Jornal Lampião - edição 23

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Arte: Deborah Alves

Jornal-laboratório I Jornalismo UFOP I Ano 6 - Edição Nº 23 - Julho de 2016


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Julho de 2016

ARTE: CAROLINA CARLI

EDITORIAL

OMBUDSMAN

Fazer-ver o que nos toca Como ver o mundo e fazerver? Essas são inquietações que nos acompanham durante o percurso de aprendizado no curso de Jornalismo. Por vezes, sentimos um incômodo provocado pela percepção da incapacidade de se falar da realidade do jeito que a sentimos. É sabido que o “ideal da objetividade” caiu por terra, mas temos que conviver com o fato de que nossa tarefa é reportar acontecimentos e as “verdades” próprias deles. E assim vivemos essa busca por aquilo que nunca alcançaremos de fato. O que fazemos é desnaturalizar essa realidade fugidia e empreender o ato de narrar. Nessa operação, as “verdades” se transformam em processo e escrevemos por tentar dar sentido a elas. Sentido, nesse caso, como direção, caminho que é aquele pelo qual nos damos conta das contradições da vida. À vista disso, expomos os problemas e paradoxos que nos tocam e dessa maneira nos tornamos contadores de histórias que se importam com o mundo. É preciso lembrar que primeiro o jornalista é afetado pelas coisas para depois as relatar. Recuperar esse passo inicial que damos até termos um texto publicado é justamente entender que o jornalismo inevitavelmente se afeta.

Portanto, temos que tomar este fato como condição da nossa feitura jornalística e também assumi-lo para pensar nossa ética diante da sociedade. Quando seguimos ao encontro do outro, realizamos nosso ofício. Aprendemos com o filósofo Spinoza que se nesse momento as pessoas aumentam as suas potências de agir no mundo, aí temos um bom encontro. Desse modo, construímos possibilidades para fazer a mudança que queremos. Perceber estas operações faz diferença e é reafirmar as questões éticas que nos movem. Tal qual o velejador Amyr Klink, partimos em direção a terras desconhecidas e retornamos com nossas experiências e narrativas. Em seu livro Mar sem Fim ele diz “Um homem precisa viajar para lugares que não conhece para quebrar essa arrogância que nos faz ver o mundo como o imaginamos, e não simplesmente como é ou pode ser”. Afinal, contar essas histórias é uma tentativa de se reorientar em nossa realidade desconcertante. Partindo disto, a edição 23 do LAMPIÃO se revela como atenta ao que a afeta. Nela damos atenção aos distritos de Mariana e Ouro Preto. Em Antônio Pereira, as mães e filhos abandonados pelos pais trabalhadores temporários de mineradoras. Em Lavras Novas, a obra não concluída

da ponte que dá acesso à localidade. Em Miguel Burnier, a reinvindicação de melhorias na infraestrutura da região quase que esquecida pelo poder público. No especial tocamos em um ponto delicado, traumas. Nele falamos sobre as pessoas que veem-se abaladas psicologicamente pelo rastro da lama em suas vidas e como elas estão fazendo para se reinventar. Essa capacidade de criar modos de vida possíveis que podemos chamar de resistência. Ato que também está presente na iniciativa de um espaço cultural em um bairro periférico que se inscreve fora do circuito turístico de Ouro Preto. Nas outras páginas, mantemos a sintonia com o que acontece em nossa região. As implicações sociais do porte de arma de fogo pela Guarda Municipal de Mariana. Como andam as obras de restauração das igrejas no primeiro município de Minas. E por fim, no ensaio fotográfico, músicos e suas cordas que fazem ecoar pelas ruas, respiros sonoros no corre-corre diário. A partir do que vimos e sentimos, retornamos na esperança de que bons encontros sejam possíveis. Nessa lida, somos tal qual ponte pela qual fazemos as narrativas do outro reverberarem, tornando-as visíveis pela luz de um lampião.

“Estou tentando entender” Natália Goulart*

Na edição 22, “Propriedade de quem”?, o LAMPIÃO (re)volta-se. Trazer, mais uma vez, testemunhos da tragédia que assolou Bento Rodrigues para testemunhar. Problematizar e deixar vir à tona questões do cotidiano que se repetem e violentam a margem todos os dias é, sobretudo, tentar buscar um sentido. Além disso, “trazer a público as exigências para uma sociedade mais justa”, nos diz o editorial da edição anterior. Assim, o LAMPIÃO volta. A escrita, as fotos, tudo ainda elabora. Voltar... Não para resgatar e completar o passado, tarefa impossível, mas, para testemunhar a desmemória, um ‘sopro de vida’. Voltar, para testemunhar o descaso dos governantes locais da região e sua cegueira. Ao ir tentando escrever e entender o fio desse texto, me vieram à memória duas classificações que aprendemos no curso de Jornalismo, mais exatamente, a respeito da notícia. Uma delas é a divisão entre notícia quente ou fria. A notícia quente, e o nome já diz, é a notícia do instante. A fria, digamos que é passada, velha. Nesse sentido, uma norma é imposta ao texto, aos acontecimentos, ao tempo. Ora, o texto jornalístico é só isso, um texto quente ou frio? Do presente ou do passado? Mas, pergunto outra vez e repito uma questão que, acredito, persegue alguns discursos jornalísticos: a escrita jornalística pode, para além das divisões? Já havia dito, ao comentar a edição 21, que é preciso pensar para além do número 2, ou seja, para além do pensamento binário. E o aprisionamento do tempo do texto só faz repetir as polarizações, as caixas. Isso de voltar não diz respeito a

uma notícia fria, velha, mas a uma tentativa de (re)criar, com a palavra, alguns pedaços já esquecidos e que, rapidamente, nós sabemos, perdem valor, se esgotam para alguns. Porém, o tempo do texto é outro, é, na verdade e será, o tempo do leitor. E o tempo do leitor nós não sabemos e, por vezes, nem ele mesmo sabe. Roland Barthes nos abre uma lição, a de que o texto é múltiplo, aberto, possuí várias vozes, é textura, tem camadas, está inscrito em outra instância temporal. Talvez seja preciso que a escrita volte, que o LAMPIÃO volte, como fez na última edição, para então, reinventar-se. É preciso voltar a Bento Rodrigues... Recordar, repetir, elaborar, nos convida Sigmund Freud. “Estou procurado, estou procurando, estou tentando entender”, nos apresenta Clarice Lispector, a travessia, o por vir. *Natália Goulart é jornalista e participou da 1ª edição do LAMPIÃO

FOI MAL A matéria especial “Moradias à margem”, publicada na edição 22 do LAMPIÃO, trouxe dados incorretos. O nome do Conjunto Habitacional em que foram construídas 90 casas é Vila Alegre, e não Alto do Beleza, como foi informado. O bairro de Ouro Preto é São Francisco, não Morro do Santana.

CRÔNICA

O coração que teima em bater Ticiane Alves

Nenhum lugar é tão nosso quanto aquele que nos dá o sentimento de casa. Ofício nenhum é tão bom quanto aquele que nos apaixona. Nunca haverá nenhuma pessoa que nos pareça mais querida do que aquela que escolheu seguir com a gente. A ditadura social nossa de cada dia corrompe as convicções dos humanos sobre o que ser, quem amar e pelo que lutar. Nosso corpo dói em cada esquina. Não adianta tentar explicar o porquê do amor às pequenas certezas da vida, pois outras pessoas, até terem vivido isso, não vão conseguir entender. Ninguém sabe mensurar o quão único era aquele lugarzinho que se perdeu na lama ingrata,

a não ser quem por lá viveu e sentiu a dor de ver sua história se transformar em escombros. É preciso, às vezes, dizer não à opinião de quem julga saber só porque leu em algum lugar que é assim. O jornal é uma esperança para contar o que temos que saber. Contudo, será que é ainda possível fazer um jornalismo diferente, em tempos de padronização da mídia regida por interesses políticos? O jornalismo precisa se apoiar na vontade de querer vencer a sua própria arrogância e dar razão aos que dele realmente precisam. Ver a dor do outro é vital para a continuidade do mundo. Todos entendem isso? A cidade está tão violenta, os amores, tão fugazes, nós sabemos bem. A política está repleta de pes-

JÉSSICA CORONA

soas nas quais a gente não se reconhece. Entretanto, ainda assim há no que acreditar. Existe força vindo das minorias que necessitam aparecer para sobreviver ao caos do dominador. De silenciosos espaços vêm as vozes dos indivíduos que estão à margem do mundo. A pichação do ônibus nos diz que alguém tem sede de mostrar sua arte para o mundo. Há quem não queira se envolver, é fato, mas existem também pessoas que querem usar seu conhecimento, ou mesmo seu prestígio, para fazerem bem ao próximo. Vale a pena contrariar as expectativas de quem é contra a luta do povo oprimido. É urgente a resistência ao que nos toma o direito de escolher dignamente como viver.

Jornal-laboratório produzido pelos alunos do curso de Jornalismo - Instituto de Ciências Sociais e Aplicadas (ICSA)/Universidade Federal de Ouro Preto - Reitor: Prof. Dr. Marcone Jamilson Freitas Souza, - Diretor do ICSA - Prof. Dr. José Benedito Donadon Leal, - Chefe de Departamento: Profa. Dra. Virgínia Alves Carrara, - Presidente do Colegiado de Jornalismo: Profa. Dra. Jan Alyne Barbosa Prado - Professoras Responsáveis: Karina Gomes Barbosa (Reportagem), Ana Carolina Lima Santos (Fotografia) e Talita Aquino (Planejamento Visual) - Editor-chefe: Matheus Santiago - Editora de Texto: Ticiane Alves - Sub-editora de Texto: Luana Carvalho - Editora de Arte: Deborah Alves Editora de Fotografia: Jéssica Corona - Editor Multimídia: André Ferrari - Repórteres: Amanda Granado, Ana Paula Bitencourt, André Nascimento, Caio César Gomes, Caio Franco, Caroline Borges, Iara Campos, Ingryd Rodrigues, Isabela Resende, Janaína Oliveira, Luísa Campos, Mariana Macedo Botão, Mariana Viana, Mateus Carvalho, Priscilla Rocha, Rayssa Amaral - Fotógrafos: Ana Rafaela, Andressa Goulart, Caroline Fernandes, Júlia Rocha, Laís Stefani, Luccas Gabriel, Matheus Gramigna, Paula Locher, Priscila Santos, Samuel Consentino - Diagramadores: Brunello Amorim, Carolina Carli, Gabriela Vilhena, Mariana Ferraz, Moises Mota, Nathalia Fiuza - Repórteres Multimídia: Felipe Augusto Passos Macedo, Mariana Brito - Designer Multimídia: Felipe Nogueira - Repórter Audiovisual: Thatiana Zacarias - Revisão: Anna Chaves, Wendell Soares - Monitoria: Carol Vieira, Caroline Hardt, Clarissa Castro, Hariane Alves - Tiragem: 3000 exemplares - Endereço: Rua do Catete, nº 166, Centro, Mariana – MG. CEP: 35420-000

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Julho de 2016

ARTE: CAROLINA CARLI

CIDADES

Mais armas em Mariana

Além da Polícia Militar, Guarda Municipal também será armada; prazos de implantação e investimentos ainda não estão definidos SAMUEL CONSENTINO

Janaína Oliveira e Rayssa Amaral

Tecnologia para a segurança pública

Atuação. Agentes exercem trabalho preventivo e educativo; armamento amplia natureza das operações

outras instituições ativas no município, que são as polícias Civil e Militar. “As armas só serão utilizadas em situações de conflito, como o caso das armas não letais que foram entregues ao comando.” Com um ano do recebimento das pistolas Sparks, as chamadas armas de choque, só foram utilizadas duas vezes, segundo o comandante, e em casos de legítima defesa dos guardas. Segurança pra quem? Um agente de segurança pública consultado pelo LAMPIÃO acredita que as guardas não deveriam realizar o trabalho da Polícia Militar. Para ele, as mudanças podem causar novos problemas, e não soluções. “O poder de polícia para um guarda municipal é problemático, porque ele não tem prerrogativas de um policial. A partir do momento que se armarem, vão partir para o confronto, não vão acionar a PM. Assim, podem existir o maior dos problemas que é a troca de tiros. Isso pode tirar a vida de pessoas inocentes ou a vida do guarda. Além disso, ele (o guarda) não possui a mesma imunidade que um militar, e isso pode gerar problemas para ele mesmo se algo fugir do controle”, explica. O agente ainda questiona a falta de investimento em efetivo da PM e afirma que o treinamento dado à guarda não é suficiente. “Nesse caso, por que não aumentar o efetivo da Polícia Militar? A PM possui comando, treinamento e ainda assim ocorrem diversas irregularidades. O guarda municipal não tem preparo para se armar, nem é essa a função dele. O próprio nome já diz: a função é de ‘guardar’ o patrimônio, o bem público e auxiliar os serviços de segurança dos municípios”, destaca. Para o secretário municipal de Defesa Social, tenente Braz Azevedo, a falta de um maior efetivo da PM em Mariana tem relação com a crise econômica e a evasão de militares na região. “Tem a questão do investimento, o Estado passa por dificuldades financeiras. Além disso, tem aqueles militares que passam em concursos e são designados para

ficar longe de casa. Existe a vontade de pedir transferência. Então, o efetivo que se forma hoje na PM não dá conta de suprir a necessidade pra fazer frente à criminalidade”, justifica. O efetivo para segurança pública é preocupante na cidade. A Companhia da Polícia Militar de Mariana conta com 72 policiais, distribuídos em quatro locais: Mariana, a cidade de Diogo de Vasconcelos e dois distritos, Santa Rita Durão e Monsenhor Horta. Para o capitão da PM Giovanni Mendes, a guarda cumpre um papel complementar da segurança, que, mesmo armada, não teria a mesma função que a PM. “São duas instituições distintas. A Polícia Militar não tem nenhum convênio com as ações realizadas pela guarda.” Contradições Dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) mostram que todo o Brasil está gastando mais, embora não necessariamente melhor, na área de segurança. As despesas do país com essa finalidade representaram quase R$ 50 bilhões em 2010; em 2003, foram menos da metade, R$ 22,6 bilhões. Apesar do alto investimento, a taxa média brasileira de homicídios aumentou com o passar dos anos. O percentual saltou de 21,9 mortes para cada 100 mil habitantes em 2011 para 28,9 homicídios em 2014. Isso porque, segundo a pesquisa, o país prefere investir mais em repressão do que em prevenção. Segundo informações da Polícia Militar de Mariana, a taxa anual de homicídios entre os anos de 2012 e 2015 não ultrapassou 17 casos. O ano mais violento foi 2014, com 175 ocorrências que envolveram agressões, uso de armas brancas (qualquer tipo de instrumento de ataque ou defesa), além de armas de fogo. O investimento em segurança pública da PM vem do Estado de Minas Gerais. Além das armas calibre .40, a PM ainda dispõe de equipamentos como bastão Tonfa, bastão de madeira, gás de pimenta, bombas de efeito moral, gás lacrimogêneo e balas de borracha.

Já o valor do investimento no uso do armamento pela Guarda Municipal ainda não está previsto. O processo depende da liberação da Polícia Federal e do Convênio de Cooperação Técnica com a Polícia Civil, para saber quanto a Prefeitura deve gastar. Além disso, para se armar, a Guarda de Mariana precisará cumprir requisitos da Polícia Federal como corregedoria Interna, feita pela própria guarda; ouvidoria externa, realizada pela prefeitura; treinamento físico e psicológico, atualizado a cada dois anos, feito por uma escola credenciada pela PF, no caso de MG, a Academia de Polícia Civil de Minas Gerais (Acadepol). Para fiscalizar as etapas desse processo, uma comissão foi criada dentro do órgão e conta com três agentes Franks Ricardo Vieira, João Marcos Oliveira e Júnior Vicente Gomes. O comandante Maurício explica que essa parceria é essencial para diminuir os custos com o armamento da Guarda. Segundo ele, o valor investido ficará em torno de R$ 300 mil. Com a parceria aprovada, o treinamento fica a cargo da Acadepol, o que reduziria em 50% os custos.

Segundo o Capitão da Polícia Militar, Giovanni Mendes, todo o sistema da Polícia Militar é informatizado, utilizando o Registro de Eventos de Defesa Social (Reds), que integra todas as ocorrências a um sistema estadual. O problema do recurso é a falta de integração das Guardas Municipais, que realizam o armazenamento das ocorrências em sistema próprio. Como não está conectado ao sistema estadual, não gera estatísticas sobre criminalidade. Sem outros investimentos pelo Estado para a segurança pública, a PM utiliza a rede social Whatsapp para integrar a comunidade ao trabalho de prevenção de delitos. Em Mariana foram criados dois grupos, “comerciante seguro” e “vizinhos protegidos”. Pela rede, os cidadãos informam a PM sobre os crimes suspeitos, para que uma viatura possa ser enviada para o local. Além do uso de segurança privada, como câmeras e alarmes que ajudam a polícia a identificar suspeitos, existe uma rede de câmeras espalhadas por diversos pontos de Mariana, com uma central que mantém três agentes em quatro turnos para cobrir as filmagens em tempo integral. Mas o que deveria promover a segurança nem sempre é eficaz. Com 32 câmeras, apenas 20 estão funcionando. O restante depende de manutenção pela prefeitura. Segundo o comandante Maurício, o investimento das câmeras ficou em torno de R$ 2 milhões. A posição das câmeras é estudada para serem remanejadas para locais que realmente necessitem de atenção. Além do problema da falta de manutenção, o sistema de vigilância armazena as imagens por apenas 15 dias. Após esse período, as imagens são apagadas.

SAMUEL CONSENTINO

O Estatuto Geral das Guardas Municipais determina alguns princípios básicos de atuação, como proteger de forma preventiva a sociedade civil, garantir os direitos humanos fundamentais, e auxiliar nos serviços de segurança pública. Já no estatuto vigente para outra categoria de segurança pública, a Polícia Militar (PM), a estrutura prioriza conceitos como hierarquia, ordem, disciplina, força e, principalmente, combate. Apesar de ambos não exercerem a mesma função, a lei nº 13.022 de 2014 permite o uso de armas de fogo para as guardas em municípios com mais de 50 mil habitantes. É isso que Mariana, com 60 mil moradores, irá fazer em breve. Embora a medida seja polêmica, principalmente para grupos de direitos humanos, o porte de armas pelas guardas já foi implementado por cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e, recentemente, Belo Horizonte. Além das grandes capitais, Mariana oficializou, no dia 18 de abril, o interesse no armamento da Guarda Municipal. O requerimento n°42/2016, de autoria do presidente da Câmara de Mariana e integrante da guarda, Tenente Freitas (PHS), foi aprovado por unanimidade entre os 15 vereadores. Segundo o comandante da GM, João Maurício Correa da Silva, o pedido veio a partir dos próprios agentes, baseado no Estatuto do Desarmamento, de 2003, que institui as normas gerais para as Guardas Municipais, e que prevê a permissão do armamento para cidades acima de 500 mil habitantes - medida modificada pela lei de 2014. Para debater o tema, no dia dez de maio foi realizada uma audiência pública promovida pela Prefeitura, no Centro de Convenções, com a presença do Ministério Público, das polícias Civil e Militar, da Prefeitura Municipal, além da sociedade civil. Quem falou foi a favor do armamento da GM, que teve a permissão assinada pelo prefeito Duarte Junior (PPS) após a audiência. Segundo o comandante Maurício, Mariana é uma cidade diferente de outros municípios, onde a guarnição é dividida por setores e a equipe local realiza diversos trabalhos com apenas um comando. Os 122 agentes atendem a diversas demandas, como o administrativo, preservação da ordem pública, ações educativas, guarda patrimonial, rondas escolares e a defesa civil. Na atuação, eles se deparam com diversas modalidades de delitos como roubo e apreensão de armas de fogo ilegais com possíveis conflitos. Na tentativa de resguardar a segurança do agente, admitem que diversos chamados não são atendidos. “Vendo a necessidade de prestar uma segurança mais efetiva e pensando na proteção dos agentes, vimos que é primordial ter uma guarda armada e mais treinada para situações de conflito”, destaca o comandante. Maurício ainda esclarece que, com o armamento, o órgão irá realizar o mesmo trabalho, respeitando

Se a Guarda Municipal de Mariana adquirir o armamento, a quantidade de policiais e agentes com porte de armas na cidade pode passar de 72 para 194, quase o triplo da situação atual.

PREÇOS DE EQUIPAMENTOS E ARMAS NÃO LETAIS Bomba de gás lacrimogênio

Spray de pimenta

Colete à prova de balas

R$800,00

De R$29,99 a R$99,90

De R$1000,00 a R$4000,00

Bala de borracha

Granada de luz e som

Pistola Sparks

R$115,00

R$205,22

(cartucho com 12 balas)

R$2100,00

(cada munição R$100,00)

Vigilância. Câmeras monitoram pontos centrais da cidade


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ARTE: NATHALIA FIUZA

DISTRITO

Entre promessas e descaso

Município e Estado liberaram verba para reinvidicação antiga dos moradores de Lavras Novas, mas a obra não foi concluída até hoje LAÍS STEFANI

Atraso. Interrupção no asfaltamento da estrada dos Taboões, prevista para 2013, dificulta acesso a localidades Mariana Macedo Botão

Motoristas que atravessam a ponte todos os dias em caminhões, ônibus, carros e motos têm medo. Quando chove, a lama toma conta do espaço estreito e buracos dificultam a passagem. A obra de asfaltamento entregue, incompleta, no fim de 2012 já precisa de manutenção. Moradores e turistas reclamam da dificuldade causada por buracos e trechos que não foram pavimentados. A reinvidicação é um sonho antigo dos residentes. Dos sete quilômetros que compõem a estrada de acesso a três distritos (Lavras Novas, Santa Rita de Ouro Preto e Santo Antônio do Salto), e que deveriam ser atendidos pela pavimentação, apenas cinco km foram asfaltados. Foram previstas iniciativas da prefeitura e do Governo Estadual. Nenhuma foi concluída.

Além disso, próximo ao quilômetro dois, há uma divisão na estrada que está esquecida: a ponte. Conhecida como “Ponte do Rio Falcão” ou “Ponte dos Taboões”, tinha reforma integrada ao projeto de asfaltamento. De acordo com a licitação 19/2011, aprovada pela Comissão Permanente de Licitação de Ouro Preto em 14 de fevereiro de 2012, a Etros Engenharia estava apta a receber o valor de R$ 3.465.650,15 para realizar a obra completa da estrada. Segundo o engenheiro Renilson Martins, servidor da Prefeitura de Ouro Preto encarregado de fiscalizar e controlar a execução dos serviços, a obra foi interrompida devido à mudança de governo. Júlio Maia, 52 anos, morador do distrito, contrapõe esse argumento e diz que a gestão passada chegou a inaugurar o trajeto inacabado e mal feito. O

ex-prefeito Ângelo Oswaldo mandou rezar uma missa no local, ainda sem finalizar os trabalhos. Júlio César Ribeiro dos Reis, atual secretário de Obras de Ouro Preto, não respondeu até o fechamento da edição por que a reforma da estrada de Lavras Novas não continuou em 2013, mesmo com o dinheiro liberado. O projeto da Epsilon Engenharia, aprovado na licitação, já alertava para importância do asfaltamento da área e do alargamento da ponte desde 2012, época em que o distrito recebia o triplo da população aos fins de semana e cerca de 500 carros passavam pela estrada. De acordo com a visão do projeto, calculou-se uma taxa de aumento do volume de carros em 2,5% ao ano. Para os moradores o descaso é perceptível. “Perdi a esperança politicamente” reitera Manoel Maia, 75, morador .

Pavimentação A obra começou em março de 2012. A empresa Etros Engenharia, vencedora da licitação, ficou responsável por pavimentar 5,3 km da estrada, incluindo a ponte. Mas isso não aconteceu. O LAMPIÃO apurou que há menos de três cm de asfalto em alguns trechos, enquanto o projeto estabelece cinco cm de espessura, seguindo a norma 031/2006 do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (DNIT). “Não vi engenheiros medindo asfalto e nem a ponte, até porque ela nunca foi feita. O que vi foi uma obra eleitoreira, na maior rapidez”, diz Júlio Maia. Os taludes deveriam garantir a estabilidade da encosta para não acontecer deslizamento de terra na estrada, mas já estão caídos. Oscar Neves, morador do distrito, relata que a Prefeitura de Ouro

Preto joga terra na estrada e na ponte para tentar amenizar a profundidade dos buracos. O problema é que a terra escoa com a água da chuva e traz consequências para o Rio Falcão, como o assoreamento. Ponte Oscar sofre com a poeira avermelhada diariamente. Por morar em uma casa quase em frente à ponte, acompanha o aumento do volume de carros durante feriados e fins de semana e diz que o trecho já chegou a ficar engarrafado, impossibilitando a passagem. De acordo com a proposta da Etros Engenharia, o valor destinado à reforma da ponte foi de R$ 67.828,27. Porém segundo todos os moradores entrevistados, a ponte nunca foi reformada. O LAMPIÃO solicitou as medições e relatórios dessa obra mas a Secretaria de Obras de Ouro Preto afirmou que os documentos não se encontram no órgão. Contradições Renzo Luciola, diretor financeiro da Etros, afirma que o ex-prefeito Ângelo Oswaldo mandou parar a obra pela necessidade de uma licença ambiental. Porém, a licença emitida pela Secretaria de Estado do Meio Ambiente foi entregue por Ângelo Oswaldo, perto do fim do mandato, pessoalmente a Wander Lessa, então presidente da Mesa Administrativa Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres de Lavras Novas. “Os moradores querem saber o real motivo pelo qual não foi dado andamento da obra naqueles trechos”, diz Wander. Em entrevista, Renzo afirma que recibos da obra já estão no “arquivo morto” e não

se lembra quanto foi pago pela prefeitura. No entanto, no contrato a Etros assume a responsabilidade de prestar manutenção até cinco anos após entrega. Isso significa que tem que corrigir e reconstruir imediatamente toda ou parte da estrada em que se verificarem os defeitos. O LAMPIÃO recebeu de um morador de Lavras Novas um dossiê que aponta R$ 3.465.650,15 em tabela de pagamentos da prefeitura, montante similar ao valor da licitação. Contudo, no site da Transparência da Prefeitura não há dados de pagamentos de 2011 e 2012, mas em 2013 há R$ 46.601,55 destinados à Etros Engenharia também para obras de pavimentação. Caminhos de Minas O Governo Estadual, por meio do Departamento de Estradas e Rodagens de Minas Gerais (DER/MG), custearia o calçamento de 1,8 km da estrada, trecho que faz parte da Serra de Lavras Novas. Em áudios divulgados pelo Jornal Tribuna Livre em 2012, Ângelo Oswaldo confirma a participação no programa Caminhos de Minas, previsto para terminar em março de 2013. Até hoje, nenhum quilômetro do trecho foi calçado. No site do DER consta ainda o valor de R$ 1,5 milhão para asfaltamento do distrito, referente a uma licitação de 2009. Por meio da assessoria da Secretaria de Cultura de MG, Ângelo Oswaldo informa que tomou “todas as medidas cabíveis e pertinentes à conclusão da obra” e destaca o princípio da continuidade da administração pública. A Prefeitura de Ouro Preto não respondeu a reportagem.

População pede melhorias Localizado a cerca de 40 km de Ouro Preto, Miguel Burnier é o distrito de maior extensão territorial dos 13 pertencentes à cidade. O acesso se dá por estradas de terra e no caminho é possível reconhecer a ação mineradora na região, que vem desde o século XVIII e hoje se concretiza com a empresa Gerdau Açominas, atuante desde o início dos anos 2000. O distrito sempre teve a ocupação urbana associada à exploração de recursos naturais e passa por um acelerado êxodo populacional. Apesar do fenômeno urbano, a população local resiste e atualmente conta com 256 habitantes. No entanto, enfrenta diversos problemas referentes à qualidade da vida precária e encara dificuldades para atender suas demandas. Para o morador Valdir Pinto da Rocha existe déficit de serviços e muitas questões urgentes a serem atendidas, como educação, saúde, transporte e asfaltamento da região. Foram esses problemas que levaram os moradores a procurar o promotor de

justiça Domingos Ventura de Miranda Júnior, da 4ª vara da Comarca de Ouro Preto. Ao saberem que uma verba seria liberada para a restauração de uma igreja e de um forno, herança da antiga Usina Wigg na região, habitantes de Miguel Burnier pediram que o dinheiro fosse revertido na pavimentação das vias que levam à cidade, já que a poeira levantada pelos caminhões é a maior queixa dos residentes. Para eles, é necessário que os problemas do distrito sejam resolvidos primeiro, para depois investirem no patrimônio. “Essas verbas são investimentos da Gerdau para cumprir condicionantes ambientais, estipuladas em 2013 em um contrato com a Prefeitura de Ouro Preto, e fazem parte de medidas paralelas aos investimentos públicos, de modo que o dinheiro não pode ser revertido para outro fim”, esclarece o promotor. Segundo ele, o contrato prevê uma série de ações ambientais e culturais para que a empresa continue atuando na região. Dentre essas condicionantes estão a reforma da estação ferroviária do distrito, a

musealização da antiga Usina Wigg e a apresentação de proposta de restauração e estudos visando o tombamento das igrejas Nossa Senhora Auxiliadora dos Calastróis e Nossa Senhora do Chiqueiro dos Alemães, ambas do século XVIII. A Gerdau não se manifestou sobre o assunto. A fiscalização da empresa é responsabilidade do município de Ouro Preto, assim como a prestação de qualidade de serviços à região. Apesar das iniciativas, é impossível não notar o abandono e descaso em Miguel Burnier. “Muitas vezes faltam as coisas, as ruas, a iluminação, alguma área de lazer que aqui a gente não tem. Tem também a escola, que só vai até o 9º ano, depois temos que nos deslocar até Congonhas, enfrentando a BR-040 toda dia, um trecho perigoso, no meio da mineração da Gerdau. Contudo a questão mais importante é a saúde”, elenca Walyson Roberto de São Severino Bonifácio, 20 anos. “Meu avô está com 80 anos e tem que se deslocar daqui para Cachoeira do Campo para fazer um exame de sangue. O postinho

(posto de saúde da região) só faz o básico”, reclama. A apropriação da mineradora sobre a região é outro assunto recorrente. Na tentativa de preservar o distrito, o governo do estado toma medidas junto a órgãos federais. Desde 2012 são feitos licenciamentos ambientais que visam expandir o empreendimento da Gerdau Açominas acompanhados pelo Ministério Público. Neles constam

diversos possíveis impactos ambientais como redução da abundância e riqueza das espécies, alteração da qualidade da água distribuída, dos níveis de qualidade do ar pela emissão de gases e da pressão sonora por conta do aumento dos equipamentos usados. Essa expansão também geraria mais incômodos aos moradores, devido ao aumento do ruído e da poeira pelo maior tráfego de veículos de grande

porte, além da possibilidade de acidentes envolvendo a população que circula com frequência nas proximidades da empresa. Algumas das condicionantes são cumpridas, no entanto é preciso um constante acompanhamento dos empreendimentos da Gerdau. “Esses licenciamentos estão em andamento para não permitir que o crescimento da mineração sufoque o distrito”, relata o promotor.

ANA RAFAELA

Caroline Borges

Precariedade. Distrito de Miguel Burnier sofre com negligência do poder público


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ARTE: NATHALIA FIUZA

DISTRITO ANDRESSA GOULART

Desamparo. Ana Laura e Cristiana compartilham drama de maternidade marcada pela carência da figura paterna de homens que trabalharam e foram embora da região

Os filhos da mineração Priscilla Rocha

Com cerca de 4.500 habitantes, o distrito de Antônio Pereira recebe um grande fluxo de trabalhadores durante as chamadas “expansões” das mineradoras. A população flutuante, que chega a milhares durante os meses de atividade, vem de diversos lugares do país e se hospeda em alojamentos garantidos pelas empresas. Com o distrito cheio, é comum o envolvimento entre as mulheres locais e esses homens. Às vezes, a relação resulta em uma gestação não planejada, em muitos casos marcada pelo abandono paterno. A incidência da partida do pai após a descoberta da gravidez em Antônio Pereira é grande. Quando encerram a atividade para a qual foram contratados, esses trabalhadores voltam para suas cidades e não prestam auxílio às mulheres. Muitos fornecem informações falsas a fim de não serem encontrados pelas mães dos filhos que abandonam no distrito. Assim, retornam para suas vidas, suas famílias, e desprezam mães e filhos que deixam para trás. Em agosto de 1991, prestes a completar 30 anos, Maria da Lapa conheceu José, recém-chegado à cidade para trabalhar durante alguns meses. “Fidel”, como era chamado, rapidamente se tornou amigo da família, quando auxiliava nos cuidados do patriarca, que sofria de um grave quadro de trombose e perdera grande parte dos movimentos. Em uma das noites, após apagarem as luzes da casa, ele foi até o sofá onde Maria dormia e a despiu sem seu consentimento. “Não sei o que me deu na cabeça, eu não queria, mas não tive reação. Não mandei parar. Não sei explicar como aconteceu”, lembra. A relação sexual, que durou “segundos”, foi o suficiente para gerar uma criança. “Tentei empurrar ele, ele tentou me abraçar e não deixei. E aí morreu o assunto.” Eles nunca mais tiveram qualquer tipo de contato físico. Três meses depois, veio a desconfiança da gravidez, confirmada com um teste. “Entrei em um desespero total, ficava pensando que filho eu queria, mas não dessa forma. Eu queria planejar um pai.” Assustada com o que enfrentaria a seguir, desabafou com uma amiga e em pouco tempo a notícia se espalhou. Maria havia conhecido um rapaz no casamento de seu primo e começaram a namorar. Ao ouvir os rumores da gravidez da companheira pelo boca a boca dos mineradores, o namorado foi embora sem se despedir. “Ele nunca nem ouviu de

mim, sumiu sem falar nada. E tive que segurar tudo sozinha”, revela. Na época, funcionária de uma entidade filantrópica mantida pelo auxílio de igrejas, Maria foi demitida, grávida, porque “iria envergonhar as crianças da associação”. Mesmo acionando a Justiça do Trabalho, o ex-patrão não compareceu à audiência e não cumpriu o acordo financeiro proposto. Os fiéis da igreja que ela frequentava exigiram do pastor que a expulsasse, considerando sua conduta “inadequada” para uma cristã. Maria lidou ainda com a desconfiança de José, que negava ser o pai da criança. Com a finalização do serviço em Antônio Pereira, foi embora com a promessa de que voltaria em breve para conhecer e registrar a filha. Nunca mais voltou. “Consegui superar o que passei na gravidez depois que ela nasceu”, recorda.

ça e exames de DNA, caso o pai não compareça voluntariamente ao cartório para tratar de suas obrigações referentes ao filho gerado. Em Ouro Preto, o Juizado da Criança e do Adolescente e o Fórum Cível oferecem orientação para a solução desses conflitos ocasionados durante ou após a gestação. Depois do registro, é preciso entrar em acordo sobre a guarda e questões financeiras. “A criança tem direito à pensão alimentícia, que é de responsabilidade do pai e da mãe. Ambos precisam contribuir e têm responsabilidades para com a manutenção daquele filho”, esclarece Iara. Direito requerido por Nicole* e sua mãe, Ana Laura*. Mesmo registrada, o pai nunca auxiliou nas despesas da filha, hoje com 20 anos. “Quando a Nicole fez 17 anos, ele deu a entender que estava interessado, chamando de ‘minha filha’ e isso e aquilo. Quando o juiz determinou o pagamento de pensão, sumiu. Apareceu pedindo o DNA”, conta Ana Laura, que tem outros dois filhos também de relações com trabalhadores da mineração. “Entrei na Justiça porque achei um desaforo. Ele criou os dois outros filhos que tem e nunca ofereceu ajuda a minha mãe, foi ela que sempre me deu tudo, foi mãe e pai”, revela Nicole. Embora a negligência do pai não tenha interferido na vida de Ana Laura e Nicole, de acordo com a psicóloga Daniela Freire é recorrente a existência de um trauma, quando o grande prejuízo para mãe e filho é a questão afetiva. “O desenvolvimento humano se dá a partir das relações parentais. Quando o pai interrompe esse processo, a mulher que se sente enganada pode sofrer os malefícios do abandono, como de-

Entrei em um desespero total, ficava pensando que filho eu queria, mas não dessa forma. Eu queria planejar um pai.” Maria da Lapa

Seis anos depois, Maria descobriu a localização de José com a ajuda de antigos patrões dele e levou a filha, de surpresa, para conhecê-lo. Ele se justificou, alegando que “não deu” para visitá-las no tempo que passou. Esse foi o único contato entre pai e filha, que recém completou 24 anos, em meio à quinta tentativa de conciliação na Justiça, para o registro na certidão de nascimento. Realidade semelhante à de Cristiana*, que engravidou aos 18 anos, durante uma breve relação com um minerador. Já separados após a descoberta da gestação, o pai permaneceu em Antônio Pereira e não assumiu o filho. A criança conta com o auxílio dos avós, responsáveis pelos cuidados enquanto a mãe trabalha durante todo o dia para arcar com as despesas. Cristiana descarta a possibilidade do pai a procurar e assumir o menino de dois anos. “Ele não cuida nem do outro filho dele, que teve com outra mulher, não vai cuidar do meu”, sentencia. Especialista em Direito das Famílias, Iara Antunes de Souza adverte que é necessário dados pessoais, como no mínimo nome completo e localização do suposto pai para requerer a paternidade. “A mãe pode chamá-lo amigavelmente no cartório para o registro. Caso ele não compareça, o Ministério Público tem uma ação de perfilhação compulsória, que é a obrigação legal de investigar a paternidade da criança.” Esse trâmite pode envolver a justi-

pressão durante ou após o parto ou até um afastamento da função materna. Pode haver uma posição da mãe em rejeitar o filho por não ser uma criança desejada, já que o pai não está mais ali”, explica. Para tentar combater a incidência de gravidez indesejada no distrito, as empresas apostam em cursos sobre educação sexual nas escolas como forma de orientar sobre os diversos métodos contraceptivos. “São proibidas festas e a entrada de mulheres nos alojamentos. É claro que toda regra tem sua exceção, mas se o trabalhador for denunciado, ele é demitido”, conta Sônia Carvalho, técnica do Centro de Referência de Assistência Social de Antônio Pereira. Quando a Nicole fez 17 anos, ele deu a entender que estava interessado, chamando de ‘minha filha’ e isso e aquilo. Quando o juiz determinou o pagamento de pensão, sumiu. Apareceu pedindo o DNA”. Ana Laura

No entanto, as empresas não se comprometem com as mães deixadas em Antônio Pereira. O auxílio na investigação do paradeiro do pai é viável, já que os dados dos trabalhadores são obrigatoriamente registrados durante o processo de contratação. Muitas mulheres não sabem por onde começar a busca, quando a justiça precisa apenas de informações simples, como nome, endereço e número de documento para localizar e dar entrada no processo de registro de paternidade.

O histórico de filhos deixados com as mães é grande. De acordo o Censo Escolar 2012, mais de 5 milhões de crianças não têm o nome do pai na certidão de nascimento. É feita vista grossa para uma cultura de abandono paterno que é comum, mas não normal. De acordo com a professora de Serviço Social Sara Martins, é cobrado da mulher o amor e cuidado pela criança, eximindo o pai da função. “O homem pode sair e ganhar o mundo, viajar, estudar, trabalhar fora. Ele não precisa ter esse compromisso com os filhos, porque não é dado a ele o papel de amor incondicional e de afeto. Isso que aparece naturalizado é construído a partir da exploração do homem sobre a mulher”, acredita. A responsabilidade da criação é um dever que não deve ser negligenciado ou cumprido por apenas uma das partes, e recusas ao reconhecimento legal são injustificadas e ilegítimas, afirmam as especialistas. O afeto familiar é um direito fundamental da criança garantido pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, e é independente das condições em que foi gerada. “Há essa ideia de que o homem pode abandonar, materialmente e afetivamente. Isso tem a ver com uma cultura extremamente patriarcal e que resulta no machismo, que vai criminalizar e culpar a mulher. Isso é muito comum”, explica Sara. A pesquisadora lembra que, nessa cultura, o julgamento vai sempre sobre a mulher: “A mulher que não se preveniu, que não se cuidou, que não evitou a gravidez. A culpa vai ser sempre da mulher”. *Nomes fictícios para preservar a identidade das crianças.

ANDRESSA GOULART

Histórias das mulheres de Antônio Pereira abandonadas grávidas

Memória. Maria recorda com carinho trajetória com filha, apesar de sofrer com ausência do pai da menina


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ARTE: GABRIELA VILHENA

Marcas invisíveis Texto: Luísa Campos e Mariana Viana Fotografia: Paula Locher

“Não tenho vontade nenhuma de sair de casa. Parece que fico vigiando alguma coisa. Tenho a sensação de que não posso sair daqui.” A vigília de Elaine Etrusco, 61 anos, tem início todas as noites. Desde que o quintal foi invadido pela lama da Barragem de Fundão, na madrugada do dia 6 de novembro de 2015, as horas de sono da professora foram alternadas para o dia. Elaine passa as madrugadas em claro e se descobriu em permanente estado de atenção, com o sentimento frequente “de que algo ainda está por vir”. A casa passou por gerações da família Etrusco, guardando memórias nos detalhes de cada cômodo e nas fotografias do passado. O quintal acolhia um pomar, uma horta e a criação de pequenos animais. O terreno termina no Rio do Carmo, afluente do Rio Doce, que teve a correnteza tingida de marrom após o rompimento da barragem. Com a corrente d’água veio a lama e, com ela, o medo de perder as recordações da família. Os objetos ainda encaixotados são reflexo da espera atenta da professora. “Posso perdê-los a qualquer hora.” Hoje, Elaine luta para recuperar o pomar, os pés de feijão, o sono e a esperança no futuro. De acordo com a Samarco, um Mapa de Ação “específico para as demandas da localidade”, foi desenvolvido com foco em projetos humanitários em Barra Longa. Dentre as ações estão a entrega de 67 casas e 26 estabelecimentos comerciais, a reforma,

em andamento, de outros 33 imóveis, a distribuição de 249 cartões para auxílio financeiro, a entrega de 3 mil cestas básicas e o fornecimento de 9 mil litros de material de limpeza. Moradores reclamam que o diálogo com a empresa não acontece de forma humanizada. “Eles falam em obra, eu falo em sentimentos. Eles falam em cerca, eu falo nos meus pés de feijão. Toda hora eles vêm me perguntar o que eu quero plantar no meu quintal. Ninguém nunca me perguntou o que quero plantar no meu coração”, afirma Elaine. Odete Cassiano, 58, se mudou para Barra Longa há oito anos. Sempre viveu na zona rural, onde trabalhava com o cultivo de hortas e árvores frutíferas. Ela escolheu um terreno à beira do Rio do Carmo e planejou plantar, nos fundos da casa, todos os vegetais e frutas que possuía no antigo quintal. Além da aposentada rural, na residência viviam seus pais, ambos com 87 anos. A lama que atingiu Barra Longa destruiu o pomar e ocupou todo o porão de Odete. Após o trauma, ela teve o quadro de depressão agravado e viveu os meses seguintes com auxílio psicológico e medicamentos. A psicóloga e especialista em Saúde Mental Pós-Trauma Lilian Garate comenta que, assim como a Barragem de Fundão, as histórias dos atingidos foram rompidas. “O desastre rompe o domínio do indivíduo com a própria vida.” Odete enfrentou momentos difíceis, tentando cuidar de si e dos pais em meio à destruição. Parte da identidade da moradora foi perdida quando a lama desmanchou toda a plantação. Foram meses turbulentos que culminaram na tentativa de dar fim à

No dia 6 de novembro de 2015 a lama de rejeitos da Barragem de Fundão chegou a Barra Longa, a 60km de Mariana. Plantações, animais, casas e histórias foram dizimados conforme o barro avançava pelo município. Sete meses depois, ainda há lama para ser retirada, casas para serem reconstruídas e espaços públicos em recuperação. O percurso da lama pelo município alterou a vida dos moradores. As cicatrizes internas causadas por um trauma não são quantificadas. A saúde mental dos barralonguenses não aparece nos dossiês nem nas estatísticas oficiais.

própria vida. O apoio da família foi essencial para Odete superar o ponto mais grave da depressão. “Se meu filho não tivesse ficado três meses comigo, eu teria feito alguma coisa, não estaria aqui para contar história.” Ela ainda lida com os reflexos do trauma e recebe tratamento de profissionais da saúde mental contratados pela Samarco. Entretanto, Odete reclama do abandono das autoridades e da mineradora frente ao caos instalado em Barra Longa. “Somos atingidos pela lama, atingidos pelo governo. Nossos direitos foram todos violados.” As marcas invisíveis, após a perda de objetos, certezas e sentimentos, são compartilhadas por diversos moradores, que resistem em manter identidades em uma cidade transformada em canteiro de obras. Desde novembro de 2015, a Samarco contratou cerca de 500 funcionários para remover a lama do município. Com esse acréscimo populacional, os moradores afirmam que a tranquilidade cotidiana foi substituída pelo ritmo de trabalho da mineradora. Além das obras para reconstrução do município, consta no Mapa de Ações a contratação de profissionais para atendimento à saúde física e mental dos atingidos. Procurada pelo LAMPIÃO para especificar as ações, a mineradora informou que “desenvolveu um plano prevendo todas as ações necessárias nas cidades de Mariana e Barra Longa”. De acordo com a empresa, foram contratados 27 profissionais especializados em saúde mental. Somente Mariana recebeu 24 desses profissionais, sendo um psiquiatra, 11 psicólogos, três assistentes sociais, sete terapeutas ocupacionais e dois arteterapeutas. Para Barra Longa, a mineradora destinou apenas um psiquiatra e dois psicólogos. Descaso Maria Aparecida, 38, é conhecida em Barra Longa como Cidinha. Cabeleireira há 14 anos, não mora nem trabalha na beira do Rio do Carmo, porém convive com os impactos da lama na cidade. Ela criou os quatro filhos e construiu a casa com a renda do salão. Hoje, tem dificuldade para dormir. Com o rompimento da barragem, o número de clientes no estabelecimento diminuiu cerca de 30% e as dívidas surgiram. A cabeleireira atribui a queda na clientela à falta de eventos sociais e ao fechamento de espaços coletivos, devastados pela lama. Agora ganhando mensalmente cerca de R$ 1.000, Cidinha se preocupa em manter o bom nome. A moradora não recebe o cartão de auxílio financeiro da Samarco. Segundo ela, a empresa não a considera diretamente atingida. Manoel Trindade, 60, é artesão e teve a produção afetada pelo estresse. “Tenho um ateliê no fundo de casa. Com essa barulheira de caminhão, máquinas e de operário, não consigo produzir, minha mente não tem sossego.” O morador afirma que a empresa não ofereceu apoio psicológico domiciliar, como estava previsto no Plano de Ação. Manoel conta que ligou para a central de atendimento da Samarco e nenhum profissional da saúde mental foi atendê-lo em casa. Na segunda ligação, o morador foi informado que teria que ir à policlínica para agendar um atendimento em consultório. “É obrigação da Samarco trazer um psicólogo na minha casa pra eu conversar”.


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ARTE: GABRIELA VILHENA

Somos atingidos pela lama, atingidos pelo governo. Nossos direitos foram todos violados’’. Odete Cassiano

Nenhuma autoridade nos avisou sobre o risco da lama. Falaram que não chegaria nem na pracinha, por isso não saímos de casa.’’ Íris Lana

Com essa barulheira de caminhão, máquinas e de operário, não consigo produzir, minha mente não tem sossego.” Manoel Trindade

Eles falam em obra, eu falo em sentimentos. Eles falam em cerca, eu falo nos meus pés de feijão. Toda hora eles vêm me perguntar o que eu quero plantar no meu quintal. Ninguém nunca me perguntou o que quero plantar no meu coração’’ Elaine Etrusco

O estresse e as mudanças de humor e do sono, compartilhados por Elaine, Cidinha, Odete e Manoel, são os sinais internos da passagem da lama pela cidade. De acordo com a psicóloga Lilian Garate, são sintomas de um trauma alterações no sono, no apetite, sentimento permanente de ameaça, estresse agudo, palpitação e falta de ar. “Se eles persistirem após quatro meses do evento traumático, já podem ser considerados um indício da Síndrome do Stress Pós-Traumático.” “Nenhuma autoridade nos avisou sobre o risco da lama. Falaram que não chegaria nem na pracinha, por isso não saímos de casa.” Íris Lana, 67, só conseguiu deixar a casa no dia 7 de novembro, quando três moradores a buscaram de canoa. A bordadeira mora às margens do Rio do Carmo. No local, a lama avançou pelo quintal, destruiu plantações, atravessou a casa e chegou à altura das janelas. Todos os objetos foram perdidos. Porém para Íris, o valor material tem menor importância do que as memórias. “Foi muito triste sair da minha casa e deixar tudo pra trás, mas a perda material não é tanta. Tinha muitas fotos do meu filho que morreu, do meu pai, e objetos de família.” Íris foi, por muitos anos, presidente da Associação de Bordadeiras de Barra Longa e enxerga a arte de tecer como terapia, que ajuda a enfrentar os traumas. A bordadeira convive com a Doença de Parkinson e, após o rompimento de Fundão, o quadro piorou. “Não estava andando nem falando, piorei muito. Todo mundo ficou preocupado.” O quadro de Maria Geralda Bento, 78, também piorou após o rompimento. A lama invadiu sua propriedade em Gesteira, distrito de Barra Longa, onde os 35 membros da família se reuniam aos fins de semana. Mãe, avó e bisavó, Geralda sente o afastamento familiar, já que a casa ampla foi substituída por um apartamento de dois quartos, alugado pela Samarco. Além disso, os problemas cardíacos e a osteoporose se agravaram. Os remédios que utiliza não são pagos pela empresa, que exige provas para considerar a piora de quadro uma consequência da tragédia. A dona de casa passou a ser acompanhada por um ortopedista e um fisioterapeuta, ambos em Ponte Nova. A psicóloga Lilian Garate pondera que históricos clínicos podem se agravar em consequência da experiência traumática. Além disso, se não houver acompanhamento, o trauma pode aumentar a intensidade das marcas internas de um indivíduo. De acordo com a Secretaria de Saúde de Barra Longa, as consultas com psicólogos e psiquiatras acontecem na policlínica da cidade. A psicóloga Laura Lana atende diariamente no centro de saúde. Desde novembro, a profissional já realizou mais de 500 consultas e os transtornos mentais detectados na população variam entre insônia, ansiedade, depressão, sinais de estresse pós-traumático e aumento do alcoolismo. Segundo a psicóloga, a insônia foi a maior queixa dos moradores. Muitos ficavam com medo de dormir à noite, já que a lama atingiu a localidade durante a madrugada. Posteriormente, os quadros avançaram para a ansiedade, que atualmente “parece estar aumentando. As pessoas querem ir logo para as suas casas e ver o quintal reconstruído. Querem retomar o antigo ritmo de vida”, afirma Laura. Casos de depressão também são identificados. Já o psiquiatra contratado pela Samarco Leonardo Magalhães afirma que somente identificou quadros temporários de estresse póstraumático. O profissional reitera que desenvolveu, junto com a psicóloga do centro de saúde, um plano de acompanhamento direcionado aos atingidos pela lama. Os atendimentos psiquiátricos acontecem uma vez por semana, na policlínica da cidade. De acordo com o profissional, a carga horária destinada para serviços psiquiátricos na policlínica de Barra Longa é adequada para a demandados atingidos e do restante dos moradores. “Trabalho 40 horas mensais, 10 horas semanais. Ofereço um tratamento justo e necessário para a população.” A psicóloga Lilian Garate aponta que “o emponderamento dos atingidos é fundamental para que eles se sintam novamente donos da própria vida”. Odete Cassiano participa do Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB), desde dezembro de 2015, e credita à organização parte de sua recuperação. “Tomei conhecimento dos meus direitos.” O movimento tem atuado na região desde o rompimento de Fundão para esclarecer os moradores sobre os impactos sociais e ambientais, além de impulsionar a força da coletividade. O coordenador do MAB Thiago Alves atua junto à comunidade de Barra Longa, e afirma que a dimensão da destruição da lama na cidade invadiu esferas da sociedade e do bem estar mental. “A lama transbordou a vida social.” Procurada pelo LAMPIÃO, a Secretaria de Estado de Saúde de Minas Gerais informa que “não há nenhuma evidência até o momento de agravos (psicossociais) que possam ser relacionados ao rompimento da barragem, bem como não há relatos de suicídios conectados ao evento”. Em nota, a Samarco afirma desconhecer dados sobre suicídios, assim como tentativas. “Nenhum estudo foi apresentado à empresa pelos órgãos ou entidades da área da saúde.” Até o fechamento desta edição, a Secretaria de Saúde de Barra Longa não se manifestou sobre o andamento dos atendimentos psicológicos e psiquiátricos, e não informou a respeito de projetos voltados para a saúde mental da população.

Medo de dormir sem a mãe João Pedro, 6, não sabia o que era uma “varragem”. Enquanto a mãe, Paula, zarpava na moto ‘’Berenice’’ pelas ruas de Bento Rodrigues, avisando aos moradores que a Barragem de Fundão rompera, o menino corria ao lado da avó, Maria Lúcia, para uma região inclinada. As perninhas não davam conta da velocidade e a cabecinha curiosa tentava entender o que se passava naquela situação incompreensível. Após sete meses, o estrondo da força da lama ainda está presente nos dias de João. Ao ouvir barulho de chuva, helicóptero ou trator, o menino repete “barragem de novo, não!”. A mãe conta que João precisou de acompanhamento psicológico para enfrentar o medo de ruídos que se assemelham ao rompimento da barragem. Paula afirma que ao longo do auxílio psicológico, o filho foi superando o medo de ruídos, mas mesmo assim não consegue dormir sozinho. “Em Bento ele dormia no mesmo quarto que eu, mas na cama dele”, relembra. Além disso, a família tem observado que João apresenta sintomas de ansiedade. Mesmo vivendo em Mariana desde janeiro, Maria Lúcia e Paula não se familiarizaram com a cidade. Consideram-se pertencentes a Bento e saem pouco de casa. “Quando saio vejo tanta gente, dá até agonia. Nós estamos em terras estrangeiras”, diz a avó. A psicóloga Débora Rosa, que atua no setor de saúde mental de Mariana, informa que os impactos psicossociais nos ex-moradores de Bento estão presentes na dificuldade de adaptação do meio rural para o urbano, refletida principalmente pelo distanciamento geográfico entre os vizinhos, pela perda da memória afetiva com o local de origem e pela mudança no modo de viver. A psicóloga, que tem acompanhado os atingidos de Bento Rodrigues e Paracatu de Baixo, realiza, junto a outros profissionais da área, ações em bairros de Mariana e faz visitas domiciliares. Segundo o coordenador da Rede de Atenção Psicossocial da cidade, Sérgio Rossi, o número de profissionais que estão atuando após o rompimento de Fundão subiu de 29 para 54. Já a média de atendimentos mensais cresceu 20% desde novembro. O desejo de mãe e avó é morar novamente na comunidade de Bento Rodrigues, que será reconstruída no terreno de Lavoura. Lúcia não se diz ansiosa, mas acha fundamental voltar às suas raízes. “Sabemos que lá nos sentiremos estranhos no início, mas com o tempo será nosso lugar.”

Serviço gratuito de apoio emocional e prevenção do suicídio:


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ARTE: MOISES MOTA

ECONOMIA

Terra além dos minérios

Rompimento da barragem impacta agropecuária, que não recebe investimentos para se tornar alternativa de desenvolvimento MATHEUS GRAMIGNA

Prioridades Trezentos anos separam a era do ouro de Vila Rica do rompimento da barragem do Fundão, em Bento Rodrigues. Entretanto, a negligência em relação às atividades fora do eixo da mineração permanece. Em meio a isso, o debate a respeito de novas alternativas econômicas para a região tem tido destaque. A prefeitura prevê a construção de um distrito industrial na cidade. O secretário adjunto da Indústria e Comércio de Mariana, Heliélcio Vieira, aponta que o projeto pretende implementar uma diversificação econômica do município, aumentando a participação de outros ramos de investimento, como a agricultura e a pecuária. Entre eles estão laticínios,

fruticultura e os processos de produção que surgem após a colheita, muito embora ainda exista prioridade aos focos de investimentos relacionados ao ramo da mineração. A licença de implementação do distrito foi concedida recentemente, segundo afirma o secretário adjunto. Os prazos de conclusão ainda são indeterminados, mas estão previstos. Enquanto Mariana sofre com a alta dos preços, Antônio Barbosa, 33 anos, ex-morador de Bento, se preocupa com a ociosidade em que se encontram muitos de seus antigos vizinhos do distrito. “Acredito numa intervenção mais efetiva para o reparo de nosso danos”, defende. “Por que a gente não poderia produzir o que a Samarco precisa comprar de alimentos e roupas por exemplo, gerando emprego para o povo que já sofreu tanto e que hoje está em Mariana completamente deslocado, sem trabalho, sem o costume da atividade de antes?”, indaga.

Futuro incerto Atingidos não reclamam só da condição atual. O novo espaço a ser construído pela Samarco para os ex-moradores de Bento Rodrigues, em Lavoura, tem previsão de conclusão de dois anos. A distribuição de água no terreno é pouca, segundo o ex-morador João dos Santos. A área ainda é bem próxima a um aterro sanitário, cerca de 1,8km de distância, o que preocupa Aparecida dos Santos. Ela, acostumada com a boa qualidade da água que havia em Bento, conta com receio que a acumulação do lixo pode gerar contaminação do solo, por meio do lençol freático. Ailton Barbosa, 63, exmorador de Bento Rodrigues, é aposentado pelo ramo da mineração. “Morei no Bento durante 41 anos e levei 30 para construir a minha casa própria, com muito dinheiro suado vindo do meu trabalho.” Agora ele mora em Mariana, no bairro Dom Oscar, em um dos aluguéis custeados pela Samarco. Assim que chegou à morada provisória, deu de cara com um jardim na entrada do edifício. “Lá em Bento, meu quintal era grande, tinha de tudo”, conta. “Chegamos aqui, vimos esse pedacinho de terra, é comum a gente ver o pessoal montar jardim. Daí escolhi plantar umas couves aqui mesmo. Percebi que o espaço era pouco e resolvi plantar ali, do outro lado da rua. Vou a qualquer mercado aqui em Mariana, quatro folhas couve saem a R$2”, conta Ailton. A pequena horta de verduras recém-montada fica do outro lado da calçada, que dá para um córrego, fora das grades do prédio.

dio masculino. Ainda assim, ele é contra os preços igualitários, pois acredita que haverá menos mulheres. Além disso, não se sente prejudicado em pagar mais para o aceso. O dono da boate Nomad em Mariana, Victor Hugo Cota de Miranda, garante que a diferença de preços por gênero e a liberação de bebida são apenas lucrativas. A responsabilidade em relação ao consumo de álcool é do indivíduo. Além disso, diz que “a maior parte das mulheres que frequentam a boate prefere pagar menos”. Já a gerente do pub Ten Bells, Fernanda Rodrigues de Oliveira, afirma que a primei-

ra pergunta que fazem a ela quando há festas no bar é sobre o preço para mulheres. Diz ainda que “quando faz um evento para o público de Mariana, o preço é R$20 para homem e R$10 mulher”. Quando o público é voltado para estudantes, a entrada inteira é R$10 e a meia R$5. Quanto à vulnerabilidade das mulheres, Fernanda diz que “a partir do momento que uma pessoa bebe, está vulnerável para qualquer coisa, mas dentro da casa os seguranças já interferiram e resolveram brigas de casais”, acrescenta. Jussara Lopes acredita que “é preciso romper a cultura machista, promover a igualda-

de de gênero”. Para ela, a mudança só acontece com a educação, “ensinando os homens a respeitar e não as mulheres a temer”. Pela legislação brasileira, se a mulher estiver inconsciente ou incapacitada para negar o consentimento (inclusive devido à embriaguez), também é estupro e a pena pode chegar a cinco anos de reclusão. A discussão nos movimentos feministas é com relação à prática do incentivo de boates e festas, entre outros, a que mulheres consumam álcool em excesso. Por meio da entrada mais barata e liberação de bebida elas perderiam a condição de negar o consentimento.

Mateus Carvalho

Os impactos deixados pelos rastros da lama nos arredores de Mariana e dos distritos atingidos chegaram também à produção agropecurária. Os resultados das pesquisas são preocupantes. De acordo com os últimos relatórios da Empresa de Assistência Técnica e Extensão Rural do Estado de Minas Gerais (Emater-MG), os produtores rurais atingidos, dos municípios de Mariana, Barra Longa, Ponte Nova e Rio Doce, tiveram um prejuízo calculado em aproximadamente R$ 23,2 milhões. Segundo a Prefeitura de Mariana, a Secretaria de Agricultura, em parceria com a Emater, tem feito um trabalho com os produtores rurais das áreas atingidas pelo rompimento da barragem da Samarco. Além das perdas para os produtores, a cidade enfrenta inflação momentânea. O aumento da demanda pelos produtos causada pela vinda dos moradores de Bento Rodrigues para Mariana, frente a uma oferta estável, pressiona os preços, especialmente de alimentos, explica o professor de Economia da Universidade Federal de Ouro Preto Chrystian Mendes. Entretanto, com o passar do tempo, esses preços devem se normalizar novamente, principalmente no setor de habitação. “Além do crescimento populacional, o desemprego também desempenha papel determinante para o desequilíbrio econômico da região. A pouca oferta de empregos fragiliza o poder de consumo da população de maneira geral”, aponta Chrystian. O professor conta que alguns valores aumentaram de

Cultivo. Ailton, ex-morador do Bento, aproveitou o espaço de jardim do lar provisório para plantar hortaliças

maneira notável depois da tragédia, segundo pesquisa recente conduzida por ele. Os altos picos de inflação no município são causados pela crise nacional e pelos avanços no Índice de Preços ao Consumidor (IPC) do município de Mariana desde a tragédia. Em praticamente todos os setores do comércio, de serviços ao varejo, houve alta nos preços. Os consumidores estão, a todo custo, se adaptando à contenção de despesas para segurar os gastos fixos do mês, considerando a manutenção do valor dos salários. Antigo Nesse cenário, a comida barata parece uma realidade cada vez mais distante em Mariana. Os alimentos indispensáveis à dieta diária como frutas, legumes e verduras, com preços mais acessíveis, têm se tornado uma oferta de difícil acesso no varejo. Além do contexto econômico nacional, a crise de arrecadação fiscal do município, segundo

os recentes levantamentos da Prefeitura, é outro fator. O problema da comida não é recente em Mariana. O desenvolvimento econômico da Região dos Inconfidentes se deu a partir de histórias pautadas pela procura do ouro. A preferência pela mineração, em detrimento de outras formas de crescimento, trouxe recorrente escassez da oferta de alimentos. Essa condição proporcionava valores exorbitantes aos produtos trazidos de fora para atender os consumidores locais que não tinham como cultivar seus alimentos em um pedaço de terra. O ouro concentrava uma procura excessiva, despertando interesse de exploração no país inteiro. Devido à falta de atividades monocultoras, a fome de muitos contrastava com a acumulação de riquezas pela extração mineral no século XVIII. Um dos ramos de serviços que mais obteve lucro, nessa época, foi o transporte de cargas, que, em seu auge, tra-

do a mesma condição a todos. A gerente do Procon de Mariana, Thaís Celeste Ferreira de Souza, esclarece que “de acordo com o CDC é um direito básico do consumidor a igualdade nas contratações. Essa semelhança se refere também ao gênero, ou seja, homem e mulher devem contratar de forma igual, sendo iguais em direitos e obrigações. Nenhum estabelecimento pode impor diferença de preço por questão de gênero”. Segundo a advogada do Procon de Mariana, o consumidor que se sentir lesado deve comunicar o Procon de sua cidade, o Juizado Especial ou até mesmo o Ministério Público, sob pena de aplicação de multa para os estabelecimentos. Na festa “Bem vindo ao rock”, em Ouro Preto, são cobrados R$1 para as mulheres, R$35 para organizadores e R$40 para homens que não organizadores. Segundo Arthur Santos, morador da república Canil, uma das organizadoras da festa, a diferenciação de preços por gênero “é tradição, com o objetivo de chamar atenção do público feminino”.

Os organizadores da festa não responderam ao LAMPIÃO o porquê de quererem mais mulheres no evento. O representante de outra festa estudantil em Ouro Preto, “Festa da Vila dos Tigres”, classificou a questão de “mimimi”. Implícita, está a fragilização proposital da mulher nesses espaços por meio da bebida. Jussara de Cássia Soares Lopes, pesquisadora de questões de gênero da Universidade Federal de Ouro Preto (Ufop), explica que o termo “cultura do estupro” diz respeito a um conjunto de ações que naturalizam a violência contra a mulher. Além de pagar menos na entrada, muitas vezes a mulher tem bebida liberada até certo horário. Jussara afirma que isso “coloca a mulher como objeto, que está ali para ser usada, para chamar mais homens, alimentando uma ideia de que se ela não estiver sóbria, vai ser mais fácil para pegar”, explica. O estudante de economia Pedro Henrique Silveira Pessoa afirma que as mulheres ficam bem mais vulneráveis por estarem embriagadas, e assim estão sujeitas a qualquer assé-

zia frotas de animais cargueiros do Rio Grande do Sul até Minas Gerais. Os investimentos no transporte escoavam a extração aurífera e traziam produtos de fora, principalmente alimentos e vestuário.

Diferença ilegal e perigosa Amanda Granado

A diferença de preços entre homens e mulheres nas casas noturnas e também nas festas em repúblicas é presente em Mariana e Ouro Preto. Em Mariana há três casas noturnas, a boate Nomad, o pub Ten Bells e o café-teatro Sagarana, nas quais pode-se observar essa desproporção. O abismo entre os preços chega a 66% nas casas noturnas de Mariana e até 400% na festa “Bem vindo ao rock”, feita por 17 repúblicas particulares de Ouro Preto. A desigualdade de preços por gênero toca no direito do consumidor e na cultura do estupro. Segundo o artigo 5º da Constituição Federal, “todos são iguais perante a lei”. O princípio da isonomia também está no artigo 4º, que garante “o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”. Já o Código de Defesa do Consumidor (CDC) diz que o fornecedor não pode diferenciar os consumidores entre si, seja por gênero, raça ou cor, oferecen-


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ARTE: MOISES MOTA

PATRIMÔNIO

Coletivo valoriza periferia Ana Paula Bitencourt e Isabela Resende

Ouro Preto reúne e preserva um dos conjuntos arquitetônicos símbolo do barroco brasileiro. Segundo a Secretaria de Cultura e Patrimônio de Ouro Preto, apesar de o Centro Histórico ganhar mais destaque, 99% dos patrimônios tombados não se encontram nessa localidade, mas sim em outros segmentos do município. De acordo com a secretaria, responsável pelo inventariado e caracterização de todos os bairros da cidade, há uma questão de planejamento urbano e ênfase a determinados ícones, em detrimento dos que não estão na área central. O bairro Padre Faria é localizado a 1,4 quilômetro do centro da cidade e foi o primeiro vilarejo que deu origem à cidade, em 1698. Possui 41 patrimônios inventariados, entre acervos religioso e urbano. Está inserido no conjunto arquitetônico e urbanístico de Ouro Preto, tombado em 1938 pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), e no conjunto arquitetônico tombado no município em 1931. Compreende também bens tombados em nível federal, como a Capela Nossa Senhora do Rosário e o Chafariz do Alto da Cruz. Apesar da importância histórica e cultural, o bairro não pertence à rota turística principal. “Tais elementos precisam ser reconhecidos e valo-

rizados pela comunidade e por pessoas que visitam o local”, afirma Douglas Aparecido, 33 anos, morador do bairro. A falta de transporte público coletivo é um dos fatores negativos, junto com a mercantilização do turismo. Os responsáveis pelas rotas turísticas recebem comissões de pousadas, hotéis e restaurantes, a maioria localizada no centro, conforme explica o guia de turismo Willian de Jesus Ramos, 41. Segundo Patrícia Souza, assessora da Secretaria de Turismo, o Padre Faria não passa despercebido, pois é incluído em eventos como o Festival de Arte e Verão, o carnaval e datas religiosas, mas ainda não há planejamentos de descentralização do turismo. Rita de Cássia Rodrigues, 44, vive no Padre Faria desde que nasceu. Para ela, os atrativos explorados pelos turistas foram colocados na área central da cidade, enquanto os bairros periféricos e sua importância na consolidação da história e cultura foram ignorados. Guetto O projeto Guetto surge a partir da necessidade dos moradores de se identificarem como população ouro-pretana. Os criadores Douglas Aparecido e Diego Assunção “Xingu”, morador de Passagem de Mariana, apoiam-se na ideia de emponderamento da comunidade, exercitando o reconhecimento sobre o lugar em que vivem.

Os idealizadores propõem ainda o resgate da cultura negra e a conscientização dos que moram no bairro, para que eles não tenham necessidade de vislumbrar a saída da periferia, mas percebam que são nessas áreas que a história se mantém. Douglas explica que Guetto é “exatamente o lugar onde o indivíduo está, com um ‘t’ a mais, que é o da transformação”. O resgate da história e da cultura está presentes nas oficinas, brincadeiras, rodas de música e poesia, que acontecem no “Buteko Kultural”, mais conhecido como um ponto de encontro para a comunidade. O Guetto é um apêndice de um outro programa, o Outro Preto, que trabalha com horta orgânica, turismo comunitário e ações de produção cultural e artística. O projeto busca mostrar uma outra Ouro Preto, além do olhar dos artistas, dos turistas e das câmeras fotográficas. “Já que ninguém pensa na periferia, nós temos a atitude de pensar e fazer, pois Ouro Preto é muito maior que Centro Histórico e Bauxita”, afirma Diego. Em conversa com integrantes do projeto, contam que desde a criação do Guetto os turistas passaram a reconhecer um pouco mais o Padre Faria como um lugar que merece ser visitado. “Vamos às minas, fazemos trilhas e pretendemos fazer uma expedição”, comenta Augusto Mendes, 42. João Roberto Mendes, 26,

CAROLINE FERNANDES

Moradores do Padre Faria sentem que estão esquecidos diante do destaque oferecido aos monumentos tradicionais de Ouro Preto

Empoderamento. Douglas, idealizador do Guetto, aposta na arte produzida no bairro

morador de Padre Faria, reafirma a importância do projeto: “Aproxima a comunidade através do resgate da cultura, estreitando os laços entre os moradores. Assim, todos têm a chance de contribuir, participar e conhecer melhor o lugar onde vivem, valorizando a importância do patrimônio”. Iniciativa O programa Sentidos Urbanos, também voltado para a educação patrimonial, é outra iniciativa ouro-pretana para descentrar o olhar. Ele teve iní-

cio com um projeto de extensão sobre roteiros sensoriais, coordenado pelo professor Juca Villaschi, do Departamento de Turismo da Universidade Federal de Ouro Preto. Com o interesse do Iphan e da Fundação de Arte de Ouro Preto (Faop), a parceria foi consolidada com o trabalho direcionado ao recurso dos cinco sentidos: tato, paladar, visão, audição e olfato. O Sentidos Urbanos ainda tem como parceira a Prefeitura Municipal de Ouro Preto, que sugeriu a inserção dos roteiros

sensoriais nas escolas da rede pública da cidade. Esses roteiros também podem ser feitos por grupos marcados. De acordo com a coordenadora do programa, Simone Fernandes, o objetivo do Sentidos Urbanos é trabalhar o empoderamento do jovens. “O roteiro sensorial é uma porta de entrada. Damos enfoque nas referências culturais, na situação de pertencimento, ampliação da visão e alteridade desse cidadão perante a cidade. Identidade, memória e patrimônio é o que nos move.”

Programa resgata passado Ingryd Rodrigues

Mariana foi o município mineiro que mais recebeu verba para reformas de seus patrimônios por meio do PAC Cidades Históricas, que é um braço do Programa de Aceleração do Crescimento do governo federal. Segundo a coordenadoria do projeto foram 15 ações com 19 obras aprovadas e R$ 67 milhões estão previstos para esse financiamento. Os primeiros prédios históricos a serem reformados são a Igreja da Sé, primeira catedral de Minas e também a primeira no interior do Brasil, e a Igreja do Rosário, conhecida como “Igreja dos Pretos” devido à sua construção ter sido feita

majoritariamente por escravos. Contudo, ainda não há previsão de qual será o próximo patrimônio a receber reformas. A prefeitura vem insistindo junto ao Governo Federal para conseguir esse financiamento desde 2001. Mas foi somente em 2013 que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) aprovou os projetos solicitados. Segundo Flora Passos, arquiteta do Iphan responsável pelo PAC Cidades Históricas em Mariana, os monumentos passaram por uma averiguação de data de conservação. A prefeitura, em parceria com o instituto, após analisar a situação das obras, chegou a uma lista de imóveis que estavam em

estado de conservação precário e que precisavam de uma obra completa de restauração. Isso porque as obras pontuais de manutenção já não resolveriam o problema. Flora ressalta que, diante da conjuntura econômica da cidade, é preciso buscar outras alternativas para geração de renda, e que a restauração das igrejas impulsionará o turismo local. “Uma forma de tentar reverter essa situação seria um um turismo planejado junto com a comunidade local, que parte de uma necessidade inicial de conservação e restauração de bens”, explica. A arquiteta questiona como a cidade pode contar com uma arrecadação vinda do tuCAROLINE FERNANDES

Matriz. Em reparo, catedral de Mariana deve permanecer fechada até julho de 2017

rismo histórico de conjunto tombado “com monumentos precários e irregulares”. A modificação da Igreja do Rosário dos Pretos começou restaurando os elementos artísticos. Essa igreja possui no teto uma obra de Manoel da Costa Ataíde, ilustre artista do barroco-rococó mineiro. Portanto, é importante primeiro fixar essa pintura, para que ela não sofra nenhuma vibração. O restaurador Adriano Ramos explica que fazer essa intervenção é um trabalho muito meticuloso, “quase cirúrgico, de forma que se altere o mínimo possível a obra do pintor”. As reformas tiveram inicio em janeiro e, segundo Anna de Grammont, coordenadora do projeto, a Igreja da Sé tem previsão de conclusão da parte arquitetônica em 18 meses, mas não há garantias que a parte artística será reformada. A restauração mal começou e já surpreende com achados inusitados. Na igreja do Rosário, a equipe de restauração descobriu pinturas de grande valor histórico atribuídas ao filho de Mestre Ataíde. Elas foram encontradas nas tábuas do camarim dos altares colaterais, muito bem conservadas, levando em conta que podem ter quase 200 anos. Na Igreja da Sé, foram encontradas ossadas humanas que es-

tão sendo analisadas por um especialista do Iphan, e que ainda não foram identificadas. Em contrapartida, o tempo que as igrejas permanecem fechadas preocupa os comerciantes. Adalton Soares, 58 anos, dono de uma loja de joias no centro da cidade, é pessimista com relação à previsão de conclusão da reforma. Ele afirma: “A gente está sofrendo diretamente na pele, porque Mariana tem a crise nacional, a crise da lama e a crise das igrejas fechadas. Estou cogitando até ir embora da cidade. Moro aqui há 13 anos e nunca vi um cenário desse”. Durante a reforma, oito das poucas vagas do estacionamento rotativo ficam inutilizadas no Centro Histórico de Mariana, na Rua Frei Durão, como medida de segurança em virtude das obras na Igreja da Sé. Raimunda Cláudio dos Santos, 82, aposentada e frequentadora assídua das missas na Sé, afirma que as mudanças são positivas e que está ansiosa para saber os resultados. “Acho muito bom as reformas. A igreja vai ficar mais bonita, não vejo a hora de ver como vai ficar. Mas o lado ruim é que agora temos que subir muito mais morro para ir à missa”, acrescenta.

Obras do PAC - Catedral da Sé e da Casa Capitular (Museu de Arte Sacra) - Igreja de São Francisco de Assis e Casa do Conde de Assumar (Museu do Imaginário) - Igreja do Rosário dos Pretos e implantação do Museu Vieira Servas - Igreja de São Caetano (Monsenhor Horta) - Igreja de Nossa Senhora da Conceição (Camargos) - Igreja Matriz de Bom Jesus do Monte - Igreja de Santana (ao lado do cemitério) - Igreja Nossa Senhora das Mercês - Capela de Nossa Senhora Rainha dos Anjos (Arquiconfraria de São Francisco) - Requalificação da antiga Prefeitura (Centro Cultural/ Artesanato) - Casarão dos Morais - Capela de Santo Antônio e requalificação do Largo - Capela da Boa Morte e do Centro Cultural do ICHS/UFOP - Casa de Câmara e Cadeia (Câmara de Vereadores) - Sobrado da Rua Direita, 61/65 (Implantação do Museu)


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ARTE: MARIANA FERRAZ

EDUCAÇÃO

África em segundo plano Ensino de história e cultura africana e afro-brasileira estão previstos em lei, mas medida tem aplicação limitada flexo da sociedade do século XVIII, quando aproximadamente 80% da população eram de pessoas não brancas, alforriadas ou não. “O número de escravos, no início do século XVIII, aproxima-se a 50% da população. Já no final do século, quando a mineração entrou em decadência, estima-se que eram cerca de 35%. Contudo, o número de pessoas não brancas continua por volta dos 80%”. Ele reforça que a escravidão em Minas Gerais funcionou em um sistema de proximidade. Com isso, a possibilidade de as pessoas escravizadas saírem dessa situação era maior. Para o historiador, “essa proximidade se dá, também, porque as pessoas viviam em cidades. Além disso, há o fator do ouro. Isso fez com que as pessoas buscassem, pela riqueza, transitar entre esses estamentos sociais de forma mais fluida”. Nos registros cadastrais da Câmara Municipal de Mariana, datados de 1752, das 917 propriedades cadastradas, apenas uma é referida como senzala. Segundo Tercio, há alguns registros de ex-escravos que se tornaram proprietários de terras e de terras pertencentes a mulheres forras, que usavam da liberdade para proteger outros negros. Esses são casos que as escolas podem explorar para planejar ações que dialoguem com as diretrizes. O Plano Curricular da Secretaria Municipal de Educação (SME) de Mariana para a rede municipal foi pensado obedecendo os Parâmetros Curriculares Nacionais, documento do Ministério da Educação com orientações para a construção do plano curricular. Para a disciplina de História dos anos finais do ensino fundamental, 6º a 9º ano, o planejamento contempla a LDB, pois orienta a aplicação de

André Nascimento

No Brasil, a escravidão é um passado não muito distante que ainda deixa marcas visíveis de desigualdades nas relações sociais. Por isso, as ações afirmativas, políticas focadas em grupos que foram vitimados por algum processo de exclusão, têm por finalidade reparar danos causados a essas pessoas. A lei 10.639, de 2003, é uma ação afirmativa que acrescenta na Lei de Diretrizes e Bases (LDB) para a educação a obrigatoriedade do ensino da história e cultura africana e afrobrasileira nas escolas de ensino fundamental e médio. O objetivo é valorizar e reconhecer a atuação e o pensamento negro no processo histórico de formação do Brasil. Em Mariana, palco da escravidão, após 13 anos da lei em vigor, os conteúdos voltados para a história europeia prevalecem nos planos curriculares e pouco se vê das propostas afirmativas das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs). As DCNs para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afrobrasileira e Africana, de 2004, são um plano político com orientações de como funcionam as alterações na LDB. Além de reparar desigualdades, a proposta objetiva maior autonomia na expressão e manifestação das visões de mundo dos afro-brasileiros. Em Mariana, especificamente, a adoção dessa política toca no processo de formação da cidade. O Censo Demográfico de 2010 aponta que 67,2% da população marianense se autodeclaram preta. Segundo o historiador Tercio Veloso, que estuda a formação urbana de Ouro Preto e Mariana, esse número pode ser entendido como um re-

conteúdos que permitem um aprofundamento nas questões das relações étnico-raciais, principalmente quando se fala da história de Minas e das culturas brasileiras. Mas aprofundar nesse assunto fica a cargo do professor, pois o plano curricular é usado para guiar a elaboração do plano de aula. Afro-educação Como muitos professores ainda não têm formação pensada nos conteúdos exigidos pela lei 10.639/03, uma alternativa é a troca com grupos que trabalham com as questões raciais. Na Ufop, o Programa Institucional de Bolsa de Iniciação à Docência (Pibid) “História, Cultura e Literatura Africana e Afro-brasileira” – Pibid Afro – é uma opção para as escolas de Mariana e Ouro Preto se adequarem às mudanças na LDB. A iniciativa tem a missão de valorizar a formação de alunos de licenciatura das universidades, permitindo uma experiência real nas escolas. O programa funciona sob tutela da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (Capes), e os alunos participantes ganham bolsa para desenvolver projetos nas escolas e oferecer cursos de formação para professores. O Pibid Afro envolve bolsistas dos cursos de Letras, História, Pedagogia, Música e Artes Cênicas. Ele funciona desde 2012 em escolas da região promovendo ações que buscam uma mudança nas relações educacionais, apresentando metodologias criativas e trabalhando com as múltiplas habilidades dos alunos. A professora do Departamento de Letras e coordenadora do Pibid Afro, Kassandra Muniz, defende que mudar a forma de olhar para os alunos e levar em consideração as particu-

Debate sobre a BNCC O Plano Nacional de Educação (PNE) entrou em vigor em 2014 e estabelece a criação da Base Nacional Curricular Comum (BNCC), documento que determina conteúdos mínimos a serem desenvolvidos nas escolas do Brasil, além de guiar professores e coordenadores na hora de construir os planos curriculares. A primeira versão do documento gerou polêmica devido à retirada de temas, como Revolução Francesa e Literatura Portuguesa, para incluir conteúdos históricos e literários afro-brasileiros e latino-americanos. A segunda versão, apresentada para consulta pública no dia 3 maio deste ano, foi reformulada com os conteúdos de maneira equilibrada. A BNCC foi pensada por 116 especialistas de 37 universidades do Brasil. A proposta foi apresentada em 16 de setembro de 2015. O documento recebeu mais de 12 milhões de sugestões e contribuições on-line. O prazo para entrega do texto final da base, que seria dia 24 de junho, foi estendido para novembro deste ano. De 23 de junho a 4 de agosto, o Conselho Nacional de Secretários da Educação (Consed) e a União Nacional dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime) realizarão seminários para discutir a segunda versão do texto para determinar as ações que constarão na versão final. Em Minas Gerais, os seminários acontecerão nos dias 2 e 3 de agosto.

laridades é importante na relação em sala de aula. “Obviamente, isso gera uma melhora no nível de letramento, na leitura, escrita e na formação das práticas orais. Além disso, a gente trabalha com temáticas voltadas para o continente africano e para a Diáspora, ou seja, trabalha em um contexto do que é ser negro no Brasil, na América afro-caribenha e por aí vai”. Ela salienta que os planos curriculares atendem a lei, no sentido de uma adequação à norma. O que não quer dizer que os conteúdos são aplicados obedecendo as orientações das DCNs. Atualmente, apenas a escola municipal Monsenhor José Cota é atendida pelo programa em Mariana. Além dela, o Pibid está pre-

sente em mais duas escolas de Ouro Preto, estrategicamente escolhidas, levando em consideração a localização e o perfil dos alunos. A intenção é atingir principalmente as periferias e a população negra. Devido aos cortes na educação, o projeto reduziu as suas atividades e pode encerrar os trabalhos em julho deste ano. O Pibid já havia sofrido uma ameaça de corte de 50% dos projetos no antigo governo. Há um debate para mudar o programa para um formato que foi rejeitado pela Ufop e por outras universidades. “É uma discussão feita por burocratas da educação e políticos. Eles querem transformar o Pibid em um reforço escolar.” afirma a coordenadora Kassandra Muniz.

CULTURA

Eles vivem da arte circense Cores, formas e elementos. O local é ocupado por crianças correndo, rindo e se exercitando. Quem vê de longe logo imagina uma lona de circo que remete à infância. Quem vê de perto percebe o empenho na realização de mais uma aula. Junto aos alunos, que mesclam diversão, aprendizado e empenho, está toda a dedicação de um jovem professor. Rodrigo Júnior Ferreira, 23 anos, morador de Ouro Preto, ex-aluno LUCCAS GABRIEL

Rodrigo. Talento com arcos

e atual professor do projeto Circo da Gente, é apaixonado pelo ofício. Teve contato com o universo que hoje faz parte da sua vida em 2006. Na época, com 14 anos, era o típico perfil do adolescente rebelde que dava trabalho na escola e em casa. Quando os alunos superam as dificuldades é gratificante, você sente a felicidade deles.” Rodrigo Ferreira

Quando ingressou no projeto era estudante da escola Bom Senhor, de Ouro Preto, e soube dele pelo colégio. Rodrigo, sem saber o porquê, aceitou o convite para ingressar no projeto, que selecionava alunos para ocupar o tempo deles com as atividades oferecidas pelo circo. Em um espaço totalmente diferente de todos em que já havia convivido, seu primeiro contato com o circo foi marcante: acostumado a frequentar aulas de futebol e de cantarias (escultura de pedras), identificou-se com o malabarismo, o equilíbrio, o espetáculo e com a plateia que compõem o mundo circense. Como aluno, participou do projeto de 2006 a 2008 e cultivou um amor que o levou a se especializar no tema. Participou de oficinas de capacitação oferecidas pelo projeto com o intuito de se tornar pro-

fessor algum dia. Em 2008, após um período turbulento, Rodrigo se dedicou com mais empenho para não deixar a iniciativa acabar, pois segundo ele, “nessa época o programa estava numa fase muito boa, em que era importante para a sociedade de Ouro Preto manter uma proposta como essa”. Rodrigo, junto com outros alunos e o coordenador do projeto na época, Eduardo, se mobilizou e conseguiu vale-transporte e o empréstimo do ginásio do Ouro Preto Tênis Clube, o OPTC, que fez com que as coisas caminhassem. Depois disso, o envolvimento só aumentou e o sonho de se tornar professor do projeto tornou-se realidade. Exigente, porém amigo, Rodrigo acredita que a boa relação entre professor e aluno é essencial. “Quando os alunos superam as dificuldades é gratificante, você sente a felicidade deles”, diz. A proximidade dos bairros Morro Santana e Piedade faz com que eles mantenham boa convivência fora do ambiente circense e isso os integra. Casado com uma bailarina e pedagoga, Rodrigo divide os acontecimentos diários das aulas com a companheira. Muitas vezes, instruído por ela, tenta manter uma relação próxima com os alunos e acaba por sentir as emoções deles. O circo também mudou a vida de Wallisson, paixão que hoje faz parte do cotidiano de sua vida. A rotina é a mesma, o ato de dar aula

JÚLIA ROCHA

Iara Campos

Dimdim. Acrobacias no ar

e os exercícios se repetem a cada semana. As cores e objetos circenses dão forma e vida ao lugar, pensado para outra coisa. Uma simples quadra do OPTC, quando cheia de alunos, professores, saltos e diversão, torna-se quase uma tenda circense. Fechando os olhos dá para imaginar um espetáculo digno de aplausos. O professor de tudo isso? Um homem simpático, humilde e apaixonado pelo que faz. Wallison da Silva Celino, 24 anos, morador de Ouro Preto, pertence ao mundo do circo des-

de 2006. No início era apenas um aluno deslumbrado com tudo o que conhecia. Influenciado por um amigo, nunca imaginou que a inofensiva visita a uma aula de circo despertaria uma paixão que perduraria por tanto tempo. Dedicação e empenho fizeram com que “Dimdim”, apelido carinhoso dado pelos amigos, se interessasse cada vez mais pelo assunto. Atuante como aluno de 2006 a 2010, tornou-se monitor. Porém, por não conseguir conciliar estudos em período integral e cursinho à noite com o projeto, ficou dois anos afastado, mas o apego fez com que ele, depois de formado, se aprofundasse mais em tudo o que envolve circo. Voltou decidido a ser professor, para de alguma maneira oferecer às crianças o que já havia vivenciado como aluno. A paciência e o carinho com que realiza as atividades e a amizade que mantém na relação com as crianças tornou Wallison um espelho para os alunos. Desde os pequenos detalhes como corte de cabelo até atitudes, modo de falar e agir são tomados como base para os jovens e refletem as suas posturas. Professor de acrobacia aérea, Wallison acredita que o projeto, criado em 2009, tem poder transformador: “possui a missão de mostrar para os jovens que existe uma outra opção além da que eles estão acostumados a vivenciar”.


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ARTE: MARIANA FERRAZ

CULTURA

Falta pouco para o Paço Caio Franco

Ouro Preto pode ganhar um novo espaço cultural no final do ano. Localizado na Rua Padre Rolim, o Paço da Misericórdia – Centro de Artes e Fazeres de Ouro Preto será um espaço dedicado à cultura local. A construção antiga passa pela fase final de revitalização para que possa ser entregue ao município. A Secretaria Municipal de Turismo, Indústria e Comércio, responsável pelo espaço, afirma que as previsões de abertura são para o fim deste ano. O edifício está em obra há oito anos, devido à paralisação para readequar o espaço que se encontra na encosta de um morro, em área de risco. Outro motivo que vem estendendo esse tempo são os atrasos de repasse de verba por parte do poder público municipal e do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES). As obras seguem ritmo acelerado neste momento. A parte interna deve passar por acabamentos finais, como colocação de forro e pisos, instalações nos banheiros e cozinhas, e a seção externa passa por obra nas fachadas e no estacionamento. A Capela de Santana, parte avançada da reforma, carece apenas de organização do espaço. Essa capela é integrada ao espaço interior do prédio e segue o modelo das capelas de outros hospitais geridos por irmandades. A Agência de Desenvolvimento Econômico e Social de Ouro Preto (Adop), responsável pela gestão da obra, também garante que o local estará pronto até o final de 2016. A arquiteta responsável pela execução do projeto, Deise Lustosa, entende que o prazo dado para finalização é possível, apesar de apertado. Caso esse cronograma atrase, será por pouco tempo, ficando para o começo de 2017 a abertura do espaço. Deise pensa que o Paço da Misericórdia é um presente para Ouro Preto. Para ela, a cidade, conhecida mundialmente como roteiro turístico, carece de locais “vivos”. Ela diz que o espaço vai além do turismo e deve ser ocupado pelos cidadãos do município. De acordo com o gestor do núcleo de projetos da Adop, Vandeir Assis, o momento de discussão acerca da obra em si já se encerrou e o que será discutido agora é como o Paço da Misericórdia funcionará e suas possibilidades

LUCCAS GABRIEL

A obra no prédio histórico tem previsão de conclusão para o fim do ano, mas funcionamento do centro ainda não está definido concretas de utilidade. Ele entende que um plano de diretrizes com bases técnicas deve ser feito para garantir que a obra não se torne um “elefante branco”. A formulação dessas diretrizes foi encaminhada pela Secretaria de Turismo e apresentada no dia 07 de junho na forma de Lei Ordinária na Câmara dos Vereadores, onde está em tramitação. Trata-se da criação de Conselho Municipal cuja finalidade é gerir o Paço. São diversos equipamentos e espaços internos que irão gerar empregos para 300 pessoas, entre lojas, estandes, salão multiuso, pátio externo com possibilidade de ser um anfiteatro, restaurante e espaço para oficinas. Há ainda um local destinado à memória da Santa Casa da Misericórdia e da Capela de Santana. Enquanto a obra avança, permanece como incógnita o que realmente será o Paço da Misericórdia. Procurada pelo LAMPIÃO, a Secretaria de Turismo não soube dar detalhes do funcionamento do local. O projeto em tramitação inicial especifica a criação do conselho com membros da sociedade civil e do setor público, no entanto ainda não foi colocado em prática. A edificação pertence à Prefeitura Municipal de Ouro Preto, que pode transformá-lo em qualquer tipo de equipamento público, por isso a importância do conselho, que será permanente, com revezamento dos membros a cada dois anos. Há intenção de levar os artesãos de pedra sabão e pessoas da culinária local para o Paço da Misericórdia. Ambas as categorias possuem representação no futuro conselho, mas ainda não há nomeação desses representantes. Os espaços destinados para memória da Santa Casa e da capela também caminham no mesmo sentido de indefinição, pois seriam espaços com gestões próprias do hospital e da paróquia responsável pela capela, respectivamente. A ideia de levar artesãos para o prédio gera reações contrárias por parte da categoria, por significar reorganização do espaço da feira de pedra sabão do Largo da Coimbra. Fontes informam ao LAMPIÃO que isso poderá descaracterizar o espaço da tradicional feira, além de implicar em novos custos por parte desses trabalhadores, que deverão passar por formalização.

Restauração. Antiga Santa Casa de Ouro Preto será transformada em ponto turístico

A revitalização foi aprovada e financiada para ser um centro cultural, porém até o momento não há diálogo eficaz por parte do setor público com setores da cultura e arte locais para que esse ideal se cumpra. Ressignificação A construção data do século XVIII e abrigou a polícia local até o ano de 1885, após isso, a Santa Casa da Misericórdia, que ficou instalada no prédio até o final do ano 2000. O Paço da Misericórdia dará novo significado ao conjunto histórico, que desde 2000 se encontra fechado. A Adop assumiu o papel de articular as instituições envolvidas e de captar verba para a obra desde 2006, viabilizando a revitalização do complexo por meio da Lei de Incentivo à Cultura (Lei Rouanet). Após ser aprovado pelo Ministério da Cultura (MinC), deu-se início à recuperação do espaço em 2008. O projeto foi criado pelos arquitetos Marisa Machado Coelho e Fernando Maculan, após a compra da edificação pela Prefeitura em 2005, com apoio do BNDES e do MinC. O investimento total foi de cerca de R$ 12 milhões e veio de parceria entre a Prefeitura e o BNDES. Para atender a normas arquitetônicas do Instituto do Patrimônio Histórico e Ar-

tístico Nacional (Iphan) foram feitas revisões no projeto em 2008 e 2010. A empresa local Hexágono Engenharia assumiu o projeto em 2012. Após o repasse da verba da prefeitura em outubro de 2015, foi possível retomar as atividades de restauro. Até o fechamento do jornal foram captados mais de R$ 6 milhões, somando os repasses do poder público municipal e do BNDES. Apesar de apertado, para a equipe gestora do projeto, tudo segue como previsto no cronograma. Complexo Acontece também ao lado a restauração do que será o Museu Boulieu – Caminhos da Fé, que divide o espaço de estacionamento com a antiga Santa Casa. A junção do Paço da Misericórdia e do Museu torna a região próxima à rodoviária e também a acesso ao Centro Histórico referência para o turista. O projeto de revitalização desse segundo espaço é de autoria de Deise Lustosa. As obras ainda não foram iniciadas, mas isso não impedirá a inauguração do Paço da Misericórdia, pois os locais possuem entradas principais distintas. O casal que dá nome ao museu, Jacques e Maria Helena Boulieu, doou cerca de mil peças de sua coleção para a Arquidiocese de Mariana

Máquina movida a rock Caio César Gomes

Em uma casa simples, no centro da cidade de Mariana, está guardado o objeto principal de um evento que vem tomando conta da cena musical de Ouro Preto nos últimos anos. Ao lado dos mais diversificados instrumentos musicais, se destaca o gerador responsável pelas últimas quatro edições do Rock Generator, um festival de rock and roll independente que acontece desde março de 2012. Fruto da união de músicos das duas cidades, o Rock Generator foi idealizado no ano de 2011 devido à falta de espaço para apresentações de rock autoral. Segundo Douglas Michael, guitarrista da banda Los Pollos Caipiras e membro do projeto, “as bandas de rock underground

tinham pouco acesso aos festivais e casas de show da região”. Foi então que membros das bandas Arqueologia Siderúrgica, Fuckin’ Noise e Selvagens compraram um gerador à gasolina, no valor de R$ 300, capaz de sustentar o objetivo de ocupar espaços públicos subutilizados e também de promover cultura, lazer e convivência social, em torno da música e de outras artes. As duas primeiras edições ocorreram em Mariana e foram realizadas em um terreno particular cedido por um morador. As demais sete edições foram no Morro da Forca, no centro de Ouro Preto, que se tornou casa e marca do projeto. Nem mesmo o roubo do primeiro gerador foi capaz de desanimar os envolvidos. Em 2014, a falta do objeto central

SAMUEL CONSENTINO

Festival. Gerador, que inspira nome do Rock Generator, é motor para o cenário musical

causou um leve hiato no andamento do festival, mas, com uma festa beneficente realizada em Passagem de Mariana, foram arrecadados os fundos necessários para a aquisição de um equipamento novo e mais potente. Junto com a novidade, veio também a vontade de fazer mais. Diego Assunção e André Fabriccio, também membros do coletivo, acreditam que “o roubo do primeiro gerador foi um verdadeiro divisor de águas”. Em 2015, o Rock Generator contou com três edições e só não contou com a quarta por conta das fortes chuvas em Ouro Preto. Aos poucos, artistas de outras cidades se interessaram pelo movimento, que agora conta com acentuada melhora na questão musical. O intercâmbio com outras cenas culturais de Minas Gerais permitiu ao festival ganhar um notável reconhecimento no underground do estado. Esse crescimento fez com que seus produtores criassem um cadastro digital, capaz de reunir mais de 50 bandas de várias cidades do país com apenas uma regra a ser seguida: ter pelo menos metade da produção autoral. O crescimento não se ateve só à parte musical. O festival começou a dialogar também com artesãos, artistas plásticos e cênicos de Ouro Preto, preparados para abranger o conceito cultural já enraizado na origem do projeto. O público se tornou fiel, o que chamou a atenção de Paulo Victor Azevedo, produtor do evento: “Na última edição, quando muitos viajaram para suas cidades por conta do dia das mães, o festival contou com pelo menos 300 pessoas, o que nos mostrou que o projeto já tem um público próprio”. Marcelo Camêlo, morador de Mariana, é exemplo disso e faz

questão de ressaltar outros pontos que observou durante as edições em que esteve presente. “Vi uma coisa interessante: famílias. Havia muitas crianças soltando pipa, jogando bola e até prestando atenção e curtindo os shows”. Marcelo ainda elogia a organização: “Em nenhuma delas vi qualquer tipo de confusão, o público se mostrou bastante sossegado e é notável o espaço dado para a música autoral”. Diego Assunção faz questão de enfatizar que a relação entre o público e o coletivo é bastante intensa: “a população de Ouro Preto abraçou o nosso projeto”. E isto fica claro ao fim de toda edição do festival, quando os muitos equipamentos musicais descem as escadas do Morro da Forca nos braços do público. A gratidão, porém, se estende a mais pessoas que fizeram o possível para ajudar o projeto desde o seu começo. Segundo Douglas Michael, duas delas se destacam: “não podemos deixar de citar a importância dos pais do Paulo Victor neste processo”. Bernadeth Azevedo e Paulo Vitor abrigaram, durante meses, os instrumentos do festival. A consolidação do Rock Generator na cena musical de Ouro Preto não deixa os envolvidos no projeto relaxarem. Pelo contrário. No meio de tantas ideias, há também muitos sonhos naquele grupo de dez amigos. Sonhos que envolvem desde um estúdio musical gratuito para o público até uma grande turnê do festival pelo país. Por agora, focam numa coletânea com todas as 28 bandas de seis cidades diferentes que já tocaram nas edições passadas e pensam nas próximas duas, inicialmente idealizadas para os dias 16 de julho e 3 de setembro de 2016.


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Julho 2016

ARTE: BRUNELLO AMORIM

ENSAIO

Foto e Texto: Priscila Santos Há quem diga que quando se mora em uma cidade dita como “do interior”, os dias costumam se arrastar serenos e silenciosos. Enganam-se aqueles que assim pensam. Mariana é uma cidade que corre. Carros, motos, pessoas, cachorros, bicicletas, aqui nada vai devagar. Há sons por toda parte, sejam dos sinos ou do trem que vai e volta. E dentre tantas sonoridades distintas, hoje quero falar da música que emerge das ruas, que resiste ao tempo, aos valores, às tradições, aos teatros e à rotina. Em tempos de resistência, eles resolveram fazer da rua o seu próprio palco. Fazem dos sorrisos e trocados recebidos incentivo para continuar persistindo (resistindo) naquilo que seus dedos escolheram proferir: notas embaladas de poesia e sons. Raphael Lima, o violinista sério e de olhos fechados ao tocar. Jonathan Guimarães junto ao violão de doze cordas, que esbanja simplicidade e altruísmo. Ouvi-los pelas ruas dessa cidade his-

tórica – feita de ferro, de gente e de lama – pode ser, para muitos, só mais um dia, mas é certo que, para outros, será mais uma terna lembrança dos caminhos que pisam. Estar na rua tocando seu instrumento é para Raphael um “fluxo imprevisível de sons, pessoas, energias e acontecimentos”. Há sempre muita gente passando, algumas nem olham, outras param e parecem transcender. As crianças são as que mais impressionam. Jonathan lembrou de um caso de quando uma criança jogou seu brinquedo no chapéu que ele usa para recolher o dinheiro que ganha. Enquanto eu fotografava, uma menina interpelou a mãe: “Espera! Deixa eu admirar o rapaz”, disse, batendo um dos pés no chão. É surpreendente a capacidade que uma criança tem de se maravilhar com o outro. Por que perdemos isso ao crescer? Não sei. O que sei é que esses músicos estão na rua para somarem, contribuindo culturalmente para as comunidades que ocupam. Você pode não vê-los, mas eles veem você. Não tocam apenas pelo dinheiro ou por aplausos. Tocam porque desejam que outros sintam, pela música, o mesmo que eles sentem, isso é, poesia, amor e arte. Gratidão.


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