revista Oiticica - A Pureza É um Mito

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Essa glosa sintética e ideogrâmica de Oiticica ao “Inferno de Wall Street”, Canto X d’O Guesa de Sousândrade, escrito nos anos 1870 pelo poeta maranhense, repercute seu verso, no título evocado: Rediviva, um século depois, Agrippina É Roma-Manhattan. Acompanhada por este cavalheiro nordestino que nada tem dos Césares que ela inspirou, governou, de quem foi a fêmea fatal. Nem de Nero, tirano-mor incendiário de Roma, que, além de seu filho, foi seu projeto “demoníaco” de poder – e finalmente seu assassino, criatura superando o criador (sua Optima mater, “a melhor mãe”, como ele a chamava). Nem súdito nem senhor, o acompanhante de Agrippina aqui ressoa mais como um cândido inca, ou atual migração contingente ao Gigante do Norte, um discretíssimo e conveniente Guesa Errante, revigorado desde o poema visionário. Agrippina nada mais tem de hierática no segundo bloco. Zanza meio perdida por uma esquina movimentada, esperando não sei o que, com trajes de baliza em fanfarra comemorativa. Sua disponibilidade um pouco inquieta, vento nos cabelos dourados levantando a saia azul, podem sugerir um trottoir meio pop, jogando com o senso de festejo cívico daquele traje. Da anterior eminência tirânica à banalidade do trottoir, translada-se a blonde de Roma a Manhattan. Estamos ainda, em todo caso, no império. No império norte-americano sempre, se tomamos a encenação hierática do começo como momento igualmente pop, num sentido ampliado para a indústria hollywoodiana, a blonde star de cinema, “Vênus vulgar”, a mulher reificada como figura máxima dos mass media, o fator de sedução de que fala Haroldo de Campos, então amigo e interlocutor de H.O., ao versificar Marilyn Monroe no seu work in progress, já editado em parte nos anos 1960, Galáxias. O poeta concretista tomava a figura de Marilyn, de grande presença no romance PanAmérica (1967), de José Agrippino de Paula, relato pop lembrado como precursor do tropicalismo. Nesse romance plástico de Agrippino – ressonância inevitável com o argumento de H.O. –, um narrador vive os EUA de Hollywood como uma superação onírica do fetiche que acomete a população global; sintomaticamente, obra coetânea não só do trabalho de Haroldo como de Terra em Transe, de Glauber Rocha, para não falar d’A Sociedade do Espetáculo, de Guy Debord. Marilyn ela mesma possui aparições notáveis nas calçadas de NY para além das saias alçadas no vento, soprado pelo respiradouro do metrô. Em Páginas da Vida (O. Henry’s Full House, 1952), faz uma ponta brilhante justamente como uma prostituta na esquina, recatadamente esfuziante ao acolher a abordagem pretensiosa de um vagabundo (Charles Laughton), sob o olhar de um guarda em patrulha. Vinte anos antes dessa Vênus vulgar de Cristiny, que também é precedida de dois ou três anos pelas de Helena Ignês, que criou figuras bastante aproximáveis em filmes de Rogério Sganzerla, em Mulher de Todos (1969) e sobretudo em Copacabana Mon Amour (1970). Nesse último, a blonde-ícone do cinema marginal faz uma profissional do trottoir em esquinas de Copacabana. O ideal

feminino nessas Vênus de celuloide, entre o sublime e o vulgar, o mito e o real, o empostado e o espontâneo, o ideal e o sensual, o transcendido e o mundano, fazse presente nesta Agrippina-Cristiny de Oiticica. Sua matriz mais próxima vem das “ivamps” do super-8 de Ivan Cardoso, que desde Nosferatu no Brasil encarnavam essa dualidade de turminha de amigas do convívio carioca e pin-ups auráticas da ribalta, que H.O. relê por sua ótica arte-vida.

Nos três blocos de Agrippina delineia-se algo como um sucedâneo da tríade tese, antítese e síntese. A cena vertical, hierática, estruturada e mítica, desdobra-se em horizontal, libérrima, banal e mundana, figurando um contraponto. E Agrippina é sucedida então pelos artistas latinos, que a seu modo repropõem um dialogar com Wall Street. Traduzirão a figura metropolitana mítica e mundana. Em tradição dramática ocidental de personagens-prostitutas exprime-se o caráter da vida subjugando-se à função de troca mercadológica – metáfora crítica da vida moderna. O terceiro bloco configura uma encenação meio circular, amarrada e viciosa. Em tentativa de sintetizar ou corresponder aos blocos anteriores, a câmera procura desde logo a afirmação das sumidades verticais. Restitui aos edifícios uma ordem fálica, mas rende-se ao jogo de dados mais empírico, no espaço público das ruas. Ao descer dos edifícios-falo (chega a captar silhueta-pênis singular do emblemático Flatiron Building), curva-se em círculos nos corpos dos jogadores de dados e sua sorte jogada nas chapas de aço enferrujadas, de algum canteiro de obra subterrâneo de metrô (há trabalhadores abaixo do chão?). Ao curvar-se sobre o jogo alternado daquela dupla de desclassificados (a anomia do capital espe-

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