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Drags na tela

Silvetty Montilla, Ikaro Kadoshi, Ginger Moon e Don Valentim revelam suas histórias por trás e em frente das câmeras por Cristiane

Batista

Nos espetáculos de teatros da Grécia Antiga no século V a.C., os homens se vestiam de mulheres para interpretar as figuras femininas, pois não era permitido a elas atuar – situação que seguiu no século XVI, nas peças shakespearianas na Inglaterra; no XVII, no Japão, com o teatro cabúqui; e no século XIX, na Ópera de Pequim chinesa. Restritos aos papéis femininos, somente a partir dos anos 1960, com o avanço de pautas de gênero e costumes, transformistas (como eram chamados) passaram a se apresentar com maior liberdade em performances teatrais, expandidas nos anos 1970 e 1980 para clubes e programas de televisão.

No Brasil, as portas da esperança para essa classe começaram a se abrir em programas de calouros e talk shows, com os artistas gradualmente ganhando espaço e notoriedade. Primeiro, em concursos de beleza e performance; depois, fazendo pontas e pequenas participações em programas humorísticos, novelas e entrevistas, até alcançarem o estrelato como protagonistas de seus próprios projetos.

O boom de popularidade foi puxado pelo êxito de RuPaul’s drag race, reality show norte-americano criado por RuPaul Charles, chamado de Mama Ru por seus fãs, em que drag queens disputam a coroa e o título de drag superstar – além do prêmio de um bom punhado de dólares – em batalhas concorridíssimas, marcadas por ousadia, humor e muita “gongação” por parte do apresentador, que exige das candidatas dedicação, expressa em sua clássica frase “You better work!”

[“É melhor você se esforçar!”]. Em sua 15a edição, o programa possui uma versão all stars – disputa entre as vencedoras das temporadas anteriores. Já recebeu indicação a 23 prêmios Emmy, o Oscar da televisão norte-americana, e ganhou nove estatuetas.

No esteio de RuPaul, outras atrações têm revelado talentos pelo mundo, como Legendary (HBO Max), Queen of the universe (Paramount+), Dragula (Prime Video) e La más draga (YouTube). No Brasil, Silvetty Montilla (Academia de drags), Ikaro Kadoshi (Drag me as a queen e Caravana das drags), Ginger Moon e Don Valentim (All that drag) revelam suas histórias atrás e em frente das câmeras no melhor estilo “prazer e delícia de ser quem se é”. Como diria RuPaul em todo fim de episódio: “Você fica ou você sai?”.

Silvetty Montilla: mestra do riso e do improviso

Dona de bordões como “Tá boa?”, “Aí, tá ótimo!”, “É o que tem pra hoje” e “Foca nas joias”, há 35 anos Silvetty Montilla se notabiliza pelo talento e bom humor em suas performances “Ator transformista, cantora, dubladora, hostess, animadora de festa, modelo, apresentadora de TV e youtuber”, como se define, Silvetty “se vira nos 30” nos mais diversos espaços: em palcos de boates e teatros, no cinema, na televisão e em programas digitais em seu canal – que contabiliza 84.700 inscritos –, ou à frente do reality show Academia de drags, que estreou em 2014, inspirado em RuPaul’s drag race

Acumulando três temporadas, em sua Academia, Silvetty encena um misto de “diretora da escola” e mestra de cerimônias, revelando nomes da cena em busca da “mais completa drag do Brasil”. Com sua irreverência peculiar, e ao lado de um “conselho de classe” formado por drags veteranas e profissionais da moda, ela auxilia concorrentes de todo o país a explorar ao máximo suas possibilidades na construção de personagens. São testadas habilidades como caracterização, interpretação, dança, humor, personalidade e desenvoltura na passarela.

“Adoro diz Silvetty. “Temos de ocupar todos os lugares, afinal fazemos parte do mundo. O sucesso de uma abre o caminho das outras, assim como ocorreu comigo. Como diz uma amiga: ‘O importante não é acontecer, é permanecer!’”.

Silvetty venceu a timidez da infância por causa do seu amor às artes, que a impulsionou a superar diversas limitações.

Ela começou dançando, tocou em uma banda marcial e se transformou em drag queen por acaso: “Nem imaginava que poderia ser uma drag. Eu era concursada, trabalhava no Fórum de São Paulo e, nos fins de semana, ia à boate Fábio’s me divertir”, lembra ela. “Participei de concursos de beleza – ganhei oito! – e fui jurada na casa noturna Nostro Mondo, até que, um dia, a apresentadora não foi e eu a substituí. Daí o povo amou e eu também! Hoje, para mim, ser drag significa alegria, trabalho, sustento, minha vida.”

Nos shows, é comum ver Silvetty parodiar a canção “O que é, o que é”, de Gonzaguinha, que em sua versão ganha novo refrão: “Viver… e não ter a vergonha de ser uma drag queen! / Bombar e bombar e tombar, toda bicha pintosa que me der close! / Eu sei… que a vida devia ser bem melhor e será! / Mas isso não impede que eu repita: / Sou bonita! Sou uma drag que acredita!”.

Ikaro Kadoshi e a arte da transformação

Assim como Silvetty Montilla, Ikaro Kadoshi diz ter sido uma criança tímida, “do tipo que tinha vergonha de pedir informação na rua”. Ele, que foi exorcizado por seis freiras para reprimir sua homossexualidade e perdeu quase todos os amigos quando assumiu sua persona, é hoje uma das mais emblemáticas drag queens do país.

“Sou o he, o she e o it. Uma figura andrógina. Queria que a minha arte fosse liberta da estética fechada do dualismo feminino/masculino e resolvi conceber a minha drag com os símbolos de ambos”, diz. O nome veio em partes: primeiro “Ikaro”, personagem da mitologia grega conhecida pelo sonho de voar. Após cinco anos, “Kadoshi”, que significa “santo” em hebraico e, segundo ele/a, traduz a mensagem que quer passar, “porque toda arte é santa”.

Com 20 anos de carreira, Ikaro voou além do que poderia imaginar. “Nunca foi sorte, sempre foi Exu”, diz, em referência ao orixá “mensageiro, que abre caminhos”. Também jornalista e apresentador, discursou no XVI seminário LGBT do Congresso Nacional, em 2019, e foi a primeira drag a apresentar um concurso de Miss Universo, em 2021.

Ao lado das drags Rita Von Hunty e Penelopy Jean, Ikaro comandou o reality show Drag me as a queen (canal E!), que estreou em 2017 e teve quatro temporadas. Na atração, a cada

“Adoro fazer e ver esses programas”, diz Silvetty.

“Temos de ocupar todos os lugares, afinal, fazemos parte do mundo. O sucesso de uma abre o caminho das outras, assim como ocorreu comigo. Como diz uma amiga: ‘O importante não é acontecer, é permanecer!’” episódio uma mulher era convidada a investigar suas memórias, seus desejos e suas frustrações e compor uma persona, “a sua versão drag queen”. No processo, a participante desenvolvia com as tutoras um nome de guerra, uma coreografia, penteados e maquiagens poderosas, para que a personagem revelasse sua melhor porção “diva”. “Drag queen nunca é um esporte solo. Aprendi a me maquiar olhando os outros, por exemplo. Como saldo, todas saímos melhores do que entramos, e o maior presente do programa foi essa troca”, diz Ikaro. “Ser drag é ter o poder da transformação. É arteterapia, e a arte nos ajuda a questionar o tempo. Acho que todo ser humano deveria se montar uma vez na vida.”

Atualmente, Ikaro está à frente do reality show Caravana das drags (Prime Video), ao lado da popstar Xuxa Meneghel. As duas fazem uma turnê por oito cidades brasileiras (Belém, Diamantina, Fortaleza, Goiânia, Recife, Rio de Janeiro, Salvador e São Luís) a bordo de um ônibus temático em busca da merecedora do título de “drag soberana”. “As brasileiras são as melhores do mundo! Somos criativas, tiramos leite de pedra da vida difícil que nos é imposta e ainda temos o Carnaval como bônus”, celebra Ikaro. “Queremos ver de perto esses talentos e valorizar também a cultura de cada estado participante, além de mostrá-la a pessoas de 190 países.” Sobre a popularização desse tema, impulsionado pelos programas, é enfático: “Passamos dessa fase. O próximo passo é humanizar e difundir a empatia”.

Ginger Moon: protagonista de sua própria história

“Ser drag para mim é pirataria, porque esses conceitos de feminino e masculino são falsos. Então, se você entende suas duas porções, pode desvencilhar o gênero da arte”, define Ginger Moon, mulher cisgênero não normativa, gorda e “draglesque”, já que usa referências da arte burlesca para se expressar e transcender questões de gênero na arte drag queen.

“O burlesco burla tudo o que esperam que você seja. E ser drag para mim é pegar o seu próprio caos interno e lidar com ele de forma performática. Eu misturo as duas coisas”, explica.

Ginger também é atriz, modelo plus size, maquiadora e uma das estrelas do documentário All that drag, lançado em 2022 pelo canal E!. Nele, ela narra sua trajetória em teatro e dança e mostra seu processo de composição, que, além de penas, plumas e muito brilho, inclui doses de autoaceitação e empoderamento.

“Sempre tive um corpo gordo. Com o tempo, fui percebendo que nesses meios eu nunca iria ter um papel principal sem ser taxada de gorda engraçada e/ou que sofre bullying”, diz ela. “Em 2015, comecei a assistir a RuPaul’s drag race e me perguntei: por que não?” No mesmo ano, Ginger fez um contato pelo Facebook com a drag Palloma Maremoto, entrou em um grupo de mulheres drags e recebeu um convite para se apresentar. Ela buscou referência em sua ascendência asiática e inspiração em outras figuras femininas históricas, como Carmen Miranda e Elke Maravilha, além da drag mineira Mallona, também um corpo gordo.

“A Ginger me tornou a protagonista da minha própria história. Ela constrói a Bruna [seu nome de batismo], as duas mudam, se completam e se potencializam. Recebo relatos de outras mulheres dizendo que se inspiram em mim, porque a sociedade não quer que pessoas gordas e LGBTQIAP+ sejam o que são; então, esse também é um posicionamento político”, diz ela.

Ginger afirma ter sofrido preconceito de outras drags e da própria família, de cruéis olhares enviesados a um hater digital, que a assediou e ameaçou de morte em uma rede social. Mas ela não se dobrou: “Minhas performances são sobre lidar com dores que eu tive, saber lidar com elas no palco. A do Swan queen, por exemplo, faz referência ao Lago dos cisnes e foi inspirada em uma agressão que sofri. E tive vontade de morrer, mas consegui renascer. A drag me liberta!”.

Don Valentim: um drag king e seu deboche

“Sou uma pessoa trans, não binária, que atende pelos pronomes ele/dele. Uma pessoa designada mulher ao nascer que sempre teve conflitos com essa imposição da feminilidade constante”, explica o drag king Don Valentim. Também personagem do documentário All that drag, ele começou a explorar seus signos masculinos inspirado na linguagem circense. “Os trapezistas, o apresentador e os palhaços, por exemplo, são figuras que não trabalham com essa lógica da masculinidade hegemônica que encontramos em nossa sociedade. Isso sempre me encantou”, diz.

Para desenvolver sua persona, Valentim primeiro buscou tutoriais de maquiagem na internet com o objetivo de “masculinizar” seu rosto, deixando-o mais anguloso, incluindo pelos faciais e usando efeitos de luz e sombra para modificar os contornos. No processo, conheceu outros drags kings, como os cariocas Charlie Wayne e Wendell Cândido e o paranaense Rubão, criador da Oficina de drag king e da festa Kings of the night. A partir desses encontros, virtuais e presenciais, ganhou estímulo para sua primeira “montação”, em 2017. “No começo era difícil. Chegavam as minas montadas e ninguém dava credibilidade, porque muita gente tem essa ideia de que drag queen é o homem que se monta de mulher. É um recorte muito específico, porque sempre são mulheres: homens e mulheres fazendo queens. Fazemos a lógica reversa”, explica.

Valentim experimenta os signos da masculinidade em sua estética a partir de suas vivências. “Drag é muito sobre se adaptar e ressignificar. Uso meu corpo como uma tela: no começo, fazia o desenho do bigode e da barba com cola, picava cabelo bem fininho e aplicava com um pincelzinho em cima da cola, para dar essa ideia de barba mais rala. Hoje, muitas vezes grudo dois bigodinhos de EVA, porque isso combina mais com a minha estética. Dependendo da proposta, colocamos aquele volumezinho na cueca, o famigerado ‘pau de meia’. Você remodela o corpo do jeito que quiser”, acredita.

Em relação à performance, o artista afirma que o show também mudou: “Antes, eu pensava que tinha de agradar ao público, e isso me travava muito. Quando consegui me soltar e curtir, entendi que, se fizesse uma coisa em que botasse fé, as pessoas iriam comprar a ideia. Gosto de levar estranheza, de externar o meu mundo, a minha lógica, que muitas vezes é bizarra. Para mim, o deboche é a principal chave do trabalho”.

Coordenação editorial Carlos Costa

Edição Fernanda Castello Branco e Icaro Mello

Conselho editorial Ana de Fátima Sousa, Carlos Gomes, Galiana Brasil, Natalia Souza e Regina Medeiros

Projeto gráfico Guilherme Ferreira

Produção gráfica Lilia Góes (terceirizada)

Fotografia PJ AFROP [@pj.afrop (terceirizado)]

Assistência de fotografia Ferrerin [@peluzoi (terceirizado)]

Fotografia do making of André Seiti e Letícia Vieira (estagiária)

Produção editorial Bruna Guerreiro e Mylena Oliveira dos Santos (estagiária)

Supervisão de revisão Polyana Lima

Revisão Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas)

Créditos das fotografias

André Seiti e Letícia Vieira (estagiária), fotos do making of nas páginas: 28 a 31, 34 a 37, 40 a 43, 46 a 49, 52 a 55 e 58 a 61