7 minute read

Faça uma pose!

por Cristiane Batista

Na clássica “Vogue”, Madonna dá a dica: “Conheço um lugar para onde você pode fugir. Chama-se pista de dança. Deixe seu corpo seguir o ritmo, você sabe que consegue. Tudo o que precisa é de sua imaginação”. Lançada em 1990, a música vendeu mais de 6 milhões de cópias e ganhou um videoclipe em branco e preto que mostra a diva pop executando os passos da dança vogue, que conhecera na discoteca Sound Factory, em Manhattan, Nova York, nos Estados Unidos.

A coreografia, no entanto, foi criada bem antes, na década de 1960 e sem a atenção merecida, no bairro nova-yorkino do Harlem, por grupos queer de pessoas negras e latinas, que sofriam com a opressão racial e social. A dança popularizou-se nos anos 1980 nas ballrooms, salões de baile que, mais do que entretenimento, ofereciam acolhimento a seus frequentadores.

Nas ballrooms, os dançarinos integrantes de houses (grupos com organização semelhante a uma família) desfilavam poses, caras, bocas, pernas, braços, mãos e quadris em movimentos ousados, inspirados nas posições que as modelos brancas faziam em revistas e desfiles de moda, nos hieróglifos do Antigo Egito e em deslocamentos da ginástica, sempre acrescentando um toque pessoal às apresentações. Ao final da noite, um júri escolhia a melhor performance, considerando características como beleza, figurino, criatividade, carisma, atitude e muito fervo, é claro.

Como prêmio, mais do que troféus, o importante era o reconhecimento de seus pares e o fortalecimento de todes, como mostram o documentário Paris is burning, lançado em 1991 (vencedor do Prêmio do Júri no Festival de Sundance no mesmo ano), e a série Pose, ambientada em 1987, que acumula três temporadas desde 2018 na Netflix.

Como na cultura ballroom, que se espalhou pelo mundo, com muitos adeptos no Brasil, os caraoquês também têm se mostrado um espaço libertário, em que cantores iniciantes, semiprofissionais ou profissionais podem soltar a voz, desconstruir padrões e celebrar a diversidade. Mais do que isso, os caraoquês são lugares em que todes podem sonhar e ser superstars de sua própria vida.

Paula Zaidan e a cultura ballroom

Dançarina, professora, produtora cultural e jurada das mais eletrizantes batalhas de vogue no Brasil, a mineira Paula Zaidan integra o coletivo Trio Lipstick, ao lado de Raquel Parreira e Maria Teresa Moreira. O grupo realizou o primeiro festival internacional da dança vogue na América Latina, o BH vogue fever, que em 2022 chegou à sua oitava edição, com o tema “Ball da quarta dimensão”.

Uma das pioneiras da dança vogue no Brasil, Paula se aproximou desse universo aos 18 anos, em 2008, em um festival de danças urbanas em Curitiba (PR), quando conheceu o lendário dançarino nova-yorkino Archie Burnett (da famosa House of Ninja, retratada na série Pose). “Primeiro, eu me encantei com a modalidade. Depois, fui a Nova York e conheci uma ball [diminutivo de ballrooms, os salões de baile] e o contexto da comunidade e da cultura de bailes local. Comecei a me aprofundar no tema e surgiu a vontade de fomentar essa cultura no Brasil”, diz ela.

O BH vogue fever nasceu em 2015, de uma parceria entre o coletivo, Guilherme Morais – criador da festa Dengue, que já promovia batalhas de vogue em Belo Horizonte (MG) – e o dançarino Archie Burnett. Hoje, movimenta houses de todo o país, tem representantes brasileiros em casas internacionais da cena main, a original internacional, e realiza oficinas e workshops. “Sempre exaltamos corpos diversos pretos e trans, tradicionalmente marginalizados na sociedade, para que se mantenham no protagonismo da cultura ballroom”, explica Paula.

Os elementos básicos da dança são compostos de movimentos como hands performance (de braços, pulsos, mãos e dedos), floor performance (feitos no chão, usando principalmente pernas, joelhos e costas), duck walk (imitando o andar dos patos,

Como na cultura ballroom, que se espalhou pelo mundo, com muitos adeptos no Brasil, os caraoquês também têm se mostrado um espaço libertário, em que cantores iniciantes, semiprofissionais ou profissionais podem soltar a voz, desconstruir padrões e celebrar a diversidade. Mais do que isso, os caraoquês são lugares em que todes podem sonhar e ser superstars de sua própria vida com corpo agachado, dando chutes para a frente) e catwalk (imitando o andar dos gatos), além de dips (mergulhos), spins (giros) e dramáticas expressões e jogadas de cabelo.

“Não podemos esquecer que os fundamentos técnicos são ensináveis, mas a execução da regra muda de acordo com a personalidade de quem dança”, observa Paula. “No Brasil, ainda que os códigos e as linguagens sejam os mesmos da cultura ballroom estadunidense, em nossos bailes incorporamos e adaptamos outras categorias, com a inclusão de elementos do funk, do passinho, do samba, da capoeira e do frevo, por exemplo.”

Após as apresentações/batalhas, os candidatos são avaliados por um júri formado por pessoas mais experientes da cena, a mãe ou o pai de alguma casa e/ou alguém com capacidade técnica em relação à identidade de cada house, no estilo “que vença o melhor”. Mas, como na música de Madonna, “a beleza está onde você a encontra”.

Miranda Temporária: uma mãe presente em desenvolvimento

Miranda Temporária se aproximou da comunidade ballroom em 2016, enquanto procurava referências de artistas de que gostava durante seu processo de descoberta como dançarina.

“Assisti a um vídeo no YouTube de Leiomy Maldonado [transgênero porto-riquenha conhecida como ‘a Mulher Maravilha da vogue’] e aquilo me cativou muito! Entrei em contato com a Akira Avalanx, da House of Avalanx, existente em São Paulo, em Minas, no Rio e no Ceará, e ela me ensinou muitas coisas. Em 2017, fui ao BH vogue fever para a edição

Translumbrante ball e aí…”, lembra, rindo.

Como Leiomy e Akira, Miranda é uma mulher preta trans que faz mágica com o que tem e desenvolve seu trabalho com parcerias e muita luta. Após fazer parte das houses Pioneer e Kiki House of Avalanx, ela resolveu abrir a sua própria, a Kiki House of Quengaral, em Fortaleza (CE), que atualmente possui nove integrantes.

“Minha casa é como eram as originais, na época em que as travestis chamavam as mais jovens abandonadas por suas famílias para criá-las”, explica. “A Quengaral é uma casa de família, que prega o respeito, a paz, a saúde mental, o bem-estar e a celebração da vida. Somos contra o racismo, a transfobia, o classismo e outras formas de violência, para que a gente não as reproduza.”

Miranda mora com a madrinha da house, Joana, e suas “filhas” vivem próximas e estão sempre na casa da “mãe”, compartilhando momentos íntimos para além da ball. “Ter nossa família escolhida fortifica a nossa existência. Nem sempre a gente tem esse conforto e amor na família de sangue”, diz ela.

Além da ausência de cuidado consanguíneo, a artista cita a falta de apoio do Estado e das instituições para o desenvolvimento das atividades de dança dessa cena: “Chamamos a nossa cena, do Nordeste e do Norte, de ‘None’, e ainda não temos um reconhecimento traduzido em investimento. Isso reflete o preconceito estrutural, que ainda nos censura por nossas falas e vestimentas, por exemplo. Mas sou sonhadora e acredito que estamos avançando com nossas particularidades. Ao final, a cena ballroom inteira se ajuda. Somos ‘Fortaleza’!”.

Luara Yanguas: a musa do caraoquê

A professora Luara Yanguas é uma mulher trans em processo de transição, que iniciou há pouco tempo sua terapia hormonal e atualmente está com uma deficiência física, devida a um desgaste na articulação do quadril. Sem perder a postura e o rebolado (nem descer do salto alto), bate ponto aos fins de semana no Terraço’s Lounge, misto de bar, casa de shows e caraoquê no bairro do Bixiga, em São Paulo.

Até chegar lá, ela demora de duas horas e meia a três horas para ficar pronta. Seu ritual de beleza inclui higienização completa do corpo e da pele, e escolha do figurino, dos tons da maquiagem e do penteado que vai usar. “Depende do meu clima no dia. Coloco um roupão e uma trilha sonora, que vai de Maria Callas cantando ‘O mio babbino caro’ a ‘Gira’, remix do DJ Breno Barreto, e desenrolo a produção”, conta.

No palco, ao lado das amigas trans Fê e Mel e do amigo Rafa, ela solta a voz e arranca aplausos de uma plateia bastante heterogênea, cantando clássicos como “Não deixe o samba morrer” e “Sufoco” (aquela do “Não sei se vou aturar esses seus abusos”), famosas na voz de Alcione, além da dançante “Canibal”, de Ivete Sangalo. “A música move minha vida, libera minhas emoções e faz com que eu extravase e consiga lidar da melhor forma com algumas situações. É o que a minha mãe fala: ‘Quem canta seus males espanta’”, diz ela, rindo.

Em cima do praticável, espaço montado de poucos metros quadrados para as apresentações, Luara se expressa sem medo de ser feliz e não liga para julgamentos: “Às vezes sinto um preconceito velado, mas no caraoquê não tem competição, vencedores ou perdedores. Todo mundo se respeita e se aplaude, não importa se a pessoa cantou bem ou não. É só pegar a senha”. Ela conta que frequentou baladas de todo tipo, mas agora também está se permitindo experienciar a vida diurna. “Sinto necessidade de evoluir e mostrar que nós, mulheres trans, podemos e devemos estar no lugar que quisermos.”

A troca dos clubes escuros pelo ambiente iluminado do caraoquê também tem rendido boas surpresas para Luara. “Quem vê cara não vê coração, né? No darkroom das baladas, por exemplo, como as pessoas não se veem, as coisas rolam pelo tato, pelo gosto, pelo cheiro, e acaba ali. Muitas pessoas querem ficar com a gente por fetiche, acham que somos garotas de programa e/ou não têm coragem de nos assumir, mas eu cansei. Se quiser falar comigo, tem de ser no meio do salão. Tem de saber flertar, ter respeito e um papo bom. Nada de chegar já chamando para ir ao ‘banheiron’”, afirma.

A nova postura tem dado resultado: Luara está conhecendo melhor um rapaz que a beijou em frente ao palco do Terraço’s. Eles trocaram telefone e têm conversado durante a semana sobre os mais diversos assuntos, sempre com muito bom humor. “Tem um trecho na ‘Gira’, música de Breno Barreto, que diz: ‘A vida pede gargalhada e movimento’. É isso.”