#16 Conexões Urbanas

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editorial

Gente como a gente “O irmão que é ajudado por seu irmão é como uma cidade forte.” O pensamento encontrado na Vulgata, tradução para o latim da Bíblia escrita em meados do século IV por São Jerônimo, a pedido do Papa Dâmaso, pode ser utilizada em outro contexto, digamos, mais moderno e menos religioso – mas não menos importante –, envolvendo Brasil e Cabo Verde. Afinal, são duas pátrias irmãs – com a mesma origem portuguesa e africana – que, unidas pelos costumes e pelas semelhanças culturais, fazem do Rio de Janeiro uma cidade cada vez mais maravilhosa. E como irmão ajuda irmão, os cariocas têm acolhido cada vez mais coboverdeanos (existem quase 2000 deles por aqui), gente que, assim como nós, tupiniquins, adora festa, música, dança e comida da melhor qualidade. Gente de fino trato e de fina estampa (bonita e elegante no porte e no vestir), que fala algo parecido com o nosso português e faz da simpatia sua marca registrada. A repórter Beatriz Coelho Silva nos traz outros detalhes dessa gente, que vem para cá fazer cursos técnicos, universitários ou de pós-graduação e voltar para Cabo Verde, ou que chegou há três décadas, fugindo das secas e da ditadura salazarista que impedia o país de se desenvolver, para ficar de vez. Gente que troca o belo arquipélago não só pelo Brasil, mas por outros países (Portugal, Estados Unidos e, em menor escala, Holanda e França – mais da metade da população do país, cerca de 600 mil pessoas, vive fora de Cabo Verde), mas que não deixa de amar a terra Natal e suas origens.

Alto Falante

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Doutores da Alegria

Por Aí

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Caboverdeanos

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Manos e Minas

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Espaço AfroReggae

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Cooperativas Populares

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Enfim

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Aliás, por falar em gente, o que a edição deste mês mais fala é de... gente. Gente como os integrantes das cooperativas de trabalhadores, que, com assessoria da Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), programa de extensão universitária do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), consegue inserção no mercado formal e se deixa de ser economicamente marginalizada. Gente jovem que, graças ao talento e à combatividade do rapper Rappin’Hood, tem um porta-voz de quem vive na periferia, mostrando o valor dessa gente em espaço nobre na televisão brasileira. Gente que, mesmo morando em uma comunidade humilde (Alto José do Pinho, um bairro pobre de pouco mais de 12 mil habitantes, na periferia do Recife), tem sua própria trilha sonora, graças à criação, em 2003, da Rádio Alto Falante, que, com 13 caixinhas de som instaladas nos postes da comunidade, conta com um simples – mas importante – sistema de som, que se tornou uma das ferramentas mais importantes de comunicação popular em uma periferia que, até então, só ocupava destaque nos jornais através das páginas policiais. Gente da melhor qualidade. Gente que faz acontecer. Gente como a gente. Boa leitura.

PATROCINADORES INSTITUCIONAIS DO AFROREGGAE

Jornalista responsável e editor Chico Junior | Produção, reportagens e textos Alysson Cardinali | Assistente de produção e textos Thaisa Araújo | Projeto gráfico e diagramação Logomotiva Comunicação - www.logomotiva.com.br | Direção de Arte Zilene Bernardino | Design e ilustração Carlo Filardi | Colaboraram nesta edição Beatriz Coelho Silva – Daniela Rotti – Michelle de Assumpção – Mônica Herculano | Conexões Urbanas é produzida em parceria entre o Grupo Cultural AfroReggae e a CJD Edições | Redação e endereço para correspondência Rua Ataulfo de Paiva 1175 / 603 - Rio de Janeiro - RJ CEP: 22440-034 Tel: (21) 2512.2826 - 3904.1386 | E-mail: cjd.edicoes@globo.com e chico.junior@afroreggae.org.br | Conselho Editorial: Chico Junior - Daniela Rotti - João Madeira - José Junior - Tekko Rastafari

expediente



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Por Michelle de Assumpção Fotos: André Dib

Rádio, que usa caixinhas de som em postes, é a porta-voz da comunidade do Alto José do Pinho, no Recife

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m bairro, na periferia do Grande Recife, que tem sua própria trilha sonora. Estamos falando do Alto José do Pinho – abriga uma comunidade pobre de pouco mais de 12 mil habitantes –, localizado bem perto do centro da capital pernambucana, mas que vive uma rotina de cidadezinha do interior. O visitante que chega ao centro do bairro, na praça Quatro de Outubro, logo tem esta impressão. Afinal, no começo da manhã, quando moradores saem para o trabalho e a escola, e depois, quando voltam, o cenário é sempre o mesmo: crianças brincando, idosos aposentados jogando dominó ou conversa fora e pessoas sentadas nas calçadas das casas observando o movimento do vai-e-vem, até o cair da tarde. A movimentação é embalada

pelo som que sai de caixinhas fixadas no alto dos postes deste pequeno e agitado espaço. A rádio comunitária Alto Falante é a porta-voz deste morro. Surgiu pela iniciativa de músicos ligados a bandas sediadas na comunidade. A década de 90, no Recife, afamada como o período musicalmente mais fértil da cidade, rendeu frutos como o movimento manguebeat e bandas como Chico Science & Nação Zumbi. Conseqüentemente, deu visibilidade para tudo quanto foi “som novo” surgido nas periferias. Foi assim que bandas de punk rock, como Devotos e Matalanamão, e de hip hop, como Faces do Subúrbio, passaram a ter mais espaço na mídia e respeito na própria comunidade.

Junto e articulado, o pessoal das bandas conseguiu, no início de 2003, apoio para montar um sistema simples de som, mas que passaria, daquela data até hoje, a ser uma das ferramentas mais importantes de comunicação popular em uma periferia que, até então, só ocupava destaque nos jornais, através das páginas policiais. Na verdade, a rádio Alto Falante veio a respaldar o movimento que já havia atraído atenção da mídia e dos produtores culturais do Recife para o Alto José do Pinho, anos atrás. O local sempre foi um importante centro artístico, com mais de 20 bandas e artistas, dos mais variados estilos musicais.

O Alto José do Pinho, na periferia do Grande Recife, abriga uma comunidade de pouco mais de 12 mil habitantes e tem uma rotina de cidadezinha do interior


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Sistema não precisa de autorização Foi com esta moral que o Alto, então, anunciou a existência da sua rádio comunitária. Enquanto dezenas de outras radiocoms brigavam por uma licença (e ainda brigam) no Ministério das Comunicações – para funcionar de forma legal, toda rádio comunitária precisa ter esta licença –, os articulados músicos do Alto optaram por um sistema que não traria dor de cabeça para seus coordenadores: adotou um sistema mais rústico e antigo de formatação de rádios comunitárias e instalou uma “rádio poste”, que não precisa de autorização do governo para funcionar. Em tempo: das mais de 100 rádios comunitárias que atuam clandestinamente no Recife, apenas cinco são legalizadas. As demais continuam sendo estigmatizadas de “piratas”, pois fazem uso de um dial não reconhecido, não autorizado. A tecnologia para o funcionamento da “rádio poste” é simples. São 13 caixinhas de som instaladas nos postes da praça e de algumas ruas do bairro. Adilson Ronrona, vocalista da banda Matalanamão, liderança e um dos fundadores da Alto Falante, diz que o sistema de som já ocupou as ruas apenas residenciais, mas alguns moradores se sentiram incomodados com o som que vai ao ar durante o dia todo. A solução foi restringir a rádio ao centro comercial do bairro. A idéia, segundo o rapper Zé Brown, também fundador, foi formar uma rádio popular de utilidade pública, social e cultural. “Queremos passar toda a informação que a comunidade precisa, como, por exemplo, se faltar água, dizermos onde correr atrás para solucionar o problema”, diz Zé Brown, que tem um programa de hip hop na Alto Falante. Para se manter, a rádio recebeu o apoio do Serviço Alemão de Cooperação Técnica e Social, com sede em Recife, e da Fase, ONG do Rio de Janeiro que tem como um de seus objetivos “fortalecer as organizações populares que se articulam entre si, por melhores condições de vida, maior inserção política e por uma nova forma de cultura e cidadania.” 1) Treze caixinhas de som instaladas nos postes da praça e de algumas ruas ao redor compõem a ‘tecnologia’ para o funcionamento da rádio 2) Adilson Ronrona, um dos fundadores da Rádio Alto Falante

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Interação fácil, mas curiosa A rádio funciona num minúsculo box do mercado público do bairro. A luzinha vermelha acesa indica que algum programa estar no ar. Mas é no mínimo curiosa a forma de interação dos programadores com a população. Como o acesso é curto e muito fácil, é comum que o ouvinte faça seu pedido batendo direto da porta do estúdio. Ou então, espere que algum programador saia do recinto para fazer o pedido na rua mesmo. Contrariando a máxima de que rádio comunitária, pelo menos no Recife, é sinônimo de programação musical voltada para o brega e para músicas de gosto duvidoso, a rádio Alto Falante é essencialmente musical, e, neste ponto, abre espaço mais para clássicos da MPB, do rock, do reggae e do hip hop, entre outros gêneros. Também transmite noticiários, geralmente com resenhas do que foi publicado na grande mídia. Sua intenção é fazer a população refletir e formar sua própria opinião, que, em muitos casos, será uma crítica ao que a grande imprensa propagou. No dia em que visitei a rádio, o locutor apresentava um programa no qual intercalava a leitura de trechos da Declaração Universal dos Direitos do Homem com música. “Nenhum homem pode passar fome, mas na nossa comunidade isso ainda é fácil de ser visto”, improvisou Leandro, responsável pelo programa Literasom, que mescla poesias, letras de música, trechos de livros e canções dos mais variados estilos. “Falo de tudo: política, economia, realidade do Brasil, do Alto, de todo lugar. Na parte da música é quando a gente tem mais cuidado. Ela tem que levar uma mensagem. A comunidade já está muito acostumada com a mesmice”, defende o programador.

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Baseada neste conceito, a rádio tem provocado o desenvolvimento local. Não necessariamente desenvolvimento econômico, pois ela própria é vítima da falta de investimentos públicos (até faz comerciais, uma ação que é bem restrita mesmo entre as rádios comunitárias legalizadas), mas ainda não se sustenta. A rádio, porém, é um instrumento dos mais importantes de visibilidade, tanto do potencial artístico quando da problemática social da comunidade. É, sobretudo, sobre este primeiro aspecto que a Alto Falante se apresenta com maior força e senso de realidade. Em alto e bom som.

3) O rapper Zé Brown tem um programa de hip hop na Alto Falante, mas sua meta foi formar uma rádio popular de utilidade pública, social e cultural: “Queremos passar toda a informação que a comunidade precisa.” 4) Leandro (ao centro) é o responsável pelo programa Literasom, que mescla poesias, letras de música, trechos de livros e canções dos mais variados estilos.


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Programa Iyá Àgbá apóia mulheres

Paulo Silva, produtor vencedor na categoria Master (com Crônicas de Um Fato Comum, da Cidade de Deus) recebe o prêmio de Paula Barreto foto: Rafael Silva

“Mostre a Sua Comunidade” premia vencedores Uma final especial para um concurso especial. Foi desta forma que se encerrou, dia 5 de agosto, o Festival Mostre a Sua Comunidade, mostra de vídeos promovida pela Light e pelo Instituto Terrazul com o objetivo de abordar diversas situações envolvendo o universo das comunidades cariocas. No evento, realizado no Centro Cultural Light, os seis melhores filmes – três na categoria Master e três na Estreante – foram premiados. Paulo Silva, produtor vencedor na categoria Master (com Crônicas de Um Fato Comum, da Cidade de Deus) ganhou um estágio remunerado de dois meses na produção da série “Águas do Brasil”, documentário que abordará o uso da água em todo o planeta, dirigido por Camilo Tavares e produzido pela LC Barreto. O Mostre a Sua Comunidade contou com mais de 300 inscrições e a participação de mais de 100 comunidades do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense. O concurso Mostre a sua Comunidade, integrante do projeto Comunidade Eficiente, em parceria com várias associações de moradores, incentivou a criatividade de talentos comunitários. Iniciado em 2002, o “Comunidade Eficiente” chegou a 2008 atendendo a mais de 266 mil residências em 229 comunidades do Município do Rio de Janeiro e Baixada Fluminense. Foram implementadas ações educativas e culturais em prol do uso racional da energia elétrica, tais como programas de eficiência energética e doação de equipamentos eficientes, atividades associadas ao conceito de cidadania e de responsabilidade social.

Esse resultado é fruto de parcerias que auxiliaram na divulgação, no incentivo à participação e no envolvimento das comunidades. O projeto teve a colaboração da Federação das Associações de Moradores de Favelas do Estado do Rio de Janeiro (Faferj); da TV Comunitária da Rocinha (TV Roc); da TV Comunitária do Rio de Janeiro (TVC Rio); do Cinema Nosso; do Nós do Morro; do Pontão de Cultura - Circo Voador; da Janela da Comunidade e do Programa Espaço Comunitário, da Rio TV Câmara. Conheça os vencedores do festival: Categoria Estreante: 1º Lugar: Onde Você Mora? / Comunidade Cesarão 2º Lugar: Educação Ambiental é Tudo / Comunidade Pedras Preciosas 3º Lugar: Caçapava – O Embrião da Diferença / Comunidade Juscelino Kubitschek Categoria Master: 1º Lugar: Crônicas de um Fato Comum / Comunidade Cidade de Deus 2º Lugar: Morro da Serrinha de Madureira / Comunidade Serrinha 3º Lugar: Jardim Gramacho / Comunidade Jardim Gramacho

As palavras Iyá Àgbá – vêm do iorubá e significam mãe-ventre (cabaça) – representam o espírito ancestral feminino que só incorpora nas reuniões das sociedades secretas para o fortalecimento do poder da mulher. Pois o Programa Iyá Àgbá de Apoio às Casas de Matrizes Africanas Lideradas por Mulheres, incentivado pela Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres (SPM), do Governo Federal, nasceu da iniciativa de lideranças religiosas de matrizes africanas que, preocupadas com a violência a que todas elas estão submetidas, apóiam ações que promovam a autonomia e a independência econômica da mulher e ampliem o leque de informações sobre os seus direitos. Para tanto, o governo repassou R$ 359 mil para quatro terreiros de candomblé, para a qualificação profissional das mulheres. Os terreiros (também chamados de Ilês) beneficiados, todos do Estado do Rio de Janeiro, foram o Omiojuarô, onde se ministra curso de capacitação em direitos humanos das mulheres, visando à sua proteção e a defesa dos seus direitos (para 60 mulheres); o Iyá Axe Manjele O, curso de coleta seletiva de lixo e reciclagem para a formação de uma cooperativa e a mobilização dos bairros em torno para a separação do lixo doméstico (75 mulheres); o Omolu e Oxum, que trabalha com artesanato e culinária afro-brasileira (50 mulheres); e o Ala koro Wo, que atua com panificação, pizzas, lanches, doces e reaproveitamento alimentar (160 mulheres). Estes terreiros, como tantos outros, desenvolviam ações de enfrentamento da violência contra as mulheres, através da Rede Iyá Agbá, e ações contra a intolerância religiosa. Após participarem de um edital da SPM, em 2007, em parceria com a Criola – instituição conduzida por mulheres negras de diferentes formações, voltada para o trabalho com adultas, adolescentes e meninas negras no Rio de Janeiro –, os terreiros passaram a beneficiar 345 mulheres no Rio de Janeiro, em Nova Iguaçu e em São João de Meriti.


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Mestre Galo Preto Foto: Mariana Lima

DMA e o Movimento Enraizados Criado, em 1999, por Flávio Eduardo da Silva – ativista da cultura hip hop, mais conhecido nos guetos brasileiros como Dudu de Morro Agudo (DMA) –, o Movimento Enraizados busca ligar pessoas de todo o Brasil, que pratiquem as artes integradas do hip hop, e divulgar cada artista, promovendo a cultura e a inclusão social através da militância nas periferias das grandes cidades. Produzindo, compondo e cantando desde 1992, Flávio participa freqüentemente de trabalhos musicais com artistas e parceiros da ideologia que prega nas músicas e no seu dia a dia. Ele acaba de lançar “Rolo Compressor” – em SMD, uma tecnologia que reduz o custo levando o álbum a ser vendido por R$ 6. O trabalho artístico e de militância já rendeu a DMA algumas homenagens e um prêmio que fez com que o Movimento Enraizados desse um salto em sua história: o reconhecimento do Ministério da Cultura, através do Prêmio Cultura Viva, com patrocínio da Petrobras. Ele começou a se destacar em 2001, quando fez shows em vários estados brasileiros e ganhou projeção nacional. De 2005 em diante, participou da gravação de vários CDs, como os dos grupos Fator Baixada, Kapella e Ultimato a Salvação. Também esteve presente em três coletâneas do Movimento Enraizados e duas coletâneas organizadas pela Ong Cemina, além de ter suas músicas em primeiro lugar na única rádio comercial que tocava rap (Hip Hop) no Rio de Janeiro, em 2005. Em abril deste ano, viu ser inaugurada a sede do Movimento Enraizados, no Morro Agudo, em Nova Iguaçu. DMA também foi matéria da Revista Raça, participou do programa Atitude.com, da TVE, e sua música já foi executada no programa Conexões Urbanas, do Grupo Cultural AfroReggae, na rádio MPB FM (90,3 MHz). Outras informações em www.enraizados.com.br.

Homenagem a Mestre Malunguinho Valorizar as tradições afro-religiosas e culturais, em Pernambuco, e homenagear Mestre João, o Mestre Malunguinho, rei do quilombo Catucá, na primeira metade do século XIX, que libertou muitos de seus irmãos que viviam no cativeiro das senzalas (reza a lenda, tinha uma chave mágica que abria todas as correntes das senzalas). Este é o objetivo da I Semana da Vivência e Prática da Cultura Afro-Pernambucana, que será realizada entre os dias 12 e 18 de setembro, em Recife e outros municípios, e se estenderá até o dia 21, data do III Kipupa Malunguinho, Coco na Mata do Catucá. As atividades serão variadas, como o curso de Língua, História e Cultura Yorubá e discussão sobre o Orixá Exu; o seminário sobre ética nas religiões de matizes africanas; a exposição de filmes africanos (com alunos de Angola, das universidades Federal e Católica de Pernambuco); palestras nas escolas de cinco municípios do estado; e apresentações culturais. O evento terá, ainda, a cerimônia de coroação da rainha do Maracatu Raízes de Pai Adão, um maracatu da mais pura linhagem familiar de Pai Adão, um dos grandes baluartes da religião Nagô em Pernambuco. Outro grande momento será o final de semana destinado à comemoração da Lei de Malunguinho (Lei es-

tadual n° 13.298/ 2007, de autoria do deputado Isaltino Nascimento, que instituiu, no calendário oficial do Estado, a Semana Estadual da Vigência e Prática da Cultura Afro-Pernambucana). O III kipupa Malunguinho, Coco na Mata do Catucá, evento cultural e religioso, terá palestras, apresentações e discussões ritualísticas da Jurema Sagrada (culto religioso de origem indígena, com elementos afros e cristãos), além de muito coco de raíz, sobre a regência dos grandes mestres e mestras desta tradição em Pernambuco, atividade liderada pelo Mestre Galo Preto (www.myspace.com/ mestregalopreto). “Vamos fazer da Lei de Malunguinho um grande ato de afirmação dentro do nosso estado sobre os personagens negros que a historiografia oficial negou e os povos de matrizes indígenas e africanas preservaram em seus cultos legítimos. Pretendemos transformar setembro no mês de Malunguinho no nosso estado, chamando a atenção de todo o país e do exterior para as programações educacionais, culturais e afro religiosas. Queremos Malunguinho na escola, na net, em todos os lugares onde se possa discutir a história do Brasil”, diz Alexandre L’Omi L’Odò, coordenador do Quilombo Cultural Malunguinho Histórico e Divino.


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A VOZ DOS MANOS E MINAS Rappin’Hood, um dos principais porta-vozes das comunidades, comanda programa, na TV Cultura, voltado ao jovem da periferia por Mônica Herculano

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egunda-feira, três da tarde. Uma multidão se aglomera em frente ao Teatro Franco Zampari, na região central de São Paulo. De adolescentes a senhoras, eles aguardam para assistir à gravação do programa Manos e Minas, exibido toda quarta-feira, pela TV Cultura, e comandado por um dos principais porta-vozes da periferia: Rappin’Hood. Ele chega às 16h, na tranqüilidade que lhe é característica, conversa com o pessoal da produção, confere os preparativos do palco e troca uma idéia com o DJ Primo, responsável pelo som que agita a platéia e embala os b-boys que toda semana levam a dança de rua ao programa. O grafite completa o cenário, com telas feitas ao vivo desde a primeira edição, há três meses. Durante uma hora nobre (das 19h30 às 20h30), Rappin’Hood é o mestre de cerimônia de um autêntico espaço aberto ao jovem da periferia na televisão brasileira. Tudo começou com o convite da emissora para que o rapper participasse do projeto “No olho da rua”, sobre símbolos de resistência na cidade. A idéia não vingou, mas ele acabou fazendo, durante um ano e meio, o quadro “Mano a Mano” no Metrópolis, programa diário dedicado ao mundo das artes. Mostrar a diversidade cultural na periferia foi tão bacana que surgiu a oportunidade de transformar três minutos em sessenta. “Muita gente e a própria equipe do Metrópolis me incentivou. Depois de uns seis meses de conversa, surgiu o Manos e Minas”, conta Hood. “A TV Cultura não tem um orçamento grandioso, mas aqui eu tenho liberdade e eles tratam a gente bem. Fico observando Fernando Faro, Rolando Boldrin, Inezita Barroso, que estão aqui há mais de 20 anos. Eu me espelho neles para fazer o Manos e Minas ficar no ar anos e anos, na mesma casa.”

Rappin’Hood em ação: “Para falar da periferia tem que respirar a periferia, tem que viver nela. Para nós é um diálogo franco e verdadeiro, porque falamos a mesma língua” foto:Luciano Piva

Produção de primeira Se depender da galera que vem lotando o teatro para as gravações, não será difícil. Também o fato de que o programa tem estilo, produção de primeira e linguagem diferenciada para levar para a telinha esporte, comportamento, cultura e arte de fora dos circuitos centrais, na visão de quem sabe muito bem do que está falando. “Para falar da periferia tem que respirar a periferia, tem que viver nela. Para nós é um diálogo franco e verdadeiro, porque falamos a mesma língua”, indica Hood, que traz dois parceiros das quebradas em quadros quinzenais: Alessandro Buzo comanda o “Buzão – Circular Periférico”, que promove roteiros culturais em diferentes bairros, e Ferréz apresenta o “Interferência”, bate-papo com uma personalidade, na Barraca do Saldanha, no Capão Redondo. O programa ainda acompanha a produção atual e resgata histórias da cultura negra. Tem sempre um artista fazendo música ao vivo e a platéia discute as reportagens exibidas, sobre temas como educação, trabalho e projetos sociais. “Acho que o governo realmente não tem condições de fazer tudo sozinho. O povo tem que se estruturar e se organizar para fazer a mudança. Eu acredito nesse trabalho, mas acredito, também, que hoje em dia tem muito esperto surfando nessa onda que não é dele. Tem gente que quer se apropriar disso, inventar ONG. Mas acho que o futuro é esse tipo de trabalho. E quem fizer errado, virá a CPI aí, meu! Os caras vão se dar mal!”, alerta Hood, com a propriedade de quem vive neste meio há muito tempo.


A banda de reggae Planta e Raiz se apresenta no Manos e Minas foto:Jair Bertoluccii

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Robin Hood do rap Atuante em iniciativas pela melhoria das condições de vida no país, Hood conta que um amigo de Heliópolis foi quem “mostrou o caminho dos projetos sociais” quando ele, sem saber, já participava de um. “Naquele tempo eu já freqüentava o projeto Rappers, do Geledés, mas ainda não tinha total noção do que era ONG. Lá dentro do morro fui conhecer isso, aí a gente montou a rádio comunitária e eu fui me engajando. Participava de reunião do movimento do pão e leite, reunião de moradia, reunião de saúde. Eu fiquei muito tempo ali, atuando no social dentro da comunidade de Heliópolis e região. Isso foi minha base, e foi muito natural.” Natural também foi seu envolvimento com a música. “Eu comecei bem garoto. Tinha seis, sete anos quando meus tios faziam bailes e eu já ficava ali, dormia no meio dos discos. Quando a festa era na casa da minha avó, eles iam namorar e eu ficava no som”, recorda. Mais tarde, quando começou a freqüentar a estação São Bento do metrô, point dos rappers na década de 80, ficou conhecido como o “Robbin Hood do rap”, pelo que dizia nas letras. “Aí, eles acharam um filme, de Mario e Melvin Van Peebles, que tinha um personagem que se chamava Rappin’Hood. E já são quase 20 anos que eu sou Rappin’Hood.” Junior, como é chamado pela família, tem ainda uma grife de moda jovem (Hood Wear) e comanda um programa de rádio há quase oito anos na popular 105 FM (www.radio105fm.com.br). “‘Rap du Bom’ é uma continuação do programa que eu fiz durante sete anos na rádio comunitária. Toco rap nacional e internacional e uma parte é dedicada às raízes do hip hop. Também tem entrevista com bandas, personalidades, pessoas que eu acho importante o povo ouvir”, conta. O programa vai ao ar todo sábado, das 20h30 à meia-noite.

O violonista, produtor, arranjador e cantor Walmir Borges faz a garotada vibrar na platéia foto:Luciano Piva a

Thaíde, um dos pilares do movimento hip hop brasileiro, marca presença no programa de Rappin’Hood foto:Luciano Piva


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: s e r a l u p o p s a v i t a r e Coop desemprego d o a r t n o c remédio

Incubadoras promovem a inserção no mercado formal de trabalho de segmentos sociais economicamente marginalizados por Alysson Cardinali

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izem que a união faz a força, certo? Pois se existe algo que comprova tal teoria é a Incubadora Tecnológica de Cooperativas Populares (ITCP), programa de extensão universitária do Instituto Alberto Luiz Coimbra de Pós-Graduação e Pesquisa de Engenharia (COPPE) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Criada em 1995, a incubadora auxilia (por meio de assessoria especializada), a constituição de cooperativas de trabalhadores e promove a inserção no mercado formal de trabalho de segmentos sociais economicamente marginalizados. Seu público-alvo é um grande contingente de trabalhadores desempregados ou vinculados ao plano da economia informal. Afinal, o que diferencia as cooperativas populares de outras experiências de organização sócio-econômica

cooperativista é fundamentalmente a situação de exclusão vivenciada por seus associados e a predominância de um modelo de gestão democrático e participativo, mais voltado para o bem comum do que para o lucro.

populares, em busca de soluções de inclusão social. Obteve resultados positivos e, hoje, impulsiona políticas públicas de geração de trabalho e renda”, diz o antropólogo, cientista social e coordenador de pesquisa da ITCP, Marcelo Ramos.

A ITCP atua na incubação direta de empreendimentos econômicos solidários, na transferência de tecnologia de incubação para assessorar outras incubadoras e no subsídio de políticas públicas de trabalho e renda. Entendendo o cooperativismo popular – seus princípios e valores – como um importante vetor de transformações sociais, a ITCP trabalha com grupos, e não com indivíduos isoladamente; fomenta a cooperação dentro do grupo; desenvolve uma forma de gestão e de retribuição do trabalho mais igualitária e democrática do que a dominante na sociedade; e tem a educação e multiplicação do conhecimento como um de seus pilares. “A ITCP foi uma iniciativa pioneira, no Brasil, na articulação entre o conhecimento produzido na universidade – ensino, pesquisa e extensão – e as iniciativas

Bons resultados Para viabilizar e fortalecer sua forma de atuação, a ITCP também promove a educação cooperativista, desenvolve metodologias que contribuam à solução dos desafios criados na implantação dos empreendimentos e estabelece parcerias com entidades e governos que busquem promovêlo. Apoiar a construção de redes e outras formas organizativas de cooperativas, além de contribuir na elaboração e implementação de políticas públicas são outras formas de ação da ITCP. Tal metodologia tem obtido bons resultados. “Temos um sistema de indicadores de avaliações econômicas para sabermos se as cooperativas estão organizadas e se todos dela participam. Fazemos um planejamento para auxiliar as incubadoras mesmo depois de criadas. A cada seis meses, acompanhamos a evolução de cada grupo e, se necessário, os ajudamos a aprimorar o que for preciso para que seus integrantes continuem em evolução”, revela Marcelo. A metodologia desenvolvida pela ITCP baseia-se em duas vertentes. A primeira se ocupa da viabilidade econômica do empreendimento. A segunda é voltada para a sua viabilidade como cooperativa. As atividades desenvolvidas devem procurar não só respeitar, mas estimular e incorporar o conhecimento dos grupos, através de uma linguagem clara e de práticas didáticas e de planejamento. Exemplos disso são as cooperativas formadas até o momento, a comprovação de que o cooperativismo popular veio para ficar. Conheça um pouco mais sobre algumas das cooperativas que contam com o apoio da ITCP.


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Inicialmente formada apenas por mulheres, a Cooperativa de Mulheres da Baixada (Coomub) tem hoje catadores do sexo masculino (passou de 21 para 35 cooperados).

Unidas na confecção e comercialização de produtos de moda e decoração, as integrantes da Coosturart, cooperativa de costura artesanal, fundada em 2002, descobriram no trabalho coletivo uma forma de gerar renda e promover a cidadania

Fundada em janeiro de 2004, no Complexo do Jacarezinho, a Cooperativa Popular Amigos do Meio Ambiente (Coopama) faz coleta, triagem e reciclagem de resíduos sólidos, entre outros serviços

COOMUB

COOSTURART

COOPAMA

A Cooperativa de Mulheres da Baixada (Coomub) foi criada em janeiro de 2005 e recebeu esse nome porque, em sua origem, ela era formada apenas por mulheres (donas de casa) do bairro de Cosmorama e adjacências, no município de Mesquita. Hoje, a cooperativa já conta com catadores do sexo masculino (passou de 21 para 35 cooperados), além do apoio da comunidade, realizado através de parcerias com a Associação dos Moradores do Conjunto Bento Ribeiro Dantas e a Associação de Moradores de Vila dos Pinheiros. A Coomub faz parte do projeto Coleta Seletiva Solidária para Inclusão Social de Cooperativas e Grupos de Catadores de Material Reciclável do Município de Mesquita, e, desde sua formação, seus membros realizam a coleta nas ruas de Cosmorama e utilizam, em seguida, material reciclável na confecção de produtos para a venda. Outro trabalho que realizam é o de agentes do meio ambiente, ajudando na conscientização e sensibilização da comunidade para a educação ambiental. Outras informações em www.cooperativismopopular.ufrj.br/coomub/.

Fundada em 2002, a Coosturart é uma cooperativa de costura artesanal formada por mulheres, moradoras da região de Santa Cruz, Zona Oeste do Rio de Janeiro. Unidas na confecção e comercialização de produtos de moda e decoração, elas descobriram no trabalho coletivo uma forma de gerar renda e promover a cidadania. Todas as peças são confeccionadas com a utilização de técnicas de costura artesanal, como fuxico, bordado e patchwork, garantindo a beleza e originalidade dos produtos Coosturart, que possui em seu quadro 30 associados. Outras informações em www.cooperativismopopular.ufrj.br/ coosturart/.

A Cooperativa Popular Amigos do Meio Ambiente (Coopama) foi fundada em janeiro de 2004 no Complexo do Jacarezinho, Rio de Janeiro, por um grupo de trabalhadores e desempregados locais, que se organizaram sob o mesmo objetivo – obter renda através do trabalho legal. A cooperativa é um empreendimento autogestionário, que atua na área de coleta, triagem e reciclagem de resíduos sólidos, entre outros serviços. Para a estruturação da cooperativa e capacitação para a autogestão do empreendimento foi fundamental a inclusão no processo de incubagem da ITCP/COPPE-UFRJ, em de março de 2003. Outras informações em www.cooperativismopopular. ufrj.br/coopama/.


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Fundada em maio de 2002, a Cootrabom firmou, em 2004, parceria com a Lamsa-Linha Amarela S.A. para desenvolver trabalhos de educação ambiental na área da Maré e comunidades vizinhas, o que resultou no o primeiro contrato de prestação de serviço da cooperativa

Blocos, cadernos, cartões, caixas e camisetas são alguns dos produtos desenvolvidos pela Cooperativa Papel Pinel, que visa reafirmar alianças com pacientes no dia a dia

Contrariando a máxima de que “lugar de maluco é no hospício”, a Cooperativa Praia Vermelha, criada em 1997, produz bombons, bolos, biscoitos e salgados, tendo como matéria prima a castanha do Pará

COOTRABOM

PAPEL PINEL

PRAIA VERMELHA

A Cooperativa dos Trabalhadores do Complexo de Bonsucesso (Cootrabom) foi fundada em maio de 2002, após a iniciativa de alguns trabalhadores que recolhiam diariamente latas, garrafas pet e outros resíduos sólidos comercializáveis, no bairro de Bonsucesso e no complexo da Maré, no Rio de Janeiro. No início, a cooperativa contava com 21 integrantes. Hoje, tem 35, além do apoio da comunidade, realizado através de parcerias com a Associação dos Moradores do Conjunto Bento Ribeiro Dantas e a Associação de Moradores de Vila dos Pinheiros. Em 2004, a Cootrabom firmou parceria com a Lamsa-Linha Amarela S.A. para desenvolver trabalhos de educação ambiental na área da Maré e comunidades vizinhas, no entorno da Cidade Universitária, na Ilha do Fundão. Assim, foi firmado o primeiro contrato de prestação de serviço da cooperativa. Outras informações em www.cooperativismopopular.ufrj.br/cootrabom/.

No início, apenas uma pequena oficina. Mais um pretexto para fazer junto e reafirmar alianças com pacientes no dia a dia de um hospital psiquiátrico. Mãos a obra, papel picado jogado fora e recolhido. Muita cola, sujeira, suor e amizade. O papel “patinho feio” transforma-se, renasce e se torna papel reciclado. Em torno desta colagem de anseios e papéis, foi-se construindo e constituindo um espaço para o estar produtivo, onde cada um pudesse desenvolver sua criatividade, aptidões ou mesmo reinventá-las. Fazendo arte, tecendo sonhos, foi-se buscando uma ponte – muitas das vezes rompida pelo adoecer – para fora, para o mundo. Os produtos comercializados pela Papel Pinel são blocos, cadernos, cartões, caixas, camisetas e tudo que se possa inventar, com cidadania e autonomia. Uma troca com o mundo fora do Instituto Philipe Pinel, em Botafogo. Outras informações em www.azul.art.br/papelpinel/.

No lugar de remédios, bombons, bolos, biscoitos, salgados e embalagens. Em vez de reclusão, integração e inclusão social. Contrariando a máxima de que “lugar de maluco é no hospício”, foi criada, em 1997 – com a ajuda de técnicos do Instituto Philipe Pinel e a assessoria da ITCP –, a Cooperativa Praia Vermelha. Seus produtos utilizam como matéria prima a castanha do Pará, vinda de reservas extrativistas do Acre. Com freguesia assídua no campus da Praia Vermelha e presença certa em seminários promovidos na universidade, os produtos da cooperativa têm se destacado pela qualidade. Um exemplo paradigmático do caráter transformador do trabalho em cooperativas, enfatizando os valores igualitários, democráticos e humanos. Outras informações em www.cooperativismopopular.ufrj.br/ praiavermelha/.


elho uma profissão

rm zer do uso do nariz ve Jovens que sonham fa Doutores da Alegria contam com curso da por Thaísa Araújo

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om o rosto pintado e nariz vermelho, dentro de roupas multicoloridas e calçado com enormes sapatos, o palhaço é sinônimo de alegria. Aliando criatividade e muito jogo de cintura, ele não só cativa o respeitável público sob a lona, mas, principalmente, transposta a criançada para um mundo particular, feito de fantasia, sorrisos e algodão doce. Sandro Pontes, morador do Grajaú, Zona Sul de São Paulo, hoje com 19 anos, sempre foi um habitante deste mundo. Nascido em 1989, desde pequeno quis ser palhaço. Aos 9 anos, deu início à tentativa de realizar seu sonho e entrou para o Circo Escola Grajaú, onde fez de (quase) tudo – trapézio, quadrante, malabarismo, perna de pau e tocou caixa (um tipo de tambor) para os desfiles –, menos aquilo que realmente gostava: palhaçada. Sandro é um dos novos integrantes do Curso de Formação de Palhaços da ONG Doutores da Alegria, que atua em hospitais de Belo Horizonte, Recife, Rio de Janeiro e São Paulo, levando alegria a crianças internadas. Ele fala com orgulho de seu ofício e de seu talento na arte de alegrar as crianças. “O que mais quero é continuar na Doutores, montar espetáculos e estudar muito a arte de ser palhaço” diz. “Cheguei a trabalhar em um açougue. Mas tinha que decidir: ou era o emprego ou fazer o que realmente me deixava feliz: ser palhaço. Optei pelo palhaço Sandoval Soluço Silva, e, através dele, posso ser qualquer coisa, sem ter a vergonha de ser ridículo”, revela Sandro, que, aos 15 anos, já se apresentava profissionalmente e ganhava por isso. “Depois de muitas apresentações em espetáculos no circo e de rua, percebi que ser palhaço era minha vocação”, acrescenta.

Palhaço Raí

Vocação compartilhada por inúmeros outros “Sandros”, que têm na profissão incontáveis possibilidades de sucesso. “Vejo nos jovens uma vontade muito grande de ser palhaço, mas raramente uma visão de futuro. Ser palhaço é muito empreendedor, pois existem várias possibilidades para esse artista: no circo, no teatro, nas escolas, nas ruas, nas prisões, nas empresas, em inúmeros eventos e em todos os lugares onde a transformação se faz necessária”, avalia Wellington Nogueira, fundador da Doutores da Alegria.

Rafael de Araujo Teixeira também. Conhecido como o palhaço Raí – Raimundo Caramujo Peixeira –, Rafael mora em Itaim Paulista, Zona Leste de São Paulo, onde começou no teatro, em projetos da prefeitura. Interessado, aos 16 anos já acumulava responsabilidades que cabiam aos professores: montava grupos e organizava apresentações. Na incessante busca por aprender e ter novas experiências ficou sabendo das inscrições para a primeira turma de formação de palhaços oferecida pelos Doutores da Alegria. Não perdeu tempo e, claro,

Sandro (C) durante uma apresentação: feliz por seguir sua vocação, ele leva alegria para crianças portadoras de doenças graves

se inscreveu. “Além da técnica, aprendemos o olhar, baseado no modo de ver da criança, e descobrimos a verdadeira função social da nossa arte, que é de transformação”, diz Rafael. Os jovens interessados em ter uma formação artística, através dos Doutores da Alegria, devem acompanhar, no site www.doutoresdaalegria.org.br, quando haverá inscrições (o que acontece uma vez por ano).

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Palhaçada, marmelada e um ideal de vida

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Caboverdeanos estão ‘em casa’ no Rio de Janeiro Muitos vêm para estudar, alguns para morar e todos enaltecem as belas semelhanças entre Cabo Verde e Brasil por Beatriz Coelho Silva Fotos: Jucemar Alves (Imagens do Povo)

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e você passar na rua por um grupo de moças e rapazes negros, bonitos, elegantes no porte e no vestir, falando uma língua parecida com o nosso português, mas incompreensível, pode ter certeza: você encontrou caboverdianos que vivem no Rio de Janeiro. São quase 2.000 pessoas vindas desse arquipélago africano, localizado em frente a Angola, e colonizado por Portugal, no século XV. As semelhanças conosco são enormes: caboverdeanos adoram festa, têm música e dança muito rica (seus ritmos são morna, zouk, coladeira, funaná – que se parecem muito com o nosso samba –, choro e axé) e uma culinária saborosa, cujo prato principal é a cachupa, espécie de feijoada com feijão mulatinho, legumes e frango no lugar da carne de porco.

“Não fosse a saudade da família, não me faltava nada aqui no Brasil. Tem sol, praia, calor humano e somos muito bem recebidos”, diz Izilda Tavares, uma bela mulata que acaba de se formar em Direito, na Universidade Santa Úrsula, e pretende voltar para Cabo Verde, para exercer a profissão. “Sou a terceira da família a vir. Minhas irmãs estudaram aqui, e, no ano que vem, meu irmão virá. Vou sentir falta do Brasil e do Rio de Janeiro, mas o destino do caboverdiano é ter saudade.”

fazer pós-graduação em eletricidade, mas especializou-se em produção de eventos. “Eu já gostava de fazer festa e, agora, vou trabalhar com turismo em Cabo Verde”, explica Gregório, que aqui se casou com a jornalista Kelly Cristina do Nascimento e pretende levá-la para sua terra natal no fim do ano. “Apesar de mais da metade dos caboverdeanos viverem fora do país, hoje em dia muita gente volta para lá.”

Izilda, Keila Mendez, Ciomara Gonçalves, Haydée Silva Netto e Afromanz Afer são estudantes e formam o grupo cultural Filhos de Cabo Verde, liderado pelo engenheiro Gregório Sanches, que veio

Afronaz, Kheyla, Ciomara, Gregório, Haydée, Izilda e o amigo Torquato Júnior, também caboverdiano.


Total integração

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Gregório conta que a comunidade caboverdeana no Rio de Janeiro pode ser dividida em dois grupos, embora a integração seja total. Há os estudantes que fazem cursos técnicos, universidade ou pós-graduação e voltam para Cabo Verde, e os que chegaram, há três ou mais décadas, fugindo das secas que o arquipélago sofreu no século passado e da ditadura salazarista que impedia o país de se desenvolver. Nesse segundo grupo está Ana Antônia da Silva. “Cheguei aqui em 19 de julho de 1960, mas não era para ficar. Gostei, casei e, embora já tenha ido a passeio na minha ilha, não pretendo voltar. Minha vida é aqui, onde criei meus filhos. Bom seria passar uns tempos lá e outros cá”, comenta Ana Antônia, que mora em Posse, distrito de Nova Iguaçu, na Baixada Fluminense.

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A casa de dona Ana Antônia, aliás, é uma embaixada informal de Cabo Verde. Uma de suas filhas, Neuza Oliveira, é presidente da Associação Caboverdeana do Estado do Rio de Janeiro (Acerja), instituição que existe há mais de três décadas e hoje luta para restaurar a sede própria. “Os estudantes de arquitetura de Cabo Verde farão o projeto”, garante Neuza, que promove encontros bimensais da comunidade espalhada entre Nova Iguaçu, Mesquita, Duque de Caxias e Jacarepaguá. “Tal como os portugueses, os caboverdeanos imigrados trabalharam no comércio, lutaram com muita dificuldade e hoje seus filhos não têm uma profissão preferencial: há médicos, engenheiros, comerciantes, um pouco de tudo.” É o caso dos cinco filhos de Ana Antônia, cujo marido, Adolfo Moraes da Silva, dono do primeiro armazém de Posse, faleceu no primeiro semestre deste ano. Neuza é professora, Adenilson e Ademir trabalham com turismo na região dos Lagos, Yolanda é cabeleireira e Rachel, a caçula, é artesã. Na casa deles, que cresceu junto com a família, há fotos de Cabo Verde por todo lado e todo mundo já foi à terra da mãe. Os rapazes receberam convites para se mudar e levar um pouco da hospitalidade brasileira para o arquipélago. Neuza sonha mudarse para lá.

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1 - Amor à pátria: Adenilson (E), Ana Antônia, Neuza e Ademir seguram a bandeira de Cabo Verde 2 - Gregório (C) e Afronaz (D), ao lado de Torquato Júnior: visual transado une beleza e elegância no porte e no vestir 3 - De Cabo Verde para o Rio de Janeiro: semelhanças no idioma, na culinária, na dança, na música e no jeito alegre de viver

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Mar e montanha O turismo é a vocação de Cabo Verde, formado pelas ilhas de Santo Antão, São Vicente, Santa Luzia, São Nicolau, Sal, Boa Vista, Maio, Santiago, Fogo e Brava, além de ilhotas desabitadas. O trajeto entre elas leva, em média, seis horas de barco, mas os caboverdeanos se acostumaram a viver no mar. “Para mim, ir daqui para ali não é nada”, afirma Gregório. Tal como o Rio de Janeiro, mar e montanha formam paisagens belíssimas, com sol e calor o ano inteiro. Algumas ilhas são vulcões extintos e, por isso, há praias de areia branca como as daqui e outras com pedras escuras. Há também salinas que tornam a paisagem mais interessante ainda. Até 1974, a ditadura salazarista impedia o desenvolvimento das ilhas, mas veio a Revolução dos Cravos e o país ficou independente em 1975. “Houve um movimento de resistência, mas não guerra como em Angola e Moçambique”, lembra Neuza, que acaba de posgraduar-se em Política Internacional. “Hoje o país é pobre, mas não há fome, todos têm moradia e o investimento em educação é enorme. Se comparado com o estudante brasileiro, o caboverdeano tem uma cultura mais sólida.” Este investimento é que leva os caboverdeanos a estudar em Portugal, Estados Unidos, Brasil e, em menor escala, Holanda e França. É por isso que mais da metade da população do país, cerca de 600 mil pessoas, vive fora. “Nosso governo tem convênio com universidades desses países. A gente sai para estudar e volta para trabalhar em Cabo Verde”, conta Afromanz Afer, que estuda Comunicação na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e faz oficina de hip hop com o Grupo AfroReggae, no Cantagalo. “O trabalho é muito interessante. Levarei esta experiência quando voltar.” Se eles se misturam com os brasileiros no dia a dia, nas festas os caboverdeanos se encontram para dançar, cantar e comer. “Temos o carnaval, as festas juninas, nossa data nacional, que é 5 de julho, a festa de Nossa Senhora do Carmo, padroeira do país, o Natal e o dia de Ano Novo”, enumera Neuza. Qualquer semelhança com as festas brasileiras não é mera coincidência. A caboverdeana mais conhecida mundialmente, Cesária Évora, lembra as matriarcas das nossas escolas de samba, inclusive no talento para a dança e o canto. “Somos povos irmãos, temos a mesma origem que mistura portugueses e africanos. Por isso é tão bom estar aqui ou lá”, arremata Gregório.


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Só alegria! A quadra do Morro do Cantagalo estava lotada e o público – formado por moradores da favela e da Zona Sul do Rio – dividiu, em harmonia e com muita empolgação, cada metro quadrado do espaço foto: Rodrigo Gorozito

CONEXÕES FUNK

AFROREGGE E FURACÃO 2000 DÃO O RITMO EM FAVELAS DO RIO

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rimeiro foi o Conexões Urbanas, projeto criado pelo AfroReggae, em 2001, que se tornou o maior circuito de shows gratuitos realizado em favelas do Rio de Janeiro. Em maio, ele bateu a marca de 51 edições, com Xuxa, Afro Lata e Furacão 2000, na Vila Vintém, em Padre Miguel, Zona Norte do Rio. Agora, o Grupo Cultural AfroReggae e a Furacão 2000 concentram seu poder de fogo no ritmo mais ouvido, cantado e dançado em dez entre dez favelas do Rio. O Conexões Funk leva os MC’s mais bombados do mundo do funk para favelas cariocas e municípios do interior fluminense.

Paz e animação “O sucesso do Conexões Funk se repete em todas as comunidades. Levamos alegria e entretenimento para comunidades que nem sempre têm opções de lazer. A família funkeira comparece em peso e faz uma festa linda, em paz e com muita animação”, enaltece Rômulo Costa, fundador e diretor da Furacão 2000, equipe que reúne uma verdadeira constelação do universo do funk. O empresário, chamado carinhosamente de “Paizão” pela sua legião de fãs, foi um dos 15 homenageados no Prêmio Orilaxé, nos 15 anos do AfroReggae.

des pobres. Com esta série de shows, pudemos nos aproximar de um novo público, sem deixar de lado uma das principais premissas da empresa: a música como meio de integração social”, reitera Jose Paulo David, diretor regional da TIM Rio/ES. A estréia do Conexões Funk, no dia 14 de junho, reuniu mais de 20 mil pessoas no Jardim Gláucia, no município de Belford Roxo (RJ). A avenida principal foi fechada ao trânsito e se transformou num mar de pessoas ávidas para ver seus ídolos. Capitaneado por Rômulo Costa, o evento teve apresentações de Priscila Nocetti e Cia. de Dança, Menor do Chapa, Priscila e as Preparadas, os Hawaianos, Gorila e Preto, Juliana e as Fogosas, Marcio G e MC Bruninha. Para deleite da massa funkeira, cada edição do Conexões Funk é uma verdadeira maratona musical, com cerca de seis horas de duração.

Público dos shows movimenta a economia local

“Numa única noite de Conexões eu faturei mais do que em uma semana de trabalho. Quem dera tivesse um evento desse aqui pelo menos uma vez por mês”, comemorava Rosiely Oliveira, dona de van que vende sanduíches recheados com tudo a que se tem direito, estacionada nas imediações do Jardim Gláucia. De segunda a sexta-feira, a vendedora e seu veículo batem ponto no Largo da Carioca, no centro do Rio. Em Vigário Geral, dia 5 de julho, a equipe Tsunami e os artistas da Furacão tiveram como convidado especial o Pastor Marcos, que subiu ao palco para saudar a platéia e foi calorosamente ovacionado. Do outro lado da cidade, a Zona Sul não ficou de fora do roteiro dos bailes. Dia 9 de agosto, a Quadra da Alegria, no alto do Morro do Cantagalo, em Ipanema, honrou o nome. Moradores da favela e da Zona Sul dividiram, em harmonia e com muita empolgação, cada metro quadrado daquele espaço. O circuito foi encerrado no dia 23 de agosto, no Morro do Borel, na Tijuca.

Além da diversão, o Conexões Funk e o Conexões Urbanas incrementam a economia da região, tamanha quantidade de pessoas que circula na área do show e nas redondezas. O comércio agradece e os ambulantes fazem a festa.

Com patrocínio da TIM e da Lei de ICMS do Governo do Estado e Secretaria de Cultura, o Conexões Funk segue a mesma proposta do Conexões Urbanas, que já levou expoentes da música brasileira a dezenas de favelas: romper as fronteiras invisíveis existentes entre os diversos segmentos da sociedade, proporcionando diversão e cultura a moradores de áreas menos favorecidas. “A TIM é parceira do AfroReggae desde o ano passado e tem muito orgulho de fazer parte de um dos maiores projetos do Brasil, que leva cultura, arte, música e educação a centenas de jovens de comunida-

As integrantes do ‘Bonde Priscila e as Preparadas’, Carla (E), Mariza e Priscila (todas de vermelho), acompanhadas de JB, do AfroReggae, Priscila Nocetti, José Junior e Rômulo Costa foto: Rodrigo Gorozito


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Tekko Rastafári, atual coordenador-adjunto do GCAR, ergue a Medalha Tiradentes, enquanto é aplaudido por José Junior e observado pelo deputado Marcelo Freixo, que presidiu a solenidade, no Plenário Barbosa Lima Sobrinho foto: Rogério Resende

AFROREGGAE RECEBE MEDALHA TIRADENTES

AFROREGGAE RECEBE MEDALHA TIRADENTES No dia 7 de agosto, quem passava pela Praça XV, ao fim de mais um expediente de trabalho, não entendia muito bem o que estava acontecendo ali. Batucada, circo e teatro no meio da rua, em pleno centro da cidade? Aqueles que atrasaram em 20 minutos a volta para casa não se arrependeram. Naquele início de noite, uma pequena multidão se formou no entorno do Palácio Tiradentes, sede da Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj), para assistir às apresentações, simultâneas, do Bloco AfroReggae, Afro Circo e Trupe de Teatro AfroReggae, três grupos artísticos formados por alunos das oficinas socioculturais desenvolvidas nos núcleos da instituição em quatro favelas cariocas. Cerca de 50 artistas tomaram a escadaria e o largo em frente ao Palácio Tiradentes, onde, em seguida, o Grupo Cultural AfroReggae (GCAR) foi agraciado com a Medalha Tiradentes. A indicação partiu do deputado estadual Marcelo Freixo (PSOL),

entusiasta do trabalho desenvolvido pela instituição, como mais uma homenagem às comemorações pelos seus 15 anos. “Essa casa precisa de pessoas com histórias como as de vocês. O AfroReggae é uma necessidade para o Rio de Janeiro e para o Brasil. Não é à toa que o grupo tem parceiros que conjugam os mesmos princípios de direitos garantidos à vida e à dignidade. A entrega é uma homenagem que a própria Medalha faz a essa casa”, discursou Marcelo Freixo, que presidiu a solenidade, no Plenário Barbosa Lima Sobrinho. A Medalha Tiradentes foi entregue a José Junior, um dos fundadores e coordenador-executivo do GCAR. Ao lado dele estava outro fundador, Luis Fernando Lopes, o Tekko Rastafári, atual coordenador-adjunto. Também compuseram a mesa o cineasta Estevão Ciavatta, diretor dos documentários Polícia Mineira e Antídoto, realizados em parceria com o AfroReggae,

e sua mulher, Regina Casé, madrinha do grupo. Na platéia, alunos e professores das oficinas, funcionários e amigos do GCAR dividiram espaço com pessoas que fazem parte desses 15 anos de História: Rômulo Costa, diretor da Furacão 2000; Denise Dora, assessora do Programa de Direitos Humanos da Fundação Ford; Cléia Silveira, coordenadora de Projetos da Federação de Órgãos para Assistência Social e Educacional (FASE); e lideranças comunitárias como William Oliveira, ex-presidente da Associação de Moradores da Rocinha, e Wagner Nicácio, presidente da Associação de Moradores da Grota, uma das 14 favelas que compõem o Complexo do Alemão. Também estiveram presentes o vice-Governador do Estado, Luis Fernando Pezão, e o deputado estadual Chico Alencar (PSOL); José Borba, diretor da TIM; Guilherme Frering, presidente do Instituto Desiderata; e Roberto Chaves, Inspetor da DRFA, da Polícia Civil do Rio de Janeiro.


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A origem da favela Marcos Vinícius Santos Domingos *

Hã? Cuidosculus phyllancanthus? Euforbiáceas? Que palavras são essas? Acho que esse cara está me xingando. Mas... Imagine se eu vou usar esses termos. Ainda não entendeu? Nem eu. Para que essa sopa de letras para descrever favela? Favela, pois é. É dela que estou falando. Ok. Ok. Desculpem-me! Eu não comecei no local certo. Vamos lá! Tudo começou quando, em uma manhã quente de quartafeira, ouvi o cidadão exclamar:

“Ah, faça-me o favor.” Saí. Atravessei a Avenida Passos muito injuriado e ouvi: “Teco-teleco-teco” Ei, eu já tinha ouvido esse som, imprensado de palitos. Um legítimo exemplar do malandro carioca batucava em uma caixa de fósforos. Olhei para ele e me indaguei: esse cara deve ser de qual favela?? Peraí. Favela. Mas por que a associação? Nossa, as coisas começaram a fazer sentido. Resolvi bater um papo com o cara, afinal. Ele já tinha percebido o meu interesse pelo seu som.

“Seu favelado!”

“O que me trouxe até seu som foi uma procura para o termo favela.”

Eu tinha sete anos de idade, mas esse grito acompanhou o meu subconsciente até o momento em que resolvi ir atrás do seu significado.

Conversa vai, conversa vem e expliquei toda a história. O malandro, ao som do samba, me respondeu:

Então tá. Tudo o que eu ouvia dizer era pejorativo demais para ser verdade. Fui mais além. Caí de cara nos pesados, empoeirados e amarelados livros de história. Mas, meu Deus do céu, era difícil. Recorri a professores; e consegui, enfim, chegar ao que poderia ser o início da caminhada para o fim da dúvida. Real Gabinete Português de Leitura, bem fincado na Praça Tiradentes. Tentaram me empurrar goela abaixo essa tal Cuidosculus phyllancanthus.

“Se foi por causa de Canudos, Conselheiro e companhia que a favela assim surgia,isso meu avô já dizia. Mas o que passa batido é um povo que nos morros, muito unido,insiste em mostrar o seu valor. E assim tem vivido. Se árvores ou moradias, se vidas ou filosofias, favela é, quem diria, sinônimo de alegria.” Assim, nesse cantarolar, pude entender aquela exclamação! Ok, poderia ser pejorativo o que ouvi. Mas, e daí? Não preciso mais de definições para o nome favela. Se favela é uma árvore, que assim seja, pois como o povo da favela, de pé nascemos e com o passar dos tempos, de pé permanecemos.

(*) Marcos Vinícius Santos Domingos é instrutor de informática do Centro de Inteligência Coletiva Lorenzo Zanetti, do AfroReggae, em Parada de Lucas



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