Revista acla 2018 03

Page 1

Revista Eletrônica

140 anos da Estação de Cachoeira Paulista Edição 01 / Março 2018


Editorial Apresento, com prazer, a primeira edição digital da Revista da Academia Cachoeirense de Letras e Artes – ACLA. É resultado da paixão da colega acadêmica, Renisse Ordine, que se empenhou nos últimos meses para transformar em realidade este sonho. Como numa gestação, Renisse doou suas energias para que viesse à luz esta preciosa obra. Assim, o leitor tem à sua disposição o texto saboroso de Joaquim Maria Botelho, contando a história dos 140 anos da Estação Ferroviária de Cachoeira Paulista; ou melhor, contando nossa história. No final, um inevitável desalento com o atual estágio do nosso maior monumento. Ainda sobre a rica história cachoeirense, os registros da ponte sobre o Rio Paraíba do Sul. O colega Eddy Carlos traz a curiosa coincidência da participação essencial de dois Euclydes, um deles depois imortalizado na literatura brasileira. Entre as participações especiais, destacamos Ana Lúcia Magalhães com a análise de “Relatos Selvagens”. Para além do filme, uma profunda reflexão sobre as paixões humanas. Já Sônia Gabriel, escreveu sobre a obra de um irmão de Malba Tahan – orgulho da nossa vizinha Queluz (SP). O também escritor deixou um importante livro sobre o rio Paraíba. Aliás, nesta primeira edição, o velho e barrento Paraíba é figura constante. Em nossas páginas, assim como em nosso Vale, aparece e reaparece quase “sem querer”, serpenteando nossas terras e prosas. E também nosso imaginário, como no criativo e encantador “O leito seco do rio Paraíba”, do nosso decano Carlos Varella. Leituras imperdíveis também do “Acabou chorare”, de Jurandir Rodrigues, com seu estilo agudo e direto; e, no Ateliê Cultural, o mestre das telas, Roberto Mendes, “atacando” de poeta no “Mazurca X Mazuca”. E, ao terminar este editorial, uma espécie de “carta ao leitor”, volto à acadêmica Renisse Ordine que, além de organizar esta revista, atuou diretamente em dois trabalhos. Uma reportagem sobre as recentes e justas homenagens à fundadora da ACLA, a saudosa Ruth Guimarães; e um artigo apaixonante sobre os 30 anos de saudades de Carlos Drummond de Andrade: “Há dez mil definições de poesia, eu não tenho nenhuma própria. Você escolherá o que achar mais interessante, porque a poesia por si mesma é a explicação do mundo. E a explicação da poesia fica por conta do leitor e da sensibilidade dele”.

Osvaldo Luiz Silva (Presidente da ACLA)

1


SUMÁRIO DIRETORIA ACLA BIÊNIO 2017/2018 ...................................................................................................... 3 PRINCIPAIS EVENTOS DE 2017 ............................................................................................................... 4 Concurso de Redação e Desenho sobre a Estação ........................................................................ 4 IV Salão de Artes da ACLA..................................................................................................................... 5 HOMENAGEM ................................................................................................................................................ 6 Um ano de homenagens a Ruth Guimarães ...................................................................................... 6 Sebastião Albano Nogueira Sá ............................................................................................................. 8 CAPA ................................................................................................................................................................ 9 Caminho de mato, caminho de água, caminho de ferro ................................................................ 9 ATELIÊ CULTURAL ................................................................................................................................... 14 Mazurca X Mazuca .................................................................................................................................. 14 CONTO........................................................................................................................................................... 15 “Acabou Chorare” .................................................................................................................................. 15 HISTÓRIA ...................................................................................................................................................... 16 A Ponte dos “Dois Euclydes”. ............................................................................................................ 16 ARTES ........................................................................................................................................................... 19 Antonio Gomes Comonian ................................................................................................................... 19 CRÔNICAS .................................................................................................................................................... 22 O leito seco do rio Paraíba ................................................................................................................... 22 O irmão do Malba Tahan ....................................................................................................................... 23 LITERATURA................................................................................................................................................ 25 Carlos Drummond de Andrade ........................................................................................................... 25 ARTIGO ACADÊMICO ................................................................................................................................ 28 Medo e Humor no Filme Relatos Selvagens ................................................................................... 28 DO ESPANTO E DA EMOÇÃO DO REENCONTRO COM SEVERINO ............................................ 40 GRUPO DE LEITURA “CASA DA RUTH” .............................................................................................. 42

2


DIRETORIA ACLA BIÊNIO 2017/2018

Presidente: Osvaldo Luiz Silva Secretária: Renisse Ordine Tesoureiro: Paulo Roberto Pimentel Diretor Artístico: Roberto Mendes Diretora Literária: Izabel Fortes

3


PRINCIPAIS EVENTOS DE 2017 Concurso de Redação e Desenho sobre a Estação Em comemoração aos 140 anos da Estação de Cachoeira Paulista, a ACLA realizou juntamente com as escolas municipais e particulares do município o Concurso de Redação e Desenho. Foi um trabalho muito produtivo, no qual tivemos o privilégio de contar com o apoio de Diretores, Professores e, especialmente, os alunos que se dedicaram a produzir textos verbais e visuais, dando formas e contornos e dissertando sobre o período histórico, importância e o futuro da Estação, que atualmente se encontra plenamente deteriorada. Um aprendizado em conjunto, em que foram revelados sentimentos e histórias que os alunos, hoje, descendentes de pessoas que tiveram oportunidade de aproveitar e trabalhar nessa imponente construção, contaram em suas redações, lembranças passadas e um saudosismo de uma época que todos torcem para que não se perca, não seja soterrada na vasta terra em que paredes se sustentam na sorte e na esperança de que haja um futuro para esta que é responsável pelo desenvolvimento regional. O evento de premiação aconteceu no dia 24 de junho de 2017, no Centro Cultural Gertrud Schubert dos Santos.

4


PRINCIPAIS EVENTOS DE 2017 IV Salão de Artes da ACLA

O Clube Literário de Cachoeira Paulista reuniu no dia 30 de setembro as obras dos artistas cachoeirenses que participaram do IV Salão de Artes da ACLA, organizado pelo Diretor Artístico Roberto Mendes. Os artistas participantes, familiares e amigos da arte compareceram para prestigiar os trabalhos expostos no salão e, também, a cerimônia de abertura e a premiação dos vencedores das categorias de Pintura, Desenho e Fotografia. A homenagem desse ano foi para o artista plástico Sebastião Albano que recebeu uma área de destaque, com algumas de suas obras expostas cedidas por sua família, que ali também estiveram. Roberto Mendes proferiu palavras de carinho, amizade e gratidão pelos anos de trabalho e dedicação à carreira do homenageado e, particularmente, aos anos de convivência com o artista. Uma noite muito especial em que a Arte esteve em evidência, entusiasmando tanto artistas quanto convidados a usufruírem o talento existente em cada um. Todos nós conseguimos e podemos produzir, basta olhar para dentro de si. Agradecimentos ao Clube Literário de Cachoeira Paulista, que ofereceu total apoio para que novamente o Salão de Artes fosse concluído com sucesso. Aos jurados convidados pela ACLA: Júnia Botelho, João Adriano e Wesley Almeida.

5


HOMENAGEM Por Renisse Ordine

Um ano de homenagens a Ruth Guimarães Durante esse ano de 2017, a escritora cachoeirense recebeu importantes homenagens que fazem com que o seu nome não perca o destaque merecido, mesmo após o seu falecimento.

Botelho e Severino Antônio e o ator Lazaro Ramos. Além de sua literatura, falaram também sobre a pessoa Ruth Guimarães:

Ruth Guimarães é um grande nome da nossa literatura, sempre valorizando o folclore regional, reavivando as lendas em seus livros e enaltecendo a figura do homem simples. A arte da escrita foi um dom a ela presenteado pela força divina, o qual não foi desperdiçado. A sua vida foi entregue a escrita e usada com a sabedoria que poucos possuem. Sempre incentivando a todos que a rodeavam, a nunca pararem de escrever. Esse é mais uma recordação que muitos escritores e amigos próximos tem de nossa Ruth: Comece a escrever ontem, sem pensar no futuro.

(Severino Antônio)

“Ruth Guimarães sempre viveu com as palavras, mas amava o silêncio”

A sua amizade com os dois maiores nomes do Modernismo Mário de Andrade, seu padrinho literário, Guimarães Rosa e Antônio Cândido foi relembrada, assim como as passagens da sua profissão de professora de Português: “Agora vem o questionamento mais importante: O que vim fazer aqui? Por que vim? Negra eu sou, o que não é nenhuma originalidade nesse país. Negra e escritora, o que já constitui um modo singular de ser, dadas ás circunstâncias. Também sou escritora regional, e, como caipira, a única. Negra, escritora, mulher, caipira, eis aí as minhas credenciais. Também sou professora, e minha cátedra é meu púlpito. Não tenho alunos brancos e pretos, tenho alunos. Ensino-os, não somente a colocarem bem os pronomes ou a regência dos verbos. Ensino-os a manejarem a língua e a amá-la, a servirem-se dela. A darem forma a seus pensamentos. Ensino-lhes o orgulho de serem homens e mulheres, de serem alguém no mundo. Ensino-lhes que uma criatura pode dar de si mesma. Não com essas palavras, mas com a grande voz profunda dos mestres da literatura. E os meus alunos ficam sabendo o que eu espero deles.

Diante de sua importância e representatividade, o seu nome continua o percurso por ela almejado, o seu legado de amor à escrita e as histórias contadas não saem do meio do povo. Para começar esse ano de homenagens, no mês de julho, uma das maiores feiras literárias do Brasil, a FLIP (Feira Literária de Paraty), em que o tema a figura do negro foi o destaque, na literatura de Lima Barreto, o Instituto Silo Cultural com o apoio da família Botelho, homenageou a escritora, criando a “A casa Ruth Guimarães”, na qual ficaram expostas as suas obras, com mais de 40 livros. Como também, uma exposição de fotos de seu marido Zizinho Botelho, com diversas apresentações culturais, tendo como destaque à mesa de conversa com os acadêmicos e escritores Joaquim Maria 6


Eu sou escritora. A minha arma de escrever é a minha arma.”

como projeto incentivar a literatura na escola e na comunidade. 31 de outubro- Exposição Ruth Guimarães: a fada caipira da cultura brasileira. Projeto dos professores Robson Hasmann e Solange da Escola Flaminio Lessa em parceira da Biblioteca Municipal de Guaratinguetá. 25 de novembro – A Escola Estadual “Jardim Campo Limpo Ó”, em São Paulo passa a se chamar Escola Estadual “Ruth Guimarães”. A diretora efetiva Marli Aparecida Venancio, com a autonomia concebida aos diretores das Escolas Estaduais Paulistas na capital de São Paulo, escolhe o nome de Ruth Guimarães para reinaugurar o estabelecimento de ensino.

Recordações, causos e trechos de seus escritos foram emocionalmente recontados pelo seu filho Joaquim Maria, o seu amigo e aluno, de quase toda uma vida, Severino Antônio, e Lázaro Ramos que ficou encantado pela magia “Ruthiana”. Com eles, a vida de Ruth Guimarães foi reacendida, fortemente lembrada pelo seu amor à Literatura, a sua paixão e respeito pelas palavras. Durante uma hora de encontro com o público, a vida feita em palavras da escritora preencheu esses instantes de cultura, deixando a sua marca, a sua bruxaria espalhada pelo ar, que foram aspirados por todos que ali passaram.

Para finalizar, Em cada ponto em que seu nome resplandecer, em cada lábio que seu nome ressurgir, em cada escrito que a sua palavra se tornar viva, em cada citação em que a sua sabedoria ecoar no vazio literário em que as mentes se encontram, o seu amor e fortaleça, libertarão àqueles prisioneiros de sua própria escravidão de alma, o seu nome jamais estará em uma página apagada, empoeirada. mas, na imortalidade da história, nas letras do caipira, nas travessuras do saci, na malandragem de Malazarte.

Logo após a esse sucesso na FLIP vieram outras homenagens póstumas: 23 de agosto- Inaugurada a Sala de Leitura “Ruth Guimarães Botelho”, na Escola Estadual Severino Moreira Barbosa, em Cachoeira Paulista;

Ruth Guimarães plantou em seu quintal os mais diversos causos, as mais belas histórias dessa gente que luta e sobrevive, e guardou em cada livro, as mudas para que cada um pudesse replanta-las em sua vida, florescendo assim a vida de quem a encontra.

1º de outubro - fundada a 1ª Academia Estudantil de Letras na Escola Estadual Dr. Alberto Cardoso de Mello Neto, em São Paulo, tendo Ruth Guimarães como patrona. A Academia Literária Ruth Guimarães, conta com 11 membros tendo

Salve Ruth!

7


HOMENAGEM Por Júlia Nogueira de Sá

Sebastião Albano Nogueira Sá (1944- 2017)

“Meu pai não é deste mundo.” Essa é a frase que eu usava para defini-lo. As vezes ia conversar com ele sobre qualquer assunto e perguntava antes só de graça: - Pai, você está na terra? E ele me olhava e respondia: - Hã? Rs Meu pai era encantador... muitas lembranças particulares do meu pai como artista me farão sorrir para sempre: o cheiro do laboratório de fotografia (que era um quarto ou um banheiro escuro na minha casa), o cheiro das tintas a óleo, a mágica da fotografia aparecendo no papel na hora da revelação, os lápis de cor alinhados do mais escuro para o mais claro, a forma como ele apontava o lápis com estilete e o jeito dele assobiar enquanto desenhava. Mas prevaleceu em mim os ensinamentos enquanto Pai: bondade, senso de justiça, fidelidade aos amigos e o jeito dele encarar a vida. Por isso, desejo que ele vá em paz porque conseguiu como pai, marido, professor e artista viver a vida do seu jeito. My way como é o titulo da música que ele mais gostava e que considerava seu hino. Até um dia. Ficaremos bem.

8


CAPA Por Joaquim Maria Botelho

Caminho de mato, caminho de água, caminho de ferro Os bandeirantes subiram a serra, varando a mata. Abriram picadas a golpes de facão. Preavam índios para ajudar na orientação, em busca de arrancar da nova terra alguma riqueza que fizesse valer a pena o sofrimento da fome, dos mosquitos, das cobras e outros animais mais estranhos do que as galinhas que trouxeram da pátria lusitana. Eram homens brutos, obstinados, cruéis até. Perseguiam lendas que ouviam dos nativos sobre a origem das pedras brilhantes que ornamentavam colares e cocares. Punham-se em marcha ao raiar do dia e prosseguiam até a hora em que o calor esmaecia com a chegada do poente. Onde se encontravam, naquele começo de noite, arranchavam. Faziam um fogo para assar uma paca ou um tatu e, alimentados, dormiam em cima dos apetrechos, rangendo o couro das vestimentas, cansados da caminhada de um dia inteiro. Naquele rancho, permanecia um grupo, a quem cabia abrir uma clareira, erguer palhoças, levantar paliçadas e plantar uma roça de milho e mandioca para que a comitiva, na volta, tivesse o que comer. O grosso do bando seguia viagem, ao amanhecer. Enfiavam-se na mata, novamente, tendo o sol por bússola, enquanto durasse o dia. De novo

arranchavam, de novo deixavam um pequeno grupo para cuidar do acampamento, e no dia seguinte retomavam o avanço. Iam lentos, duas, três léguas por dia, que era o quanto dava para afundar mato adentro. Assim chegaram às margens de um rio largo, escuro por causa do barro e dos restos de vegetação arrastados nas aluviões, e povoado de jacarés e serpentes. A esse rio deram o nome de Paraíba, na língua dos índios tupi, Para’iwa, que significa “mar ruim”. Pois esse rio foi o caminho dos bandeirantes no trecho do nosso chão paulista. Passaram a descer a correnteza em canoas. A cada parada plantavam nas margens a semente do que viria a ser, como veio, cada uma das cidades do Vale do Paraíba. Muitas delas batizadas com nomes advindos do idioma indígena: Jacareí (rio de jacarés), São José dos Campos, Caçapava (clareira na mata), Taubaté (aldeia elevada), Pindamonhangaba (lugar onde são feitos anzóis), Roseira, Potim (camarão pequeno), Aparecida, Roseira, Guaratinguetá (terra das garças brancas), Lorena, Cachoeira Paulista, Cruzeiro, Lavrinhas, Queluz, Arapeí (topo caminho d’água), Bananal. Observe-se que cada uma dista da outra não mais do que duas a três léguas. Foram 9


as que perduraram, às margens do nosso Rio Paraíba paulista, seguindo a progressão histórica de passarem de aldeias a freguesias, de freguesias a vilas e de vilas a cidades. Algumas desapareceram, engolidas pelo tempo e pelas circunstâncias.

rentável, pois, além de permitir maior precisão nos horários, encurtou as distâncias e barateou os custos dos transportes”. Mas, no Brasil, apenas em 1854 as locomotivas passariam a puxar vagões que transportariam ouro e café, substituindo as mulas dos tropeiros. A iniciativa foi do empreendedor Irineu Evangelista de Souza, o Barão – e depois Visconde – de Mauá, com apoio integral do imperador Pedro II, então um jovem de apenas 29 anos. O trecho inicial era modesto. Ligava, conta Eddy Carlos, “o fundo da baía da Guanabara (hoje Porto Mauá) até alcançar o começo da serra da Estrela, em demanda da cidade de Petrópolis.” A ampliação da que foi a primeira ferrovia do Brasil ainda demoraria alguns anos, não apenas pelas providências de implantação dos trilhos, mas também pela burocracia governamental. Foi preciso criar uma empresa, a Companhia Estrada de Ferro Pedro II, cujos estatutos foram aprovados por meio do decreto imperial 1.599, de 9 de maio de 1855. Um mês depois, uma empresa inglesa foi contratada para construir dois ramais, uma bifurcação da linha férrea, a partir da cidade de Barra do Piraí: um deles até Porto Novo do Cunha, na divisa entre os estados do Rio de Janeiro e Minas Gerais, e o outro até a localidade conhecida como Porto da Cachoeira, que era como se chamava a nossa cidade, naquele tempo apenas um arraial, ou um bairro, pertencente à Vila de Lorena.

Pois passaram-se os séculos e as circunstâncias. Esses primeiros habitantes do Vale do Paraíba subiram para Minas Gerais, Mato Grosso, Goiás, Bahia, de onde voltavam com riquezas. Vou citar uma pesquisa de Eddy Carlos Souza Vicente (“O Trem de Ferro, Sinônimo de Desenvolvimento”, artigo publicado na I Antologia da ACLA, 2013): “Partindo de Vila Rica e Diamantina, ouro e diamantes eram transportados em lombo de burros, fortemente escoltados, em viagem pela Estrada Real, cruzando a Serra da Mantiqueira na Garganta do Embaú, percorrendo o Vale do Paraíba, até Guaratinguetá; daí até o povoado do Facão, onde seguia para Paraty, seguindo, por sua vez, para o Rio de Janeiro. Mesmo com a abertura do Caminho Novo, de Garcia Rodrigues Pais, ligando as Minas diretamente com o Rio de Janeiro, o trajeto continuava penoso e cansativo.”

E por que o Porto da Cachoeira foi escolhido como ponto final desse ramal da estrada de ferro? Porque exatamente a partir daquele ponto o Rio Paraíba deixava de ser navegável, no sentido do Rio de Janeiro, em razão de pedras e corredeiras que impediam a passagem de barcos. Dessa forma, toda carga viria em barcos desde Jacareí até Cachoeira Paulista, sendo aqui levada a

No início do século XIX (1825), na Inglaterra começou a funcionar um novo caminho, montado sobre trilhos de ferro. Como refere o pesquisador Eddy Carlos, em novo trecho de sua pesquisa histórica, “a ferrovia configurou-se investimento altamente 10


bordo de vagões que a transportariam até o porto da cidade do Rio de Janeiro. Esse era o plano. Porém, a empresa concessionária conseguiu chegar até a cidade de Barra do Piraí (isso em 1864) mas foi dissolvida por motivos que os historiadores que consultamos não conseguiram explicar. O governo imperial teve que assumir a obra, que levaria ainda 11 anos para ser completada. Afinal, em 20 de julho de 1875, a primeira locomotiva chegou ao Porto da Cachoeira.

A estação majestosa causou efetiva impressão aos visitantes. Fora construída com três torreões que serviam de dormitório para passageiros e funcionários em serviço, e eram muitos. Para estocagem de café e cargas em geral, dois imensos galpões. E, em ambos os lados da estação, largas plataformas para embarque e desembarque de passageiros e produtos. E havia ainda uma imensa caixa d’água para alimentar as locomotivas a vapor. Uma obra gigantesca, como se pode ver pelo esqueleto remanescente nos dias de hoje.

A dificuldade, então, foi que a linha férrea seguia o trajeto da margem direita do Rio Paraíba, mas o porto ficava na margem esquerda, e ainda não existia uma ponte que fizesse a ligação com a ferrovia. Desse modo, continuou trabalhoso o embarque de produtos e passageiros para os trens, que precisava ser feito por balsas. As cargas tinham que ser estocadas, porque não havia trens a toda hora. Essa foi a razão de ter sido construída uma estação ferroviária, na então Freguesia de Santo Antônio da Cachoeira, ainda pertencente à Vila de Lorena, com dimensão notadamente maior do que a das outras estações que mais tarde foram construídas, quando a linha avançou para fazer a ligação até a Estação do Brás, em São Paulo. A ampliação da estrada entre São Paulo e a Freguesia de Santo Antônio da Cachoeira foi patrocinada pelos grandes produtores de café, tendo sido completada em 8 de julho de 1877. Novamente recorro a Eddy Carlos, para informar que, na viagem inaugural, chegaram aqui duas composições: “uma vinda do Rio de Janeiro, trazendo a Princesa Isabel e seu esposo, Gastão de Orleans, o conde D’ Eu, e outra vinda da Estação do Brás, que levaria o casal imperial até a capital paulista”. Resta dizer que até os príncipes foram obrigados a fazer a penosa travessia na balsa do Paraíba.

Um ano depois (1878), o próprio imperador Pedro II fez a viagem do Rio de Janeiro a São Paulo, descendo aqui para fazer a baldeação por balsa da margem direita para a margem esquerda. Com a gigantesca e movimentada estação, a localidade cresceu e se expandiu para a margem direita do Rio Paraíba. Com essa evolução, inclusive política, a Lei Provincial n° 5, de 9 de março de 1880, elevou a Freguesia de Santo Antônio da Cachoeira à condição de vila, desmembrada de Lorena, com o nome de Santo Antônio da Bocaina. Aliás, foi num dos torreões da estação que se instalou a sede da primeira Câmara Municipal da Vila de Santo Antônio da Bocaina, em 8 de janeiro de 1883. Os primeiros vereadores foram o Coronel Domiciano Rodrigues Pinto, Manoel Saturnino de Seixas, Joaquim dos Santos Pinto Júnior, Tenente Joaquim José 11


Rodrigues da Mota, Joaquim Cândido Pinto, Joaquim Luiz de Freitas e Joaquim Pedro Barbosa.

ramais. Bananal, por sua vez, centro da lavoura cafeeira no estado (e no Brasil inteiro), riquíssima na época, logrou construir a sua própria ferrovia, que ia entroncar-se com a Estrada de Ferro Pedro II, na Estação da Saudade, em Barra Mansa. Tempos de ouro. Dada a importância de Cachoeira Paulista, o próprio presidente da República, Washington Luís, escolheu a cidade, em 1928, para inaugurar a Rodovia Rio – São Paulo (que depois da construção da Rodovia Presidente Dutra ficaria conhecida como Estrada Velha Rio-São Paulo). O teatro da cidade (hoje também abandonado, como a estação ferroviária) apresentava artistas de renome internacional. As fazendas leiteiras eram várias e muito produtivas. Os filhos das famílias mais prósperas seguiam para estudos superiores na então capital federal, o Rio de Janeiro. Tudo isso até 1932, quando eclodiu a Revolução Constitucionalista. A estação ferroviária foi severamente bombardeada pelas forças legalistas de Getúlio Vargas, porque dali partia o trem blindado TB-6, que fustigava as linhas federais, em Queluz, e porque em Cachoeira ficava acantonada parte das tropas paulistas. Os estragos, felizmente, foram de pequena monta. Sofreu mais a ponte sobre o Rio Paraíba, completamente estraçalhada pelas bombas dos aviões, apelidados de “Vermelhinhos da Ditadura”. A ponte foi mais tarde reconstruída.

Mas somente em 1890, depois de proclamada a República, surgiu a solução para a travessia incômoda do rio. O governo federal criou a Estrada de Ferro Central do Brasil e mandou construir a ponte férrea sobre as águas, inaugurada afinal em 1893 – um ano depois de a vila ter sido elevada à categoria de comarca, em 9 de março de 1892. Em 15 de maio de 1895, transformada na cidade de Bocaina, ocorreu o esplendor do antigo arraial. Esplendor que aumentou com a instalação, já em 1895, da mais importante oficina de reparos de locomotivas e vagões, com “estrutura organizada, composta de almoxarifado, escritórios e oficina adaptada com aparelhos eletromecânicos, tudo supervisionado por um engenheiro chefe que passou a residir na cidade”, conforme a pesquisa de Eddy Carlos. Os trens de passageiros se alternavam com trens de cargas, a frequência das viagens aumentou e muitas cidades do Vale do Paraíba foram beneficiadas pela proximidade com o novo meio de transporte. Outras, porém, mais afastadas da linha férrea, foram aos poucos sendo relegadas a um quase abandono, sofrendo até redução populacional. Foi o que houve com São José do Barreio, Areias e Silveiras, embora tivessem contado, por algum tempo, com

A cidade, em 1934, passou a se chamar Valparayba, tendo a população votado em plebiscito convocado pelo governo federal. E somente em 1943 recebeu o nome atual, de Cachoeira Paulista. Ainda se destacava a magnífica arquitetura da estação ferroviária. O piso interno, todo ladrilhado, e o piso das plataformas, todo em verde, reluzia, encerado com capricho. As 12


bilheterias eram cabines de madeira, verdadeiras obras de arte da marcenaria, polidas com óleo de peroba e cera de abelhas. Os viajantes botavam roupa de passeio para viajar ou simplesmente esperar ou ver partir amigos e parentes nos trens elegantes. Funcionários uniformizados atendiam passageiros, carregando malas, dando informações, cuidando da administração. Os fiscais de trem, engomados em ternos azul-escuro, de quepe no mesmo tom, desciam para um gole do café Maitaca – torrado e moído em Cachoeira Paulista. Alunos e funcionários da oficina circulavam nos seus uniformes, exibindo o orgulho de fazer parte de uma importante e estratégica posição política e econômica da região.

desativada em 1974 e o último trem de passageiros a circular pelo Vale do Paraíba, passando em Cachoeira Paulista, foi o chamado trem de prata, desativado com a linha em fins de outubro de 1998. Atualmente, ainda circulam trens em Cachoeira, transportando minérios ou quaisquer tipos de cargas. As raras paradas na cidade são próximas à oficina de reparos, reativada recentemente.”

Mas o caminho de ferro, aos poucos, deu lugar à rota poeirenta da Estrada Velha RioSão Paulo e, a partir de 1951, pelo piso asfaltado da Rodovia Presidente Dutra. Os veículos automotores ganharam espaço com a instalação da indústria automobilística, na política desenvolvimentista dos “50 anos em 5”, de Juscelino Kubistchek, e os caminhões passaram a substituir, cada vez mais rapidamente, os vagões dos trens. Era a indústria do petróleo mostrando a sua força. Em complemento, as pessoas consideravam fator de status social viajar de carro. Os trens foram perdendo passageiros, as linhas regulares foram sendo reduzidas, estações foram sendo fechadas.

Hoje temos um esqueleto meio desmoronado que apenas serve de vaga lembrança do que foi a magnífica arquitetura da estação ferroviária. Tombada pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional em 18 de abril de 1982, mas sem qualquer aporte para a sua restauração, decai como dente podre que não vê dentista. Algumas iniciativas populares e até de governos municipais foram tentadas, sem sucesso. O que se vê é abandono e ocupação irregular. Sem perspectiva. Não seria uma alternativa para, minimamente, proteger esse patrimônio, passar a fazer funcionar ali uma feira livre em alguns dias, realizar festejos populares em outros, e abrigar oficinas esportivas, de artesanato e culturais? Desse modo, ocupada pela população, pelo menos a estação não ficaria rejeitada, escura e assustadora como um velho fantasma.

A nossa resistiu ainda por mais duas décadas. Eddy Carlos nos conta: Ferroviária de Cachoeira

“A Estação Paulista foi

13


ATELIÊ CULTURAL Por Roberto Mendes

Mazurca X Mazuca Uma, desliza. Branda. A outra, bate o pé. Chocalha. Uma, envolve corações apaixonados. A outra, corações envergonhados. Uma, finas rendas e tecidos lustrosos. A outra, rusticamente multicolorida. Uma, vai e vem nas cordas. Suavemente... A outra, é copiado o vai e vem, com dedilhação ligeira. Uma, secretamente... amo-te. A outra, olhar entrecruzado. “Te gosto muito! ” Uma, é poesia. Sonhos acordados. A outra, madrugada afora, até o sol raiar. Uma, a alma pode até descrever. A outra, é o aconchego imediato. Uma, a alegria contida. A outra, felicidade extrovertida. Uma, por uma noite, o amor tão esperado. A outra, amar, trabalhar e sustentar. Uma, a polonesa. A valsa! A outra, nordestina. Dança do sertão! Polonesa, a Mazurca. Nordestina, a Mazuca. Danças mágicas. Uma no requintado salão e a outra no chão de terra. É a mazuca agrestina no agreste de Pernambuco. É a mazurca em Varsóvia perto da Cracóvia. Música é a vida dele e dela. É de todos. Ela é nossa. Nossa! Que lindas são as músicas. É melodia. É palpitação. É vida! É amor! Obrigado, mundo!

14


CONTO Por Jurandir Rodrigues, abril 2014

“Acabou Chorare” Depois de um dia de trabalho exaustivo, depois de suportar por uns 10 minutos um colega chatíssimo e insistente, do tipo que nos dá tapinha enquanto fala, querendo de todo jeito minha participação em um grupo que discute arte e coisas afins nas noites de terça, depois de enfrentar um trânsito horrível, cheguei em casa e ela me falou por uma meia hora que não me aguentava mais, que eu só pensava no trabalho, que precisava de alguém que a ouvisse, que gostasse dela. Falava enquanto arrumava suas coisas pra partir, eu a ouvi em silêncio. Quando acabou de despejar toda sua raiva em mim, foi embora sem olhar pra trás. Eu tomei um banho, troquei de roupa e saí pra jantar. No dia seguinte, como era sábado, saí pra rever uns amigos. E minha vida voltou a existir. Minha casa só tinha barulho quando eu o fazia. Voltei a ler sem ninguém me interromper. Quando tivemos que nos ver novamente em frente ao juiz e advogados, ela achou que eu estaria péssimo. Que pediria para ela voltar. Quando percebeu que nunca tinha me visto tão bem, ensaiou um arrependimento, uma anulação da separação. Mas deixei bem claro que a amava, mas justamente por ela ter ido embora e que ela nunca tinha feito tão bem pra mim quanto nesses últimos meses de separação. Eu saí da audiência aliviado por ter me livrado dela oficialmente, e ela me pareceu triste e arrependida por ter me feito tão bem.

15


HISTÓRIA Por Eddy Carlos Souza Vicente. Blog: http://redescobrindoovale.blogspot.com.br/

A Ponte dos “Dois Euclydes”. Há algum tempo, publicamos alguns referentes a pontes; assim não podíamos deixar de analisar a majestosa ponte do Rio Paraíba em Cachoeira Paulista. De vital importância para a cidade, essa ponte, que é a segunda no mesmo local, também foi motivo de intensos debates, projetos e cobranças por parte dos munícipes e autoridades públicas. Por se tratar de um rio de grande volume e margens mais distanciadas como o “Paraíba do Sul”, projetos e obras são geralmente atribuições da administração estadual, ou até mesmo em determinados lugares, da esfera federal. Durante o período imperial, geralmente a construção de pontes, embora de responsabilidade dos municípios, dependiam de verbas solicitadas ao Governo Provincial. Da mesma forma que nos artigos referentes ao pontilhão do Rio Branco e a ponte do Rio Embaú, analisemos o histórico da concepção, projeto e construção da ponte do Rio Paraíba em Cachoeira, unindo a Margem Esquerda ao Centro e o motivo do título acima.

para construir a Igreja Matriz. Um ano mais tarde, Antônio José da Costa Júnior e os irmãos Porto apresentam ao governo, proposta para a construção de uma ponte de madeira, desde que obtivessem o direito de cobrar pedágio. Ao mesmo tempo, o Barão de Parnaíba, Vice-Presidente da Província, abre a concorrência para a “construção da ponte sobre o Paraíba, com encontros de pilares de pedra, superestrutura (sic.) metálica, até sessenta contos de réis”. A referida concorrência não vingou, pois em janeiro de 1888, a Câmara Municipal da Bocaína volta a pedir à Assembléia Provincial (atualmente Assembléia Legislativa), a construção da ponte e, em abril do mesmo ano, o governo libera uma quantia de 25:000$000 (vinte e cinco conto de réis) para a obra. Consequentemente, ainda de acordo com a análise de Agostinho Ramos, a Vila da Bocaína recebe no mês de março de 1889, a visita do Presidente da Província, Dr. Pedro Vicente, e uma Comissão de Engenharia para avaliar o melhor local para a construção da almejada ponte, “afim de verificar de visu qual o melhor ponto para essa grande obra que vai custar a Província 70 de contos de réis”. E no mês de julho do mesmo ano, o Barão da Bocaína, Francisco de Paula Vicente de Azevedo, de Lorena, coloca-se à disposição do Governo Provincial para superintender a tão aguardada construção. Sendo assim, sob a responsabilidade do engenheiro João Corrêa da Costa, a ponte sobre o Rio Paraíba é inaugurada em 24 de abril de

Em 1880, o antigo Porto da Cachoeira é desmembrado da Vila de Lorena e, através da Lei Provincial nº5, é criada a Vila de Santo Antônio da Bocaína. De acordo com Agostinho Ramos, já em 1884, a edilidade cobrava das autoridades provinciais a construção de uma ponte, pois a comunicação entre as duas margens do Rio Paraíba era realizada por meio de uma balsa. Em janeiro de 1885, a obra é cobrada novamente, junto com o pedido para o Governo da Província de liberação de verba 16


1891, em meio à grande festividade. Porém, em 1897, a recente ponte já apresentava falhas que teriam origem desde a sua construção, apresentando fendas verticais que se dilatavam próximo à margem direita do rio. Em artigo publicado pelo jornal “Correio Paulistano” em 1953, Agostinho Ramos detalha os pormenores das falhas da ponte e a atuação da antiga Superintendência de Obras Públicas para o reparo da mesma.

Euclydes da Cunha, que em seguida seguiria para a zona conflagrada de Canudos como correspondente do jornal “O Estado de São Paulo”. Em Canudos, Euclydes escreve a sua obra-prima “Os Sertões”, narrando os horrores do conflito e, de volta ao Vale do Paraíba, fixa-se em Lorena após ser promovido a engenheirochefe do 2º Distrito de Obras Públicas, sediado em Guaratinguetá. Todavia, se a ponte tão sonhada, desejada, construída e reparada teve o nome de Euclydes da Cunha relacionado a ela, devido principalmente á obra de restauro citada, teria 35 anos mais tarde, um segundo Euclydes vinculado ao seu destino. Estamos nos referindo ao Coronel Euclydes de Figueiredo. Pai do futuro Presidente da República, General João Baptista de Figueiredo, esse Euclydes chega em Cachoeira para assumir o comando da 2º D.I.O (Segunda Divisão de Infantaria em Operações), durante a Revolução de 1932. De Cachoeira, o Coronel Euclydes comandava todas as operações militares contra as forças legalistas de Vargas no chamado Setor Norte. Segundo Agostinho Ramos, Prefeito de Cachoeira à época do conflito, Euclydes instala o Quartel-General da 2º D.I.O, na Margem Esquerda requisitando a casa da família de Fausta Martins para as devidas acomodações. Por sua vez, o Corpo de Engenheiros requisita e ocupa, próximo ao Q.G. da 2ºD.I.O, a residência de João Clímaco de Godoy, conhecido em Cachoeira e no Embaú pelo epíteto de “Pequetito”. Porém, se por um lado as construções de pontes, pontilhões, viadutos, etc. atendem às necessidades das populações em geral, por outro, a sua destruição reflete estratégia de guerra, principalmente quando um exército está em retirada e tenta retardar o avanço ofensivo de outro. Foi o que Euclydes de Figueiredo fez quando os soldados legalistas tomaram

Sendo assim, é enviado até Bocaína (Cachoeira), o engenheiro-ajudante Portugal Freixo para examinar a ponte e apresentar soluções; a solução de Freixo é de que tal ponte deveria ser totalmente reconstruída e apresenta um orçamento de 60:000$000 (sessenta contos de réis). Discordando do laudo, a Superintendência envia o também engenheiro-ajudante Euclydes da Cunha, que após profunda análise técnica conclui que, reforçando os pilares por meio da “Cruz de Santo André”, um recurso da engenharia, acabaria por consolidar a ponte, evitando o seu desabamento. O orçamento da obra feito por Euclydes fica em 28:596$350 (vinte e oito contos, quinhentos e noventa e seis mil, trezentos e cinqüenta réis). Satisfeita com o novo laudo, a Superintendência de Obras Públicas encarrega o próprio Euclydes da Cunha de avaliar e organizar as propostas apresentadas, decorrentes da concorrência aberta pela Secretaria Estadual de Agricultura, à qual estava subordinada a mencionada Superintendência. Cumprindo sua função, Euclydes seleciona três propostas: Eng.C.H. Córner, de São Paulo, por 26:000$000, João Vitelli, de Bocaína, por 26:500$000 e Ernesto Zambelli, de Lorena, por 24:000$000; em 9 de julho de 1897. Com a conclusão das obras, a ponte tornou-se firme e segura, transformando-se também no cartão postal da cidade e o mérito da restauração coube ao engenheiro 17


posições em Bananal, São José do Barreiro e avançavam sobre Queluz. A ordem do comandante constitucionalista foi a de destruírem as pontes sobre o Rio Paraíba, além de pontilhões da via férrea. Sendo assim, as pontes de Queluz, Lavrinhas e de Cachoeira foram dinamitadas, o que não foi suficiente, no entanto para deter a investida das forças federais. A decisão de destruir a ponte metálica foi comunicada a Agostinho Ramos pelo próprio Coronel Euclydes às 23 horas do dia 13 de setembro de 1932. E no alvorecer do dia 14, a bela e formidável ponte é destruída. Deixemos que o próprio Agostinho Ramos relate o episódio: “Deviam ser, mais ou menos, 3 horas da madrugada, três fortíssimos estampidos. Desmantelaram-se os transformadores, arriara a ponte que vai para a Margem Esquerda. (...). E aqui se verifica interessante e singular coincidência de reflexos antagônicos – em 1897, um Euclides, na paz, consolida uma ponte; em 1932, outro Euclides, na guerra, a destrói...”.

outra, retornando assim, a cidade aos tempos do Império. Novamente como Prefeito de Cachoeira, Agostinho Ramos, junto com a população inicia uma forte campanha para a reconstrução da ponte. O que é atendido pelo Governo do Estado de São Paulo; será construída uma nova ponte, dessa vez em concreto armado, seguindo o projeto do engenheiro Marcílio Malta Cardoso. Ocupava a interventoria em São Paulo, Armando de Sales Oliveira, cujo Secretário da Viação era Machado de Campos As obras tiveram início no dia 09 de julho de 1934, exatamente dois anos do levante constitucionalista, e foram encerradas no dia 11 de novembro do mesmo ano, a um custo de 610:000$000 (seiscentos e dez contos de réis). Construída pelas empresas Dolabela Portela e Cia. e Kemitz e Cia., a ponte, com seus arcos majestosos é inaugurada no dia 18 de novembro de 1934, em meio às grandes festividades e queima de fogos. Mais uma vez, Cachoeira tem seu principal cartão postal e, atualmente, ostenta o nome do ex-prefeito e ilustre historiador, sendo oficialmente conhecida como “Ponte Agostinho Vicente de Freitas Ramos”. Até a próxima.

Encerradas as hostilidades com a rendição de São Paulo e a conseqüente ocupação militar, a população de Cachoeira, por três anos, utilizou-se novamente de balsas e barcos para transitarem de uma margem a Dicas para consulta.

FÉLIX, Sandra Regina (Org.). Cachoeira Paulista: Fé, História e Tradição. Editora Noovha América. São Paulo, 2005. RAMOS, Agostinho. Recordações de 32 em Cachoeira. Empreza Graphica da Revista dos Tribunaes. São Paulo, 1937. _________________. Cachoeira Paulista: 1780-1970. 2 vols. IHGSP.São Paulo, 1971. PASIN, José Luiz (Org.) O outro Euclides. O Engenheiro Euclides da Cunha no Vale do Paraíba. 1902-1903. Vale Livros/UNISAL. Lorena, 2002.

18


ARTES Antonio Gomes Comonian Nascido em Cachoeira Paulista, atua como desenhista profissional do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (INPE). Sua formação é autodidata, com inúmeros prêmios nacionais e internacionais, em suas obras assina como COMONIAN. É acadêmico vitalício da ACLA, cadeira número 27. Prêmios: 10/ 2010 – Medalha de Ouro– 8º Salão de

Histórico

Artes

Copacabana – Rio de Janeiro (RJ).

Plásticas

da

Liga

da

ADESG

do

Exército

e

Forte

de

(Associação dos Diplomados da Escola

09/ 2009 – Medalha de Ouro- 2º Salão de

Superior de Guerra) – Rio de Janeiro (RJ).

Artes Plásticas da Escola Superior de

09/2010 – Paleta de Ouro – 3º Salão de

Guerra – Rio de Janeiro (RJ).

Artes Plásticas da Liga da Defesa Nacional

08/ 2009- Medalha de Prata – IX Salão de

– Rio de Janeiro (RJ).

Artes Plásticas da Escola Superior de

08/2010 – Medalha de Prata– 10º Salão de

Guerra – Rio de Janeiro (RJ).

Artes Plásticas na Escola Superior de

09/ 2005 – Medalha de Prata – 29º Salão

Guerra – Rio de Janeiro (RJ).

Bernardelli da Sociedade Brasileira de Belas

07/2010 – Medalha de Prata- 1º Salão de

Artes – Rio de Janeiro (RJ).

Artes Plásticas do Saber Cultural no

06/ 2005 – Medalha de Prata– 3º Salão da

Auditório do Museu Histórico do Exército no

Escola de Guerra Naval- Rio de Janeiro

Forte de Copacabana- Rio de Janeiro (RJ).

(RJ).

05/2010 – Medalha de Prata – 1º Salão de

05/2005- Medalha de Prata – 2º Salão de

Artes Plásticas do TRT ( Tribunal Regional

Arte da ABMA ( Academia Brasileira do Meio

do Trabalho) – Rio de Janeiro (RJ).

Ambiente) e Federação das Academias de

03/2010 – Medalha de Prata – 7º Salão de

Letras do Brasil – Rio de Janeiro (RJ).

Artes Plásticas da Academia Brasileira do

10/2005 – Medalha de Bronze – Salões

Meio Ambiente no Museu Histórico do

Internacionais

Exército e Forte de Copacabana – Rio de

International Art – Portugal.

Janeiro (RJ).

10/2005-

11/ 2009 – Medalha de Prata – VII Salão de

Internacionais

Artes da ADESG/RJ – O Brasil e Suas

International Art – Espanha.

Formas de Arte e Cultura no Museu

19

de

Medalha de

Arte

de Arte

New

Bronze–

New

Circle

Salões Circle


10/2005

-Prêmio

Internacionais

de

Suavidade– Arte-

Salões

New

07/2005- Menção Honrosa– XXI Salão

Circle

Municipal

de

Artes Prof-

Plásticas

International Art- França.

Guaratinguetá-

10/2005- Medalha de Ouro– III Mostra de

Guaratinguetá (SP).

Artes Plásticas de Guaratinguetá – IV

12/2004 – Placa de Prata – 2ª Semana de

Semana Quissak Júnior- Guaratinguetá

Educação,

(SP).

Paulista (SP).

Cultura

Ernesto

de

e

Obras

Riacho Primaveril

Trilha no Bosque 20

Arte-

Quissak-

Cachoeira


Recanto dos Sonhos

ManhĂŁ Rural

21


CRÔNICAS Por Carlos Varella

O leito seco do rio Paraíba Quem sabe, um dia, uma seca braba? Quem sabe, uma escassez de água na face da Terra? Milênios? Séculos? Décadas? Se algum dia o rio Paraíba secar e, quem sabe?, o seu leito árido estiver para ser transformado numa autoestrada ligando a serra do Mar e o Vale do Paraíba à sua foz em Atafona, sob a ponte de arcos de Cachoeira serão encontrados, entre outras coisas, na superfície, na terraplenagem ou nas escavações, além dos escombros da antiga ponte destruída em 1932, algumas granadas, fuzis e capacetes da Revolução, vidros, plásticos, garrafas, pilhas e baterias, ossadas humanas e esqueletos de animais, sacos estufados de lixo, potes, cerâmicas, panelas enferrujadas, pneus carecas, frascos vazios de lançaperfume, embalagens de todo tipo, revólveres, facas — enfim todos os refugos jogados da ponte durante centenas de anos ou trazidos de outras paragens pela correnteza. É improvável, não impossível, que sejam achados móveis, veículos, televisores, geladeiras, fogões, cofres, arcas de tesouro, joias, mas certamente haverá o lixo eletrônico de computadores, celulares, notebooks, tablets, walkmans, smartphones, coisas assim e outras geringonças que ainda serão inventadas. Hão de encontrar uma estátua: aquela que durante muitos anos assinalou um túmulo no cemitério, um dia retirada de cima do jazigo e jogada no rio porque se dizia que seu braço, com um dedo erguido aos céus, atraía raios. Poderão achar até um pacote de dinheiro, que certa vez, talvez por castigo da Natureza, uma velhinha distraidamente jogou da ponte quando tinha ido lá para jogar uma sacola de lixo. Se a água e o tempo não tivessem acabado com eles, achariam livros, cadernos e fichários descartados todo final de ano pelos alunos do Ginásio e do Delta, máscaras e fantasias do Bloco Sujo da Margem. No lodo petrificado acharão chapéus atirados na água pelo vento, moedas, medalhas, amuletos, oferendas aos orixás, alianças de noivados ou de casamentos rompidos. Não fosse a ação do tempo, encontrariam cadernos de poesias, diários secretos de meninas-moças sonhadoras, cartões com juras de benquerer, cartas lamuriosas e bilhetes raivosos de namoros desfeitos, lencinhos com monogramas entrelaçados, álbuns de retratos, fotos rasgadas ao meio, caixas de recordações. E então descobririam que, além de entulho, lixo e esgoto, o rio lamacento também acolhia segredos e restos de amor.

22


CRÔNICAS Por Sônia Gabriel

O irmão do Malba Tahan Poucos de nós não leram ou não ouviram falar no escritor Malba Tahan e em suas aventuras como educador e escritor. Suas fantasias de árabe permanecem em nosso imaginário e professores de matemática ainda indicam “O homem que calculava”. Pois bem, Malba Tahan, ou melhor, Júlio César de Mello e Souza passou sua infância em Queluz e lá reverenciam muito sua memória. As águas do rio Paraíba do Sul foram palco para suas brincadeiras de criança, suas e de seus irmãos, um em especial: João Baptista de Mello e Souza, o J. Meluza. J. B. de Mello e Souza, como assinou seus livros, é o autor de “Histórias do Rio Paraíba”. Foi através das leituras dos livros de Ocílio Ferraz[1] que conheci J. B. e fiquei encantada. Foi amor na primeira leitura. Primeiro, foi preciso superar a dificuldade de encontrar suas obras, pois estão esgotadas; depois de rastrear sebos dos mais distantes neste Brasil, finalmente, o prazer de descobrir sua escrita. Vi-me apaixonada pelo irmão de Malba Tahan. O livro antigo, bem conservado, as páginas amareladas pelo tempo, mas bem protegidas pela capa dura, caprichosamente providenciada pelo proprietário, como mero costume dos que gostavam de ler. O livro era um objeto de colecionador, uma vez feita a leitura não era jogado ao lado. Era disposto de maneira organizada em uma estante e servia de adorno para as salas e escritórios. O costume era ler, ler novamente, consultar e marcar muitos encontros com a obra. As iniciais A.D.S. na parte inferior da lombada avisam quem foi o proprietário. Eu apreciei cada detalhe que o tempo preservou para mim. Iniciei a leitura sem passar pelo prefácio, como sempre faço, pois gosto de tirar minhas próprias conclusões sobre as leituras às quais me entrego. Depois de terminada a aventura, aprecio a opinião ali registrada. Voltando ao autor, ele me conduziu por histórias há muito não contadas, exceto uma das primeiras, que remete ao aparecimento de Nossa Senhora da Conceição nas águas sagradas do Paraíba do Sul. Mas, o que me fascinou foi a intensidade do rio nas memórias do autor. Assim ele inicia seu livro: “É a meu velho amigo Paraíba, ao rio de minha terra, que eu dedico estas crônicas”. E as páginas seguintes são fortemente carregadas das histórias de amor, das pendengas políticas, das questões religiosas, das “breganhas” de Taubaté, da ternura e romantismo de um tempo enlaçado aos ventos do final do século XIX e início de século XX. Apaixonante a “Patroinha de Lorena”. Enigmático “O Mistério de Mongo Velho”. Verdades “Itaruman-Assú” [2]. Viagem leve em cada página, o Paraíba está mais denso, mais limpo, mais legítimo e sagrado. Quando as páginas começam a findar a gente grita por dentro: “Vorte quem tem Fé”. Já li uma, duas, três vezes. Estou lendo novamente e percorro as linhas que me revelam outro tempo das ruas que hoje desbravo em busca de histórias e aprendizado.

23


Os meninos de Queluz (também título de outro livro de J.B.) fazem parte de nossa infância antiga, com tantos contos maravilhosos, tanta magia em forma de letras nos ensinando. João Baptista nasceu em 1888 e faleceu em 1969. J. Meluza, como também assinou, foi contista, romancista, poeta, memorialista, autor didático e de literatura infantil, teatrólogo, historiador, folclorista, diplomado em Direito, funcionário público, professor universitário, jornalista e membro da Academia Carioca de Letras. Para mim, basta saber que, diante de tantas possibilidades, falaram mais alto e calaram mais fundo suas lembranças de infância, suas aventuras de rapaz às margens do rio Paraíba do Sul.

[1] Ocílio Ferraz é sociólogo, idealizador de projetos culturais no Vale do Paraíba e autor de vários livros, entre eles: “Voltando às origens”, 1984, onde encontrei a imagem do livro de J B de Mello e Souza. Mantém em Silveiras – SP um restaurante especial, homônimo, com gastronomia voltada às tradicionais receitas e uma biblioteca com raras obras valeparaibanas. [2] Itaruman-Assú – “Sob certos aspectos, - o turístico, sobretudo, - o mais notável trecho do Paraíba é o Salto, onde nosso dileto rio assume a função de linha divisória entre os Estados do Rio de Janeiro e São Paulo. Uma tremenda corredeira se forma, ainda em território paulista, e se prolonga por cêrca de três quilômetros, dos quais a última parte assinala a linha interestadual. É o Itaruman-Assú, de que falavam com terror os velhos puris aldeados em Queluz. (sic)”. J. B. de Mello e Souza no livro “Histórias do Rio Paraíba”, primeira edição da Editora Aurora, em 1950, no Rio de Janeiro – RJ, página 51.

24


LITERATURA Por Renisse Ordine

Carlos Drummond de Andrade

Mais de oito décadas de vida e trinta anos de saudade... Há trinta anos a poesia está sem o criador dos versos do “Poema das sete faces”, aquele que foi um “gauche na vida” e no decorrer de sua existência tornou-se um ícone da poesia brasileira. Das Minas Gerais para o mundo, apesar de ser uma frase clichê, esse foi o verdadeiro caminho de um dos maiores poetas de nossa literatura contemporânea. E o mais interessante é que Drummond de Andrade não precisou sair dos solos brasileiros para que sua obra fosse reconhecida mundialmente. As palavras, essas que ela tanto amou, antes mesmo de saberem o que diziam, fizeram o seu destino. Em suas obras, que reúnem poesias e crônicas, o poeta descreveu tudo o que presenciou. Nascido no início do século XX, em Itabira, Minas Gerais e retratado como um homem tímido, que observava a história, e a passava conforme a sua visão de mundo, com maturidade. Foi um homem que não gostava de viajar propriamente, por isso utilizava as palavras para se “locomover”. A paixão que sentia por sua filha, considerada “o seu melhor livro” foi a única razão que o fez abandonar os solos brasileiros. Porém, as suas obras viajaram mundo, sendo traduzidas em vários idiomas, sempre com grande sucesso. Suas poesias despertam em nós um sentimento profundo, como se pudéssemos sentir o que ele passou. Não é uma poesia abstrata, tem um valor, um significado. Uma demonstração da vida, com seus momentos, de paixão, de tristeza, alegria e bom humor. 25


Em sua primeira obra publicada “Alguma Poesia”, lançada em 1936 Drummond relata os momentos de sua meninice no poema “Infância”, em que conseguimos perceber ás suas condições de vida.

“Meu pai montava a cavalo, ia para o campo. Minha mãe ficava cosendo. Meu irmão pequeno dormia. Eu sozinho menino entre as mangueiras Lia história de Robison Crusóe, Comprida demais que não acaba mais...”

Outro poema de Drummond que consta neste livro é um dos mais famosos do poeta: “O homem de sete faces”, um poema cubista, pois nos altera os ambientes. No caso, da parte espiritual vai para o um ambiente realista, simultaneamente.

“Quando nasci, um anjo torto Desses que vivem na sombra Disse: Vai, Carlos ser guauche na vida. As casas espiam os homens Que correm atrás de mulheres. A tarde talvez fosse azul, Não houvesse tantos desejos...”

Desde a primeira obra publicada, o autor já faz uma referência ao seu grande amigo, o também escritor Mário de Andrade. A amizade entre os dois iniciou-se em 1924, quando Mário de Andrade de passagem por Minas Gerais, juntamente com os artistas modernistas, o francês Blaise Cendras, Oswald de Andrade e Tarsila do Amaral se conheceram. No entanto, Drummond fez parte da 2ª Geração dos escritores e artistas que romperam com o estilo literário europeu que vigorava no Brasil desde o período colonial, retirando assim o esteticismo para entrar um estilo popular. Na Revista de Antropofagia foi publicado o Poema “No meio do Caminho” o que escandalizou e gerou inúmeras críticas por parte de outros escritores, devido a sua simplicidade. "Drummond guardou muita coisa que saiu sobre ele ao longo da vida, mas em pastas, por assunto ou pelo sobrenome do crítico", diz Ferraz, destacando a consciência do poeta, que trabalhou por muitos anos no Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico Nacional), sobre a importância da preservação da memória. "A diferença no que diz respeito a No Meio do Caminho é que ele arquivou tudo não sobre o livro que o continha, mas sobre aquele poema." Ferraz destaca ainda que, embora não tenha escrito uma única linha da biografia - o prefácio original ficou a cargo do português Arnaldo Saraiva -, Drummond fez sua própria leitura sobre as críticas ao separá-las em capítulos com títulos como Muita Gente Irritada, Das Incompreensões e Popularidade, Mesmo Negativa. (ESTADÃO, 2010)

26


O que não se pode negar nos poemas de Drummond é o seu bom humor, presente em seus poemas, como por exemplo:

“Quadrilha João amava Teresa que amava Raimundo Que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili Que não amava ninguém. João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento, Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia, Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes Que não tinha entrado para a história.”

Em suas obras também não faltaram as críticas e os sentimentos em relação aos fatos que estavam ocorrendo nas respectivas épocas, como as duas grandes mundiais, a revolução das mulheres, a ditadura. Em um passeio por seus poemas e crônicas podemos compreender toda a realidade de Drummond. Em suas crônicas, por exemplo, percebemos que ele retrata mais o seu cotidiano no Rio de Janeiro, onde escreve sobre as pessoas, as rotinas das pessoas da cidade grande, com a vida mais agitada e capital da República. Nesta fase, em que muda para o Rio, Drummond além de poeta, começa a trabalhar no serviço público, chegando a trabalhar com o Ministro da Educação Gustavo Capanema. Preocupava-se com os problemas sociais, era simpatizante da esquerda, porém não se filiou a nenhum partido, os seus desabafos foram muito bem caracterizados em sua obra “Rosa do Povo” e “Sentimento do Mundo”. Nesses trinta anos de sua partida, Drummond não perdeu a sua importância, ao contrário, ainda é o mais importante de sua linha literária. Toda a sua vida, descrita por versos, é um encanto nosso, e de toda uma geração que há de vir, que sentirão nesse simples mineiro de Itabira, toda a sua paixão por aquilo que o guiou nos seus caminhos: A poesia.

“Há dez mil definições de poesia, eu não tenho nenhuma própria. Você escolherá o que achar mais interessante, porque a poesia por sim mesma é a explicação do mundo. E a explicação da poesia fica por conta do leitor e da sensibilidade deles” (Carlos Drummond de Andrade)

27


ARTIGO ACADÊMICO Por Ana Lúcia Magalhães

Medo e Humor no Filme Relatos Selvagens Resumo: Relatos Selvagens é obra complexa, que lida com situações ao mesmo tempo quotidianas e extraordinárias. O filme se prende a duas paixões aristotélicas: medo e humor, que compõem o tragicômico, presentes nos seis episódios de que consiste o filme. Em cada um deles, há também o envolvimento de uma questão ética. O primeiro mostra o encontro inusitado de pessoas em um avião que, fluida e rapidamente, se relacionam a partir do nome de um conhecido de todos. O clima vai do risível ao trágico, com questões éticas como plano de fundo. A segunda história, que se passa em um restaurante de beira de estrada, é um caso de justiça com as próprias mãos por uma cozinheira, e as reações atarantadas de uma pessoa profundamente ética, a garçonete. O terceiro segmento, uma briga de estrada entre dois homens prepotentes, trata principalmente da raiva e do machismo, com um final trágico que mostra como é vã a atitude machista. A quarte parte trata da reação exacerbada de um cidadão honesto ao abuso de poder, episódio ligado à falta de ética do descaso com o cidadão por parte do poder institucionalizado. O episódio seguinte trata da infração da ética social por parte de um pai abastado em defesa do filho que acabara de provocar um acidente de carro envolvendo morte. O final é inesperado, uma demonstração do pathos diante da impunidade e das violências de que a sociedade se considera vítima. A última história encerra um adultério, a paixão aristotélica da raiva e o triunfo paradoxal e inesperado do amor, em uma trama que mistura bem trágico e cômico. Palavras-chave: medo; humor; pathos; ética. Abstract: Wild tales is a complex piece of artwork, which deals with situations that are extraordinary, yet at the same time quotidian. The film revolves around two Aristotelian passions, fear and humor, which make up the tragicomic, present in all six episodes. In each of the stories, an ethical issue is also present. The first episode shows an unusual gathering of people in an airplane, who smoothly and quickly find out that all of them are somewhat related to one particular individual. The atmosphere transitions from laughable to tragic with ethical issues as background. The second story, which takes place in a roadside restaurant, it is a case of a cook taking justice in her own hands, much to the dismay of the waitress, a deeply ethical person. The third segment, a road fight between two dominant men, deals mostly with anger and machismo, leading to a tragic ending that shows how vain macho attitudes are. The fourth part narrates the overreaction of an honest citizen to abuse of power, episode linked to the lack of ethics that resides in the indifference to the ordinary citizen by the institutionalized power. The next episode deals with the breach of social ethics by a wealthy father in defense of his son who had just caused a car accident involving death. The ending is unexpected, a demonstration of pathos in the face of impunity and violence that victimize society. The last story is about adultery bringing the Aristotelian passion of anger and the paradoxical and unexpected triumph of love, in a plot that masterly mixes tragic and comic. Keywords: fear; humor; pathos; ethic. 28


Introdução A colocação do cinema como sétima arte iniciou-se com Ricciotto Canudo, no Manifesto das Sete Artes, em 1912, publicado em 1923 e foi seguida de outras classificações que, a despeito de algumas alterações entre as posições, procuram mantêla como sétima. Até certo ponto, tal colocação se deve a que o cinema é capaz de reunir literatura, pintura, arquitetura, música e várias outras. Quando se fala em cinema, é preciso lembrar que existem algumas características muito específicas ligadas estritamente a essa arte. As estéticas, por exemplo, se traduzem pelas sequências ligadas por figuras, pela mobilidade e flexibilidade da câmera, pela homogeneização visual, pelos gêneros, que se traduzem por linguagem específica para cada um. As características narrativas apresentam técnicas que aproximam o personagem do espectador, a linearidade ou não da história, a homogeneidade (centrada em um personagem principal ou casal) ou heterogeneidade (vários personagens), os conflitos, que emprestam impacto dramático, a coerência narrativa, a clareza a transparência. Isso posto, é possível apresentar o objeto de nosso ensaio: Relatos Selvagens, obra cinematográfica complexa que conduz a inúmeras viagens. Assisti-lo é permitir-se tantas leituras que não cabem em um texto curto, é pensar sobre uma infinidade de temas, é mergulhar em personagens multifacetados, algumas vezes incompreensíveis, embaçados, que nos levam a olhar para dentro de nós mesmos, na busca do que há de semelhante ou de desigual. É enxergar a solidez a partir do incomum e insólito; é perceber o plausível e quase comum por meio do extraordinário e alterado. Consideradas algumas das inúmeras possibilidades do filme, optamos por apontar a presença de duas paixões aristotélicas – medo e humor – e mostrar de que maneira se dá a infração à ética. Para tanto, falaremos brevemente sobre medo e humor e trataremos a ética no decorrer do texto. Humor Paradoxalmente, falar sobre o humor e o riso pode ser coisa muito séria. Observamos grande diversidade de literatura sobre o assunto. Na verdade, calcula-se que “ultrapasse a casa do milhão o número de publicações sobre o tema” (GALASSO, 2005). Aliás, quando falamos em humor não nos referimos, neste texto, à Teoria Humoral, que constituía o principal corpo de explicação racional da saúde ou doença no homem veiculada entre os Séculos IV a.C. e XVII d.C., segundo a qual seríamos formados de quatro tipos de matéria líquida ou semilíquida que causariam nosso temperamento: sangue, fleuma, bílis

29


amarela e bílis negra. Estamos nos referindo à disposição do espírito, à capacidade de apreciar ou expressar o que é cômico. De maneira muito superficial, pode se definir o humor como tipo de estímulo que tende a provocar o reflexo do riso e que, conforme Koestler é “um reflexo motor produzido pela contração coordenada de quinze músculos faciais (...) acompanhado pela alteração da respiração” (KOESTLER, 1992). Mas não estamos pensando o humor apenas como estímulo ao riso ou como resposta automática, o que já seria bastante complexo. Estamos tratando do humor conforme Sócrates: uma capacidade atribuída ao homem, que só ele é capaz de rir. Ou conforme Platão, segundo o qual, está associado ao prazer e, de certa forma, ao vício, a paixões mistas. Esse filósofo também fala da associação do risível ao ridículo, capacidade de rir da desgraça alheia, ou dos defeitos, o que seria desprezível ao homem de bem. Aristóteles, embora não exponha claramente o humor nas obras que chegaram a nós, esclarece, na Ética a Nicômaco, seu desdém aos bufões, ou seja, ao riso ridículo. Por outro lado, enaltece o argumento pelo riso, denominado por ele como eutrapelia, propriedade de fazer graça de modo civilizado e de alcançar um equilíbrio entre o excesso e a falta. Reforça que são espirituosos os que brincam de forma refinada, inteligente: “Algumas piadas são adequadas a um cavalheiro, outras não o são; a ironia serve melhor a um cavalheiro que a bufonaria; o irônico faz piadas para se divertir, o bufão, para divertir outras pessoas” (ARISTÓTELES). E existe, ainda, o riso nervoso, o humor negro, derivado de situações ainda mais complexas, normalmente resultado da degradação do outro. De qualquer modo, o riso pode funcionar, e veremos em alguns momentos do filme, como mecanismo argumentativo de persuasão que serve para mover o auditório. Medo Platão, Aristóteles, Hobbes, Descartes, Espinosa, Meyer são filósofos que, entre vários outros, se ocuparam do medo e é possível afirmar que tudo começou com Platão, talvez com Sócrates e os sofistas. Platão, ao pensar a Alegoria da Caverna, em que todo o universo sensível é composto de sombras e luz, coloca a possibilidade de aprofundamento da questão do ser e não ser, pois o que vemos, em realidade não é, uma vez que se trata de sombras. Para ele, habitamos uma caverna e nela só o que enxergamos são sombras.. O homem platônico, como ser essencialmente passional no sentido de ser afetado pelo que está fora dele, sujeita-se ao medo. E é ainda no mito da caverna que ele trata o medo: o medo o novo, do diferente. Ao perguntar “afinal de contas, o que existe lá fora?”, tal 30


questionamento leva à dúvida, à incerteza, à ansiedade, ao medo. Tememos o desconhecido. Aristóteles, ao considerar sobre a arte Retórica, define-a como derivada da Dialética e da Política, como “capacidade de ver teoricamente o que , em cada caso é capaz de gerar persuasão (...) de descobrir o que é próprio para persuadir”. Complementa que a persuasão se dá por meio das três provas retóricas ethos, representado pelo caráter moral (o orador deixa transparecer, em seu discurso, que é confiável), pathos, paixão despertada pelo orador nos ouvintes e logos, constituído no discurso pelas verdades ou pelo que parece ser verdadeiro. Ao falar sobre o pathos, o filósofo explica seu entendimento sobre as emoções e as classifica em onze espécies, afirmando que as paixões são “todos aqueles sentimentos que, causando mudança nas pessoas, fazem variar seus julgamentos, e são seguidos de tristeza e prazer, como a cólera, a piedade, o temor e todas as outras paixões análogas (ARISTÓTELES, 2003). O medo, então, “é uma espécie de pena ou perturbação causada pela representação de um mal futuro e suscetível de nos perder ou de nos fazer sentir pena”. Tragicomicidade cotidiana e ética em Relatos Selvagens O filme, que consiste de seis episódios, exibe em cada um deles, doses de tal forma equilibradas de medo e humor, conforme definidos brevemente, que em alguns instantes, fica difícil ao espectador optar pelo medo ou pelo riso. Na verdade, o filme não desperta o medo imediato, como em um filme de terror, mas o sentimento é despertado pela possibilidade, pela plausibilidade, pela viabilidade das ocorrências, mesmo que alguns episódios pareçam inverossímeis. Da inverossimilhança, da quase impossibilidade, aliás, vem o aspecto risível. O primeiro episódio mostra o encontro inusitado de pessoas em um avião que, fluida e rapidamente se relacionam a partir do nome de um conhecido de todos. À medida em que se apresentam, cria-se no espectador, uma atmosfera de estranhamento, embora haja um transporte ao risível, conforme definido por Aristóteles que, de forma insólita, conduz, por isso mesmo e aos poucos, a um sentimento de que algo pode não ter bom final. O medo é instaurado quando os presentes descobrem que, de uma forma ou outra, foram possíveis desafetos do conhecido e se transforma em pavor ao descobrirem que o piloto é o adversário.

31


As rápidas sequências mostradas nas expressões faciais, na mobilidade e pela flexibilidade da câmera, somadas à música iniciada aos quatro minutos de início da cena, conduzem a uma possível leitura de infração da ética. Pensamos ética conforme definida por Aristóteles: uma espécie de “estado de alerta”, ou seja, os indivíduos têm noção do certo e errado, do justo e injusto e optam pelo que consideram certo ou errado. Claro que o ser ético é aquele que está atento e segue o “caminho do meio”, o que não peca pela deficiência nem pelo vício do excesso. Para tanto, elaborou uma lista de qualidades consideradas como éticas, cuja ausência ou excesso refletem na falta de ética. Segundo o filósofo, portanto, o ser ético segue o meio da virtude. Tabela 1: Quadro de valores conforme Aristóteles vício da deficiência

meio da virtude

vício do excesso

covardia

coragem

imprudência

desânimo

temperança

intemperança (farras)

pão-durismo

generosidade

esbanjamento

má aparência

elegância

vulgaridade

pobreza de espírito

espírito elevado

vaidade

conformismo

querer melhorar

ambição excessiva

falta de personalidade

bom tratamento

mau gênio

maus modos

civilidade amistosa

bajulação

depreciação irônica

sinceridade

franqueza demais

falta de graça

bom humor

bufonaria

falta de vergonha

modéstia

ostentação

cinismo

indignação justa

maledicência

Fonte: a autora As características mostradas no filme aproximam os personagens, no primeiro episódio, do espectador, que enxerga, durante a evolução da narrativa, uma total ausência de ética para com o comissário, em algum ponto, no passado da vida de cada um, disparado pelo gatilho do medo nas fisionomias, cujo ápice se encontra na expressão facial do psiquiatra a espancar a porta trancada da cabine. Ninguém escapa à vingança do personagem principal, causada pela frustração para com os relacionamentos passados. A partir de possível impotência nos relacionamentos, evidente em cada relato, que conduz o espectador a um clima inicialmente risível, instaura-se, em um crescendo, o medo nos demais personagens diante da impotência que culmina na violência iminente que, por sua vez, desencadeia o medo do desconhecido platônico, mais assustador. 32


Embora não seja uma história linear, ela se constrói em torno de uma heterogeneidade em que os conflitos emprestam impacto dramático a culminar na morte dos pais, considerados pelo psiquiatra que espanca a porta da cabine da aeronave como os principais culpados pelo fracasso do filho. Percebe-se na relação de cada personagem com o comissário a possibilidade de enquadramento no quadro de Aristóteles como vício: de deficiência ou de excesso. Assim, por exemplo, o primeiro a se manifestar, considera-o um fracassado, pobre de espírito; a professora o tem como louco, com o vício do excesso do mau gênio. O episódio inteiro mostra o vício da deficiência covardia, pois não enfrentou nenhum de seus desafetos. Levou-os e a si à morte. O segundo episódio ocorre em um restaurante de beira de estrada. Logo na primeira cena, o personagem principal, que chega em meio à noite escura e chuvosa, é crítico e irônico, beirando à grosseria (maus modos aristotélico). A garçonete que o atende chora escondida e, quando perguntada sobre o motivo, pela cozinheira, comenta que o cliente, mafioso seu conhecido, teria conduzido o pai à morte, além de destratar pessoas e ser o próximo candidato à prefeitura da cidade. A cozinheira, sem qualquer senso ético, sugere que coloquem veneno de rato no pedido do cliente e desperta medo na moça, que parece ter outra noção de ética. Retorna para atender o cliente, que faz o pedido em meio a novos destratos. A moça confessa sua mudança de estado: o choro, anterior, dá lugar à confissão de raiva, ambos sentimentos disfóricos. Uma discussão entre ela e a cozinheira sem escrúpulos deixa claro ao espectador a possibilidade de assassinato e amplia a sensação de medo na garçonete, que, de qualquer modo, serve o cliente. Embora ela não tenha conhecimento se houve ou não o envenenamento, a possibilidade de haver cometido um crime e ser presa aumenta seu medo, minimizado pela cozinheira que encara a vida na prisão com certa leveza: ela já fora prisioneira e se considerava mais livre na prisão. O humor é mostrado discretamente quando a cozinheira descobre que o veneno pode estar vencido: “Não estava vencida. Não diz a data. Como é que é? Quando o veneno está vencido fica mais ou menos venenoso?” (tradução da autora). Há vários momentos de humor negro durante o episódio. Enquanto o personagem principal e a cozinheira são seres completamente destituídos de moral, a garçonete passa por nova crise ética com a chegada do filho (do cliente grosseiro), que também começa a ingerir a comida envenenada. Ele não é impedido do envenenamento, afinal é herdeiro e, dessa forma, merece morrer. A garçonete tenta 33


impedir, sem sucesso, o pai do rapaz de continuar a se envenenar, mas é destratada por ele e, por fim, agredida fisicamente (vício dos maus modos). A cozinheira demonstra total absoluta falta de escrúpulo ao esfaquear o personagem. Sua prisão é vista sem paixão, como consequência natural, esperada. A terceira cena, sobre os carros, mostra uma raiva crescente entre duas pessoas desconhecidas e demonstra a infração da ética no trânsito, Iniciada com a provocação de uma das personagens, que impede uma ultrapassagem legítima em estrada deserta. Após algumas tentativas, o segundo carro força a passagem, faz um xingamento e, com alguns quilômetros de vantagem em seu carro novo e blindado, é obrigado a parar devido um pneu furado. O carro velho o alcança antes que o pneu pudesse ser trocado, o motorista para e começa a provocá-lo, em franca demonstração de vulgaridade e maus modos. O motorista que parecia ter mais senso ético, pede desculpas pelo xingamento, sem sucesso. Inicia-se uma sequência de violência contra o carro, mas o foco era o motorista, que não consegue esconder seu medo. Trata-se do medo do desconhecido conforme ensinado por Platão. Ele não controla as ações do personagem incógnito e que parece destituído de qualquer senso moral ou ético. Há uma violência clara e uma raiva embrutecidas no personagem, que se esforça por destruir o carro, por sujá-lo e por diminuir o personagem. Aparentemente depois de se sentir aliviado, o “vingador” retorna a seu carro. O indivíduo ético, após a violência, deixa-se levar pelo pathos, abandona possíveis censuras e revida: empurra com seu carro o do inimigo para o rio e provoca um acidente de maior proporção. Retoma, mitigado, o conserto do pneu, porém percebe que o estranho ainda não estava vencido. Tem início uma violenta e muda luta entre os dois, que deixa transparecer a partir dali ódio e desejo de vingança, finalizada apenas com a explosão do carro e a morte dos dois protagonistas, em clara reação de revolta e saturação diante das violências da modernidade. Embora não haja espaço para o risível, a não ser no início, quando o motorista, irônico, acha absurdo que o carro da frente o impeça ultrapassar, o humor fica por conta do diálogo final: “o que o senhor acha, delegado, crime passional?” (tradução da autora), diante dos dois corpos carbonizados, aparentemente abraçados. É passional sim, porém resultado da decisão pessoal de dois desconhecidos ressentidos talvez com suas próprias condições: o do carro da frente, com menos posse e um carro menos potente e o outro, que não queria sua posse conspurcada por um ser de outra categoria social. O quarto episódio aborda um trabalhador especializado em demolição de prédios supostamente ético, que paga os impostos, cuida da família e se preocupa em cumprir as 34


formalidades, as regras. O gatilho de uma crise reprimida relacionada ao excesso de impostos e abuso de poder é disparado quando tem seu carro guinchado enquanto pega o bolo de aniversário de sua filha. Ao sair, descobre que o carro não mais está onde o havia deixado e que não existe sinalização impeditiva de estacionamento. Sua ira cresce ao ser informado de que terá de pagar as multas e que o carro será devolvido após os pagamentos. Mistura de indignação, fúria e repulsa acompanham o desenrolar do incidente. O diálogo com a esposa, ao chegar atrasado para o aniversário da filha, é ácido: ela reforça que não adianta querer ir contra o sistema e outras falas. Reforça que ele sempre procura desculpas para o atraso. À medida em que a história avança, ampliam-se sensações diversas no espectador, sempre despertadas pelo pathos aristotélico do personagem principal, que busca viver segundo uma lógica e seguir o conjunto de regras, embora cada vez mais elas se revelem opressoras. A falta de ética gerada pela ausência de informações e pelo vício da depreciação irônica por parte dos funcionários, conduz o pacato personagem à violência, à prisão, ao divórcio, à demissão. O diálogo durante a tentativa de reconciliação é povoado de ironia, que pode conduzir ao riso. Não o riso bufão, condenado por Platão e Aristóteles, nem o riso espontâneo, mas um humor nervoso, resultado, por exemplo, da resposta da advogada à pergunta sobre violência. O personagem fala sobre a injustiça da situação e a advogada desconversa e muda para a violência da situação. Ao mudar o foco, provoca nova explosão de ira no personagem: “Onde você vê violência?”. A resposta da advogada redireciona novamente o diálogo: “Vejo violência em toda parte: na televisão, na rua e principalmente em um artigo de jornal” (tradução da autora). O diálogo, estritamente passional, leva ao não acordo entre as partes, marcado pela falta de elegância, pela imprudência e novamente pela depreciação irônica, todos vícios ligados à ausência de virtude, conforme Aristóteles. A tentativa de vencer pelo logos não é suficiente para que o personagem principal convença das razões pelas quais tem pautado suas atitudes. Por outro lado, seu ethos se firma como pessoa irônica, inconformada e violenta, a despeito de não o ser. A infração à ética é reforçada, surpreendentemente, no final do capítulo. Enquanto o indivíduo seguia as normas, era massacrado pelas regras, pelos regulamentos. Ao infringi-la, provocando a explosão de seu próprio carro ao ser levado, mais uma vez, ilegalmente pelo guincho, é isentado e promove uma transformação no estado inicial da narrativa, de disfórico para eufórico: a esposa retoma o casamento, ele é aclamado pelos amigos, que sabem de sua transgressão e pela própria mídia, que não decide de quem é a culpa.

35


O episódio seguinte trata da infração da ética social por parte de um pai abastado em defesa do filho que acabara de provocar um acidente de carro envolvendo duas mortes. Propõe a seu empregado que assuma a culpa em troca de uma quantia vultosa que, segundo ele, o servidor não ganharia em uma vida inteira de trabalho. Delineia-se o ethos de um rapaz assustado, acuado e cheio do medo aristotélico, mostrado pelo choro e pela fraqueza de caráter. A ausência de ética do rapaz está na covardia em não assumir o crime e na postura dos pais. A história, não linear, é composta pelo choro do rapaz, pelas marcas no carro e por partes da notícia mostrada na TV. Naturalmente a proposta que o pai faz ao doméstico é imoral, chocante, condenável, evidenciando sua falta de caráter, mas o empregado se sente acuado pela maneira como é instado a aceitar a proposta. O inspetor de polícia chega logo e fica clara, durante o interrogatório, a impossibilidade de que o empregado tenha cometido o crime. A infração de ética, que havia iniciado com a proposta indecorosa ao empregado, estende-se ao inspetor, ao advogado, que cobram muito para tratar da negociação e atinge o empregado, que inicialmente parecia um indivíduo moral. Aqui o filme trata da corrupção, da transformação das relações pessoais em mercadoria, mas resolve, diante do aumento da extorsão, incluir o pedido de um apartamento para manter a palavra. O pai, irritado com a dívida que não para de crescer, finaliza a negociação. O humor se instaura nesse momento, a partir da discussão criada entre os interessados no contrato e o personagem principal, que se tranca, determinado a encerrar a exploração. Medo, insegurança e humor se misturam a partir de mais um relato de infração de ética, dessa vez associada à ausência de virtudes aristotélicas, aparentemente comuns em um estrato social mais abastado. A narrativa finaliza quando as partes chegam a um acordo que deve agradar a todos, mas o espectador é surpreendido pela última cena: o empregado é espancado pela multidão enraivecida, em mais uma demonstração do pathos diante da impunidade e das violências de que a sociedade se considera vítima. A última parte do filme retrata um caso de adultério descoberto pela noiva durante a festa de seu casamento, por um triste acaso. Imediatamente após a descoberta, inicia-se a valsa dançada pelos noivos e uma discussão entre eles, movida pela manifestação de pathos que mistura ironia, tristeza e raiva. Não se sabe como a cena acabará, porém há presença de humor nas perguntas que a noiva faz, enquanto dança. O noivo, desorientado e enfraquecido pela descoberta em local e horário completamente impróprios e, em função dessa impotência, quando perguntado se havia mesmo se relacionado com a colega de trabalho, não consegue disfarçar ou mesmo mentir. 36


A noiva, em franco descontrole, é consolada pelo garçom. O diálogo mistura tristeza, raiva e aspectos de humor. Magoada com a traição, e envolvida pelo consolo que o estranho lhe produz, trai o marido com o garçom. Confrontada com o marido que a flagra, inconformada, decide não se separar, o que leva o espectador a mais presença de humor, afinal não é esperado de um indivíduo traído que se conforme. Humor é sempre derivado de uma situação inusitada, do inesperado, mostrado na sequência que ela, completamente descontrolada, cita todas as atitudes que tomará. O noivo, abalado, apresenta uma reação física de asco ao que ouviu e que representa a vingança da noiva traída, que transforma a cerimônia em uma espécie de festival do ridículo (que por isso provoca o escárnio, conforme Platão), uma vez que vulgar, caricaturesca é a situação na qual se encontra. O pathos é demonstrado na excessiva de raiva, frustração, desapontamento, desilusão, desencanto crescentes. O humor fica por conta dos diálogos entre noiva e noivo e da ironia das sequências ridículas e absurdas que seguem. Por se deixarem conduzir essencialmente pelas paixões, ambos entram em choque e, finalmente, após perceber um ao outro como de fato são, se entendem, em final surpreendente Conclusão Os seis episódios do filme mostram, então, que o homem, caso se deixe conduzir pelo pathos, pode, em vez do indivíduo ético de Aristóteles, superior que é, retornar à condição animal, como na primeira história, em que o personagem junta todos os seus desafetos, coloca-os em um avião e os elimina. O problema não estaria nele próprio, em sua inadequação ao mundo? Como no segundo, que mostra de que forma uma briga de trânsito pode conduzir à morte – e acontece algumas vezes – embora não nos moldes mostrados, mas até onde a violência pode nos levar caso nos deixemos arrastar pelo pathos. A cena nos lembra uma luta de animais, embora essa última seja pela própria sobrevivência, portanto, menos violenta, enquanto a do filme se trate de uma luta entre duas vítimas de suas próprias paixões, não divertidas ou com humor conforme deixe transparecer o comentário dos policiais sobre passionalidade do crime: é um crime passional, mas não derivada do amor entre dois homens e sim a paixão aristotélica do ódio, da cólera. Aristóteles considera a indignação justa como virtude, mas o episódio trata de uma indignação furiosa. A situação seguinte trata de como ser racional em um estado latino. O personagem principal, engenheiro que pensa racionalmente, decide que o estado deve ser racional e sofre as sanções da irracionalidade das normas e leis (talvez criadas pela passionalidade dos latinos, tidos como dominados pelo pathos). Curiosamente é amado apenas quando faz a vingança. Os dois episódios seguintes tratam da infração à ética de 37


maneira quase natural: eliminar um inimigo com veneno de rato, caso ele venha se alimentar em meu restaurante e pagar alguém para tomar meu lugar em um crime, caso eu tenha dinheiro. Aqui, matar e transferir a responsabilidade por um crime a outro passam a ser quase naturais, em uma inversão do que Aristóteles considerava como ético. Não se pensa em trilhar o caminho do meio, em elevar-se, em ter coragem, mas apela-se ao vício do excesso - a imprudência de matar - ou da falta - covardia de transferir a outro a responsabilidade pelo erro (ARISTÓTELES). Por fim, o episódio mais longo, o do casamento entre duas pessoas efetivamente desconhecidas, pois não sabiam de suas paixões, mostra o descontrole entre elas. Ao se olharem verdadeiramente, do fundo da agressão, sujos de sangue, animalizados pela briga e pela hostilidade levada ao extremo, só então percebem um ao outro e se amam, assim como só na morte os dois desconhecidos que brigam no trânsito parecem se amar e, da mesma forma, como o Sr. Bombita, que só é reconhecido e amado por todos após perder a racionalidade própria do homem e se torna irracional ao provocar uma explosão. A não linearidade das histórias, a heterogeneidade das diversas personagens, os conflitos focados no homem conduzido pelo pathos reforçam o impacto dramático e o humor ácido é construído, em grande parte, por meio da ironia.

Referências ALBERTI, Verena. O Riso e o Risível na História do Pensamento. Rio de Janeiro: Zahar Editores, 2011. ARISTÓTELES. Ética a Nicômaco (W. D. Ross, Trans.) The Internet Classics Archive. Retrieved on September 17, 2011 ________. Arte Retórica e Arte Poética, São Paulo: Edições de Ouro, s/d. BERGSON, H. O riso: ensaio sobre a significação do cômico. São Paulo: Martins Fontes, 2001. BREMER, J. ROODENBURG, H. Uma história cultural do humor. rio de Janeiro: Editora Record, 2000. DESCARTES, R. (1649). As Paixões da Alma. [Passions of the Soul], Seattle: Amazon EU S.A.R. FIORIN, J. L. As Astúcias da Enunciação – as Categorias de Pessoa, Espaço e Tempo, São Paulo: Ática, 1966 HOBBES, T. Leviatan. in: Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1979.

38


HUTCHEON, L. Uma teoria da paródia: ensinamentos das formas de arte do século XX. Trad. Teresa Louro Pérez. Lisboa: Edições 70, 1975. KOESTLER, A. Uma contração de quinze músculos faciais. Enciclopédia Britânica, Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. MEYER, M., Questões de Retórica: Linguagem, Razão e Sedução. Lisboa, Portugal: Edições 70 Ltd., 2007. ORECCHIONI, C. K., Les actes de langage dans le discours. SPINOSA, B. Ética, IN: Os Pensadores, São Paulo: Editora Abril, 1973. PLANTIN, C. A Argumentação: História, Teorias, Perspectivas, Tradução Marcos Marcionilo, São Paulo, Parábola Editorial, 2008. PLATÃO. A República, São Paulo: Clássicos Garnier da Difusão Européia do Livro, 1965

39


DO ESPANTO E DA EMOÇÃO DO REENCONTRO COM SEVERINO Por Izabel Fortes

Muitos anos depois, surgiu o que segue abaixo! Escola “Carlos Gomes” - Campinas – Curso de produção de texto – Idos de 1980 Aqui... Agora... Ontem No dia de festa, a procissão. As janelas enfeitadas, com toalhas rendadas. As portas fechadas, o Santíssimo ia passar. As roupas domingueiras, quase sempre. O bar do Ventura, os sorvetes, as maçãs... No dia a dia, as corridas pela calçada, as ruas não eram perigosas. Olha o carro! Qual? O do Prefeito que vai passar!

No campinho do seu Artur tem muitos segredos! Psiu! Ele não pode saber que estamos aqui! O bambual, a mina d’água geladinha! O seu Artur casou com dona Joana Os filhos chegaram. Lindos! De olhos azuis! Lindos! De peles clarinhas! A Escolinha da tia Zita: noturno! Naquela época, já havia noturno! Nem assim havia perigo! As crianças do seu Artur iam e vinham pela calçada. Da casa pra escolinha, da escolinha pra casa. Severino sempre bem arrumadinho... Nunca mais nos encontramos, seguimos nosso rumo... 40


Hoje Severino reaparece, nem o reconheço, nem ele, a mim! Onde o menino tranquilo de olhos azuis? Os cabelos encaracolados cresceram, a barba, também. Mas o olhar era o mesmo: terno, calmo, concentrado... Aqui... Agora... O menino Severino, o menino do seu Artur reaparece Poeta descoberto, filósofo desvendado... Num dia comum, Carlos Gomes, Campinas! E os suspensórios e as meias soquetes? E a festa, a procissão, o campinho do seu Artur, a calçada? E aquela época revivida! É o encantamento...

41


GRUPO DE LEITURA “CASA DA RUTH”

Falar da Ruth na Casa da Ruth! Encontros mensais com leituras e conversas

O quintal da casa da Dona Ruth em Cachoeira Paulista é ponto de encontro para rodas de leitura e conversas sobre as obras da escritora.

Onde: Alojamento Chacrinha da Ruth Botelho Rua Carlos Pinto, 130 – Cachoeira Paulista

Evento gratuito.

Mais informações: casadaruth@editoracasalua.com.br www.facebook.com/chacrinharuthbotelho/

42


43


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.