Ocupação Mario Pedrosa

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ao lado Mario Pedrosa

em seu apartamento foto Luciano Martins Cemap – Cedem/Unesp*





Coordenação editorial Carlos Costa Edição Duanne Ribeiro William Nunes Conselho editorial Caio Meirelles Aguiar, Laerte Matias Fernandes, Marcos Augusto Gonçalves, Naiade Margonar e Quito Pedrosa Projeto gráfico Estúdio Claraboia Produção editorial Luciana Araripe Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas)

Mario Pedrosa, 1959 foto autoria desconhecida Cemap – Cedem/Unesp*


“É dito que, quando ele [Mario Pedrosa] voltou da França, veio influenciado pelo conceito do ‘franc-parler’ – do falar abertamente, francamente; do debate franco. Ele tinha essa tendência de ser muito franco nas exposições de suas ideias, ao mesmo tempo que isso dava muita abertura para ideias diferentes da dele”, disse Quito Pedrosa, músico, pesquisador e neto de Mario, em uma das gravações de depoimentos para esta edição – a de número 60 – do programa Ocupação Itaú Cultural, que homenageia o crítico de arte, militante político, escritor e intelectual.


De fato, Mario Pedrosa (1900-1981) sempre se expressou de maneira atenta, combativa e generosa sobre as tantas áreas que permearam sua trajetória e sua atuação. Contribuiu significativamente para o universo da arte e o da política, mas, sobretudo, para a compreensão da identidade e do pensamento crítico e social do Brasil. Nesta publicação, convidamos estudiosos para analisar a produção de Mario em cinco eixos centrais. O professor José Castilho Marques Neto discorre sobre a militância política do homenageado, desde a participação no Partido Comunista Brasileiro (PCB) até o engajamento nas lutas sindicais, influenciado pelos pensamentos de Leon Trótski. Em seguida, o artista, curador e pesquisador Marcio Doctors escreve sobre a relação do crítico com artistas e movimentos artísticos, ressaltando o seu espírito revolucionário e modernista. A contribuição para a arquitetura moderna brasileira e a construção de Brasília, temas presentes em artigos principalmente na década de


1950, é abordada pela arquiteta e urbanista Sabrina Fontenele. A pesquisadora Luiza Mader analisa o pensamento museológico de Mario, sustentado por suas gestões e propostas de museus como espaços de cultura e educação. Por fim, a curadora Pollyana Quintella sintetiza a atuação do crítico de arte, um dos mais importantes do século XX. Quito e Marcos Augusto Gonçalves – consultor e curador, respectivamente, da Ocupação Mario Pedrosa – também assinam textos que evidenciam a trajetória singular do homenageado. Mario, cidadão do mundo e irrequieto, mobilizou a reflexão sobre a arte e a política no Brasil e toda uma geração de grandes artistas. Sua produção teórica e crítica, ainda hoje, é objeto de pesquisas e estudos que contribuem para o debate nacional. Acesse outros conteúdos sobre Mario Pedrosa na Enciclopédia Itaú Cultural (enciclopedia. itaucultural.org.br) e no site do programa Ocupação (itaucultural.org.br/ocupacao). Boa leitura!

Itaú Cultural


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Uma trajetória singular Quito Pedrosa

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Uma vida indômita José Castilho Marques Neto

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O desafio de Pedrosa ou a radicalidade do real Marcio Doctors

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Mario móbile Marcos Augusto Gonçalves

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Arquiteturas e modernidades: da busca pela origem à utopia de Brasília Sabrina Fontenele

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Museus como espaços de cultura e educação Luiza Mader

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Crítica em revolução permanente Pollyana Quintella

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Ficha técnica



Uma trajetória singular

Quito Pedrosa


QUITO PEDROSA UMA TRAJETÓRIA SINGULAR

Mario aos 13 anos, antes de sua partida para a Suíça, 1913 foto autoria desconhecida Cemap – Cedem/Unesp*


O desafio que tenho pela frente é resumir a história de meu avô, Mario Pedrosa, em poucas linhas. Um homem singular, mas de interesses plurais. Ligado afetivamente às coisas de sua terra, mas com uma curiosidade intelectual que não se restringia às fronteiras convencionais. Um internacionalista que lutou em várias frentes – políticas e culturais – e que fez amigos em todos os países por onde passou. Meu avô nasceu em 25 de abril de 1900, num começo de século em um mundo que se transformava numa velocidade nunca vista. Pode-se dizer que nasceu nos escombros de um passado colonial e na construção arquetípica desse passado: um engenho de cana no estado de Pernambuco. Seu pai, Pedro, um advogado e político da República Velha, havia nascido sob o signo da pobreza. Sua mãe, Antonia, era prima de seu pai, mas de um ramo mais abastado da família.1 Mario vive a infância entre o engenho e a capital da Paraíba. Estuda em colégios católicos e, por demonstrar um comportamento irrequieto, é mandado à Bélgica aos 13 anos para estudar em um colégio jesuíta. A intenção é discipliná-lo, mas a Primeira Guerra Mundial o impede de chegar ao destino combinado,

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1. Nota da edição: Este texto e o artigo de José Castilho Marques Neto descrevem a situação social da ascendência de Mario Pedrosa de forma complementar. Seu pai, como ressaltado aqui, tinha origem humilde; já sua mãe vinha de uma condição mais abastada, o que é indicado no artigo de José Castilho.


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tendo ele partido para a Suíça, onde o matriculam num instituto de orientação protestante. Esse é um exemplo das mudanças de rumo que acabarão por desviar Mario do percurso natural ao qual parecia estar destinado. Em sua volta da Europa, aos 16 anos, ele vai para o Rio de Janeiro, onde seu pai ocupa o cargo de senador pela Paraíba. Com a experiência adquirida por Mario, seu temperamento irrequieto, em vez de ser mitigado, se acentua, e, antes do ingresso na faculdade, ele frequenta os ambientes modernos da cidade, como cafés, tabernas e as galerias do Theatro Municipal. Sua grande paixão daqueles tempos é a música, e entre seus colegas estão o escritor Murilo Mendes e os pintores Di Cavalcanti e Ismael Nery. Aos 18, ingressa na faculdade de direito e começa a se interessar pelas questões sociais e pelo marxismo. Em torno do professor Castro Rebello, ele se junta a um grupo do qual faz parte o jornalista Lívio Xavier, que será um interlocutor constante e amigo de toda a vida. É Lívio quem o leva à casa de Arinda Houston,2 onde se reúne a nata dos compositores e dos músicos modernos, como Heitor Villa-Lobos, Heckel

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2. Ou Arinda Malta de Galdo, nome que ela voltou a usar após se separar do marido. Optamos por Arinda Houston porque é como era conhecida por autores modernistas, como Mário de Andrade.


Tavares e uma das filhas de Arinda, Elsie Houston, cantora e pesquisadora que será uma ligação importante entre Mario e círculos intelectuais e artísticos europeus. Uma das irmãs de Elsie era Mary, minha avó. O espírito moderno que reinava naqueles anos era fértil em ideias e libertário quanto ao comportamento. Aqueles jovens estavam empenhados na construção de um novo país, de um novo idioma escrito e de novas formas musicais ou plásticas, que rompessem com o academicismo e com uma submissão aos ideais neoclássicos europeus. Ainda que pareça uma contradição, a fórmula da ruptura vinha da mesma Europa, onde artistas e intelectuais descobriam a arte e a cultura de povos dos quatro continentes, o que transformou a pintura, a escultura e a música que faziam – e, com isso, o olhar sobre a realidade. Ao mesmo tempo, a necessidade de transformar essa realidade despertava o desejo de revolução e de busca por utopias. É esse sentimento que leva Mario a entrar, em 1925, no Partido Comunista Brasileiro (PCB), que havia sido fundado no Brasil apenas três anos antes.

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O casal Mary Houston e Mario Pedrosa em Mumbai, na Índia, 1959 foto autoria desconhecida Cemap – Cedem/Unesp*

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Nos anos seguintes, ele se mudaria para São Paulo e se dedicaria à militância e ao trabalho no jornal Diário da Noite, fazendo resenhas literárias. É ali que se torna próximo do escritor Mário de Andrade. Volta também à Paraíba e colabora no jornal A União. Em 1927, a repressão ao comunismo aumenta, e o partido decide enviá-lo para estudar na Escola Leninista de Moscou. Quando chega a Berlim, Mario adoece. Impedido de seguir para a União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), passa a atuar no Partido Comunista Alemão e entra em contato com as teses da Oposição de Esquerda – organização liderada pelo revolucionário Leon Trótski que propunha caminhos diferentes daquele da URSS para o comunismo internacional. As divergências de Mario com os rumos do comunismo, já manifestadas em cartas a Lívio Xavier, fazem com que ele decida não seguir para Moscou. Permanece então, nos dois anos seguintes, entre Berlim e Paris. Na capital francesa, Mario comparece ao casamento de Elsie Houston com o poeta Benjamin Péret, e por meio dele conhece um grupo de artistas surrealistas, tornando-se amigo de André Breton e Yves Tanguy, entre outros nomes.

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Nesses anos finais da década de 1920, ele escreve artigos sobre Villa-Lobos e Mário de Andrade, muitos outros de cunho político e, com Lívio Xavier, um ensaio que será considerado a primeira análise marxista da formação social do Brasil, o “Esboço de análise da situação brasileira”. A volta ao país acontece às vésperas da chamada Revolução de 1930, pela qual Getúlio Vargas ascendeu ao poder, e os anos seguintes são de intensa militância ao lado dos sindicatos. Mario e seu grupo acabam sendo expulsos do PCB e criam a primeira formação trotskista do Brasil. Com o crescimento do integralismo, movimento inspirado no fascismo, ele se engaja na criação da Frente Única Antifascista (FUA) e dirige o jornal do grupo, O Homem Livre. Nele escreve textos diversos, tratando de cinema e de política. É nesse espaço que publica o que se considera sua estreia na crítica de arte: “As tendências sociais da arte de Käthe Kollwitz”, de 1934. No mesmo ano, a FUA participa de um confronto direto com os integralistas nas ruas de São Paulo, no episódio conhecido como a Batalha da Praça da Sé, e Mario é baleado.

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Um homem singular, mas de interesses plurais. Ligado afetivamente às coisas de sua terra, mas com uma curiosidade intelectual que não se restringia às fronteiras convencionais.

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Durante esses anos, ocorrem as primeiras prisões de Mario e Mary, que a essa altura moravam e militavam juntos. Em 1936, nasce a única filha do casal, Vera, minha mãe. Nos anos seguintes, a repressão aumenta brutalmente, levando meu avô a viver na clandestinidade. Após a imposição da ditadura do Estado Novo, a situação fica inviável. Mario vai à França para o congresso de fundação da Quarta Internacional, organização que congrega os movimentos trotskistas de várias partes do mundo. Chega a Paris no dia seguinte ao assassinato de Leon Sedov, filho de Trótski, por parte de agentes stalinistas. No Brasil, minha avó Mary é presa e passará os próximos sete meses na casa de detenção, junto com outras presas políticas do Estado Novo, como a escritora e militante Patrícia Rehder Galvão, a Pagu, e a psiquiatra Nise da Silveira. É um período de grande sofrimento para a família. Por fim, minha avó é solta com a condição de que deixe o país. Ela e minha mãe seguem, então, de navio para os Estados Unidos, onde meu avô já se encontrava, junto com a direção da Quarta Internacional, que havia deixado Paris diante do avanço das tropas nazistas. Os sete anos seguintes serão de exílio e

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dificuldades, enquanto o mundo enfrenta os horrores da Segunda Guerra Mundial. O exílio de meus avós e de minha mãe marcará suas vidas. No seio do movimento trotskista há divergências, e, após um embate com o próprio Trótski, meu avô é afastado da direção da Quarta Internacional. Ainda na tentativa de fazer valer as teses que defende, ele empreende uma volta por terra ao Brasil, percorrendo diversos países sul-americanos em encontros com líderes trotskistas, mas, assim que chega, é mais uma vez preso e deportado. De volta aos Estados Unidos, Mario começa a escrever artigos sobre arte e colabora em diversas publicações. Conhece o escultor norte-americano Alexander Calder, de quem se torna amigo. Convivendo com intelectuais e artistas, muitos deles fugidos do nazismo na Europa, ele se dedica também a aprofundar os estudos de filosofia, história e psicologia da arte que informalmente havia iniciado na Universidade de Berlim no fim da década de 1920. A família mora um tempo em Nova York, outro em Washington.

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Elsie Houston, também radicada nos Estados Unidos, realiza recitais em lugares como o Le Ruban Bleu e o Rainbow Room, frequentados por artistas e músicos da vanguarda nova-iorquina. Ela se suicidaria no ano de 1943, e esse fato, além de ter sido profundamente sofrido para os meus avós, parece encerrar uma época marcada por utopias e revoluções, pela luta pela construção de um mundo mais justo. Elsie, que havia sido considerada uma das mais importantes cantoras e musicistas brasileiras das décadas de 1920 e 1930, acabaria esquecida pela história, mas a força de sua obra e de sua personalidade permite crer que ainda há de ser recuperada a sua memória. A guerra acaba e promove-se uma anistia política que permite a volta da minha família para o Brasil.Começa, então, um período em que Mario se dedica plenamente a dois projetos. De um lado, ele colabora na criação do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) e do de São Paulo (MAM/SP); de outro, engaja-se na formação de uma nova via política de esquerda, que resultará na fundação do Partido Socialista. Ele também cria e dirige o semanário Vanguarda Socialista, que será importante para a formação

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QUITO PEDROSA


da esquerda para a direita

Mary Houston, s.d. foto autoria desconhecida Cemap – Cedem/Unesp* Passaporte de Mario Pedrosa, década de 1950 coleção Fundação Biblioteca Nacional

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Destaque de uma foto em que Mario Pedrosa está com a família, 1935 foto autoria desconhecida Cemap – Cedem/Unesp*


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de uma geração de intelectuais brasileiros. No campo das artes, cria a coluna de artes plásticas do Correio da Manhã. A segunda metade da década de 1940 é para Mario a consolidação de sua atuação como crítico de arte. Sua defesa das artes abstrata e concreta será importante para o desenvolvimento e o reconhecimento de artistas e movimentos que hoje são considerados a mais importante contribuição brasileira para o cenário internacional das artes. Ao mesmo tempo, ele escreve ensaios e teses e faz conferências sobre vários temas. Algumas delas são dedicadas ao reconhecimento da importância de trabalhos como o de Nise da Silveira e do artista visual Almir Mavignier à frente do ateliê de artes do Centro Psiquiátrico Pedro II, em Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro; assim como do esforço de ampliação do papel do museu realizado pelo também artista visual Ivan Serpa por meio de cursos para crianças. Como membro fundador da Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica), Mario ainda atua no cenário internacional e participa da

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organização de algumas das mais importantes edições da Bienal de São Paulo. Sua interlocução constante e franca com artistas e intelectuais acaba por transformar seu apartamento em Ipanema, no Rio de Janeiro, em um ponto de encontro e reuniões. Os diferentes grupos se revezam em discussões e debates acalorados. Seus artigos estimulam a experimentação, mas também o estudo de autores até então pouco conhecidos pelos leitores brasileiros. Sua atuação promove uma interação maior de artistas e intelectuais brasileiros com o cenário mundial e com seus congêneres estrangeiros no país. A efervescência cultural no Brasil do fim da década de 1950 e começo dos anos 1960 é, como ocorre de tempos em tempos, interrompida pelo golpe civil-militar de 1964. Após o golpe, Mario se dedica a escrever um ensaio extenso, que acabaria sendo publicado em dois livros separados: A opção brasileira e A opção imperialista – densa obra política que merece ser revisitada, tendo em vista que ainda não superamos as ocorrências cíclicas de golpes que impedem nosso crescimento e um desenvolvimento independente.

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Não demorou para que o golpe redundasse na perseguição do pensamento de esquerda e da liberdade política. Novamente, meu avô é processado e obrigado a deixar o país. Desta vez, seu exílio começa no Chile, onde atua na criação de um espaço que se tornará o Museu da Solidariedade. Em 1973, no entanto, o golpe do general Augusto Pinochet o obriga a se esconder e a buscar asilo na embaixada do México. Aos 73 anos e com a saúde um tanto abalada, Mario enfrenta outro périplo até chegar a Paris, onde permanece até a anistia política de 1977. De volta ao Brasil, ele terá dois motivos para continuar sua luta tanto no campo político quanto no campo cultural: a criação do Partido dos Trabalhadores (PT), ao qual se dedicou com entusiasmo e renovadas esperanças; e a preparação de uma grande exposição sobre arte indígena, concebida conjuntamente com a artista visual Lygia Pape para o MAM Rio. Já há algum tempo meu avô sentia o esgotamento do ciclo da arte moderna e acreditava que a reflexão sobre os povos originários nos mostraria como encontrar um caminho próprio, independente. Um incêndio no MAM Rio em 1978, às vésperas da exposição, impediu sua realização.

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Mario então se junta aos esforços de reconstrução e propõe a criação do Museu das Origens, ideia que ainda hoje tem o poder de revolucionar as estruturas de nossas instituições culturais. Mario e Mary, voltando ao apartamento em Ipanema, continuam a receber amigos para conversas sobre assuntos variados. Ele permanece, até o fim da vida, dedicado às leituras e aos textos. Ela finaliza um trabalho de 20 anos sobre o livro Finnegans wake, de James Joyce. Meu avô morreu em outubro de 1981, no Rio de Janeiro; minha avó Mary, em 1984, em Paris. A admiração e a afetividade por Mario crescem a cada dia e toda vez que alguém tem a oportunidade de conhecer sua vida e sua obra.

Quito Pedrosa é compositor, saxofonista e violonista, e desenvolve trabalhos em artes plásticas, fotografia e poesia. Organizou a cronologia sobre seu avô para as publicações Mario Pedrosa primary documents, editada pelo Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), e De la naturaleza afectiva de la forma, do Museu Nacional Centro de Arte Reina Sofia, em Madri, na Espanha. Colabora também em diversas outras iniciativas relacionadas ao legado de Mario Pedrosa.

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Mario Pedrosa, seu neto Quito e sua filha, Vera foto Roberto Krause acervo família Pedrosa


Uma indômita

vida

José Castilho Marques Neto


JOSÉ CASTILHO UMA VIDA INDÔMITA

Mario Pedrosa em foto para passaporte foto autoria desconhecida Cemap – Cedem/Unesp*


1. O homem, o militante, o crítico de arte “Mas o otimismo necessário, a limitação intelectual, eis onde não posso chegar.” Assim Mario Pedrosa escreveu ao amigo Lívio Barreto Xavier em carta de 1925,3 após dar início à sua longa militância política e socialista, que só terminou com a sua morte, em 1981. Aos 25 anos, Pedrosa, por ser um intelectual, sentia-se na obrigação moral de engajar-se na militância partidária revolucionária. Ao mesmo tempo, o partido que o abrigaria para lutar pela revolução socialista impunha regras rígidas de submissão completa às decisões da maioria ou da direção política. Somava-se a isso o imperativo revolucionário do otimismo permanente, pela ideia do triunfo inevitável da revolução dos povos. Digladiava com esse quadro complexo o jovem militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), fundado apenas três anos antes, em 1922, inspirado no triunfante Partido Bolchevique – líder da igualmente jovem União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), nascida naquele mesmo ano como fruto da guerra civil que se

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3. Para referência, ver: MARQUES NETO, J. C. Solidão revolucionária – Mário Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2022. p. 253.


JOSÉ CASTILHO

instaurou em 1917 após a Revolução Bolchevique, também denominada Revolução Russa ou Revolução Soviética. Mario Pedrosa vivenciou, como toda a sua geração, o nascimento e a infância do sistema político que revolucionou a própria política e polarizou todo o século XX.

UMA VIDA INDÔMITA

Dividido entre o entusiasmo militante – inspirado na revolução que derrubou uma das mais potentes e cruéis monarquias do planeta – e sua vibrante e avassaladora capacidade crítica e de formulação intelectual, Pedrosa jamais aquietou-se no conforto de posições políticas oportunistas. Ao contrário, até o fim de sua vida, sempre optou pela agudeza da crítica e pela permanência de sua inteligência autônoma, inquieta e criativa a serviço do que entendia como mais justo e certeiro para o triunfo das ideias socialistas e a emancipação dos trabalhadores. A integridade pessoal com que atuou na política estendeu-se às elaborações como crítico de arte, que abriram novas perspectivas de análise das artes brasileira e internacional. Sua estreia

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como crítico foi em 1933, em uma célebre conferência que realizou sobre a artista plástica alemã Käthe Kollwitz, que trazia para os seus desenhos, gravuras e quadros a condição humana degradante em que viviam as classes mais oprimidas na primeira metade do século XX. Há de se notar que, navegando pela crítica das artes desde os anos 1930, Pedrosa também ficou distante da reverência obrigatória naquele período de avaliar a obra de arte exclusivamente por sua dimensão social, como determinava a visão de um marxismo primário ditado pelo chamado Realismo Socialista. Estendendo seu olhar para além do conteúdo das obras, ele as analisava também pelos problemas da forma, avançando na psicologia da gestalt, uma teoria sobre a percepção humana. Em 1949, ele redigiu uma tese, reconhecida tanto no Brasil quanto no exterior, sobre a análise gestáltica na arte, denominada “Da natureza afetiva da forma na obra de arte”, praticamente inédita até 1979, quando foi publicada, junto com outros escritos, no livro Arte, forma e personalidade, da extinta editora Kairós.

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JOSÉ CASTILHO UMA VIDA INDÔMITA

Se Pedrosa foi pioneiro na perspectiva da política de esquerda no Brasil, ele também o foi, com seu olhar aguçado e sua sólida argumentação teórica, ao refletir sobre as artes. Detectada pelos estudiosos, sua visão inovadora, entre outras qualidades, pela originalidade de seu método crítico, que trabalhava sob a óptica das tendências artísticas internacionais e da realidade local, marcou e ainda marca a crítica de arte brasileira e internacional, sendo uma referência inquestionável ainda nos nossos dias. Com toda essa expressiva contribuição para a política e a crítica de arte, Pedrosa se afirmou como um dos ícones da inteligência brasileira, e uma espécie de farol para uma gama imensa de intelectuais, artistas e políticos. Nos dizeres do sociólogo Luciano Martins, que também foi seu genro e conviveu com ele durante 30 anos: “Mario Pedrosa não era apenas uma pessoa. Era também um fenômeno intelectual e quase uma instituição”.4 2. Uma vida em movimento Vale percorrer, mesmo apressadamente, os principais momentos da vida de Pedrosa. Convido o eventual leitor a fazer um exercício de deslocamento

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4. Ver: MARTINS, Luciano. A utopia como modo de vida – fragmentos de lembrança de Mario Pedrosa. In: MARQUES NETO, J. C. Mario Pedrosa e o Brasil. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2001. Disponível em: bit.ly/mariopedrosaeobrasil. Acesso em: 27 mar. 2023.


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Mario Pedrosa, Lélia Abramo e Sérgio Buarque de Holanda no Encontro nacional de fundação do Partido dos Trabalhadores, no Colégio Sion, 1980 foto Juca Martins/OLHAR IMAGEM


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Dividido entre o entusiasmo militante – inspirado na revolução que derrubou uma das mais potentes e cruéis monarquias do planeta – e sua vibrante e avassaladora capacidade crítica e de formulação intelectual, Pedrosa jamais aquietou-se no conforto de posições políticas oportunistas.

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no tempo ao acompanhar essa rica e movimentada trajetória, lembrando que, nascido em 1900, nosso personagem não conviveu com a internet e a informática, com as facilidades da comunicação, tendo visto surgir somente os aviões comerciais a jato, a partir de 1958. Se fizermos esse exercício, entenderemos melhor a força e a determinação desse viajante internacionalista contumaz e com uma incrível capacidade agregadora e comunicativa em uma era de poucos recursos tecnológicos. Mario Xavier de Andrade Pedrosa – assim era seu nome completo – nasceu no engenho Jussara, no distrito de Cruangi, em Timbaúba, no estado de Pernambuco. Veio de uma família abastada,5 sendo que seu pai, Pedro da Cunha Pedrosa, advogado, foi senador da República e ministro do Tribunal de Contas da União (TCU). Em 1913, a família o mandou à Suíça para estudar no Institut Quiche, em Château de Vidy, Lausanne, onde ficou até 1916, quando retornou ao Brasil. Em 1919, ele ingressou na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, permanecendo até 1923. Em 1925, filiou-se ao PCB e seguiu para a Paraíba,

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5. Nota da edição: Como apontamos também no texto de Quito Pedrosa, esta é uma das formas de descrever a origem social de Mario Pedrosa, cuja mãe era mais abastada e o pai mais humilde.


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onde foi nomeado agente fiscal. Em 1927, deixou o estado e mudou-se para São Paulo, assumindo a responsabilidade pela seção do partido que cuidava da assistência material e jurídica aos comunistas presos ou perseguidos politicamente, o Socorro Vermelho. Na mesma época, trabalhou no jornal Diário da Noite. Ainda em 1927, ele seguiu para Moscou, onde deveria frequentar, por designação do PCB, a Escola Internacional Lênin, instituição da Internacional Comunista voltada para a formação dos quadros militantes que liderariam a revolução socialista internacional. Em Berlim a caminho de Moscou, porém, Pedrosa contraiu uma infecção, e esse fato, que provocou um breve adiamento em sua viagem, aliado a outras circunstâncias e reflexões políticas que já vinha desenvolvendo no Brasil, fez com que ele permanecesse na capital alemã, onde frequentou cursos de sociologia e filosofia, além de exercer atividades militantes no Partido Comunista Alemão. Nesse período, viajou constantemente a Paris, estreitando relações com os militantes da Oposição de Esquerda – tendência que, contrapondo-se ao

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Mario Pedrosa, Fernando Henrique Cardoso e Luiz Inácio Lula da Silva em reunião para a criação do Partido dos Trabalhadores (PT) no Colégio Sion, 1979 foto Wagner Avancini/N IMAGENS


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stalinismo, afirmava direções alternativas para o comunismo –, principalmente com Pierre Naville, então diretor da revista La Lutte de Classes, que substituíra a Clarté, publicação largamente utilizada por Pedrosa em sua formação. Ele também manteve relações com os surrealistas franceses, em especial Benjamin Péret, que se casou, em 1928, com Elsie Houston, amiga de Pedrosa que se tornaria, alguns anos depois, sua cunhada, após o casamento dele com Mary Houston. É nesse período que se percebe a consolidação de uma perspectiva oposicionista em relação à direção do PCB e às diretrizes da Internacional Comunista, afirmando análises já esboçadas por Pedrosa e por seu grupo político. Ele retornou ao Brasil em julho de 1929 e liderou a organização do primeiro agrupamento oposicionista de esquerda no país, o Grupo Comunista Lenine (GCL), fundado em 1930, que tinha como porta-voz o jornal A Luta de Classe. Até 1940, Pedrosa engajou-se nas lutas sindicais e políticas lideradas pelos partidários de Trótski, sendo protagonista da seção brasileira e do cenário internacional. Foi um dos fundadores da

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Liga Comunista Internacionalista (LCI), em 1931, e do Partido Operário Leninista (POL), em 1936. Em 1938, tornou-se o representante das seções latino-americanas na conferência que deu origem à Quarta Internacional, organização que liderava a luta internacionalista dos comunistas que se opunham à política de Josef Stálin na URSS e sua dominação sobre os partidos comunistas nacionais. Nessa conferência, ele foi designado responsável pela América Latina no Comitê Executivo, sediado em Nova York, e acabou se envolvendo na discussão sobre a defesa incondicional da URSS. Imposta por Trótski, essa palavra de ordem levou à crise a seção americana da Quarta Internacional e se acirrou após o pacto Hitler-Stálin e a invasão da Finlândia. Ao lado de Max Shactman, dirigente trotskista norte-americano, Mario redigiu um documento em que fazia restrições à linha de Trótski. Em 1940, este reorganizou o secretariado da Quarta Internacional, e Pedrosa foi excluído. De volta ao Brasil, acabou sendo preso e expulso do país juntamente com Mary Houston. Refugiou-se em Washington e Nova York, onde trabalhou,

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respectivamente, na União Panamericana e no Escritório do Coordenador de Negócios Interamericanos [Office of the Coordinator of Inter-American Affairs (Ociaa)]. Em 1945, quando pôde retornar ao Brasil, fundou o semanário Vanguarda Socialista, que, com o surgimento do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e a filiação de Mario Pedrosa e de seus companheiros, foi entregue à direção do partido. Em 1946, sua atividade política se tornou mais intensa e se somou, até 1966, a inúmeras viagens internacionais para organizar museus e exposições artísticas. Nesse período, ele também lecionou na Faculdade de Arquitetura da Universidade do Brasil – hoje Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) – e no Colégio Pedro II no Rio de Janeiro, além de trabalhar como jornalista no Correio da Manhã e no Jornal do Brasil, entre outros periódicos. Em 1964, Pedrosa escreveu dois livros de política, A opção imperialista e A opção brasileira, publicados em 1966, quando se candidatou a deputado federal pelo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) do Rio de Janeiro. Em 1968, enquanto participava da

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missa pelo estudante assassinado pela ditadura no Restaurante Calabouço, sofreu uma isquemia, que o afastou de qualquer atividade por um breve período. Em 1970, foi processado, com mais oito companheiros, sob a acusação de difamar o Brasil no exterior com denúncias de torturas e de violação de direitos humanos. Asilado na embaixada do Chile durante três meses, ele passou a viver nesse país na época do governo socialista de Salvador Allende, que o incumbiu de organizar o Museu da Solidariedade, com obras de grandes artistas internacionais. Com o golpe militar que derrubou Allende, Pedrosa se refugiou no México e em seguida foi a Paris, onde permaneceu por quatro anos e escreveu mais um livro de política: A crise mundial do imperialismo e Rosa Luxemburgo. No Brasil, na época, foi publicada uma coletânea de seus artigos intitulada Mundo, homem, arte em crise. Em 1977, ele retornou ao país e foi julgado na Auditoria da Marinha, acabando absolvido por unanimidade. Em 1979, sua tese pioneira sobre a relação entre a gestalt e a arte foi publicada em Arte, forma e personalidade, como já indicamos.

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UMA VIDA INDÔMITA JOSÉ CASTILHO


Encontro nacional de fundação do Partido dos Trabalhadores, no Colégio Sion, 1980 foto Juca Martins/OLHAR IMAGEM


QUITO PEDROSA UMA TRAJETÓRIA SINGULAR

Em 1980, Pedrosa publicou um opúsculo com sua famosa “Carta aberta a um líder operário”, dirigida a Luiz Inácio Lula da Silva. Ele também colaborou na criação do Partido dos Trabalhadores (PT), tendo assinado a ficha de filiação número 1. Morreu em 5 de novembro de 1981, prestigiado internacionalmente como um dos maiores críticos de arte e ativistas políticos do Brasil. Sua última atividade política, celebrada na criação do PT, o marcou profundamente, porque significava uma síntese daquilo pelo que ele esperou e lutou toda a vida, a construção de um partido das classes trabalhadoras erguido por elas mesmas. A Luciano Martins ele confessou: “Danei-me de chorar”. Pedrosa foi, de fato, um ser humano que, compreendendo as iniquidades do mundo, lutou para transformá-lo.

José Castilho Marques Neto é doutor em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP) e docente da Universidade Estadual Paulista (Unesp). É pesquisador, autor, editor, gestor público e consultor internacional nas áreas cultural e educacional. Publicou, entre outras obras, o livro Solidão revolucionária – Mário Pedrosa e as origens do trotskismo no Brasil (2022).

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de

O desafio

Pedrosa ou

radicalidade

a do real

Marcio Doctors


O DESAFIO DE PEDROSA OU A RADICALIDADE DO REAL MARCIO DOCTORS


Mario Pedrosa nos desafia. Por que nos desafia? Por ter se transformado numa referência para pensarmos estética e política; e, mais do que isso, ele nos ofereceu o pensamento da radicalidade do real. Mas por que isso seria um desafio? Porque, graças às suas convicções, ele nunca permitiu que seu pensamento se cristalizasse e se transformasse em algo dogmático; ao contrário, produziu um pensamento em aberto, colocou-se no lugar da hiância – isto é, no intervalo entre o que não existia ainda e o que estava prestes a existir –, sempre atento à realidade, sem nunca deixar de levá-la em consideração; a radicalidade do real foi seu leme. Hoje, somos surpreendidos pelo que ele percebeu, indicou e deixou em aberto para que fosse preenchido pelo acontecimento. O desafio está em como manter a mesma lucidez de análise, a maneira atenta, generosa e sem concessões ou preconceitos de ver a arte e a vida. O desafio está em como manter a radicalidade do real. Podemos arriscar um roteiro – lembrando sempre o quanto isso é limitado e circunstancial. Seu pensamento se sustenta em três pilares: o marxismo, a gestalt e a arte moderna. Pedrosa

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ao lado Mario Pedrosa

durante fala ao público, 1963 acervo do jornal O Estado

de S. Paulo


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evitou os cânones pasteurizados desses pensamentos e se colocou na radicalidade de seus fundamentos; daí suas convicções. Dessa maneira, produziu com o pensamento de um o deslocamento do eixo do outro. Segundo o jornalista Edmundo Moniz, seu amigo da vida toda, em “A personalidade de Mário Pedrosa”, publicado no catálogo Mário Pedrosa: arte, revolução, reflexão (1991), “o fio condutor de sua obra é sempre o da revolução que deve substituir o mundo capitalista pelo mundo socialista. O político e o crítico de arte têm a mesma finalidade, o mesmo intento de provocar as profundas renovações que a história exige e determinará de maneira inevitável”. Mario Pedrosa era um revolucionário, e tanto o marxismo quanto a arte moderna representavam, para ele, uma revolução espiritual. Deixemos os clichês de lado, não precisamos repetir que Pedrosa não era panfletário, mas é importante esclarecer e estabelecer uma diferença: não era panfletário em arte porque, para ele, o que se estava vivendo na primeira metade do século XX

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era uma revolução espiritual da maior importância, que traria para a superfície da realidade da vida o compromisso com a liberdade, com o novo e com a construção de uma sociedade mais justa e generosa. A arte moderna encaixa-se nesse projeto por dar expressão a uma outra sensibilidade, capaz de reinventar a forma e de propor uma nova maneira de expressar a liberdade e ver a realidade. A arte moderna rompeu com os cânones da perspectiva central naturalista clássica, pondo em questão as belas-artes e cinco séculos de domínio da ideia de representação da realidade externa por verossimilhança, inaugurada pela Renascença. A extensão desse fato vai além das conquistas técnicas, e Mario Pedrosa destaca, no seu texto “Panorama da pintura moderna”, publicado na coletânea Mário Pedrosa. Arte: ensaios críticos (2015), que a revolução é sobretudo de ordem espiritual. Vejam a atualidade de seu pensamento ao escrever sobre o pintor Paul Gauguin: [...] essa aproximação não é só técnica, mas sobretudo de ordem espiritual, sendo ele talvez o primeiro grande europeu para quem a arte dos

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Graças às suas convicções, ele nunca permitiu que seu pensamento se cristalizasse e se transformasse em algo dogmático; ao contrário, produziu um pensamento em aberto, colocou-se no intervalo entre o que não existia ainda e o que estava prestes a existir, sempre atento à realidade.

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povos exóticos, primários não é mera curiosidade, mas tão criadora quanto a dele, regida por uma necessidade plástica e espiritual tão autêntica e alta quanto a ocidental. Aliás, diga-se logo, de passagem que Gauguin revela nessa atitude uma das características mais profundas e permanentes de sua e, nesse sentido, igualmente de nossa época: o contato espiritual direto pela primeira vez na história humana de todas as culturas, passadas e presentes, pré-históricas ou contemporâneas, no tempo e no espaço. As consequências dessa interpenetração de culturas, ainda não acabaram de revelar-se em todo o seu desenvolvimento. Não se pode, entretanto, compreender a arte moderna sem o fato bem presente no espírito.

Ao destacar que uma das grandes contribuições desse momento foi considerar que as diferentes culturas visuais têm as mesmas necessidades plásticas e espirituais que a arte ocidental, Pedrosa revela a extensão da quebra de um paradigma eurocêntrico e a importância de criar espaço para as diferentes manifestações expressivas; para a manifestação do outro. E não só das diferenças expressivas entre culturas

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distintas, mas também entre diferentes indivíduos de uma mesma sociedade. Lembremo-nos de sua adesão às ideias da doutora Nise da Silveira e aos artistas do antigo hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro – sua contribuição foi fundamental para que a elite cultural da época prestasse atenção nas obras de Raphael Domingues, Emygdio de Barros, Fernando Diniz, Carlos Pertuis e Adelina Gomes, entre outros nomes, como artistas da maior importância em nosso Modernismo; e influenciou o nosso olhar para que pudéssemos, mais tarde, absorver a fantástica contribuição para a arte contemporânea de um Arthur Bispo do Rosario. Recordemos também a exposição Alegria de viver, alegria de criar, que Pedrosa desenvolveu com a artista visual Lygia Pape para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio), sobre as manifestações culturais dos diferentes povos originários do território denominado Brasil. Ou, ainda, como resposta ao incêndio sofrido pelo MAM Rio em 1978, a proposta do Museu das Origens, que formaria uma rede de museus composta de cinco núcleos: arte indígena, arte negra, arte popular, arte das imagens do inconsciente e manifestações

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contemporâneas. Com o Museu das Origens, Pedrosa traz à superfície da cena da arte o pensamento da arte antropológica, que hoje tem grande aderência nas políticas culturais de museus e instituições, no mercado de arte e na vida das pessoas. O que podemos apreender nessa rápida linha do tempo é a convicção de Pedrosa em relação às conquistas formais e espirituais da arte moderna, para além dos artistas internacionais consagrados, com os quais conviveu e estabeleceu uma forte conexão – Joan Miró, Alexander Calder e Giorgio Morandi, entre outros que, de certa maneira, se inserem em uma continuidade da arte ocidental. O que o pensamento de Pedrosa traz de inovador é aceitar radicalmente a opção de Gauguin, deslocando o eixo da arte da Europa Ocidental para os países ditos periféricos; no caso, entre eles, o Brasil. Apesar de hoje isso estar como que naturalizado, é importante lembrar que esse passo fundamental foi dado por Pedrosa, ao escrever, em 1975, durante seu exílio da ditadura militar, o “Discurso aos Tupiniquins ou Nambás” –

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Mario Pedrosa e Nise da Silveira no lançamento de livro da Coleção museus, da Funarte, no Museu Nacional de Belas Artes, 1980 coleção Museu de Imagens do Inconsciente



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publicado na coletânea citada –, em que propõe o deslocamento do eixo da arte ocidental para [...] países como os nossos, que não chegam esgotados, ainda que oprimidos e subdesenvolvidos, ao nível da história contemporânea, mas que flutuam por sua situação necessária sobre a linha do meridiano maior ou francamente mais abaixo dela, quando se diz que sua arte é primitiva ou popular vale tanto quanto dizer que é futurista.

A arte moderna indicou a Mario Pedrosa a riqueza e a importância das diferentes expressões formais de outras civilizações, mas a maneira de desdobrar essa conquista se deve a uma equação muito particular de como ele as filtrou. Recuemos um pouco: a arte moderna pode ser definida como uma afirmação dos elementos eminentemente plásticos de uma obra de arte, isto é, o artista descobre que o quadro não é mais para ele uma transposição artificial da realidade externa, é um universo à parte, com seu plano imaginário próprio, alheio, portanto à coordenação externa da perspectiva

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linear com seu ponto de fuga único. Mas se o objeto para ele não vale por sua realidade natural, sua colocação no espaço externo, vale, contudo, por uma nova qualidade concreta que adquire no quadro, a realidade plástica.

Essa consideração em “Forma e personalidade”, artigo publicado em Arte, forma e personalidade (1979), denota que o quadro, então, ao se configurar como objeto autônomo do artista que o produziu, põe em questão a relação sujeito-objeto, desencadeando um questionamento da primazia da subjetividade do artista nessa relação, e desmontando o esquema inaugurado pelo pintor e arquiteto Giorgio Vasari ao publicar, em 1550, Vidas dos artistas, em que foi destacada pela primeira vez a importância do artista como grande personalidade subjetiva (lembremo-nos de Da Vinci ou de Michelangelo). Ao mesmo tempo, esse movimento fez do crítico de arte, surgido dois séculos mais tarde, um intermediário entre o público e o artista, a quem é atribuído o poder de desvendar o que o artista quis dizer com a sua visão subjetiva, plasmada na obra de arte. Em outras palavras, abandona-se a percepção direta da obra.

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Hoje, somos surpreendidos pelo que ele percebeu, indicou e deixou em aberto para que fosse preenchido pelo acontecimento. O desafio está em como manter a mesma lucidez de análise, a maneira atenta, generosa e sem concessões ou preconceitos de ver a arte e a vida.

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Isso não quer dizer que a mitificação do artista foi desmontada pela arte moderna – o mercado de arte encarregou-se de mantê-la – nem que não seja elemento importante na constituição de uma obra de arte. O que Mario Pedrosa percebe é que há aí um paradoxo, que permite recolocar o problema filosófico da dicotomia entre sujeito e objeto, desencadeando um novo processo estético. O instrumental teórico utilizado por ele é a gestalt, que propicia uma incursão nos elementos objetivos da obra de arte, constituída por leis próprias da percepção, liberando “a natureza afetiva da forma” para que seja possível se relacionar de maneira direta com a obra de arte, sem necessidade de intermediação do crítico de arte para descobrir o que o artista quis dizer com esta ou aquela criação. A fim de contribuir para a compreensão, citamos o belo e esclarecedor prefácio de Otília Arantes para Arte, forma e personalidade: A antítese clássica – subjetividade versus objetividade – estaria resolvida à medida que a chave das experiências estéticas estivesse nas propriedades intrínsecas ou na “natureza afetiva

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Mario Pedrosa em sua biblioteca. À sua direita, Abraham Palatnik e Geraldo de Barros; à sua esquerda, Lidy Prati, Tomás Maldonado, Almir Mavignier e Ivan Serpa, cerca de 1949 foto autoria desconhecida acervo família Pedrosa

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da forma na obra de arte”. É o que a tese tenta demonstrar através de uma Psicologia da Arte voltada para a obra e suas qualidades formais (fisionômicas) que comandariam as reações afetivas do espectador.

Ao virar a chave da gestalt, Mario Pedrosa inseminou pelos ouvidos – como dizia a artista Lygia Clark –, por meio de sua participação diária nos jornais e na direção das Bienais, os jovens artistas dos anos 1950 e 1960 no caminho do Construtivismo. Mais especificamente, depois, teve forte impacto na constituição do Neoconcretismo, que tem como expoentes Abraham Palatnik, Almir Mavignier, Amilcar de Castro, Décio Vieira, Franz Weissmann, Hélio Oiticica, Hércules Barsotti, Ivan Serpa, Lygia Clark, Lygia Pape, Willys de Castro e os poetas Ferreira Gullar, Reynaldo Jardim e Theon Spanudis. No entanto, onde sua influência mais se fez notar e onde o pensamento da gestalt se manifestou esteticamente de maneira mais consequente e concreta foi na ruptura pós-neoconcreta, que levou os artistas Hélio Oiticica, Lygia Clark e Lygia Pape a se distanciarem dos neoconcretos e estabelecerem outro paradigma

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para a arte a partir das propostas de Pedrosa. Eles romperam com as paredes dos museus e fizeram com que a obra artística invadisse o mundo, consumando uma relação direta entre o artista e o espectador, entre a arte e a vida. Esse processo da ruptura pós-neoconcreta foi possível porque, quando a obra de arte passou a ser concebida como um objeto autônomo em relação ao sujeito artista e ao sujeito espectador, Pedrosa se propôs a entender quais leis regiam o objeto arte (daí a importância da gestalt para desvendá-las). Esse fato, aparentemente simples, é de grande importância, porque a obra de arte deixa de ser uma mera extensão do sujeito artista, e deixa também de ser apresentada ao espectador como algo fechado e acabado. A obra de arte, a partir dessa nova consciência, passa a ser intersecção de subjetividades, que possuem o mesmo aparato sensório-motor capaz de fazer agir a percepção da natureza afetiva da forma na obra de arte, que é do que trata a sua tese. Em outras palavras, a dicotomia sujeito-objeto é substituída por algo que dará nome a um texto

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do filósofo Michel Foucault, que poderá nos ajudar a “decifrar” a intuição de Pedrosa. Em “O pensamento do exterior”, compilado na série Ditos e escritos, no volume Estética: literatura e pintura, música e cinema, Foucault escreve: “[...] o ser da linguagem só aparece para si mesmo com o desaparecimento do sujeito”. Ou seja, quando Lygia Clark, por exemplo, cria Os bichos – esculturas de metal manipuláveis –, ela não está convidando o espectador a participar, como se estivesse oferecendo arte de entretenimento, nem pede a ele que finalize com sua participação a obra que ela apresenta como propositora; ao contrário, está oferecendo a outras subjetividades singulares a possibilidade de terem a experiência da arte. Ela faz morrer o sujeito para que o ser da linguagem – a arte – apareça. Esse desfazimento do sujeito e a revelação da subjetividade singular que a arte permite expressar foram o que levou Pedrosa a definir a arte como o exercício experimental da liberdade. O ciclo se fecha, política e arte são a possibilidade da morte do sujeito tradicional, como subjetividade fechada, para a percepção do outro e da diferença.

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Cada um de nós é sempre o outro do outro. Isso nos permite perceber que o exterior e o interior dos sujeitos são estruturas mais próximas do que imaginamos, e que só podem se realizar completamente quando o sujeito aceita o outro. Por isso a ruptura pós-neoconcreta é importante; por isso a política é importante. Ambos os movimentos agregam a potência da vida em sociedade. Essas duas atividades humanas requerem e solicitam a alteridade; somos sempre o interior do exterior e o exterior do interior. Esse é o grande desafio proposto por Mario Pedrosa a ser enfrentado, pois só o exercício experimental da liberdade é capaz de garantir, na radicalidade do real, as práticas éticas e estéticas.

Marcio Doctors é mestre em estética pelo Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (IFCS/UFRJ). É curador na Casa Museu Eva Klabin, para a qual desenvolve o projeto Respiração. Também atua como curador independente. No final dos anos 1970, foi secretário de Mario Pedrosa; nos anos 1980, compôs o coletivo de artistas A Moreninha. Tem artigos publicados no Brasil e no exterior.

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Mario Móbile

Marcos Augusto Gonçalves


MARIO MÓBILE MARCOS AUGUSTO


No dia 11 de setembro de 1948, o escultor Alexander Calder e sua mulher, Louisa James Calder, desembarcaram no Rio de Janeiro para a inauguração de uma mostra significativa de obras do artista, que teria lugar no edifício do então Ministério da Educação e Saúde, uma joia da arquitetura moderna brasileira. Posteriormente, a exposição seguiria para o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), dando início a uma sequência de eventos que selaria na história as relações entre o norte-americano e o meio artístico e arquitetônico brasileiro. Dois personagens foram decisivos para a visita: o arquiteto Henrique Mindlin, que se empenhou em concretizá-la, e o jornalista, crítico de arte e ativista político Mario Pedrosa, que se aproximara do artista durante uma temporada entre Washington e Nova York, onde viveu com sua mulher, Mary Houston, nos anos 1940, depois de um período em Paris, onde se engajara no movimento socialista liderado pelo dissidente soviético Leon Trótski. Durante o exílio norte-americano, Pedrosa teve a ventura de assistir à grande exposição individual de

ao lado Mario Pedrosa na época

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da Bienal de São Paulo, 1961 foto Athayde de Barros coleção Fundação Bienal de São Paulo/Arquivo Histórico Wanda Svevo


MARCOS AUGUSTO MARIO MÓBILE

Calder no Museu de Arte Moderna de Nova York (MoMA), inaugurada em setembro de 1943. No ano seguinte, publicou dois artigos sobre o artista nas páginas do Correio da Manhã, diário com o qual estabelecera providencial colaboração regular, que o ajudava a se manter nos Estados Unidos. O efeito da obra do norte-americano sobre as concepções estéticas do crítico brasileiro foi categórico. “Uma revelação”, declarou ele tempos depois. Por ocasião da visita de Calder ao Brasil, Pedrosa publicou, em Política e letras e logo a seguir no Diário de S. Paulo, um ensaio intitulado “A máquina, Calder, Léger e outros”, no qual analisava, com fineza estética e política, o trabalho daquele homem que, “em oposição dialética à civilização americana, fundada no negócio pelo negócio”, se erguia, em sua opinião, como o artista mais representativo dos Estados Unidos. “Precisamente tal oposição faz de Calder um expoente dessa cultura, revelando o que nesta pode haver de são e suscetível de desenvolvimento”, escreveu. A perspectiva de Pedrosa, livre para pensar, destoava de visões marxistas mais comuns e

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esquemáticas, que se inclinavam a valorizar o papel político de uma arte com tendências narrativas, realistas e conteudistas. A obra de Calder não se fazia acompanhar de um manifesto contra a sociedade capitalista, tampouco expressava de modo explícito algum tipo de exortação ideológica à luta contra a alienação engendrada pela máquina produtiva do capital. Os aspectos críticos derivavam, na explicação de Pedrosa, de um processo mais fundo, que se resolvia no campo formal. Em suas criações, ao lançar mão de instrumentos da indústria, Calder acabava por dar-lhes finalidades que se mostravam inconsequentes, emprestando “à mecânica uma gratuidade que ela não tem, nem é de sua natureza”. Com isso, afirmava o crítico, sua obra superava a própria civilização utilitária, da qual provinha. São particularmente estimulantes as suas reflexões sobre os móbiles, obras em que o embate com a máquina, artefato por excelência da sociedade industrial, escapa ao fetichismo e à sua adoração como “divindade moderna”.

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MARIO MÓBILE MARCOS AUGUSTO


Mario Pedrosa em seu apartamento no Rio de Janeiro, em 1959. Sempre aberto a amigos e artistas, o lugar também reunia muitas obras de arte recebidas de presente foto Luciano Martins acervo Família Pedrosa


Como os móbiles, também a trajetória cosmopolita e singular de Pedrosa, sempre refletida e aberta às utopias e ao inexplorado, move-se com frequência pelos imprevistos, pelas pausas involuntárias, pelos encontros inusitados e pelo acaso.

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O crítico nota o quão diferente a abordagem de Calder se mostrava em relação à de Fernand Léger, que a seu ver terminava por forjar em suas obras uma espécie de “neo-academismo, embora às avessas: em vez do corpo, como modelo, tem-se a máquina”. Já o criador dos móbiles, por outro caminho, lograva transcendê-la e superá-la. Nos móbiles com movimento não motorizado, dizia Pedrosa, Calder “domou [a máquina] e a deixou para trás”. Ele continua: Não é mais a sua energia contida e controlada que o interessa. É, sim, a apreensão das forças incontroladas do cosmos, o movimento irredutível que alimenta o motor do universo, o eterno fluir das formas no espaço.

Como observou o crítico de arte Lorenzo Mammì no prefácio à coletânea Mário Pedrosa: arte – ensaios (2015), Calder parece ter encarnado naquele momento o paradigma de artista que Pedrosa havia tempos procurava: [...] utilizando os mesmos materiais e instrumentos do trabalho industrial, (Calder) devolve à máquina

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MARCOS AUGUSTO MARIO MÓBILE

a imprecisão e a imprevisibilidade criativa do homem; é também o artista que opera a síntese entre o rigor de Mondrian e a espontaneidade de Miró, os dois polos do abstracionismo.

Por fim, “é o profeta da forma aberta, em processo, que pouco mais tarde Pedrosa incentivará em jovens artistas brasileiros”. De volta ao Brasil, como se sabe, Mario Pedrosa se tornou o grande interlocutor, incentivador e crítico de artistas que, na passagem dos anos 1940 para a década de 1950, se aventuravam no Abstracionismo, no Concretismo ou na Arte Cinética e que, posteriormente, promoveriam experimentações vanguardistas como aquelas propostas por Hélio Oiticica e Lygia Clark, entre outros nomes. Roberta Saraiva, organizadora do livro Calder no Brasil (2006), recorre aos móbiles como imagem para traduzir a “mundana e profunda, generosa e cambiante” amizade dos protagonistas de seu livro. Poderiam também essas obras representar a multifacetada, movimentada e extraordinária vida de Pedrosa, na qual uma sucessão de situações se desenha e se reconfigura sem

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cessar em atividades que vão da militância política à crítica de arte e de arquitetura, passando pela inovadora atuação museológica e pela notável capacidade de criar em torno de si uma extensa rede de convivência, interação e diálogo com um sem-número de artistas, intelectuais, políticos e personagens relevantes do século XX. Como os móbiles, que, em suas palavras, realizam no espaço suas múltiplas virtualidades plásticas movidos “pelo sopro ofegante de um homem, por uma rajada de ar, uma vibração e um abalo qualquer”, também a trajetória cosmopolita e singular de Pedrosa, sempre refletida e aberta às utopias e ao inexplorado, move-se com frequência pelos imprevistos, pelas pausas involuntárias, pelos encontros inusitados e pelo acaso. É esse “Mario móbile” que a Ocupação organizada pelo Itaú Cultural tenta captar. Nesta publicação, um conjunto de artigos dedica-se a explicar um pouco da rica diversidade intelectual e existencial desse humanista de muitas qualidades, cujo legado permanecerá como um ponto luminoso da cultura brasileira e também internacional.

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MARCOS AUGUSTO MARIO MÓBILE

Marcos Augusto Gonçalves é jornalista e atualmente editor do suplemento cultural Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, jornal em que já foi editor de “Opinião” e dos cadernos Ilustrada e Mais!, além de correspondente em Milão, na Itália, e em Nova York, nos Estados Unidos. É coautor de Cultura e participação nos anos 60 (Brasiliense, 1983), com Heloisa Buarque de Hollanda, e autor de 1922, a semana que não terminou (Companhia das Letras, 2012).

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acima Mario Pedrosa em sua

casa de veraneio, em Búzios acervo Lygia Pape


Arquiteturas e modernidades: da busca pela origem à utopia de Brasília

Sabrina Fontenele


ARQUITETURAS E MODERNIDADES: DA BUSCA PELA ORIGEM À UTOPIA DE BRASÍLIA SABRINA FONTENELE


Mario Pedrosa inquietava-se com a pergunta sobre quem iria investigar a produção arquitetônica no contexto da modernidade. Se antes cabia ao crítico de arte essa tarefa, a missão merecia ser direcionada a intelectuais que compreendessem claramente o caráter revolucionário daquela produção. O autor pernambucano dedicou-se a esse compromisso apresentando suas reflexões e pesquisas em artigos publicados, em sua maioria, na década de 1950, os quais demonstram uma tentativa de apresentar a genealogia da arquitetura moderna brasileira. Numa conferência realizada em Paris cujo teor foi publicado na revista L’Architecture d’Aujourd’hui [A Arquitetura de Hoje] de dezembro de 1953, Mario Pedrosa deixou claro que, no Brasil, o movimento moderno na arquitetura diferenciava-se completamente do que se manifestou nas artes plásticas e na música. No mesmo evento francês, afirmou que a questão não era descobrir ou redescobrir o país. Este sempre estivera lá, presente com sua ecologia, seu clima, seu solo, seus materiais, sua

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ao lado Mario Pedrosa

em seu apartamento, 1959 acervo Folha de S.Paulo


SABRINA FONTENELE ARQUITETURAS E MODERNIDADES: DA BUSCA PELA ORIGEM À UTOPIA DE BRASÍLIA

natureza e tudo o que nele há de inelutável. Sem primitivismo como entre os literatos e os músicos e sem nacionalismo ideológico como entre os escritores políticos, a realidade geográfica e física é, para um arquiteto, alguma coisa de absoluto e de primordial. Para os demais, é, de certa forma uma matéria de escolha ou de interpretação.

E defendeu, ainda, a premissa de que a origem da arquitetura brasileira estava no exterior. Lucio Costa e um grupo de estudantes e jovens arquitetos cariocas estudaram a produção de arquitetos europeus cujas ideias e obras já chegavam ao Brasil: Walter Gropius, Mies van der Rohe e Le Corbusier. E assim “tornaram-se modernos sem se aperceber”, na busca por conciliar arte com técnica e tornando acessíveis os benefícios da industrialização. Sua hipótese é reafirmada no artigo “Introdução à arquitetura brasileira” – publicado no Jornal do Brasil de maio de 1959 – quando defende que a moderna arquitetura brasileira é decorrente dessas influências culturais, como também de acontecimentos de ordem sociológica e política:

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capitalismo, industrialização e regimes autoritários. No texto, ele apresentou um panorama das primeiras ideias, das primeiras publicações, ainda em caráter de manifesto, e das primeiras construções ao traçar uma breve cronologia de eventos que caracterizam o fenômeno brasileiro. Nesse contexto, é possível destacar o artigo “Arquitetura e estética das cidades” (1925), do arquiteto Rino Levi; o projeto de Flavio de Carvalho para o Palácio do Governo; a residência de Gregori Warchavchik; e as viagens e palestras de Le Corbusier no Rio de Janeiro e em São Paulo. Especialmente as obras e as ideias desse último arquiteto eram frequentemente debatidas no contexto chamado de revolucionário daqueles jovens entusiastas cariocas. Alguns dos textos fundamentais de Pedrosa buscaram identificar a gênese dessa produção no Brasil – questão que inquietava não apenas ele, pois foi tema de discussão no Congresso internacional de críticos de arte, da Associação Internacional de Críticos de Arte (Aica), na qual ele era figura atuante, colocando em debate a origem da arquitetura moderna em diferentes países.

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No artigo “Arquitetura e crítica de arte”, publicado no Jornal do Brasil em 1957, Pedrosa escreveu: A arquitetura moderna, com seus materiais novos, com seus problemas irremovíveis, passou a influenciar de modo crescente o desenho industrial de nossos dias e o gosto, em geral.

O autor demonstrava que a arquitetura exercia um protagonismo em relação às outras artes no século XX. Ele entende que, nos primórdios do movimento moderno na arquitetura, foi necessário – como publicou no mesmo periódico em 22 de fevereiro de 1957 – ater-se ao “estritamente funcional, com abandono radical de toda preocupação estética ou plástica”. Afirmou, ainda, que eram os materiais os protagonistas dessa revolução produtiva internacional. Especialmente no Brasil, no entanto, essa concepção se modificou, e profissionais como Oscar Niemeyer buscaram outros caminhos – o que foi demonstrado sobretudo na casa do arquiteto em Canoas, no Rio de Janeiro, definida por Pedrosa como uma obra de arte e de enfrentamento entre a natureza e a máquina, ou “uma brilhante proeza da integração topográfica

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Mario Pedrosa inquietava-se com a pergunta sobre quem iria investigar a produção arquitetônica no contexto da modernidade. Se antes cabia ao crítico de arte essa tarefa, a missão merecia ser direcionada a intelectuais que compreendessem claramente o caráter revolucionário daquela produção.

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Fachada da sexta Bienal de São Paulo, 1961 foto Athayde de Barros coleção Fundação Bienal de São Paulo/Arquivo Histórico Wanda Svevo


acidentada do local”, descrição feita no já citado artigo “Introdução à arquitetura brasileira”. Nos térreos dos edifícios modernos do Centro de São Paulo, novos espaços de sociabilidade se configuravam, estimulando encontros em galerias, cafés, livrarias, cinemas. Entre as construções do período, destaca-se o Edifício e Galeria Califórnia, projeto realizado por Oscar Niemeyer em 1951. Mario Pedrosa criticou duramente tanto a arquitetura do edifício quanto o painel do pintor Di Cavalcanti instalado em seu pavimento térreo. A questão entre a arquitetura e os murais modernos também é tema de discussão em diversos artigos, inclusive em comparação com o exemplo mexicano, em que os edifícios serviram de pano de fundo para a impactante produção artística do país. No Brasil, ao contrário, a arquitetura teve um papel mais importante e revolucionário do que o mural. Já em 1942, Pedrosa publicou o artigo “Portinari – de Brodósqui aos murais de Washington”, em que analisou a produção do pintor Candido Portinari, destacando os painéis do então

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Ministério da Educação e Saúde (MES), no Rio de Janeiro. Considerado pela crítica mundial como “monumento clássico de toda arquitetura moderna, tanto do Brasil, como internacional” – segundo artigo do crítico publicado no Jornal do Brasil em 1959 –, esse ícone da arquitetura moderna se vincula diretamente ao imaginário do desenvolvimento tecnológico pela construção vertical. Projetada por uma equipe de arquitetos modernos – entre eles Carlos Leão, Oscar Niemeyer, Affonso Eduardo Reidy, Ernani Vasconcellos e Jorge Machado Moreira – e coordenada por Lucio Costa, a construção contou com a participação – conturbada – de Le Corbusier. O edifício apresenta os cinco pontos da arquitetura moderna defendidos pelo arquiteto franco-suíço: planta livre, fachada livre, pilotis, terraço-jardim e janela em fita. Sua realização foi considerada “um milagre”, colocando as ideias de Le Corbusier pela primeira vez em prática no Brasil. Foi incorporado a diversos manuais de arquitetura moderna pelos avanços tecnológicos que apresenta e por ser um dos primeiros arranha-céus modernos da história. O MES, atualmente chamado Palácio Capanema, foi uma obra constantemente referenciada por

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Pedrosa pelo seu caráter inovador, e ainda como demonstração das relações complexas entre os jovens arquitetos modernos e regimes autoritários. O autor aponta que a modernidade arquitetônica associada a uma preocupação social se materializa efetivamente com a construção do Conjunto Residencial Prefeito Mendes de Moraes, conhecido como Pedregulho, no Rio de Janeiro. O conjunto foi projetado pelo arquiteto Affonso Eduardo Reidy, em 1947, para ser colocado a serviço de transformações sociais, econômicas e políticas de classes desfavorecidas – uma tentativa isolada de resolver o grave problema da habitação popular no Brasil. Brasília, inaugurada como a nova capital federal, seria objeto de várias das análises e aspirações de Pedrosa. No texto “Reflexões em torno da nova capital”, publicado na revista Brasil: Arquitetura Contemporânea em 1957, ele defendeu a proposta de Lucio Costa: Um eixo monumental, cortado por outro arqueado, em que ao longo do primeiro se anima a vida

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política, ideológica, cívica e cultural da urbe, em suas diversas modalidades, e, através do segundo, se processa a circulação material, enquanto de um e outro lado deste se reservam amplos e belos espaços à intimidade da vida privada dos seus habitantes, é o ovo do Colombo.

Guilherme Wisnik, organizador do livro Mário Pedrosa. Arquitetura: ensaios críticos, demonstrou que é entre 1957 e 1960, período do concurso do plano-piloto, da execução e da inauguração da capital, que boa parte das reflexões do autor é publicada. Foi na nova cidade, inclusive, que havia acontecido o Congresso internacional de críticos de arte. Brasília proporcionaria impressões diversas aos participantes do evento, sendo colocada sob a observação da crítica profissional estrangeira. Esse acontecimento foi registrado por Mario no artigo “Lições do Congresso internacional de críticos”, que reforça a ideia de que a construção da capital se tratava de “um dos [projetos] mais audaciosos da cultura ocidental, seu fracasso seria em parte um fracasso dessa cultura”. Ele acreditava que

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Brasília poderia ser um campo incomparável para a experiência da integração das artes em todos os domínios e numa escala inédita. A capital foi também objeto de sua preocupação. Assumida como fato realizado, seu futuro se colocava como um dos grandes problemas do país, especialmente no que dizia respeito ao seu crescimento desenfreado e descontrolado. No artigo “Brasília, hora de planejar”, Pedrosa elogiava a decisão de preservar o plano-piloto de Lucio Costa, mas apontava a necessidade de realizar um planejamento cuidadoso, que relacionasse o plano urbano ao plano suburbano, e este ao plano regional. Caso contrário, o problema se agravaria com uma “confusão nacional”. “Brasília é muito mais que urbanismo, é uma hipótese de reconstrução de todo um país” – escreveu Pedrosa em 1959, no artigo “Introdução à arquitetura brasileira”.6 O autor considerava a cidade uma oportunidade de começar novamente a ocupação do país, a construção de uma identidade nacional, de novas possibilidades de organização social.

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6. Os três últimos artigos foram apresentados pela professora Aracy Amaral na publicação organizada com textos de Pedrosa intitulada Dos murais de Portinari aos espaços de Brasília (1981).


SABRINA FONTENELE ARQUITETURAS E MODERNIDADES: DA BUSCA PELA ORIGEM À UTOPIA DE BRASÍLIA

A ocupação da capital federal pelo regime militar pouco tempo depois de sua inauguração talvez tenha sido a decepção que fez Pedrosa se voltar novamente para as artes plásticas. Seu legado como crítico, entretanto, impacta ainda hoje gerações de curadores, pesquisadores e historiadores que se debruçam sobre a produção arquitetônica brasileira.

Sabrina Fontenele é arquiteta e urbanista formada pela Universidade Federal do Ceará (UFC), com mestrado e doutorado pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP) e pós-doutorado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). É autora dos livros Modos de morar nos apartamentos modernos: rastros de modernidade e Edifícios modernos e o traçado urbano no Centro de São Paulo, entre outros. Foi coordenadora do eixo “Construções, conjuntos e sítios” do Centro de Preservação Cultural (CPC) da USP de 2012 a 2018. Atuou como diretora de cultura do Instituto de Arquitetos do Brasil – Departamento de São Paulo (IAB SP) entre 2020 e 2022 e cocuradora da 13a bienal internacional de arquitetura de São Paulo. É professora na Escola da Cidade.

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Museus

como de

espaços

educação

cultura e

Luiza Mader


LUIZA MADER MUSEUS COMO ESPAÇOS DE CULTURA E EDUCAÇÃO

Mario Pedrosa durante conferência sobre a Bienal de São Paulo, 1964 acervo do jornal O Estado de S. Paulo


O Museu de Arte Moderna não será um órgão fechado, apenas para uma elite intelectualizada; seu conjunto de obras será também aberto ao povo, que sente uma necessidade, cada vez maior, de sentir e saber.7

As palavras proferidas por Mario Pedrosa ao assumir a direção do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/SP), posto que manteve entre 1960 e 1962, sintetizam o pensamento sustentado nas inúmeras gestões e propostas museais que ele capitaneou ao longo de sua vida. Essa defesa também revela o perfil democrático e pedagógico que respaldou a atuação do crítico em museus. Para ele, esses equipamentos assumiriam uma função maior do que meros depósitos de obrasprimas para exibição, pois entendia que os espaços museais deveriam favorecer o desenvolvimento cultural e educativo do país, fomentando a criação de uma nova sensibilidade coletiva. Se o papel do crítico se sedimentava no compromisso permanente com alguma “aventura artística de vanguarda”, restava ao diretor observar, estimular, experimentar, além de preservar “as

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7. PEDROSA, Mario. O Museu de Arte Moderna será aberto ao povo. Última Hora, São Paulo, 19 nov. 1960. (Arquivo Histórico Wanda Svevo).


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antenas do crítico” para acolher os movimentos de arte relevantes da época. “Sua atividade é, pois, a de um observador atento, de um experimentador, como o químico no seu laboratório.”8 Os espaços museais eram por excelência um abrigo de artistas e, portanto, lugar de inventividade criadora, tornando-se uma extensão da parceria colaborativa entre crítico e criador, ideia estimulada por Pedrosa desde a década de 1940 e cujos desdobramentos impactariam o surgimento da arte concreta no Brasil.9 Essa relação de cumplicidade e colaboração foi uma constante na trajetória do autor e seguiu vigente em gestões futuras, como a do Museu da Solidariedade, no Chile, entidade que teve seu acervo estruturado exclusivamente com obras doadas por artistas. Certamente, as doações foram fruto de uma conjuntura múltipla, que abrangeu desde a solidariedade ao experimento socialista chileno até o prestígio de Pedrosa e as redes de confiança e afeto construídas ao longo de sua vida. 8. PEDROSA, Mario. O crítico e o diretor. Jornal do Brasil, Rio de Janeiro, 22 nov. 1960. [Arquivo Centro de Documentação e Memória da Unesp (Cedem). Fundo Mario Pedrosa].

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9. BÔAS, Gláucia Villas. Concretismo. In: BARCINSKI, Fabiana Werneck (org.). Sobre a arte brasileira: da Pré-História aos anos 60. São Paulo: WMF Martins Fontes: Edições Sesc São Paulo, 2014. p. 279.


Ao assumir a direção do MAM/SP, o crítico também se incumbiu da organização da 6ª bienal internacional de São Paulo, em 1961, data comemorativa dos dez anos da entidade. Essa edição da Bienal pode ser considerada a gênese museológica de Mario Pedrosa, na qual se observou o comparecimento de artistas contemporâneos em pé de igualdade com artistas não consagrados e com práticas originárias, cujo legado cultural não havia sido impactado pelo crivo da arte europeia. A linha de tensão entre a arte popular e a arte erudita, questãochave para o autor em sua passagem pelo Chile e, posteriormente, para a inclusão das artes indígenas e africanas em seu relato museográfico e artístico, foi o pano de fundo da 6ª bienal. A dimensão pedagógica também foi de suma importância para o pensamento museológico de Pedrosa, conforme é possível observar em praticamente todos os projetos concebidos pelo autor, como o projeto para o Museu de Brasília, cujo esboço foi delineado em carta de 1958 endereçada a Oscar Niemeyer. O autor

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LUIZA MADER MUSEUS COMO ESPAÇOS DE CULTURA E EDUCAÇÃO

tinha consciência das enormes dificuldades, inclusive financeiras, de criar um acervo completo de um “museu de artes plásticas do nada e torná-lo digno do nome” em compasso com a monumentalidade expressa pela nova capital. Em suas palavras, seria uma instituição de caráter pedagógico, didático e documental basicamente formada por “cópias, reproduções fotográficas, moldagens de toda espécie, maquetes etc.”,10 com o intuito de abranger todas as escolas e vertentes estilísticas do passado e os distintos movimentos de arte contemporânea. Alguns anos depois, em meio ao impasse que desencadeou a doação do acervo do MAM/SP para a Universidade de São Paulo, Pedrosa elaborou uma proposição urbanística intitulada “Parecer sobre o core da Cidade Universitária”. Embora não tenha saído do papel, o documento levanta questões significativas sobre a sua concepção museal, como a associação do museu ao “core”, um “coração vivo da cultura universitária”,11 espaço de salvaguarda da coleção doada por Ciccillo Matarazzo. Novamente, as 10. ARANTES, Otília (org.). Política das artes: Mário Pedrosa. São Paulo: Edusp, 1995. p. 303. (Textos escolhidos I).

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11. AMARAL, Aracy. Mário Pedrosa e a Cidade Universitária da USP. Risco – Revista de Pesquisa em Arquitetura e Urbanismo, São Paulo, n. 1, p. 59-62, 2003.


funções social e pedagógica, elementos cruciais para a formação do indivíduo, tinham um papel central no documento, já que a proposta abarcaria todas as modalidades da educação estética, assegurando o contato direto do público com as obras como forma de ensino e aprendizagem. Sob esse ângulo, ele apontava as limitações das fórmulas convencionais dos ambientes acadêmicos, frequentemente restritos a livros e conferências, sinalizando, por outro lado, as inúmeras possibilidades de aprendizagem inventiva que os museus apresentavam naquele momento. O pensamento museológico do crítico atesta que a imaginação social e a fraternidade foram motores fundamentais para que a instituição museal fosse definitivamente um lugar de abertura a outros mundos possíveis, a despeito do caráter repressor da ditadura militar, regime que decretou a prisão de Mario Pedrosa quando ele foi injustamente acusado de difamar a imagem do país no exterior. Sua chegada ao Chile, em 1970, nação que o acolheu da ditadura brasileira, coincidiu com a vitória de Salvador Allende, presidente responsável

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LUIZA MADER MUSEUS COMO ESPAÇOS DE CULTURA E EDUCAÇÃO

Entrevista coletiva de Mario Pedrosa ao assumir a direção do Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM/sp), 1960 acervo Folha de S.Paulo

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LUIZA MADER MUSEUS COMO ESPAÇOS DE CULTURA E EDUCAÇÃO

pela implantação da via socialista pacífica e democrática. Pedrosa logo integrou o corpo docente da Faculdade de Artes da Universidade do Chile e, na sequência, recebeu o convite do presidente Allende para conceber o Museu da Solidariedade, participando diretamente dos principais projetos políticos da Unidade Popular.12 Inicialmente chamado de Museu de Arte Moderna e Experimental, o Museu da Solidariedade assumiu um lugar de protagonismo por seu caráter internacionalista e sua impressionante capacidade de mobilização global. É possível interpretar o gesto singular de solidariedade como uma espécie de elemento contagioso, uma ideia de comunhão coletiva transnacional que rapidamente ganhou corpo e se difundiu pelo meio artístico. Seguramente, quem mais colaborou para transmitir o sentido fraterno inerente à iniciativa, contando com a adesão instantânea de artistas de cada canto do globo, foi Pedrosa. Embora o crítico não tenha sido o autor original da ideia, foi o grande motivador do empreendimento no nível internacional, atrelando a imagem do

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12. Nota da edição: Coalização partidária de esquerda pela qual Salvador Allende se elegeu, em 1970.


museu a figuras consagradas das artes visuais e da crítica, como Giulio Carlo Argan e Dore Ashton, integrantes do Comitê Internacional de Solidariedade Artística com o Chile. Foi mérito de Pedrosa a celeridade da iniciativa, que, em menos de quatro meses, colheu os primeiros frutos. A vocação solidária foi tão imediata que nenhum artista doador se preocupou em enviar um certificado de doação de obra.13 Sobre a entidade, ele comentou: A característica principal desse Museu da Solidariedade, fundado sob minha orientação, é que jamais compraria um quadro. Outra disposição era que artistas jovens poderiam ir para lá se quisessem, sem a menor obrigação.14

A coordenação do museu foi assinalada por uma orientação internacionalista e por uma logística interna convencional, cujas demandas iniciais se direcionaram para a ampliação do acervo, sem nenhuma restrição às doações, pois, em um contexto amparado pelo espírito colaborativo,

13. ZALDÍVAR, Claudia. Museo de la Solidaridad. Memoria para optar al grado de Licenciado en Teoría e Historia del Arte. Santiago de Chile, 1991, p. 24.

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14. Mario Pedrosa & a vitória de seus fracassos. O Pasquim, Rio de Janeiro, ano 9, n. 469, 23-29 jun. 1978. (Arquivo Cedem. Fundo Mario Pedrosa).


“O Museu de Arte Moderna não será um órgão fechado, apenas para uma elite intelectualizada; seu conjunto de obras será também aberto ao povo, que sente uma necessidade, cada vez maior, de sentir e saber.” (Mario Pedrosa, 1960)

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o ato de solidariedade não poderia ser objeto de recusa. Logo, é crucial localizá-lo a partir dessa conjuntura institucional peculiar marcada por poucos recursos financeiros, em uma corrida contra o tempo, e cujo plano-piloto foi realizado mediante a união de esforços e sob um programa político definido. Cerca de 260 obras, das mais de 600 que a entidade havia angariado até então, foram expostas na inauguração do Museu da Solidariedade, em maio de 1972. Era um fato inédito agregar tantos nomes consagrados em uma única mostra, além de que se expunham pela primeira vez no Chile artistas como Joan Miró, Max Ernst, Mauro Marini e Victor Vasarely. A exposição inaugural foi também um ato simbólico de projeção da entidade, cujo planejamento se amparava na continuidade da arrecadação de doações. Os envios de várias partes do mundo seguiram chegando, mas o clima de instabilidade política prejudicou o seu andamento. Apesar das adversidades, o museu recebeu quase mil doações até o trágico 11 de setembro de 1973, data do golpe que interditou o governo popular democrático no país.

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LUIZA MADER MUSEUS COMO ESPAÇOS DE CULTURA E EDUCAÇÃO

Solidariedade e liberdade foram dois pilares que sustentaram toda a trajetória do crítico, e, nesse sentido, o desterro chileno, a vocação comunitária das iniciativas culturais ligadas à Unidade Popular e a gestão do Museu da Solidariedade foram ocasiões nas quais essas noções se congregaram, gerando um momento extraordinário na história da arte latino-americana. Na condição de exilados, os múltiplos agentes do museu mobilizaram novos simpatizantes, que, unidos em diversos países, deram continuidade à iniciativa. No estrangeiro, a entidade recebeu um novo nome: Museu Internacional da Resistência Salvador Allende. Pedrosa conseguiu fugir para o México e, logo depois, exilou-se em Paris, seu último desterro antes de voltar ao Brasil, em 1977. Os últimos projetos museais do autor após o retorno ao país – como a exposição de arte indígena Alegria de viver, alegria de criar, concebida com Lygia Pape, e o Museu das Origens – foram forjados a partir das ideias de liberdade criativa e alegria popular, fenômenos cruciais para o

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desenvolvimento da vocação revolucionária e comunitária da arte. Esses dois elementos igualmente impactaram os princípios críticos e museológicos nos quais o autor se apoiou para defender um retorno às origens. Somente as produções “dos danados da terra”,15 ou seja, dos povos originários, dos pacientes do hospital psiquiátrico de Engenho de Dentro16 e das populações oriundas do Terceiro Mundo devolveriam à arte a dimensão de necessidade coletiva, rompendo com os valores elitistas da cultura erudita, conforme defendera Pedrosa em sua obra tardia. Com esses projetos, ele se empenhou para que o Brasil mergulhasse em suas próprias raízes e apostasse em uma revolução moral, política e artística distante das prescrições do mercado. Avaliadas em conjunto, essas iniciativas testemunham a concepção revolucionária de Pedrosa, segundo a qual o museu era um território de liberdade, criação e educação permanentes. Mestre da fraternidade, seus postulados museais permanecem atuais, assim como o compromisso de devolver à arte a sua capacidade comunitária. 15. Em “Discurso aos Tupiniquins ou Nambás”, de 1975, Pedrosa recorre à ideia de “danados da terra”, uma citação direta de Os condenados da terra, livro de Frantz Fanon de 1961.

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16. Desde a década de 1940, Pedrosa apoiou publicamente a arte dos pacientes da Seção de Terapêutica Ocupacional do Centro Psiquiátrico Pedro II, dirigido pela psiquiatra Nise da Silveira.


LUIZA MADER MUSEUS COMO ESPAÇOS DE CULTURA E EDUCAÇÃO

Essa busca conciliatória, presente em suas gestões, prezou até mesmo o diálogo solidário entre expressões e ideias à primeira vista incompatíveis. Não por acaso, a liberdade foi o seu horizonte utópico.

Luiza Mader Paladino é mestra e doutora em teoria e história da arte pela Universidade de São Paulo (USP). Sua tese “A opção museológica de Mário Pedrosa: solidariedade e imaginação social em museus da América Latina” foi premiada pelo Comitê Brasileiro de História da Arte (CBHA). É professora efetiva do Instituto Federal de Brasília (IFB) e integra o Grupo de Estudos em Arte Conceitual e Conceitualismos no Museu, vinculado ao Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP e coordenado por Cristina Freire.

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Crítica revolução permanente

em

Pollyana Quintella


POLLYANA QUINTELLA CRÍTICA EM REVOLUÇÃO PERMANENTE

Mario Pedrosa prepara um de seus textos em sua sala foto autoria desconhecida Cemap – Cedem/Unesp*


Em 1977, quatro anos antes de falecer e já de volta ao Brasil após seu terceiro exílio, Mario Pedrosa disse que já não se considerava mais crítico de arte. “A arte precisa de outras experiências e de outras vivências que um crítico não pode dar.”17 Para quem acompanhara sua trajetória de fôlego, responsável por exercer um amplo papel de intervenção nos debates da esfera pública brasileira e internacional, tal fala poderia soar, a princípio, ou irônica ou desmotivadora. Se um dos principais críticos de arte do século XX revelava-se hesitante diante de seu ofício, o que restava à crítica? O projeto moderno que então se arquejava, naquela altura encurtando consigo o horizonte das utopias revolucionárias que tanto o mobilizaram, também atrofiara, com seu desmantelamento, o próprio exercício da crítica? Pedrosa sabia que, se a arte e o meio social mudam, a crítica também deve mudar. Ao menos desde o final do século XIX, críticos de arte atuam no cerne do dilema entre erigir e definir cânones artísticos (a partir de atribuições judicativas de valor) e contestar e inverter julgamentos críticos tradicionais, seus padrões

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17. PEDROSA apud GULLAR apud GALANTERNICK, Nina. Entrevista concedida por Ferreira Gullar para o Projeto Casa Aberta Nusc/Faperj. Rio de Janeiro, 13 abr. 2009.


POLLYANA QUINTELLA CRÍTICA EM REVOLUÇÃO PERMANENTE

e suas hierarquias (opondo-se a perspectivas já cristalizadas em prol do desafio de definir critérios e abordagens à altura da produção de seu próprio tempo). Na passagem da arte à cultura, ou da cultura à arte, é papel da crítica destituir e reinstituir valores, contestar e fundar hipóteses enquanto acompanha o deslocamento de uma produção artística que corre necessariamente na frente. No contexto brasileiro, a obra de Mario Pedrosa é o exemplo mais profícuo dessa delicada relação entre crítica e história. No final dos anos 1960, aliado à perspectiva trotskista, ele dizia que “cada artista faz, uma vez, sua revolução, mas o crítico é a testemunha sem repouso de cada revolução. [...] O crítico vive, pois, em revolução permanente”.18 Em sua trajetória, porém, tal compromisso de participação do presente, ao menos durante cinco décadas de intensa produção, esteve longe de se confundir com qualquer deslumbramento diante dos modismos de época ou mero ecletismo

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18. PEDROSA, M. Do porco empalhado ou os critérios da crítica. In: PEDROSA, M. Mundo, homem, arte em crise. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 1986. p. 233.


disperso. Fora do ambiente acadêmico,19 seu pensamento se construiu sobretudo em público, no exercício semanal dos jornais,20 nas conferências, nos seminários e na interlocução diária com os próprios artistas – o que lhe garantiu liberdade de ir e vir em fontes teóricas que muito excediam o campo da história da arte, advindas da psicologia, da filosofia e das ciências sociais. Na medida em que seus textos eram consultados tanto pelo público não especializado quanto pelos “conhecedores de arte”, que buscavam ali um meio para se atualizar, sua escrita é marcada por um forte compromisso com a dimensão pedagógica. Pedrosa preocupava-se não apenas com os termos de um debate permeado de erudição, mas também com a formação de repertório dos seus leitores – negociação atenta à construção de 19. Não foi por falta de tentativa: o crítico concorreu à cátedra de história da arte e estética da Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil [atual Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)] em 1949 – ocasião em que apresentou sua tese célebre “Da natureza afetiva da forma na obra de arte”, pioneira na América Latina em torno dos estudos sobre a gestalt e a psicologia da forma. E, entre 1955 e 1956, ele também se inscreveu em alguns concursos de livre-docência na mesma instituição, ironicamente não sendo admitido em nenhum deles.

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20. O crítico colaborou regularmente em ao menos três importantes periódicos brasileiros: o Correio da Manhã (nos anos 1940 e, depois, nos anos 1960), a Tribuna da Imprensa e o Jornal do Brasil (ambos nos anos 1950), além de uma série de colaborações pontuais em outros jornais e revistas.


POLLYANA QUINTELLA CRÍTICA EM REVOLUÇÃO PERMANENTE

uma esfera pública que permitisse que a arte (e o crítico) fosse capaz de exercer sua função social. No que tange ainda ao âmbito público, sua crítica exerceu performances não menos importantes para além do texto, levando-o a ocupar os papéis de curador e diretor de museu, militante político e mobilizador, professor e jornalista. Sua biografia ensina que, se a crítica de arte faz parte do exercício de inscrição do fazer artístico em sua realidade social, por vezes mediando e coordenando tensões entre instituição, artista, história da arte e sociedade, o crítico deve ser uma espécie de antítese do intelectual de gabinete. Nas palavras de Pedrosa, trata-se de uma espécie de “grilo chato que não para, num canto da grande sala social, de dar sinal de sua presença”.21 Nas centenas de páginas que compõem sua obra, suas abordagens variam temática e metodologicamente. Há textos que partem da análise de obras específicas para alcançar e defender ideias mais gerais (como os do início de sua carreira, em torno de Käthe

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21. PEDROSA, M. Do porco empalhado ou os critérios da crítica. In: FERREIRA, Glória (org.). Crítica de arte no Brasil: temáticas contemporâneas. Rio de Janeiro: Funarte, 2006. p. 208.


Kollwitz, Candido Portinari e Alexander Calder, fundamentais na depuração e conformação de sua abordagem crítica); textos voltados para rever e recontextualizar capítulos históricos transnacionais (como os relacionados à Semana de arte moderna de 1922 e os que traçaram um panorama da pintura moderna); textos que souberam conciliar crítica de arte e crítica cultural, como os dos anos 1960 e 1970; além de especulações teórico-filosóficas e reflexões em torno do sistema da arte e das políticas culturais. Em alguns momentos-chave, mesmo os seus parâmetros de avaliação mudaram. Enquanto se desafiava a tecer interpretações de seu contexto sociocultural – ao perseguir sintomas e aspectos de ordem geracional, ou mesmo ao identificar traços de mudanças paradigmáticas mais amplas –, Pedrosa não se fez refém dos critérios de análise erigidos pelo seu próprio arcabouço crítico e ousou mudar de opinião em público, como no emblemático caso de Portinari. O que alinhou uma produção tão múltipla foi sua compreensão da arte como ferramenta política

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na próxima página Reportagem da Folha de S.Paulo após Mario Pedrosa retornar de seu último exílio, 1977 acervo Folha de S.Paulo




POLLYANA QUINTELLA CRÍTICA EM REVOLUÇÃO PERMANENTE

e sobretudo revolucionária, dedicada a refletir e transformar a sociedade, em busca da expansão dos horizontes negociáveis do possível e da ampliação da dignidade humana, contra a miséria e a desigualdade. Mesmo quando se dedicou a reivindicar, já no final dos anos 1940, uma crítica finalmente moderna, voltada para a compreensão do fenômeno artístico a partir dos problemas da linguagem e do seu próprio léxico estético, “em seu campo específico e obedecendo a leis próprias”22 (isto é, menos pautada pelos vícios impressionistas que caracterizaram a crítica brasileira precedente, em geral de cunho narrativo e literário, mais apegada às ideologias nacionalistas e às querelas da identidade), o crítico não se enlevou nas fantasias da “arte pela arte”. Sua defesa da abstração, aliada a uma série de outros fatores, foi fundamental para a institucionalização da linguagem construtiva no Brasil, mas ultrapassou em muito os anseios concretistas. Pedrosa foi capaz de propor uma leitura original da abstração geométrica, em geral

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22. PEDROSA, Mário. A forma educadora na arte. In: ARANTES, Otília (org.). Mário Pedrosa: forma e percepção estética. São Paulo: Edusp, 1995. p. 61-62.


associada ao rigor matemático, mas que para o crítico tramava diálogo direto com a produção de crianças, loucos e os ditos “primitivos”. A abstração era fruto de um jogo delicado entre consciente e inconsciente, objetividade e subjetividade; não à toa ele esteve tão interessado, anos antes, em obras como as de Alexander Calder e Paul Klee. A arte deveria ser entendida como fato histórico, mas também como força universal; impulso e “necessidade vital” que atua na contramão da ideia de que a arte moderna seja apenas um produto sofisticado do progresso das elites europeias. A criatividade era um bem comum que pertencia a qualquer um, “independente de seu meridiano, seja ele papua ou cafuzo, brasileiro ou russo, negro ou amarelo, letrado ou iletrado, equilibrado ou desequilibrado”,23 o que em última instância questionava o próprio lugar do artista como detentor privilegiado das ferramentas da criação. Mas qual seria a função social, para um crítico marxista, de uma arte destituída de temas ou índices verossímeis da realidade? De que maneira

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23. Ibidem, p. 46.


“Cada artista faz, uma vez, sua revolução, mas o crítico é a testemunha sem repouso de cada revolução. [...] O crítico vive, pois, em revolução permanente.” (Mario Pedrosa, 1986)

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a abstração atuaria em prol da conscientização política? Em “Arte e revolução”, publicado em 1952 e republicado em 1957, o crítico buscava explicar: A revolução política se faz a caminho, a revolução social está se processando de qualquer modo. Nada poderá detê-las. Mas a revolução da sensibilidade, a revolução que irá alcançar o âmago do indivíduo, sua alma, não virá senão quando os homens tiverem novos olhos para olhar o mundo, novos sentidos para compreender suas tremendas transformações e intuição para superá-las. Esta será a grande revolução, a mais profunda e permanente, e não serão os políticos, mesmo os atualmente mais radicais, nem os burocratas do Estado que irão realizá-la.24

Não bastava munir o espectador de historinhas com apelo social ou de belas imagens ilustrativas, competindo com o amplo gosto popular pelo rádio e pela televisão. Era preciso ressensibilizar o sujeito moderno, atravessado por um fluxo cada vez mais veloz de informações e embotado pela técnica, a partir de uma reeducação dos sentidos, garantindo-lhe autonomia para interpretar as

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24. PEDROSA, Mário. Arte e revolução. Tribuna da Imprensa, Rio de Janeiro, 29-30 mar. 1952.


POLLYANA QUINTELLA CRÍTICA EM REVOLUÇÃO PERMANENTE

formas do mundo – perspectiva que encontrará desdobramentos férteis nas experiências neoconcretas e seus derivados anos depois. Noutras palavras, o compromisso da arte era com os desafios postos pela linguagem, sobretudo a partir da crença de uma liberdade radical. A década de 1960, no entanto, levou o crítico a desconfiar desse potencial de realização, ao passo que a prática artística se afastava cada vez mais da lógica estrutural das vanguardas, exigindo outros critérios de análise e um novo deslocar de rota. Depois de sua hesitação em relação ao advento da Pop Art – primeira expressão, para o crítico, de uma arte “pós-moderna” –, Pedrosa teceu um diagnóstico da época, notando uma mudança paradigmática nos nexos entre arte e cultura. Se na primeira metade do século XX a arte moderna atuara operando divergências em relação aos valores simbólicos estabelecidos pelo sistema sociocultural, os anos 1960 manifestariam um pacto crescente entre arte, consumo e cultura de massa, estressando ainda mais as relações entre capital e trabalho e dando a ver que mesmo os gestos disruptivos eram incorporados às

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estruturas hegemônicas. A arte moderna, com o seu esgotamento histórico, havia se tornado artigo de luxo. Sua integração à vida social não havia se dado como bem comum ou “necessidade vital”, mas como fetiche e bem de consumo, quando não como recurso publicitário, afirmando-se como forma de mistificação cultural. Por outro lado, o crítico também reconheceu que havia, no cerne dessa crise, a germinação de uma “liberdade nova”, apontada não mais por estruturas consensualizadas do meio artístico, mas por um estado de invenção calcado na ideia de experiência e menos apartado de uma reflexão sobre os modos de vida. Obras como as de Hélio Oiticica e Antonio Manuel reanimavam seu ofício e desafiavam suas perspectivas críticas. Afinal, era a arte também um “exercício experimental de liberdade”, laboratório no qual seria possível testar uma outra subjetividade coletiva, quem sabe alheia aos desígnios do mercado. Para Pedrosa, porém, tal utopia tinha endereço: o Terceiro Mundo. Diferentemente do Hemisfério Norte, os povos oprimidos da periferia do mundo

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25. PEDROSA, Mário. Discurso aos Tupiniquins ou Nambás. Versus, São Paulo, n. 4, 1976.


POLLYANA QUINTELLA CRÍTICA EM REVOLUÇÃO PERMANENTE

capitalista, diante de “um futuro aberto ou a miséria eterna”,25 tinham a opção de construir o seu próprio caminho ao divergir do espírito do imperialismo. Aliás, apesar do esforço contínuo para inserir a arte brasileira num debate mais amplo, cabe reforçar que o crítico teimou insistentemente em apontar o enraizamento de sua fala – mesmo quando no estrangeiro, sua crítica é elaborada a partir do Brasil, ou melhor, das problemáticas do Terceiro Mundo, afirmando com isso uma postura não apenas política, mas metodológica. Seu importante “Discurso aos Tupiniquins ou Nambás” (1976) encerra-se dizendo que, “abaixo da linha do hemisfério saturado de riqueza, de progresso e de cultura, germina a vida. Uma arte nova ameaça brotar”.26 Trata-se do momento em que Pedrosa passa a se interessar menos pelo objeto artístico como produto autônomo, passível da análise de seus puros valores plásticos, para se concentrar nos sistemas de trabalho e nos contextos de produção, afastando-se dos grandes centros hegemônicos para engajar-se nos “primitivos”, interesse que nunca esteve totalmente alheio à construção de seu pensamento.

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26. Ibidem.


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Elizabeth Wather, Max Bense e Mario Pedrosa em reunião na Bienal de São Paulo, década de 1960 foto Athayde de Barros Fundação Bienal de São Paulo/ Arquivo Histórico Wanda Svevo


POLLYANA QUINTELLA CRÍTICA EM REVOLUÇÃO PERMANENTE

Já no fim da década de 1970, com seu retorno ao Brasil, dedicou-se a dois projetos para o Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) que sintetizam tal anseio. Em 1978, organizou, com Lygia Pape, a exposição Alegria de viver, alegria de criar – que pretendia reunir a produção material dos povos indígenas no Brasil e seus modos de vida como exemplo de coletividade –, não realizada em razão do grande incêndio ocorrido na instituição naquele mesmo ano. Para Pedrosa, o indígena vive alegre porque vive em abundância, insubordinado ao trabalho, uma vez que a acumulação de riquezas não é o fim de sua produção. Tratava-se, portanto, de apresentar um outro referencial produtivo diante da crise do condicionamento artístico ocidental, como forma de resgatar o princípio de um trabalho não alienado. Ao crítico interessava a suposta relação harmônica entre homem e natureza, a ressonância coletiva conquistada pela produção indígena e seu aspecto “participador”, embora tais premissas tenham sido constituídas, em seus textos, por meio de uma fantasia primitivista que se refere aos indígenas de maneira universalista, anônima e atemporal, fruto de sua época.

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Depois do incêndio, ele esboçou, ainda, um projeto para a reconstrução do museu. Intitulado Museu das Origens, o novo MAM Rio abrigaria cinco iniciativas: o Museu do Índio, o Museu do Inconsciente, o Museu de Arte Moderna, o Museu do Negro e o Museu de Artes Populares. Cada um deles teria autonomia para compor acervo e narrativa próprios, e um centro de atividades seria responsável por estabelecer conexões entre as partes. A ideia não foi adiante. Naquela altura, foi pouco compreendida pelos artistas e pelo meio cultural. Além disso, já em idade avançada, Pedrosa concentrava seus esforços na criação do Partido dos Trabalhadores (PT). Mas, apesar de pouco desenvolvido, é possível considerar que seu projeto compreendia o museu como espaço de negociação das diferenças, âmbito democrático por excelência. Isso não significa reconhecê-lo como “caldeirão cultural”, disfarçando desigualdades sob a óptica de uma suposta democracia racial freyreana. Ao contrário, cada uma das cinco partes envolvidas, a um só tempo autônomas e codependentes, deveria negociar a sua própria singularidade, levando em conta

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na próxima página Carteirinhas de jornalista e de membro de museus internacionais de Mario Pedrosa Cemap – Cedem/Unesp*


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CRÍTICA EM REVOLUÇÃO PERMANENTE POLLYANA QUINTELLA


que a construção de sua identidade dependia de agenciamentos públicos e coletivos, nos quais a relação eu-outro não é estável, mas intercambiável. Não nos parece gratuito que, na mesma época em que disse que não era mais crítico de arte, ou que a “arte não é fundamental”,27 Pedrosa tenha delineado uma de suas proposições mais radicais. Ecos e estilhaços daquele utópico Museu das Origens ressoaram nessas últimas décadas, ganhando ainda mais força no momento presente, talvez como uma mensagem numa garrafa enviada ao futuro. Se hoje o problema da identidade está permeado de contradições (não é novidade que os selos de “representatividade” vêm sendo amplamente explorados pela lógica neoliberal, para a qual a repaginação estética é apenas o verniz que permite que os privilégios continuem sempre muito velhos, o que leva ao campo da arte o desafio de reposicionar com radicalidade o jogo entre representação e infraestrutura), é inegável que a crescente diversidade de agentes no meio da arte brasileira venha apontando, potencialmente, para outros arranjos possíveis.

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27. PEDROSA, Mário. A arte não é fundamental: a profissão do intelectual é ser revolucionário... O Pasquim, Rio de Janeiro, 12 nov. 1981.


POLLYANA QUINTELLA CRÍTICA EM REVOLUÇÃO PERMANENTE

Ao que parece, aquela breve e provisória negação da crítica (e da arte) era recurso dialético e propositivo, meio pelo qual seria possível derivar de si mesmo, jogar do lado oposto ao da norma para participar das vicissitudes de seu tempo. Pedrosa estava exercendo, mais uma vez, uma ética da crítica, e deixando a nós, das futuras gerações, seu mais digno exemplo.

Pollyana Quintella é pesquisadora, escritora e curadora da Pinacoteca de São Paulo. Formou-se em história da arte pela Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ) e adquiriu o título de mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (PPGArtes/Uerj), com pesquisa sobre a obra de Mario Pedrosa, em especial os projetos idealizados pelo crítico para o MAM Rio no final dos anos 1970. Atualmente, é doutoranda no Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais (PPGAV) da Uerj, dedicando-se às relações entre crítica e crise no século XXI.

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Mario Pedrosa ao lado de obra de Mario Cravo Júnior na segunda Bienal de São Paulo foto autoria desconhecida coleção Fundação Bienal de São Paulo/Arquivo Histórico Wanda Svevo



FICHA TÉCNICA

Concepção e realização Itaú Cultural Consultoria Quito Pedrosa Curadoria Marcos Augusto Gonçalves e equipe Itaú Cultural Projeto expográfico Camila Schmidt e Lígia Zilbersztejn Projeto de acessibilidade equipe Itaú Cultural Fundação Itaú Presidente do Conselho Curador Alfredo Setubal Presidente da Fundação Eduardo Saron núcleo de comunicação institucional e estratégica

Gerência Ana de Fátima Sousa Coordenação de estratégias digitais e gestão de marca Renato Corch Edição de fotografia André Seiti Redes sociais Daniela Campos (estagiária), Jullyanna Salles e Victória Pimentel Coordenação de comunicação institucional Alan Albuquerque Comunicação estratégica William Nunes Itaú Cultural Superintendente Jader Rosa núcleo de artes visuais e acervos

Gerência Sofia Fan Coordenação Juliano Ferreira Pesquisa e produção-executiva Naiade Margonar núcleo de audiovisual e produtos culturais

Gerência André Furtado Coordenação de audiovisual Kety Fernandes Nassar Produção audiovisual e executiva Amanda L. da Silva Edição e captação de imagem Teia Documenta (terceirizada) Captação de áudio Raquel Vieira (terceirizada) Coordenação de produtos culturais Carlos Costa Produção editorial Luciana Araripe Edição e produção de conteúdo Duanne Ribeiro e William Nunes

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Supervisão de revisão de texto Polyana Lima Revisão Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas) Tradução Guilherme Ziggy (terceirizado) Revisão de tradução Denise Chinen (terceirizada) Projeto gráfico e comunicação visual Estúdio Claraboia (terceirizada) Produção gráfica Lilia Góes (terceirizada) núcleo de formaçâo e relacionamento

Gerência Valéria Toloi Coordenação de relacionamento Tayná Menezes Equipe Alessandra Constantini, Domenica Antonio, Fabiano Hilario, Matheus Paz, Natasha Marcondes, Victor Soriano e Vinícius Magnun Coordenação de mediação cultural Mayra Oi Saito Equipe Ana Beatriz Carvalho (estagiária), Bianca Martino, Edinho dos Santos, Edson Bismark, Elissa Sanitá Silva, Fernanda Amorim (estagiária), Joelson Oliveira, Julia Fernandes dos Santos (estagiária), Matheus Maia, Maya de Paiva, Mônica Abreu Silva, Rafael de Oliveira (estagiário), Victória de Oliveira, Vítor Luz e Vitor Narumi núcleo de enciclopédia e memória

Gerência Tânia Francisco Rodrigues Coordenação de memória e pesquisa Felipe Albert Silva Lima Pesquisa e produção-executiva Caio Meirelles Aguiar e Laerte Fernandes núcleo de infraestrutura e produção

Gerência Gilberto Labor Coordenação Vinícius Ramos Produção Carlos Eduardo Ferreira Silva, Carmen Fajardo, Erica Pedrosa, Iago Germano e Katarina Lenomard consultoria jurídica

Gerência Anna Paula Montini Coordenação Daniel Lourenço Equipe Carlos Garcia

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FICHA TÉCNICA

agradecimentos

Acervo do Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Cedem/Unesp), Antonio Manuel, Aracy Amaral, Arquivo do Museu da Solidariedade Salvador Allende/Fundação Arte e Solidariedade, Associação Cultural Lygia Clark, Beny Palatnik, Biblioteca Latino-Americana Victor Civita, Centro de Estudos do Movimento Operário Mario Pedrosa (Cemap), Coleção Roberto Irineu Marinho, Coleção Rose e Alfredo Setubal, Christian Cravo, Dainis Karepovs, Delmar Mavignier e Sigrid Mavignier, Diana Kolker, Fabiana de Barros, Fundação Biblioteca Nacional, Fundação Bienal de São Paulo/Arquivo Histórico Wanda Svevo, Fundação Calder, Fundação Oscar Niemeyer, Gláucia Villas Bôas, Instituto Franz Weissmann, Isabel Pedrosa, Jones Bergamin, José Castilho Marques Neto, Lenora de Barros, Livia Pedrosa, Lorenzo Mammì, Luiz Antônio Araújo, Luiza Mader, Lula Wanderley, Marcio Doctors, Museu de Arte do Rio, Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, Museu de Imagens do Inconsciente, Nina Dias, Nina Galanternick, Otilia Arantes, Paola Chieregato, Patricia Newcomer, Pollyana Quintella, Projeto Hélio Oiticica, Projeto Lygia Pape, Quito Pedrosa, Rara Dias, Ricardo Resende, Sabrina Fontenele e TV Cultura O Itaú Cultural (IC) e a curadoria agradecem a todos os fotógrafos que cederam imagens e a todos os artistas, sucessores e colecionadores que autorizaram a exibição e emprestaram suas obras para a exposição. O IC realizou todos os esforços para encontrar os detentores dos direitos autorais incidentes sobre as imagens/obras aqui expostas e publicadas, além das pessoas fotografadas. Caso alguém se reconheça ou identifique algum registro de sua autoria, solicitamos o contato pelo e-mail atendimento@itaucultural.org.br. O IC integra a Fundação Itaú. Saiba mais em fundacaoitau.org.br.

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*Cemap – Cedem/Unesp Centro de Estudos do Movimento Operário Mario Pedrosa (Cemap) – Acervo Centro de Documentação e Memória da Universidade Estadual Paulista (Cedem/Unesp)



UMA TRAJETÓRIA SINGULAR

QUITO PEDROSA



na página anterior Mario Pedrosa é ovacionado no Encontro nacional de fundação do Partido dos Trabalhadores, realizado no ColégioSion, em São Paulo, 1980 foto Juca Martins/OLHAR IMAGEM

Memória e Pesquisa | Itaú Cultural Ocupação Mario Pedrosa / organizado por Itaú Cultural ; vários autores. - São Paulo : Itaú Cultural , 2023. il.: 140 x 186 cm ; 146 p. ISBN: 978-65-88878-75-0 1. Catálogo. 2. Política. 3. Artes visuais. 4. Crítica de arte. 5. Museu. I. Instituto Itaú Cultural. II. Fundação Itaú. III. Título. CDD 700

Bibliotecária Geovanna de Barros Kustovich CRB-8/010630

Esta publicação utiliza as famílias tipográficas Neue Haas Grotesk Text Pro e Maxeville. Mil unidades foram impressas pela gráfica Pigma, em outubro de 2023.


Ocupação Mario Pedrosa abertura quarta 25 de outubro de 2023 visitação até domingo 18 de fevereiro de 2024 terça a sábado 11h às 20h domingos e feriados 11h às 19h piso 2

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