Revista Agroecologia

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Agroecologia Dezembro - 2017

Maria Marchi: a vida de uma agricultora

Transgênicos: os perigos à saúde e à biodiversidade

Bioconstrução ganha espaço em Florianópolis


EDITORIAL

CARO LEITOR,

EXPEDIENTE

Esta revista apresenta reportagens do mundo agroecológico e rural. Em um contexto de exploração de recursos naturais sem medidas, a preservação do meio ambiente se faz assunto mais do que necessário a ser discutido. Nesta edição você conhecerá a bioconstrução, um modo de construir que busca causar um menor impacto ambiental. Precisamos ter cuidado com os alimentos que levamos à nossa mesa, e produção de alimentos saudáveis faz parte da agroecologia. Na seção entrevista, você vai ficar sabendo dos perigos dos produtos transgênicos à saúde humana e à biodiversidade. Você confere também uma reportagem especial sobre a vida de uma agricultora que, aos 77 anos de idade, tem muita força e vontade para encarar os trabalhos da vida no campo. Boa leitura!

AGROECOLOGIA

Sobre o editor: Daniel Sborz, estudante de Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina e estagiário na TV UFSC.

CAPA Daniel Sborz Foto: Daniel Sborz

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Dezembro - 2017 Editor: Daniel Sborz Projeto gráfico e editorial: Daniel Sborz Textos: Daniel Sborz, Fernando Lisboa e Lucas de Amorim Imagens: Daniel Sborz, Fernando Lisboa, Lucas de Amorim, Fernando Angeolotto e Carlos Pontalti Esse trabalho é experimental, sem fins lucrativos e de caráter puramente acadêmico, desenvolvido pelo acadêmico Daniel Sborz como exercício de projeto gráfico-editorial para a disciplina de Laboratório de Produção Gráfica do curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no semestre 2017-2. Não será distribuído, tampouco comercializado.


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ENTREVISTA

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SUSTENTABILIDADE

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SUMÁRIO

Transgênicos: os perigos à saude e à biodiversidade

Bioconstrução ganha espaço em Florianópolis

ESPECIAL

Maria Marchi: a vida de uma mulher agricultora

AGROECOLOGIA

Agricultores relatam benefícios da certificação

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EVENTOS

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REAPROVEITAR

Seminário aborda desafios da produção agroecológica

A compostagem como alternativa para gestão de resíduos organicos

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FOTO: FERNANDO LISBOA

ENTREVISTA

Transgênicos: à saúde e à bio Rubens Onofre Nodari é professor titular da Universidade Federal de Santa Catarina. Nos últimos 20 anos tem realizado estudos e orientado estudantes de graduação e pós-graduação relacionados com a Domesticação da Acca sellowiana, também conhecida por feijoa ou goiabeira-serrana; genética e melhoramento vegetal, filogenia e filogeografia de plantas autóctones; e biossegurança e biorriscos de Organismos Geneticamente Modificados.

Por: Fernando Lisboa Como se desenvolveu a tecnologia de genes e quais efeitos ela pode causar? Nós tivemos em 1973, portanto, há mais de 40 anos, uma tecnologia que permite inserir genes de um organismo em outro e essa técnica é conhecida como transgenia. Agora nós temos novas tecnologias que permitem fazer alterações no genoma das plantas, dos animais e inclusive no homem. É possível também deletar parte do código genético dos seres vivos e introduzir mutações de poucas bases. Então agora nós temos uma ampliação das possibilidades de alteração. Antigamente se fazia em células

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in vitro (processo biológico que tem lugar fora dos sistemas vivos, no ambiente controlado e fechado de um laboratório e que são feitos normalmente em recipientes de vidro) e agora é possível fazer em vivo, ou seja, é possível fazer essas modificações no organismo vivo, no órgão, na semente ou na flor de uma planta, ou no fígado de um ser humano. Então essas técnicas estão muito mais poderosas, muito mais radicais e muito mais eficientes. E uma das aplicações que já está em andamento é uma particularidade da nova tecnologia chamada Gêne Driver - gene condutor ou gene conversor.


os perigos odiversidade Esse gene, se inserido em um organismo, obriga a todas as outras sequências de DNA que ocupam o mesmo lugar no Genoma a se converter a ele, então um gene vai ser rapidamente espalhado em uma população inteira. Nesse sentido, poderia ser aqui um gene que permite que os descendentes sejam todos do mesmo sexo, vai ser tudo masculino ou tudo feminino em mosquitos, por exemplo. Com isso, seria possível quase que diminuir drasticamente uma população de uma espécie ou até eliminá-la da face da terra.

E isso pode ter impacto na saúde humana? Nós não temos nenhuma experiência, nenhum estudo. Portanto, não dá para falar nada. Mas não se descarta a possibilidade de uma manipulação dessas ter efeitos colaterais ou não intencionais, tanto na saúde humana como no meio ambiente. Nós já conhecemos que a inserção de genes via transgenia em plantas já tem impactos na saúde humana, no meio ambiente, e pode ser que essas modificações estejam associadas a outros efeitos que ainda nós não sabemos à saúde humana.

“Uma manipulação dessas pode ter efeitos colaterais ou não intencionais na saúde humana e no meio ambiente.”

No âmbito da agricultura, quais poderiam ser os impactos? Colocar o Gêne Drive em uma espécie que ficou suscetível ao herbicida, o resultado seria eliminar essa espécie, eliminar as populações de plantas que não são comercialmente utilizáveis da face da terra. Se procura também que outras plantas, ao contrário, se tornem mais resistentes a doenças, mas sobre isso a gente ainda não tem nenhum resultado positivo. Um dos estudos mais avançados é para fazer, por exemplo, uma maçã ficar mais tempo sem escurecer, sem oxidar. Você não vai comer uma maçã se ela oxida num curto espaço de tempo. Então, tem gente tentando modificar geneticamente as plantas para que o período de escurecimento das frutas seja prolongado.

Já existem impactos comprovado dos transgênicos na saúde humana? Tem impactos na saúde humana, não só indiretos via agrotóxicos, mas também a intolerância alimentar. O mesmo acontece com o princípio da alergia, à sensibilidade. Se conserta as toxinas que as plantas produzem e elas causam certa sensibilidade em um grupo de pessoas, mesmo que seja restrito, e essas pessoas têm indício de alergia com certas toxinas de plantas transgênicas. Quais são os relatos que chegam para o senhor desse impacto dos transgênicos na pequena agricultura?

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crucial dessas novas tecnologias. Vai ser difícil descobrir qual variedade foi modificada por essa tecnologia e quais não foram. Fazer agroecologia sem sementes crioulas, não é agroecologia. Então os agricultores vão ter que se debruçar agora, porque agora a ameaça é muito maior no sentido de “A semente representa criar dentro da rede vários E dentro desete quatodo o histórico locais ou núcleos que posdro, qual a importância sam ser sementeiros que pode redes como a ecovida? da humanidade de dem se tornar produtores de Com essas novas medomesticação de cultura sementes locais e fornecer todologias de alteração do para os demais. É só lembrar DNA a gente não vai poder e também de prazer, que a semente tem muitos rastrear, não vai poder mode harmonia, significados. Ela representa nitorar. Esse talvez seja o de socialização.” não só uma vida. Ela repremaior impacto para as sesenta todo o histórico da mentes crioulas. Os agricultores estão sensibilizados para discutir formas humanidade de domesticação de Cultura e tammais seguras de minimizar essa contaminação. bém de prazer, de harmonia, de socialização. É Por que, neste caso, eles nem vão saber que as parte da nossa comida, é parte da nossa cultura suas sementes estão contaminadas. Esse tal- e, além do valor monetário, o valor maior é o vez seja, do ponto de vista ético, o efeito mais cultural que ela [a semente] representa. O primeiro impacto para quem produz de forma agroecológica é a contaminação das suas sementes. O segundo é que os animais recusam comer transgênicos. Terceiro, mesmo com uso de transgênicos, o volume de agrotóxico nessas plantas é maior.

O QUE É GENE DRIVER? O Gene Driver, ou movimentação de genes, é o fenômeno em que a herança de um determinado gene ou conjunto de genes é favoravelmente tendenciosa. Ele pode surgir através de uma variedade de mecanismos e resultados em sua prevalência aumentando em uma população. Os genes drivers foram propostos para fornecer um meio eficaz de modificar geneticamente populações ou mesmo espécies inteiras. As aplicações dessas unidade de genes incluem a prevenção da propagação de insetos que transportam agentes patogénicos (em particular, mosquitos que transmitem malária, dengue e patógenos de zika), controlando espécies invasivas ou eliminando resistência a herbicidas ou a pesticidas. A técnica pode ser usada para adicionar, interromper ou modificar genes, de modo a causar um acidente nas populações de um vetor de doença, reduzindo sua capacidade reprodutiva.

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Reportagem: Daniel Sborz e Lucas de Amorim

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onstruir uma casa com quartos, cozinha, banheiro, sala de estar, usando materiais recicláveis ou de demolição pode parecer impossível: mas não é. E foi assim que o uruguaio Jaime Riccio, que chegou em Florianópolis em 1995, começou a edificar as três casas que hoje possui em um terreno na Praia Brava, localizada no Norte da Ilha de Santa Catarina. Duas delas já foram elencadas pela Viagem Livre (editoria de Viagem do portal Catraca Livre), em parceria com o site Airbnb, entre os dez lugares mais inusitados para se hospedar no Brasil. E não é difícil entender o motivo para tal condecoração: garrafas de vidro são a matéria-prima das paredes das casas do uruguaio, que são firmadas com cimento, para substituir os tijolos de argila de uma construção convencional. As janelas e estruturas de telhado foram construídas com madeira de demolição. No início ele começou comprando garrafas e madeira antiga, mas depois os seus vizinhos e conhecidos passaram a ajudá-lo fazendo doações. “Eu recebo muita coisa que a pessoa tem em casa que não tem utilidade e que de repente eu posso aproveitar, ela não sabe como aproveitar, então traz pra mim e eu aproveito”, afirma Riccio. A estrutura criada pelo uruguaio é uma das técnicas da bioconstrução. Esse modo de construir casas busca causar um menor impacto ambiental, tendo a preferência por adotar produtos

e tecnologias do próprio local onde se pretende construir, como o barro, utilizando materiais industrializados que surgem do processo de reciclagem ou até mesmo os próprios resíduos recicláveis, reaproveitando o que seria jogado fora. Jaime Riccio já perdeu a conta de quantas garrafas de vidro utilizou, mas garante que são mais de duzentas mil unidades. Para ele, a bioconstrução é uma forma de colaborar com o planeta e um caminho para quem quer construir uma casa com um custo reduzido. “É uma alternativa para a pessoa que tem pouco recurso, uma maneira de fazer uma coisa que da forma convencional talvez não conseguiria. Eu acho que é uma questão de logística e educação”, avalia o uruguaio. Mas afirmar que a bioconstrução é apenas uma possibilidade de baixo custo pode ser um mito. A arquiteta Cecília Heidrich Prompt, especializada nesse tipo de construção, esclarece que “são vários fatores que acarretam, é possível fazer com acabamentos bem refinados, que é o nosso objetivo. A gente quer uma acabamento de qualidade, uma estética refinada e que se seja sustentável também. Mas é uma busca geral chegar num padrão de acabamento perfeito”. Prompt afirma que já trabalhou em uma edificação considerada, por ela, de alto nível no Rio Vermelho, na capital. “Uma casa de dois pavimentos, com três quartos, dois banheiros, escada, telhado verde”. A residência de fato teve um AGROECOLOGIA | EDIÇÃO 01

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SUSTENTABILIDADE

Bioconstrução ganha espaço em Florianópolis


FOTO: DANIEL SBORZ

Escadaria e muros construídos com garrafas e cimento no terreno de Jaime Riccio

custo menor, cerca de 1100 reais por metro quadrado, enquanto o Custo Unitário Básico define R$1736,01/m² para construções de nível alto em Santa Catarina. Mas, para isso, além das técnicas de bioconstrução, foi necessária uma busca incessante por materiais de baixo custo. Então, nem sempre bioconstrução significa baixo custo, dependerá da intensidade na busca por materiais baratos e sustentáveis por parte da construtora ou do proprietário. Além de trabalhar com a bioconstrução, a arquiteta vive em uma casa edificada dessa forma. Algumas paredes foram erguidas com um tipo de tijolo chamado Bloco de Terra Comprimida, conhecido como solo-cimento, que é fabricado com uma mistura de terra e uma quantidade reduzida de 8% a 12% de cimento. Esses blocos não passam pelo processo de queima em sua produção e são uma alternativa de baixo custo. Outras paredes foram feitas com uma técnica chamada taipa de mão, mais conhecida como pau-a-pique, que utiliza madeira e barro com uma estrutura principal de madeira roliça e uma trama (tela quadriculada que fica entre a madeira e o barro) para firmá-las. Esses tijolos diminuem o aquecimento do interior da casa em dias quentes de verão. A palha é utilizada na construção das paredes para aumentar o isolamento térmico, pois o barro, por si só, acaba transferindo calor. “Numa parede de

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barro mais fina o calor vai chegar, mas não tão rápido quanto um bloco de concreto”, afirma a arquiteta. A vantagem indiscutível de se construir com barro é o controle da umidade do ar. Em paredes de concreto isso não acontece e em determinadas épocas do ano, como no inverno, o resultado são as infiltrações de água e formação de mofo frequentes. O telhado verde também é uma opção para evitar o aquecimento interior de uma casa. “Ajuda muito na questão térmica. Ajuda, porque, além de ter uma camada de terra, que tem uma inércia maior, a própria vegetação faz um sombreamento”, explica Prompt. Para ser construído, é necessário um trabalho complexo que evite infiltração da água da chuva. Na casa da arquiteta, a camada verde é feita com um assoalho de madeira resistente, coberto por uma proteção que pode ser de papelão, que é revestido com uma lona geomembrana (utilizada em aterros sanitários) resistente por mais de 15 anos, e então é colocada uma camada de barro com uma manta filtro e por último a grama. A camada verde já é bem difundida no Brasil. Em Recife, capital de Pernambuco, foi sancionada uma lei que obriga construções com mais de quatro pavimentos a terem esse tipo de telhado. A Lei Municipal 18.112 de 2015 foi criada para evitar que alagamentos aconteçam no centro urbano da


FOTO: LUCAS DE AMORIM

Casa e escritório da arquiteta Cecília Heidrich Prompt

cidade, já que o gramado no topo de uma construção pode reter até 70% da água da chuva. Enquanto o uso de algumas técnicas de bioconstrução são obrigatórias em certos lugares e situações, na maior parte das vezes essas tecnologias esbarram nos trâmites burocráticos. São leis municipais que definem os alvarás de construção. Em Florianópolis, não é necessário especificar as tecnologias a serem utilizadas. São fiscalizados outros fatores como o afastamento, o comprimento do plano diretor e os índices de aproveitamento. Já a 90 quilômetros de distância da Capital catarinense, o município de Garopaba, por exemplo, tem leis mais rigorosas, onde cada tecnologia de construção deve ser especificada. Por isso os bioconstrutores lutam para buscar a normatização de suas técnicas. O BTC, mencionado anteriormente, já possui norma de utilização junto a Associação Brasileira de Normas Técnicas (ABNT) desde 2012, mas a maioria das tecnologias ainda não foram tipificadas pela associação. O uso do adobe já está em vias de normatização. Essa técnica consiste em um tijolo de barro cru: modelamento de tijolos com terra crua, água e fibras naturais, principalmente palha. Para isso, existe uma linha de pesquisa voltada para a construção com terra. Profissionais, estudantes e pesquisadores dessa área são englo-

bados pela instituição Rede Terra, entidade de direito privado com abrangência nacional que, entre outros trabalhos, busca contribuir com a construção sustentável. A norma do adobe já tramita na ABNT e agora está sendo redigido um documento para normatizar o uso da Taipa de Pilão, técnica que compacta a terra em caixaria. Todo esse processo tem o objetivo de facilitar e difundir a utilização desses materiais. Com as tecnologias especificadas e normatizadas é possível se fazer o financiamento das construções com mais facilidade, tornando esses métodos mais profissionais. A normatização das técnicas prova que o modelo é um projeto arquitetônico como qualquer outro, com todas as responsabilidades que uma edificação acarreta. A prática de mutirões de bioconstrução é comum, gerando um certo preconceito de arquitetos convencionais, mas é necessário salientar que essa ação funciona apenas em algumas etapas da obra. A bioconstrução, como qualquer outra forma de construir, exige trabalho especializado em certos momentos para que nenhum problema venha a acontecer e não se comprometa a segurança de ninguém. E é para promover maior segurança para quem opta por esse tipo de construção que profissionais buscam cada vez mais normatizar as tecnologias de edificação sustentável. AGROECOLOGIA | EDIÇÃO 01

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Conheça a rotina de uma senhora que, aos 77 para encarar os trabalhos que a vida no campo FOTO: DANIEL SBORZ

ESPECIAL

Maria Marchi: uma mulher

Dona Maria cortando o milho de suas plantações

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Reportagem: Daniel Sborz

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m chapéu de palha, as roupas remendadas e já muito desgastadas e um cabo de vassoura, que serve como bengala para ajudar a caminhar, representam a simplicidade de quem sempre viveu na roça. É assim que, aos 77 anos, dona Maria Marchi sai de casa todos os dias com vontade e vigor impressionantes para encarar os trabalhos que a vida no campo exige. Viúva e aposentada, dona Maria nasceu e cresceu no bairro Itoupava, interior da cidade de Rio do Sul, localizada no Alto Vale do Itajaí em Santa Catarina. Teve três filhos com o seu falecido marido, Oreste Marchi, e dois deles ainda moram com ela. Algecir Marchi, 49 anos, é assalariado, enquanto o outro, Adilvo Marchi, 53 anos, sempre foi agricultor. Um salário e a aposentadoria de dona Maria não bastam para cobrir todos os gastos da família, por isso ainda cultivam alimentos e têm alguns animais. O dia começa bem cedo para eles: as quatro da manhã o despertador toca e dona Maria não hesita em levantar. Acostumada desde a infância, ela afirma que gosta de estar de pé a esse horário. Ainda na cama, faz a sua oração, agradece a Deus e pede proteção para mais um dia de trabalho. Depois de preparar o café, seus


a vida de agricultora filhos também levantam para comer algumas fatias de pão e cuca caseira. Enquanto Algecir se prepara para ir trabalhar na cidade, como eles mesmos dizem, Adilvo chama a “criação” – palavra que usam para se referir ao gado – para dona Maria poder ordenhar uma vaca e tratar os quatro bois que eles têm, tudo isso ainda antes do sol nascer. Alguns anos atrás esse número era maior, já chegaram a criar cerca de cinco vacas para poder tirar leite utilizado para consumo próprio e usado para fazer os famosos queijos coloniais. No chiqueiro, ao lado da estrebaria, ficam os oito porcos que são engordados e abatidos periodicamente também para consumo próprio. Quando o sol já está raiando, depois de soltar o gado no pasto, o filho mais velho de dona Maria prepara a carroça com o boi para ir até a roça onde cultivam cana de açúcar, milho, abóbora e mandioca. Alimentos para consumo familiar e para os animais que criam. O caminho até as plantações tem cerca de um quilômetro, e quando chegam lá, um morro íngreme no pé da montanha precisa ser enfrentado. Nada que a bengala de dona Maria não resolva. O seu jeito de andar com as costas curvadas são o resultado de tantos anos de trabalho, se abaixando até o chão para cortar e colher o que planta.

FOTO: DANIEL SBORZ

anos de idade, levanta cedo todos os dias exige, com vontade e vigor impressionantes

Dona Maria se esforça para estender a roupa no varal AGROECOLOGIA | EDIÇÃO 01

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FOTO: DANIEL SBORZ

Ao meio dia, mãe e filho sentam no rancho ao lado de casa para descansar

Depois disso, mãe e filho voltam para casa para preparar o almoço. Polenta, queijo e linguiça nunca faltam. Feijão com arroz também é indispensável para se alimentar bem. No fogão a lenha construído com tijolos maciços fica o “parolo”, uma espécie de panela de ferro em forma arredondada. Dentro dele, água e farinha de milho. Com a pá da polenta – um pedaço de madeira de cerca de um metro parecido com um remo – dona Maria vai preparando a típica comida dos imigrantes italianos. Da janela a mãe chama o filho para almoçar, quando ainda são onze da manhã: “vieni a mangiare”, ela exclama. Ao meio dia os dois sentam para descansar um pouco no rancho que fica no lado de casa. Entre algumas conversas, avaliam como o tempo está se projetando para a tarde. Observando o céu, as nuvens e o vento, deduzem se vai chover ou não, tudo isso pensando se o clima vai interferir no trabalho que eles têm por fazer. A casa da família Marchi é simples, mas muito bem cuidada. A porta de entrada dá para a cozinha, onde as visitas são recebidas. O fo-

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gão a lenha e outros móveis são muito antigos e conservados: uma mesa que tem mais de meio século, assim como o banco onde sentam para as refeições. A pia e os armários que guardam os utensílios domésticos também estão lá há muito tempo. Nas paredes, um relógio grande de Aparecida do Norte e alguns quadros religiosos, que demonstram a fé que a dona da casa cultiva desde criança. Durante as tardes, a agricultora se dedica a serviços domésticos. Enquanto o filho volta para a roça para capinar, ela lava a roupa e estende no varal, varre e limpa a casa. Dentro do cercado, cuida de uma horta com frutas e verduras orgânicas, para consumo próprio, assim como das belas flores, que enfeitam a parte da frente da casa. No entardecer, dona Maria faz a ordenha da vaca, os animais são tratados mais uma vez e ela também recolhe os ovos do galinheiro. O jantar é antes das seis da tarde. Às sete ou no máximo oito da noite, dona Maria já se prepara para dormir. A rotina de trabalho fica mais intensa quando o final de ano se aproxima. Para conseguir


FOTO: DANIEL SBORZ

De baixa estatura, dona Maria se esforça para levantar os braços e estender as roupas no varal

uma renda extra, a agricultora e seu filho mais velho fazem o cultivo do tabaco ou fumo, como é conhecido na região. Por cerca de três meses, os dois trabalham intensamente. Com a venda do tabaco aumentam a renda familiar para se manter durante um ano. Os vizinhos ajudam dona Maria quando tem algum tempo livre. Nilton Marchi é vizinho e parente de média distância da agricultora. Nasceu e cresceu na casa ao lado da de dona Maria. Hoje é aposentado e se admira com o que ela faz todos os dias, apesar da idade avançada. “Eu nunca vi alguém como a Maria. Tem setenta e sete anos e vai todos os dias pra roça, ainda planta fumo. Eu não sei se aguentaria a rotina dessa mulher”, afirma o vizinho. Quando perguntada se já pensou em deixar o lugar onde mora e os trabalhos que a vida no campo exige, dona Maria é convicta: “Mas nunca! Eu não gosto nem de ir muito pra cidade por causa do barulho e do monte de gente. Morando aqui eu não preciso de mais nada”. Odete Farias, outra vizinha que também é agricultora, ajuda

como pode dona Maria durante a safra do tabaco. “A gente não planta mais fumo, por isso vou ajudar a fichar fumo [processo que utiliza uma agulha grande para juntar várias folhas de tabaco em uma corda que depois é pendurada no alto do rancho] porque tem muito trabalho pra eles”, afirma a agricultora. Para dona Maria, hoje a vida é um pouco mais fácil do que antigamente. Ela recorda que há cerca de quarenta anos atrás, quando seus filhos ainda eram pequenos, o plantio do tabaco servia como a única renda que eles tinham para garantir o sustento de uma família com cinco pessoas durante um ano, e não como uma renda extra. Mas para ela, o importante é que nunca faltou o que comer. Simplicidade e trabalho simbolizam a vida de dona Maria e de sua família. Para ela, não existe tempo para pensar em parar. Enquanto tiver vigor e “Deus permitir”, ela diz que vai continuar firme e forte, levantando cedo, descansando pouco e trabalhando muito, com seu jeito humilde de ser e de viver. AGROECOLOGIA | EDIÇÃO 01

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Reportagem: Fernando Lisboa

A

Agroecologia é mais do que técnicas de cultivo no campo. Para pequenos produtores, é um movimento de resistência aos interesses das grandes corporações que atuam no setor, e de combate às relações desiguais de comercialização e consumo dos produtos agrícolas. “É um conceito de vida que prioriza a relação com a natureza, que repensa o consumismo e promove o cuidado e atenção ao próximo” diz a agricultora Sônia Jendiroba, moradora do bairro Ratones, em Florianópolis, e participante da feira orgânica do Centro de Ciências Agrárias (CCA) da UFSC. FOTO: CARLOS PONTALTI

AGROECOLOGIA

Agricultores benefícios da Dona Sônia se preocupa com a qualidade dos seus produtos, a tal ponto de discutir mensalmente com colegas agricultores sobre medidas de avaliação da qualidade dos alimentos que comercializa. Um fator fundamental para mensurar e estabelecer metas passa pelo processo de certificação dos agricultores. Quem comercializa entra para o cadastro nacional dos produtores orgânicos, criado pelo Ministério da Agricultura. O processo de certificação pode ocorrer de duas maneiras: a) Por meio de empresa privada. O produtor contrata empresa de auditoria credenciada pelo Ministério da Agricultura e recebe a certificação após à conclusão do processo. A certificação é renovada anualmente. b) Por meio do sistema participativo de garantia de conformidade orgânica (SPG). O produtor se associa a redes de certificação, a exemplo da Rede Ecovida com mais de 4.500 famílias associadas na região Sul do país. A auditoria de certificação é anual. O custo da certificação tem variações consideráveis de uma empresa para outra no setor privado. Para as redes participativas, há grupos que cobram mensalidades, mas a auditoria é gratuita. A vantagem de contratar empresa privada está na duração do processo, muito Sonia Jendiroba segura os alimentos orgânicos produzidos em sua propriedade no bairro Ratones, Florianópolis

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relatam certificação mais rápido que na rede participativa de garantia, que pode demorar entre 2 a 3 anos. Mas compensa! “Eu gastava cerca de R$ 4 mil reais por ano com uma empresa privada, mas, depois de entrar para a rede participativa o custo caiu para 150 reais por ano” diz Pedro Henrique Eger, produtor de morangos orgânicos de Rancho Queimado. Além do ganho no bolso, participar de redes de certificação se reflete também na formação do produtor. Tanto dona Sônia Jendiroba como Pedro Eger recebem formação específica sobre o funcionamento da rede participativa em que eles estão associados, em ambos os casos na Rede Ecovida. Essa formação é intermediada pelo Cepagro. O objetivo é estabelecer a comunicação permanente entre os agricultores, para que eles troquem experiências e se tornem autônomos em todo o processo de produção agroecológica. Agroecologia como filosofia de vida e instrumento político Como mencionou dona Sônia, a Agroecologia é encarada pelo produtor como filosofia de vida, como um conceito político de resistência. Não é à toa que o Movimento dos Sem Terra (MST) são os maiores produtores

de arroz orgânico na América Latina, com previsão de 27 mil toneladas para este ano. A Agroecologia movimenta as minorias também no campo e serve para discutir as relações de gênero. “Você vai à loja comprar algo para sua propriedade, uma roçadeira, por exemplo, os vendedores ficam te olhando e perguntam: para quem que é? Por você ser mulher, “não é pra você”, são situações que eu passo. Há situações em que vai eu e meu irmão, mas os vendedores falam com o meu irmão. Eu não estou ali para eles”, relata Gabriela Favretto, agricultora de São Domingos do Sul. São questões deste tipo que os movimentos sociais envolvidos na Agroecologia discutem nos seminários e congressos do setor. São para essas pessoas, para Gabriela, Pedro e dona Sonia que a formação dos profissionais no CCA deve se atentar. A comunicação e os questionamentos atuais da sociedade, a exemplo das relações de gênero, devem estar em pauta na formação para que os estudantes possam compreender a dinâmica interna do campo e da relação campo-cidade. Para mais informações sobre o cadastro nacional de orgânicos acesse o site www.agricultura.gov.br

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FOTO: FERNANDO LISBOA

EVENTOS

Seminário abo da produção a Reportagem: Fernando Lisboa Santa Rosa de Lima, município com 2 mil habitantes nas Encostas da Serra Catarinense, recebeu cerca de mil pessoas entre 26 e 27 de outubro durante a realização do VIII Seminário EStadual de Agroecologia, que abordou temas ligados à produção sustentável de alimentos. Conhecida pelo agroturismo, foi ali que começou o projeto Acolhida na Colônia e a cidade também tem o título de Capital Catarinense da Agroecologia. Várias oficinas aconteceram no segundo dia do evento, com temáticas como Educação do campo, Meliponicultura e Sementes Crioulas. O Centro de Estudos e Promoção da Agricultura em Grupo (Cepagro) ofereceu a oficina de Agricultura Urbana, facilitada pelo engenheiro agrônomo Júlio Maestri, da equipe técnica da organização. Na atividade estavam presentes estudantes, agrônomos, aposentados e representantes do Poder Público. A abertura da oficina foi uma dinâmica em que os presentes ficavam frente à frente. “Na nossa educação o professor é colocado de forma superior ao aluno, mas quando a olhamos no mesmo plano (nos olhos), nos reconhecemos como seres humanos, e conseguimos enxergar que somos iguais. Quero mostrar que hoje estou como facilitador da oficina, mas tem várias pessoas aqui que também têm muito a contribuir”, disse Júlio Maestri, mostrando como os conhecimentos da cultura popular também são válidos e que a oficina é uma troca de experiências entre o facilitador e os presentes, mais do que uma transmissão de informações.

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orda desafios agroecológica FOTO: FERNANDO LISBOA

FOTO: FERNANDO LISBOA

FOTO: FERNANDO LISBOA

O que disseram os presentes

Evaldo Espezim - Secretário Municipal de Desenvolvimento Sustentável, Agrícola e da Pesca de Imbituba/SC.

Luis Antônio Mello, Chefe de Cozinha em Itajaí.

Lidiane Camargo - agrônoma e extensionista da Epagri na região de Criciúma.

“Me interessei em conhecer a compostagem para saber da viabilidade dela para transformar as vísceras de peixe em composto. Estamos pensando em implementar na cidade e tentar garantir um projeto contínuo, e que seja algo permanente.”

"Estou no Seminário por causa desta oficina (Agricultura Urbana), estamos montando restaurante, e penso que podemos tratar nossos resíduos orgânicos no próprio local. Se não for possível, ao menos dar o destino certo aos resíduos."

“Agricultura urbana é algo novo para gente (Criciúma), por isso me inscrevi na oficina, para saber mais sobre gestão de resíduos urbanos”

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Reportagem: Fernando Lisboa

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Centro de Ciências Agrárias da UFSC é referência na produção de conhecimento de técnicas agroecológicas no país, e esse reconhecimento não é recente, “é desde que começou a discutir a Agroecologia como meio produtivo no país” diz Walter Quadros Seiffert, diretor do do Centro de Ensino. De fato, o CCA tem papel importante na produção de pesquisas e desenvolvimento de tecnologias a exemplo do

“Método UFSC de Compostagem”, que é uma adaptação de outro modelo mais tradicional que possibilita empilhar matéria orgânica diariamente em uma estrutura alongada conhecida como Leiras. Diferentemente de outros métodos, no da UFSC as leiras não são reviradas ou não tem uma aeração forçada, isso facilita a proliferação de microrganismos que são biofungicidas naturais e podem eliminar pragas funFOTO: FERNANDO ANGEOLOTTO

REAPROVEITAR

A compostagem para gestão de re

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como alternativa esíduos orgânicos autoria do método atribuindo a mim. Na verdade ele foi desenvolvido por egressos e atuais estudantes do CCA sob minha orientação”. Sobre a responsabilidade da criação, o professor valoriza a participação dos estudantes na produção de conhecimento e retrata um pouco os laços entre os alunos e professores do CCA. O resultado das tecnologias desenvolvidas certamente geram benefícios na vida dos agricultores.

FOTO: FERNANDO ANGEOLOTTO

gicidas nas plantas, como o fungo verticillium dahliae, que afeta as plantações de tomates. A consequência é a dispensa de defensivos para este tipo de fungo. Os métodos de compostagem podem ser utilizados para qualquer sistema de plantio, no agroecológico ou no convencional. O professor Paul Miller, do Departamento de Engenharia Rural, questionado sobre a autoria do método foi enfático, “as pessoas falam da

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Agroecologia Dezembro - 2017

Bioconstrução ganha espaço em Florianópolis

Transgênicos: os perigos à saúde e à biodiversidade

Maria Marchi: a vida de uma agricultora


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