunidense Henry David Thoreau garantiu que não seria possível praticar tal feito sem desonrar a eternidade. Duzentos anos depois, no dia 5 de novembro de 2015, por volta das quatro da tarde, o tempo cessou numa terra chamada Bento Rodrigues. Era o anúncio do fim. Com ele, a exigência de um recomeço por parte dos sobreviventes, afinal, o tempo parou em Bento, mas não no resto do mundo. Uma tragédia de estragos incalculáveis, que atingiu também Paracatu de Baixo (onde a foto de capa foi tirada), Barra Longa, Camargos, entre outros, além de devastar o Rio Doce. A cada segundo, as facetas de grupos de poder se escancaravam. Na contramão, a solidariedade do povo nos fez crer novamente no ser humano e fez valer uma velha máxima: “a esperança é

Flávio Ribeiro

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Milhões de multa do Ibama

Bilhões para o Governo Federal, ES e MG

Bilhão em acordo com o Ministério Público de Minas e o Federal

Reais mensais por família em acordo com o Ministério do Trabalho

Milhões bloqueados pelo MP de Mariana

Milhões de prejuízo para a Prefeitura de Mariana


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ARTE: ELMO OLIVEIRA

POLÍTICA

Relações perigosas

Repasse das mineradoras em campanhas políticas mineiras Repasse das mineradoras a campanhas políticas mineiras R$ 3.000.000

Fiscalização O DNPM possui dois eixos de fiscalização: envio de documentação anual e vistoria presencial quando evidencia algum problema. A falha no processo está no órgão ser dependente de uma terceirizada contratada pela própria empresa fiscalizada para os laudos. A Política de Barragens prevê, como responsabilidade do empreendedor, a confecção do plano emergencial para acidentes. Conforme o DNPM, a Samarco deveria, imediatamente após o rompimento, colocar o plano em execução a fim de minimizar os danos. A mineradora afirma ter executado medidas emergenciais, validadas pelos órgãos competentes, em conjunto com Defesa Civil, Corpo de Bombeiros e Polícia Militar. A licença ambiental para o funcionamento das atividades de barragens fica por responsabilidade da Secretaria Estadual de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Semad). Em Minas Gerais, a Fundação Estadual do Meio Ambiente (Feam) é a responsável por conceder as licenças. A partir da tragédia em Bento, a licença ambiental da Samarco foi cancelada pela Semad, sob determinação do Ministério Público de MG. Apenas atividades emergenciais para amenizar os impactos ambientais foram autorizadas. Novo marco Em 2013, o Governo Federal apresentou o projeto de lei 5.807. A tramitação do chamado “Marco Regulatório da Mineração” possuía carácter de urgência para a votação. Deveria ter sido analisado pelo Senado e Câmara Federal em 45 dias, porém a discussão foi arrastada até 2015. Durante a apresentação da proposta, a Presidente Dilma Rousseff declarou que “o Brasil tem as maiores reservas de minério do mundo, mas o setor ainda convive com uma legislação fraca e burocrática”. Com a nova regulação, o Governo pretende manter sob controle do Estado o desenvolvimento da atividade minerária, além de aumentar a competitividade em relação aos mercados internacionais e impulsionar o setor.

Bancada da mineração Em discussão desde 2013 no Supremo Tribunal Federal (STF), o financiamento privado de campanhas vem sendo um ponto de impasse na reforma eleitoral. Seguindo resultado da votação no Supremo, a presidente Dilma vetou, em setembro, as doações de empresas privadas. Se nada mudar, o financiamento passará a ser ilegal a partir das eleições de 2016. Na comissão legislativa que analisa o texto do novo marco regulatório, 20 dos 27 deputados receberam repasses de mineradoras. Dos cinco deputados da bancada mineira que mais receberam repasses do setor, três estão na Comissão. Dentre eles, o deputado Gabriel Guimarães, presidente do colegiado. Segundo o Código de Ética do Congresso, fere o decoro parlamentar “relatar matéria submetida à apreciação da Câmara dos Deputados, de interesse específico de pessoa física ou jurídica que tenha contribuído para o financiamento de sua campanha eleitoral”. Para o deputado federal Chico Alencar (PSOL/RJ), o Código de Ética do Congresso é interpretado ao bel-prazer dos interesses dos poderosos. “A bancada da mineração é tão presente e facilmente identificável que o Supremo proibiu, para as próximas eleições em 2016, o financiamento empresarial das campanhas”. O sistema é viciado e dependente, e isso manipula o resultado não só das eleições, mas das pautas discutidas no Parlamento.” Chico entrou com pedido para que Quintão fosse afastado da relatoria da matéria, dado seu envolvimento com o setor minerador. O deputado é contrário ao financiamento privado porque as “empresas têm interesses muito maléficos para o ambiente político, já que sua única preocupação é o lucro”. O cientista político Ricardo Caldas destaca a necessidade de uma noção de limite para definir o conflito de interesses que poderia estar atrelado à atividade legislativa do político em relação à origem do dinheiro que o financiou. Caldas acrescenta que o repasse privado é previsto pela legislação eleitoral brasileira. Para ele, a relação do parlamentar poderia ser relacionada a uma convergência de ideias pessoais e às das empresas.

R$ 2.000.000

R$ 1.414.425,80

R$ 1.500.000,00

R$ 2.656.327,67

R$ 1.000.000

R$ 3.611.713,48

Após o rompimento da barragem do Fundão, uma dúvida permanece na comunidade de Mariana, principal região atingida pelo desastre: “Quem cuida de nós?”. Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo, Barra Longa e as cidades ao longo da Bacia do Rio Doce sofrem com os impactos da devastação provocada pela tragédia. A atividade mineradora é de alto risco e, por isso, a legislação deve - ou deveria, ao menos - ajudar a minimizar, a fiscalizar ou a prever esses riscos. Elmer Salomão, 72 anos, Presidente da Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa Mineral (ABPM), afirma que, caso a legislação da mineração fosse posta em exercício pleno, amenizaria os riscos e danos possíveis causados por desastres. Ele avalia que a atividade deve ter um setor exclusivamente responsável pela fiscalização, e que a burocracia na divisão de responsabilidades causa ineficiência desse serviço em todo o país. Em 2010, foi sancionada a Lei nº 12.334, que criou a Política Nacional de Segurança de Barragens (PNSB), responsável pelo controle de barragens de água, rejeitos de mineração e acumulação de resíduos industriais A regulamentação visa, no papel, pelo menos garantir o amplo gerenciamento e controle dos empreendimentos sob responsabilidade da Agência Nacional de Águas (ANA). O controle das barragens também é no papel, com o envio anual dos relatórios ao Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM). Esses dados formam o Sistema Nacional de Informação de Segurança de Barragens (SINSB), no qual existe o detalhamento daquilo que é represado. Segundo o relatório apresentado em 2014, a barragem do Fundão apresentava risco baixo e dano potencial alto - essa parte estava correta. No relatório do SINSB de 2014, o campo destinado a descrever a composição do conteúdo depositado não foi preenchido.

A discussão do texto na Comissão Especial instalada para debater o assunto com os setores envolvidos acontece desde julho de 2013. A presidência da Comissão ficou a cargo do deputado federal Gabriel Guimarães (PT/MG), e a relatoria com o deputado Leonardo Quintão (PMDB/MG). A expectativa de votação do Código na Câmara foi adiada desde o primeiro parecer (substitutivo), em novembro de 2013. Após o rompimento da barragem do Fundão, o relator retirou o texto de tramitação para adequações ao cenário pós-tragédia de Mariana. Para o advogado do Instituto Socioambiental (ISA) Maurício Guetta, 30, seria fundamental a inclusão de mecanismos efetivos que garantam a proteção das comunidades impactadas. Segundo ele, Quintão não acatou os pedidos de inclusão desses mecanismos realizados pelo Comitê Nacional em Defesa dos Territórios Frente à Mineração. Quintão afirmou à Agência Câmara que houve, após o desastre de Bento Rodrigues, endurecimento das leis “para obrigar as mineradoras a ter um seguro geral que cubra acidentes, fatalidades e recuperação do meio ambiente”. Na terça, 8 de dezembro, Quintão entregou o novo substitutivo do projeto à Presidência da Câmara. O relator pretendia votar o novo texto até o final de 2015. Para Guetta, isso é estratégia para uma rápida aprovação, já que existem interesses de deputados, devido ao financiamento de campanhas pagas pelas mineradoras. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB-RJ), foi um dos parlamentares que mais apresentou emendas ao projeto. Em 2014, sua campanha recebeu R$1,7 milhão da mineração, em repasses diretos e pela direção estadual do PMDB. Quintão ganhou algo parecido: cerca de R$1,7 milhão, 40% de sua campanha, veio dos cofres das mineradoras. Até o fechamento, o deputado não respondeu as perguntas do LAMPIÃO.

R$ 3.999.492,33

Alexandro Galeno

ARTE: ELMO OLIVEIRA

ECONOMIA

À sombra da mineração Mariana sofre impactos que afetam cadeia produtiva, desestimulam comércio e dificultam criação de alternativas de renda FOTOS: THIAGO BARCELOS

Camila Guardiola e Caroline Hardt

Nova legislação minerária está sob cuidado de bancada financiada por mineradoras; atual código tem fiscalização insuficiente

Valor total arrecadado por todas as mineradoras: R$ 22.082.617,97

Políticos que mais receberam financiamento da mineração GOVERNADOR

FERNANDO PIMENTEL (PT) RECEBEU: R$ 11.474.504,79 PROJETO DE LEI: Flexibilização em licenças ambientais

SENADORES ANTÔNIO ANASTASIA (PSDB)

RECEBEU: R$ 2.179.706,37

AÉCIO NEVES * (PSDB)

RECEBEU: R$ 803.500,00

ITAMAR FRANCO * (PPS)

RECEBEU: R$ 247.000,00

DEPUTADOS FEDERAIS LEONARDO QUINTÃO (PMDB)

RECEBEU: R$ 1.706.796,71

LUIZ FERNANDO (PP)

RECEBEU: R$ 1.461.381,75

PAULO ABI-ACKEL (PSDB)

MARCOS MONTES (PSD)

RECEBEU: R$ 908.000,00

RECEBEU: R$ 907.031,47

DEPUTADOS ESTADUAIS PAULO LAMAC (PT)

BOSCO (PT do B)

RECEBEU: R$439.245,00

RECEBEU: R$210.000,00

JOÃO ALBERTO (PMDB)

RECEBEU: R$192.345

DURVAL ÂNGELO (PT)

RECEBEU: R$ 173. 424,53

* Dados do TSE referentes à campanha de 2010

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Elder Aparecido dos Santos, 27 anos, desempregado há dez meses, vive na casa dos pais na cidade mineira de Catas Altas, a 48,9 quilômetros de Mariana. Seu pai, Ailton Martins dos Santos, 55, responsável financeiro pela família, trabalhava há menos de um mês como motorista de caminhão-pipa na Integral Engenharia LTDA, terceirizada pela Samarco. Após dois anos desempregado, Ailton entrou na mineração procurando oferecer o melhor à família e está desaparecido desde 5 de novembro. A família, sem notícias ou ajuda financeira, sente os impactos econômicos do maior desastre ambiental da mineração brasileira. Reservas canceladas e queda no comércio turístico são as primeiras consequências enfrentadas pela economia de Mariana e da região após o rompimento da barragem do Fundão. A população começa a perceber os efeitos, mesmo que indiretos, da tragédia. Para os lojistas, a preocupação com o futuro é grande. Poliane Priscila de Freitas Lube, 28, comerciante de roupas femininas, defende a permanência da empresa em Mariana e afirma que, devido à dependência econômica da mineração, a cidade não consegue se manter sem a atividade. Segundo ela, sua loja já sentia o impacto da crise econômica brasileira, com reflexo nas vendas, que caíram 20%. Após a tragédia, a procura caiu mais de 60%, e tende a piorar. Essa preocupação não é única dos comerciantes. Entre os funcionários da mineradora, o sentimento é de apreensão. Segundo o presidente do Sindicato Metabase Mariana, Ronaldo Bento, 38, “há um desequilíbrio emocional muito grande, no sentido de perda dos seus companheiros de trabalho”. Só a unidade do Germano possui mais de 1,5 mil trabalhadores, sendo 735 moradores de Mariana. Segundo a Prefeitura, indiretamente, a mineração gera cerca de 2 mil empregos na região. Por isso, há uma preocupação com a conservação dessas vagas. A mineração é responsável por 80% da arrecadação da cidade, o que coloca o desenvolvimento e a manutenção de Mariana diretamente

ligados à exploração. Apenas a Samarco contribuir diretamente com R$ 5,3 milhões mensais, em impostos, como o Imposto Sobre Serviços (ISS). Em 2014, a receita municipal chegou a R$ 303,4 milhões, dos quais R$ 71,5 milhões vêm de transferência de cotas-parte da Compensação Financeira pela Exploração de Recursos Minerais (CFEM), tributo calculado sobre o faturamento líquido obtido com a venda de produtos minerais. Ou seja, cerca de 23,6% da receita municipal vêm de uma única taxa sobre a mineração. Por conta dessa dependência, com a queda no setor, o município sofre com diminuição na receita. Em 2015, antes mesmo do rompimento da barragem, com a baixa no preço do minério, Mariana recebeu R$ 45,7 milhões da CFEM. A baixa reflete na receita e arrecadação municipal, que, segundo a prefeitura, perdeu R$ 22,3 milhões só nos três primeiros meses do ano. Os dados do Produto Interno Bruto (PIB) de Mariana em 2012, os últimos disponibilizados, confirmam a discrepância entre os setores econômicos da cidade. Do total de R$ 4 bilhões, 72,9% provêm do setor industrial, seguido por 24,4% de serviços e 2,40% de impostos. O que preocupa a Prefeitura é que impostos como o ISS e o CFEM deixam de ser recolhidos com a paralisação das atividades da Samarco, que teve sua Licença de Operação revogada a pedido do Ministério Público. Com isso, estima-se que Mariana perca R$ 5,53 milhões por mês referente aos dois impostos. Sem alternativas O especialista em recursos naturais e professor de economia da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) Chrystian Mendes, 31, explica as consequências da dependência da mineração. “O problema da cidade ser tão dependente é que caso ocorra algum evento como o que aconteceu, o município fica à mercê das mineradoras, o que pode prejudicar seu desenvolvimento e a manutenção das atividades”, afirma. Segundo ele, o período de esgotamento das minas ainda deve “demorar um longo tempo para acontecer. Porém, isso não implica que alternativas não devam ser procuradas, como o turismo, cultura, arte e até a própria universidade,

Reflexão. Após tragédia, população questiona modelo baseado na exploração de recursos naturais

que tem importante papel nisso, pelos diversos cursos”. “Para não deixar a economia refém apenas de uma atividade e a cidade não parar, é preciso ser criativo”, explica Mendes. Quanto à paralização da exploração, o economista ressalta as consequências que isso traria à cidade e a importância da mineração. “Supondo a interrupção, o que pode acontecer é um aumento do desemprego, bem como fechamento de alguns pontos comerciais e, consequentemente, elevação dos preços”, enumera. Ronaldo Bento, do Metabase Mariana, concorda que o município precisa da mineração e afirma que a possibilidade de término das atividades mineradoras refletiria diretamente no setor de comércio e serviços, e consequentemente acarretaria a diminuição de empregos, transformando Mariana em “uma cidade fantasma”. A solução para essa dependência histórica seria o investimento em novas atividades, até mesmo ligadas ao minério, como o uso e a exploração de novos recursos disponíveis no município. Durante sua participação na 21ª Conferência do Clima (COP21), na França, no início de dezembro, o prefeito de Mariana, Duarte Júnior,

criticou a dependência econômica do município. “Temos que entender a mineração como um parceiro que em determinado momento vai terminar. É finito. Temos de nos preparar para deixarmos de ser tão dependentes dessa atividade”, afirma. Entre as alternativas para novas formas de arrecadação está a construção de um polo industrial na cidade, que atrairia empresas de outros segmentos. Segundo a Prefeitura, não há um setor específico que se deseja atrair para o distrito industrial de Mariana. O objetivo, informa a assessoria, é promover um espaço propício para instalação de empresas que possam gerar emprego e riquezas na cidade, mas não há detalhamento do que se espera. História antiga A relação do município com a mineração vem de antes de 1850, no primeiro ciclo do ouro. Já a exploração de minério de ferro começou em meados da década de 70, e o aumento de produção veio em 1978, um ano após a fundação da Samarco. Mariana não é a única que sofreu consequências da exploração. A vizinha Itabirito também teve uma barragem de rejeitos, da empresa Herculano Mineração, rompida em

setembro de 2014. O desastre deixou três mortos, cursos d’água e o rio Itabirito contaminados. A semelhança entre ambas abrange a dependência econômica. Itabirito também já passou por períodos em que mais de 65% de sua receita provinha do setor mineral. Para mudar esse cenário, o município investiu em um plano de diversificação da economia, trazendo indústrias e ampliando as arrecadações municipais. O mesmo deve acontecer com Mariana. Segundo a Prefeitura, a administração já trabalhava na implantação da Área de Diversificação Econômica (ADE) para incentivar a produtividade rural, implantar novos empreendimentos rurícolas e estimular o desenvolvimento sócioeconômico. Além disso, a Secretaria de Desenvolvimento Econômico elaborou o Plano de Crescimento e Desenvolvimento de Mariana, que seria lançado em novembro, mas em virtude do rompimento foi adiado por tempo indeterminado. A construção de um laticínio municipal, o desenvolvimento da agricultura familiar e a elaboração de um mapeamento dos recursos culturais de Mariana também estão entre os planos a longo prazo para equalizar a economia da cidade.

Turismo é solução? Com o rompimento da barragem do Fundão, um dos distritos atingidos foi Camargos, a cerca de 19 quilômetros de Mariana. O local possui entre suas principais atividades o turismo e o artesanato. Um dos patrimônios é a Igreja de Nossa Senhora da Conceição, do século XVIII. Os prejuízos culturais de Camargos e região após o rompimento da barragem ainda são incalculáveis. O local, conhecido pelo artesanato, pela igreja e a cachoeira, faz parte do percurso do Iron Biker, competição internacional de mountain bike que acontece em Mariana anualmente. O secretário de Turismo, Cultura e Desportos de Mariana, Vicente Freitas, 42, espera que até a próxima edição do evento, em setembro de 2016, o lugar esteja recuperado. O turismo é apontado como uma das soluções para o fim da grande dependência econômica de Mariana da mineração. Entretanto, mesmo que a cidade tenha capacidade para atrair público, ainda há falhas e são necessários aprimoramentos para que as atividades contribuam significativamente para a economia local. Segundo Freitas há dificuldade de chegar a um acordo com os comerciantes locais, principalmente em relação aos horários

de funcionamento, o que enfraquece ainda mais as vendas. Isso ocorre porque os turistas buscam os estabelecimentos nos fins de semana, quando estão fechados. Os problemas não acontecem só no comércio. O secretário afirma que com a Arquidiocese, responsável pelas igrejas - principal atração entre os turistas -, há dificuldade de diálogo e acordo entre horários e dias de funcionamento, devido ao baixo número de funcionários disponíveis. A Arquidiocese não respondeu o LAMPIÃO. Vicente destaca que um dos problemas mais recorrentes é que, muitas vezes, os visitantes chegam para conhecer os patrimônios da região e os encontram fechados. Por meio de programas como o Jovem Aprendiz, em que os estabelecimentos oferecem trabalhos de meio período para menores de 18 anos, os representantes pretendem solucionar a situação. Questionado sobre a capacidade turística de Mariana, o secretário afirma que o setor “não tem condições de sustentar economicamente o município”. Novas propostas e investimentos para aquecer a atividade podem aumentar sua influência na economia local. A Prefeitura não sabe quanto o turismo influencia no PIB de Mariana.

Reconstrução. Camargos precisa se reestruturar para voltar a ser destino turístico


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ARTE: LUÍSA RODRIGUES

ARTE: LUÍSA RODRIGUES

Fragmentos de uma tragédia marianense

Após o rompimento da barragem do Fundão, Mariana se transformou em um lugar de tristeza, desespero e solidariedade. Ora sentia-se o silêncio estarrecedor, a incredulidade, a reflexão. Ora pulsava a tentativa de recomeçar amparada na fé e na vontade de justiça. Algo ficou claro: o algoz e o protetor são o mesmo e compõem o cenário de peças que se encaixam em um passado impiedoso, um presente devastado e um futuro incerto.

TEXTO: Agliene Melquíades Carol Vieira FOTOS: Rodrigo Sena

Direitos em pauta O papel e o chão de fábrica Rodney Cassiano, 62 anos, é aposentado da Samarco, depois de 24 anos como mecânico na empresa. No período recebeu auxílio creche, alimentação, bolsa de estudo para os filhos, transporte e participação nos lucros. Ele conta que, na sua época, a mineradora tinha como meta priorizar a segurança do trabalhador. Terceirizado da Aveyance, o vulcanizador Rodson Cassiano, 29, filho de Rodney, afirma que, apesar de não ter os mesmos benefícios, a conscientização e a exigência de prevenção de riscos no trabalho são as mesmas. A cultura de organização e proteção interna incluiu a Samarco entre as 150 melhores empresas para se trabalhar no Brasil da revista Você S/A, em 2014. Com 81,4 de 100 pontos, um dos critérios é o índice de satisfação dos funcionários com o ambiente de trabalho. Na Samarco, 80,7% dos trabalhadores estão satisfeitos. De acordo com o Metabase Mariana, atualmente a mineradora emprega cerca de 2 mil funcionários e 3 mil terceirizados de 15 empresas em Mariana, Ouro Preto, Santa Bárbara, Barão de Cocais e Catas Altas. Apesar disso, Ronaldo Bento, um dos representantes do sindicato Metabase, 38, discorda da colocação no ranking. Segundo ele, a corporação é diferenciada em relação aos benefícios dos trabalhadores, contudo a preocupação com o lucro, como em todas as empresas, gera pressão sobre os funcionários. “Nós, que somos do ‘chão de fábrica’, sabemos que o papel [ranking] de sustentabilidade e desenvolvimento social não acontece na convivência do dia-a-dia. A cada dia, a mão humana é mais escravizada.” De acordo com a pesquisa Política, Economia, Mineração, Ambiente e Sociedade - Poemas 2015, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), a Samarco responde a 554 processos no Tribunal Regional do Trabalho da 3a Região de Minas Gerais e 1.021 no Tribunal Regional do Trabalho da 17a Região de Espírito Santo. O número é considerado alto comparado aos funcionários da empresa, cerca de 7 mil no Espírito Santo e em Minas Gerais. O Poemas afirma que o número de desrespeitos trabalhistas pode ser maior, já que muitos não chegam à Justiça. O risco na execução das atividades minerárias chega à escala 4, o nível máximo. Na Samarco, de acordo com o Poemas, os acidentes com trabalhadores cresceram 95% entre 2009 e 2014. O estudo credita o aumento à queda do preço do minério junto com a necessidade de se manter a constante produtividade, reduzindo custos operacionais para manter os lucros. Em 2014, a companhia lucrou R$ 2,8 bilhões e teve faturamento bruto de R$ 7,6 bilhões. O LAMPIÃO procurou trabalhadores da mineradora para relatar o cotidiano de pressão. Ninguém quis falar. “Se me expor, perco meu emprego. E, depois, onde vou trabalhar em Mariana?”; “Motivos relacionados às exigências do contrato me impedem de falar”. O Código de Conduta da Samarco adverte que é obrigação do colaborador proteger informações que dizem respeito às atividades exercidas na organização, mesmo “após o término do vínculo”.

Quanto vale um projeto? A estudante Jennyfer Fialho dos Santos, 11, recorda com saudade a vida em Bento. Os fins de semana e a expectativa pela construção da piscina no quintal são memórias ainda muito vivas. Em poucos minutos, a lama do Fundão transformou a realidade em sonho a ser recuperado. “Meu desejo é que façam um novo Bento, o mais parecido possível. Antes queria que melhorasse, porque lá tinha pouca coisa.” Jennyfer conta que um dos problemas era a insuficiência na captação de recursos hídricos, assunto muito estudado na Escola Municipal de Bento Rodrigues. Em uma reportagem de rádio, a estudante entrevistou moradores sobre a falta d’água e possíveis soluções. A iniciativa surgiu de parceria entre a escola e o projeto Cidadão do Futuro. Voltado para inovar o ambiente educacional, o programa promoveu a inclusão de tecnologias que auxiliam práticas pedagógicas. O projeto começou em Bento Rodrigues em 2014 e era executado pelo Instituto Paramitas, contratado pela Samarco, como parte da política de relacionamento socioinstitucional da empresa. Segundo o relatório financeiro de 2014, a organização gastou cerca de R$ 10,4 milhões em projetos sociais em Minas e no ES – cerca de 0,14% do faturamento bruto. A companhia não respondeu sobre a verba para projetos em Bento Rodrigues, antes e depois da tragédia. A Secretaria de Desenvolvimento Social e Cidadania de Mariana entregou à Samarco um Plano de Ação de Assistência Social até março, pedindo contratação de psicólogos e assistentes sociais para os atingidos. O secretário adjunto de Desenvolvimento Social, João Paulo Paranhos, diz que essas pessoas estão sob cuidado da empresa. “Não temos autorização para iniciar uma política com os atingidos, ela é de responsabilidade da Samarco.”

Parceiro privilegiado Diante do cenário, a Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) criou o Comitê de Articulação para Ação Voluntária em apoio aos atingidos. A estratégia visa organizar as ações propostas pela comunidade acadêmica em uma frente de mobilização, de médio e longo prazo, para acompanhar e orientar os moradores de Bento Rodrigues, Paracatu e outras áreas afetadas. O comitê é construído por eixos, como Educação e Memória, Saúde, Trabalho, Comunicação, e está aberto a sugestões. Há 28 projetos para entrar em ação. O chefe de gabinete da reitoria, José Armando Ansaloni, 55, explicou que, antes da criação do comitê, a universidade facilitou ações isoladas. Entre elas, carros para o envio de donativos a Barra Longa e o ônibus que levou 40 estudantes de medicina para fazer a triagem dos moradores. A instituição foi convidada pela Secretaria de Meio Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de MG (Semad) para participar de um estudo de normatização da construção de barragens de rejeitos. A pesquisa tem como proposta realizar uma força-tarefa para analisar e sugerir normas técnicas para melhorar a fiscalização em Minas Gerais, além de desenvolver novas tecnologias. A mineração está presente em outras instâncias da Ufop. A Samarco contribui de forma efetiva para a realização de pesquisas e eventos na universidade, por meio de convênios, protocolos e financiamentos. Em outubro de 2015, foi assinado um protocolo de intenções para ofertar aos estudantes aulas de segurança do trabalho, ministradas por funcionários da Samarco. O reitor da universidade, Marcone Jamilson, 55, conta que ainda não existe nenhuma conversa sobre a suspensão das propostas, e que, depois do rompimento da barragem, a empresa responsável “terá tempo de sobra” para se dedicar às aulas. A construção do Parque Laboratorial do Instituto Tecnológico Vale (ITV) e do Centro de Geotecnia Aplicada também integram o protocolo. Com investimento de R$ 6,8 milhões em estrutura, Vale e Samarco pretendem criar um polo de tecnologia industrial no campus. Em 2014, por intermédio da Fundação Gorceix, a Vale e a Samarco investiram R$781,8 mil em pesquisas de professores da Ufop. As empresas também patrocinam eventos como Festival de Inverno e Fórum das Letras, realizados pela instituição. Como consequência do rompimento da barragem do Fundão, alguns convênios entre a Fundação Educativa de Ouro Preto (Feop) e a Samarco, avaliados em R$ 1,2 milhão foi suspenso. A instituição é um dos principais órgãos de apoio à universidade. O Grupo de Pesquisa RECICLOS, da Engenharia Civil, faz estudos na área. Um deles mostra que é possível incorporar até 80% da lama no lugar da areia na construção civil. Por meio de nota, a Ufop lamentou o acontecido e se solidarizou em ajudar as famílias atingidas pela lama. Parte da universidade classificou a postura dos integrantes da Escola de Minas, maior beneficiária das verbas de pesquisa e dos convênios com a mineração, como omissa, já que não houve nenhum pronunciamento do instituto. Segundo o reitor, alguns professores optaram por não falar sobre o caso devido à relação que mantêm com a empresa ou por não dominar as peculiaridades da barragem da Samarco. “Nós temos professores que estão envolvidos no processo”, confirma, informando que não houve proibição de declarações por parte da reitoria.

Em 1991, moradores que perderam tudo devido a impactos de barragens no Brasil se juntaram para defender seus direitos. O Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB) hoje atua em 17 estados. Desde o rompimento da barragem do Fundão, o movimento está em Mariana na tentativa de mover ações que garantam os direitos das comunidade de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e outras áreas afetadas pela lama. Letícia Alves, 27, é coordenadora estadual do MAB e afirma que normalmente o movimento inicia as atividades nos locais onde há barragem ou durante a construção, sendo nova a experiência com um rompimento. “A gente chegou em um momento impactante, o direito à informação desde o início foi violado e não havia quase nenhuma participação dos atingidos sobre os direitos e propostas para ampará-los.” Em Mariana, o MAB defende a obrigatoriedade de uma verba de manutenção paga pela empresa, um valor mais alto para iniciar o processo de reconstrução dos bens, o reerguimento da comunidade priorizando sua dinâmica e laços afetivos, além da recuperação da Bacia do Rio Doce. Os integrantes do movimento esclarecem aos atingidos sobre direitos e os incentivam a não desistir de recuperar tudo o que perderam. Outra ação que surgiu como estratégia para negociações foi o Reage. O coletivo juntou iniciativas de órgãos da sociedade civil, para ajudar no processo de ressarcimento das famílias atingidas. Representantes do Ministério Publico, MAB, Arquidiocese, IFMG, Ufop e moradores das áreas afetadas dialogam sobre pautas emergenciais para entregar à empresa. Uma proposta única defende os interesses dos moradores de Bento Rodrigues, Paracatu de Baixo e Barra Longa. A criação de comissões que representem os atingidos também é uma ideia surgida no Reage. A comissão representativa é composta por 32 membros, que falam pelos distritos afetados. Os participantes, moradores dos locais atingidos, mediam as negociações entre a Samarco e a população. De acordo com o representante do distrito de Paracatu de Baixo, Dan Mol Peixoto, 47,o comitê tem se preocupado com a união dos atingidos, para que ninguém saia prejudicado das negociações. Além da comissão representativa, foi criada uma comissão para administrar quase R$ 1 milhão de doações. De acordo com um dos representantes, José do Nascimento de Jesus, 70, “o dinheiro está retido, e a intenção é utilizá-lo depois que a Samarco indenizar e reconstruir as áreas atingidas”. Ainda não foi discutido como a quantia será repartida. A solidariedade às vítimas do rompimento também se mostrou na união pela fé. O ato ecumenico realizado na Arena Mariana, após 30 dias, contou com a presençade representantes da igreja católica e evangélica.Para a professora de Serviço Social da Ufop Sheila Dias, 36, a participação dos movimentos sociais, o trabalho voluntário e as doações são atos importantes, mas que podem reduzir as ações reparatórias dos responsáveis. “A Samarco se eximie da responsabilidade de bancar as comunidades expropriadas e usurpadas de seus direitos.”

Ecos na rua Depois da tragédia, que tingiu a primaz de marrom, gritos e choros clamavam por justiça. A ação do poder público e de empresas privadas colocou em dúvida quem cuida realmente do povo, e os questionamentos começaram. O primeiro uniu as vítimas do rompimento, a Arquidiocese de Mariana e o MAB. Atrás de respostas, cartazes tomaram conta das ruas em manifesto pela valorização da vida. Nilza Pena, 72, trazia a incerteza no olhar e nas mãos. No cartaz, as palavras “pai de família, dedicado, competente” descreviam indagações sobre o desaparecimento do genro Daniel de Carvalho, 53, terceirizado da Samarco. “Ele saiu de casa para trabalhar na quinta-feira e não voltou mais.” Na Praça Minas Gerais, os participantes rezaram de mão dadas. A reflexão sobre o recomeço fez muitos pensarem nos rumos da mineração na cidade. O movimento “Fica Samarco” foi uma resposta à indagação. Comerciantes, estudantes, trabalhadores da mineradora e moradores atingidos participaram. O pedido de todos era um só: “justiça sim, desemprego não”. Era possível ouvir “Fica, Samarco, sem você nós somos fracos”. Os semblantes e os cartazes reforçavam o receio de que Mariana se torne uma “cidade fantasma”. Na mesma linha, o sentimento de vulnerabilidade motivou a passeata “Todos juntos pelo futuro de Mariana”, com moradores da cidade e dos distritos. A marcha terminou com a entrega de um manifesto ao prefeito, Duarte Júnior (PPS), e ao representante da Câmara dos vereadores, Fernando Sampaio (PRB). Entre os pedidos está a criação de alternativas que diversifiquem a economia da cidade. Para o comerciante Flávio Almeida, 40, a pauta dos desabrigados não exclui a pauta da mineração. “Expressamos o desejo de que as reivindicações se convertam em um bem comum.”

Não se rompe uma memória Em poucos minutos, o comerciante José Barbosa dos Santos, 68, teve as mãos calejadas e o suor de 45 anos reduzidos a destroços pela onda de lama. No momento em que a barragem rompeu, José trabalhava na venda que construiu há 25 anos. Ao ouvir de longe o barulho, pensou que fosse poeira no vendaval. Quando viu o mar marrom, a correnteza trazia também uma escola inteira, e estava a 30 metros de atingi-lo. Foi quando o misto de surpresa, incredulidade e desespero o acometeu. “Matou meu povo tudo. Andei até de passos. Não adiantava correr. Aquela lama poderia me lamber, já tinha lambido o meu povo mesmo”, relembra, quando pensou ter perdido a família. A aposentada Maria Félix de Souza Santos, 67, mulher de José, recorda com nostalgia os 44 anos que viveu no distrito. “Era um lugar muito sossegado, podia dormir com as portas abertas”. Das tantas saudades de Maria, a maior talvez seja o sonho da cozinha nova. Depois de um ano em reformas, só faltavam os vidros do armário. Nos últimos dois anos, o lugarejo estava diferente. Mais pessoas visitavam o local, as celebrações religiosas e a igreja estavam mais movimentadas. “Parecia que tudo no Bento foi despedida. Foi tudo muito bem festejado. Tudo era adeus.”, lamenta. Na tarde do dia 5, Maria se preparava para descansar no sofá da casa quando a filha lhe avisou que a barragem tinha se rompido. A aposentada só teve te mpo de chamar a amiga e fugir. “Entrei no ônibus da linha que estava passando, ia em direção a Santa Rita, mas a lama cortou o caminho. O ônibus recuou e nos deixou no pé do morro. Lá de cima eu só via tudo sendo levado.” O reencontro com os familiares trouxe alívio e aumentou a fé. “Com uma das mãos Deus segurou a lama, com a outra nos empurrou para o morro.” José tenta seguir a vida com otimismo, mas as memórias do antigo Bento permeiam o pensamento. “Às vezes não quero lembrar. Mas nos meus sonhos chega um freguês e fala, ‘quanto é aquilo ali, Barbosa?’”. Não é a primeira vez que o aposentado fica sem suas economias. No governo Collor, o aposentado perdeu toda a quantia aplicada na caderneta de poupança. Desde então, passou a guardar dinheiro em casa. Antes da tragédia, cerca de 60 mil reais estavam reservados entre a parede e o guarda-roupa. “O negócio foi diferente do Fernando Collor de Mello, porque ele veio e levou o dinheiro, ao menos a casa deixou pra gente. Agora levou o dinheiro, com casa, com tudo. Meu sonho é que a Samarco devolva tudo que perdi”, desabafa. Vanderlei Lucas, 38, é morador de Contagem, MG, e passou 31 dias em um hotel de Mariana sem notícias da mãe. Maria Elisa Lucas, 60, estava a passeio em Bento quando a barragem rompeu. “Ela estava pescando, fazendo a coisa que mais gostava. Aí veio a lama e a levou.” Movido pela inquietação, Vanderlei, junto com famílias de desaparecidos, foi à porta do escritório da Samarco, em Mariana, para exigir que as buscas nas áreas atingidas não fossem cessadas enquanto não houvessem respostas. Até o fechamento do LAMPIÃO, duas pessoas continuam desaparecidas e 17 corpos foram reconhecidos por parentes, entre eles a mãe de Vanderlei. A barragem do Fundão começou a operar em 2008. Segundo o Presidente da Associação de Moradores de Bento Rodrigues, Zezinho do Bento, a população não foi consultada sobre a construção. Na época, a Samarco informou que o empreendimento não trazia riscos à comunidade. Ele conta que depois do fim da obra, as reuniões com a Samarco para esclarecer, entre outros assuntos, sobre os riscos da barragem eram frequentes. A empresa garantia que a estrutura era “muito segura”. O morador visitou a barragem de Santarém. “Sempre garanti o pessoal que se a nossa vida fosse tão segura quanto Santarém, não morreríamos nunca. A do Fundão nunca tive a oportunidade de visitar. Eles nunca convidaram.”


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ARTE: CLARISSA CASTRO

ARTE: CLARISSA CASTRO

TRABALHO

CIDADANIA

Burocracia feita com mágoa

Riqueza tingida de lama Com a produção afetada pelo rompimento da barragem, patrimônios locais podem se tornar uma raridade no comércio

Moradores dos distritos atingidos se veem de mãos atadas depois de perderem a documentação básica e registros de seus bens TAINARA FERREIRA

Francielle Ramos

Mariana Rennó

Incerteza. Fabricação da geleia antes produzida em Bento Rodrigues não tem previsão de ser retomada

Cooperação Conceito um tanto distante da economia tradicional, a economia solidária não está relacionada prioritariamente ao lucro, como explica a professora do curso de Engenharia de Produção da Ufop Francisca Diana, 36. A economia solidária está ligada à autogestão e ao cooperativismo e ajuda no desenvolvimento social e local, associando o empreendimento ao lugar onde está inserida. É desenvolvida para a melhoria de vida das pessoas que trabalham nesses empreendimentos. Francisca, que participa da Incop, vinha mapeando empreendimentos de Mariana, Ouro Preto e João Monlevade para incubar os que tivessem associados à economia so-

lidária. Francisca trabalhava com a Ahobero desde maio de 2014 e, nesse processo, a associação ganhou um prêmio do Banco Santander, que foi dividido em duas fases em 2014. O dinheiro, um total de R$ 100 mil, foi usado para ampliar e adequar a associação às normas da Anvisa. Imaterial É comum escutar o discurso de que há alternativas para quem perdeu um patrimônio. A professora de Ciências Sociais da Ufop, Marisa Singulano, 32, explica que, no caso da Ahobero, as mulheres podem voltar a produzir a geleia, já que o saber-fazer não foi perdido. Ela ouviu de uma das mulheres da Ahobero que a perda mais importante foi a histó-

ria. “Ficou enterrada na lama.” Essa memória se materializava em objetos, fotografias, recordações, coisas que não serão mais recuperadas. Para Marisa, a associação faz parte da história da comunidade de Bento Rodrigues. Era muito mais que vender; as pessoas envolvidas estavam juntas desde a plantação da pimenta até a colocação da geleia no pote. Havia uma relação entre o território e a vida de cada uma delas. Nesse lugar, todos colocavam em prática o saber-fazer quando passavam por todos os processos da produção. “O território de uma comunidade é, em parte, uma dimensão material – a terra –, mas, em parte, é ‘imaterial’, é o espaço da vida, e isso se perdeu com a tragédia.”

CLARISSA CASTRO

Fonseca

MG - 129

Águas Claras Pedras

Barra Longa

Paracatu de Baixo Mendes

Mariana Rennó

Cunha

MG - 129

MG - 326

Colaboraram Flávio Ribeiro e Rafaella Souza

Mariana Ouro Preto

MG - 262

Cachoeira do Brumado

MG - 262

Ponte Nova FOTOS: TAINARA FERREIRA

Sandra, vida em reconstrução

Tiara, iguaria de Barra Longa

Seu Waldir, colher o que dá

Conhecida na região de Mariana por sua famosa coxinha, Sandra Quintão, 43, de Bento Rodrigues, espera recomeçar e recuperar um pouco do que perdeu. Assim como outras famílias que aguardam uma casa provisória e depois um lugar definitivo para morar, Sandra busca encontrar uma que a permita continuar fazendo o que usualmente fazia. Emocionada, conta que, logo quando foi levada ao hotel, depois de perder a casa, conseguiu a cozinha emprestada e continua a produção de coxinhas e pé de moleque, com a ajuda da irmã, Terezinha. A procura pelos salgados aumentou consideravelmen-

Produto artesanal e familiar, a cachaça Tiara foi mais um dos patrimônios da região que teve a produção interrompida. O local onde o bagaço da cana ficava armazenado foi atingido pela lama do rompimento da barragem da Samarco. A tragédia afetou a produção da cachaça, prevista para terminar apenas em dezembro. Segundo Juliano Siqueira, 37, gestor da empresa, quatro funcionários formais e outros dez informais foram dispensados. O bagaço serve como combustível para o alambique onde produzem a cachaça. Numa safra, que dura, em geral, seis meses, chegam a ter entre 70 e 80 mil li-

Com um sorriso no rosto e muita disposição, seu Waldir Pollack, 69, morador de Paracatu de Baixo, conta sua história. No dia 7 de novembro, foi a primeira vez que chegou à feirinha onde vende suas hortaliças de mãos vazias, para mostrar aos clientes que estava bem. Ficou ao lado da barraca toda a manhã. Uma semana depois, ele já tinha o que vender, mas em menor quantidade. Com o rompimento da barragem, trabalhadores que o ajudavam na plantação foram afetados e não tiveram condições de continuar no subdistrito. A plantação é grande e possui uma diversidade de produtos.

te e ela os vende congelados ou fritos, por R$50 o cento. Sandra trabalhou durante nove anos em casas de família, em Belo Horizonte, e lá aprendeu a fazer o salgado. Mas o tempero é dela e é segredo. O casarão em que ficava o Bar da Sandra, que servia comida mineira, funcionava como pousada. “Já tive casos de a pessoa almoçar e pegar a coxinha pra levar na viagem.” Hérica Mara, 22, frequentava desde a infância o subdistrito e, sempre que dava, visitava os tios. Sobre as coxinhas, ela afirma: “É impossível resistir. Ela tem mãos de fada. E os doces também são maravilhosos”.

tros do produto. Como a produção é anual, a Tiara não deve sumir do mercado e, por volta de junho de 2016, a safra recomeça. Desde 1940 no mercado, a cachaça Tiara, inicialmente Iara, é produzida em Barra Longa. Antes de Juliano, o patrimônio foi administrado pelo pai, Benjamin e, antes dele, pelo avô. A Tiara tem parceria com o departamento de Tecnologia de Alimentos da Ufop, que faz análises periódicas do produto. Em 2014, a Tiara foi premiada com medalha de ouro do Concurso Mundial de Bruxelas. Ela é comercializada em Minas Gerais, Rio de Janeiro e Campinas.

“Tinha acabado de chegar, naquela quinta-feira fiz compras no mercado. Só peguei minha bolsa e saí com a roupa do corpo”, relembra. Atualmente, ela tem a carteira de identidade e o CPF, porque ficaram na bolsa que protegeu. Vanda ainda não solicitou a segunda via da certidão de nascimento e da carteira de trabalho, porque não está pronta para lidar com o processo. Para ela, o único meio de atestar a existência da construção é a conta de luz em seu nome. O documento da Cemig comprova a residência no lugar, não a posse do imóvel. Procedimentos No dia seguinte ao rompimento, o Centro de Atendimento ao Cidadão (CAC) de Mariana, em parceria com a Secretaria de Estado de Direitos Humanos, a Polícia Civil de Mi-

nas Gerais e o Sindicato dos Cartórios (Recivil), iniciou mutirões para que as pessoas pudessem refazer a documentação básica. As equipes foram até os hotéis e recolheram os nomes de quem precisaria. As ações já foram finalizadas, mas os serviços regulares desses órgãos continuam sendo preferenciais. A Câmara Municipal e o Cartório de Registro de Imóveis de Mariana garantiram que todos os afetados pela calamidade têm direito à isenção para retirar novas vias dos documentos. A Câmara não soube informar quantos deles foram atendidos desde 6 de novembro. Uma fonte contou ao LAMPIÃO que a Samarco pagará a segunda via do documento do carro e descontará no valor da indenização. Até o fechamento, 20 moradores de Bento Rodrigues e Paracatu haviam ido ao

Achado. Após 19 dias, Geralda volta ao local da tragédia e recupera alguns documentos essenciais

cartório para buscar as escrituras. Alguns voltaram de mãos vazias. Dos 25 imóveis procurados, apenas 10 foram identificados. Um mês após o desastre, a Samarco ainda não tinha uma estratégia para ressarcir as vítimas, inclusive as que estão sem a documentação comprobatória dos bens. De acordo com o analista de comunicação da mineradora, Thales de Toledo França, a empresa está focada em ações emergenciais. “A Samarco não está discutindo indenizações agora com nenhum dos atingidos, isso não é a prioridade. O que estamos fazendo é o atendimento aos direitos humanos. A prioridade é necessidade básica como alimentação, moradia, água e pagar contas.” Thales afirmou que existe uma consultoria começando a traçar um plano para reembolsar quem não apresentar provas legítimas de suas posses. “Isso vai entrar nesse planejamento, mas ainda não temos uma resposta”. Ele assegurou que a Samarco cumprirá os prazos estabelecidos pelo Ministério Público. A empresa atrasou para cumprir as primeiras etapas do Termo de Ajuste de Conduta (TAC). Segundo o promotor de Direitos Humanos da comarca de Mariana, Guilherme Meneghin, a falta de documentos não é empecilho para a indenização; eles podem ser supridos pela prova testemunhal. As vítimas se enquadram em um mecanismo jurídico chamado inversão do ônus da prova. Nele, a parte prejudicada declara os bens e a outra é que deve comprovar que ela não os possuía. “A Samarco não pode se negar a ressarcir. Ela é quem tem que provar que a pessoa não tinha aquilo, e ela não vai conseguir.”

Solidariedade em meio à dor

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Bento Rodrigues

A lama liberada após o rompimento da barragem do Fundão da mineradora Samarco, no dia 5 de novembro, não destruiu apenas lares, vidas e meio ambiente. Os rejeitos de minério misturados à água prejudicaram o convívio das comunidades atingidas e levaram um pedaço da dignidade das vítimas. Os documentos são suportes para que qualquer pessoa consiga exercer sua cidadania. Não tê-los em mãos dificulta a comprovação das posses ou até mesmo da própria existência. Quando se depararam com a invasão da lama, os moradores dos distritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo se preocuparam em se salvar. Os bens materiais, assim como a documentação, se tornaram irrelevantes. Alguns resgataram o que puderam, outros perderam tudo, de certidões de nascimento, carteiras de identidade e Cadastro de Pessoa Física (CPF) a documentos que envolvem maior burocracia para serem repostos. Registros informais de casas e automóveis se dissiparam em meio aos escombros. “Dei sorte porque meus documentos estavam todos no alto, deixei pendurados na parede. As paredes molharam, mas a bolsa não”, afirma Geralda da Penha Gomes, 57 anos, moradora de Bento Rodrigues. A dona de casa conta que, hoje, só tem a documentação essencial por um “milagre”. Ela foi levada pela Samarco para buscar o que restou somente no dia 24 de novembro. Até então, estava sem os documentos básicos e com medo de precisar fazer todos outra vez. Ao fugir, Geralda não pegou nada. “Quando corri com meu me-

nino, não teve jeito de pegar documento. Nessa hora o mais importante é sair vivo.” Ela revela que vem recebendo apoio da empresa, menos na questão documental. Apesar da perda da escritura, sua casa era registrada em cartório, o que facilita a comprovação da propriedade. Nos distritos, por ser uma área rural, grande parte dos imóveis não eram formalizados. Os proprietários não dispõem de documentos que certifiquem, legalmente, que eram donos dos pertences. Esse é o caso de Vanda Emília Teotono, 60, também dona de casa e moradora de Paracatu de Baixo. Ela perdeu a casa onde vivia, deixada de herança pelo pai e ajeitada aos poucos por ela. “Fiz minha casa como pude. Era tudo novo, meus móveis... Tudo novo.” Desde a tragédia, Vanda está morando com a irmã em Mariana.

MONIQUE TORQUETTI

Nas prateleiras dos pequenos comércios, já não é possível encontrar as geleias de pimenta biquinho. A promessa de tê-las de volta nos comércios é uma etapa adiada. A Ahobero não se construiu de forma rápida e do nada; foram anos para conquistar o que alcançaram. Agora que estavam prontas para avançar, o trabalho foi perdido. Tudo foi levado por um mar de lama. Produzida com a adição de frutas cítricas, açúcar e pimenta malagueta, além da própria biquinho, a geleia de pimenta era vendida em feiras e laticínios sob encomenda para revenda em Belo Horizonte e em pequenos comércios da região de Mariana. Ela foi concebida e produzida para ajudar no desenvolvimento de um grupo de pessoas e da comunidade. A Associação de Hortifrutigranjeiros de Bento Rodrigues (Ahobero) começou em 2002, em Bento Rodrigues, com a produção de verdura processada. Em 2006, por incentivo da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural de Minas Gerais (Emater–MG), a Ahobero conheceu a pimenta biquinho, novidade no Brasil naquela época. A ideia inicial era vender o produto em seu estado natural para a região. No mesmo ano, o grupo decidiu mudar e passou a produzir a geleia de pimenta biquinho, estimulado por uma técnica da Emater. A associação é composta por nove pessoas, que participavam de todo o processo de produção, desde o plantio e colheita (processo que levava três meses) até a confecção da geleia.

Com a inclusão da Ahobero na Incubadora de Empreendimentos Sociais e Solidários (Incop), projeto de extensão da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), a associação adequou a produção às normas exigidas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), inserindo o código de barras nos produtos para poder vender a geleia em supermercados. Estava tudo organizado e planejado para a ampliação das vendas. Keila Vardele Sialho dos Santos, 42 anos, presidente da associação, conta que já chegaram a produzir mais de 7 mil potes em menos de uma semana devido a uma encomenda de cestas. Em média eram produzidos 400 potes de geleia por dia. Neuza da Silva Santos, 39, uma das produtoras, comenta que, depois do rompimento da barragem, todo o maquinário foi recuperado da sede da associação no subdistrito de Bento Rodrigues, assim como cerca de 700 garrafas pets (de 1,5l e 2l) cheias de pimenta biquinho, hoje em posse da mineradora Samarco. Ainda havia 22 caixas e meia de geleia prontas, com 24 potes cada. Logo que ocorreu a tragédia, a procura aumentou. Foram vendidas 21 caixas de geleias para apenas uma pessoa, pelo valor de R$ 10 cada pote. Antes da tragédia, o valor médio de venda era R$ 7,50. Sem expectativas, Keila e Neuza esperam em breve poder produzir geleia com as pimentas já colhidas e estocadas, assim como conseguir um novo espaço para retomar a plantação e produção da geleia. Ambas, contudo, ainda estão incertas de quando e como isso vai ocorrer.

Além disso, uma diversidade de plantações frutíferas foi destruída, juntamente com o trabalho de reflorestamento na beira do rio Gualaxo que ele vinha realizando. “E, por enquanto, vou tentar tocar o que dou conta.” Além de vender suas hortaliças na feirinha, que acontece aos sábados no Centro de Convenções de Mariana, ele também entregava orgânicos em comunidades da região. Flávio Ernani, 30, conta que vai à feirinha há cinco. “Ele é muito simpático. Vou lá e deixo tudo separado e busco depois.” Flávio começou a fazer isso porque os produtos do seu Waldir acabam rápido.

“Você chega com uma palavra, um abraço, uma cesta e percebe que, em meio à destruição, consegue ver sorrisos nos rostos dessas pessoas”, conta Elmírio Eduardo de Almeida, 38 anos, sobre os atos de solidariedade após a tragédia que deixou 16 mortos, três desaparecidos e centenas de desabrigados em Mariana. O caminhoneiro se envolve em ações de diferentes situações de calamidade pelo país. Por ter um jipe com facilidade para se deslocar, ele oferece ajuda àqueles que querem doar, mas não têm condições de chegar a lugares precários. Elmírio saiu do Mato Grosso e foi aos distritos atingidos para resgatar vítimas, em apoio ao Corpo de Bombeiros. Desde então, compra e recolhe donativos para levar aos que perderam tudo. Ele e quem o acompanha nas “missões” consultam os moradores para descobrir do que es-

tão precisando. O período de duração de alimentos, remédios e água é considerado para que a próxima carga chegue no tempo certo. “A solidariedade parte das pessoas que estão na sua zona de conforto e se sentem incomodadas quando veem alguém em sofrimento. Parte das pessoas de bom coração”, define. “E então vejo como está sobrando em casa e acho que é hora de ajudar. ” O caminhoneiro prefere entregar os donativos pessoalmente a quem necessita. Segundo ele, com esse trabalho voluntário pode ter contato humano e experimentar a sensação de dever cumprido. “Isso me faz muito bem, me sinto feliz e me gratifica muito.” Para Elmírio, todos devem estar unidos para que a cooperação tenha mais força. “Toda ajuda é bem-vinda para essas pessoas. Vamos nos por no lugar delas, porque um dia podemos precisar também.” Mobilização Os pontos oficiais de recolhimento de doações foram criados

pela Prefeitura de Mariana em parceria com Defesa Civil de Minas Gerais, Corpo de Bombeiros e Cruz Vermelha. Após a tragédia, moradores se voluntariaram para organizar os itens recebidos e amenizar o caos instalado. Com o apoio deles, os galpões foram estruturados aos poucos. Segundo o secretário adjunto de Desenvolvimento Social e Cidadania de Mariana, João Paulo Batista, hoje a maioria dos que fazem esse trabalho são servidores públicos municipais. Você chega com uma palavra, um abraço, uma cesta e percebe que, em meio à destruição, consegue ver sorrisos nos rostos dessas pessoas.” Elmírio Eduardo de Almeida

As doações foram armazenadas no Centro de Convenções e cerca de 940 pessoas podem recebê-las. Triagens foram realizadas pela Assistên-

cia Social para identificar as necessidades reais dos atingidos. Entre os donativos, estão arroz (230 kg), feijão (197 kg), colchões (111), produtos de higiene (2104) e água (84,3 mil litros). A Samarco disponibiliza transporte para as famílias buscarem as doações. Em média, elas pegam o que precisam duas vezes por semana e os idosos comparecem menos. A mineradora é responsável por mobiliar as casas alugadas para os desabrigados e arcar com os utensílios domésticos e enxovais. Ainda assim, quando foram encaminhadas para os imóveis, as vítimas procuraram cestas básicas e roupas de cama no Centro de Convenções. A empresa abastece as casas com alimentos perecíveis. Porém, a Samarco não se compromete mais com o suprimento após a entrega do cartão de auxílio financeiro. Ele contém um salário mínimo por família, mais 20% para cada dependente e o valor de uma cesta básica. Até o fechamento do LAMPIÃO, 754 pessoas haviam sido alojadas.

Três contas bancárias foram abertas pela Prefeitura para contribuições em dinheiro e são administradas por uma comissão de órgãos públicos e moradores. Elas continuam ativas e o arrecadamento foi de aproximadamente R$ 1 milhão. O recebimento de donativos foi interrompido no dia 15 de novembro, por causa do acúmulo de objetos. João Paulo Batista afirmou que a decisão foi tomada para tudo seja contabilizado e distribuído com eficiência. Apesar de a campanha estar finalizada, três carregamentos de doações chegaram na cidade na semana do dia 11 de dezembro. O secretário diz que os órgãos públicos não têm como controlar ações independentes porque o ato de doar é espontâneo. Ele acredita que os que preferem contribuir assim têm medo de que as coisas não cheguem até quem precisa. A grande arrecadação em Mariana possibilitou que donativos fossem direcionados para outras cidades, como Barra Longa e Governador Valadares. SABRINA PASSOS

Empatia. Voluntários ajudam na separação e organização dos donativos para serem distribuídos às vítimas; Centro de Convenções de Mariana é o principal ponto de apoio


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ARTE: ALÍCIA MILHORANCE

ARTE: ALÍCIA MILHORANCE

CIDADANIA

EDUCAÇÃO

Renascer longe do Bento

Todos na escola, menos dois

Após ter sua casa levada pela lama, perder história e memória, Terezinha luta para reconstruir a vida com sua família

Sobreviventes do rompimento de barragem, meninos e meninas voltam à sala de aula após a perda de colegas, lembranças e afetos

Improvisado. Dona Tê é abrigada em hotel enquanto espera novo lar STELA DIOGO

Olhos expressivos, cabeça baixa e poucos sorrisos. Fala firme, concisa e com pausas que gritam. Sentimentos que transbordam em lágrimas. Nervosismo misturado com ansiedade. Um turbilhão de reações em cada entrevista. Terezinha Quintão, conhecida como Dona Tê, 49 anos, moradora de Bento Rodrigues (ex-moradora, do ex-Bento Rodrigues?), viu seu trabalho, sua história e memória serem levados no rompimento da barragem do Fundão da mineradora Samarco. O mar de lama avançou destruindo o que encontrou pela frente. Ao relembrar esse momento, que “parece um pesadelo”, Terezinha conta como pensa em reconstruir sua vida com a família e fala sobre as dificuldades do processo de adaptação. Acostumada a cozinhar para muitas pessoas e a fazer várias coisas no dia, como ela mesma diz: “mexia o dia inteiro, menina”, Terezinha acha difícil ficar sem sua rotina. Percebo, ao observar seu jeito inquieto, que lhe fora arrancado algo que ela não só cultivava, mas tinha como princípio: a liberdade. Sinto o nó na garganta de Terezinha. Ela conta sobre a dificuldade de morar por mais de um mês em quarto de hotel, com três camas para ela e os dois filhos. Não há espaço para organizar a roupa. Lá, as visitas são preestabelecidas em horários, assim como as refeições. “Não estou acostumada a ficar presa e a não ter privacidade. Tem horário para tudo. Tudo bem, é regra deles, está certo, tem que respeitar... Mas a gente tinha o nosso cantinho. Não precisava estar nessa situação.” A dor aumenta quando ela cita a frase do filho mais novo, Marlon, que, como ela, se cansou da situação. “Ah, mãe, não aguento mais ficar preso!” Alguns empecilhos foram encontrados ao tentar voltar à Bento Rodrigues para resgatar seus perten-

ces. “Cheguei a esperar no carro durante duas horas até alguém vir falar comigo.” Terezinha conta que só conseguiu voltar no dia e horário marcado pela Samarco. Outros obstáculos são se adaptar ao barulho da rua Dom Silvério, à violência da cidade, ou até mesmo à cama, que parece estranha demais. Em uma de nossas conversas, ela confessa o que tinha acontecido na noite anterior: “Nunca tinha caído da cama. Desde pequena nunca caí da cama, mas naquela noite eu caí.” Outra coisa que soa estranho, para quem “vivia em uma tranquilidade só”, são os inúmeros cadastros e reuniões que já foram feitos, dos quais perdeu a conta. A incerteza de não saber como serão os próximos meses torna a espera ainda mais angustiante. A dor da perda daquilo que compunha sua identidade e suas lembranças é atemporal. “A casa da minha mãe se foi. As lembranças verdadeiras foram todas embora.” Terezinha não quer voltar para onde nasceu. Por causa do trauma, ela não quer se mudar para uma área rural, que lhe faça lembrar do mar de lama que arruinou sua vida. “Não quero mais casa no Bento, nem em lugar de terra. Se tiver como, quero um apartamento com três quartos para os meus filhos e eu. Um prédio em que fique também minhas irmãs, pra gente não se separar.” O prédio não chegou, mas, aos poucos, Terezinha enxerga a sombra de alguns desses direitos. Depois de semanas morando no hotel, foi transferida para um apartamento com três quartos, cozinha, sala e área. “Ainda não é a casa da gente, mas já é melhor do que ficar no hotel. É um espaço mais amplo.” A casa que tinha em Bento Rodrigues era de sua propriedade. Aos poucos algumas peças do quebra-cabeça vão tomando forma, como o trabalho, que agora passa a ser feito quase todos os dias na cozinha do hotel em que estava, onde sua irmã San-

STELA DIOGO

Priscila Ferreira

Transição. 20 dias depois ela é realocada para apartamento alugado

dra permanece. Com o tempo, Terezinha também recebeu da Samarco um cartão cujo valor se aproxima a R$ 1.500. O contrato do apartamento ainda será fechado, mas provavelmente valerá para 2016. O apartamento foi mobiliado pela Samarco com peças padronizadas. Todos vêm com os mesmos móveis, não escolhidos pelos ocupantes. A filha não ganhou um guarda-roupa, apenas uma cômoda. Terezinha pretende dar o móvel à menina. “Está bom. Não é igual

como se a gente escolhesse, mas está bom.” Como a casa de Bento era maior, as coisas recuperadas por ela em meio à lama não cabem no apartamento. Terezinha está arrumando o lugar aos poucos. Os alimentos, como frutas, arroz e carne chegam a cada semana, mas tudo isso não se compara com o sentimento de mais uma perda: a mudança do local em que passava o Natal e Ano Novo há anos. O almoço, a ceia e, até mesmo, a troca de presentes ocorriam naquele lugar. O

sentimento gerado por esse deslocamento é ainda de muita confusão. Para a professora de Serviço Social da Ufop, Cristiane Nobre, 42, os atingidos pela barragem, como a família Quintão, têm direito ao acesso a todas as políticas que tinham antes: saúde, educação, assistência, entre outros. Nesse processo, o papel do assistente social é acompanhar o percurso e ajudar na compreensão de que tudo isso seja percebido como direito dos atingidos e não favores prestados pela Samarco. “Eles precisam continuar sendo assistidos para além do atendimento emergencial, isso não pode se perder”, ressalta. Cristiane ainda explica que é importante pensar ações para minimizar os danos causados, que, segundo ela, não são possíveis de serem totalmente reparados. O município planeja políticas públicas para disponibilizar esses atendimentos, mas não pode se sobrecarregar e deixar de atender as demandas já existentes. Caso falte pessoal, por exemplo, a Samarco pode contratar esses profissionais que serão inseridos na rede desenvolvendo ações para atender a esse público. “Muitos serviços deverão continuar disponíveis para essas famílias de acordo com suas necessidades”, explica Cristiane. A esperança de Terezinha é que a Samarco construa um novo bairro, o São Bento, para abrigar as famílias atingidas. Nele, quer ter sua casa própria ­­­­– sem quintal. A expectativa de “ganhar” a moradia transforma o choro em sorriso, a ansiedade em esperança e o desespero já não transparece mais. Ser ressarcida com uma nova casa significa renascer para uma vida que até o momento tem sido um pesadelo. “Quando ganhar a casa, vou chorar igual quando perdi a minha. Aí vou sentir realmente que nasci de novo, porque até agora parece que nós estamos mortos. Ou então que a gente está dormindo e não acordou ainda.”

PATRIMÔNIO

Cruz sagrada, a fé do povo Paloma Demartini

peças sacras ou parte delas. Internado desde o rompimento, o marido de Tereza Viana Silva, 78, Filomeno, era o procurador da igreja e responsável pela chave do local. As toalhas do altar e paramentos da missa ficavam sob responsabilidade dela, que lamenta: “Estava tudo limpinho, engomadinho, agora tá tudo sujo e perdido na lama!” Com olhos marejados, Marcos Muniz, 52, genro de Tereza, conta que era tradição da família realizar batizados, 1as comunhões e casamentos na Capela de São Bento. As bodas de prata dele e da esposa, Marinalda, seguiriam a tradição em 2017.

Conceição Aparecida, 34, teve a cerimônia de casamento que tanto sonhava em maio de 2015 na capela e planejava comemorar o aniversário de 2 anos do filho, que tem necessidades especiais, no lugar. “Depois de tanta luta pela vida dele, queria rezar uma missa na Capela para comemorar.” Além dela, apenas duas noivas se casaram no lugar este ano. Conceição, como Marcos, guarda na memória os planos que foram feitos. Entre os desejos dos dois, de Zezinho e Tereza está um novo Bento, com as mesmas casas, capela e vizinhança. A lama levou tudo, mas não levou a fé.

tava muito de brincar na rua e de pular corda. “Brincava também no barro, sujava a roupa toda e minha mãe brigava.” Silvany e Cristiam não têm mais a grandeza de Bento. Eles já não soltam pipa, nem brincam de amarelinha, nem andam de bicicleta. Agora, além da televisão, Cristiam tem carrinhos e Silvany tem bonecas, doados. A nova escola, no momento um local estranho para ambos, parece ser mais próximo do que eles viviam em Bento, já que nela reencontram amigos, professores e constroem novas lembranças. Depois do encontro com as crianças, converso com a secretária da escola de Bento, Miriam Gomes, que foi transferida para a Escola Municipal Dom Luciano, no Alto Rosário. Como era a escola? “Era a escola perfeita. Onze horas o cheiro do almoço ia lá na secretaria”, lembra, sorrindo. E na hora do recreio? “As merendeiras serviam cada menino e perguntavam: ‘O que você quer?’ Uns diziam: ‘Ah, quero só arroz, quero só verdura’. Já outros: ‘Ah, quero só angu com couve’. Até esse cuidado, esse carinho, tinha como ter.” A secretária, porém, tem tido problemas para se adaptar depois da tragédia. “Tô com dificuldade de estabelecer rotina. Saía 6h, chegava 17h40 e dava conta de tudo. Hoje eu saio 7h30, chego 17h20, e não dou conta de nada.” Para a pedagoga da escola de Bento, Alcione Araújo, funcionários e alunos estão com dificuldade para se adaptar. “Eles pedem a rotina, mas não depende só do professor, e vai levar tempo. Acho que em fevereiro, quando começar o ano letivo e as coisas se assentarem um pouco, melhora. Está tudo bagunçado na cabeça deles, mas estão fazendo tratamento com especialista em traumas”, afirma.

E o colégio antigo? Após o rompimento da barragem de rejeitos do Fundão, da Samarco, o prédio da escola foi totalmente destruído pela lama. De acordo com a secretária Miriam Guimarães, a empresa não ligou avisando do rompimento. Eles souberam às 16h03, pelo marido da diretora, que a lama estava chegando. Para conseguir se salvar, os 40 alunos e 10 funcionários que estavam no prédio correram em direção à Igreja de Nossa Senhora das Mercês, que fica na parte mais alta do distrito. Só foram resgatados no dia seguinte. Dez dias depois, a Prefeitura de Mariana encaminhou 178 alunos, 102 de Bento Rodrigues e 76 de Paracatu de Baixo, que cursam entre a pré-escola e o 9° ano do Ensino Fundamental, à Escola Munici-

pal Dom Luciano, para retomarem os estudos. Também foram transferidos para a nova escola os 43 profissionais que atuavam nos distritos atingidos. Os alunos do ensino médio continuam nas escolas em que estudavam em Santa Rita Durão e Águas Claras, antes da tragédia. De acordo com o então secretário interino de Educação de Mariana, Israel Quirino, os alunos que estão na Escola Municipal Dom Luciano irão permanecer na instituição, pelo menos, até o início do ano letivo em fevereiro. Quirino teme que esses estudantes não voltem, em sua totalidade, para a mesma escola em 2016. “Trabalhamos a hipótese de que a escola do Bento seja esvaziada por causa da dispersão das famílias. Lá moravam numa vila e aqui estão espalhados pela cidade”, completa.

Para Quirino, enquanto a Samarco não reconstruir a escola, há possibilidade de esses estudantes serem transferidos para um espaço menor, por causa dessa possível dispersão, avalia. Ainda segundo ele, se isso ocorrer, “a responsabilidade financeira de achar esse espaço, de adequá-lo, é da Samarco”. O secretário de Educação afirma que o valor médio mensal investido pela Prefeitura nos alunos de Bento é de R$ 700 por criança. Levando em conta o número de alunos da unidade, eram investidos em torno de R$ 80 mil por mês na escola do distrito. Depois da tragédia, a mineradora ofereceu kits escolares e transporte para os alunos e funcionários. Além disso, a Samarco contratou uma empresa da área de psicologia para fazer acompanhamento. LARISSA VIDGAL

Adaptação. Crianças do subdistrito atingido tentam retornar à rotina escolar apesar das dificuldades

ESPORTE

Além das quatro linhas O dia 5 de novembro de 2015 estará para sempre na memória dos moradores de Bento Rodrigues. Os rejeitos da barragem do Fundão levaram vidas e interromperam sonhos. Levaram também o verde das árvores, das plantações, do gramado do campo, o verde da camisa de um time de futebol. Só não foram capazes de levar a esperança. Onézio Izabel de Souza, 52 anos, técnico do União São Bento, time do subdistrito destruído, sonha com dias melhores. Ele era morador de Bento desde 1982. Mecânico, casado e pai de quatro filhos, é um apaixonado por futebol. O mar de lama que invadiu o lugar onde morava causou dor e destruição. “Perdi tudo, menos a minha família e a fé em Deus.” Onézio é atleticano e tinha uma coleção com 77 camisas do time do coração. A recordação o emociona. “Foi doído, não gosto nem de lembrar, perder minha coleção. Se pudesse ter pegado algo antes da lama chegar, certamente seriam as minhas camisas e o Jason, meu cachorro.” Há mais de dois anos como treinador do União São Bento, ele diz que comandar a equipe era bom, prazeroso e motivador. Segundo Onézio, a união do time não ficava só no nome; dentro de campo o que se via era muita raça e vontade de vencer. “Os atletas jogam por amizade”, ressalta.

O técnico conta que os moradores sentiam satisfação em ajudar o grupo. A relação estabelecida entre equipe e comunidade era forte. A fonte de sustento do União São Bento costumava vir dos próprios jogadores, cada um contribuía da forma que podia. O primeiro uniforme que ele conseguiu depois que assumiu o comando da equipe foi comprado com recursos dos moradores. Onézio, que já foi jogador do time, enxergou no cargo de treinador a possibilidade de oferecer qualidade de vida por meio do esporte. No começo, “foi para não deixar os moleques irem para a rua fazerem coisas erradas”. Depois de um tempo, ele passou a dar conselhos, percebeu que os atletas encaravam o grupo como uma família e que, acima de tudo, se ajudavam.

O campo da comunidade de Bento Rodrigues estava sendo reformado à custa da Samarco, e a reinauguração estava marcada para dezembro de 2015. Ainda emocionado, Onézio se recorda dos quatro conjuntos de uniforme, dos materiais de treino, das redes novas dos gols e dos troféus que foram embora na lama. Depois do rompimento, dois conjuntos de uniforme, que estavam em uma sacola, e um troféu foram encontrados por um torcedor do time que voltou ao subdistrito. Símbolos A equipe de Bento representava o lazer e um dos laços da comunidade. Ravane Augusto da Silva, 23, trabalhava no subdistrito como pintor e é lateral esquerdo do União São Bento. Os atletas treinavam duas veEDUARDO RODRIGUES

a igreja e só deixou por lá a pia batismal, que tem na base, como decoração, uma cobra. O marrom não veio para recordar a estrutura de pau a pique. O subdistrito, que vivia da mineração, foi traído por ela. Bento Rodrigues agora é monocromático e carrega o tom terroso da lama por todos os lados. Cerca de 30 objetos santos foram soterrados pela lama, como imagens de Nossa Senhora Aparecida, Santo Antônio, São Sebastião e a imagem de São Bento. O crucifixo também havia se perdido, mas foi encontrado e devolvido ao padre Armando. Até o fechamento do LAMPIÃO, foram encontradas mais quatro peças, entre elas parte de um anjo barroco que ficava no altar, duas almofadas da porta central da igreja e fragmentos de um banco. Os arqueólogos seguem trabalhando no local para encontrar mais

Chego para conversar com Cristiam, 8 anos, em um dos hotéis que alojam moradores dos subdistritos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo. Encontro o garoto sentado no chão do quarto, olhos fixos na TV. Pergunto o que tanto lhe prende a atenção e ele me responde que é um “desenho”, que nem sabe o nome. O pai, que acompanha o filho durante a entrevista, diz que ele e o amigo Flávio gostavam de andar de bicicleta o tempo todo. Cristiam se entristece. Pergunto sobre a bicicleta. “Perdi.” Cristiam não consegue mais brincar com Flávio. Como está no colégio? “Estou gostando”, responde timidamente. “Lá na nossa escola, tinha Lego e nessa não tem. As mesas de lá eram de madeira e aqui tudo é de plástico”, compara. E a merenda? “Era mais gostosa.” Por quê? Cristiam não sabe explicar. O garoto sabe que as cozinheiras vieram para a nova escola e ajudam a preparar o lanche. A professora é a mesma? Concorda com a cabeça. E os coleguinhas? “Tem um que morreu… Na lama. Ele se chama Thiago.” No hotel em que Cristiam se hospeda, conheço Silvany, também de 8 anos. Ela estudava na Escola Municipal de Bento Rodrigues, na mesma turma de Cristiam e Thiago Damasceno, uma das vítimas da tragédia. Outra vítima, Emanuele Vitória Fernandes, 5, também estudava lá. Na nova escola, Silvany brinca com todos os coleguinhas, “menos um. Ele não se salvou. Algumas pessoas dizem que encontraram ele morto, outros dizem que não”. A saudade da antiga escola e de Bento aparece nas falas de Silvany. “Tinha a quadra e um parquinho para os meninos menores.” Ela gos-

Fernando Cássio

ELMO DE OLIVEIRA

Ao caminhar pela rua do ginásio, logo na chegada a Bento Rodrigues, subdistrito de Mariana, importante rota da mineração na Estrada Real, pude ver a corrida contra o tempo: casas não atingidas, destruídas pela metade e suas ruínas. Não foi possível chegar até meu destino, a Capela de São Bento. Uma das primeiras igrejas de Minas, construída por volta de 1718, derrubada e reerguida no fim do século XVIII, com o nome do padroeiro da cidade, a capela é lembrada com saudade pelos moradores. Mesmo histórica, não era patrimônio tombado, tinha apenas um inventário. Construção simples, pequena, acolhedora; com paredes brancas, uma porta, duas janelas azuis e uma cruz latina que ficava na cumeeira. O altar, de madeira e decorado com anjos e adornos, retratava a arte barroca e guardava a imagem de São Bento. Um corvo, uma cobra, uma bíblia e um cajado são referências do padroeiro para os beneditinos. Havia também uma cruz, em alusão ao santo, simbolizando o livramento de São Bento e do seu povo de todo mal causado pela inveja, iluminando caminhos. “Que a Cruz Sagrada seja minha luz”, rege o santo em oração. Há 30 anos, a imagem do padro-

eiro foi pintada de marrom. Esconder o brilho do ouro esculpido no objeto santo foi uma tática dos devotos, contra a vontade do pároco Armando Godinho, para proteger a materialização da fé de furtos e realocação em igrejas consideradas mais importantes pelas autoridades. Devoto de São Bento desde pequeno, José do Nascimento Jesus, 70 anos, mais conhecido como Zezinho do Bento, relembra carinhosamente como foi acolhido quando se mudou para o subdistrito. O presidente da associação dos moradores de Bento ressalta a importância de construir sua casa a 50 metros da capela: “Somos muito católicos, íamos à igreja todos os dias. Sábados e domingos, com ou sem missa. A gente ia lá sempre rezar para o Santíssimo que ficava exposto.” Até que chegou o número 5. Poderia ser a quantidade das flores colhidas no dia; a hora que o remédio deveria ser tomado; os minutos que faltavam para o recreio ou a hora que o sino da Capela de São Bento anunciava para os fiéis. Mas foi o dia em que ele parou de bater. O dia em que a igreja teve, em questão de minutos, as paredes brancas tingidas de outra cor e, em seguida destruídas. Da estrutura nada restou. Como um redemoinho, o tsunami de rejeitos girou por toda

Aleone Higidio

União. Moradores buscam forças no futebol para manter esperanças

zes por semana, e ir ao campo do lugar onde moravam era uma terapia. “O futebol, para mim, é tudo. O que mais gosto de fazer é jogar bola.” Ele reforça o que pensa o técnico ao afirmar que a manutenção da equipe é importante para quem vivia em Bento Rodrigues. “Não pode parar não, senão perde a cultura do nosso lugar.” Para o goleiro do time, Vitor de Souza, 18, estudante e ex-funcionário do Restaurante e Bar da Sandra, o campo significava muito pra comunidade, porque foi lá que a equipe sempre jogou. Desde pequeno, gostava de futebol. O jovem explica que quer permanecer no grupo. “Afinal de contas, sou o único goleiro do time”, explica. Vitor relembra que a equipe estava há algum tempo sem disputar campeonatos e, mesmo após o desastre, a intenção é voltar a jogá-los. Agora, certamente o time de Bento Rodrigues precisará de apoio. Mas, conforme garantiu o prefeito de Mariana, Duarte Júnior, colaboração não vai faltar. “Vamos colocar o time para disputar campeonatos e buscar parceiros para pagar as despesas. Agora é uma nova realidade, hora de demonstrar que dá para sair mais forte de uma tragédia.” O torcedor Gleison Alexandrino Souza, 31, tenta dar a volta por cima. Segundo ele, que encontrou os uniformes perdidos na lama de Bento, a equipe é uma das boas lembranças que restou do subdistrito. “O time

representa tudo hoje. Só de termos na memória todas as coisas que passamos lá, temos mais força de vontade e empenho pra continuar.” A relação de afeto estabelecida com o União São Bento faz com que ele esteja presente em todos os jogos. O pedreiro conta que sempre acompanha e incentiva o time. Foi doído, não gosto nem de lembrar, perder minha coleção. Se pudesse ter pegado algo antes da lama chegar, certamente seriam as minhas camisas e o Jason, meu cachorro.” Onézio Izabel de Souza

Das histórias de arquibancadas, Gleison se lembra de uma em especial, durante um campeonato regional, numa partida disputada na comunidade de Vargem. Os torcedores do time da casa prestigiavam em peso a equipe mandante, enquanto os de Bento não tinham o mesmo apoio. O União São Bento começou jogando bem e logo abriu o placar. Os torcedores da casa, nervosos com o resultado, começaram a ameaçar os visitantes, dizendo: “Pega a espingarda lá.” Apreensivos com as ameaças, os torcedores de Bento foram embora, mas os atletas permaneceram em campo. No fim, tudo não passou de um susto, e a equipe voltou com a vitória pra casa.


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ARTE: LARA MASSA

ENSAIO

O que as mãos podem dizer? Elas têm muito a falar sobre o passado, sobre como agir no presente e possibilitar o futuro. É com elas que agora enxugamos e secamos as lágrimas para acordar e lutar, mais uma vez, pelos nossos sonhos. As mãos que antes ficavam sujas. Litros de graxa e óleo depois de inúmeras horas de trabalho em uma correia para transportar minério. Agora, totalmente limpas, apertam uma elegante gravata borboleta e têm pela frente mais uma noite de trabalho como garçom. Elas não perderam o equilíbrio e carregam a bandeja com humildade e perseverança. As mãos que seguram uma foto. A horta ficava em um terreno herdado do pai em Bento Rodrigues. Lá as mãos aprenderam a cultivar frutas, verduras, flores. Ainda que a casa não exista mais, as mãos não se abaixaram para desistir e hoje jogam, em outro pedaço de terra, as sementes de uma nova vida. As mãos que seguram a esperança, as mãos que agarraram firme outras mãos quando a lama veio sem avisar. É por essa esperança que pais e mães se sacrificam todos os dias. É por essa esperança que essas mãos, maiores e mais calejadas, se sujam de diferentes modos e maneiras. É por essa esperança que acreditamos que, para todo fim, há um recomeço. FOTOS E TEXTO: THIAGO BARCELOS


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