Revista fontana

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fontana REVISTA

uma dose de cultura

DEZ 2017 EDIÇÃO 01

ELA QUER DANÇAR

Dona Hilda

105 ANOS DE UM SÍMBOLO DE RESISTÊNCIA NA TRADIÇÃO DE BENZEDEIRA

Uma viagem para casa

Quem é o “povo” brasileiro?

Uma briga de mãos dadas

A ROTINA DO CAMINHONEIRO PRESO À PROFISSÃO

UM PASSEIO PELO CENTRO DE FLORIPA MOSTRA A DIVERSIDADE

O CINEMA COMERCIAL NA BUSCA POR PARCERIAS DE SETORES PROMISSORES


editorial

SOBRE O EDITOR:

CARTA AO LEITOR

Eduardo Iarek é estudante de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Nascido em Campo Largo, no Paraná, mora em Florianópolis desde 2016. Acredita na importância da cultura e da participação dos cidadãos na vida política. No tempo livre, gosta de brincar com o irmão mais novo.

É com um prazer imenso que disponibilizamos a primeira edição da revista Fontana: uma dose de cultura. Esse trabalho conta com um conteúdo exclusivo e autoral feito por estudantes. As reportagens, fotorreportagens, colunas de opinião e ilustrações apresentam relances da cultura e da política brasileira. Esperamos que as próximas páginas possam estimular discussões e contribuir para a formação de uma sociedade mais justa, igualitária e com respeito à diversidade. Como capa desta edição, trazemos uma figura bem conhecida da capital catarinense: Dona Hilda. Sua experiência e simplicidade encantam. A benzedeira de 105 anos representa a cara da revista e aproxima ainda mais nosso propósito de mostrar o povo em nossas páginas. Além disso, em uma entrevista perfil você conhece um pouco mais sobre as dificuldades na rotina de um caminhoneiro que carrega consigo o fardo de uma profissão devalorizada. Um dos propósitos da revista é deixar você, leitor, interado sobre as inovações que perpassam os meios de manifestação cultural. Por isso, na seção chamada Inovação, mostramos mudanças recentes no cinema comercial. Esperamos que a leitura da revista possa levar esperança, principalmente nos momentos de incertezas. Tenham uma ótima leitura!

Contato: Twitter e Instagram: @eduardoiarek Emaill: eduardo.iarek@hotmail.com

FONTANA: UMA DOSE DE CULTURA Primeira edição - dezembro de 2017 Editor: Eduardo Iarek Projeto gráfico-editorial: Eduardo Iarek

TEXTOS: Andrea Caldas, Dayane Potgurski, Eduardo Iarek, Fernando Yazbek, Pamela Schreiner, Sofia Mayer e Vinicius da Costa.

IMAGENS: Cristiano Mazur, Dayane Potgurski, Eduardo Iarek, Gabriel D. Lourenço, Livia Tokasiki, Pamela Schreiner, Freepik, Pixabay e pxhere. Esse trabalho é experimental, sem fins lucrativos e de caráter puramente acadêmico, desenvolvido pelo acadêmico Eduardo Iarek como exercício de projeto gráfico-editorial para a disciplina de Laboratório de Produção Gráfica do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no semestre 2017-2. Não será distribuído, tampouco comercializado.

2 • dez 2017 • edição 1 • fontana


índice

4.

FOTOGRAFIA

14.

ENTREVISTA

• QUEM É O “POVO” BRASILEIRO? Um passeio pelo centro de Florianópolis mostra a diversidade cultural

• DONA HILDA QUER DANÇAR A benzedeira mais antiga de Florianópolis resgata história, cultura e tradição

6.

19.

REPORTAGEM

PERFIL

• UMA BRIGA DE MÃOS DADAS O cinema comercial na busca por parcerias de setores promissores

• UMA VIAGEM PARA CASA A rotina e as relações de um caminhoneiro preso à profissão

10.

23 .

DIVERSIDADE

• PAÍSES ONDE A RELAÇÃO HOMOSSEXUAL É CRIME • A HISTÓRIA DAS PARADAS DO ORGULHO LGBT

12.

VERSOS

• NOME DO POEMA DO BALÃO • ALERTA: TIREM AS CRIANÇAS DA PRAÇA 19 DE DEZEMBRO

COLUNAS

• 1917: A REVOLUÇÃO CLASSISTA DAS PAUTAS INDENITÁRIAS! • UM LEOPARDO REVERSO-

Portão da casa de Dona Hilda, personagem que representa a cara desta revista na primeira ediçao.

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fotografia

Quem é o povo brasileiro? Um passeio pelo centro de Florianópolis mostra a diversidade cultural EDUARDO IAREK & LÍVIA TOKASIKI

“Hoje nós estamos embaixo do viaduto, mas a gente ta tentando buscar uma forma dos orgão públicos nos ajudarem, para podermos morar em um lugar mais seguro. Se chove corre o risco da gente nem dormir”. Elizandro de Lima, artesão, indígena Kaingang

“Graças a Deus não to pagando

“Em 2017, já morreram

aluguel. Senão eu ia morar na rua e

117 mulheres vítimas do

já tem uma concorrência grande né?”.

feminicídio no Brasil”.

4 • dez 2017 • edição 1 • fontana Adão da Viola, 41 anos, paranaense (Guarapuava)

Intervenção representando as 117 mulheres vítimas do feminicídio em 2017


fotografia

“Ninguém quer colocar uma transexual na porta de uma loja, num balcão, num escritório. Querem colocar onde? Dentro de uma cozinha onde ninguém vê, sem contato com as pessoas”. “Isso daqui é o Brasil Puro descaso e decadência Enquanto muitos se calam Nós gritamos resistência”. Jennifer Rodrigues, 34 anos, transexual, panfleteira

“A capoeira hoje é um dicionário, hoje o mundo tá falando português por causa dela”, diz Paulo Fonseca, Capoeirista. “A minha história começou com o desemprego”.

Silas Santiago, 23 anos, viajante, vive de artesanato e da poesia

fontana • edição 1 • dez 2017 • 5 Grupo de capoeira “Filhos de Tigre”

Palhaço Piu-piu, que trabalha no ramo há 25 anos, abraça a Repórter Livia Tokasiki


reportagem

Uma briga de mãos dadas EDUARDO IAREK & SOFIA MAYER

O setor cinematográfico no Brasil vai muito bem, obrigado. Pelo menos é isso que os dados oficiais da Agência Nacional do Cinema (Ancine) sugerem. Segundo pesquisas feitas pelo órgão, o Brasil fechou o ano de 2013 como o 10º maior mercado de cinema do mundo, arrecadando 854 milhões em bilheterias só no primeiro semestre. Em 2016, quase R$ 2.600 bilhões foram embolsados, 10,53% a mais que no ano anterior.

E

sse progresso é reflexo de transformações planejadas do ramo. Em um período que os conteúdos audiovisuais estão a poucos cliques da tela touchscreen de um celular, o cinema se viu obrigado a dar as mãos a diferentes serviços para garantir a manutenção de seu público e trazer novos consumidores. Buscando entender e ilustrar os procedimentos inovadores adotados pelas franquias, conhecemos de perto a estrutura e o funcionamento do Cinesystem do Shopping Iguatemi de Florianópolis e do Cinépolis do Shopping Pátio Batel, em Curitiba, redes que se destacam pelo caráter vanguardista de seus trabalhos. O que vimos foram tecnologias avançadas e importadas de fora, introdução de projetos internos e externos em suas programações e a telona sendo utilizada para fins bem particulares.

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CIRANDA DE MUDANÇAS Ao mostrar a tecnologia de som surround altamente desenvolvida, uma tela de 185 m², que preenche inteiramente a parede frontal, e mais de 400 poltronas disponíveis para o conforto do público, Mateus Nunes, gerente do Cinesystem do Iguatemi de Florianópolis, se orgulha em ressaltar as especificidades do seu local de trabalho. “Uma sala normal vai ter 20 caixas de som, essa tem 64”, conta. A sala em questão, a mais moderna da franquia, utiliza o sistema sonoro da Dolby Atmos, plataforma que cria um campo auditivo em 360​​°, com caixas que emitem efeitos de maneira independente e gradual. Já o Cinépolis do Shopping Pátio Batel de Curitiba trouxe, em 2013, a tecnologia sul-coreana de imersão, que cria uma espécie de parque dentro do cinema a partir de mo-


reportagem

velhos tempos, na tentativa de recriar uma “cultura do cinema” como forma de lazer recorrente. Com a promoção, que tem tempo indeterminado de duração, o ingresso convencional passa de R$ 30,00 para R$ 13,00 em qualquer dia da semana. Apesar desses incentivos, conseguir um produto que viola direitos autorais é tarefa fácil, seja comprando DVDs de ambulantes a três cópias por R$10, ou baixando um arquivo da internet de graça e sem sair de casa. Mesmo com a transmissão massiva de conteúdo cinematográfico através de serviços streaming, Mateus Nunes, gerente do Cinesystem do Iguatemi de Florianópolis, afirma que o principal concorrente deles ainda é a pirataria e não demonstra grandes preocupações com a ascensão de empresas como a Netflix. “Tem umas séries muito fortes da Netflix que o pessoal quer, então a gente está tentando uma parceria com eles para transmitir aqui”, esclarece. Um pouco mais adiantado nessa questão está o Cinépolis de Curitiba, que utilizou suas telonas para exibir alguns episódios de Narcos em setembro deste ano. “Foi um evento da própria Netflix. Os próprios criadores estão procurando os cinemas para transmitir”, conta Luiz Henrique, gerente do espaço. Foto: Eduardo Iarek

vimentos de poltronas, exalação de aromas e ventilação em pontos estratégicos da sala, tudo isso somado à técnica 3D. Essa tática de estender o ambiente retratado nas telas para os assentos já é, inclusive, atração de sucesso em parques temáticos do Brasil há pelo menos 10 anos. São diversas as formas que levam o público para “dentro do filme” na sala 4DX, a de manutenção mais cara do Cinépolis de Curitiba. Bolhas de sabão espalharam-se pelo ambiente no final de Malévola, exibido em 2014. Em cenas do Planeta dos Macacos, ventos saíram da poltrona como jatos, simulando flechas por cima dos ombros do espectador. Ao longo de uma exibição, é possível acionar vinte tipos de cheiros, como pólvora, flores ou até mesmo o aroma de um delicioso café da manhã recém preparado. As sensações variam de acordo com o filme, porém nem todos os longas são adaptados para essa tecnologia, tornando o número de obras com transmissão 4D limitado. Recorrer à comodidade do público é outra alternativa adotada pelas franquias para garantir saldo positivo no fim do mês. Assentos reclináveis, ar condicionado potente e a possibilidade de tomar um bom champanhe acompanhado de um Petit Gateau são mais alguns desses diferenciais que vieram embalados nas mudanças dos espaços físicos dos cinemas. Enquanto um curitibano assiste ao filme da Lava-Jato na tela côncava da sala VIP do Cinépolis, por exemplo, os garçons podem atender a seus pedidos diretamente da poltrona de couro, sem que o cliente tenha que enfrentar as filas da bomboniere. Apesar dessas mudanças serem formas importantes de atrair mais pessoas, os 45 dias de exclusividade para exibição dos últimos lançamentos ainda é um dos maiores privilégios dos cinemas comerciais. Isso impede que empresas de streaming de audiovisual, como a Netflix, adicionem filmes em seus catálogos de forma simultânea às franquias. Para não esperar pela introdução dos títulos no restante do mercado e para fugir do fantasma do spoiler, o público parte para o cinema. Mas nem só as tecnologias avançadas, o cheiro convidativo da pipoca junto ao cardápio gourmetizado ou a exibição dos longas em primeira mão levam as pessoas a optarem pelos cinemas comerciais. Em geral, o valor pago para ter acesso a todo esse conforto é um fator decisivo para o público. Qualquer empresa que priorize as inovações tecnológicas, lançará seu olhar para o futuro. Porém, uma promoção do Cinesystem traz um paradoxo nesse sentido. O projeto “De volta ao Cinema” apela para preços dos

Cheiro artificial de pólvora armazenado para utilização na sala 4DX.

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reportagem

TELONA SÓ PARA FILMES?

Jovens atentos à palavra ministrada pelo Pastor Gabriel Azevedo, do GV.

Mas nem só de caríssimos longas Hollywoodianos ou espaços bem equipados tem vivido o setor cinematográfico no Brasil. Se os cinemas tradicionais descartam a ideia de que estão imersos em uma crise, um dos principais motivos é o crescimento de atividades não vinculadas à exibição de filmes no espaço das telonas. A sala de cinema parece estar se tornando um grande salão de festas cult. Campeonatos de videogames transmitidos ao vivo, cursinhos pré-vestibular usando a tecnologia da super tela para realizar “aulões” e transmissão de shows de consagradas bandas são algumas sugestões de programas para se fazer hoje no conforto das poltronas altamente reclináveis das franquias. Mas se, como afirmam pesquisas da Ancine, o cinema não está em crise, um dos prováveis motivos é a diversificação de sua programação. Um exemplo de

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Foto: Gabriel D. Lourenço

nova estratégia nesse sentido é a iniciativa do Shopping Iguatemi, que aproveitou a Lei Municipal de Incentivo à Cultura para proporcionar o projeto “Domingo é dia de Teatro”, que traz, a cada manhã de domingo, uma peça infantil em uma das salas do Cinesystem com ingresso gratuito. Os estabelecimentos que aderem a essa ação da prefeitura de Florianópolis deixam de pagar 20% do IPTU, revertendo o valor para promoção de iniciativas culturais. As apresentações de teatro no espaço do cinema têm caráter precursor: Começaram há cerca de cinco anos, quando mal se falava na realização de outras atrações no espaço feito, em origem, para a projeção de filmes. Em média, 250 pessoas comparecem a cada sessão, em sua maioria, famílias com crianças. Em 2017, serão 50 encenações interpretadas por cerca de 25 grupos de teatro da Grande Florianópolis, de Porto Alegre, Itajaí e Lages. O projeto parece ser uma via de mão dupla: Ao mes-


reportagem

mo tempo em que as companhias têm a oportunidade de mostrar seus trabalhos em um ambiente diferente do convencional e de inserir um novo público à cultura do teatro, o incentivo da prefeitura também é positivo para o comércio. Basta atentar para o horário da programação: Começa às 11 horas da manhã, termina lá pelo meio dia e meia. Nessa hora, a bomboniere ainda está fechada, mas o barulho do estômago não esconde a vontade do almoço e faz questão de lembrar que existe uma praça de alimentação a apenas algumas lojas de distância. O produtor Gabriel Pereira, da Marte Inovação Cultural, empresa que está a frente do projeto, confirma essa teoria. Ele acredita que a iniciativa do shopping revela traços de uma crise no mercado audiovisual, que vê a necessidade de realizar outras atividades para chamar o público não só ao cinema, mas às lojas e à praça de alimentação. Acredita, porém, que a manifestação do teatro nesse ambiente pode transformar famílias, antes alheias à dramaturgia, em novos consumidores da arte. “A sala de cinema é um espaço de cultura. Já que o Iguatemi tem essa sala e essa disponibilidade, nada mais justo que fazer a apresentação teatral no próprio cinema”, opina. Jogo de luzes, instrumentos bem tocados e a telona, logo atrás dos músicos, são elementos que compõem o cenário dos encontros religiosos do grupo Geração Vida (GV). Poderia ser mais uma reunião de pessoas engajadas em uma mesma causa se não fosse pelo contexto peculiar: É tudo feito em uma sala de cinema, a mais moderna do Cinesystem do Iguatemi de Florianópolis. Cerca de 250 jovens comparecem, todas às sextas à noite, aos cultos do GV. As reuniões atraem pessoas das mais diferentes tribos, mas que se igualam pela faixa etária: dá pra contar nos dedos aqueles que já chegaram aos trinta anos. Quem vê as mãos voltadas ao céu durante a execução das canções, provavelmente não imagina que toda aquela tecnologia sonora e visual disponível para a igreja foi resultado de muita persistência dos organizadores. Gabriel Azevedo, pastor do GV, conta que, por muito tempo, os únicos horários livres eram as manhãs de sábado e de domingo, quando o cinema ainda estava fechado. Foi só a partir desse semestre que garantiu um horário nobre, às 21h30 das sextas-feiras. O curioso é que, até há pouco tempo, esse era o momento de disputadíssimas sessões de filmes, indispensáveis para o cinema.

Para o pastor, a incerteza no setor cinematográfico contribuiu para o interesse da franquia na atividade, que atrai um público potencialmente consumidor de seus produtos. “A gente sabe que há interesse na igreja porque, querendo ou não, nela há pessoas que têm influência na sociedade, geralmente que têm um padrão familiar constituído. Ou seja, eu estou atingindo não somente indivíduos, mas famílias”, conta. Azevedo faz parte do time de pessoas que acredita que o cinema está passando, hoje, por um momento de crise. O pastor acredita que a disponibilidade da locação da sala em horário nobre pode ser um reflexo da recessão da economia brasileira, que afeta a venda dos ingressos. “O cinema está passando por uma crise e está percebendo isso. Então, o fato de, na minha visão, eles alugarem às sextas à noite pra gente é porque perceberam que o negócio tava ruim pra eles.”

O NOVO CONCEITO “Nunca se consumiu tanto audiovisual como hoje em dia. Eu acho que o lugar onde se está fazendo isso que é outro”, afirma o coordenador do curso de cinema da UFSC, José Cláudio Castanheira. O aumento no uso de serviços de streaming de vídeo, sites de armazenamento de audiovisual e aplicativos de smartphone têm ampliado o conceito de cinema, que não se restringe mais ao ato de assistir a filmes em uma sala equipada com tecnologias de ponta. “Isso tudo muda uma relação de forças e mexe com uma indústria muito forte: a indústria do cinema”, acrescenta o professor. O mercado em constante mutação levou o cinema comercial a firmar alianças que lhe permitem custear, mesmo que minimamente, seu funcionamento. Por exemplo, informações obtidas nas visitas aos estabelecimentos mostram que, em alguns casos, a presença de seis a sete pagantes em cada sala já são suficientes para manter um cinema em plena atividade. Esse número parece pequeno, mas não tira as preocupações do ramo, que o tempo todo busca estratégias para manter o negócio viável. Nesse sentido, age como um “polvo” que, com seus tentáculos, agarra-se em setores potencialmente promissores - sejam eles relacionados ao entretenimento, à arte ou religião. E caso as “mãos” se soltem ou sejam largadas - balançando o caixa - elas encontram outro suporte que continue a sustentar essa “instituição” que é o cinema comercial.

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diversidade

Países onde a relação homossexual é crime De acordo com o relatório o relatório mais recente da Associação Internacional de Gays, Lésbicas, Bissexuais, Transexuais e Intersexuais (Ilga), “Homofobia de Estado”, publicado em maio deste ano, a pena de morte para as relações homossexuais vigora em oito países: No Irã, na Arábia Saudita, no Iêmen e no Sudão ela é aplicada em todo o território. Na Somália e na Nigéria, em algumas províncias.

América

• Antigua e Barbuda • Barbados • Belize • Dominica • Granada • Guiana • Jamaica • Santa Lúcia • São Cr. e Nevis • S. Vicent e Granadinas • Trinidad e Tobago

África

• Angola • Argélia • Botswana • Burundi • Camarões • Comores • Egito • Eritreia • Etiópia • Gana • Gambia • Guiné

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• Líbia • Libéria • Malaui • Marrocos • Maurício • Mauritânia • Namíbia • Nigéria • Paquistão • Quênia • Senegal

• Serra Leoa • Somália • Sudão • Suazilândia • Sudão do Sul • Tanzânia • Togo • Tunísia • Uganda • Zâmbia • Zimbábue

Oceania

• Brunei • Ilhas Salomão • Kiribati • Papua Nova Guiné • Samoa • Tonga • Tuvalu


diversidade

A história das paradas do orgulho LGBT Um dos acontecimentos mais importantes para a história do movimento LGBT na busca por direitos foi a chamada Rebelião de Stonewall, nos Estados Unidos. O motin contra a invasão da polícia de Nova York no bar Stonewall Inn, no dia 28 de junho de 1969, desencadeou uma série de manifestações espontâneas de membros da comunidade LGBT no país.

Ásia

• Afeganistão • Arábia Saudita • Bangladesh • Butão • Cingapura • Emirados Árabes Unidos • Índia • Irã • Iraque • Kuwait

Nos anos de 1950 e 1960, poucos estabelecimentos recebiam pessoas abertamente homossexuais. Na época, Stonewall Inn era conhecido por ser popular entre as pessoas mais pobres e marginalizadas da comunidade: drag queens, transgêneros, gays, lésbicas, prostitutas e moradores de rua. As batidas policiais nesse tipo de local eram rotina na década de 1960, mas os oficiais rapidamente perderam o controle da situação. Eles atraíram uma multidão que foi incitada à revolta. As tensões entre a polícia de Nova York e os homossexuais de Greenwich Village irromperam em mais protestos na noite seguinte e, novamente, em noites posteriores. Dentro de semanas, os moradores do bairro organizaram grupos de ativistas para concentrar esforços no estabelecimento de lugares que gays e lésbicas pudessem frequentar sem medo de serem presos. No período de alguns anos, várias organizações em busca de direitos foram fundadas em todos os Estados Unidos e no resto do mundo. Em 28 de junho de 1970, as primeiras marchas do orgulho gay - assim chamadas na época - aconteceram em Nova York, Los Angeles, São Francisco e Chicago, em memória ao acontecimento. Marchas semelhantes foram organizados em outras cidades. Hoje, os eventos do orgulho LGBT são realizados anualmente em todo o mundo, geralmente no final de junho, para marcar as revoltas de Stonewall. Em 24 de junho de 2016, o presidente dos Estados Unidos Barack Obama oficializou o palco principal da revolta, o bar Stonewall Inn, como um monumento nacional. • Lêmen • Líbano • Malásia • Maldivas • Myanmar • Omã • Qatar • Síria • Sri Lanka • Turcomenistão • Uzbequistão

Gilbert Baker, criador da bandeira do arco-iris, morreu em 31 de março de 2017

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coluna

Vinícius da Costa é Graduando em Psicologia, Presidente do Diretório Municipal do PSOL de Itatiba, Presidente do Centro Acadêmico Nise da Silveira, membro da Direção Estadual do Coletivo Juntos! SP e militante do Movimento Esquerda Socialista.

1917: a revolução classista das pautas indenitárias!

O

lhando para o retrovisor da história, observamos que há 100 anos “um espectro ronda(va) a Europa, o espectro do comunismo”, em 1917 se deu início a maior e mais bonita manifestação de emancipação dos trabalhadores da história do mundo, quando se começa a revolução que derrubou o Czarismo na então Rússia, que passou a ser a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Iniciado por uma manifestação de mulheres que batalhavam por seus direitos, no histórico 8 de março de 1917, o processo revolucionário começou com o efervescer na luta contra o regime político, em unidade contra o Czarismo, mas em disputa pela radicalidade dos rumos da revolução entre os mencheviques e o Bolcheviques. Com o viés completamente classista e anticapitalista, as trabalhadoras e os trabalhadores canalizaram o programa socialista nas palavras “pão, paz e terra”, dialogando de maneira simples com os camponeses e operários daquele país; carregando consigo as bandeiras indenitárias, como a luta das mulheres e os direitos da população LGBT, a exemplo de que a vitória da revolução descriminalizou o aborto e tornou o “amor livre”. É olhando para o passado que lutamos no presente e construímos uma perspectiva de futuro, e é por isso que é fundamental para esquerda além de carregar

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a pauta anticapitalista, carregar as pautas contra a opressão com um viés classista e revolucionário, fazendo com que toda a população tenha cada vez mais direitos, mais liberdade e mais socialismo. Dito isso, é primordial fazer balanço do que foi a queda do Muro de Berlin, e o que levou a isso, processo que certamente passou pela a estalinização da URSS, fazendo um desserviço aos lutadores socialistas de todo o mundo, reprimindo as mulheres e os LGBTs, Stalin aplicou uma série de retrocessos as conquistas que a revolução havia trazido, cassando e matando seus opositores à esquerda, além de fazer um pacto com a burguesia para o fortalecer o desenvolvimento nacional, pacto esse que foi arruinado. A história nos mostra que esquerda precisa agarrar as bandeiras indenitárias e abandonar a bandeira da conciliação de classes, que nos levou ao erro na URSS, nas repúblicas socialistas da América Latina e até no Brasil com os governos do PT. Para construir uma nova esquerda é preciso ter cada vez mais feminismo, mais negritude e mais LGBT, é preciso ser cada vez mais classista, anticapitalista e revolucionário a disposição de romper com todo e qualquer setor que explore trabalhadoras e trabalhadores do país, e sobretudo, é preciso ser INTERNACIONALISTA!


coluna

Andrea Caldas é professora associada na Universidade Federal do Paraná (UFPR), graduada em PEDAGOGIA, mestre em Educação e doutora na área de Economia Política da Educação pela UFPR. Além disso, atua como pesquisadora e consultora na área de políticas educacionais e movimentos sociais.

um leopardo reverso-

O

s ultra-liberais nativos, para fazer vigorar seu programa de recessão planejada e reversão de direitos sociais, precisaram se valer da aliança com os setores mais fisiológicos da política nacional, protagonizados pelos bizarros personagens na votação do impeachment. Esta gente sisuda de terno e muitos diplomas MBA despreza tanto ou mais que nós o baixo clero da política nacional, que faz tatuagem de henna para homenagear o presidente golpista. Fico aqui a imaginar o que o ex-presidente FHC deve comentar sobre o gosto artístico de João Dória. Sim, porque a nossa burguesia neoliberal dos anos 90 foi laureada por um presidente intelectual que sabia conversar em várias línguas e distinguir bons vinhos. Não teve esta sorte agora. Precisou substituir, às pressas, a presidenta eleita pelo que estava a mão. E era Michel Temer e sua base social emergente. Se lá nos primórdios do capitalismo, a elite aristocrática culta e decadente era substituída pelos toscos burgueses em ascensão, hoje, a burguesia financeira que fez tanto esforço para melhorar seu coeficiente intelectual se vê de novo presa ao seu passado. Hoje, seus aliados são os obtusos e incultos.

Lembranças de um passado que ela pretendia esquecer. Lembranças do seu passado de origem. Não é verdade que o capitalismo não valoriza o saber. A ciência ganhou impulso pós-Revolução Industrial. Mas, o capitalismo valoriza só um tipo de saber: o utilitário e pragmático. Logo, seus seguidores são, de modo geral, utilitaristas e pragmáticos. São os lunáticos que boicotam exposições artísticas. Os malucos que defendem o estupro “a quem merece”. Os abestalhados que acham que o Estado deve intervir no direito de ensinar (nada mais anti-liberal do que isto!). Sim, a burguesia falhou na sua vocação meritocrática. Não conseguiu superar o Renascentismo e os monarcas ilustrados. Continua aninhada na sua origem tosca e utilitária, que lhe persegue como o espectro de seu destino. E por isto precisa combater o pensamento de esquerda, a arte crítica, a reflexão elaborada. Porque esta insiste em lhe recordar que sua destinação final foi o abraço com Alexandre Frota, Roger, Lobão, Olavo de Carvalho et alii... Quem fracassou no projeto de humanidade, afinal?

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entrevista

Dona Hilda quer dançar A benzedeira mais antiga de Florianópolis resgata história, cultura e tradição EDUARDO IAREK & PAMELA SCHREINER

N

ão se sabe ao certo quantas pessoas já passaram pelas mãos de dona Hilda Matilda Vieira. Cheia de energia, a benzedeira de 104 anos continua exercendo a profissão que aprendeu com a mãe. De moradores da comunidade à estrangeiros, essa personagem nativa da ilha já benzeu até mesmo médicos e celebridades. Sua casa é comprida, de alvenaria com a última peça de madeira e uma cobertura nos fundos. Dela, dá pra ver alguns barcos estacionados na rua e na areia em frente ao mar. Fica ao lado do Bar do Arante, tradicional restaurante de Florianópolis, localizado no Pântano do Sul, extremo sul da Ilha. O falecido irmão de dona Hilda, Seu Arante, fundou o bar que agora está sob responsabilidade de Arantinho, seu filho. Na casa da dona Hilda, quem nos recebeu foi sua filha, Maria Hilda. Logo na nossa chegada, apareceram duas meninas, que aparentavam ter entre 18 e 20 anos, pedindo para serem benzidas. Depois de fazer o trabalho, a benzedeira caminhou em nossa direção, até os fundos de sua casa, onde nos atendeu. “Eu digo que não vou benzer mais agora. Quase morri, minha filha. Eu estive cinco dias na cama. O médico disse para eu parar de benzer um pouco. Mas agora que

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estou melhorzinha vou lá no Arante, eles me chamam “tia Hilda pra lá, tia Hilda pra cá”. Veio uma menina que o filho nasceu, eu benzi ela e ela fez um bom parto. Quando não é aqui é lá.” Antes mesmo que pudéssemos perguntar, Dona Hilda já foi logo se adiantando em contar sobre sua vida agitada. Com toda essa vontade de falar, passamos tanto tempo ouvindo as suas histórias que pudemos sentir o sol forte que batia em nossos rostos enfraquecendo até o fim da tarde daquela quinta-feira, dia 27 de abril de 2017. Pâmela Schreiner: Dona Hilda, quando a senhora começou a benzer? A minha mãe era benzedeira. A minha mãe, meu avô, meu tio, todos benziam. Mas eu tinha uns dez, doze anos e ela estava benzendo, sabe? Depois, quando eu tinha uns quinze anos, aí eu já era moça, eu gostava muito de dançar. Eu dançava, dançava muito. Aí a mãe dizia “filha, não vai seguir as benzas da mãe?” e eu dizia “não mãe, eu quero dançar, não quero aprender não”. Mas eu sempre estava junto nas benzeduras dela. Eu nem posso saber quando eu aprendi certas benzeduras. Eu sei de tudo, das benzeduras. Aí eu fui benzendo, fui benzendo.


entrevista Como é a benza da zipra, dona Hilda? A da zipra é assim: Pedro Paulo foi a Roma, encontrou com Jesus Cristo, Jesus Cristo perguntou: que há por lá Pedro Paulo? Senhor, muita zipra, muita zipela. Volta lá Pedro Paulo, com que se cura a zipra, Senhor? Óleo de oliveira, a lã da carneira virgem. Isso mesmo se curaria com nome de Deus e da Virgem Maria, nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo. Essa é a da zipra. O que as pessoas mais pedem para benzer? Ah, diz que tem mau-olhado, não come. Mas quando estão carregados de coisa ruim é ruim! Dona Hilda, vem muita gente pedir a sua benza? Mas vem gente até de Portugal!

Foto: Eduardo Iarek

Eduardo Iarek: E que benzas a senhora aprendeu com a sua mãe? Minha mãe ia benzendo e eu escutando as benzeduras dela. Aí eu aprendi a de calor de figo, que é para quando as pessoas têm umas coisas na perna, no rosto, que começa a arder, é só benzer. E tinha a da zipra. Da zipra é para quando as pessoas estão com o rosto assim [aponta para o próprio rosto, que está com feridas]. Eu já estou com o rosto assim há dez anos. Já fui no médico perguntar se era câncer de pele e o médico “não tia Hilda, não é nada disso”. Estou passando uma pomada, mas tem uma coceira tamanha e daí eu benzo. Zipra é só benzer. Coceira na vista eu lavo com água da camomila, que é muito bom para a vista. Mas o médico disse que não tem perigo nenhum.

Até de Portugal? De Portugal, de São Paulo, do Rio de Janeiro, de tudo quanto é lugar! De Portugal eu benzi seis mulheres! Ano passado elas vieram aqui. Essa gente de Portugal conhecia o Arantinho [sobrinho de dona Hilda, filho de Arante]. A mulher de Portugal que eu benzi colocou uma nota de cem na minha mão. Mas aí eu falei “mas essa nota de cem eu não conheço não”. É a que tem a garoupa, né? O Arantinho traz pessoas para a senhora benzer? O Arantinho já veio pedir para eu benzer. Um médico pediu para o Arantinho e o Arantinho me chamou para benzer. E eu disse “mas o senhor não é médico?” e ele me disse que era médico de doença e que eu era benzedeira de mau-olhado, queria que eu benzesse ele! Aí eu benzi. A senhora acredita em bruxaria? Oh credo, às vezes chegam umas crianças aqui e falam para mim “Tia Hilda, eu não durmo de noite”. Aí eu mando elas botarem um alho, dois dentes de alho, embrulha embaixo do travesseiro que se a bruxas estiverem aborrecendo as crianças elas vão embora. Eu nunca vi, mas eu acredito pelo povo. Olha, as bruxas podem ser tu,

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FOTO: PAMELA SCHREINER

entrevista

pode ser eu, pode ser qualquer uma, nunca se sabe. Mas graças a Deus com as benzas as crianças dormem bem. As pessoas dizem “Dona Hilda, sua benza é muito forte”. Já confundiram a sua benza com bruxaria? Eu não sou macumbeira e não sou espírita. Vem gente aqui em casa achando que eu sou. Eu sou benzedeira! Minha mãe dizia “quando é para benzer uma pessoa grande tu não benze! Mas se é um inocente pode benzer”. Uma vez eu benzi a Xuxa. Vocês conhecem a Xuxa? A Xuxa da televisão? A Xuxa das crianças, não sei se é de televisão. Ela esteve aí, com um monte de gente não sei de onde. Aí me chamaram “tia Hilda, vem cá”. Um povo, um povo para ver essa Xuxa. Ninguém viu, só quem viu fui eu! Veio segurança, veio tudo. Aí eu peguei e disse assim “mas não querem que ninguém entre, como eu vou lá?”. O segurança me chamou “vem cá tia Hilda, estão te chamando ali dentro”. Aí eu fui e benzi a Xuxa. O que a Xuxa queria que a senhora benzesse? Ah, ela pediu para eu benzer. O rapaz disse que ela casou porque eu benzi ela! Ela casou. Falaram que a Xuxa era solteira. Depois que a tia Hilda benzeu ela casou! E tem registro disso, dona Hilda? Tem. Ela tirou um retrato, que o Arante levou, fez um quadro grande. Está lá no Arante. Dona Hilda, a senhora está meio doente, certo? E mesmo assim continua benzendo? Sim. Eu continuo benzendo porque o pessoal gosta muito de mim. Mas eu estou muito doente agora. E dona Hilda, a senhora já tem 104 anos. Qual o segredo dessa saúde? A senhora já foi benzida? Não, não, nunca fui benzida. Perguntam porque eu tenho essa idade. No tempo que eu me criei, nós não comíamos carne e nem galinha. A gente só comia peixe! Só peixe, só peixe, só peixe! Era peixe assado, peixe cozido... batata, aipim, canjica. Minha mãe tirava muito milho para fazer canjica, para fazer papa. A gente comia muito caldo de peixe. Mas eu benzo muita gente carregada e eu sei que isso faz mal a mim, faz mal’a mim, é por isso que eu me benzo, eu me benzo com as minhas próprias mãos.

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A foto de Dona Hilda benzendo Maria da Graça Xuxa Meneghel está colada nas paredes do Bar do Arante.

A senhora pode contar mais sobre a sua infância? Sim. A gente passava muita necessidade. Meu pai casou com a minha mãe, os dois eram viúvos. Meu pai teve cinco filhos com a minha mãe e teve uma filha com a outra mulher. Morreram dois filhos da minha mãe. Ficaram eu, a Maria e o Arante. Passamos muita necessidade, muita fome. Só Deus que sabe o que nós passamos naquele tempo! A minha mãe mandava a gente ir arcar com as nossas necessidades e a gente ia na casa dos vizinhos pedir uma comida, um pote de farinha. Se aquela pessoa emprestava nós saia muito contentes e se não emprestava nós saia chorando. Eu me lembro disso tudo que eu passei! E a senhora já foi casada? Eu me casei e fui muito feliz. Meu marido montou uma venda, eu estive 38 anos casada com ele! Mas eu não tive sorte. Meu marido ficou doente, me abandonou, foi embora para a cidade, arrumou uma amiga. E eu trabalhei nessa venda, trabalhei oito anos na Armação. Tinha fartura, todo mundo vinha aqui em casa. Daí eu fiquei chorando. Chorei três anos pelo meu marido! Eu fiquei com os nossos quatro filhos. Ele era muito bom para mim. Tratou muito bem as minhas filhas e os meus filhos. A senhora tem uma boa memória... Ah, eu tenho! Eu me lembro de tudo, graças a Deus! Eu tenho 104 anos! Fiz agora na véspera do Natal. Eu fui re-


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gistrada com 12, 14 anos. Eu teria 93 no registro, mas já tenho 104! Eu sei que eu tenho 104! Eu tinha uma amiga de 93 anos e ela dizia “Hilda, mas tu és bem mais velha que eu” e eu dizia “sou, sou, sou” Eu tenho 104 anos!

“Eu me lembro de tudo, graças a Deus! Eu tenho 104 anos! Fiz agora na véspera do Natal.”

mais. Eu rezo em casa, gosto muito de São Pedro, rezo muito pra Nossa Senhora Aparecida, São José, Santa Catarina, Pai Eterno, Nosso Senhor do Bonfim, eu rezo pra isso tudo. Chegam seis horas eu já vou pro meu quarto rezar.

E a senhora cobra pra benzer? Eles perguntam “tia Hilda, quanto que é sua benzedura?”. A minha benzedura não é nada. Vocês dão o que vocês quiserem. Uma coisinha para mim. Ontem veio uma mulher aqui e eu benzi. Ela olhou para mim e falou “tia Hilda, está precisando de alguma coisa?”. Ah minha filha, o que eu estou precisando? A minha benzedura me trouxe muita farta. Isso é muito bom para mim, muito bom. Eu não pedia nada. Já me trouxeram até mel de abelha. As pessoas vêm de muito longe e falam “a casa da tia Hilda é ali, pode ir ali que ela benze”.

E aquele sonho da senhora ser dançarina, a senhora ainda gosta de dançar? Aaaah, eu danço ainda! Nesse carnaval que passou, nós montamos um salão lá na venda do Arante, mas o Arantinho não sabe dançar. Quando eu era separada, meu marido já tinha morrido, a gente fazia baile de “véio”. Me perguntavam: “O Dona Hilda, a senhora não é muito velha para isso não?”. Não, não tem idade para isso não, eu sou velha, eu sei que sou velha, eu sei fazer renda, faço renda e ainda venho para cá [para a venda] para ficarem fazendo fofoca? não.

E a senhora sempre morou nessa casa? Não. Eu era casada, meu marido já morreu. Eu já morei lá na Armação oito anos com meu marido. Depois morei em outras duas casas. Daí eu vim para essa casa.

A senhora faz renda? Eu faço renda, vendo renda da minha filha, ela vai trazer amanhã para eu vender, mas eu vendo muita renda lá no Arante, eu estou velhinha mas eu faço. Eu fazia aquelas coxa grande, aquelas coxa bonita, eu ajudei a sustentar meu pai, a minha mãe e meus irmãos, mais a minha irmã tudo nas rendas. Nós saiamos daqui pra vender renda lá no Rio Tavares, chegava lá, não vendia e a gente vinha pra cá cheia de fome, a fome queria matar. Roubamos, fomos presas, chegou o senhor que era delegado e conhecia meu pai “eu trouxe esses ladrão que estavam na lavreira de uva, roubando”. “Pois deixa, roubaram porque estavam com fome, solta elas”, aí soltaram. Eu me lembro disso tudo, fomos lá na casa de uma colega do meu pai, elas socaram e daí nós comemos carne assada com o pilão d’agua, depois viemos embora. Nós passamos tanto trabalho. Era tudo muito difícil, ninguém tinha estudo, meu pai não tinha estudo, minha mãe não tinha estudo. Nós passamos por tanta dificuldade que vocês nem imaginam. Agora não, as pessoas são tudo aposentada, está tudo bom e ainda reclamam da vida, né?!

E qual sua relação com o Arante? Eu ajudei a criar o Arantinho. Meus sobrinhos ali, todo mundo gosta de mim! Eles falam “Tia Hilda, tu fosse a nossa mãe, tu ajudasse muito nós”. Eu chego lá no Arantinho, eu peço de boca eles dão de mão. Eles dizem que “aqui também é da tia Hilda, o que ela quiser ela pode pegar!”. Dona Hilda, e as filhas da senhora também sabem benzer? A senhora vai ensinar suas benzas a elas? Não, não. Nenhuma delas sabe, não sabem nem o Pai Nosso. Eu é que rezo para elas toda noite. Eu rezo muito, muito, muito, para Deus, peço muito a Deus que rogue pelas nossas almas no purgatório. E a senhora sempre foi para a missa? Eu fui muito na missa, ia muito na igreja, mas agora eu nunca mais fui. Eu não vou porque eu começo a espirrar, espirrar, tenho uma tosse... Mas eu rezo muito para eles. Tem vez que morre uma pessoa e eu vou lá na igreja, vou lá, rezo, estou lá. Mas assim como eu ia antes eu não vou

Dona Hilda, com todas as lembranças desse lugar, se alguém quisesse comprar a sua casa, a senhora venderia?

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entrevista Muita gente fala “Dona Hilda, vende a sua casa” e eu falo “não, daqui só para o cemitério”. Eu tenho muito amor pela minha casa. A minha casa tem 47 anos. Meu compadre subiu lá em cima, disse que se eu durar 200 anos aqueles paus ali ainda vão estar todos bons, não tem nada estragado. Deu uns temporais esses tempos que destruíram umas casas, deu um temporal, mas eu não vi nada, peguei no sono, porque eu rezo muito para eu dormir bem. Eu tenho muitos pesadelos durante a noite... Pesadelos? Quando for dormir você cruza as pernas assim [mostra cruzando as canelas] uma por cima da outra. Eu também tinha muitos pesadelos que quase me matavam. Dorme de barriga para cima que ele não tem como chegar, coloca uma perna em cima da outra que ele não chega mais.

Queremos agradecer por todas as histórias que a senhora tem para contar, muito obrigada.

“Cantar? Oh, minha filha, eu canto, eu rezo. Sempre pedem para eu cantar, “tia Hilda, canta uma modinha aí para nós”, eu pergunto se não vão ficar ofendidos, dizem não, aí eu canto: Eu não vou na tua casa Tua casa tem ladeira O teu pai é um homem bom Tua mãe é faladeira. É mesmo tia Hilda, minha mãe é faladeira, morriam de rir. A fala é uma coisa medonha:

Essas moda é de muito antigamente: Da janela do meu quarto Avistei uma pessoa Quem namora as escondida Não namora coisa boa. É mesmo, tia Hilda:

Há 3 coisas no mundo Que me faz carpir o pé O piolho da galinha O ciúme da mulher. Morrem de tanto rir, aí eu pergunto, vocês são casados? “Sim, dona Hilda, ele é meu marido”: Teu marido é tão bonito Que não tem comparação Numa pia de água benta No espaço molha a mão.

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Minha rica camarada Não me use presunção Vem a morte leva tudo E me parte o coração. Vem a morte leva tudo Vem o caixão leva o corpo Fica sabendo menino Morre um pra benzer outro. E não é? Não morre um pra benzer outro? É sim, morre um pra benzer outro.”


perfil

Uma viagem para casa A rotina e as relações de um caminhoneiro preso à profissão EDUARDO IAREK

T

ocam os celulares dos integrantes do grupo “A grande família” no WhatsApp. Era Cristiano Mazur, caminhoneiro há 19 anos, enviando a foto de uma placa de onde havia acabado de passar. A placa poderia ser uma sinalização de trânsito. Porém, o registro era um pouco mais inusitado. Como a região estava sem água, as letras garrafais da imagem diziam “proibido cagar!” A situação reflete o perfil bem-humorado do personagem. Sua localização era Itumirim, um município de Minas Gerais que fica há pouco mais de 800 km de Campo Largo, destino final, onde mora a família do motorista. Ao que tudo indicava, Cristiano retornaria para casa em breve.

No feriado de Finados, fui convidado para jantar com sua família. A primeira imagem que vi dentro da casa foi um grande quadro de Jesus pendurado na parede. Quem abriu a porta foi Murilo, o filho mais velho. Logo em seguida, apareceu Cristiano no seu “estilo natural”: chinelo havaianas, calção e camiseta. Ganhei um abraço apertado e me foi oferecido uma cerveja. Cristiano decidiu convidar alguns amigos para aquele jantar especial antes de pegar estrada novamente. Fritou pastel e fez cachorro-quente com molho bem temperado a lá Masterchef. Entre uma cerveja e outra, as histórias do “tio Cristiano”, como é chamado, foram assunto principal do encontro.

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perfil

Desde que começou a carreira, Cristiano Mazur trabalhou com oito carretas: 1 - Scania 113 ......................................... 2 anos 2 - Iveco 420 ............................................2 anos 3 - Mercedes 1932 ..........................10 meses 4 - Ford Cargo 4332 ........................18 meses 5 - Iveco 460 ...........................................3 anos 6 - Mercedes 1934 ...............................2 anos 7 - Scania g40 ..........................................4 anos 8 - Volvo 440 ........................................7 meses

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É peculiar o fato do caminhoneiro já ter estudado em pelo menos 5 escolas, como mostram as informações do seu perfil no Facebook. Durante o colegial, levou advertência em quase todas elas. Em certa ocasião, fez a diretora, Dona Marici, tropeçar em uma linha grossa de nylon, pendurada de uma porta à outra, no corredor. “Fui chamado na secretaria e ela perguntou ‘Foi você que fez aquilo?’”, imita remetendo à voz fina da diretora. “Vou ser sincero, fui eu, mas não era pra pegar a senhora”, conta em meio aos risos. Das 15 pessoas que estavam em sua casa, outras duas eram caminhoneiros. O “compadre” Edloi Cordeiro é amigo de Cristiano há uns 10 anos e também acabava de chegar de viagem.


perfil

A caminho da garagem …

Cristiano - Daí meu compadre, tudo certo? Edloi - Tudo tranquilo, abandonei o comboio na estrada. Fiquei uma hora lá esperando. C - Mas estando aqui tá tudo certo, né?! E - Você não vai trabalhar amanhã? C - Vou levar o caminhão para carregar, daí vou sábado buscar, eu largo dentro da empresa e o cara me libera amanhã de noite. Vou pra Brasília de novo. E - Deus me livre, você é corajoso. C - Mas sabe que eu não sinto saudades do tal do Rio, agora já me acostumei a ir pra lá.

No dia seguinte, acordamos às 7 horas da manhã para ir até a garagem que fica em São José dos Pinhais, município vizinho. A expectativa era voltar para casa logo depois do almoço. Porém, só retornamos às 19h, pois surgiu um imprevisto no sistema de rastreamento da carga. Na tentativa de resolver o problema, Cristiano dedicou quase 12 horas do seu dia de “descanso” e fez mais de 30 ligações em seu celular (onde leva a foto dos filhos no papel de parede). A empresa para qual trabalha tem dois caminhões. Sua companheira de viagens é uma carreta branca da marca Volvo que tem 4 metros e 20 centímetros de altura. Religioso, leva uma bíblia no painel e uma garrafa térmica com café logo embaixo da cama. Além disso, ao alcance das mãos estão algumas balas, remédios, um sabonete e um cortador de unha. Grande parte das viagens são negociadas através do aplicativo “fretebras”, que ele mesmo utiliza. Uma rápida pesquisa no aplicativo mostra que um frete para brasília custa aproximadamente 5 mil reais. Porém, o valor varia de acordo com o produto. Com a responsabilidade de entregar a tempo toneladas na caçamba de 100m³ lotada, 13% do montante das entregas é a parte destinada à Cristiano. Além de arrumar carga para a ida, o maior desafio é encontrar trabalho para a volta. Como ganha por comissão, se não trabalhar não ganha nada. E, apesar das dificuldades, não vê muita diferença entre o trabalho com salário fixo. “No final dá elas por elas”, opina. Mesmo com 19 anos de estrada, Cristiano afirma que a situação não mudou tanto desde que começou a trabalhar. “Hoje em dia existe a lei do horário de descanso, mas ninguém cumpre. Isso é um motivo de acidentes porque o motorista quer sempre ganhar mais, a empresa quer sempre que o motorista trabalhe mais, então a maioria das empresas não exige que o motorista pare, quer que trabalhe 24 horas direto”. Cristiano faz parte da parcela dos caminhoneiros que não gostariam de estar na profissão. Só trabalha na área porque, segundo ele, o salário é um pouco melhor comparado a outros empregos que contratam pessoas sem estudo. “Se for analisar os outros serviços na cidade você vai ganhar três vezes menos do que eu ganho. Como você vai manter uma casa, dois filhos, ganhando mil e quinhentos reais?”, diz. No imaginário de quem não trabalha com transporte de carga certamente está a liberdade de uma vida sem ro-

Foto: Eduardo Iarek

Diálogo:

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perfil

tina, mas Cristiano desconstrói esta concepção. “O caminhão te deixa preso. Você não pode fazer um curso porque você não pode se programar. Hoje eu tô aqui e amanhã já não sei onde que eu vou estar”. Por isso, descreve sua profissão como uma caixinha de surpresas. “Tal dia é aniversário do teu filho, você não pode falar que você vai estar lá porque não sabe se vai estar ou não”. Cristiano geralmente passa 15 dias na estrada, mas já Foto: Eduardo Iarek

Sueli conta que o maridão também é um bom dono de casa.

Foto: Cristiano Mazur

“Para economizar, faço comida no caminhão,” diz.

chegou a ficar 45 dias longe da Laura, sua filha de 3 anos, do Murilo, 17, e de sua esposa, Sueli. O filho não gosta de ficar longe do pai enquanto ele está viajando. “Muitas vezes ele fica duas ou três semanas fora e dá uma saudade”, afirma enquanto relembra momentos importantes em que Cristiano não pode comparecer por estar trabalhando. “Quando eu era pequeno, estudava no primário, no Dia dos Pais geralmente tem apresentação das crianças e ele não podia ir”. Mesmo quando está em casa, Cristiano afirma que ainda tem que trabalhar. “Se eu ficar um ou dois dias em casa é muito. O feriado foi ontem, né? Então, ontem eu vim descarregar o caminhão em Curitiba, cheguei em casa uma hora da tarde, hoje de manhã já estou indo carregar o caminhão, amanhã já tenho que tirar lá da empresa e domingo cedo tenho que viajar. Então, bem dizer, o feriado que eu tô em casa eu tô trabalhando também”. Pelo imprevisto com o sistema de rastreamento da carga, não pude ver o caminhão sendo carregado e sua viagem para Brasília teve que ser adiada para segunda-feira. Ao voltar pra casa depois de uma tarde de trabalho sem remuneração, Cristiano estaciona no “Bar do Tonho” para tomar uma dose de Jamel e jogar sinuca com os amigos. Ao lembrar que a placa de dois carros na garagem da empresa tinham o mesmo número, resolveu tentar a sorte no “jogo do bicho”. “6687”, disse ao dono do bar antes de tomar a saideira. Depois de uma tarde intensa, Cristiano voltou para casa para aproveitar o pouco tempo que lhe restaria com a família, antes de partir para mais uma viagem sem previsão de retorno.

Cristiano entra em contato com a empresa contratante do serviço para ativar o sistema de rastreamento no caminhão.

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versos

Devaneio “E não há nada mais lindo...” dizia o balão. Que baboseira! Pensou a menina. (Foi então que ao lembrar DaquELE sorrindo... Um relutante riso frouxo, escapou-lhe dos lábios).

Dayane Potgurski é estudante de Fonoaudiologia na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e apreciadora de um bom e velho chimarrão.

alerta: tirem as crianças da praça 19 DE DEZEMBRO tem um homem nu duro feito pedra em plena luz do dia em curitiba. não se acoberta do guarda fardado nem se guarda de quem passa apressado. despiu-se bem no centro e ali ficou quietinho mas com seu falo de rocha gozando chuva e madrugada a fio que dizem que não brocha nem no frio. é tímido nos gestos e nas bocas mas intimida por olhar de cima os decotes e a falta de decoro. crianças passam e passam-lhe a mão por entre as pernas sem pelos nem poros das paredes do homem peladão. Fernando Yazbek é estudante de Ciência Política na Universidade Federal do Paraná. Além disso, é poeteiro nas horas vagas e coxa-branca em tempo integral.

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fontana REVISTA

uma dose de cultura

Praia do Pântano do sul, Florianópolis - SC Pântano do Sul é um distrito e uma praia de Florianópolis, capital do estado brasileiro de Santa Catarina. O distrito foi criado pela Lei nº 1.042/66, de 12 de agosto de 1966, tendo sido instalado em 10 de dezembro de 1967. A sede do distrito é a localidade do Pântano do Sul. Situa-se no extremo sul da ilha de Santa Catarina. A praia é de areia fina, e o bairro é um típico retrato das antigas colônias de pescadores tradicionais de Florianópolis. Há diversos restaurantes especializados em frutos do mar. Vale a pena conferir!


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