Jornal Lampião - edição 2

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LAMPIÃO Jornal Laboratório | Comunicação Social - Jornalismo | UFOP | Ano 1 - Edição Nº 2 - Julho de 2011

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Um depósito da sétima arte Projeção, magia e memória em espaço cultural transformado com o passar dos anos

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Composição de uma trilha musical Siga os acordes, as partituras e o roteiro harmônico pelas ruas e ladeiras da cidade

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Passos das almas na escuridão das ruas Superstição, medo e imaginário alimentam procissão dos mortos e tradição dos vivos


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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 Edição: Mari Fonseca e Ana Beatriz Noronha

Editorial

Sob a escrita do Lampião Trezentos e quinze anos. São aí alguns bons dias, infinitas horas, incontáveis segundos, milhares de pessoas, de ações, pensamentos, sentimentos, desejos, utopias, perdas, valentias, retrocessos, descobertas. Movimento. Com o passar do tempo, nesse relógio histórico, mudam-se os gestos, muda-se a fala, mudam-se as faces, mas também permanecem. Permanecem, então, tradições, ideias, até que outras tantas coisas – roupas, trejei-

tos, identidades – cheguem e se apresentem. Esta edição especial do Lampião deseja revelar Mariana, dar personalidade aos elementos e características marcantes da cidade – das pedras das ruas, das lamparinas que iluminam as noites, de cada igreja e sua arquitetura, das portas antigas e diferentes janelas até a trajetória da música e

das bandas ao longo dos anos. Todas as palavras desse jornal – um laboratório e uma oficina de buscas, construções e desconstruções, vozes e olhares – inquietamse diante do desejo dos que querem mergulhar em descobertas. Descobrir novos olhares, novas formas de fazer este jornalismo próprio, de sentir e se colocar diante desta senhora de muitos anos e infindáveis histórias. Em sintonia com nossas vontades de experimentar e ousar neste jornal-oficina, saímos do comum para lançar novos sentidos na capa desta edição do Lampião. Homenageando Mariana, a

Entre olhares

capa se fez em pôster, onde a cidade se desenha, e é desenhada por nós, e por todos os habitantes que aqui vivem e podem trazer seus traços e suas cores para ilustrar está cidade, cotidianamente. Afinal, Mariana não se faz simplesmente de tijolos históricos e casas antigas, mas também de todas as vidas que hoje caminham pelas su-

as ruas, que mantêm o seu movimento, que anseiam por transformações e que acreditam e nutrem por esta cidade verdadeiro afeto. Como disse Guimarães Rosa certa vez, “o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas – mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam, verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso que me alegra montão”.

Charge mari fonseca

Lembranças Das manhãs de domingo embaladas pela leve brisa , dos cachorros, crianças e famílias que sempre alegram cada canto da praça, das tardes quentes refrescadas por sorvetes e a companhia aconchegante dos amigos, das noites prolongadas até altas horas ao som animador das cordas dos violões. Até mesmo dos dias solitários, em que o único desejo é um espaço escondido e pouco iluminado em um dos bancos em seu entorno. Não buscamos momentos por ali, o jardim se encarrega de fazê-los. (Mari Fonseca)

FALA, CIDADÃO!

Lampejos desta edição

Isento

“Se a música é a linguagem universal, o samba é a entonação dessa fala...” Sobre as rodas de samba. p. 8

“O Jardim é um grande palco ao ar livre.”

Necessita um olhar diferente, necessita passar a admirar o que se vê no dia a dia... Sobre as pedras. p. 3

Iva Freitas, sobre a música em Mariana, p.7

“É por isso que ainda se ouve, nas madrugadas de Padre Viegas, uma mulher em procissão, sussurrando: balaio de penas pesado, balaio pesado...”

“Como não tínhamos dinheiro, pedíamos ao porteiro para nos deixar dar uma espiada na sala, antes das exibições...”

Sobre a Procissão das Almas. p. 11

Zeth Rôla, sobre o cinema. p. 4

Os jornais de Mariana são voltados para a política que dá dinheiro. O Lampião não tem esse vínculo, não toma partido. Kátia Neves – cabeleireira

Investigação

Jornalismo de verdade, uma coisa bacana é a investigação do fato. Só acho que, se não tem espaço para propaganda, não deveria divulgar outras instituições nas matérias. Aloísio Fonseca - músico

Objetivo

Direto ao assunto, sem politicagem. Renato Zacarias - comerciante FALE VOCÊ TAMBÉM! para enviar sugestões de matérias, opiniões e críticas, escreva para jornallampiao@gmail.com

Jornal laboratório produzido pelos alunos do 6° período de Jornalismo D Instituto de Ciências Sociais Aplicadas (ICSA)/Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) D Reitor: Prof. Dr. João Luiz Martins. Diretor do ICSA: Prof. Dr. José Artur dos Santos Ferreira. Chefe de departamento: Profa. Dra. Juçara Gorski Brittes. Presidente do Colegiado de Jornalismo: Profa. Dra. Marta Regina Maia D Professores responsáveis: Hila Rodrigues (Laboratório de Jornalismo Impresso), Anderson Medeiros (Fotografia) e Ricardo Augusto Orlando (Planejamento Visual) D Reportagem, fotografia e edição: Allãn Passos, Amanda Rodrigues, Ana Beatriz Noronha, Ana Cláudia Garcêz, Camila Dias, Douglas Gomides, Enrico Mencarelli, Fábio Seletti, Fernando Gentil, Izabella Magalhães, Leidiane Vieira, Lorena Caminhas, Luana Viana, Lucas Vasconcellos (Lucas Aellos), Lucas Borges, Lucas Lameira, Luiza Lourenço, Mari Fonseca, Mateus Fagundes, Mayara Gouvea, Olívia Mussato, Paulo Dias, Raísa Geribello, Rodolfo Gregório, Sabrina Carvalho, Sara Oliveira, Simião Castro, Sophia Figueiredo, Tábata Romero, Tabatha Campelo, Thales Vilela Lelo D Projeto gráfico: Enrico Mencarelli, Lucas Lameira, Luiza Lourenço, Mayara Gouvea, Simião Castro, Tábata Romero D Colaboração: Fábio Germano, Neto Medeiros D Impressão: Conceito Gráfica Editora Ltda D Tiragem: 3.000 exemplares. Endereço eletrônico: jornallampiao@gmail.com. Endereço: Rua do Catete, nº 166, Centro, CEP 35420-000, Mariana-MG.

Opinião

Dia 16 de julho A ndreia Donadon-Leal

16 de julho é o único dia do ano em que as fadas dormem, segundo a tradição irlandesa. O costume é colocar travesseiros de algodão em miniatura no jardim, onde elas dormem. No dia seguinte os travesseiros estarão impregnados de magia, porque as fadas repousaram as cabecinhas para dormir. Recolhem-se depois os travesseiros em miniatura, que além do orvalho, terão recebido bons fluidos das fadas, para transformá-los em amuletos. Ao olharmos para a história da igreja, encontramos também uma linda página marcada pelo amor à Virgem Maria: a história da Ordem dos Carmelitas. A palavra Carmelo significa “jardim”, quando abreviada se diz “carmo”. O Monte Carmelo fica ao Norte de Israel, situado na região da antiga Palestina, no qual viveu numa gruta o solidário profeta Elias, em penitência. Defensor da fé de um só Deus profetizou a existência da Virgem Maria. A partir de 1237 os carmelitas foram quase expulsos do Monte Carmelo, pois a Palestina vivia sob pressão cada vez maior dos muçulmanos, que acabavam de invadi-la. A Ordem do Carmo sofreu perseguições até 1251. Na Inglaterra, no Carmelo de Cambrigde residia o Superior Geral, Simão Stock. Ele rezava com tanto ardor à Santa Mãe, que no dia 16 de julho de 1251, teve uma visão da Virgem Maria, confirmando sua proteção celeste. A Lenda de Nossa Senhora do Carmo diz que há muitos anos, num 16 de julho, forte temporal se formou quando pescadores se encontravam em alto mar; em terra, as mulheres fizeram uma enorme fogueira no adro da igreja pro-

curando orientar seus maridos no caminho do regresso. Do mar alto, os pescadores viram a luz distante e a imagem de Nossa Senhora do Carmo e chegarem sãos e salvos em terra firme. Às margens do ribeirão, hoje Ribeirão do Carmo, em 1696, nasceu o arraial de Nossa Senhora do Carmo, primeira vila criada na capitania. Em 1745 nomeada por ordem do reino, Mariana. Aqui começa a história de Minas, quando bandeirantes paulistas acharam ouro no Ribeirão. Se fizermos uma tríplice aliança ou trilogia destes fatos marcados na história da civilização poderemos dizer que 16 de julho é uma data mágica, em que na Irlanda as fadas dormem; na Inglaterra encontramos a história marcada pela aparição da Virgem Maria; em Minas o seu nascimento histórico com a fundação de Mariana, hoje Monumento Nacional e uma das cidades mais importantes do Circuito do Ouro. Mariana faz parte do universo que faz parte do ser humano e dos contos de fada, além de ficar nas montanhas poéticas de Durão, de Cláudio, de Alphonsus, e hoje dos diversos poetas que bradam ou versejam amor incondicional à mãe de Minas. Na língua dos homens, as coisas em que mais acredito atualmente são as coisas derivadas dos contos de fadas. As mais racionais e belas; a religião também, coisa racionalmente certa e bela. O país das fadas não é outra coisa senão o ensolarado país do senso comum, tanto na democracia e na tradição. Que os bons fluidos das fadas abençoem o aniversário da Primaz e que se estabeleçam Igualdade, Fraternidade e Liberdade, no Ventre de Minas! *Escritora e artista visual; mestranda em literatura e cultura na UFV


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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 Edição: Paulo Dias e Lorena Caminhas

TRAJETOS

Que lugares as portas revelam? Täbata Romero

e

M ateus Fagundes

Nas construções elas ocupam um espaço relativamente pequeno. Sem elas, no entanto, não seria possível atravessar de um lugar para outro. Para onde nos levam? Transpor as portas de Mariana é entrar na história destes 300 anos da Vila do Carmo. Mais que simples travessias, as portas tem

uma função quase social. São elas que separam o público – a Rua, a Praça, a Ladeira – do privado – o interior da casa, da Igreja. Por conta disso, também são elas que guardam tantos segredos, histórias e mistérios. Em Mariana, esses mistérios são inúmeros – e é curioso que centenas de pessoas passem em frente a eles sem os perceber.

FOTOS: Tábata Romero

Corredor histórico A porta verde, quase escondida na Praça Minas Gerais, conduz à casa da historiadora Lourdes Helena de Castro Magalhães. O caminho entre a porta de rua e a porta da sala é um trecho de um corredor utilizado por tropeiros no século XVIII, para trazer mantimentos à população da Vila do Carmo. Segundo Lourdes, os viajantes não podiam atravessar a porta da casa do Conde de Assumar, que ficava atrás da Igreja de São Francisco. “Eles eram os pobres, a classe trabalhadora da época. Não podiam se misturar com gente da elite”, conta. Atualmente, apenas a parte do corredor que dá acesso à casa da historiadora está preservado.

Caminho do Ouro Essa porta guarda um antigo mistério, já desvendado e propagado. Contam que, à esquerda da Igreja de São Francisco, existe um cemitério – situado atrás desse portal. Basta olhar para cima do muro ou aguardar um pouco, que o zelador da igreja chega e abre a porta de acesso ao local. Ali, não se vê nada além de uma horta comunitária, abandonada. Contudo, os amontoados de terra e lixo não explicam o mistério por trás da porta – que esconde, na verdade, uma abertura para um caminho subterrâneo, que foi utilizado para o contrabando de ouro dentro das esculturas dos santos. O trajeto se encerra na Igreja de Nossa Senhora do Carmo.

Abrigo e reflexão O portão encoberto por plantas – e que mostra um corredor estreito, e nada convidativo – esconde um refúgio. No fundo de um quintal, atrás de um supermercado, e poluída em função da proximidade do centro urbano, está a Ermida de São Geraldo. Construída de 1916, a capelinha traz pinturas de afresco, um jardim com árvores frutíferas, um pequeno lago com carpas e uma bica d’água. Lá dentro, o barulho some e a paz reina. Ideal para quem quer fugir do caos urbano e tirar um cochilo na hora do almoço ou para quem quer assistir à missa às segundas-feiras.

Na Rua Direita, nº 1

Porta que leva a outra

Ela chama a atenção não por ser uma porta frondosa ou por ter uma história arquitetônica singular. Estreita, com cerca de um metro de largura, a porta do número 1 da Rua Direita, próxima (e à direita) da Catedral da Sé, leva a um dos espaços mais privativos da igreja, frequentado pelos padres, empregados, beatas e coroinhas. É por ela que se vai à cozinha, à horta, aos fundos da construção. No passado, no século XVIII, o local recebia os religiosos da Igreja da Sé, então em fase de construção.

Já de manhã, às 6h, quando a Catedral da Sé se abre, os fiéis se deparam com um grande portal, um anteparo rebuscado entre a porta principal da igreja e seu interior. Atribuída a Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, a peça é uma chapa reta, sobre a qual se encontra uma imagem de Nossa Senhora. Apresenta ainda duas janelas retangulares. Os moradores da cidade chamamna de “tapa vento”, porque ela impede que as luzes das velas sejam apagadas durante as celebrações.

Luiza Lourenço

Luiza Lourenço

Carros e pessoas passam por ali todos os dias. E ela permanece imóvel, quase sempre despercebida. A rua. Tão imóvel quanto as pedras que fazem parte dela. As mesmas pedras que já foram pisadas por tantas outras pessoas, em outras épocas. Pedras que guardam, ao mesmo tempo, velhas e novas histórias de uma cidade que concebeu Minas Gerais. Com o desenvolvimento resultante da busca do ouro e metais preciosos, no final do século XVII, a antiga Vila do Carmo passou a receber não só os exploradores, como também os aventureiros e a alta sociedade portuguesa, que vinham atrás das riquezas locais. E a partir do intenso movimento e fixação de comércio e pessoas, a vila se transformou em cidade. Nomeada Mariana, em homenagem à esposa do rei português D. João V, a cidade foi a primeira a receber um projeto urbanístico, em 1711. Retirava-se ouro, muito ouro. Os minerais não utilizados se transformavam em calçamentos e ruas. Formada em História, Geografia e atualmente designer de joias, Tânia Torres ressalta que é

possível que os homens responsáveis pela construção daqueles caminhos não julgassem valiosas as pedras que deixavam para que escravos e aventureiros lapidassem e encaixassem, uma a uma, batidas no solo. Porém, o decorrer dos anos foi o que transformou as pedras – utilizadas nas construções de ruas, calçadas e revestimentos de igrejas e construções – em objetos valiosos. Isso porque, além de configurarem um espaço de passagem, são essas as pedras que transportam o caminhante para antigas histórias de vida, ainda na primeira capital de Minas Gerais.

Pedras calçadas na rua da cidade

É certo, no entanto, que nem sempre essas histórias são tão visíveis. Tânia Torres afirma que, para se sentirem conduzidas por essas ruas, é preciso que as pessoas atentem para detalhes e valorizem as tradições locais, principalmente os nascidos em Minas Gerais. “ Todo mineiro é primeiramente marianense. Todos deveriam conhecer a história que envolve essa cidade, as riquezas não só minerais como culturais e históricas.” Conhecer a história da cidade não envolve apenas a leitura de pilhas de livros ou a pesquisa sistemática ao longo do tempo. Necessita um olhar diferente, necessita passar a admirar o que se vê no dia a dia. É o mesmo processo dos minerais que encalçam a cidade, como o quartzito, a pedra-sabão ou a hematita. Ainda que estáticos, eles fogem da rotina através dos passos do trabalhador que caminha com fome em seu horário de almoço, dos enamorados nas praças, das crianças ou até dos muitos passos que compõem a Procissão das Almas. Assim como esses minerais, as pessoas também podem vivenciar o novo a partir daquilo que parece comum.

Tempo revela escadaria mais antiga que a cidade tros degraus da escadaria, além de materiais da época escondidos sob a terra. Apesar da relevância histórica, a igreja não faz parte do circuito turístico da cidade. Segundo a historiadora Denise Tedeshi, colaboradora da expedição, há registrado no Plano de Obras do Iphan, datado de 1954, uma intervenção de recuperação da Capela de Santo Antônio. Porém, até hoje não houve qualquer obra no local. “Fica é a vontade dos moradores locais de terem a sua igreja como parte do patrimônio marianense”, diz a moradora do bairro São Gonçalo, Maria Aparecida Paiva.

Rodolfo Gregório

O que antes permitia o acesso dos fiéis à antiga – e demolida – capela São Gonçalo, agora se esconde debaixo da terra. É a escadaria da igreja, que também deu acesso à capela Santo Antônio por algum tempo. O que se vê hoje é apenas uma parte de um dos degraus do “monumento”, ainda mais antigo que a cidade. A história de Mariana passa por esses degraus, delineando o caminho percorrido pelos bandeirantes no processo de construção da primeira capital de Minas. A exploração, iniciada em meados do século XVII, se dá em meio à ânsia pelo ouro nas águas do Ribeirão do Carmo. Para os historiadores, é ela a primeira capela da cidade, construída quando a vila ainda era considerada arraial. Em trabalho arqueológico realizado no local, coordenado por Alenice Baeta e promovido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, foram encontrados ou-

Acervo IPHAn

Pedras transportam caminhantes para outros tempos, histórias e aprendizados

Único degrau visível da escada mais antiga de Mariana


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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 Edição:Thales Lelo e Tábata Romero

PATRIMÔNIO

Cinema reacende memória Luana Viana

e

Paulo Dias

Quando as exibições fílmicas do Cine Theatro Municipal de Mariana estrearam, em 1935, os fundadores da família Tropia não esperavam tantas cadeiras vazias naquele bar-sorveteria que, das 18h às 20h, também funcionava como cinema. Poucas pessoas foram assistir o ator James Cagney interpretar um chofer de táxi insatisfeito com a luta de classes em “Peso do Ódio” (1933), e a situação se repetiu quando, na mesma semana, uma ínfima plateia foi ver as aventuras do ator Edward Arnold no filme “Uma noite no Cairo” (1933).

Como não tínhamos dinheiro, pedíamos ao porteiro para nos deixar dar uma espiada nas salas, antes das exibições. Zeth Rôla

arquivo

Cine Theatro em dois momentos históricos: no período sob administração da família Tropia e na gerência atual

divulgação

Dois anos depois, a Prefeitura de Mariana isentou as taxas que o Cine Theatro deveria pagar e, com os preços dos ingressos mais acessíveis, as sessões foram seduzindo um número maior de espectadores. Na década de 50, devido ao descumprimento de algumas cláusulas do contrato entre a empresa Circuito de Cinemas Brasil (encarregada da administração do local na época) e a Prefeitura, as exibições no cinema foram brevemente suspensas, e só foram retomadas quando o local voltou para as mãos da sua fundadora, a Salvador Tropia & Irmãos. Na reinauguração do Cine Theatro, em 1957, as sessões passaram a ser dividas também em matinês, diariamente. Era naquele tempo que a estudante (hoje professora aposentada) Zeth Rôla, escapava por algumas horas do convento e, junto das amigas Pequenina e Petrina, infiltrava-se no cinema. “Como não tínhamos dinheiro, pedíamos ao porteiro pa-

ra nos deixar dar uma espiada na sala, antes das exibições. Só saíamos de lá quando o filme acabava”, conta Zeth, aos risos. Nessa época, Zeth e suas amigas abandonaram as vendas nas barraquinhas de saladas de fruta do convento para se comoverem com “O Maior Espetáculo da Terra” (1952), dirigido por Cecil DeMille, que contava a história de um triângulo amoroso em meio ao universo circense. Fascínio maior foi provocado pela exibição de “O Suplício de uma Saudade” (1955), de Henry King. Na tela, uma luxuosa e atraente Hong Kong era cenário de uma história de amor entre um jornalista americano e uma médica asiática. Em contraste com a luminosa Hong Kong da década de 50, Mariana tinha láseus problemas com energia elétrica, de forma que o filme foi interrompido diversas vezes pela queda de energia. “Nós gostávamos ainda mais”, revela Zeth. Os anos que antecederam o fechamento do cinema, no início da década de 70, propiciaram, para o aposentado José Geraldo de Oliveira (na época garimpeiro), momentos de distração na cidade. É com saudosismo que os domingos daqueles tempos são lembrados, quando, sempre que possível, José Geraldo levava seus sobrinhos às matinês. Com amendoim torrado e beijinho-doce, eles assistiam muitos dos clássicos infantis. “Só que de uma hora para a outra acabou. Hoje existem DVD’s, mas nem de longe se comparam. O cinema era a diversão da minha boa idade”, garante José, atualmente com 68 anos. Em desuso, o Cine Theatro

Municipal de Mariana foi transformado em depósito de materiais de construção da Prefeitura até a década de 90. Em 24 de outubro de 1993, após uma reestruturação do imóvel, foi inaugurado ali o Centro de Cultura Sesi – Mariana, que destinou o espaço às atividades de arte de cultura. Em 2007, o número de acomodações da antiga casa de diversão salta de 239 poltronas (durante a direção de Salvador Tropia) para 300. No ano seguinte, o Sesi, em parceria com a empresa Araújo Cinematográfica Telecomunicações Ltda, retoma as exibições no

local, sem muitos adeptos. Para Frederico Ozanan Teixeira Santos, funcionário aposentado do Banco do Brasil e membro da Academia Marianense de Letras, Mariana aumentou “quantitativamente, e não qualitativamente”, ou seja, o crescimento da população e da estrutura do cinema não foi acompanhado pela prática cultural dos moradores no que diz respeito ao interesse pelas exibições cinematográficas. Apesar do histórico respeitável, a sétima arte, em Mariana, ainda precisa de muito estímulo para atrair as novas gerações e produzir novas memórias.

Trem carrega gente, cultura e história Tábatha Campelo

O Trem da Vale é hoje um marco de quase tudo em Mariana: do patrimônio cultural e natural da região dos Inconfidentes, do progresso da civilização de Mariana e Ouro Preto, da disputa pelo ouro em tempos remotos, enfim: da riqueza cultural construída na região. Implantado no século XIX, o trem percorre os trilhos de uma ferrovia que foi construída, na verdade, em Ouro Preto – e prolongada até Mariana. A partir daí,

o deslocamento de uma cidade para outra, por meio da locomotiva, acabou se tornando um dos sinais mais evidentes do desenvolvimento e da modernização. Com capacidade para conduzir até 240 pessoas por viagem, o trem é composto por uma locomotiva a vapor, uma a diesel, e cinco vagões de passageiros. A locomotiva foi fabricada no século XIX, na Inglaterra. Basta contemplar o interior de madeira dos vagões, semelhantes àqueles que caracterizavam os velhos trens. Parte dos atrativos turísticos

de Mariana, o passeio de trem permite ao viajante apreciar o relevo e natureza da região, além das antigas formações rochosas e áreas de mineração já desativadas. É o caso, por exemplo, da mina de Pirita, próxima à comunidade Lírios do Campo, em Ouro Preto. A existência desse histórico meio de transporte faz com que a cidade possua uma importante opção de entretenimento, assim como de uma diferente maneira de conhecer, discutir e disseminar as riquezas naturais e patrimoniais do lugar.

Para a moradora do bairro Rosário, Aline Silva, o Trem da Vale é pouco valorizado pelos moradores da cidade, que, por já conhecerem a região, costumam não perceber o diferencial cultural da rota Mariana-Ouro Preto. O trem funciona em dias e horários disponíveis no site http:// www.tremdavale.org. Os interessados podem se dirigir às Estações de Ouro Preto e Mariana, que oferecem a programação e outras informações históricas capazes de enriquecer, e muito, o passeio pela região. divulgação

O Trem da Vale circula com velocidade média de 20 a 25 km por hora e propicia para todos os passageiros um percurso pelas belezas naturais da região


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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 Edição: Lucas Aellos e Enrico Mencarelli

PADRE AVELAR Antônio Laia

Fachada geral do Colégio Padre Avelar, que há cerca de três anos pertence à Universidade Federal de Ouro Preto, funcionando como Instituto de Ciências Sociais Aplicadas

Prédio garante acesso ao ensino Trabalho coletivo iniciado em 1964 transforma terreno baldio em instituição de ensino e proporciona a democratização da educação até hoje D ouglas Gomides

Muita história e muito suor se escondem sob o concreto que abriga uma das unidades da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop) em Mariana, o Instituto de Ciências Sociais Aplicadas, o Icsa. Há quase três anos, a comunidade universitária divide os espaços do prédio. A importância do local, que já foi um terreno baldio, está diretamente ligada aos esfor-

ços dos marianenses para democratizar o acesso à educação. A luta nesse sentido começa em 1964, quando o então bispo Dom Oscar, aproveitando-se de uma campanha nacional que era destinada à construção de instituições de ensino, resolveu criar uma escola para os homens da cidade. Naquele tempo, Mariana priorizava as instituições que atendiam ao público feminino. O colégio recebeu o noArquivo Pessoal

me do primeiro bispo da cidade, Dom Frei Manuel da Cruz. Esforço Erguido graças ao empenho da população, o prédio é resultado da ação de personagens importantes da cidade. Entre eles, estão o padre José Dias Avelar, o advogado José Salim Mansur e a professora aposentada Dona Hebe Rôla, considerados os fundadores da instituição. Segundo a professora Hebe, o prédio foi construído graças à grande mobilização das pessoas, em especial dos professores. “Aquele colégio foi fruto de um esforço nosso, de um trabalho muito sério com a comunidade marianense”, diz.

As atividades do colégio foram

coordenadas por seus fundadores até o final da década de 1990, quando a prefeitura de Mariana passou a gerir o local. Em homenagem a um dos idealizadores, a instituição recebeu um novo nome: Colégio Padre Avelar. Em quase 20 anos, a escola recebeu alunos de diferentes idades e dos mais diversos lugares. O colégio, nesse tempo, abrigou programas que incluíam desde o ensino básico até o sistema de a Educação para Jovens e Adultos (EJA). Luan Queiroz, 22 anos, aluno da Ufop, estudou no prédio por dois anos. Para ele, foi um tempo de crescimento. “Apesar de algum déficit na educação, tínhamos uma área externa bastante agradável”, relembra.

Hoje

No segundo semestre de 2008, após vários anos gerenciando a instituição, a prefeitura de Mariana firmou contrato com a Ufop, cedendo o prédio para a instalação do Icsa, que abriga os cursos de Comunicação Social, Ciências Econômicas, Administração e Serviço Social. Para Hebe Rôla, a criação de um campus universitário no local que ela e outros educadores ajudaram a construir e estruturar é a realização de um sonho. “Foi da maneira que nós idealizamos. Espero que o Icsa prossiga na trajetória da sabedoria e da conscientização que foi plantada ali por Padre Avelar”, afirma.

Obra foi luta contra falta de estrutura Mari Fonseca

Padre Avelar, considerado um dos fundadores do colégio

A edificação do Colégio Padre Avelar não foi fácil. A pouca verba reservada à construção da instituição fez com que professores, alunos e cidadãos se unissem para a fundação de uma escola que atendesse a todas as classes. Alípio Faria, presidente mantenedor do ginásio em 1968, relata que durante a construção cada um ajudava como podia para suprir as necessidades mais urgentes do colégio. Campanhas e barraquinhas eram feitas para arrecadar fundos destinados à compra de tintas, cimento, tijolos, materiais de cons-

trução em geral. “Com o tempo, compramos um caminhão com o dinheiro arrecadado dos comerciantes. Os alunos subiam nele e iam buscar areia e pedra lá do Padre Canela, Ribeirão do Carmo, para ajudar a construir o ginásio”, conta ele. Outra maneira de arrecadar fundos era através da venda de espaços para anúncios no jornal “O Ginásio”, criado em 1951 pelo grêmio do colégio, coordenado, à época, pela professora e fundadora Hebe Rôla. Segundo ela, cada um ajudava à sua maneira: alguns traziam material de casa, ou-

tros cediam mão-de-obra, ajudavam na limpeza e no que mais fosse preciso. A construção da nova escola interessava grande parte da população da cidade, pois os alunos a serem beneficiados eram de baixa renda, do sexo masculino – e por isso mesmo, não podiam frequentar o Colégio Providência, o único da cidade naquele tempo. Não fosse a perseverança dos primeiros alunos e da comunidade local, talvez o prédio não estivesse de pé hoje como Instituto de CIências Sociais Aplicadas da Ufop.

ARTESANATO

Mãos que tecem e constróem um futuro melhor

Leidiane Vieira

Leidiane Vieira

Maria Perpétua das Dores, mais conhecida como Lica, participa da Associação Marianense de Arte e Artesanato há 13 anos. Desde 2005, atua como presidente da organização. Em casa, enfrenta dificuldades que poderiam fazer com que ela desistisse dessa responsabilidade, mas o encanto pelo artesanato a impede de tomar esse caminho. Atualmente, a associação é formada por 23 mulheres, todas donas de casa. Os trabalhos produzidos estão expostos todos os domingos em barracas na Rua Direita. Vários produtos também são encontrados na Casa do Artesão Feira Marte, na Rua Frei Durão. Para algumas das associadas, o artesanato representa muito mais que uma profissão ou fonte de renda. Elas o defendem como algo

que tem de ser preservado pelas futuras gerações. O maior temor é que essa forma de arte possa desaparecer devido à falta de interesse pelo ofício nos dias de hoje. A artesã Maria Geralda Cândida acredita que, na maioria das vezes, as pessoas não se interessam pelo artesanato porque pensam no dinheiro em primeiro lugar. Lica, por sua vez, afirma que desde o ano de 2001 mais de 60 pessoas passaram pela feira na condição de trabalhadores, mas desistiram de continuar. “Quem entra só com o interesse no lucro não permanece”, diz ela, garantindo que é preciso amar o trabalho manual. Tendo passado por pelo menos 28 cursos, a artesã garante que “amor” pelo ofício é o que não lhe falta. “Eu não perco tempo, faço muitos cursos e procuro aprender com programas de tele-

visão também”, afirma. Há quem também veja nesse trabalho uma forma saudável de entretenimento. Para Janete da Conceição Alves, por exemplo, o artesanato é uma distração. “Faço isso porque gosto. Se fosse olhar a renda, eu tinha saído”, garante. Outra artesã, Zélia Chaves, também enxerga no trabalho manual e na interação com outras artesãs uma forma de tornar menos dura a realidade. “O que me segura aqui é o companheirismo. Tenho que arejar minha cabeça, sofro com meus problemas em casa”, diz ela, que defende o fortalecimento da associação. O desejo das artesãs é que mais pessoas possam se unir a elas, mas não tem sido fácil. A associada Maria Geralda reclama, por exemplo, da falta de interesse dos jovens pelo artesanato.

Artesãs temem à falta de interesse e desaparecimento do ofício


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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 Edição: Ana Sophia Figueiredo e Olívia Mussato

olhares

Rua Direita expõe trajetória social Fernando Gentil

e

Lucas Aellos

Famosa pelo luxo de sua arquitetura, a rua Direita de Mariana sempre pareceu mais “distinta” que as demais. Ela abrigava a alta sociedade no final do século XVIII. Segundo o guia de turismo Luiz Otávio, “dá-se o nome de Direita às ruas que dão acesso à Catedral da cidade”. O conjunto arquitetônico do lugar inclui o chão feito com pedras polidas no estilo “pé-de-moleque” e grandes casarões com fachadas pomposas. Não por acaso, abrigou, entre outras figuras importantes, o ex-governador Barão de Pontal e o escritor Alphonsus de Guimarães. No livro de Atas da Câmara (de 1751 à 1753) está registra-

fotos: Fernando Gentil

do um documento curioso envolvendo a região. Ele informa que as residências localizadas do lado esquerdo da rua são aquelas “de maior nobreza, dando fundos para o Palácio”. São sobrados com sacadas que ostentam a fortuna daqueles que se situavam ali. Ainda de acordo com o guia Luiz Otávio, “o Casarão, que pertencia ao Barão de Pontal, e que hoje é da Arquidiocese de Mariana, é o único no mundo que possui quatro sacadas feitas de pedra sabão, e não de ferro fundido, como é o normal”. O guia também afirma que a rua Direita é a segunda mais antiga da cidade. Mais velha que ela, só a rua do Rosário Velho, no bairro São Gonçalo.

Rua Direita hoje: o comércio ocupa os casarões do século XVIII. À esquerda, ricos detalhes das antigas construções

Dinheiro disputa espaço A importância da rua – ao menos para os moradores – não passa mais pelo seu caráter histórico e, sim, pelo econômico. Hoje, há várias lojas na região, oferecendo uma série de produtos e serviços: celulares, artesanato, comida, corte de cabelo, entre outros. Na avaliação da funcionária de uma loja de artesanato, de Lúcia Helena Alves, a importância da Rua Direita está na sua proximidade com a Catedral. “Ela tem muita visibili-

Lamparinas iluminam e espreitam as ruas da cidade

Cúmplices discretas

dade e, com isso, muita gente vem à loja e a gente acaba vendendo bastante por causa disso”, explica. Na concepção de grande parte dos marianenses, a rua Direita é hoje um lugar para se ganhar dinheiro. Porém, para os turistas que visitam a cidade, a rua ainda permanece com seu valor histórico e cultural. As visitas e os flahs das máquinas fotográficas são constantes, mostrando o porquê da rua Direita ser patrimônio nacional.

Lá Lá vem vem oo acendedor acendedor de de lampiões lampiões da da rua! rua! Parodiar o sol e associar-se à lua... Parodiar o sol e associar-se à lua... Quando Quando aa sombra sombra da da noite noite enegrece enegrece oo poente! poente! Um, Um, dois, dois, três três lampiões, lampiões, acende acende ee continua, continua, À À medida medida que que aa noite noite aos aos poucos poucos se se acentua acentua E a palidez da lua apenas se pressente... E a palidez da lua apenas se pressente... O O acendedor acendedor de de lampiões lampiões -- Jorge Jorge de de Lima Lima

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Das primeiras ruas, ainda de terra, onde as casas e os cenários eram ainda outros, as grisetas – pequenas velas em latas com azeite - faziam a iluminação das noites em Mariana. Pequenos pontos de luz nas ruas, as primeiras lamparinas eram como pequenos olhos a observar a quietude da noite. Datam do período colonial as primeiras e ainda bem rudimentares lamparinas, dispostas nas antigas ruas da cidade, onde o ofício de acendedor de lampião era atividade importante. As pessoas responsáveis pelo trabalho de acender as antigas lamparinas entravam em cena ao entardecer, dando luz ao começo da noite nas primeiras ruas que ainda constituíam um vilarejo. Ao amanhecer, passavam apagando uma por uma. Cheias de histórias, e na memória da própria cidade, as luzes das lamparinas deram movimento a Mariana – que nascia e se desenvolvia – e marcaram a lembrança dos que hoje ainda se recordam do tempo em que as primeiras lamparinas funcionavam com azeite de mamona, até que se desenvolvesse o funcionamento a gás. Com a boina sobre os cabelos brancos – e o movimen-

to preciso das mãos ao falar da época de criança, em que acompanhava a mãe à missa para acender a pequena griseta do Santíssimo –, Vicente Cândido da Silva, de 97 anos, recorda que os lampiões de antes eram bem diferentes dos de hoje, em sua forma. Lembra ainda que a primeira fonte de luz elétrica vinha de Bicas, através da Companhia de Passagem, e era ligada atrás da capelinha de São Jorge, próxima à Praça Minas Gerais. Entre os pensamentos a respeito do lampião aluado que acendia de dia e apagava de noite, em frente às casas, há quem lembre do tempo em que os sinos davam o toque de recolher. Às 21h, por causa da falta de iluminação noturna, soavam os sinos avisando aos moradores que era hora de entrar em casa. À noite, os receios diante da penumbra provocada pela luminosidade das poucas lamparinas a gás contribuíam para a invenção das mais diversas lendas entre as crianças que brincavam nas ruas, e mesmo entre os adultos. Toda a história da cidade se criou sob a luz desses olhares – das grisetas regadas a azeite de mamona às lamparinas elétricas, passando pelas lamparinas à gás e pelos lampiões. Todos seguiam o andar das ruas.

fotos: Ana Beatriz Noronha

Hoje, algumas lamparinas ainda se assemelham a antigos modelos, menores e de ferro. Há também formas diversas, inusitadas, dando a impressão de quererem conciliar o antigo e o moderno. Inúmeras lamparinas percorrem e dão direção aos passos, aos bares, às casas, às serestas, à boemia e a tudo que se faz sob esta luz que parece narrar o movimento da noite. Figuram, assim, como cúmplices discretas de todos os passos, sorrisos, abraços, dramas, brigas, encontros, músicas, danças, conversas e de tudo que começa a se iluminar sob as primeiras lamparinas que, aos poucos, rua a rua, vão se acendendo.


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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 Edição: Tábatha Campelo e Sabrina Carvalho

Música

Rotas e acordes tocam a cidade Allãn Passos

e

Amanda Rodrigues

Desde o século XVII, Mariana se destaca no cenário da música mineira e também nacional. Atualmente, a produção musical na cidade é marcada, principalmente, pela diversidade. A cidade possui não só o maior núme-

ro de bandas civis do estado – 11 no total –, como inúmeras bandas de garagem, escolas formais e informais de música e canto, corais, grupos de capoeira, samba e seresta. Há que ressaltar, ainda, o fato de a cidade abrigar, na Catedral da Sé, o órgão Arp Schnitger,

construído no ano de 1711, em Hamburgo, na Alemanha. O instrumento, um presente da Coroa Portuguesa ao bispo da cidade, D. Frei Manoel da Cruz, está no Brasil desde 1753. Fato é que não faltam opções para quem circula pela primeira

capital de Minas Gerais quando o assunto é música. O mapa a seguir traz uma trilha capaz de conduzir o cidadão por alguns destes pontos que representam a enorme variedade da música em Mariana. Arquivos em papéis e na memória, pessoas que zelam pelo pa-

trimônio cultural e que ensinam a quem aprende as primeiras notas, aqueles que produzem ou que apenas escutam os acordes ajudam a resgatar, construir e renovar cada compasso. Então, afinem seus instrumentos, acertem o tom e bom passeio.

Museu da Música de Mariana O Museu da Música de Mariana é o primeiro ponto de parada no passeio. Nele está conservada boa parte da história musical mineira. Fundado na década de 1960 por Dom Oscar de Oliveira, o museu é o primeiro do país a guardar partituras musicais. De terça a sexta-feira, entre 8h30 e 11h, e de 12h30 às 17h, é possível conhecer instrumentos musicais e todo o acervo. Desde os manuscritos da coleção Dom Oscar, com obras a partir de 1786, até as mais de 5 mil partituras da coleção de bandas de música. Também estão lá as composições que resgatam os primeiros registros da música popular brasileira, como a coleção da pianista Lavínia Cerqueira de Albuquerque, que residiu em Conselheiro Lafaiete, Minas Gerais. Segundo o funcionário do museu, Vitor Sérgio Gomes, quem passa pela rua Cônego Amando pode conhecer, no número 161, um lugar que busca reconstruir a memória musical a partir de documentos.

Praça Gomes Freire - Jardim Se o Museu da Música de Mariana é o responsável por resgatar a memória, a Praça Gomes Freire, mais conhecida como Jardim, é o principal ponto de manifestações musicais da cidade. Músicos anônimos, grupos pequenos, grupos maiores, bandas informais ou tradicionais compõem, junto ao coreto, o cenário musical desta praça. É o lugar das rodas de capoeira, shows, serestas, luais entre amigos e encontros de bandas civis. Entre os bancos e árvores do Jardim, há sempre um espaço para variados estilos, manifestações artísticas e músicos diversos. Para a moradora da cidade, Iva Freitas, “o Jardim é um grande palco ao ar livre, é um lugar que socializa as pessoas através da música”.

Casa de Cultura de Mariana A poucos metros do Jardim, está a próxima parada: a Casa de Cultura de Mariana, localizada à rua Frei Durão, número 84. Aulas de violão e ensaios do Coral Madrigal dividem o espaço com o grupo musical “Uns e outros”, formado por cinco amigos que trabalham juntos há dez anos. Eles se apresentam em frente à Casa de Cultura no terceiro domingo de cada mês e encantam diferentes gerações com marchinhas de carnaval, samba, bolero, MPB, músicas da “Jovem Guarda” e as tradicionais serestas. O grupo também se apresenta em outros pontos da cidade, quando é convidado, mas não atua com fins lucrativos. De acordo com um dos integrantes, Francisco de Assis Santos, cada apresentação e cada ensaio é, de fato, um encontro entre amigos, regado a muita música.

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Sociedade Musical XV de Novembro

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A Rua Direita é o caminho que liga a tradição de um órgão do século XVIII à também tradicional Sociedade Musical União XV de Novembro. Fundada em 1901, a “União”, como é conhecida, é considerada a banda civil mais antiga de Mariana. Nomes como Aníbal Walter e “Seu Gegê” fazem parte dessa história centenária que ainda atrai crianças e jovens dispostos a se integrarem a essa família. A musicista Daniele Freitas, de 23 anos, garante que a banda é sua “segunda casa”. A diversidade dos 48 músicos dá à banda a versatilidade refletida no repertório. As apresentações incluem desde as procissões e encontros de bandas no Jardim até a participação em eventos especiais – como a posse do presidente Tancredo Neves, em 1985.

Órgão Arp Schnitger Já na próxima esquina, preservando toda exuberância e tradição do século XVIII, está localizado, no interior da Catedral da Sé, o órgão alemão Arp Schnitger. Único deste modelo fora da Europa, o instrumento atrai turistas de todo o mundo. Foles, canais de ar e someiro, tubos e teclados dão ao órgão uma sonoridade característica inconfundível, que pode ser apreciada às sextas-feiras, às 11h30, e também aos domingos, às 12h15. Tanta riqueza sonora requer estudo e habilidade que poucos músicos brasileiros possuem. Além dos concertos convencionais, visitantes e moradores também podem apreciar, ocasionalmente, participações especiais, como a da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. Para os moradores, há algumas cortesias disponíveis na secretaria da paróquia da Sé para assistir aos concertos gratuitamente.

Conservatório de Música Mestre Vicente Ângelo das Mercês Mais adiante, chega-se à rua da Glória. No número 98, está o Conservatório de Música Mestre Vicente Ângelo das Mercês. Há um ano, “foi uma porta que se abriu para marianenses que querem se profissionalizar como músicos”, nas palavras da professora do Conservatório, Michelline Cruz. Cerca de 500 alunos descobrem, gratuitamente, nove instrumentos diferentes: piano, violino, percussão, violão, flauta doce, violoncelo, saxofone, clarinete e flauta transversal, além do canto. As crianças participam ainda da iniciação musical em espaços educativos. São 18 professores para ensinar todas as idades, de segunda a sexta-feira, das 8h às 22h. Além das aulas, o Conservatório possui cinco corais: Tom Maior, Silvinha Araújo, Cumbaiá e os infantis Alegreto e Aprendizes da Esperança.


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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 Edição: Allãn Passos e Camila Dias

DANÇA

Ritmos e gestos revelam um povo As expressões corporais dos habitantes de uma cidade transcendem ritmo, festa e movimento. Mais do que uma simples dinâmica, a dança conta a história de um povo. Em Mariana, desde os tempos do Brasil colônia, as danças expressam religiosidade, cultura popular, necessidades sociais e outros aspectos do cotidiano da população. Em 1696, os bandeirantes paulistas descobriram ouro no Ribeirão Nossa Senhora do Carmo, mas nem imaginavam que aquela descoberta seria o início histórico da primeira capital de Minas. Nascia do ouro reluzente do

fundo do rio uma história de reis, rainhas, índios, europeus, animais selvagens, casarões, riqueza e escravidão. Chegava nos navios negreiros um batalhão de negros africanos, capturados para trabalhar na mineração e enriquecer a realeza de Portugal. Acontece que a vinda desses negros escravizados acabou por enriquecer não só a Corte Portuguesa, mas o patrimônio cultural e histórico do que viria a ser a cidade de Mariana. No mesmo chão pisavam sapatos cravejados de pedras preciosas dos europeus e os pés descalços da mão-de-obra escrava. No mesmo chão dançavam, coreografados e um pouco tímidos, os nobres portugueses e os escravos, que batiam seus pés nos terreiros, ao som de batuques religiosos. Por vezes, os pés descalços e calejados eram obrigados a parar de dançar. Aqueles corpos negros, em sintonia com os tambores, ritualizavam uma cultura tida como ofensiva para os valores religiosos europeus, revelados em suas roupas luxuosas e seus gestos comedidos. Acontecia, ali, um encontro cultural que, por algum tempo, se manteve separatista. Nos salões, a elite branca soberana bailava em sua liberdade de expressão cultural – e, escon-

Das danças escravas às rodas de samba, manifestações musicais e corporais ajudam a construir e recontar a história de Mariana

didos nos cantos de chão batido, os escravos ofereciam sua dança aos deuses africanos. A tentativa de parar aqueles corpos vivos, que circulavam em torno de seus próprios eixos, foi em vão. Mesmo que tais movimentos agredissem o código moral defendido pela realeza, a umbigada africana resistiu à repressão, demonstrando aos portugueses que a dança e sua simbologia eram elementos que não poderiam ser retirados facilmente da vida daquele povo. A partir daí, Mariana tornou-se o que é chamado de caldeirão cultural. As experiências e tradições se misturaram. Em uma troca dinâmica, portugueses e negros africanos criavam uma nova identidade cultural – mescla de três continentes, África, Europa e América. O lundu é um exemplo dessa identidade híbrida, caracterizado pela mistura de batuques e elementos da dança africana com a melodia e harmonia da música portuguesa. Desse caldeirão cultural saíram rituais característicos da tradição marianense, que representam todo esse processo histórico, raramente lembrado. Talvez a maior representação histórica que permanece viva na cidade seja o Congado de Nossa Senhora do Rosário de Barroca. São muitas as histórias sobre o surgimento do Congado da Barroca, mas, em documento oficial, a data registrada é do início do século XX. Mas, independente de datas, esse ritual simboliza a resistência da cultura negra na região e o processo de miscigenação cultural que se dá desde a descoberta do ouro, no fundo do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo. A dança do congado é ca-

ILUSTRAÇAO: Raísa Geribello

Raísa Geribello

Roda de samba se mistura ao cenário barroco e contagia Mariana Enrico Mencarelli

Que o samba é um dos ritmos musicais mais marcantes do Brasil, todo mundo sabe. E que Mariana é a primeira cidade de Minas Gerais, com passado barroco e escravocrata, também. Mas qual é a relação entre as duas afirmativas? As quintas-feiras. Nesse dia do meio da semana, a Primaz, primeira capital mineira, se envolve com os batuques e acordes agitados do samba. Já é quase religioso: quinta tem roda. Historicamente, o samba é a mistura de um ritmo bem demarcado, de percussão acentuada, com uma construção melódica de frases simples, combinação chave para tornar o estilo de canção dançante e envolvente. Tem origem nas rodas do Recôncavo Baiano e nas favelas cariocas, com forte contribuição dos escravos africanos. Possui uma batida bem característica, facilmente reconhecida até pelos estrangeiros. Para muitos, é um dos símbolos do Brasil. Já em Mariana, as atuais rodas começaram de um jeito despretensioso, para não dizer discreto. Num canto de um restaurante familiar, O Cozinha Real, logo ali adiante do terminal, numa quinta-feira avulsa. Pai e filho – Jorge e Aloísio Fonsceca – pegaram os violões e repetiram uma rotina caseira, porém agora entre os clientes que lá estavam naquele dia. E a música tomou o ambiente, a cada quinta, mais músicos, mais bandas, mais gente. O restauran-

te não comportou o crescimento do público. Aloísio Fonseca, que também é empresário, conta que, em função do crescente aumento do movimento e a chegada de nova freguesia no Cozinha Real, seu pai preferiu deixar as rodas de samba de lado, resgatando os velhos clientes e o movimento rotineiro do comércio. Mas o samba seguiu seu caminho. Foi parar no Sagarana Café Teatro, lugar que já servia de palco para várias realizações culturais. Aí, sim, apareceu gente de todo tipo – nativo, estudante, turista. Se a música é a linguagem universal, o samba é a entonação dessa fala em Mariana, uma espécie de sotaque democrático no cotidiano. O Sagarana parecia o espaço perfeito para essa manifestação livre. O familiar se tornou público. Mas as quintas não saíram de cena e, sim, enraizaram-se no velho casarão que comporta o Sagarana. A música não podia parar. A proprietária do estabelecimento, Ana Gastelois, aposta no samba como instrumento de enriquecimento cultural. A apresentação semanal já tem público cativo e fiel, e cada vez atrai mais seguidores. Esse crescimento das rodas e da visibilidade do samba abriu caminho para novas bandas e também para grupos já existentes: Vira-saia, Quadrado Fino, Samba de Sobra e Chá de Caboclo, entre outras. A partir deste momento, todas elas puderam explorar melhor o horizonte musical.

Thiago Novais, vocalista e compositor da banda Quadrado Fino, acredita que o mainstream da música pop já estava saturando o cenário musical marianense: “Com as rodas de samba, quem se interessa pela poesia das letras e a levada do ritmo pôde acompanhar algo diferente”. São os novos ouvidos, novos olhares, novos sentidos. A musicalidade sempre foi uma característica marcante da cidade de Mariana. Das composições barrocas aos sambas-enredo dos carnavais locais, das bandas civis às bandas de garagem. O impulso do samba só veio se somar a essa mistura, uma espécie de tempero ardente e brasileiro, que transcende o aspecto colonial marianense. Se o samba é baiano ou carioca, neste momento não tem muita importância. Aqui em Mariana ele é mineiro, conterrâneo dos cidadãos locais. É mais um estilo musical que ressoa no dia-a-dia, também como alternativa para interação e entretenimento. Alguns outros restaurantes da cidade também já aderiram à ideia. O Casarão apostou em algumas rodas, em dias diferentes da semana. Domingo sim, domingo não, a batucada é por conta do Bar do Carlão. Tem também o pagode em Passagem, onde o que não falta é remelexo. E para verificar toda essa musicalidade, basta ficar atento à quinta-feira mais próxima.

racterizada pelo sincretismo religioso e cultural, em que se misturam o batuque africano da zabumba e a simbologia européia, com os reis e rainhas. Outra imagem dos dias de hoje que simboliza a convivência entre a cultura africana e a européia é o ensaio do grupo de maracatu, o Coletivo Baobá, em frente às igrejas da praça Minas Gerais. O som das batidas ecoam das alfaias e se rebatem nas paredes dos monumentos católicos, trazendo aos sentidos a impressão de presenciar o encontro histórico entre os ritos europeus e o ritmo africano. Apesar da importância desses movimentos corporais e culturais – já apontada por tantos antropólogos, sociólogos e historiadores –, as autoridades públicas responsáveis pelo incentivo e valorização dessas manifestações assumem uma postura muito parecida com aquela adotada pela nobreza portuguesa, que desprezava a tradição de seus escravos. Segundo Ana Malaco, autora de uma pesquisa e de um documentário sobre o Congado na região, a Barroca, por exemplo, está esquecida. “O congado, entre outros movimentos de resgate da cultura, encontra dificuldade em reproduzir a tradição devido à falta de interesse e incentivo por parte da prefeitura e outros órgãos responsáveis pela preservação desses movimentos de resistência cultural”, explica. Para Mônica Elias, marianense e integrante dos grupos Vira-Saia e Moinho de Dança, o processo para trazer à luz a verdadeira dança de Mariana não foi nem iniciado. Segundo a artista, “a dança raiz da cidade continua escondida nos terreiros. Essas expressões permaneceram por trás das montanhas, como danças secretas. É uma cultura calada na cidade.” Embora silenciosa, a expressão corporal é perceptível aos olhos. É possível notar as heranças do histórico encontro cultural entre europeus e africanos na cidade. O jovem que balança os braços no ritual católico num Domingo de Ramos pode ser o mesmo que reproduz as umbigadas das danças africanas no baile funk da Praça do Jardim.


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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 Edição: Rodolfo Gregório e Fernando Gentil

patrimônio

Sem luxo, igreja encara desafios Apesar da falta de luxuosidade no prédio, admiradores continuam visitando o monumento, mesmo tendo na cidade outras construções mais valiosas Sabrina Carvalho

Sabrina Carvalho

Altar de madeira despojada de ouro. Diferente, sim, a Igreja de São Pedro dos Clérigos, embora muitos não saibam, só conta com proteção legal porque está fincada no centro histórico da cidade de Mariana, que é amparado pelo tombamento. A igreja não tem pintura ou o douramento tão comum no período colonial. Não conta sequer com os retábulos – aquela construção que fica por trás ou acima do altar. Até os quadros que estão dentro do templo foram doados pela comunidade ao longo dos anos. Na verdade, a igreja teve todo o seu aspecto comprometido pelas inúmeras interrupções que marcaram a história da sua construção – interrupções que, aliás, impediram que a obra tivesse tombamento próprio, por meio do Iphan. Assim mesmo, com todas as limitações, São Pedro dos Clérigos impressiona os turistas com suas singularidades: a cor de pedra bruta, a imponência lá do alto, a simplicidade das curvas e a altura da torre que abriga o sino, de onde se tem uma das visões mais surpreendentes de Mariana devido tamanha a amplidão que o cenário oferece. No entanto, tudo naquele lugar parece desafiado pelo tempo desde sempre. Por exemplo: embora seja a segunda igreja mais antiga de Mariana – mais nova apenas que a Catedral da Sé, com o início de sua construção datado por volta de 1750 – a primeira missa da Igreja de São Pedro dos Clérigos só foi celebrada no ano de 1989. Motivo? As obras estavam paradas há anos por falta de dinheiro. Por ocasião do início das obras, a irmandade de São

Igreja de São Pedro dos Clérigos: um monumento sem luxo, sem ouro e com uma história marcada pelas interrupções na construção e reforma do prédio

Pedro, responsável pela iniciativa, havia sido criada há pouco mais de 20 anos, motivo pelo qual enfrentava problemas financeiros. Em 1820 as obras ainda estavam paralisadas e, a partir daí, a história da edificação da igreja foi marcada por períodos de pausas que pareciam intermináveis. Mais de um século depois do início das obras, em 1856, é que a Igreja ganhou piso. Passados quase 30 anos, a Assembleia Provin-

cial aprovou a verba para um telhado provisório, que resistiu pouco tempo aos ventos fortes da região. Resultado: somente em 1920 foram colocadas as portas e janelas. No mesmo ano, foram edificadas as torres e o Palácio Arquiepiscopal que fica nos fundos, no qual, a partir de 1927, passou a residir o arcebispo da cidade. Hoje, o local funciona como Tribunal Eclesiástico onde são resolvidas e atendidas as deman-

das da Arquidiocese de Mariana. No período de 1826 a 1930, Dom Helvécio Gomes de Oliveira transformou a Igreja de São Pedro no Museu da Arte e da História, que abriga grande acervo. A partir da década de 1930, o bispo doou todas as peças para o Museu da Inconfidência de Ouro Preto e a igreja voltou a ficar vazia. Atualmente, não há previsão de mais obras no local, apenas as que dizem respeito à manutenção

do que está danificado. A ausência da exuberância que marca as outras igrejas barrocas da região não afasta os visitantes ou os moradores da cidade. Pelo contrário. Só no ano passado, cerca de 13 mil pessoas visitaram a igreja. Além disso, no domingo, quando são realizadas as missas, a igreja está sempre cheia de fiéis, turistas do mundo inteiro. Razão? Talvez ela emocione as pessoas com tempo e ritmo próprios.

Prisões

Encarceramento marca a história de Mariana Mayara Gouvea

M ayara Gouvea

A Mariana do século XVIII foi palco de formas cruéis de punição para quem infringia a lei. Os castigos incluíam o encarceramento e o isolamento, muitas vezes em lugares insalubres, extremamente prejudiciais à saúde – caso das senzalas, que abrigavam os escravos. Na Praça Minas Gerais, cartão postal da cidade, estão a antiga cadeia municipal, instalada na Câmara dos Vereadores, e o monumento que resgata, naquele local, a imagem do pelourinho – aquela coluna de pedra utilizada para amarrar os presos ou os condenados, submetendo-os ao açoite, ao espancamento. O guia de turismo João Carlos Anastácio explica que o presídio, primeiramente destinado tanto a escravos quanto a pessoas de outras classes sociais, funcionou até 1974, chegando a servir ao governo militar durante dez anos. Ele conta que ali as torturas eram comuns: no século XVIII, contra os escravos e na ditadura, contra os presos políticos. Já o pelourinho ultrapassava a esfera do sistema escravocrata em si, funcionando também como forma de humilhação pública. Nele, negros e brancos condenados eram amarrados e apanhavam em meio à multidão para servir de exemplo aos outros. Ineficácia Se as torturas já não existem em Mariana como forma de punição pela desobediência às leis, as práticas de encarceramento e pri-

Celas lotadas M ayara Gouvea

Práticas de encarceramento não garantem reeducação, recuperacão ou reinserção do detento na sociedade

vação do convívio social continuam, apesar das mudanças no sistema econômico e político e da modernização e desenvolvimento que marcam a sociedade contemporânea. “Encarcerar é mais fácil que educar, assim como bater é mais fácil que trabalhar para que o outro compreenda”, explica a socióloga Giulle da Mata. Na avaliação da socióloga, uma das explicações para a ineficácia do atual sistema carcerário está exatamente na desumanização do detento. “Seria diferente se as instituições trabalhassem a partir de uma concepção mais universal do ser humano e mais contextualiza-

da, buscando compreender o que leva as pessoas a cometerem crimes. Se bandido não é gente, tudo é permitido”, diz ela. O diretor da prisão de Mariana, Warley Rondinelli, admite que o modo como o preso é visto influencia diretamente o processo de recuperação do sujeito. “As pessoas têm que parar de discriminar e passar a contribuir para reinserção do indivíduo na sociedade”, defende. A eficácia do encarceramento e do isolamento no processo de reinserção do indivíduo na sociedade é discutível. Giulle da Mata acredita que essa penalidade pode ser válida, desde que a reeducação

seja praticada a partir de uma mudança no sistema que aponte para outra concepção de humano. “Uma concepção mais generosa, que tem o ser humano como um ser capaz de aprender e, por isso mesmo, de rever seu comportamento e se comprometer socialmente”, explica. Warley Rondinelli, diretor da unidade prisional do município de Mariana, também torce por transformações e acredita que o fim do impasse está na reformulação do Código Penal. Segundo ele, é esse o caminho para tornar o sistema mais justo e solucionar alguns dos muitos problemas, como a superlotação.

Dados do Departamento de Monitoramento e Fiscalização do Sistema Carcerário e das Medidas Socioeducativas (DMF) mostram que hoje, a população de presos no Brasil chega a quase 500 mil. Como o número de vagas nas cadeias de todo país não passa de 300 mil, seriam necessárias outras 396 penitenciárias, para que não houvesse superlotação. Em Mariana, a cadeia sempre esteve sob os cuidados da Polícia Civil, mas, em abril deste ano, passou a ser comandada pela Subsecretaria de Administração Prisional (Suapi), responsável por mais de 80% dos presídios no estado de Minas Gerais. Segundo o diretor da unidade prisional, Warley Rondinelli, a situação está sob controle, apesar da existência de facções rivais no local. Hoje, a prisão da cidade abriga 93 presos, dentre os quais só 10% foram jul­ gados. Desse total, há somente oito mulheres, que ficam em ala separada, sem contato com os presos.


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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 Edição: Amanda Rodrigues e Leidiane Vieira

MITOS DE MARIANA

Lendas remontam período colonial As histórias e lendas que circulam hoje por Mariana são heranças dos períodos de descoberta e desenvolvimento que marcaram a história da cidade, construída a partir de um pequeno arraial fundado há pelo menos 300 anos, às margens do Ribeirão de Nossa Senhora do Carmo. O lugar cresceu e se tornou a primeira vila da região, transformada, tempos depois, na primeira capital mineira. Com três séculos de história, Mariana guarda um patrimônio histórico constituído de arquitetura barroca e casario colonial. A vila que se ergueu no passado é hoje patrimônio da memória cultural e guarda não só a história das descobertas e dos sonhos de fortuna, mas também relatos que envolvem a força da fé, da arte, dos mitos e lendas – histórias ligadas às características culturais que influenciaram os processos de descobrimento, povoamento, mineração, agricultura e pecuária na região. Por Lorena Caminhas

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Maldições vêm dos tempos da mineração Já durante o período da mineração, havia um clima de desconfiança em relação à Coroa Portuguesa, que passou a cobrar o quinto do ouro. Durante a cobrança, se não se cumprisse a arrecadação estipulada, a administração local confiscava os bens dos moradores. Por isso, muito ouro e muitas pedras preciosas conquistadas eram escondidos dentro de casa ou sob a terra. Assim, as lendas relacionadas a esse período falavam de tesouros enterrados e almas penadas, que seriam donas do tesouro escondido.

Mãe-do-ouro e Capitão Jackers – Essas duas entidades teriam vivido escondidas nas galerias das minas de Passagem de Mariana. A Mãe-do-ouro, segundo os relatos, tem o formato de uma chama e é padroeira das jazidas, enquanto o Capitão Jackers é um expedidor inglês que, após ter sido esmagado por um deslizamento na mina, teria se tornado um fantasma. Vagando pelos corredores escuros das galerias, o Capitão oferece aos mineiros que o encontram dicas sobre o trabalho nos túneis.

Tesouro da Fazendo de Retiro - De acordo com outra lenda contada na cidade, a Fazenda do Retiro, em Mariana, era assombrada por espíritos que arrastavam correntes de ferro e emitiam sons, traduzindo as lamentações de escravos torturados. O último morador do lugar, Antônio Fernandes Ribeiro do Carmo, ouviu, à noite, um grito. Perguntou o que as almas

queriam e ouviu, de volta, uma indagação: elas poderiam deixar o lugar? Antônio Ribeiro do Carmo respondeu que sim. Foi o bastante para que, à sua frente, caísse, subitamente, um braço humano. Logo depois, em cada lugar do quarto, caía um pedaço de corpo humano, até que, finalmente, caiu a cabeça, que lhe disse: “Procure suavizar a pena dos que padecem no outro mundo porque se negaram a socorrer os necessitados, embora acumulando riqueza. Ajuntaram muito ouro que não puderam carregar. Nesta fazenda está oculto um grande tesouro, que a ganância dos condenados escondeu.” Depois disso, vários moradores da região se instalaram na Fazenda do Retiro,

Maria Sabão – Essa assombração se esconde até os dias de hoje em uma rua do distrito de Passagem de Mariana, próximo a uma mina abandonada. Na época da extração de minério, contam que uma mulher dividia espaço com os escravos que trabalhavam na mineração. Porém, sua tarefa era fazer sabão com o sebo que levava para o local. Como era comum encontrar meninos malcriados trabalhando nas minas, começaram a surgir boatos de que aquela senhora fazia sabão com crianças travessas.

A colonização transformou Mariana em um ponto de encontro de diversas crenças, religiosidades e costumes de vários países do mundo. Até hoje, a população preserva muitas destas característricas, algumas transformadas em lendas, como a seguinte:

– Essa lenda surgiu no final do século XX, após uma eleição municipal em Mariana. A história foi divulgada por meio de um boletim político anônimo, que contava o episódio da prisão do Padre Simim. O sacerdo-

te teria sido encarcerado por ordem do poder público municipal de Acaiaca, condenado por um crime que não havia cometido. Uma maldição então se espalhou, e os perseguidores do clérigo passaram a ser assombrados. Apesar de Padre Simim ter

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na tentativa de encontrar o ouro. Conta-se que, após a ocupação da fazenda, ouviu-se um gemido forte, que teria indicado o lugar em que se encontravam barras de ouro. Ninguém sabe dizer, contudo, quem, afinal, encontrou o tesouro.

Prisão de sacerdote acarreta vingança A maldição do padre Simim

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sido libertado da cadeia por Celso Arinos Motta, em meados da década de 1930 – e a pedido do falecido arcebispo Dom Helvécio Gomes de Oliveira –, contase que, até hoje, existem pessoas que são assombradas pela injustiça cometida.

Descobrimento gera mitos Os mitos surgidos no período da descoberta e do povoamento da região estão relacionados à ampliação do território e descoberta de riquezas. Na região de Minas Gerais foi encontrada grande quantidade de ouro e diamante, o que gerou disputas acirradas pela posse dos minerais. Vitoriosos e derrotados conviviam na mesma região, no meio de intrigas e divergências. Assim, a maior parte das lendas relacionadas a esse período envolve situações marcadas por muita desconfiança, por rivalidades, segredos e discriminação social. A seguir, algumas dessas histórias.

Gaveteiros – Esse mito apresen-

ta duas origens: a primeira versão dá conta de que os moradores da cidade tinham o costume de esconder o prato de comida na gaveta da mesa, para não partilhar a refeição com visitantes inesperados. A segunda versão diz respeito à corrida pela arrecadação de ouro. Conta-se que, nesse período, enquanto os dirigentes de Ouro Preto e Sabará divulgavam a quantidade de metais preciosos adquiridos, os dirigentes de Mariana escondiam os resultados que alcançavam. No dia da contagem da arrecadação das três regiões, Mariana tinha conseguido apurar doze arroubas em pó de ouro – a maior arrecadação entre os três. Diante disso, os “derrotados” só puderam recorrer a insultos e sarcasmos, acusando os marianenses de “gaveteiros” (gente que guardava a língua dentro da gaveta e que juntava ouro a granel), matreiros, maliciosos, sabichões.

Imagem no lombo do burro –

Diz a lenda que a imagem do Senhor dos Passos foi transportada no lombo de um burro do Rio de Janeiro até a Praça Tiradentes, em Ouro Preto. Na época, havia uma controvérsia sobre a qual igreja pertencia a imagem: à Igreja Nossa Senhora do Pilar ou à Igreja Nossa Senhora da Conceição do Antônio Dias. Para resolver a disputa, a imagem foi colocada novamente no lombo do burro e a direção que ele seguisse determinaria quem seria o dono da imagem. O burro seguiu pelo caminho da Igreja do Pilar. Atualmente, a imagem pertence à matriz do Pilar, mas, durante a Semana Santa, há a procissão do Encontro, em que a imagem vai para a Praça Tiradentes e, de lá, segue para a matriz do Antônio Dias, para relembrar o dia que a imagem chegou a Ouro Preto.

R$10 mil a quem conseguir uma foto do monstro

Águas que escondem ser misterioso As atividades de agricultura e pecuária da região, por sua vez, geraram lendas sobre o perigo dos rios, sobre o cuidado com a criação dos animais e o tipo de trabalho rural que predominava na época. Algumas dessas lendas tiveram também a função de preservar o direito ao lazer. Elas revelam ainda os aspectos da riqueza e da miséria, do progresso e do atraso refletidos nessas atividades.

Caboclo d’água – Esse mito ainda cau-

sa pânico na população, apesar de já ser tradicional no cardápio de lendas marianenses. O Caboclo é descrito como um ser cuja forma é uma mistura de galinha, lagartixa e macaco, e, segundo contam, vaga pelos arredores de Mariana, atacando pessoas e animais. Nos últimos quatro anos, um grupo real – a Associação dos Caçadores de Assombração – vem oferecendo uma

recompensa de R$ 10 mil a quem conseguir uma foto do monstro. Entre as ações misteriosas atribuídas ao monstro, estão a morte de um homem em uma represa e o ataque a um idoso de 92 anos. Além disso, há relatos de que ele tenha atacado animais de criação. Para facilitar as buscas, os membros da Associação distribuem pelo município adesivos e desenhos com o “retrato falado” do monstro.

Caboclo d’água é destaque nacional Além do monstro dos rios aparecer em matérias de capa do jornal Espeto há mais de cinco anos, recentemente, foi retratado em vários noticiários mineiros, como Super Notícias e Jornal Alterosa. O “causo” misterioso gerou tanto comentário que virou notícia também em jornais de alcance em todo o país, como Jornal da Band e Jornal Nacional.


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LAMPIÃO D MARIANA, JULHO DE 2011 Edição: Izabella Magalhães e Mateus Fagundes

A procissão das Fábio Seletti

Muitas histórias curiosas envolvem a Procissão das Almas, que acontece todos os anos na Semana Santa, em Mariana. Um dos “causos” (recorrendo ao linguajar do mineiro) é A Procissão do Miserere, escrito por Waldemar dos Santos. Ele conta a história de um cortejo que lembrava os mortos e que, todos os anos, às 23h55, saía da Igreja da Arquiconfraria, na Rua Dom Silvério. Aos poucos, as pessoas foram se acostumando, mas passaram a cogitar a possibilidade de que aquilo fosse a volta dos frades franciscanos que, uma noite, retomariam suas devoções terrenas. Nesse tempo, mudou-se para essa rua uma mulher faladeira, que incomodava todo mundo com suas fofocas e intrigas. Gostava de ficar até altas horas à janela, espiando a vida alheia – até no dia da procissão. Desavisada que era, pensou, nesse dia, que aquilo fosse coisa de vivos, mas foi tomada de surpresa: deparou-se com uma alma que lhe entregou uma vela, pedindo que a guardasse. Na volta, a alma exigiu-lhe o objeto. A fuxiqueira foi pegá-lo e acabou descobrindo que se tratava de um osso, o qual entregou desesperada para o dono. O “defunto revivido” disse energicamente à mulher que “se emendasse”. Passados alguns dias, ela morreu. Religião e medo Segundo Silvana Rapallo, estudante de teologia pastoral pela Arquidiocese de Mariana,

AlmaS Penadas Os mortos retornam à Mariana todos os anos. Moradores da cidade, como o falecido historiador e jornalista Waldemar de Moura Santos e a animadora cultural Hebe Rôla, já registraram histórias curiosas em obras literárias. Entre o medo e o fascínio, os habitantes assistem à procissão que lembra os mortos e que sai às ruas na sexta-feira da paixão Fotos: Águeda Gomes

Na rua Frei Durão, durante a Semana Santa, moradores resgatam a memória da cidade na procissão das almas

Redenção por pesadas penas Outro causo – este contado por Hebe – teria ocorrido no distrito de Padre Viegas. É a história de uma beata que a ninguém permitia aproximar-se dos afazeres paroquiais. E ai de quem tentasse fazê-lo. Foi então que o pároco resolveu desafiá-la: arrumou uma moça muito prendada para ajudá-lo em seus afazeres. A carola não gostou nada e difamou a jovem o quanto pôde, mas ninguém lhe deu fé. Dessa maneira, se apossou dos sapatos do padre e os pôs sob a cama da moça. A

todos demonstrou a cena, acabando com a reputação da inocente. A moça, que estava prestes a se casar, perdeu o noivo e foi expulsa de casa. Sem eira nem beira, morreu pouco tempo depois. A maledicente foi ao velório e, lá mesmo, foi surpreendia pela própria defunta, que, sentada sobre o caixão, disparou: “Eis a mulher que me caluniou. Sou inocente.” Depois voltou para seu descanso eterno. A faladeira arrependeu-se amargamente e foi correndo confessar-se. A

penitência imposta pelo padre: a partir da daquele momento, ela teria que reunir todas as penas de aves que encontrasse ao longo da vida. Deveria, então, colocá-las num balaio, com o qual teria que subir para o ponto mais alto de uma colina. Lá, precisaria espalhá-las. Mais um detalhe: somente quando reunisse todas as penas, estaria redimida. É por isso que ainda se ouve, nas madrugadas de Padre Viegas, uma mulher em procissão, sussurrando: “balaio de penas pesado, balaio pesado...”.

muitas pessoas aderem a religiões a partir do resgate de lendas. Especialmente em Mariana, que é um celeiro de religiosidade”. A Procissão das Almas, por exemplo, foi também uma forma de impor respeito ao ato litúrgico (Sexta-feira da Paixão), muitas vezes por meio do medo – principalmente em tempos antigos. “Nossos antepassados nos metiam medo, queriam que tivéssemos temor a Deus. Hoje entendemos Deus como amor, misericórida”, afirma a estudante. Para ela, o pensamento de épocas passadas permitiu a criação de lendas. “Essas lendas são resultado de uma mistura de fé dos índios, portugueses e africanos”, avalia. Mas o fato é que, ainda hoje, a procissão causa temor. Marlene Maia, atual coordenadora da procissão, conta que viveu uma situação estranha por causa de uma vizinha. A mulher, segundo ela, era da cidade de Belo Horizonte e estava há pouco tempo em Mariana. Era Semana Santa e a vizinha teria ouvido os gemidos vindos da procissão. Os sons assustadores se misturavam ao bater de um bumbo. A mulher apavorada teria corrido até alcançar Marlene. Demonstrando pavor, não quis sequer ficar a par do que realmente acontecia, mesmo depois de ouvir as explicações da amiga sobre a origem do evento. “Ela tinha vindo até mim, dizendo que estava morrendo de medo, isso a ponto de não querer averiguar a procissão comigo”, conta Marlene.

Cortejo resgata folclore marianense Todas as lendas são encenadas durante o trajeto da Procissão das Almas. O evento artístico é organizado todos os anos por Hebe Rôla, professora aposentada e autora da Lenda do Balaio. Ela afirma, contudo, que nem sempre isso foi um ato teatral. “A procissão era de ‘verdade’, não representava os mortos”, explica. Antônio Pacheco, estudioso de lendas, conta que, na década de 1920, essa procissão descia da Igreja da Arquiconfraria, seguia a Rua Dom Silvério e terminava na Praça Minas Gerais. Ele explica que, naquela época, Mariana não tinha luz elétrica. Toda a iluminação dependia dos lampiões. “Os empregados da prefeitura apagavam as luzes e, aí, apareciam as assombrações”, brinca. Esse evento acabou por volta da década de 1940. Já em 1966, o Cônego Pedro Terra, ao lado da moradora Erna Antunes, resolveu retomá-la. “Realizaram essa procissão por três anos seguidos, era algo informal. Uma lenda da cidade que decidimos encenar”, explica Marlene de Souza Maia, que também coordena hoje a Procissão das Almas, pelo Movimento Renovador. Contudo, houve interrupções. “A procissão parou por um tempo, depois que o Cônego Terra e Erna Antunes foram embora”, diz a coordenadora. Retomada Após esses três anos, a procissão só foi retomada na década de

1980. Os artistas plásticos Cristiano Casimiro, Waldir Silva e Mário Pizzati passaram a organizar o evento, mas com uma diferença: ele passou a ter um caráter cênico, preservando as características de um culto religioso. Mesmo nos dias de hoje, o evento mexe com as pessoas. A mestranda em Letras, Karen Amorin, por exemplo, decidiu pesquisá-lo. Segundo ela, a procissão não só atrai a atenção da mídia, como contribui para que os moradores de Mariana preservem as histórias contadas na cidade. Já Frederico Ozanan dos Santos, filho de Waldemar dos Santos, destaca a importância da procissão para a cultura do lugar. “Acho importante (a procissão).Toda civilização tem cultura, tem memória”, argumenta. Marlene Maia acredita que a procissão preserva a memória cultural de Mariana. “Ela (a procissão) desperta a curiosidade pela cultura da cidade”, avalia. A professora Hebe Rôla afirma que algumas pessoas estabeleceram uma relação de fé com o evento. Conta que uma pessoa já chegou a procurá-la, dizendo que, da primeira vez que participou da procissão, estava de cadeira de rodas. Na segunda, de muletas. Na terceira, com uma muleta só. Na quarta, teria caminhado com a ajuda da mãe e da esposa e, da última vez, teria saltado em frente à família. Quem pode explicar?


Desvendar Mariana Edição: Simião castro e douglas gomides | foto: simião castro | concepção: Luana Viana, Lucas Lameira e Simião CAstro

Pedras pelo caminho, música em cada esquina Ritmo, corpo, vida, morte, mito, lenda Um degrau de escada e portas para todos os lugares Sujeitos encarcerados, testemunhas noturnas Uma edificação de saberes como locomotivas nos trilhos Um Cine Theatro, um templo inacabado

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Observadoras discretas da noite Cúmplices das sombras, as lamparinas iluminam e testemunham palavras e gestos

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História contada pelo movimento do corpo A expressão da cultura de Mariana através da dança, legado de seu povo

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De assombrações a sonhos de fortuna Disputa, malícia e fé estimulam a multiplicação de mitos e lendas populares


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