AFROnte

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AFROnte Para esclarecer, escurecemos Dezembro 2017 • Ano 01 • Edição 01

a música como forma de militÂncia

preconceito racial

minha luta é ancestral

O que é ser negro no Brasil Relato da mulher negra

Apropriação Cultural Cultura tem dono?


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EDITORIAL Quando me perguntaram qual seria o tema da revista, eu falei: Negros! Foi uma palavra pequena, mas que define mais da metade de um país. Eu queria abordar todos os assuntos relacionados à comunidade negra e que são de extrema importância. Ser negro em uma sociedade racista, não é tarefa fácil, e todos os processos acerca disso, são uma verdadeira batalha, que precisamos vencer todos os dias. Cultura, religião, preconceito, auto aceitação, são uns dos assuntos abordados nessa revista. Buscando mostrar o quão valiosas todas essas questões são, e que o caminho a ser seguido, além de expor todos os nossos problemas, frustrações e medos, é trilhar um futuro muito melhor, em que os nossos direitos sejam respeitados, e que a nossa luta, e a luta dos nossos ancestrais, não tenha sido em vão. Essa revista foi produzida a fim de apresentar um conteúdo inteiramente para as pessoas negras (mas caso alguém branco se interesse, não é proibido). Acontece que, no Brasil, nós negros somos mais de metade da população e mesmo assim, a proporção para quase todos os aspectos da vida humana, é desproporcional. Aqui, apresentamos pautas com tudo o que significa ser negro num país onde o sistema foi estruturado para continuar nos submetendo à condições de nossos ancestrais

africanos que chegaram ao país, sendo escravizados. Não há espaço para o negro na escola e nem na universidade. Negros não ocupam cargos de alto escalão. Negros não aparecem o quanto deveriam e da maneira que deveriam nas televisões, nos jornais/revistas ou em qualquer lugar onde a comunicação social esteja envolvida. A população das periferias brasileiras, é majoritariamente formada por negros assim como a carcerária. O corpo negro é o mais hipersexualizado. O negro é maioria entre as pessoas que dependem de um sistema na maior parte, falho. O negro precisa ser visto com o mesmo valor e a mesma capacidade que qualquer outra pessoa tem, independentemente da cor. A ocupação na faculdade e em cargos importantes precisa acontecer. Visando tudo isso, nós decidimos apresentar todas essas questões, aqui colocadas. Discutir sobre os problemas, mas também reconhecer e valorizar, tudo de belo em que tem origem da nossa população. Ser negro é tudo isso. E mais um pouco. Ser negro também significa carregar consigo o uma ancestralidade carregada de uma cultura muito característica, específica e especial. Existir, e resistir. Leticia Silva, Maria Heloísa Vieira.

Expediente Nesta edição, as reportagens foram produzidas por Leticia Silva e Maria Heloísa. Os créditos de foto estão ao longo da revista. O projeto gráfico, a diagramação e o tratamento de imagem dessa edição de AFROnte foram feitos por Leticia Silva e Maria Heloísa Vieira. Para mais informações, sugestões de pautas e dúvidas, mande um e-mail para leticiasantos.silva@hotmail.com ou mmariaheloisa@gmail.com.

Esse trabalho é experimental, sem fins lucrativos e de caráter puramente acadêmico. Desenvolvido pelas acadêmicas Leticia Silva e Maria Heloísa Vieira, como exercício de projeto gráfico-editorial para a disciplina de Laboratório de Produção Gráfica do curso de Jornalismo, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) no semestre 2017-2. Não será distribuído, tampouco comercializado.

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SUMÁRIO 06

Preconceito racial

O que signifca ser negro no brasil

14 transição capilar

VocÊ sabe o que é bc?

minha luta é ancestral o relato de uma mulher negra

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cultura de periferia produção no morro

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especial - entrevista a musica como forma de militÂncia

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apropriação cultural

c u lt u r a t e m d o n o ?

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28 histórico de luta

movimento e consciÊncia negra no brasil

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Preconceito

Preconceito racial O que significa ser negro no Brasil Recentemente um vídeo com cenas de bastidores de uma passagem de William Waack e Paulo Sotero para o Jornal da Globo se tornou público. O repórter e também âncora do mesmo jornal, aparece reclamando de pessoas que estão passando pela rua buzinando e finaliza seus comentários com “Sabe de quem é isso né? Isso é coisa de preto” e ri. Paulo Sotero acompanha o pensamento com seguidos “sim”. Maria Júlia Coutinho é vítima de preconceito racial nas redes sociais. Assim como Taís Araújo, Preta Gil, Thiaguinho, Negra Li, Seu Jorge, Glória Maria, Nego do Borel e até Vinícius Romão que foi preso por ser confundido. A lista é imensa, e todo dia cresce. Até aqui, apenas pessoas públicas. Mas a matriz do problema, é toda população negra brasileira -frisando que é a MAIORIA no país- que diariamente escuta absurdos sobre sua cor de pele, seu corpo, seu cabelo, sua religião e cultura. Pensar em preconceito racial, é primeiro pensar em desigualdade racial. Tendo em vista que 53% da população brasileira é formada por negros, a divisão de índices deveria ser proporcional para negros e brancos, mas na prática, isso está longe de ser real. Segundo dados extraídos de fontes como IBGE e alguns vídeos do canal Hidra - Cabeças Pensantes, a educação pode ser dada como exemplo. A chance de um negro ser analfabeto no país, é 5 vezes maior do que um branco. A cada 4 pessoas no Ensino Superior, apenas 1 é negra. E o impacto disso só aumenta quando pensamos fora da sala de aula. 70% das pessoas que vivem em extrema pobreza são negras. No país, 80% da população de maior renda, é branca. Todos esses dados refletem no nível de qualidade de vida, por exemplo: 70% das pessoas brancas tem uma máquina de lavar em casa mais da metade dos domicílios chefiados por uma pessoa negra (53,3%) não têm uma. O mesmo vale para a internet, onde mais de 50% dos negros não possuem nenhum tipo de acesso. Quase 40% não possuem esgoto encanado e 70% dependem do sistema de saúde público. A cor da sua pele determina tam-

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bém o seu tempo de vida. Em dez anos, o número de homicídios contra mulheres brancas diminui, enquanto o índice para mulheres negras, só aumenta. E a morte não é feminina. A cada 12 minutos uma pessoa negra morre no Brasil. Também são os negros que mais morrem em operações policiais e ocupam maior parte da população carcerária. ( E é difícil para a comunidade negra mudar isso por dentro. Porque essas pessoas não são representadas nem no judiciário, legislativo e muito menos executivo. Essa defasagem não é de hoje, historicamente é ultrapassado em representatividade. Foi o último país ocidental a abolir a escravidão. A maioria das pessoas não foram criadas para pensar o racismo como algo que precisa ser combatido. O que fazer quando alguém fala que você não pode ficar em determinado local por ser negro? Ou quando te tratam mal por causa da cor da sua pele? Simplesmente aceitar o que falam, e ainda pensar que têm razão quando expressam seus pensamentos racistas, e que o melhor a fazer é ficar de boca fechada e não ter nenhum tipo de reação? Quando acontece um caso de racismo no primeiro momento você realmente não tem nenhum tipo de reação. Você pensa: isso realmente está acontecendo comigo? deve ser coisa da minha cabeça. E começa a ver a situação de uma forma que parece te destruir por dentro, e que coloca toda a tua humanidade no lixo. Todas essas questões certamente não são pensadas por pessoas que nunca passaram por algo do tipo, e cabe até o clichê ‘’só quem passou por isso, sabe’’. Quando somos crianças, poucas são as percepções do que é ser negro. Como entender o porquê de não ser aceito em determinado lugar? Como ouvir uma ofensa relacionada a cor da sua pele e não desejar ter nascido branco? É extremamente difícil começar a entender isso, e se você não tem uma instrução familiar que te ensine a lidar e a entender o racismo como um problema com os outros,


e não com você, o entendimento fica muito mais difícil. Essa mesma criança que não teve alguém para explicar o que é o racismo, quando cresce e se depara com um olhar diferente, ou com uma oportunidade negada, começa a ser atingida de uma forma que faz com que ela se sinta culpada pelo o que acontece, que faz com que ela se sinta subalterno em relação às outras pessoas. O processo de se entender como negro e de principalmente aceitar que é negro e que não tem nada de errado nisso, requer muito aprendizado e consciência. Aprendizado, pra partimos do fato histórico principal: Os negros que foram trazidos da África para serem escravizados, eram vistos como animais. Lhes era negado qualquer direito, inclusive a liberdade. Após o fim da escravidão, esses mesmos negros continuaram sendo vistos da mesma forma e não lhes foi concedido nenhum tipo de direito, por toda a humilhação e trabalhos forçados.. Por mais que tivessem o direito à liberdade, muitas oportunidades lhes eram negadas, e o fim da escravidão de um lado foi um avanço, e do outro foi algo que não adiantou em nada na vida deles. Muitos desses escravos que tinham recebido sua carta de alforria, voltaram aos mesmos locais em que eram escravizados para pedir o ‘’emprego’’ de volta, em troca de comida e local para morar (mesmo que precário), e outros tentavam outras formas de conseguir sobreviver.

Charge por Latuff - A redução da maioridade penal

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Crédito de foto: mídia independente

Não foi implantado nenhum tipo de lei para o amparo destas pessoas, o que acabou reforçando a imagem que era vista do negro: subalterno, que só serve para trabalhos duros, e que não é igual aos brancos. Seguindo esta linha vem o racismo, e tudo o que os negros escravos passaram lá atrás, ainda é visto (mesmo que de forma mascarada) nos dias de hoje. É preciso ter a consciência de que tudo que aconteceu no passado, e que se reflete nos dias atuais, é de extrema ignorância da parte das pessoas que agem desta forma e disseminam isso. Não é preciso dedicar muito tempo para entender o racismo com um problema estrutural do sistema, e que não falar do racismo, não faz com que ele não exista, mas sim, que ele fique escondido e não mostre a quantidade de injustiças que são cometidas diariamente com a população negra. Falar sobre racismo abre os olhos de muita gente para o que ainda está errado, para o que ainda precisa mudar e principalmente faz com que o próprio negro entenda que o lugar dele é onde ele quiser, e não onde as pessoas acham que tem que ser.

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Entender que abaixar a cabeça e aceitar o que falam, não é o caminho! É preciso enfrentar o racismo em todas as vertentes, e ver que as políticas de ações afirmativas não são um favor ou um privilégio, e sim o pagamento de uma dívida antiga, que levará muito tempo para ser quitada. É preciso entender que ser negro, não é impedimento para frequentar determinados locais, de fazer determinadas coisas, ser negro é carregar uma história, uma história que muitas vezes não é contada, mas que existe e que não é só baseada na escravidão. Há muito da cultura negra que foi trazida pelos escravos, até porque antes disso eles tinham uma vida, e o cultivo dessa cultura e desses costumes, é a prova de que mesmo com toda a injustiça do passado, coisas importantes conseguiram sobreviver, resistindo à toda discriminação que ainda é disseminada. A representatividade gera o empoderamento, e ter referências ajuda e muito, para que o negro tenha uma imagem diferente do que lhe é mostrado desde criança. Ter referências que faça o negro entender toda a contribuição dada em diversas vertentes, principalmente cultural. Para que não vejam só portas fechadas e oportunidades negadas, e sim um povo que tem uma cultura extremamente valiosa e que ajudou a construir o Brasil.


relatos de uma mulher negra

minha luta é ancestral Tenho dificuldade de entender completamente o que significa ser mulher, negra e bissexual e sei que este entendimento é um processo permanente. Cada conhecimento que adquiro com o tempo, é um passo em direção ao que me espera no final do túnel. Digo isso porque acredito que me empoderar, aceitar meu cabelo, minhas raízes, exigir direitos não é o objetivo final, é só o começo do resgate de uma auto estima que por muito tempo sofre tentativas de destruição. O que quero aqui é contar sobre algumas situações que contribuíram para o meu auto conhecimento enquanto negra. “Deve ser estranho beijar uma pessoa preta, né?”, eu tinha 13 anos quando uma das colegas do Ensino Fundamental me disse isso. A cara de nojo que ela expressava enquanto dizia a maldita frase rola como câmera lenta na minha cabeça. Foi a primeira vez que conheci o racismo, que me lembre. Anos depois, consegui dizer para esta colega o quão racista ela era, mas ela negou, claro.

Yeda Teixeira

é até bom, o motivo que me excluiu não. Nesta época, minha auto estima era baixa, porque eu sabia que nada apagava aquilo que rejeitavam em mim. A verdade é que quando se toma consciência de todo este racismo diário, uma luz no fundo do peito começa a surgir. Em um misto de raiva, cansaço e determinação, comecei a olhar no espelho e me apropriar do nariz, boca, cabelo, pele e descobri que estes detalhes do meu corpo guardavam uma história de sangue e luta. No interesse em saber quem foram meus ancestrais e o que eles enfrentaram para que eu pudesse estar aqui, descobri um universo de vivências que não imaginava. Sei que tenho uma vida de luta e conhecimento pela frente porque, como disse antes, o processo é permanente. Também sei que todo este processo dói e mexe em uma ferida aberta, mas minha ambição é esta: reconquistar a liberdade e poder que me foram tirados antes mesmo que eu pudesse dizer não.

Durante meu crescimento, tanto no meio LGBTQ quanto no meio hétero, percebi situações que fortalecem a ideia de que a mulher negra é só. Lembro que entre as minhas amigas lésbicas e bi existia um padrão de minas desejáveis: elas eram brancas, tinham o cabelo liso e curto e, geralmente, magras. É claro que estes estereótipos são reforçados pelo fato de eu ser de classe média e de ter crescido em locais higienizados. Entre os caras sempre foi pior. Além de todo o padrão já estabelecido, a sexualização, o assédio e as conversas eram mais agressivas. Quando saía com minhas amigas brancas, a situação já era certa: naquela famosa dança do acasalamento heteronormativa em que homens e mulheres puxam papos chatos para acabar em alguma transa, eu não estava incluída. É claro que ficar fora de um processo como esse

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produção no morro

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a cultura da periferia A expressão cultura de periferia passou a ser usada muito recentemente, em todos os âmbitos. A partir da década de 1980, a palavra periferia passou por intensos processos de ressignificação, ou seja, adotando novos significados, 40 anos depois de ter surgido como marco do Estado nacional, sendo utilizada para compreender os diferentes papéis desempenhados na economia capitalista pelos países do centro e da periferia do capitalismo. Desde aquela época, passaram a ser descobertas pessoas que assumiram papéis importantes como novos personagens políticos que organizaram diferentes frentes e movimentos sociais. Ainda, artistas circenses, jogadores de futebol, músicos e algumas outras formas de lazer.

ve, tornou-se interesse para pessoas das classes média e alta. Daí, ergueram-se também alguns grupos de samba, considerado o gênero musical mais brasileiro entre todos os outros. E não se pode esquecer do funk, assim como o rap, também originário da cultura dos subúrbios dos Estados Unidos.

Essas atividades, além de promover a integração, construir lutas e diálogos entre os cidadãos, podem servir como a voz dessas pessoas que são a maioria das vezes, invisibilizadas. Mas mesmo com todas essas especificidades, ainda nesse tempo, era incomum a menção da cultura de periferia, tendo em vista que ainda era difícil para os próprios moradores reconhecerem seu lugar de origem por exemplo numa entrevista de emprego (e é importante ter em mente que isso acontece até hoje).

No início dos anos 2000, ganharam visibilidade autores provindos das periferias. A revista Caros Amigos chegou até a nomear a literatura periférica como literatura marginal. Desse movimento, são conhecidos nomes como Sérgio Vaz, Allan da Rosa entre outros. Vaz, é um nome importantíssimo para esse movimento, pois é um dos fundadores da Cooperativa Cultural da Periferia e também, foi idealizador da Semana de Arte Moderna da Periferia que aconteceu em 2007. Conjuntamente, aproximadamente nove anos atrás foi adicionada a cultura das periferias os Slams, que são batalhas de poesias onde qualquer pessoa pode participar. Esses eventos acontecem inclusive, em saraus.

Foi só na década de 1990, quando o movimento hip hop ganhou fama nessas regiões, a periferia passou a ser referência e motivo de orgulho para quem ali vivia e inclusi-

Para além de tudo isso até aqui já citado, igualmente surgem diariamente projetos sociais realizados para alunos que se interessem por qualquer um dos tipos de dança, e aqui podemos destacar a quantidade de ações que são realizadas com o balé. Igualmente, os textos literários também são nuances importantes.

Deusa poeta - Foto por Sérgio Silva

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acontece na ilha

Aqui em Florianópolis, esses acontecimentos são praticamente invisíveis para a grande massa. Novamente, a cobertura ornalística feita pelos veículos de maior alcance não só no Estado mas no país, só passar a dar importancia quando é para enquadrar em notícias que em sua maioria, não são boas. A grande verdade é que, muitas coisas acontecem nas periferias da Ilha. Exemplo disso são projetos como o Centro de Educação Popular, o CEDEP. Criado em 1987, com o objetivo de fortalecer e apoiar os movimentos populares na luta de construção de moradia para pessoas sem teto, atende cerca de 210 famílias. Foram implantados, tres projetos principais: O projeto Oficina do saber, que atende 300 crianças e adolescentes no que diz respeito À educação integral. O projeto Fenix que atende 50 meninas e meninos em situação de vulnerabilidade social, contribuindo para a inserção e permanÊncia deles na escola por meio de esportes radicais e por fim, o projeto Avançar, que dá continuidade aos adolescentes e jovens do projeto Fenix, ajudando-os a se inserir no mercado de trabalho e na elaoração do seu projeto de vida. Além disso, no período noturno, o Centro está aberto À comunidade com o programa de Educação para Adultos, o EJA (com ensino fundamental), bem como o Centro de Educação de Jovens e Adultos, o CEJA e também o SEBRAE com cursos técnicos visando o aperfeiçoamento profissional. O Centro está localizado no bairro Monte Cristo, na zona leste da cidade. Grande parte do que se produz nessas regiões, está ligado À cultura hiphop. O movimento desse genero musical desde seu princípio nos EUA vem sido ampliado por negros da periferia aqui. O grupo Arma-Zen P.R.N. nasceu em março de 1999 com influências de grandes nomes do rap nacional como Tang Clan, RZO e Racionais Mc’s. A família (maneira na qual eles se referem), foi sendo formada ao longo dos encontros com os ideais de unificação, paz, e o resgate da auto-estima através da cultura Hip Hop. É composto atualmente por nove integrantes (Muka-sa, João PK, Mckhlaff, Negro Rudhy, Maicom MLK, Ca-zlu, Karyhn, Preto DImi, Pako Beck) mas já teve a participação de alguns outros DJ’s. O grupo, lançou seu primeiro disco demo, em 2004. O segundo trabalho, em 2006 já foi profissional, e destaque para o terceiro disco que foi lançado em 2012 e a estréia teve um acontecimento especial para a banda e histórico para a cidade: foi a primeira vez que um grupo de rap se apresentou no palco do Teatro Álvaro de Carvalho na região central da cidade.

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SigNIfiCAdoS

Com um trecho extraído da matéria feita pelo jornal Diplomatique, podemos refletir sobre o papel dessas movimentações: “Estar na cultura de periferia é tomar partido, assumir um lado, compartilhar uma mesma luta. E esse lado ou essa luta é também uma luta de classes. A pobreza não é um assunto fora de moda para esses grupos, mas vem relacionada a uma série de outros elementos.” Todos os tipos de artes vivas. A cultura dos morros é claramente parte identitária da construção da cultura do país. De algum tempo para cá, tem ganhado mais visibilidade para a grande mídia brasileira. Isso pode ser percebido por exemplo nas telenovelas, onde cada vez mais se cria uma ambientação desses lugares para o público que vive do outro lado. Além disso, diversas discussões acontecem em veículos de notícias, em todos os formatos. Mas é importante ter entendimento de que isso acontece muitas vezes apenas para promover o veículo, mais como uma ação de marketing do que de caráter social, propriamente dizendo. Nos casos em que essas ações têm aparição pública em grande escala, não se pode negar que contribui para a divulgação de tudo aquilo que ali está sendo realizado, conseguindo inclusive expandir o número de participantes.

“A antropofagia periférica parece comer toda a obra de arte da cultura culta, transformando-a em arte-vida, a partir da experiência cotidiana de quem a produz. A produção não é praticada apenas para que se alcance o reconhecimento pessoal de sua criação, mas para que tenha um uso, tanto para quem cria como para quem a consome” RENATO SOUZA DE ALMEIDA

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transição capilar

Você sabe o que é BC? O Big Chop, ou grande corte, é um dos primeiros passos para entrar na transição capilar, muito falada hoje em dia, principalmente por meninas negras que em algum momento de sua vida alisaram o cabelo com produtos químicos, mas que querem voltar ao cabelo natural. Para essas meninas que querem passar pelo processo, o BC acaba se tornando um pesadelo, já que muitas precisam cortar o cabelo bem curtinho. Mas para ter o cabelo natural, este é o único caminho para que toda a química seja retirada a não ser que estejam dispostas a esperar por longos meses, e até anos, a depender do comprimento do cabelo no momento da decisão. Anos atrás, era mais difícil ter meninas que aderissem à esse processo de transição, tanto pela dificuldade de se aceitar de cabelo curto, quanto pelo padrão do cabelo liso imposto pela sociedade. Mas com toda uma ‘’revolução’’ acontecendo, de uns anos pra cá, é cada vez mais comum ter meninas aderindo à essa transição. O que contribui, e muito, para a disseminação de informações relacionadas à aceitação do cabelo natural é a própria internet. O movimento negro que propõe o empoderamento, foi e continua sendo um dos principais causadores de toda essa mudança: disseminando conteúdos informativos e propondo uma verdadeira luta política contra tudo que foi imposto, e a favor da valorização e aceitação do negro.

leve e mais fácil de manusear ao fazer penteados). Pra quem tem dúvida, as tranças não prejudicam o cabelo, muito pelo contrário, fazem com que ele se torne muito mais forte, e ajuda muito no crescimento. Alongamento de cabelo (natural/humano): Os alongamentos de cabelo natural são outra forma de inovar na transição. Podendo ser colocado de diversas formas, os alongamentos são uma ótima opção para quem quer continuar cuidando do seu cabelo natural na transição, depois do BC, sem perder comprimento. Os métodos mais indicados são o nó italiano e a queratina.

Acervo pessoal: Amber Belovely

A sigla BC, quer dizer Big Chop em inglês, e traduzindo significa Grande Corte.

Exemplo de Box Braid e Alongamento de Cabelo natural

Para auxiliar nesse momento de transição, diversos são os métodos para quem não quer assumir o cabelo curto, mas que quer voltar ao natural. Box braids: As box braids são tranças sintéticas, normalmente são feitas com o material chamado jumbo (mais

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Crédito de foto: Loja Mega Hair Tic Tac


Crédito de foto: Carol Cury

? Conhecendo estilos

É muito difícil se acostumar com as diversas texturas que o cabelo começa a ter quando está em transição, mas caso você não queira optar pelas opções dadas aí em cima, você pode buscar outros caminhos, como babyliss e a texturização utilizando bigudinhos, canudinhos e até papel alumínio. Na internet você encontra dicas e tutoriais de como fazer. Crédito de foto: Loja Preta Brasileira

Alongamento de cabelo (orgânico ou sintético): Outra forma um pouco mais barata de ter um cabelo com comprimento depois do BC, é colocando cabelo orgânico ou sintético. Por não serem cabelos humanos, o cuidado é bem diferente e você não consegvue cuidar muito bem do seu cabelo natural, por não poder passar nenhum tipo de produto que você normalmente usa no seu. Os métodos mais indicados são o entrelace e o nó italiano. Lace wig: Muito utilizada pelas norte americanas, a lace wig chegou para ficar. Sendo uma espécie de peruca, a lace facilita e muito a vida das meninas que querem passar pela transição de forma diferente. Podendo utilizar uma diferente à cada dia, a lace wig traz versatilidade e modernismo, e ainda possibilita que você cuide de seu cabelo normalmente. O que as difere da peruca, é a tela que ela possui, na qual cada fio está costurado (seja ele humano ou sintético). Por possuir pequenos pentes nas laterais, é possível encaixá-la, ou até mesmo colar. Existem três tipos: Lace Front Wig (perucas com tela na frente) - Quando o acabamento em tela é apenas no entorno do rosto (testa). Full Lace Wigs (perucas com tela em toda touca) – quando a touca é toda feita em tela e as Half Wigs (meia-peruca) – são perucas em que a touca é menor que a dimensão de uma cabeça. Ela é projetada para ser mesclada com o cabelo natural da cabeça da usuária no entorno da testa, dando uma aparência extremamente natural.

Exemplo de alongamento de cabelo organico e Full Lace Wig abaixo. Crédito de foto: Loja Sista Wigs

Por mais que seja difícil e demore pra chegar ao resultado esperado, vale muito a pena se o seu objetivo é ter seus cachos de volta. Muitas meninas não aguentam mais ficar reféns de secador e chapinha, principalmente no verão.

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entrevista

a música como forma de militÂncia Dandara fez da música, instrumento de luta e resistência. Vindo de Campinas - São Paulo encontrou em Florianópolis diversas maneiras de passar sua mensagem. Como foi o início da carreira e como decidiu definitivamente ser cantora? Quando eu tinha 7 anos eu assisti aquele filme “Mudança de hábito” que tem a Whoopi Goldberg e aí eu olhei e pensei “meu deus, eu quero fazer isso”.. Eu achei incrível, tem cantores incríveis, e eu coloquei na minha cabeça que eu queria ser cantora. E aí nessa época eu ia na igreja ainda, porque eu cresci na igreja, e eu falava pra minha vó que me criou e pra minha tia “ah quero cantar” e em qualquer oportunidade que eu tinha, dia dos pais, das mães, qualquer coisinha assim que criança podia, eu falava que queria cantar. E foi mais ou menos assim que começou. Só que lá em casa, minha tia não botava muita fé ainda, porque, eu gostava muito também de Fat Family, e cantava tudo exagerado assim, que nem o pessoal, e queria fazer performance e minha tia: brava. Na minha igreja era mais rígido, “você não vai fazer essas palhaçadas desse jeito lá na frente!” e aí a primeira vez que eu fui cantar eu parecia uma múmia assim porque eu só lembrava da minha tia falando na minha cabeça “você não faz eu passar vergonha!”. Cantava sempre bem quietinha. Acho que com uns 14 anos, tinha um coral de idosos, eu cantava junto, ia em todos os ensaios e ai quando mais adolescente eu comecei a fazer parte de uma banda, que também era da igreja, era dos meninos, mais rockzinho, até que eu comecei a perceber que eu gostava de ou-

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vir outras coisas, queria cantar outras coisas, tipo MPB, samba. Eu gostava muito, mas em tese era errado porque eu fazia parte da igreja e tudo mais… Só que eu gostava muito, achava muito mais legal inclusive e então começou esse conflito. Foi um dos motivos principais para eu ter saído da igreja nesse começo pois eu queria cantar em outros lugares, outras coisas e eu não achava errado. Lá em Campinas, onde eu morava, comecei a cantar em festinhas, shopping, as vezes em barzinho.. Mas sempre em coisa pouca porque eu trabalhava, já com 18 anos, e estudava então eu não tinha tempo nenhum, cantava esporadicamente, de vez em quando, ou em festa de família e tal porque tem uma parte da família que não era da igreja. Mais velha, aconteceram várias coisas na minha vida... Comecei a fazer uma faculdade lá, fiz três anos de publicidade e propaganda, só que eu tinha bolsa. Na verdade, era a patroa da minha tia que pagava, minha tia que me criou (junto a avó) sempre foi empregada doméstica, aconteceu que eles faliram e não tinha mais como pagar a faculdade e eu pensei “porra e agora? eu preciso fazer alguma coisa”. Aí que eu comecei a pesquisar federais... Eu já não estava gostando do curso, comecei a procurar por ciências sociais e serviço social, até que pesquisando, tive a certeza de que era serviço social mesmo, encontrei floripa e a UFSC, e prestei e deu certo então eu vim pra cá. Mas, na minha cabeça, se eu passasse pra Fe-


brancas e tinham um outro pensamento e hoje somos 10 e 7 negras. Pro cenário de Floripa isso é bastante significativo. É um pouquinho do que cada uma vai trazendo pra compor a história da banda, foi me fortalecendo muito como cantora, como mulher negra, inclusive também esse contato com essas mulheres brancas que estavam e estão dispostas a ouvir e compartilhar e abertas a escutar mesmo, foi bem interessante pra mim.

deral eu ia ter tempo pra caralho pra cantar, pensava que não ia precisar trabalhar pra pagar a faculdade, porque, quando você tá começando é muito ingrato, não ganha grana, então eu precisava não ter muitos custos. E deu certo, eu vim pra cá e depois de um semestre eu entrei na banda “Seu Baldecir” porque tinha um pessoal procurando, procurando cantoras, e eu fui na casa de uma amiga que eu tinha feito na faculdade, tinha um cara lá que estava lá a toa, e eu estava cantando de brincadeira e ele ouviu e no dia seguinte ele me mandou uma mensagem no facebook e disse “Pô, eu conheço uma banda que está precisando de uma cantora. Posso passar o teu contato?” e eu falei “pode!” e era a galera do Seu Baldecir que é um MPB autoral. Pra mim foi a maior porta de entrada porque eu comecei a tocar nas festinhas da ufsc, Casa de Noca, várias rôles, teatro… Foram 3 anos que eu fiquei na banda e foi um puta aprendizado. Depois disso, quando as pessoas começaram a me conhecer a partir da “Seu Baldecir”, outras oportunidades começaram a surgir. Eu entrei no Cores de Aidê, fazem dois anos, bem no começo, na verdade vai completar três anos. A Sara que é a idealizadora do grupo me chamou, porque me viu cantar num outro evento. Ela ter me chamado desde o começo pra mim foi uma coisa foda porque é um lugar onde eu pude ter mais contato com a música afro brasileira e tudo mais, com essa linguagem, e a gente evoluiu muito como banda nesse tempo. Quando começou era um grupo que a maioria das mulheres eram

Dai você começou Serviço Social na UFSC? Eu comecei Serviço Social na UFSC, é que geralmente eu tenho aula de sexta mas já acabou o semestre pra mim, ontem eu descobri que já passei… Enfim, eu comecei na UFSC e na verdade já era pra eu estar me formando o semestre que vem, mas com esse malabarismo entre música e a faculdade é meio foda. Eu acabei atrasando, fui pegando menos matérias pra não ficar tão pesado então vai demorar um pouco pra eu me formar até porque tem o estágio obrigatório de um ano e meio e eu nem comecei, ainda tenho tempo. Em Campinas eu não escrevia, não compunha, era só intérprete só que aqui depois de um ano mais ou menos, já comecei a pensar em compor. Na verdade aconteceu assim, eu já tinha me conformado que só era intérprete e aí, eu escrevo pouco na verdade, tenho poucas músicas autorais, o suficiente na verdade pra gravar um CD, nossa, tenho amigo que tem 400 músicas e não. Foi um processo que começou a acontecer e comecei a colher, comecei a enxergar uma maneira positiva de eu me fortalecer, de dar o meu recado, de explanar o que penso então eu fiquei feliz da vida quando eu vi que isso naturalmente tava acontecendo. E aí o primeiro eram coisas mais românticas e tudo mais e quando comecei a entender a música como forma de transformar, também pensando um pouco como assistente social, com o curso que se propõe a ser de luta, acho que toda a minha vivência começou a me influenciar. E foi dentro da faculdade, no começo, eu fazia bastante parte do movimento estudantil depois parei, por conta da música porque não tinha tempo, mas participei no começo do movimento negro do 4p, todas essas vivências me fortaleceram pra eu começar a usar as músicas como potência, como instrumento. Não estou organizada com nenhum movimento hoje em dia, nem político nem negro, mas eu uso a música como processo para refletir… É como se a música tivesse se tornado a minha militância pessoal hoje em dia. E foi ai que comecei a compor coisas que refletissem não só a minha

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vida mas com pessoas que se parecem comigo de alguma forma. Tenho algumas músicas que falam e retratam um pouco isso. A primeira que eu fiz nesse sentido foi Maria de Luto. Era aniversário de uma amiga minha, e ela é uma das pessoas que eu tinha tido esse convívio na militância do movimento estudantil e que enfim, eu admirava muito e ai eu fiz essa pra ela. Ela é poetisa, e na verdade o ponto chave foi quando, depois de um ano, ela me retornou com uma poesia, que é a poesia que eu falo dentro da música, que é dela e faz um reflexão bem crítica sobre gênero, sobre a mulher e tudo mais. Tem um momento que eu falo que, a música agora é inteira com a poesia. Na verdade foi recente esse processo que eu comecei a compor outras coisas, minha avó veio pra cá a algum tempo e contou um monte de coisas, um monte de histórias que eu não tinha ideia, sobre ela, sobre a avó dela, a mãe dela, sobre a vida dela, sobre a minha mãe até chegar em mim. Surgiu a música Retrato Falado que pra mim é mais texto do que qualquer outra coisa, onde eu conto, e faço o relato de toda essa história e foi algo que me fez entender que a mulher negra não é sozinha. A gente acaba carregando toda a nossa ancestralidade, tudo que as mulheres que vieram antes passaram, me fez compreender várias coisas por mais que eu não tenha passado, estão em mim, da história delas. E aí hoje também tentar pegar toda essa luta e transformar isso em força e representatividade para outras mulheres negras principalmente. Em relação à tua infância.. porque tu disse que foi criada pela sua tia… Então, na verdade eu fui criada pela minha avó e minha tia por parte de pai que sempre trabalhou como empregada doméstica e inclusive tem uma música recente que eu fiz sobre isso também, inspirada nela, e ela trabalhava, trabalha até hoje, duas semanas e folga um final de semana, dorme no emprego e fica vivendo isso. E eu cresci frequentando essas casas, o que acabou gerando bastante conflito também nas minhas vivências e tal mas a maior parte do tempo era com a minha vó. Minha tia vinha quando dava mas ela que sempre me sustentou financeiramente. Ela que sempre fez todo esse trabalho, pra que não me faltasse nada. Eu falo que eu sou a preta periférica mais mimada do universo porque na verdade eu sempre tive tudo, minha tia sempre falava “eu posso me endividar mas você nunca vai deixar de ter”. Então

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o nome dela foi sujo a vida inteira, nunca pagava nada mas eu tinha as paradas. Nunca lamentei porque meus pais não me criaram porque na verdade eu tive a melhor criação do universo e acho que se fosse com meus pais… Eu não tenho nenhum problema com eles, um super problema, eles são como uma família mais distante pra mim, mas eu não tenho nenhuma crise. Se eu tivesse sido criada com eles, como eles eram na época, certamente não teria dado boa. Minha mãe também passou por um monte de coisa, minha avó por parte de mãe, então era muito difícil essa criação ser uma boa criação por todos os traumas que ela tinha passado. Ela tinha outras prioridades, fazia outras coisas e que talvez não fosse bom eu estar junto. E meu pai quando eu era adolescente ele foi preso, enfim, várias coisas que na época me deixaram triste. Meu pai foi alcoólatra, mas hoje ele não bebe mais, então, nos poucos momentos que eu tive com eles, principalmente com meu pai, foram bem traumatizantes. São boas pessoas, hoje na verdade, mais do que nunca com esse pensamento crítico, entendendo o que a população negra passou e que as coisas elas são geracionais, não tem como você não herdar. Eu me acho até uma exceção, é difícil você não ser influenciado pelas coisas, pela condição que você está, pela condição que foi colocada pra você estar, então eu não tenho com julgar meu pai ou minha mãe, muito pelo contrário, eu admiro muito pelas pessoas que eles são hoje. A cada dia que passa eles estão se superando mais e mais então eu acho que eles são incríveis. E minha vó que me criou ela faleceu, tem uns três anos, foi bastante duro porque era a referência mais próxima que eu tinha de mãe mesmo, e minha tia que na verdade é uma super mãe mas, ficava distante por causa desse trabalho que na verdade é uma exploração, o que eu fui descobrir tarde também porque eu sempre gostei de todas as patroas dela, e gosto ainda na verdade, por mais que o racional venha pra me ensinar um monte de coisa, não tem como isso passar por cima do afeto, mas eu sempre tinha uma gratidão enorme, achava que estavam fazendo grandes favores e na verdade não, minha tia tava lá batalhando muito por isso e nenhuma das coisas, nem a faculdade que foi paga, nem as roupas que eu ganhava, nem algumas viagens que eu fiz junto, foram nenhuma caridade. Na real, foi muito menos do que deveria ter sido porque minha tia com 60 anos não tem uma casa pra morar, não tem um carro, não tem nada, e trabalhou muito, a vida inteira. Só hoje eu con-


sigo fazer essa reflexão e Universidade me ajudou muito, não a Universidade especificamente, mas os contatos que a gente faz, os movimentos, por mais que eu não esteja mais firme, foram muito importantes pra eu começar a pensar dessa forma. Na verdade está tudo aqui e a gente não quer enxergar. E é isso, com a música eu tento fazer todo esse junteiro pra conseguir me expressar, pra continuar militando, pra conseguir passar meus recados e fazer o que eu amo que é cantar. Você passou por algum perrengue quando começou a cantar, do tipo “não te quero na minha banda por que você é negra”...? Não, esse tipo de perrengue eu nunca passei. Mas eu já passei perrengue em espaços que ia cantar. Eu estava com a galera da banda e aconteceu uma vez numa casa aqui em Florianópolis, que era um lançamento do cd da banda, e tinha uma outra banda que ia fazer uma abertura, e eles estavam tocando, eu cheguei um pouco depois. E aí era uma mina branca, cantora. Eu cheguei na casa e falei “eu sou cantora, tô na banda, vou tocar aí hoje” e o cara virou pra mim e falou “não, como que eu posso ter certeza disso? Eu não vou te deixar entrar.” e eu fiquei argumentando dizendo que era da banda, ia cantar, que se não entrasse não teria show e ele falou que tinha que confirmar. Ele me olhava nitidamente de cima a baixo, e eu “cara, estou te falando que eu sou a cantora, se você quiser você pode entrar lá pra confirmar, perguntar pra alguém” e isso foi o mais foda porque acho que ninguém é obrigado a me conhecer mas assim, o cara desacreditou de forma debochada, ele me olhou e deu risada tipo “Ah ta que você vai cantar” e aí foi todo um perrengue, eu demorei muito a convencer ele a ir lá dentro perguntar e obviamente confirmaram mas isso pra mim foi bastante escrachado e eu fiz um auê quando entrei, falei pra todo mundo e depois ele veio me pedindo mil desculpas, e o mais foda foi que eu senti que todo mundo, inclusive as pessoas próximas, brancas, elas falavam “foi um mal entendido, não foi nada” querendo minimizar porque ele é super gente boa e eu falei que se fosse ele me dizendo que ia confirmar porque não me conhecia, eu poderia até achar alguma coisa mas eu não ia falar nada, mas o foda foi que ele riu da minha cara e não precisava. Esse foi um dos episódios. Teve uma vez que em Criciúma, que fomos fazer o show e o homem que cuidava da luz, eu pedi pra ele abaixar um pouco porque estava muito forte e ele falou que se tirasse a luz de mim,

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ninguém me enxergaria, “preta desse jeito”... Então nos projetos em que eu estive especificamente nunca passei nada dentro, com as pessoas, só que também, sinto que as pessoas brancas especificamente elas mesmo me apoiando elas não estão preparadas pra isso porque elas sempre acabam dizendo que foi só um mal entendido, não foi nada demais, querem minimizar o impacto de uma forma não crítica. Acaba te deixando como a louca do rolê, estão ali pra te apoiar mas eles não enxergam da forma que a gente enxerga. Você já passou alguma coisa por namorar uma menina branca? Já, mas acho que isso não se enquadra em ra-

Não me acho mais que ninguém mas já sofri muito, já chorei muito, já me odiei muito e agora melhor que tá não dá. cismo. É meio complexo. Porque vêm das pessoas negras e são argumentos que até o ponto que não te desrespeitam eles são legítimos, eu acho. Na verdade eu acho que essa coisa da gente se valorizar, a gente se fortalecer, a gente estar entre nós, bem importante. Só que eu penso que pela construção e por tudo que houve, tem coisas que não.. Por exemplo, eu enquanto mulher negra e você também enquanto mulher negra, o que eu acho ruim, é o movimento atacar a gente que historicamente já sofremos por não ser o centro do exemplo de beleza ou coisas assim, e aí quando a gente se encontrar com alguém, branco ou preto que a gente tá feliz, daí o movimento vem contra a gente, isso eu não acho legítimo. Eu acho que essa reflexão ela tem que existir, eu acho que a gente tem que falar sobre isso, eu acho que muitas vezes é real mesmo, sobre a solidão da mulher negra. Apesar de que também, em outros espaços, nós temos pensado a solidão como se todas as pessoas quisessem ter um par. Tem gente que quer estar sozinha e deu, e vai ficar melhor assim. Mas essa coisa de, o preterimento, eu tenho certeza que é real até porque desde criança, na adolescência,

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a gente nunca é a desejada. Nas brincadeiras, eu lembro que tinha um caderno que falavam “aponte as meninas que você acha mais bonita: loira, morena ou ruiva”, nem entrávamos nas opções.. Eu sinto isso na pele desde criança. Se a preocupação é com a mulher negra, se pensar “tem uma mulher negra que não ta sozinha e tá feliz” então por que é que vocês vêm me atacar? E até como se eu fosse responsável por sentir, como se eu mulher negra que já sofro com tudo, fosse responsável por fazer com que todas as outras mulheres negras (até porque se eu namorasse seria apenas uma). Nós fomos criadas nesse tipo de sociedade, é só não pensar que isso não vem do nada, somos criadas nessa sociedade racista que não tem representatividade na tv, no desenho, em cargos de prestígio, então é um processo natural mas eu já tinha desconstruído isso quando eu cheguei aqui. Também já tinha pensado, mas aconteceu de eu me apaixonar por uma mulher branca e eu também não vou me punir. Vou me prevenir de não viver uma história de amor, uma coisa que eu tô sentindo e que eu sei que é verdadeira por causa do racismo. Porque aí sim, eu estou deixando o racismo me violentar mais do que nunca. - A rê sabe, a ideia era namorar uma menina negra mas ai eu me apaixonei e enfim. Mas eu não critico porque é real, sei que as mulheres negras não as preferidas e eu sei disso, porque eu sou uma mulher negra eu só acho foda que as pessoas esquecem que eu sou uma mulher negra. Em questões de racismo, porque você vem de Campinas. Eu sinto Floripa muito racista. Como você se sente nesse espaço, vindo de uma outra cidade? Então, eu sinto bastante. Na Universidade eu me surpreendi, porque eu achei que ia sentir muito mais e lá eu não sinto tanto. Algumas coisas específicas, colaboram pra isso. Uma é eu fazer Serviço Social, que é um curso que pelo menos se coloca como crítico então eu acredito que as pessoas se sentem minimamente envergonhadas de fazer qualquer coisa, não tenho relatos de sala de aula por exemplo. Outra coisa que eu vejo, é porque muito rapidamente eu virei Dandara Manoela, e por mais que eu não seja super conhecida, eu sinto que as pessoas pelo menos no ciclo universitário que eu vivo, me conhecem, sabem quem eu sou e eu acredito que isso muda tudo. Uma coisa é como você trata uma pessoa negra que você não conhece e outra coisa é quando a pessoa tem, nem que seja, um pontinho de status e ai “ah não, é negra mas é a fulana” e eu sinto que isso tem uma


diferença também porque quando eu sento pra conversar com outras amigas negras os relatos são outros. Mas, enquanto nos rolês mercados e tudo mais, muito. Eu já me senti perseguida no BIG e já passei por uma situação constrangedora. Uma vez eu vim de casa e ia passar no BIG pra comprar alguma coisa e dormir na casa de uma amiga. Estava com um cobertor que era meio novo, eu já tinha comprado há umas duas semanas mas ele estava naquele saquinho ainda, porque quando as coisas estão novas você cuida. Eu cheguei pro cara da portaria e falei “posso entrar com isso? quer ficar aqui e depois eu pego” e ele disse que não, que estava de boa entrar. Entrei, comprei o que eu queria e era inverno então estavam vendendo outros daquele só que não tinha preço nem nada e eu perguntei. Quando chegou no caixa, passei minhas coisas e a mulher perguntou sobre o cobertor e eu disse pra ela que era meu, que já tinha entrado com ele e perguntado pro segurança que se ela quisesse confirmar falando com ele... E ela falou que ia ter que chamar o gerente e foi meia hora porque não achavam o gerente, não queriam me liberar, e também não achavam o cara que estava lá a hora que eu cheguei. Foi um auê, mas não tinha nada, dava pra ver que não era mais novo e enfim… Essa vez me deixou muito puta. Mas já aconteceu outras vezes de eu ver simplesmente a galera olhando, e coisa que não acontece com as minhas amigas brancas. Quando eu cheguei aqui em Florianópolis eu morava numa república, em que as meninas tinham o hábito de pegar coisas do mercado. Tipo, não sei se hoje em dia ainda existem essas paradas mas, rolava essas coisas. E é muito louco, parecia uma moda, inclusive aquele mercado que tinha perto da UFSC, ele fechou por conta disso. Enfim, quando eu cheguei, morava com as meninas e eu percebi que elas tinham esse hábito, todas brancas né. E ok. Eu nunca aprovei isso, nunca compactuei e nunca nem pensei mas uma coisa que eu discutia com elas era primeiro que eu nem entrava no mercado com elas quando elas faziam isso porque sei que eu mesmo sendo a única que não fazia, seria a única que iam desconfiar. “Pra mim, isso também faz parte do privilégio de vocês, porque vocês sabem que muito dificilmente vão olhar pra vocês, a maioria classe média alta e vão pensar que vocês estão fazendo algo assim, agora eu respiro dentro do mercado e as pessoas já estão achando”. E tem as situações que são mais sutis né, que a gente percebe no jeito como te olham, como te tratam, enfim…

Em questões de racismo, porque você vem de Campinas. Eu sinto Floripa muito racista. Como você se sente nesse espaço, vindo de uma outra cidade? Então, eu sinto bastante. Na Universidade eu me surpreendi, porque eu achei que ia sentir muito mais e lá eu não sinto tanto. Algumas coisas específicas, colaboram pra isso. Uma é eu fazer Serviço Social, que é um curso que pelo menos se coloca como crítico então eu acredito que as pessoas se sentem minimamente envergonhadas de fazer qualquer coisa, então eu sinto que no meu curso é mais tranquilo, não tenho relatos de sala de aula por exemplo. Outra coisa que eu vejo, é porque muito rapidamente eu virei Dandara Manoela, e por mais que eu não seja super conhecida, eu sinto que as pessoas, pelo menos no ciclo universitário que eu vivo, me conhecem, sabem quem eu sou e eu acredito que isso muda tudo. Uma coisa é como você trata uma pessoa negra que você não conhece e outra coisa é quando a pessoa tem, nem que seja, um pontinho de status e ai “ah não, é negra mas é a fulana” e eu sinto que isso tem uma diferença também porque quando eu sento pra conversar com outras amigas negras os relatos são outros. Mas, enquanto nos rolês mercados e tudo mais, muito. Eu já me senti perseguida no BIG e já passei por uma situação constrangedora. Uma vez eu vim de casa e ia passar no BIG pra comprar alguma coisa e dormir na casa de uma amiga. E aí eu estava com um cobertor que era meio novo, eu já tinha comprado há umas duas semanas mas ele estava naquele saquinho ainda, porque

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quando as coisas estão novas você cuida. Ai eu levei ele no saquinho e parei ali pra comprar alguma coisa. Eu cheguei pro cara da portaria e falei “posso entrar com isso? quer ficar aqui e depois eu pego” e ele disse que não, que estava de boa entrar. E eu entrei, comprei o que eu queria e era inverno então estavam vendendo outros daquele só que não tinha preço nem nada e eu perguntei. Quando chegou no caixa, passei minhas coisas e a mulher perguntou sobre o cobertor e eu disse pra ela que era meu, que eu já tinha entrado com ele que tinha perguntado pro segurança que se ela quisesse confirmar falando com ele. E ela falou que ia ter que chamar o gerente e foi meia hora porque não achavam o gerente, não queriam me liberar, e também não achavam o cara que estava lá a hora que eu cheguei. Foi um auê, mas não tinha nada, dava pra ver que não era mais novo e enfim… Essa vez me deixou muito puta. Mas já aconteceu outras vezes de eu ver simplesmente a galera olhando, e coisa que não acontece com as minhas amigas brancas. Quando eu cheguei aqui em Florianópolis eu morava numa república, em que as meninas tinham o hábito de pegar coisas do mercado. Tipo, não sei se hoje em dia ainda existem essas paradas mas, rolava essas coisas. E é muito louco, parecia uma moda, inclusive aquele mercado que tinha perto da UFSC, ele fechou por conta disso. Porque a galera universitária achava que era a despensa de casa. Iam lá e pegavam tudo e é um absurdo. Enfim, quando eu cheguei, morava com as meninas e eu percebi que elas tinham esse hábito, todas brancas né. E ok. Eu nunca aprovei isso, nunca compactuei e nunca nem pensei mas uma coisa que eu discutia com elas era primeiro que eu nem entrava no mercado com elas quando elas faziam isso porque sei que eu mesmo sendo a única que não fazia, seria a única que ia desconfiar. Pra mim, isso também faz parte do privilégio de vocês, porque vocês sabem que muito dificilmente vão olhar pra vocês, a maioria classe média alta e vão pensar que vocês estão fazendo algo assim, agora eu respiro dentro do mercado e as pessoas já estão achando. Então, eu ficava bem revoltada nesse sentido porque pra mim fazia parte do privilégio branco fazer esse auê. E tem as situações que são mais sutis né, que a gente percebe no jeito como te olham, como te tratam, enfim… Mas você vê que aqui é maior do que em São Paulo? Eu acho que é maior mas não só porque é Floripa, mas porque eu tenho um olhar crítico aqui. Então pra mim é quase incomparável porque lá eu cresci na

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igreja e tive pouco tempo. então lá as vezes eu ia na casa dos avós das meninas da igreja e todo mundo sabia que elas não gostavam de negros, mas gostavam de mim. Então eu não sei se era menos, não me incomodavam tanto. Quer dizer, eu aceitava e ainda me achava especial. Então era um outro caminho de pensamento de olha só como eu sou querida, porque não gostam de negro mas gostam de mim. E hoje que ridículo esse pensamento e é foda pra ver quanto o racismo também nos abala nesse sentido, de nós também acabarmos sendo negras, reproduzindo essas coisas, senso comum e acabar se conformando e achando que é o normal e está tudo certo. Como que é o Cores de Aidê? Como que você vê aqui em Florianópolis? Porque eu percebo mais a aparição em época de carnaval e novembro… Eu tenho muitas ideias positivas sobre o Cores. Floripa tá se abrindo bastante em vários sentidos, pelo menos nos meios em que a gente transita. Acho que por exemplo, esse ano a gente ganhou o festival da música catarinense, que eram 5 bandas de rock, todos homens brancos, e a gente do cores, na maioria mulheres negras, ficamos em 1º lugar e os jurados eram todos brancos


zer mulheres brancas para trazer essa reflexão de entender o seu lugar enquanto mulheres brancas porque uma coisa que sempre pensamos é o negro como o ser que tem que ser pensado, a questão do negro. Mas enquanto branco não pensa o teu próprio lugar enquanto racista, ou enquanto pessoa de privilégio, essa coisa continua se sustentado. A gente sofre e quem faz isso são as pessoas brancas. Eu entendo que é um processo coletivo, dependendo do espaço. O movimento negro que é fechado para pessoas negras é completamente legítimo porque a gente precisa ter esses espaços para se fortalecer e falar sobre coisas que só a gente passa. Mas também acho importante outros lugares como o cores acabou proporcionando, que não foi planejado, só foi acontecendo, em que a gente possa virar pra uma mulher branca e dizer que ela também é responsável por isso “não é culpa minha que o racismo existe então faça algo por isso”. Foi algo que eu tô aprendendo. Eu cheguei em Florianópolis era primeiro algo mais radical na minha cabeça, e ai depois eu cheguei nesse ponto de que não é que não é radical mas é pensar que é um processo coletivo, que a sociedade não vai deixar de ser racista se todas as pessoas que estão na sociedade tiverem esse pensamento comum. Acredito que nada vai se avançar assim. rockeiros. E nós não esperávamos ganhar, justamente por conta desse cenário, independente do nosso conhecimento sobre nossa qualidade e potência. Eu acho que a música é transformadora, aos poucos estamos dando os nossos recados, e as pessoas estão conseguindo olhar com outros olhos. Acho que algum tempo atrás isso não aconteceria. E teve muita revolta quando ganhamos, as outras bandas falaram um monte de coisa, não são só flores. Mas acredito que nesse espaço a galera já está mais aberta a pensar diferente sobre isso. Essa coisa do Cores ser mais potente no carnaval eu acho que é porque envolve outras mulheres, que tem o bloco e tudo mais. E o que acontece, é que a maioria das mulheres do bloco são brancas e é algo pelo qual tentamos batalhar todos os dias mas ainda não conseguimos mudar porque a maioria das mulheres negras em floripa elas tem coisas mais importantes pra fazer do que tocar tambor então a gente vê que a maioria das mulheres são brancas,universitárias que têm tempo livre pra ir lá e dentro do bloco a gente tenta passar por outras pautas. Não é um bloco que se pretende negro principalmente em Florianópolis, só que temos as nossas rodas de conversa que acontecem uma vez por mês e que nelas tentamos discutir e inclusive tra-

Como que é pra você ser mulher, negra e lésbica? Eu acho que cheguei num momento que, tirando o fato que minha tia ainda não sabe que eu sou lésbica, sou muito bem resolvida. Em uma época eu achava tudo isso um fardo, ser mulher, negra e lésbica era um fardo muito pesado. Hoje, eu acho potência. Na verdade eu acredito que o movimento está trazendo muito isso pra nós, estamos na fase de entender o quanto é lindo ser mulher negra, ao ponto absurdo de eu olhar pra algumas mulheres brancas e eu ter certeza de que eu sou bem melhor. Isso me dá muita força pra lutar, pra tentar inspirar e me conectar com outras mulheres negras para que se sintam assim também. Já passou a fase, que foi forte, na infância e adolescência eu tinha uma auto estima baixa e acredito que a música e eu estar colocando minha cara por aí está me ajudando também porque mal ou bem é importante ter uma pessoa dizendo o quanto você é legal, bonita. E isso está acontecendo comigo o tempo todo. Minha auto estima é muito ok. Não me acho mais que ninguém mas já sofri muito, já chorei muito, já me odiei muito e agora melhor que tá não dá.

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APROPRIAÇÃO CULTURAL

CULTURA TEM DONO? ENTENDENDO A APROPRIAÇÃO CUL A apropriação cultural vem sendo assunto de muitos debates nos últimos tempos, e acabou se tornando pano para muita manga. São diversos os pontos de vista sobre assunto: tem quem não ache, e quem ache. Mas afinal, o que é apropriação cultural? Antes de exemplificar, precisamos entrar nas teorias (mesmo que elas sejam um pouco chatas, são muitas vezes necessárias). A primeira coisa que deve ficar clara nesse momento é que: apropriação cultural NÃO é a mesma coisa que aculturação, ou assimilação cultural. Muitas vezes esses termos são usados como argumento para desqualificar o debate sobre apropriação, e isso é extremamente grave. Falar sobre apropriação cultural requer muitos cuidados antes de tudo. Primeiramente, quando entramos no assunto, é de suma importância que se tenha em mente que aqui, estamos falando de uma cultura ‘dominante’, absorvendo elementos que acredita ser interessantes, e tornando aquele elemento um fato extraordinário, inclusive, sendo retratado pela mídia, como “moda” (e aqui, citando apenas casos que estão ligados à vestimentas, acessórios e afins) quando a cultura ‘dominada’ é totalmente julgada, ao usufruir deste mesmo elemento.

existe segregações onde cada grupo social têm um tipo de vestimenta, acessórios, calçados exclusivos.

Também é necessário entender que se trata de um problema que não é sobre um indivíduo em especial, como tem acontecido em algumas publicações onde se é adotado um personagem. Bem como, quem vos fala não está para ditar regras do que uma pessoa branca pode ou não usar, tendo em vista que vivemos num mundo onde não

A história do Brasil, se faz muito importante aqui (e deveria ser para toda a população), para entendermos esse conceito. Na época de colonização, quando os brancos europeus vieram explorar o país, trouxeram consigo negros, de diversas partes do continente africano. O apagamento cultural dessas pessoas era fundamental para que

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LTURAL

Foto: Istock/Getty Images

elas pudessem ser submissas aos trabalhos que os senhores de engenho queria que desempenhassem.

prima negra que usava era abordada na rua com expressões como “Tá querendo esconder o cabelo ruim, né?!”.

A apropriação cultural acontece quando determinado grupo adota costumes e estilos referentes a um povo, sem considerar a história de tal situação. Na prática, essas situações acontecem assim: uma pessoa branca que passa a usar tranças e essas tranças, passam a ter mais valor do que tinham antes para a sociedade, quando a

A partir daí, é comum surgirem argumentos como: ‘’Ah, mas não eram só os povos africanos que usavam tranças, os egípcios, gregos, celtas, chineses, também usavam’’. Sim! Esses outros povos também usavam diversos tipos de tranças, mas aqui falamos por um contexto que vai muito além de cabelo e estética.

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Enquanto os africanos estiveram no Brasil para trabalhar de forma escrava, não tinham direito à nada e a única coisa que lhes restava era a lembrança de suas culturas que foram cortadas. E apesar da tentativa de embranquecimento, e das situações onde os europeus percebiam qualquer tipo de expressão dessa cultura, faziam os seus escravos darem muitas e muitas voltas ao redor de árvores para que suas histórias, suas origens ficassem ali, travadas naquele tronco. Com o tempo, foram surgindo as manifestações religiosas e festivas. Muito dessa cultura conseguiu sobreviver, e ser repassada de geração para geração, o que fez com que tudo isso chegasse até nós (mesmo que ainda não seja acesso para 100% da população).

prol do resgate da cultura e da aceitação em ser o que é realmente. Conhecemos as diversas formas de afirmação étnica, que passam pela cultura africana que com muita luta foi conservada e passada para nós por nossos antepassados. Além do cabelo natural que hoje mais do que nunca, resiste, outra forma de expressar a cultura negra, são as tranças. Podendo ter vários nomes como: a trança rasteira, raiz e nagô, sendo que cada uma delas tem uma particularidade que diferencia das outras.

Um exemplo de trança que os povos africanos faziam, é a trança nagô, que é uma trança que representa a religião, a etnia e outras particularidades relacionadas à identidade, que foram expressados em forma de penteado.

Essas tranças são muito mais do que simples penteados, elas transmitem toda uma identidade da cultura de um povo que por muito tempo tentou ser apagada.

Forma de resistência

Para os africanos, as tranças cumpriam muitos papéis, como o de transmitir mensagens, coisa que acontece ainda hoje.

A maioria dos negros passaram por uma fase de não gostar do cabelo por causa do preconceito escrachado que muitas pessoas tinham (e ainda tem), que viam o cabelo natural do negro, como um cabelo ruim.

O que faz com que fique claro que as tranças são uma forma de resistência, e que por mais que ainda exista muito preconceito, é preciso que a luta para a valorização de toda a cultura negra, continue.

Normalmente, essa fase se dá mais na infância e adolescência, onde não há muita informação, e a construção de amizades, onde sempre há a necessidade de se incluir á um grupo de pessoas. Além disso, havia também muita dificuldade em achar produtos e locais especializados em cabelo afro, o que aumentava ainda mais o distanciamento com a aceitação do cabelo natural.

Por muitos e muitos anos, nos foi negado o direito de nos expressarmos culturalmente dessa forma, foram muitas as repressão sofridas, e hoje, quando a auto aceitação do negro é mais visível, os brancos querem de alguma forma se apropriar dessa cultura, o que acaba fazendo com que ela perca a identidade, como não podem proibir, tentam se apropriar para destruir.

Por todos os padrões impostos pela sociedade, sempre foi muito difícil aceitar os traços diferentes, os cabelos diferentes e as expressões culturais, pois tudo isso sempre foi visto partindo das visões dos colonizadores, que nunca aceitaram e sempre demonizaram a cultura afro.

O que acaba se tornando um problema, já que a mídia também procura uma forma de ganhar dinheiro, vendendo algo que por muito tempo foi motivo de luta de movimentos negros, para que fosse aceito em sociedade.

A falta de representatividade na mídia e em tantas outras plataformas, também ajudou para que toda essa não aceitação ganhasse ainda mais força.

É muito fácil para alguém que é branco usar tranças, sem saber o real significado, e sem nunca ter sido ridicularizado por isso, como os negros já foram.

Com o tempo, foi se percebendo a união dos negros em

Há toda uma luta que precisa sim ser respeitada.

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Orixá Nanã. Ilustração por Julia Saccardo.

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Histórico de luta

MOVIMENTO NEG O movimento negro no Brasil é mais antigo do que algumas pessoas podem pensar. Diferente de alguns outros movimentos, este, surgiu ainda na época em que ainda existia a escravatura (escancarada e legal, ao menos). O povo negro se revelava contra outros povos e fugia para os quilombos e outras comunidades como forma de protesto e sobrevivência. Podemos inclusive, considerar que Zumbi dos Palmares, líder do Quilombo dos Palmares, foi o primeiro protagonista do início desse movimento.

Dado um tempo, começam a surgir mais alguns conflitos como é o exemplo do Movimento Abolicionista Liberal que defendia o fim da escravidão mas, estava de acordo com a comercialização destes escravos, como uma forja para convencer escravos negros à acreditar que aquela seria uma boa conclusão para seus problemas. Este movimento, começou por volta de 1971 com a Lei do Ventre Livre, seguindo-se pela Lei dos Sexágenários

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e enfim a Lei Áurea que concedeu a libertação dos escravos, considerando crime. E é a partir deste ponto, que outros problemas surgiriam. Apesar da liberdade, muitas pessoas continuaram a realizar o trabalho escravo pois não tinham para onde ir, nem o que comer e por mais difícil que fosse a situação com os seus Senhores, ainda era uma opção melhor do que morrer de fome. Há então, diversas iniciativas que pudessem proporcionar qualquer tipo de socialização entre os negros. Entretanto, é no século 20 que assuntos importantes para o povo negro começam a ser pautados por jornais e revistas, por exemplo. Matérias que retratam os preconceitos, a luta diária e o cotidiano dessas pessoas. Meios que acabam por se tornar também, um ambiente onde se podem denunciar tudo o que se era sofrido por essa parcela da população.


GRO NO BRASIL

Crédito de foto: Antonio Terra

Para mais, é também nesse momento que surgem expressões como democracia racial no país. A democracia racial, nada mais era, do que uma maneira fajuta de tentar mascarar o racismo existente no país considerando que se reconhecia a existência do preconceito mas ninguém era assumidamente racista.

Teatro Experimental do Negro. Não podemos esquecer também, de nomes mais atuais como o Movimento Negro Unificado que foi criado em São Paulo depois que militantes negros resolveram juntar forças para denunciar a discriminação racial que essas pessoas sofriam no dia a dia, apenas pela cor de pele.

Essa condição perdura até hoje e pode ser observada claramente em algumas expressões que na correria do dia a dia, muitas vezes, por pessoas desatentas, passam despercebidas. Cor do pecado, cabelo ruim, serviço de preto entre outras milhares que podem inclusive ser encontradas em diversas pesquisas, matérias e artigos publicados na internet.

Nós sabemos que nos dias atuais, existem leis como a que criminaliza o preconceito racial e que torna esse tipo de ação um crime inafiançável. Infelizmente, isso não é o suficiente. Crianças e jovens continuam a ter seus corpos sexualizados pela cor de sua pele. Estes jovens também, representam o maior número de mortos no Brasil. Tem o direito à vida violado pelo tom de sua pele. A imagem da “Tia Anastácia” perdura na imagem de diversas mulheres.

Apesar dos tantos, na virada do século XIX para o século XX muitas organizações começam a ser formadas e ganhar força entre a população negra brasileira. A Frente Negra Brasileira fundada em 1931 (que deixou de existir com a entrada da ditadura), a União dos Homens de Cor,

O povo negro ainda é o mais pobre. Ainda é o que não ocupa as universidades, mas é o que ocupa a maioria das celas brasileiras. Não por acaso.

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consciÊncia negra Representatividade na Mídia

total do país se autodeclara negra.”

Um viés interessante para se discutir, é a representatividade de pessoas negras em todos os âmbitos profissionais da comunicação pública. Na televisão por exemplo, aos trancos e barrancos, alguns dos principais diretores e produtores de telejornais, programas de entretenimento e educação, têm pensado na inclusão dessas pessoas na mídia.

Uma história de valores e significados

Durante o mês de novembro, por conta das celebrações, a programação das emissoras ficam com mais conteúdos voltados para a promoção e valorização da cultura afro brasileira e negra, principalmente, as comerciais.

Nasceu livre no Estado de Alagoas no ano de 1655. Mas ao sete anos de idade, teve sua liberdade moldada por um padre que o nomeou Francisco e lhe ensinou o português, o latim, a álgebra e a religião católica até seus 15 anos, quando fugiu. Foi morar numa comunidade livre, formada por ex-escravos, índios e brancos pobres que foram expulsos das fazendas. Lá, tornara-se Zumbi. Zumbi dos Palmares.

Canais como TV Brasil, vêm ao longo dos anos, criando programas e programações mais inclusivos. Mas ainda há emissoras como a Rede Globo onde o silêncio representativo da comunidade ainda é mais alto.

Com toda certeza, você deve conhecer esse nome. Zumbi dos Palmares é talvez o nome mais importante como símbolo de luta e resistência do povo negro no período do Brasil Colonial. Esse nome, carrega muito significado histórico para o país, mas principalmente para a história da população negra brasileira.

A pensar que, essas pessoas não estando em visibilidade em meios que acompanhamos diariamente, seja pela internet ou pela televisão, tornam os pequenos aparecimentos grandiosos. O que é bom de se considerar, mas ruim se analizarmos que este deveria ser a normalidade, não a exceção.

Homem que aos 25 anos, foi líder do Quilombo dos Palmares (comunidade que brevemente foi exposta nos parágrafos anteriores) e aos 40, morreu por ter sido entregue por um antigo parceiro aos bandeirantes que haviam acabado com o Quilombo. No dia 20 de Novembro de 1695.

Para que fique mais claro, uma análise feita pelo site Séries Por Elas:

Mas foi apenas em 2003, 308 anos após sua morte pela Lei nº10.639 que sua importância foi visibilizada nacionalmente, estabelecendo o dia (20) e mês de Novembro, da Consciência Negra. E posso dizer, que em 2017 ainda há quem conteste a comemoração e todas as reflexões que principalmente o dia 20, traz.

“Das 290 novelas já produzidas pela Rede Globo, apenas duas foram protagonizadas por mulheres negras. Somente 15,2% das séries produzidas pela emissora contam com protagonistas negros e negras. Malhação, série de maior duração na televisão brasileira, em 22 anos, teve sua primeira protagonista negra no ano passado. Nenhum filme brasileiro foi dirigido por uma mulher negra nos períodos de 2002 a 2012. Os jornais mais famosos dos canais abertos de televisão são em sua esmagadora maioria ancorados por jornalistas brancos. No Brasil, segundo o IBGE, as (os) negras (os) – soma das pessoas que se autodeclaram pretas (os) e pardas (os) – representam 53,6% da população do país, ou seja, estamos falando de mais da metade de uma população de, atualmente, 207 milhões de pessoas. Já nos Estados Unidos, o cenário é um pouco diferente: 12% da população

Democracia racial NÃO existe. Não “Somos todos Maju” e “não existe raça, existem seres humanos” não é um argumento cabível. Esse discurso é hipócrita e foi criado por uma gama de pessoas que ainda têm dificuldade de assumir seus privilégios na maneira como a sociedade está estruturada e assumir que vivemos SIM num país ainda muito racista.

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O TOPO DA MONTANHA

“ “Eu acho que é uma peça que traz uma alternativa num período de tanto desrespeito, tanta intolerância. A peça apresenta uma solução, uma solução que as vezes parece até utópica mas não é. É uma solução que vem através do respeito, atraves do afeto e da coragem. “ | Lázaro Ramos A peça ‘’O topo da montanha’’ conta (de forma hipotética) como foi os últimos momentos da vida de Martin Luther King, em um encontro fictício com uma camareira chamada Camae, que ao que tudo indica, seria um anjo. Na peça, eles dialogam sobre várias situações, de forma cômica e dramática, mas sempre focando nas questões que buscavam retratar o lado humano do ativista, e suas preocupações com o futuro das pessoas negras. De forma provocante, Camae busca trazer questionamentos que façam King pensar em suas atitudes e pensamentos. No dia anterior à sua morte, Luther King fez um discurso que parecia prever o que aconteceria no dia seguinte. Um dos maiores medos de King, era que outras pessoas não continuassem sua luta para o fim da segregação racial e nos diálogos da peça, Camae busca tranquilizá-lo em relação à isso e à outros medos;”

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