Artigo final

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FACULDADE DEHONIANA

Artigo

A HORA DA ESTRELA: CLARICE LISPECTOR

Saymon Paulo Dos Santos

Taubaté – 2014


Resumo Este trabalho analisa a relação da vida e obra em Clarice Lispector, deixando à mostra as suas preocupações existenciais, que advêm da sua própria experiência, das suas marcas existenciais, para se tornar carnadura da sua bioescritura, escapando do intimismo e do biográfico, por uma construção literária de caráter tão profundo quanto universal. Nesse contexto, comenta o último trabalho publicado em vida, a novela A hora da estrela, na perspectiva filosófica heideggeriana, deixando explícita a sua influência no pensamento da escritora, implicitamente observada na personagem Macabéa e seu cotidiano. Nas entrelinhas desta novela, encontro a existência de Clarice diante do medo da morte, descendo às profundezas do “nada”, por meio do narrador Rodrigo S.M., para se despir de toda significação humana, no grande encontro consigo mesma, no contato com o ser absoluto, a morte. Por fim, observa a sua labuta, no alcance da palavra, do silêncio que corroía a significação, deixando à mostra o indizível, em busca do ser sob linguagem.

Palavras-chave: Clarice Lispector, Macabéa, literatura, bioescritura, linguagem, ser, ente, nada, morte.


A hora da estrela: Clarice Lispector Clarice Lispector, na iminência de um milagre, em busca do encontro último do ser sob linguagem, por toda a vida, criou seus personagens para entremear-se no âmago dos seus entes, para que ela mesma se despisse de sua existência, no cuidar do ser, no poetizar a vida, dos seus pensamentos à metalinguagem de sua escritura, agora e na hora da morte, Macabéa. Como um amém, um glória, um aleluia, a sua última personagem nos seus últimos sussurros poéticos, ao beijar a morte, de forma irônica, alcança a grandeza do ser. Já Clarice Lispector atinge o ser ao concluir a obra, e morre com ela e com seu tormento de escrever. A poucos meses da sua morte, Clarice cede à TV Cultura a sua única entrevista, com o acordo de ser transmitida somente após o seu falecimento. No final da entrevista, depois de ter comentado sobre o seu novo livro, a novela A hora da estrela, o entrevistador, ao ouvir de Clarice que está cansada de si mesma, interroga: “mas você não renasce e se renova a cada trabalho novo?” Ela responde: “bom, eu, agora, eu morri, vamos ver se eu renasço de novo, eu estou morta... estou falando do meu túmulo”. (WWW.youtube.com/watch?v=TbZriv5THpA.) Toda a vida e a obra de Clarice Lispector estão enraizadas na tragédia de seu nascimento, emaranhadas por cargas metafísicas que elucidam sua bioescritura, que, ao longo de sua existência, minou as mais abstratas preocupações filosóficas, translúcidas por sua linguagem mística, que, segundo muitos críticos, inaugurava no Brasil uma literatura metafísica. Clarice Lispector foi em busca de um novo nascimento, de um encontro com sua escritura, em busca do ser sob linguagem. Enquanto os pais de Clarice Lispector percorriam várias aldeias da Ucrânia, por conta da perseguição aos judeus durante a Guerra Civil Russa de 1918-1921, Mania Lispector, no vilarejo de Tchetchelnik, no dia 10 de dezembro de 1920, deu à luz a Haia Pinkhasovna Lispector, que, mais tarde, tornar-se-ia Clarice Lispector. De origem judaica, Clarice Lispector chega ao Brasil com dois anos de idade, em março de 1922, na cidade de Maceió. Pouco tempo depois, a família Lispector mudou-se para o Recife, cidade onde Clarice Lispector passou toda a sua infância. Mais tarde, Clarice e sua família mudaram-se definitivamente para o Rio de Janeiro. Durante toda a sua vida literária, Clarice Lispector foi questionada sobre sua nacionalidade e, quando abordada por jornalistas e críticos, ela ansiava em dizer que não tinha nenhuma


relação com sua terra natal – “Naquela terra eu literalmente nunca pisei: fui carregada de colo”. (http://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector). Clarice Lispector, no fim da sua vida, confidenciou com sua amiga mais íntima que sua mãe foi violentada por um bando de soldados russos. Além da humilhação, a mãe de Clarice contraiu a sífilis, doença que a deixou em estado vegetativo e que, nas pavorosas condições da guerra civil, ficou sem tratamento, o que mais tarde, já no Brasil, levou-a à morte. Esse fato calhou em ser a marca central da vida de Clarice. Fui preparada para ser dada à luz de um modo tão bonito. Minha mãe já estava doente, e, por uma superstição bastante espalhada, acreditava-se que ter um filho curava uma mulher de uma doença. Então fui deliberadamente criada: com amor e esperança. Só que não curei minha mãe. E sinto até hoje essa carga de culpa: fizeram-me para uma missão determinada e eu falhei. Como se contassem comigo nas trincheiras de uma guerra e eu tivesse desertado. Sei que meus pais me perdoaram por eu ter nascido em vão e tê-los traído na grande esperança. Mas eu, eu não me perdôo. Quereria que simplesmente se tivesse feito um milagre: eu nascer e curar minha mãe (LISPECTOR, apud MOSER, 2011, p. 57).

Sobre a infância de Clarice Lispector pairava a terrível e incessante visão de sua mãe, paralisada num país estrangeiro como uma estátua fria, respirando dia a dia a conquista de sua morte. Mania agora era uma estátua decorada pelo balanço de uma cadeira, penosamente balançando e pendendo à morte, calada e sem se mover. No olhar da menina Clarice, fixava-se a impressão dominante por toda a sua vida. “Eu era tão alegre que escondia de mim a dor de ver minha mãe assim [...]”, disse Clarice. “Eu morria de sentimentos de culpa, porque pensava que tinha provocado isso quando nasci. Mas me disseram que ela já era paralítica antes [...]”(LISPECTOR, apud MOSER, 2011, p. 114) “Mesmo seus momentos mais alegres eram obscurecidos pela mulher sentada paralisada na varanda” (MOSER, 2011, p. 114). Clarice, no seu primeiro carnaval, em 1929, com apenas oito anos, conhecera a tristeza em face de um mundo de alegria. A mãe de uma amiga propusera vestir Clarice para o carnaval. Essa mãe que lhe faltava vestiu Clarice com uma roupa de papel crepom cor de rosa, enquanto a menina alegre desejava os instantes de carnaval. Quando eu estava vestida de papel crepom todo armado, ainda com os cabelos enrolados e ainda sem batom e ruge – minha mãe de súbito piorou muito de saúde, um alvoroço repentino se criou em casa e mandaram-me depressa comprar um remédio na farmácia. Fui correndo vestida de rosa [...] fui correndo, correndo, perplexa, atônita, entre serpentinas, confetes e gritos de carnaval. A alegria dos outros me espantava. Quando horas depois a atmosfera em casa acalmou-se, minha irmã me penteou e pintou-me. Mas alguma coisa tinha morrido em mim (LISPECTOR, apud MOSER, 2011, 114).


Por esse tempo, a menina Clarice já criara suas histórias e encenava para a mãe, a quem às vezes fazia rir. Inventava desfechos mágicos, em que milagrosamente curaria a doença da sua mãe. Mas logo a realidade traumatizou a sua maior inspiração, quando morreu Mania Krimgold Lispector, aos 42 anos, no dia 21 de setembro de 1930. O truque de Clarice tinha falhado. Seus sonhos de intervenção divina foram frustrados. Mas o hábito que ela adquiriu na primeira infância, de brincar com as palavras e contar histórias para alcançar um resultado milagroso, permaneceu. Meio século depois, quando Clarice Lispector, ela própria consumida por uma doença terminal, deixou sua casa pela última vez, recorreu à mesma tática. “Faz de conta que a gente não está indo para o hospital, que eu não estou doente e que nós estamos indo para Paris”, sua amiga Olga Borelli se recorda de ouvi-la dizer num táxi a caminho do hospital. A Paris nunca aconteceu. Clarice Lispector morreu seis semanas depois (MOSER, 2011, p. 116-117).

A frustração de Clarice aos nove anos é recorrente em toda a sua obra. A menina Clarice, despojada de seus mitos precoces, absorta na animalesca realidade inflexível, impressionada com a morte da mãe, não cessaria sua busca milagrosa, e, para ela, tais esforços poéticos seriam o cuidar do ser. “Clarice não é um filósofo, um pensador, mas uma escritora, fundamentalmente comprometida com o ser sob linguagem; ou, melhor, com a linguagem, espessura do ser” (SÁ, 2000, p. 22). Do nascimento à infância, levou a sua narrativa existencial até a hora da morte. Muito se escreveu e ganhou vida própria pela escritura de Clarice Lispector, suas palavras entoavam alguma identidade com Deus, não com o Deus das religiões que tanto a frustrou, mas a identidade do encontro último com o ser, no poetizar a existência, em decantar a linguagem no cuidar do ser. Clarice Lispector fazia ficção da sua própria existência, quando disse: “cada um escolhe o modo de morrer”. Como num mistério criado pelo próprio mistério, na sua última obra, A hora da estrela, Clarice requeria com insistência os ovários secos de Macabéa, e ela mesma sofria sem saber de um incurável câncer no ovário. (MOSER, 2011, p. 647) Já no leito de morte, ela relembra o seu próprio mito, seu nome metafísico, lis no peito. Sou um objeto querido por Deus. E isso me faz nascerem flores no peito. Ele me criou igual ao que escrevi agora: “sou um objeto querido por Deus” e ele gostou de ter me criado como eu gostei de ter criado a frase. E quanto mais espírito tiver o objeto humano mais Deus se satisfaz. Lírios brancos encostados à nudez do peito. Lírios que eu ofereço e ao que está doendo em você. Pois nós somos seres e carentes. Mesmo porque estas coisas – se não forem dadas – fenecem. Por exemplo – junto ao calor de meu corpo as pétalas dos


lírios se crestariam. Chamo a brisa leve para a minha morte futura. Terei de morrer senão minhas pétalas se crestariam. É por isso que me dou à morte todos os dias. Morro e renasço. Inclusive eu já morri a morte dos outros. Mas agora morro de embriaguês de vida. E bendigo o calor do corpo vivo que murcha lírios brancos. O querer, não mais movido pela esperança, aquieta-se e nada anseia. Eu serei a impalpável substância que nem lembrança de ano anterior substância tem. Súbita falta de ar. Muito antes da metamorfose e meu mal-estar, eu já havia notado num quadro pintado em minha casa um começo. Eu, eu, se não me falhe a memória, morrerei. É que você não sabe o quanto pesa uma pessoa que não tem força. Me dê sua mão, porque preciso apertá-la para que nada doa tanto (LISPECTOR, apud MOSER, 2011, p. 648-649).

Sete anos antes de sua morte, Clarice conheceu Olga Borelli, mulher que seria a sua mais íntima confidente. À Olga Borelli, Clarice pediu por escrito que esperava têla por perto na hora da morte. E, como numa profecia mística, morre na manhã do dia 9 de dezembro de 1977, de mãos atadas com Olga Borelli, o monstro sagrado, Clarice Lispector. (MOSER, 2011, p. 650) Na véspera da sua morte, Olga Borelli relatou que Clarice sofreu uma grave hemorragia: “Ficou muito branca e esvaída em sangue. Desesperada, levantou-se da cama e caminhou em direção à porta, querendo sair do quarto. Nisso, a enfermeira impediu que ela saísse. Clarice olhou com raiva para a enfermeira e, transtornada, disse: “você matou meu personagem”. Imbuída no grande medo da morte, Clarice agora era sua personagem real, despida de qualquer linguagem que lhe asseguraria em sua humanidade diante do grande temor existencial. O tempo se fez em sua obra, em sua vida, na hora da morte, a hora da estrela. “Converteu-se na sua própria ficção”, escreveu Paulo Francis. “É o melhor epitáfio possível para Clarice” (FRANCIS, apud MOSER, 2011, p. 650). Falar de Clarice Lispector é entremear a sua vida em sua obra, é buscar na meticulosa e estruturada escritura a sua essência. Na imanência em si de um milagre, sua escritura revela-se carnadura em seus personagens, dando a Clarice a tentativa de transcender o cotidiano, numa explosão, ou em uma singela descoberta. À Clarice Lispector coube a Literatura como extensão de seu corpo, de sua existência, de sua alma, e também como bússola em sua busca pela essência humana. E é por essa linguagem que Clarice Lispector constrói uma obra de caráter tão profundo quanto universal.


O narrador e o ato de escrever O narrador da A hora da estrela também é personagem principal. Ao desenvolver a narrativa, mostra-nos Macabéa, e nela busca a sua própria identidade. O narrador moldou Macabéa sob o seu próprio destino e solidão, e morre com ela. Ao mesmo tempo, ele é um disfarce do "eu" da escritora. A narrativa se estrutura a partir de um narrador-personagem que fala de si mesmo e de um narrador onisciente, que conta a história de Macabéa. Rodrigo S. M., o narrador, constitui um dos personagens centrais de A hora da estrela. Ao mesmo tempo em que cria e narra a vida de Macabéa, identifica-se com ela, mesmo quando a agride. Dessa forma, percebe-se que o texto é metalinguístico: um autor-narrador que fala de sua própria obra e busca nela e com ela conhecer-se e reconhecer-se. “Tudo no mundo começou com um sim. Uma molécula disse sim a outra molécula e nasceu a vida. Mas antes da pré-história havia a pré-história da pré-história e havia o nunca e havia o sim. Sempre houve. Não sei o quê, mas sei que o universo jamais começou” (LISPECTOR, 1998, p. 11). Como todo fim parece dizer o princípio, sua última obra A hora da estrela falará de seu túmulo, como disse Clarice Lispector em sua última entrevista: que estava morta após ter concluído a novela A hora da estrela. Sou obrigado a procurar uma verdade que me ultrapassa. Por que escrevo sobre uma jovem que nem pobreza enfeitada tem? Talvez porque nela haja um recolhimento e também porque na pobreza de corpo e espírito eu toco na santidade, eu que quero sentir o sopro do meu além. Para ser mais do que eu, pois tão pouco sou. Escrevo porque sou um desesperado e estou cansado, não suporto mais a rotina de me ser e se não fosse a sempre novidade que é escrever, eu me morreria simbolicamente todos os dias (LISPECTOR, 1998, p. 21).

Rodrigo S.M., a voz oculta de Clarice, atraído pelo sentimento de perdição no rosto de uma moça nordestina, atraído pela sua história, atraído pelo tempo, atraído pelo ser, melhor ainda, atraído pela infância no Nordeste, na iminência do grande porquê. “Só não inicio pelo fim que justificaria o começo – como a morte parece dizer sobre a vida – porque preciso registrar os fatos antecedentes” (LISPECTOR, 1998, p. 12). Ao começar por Macabéa, a sua última personagem viva e morta, no pensar é um ato, no sentir é um fato, Clarice Lispector sob seus personagens, em sua obra, tece a espessura do ser. Uma vida inteira dedicada ao encontro do ser sob linguagem. “Escrevo neste instante com algum prévio pudor por vos estar invadindo com tal narrativa tão


exterior e explícita. De onde no entanto até sangue arfante de tão vivo de vida poderá quem sabe escorrer e logo se coagular em cubos de geléia trêmula. Será essa história um dia o meu coágulo?” (LISPECTOR, 1998, p. 12). Para Martin Heidegger, a essência do agir é o consumar. Consumar é levar à plenitude, é atingir a essência. Estará no escorrer de sangue das palavras tão vivas a escritura de uma existência tão autêntica ao consumar a vida? Quanto ao futuro, um dos títulos da obra, seria a morte como a de Macabéa o coagular do tempo? Será a hora da estrela (a morte) o ínfimo instante que revela a grandeza do ser? “Morta, os sinos badalavam, mas sem que seus bronzes lhes dessem som. Agora entendo esta história. Ela é a iminência que há nos sinos que quase-quase badalam. A grandeza de cada um” (LISPECTOR, 1998, p. 86). O narrador procura falar de si, que tão desconhecido é para ele mesmo. Quando escreve se surpreende em descobrir que tem um destino, que é refém da sua própria narrativa. Ao narrar a vida de Macabéa, uma nordestina qualquer, virgem e inócua, que mal tem corpo para vender e que não faz falta a ninguém, reconhece que ele, nem menos, nem mais, faria falta. O que escreve qualquer um escreveria. E somente o silêncio creria ser a resposta de seu mistério interior. Clarice criou a novela para adentrar no âmago da história de um escritor, e os personagens são como criações esquizofrênicas que a acompanham nas profundezas da alma, para, com a sua linguagem existencial, chegar à clareira do ser, como diz Heidegger: “A linguagem é a casa do ser” (HEIDEGGER, 1973, p. 347). Não se trata apenas de narrativa, é antes de tudo vida primária que respira, respira, respira. Material poroso, um dia viverei aqui a vida de uma molécula com seu estrondo possível de átomos. O que escrevo é mais do que invenção, é minha obrigação contar sobre essa moça entre milhares delas. E dever meu, nem que seja de pouca arte, o de revelar-lhe a vida. Assim é que experimentarei contra os meus hábitos uma história com começo, meio e “gran finale” seguido de silêncio e de chuva caindo (LISPECTOR, 1998, p. 13).

Escrevendo, o narrador enovela a realidade da personagem no pensamento, abstrai seu limite quando a realidade já o ultrapassa. Transgredir a barreira ilusória da construção de um personagem é transmutar uma vida na sua essência em palavras. A literatura tem o cuidado sobre a vida nos meandros da linguagem, nas mais abstratas preocupações filosóficas, dando vida aos pensamentos sobre um cotidiano, como o da personagem Macabéa, translúcida nas minudências das insinuações metafísicas, como na escritura de Clarice Lispector. “Por que escrevo? Antes de tudo porque captei o


espírito da língua e assim às vezes a forma é que faz conteúdo” (LISPECTOR, 1998, p. 18). O pensar do narrador consuma a relação do ser com a essência da personagem no ato de escrever, no pensar o ser tem-se o acesso à linguagem. Assim, pensamento e linguagem se duelam em círculos. Atingir a palavra é o devir do narrador, e isso é o que caracteriza todo o trabalho de Clarice Lispector, porque quem pensa é gestante de toda uma linguagem, como a mãe que nutre o filho pelo cordão umbilical. Escrever sobre Clarice Lispector é analisar o entremear de sua vida e a obra em busca do ser, entre o pensamento da escritora e sua escritura, assim re-nasce em Clarice o pensar o ser. Tudo isso, sim, a história é história. Mas sabendo antes para nunca esquecer que a palavra é fruto da palavra. A palavra tem que se parecer com a palavra. Atingi-la é o meu primeiro dever para comigo. E a palavra não pode ser enfeitada e artisticamente vã, tem que ser apenas ela. A ação desta história terá como resultado minha transfiguração em outrem e minha materialização enfim em objeto. Sim, e talvez alcance a flauta doce em que eu me enovelarei em macio cipó (LISPECTOR, 1998, p. 20).

À Clarice coube alcançar a palavra em busca do ser de Macabéa, na incumbência de chegar com a palavra à simplicidade da personagem, que, por meio do narrador Rodrigo S.M. nos revela o tormento da escritora, que passa a se despir de sua própria significação para dizer do âmago da personagem o seu modo de ser.

Macabéa Macabéa mal sabia escrever, só tinha o terceiro ano primário. Aprendera com a tia a escrever à máquina. Ignorante, enfim ganhara uma dignidade: dizia ser datilógrafa. Alagoana, viera para o Rio de Janeiro tentar a vida, como qualquer nordestino, à mercê das possibilidades. A sociedade do Rio de Janeiro diria a Macabéa o que ela deveria ser, ou indagaria Macabéa à tolice de pensar “quem ela era?”. De tão incompleta, acabaria morta diante das provocações da necessidade de ser, ou de qualquer maneira com a preocupação que é dada ao ente na esfera cultural do Ocidente. Sem enfeites, a narrativa teceu a nudez da existência em Macabéa, que nem data de nascimento tinha. Cada dia será roubado da sua morte, no narrar dos dias de uma vida tão opaca, de uma natureza tão desprezível por todos.


Macabéa existia anonimamente, vivia no limbo impessoal de muitos brasileiros. Expressava com grandeza a sua miséria, na ausência que mal se percebia em si mesma para com as exigências de uma vida em sociedade, marcada pela obrigação de ser, pela obrigação de atribuir sua existência à incondicional objetividade, que limita e distrai a verdadeira busca da compreensão do homem. “Se fosse criatura que se exprimisse diria: o mundo é fora de mim, eu sou fora de mim” (LISPECTOR, 1998, p. 24). A personagem é a herança do olhar de Clarice Lispector, que contrapõe a instauração e a dominação metafisicamente condicionada para o domínio da subjetividade humana, em que a realidade está a serviço dos entes, na uniformidade de tudo, distanciando o homem de si mesmo, na preservação da opinião pública, como linguagem subjacente da objetividade, que arranca o homem da sua essência para se transformar em um ente social. O pensamento heideggeriano vem elucidar implicitamente os pensamentos metafóricos de Clarice Lispector nas entrelinhas da sua literatura. Tão pouco o “a gente” significa apenas a figura oposta, compreendida de modo éticoexistencialista, ao ser-si-mesmo da pessoa. O que foi dito contém, ao contrário, a indicação, pensada a partir da questão da verdade do ser, para o pertencer originário da palavra ao ser. Esta relação permanece oculta sob o domínio da subjetividade que se apresenta como a opinião pública. É somente por isso que Ser e Tempo (§ 34) contém uma indicação para a dimensão essencial da linguagem e toca a simples questão que pergunta, em que modo de ser, afinal, a linguagem enquanto linguagem é, em cada situação. O esvaziamento da linguagem, que grassa em toda parte e rapidamente, não corrói apenas a responsabilidade estética e moral em qualquer uso da linguagem. Ela provém de uma ameaça à essência do homem. Um simples uso cultivado da linguagem não demonstra, ainda, que conseguimos escapar a este perigo essencial. Em certo requinte no estilo poderia hoje, ao contrário, até significar que ainda não vemos o perigo, nem somos capazes de vê-lo, porque ainda não ousamos jamais enfrentar seu olhar (HEIDEGGER, 1973, p. 349-350).

Macabéa é a negação ingênua de uma moral objetivante que se entificou no Ocidente, é a contrapartida do niilismo que fecundou o temor do nada e de suas sombras. Clarice capturou no olhar de uma nordestina a confrontação corpo a corpo de um cotidiano que o aniquilaria, mesmo assim observou que, de tão inócua a personagem, por ela mesma representaria “o nada” e a manifestação do ser sob linguagem.


Pergunto-me se eu deveria caminhar à frente do tempo e esboçar logo um final. Acontece, porém, que eu mesmo ainda não sei bem como este isto terminará. E também porque entendo que devo caminhar passo a passo de acordo com um prazo determinado por horas: até um bicho lida com o tempo. E esta é também a minha mais primeira condição: a de caminhar paulatinamente apesar da impaciência que tenho em relação a essa moça. O fato é um ato? Juro que este livro é feito sem palavras. É uma fotografia muda. Este livro é um silêncio. Este livro é uma pergunta (LISPECTOR, 1998, p. 16-17).

Macabéa escorria o tempo do narrador, guiava-o no seu abismo interior, para descer às profundezas do “nada”, para encontrar em sua existência a finitude do seu tempo, levava-o à morte, como ela mesma caminhava de mãos atadas com o seu criador, em uma narrativa existencial que decompunha aos poucos toda significação humana.

O narrador e Macabéa Na tentativa de construir a personagem, o narrador se depara com o seu maior problema, definir Macabéa. Como falar de uma pessoa tão incompetente para a vida? Como caracterizar um semblante que, de tão tolo, o rosto parece pedir tapas? Como olhar no espelho d’água, de tão solúvel a sua existência nem imagem refletiria? O olhar que o narrador lançou nessa moça lhe deu ouvidos ao clamor do ser, forçando no seu interior a existência da personagem, na incumbência de tecer com a linguagem a espessura do ser. “Ela nascera com maus antecedentes e agora parecia uma filha de um não sei o quê com ar de se desculpar por ocupar espaço” (LISPECTOR, 1998, p. 27). Com esse enunciado, Clarice Lispector, na voz do narrador, parece ocultar uma das maiores preocupações filosóficas do séc. XX. “Ela nascera com maus antecedentes...”: em primeiro plano, parece nos dizer ironicamente das origens da personagem Macabéa. Mas se pensarmos na crítica feita pelo filósofo Martin Heidegger à história da cultura ocidental, nos parece ser de grande seriedade o sentido dessa frase. Para Heidegger, a ruína do ser acontece com o desvio de cada indivíduo do seu projeto existencial, em favor de preocupações cotidianas, em que o eu individual seria sacrificado e confundido na massa coletiva da sociedade. Sua crítica refere-se ao esquecimento do ser na história da cultura ocidental. Nada se fez na história do Ocidente em preocupação com esta grande questão existencial. Desde Platão até Nietzsche, toda atividade humana, científica ou cultural, somente se preocupou em


pensar o ente, com maus antecedentes no nascimento do pensamento humano. (http://www.youtube.com/watch?v=EJOtRMkTkqE) “... E agora parecia uma filha de um não sei o quê com ar de se desculpar por ocupar espaço”: ao longo da história da cultura ocidental, gestou-se no pensar histórico o ente, pensando o ser. Reconhecida por Heidegger a preocupação do pensar o ser, tomou cuidado para que o ser não fosse mais confundido por todos como ente pensando ser o ser, para enfim destituir o ser do embaraço do pensamento ocidental, que só agora ocupa um pequeno espaço no pensamento contemporâneo. Macabéa como “o ser”, de tão órfã de pensamento, não sabia que ela era o que era, assim como a galinha não sabe que é galinha. A única coisa que queria, creio que por instinto, era viver. A personagem que o narrador moldou era completamente deficiente de humanidade, não passava em sua mente alguma interrogação, como um animal que não se pergunta sobre o que é. Nesse sentido, é o homem que coloca o problema do ser, este “é”, que nomeamo-nos e a que nos limitamos na esfera dos entes. A quem interrogava ela? A Deus? Ela não pensava em Deus, Deus não pensava nela. Deus é de quem conseguir pegá-lo. Na distração aparece Deus. Não fazia perguntas. Adivinhava que não há respostas. Era lá tola de perguntar? E de receber um ‘não’ na cara? Talvez a pergunta vazia fosse apenas para que um dia alguém não viesse a dizer que ela nem ao menos havia perguntado. Por falta de quem lhe respondesse ela mesma parecia se ter respondido: é assim porque é assim. Existe no mundo outra resposta? Se alguém sabe de uma melhor, que se apresente e a diga, estou há anos esperando (LISPECTOR, 1998, p. 26-27).

O ente é uma coisa, que serve de base material de algo que é. O narrador se depara com Macabéa e se pergunta: Macabéa “é”? No plano ôntico, Macabéa diz ser datilógrafa, mas nem com isso a personagem assegurava-se como ente. Além de sujar invariavelmente o papel, errava demais na datilografia. Logo no primeiro dia, empregada no seu cotidiano, um ar de despedida permeava na condição de estar no mundo sem o “é”, com o terrível destino de não se assegurar em nenhum ente. Macabéa representa o nada, o verdadeiro dizer da existência humana. “Ela pensava que a pessoa é obrigada a ser feliz. Então era. Antes de nascer ela era uma idéia? Antes de nascer ela era morta? E depois de nascer ela ia morrer?” (LISPECTOR, 1998, p. 28). Não precisa ser inteligente para ser, o problema de ser não está no pensar, mas, sim, na existência. A única paixão na vida de Macabéa era comer goiabada com queijo, mas todos os dias ela era privada dessa sobremesa, que a tia sempre utilizou como castigo. A menina Macabéa não perguntava por que era castigada. Não saber fazia parte do ofício


da sua vida. E isso não era ruim para Macabéa, ela sabia muita coisa, como ninguém ensina uma vaca a dar cria, assim como ninguém lhe ensinaria a morrer, nasce e fica sabendo, como o ser é questão de existir. Quando era pequena tivera vontade intensa de criar um bicho. Mas a tia achava que ter um bicho era mais uma boca para comer. Então a menina inventou que só lhe cabia criar pulgas pois não merecia o amor de um cão. Do contato com a tia ficara-lhe a cabeça baixa. Mas a sua beatice não lhe pegara: morta a tia, ela nunca mais fora a uma igreja porque não sentia nada e as divindades lhe eram estranhas (LISPECTOR, 1998, p. 29).

Definir Macabéa é tarefa cada vez mais difícil para o narrador, como o ser não se esgota em nenhuma definição, como as pulgas não mereceriam o amor de um cão, como Deus não mereceria o amor de Macabéa. A personagem era completamente destituída de atributos, mas mergulhar no âmago de um personagem é submergir em busca do ser, desagregando todo e qualquer ente que nomeia o personagem, que tenta o limitar em um grande problema: Macabéa “é”. O ser é a abertura para as possibilidades, não se esgota de maneira alguma. “Bem sei que é assustador sair de si mesmo, mas tudo o que é novo assusta. Embora a moça anônima da história seja tão antiga que podia ser uma figura bíblica. Ela era subterrânea e nunca tinha tido floração. Minto: ela era capim” (LISPECTOR, 1998, p. 31). Mais uma vez, Clarice Lispector faz alusão ao ser histórico, pensando a humanidade contemporânea, que está fixadamente articulada na lógica da cultura ocidental, atrelada ao pensamento científico, respectivamente ao consumismo. É essa a humanidade que pende perplexa nos entes, dentre as preocupações banais de um cotidiano. Parece assustador uma volta ao ser num mundo absorto em busca dos entes. É preciso descobrir a verdadeira natureza humana, colocar o problema essencialmente humano do ser. Mais de dois mil e quinhentos anos se passaram pela história da filosofia, e essa semente ainda habita as profundezas da terra, na espera do seu florescimento. Mas Macabéa era capim, mal sabia que vivia numa sociedade técnica onde ela era um parafuso dispensável. Talvez a nordestina já tivesse chegado à conclusão de que vida incomoda bastante, alma que não cabe bem no corpo, mesmo alma rala como a sua. Imaginavazinha, toda supersticiosa, que se por acaso viesse alguma vez a sentir um gosto bem bom de viver – se desencantaria de súbito de princesa que era e se transformaria em bicho rasteiro. Porque, por pior que fosse sua situação, não queria ser privada de si, ela queria ser ela mesma. Achava que cairia em grave castigo e até risco de morrer se tivesse gosto. Então defendia-se da morte por intermédio de um viver de menos, gastando pouco de sua vida para esta não acabar. Essa economia lhe dava alguma segurança pois, quem


cai, do chão não passa. Teria ela a sensação de que vivia para nada? Nem posso saber, mas acho que não. Só uma vez se fez uma trágica pergunta: quem sou eu? Assustou-se tanto que parou completamente de pensar. Mas eu, que não chego a ser ela, sinto que vivo para nada. Sou gratuito e pago as contas de luz, gás e telefone. Quanto a ela, até mesmo de vez em quando ao receber o salário comprava uma rosa (LISPECTOR, 1998, p. 32).

Na grandeza ou na miséria, a questão do ser constitui-se na existência. Para Heidegger, o homem não é sujeito nem objeto, ou seja, o homem é ser-aí e estar-aí ao mesmo tempo no mundo. Será que o narrador moldaria para Macabéa um futuro esplendoroso? Caberia ele e Macabéa neste futuro, no qual ele mesmo indagaria a sua própria gratuidade, encontrando no interior da sua existência o nada? Ou melhor, na grandeza ou na miséria, junto com seu espectro, encontraria na miserável existência a grandeza do ser? Por uma questão existencial, Clarice nos devolve essas interrogações nas entrelinhas da sua literatura-metafísica. “Devo dizer que essa moça não tem consciência de mim, se tivesse teria para quem rezar e seria a salvação. Mas eu tenho plena consciência dela: através dessa jovem dou o meu grito de horror à vida. À vida que tanto amo” (LISPECTOR, 1998, p. 33). Macabéa tinha alguns apetrechos de humanidade que a tia deixou de herança, apenas cumpria por educação. Quando dormia, sonhava com a tia batendo na sua cabeça, e também às vezes sonhava estranhamente com sexo, com seu ralo semblante assexuado. Mas se sentia culpada de propósito, sim, para não perder o costume. Rezava mecanicamente três ave-marias, sem nenhum Deus no coração. E assim, ser-aí e estar-aí comprometiam ser ela mesma, e vagamente, quase sem querer, e realmente sem saber, pensava o seguinte: “Já que sou, o jeito é ser. Os galos de que falei avisavam mais um repetido dia de cansaço. Cantavam o cansaço. E as galinhas, que faziam elas? Indagavase a moça. Os galos pelo menos cantavam” (LISPECTOR, 1998, p. 34). Das entrelinhas meticulosamente estruturadas, a voz do ser ecoa pela escritura de Clarice Lispector. Os galos cantavam o cansaço, cantavam as preocupações de um cotidiano. Cantavam os galos o cansaço do eu individual, sacrificado e confundido na massa. Os galos simplesmente cantavam sem saber que os dias seguem dia após dia e que a morte enfim chegará, sem nenhuma subjetividade ou objetividade. Os galos marcavam pontos de interrogações, todos os dias e no mesmo horário no relógio da humanidade, não somente os galos, mas toda animalidade. A realidade parecia ser demais para ser acreditada, enquanto para os animais, e para os galos, não queria lhe dizer nada.


Acabo de descobrir que para ela, fora Deus, também a realidade era muito pouco. Dava-se melhor com um irreal cotidiano, vivia em câmera leeeenta, lebre puuuuulando no aaaar sobre os ooooouteiros, o vago era o seu mundo terrestre, o vago era o de dentro da natureza. E achava bom ficar triste. Não desesperada, pois isso nunca ficara já que era tão modesta e simples mas aquela coisa indefinível como se ela fosse romântica. Claro que era neurótica, não há sequer necessidade de dizer. Era uma neurose que a sustentava, meu Deus, pelo menos isso: muletas. Vez por outra ia para a Zona Sul e ficava olhando as vitrines faiscantes de jóias e roupas acetinadas – só para se mortificar um pouco. É que ela sentia falta de encontrar-se consigo mesma e sofrer um pouco é um encontro (LISPECTOR, 1998, p. 34-35).

Macabéa rompia a barreira da lógica, com total desarticulação com o mundo, vivia na sua lenta condição de ser, como um algodão que se desprende de seu arbusto e é suspenso pela sua leveza, no destinar dos ventos. Macabéa vivia na sua ínfima angústia, sem sentimento algum, levemente flutuando, sustentada pelo vazio. Em frente das vitrines, parava um pouco para mortificar sua verdadeira natureza. E sem saber, encontrava-se dentro de si, com o nada, com a sua existência. De tão miserável a sua vida, certificava-se da sua angústia permanente. O nada destinava o que ela não pensava: a morte. Um fim ou um gran finale? Apenas aceitar era o seu destino. Dizer sim inconscientemente à vida era descobrir o véu da morte, para então poder beijar a vida, na sua grandeza de ser. Assumir o nada é assumir a morte, é assumir a vida no mundo. “Quem organizou a terra dos homens? Na certa mereceria um dia o céu dos oblíquos onde só entra quem é torto. Aliás não é entrar no céu, é oblíquo na terra mesmo. Quanto a escrever, mais vale um cachorro morto” (LISPECTOR, 1998, p. 35). Agora o narrador se indagava e pensava no enriquecimento da sua escrita com termos técnicos, já que a história seria tão pobre. Pensara que não mancharia com palavras brilhantes uma vida tão simples como a da personagem. Macabéa era um acaso; quanto ao narrador, cria que não era apenas um acaso, simplesmente porque escrevia. Foi o mesmo que Clarice disse na sua entrevista cedida à TV Cultura: quando no intervalo entre uma obra e outra, ou seja, nos períodos que ela não escrevia, dizia estar morta. Achava não ser uma escritora profissional, pois a palavra escritora trazia um rótulo, e isso lhe tirava a liberdade de ser ela mesma. “Com excesso de desenvoltura estou usando a palavra escrita e isso estremece em mim que fico com medo de me afastar da ordem e cair no abismo povoado de gritos: o Inferno da liberdade. Mas continuarei” (LISPECTOR, 1998, p. 37). Todas as madrugadas, Macabéa ligava o rádio, sempre na mesma estação, a Rádio Relógio, que dava “hora certa e cultura”. A personagem se alimentava a conta


gotas, minuto a minuto: ensinamentos, anúncios comerciais, e a hora marcada a cada gota, a cada minuto. Era uma linguagem a serviço da mediação das vias de comunicação, e Macabéa era um gravador quebrado e primordial da objetivação, com o acesso uniforme de tudo para todos, menos para ela, pois não entendia. Mesmo assim, não calhava no seu ser essa rotina, apenas reconhecia um cotidiano. “E quando acordava? Quando acordava não sabia mais quem era. Só depois é que pensava com satisfação: sou datilógrafa e virgem, e gosto de coca-cola. Só então se vestia de si mesma, passava o resto do dia representando com obediência o papel de ser” (LISPECTOR, 1998, p. 36). Macabéa vivia da sua vida interior, comia das suas próprias entranhas, e corroía a interioridade do seu narrador. Quando o narrador pensou que poderia ter nascido a sua personagem, logo estremeceu com o calafrio da morte, a angústia sufocava-o, engasgado com os entes. Parecia não ouvir o apelo do ser, em assumir o nada, em assumir a morte, em assumir a sua existência. O narrador e sua personagem vinham em mãos opostas, e a colisão foi inevitável, uma grande explosão. Não havia em Macabéa a miséria humana, apenas existia incondicionalmente, desabrochava em si mesma como uma flor fresca. Estes sonhos, de tanta interioridade, eram vazios por que lhes faltava o núcleo essencial de uma prévia experiência de – de êxtase, digamos. A maior parte do tempo tinha sem saber o vazio que enche a alma dos santos. Ela era santa? Ao que parece. Não sabia que meditava pois não sabia o que queria dizer a palavra. Mas parece-me que sua vida era uma longa meditação sobre o nada. Só que precisava dos outros para crer em si mesma, senão se perderia nos sucessivos e redondos vácuos que havia nela. Meditava enquanto batia à máquina e por isso errava ainda mais ( LISPECTOR, 1998, p. 38).

Clarice Lispector entificada no narrador, Rodrigo S.M, parecia estar prestes a dizer a palavra fatal. Macabéa tinha o grande medo de pegar doença ruim nas partes baixas, isso a tia lhe ensinara. Já a mãe de Clarice morrera de sífilis congênita, e, por muita sorte, a não dizer um milagre, Clarice nasceu saudável. Misteriosamente, essa obra está entremeada de vidas próximas, quando o narrador diz: “Embora os seus pequenos ovários tão murchos. Tão, tão” (LISPECTOR, 1998, p. 33) – mal sabia Clarice que estava próxima do grande encontro consigo mesma, mal sabia que estava com câncer no nascimento, com câncer nos ovários. Embora só tivesse nela a pequena flama indispensável: um sopro de vida. (Estou passando por um pequeno inferno com está história. Queiram os deuses que eu nunca


descreva o Lázaro porque senão eu me cobriria de lepra.) (Se estou demorando um pouco em fazer acontecer o que já prevejo vagamente, é porque preciso tirar vários retratos dessa alagoana. E também porque se houver algum leitor para essa história quero que ele se embeba da jovem assim como um pano de chão todo encharcado. A moça é uma verdade da qual eu não queria saber. Não sei a quem acusar mas deve haver um réu.) (LISPECTOR, 1998, p. 39).

Clarice revela a sua angústia existencial através das suas entrelinhas metafóricas, marcando as suas últimas horas, indo ao encontro consigo mesma, despindo Macabéa de sua própria pele, vida e obra na grandeza de ser, o grande encontro, a morte, A hora da estrela.


Referências

Assim: Clarice Lispector. Disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Clarice_Lispector. Acesso em: 27/07/2012. _____. O que é metafísica? São Paulo: Nova Cultural, 1973. (Os pensadores, XLV). LISPECTOR, Clarice. A hora da estrela. Rio de Janeiro: Rocco, 1998. _____. Entrevista concedida à TV Culura, em 1977. Disponível em: WWW.youtube.com/watch?v=TbZriv5THpA. Acesso em: 26/07/2012. MOSER, Benjamin. Clarice, uma biografia. São Paulo: Cosac Naify, 2011. SÁ, Olga de. A escritura de Clarice Lispector. 3. ed. Petrópolis, RJ: Vozes; Lorena, SP: Faculdades Integradas Teresa D’Ávila, 2000. WERLE, Marco Aurelio. Palestra: Heidegger e o oriente, em 2006. Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=EJOtRMkTkqE. Acesso em 18/08/2012.


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