Ocupação Lydia Hortélio

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São Paulo, 2019

realização:

parceria:

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coordenação editorial  Carlos Costa edição  Heloísa Iaconis (estagiária), Marcella Affonso (estagiária) e Thiago Rosenberg conselho editorial  Ana de Fátima Sousa, Andréia Schinasi, Edson Natale, Eduardo Ochi, Eneida Labaki, Tatiana Prado e Vinícius Murilo projeto gráfico  Mily Mabe edição de imagens  André Seiti e Anna Carolina Bueno (estagiária) produção editorial  Luciana Araripe e Victória Pimentel produção gráfica  Lilia Góes (terceirizada) supervisão de revisão  Polyana Lima revisão  Karina Hambra (terceirizada) colaboração  Estúdio Voador (Natalie Catuogno e Thais Caramico) e Gandhy Piorski As fotografias reproduzidas nesta publicação, quando não creditadas, são de autoria de Lydia Hortélio.


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foto: AndrĂŠ Seiti




capĂ­tulo 1

capĂ­tulo 2

amarelinha

besouro

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editorial 10


capítulo 3

cinco pedrinhas 30

capítulo 4

moiô i ô ga caiunga 40

posfácio

primícias para saber menino 48

ficha técnica 56

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editorial ocupação lydia hortélio

Era uma vez uma menina que, mesmo depois de crescida, continua a se encantar com o novo. Lydia Maria Hortélio Cordeiro de Almeida nasceu em 1932 na cidade de Salvador (BA), e desde então passou a exercer uma curiosidade irrestrita em relação ao seu entorno. Filha de José Cordeiro de Almeida, homem da dança e cantador de causos, e Lydia Hortélio da Silva, de quem herdou o nome e o gosto pela poesia, cresceu em Serrinha, sertão baiano. Ali descobriu de que modo o ser humano existe em sua completude: brincando – com voz solta, pulos, rodas e incontáveis outros jeitos de ser livre. Desde pequena, dedicou-se à música. Graduada em piano e canto orfeônico na capital baiana, deu seguimento à sua formação em diferentes países da Europa – até ser tocada pelo desejo de se debruçar sobre as cantigas que a embalaram na infância e que continuam embalando as crianças do Brasil. Voltou para a Bahia e construiu uma pesquisa que ultrapassa a esfera acadêmica, conectando-se à terra. O seu trabalho enfatiza a importância daquilo que é lúdico e pertencente ao povo. Ao lado de mestres e mestras, registrou histórias de muitas manhãs,


cantorias de beleza genuína e um elemento essencial: o saber ver. Ver como um guardador de rebanhos: a alma das flores, dos rios, da vida ordinária. Ver e aprender com as culturas da infância. A trajetória de Lydia é o tema da 45ª edição do programa Ocupação Itaú Cultural, que desenvolve diferentes ações em homenagem à vida e à obra de nomes fundamentais da arte e da cultura brasileiras. Realizado em parceria com o Instituto Alana, o projeto engloba uma exposição – em cartaz entre julho e setembro de 2019 –, uma série de conteúdos on-line – disponíveis em itaucultural.org.br/ocupacao – e esta publicação impressa. As páginas a seguir apresentam alguns dos episódios mais marcantes do percurso da homenageada, além de uma amostra dos inúmeros registros fotográficos feitos por ela ao longo de suas pesquisas. O material conta ainda com um ensaio assinado pelo pesquisador Gandhy Piorski, que, ao lado do artista Adelsin e da equipe do Itaú Cultural, é cocurador da Ocupação Lydia Hortélio. ITAÚ CULTURAL 10

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capítulo 1 por Natalie Catuogno e Thais Caramico

Da conexão entre palavra, música, movimento e o outro é que se forma o brinquedo, que tem geometria própria do tempo, não é espacial. É coisa que se desloca no seu próprio tempo, um círculo que se desloca, um quadrado que se desloca.

ocupação lydia hortélio


Lydia Hortélio nem se lembra, tão pequena era, do primeiro salto que deu, do litoral para o sertão da Bahia. Ela nasceu em Salvador, em 1932, mas foi em Serrinha, a cerca de 175 quilômetros de lá, que viveu a infância – coisa que, de certa forma, ela nunca deixou de fazer. Sem precisar sair de casa – a casa do sertão, com o quintal cheio de árvores para brincar –, a menina logo fez amizade com a música, que já era amiga íntima da família. Seu pai, José Cordeiro, não raro era visto cantando e dançando com entusiasmo pelos aposentos – na praça, marcava o ritmo com as palmas e a incentivava a rodar com ele. De sua mãe, também ela Lydia Hortélio, ouvia os acalantos que se tornariam um dos focos de seu trabalho como pesquisadora. A mãe ainda fez questão de convencer 12

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capítulo 1

o pai a comprar um piano para a filha. Fabricado na Europa, o instrumento chegou na estação de trem de Serrinha e, de lá, seguiu para a residência da família puxado por um carro de boi – um acontecimento! Ela sonhava que a menina estudaria com uma das grandes pianistas da época, Magda Tagliaferro – o que, anos mais tarde, de fato ocorreu. Assim a música se inscreveu em Lydia, no seu corpo, e fez-se memória, verbo e movimento, levando-a para longe e trazendo-a de volta para perto. Como num jogo de amarelinha, ela lançou a pedra sem saber exatamente onde ia dar e se deixou brincar e seguir os caminhos indicados no chão – esse mundo de miudezas –, que também já sugeriam a geometria da volta. Lydia se dedicou ao instrumento que ganhou dos pais e levou essa paixão para sua adolescência, num internato em Salvador. Aos 19, ela se formou em piano e canto orfeônico pela Escola Normal de Música da Bahia e retornou para Serrinha, onde deu aulas de música. Saiu novamente: foi para o Rio de Janeiro, para São Paulo e, no início dos anos 1960, deu seguimento aos seus estudos de piano na Escola Superior de Música de Freiburg, na Alemanha. A partir daí, a amarelinha de Lydia passou a contemplar uma série de idas e vindas entre Europa e Brasil. Além da Alemanha, viveu e estudou na Suíça, e foi em grande medida graças a essa vivência e a esses estudos no exterior que ela se deu conta de que queria mesmo era saber o Brasil, sua música e sua cultura – em cuja base ou berço está a cultura tradicional da infância. amarelinha


Nesse percurso geográfico e cronológico, vão-se mais de 50 anos de uma extensa e intensa pesquisa. Lydia levantou gerações da música tradicional de Serrinha e de outras regiões do Brasil. Repertoriou mais de 600 cantigas. Criou uma vasta coleção de brinquedos e de registros – fotografias, anotações, áudios e vídeos – da infância mundo afora. Tornou-se a mais importante pesquisadora desses campos no país, além de uma educadora vibrante que aprendeu, como diz, a saber menino.

Amarelinha é um brinquedo ritmado, com muitas variações e jogado no Brasil todo. As crianças desenham um percurso no chão, usando giz, tinta, galhos, o que for. O tipo de desenho varia – um quadrado com outros quadrados dentro dele, um caracol, uma sequência de retângulos – de acordo com o tipo de jogo. Em muitos casos, parte-se sentido céu ou paraíso – a última casa, o fim do jogo. Quase sempre, as casas numeradas de 1 a 10, ou mais, são percorridas alternando saltos em um pé só ou dois, ida e volta. Na variante mais conhecida, a criança joga uma pedrinha e, no trajeto saltado até a última casa, precisa pular aquela em que o objeto caiu, na ida, para então pegar a pedrinha na volta. Ganha quem conseguir jogar e recolher a pedrinha em cada uma das casas. Mas não só. Tem amarelinha de três filas, de começar de fora para dentro, de abrir a perna, até de pular para fora. Cada brinquedo traz suas palavras próprias, seus ritmos e linguagens de movimento.

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capítulo 2 por Natalie Catuogno e Thais Caramico

Tem histórias em que besouro aparece como o mensageiro. Porque ele tem um ‘zum’. As pessoas ouvem, não sei se elas alcançam o inconsciente, eu não sei por que é que ele é tido como o mensageiro, o besouro. Você ouve a voz do besouro, você embarca na voz do besouro, você termina ouvindo é você mesma.

ocupação lydia hortélio


Era o final dos anos 1960, Lydia Hortélio estava na Alemanha estudando com Sándor Végh, famoso violinista húngaro, fluente nos diferentes sotaques da música erudita europeia. Ela, ao piano, pelejava para tocar uma sonata, não conseguia marcar sua interpretação com o acento que a música pedia. O professor sugeriu que imaginasse nobres dançando em uma festa na corte, mas essa imagem não dizia muito à aluna. Quais imagens diziam, então? A qual vocabulário musical correspondiam as regras de acentuação que ela dominava? Ao mesmo tempo que questionava, talvez pela primeira vez, seu sonho de ser pianista, Lydia resolveu voltar para Serrinha e se embrenhar em sua origem: foi coletar canções tradicionais da zona rural do município. 20

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capítulo 2

Inicialmente focalizando as chamadas bandas de gaita de Serrinha, essa pesquisa acabou levando Lydia de volta à Europa, agora para estudar etnomusicologia, campo que pensa a música em seu contexto cultural. “Picou-se”, como diz, para Berna, na Suíça, para ter aulas com outro Sándor, também este de origem húngara: Sándor Veress, discípulo de mestres como Béla Bartók e Zoltán Kodály. Num dos encontros, Veress pediu aos alunos que compartilhassem suas canções de infância. Quando Lydia chegou com as letras das cantigas e dos brinquedos anotadas no caderno, foi questionada de pronto: “E como é que se brinca?”. Foi aí que ela teve a revelação: a música tradicional da infância tem o poder do movimento, é a partir dela e de seu ritmo que a criança age, brinca. Há uma geometria da canção que se faz concreta na movimentação do brincar. Não se trata, então, apenas de música. Segundo a pesquisadora, para que o brinquedo aconteça, deve haver movimento, palavra, melodia e o outro. Essas quatro dimensões são essenciais e inseparáveis. Enquanto pesquisava as músicas tradicionais de sua intimidade, de sua terra, e ouvia os meninos cantarem e brincarem, Lydia foi – como ao “zum, zum, zum” do besouro – ouvindo a si mesma. Na infância, Lydia conheceu a música brasileira; quando adulta, ela a reconheceu como parte de si mesma, reconheceu a música como língua. Descobriu que, além da língua materna – ou pátria, como dizia o poeta Fernando Pessoa –, há a língua materna musical, a da música besouro


que se faz no chão em que se pisa primeiro, o chão inaugural. Cada sotaque, cada acento de cada palavra, cada tempo e forma de dizer, tudo está repleto da música original – e vice-versa. O bebê, quando sua mãe o acolhe nos braços e o embala com um acalanto, absorve o afeto, os movimentos, o ritmo, a melodia pelo corpo. Tudo o que ele sente e vive – e que usa como matéria-prima para criar-se, para inventar-se e inventar seu mundo – é apreendido pelo corpo. Música marca. Palavra marca. Definem os horizontes e circunscrevem pensamentos. Uma das figuras que marcaram o retorno de Lydia para o Brasil foi Paulo Freire. Autor de uma metodologia de ensino que parte do repertório cultural do aluno e que entende a alfabetização como uma ferramenta de transformação social, o educador pernambucano passou um bom período da ditadura militar brasileira no exílio. Em 1969, Lydia vivia em Berna e soube que ele se encontrava no mesmo país, em Genebra. Fez um contato inicial pelo telefone, apresentou-se, perguntou se podiam conversar sobre os estudos que ela vinha desenvolvendo. “Venha!”, disse ele. E ela foi. Era setembro de 1969. Lydia se lembra bem: chegou ao apartamento de Paulo no dia em que Charles Elbrick, então embaixador norte-americano no Brasil, foi libertado por um grupo de jovens estudantes que o sequestraram exigindo a soltura de 15 presos políticos. “Eu vim a saber da situação do Brasil lá”, comenta Lydia. “Um apartamento cheio de brasileiros. Uma moçada inteligente!” 22

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capítulo 2

A pesquisadora acabou passando a noite com a família do educador, e foi só no dia seguinte, durante o café da manhã, que ela lhe mostrou o material que reunira nos cadernos e nas fitas. “Eu cantava as cantigas e ele chorava. Mas chorava de soluçar!” No fim da tarde, antes de seguir para um compromisso com a mulher, Elza, Paulo deu uma carona para a estudante até a estação de trem, de onde ela voltaria para Berna. “Fomos cantando as cantigas da nossa infância. E descobrimos que tínhamos uma em comum. Era ‘Chicotinho Queimado’. ‘Chicotinho queimado, quer de noite, quer de dia, chicotinho queimado, quer de noite, quer de dia...’” Quando o carro parou na porta da estação, o educador perguntou se ela conhecia a origem desse “quer de noite, quer de dia”. Lydia respondeu que não. “Quer seja de noite, quer seja de dia”, disse Paulo. “Mas os meninos engolem [o termo ‘seja’], e aí a gente diz: ‘chicotinho queimado, quer de noite, quer de dia’.” Das conversas com seus mestres, Lydia foi ouvir o Brasil, ouvir menino. E se deixou levar com a força de sua alma menina – inteira, íntegra – pelas manifestações da cultura tradicional da infância brasileira.

besouro


Besouro é um acalanto que Lydia colheu com Celina Oliveira, descendente de indígenas, na zona rural de Serrinha. “O que você canta para os seus meninos dormirem?” Fez a pergunta como um convite para a prosa. E assim a moça revelou a canção – que até hoje emociona a pesquisadora. A composição mostra uma mãe que indaga onde encontrará uma madrinha para o seu bebê. E faz isso se dirigindo a um besouro, revelando uma forte ligação com a natureza – elemento crucial para a cultura da infância, segundo Lydia.

Amigo besouro Padim já achei Farta a madinha Onde vou acharei Zum! É besouro! Zum, zum, zum! É besouro! Zum! É besouro! Zum, zum, zum! É besouro!

A música diz o que segue – mas, além de ler, é preciso ouvir (procure escutar o “zum” do besouro):

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capítulo 3 por Natalie Catuogno e Thais Caramico

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Me foi dado a ver.

Há vários mitos em que o divino, o extraordinário, se faz menino. Jesus na manjedoura; os gêmeos ibejis, da mitologia iorubá; Rômulo e Remo, fundadores de Roma. A esses símbolos são atribuídas as forças vitais e o impulso de realizarmos quem somos, de sermos nossa essência. Essa noção também anima manifestações como a Festa do Divino Espírito Santo, na qual se comemora um tempo em que o mundo será regido por uma criança, nas palavras mesmas de Lydia Hortélio – palavras que correspondem não só a um desejo da pesquisadora, mas também a uma realidade que, segundo ela, cedo ou tarde há de se concretizar. 30

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capítulo 3

“Estamos diante da revolução que falta, que é a revolução da criança”, diz Lydia, apontando para um tempo em que o ser humano se reestabelecerá consigo mesmo, plenamente, em toda a sua grandeza, como é próprio do ser humano menino, que brinca. Ao falar desse tema que, para ela, “rege” sua vida e está em cada gesto ou coisa que faz, Lydia costuma citar o ensaísta e poeta alemão Friedrich Schiller: “o homem só é inteiro quando brinca”, diz ele em A Educação Estética do Homem. O brincar, nesse contexto, é a inteireza máxima, com a alegria máxima que dela advém; é a harmonia entre pensar, sentir e agir. “Dona Lydia é uma pessoa que vê algo na infância que a maioria das pessoas não vê”, conta o artista e educador mineiro Adelsin, fazedor de brinquedos, brincante e amigo de Lydia. “Ela acredita com todo o coração que a criança nos apresenta um mundo novo, que revela qual seria nosso próximo passo na evolução.” Esse mundo novo, no entanto, não acontece a partir do empoderamento institucional de um menino real qualquer. Não se trata de dar ao menino as chaves deste nosso velho mundo: o mundo novo se realiza justamente no universo da infância, onde reis e imperadores exercem seus poderes nos limites de uma brincadeira. É como na estrofe VIII de “O Guardador de Rebanhos”, de Alberto Caeiro – um dos heterônimos de Fernando Pessoa –, na qual o poeta narra um encontro que teve, em sonho, com o menino Jesus. cinco pedrinhas


[...] Um dia que Deus estava a dormir E o Espírito Santo andava a voar, Ele foi à caixa dos milagres e roubou três. Com o primeiro fez que ninguém soubesse que ele tinha fugido. Com o segundo criou-se eternamente humano e menino. Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz E deixou-o pregado na cruz que há no céu E serve de modelo às outras. Depois fugiu para o sol E desceu pelo primeiro raio que apanhou. [...]

Escapado do céu – onde “tinha que estar sempre sério”, onde vivia morrendo na cruz, o tempo todo com a coroa de espinhos na cabeça e com os pés trespassados de pregos –, o menino passa a viver na aldeia do poeta, interagindo, se encantando e se divertindo com as coisas e os seres da natureza – e dividindo essas experiências todas com o narrador. [...] Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava. Ele é o humano que é natural, Ele é o divino que sorri e que brinca. [...] Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas No degrau da porta de casa, Graves como convém a um deus e a um poeta, E como se cada pedra Fosse todo um universo E fosse por isso um grande perigo para ela Deixá-la cair no chão. [...]

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capítulo 3

À Lydia, segundo conta, foi dado a ver “o divino que sorri e que brinca” numa manhã dos anos 1980. Ela estava no Parque da Cidade, em Salvador, desenvolvendo um projeto ao lado de outros educadores. Às crianças presentes – pertencentes a uma comunidade local e carentes de espaços e incentivos para o brincar – foi proposta a atividade de coletar elementos naturais, como folhas e pedras, e organizá-los no anfiteatro do parque. Cada criança ou grupo tinha a liberdade de conduzir o trabalho – ou a brincadeira – à sua maneira. Um dos meninos, munido de galhos, gravetos e outros materiais, fez, muito compenetrado e grave – “como convém a um deus e a um poeta” – uma mandala com nada menos que sete círculos concêntricos, mantendo em seu centro uma fogueira preparada por outro garoto. Enquanto a obra ia surgindo, naturalmente, o garoto parecia ocupar o fio inteiro de seu ser na tarefa. Naquela manhã, Lydia viu crianças “entregues a si mesmas”, observando umas às outras, lendo umas as pesquisas das outras, em profunda e alegre reverência a um pensar que se manifesta no corpo e nos sentidos. Lydia não cansa de dizer que, a nós, nos falta brincar. Que brincar é alegria e liberdade. O brincar, para ela, é a expressão pura do ser que levamos dentro de nós e que há muito fazemos calar, cada vez mais cedo. “Se vocês brincarem de roda, terão uma experiência que, para mim, é uma maravilha”, resume ela. “Eu esqueço de mim. Você dá a mão ao outro, começa a rodar e a cantar. Não sou mais Lydia, não sou mais cinco pedrinhas


mãe, avó, nada. Você esquece de você. É um elo daquela roda. Isso é tão salutar, tão bom que nem volta a lembrar de que tem conta para pagar, artigo para escrever, tem isso, tem aquilo. Quando está mão na mão, você é feliz completamente, esquece de tudo.” É, de certa forma, como no jogo das cinco pedrinhas – aquele que o eu lírico de Caeiro brinca com o menino Jesus e que inspirou Lydia a criar a Casa das Cinco Pedrinhas, instituição voltada para a pesquisa e a difusão da cultura da criança. Você joga uma pedra para o alto, pega uma das que continuam no chão, joga outra, recolhe outra, e assim vai, até o momento em que não há mais pedras para pegar no chão porque já tem todas consigo.

Cinco pedrinhas é um dos nomes de um brinquedo que exige bastante habilidade. Há muitas variações, mas pode-se começar assim: colocam-se no chão cinco pedrinhas – ou cinco saquinhos de pano recheados de areia ou de grãos de arroz, por exemplo, na variante conhecida como cinco marias. A pessoa lança uma delas para o alto e, antes de pegá-la de volta no ar, recolhe – com a mesma mão – uma das outras quatro que ficaram no chão, sem tocar nas demais. E segue assim, jogando uma pedra e recolhendo outra, até recolher todas. Mas também é possível lançar uma pedra para cima e coletar as demais de duas em duas; ou primeiro uma e depois as três restantes...Quem deixa cair ou não consegue pegar as pedrinhas cede a vez para a outra pessoa – para outro deus ou poeta.

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capítulo 4 por Natalie Catuogno e Thais Caramico

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A música principia onde a palavra não alcança.

Sob o céu estrelado, às vezes iluminadas pela luz da lua, as mulheres da roça de Serrinha cantavam-brincavam rodas de versos. “Eu ainda alcancei a florescência daquilo”, diz Lydia Hortélio, que acompanhava esses encontros no final dos anos 1960, quando investigava as bandas de gaita da região, cujo repertório era baseado justamente nas rodas das mulheres. Das pesquisas de Lydia, ressoam músicas poderosas, que há tempos animam e dão corpo e voz aos mais importantes – e também aos mais cotidianos – eventos da vida de muitas pessoas. “Para o povo mesmo, tudo é cantado”, diz ela. “Cantam para trabalhar, cantam para rezar e cantam para brincar. A música perpassa a vida do homem do campo. Para quem vive na natureza e em comunidade, o elo é a música.” 40

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capítulo 4

E uma mesma composição pode se adaptar a diferentes períodos da vida: uma música de trabalho, por exemplo, pode virar um brinco – brincadeiras de crianças muito pequenas, ainda intermediadas pelo adulto. Há um caso, rememorado pela pesquisadora, em que um homem do campo, voltando do serviço, encontra o afilhado brincando. Alegre que só, ele ergue o bebê no colo e põe-se a cantar um dos temas que o animam em sua lida. “Se a gente for atrás de saber das pessoas, o que cantam, os costumes, a comida que cozinham, vai entendendo cada vez mais este tecido multifacetado, multi-iluminado pelas culturas desses povos todos que fizeram o Brasil.” Alice Hortélio da Silva era tia de Lydia, e foi incentivada pela pesquisadora a anotar num caderno as músicas de sua infância. A princípio, achou que não fosse se lembrar de muita coisa, mas recordou-se de 132 canções. Uma delas foi ”Moiô i ô ga Caiunga”, que Alice aprendeu com sua babá, Luisinha, e que, dizia ela, contava a história de um peixe. Lydia comenta que, muito tempo depois, um amigo pesquisador afirmou que a cantiga, com palavras até então incompreensíveis, era uma corruptela de banto, um grupo de idiomas africanos – e que, sim, era mesmo sobre um peixe. Lydia está sempre enfatizando a riqueza da cultura brasileira – revelada, em parte, pela sua música, que varia de região para região, algumas mais marcadas pelas influências africanas, outras pelas culturas indígenas ou europeias... moiô i ô ga caiunga


Para ela, a diversidade do mundo não é coisa à toa: é como se nós devêssemos um Brasil ao mundo, uma contribuição à enorme e heterogênea produção da espécie humana. Que Brasil é este que vamos compartilhar? O artista brincante Antonio Nóbrega diz de Lydia que seu interesse em testemunhar, registrar e disseminar as manifestações tradicionais da cultura brasileira não vem jamais com o intuito de transformá-las em um inventário de coisas que já passaram, que já viraram história, como peças num museu. Muito ao contrário: trata-se de um esforço para mantê-las vivas, acontecendo, em movimento. Num certo momento, numa conversa, Lydia pergunta com eloquência: “por que não estudamos as rodas de versos nas escolas, com uma infinidade de formas, uma riqueza extraordinária?”. “Agora nós vamos fazer o Brasil. E é brincando, é cantando, é mão na mão na roda.”

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Moiô i ô ga caiunga Riba riba sa caiunga Ô i, ô i Tatauê saruvai saruvém Tatauê saruvai saruvém

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posfácio por Gandhy Piorski

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Lydia Hortélio trabalhou por décadas em busca da criança, esse estado sustenido do humano. Trabalhou com elementos muito básicos, porém raríssimos e difíceis de se aplicar no campo de pesquisa, na lavoura de livramentos que é o fazer das crianças. Fez-se uma sincera buscadora dos fenômenos, trabalhou com princípios. Vejo no seu percurso algumas dessas primícias de investigação: contemplou de ouvir; auscultou de bem ver; viu por se doar e pertencer; pertenceu por se portar sempre íntima; intimou-se por se querer silente e em solitude. O catalisador de tais primícias? O brincar. Vive brincando a menina Lydia! Contemplando de ouvir, sondou os fundamentos da cultura musical brasileira. Reparou aí que nossos ritmos constitutivos nascem consubstanciados num cantar brincado junto às crianças. Intuiu da música tradicional da infância – oriunda das vidas de cuidado das famílias com seus filhos, de lida com a terra – a gestação das rítmicas fundantes do Brasil. Uma intuição de envergadura poética, que devolve à criança seu estado criador. Isso já nos basta. Não precisamos de exaustões etnográficas para avalizar tal percepção intuitiva. A criança é a instância uníssona do ser. Dela, enquanto estado d’alma, advém toda cadência. Auscultando de bem ver, perseguiu o gesto do brincar. Gestual de meninas e meninos, de uma Bahia que, fiel ao seu corpo africano, sempre foi hábil de brinquedos e brincadeiras saltadas do fogo muscular de suas crianças e da candeia barroca de suas almas. 48

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posfácio

Vendo, por se doar e pertencer, descolou-se do fenômeno do brincar e o abstraiu. Dos corpos das crianças, apreendeu uma geometria dinâmica. Em rodas, cirandas, jogos de palmas, amarelinhas, elásticos, brincadeiras cantadas nas fileiras de movimentos conjuntos, viu um misterioso elemento geométrico, em contínua transformação, sustendo o brincar. Como que surgida de uma audiência pitagórica, aponta para, insiste que o brincar tem o ato revelatório de uma matemática rítmica. Geometria originante. Iniciadora. Lydia, assim, reestabelece a criança à prima condição. Pertencendo por se portar sempre íntima, ateve-se cada vez mais aos fenômenos, interessada neles como o são. Uma flor – somente nela própria está a resposta de tudo o que ela é. Uma criança – somente nela, desde ela própria, do si de suas linguagens, está todo o mistério de seu dizer. Não há nada fora, nenhuma teoria ou explicação possível de desvendá-la. Apenas aquilo que dela se revela. Uma vez mais, Lydia apura a criança para a radícula, o embrião que se transforma em raiz, o radical da consciência. Ao mesmo tempo nos apura e nos desafia a sair da análise, das teorias, das abordagens e adquirir a capacidade íntegra de nos apresentar diante da criança. Íntima, por se querer silente e em solitude, reverenciou a criança como o quantum do mundo. Único lugar possível para qualquer transformação vital, duradoura, (re)estabelecedora de nossa humanidade. Tais percepções, materializando-se ao longo dos anos numa riquíssima antropologia visual do brincar, num apanhado musical vasto, num acervo de objetos e brinquedos, num vivo saber oral que dá sentido a tudo primícias para saber menino


isso, foram sendo gestadas por uma única membrana envoltória. A música. Os brinquedos que se cantam. Lydia Hotélio apontou para uma cosmovisão pedagógica a partir da música da criança brasileira. Deu sentido às práticas da criança e ao saber imemorial contido nelas, pelo ritmo, pelo som, pela musicalidade das culturas que se assomaram em Brasil. Dos primeiros brinquedos, existem aqueles da língua materna cantada. Quase sussurrados, esses cantos de aquietar se consubstanciam no colostro. A pátria como língua, ritmo, logo começa a ser mamada, deglutida. O bebê é amainado, aplacado das sensações agudas do mundo e devolvido à sua natureza musical. Os acalantos – talvez o maior tesouro da lavoura dessa mulher prospectora de delicados rebentamentos – são o primeiro chão amoroso, o continente filial, o abraço da cultura quando, nas palavras de Lydia, dispõe seus códigos para “saber menino”. Para “saber menino”, o corpo do adulto deve se encontrar com o corpo da criança. A criança gestualiza o gesto oferecido a ela. Os brincos nascem como uma recepção ao novo corpo ascendendo, que agora se planta para encontrar o horizonte. Músicas de aprender a andar com o apoio das mãos dos pais, músicas de cavalinho no colo, músicas de pura música para fazer rir e brincar com a pulsação do adulto. Mas também chega a hora dos primeiros voos de emancipação, quando o ninho já foi todo explorado. Ninho que (como pode?) dantes era o mundo. 50

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posfácio

E aí o brincar já não é mais do adulto para a criança. Agora é de criança para criança. Nascem assim os brinquedos cantados. As habilidades apuram-se. São muitos níveis de expressividade musical e corpórea que esses brinquedos alcançam. Especialmente quando o corpo é desperto pela destreza (aqui sinônimo de musicalidade), nesse território reinam os brinquedos cantados. Aqui cabe dizer que, nesse tempo da criança em que o brincar é permeado do nascimento de sua individualidade perante o mundo, pode-se associar uma enormidade de brinquedos e brincadeiras. Basta salientar que advêm do nascimento das habilidades, e são os brinquedos mais simples construídos pelas mãos da criança: as palmas de mãos, as adivinhas, trava-línguas, bonecas e casinhas, cinco pedrinhas, corrupio, carros de vara e lata de puxar e empurrar, barquinhos e tantos outros. Os brinquedos cantados não se restringem ao que se canta, mas marcam a entrada da criança numa grande faixa, trazem a peculiaridade daquilo que nasce dela própria. Portanto, o fenômeno se amplifica aos olhos de Lydia, que não termina nunca sua observação. Revisa ela própria seu acervo. As imagens, sempre ali, num súbito presentam uma novidade, fundeiam uma reflexão, revivificam uma indagação. A essa altura já não vê mais só gestos, mas alma que salta do brincar. A criança plenifica-se, diviniza-se. Lydia evoca não menos que o menino Jesus acompanhado de Alberto Caeiro, heterônimo de Fernando Pessoa, guardando os rebanhos do extemporâneo. primícias para saber menino


O menino que, como um deus muito simples, nada tendo de Deus (esse muito complexo dos templos), transforma em cosmogonia sua brincadeira de pedrinhas. Por fim, as rodas de versos são os últimos brinquedos, um tempo de passagem. Lugar onde as meninas e os meninos dramatizam a linguagem descobrindo o outro. Fazem perspicácia com os desejos, aproximam-se da saudade, enamoram-se do amor. Rodas em que os adultos também brincam. Os versos cantam a graça, a elegância e o galanteio. Desafiam o outro a se apresentar pelo repente e improviso. Estar em desafio sem perder o tino. Essa poética dos versos ressoa de um Brasil comunitário, ainda resistente, em que a vida que se vive conversando, “vida conversável”, segundo Agostinho da Silva, filósofo, poeta e ensaísta, é uma ética, um modo, uma filosofia de viver. E o ouvido é, então, um órgão acolhedor, baliza importante da gentileza. As rodas de verso parecem ser os últimos brinquedos da “criança nova”, aquela que todos fomos um dia. Mas, para a “criança eterna” que em nós habita, nunca deixando o ser, sendo mesmo a finalidade de sua existência, o brincar jamais é último, sempre é primeiro. Lydia Hortélio semeou e segue a semear um legado pedagógico. Continua a preparar com sua vida um espírito de pesquisa para “sabermos menino”. Uma postura que se ajunta, faz-se coesa, nos princípios de honradez da criança que só acontecem caso se saiba contemplar, ouvir, ver, pertencer e íntimo ser. Eis um modo de viver o brincar. 52

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concepção e realização  Itaú Cultural e Instituto Alana curadoria  Itaú Cultural, Adelsin e Gandhy Piorski cenografia  Adelsin expografia  Itaú Cultural ITAÚ CULTURAL presidente  Milú Villela diretor-superintendente  Eduardo Saron superintendente administrativo  Sérgio M. Miyazaki NÚCLEO DE MÚSICA gerência  Edson Natale coordenação  Andréia Schinasi pesquisa e produção-executiva  Vinícius Murilo NÚCLEO DE MEMÓRIA E PESQUISA gerência  Tatiana Prado coordenação  Eneida Labaki pesquisa e produção-executiva  Eduardo Ochi digitalização de documentos  Laerte Fernandes NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E LITERATURA gerência  Claudiney Ferreira coordenação de conteúdo audiovisual  Kety Fernandes Nassar produção audiovisual  Camila Fink roteiro, captação de imagens e edição  Karina Fogaça captação de som  Raquel Vieira (terceirizada) e Tomás Franco (terceirizado)


NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO gerência  Ana de Fátima Sousa coordenação de conteúdo  Carlos Costa produção e edição de conteúdo  Heloísa Iaconis (estagiária), Marcella Affonso (estagiária) e Thiago Rosenberg redes sociais  Jullyanna Salles, Marina Lahr (estagiária) e Renato Corch produção editorial  Luciana Araripe e Victória Pimentel supervisão de revisão  Polyana Lima revisão  Karina Hambra (terceirizada) identidade visual  Mily Mabe edição de imagens  André Seiti e Anna Carolina Bueno (estagiária) captação de imagens  André Seiti NÚCLEO DE PRODUÇÃO DE EVENTOS gerência  Gilberto Labor coordenação  Vinícius Ramos produção  Carmen Fajardo, Érica Pedrosa, Heloisa Vivanco (terceirizada), Sofia Gava (estagiária) e Wanderley Bispo NÚCLEO DE EDUCAÇÃO E RELACIONAMENTO gerência  Valéria Toloi coordenação de atendimento e formação  Samara Ferreira equipe Amanda Freitas, Caroline Faro, Diego Pinheiro Vieira (estagiário), Edinho dos Santos, Edson Bismark, Elissa Sanitá Silva, Lucas Batista, Monique Rocha dos Santos (estagiária), Roger Ramos, Sidnei Junior, Victor Soriano, Vinicius Magnum, Vitor Luz e Vitor Narumi AGRADECIMENTOS Lucilene Silva, Stela Barbieri, Ivan Vilela, Regina Machado, Elisa Goritzki, Ingo Goritzki, Maria Amélia Pereira (Peo), OCA e Grupo Planeta

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sábado 20 de julho a domingo 8 de setembro de 2019 terça a sexta | 9h às 20h (permanência até as 20h30) sábado, domingo e feriado | 11h às 20h piso térreo | entrada gratuita

Itaú Cultural Avenida Paulista, 149, São Paulo, SP


Memória e Pesquisa | Itaú Cultural Ocupação Lydia Hortélio / organização Itaú Cultural. - São Paulo : Itaú Cultural, 2019. 60 p. : il. ; 23x15 cm ISBN 978-85-7979-124-6 1. Hortélio, Lydia, 1932. 2. Educação. 3. Infância. 4. Brincadeira. 5. Música e criança. 6. Cantigas. 7. Exposição de arte – catálogo. I. Instituto Itaú Cultural. II. Título. CDD 780.7

Esta publicação foi composta da família tipográfica Avenir Next. O miolo foi impresso no papel Pólen Bold 90 g/m2 e a capa no Alto Alvura 240 g/m2, pela Margraf, em julho de 2019.




realização:

parceria:


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