Observatório 12 - Os públicos da cultura: desafios contemporâneos

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NÚMERO

Os públicos da cultura: desafios contemporâneos Possibilidades e limites para ampliação de públicos Conceito de público: reflexões a partir do cenário cultural contemporâneo Uma aguda reflexão sobre a relação entre arte contemporânea e público




Foto: Humberto Pimentel

Centro de Documentação e Referência Itaú Cultural Revista Observatório Itaú Cultural : OIC. – N. 12 (maio/ago. 2011). – São Paulo : Itaú Cultural, 2011. Quadrimestral. ISSN 1981-125X 1. Política cultural. 2. Gestão cultural. 3. Consumo cultural. 4. Formação de públicos. I. Título: Revista Observatório Itaú Cultural. CDD: 353.7

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n. 12 2011

SUMÁRIO .08

OS PÚBLICOS DA CULTURA: DESAFIOS PARA AS POLÍTICAS CULTURAIS Isaura Botelho

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DEMOCRATIZAÇÃO DA CULTURA: FIM E CONTINUAÇÃO? Olivier Donnat

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AS POLÍTICAS CULTURAIS DIANTE DOS CRITÉRIOS DE JUSTIÇA: REFLEXÕES A PARTIR DO CASO FRANCÊS Philippe Coulangeon

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O quarto ofício [métier] da infância: o de consumidor cultural Sylvie Octobre

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OS PÚBLICOS DAS ARTES DO ESPETÁCULO NA FRANÇA Jean-Michel Guy

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A ARTE CONTEMPORÂNEA EXPOSTA ÀS REJEIÇÕES: CONTRIBUIÇÃO A UMA SOCIOLOGIA DOS VALORES Nathalie Heinich

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A CONQUISTA DOS PÚBLICOS, OS DESAFIOS DE UM CENTRO CULTURAL FRANCÊS NO EXTERIOR: O CASO DE ALEXANDRIA, NO EGITO Brigitte Rémer

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Revista Observatório Itaú Cultural Editora Isaura Botelho Editor de imagem Humberto Pimentel Equipe de edição Josiane Mozer Mariana de Oliveira Machado Selma Cristina Silva Produção editorial Lara Daniela Gebrim Tradução Mateus Araújo Silva Revisão de textos Rachel Reis Rosana Brandão Projeto gráfico Yoshiharu Arakaki Design Estúdio Lumine Colaboradores desta edição Brigitte Rémer Isaura Botelho Jean-Michel Guy Nathalie Heinich Olivier Donnat Philippe Coulangeon Sylvie Octobre observatorio@itaucultural.org.br .4


Exposição Sutil Violento, itinerância Chile. Abertura no Museo Nacional de Bellas Artes, 2008. Foto: Cia de Foto

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Aos leitores Este número da revista Observatório dedica-se a discutir a relação entre as práticas culturais, a produção cultural e as políticas culturais. Com a criação da Unesco e a consequente valorização da importância da cultura como elemento-chave no desenvolvimento humano, a produção de estatísticas sobre o campo cultural começou a ser incentivada e pensada como uma necessidade. Pesquisas sobre práticas culturais e consumo cultural passaram a ser compreendidas como ferramentas imprescindíveis para o conhecimento das realidades de um país e para a formulação de políticas de fruição e democratização dos bens culturais. Países com avançado desenvolvimento econômico foram os primeiros a atender à solicitação da Unesco para realizar pesquisas estatísticas de cultura, sendo a França o país que mais produziu informações. A existência de um Ministério da Cultura como órgão centralizador facilitou a coleta sistemática e periódica de dados, gerando metodologia avançada e estudos consistentes, e a França tornou-se uma referência no assunto. No Brasil, embora seja recente a dedicação à produção de dados culturais, estamos caminhando e já produzimos pesquisas importantes sobre diversos aspectos de nosso campo cultural. Em 2004, a parceria entre o IBGE e o Ministério da Cultura ampliou a compreensão sobre equipamentos e recursos da cultura nos municípios. A pesquisa de Isaura Botelho em 2005 observou as práticas culturais de moradores da Região Metropolitana de São Paulo, reunindo informações preciosas sobre como a população da região faz uso de seu tempo livre e como decide suas práticas culturais. Mais recentemente, em 2010, o Instituto de Pesquisas Econômicas (Ipea) divulgou um estudo em nível nacional sobre as práticas culturais da população brasileira. No mesmo ano, o DataFolha, em parceria com a J. Leiva Cultura & Esporte e a FGV/SP, produziu dados estatísticos sobre as práticas culturais dos moradores de cidades paulistas, fornecendo informações para pensar as características do estado quanto ao consumo cultural. Essas pesquisas constituem um interessante conjunto de dados, mas a ausência de uma série histórica e levantamentos estatísticos sistemáticos acabam por dificultar análises mais aprofundadas sobre a nossa complexa realidade cultural. Buscando colaborar para a consolidação de uma agenda consistente e ininterrupta de pesquisas sobre o campo cultural, acreditamos ser de grande valia oferecer, neste número com tom de dossiê, o contato com a produção atual e rica de pesquisadores franceses há muito dedicados a refletir sobre essa que é a mais difícil faceta do campo cultural: as escolhas, os motivos, os gostos e as recusas dos “públicos de cultura”. Eduardo Saron Foto: Humberto Pimentel

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Exposição Sutil Violento, itinerância Uruguai, espaço expositivo do Museo Nacional de Artes Visuales, 2008. Foto: Carmen Luccas/Itaú Cultural

os pÚBLICOS DA CULTURA: DESAFIOS PARA AS POLíticas culturais Isaura Botelho Este número da revista Observatório, do Itaú Cultural, se organiza de maneira diferente dos demais. Ele se constitui como um dossiê de artigos em torno da questão dos públicos da cultura e aspectos relacionados, temas fundamentais para o planejamento e a implantação de políticas culturais. Considerar os públicos e as barreiras simbólicas que dificultam o acesso às manifestações artísticas e culturais é essencial quando a vida cultural da população é a razão do engajamento dos poderes públicos em políticas de suporte ao setor. Apesar disso, entre nós, é ainda o elo menos estudado da cadeia criação/produção, circulação/difusão, fruição/ consumo. Como veremos adiante, a questão do acesso aos bens culturais passa por fatores que não são cobertos por políticas que se concentram na oferta. No Brasil, a realização de pesquisas na área das políticas culturais, que não são muitas, encontra-se dispersa em instituições de tipos variados e ainda muito dependente do interesse pessoal do pesquisador. Ainda é um campo sem fisionomia definida. Assim, a institucionalização do campo de estudos nessa área dá apenas os seus primeiros passos. A revista Observatório é parte desse cenário e tem cumprido um papel importante no sentido de estimular, mediante premiação, o desenvolvimento de pesquisas no setor. Esta revista é também um instrumento importante para a legitimidade de um campo de estudos que se amplia e vem ganhando adeptos. .8


Foi a partir dessa constatação que pareceu oportuno o convite aos colaboradores, todos franceses. Assim como o primeiro Ministério da Cultura, a França também criou o primeiro departamento ministerial, em 1960, voltado exclusivamente para estudos e pesquisas socioeconômicos da cultura, quantitativos e qualitativos, com o intuito de auxiliar na formulação e na tomada de decisões em matéria de políticas culturais. Cinquenta anos depois, a produção e a excelência desse organismo atravessaram fronteiras, estimulando a criação de centros análogos em outros países. Temos, entre nossos colaboradores, três membros do Départément des Études, Prospective et Statistiques (Deps): Olivier Donnat, Sylvie Octobre e Jean-Michel Guy, pesquisadores com larga trajetória e rica produção sobre os diversos fatores que regem os consumos culturais, com amplo conhecimento dos públicos. Nathalie Heinich e Philippe Coulangeon, pesquisadores ligados ao Centre National de Recherche Scientifique (CNRS), e Brigitte Rémer são pesquisadores que trouxeram importantes contribuições para esse campo de estudos, para cuja organização e para cujo desenvolvimento o Deps contribuiu diretamente. Olivier Donnat é o responsável pela realização da pesquisa sobre as práticas culturais dos franceses que, ao longo do tempo, se tornou o principal instrumento de acompanhamento da evolução comportamental da população. Dessa pesquisa, realizada a cada sete anos, derivam os estudos específicos sobre os públicos das diferentes áreas artístico-culturais, aprofundando aspectos mais específicos de cada uma delas. A periodicidade aqui possibilita uma análise serial e permite o questionamento das grandes estratégias políticas governamentais. Foi a partir dos resultados das sucessivas pesquisas que se colocou em xeque a estratégia da “democratização cultural”, bordão da maioria das políticas públicas implantadas em diversos países. Essas políticas têm por objetivo a superação de tais desigualdades de acesso àquela que é considerada a “única” ou a mais “legítima” cultura: a cultura erudita. Veem o público, portanto, como único e homogêneo, e acreditam na magia do encontro entre a obra e esse público como algo suficiente para a conversão dos chamados “excluídos culturais”. Ao ignorar as barreiras simbólicas presentes na recepção a obras e programas culturais, e ao não analisar os mecanismos de transmissão do “desejo por cultura”, que nada têm de natural, tais políticas de democratização cultural não alcançaram o seu principal objetivo: incorporar novos setores sociais no mundo dessas práticas eruditas.1 Além de retomar tal questão, Donnat enfatiza também o fenômeno massivo em escala internacional, muito comum nas sociedades ocidentais, que é o protagonismo do consumo cultural em domicílio. A disseminação e o barateamento dos equipamentos eletrônicos são as principais razões da generalização desse tipo de prática. Dessa forma, uma diversidade maior de práticas de cultura e de lazer se torna possível, sem que haja a necessidade de despender tempo e dinheiro, o que também propicia a simultaneidade de atividades, como escutar música enquanto se faz outras coisas, por exemplo. .9


Consequentemente, o centro de gravidade da política cultural se desloca e convoca a formulação de intervenções em dinâmicas restritas ao espaço doméstico e que são dominadas pela lógica de mercado. Para ele, é um desafio tão importante quanto aquele aberto por Malraux na criação do Ministério dos Assuntos Culturais. O desenvolvimento da “cultura em domicílio” tem propiciado a diversificação do universo cultural dos indivíduos, transformando as práticas culturais “tradicionais”, o que só tende a se aprofundar com o envelhecimento das gerações habituadas a essas novas maneiras de vivenciar as artes e a cultura. Assim, as mudanças no cenário apontam para três objetivos interligados a ser perseguidos pela política cultural: incorporação efetiva da educação artística e cultural nas políticas educativas, medidas para que os equipamentos culturais tenham uma real política de desenvolvimento dos públicos e criação de um serviço público de “cultura em domicílio” que alcance o maior número de pessoas. Ninguém melhor que Olivier Donnat para falar desse tema no artigo que abre este número da revista. Philippe Coulangeon propõe uma reflexão sobre as políticas culturais do ponto de vista dos critérios de justiça. Para isso, recorre

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Exposição Cinético Digital, 2005. Foto: Cia de Foto

a uma análise das políticas de democratização cultural baseadas nos pressupostos da universalidade da cultura erudita como valor maior e da universalidade do “desejo por cultura”. Esses equívocos são o pano de fundo da não incorporação de novos segmentos sociais nessas práticas legitimadas. Coulangeon avança sobre as diferenças que a incorporação do novo paradigma da democracia cultural traz para o campo das políticas culturais, fundando uma alternativa que permite questionar as hierarquias culturais estabelecidas. Mostra, porém, como o sistema de hierarquização tradicional continua presidindo a distribuição de recursos, fazendo com que as subvenções continuem voltadas para o financiamento da produção de bens e serviços, ou seja, da oferta. Daí o encaminhamento da análise para as questões relativas às políticas de oferta e de demanda e à força das heranças sociais e familiares, que o próprio Coulangeon chama de “variável principal e oculta” em outro texto em que ele discorre sobre o papel da escola na democratização do acesso aos equipamentos culturais. Assim, a transmissão de valores, gostos e hábitos tem o seu lócus privilegiado na família, a partir da educação recebida durante a infância e a adolescência; sabendo disso é que se pode afirmar a fragilidade da subvenção da oferta e das apostas da política de democra-

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tização na melhor distribuição territorial de equipamentos e nas medidas de rebaixamento de custos de ingressos. Coulangeon reitera e demonstra, ao longo do artigo, como as atitudes culturais são ligadas à posição e à origem social dos indivíduos, diretamente ligados ao peso e à natureza das bagagens culturais herdadas do seio da família. A compreensão das dinâmicas de transmissão sobre as quais já existe uma considerável literatura deveria se refletir no processo de formulação das políticas culturais, o que não acontece de forma consequente. A criança e seu papel como consumidora cultural é o tema abordado por Sylvie Octobre, responsável por vários estudos em torno da infância e da adolescência do ponto de vista das práticas culturais. Uma descrição de cada etapa do desenvolvimento acompanhada da evolução dos gostos e preferências conforme a idade avança nos aponta as imbricações do espaço doméstico com o escolar, permeado pelas relações de sociabilidade e pelas limitações e controles da criança menor. Os sucessivos ganhos de autonomia com relação ao espaço familiar à medida que a criança cresce se fazem acompanhar de uma maior presença das preferências ligadas aos grupos de camaradas. O capital cultural herdado da família é (re)investido e (re)interpretado pelos jovens num processo que a autora vê como dinâmico e em constante transformação. A formação de hábitos culturais é o fundamento de um percurso que autoriza uma maior liberdade e diversidade de consumos por parte dos jovens, sem que haja necessariamente uma identidade absoluta entre os hábitos e consumos dos pais e os de seus filhos, por exemplo. Com a revolução da cultura digital, não apenas os usos culturais evoluíram, mas também as modalidades e os conteúdos da transmissão familiar, permitindo que não haja a ruptura geracional que costumava existir antes da presença maciça dos conteúdos veiculada pela indústria cultural e midiática de hoje. Sylvie Octobre coloca em dúvida a família como “sujeito principal das estratégias de reprodução”, citando Pierre Bourdieu,2 relegando as outras instâncias de socialização a “influências”. Em primeiro lugar, ela chama a atenção para as diferenças das “heranças” adquiridas, dependendo do membro da família, segundo o sexo e a classe da criança. Na verdade, ela quer reforçar a complexidade dessa socialização familiar, demandando um olhar mais fino sobre sua dinâmica, e, ao mesmo tempo, dar ênfase a outros fatores que intervêm na transmissão, como a mobilidade social dos pais, a relação com o tempo, extensão e densidade das redes sociais, a escola, pares, mídia etc. Embora dissonante como posição, Sylvie Octobre não compromete o peso da herança familiar pelo arrolar desses outros fatores. A densidade e a complexidade das dinâmicas de transmissão no seio do universo familiar não se reduzem à célula primária, inclusive. Também os modos de transmissão são variados e seus atores diversos, atuando tanto no plano simbólico quanto no das práticas e hábitos num processo dinâmico que se transforma e se renova de geração em geração e que podem ser interpretados “como motores da mudança social e cultural”. .12


Uma rápida abordagem sobre os tipos de pesquisas e seus limites é o que evoca Jean-Michel Guy no início de seu artigo, ao lado dos problemas ligados à metodologia. Mais voltado para uma reflexão do que para conclusões, ele propõe uma indagação de ordem epistemológica sobre a imprecisão de termos que estão no cerne do tema tratado em seu texto, que são os públicos das artes do espetáculo: espetáculo, espectador e público. Sobre os limites políticos das pesquisas, Jean-Michel Guy chama a atenção principalmente para o fato de elas não terem consequência efetiva, o que nos leva a pensar que, para os seus comanditários, a encomenda lhes basta. As considerações feitas a partir da última pesquisa sobre as práticas culturais dos franceses confirmam o fato de que as taxas de frequência a espetáculos em geral e de cada gênero em particular variam consideravelmente de acordo com variáveis como idade, sexo, nível de instrução e categoria profissional, assim como o tamanho da cidade e região do domicílio. Sua leitura dos dados é extremamente instrutiva no sentido de nos mostrar as possibilidades que o exercício da análise e a construção de variáveis pertinentes abrem, permitindo um conhecimento mais refinado das dinâmicas que presidem os hábitos de consumo cultural. A problematização da análise não apenas refina esse conhecimento específico como revela movimentos mais amplos da sociedade. Nesse sentido, Jean-Michel Guy invoca um estudo, coordenado por ele em 1993, junto a jovens de 12 a 25 anos de idade. Esse estudo mostra que a “falta de informação” que os jovens invocam para explicar por que não frequentam algum tipo de espetáculo, por exemplo, significa muito mais um excesso de informações que eles não são capazes de qualificar ou hierarquizar. Outro aspecto para o qual ele chama a atenção é o do quão problemático é trabalhar com o que ele chama de categorias político-administrativas, como teatro, dança, música e circo, na medida em que os públicos se dividem (e são fiéis) por subgêneros (flamenco, moderna, clássica etc., no caso da dança) e que geralmente não se recobrem. Por vezes, mesmo no caso de gêneros extremamente delimitados, como o novo circo, caso em que se imaginaria uma homogeneidade razoável do público, um estudo pontual mostrou que este chega a variar conforme a obra encenada, desmentindo a homogeneidade esperada. Nathalie Heinich vem, desde os anos 1980, estudando as reações do público à arte contemporânea: o texto que temos aqui faz parte de uma coletânea de artigos reunidos no livro L’Art Contemporain Exposé aux Rejets, mesmo título do artigo que aqui publicamos;3 tendo como origem uma pesquisa feita para o Ministério da Cultura. Rejeitada pela própria delegação das artes plásticas, a estratégia de Heinich foi a de diluir os resultados e as informações obtidas em várias publicações suas, já que tais resultados pertencem à delegação.4 Utilizando uma metodologia inovadora – que merecerá algumas observações a seguir –, suas conclusões mostram o quanto a prioridade dada à arte contemporânea pelo governo socialista de François Mitterrand, que assumira o poder em 1981, fez com que ela fosse vista como “arte oficial”. Dessa forma, a rejeição contaminou o governo como um todo. .13


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Performance do artista Shima, selecionado do Rumos Artes Visuais, 2008/2009. Foto: Christina Rufatto/ItaĂş Cultural


Do ponto de vista metodológico, o grande achado de Heinich foi o de utilizar a rejeição à arte contemporânea, explicitada sob diversas formas pelo senso comum e não pelo discurso de especialistas. Como ela diz, o prazer estético ou o assentimento passam, mais frequentemente, pela contemplação silenciosa ou pelo implícito compartilhar de valores, o que por evidentes razões de ordem metodológica torna difícil a observação.

O caso contrário, a indignação, tende a se exprimir de forma mais espontânea e, muitas vezes, em público. Habituada a utilizar entrevistas, ela não achava que esse fosse o melhor caminho, preferindo uma démarche mais etnológica, trabalhando sobre as reações existentes, sem criar novas situações que terminam muitas vezes por dirigir as respostas. A dificuldade de ter não especialistas como objeto é o fato de que as suas reações são muito mais difíceis de observar, já que eles não dispõem de canais para expressá-las. Daí a necessidade de buscálas naqueles lugares onde a arte contemporânea está acessível ao grande público, ou seja, no espaço público, por ocasião de manifestações de caráter variado: exposições, performances, instalações etc., situações em que a percepção não é (ou é pouco) préformada. Assim, a autora privilegiou como objeto de seu estudo as reações sob forma de grafites, cartas a jornais, livros de ouro de exposições, comentários ouvidos durante eventos, etc. Como a própria autora aponta, esses julgamentos não somente vêm do gosto pessoal de cada um (para o qual o espaço privado é suficiente), mas apelam a uma ética geral, de caráter cívico ou político, que privilegia a esfera pública. O método adotado então a leva a trabalhar apenas com situações paradoxais nas quais a questão de gosto, supostamente restrita à esfera privada, se vê transformada pela rejeição em problema de sociedade, investida de valores morais, políticos e cívicos. Dessa forma, a autora procura explicitar as contradições – através da análise dos diversos registros de valor em jogo – entre os dois campos e esclarecer o que chama de diversos mal-entendidos entre eles. Para isso ela lança mão de um amplo repertório teórico, que inclui sociólogos de sua própria geração e que vêm trazendo contribuições extremamente interessantes para a sociologia dos valores, como é o caso de Luc Boltanski e Laurent Thévenot,5 que pretendem ir além daquilo que, na construção de Pierre Bourdieu, reduz os conflitos a “estratégias de distinção”, ao exercício de uma “violência simbólica” ou à dominação dos “legítimos” sobre os “ilegítimos”. Nesse caso, trata-se de colocar em evidência a pluralidade das escalas de valor e dos regimes axiológicos dando a palavra aos atores. Se a maioria dos gestores e dirigentes culturais pensa conhecer as reações do público, Heinich nos relembra que esse público se restringe ao universo daqueles com quem eles se encontram no seu dia a dia, nos vernissages ou nas conferências. Assim, .15


o pequeno público dos visitantes muito motivados se transforma, por metonímia, no “público”, enquanto o grande público anônimo praticamente desaparece do campo de percepção.6

Mais uma vez nos defrontamos com o paradigma que regeu as políticas de democratização da cultura como profissão de fé dos dirigentes e gestores culturais que, crendo na universalidade da arte, ou quem sabe sendo eles mesmos depositários de uma noção clássica de uma arte fundada sobre a universalidade da beleza, em que basta ser vista para ser apreciada, deixam os cidadãos desprovidos de qualquer formação em história da arte moderna se confrontar com obras claramente atentatórias aos valores artísticos tradicionais, levando-os a homogeneizar seu contato e a estabelecer comparações entre obras que apelam para diferentes valores de julgamento e apreciação. A experiência mostra que não se pode esperar nenhum imediatismo no confronto com a arte contemporânea – salvo se considerarmos alguns casos excepcionais de conversão fulgurante – e que só um trabalho cuidadoso de explicitação daquilo que produz a obra em questão (inclusive sobre o próprio espectador) permite provocar, no mínimo, interrogações e, no melhor dos casos, adesões, evitando que o espectador agredido não se refugie na recusa.7 A uma arte nova deveria corresponder uma ação cultural também nova que, vindo do poder público, não pode recusar o confronto com o público não especializado, principalmente quando seu lema é o de uma democratização cultural.8 O estudo mostrou que as rejeições, mesmo não sendo pertinentes de um ponto de vista estético, não eram nem absurdas nem desprovidas de sentido: elas apenas apelam – na falta de uma sintonia de registros, mesmo quando são de ordem estética – para valores diversos. Na verdade, elas testemunham emoções bastante fortes, capazes de engendrar argumentos extremamente coerentes que se reportam a valores bastante legítimos em outras circunstâncias ou segundo outros pontos de vista. Daí encontrarmos, a título de exemplo, registros de caráter “purificatório” (que apelam para a necessidade de manter a “pureza” do local onde foram instalados); ou “doméstico” (que apelam para a preservação da integridade do passado ou do território); ou “funcional” (apelando para os incômodos provocados pela instalação de determinadas obras, como a segurança); ou “econômico” (onipresente na maioria dos casos); ou “cívico” (apelando para a má utilização dos recursos públicos, para o favoritismo, para o esnobismo etc.); ou “jurídico” (que questiona a legalidade das obras ou de sua instalação); ou, ainda, “ético” (indignação pela transgressão de valores morais) etc. Ou seja, a indignação do senso comum invoca valores que, por não se referirem aos problemas específicos da criação artística e de sua história, levam os especialistas de arte a não reconhecê- los como pertinentes, recusando-os a priori. Daí uma atitude que decorre dessa incompreensão, que é o desprezo dos profissionais por esse público. O caráter muito especializado da cultura necessária para se relacionar com a arte con.16


temporânea, da mesma forma que a morfologia particular de um mundo excessivamente restrito e bastante recente, duplamente voltado para dentro de si mesmo, não parece encorajar a abertura àqueles que não detêm o domínio sobre essas variáveis. A análise de Nathalie Heinich aponta claramente para o fato de que, antes de constituir uma agressão, as rejeições à arte contemporânea são uma defesa à agressão sentida por seus detratores: uma agressão contra os valores tradicionais da arte, que eles aprenderam a respeitar. Não são, portanto, gostos que se afrontam, mas paradigmas estéticos, nos quais está em jogo inclusive a legitimação daquilo que pode ou não ser chamado obra de arte. Brigitte Rémer compartilha conosco sua experiência como diretora adjunta do Centro Cultural Francês em Alexandria, no Egito. Seu texto nos revela a articulação de vários problemas: a burocracia francesa e seu narcisismo, que levam a uma prática desvinculada dos valores e das necessidades locais; a precariedade da institucionalização da esfera cultural no país, que se reflete na falta de recursos materiais e logísticos locais. Como gestora, a autora se vê diante do desafio de ser a mediadora de todos os tipos de conflito, a começar o de enfrentar o centralismo burocrático que faz com que as ordens ou a passividade se imponham a partir da capital. Enfrentar o desinteresse dos responsáveis franceses. Construir um diálogo com os artistas locais. Conquistar um público acostumado à indiferença de um centro cultural estrangeiro, pouco equipado e quase inativo. Barreiras simbólicas que ultrapassam o mundo da arte: língua, práticas, costumes e tradições que precisam ser conhecidas, absorvidas e compreendidas de maneira a dar vida a esse equipamento cultural e a criar uma ponte entre as diferentes culturas. A experiência nos mostra como a postura do gestor é mais importante que os recursos financeiros, por exemplo. Sua atitude como mediador é o aspecto fundamental: mediação no campo da gestão, assim como no campo da arte. No estabelecimento de diálogos entre culturas, entre artistas e destes com um público que se constitui e se fideliza a partir da receptividade e do diálogo estabelecido. Relembrando o artigo de Donnat, Brigitte Rémer nos mostra como facilidade de acesso, convivialidade do lugar, qualidade do atendimento, diversidade dos serviços oferecidos, qualidade das obras apresentadas, resultantes de uma gestão comprometida, foram os motores da transformação e da inserção do Centro Cultural Francês na paisagem cultural de Alexandria, relativamente em pouco tempo e com recursos limitados. Esse pequeno dossiê sobre políticas, públicos e transmissões é uma forma de apresentar pesquisadores importantes dessas temáticas e que não têm seu trabalho traduzido no Brasil. São “pitadas” dos trabalhos de autores que, principalmente para quem se dedica ao estudo das políticas culturais, fornecem pistas esclarecedoras das dinâmicas que presidem os processos com os quais nos vemos confrontados em nossos estudos e práticas de gestão na área da cultura. .17


Isaura Botelho Doutora em ação cultural pela ECA/USP e pós-doutorada na França. Gestora cultural desde 1978, trabalhou na Funarte, na Biblioteca Nacional e no Ministério da Cultura. Como pesquisadora coordenou O Uso do Tempo Livre e as Práticas Culturais na Região Metropolitana de São Paulo, no Centro de Estudos da Metrópole/ Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento), em São Paulo. É autora de livros, artigos e ensaios sobre política cultural. E-mail: zau.botelho@gmail.com

Notas Uma respeitável literatura sociológica já apontava isso, e a contribuição teórica de Pierre Bourdieu é aqui balizadora dos avanços havidos nesse campo.

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BOURDIEU, Pierre. Raisons pratiques. Paris: Minuit, 1994, p.141.

3

Nîmes, Editions Jacqueline Chambon, 1998.

Assim, encontramos menções à pesquisa em artigos de sua autoria e em dois outros de seus livros: Le triple jeu de l’art contemporain e Ce que l’art fait à la sociologie, ambos editados pela Editions de Minuit em 1998.

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5

De la justification. Les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.

Trata-se de uma entrevista realizada por mim em 1999. Ela citou, na ocasião, o caso do diretor de um museu regional que afirmara ter deixado de ler o livro de presenças, já que ele só via observações de ordem prática ou interjeições desabusadas, que ele preferia desconsiderar.

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7

Entrevista citada.

A autora menciona ter ouvido o argumento de que a difusão junto ao grande público seria secundária, só importando aquela feita junto aos especialistas, o que é inaceitável em termos de uma política de democratização da cultura, como no caso francês.

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Público interage com a obra 9/4 Fragmentos de Azul, de Gilberto Prado, na exposição A Subversão dos Meios, 2003. Foto: Rubens Chiri/Itaú Cultural

DEMOCRATIZAÇÃO DA CULTURA: FIM E CONTINUAÇÃO?1 Olivier Donnat Ao ser criado, em 1959, o Ministério Francês dos Assuntos Culturais recebeu como principal missão a tarefa de “tornar acessíveis ao maior número de pessoas as obras capitais da humanidade e, em primeiro lugar, as obras da França”, o que situava de início a questão do público no coração da política cultural. Durante muitos anos, o projeto de democratização legitimou a ação dos poderes públicos em matéria cultural: eleitos encarregados da política cultural, dirigentes dos estabelecimentos, artistas etc., todos se referiam – com variáveis doses de lirismo ou de convicção, é bem verdade – à exigência de democratização para justificar suas escolhas ou precisar o sentido de sua ação. Depois, o vento soprou, o bonde da história passou e, nos últimos anos, o termo desapareceu totalmente da retórica ministerial em benefício de outras temáticas, sobretudo a da diversidade cultural. .19


Não se trata aqui de rediscutir as dimensões contraditórias do projeto inicial de democratização nem a profusão de iniciativas do início dos anos 1980 que contribuiu para consumi-lo,2 mas simplesmente de constatar que a política cultural foi progressivamente “esquecendo” suas missões de ampliação da demanda em proveito das missões ligadas à criação ou à distribuição cultural no território. O projeto de democratização desapareceu aos poucos do horizonte da política cultural, sem que ninguém assumisse explicitamente a responsabilidade por tal abandono nem examinasse precisamente as razões que o justificavam. Devemos concluir que as desigualdades de acesso à arte e à cultura diminuíram ou que as questões levantadas pela problemática da democratização foram resolvidas? Penso, ao contrário, que a “questão do público” permanece inteiramente atual. Mesmo se deixarmos de lado o caráter messiânico do projeto inicial de Malraux e os argumentos de ordem ética ou social que constituíam o fundamento da política de democratização para nos concentrarmos apenas nos argumentos financeiros ou econômicos, resta uma verdade da qual muitos procuram fugir: a sobrevivência de faixas inteiras da vida cultural – e, portanto, dos artistas e das obras – passa pela ampliação dos públicos que a ela acedem. Razão pela qual uma das condições – necessária embora não suficiente – para a refundação da política cultural3 que todo mundo parece desejar reside em nossa capacidade de renovar a “questão do público” e encontrar respostas capazes de levar em conta não só as novas condições de acesso à arte e à cultura ligadas às tecnologias digitais como também o estado atual das desigualdades na sociedade francesa.4 Esquecer ou refundar a exigência democrática? Pode-se, obviamente, lembrar que sempre houve uma distância considerável entre a grandiloquência dos discursos e a realidade dos recursos humanos e financeiros efetivamente alocados. Isto é incontestável: mesmo na época dos maiores entusiasmos pelas casas de cultura, o Ministério da Cultura só destinou uma pequena parte de seu orçamento à redução das desigualdades de acesso à arte e à cultura. Seja como for, a problemática da democratização permitia manter uma tensão entre as duas séries de missões assumidas pelos poderes públicos em matéria cultural, as que concernem à oferta cultural e à qualidade da criação, de um lado, e as que tocam a questão dos públicos, de outro. A virtude essencial desse dispositivo retórico, além do fato de que ele punha em debate a questão das desigualdades de acesso à arte e à cultura, era afirmar como uma evidência que “a oferta puxa a demanda”, vinculando assim os objetivos relativos à oferta e aqueles concernentes à ampliação da demanda. Ora, o balanço do meio século já concluído não deixa a esse respeito nenhuma ambiguidade: a relação entre a oferta e a demanda nada tem de mecânica, o apoio aos profissionais e às instituições artísticas e o esforço de ampliação ou diversificação dos públicos não são indissociavelmente ligados. Dito de outro modo, os objetivos relativos .20


à oferta cultural (apoio à criação, à valorização do patrimônio, à criação de equipamentos...) e aqueles relativos à demanda, pensados por muito tempo como duas faces de um único projeto, são na verdade largamente autônomos. Ambos são legítimos, mas a busca dos primeiros não garante de modo algum a realização dos segundos. Assim sendo, a alternativa é clara. Num primeiro momento, podemos ficar tentados a abandonar – dizendo-o ou não – todo projeto de luta contra as desigualdades de acesso à arte e à cultura, e a considerar que o projeto de democratização da cultura partia de uma nobre ambição, mas era irrealista por ignorar completamente os mecanismos sociais que produzem o “desejo de cultura”. Por que, no fim das contas, não aceitar a impotência da ação cultural para remediar as desigualdades sociais que entravam o acesso à arte e à cultura e aceitar virar a página, privilegiando sem culpa os objetivos da política cultural relativos à oferta? Tal posição, que defende, por exemplo, Philippe Urfalino5 quando ele encoraja aqueles que têm poder decisório em matéria de cultura a romper com uma grandiloquência que perdeu o lugar num momento em que o Estado deve aprender a ser modesto, apresenta a vantagem da coerência: os discursos estariam enfim compatíveis com a realidade dos orçamentos; e, passando de uma legitimação da ação dos poderes públicos estruturada em torno da temática da democratização a um discurso autocentrado sobre as condições de criação e de produção dos bens culturais, a política cultural teria atingido sua idade da razão. Mas cumpre reconhecer que ela tem o inconveniente principal de ser difícil de sustentar (pelo menos publicamente) num regime democrático.6 Podemos, ao contrário, permanecer fiéis à exigência que fundava a política cultural e buscar, à luz das lições trazidas do passado, um equilíbrio entre as missões de apoio à oferta e de ampliação da demanda, política e moralmente aceitável numa democracia. Tal orientação também é, evidentemente, difícil de sustentar, pois ela implica realocação dos recursos financeiros, exceto se imaginarmos uma duplicação do orçamento destinado à cultura, como ocorreu em 1982. Sem ampliação do orçamento, toda política de reequilíbrio só pode contrariar os hábitos adquiridos e reduzir as “margens artísticas” num momento em que os setores envolvidos esperam, ao contrário, aumentá-las. Que fique claro: situando-se numa tal perspectiva, não se trata de ceder aos encantos da nostalgia ou de lançar um apelo vibrante para que voltemos a uma suposta época de ouro. Se, como pensamos, o último meio século de política cultural nos obriga a romper com a ilusão em que se fundava o projeto de democratização, o desafio a enfrentar para todos os que não abandonaram toda ambição em matéria de ampliação da demanda pode ser formulado assim: quais revisões devemos operar para manter vivo o ideal de igualdade que fundava o modelo da democratização, reconhecendo ao mesmo tempo as profundas mutações vividas desde o início dos anos 1960 nos planos econômico, político e social, assim como nas condições de produção e de difusão da cultura? Ou, dizendo mais diretamente: .21


quais as principais inflexões ou rupturas exigidas para um reequilíbrio da política cultural em favor das questões de demanda? Proponho aqui trazer alguns breves elementos pessoais de resposta a essa interrogação, abordando sucessivamente as três principais alavancas capazes de transformar as condições de produção do desejo de cultura: a educação artística e cultural, a política dos estabelecimentos culturais em relação aos públicos e a “cultura em domicílio”. Acabar “realmente” com a democratização

Exposição Sob o Peso dos Meus Amores, Leonilson, 2011. Foto: Edouard Fraipont/Itaú Cultural

Em primeiro lugar, sem sucumbir aos encantos do paradoxo, somos tentados a pensar que o abandono do termo “democratização” constitui hoje uma das primeiras condições para o desenvolvimento de uma política mais eficaz em matéria de acesso à arte e à cultura. Renunciar a esse termo, que já foi de grande valia, permitiria primeiro evitar os amálgamas e as confusões culpadas: o aumento da frequentação dos equipamentos, a conquista de novos públicos e a fidelização daqueles já existentes, por exemplo, não são objetivos equivalentes ou complementares, mas diferentes; devemos, portanto, distingui-los, cada um exigindo estratégias específicas para ser alcançado. Abandonar o termo “democratização” em favor de objetivos mais precisos pode assim ajudar a separar as finalidades relativas à oferta cultural das finalidades relativas ao público. Isso permitiria desfazer a espessa cortina de fumaça que tão frequentemente encobre os objetivos realmente visados e impede uma real avaliação das ações desenvolvidas. Isso seria também uma maneira de admitir não só o caráter formal do princípio de igualdade que funda o projeto de democratização, mas também o fato de que a política de oferta adotada pode produzir efeitos de favorecimento (de determinados segmentos da população) contrários ao princípio

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de equidade. Já não é hora de tirar as lições da constatação, confirmada a cada pesquisa, de que os cidadãos não são todos iguais perante a arte e de que a política cultural, observado o perfil sociodemográfico dos públicos que dela mais se beneficiam, constitui uma redistribuição ao avesso? Assim sendo, por que não admitir que a diversificação dos públicos da cultura passa necessariamente por ações cuidadosamente dirigidas e plenamente assumidas como tais,7 já que todos sabem que tentar “converter” as pessoas menos inclinadas à arte exige mais tempo, energia e poder de convicção, e supõe, consequentemente, mais recursos? A clarificação semântica que nos permitiria falar de “fidelização”, “diversificação” e “ampliação dos públicos” em vez de “democratização” corre, porém, o risco de ser insuficiente se não for acompanhada por um profundo questionamento de todas as representações tendentes a superestimar o poder das obras e dos artistas. Com efeito, muitos atores da vida cultural continuam a acreditar na capacidade “natural” de atração das obras ou dos artistas, o que é sempre uma maneira de desconhecer os mecanismos reais através dos quais nasce o desejo de cultura. Permanecem assim convencidos de que as pessoas às quais se dirigem estão prontas para aderir aos modelos que lhes são propostos: para eles, o desejo de cultura está sempre lá, presente mesmo que mudo, escondido atrás dos “maus hábitos” (a televisão, a rotina ou as mentalidades que, como sabemos, evoluem sempre lentamente) ou represado por coerções materiais (o preço, a distância da oferta etc.) que bastaria superar para que a “revelação” ocorresse. Na verdade, ninguém rompeu totalmente com o modelo inicial da ação cultural, e a hostilidade para com aqueles ou aquelas que se arriscaram a fazê-lo8 é sintomática das resistências ideológicas que nos impedem ainda hoje de escapar das ilusões subjacentes ao projeto de democratização. Basta analisar os discursos sobre as experiências de residência de artistas ou de intervenções no meio escolar para perceber que o mito da revelação perdura, ainda que hoje ele assuma formas mais difusas do que no tempo de Malraux. Não se trata obviamente de negar que o desejo de cultura possa nascer da emoção de um encontro com um artista ou uma obra, ou de contestar a existência dessas experiências “miraculosas” que os profissionais da cultura gostam de relatar: um aluno imigrante de um meio desfavorecido que se tornou um grande leitor depois de descobrir a literatura numa biblioteca, um jovem aprendiz maravilhado pela pintura clássica durante uma excursão da escola etc. Trata-se simplesmente de lembrar que tais casos de conversão ao amor pela arte permanecem estatisticamente pouco frequentes – pois ligados a trajetórias pessoais particulares ou a circunstâncias excepcionais. É difícil imaginar que se possa generalizá-los, mesmo supondo que todos os artistas se preocupem em partilhar sua experiência e possuem de resto qualidades humanas ou pedagógicas para fazê-lo. A observação dos fatos obriga a renunciar ao mito da revelação e a reconhecer que o desejo de cultura e o prazer experimentado no contato com as obras, longe de espontâneos e universais, sempre fazem parte de um legado do meio familiar: ambos remetem, com .23


Exposição Sob o Peso dos Meus Amores, Leonilson, 2011. Foto: Edouard Fraipont/Itaú Cultural

raras exceções, às condições de socialização das pessoas envolvidas e a seu ambiente social imediato. Admitir tal visão das coisas nos leva obviamente a ver na educação artística e cultural o único meio de transformação das condições de produção do “desejo” de cultura e a deplorar o lugar sobremodo modesto que lhes concede o sistema escolar francês. Sabemos que essa questão tem seu lugar na agenda política desde os anos 1980: vários planos nacionais se sucederam sem que os recursos necessários à sua implementação fossem alocados, em parte por razões ligadas à história tumultuosa das relações entre os ministérios da Cultura e da Educação nacional. Não pretendemos voltar aqui à questão, mas tão só salientar que o objetivo de uma política, a nosso ver, longe de se limitar apenas à promoção da oferta proposta pelas instituições culturais numa perspectiva de formação dos “espectadores de amanhã” ou ao estímulo do potencial criativo das crianças e dos adolescentes, deve concernir ao conjunto da produção cultural de ontem e de hoje, em toda a sua diversidade. Como a educação artística e cultural poderia hoje se esquivar dos debates sobre o estatuto atualmente incerto da obra de arte e sobre a multiplicação das instâncias de legitimação, permanecendo prisioneira de uma concepção da cultura limitada apenas às grandes obras da arte e do espírito, e definida por oposição às mercadorias culturais?9 E, ainda mais, como ela poderia ignorar o papel desempenhado em nossa sociedade pelas “fábricas de sonhos”, para falar como Malraux?

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Longe de nós a ideia de contestar a necessidade de transmitir as referências necessárias à compreensão das obras da cultura clássica às jovens gerações, cada vez menos armadas para “lê-las” em razão do recuo concomitante das humanidades nos programas escolares e da religião na educação familiar; longe de nós também a ideia de negar que a criação contemporânea, mais do que qualquer outra forma de expressão, requer um trabalho de explicitação e de sensibilização prévio para ser apreciada como obra, seja nas artes plásticas, seja na música, no teatro ou na dança. De fato, é mais do que nunca indispensável que as políticas educativas integrem essas dimensões, mas com a condição de inscrevê-las num contexto que é o nosso hoje, a saber, o de uma sociedade dominada pela mídia e pelas indústrias do entretenimento, em que o estatuto simbólico das obras e dos produtos culturais ficou mais incerto. Quem hoje pode negar seu embaraço no momento de definir o que é uma obra de arte ou um produto cultural? A lógica interna da arte contemporânea que leva à interrogação incessante sobre a fronteira entre arte e não arte; a tendência à mestiçagem artística observada em várias formas de artes do espetáculo (dança contemporânea e hip hop, novo circo...); a programação cada vez mais eclética das casas de espetáculo; a patrimonialização de objetos e lugares considerados anteriormente como ordinários; uma política cultural cada vez mais voltada para a produção de eventos; tudo isso torna particularmente perigoso o exercício de definir os contornos do mundo da arte ou de situar os

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gêneros artísticos uns em relação aos outros à luz dos critérios que, até algumas décadas atrás, serviam para distinguir as artes maiores das menores. E isso se torna mais forte ainda pelo fato de já fazer muito tempo que se desenvolvem no espaço doméstico novas relações com a arte e a cultura. Com a diversificação da oferta televisual e a chegada da internet, tornou-se absurdo reduzir a cultura midiática aos programas mais populares dos grandes canais da televisão aberta e aos grandes sucessos da indústria do entretenimento. Na realidade, os conteúdos da mídia e das indústrias culturais constituem hoje uma fonte essencial de informações, conhecimentos e modelos de referência que participam ativamente da representação da realidade: os livros, os filmes, mas também as canções de variedades, as séries de televisão, as emissões de telerrealidade, os blogs etc. alimentam o tempo inteiro uma espécie de supermercado mundializado dos bens simbólicos, onde os adolescentes buscam maneiras de ser e de parecer, mas também elementos de discurso que os ajudam a exprimir o que eles pensam, sentem ou sonham; numa palavra, a profusão de produtos culturais permitida pela diversificação da oferta e dos meios de difusão – dos canais abertos de televisão aos sites da internet mais “personalizados” – constitui uma fonte permanente de recursos identitários que os adolescentes usam de maneira privilegiada para indicar seu pertencimento a grupos de pares, reivindicando ao mesmo tempo seu estatuto de indivíduos singulares e vivendo como tais. Por essa razão é que a educação cultural cumpre um papel decisivo no que M. Gauchet chama de formação da individualidade:10 numa sociedade da hiperescolha, em que a formatação das preferências operada pela publicidade cresce à medida que esta participa cada vez mais diretamente da difusão dos produtos culturais, e num contexto midiático, em que a circulação das informações e dos marcadores identitários é cada vez mais rápida, tornou-se essencial dar a cada um recursos que permitam dominar os fluxos de imagens, de sons e de textos, dar sentido ao conjunto dos fenômenos culturais inscrevendo-os numa perspectiva histórica, e finalmente exprimir suas preferências culturais com “conhecimento de causa”. Fazer da educação artística e cultural uma prioridade da política cultural não deve ser, porém, uma tática hábil para eximir os estabelecimentos culturais de toda responsabilidade em matéria de formação e diversificação dos públicos nem uma tática para fugir da questão dos recursos efetivos que eles mobilizam para atingir os públicos que não constituem seu alvo “natural”. Um reequilíbrio da política cultural em favor da demanda passa também necessariamente por uma atenção maior dos estabelecimentos culturais às questões relativas à difusão das obras e à adoção de uma “verdadeira” política de desenvolvimento dos públicos. Dominar os instrumentos do marketing a serviço de uma diversificação dos públicos A adoção de tal política, que ultrapassaria as declarações de intenção e as experiências pontuais interrompidas, constitui evidente.26


mente um grande desafio: imaginamos quantos espaços dedicados às artes cênicas e quantos museus11 carecem de um departamento encarregado dos públicos ou quantos, já o possuindo, consideram sua atividade como um simples braço do departamento de comunicação, confundindo “relações públicas” com “relações com o público”? Qual é a proporção de estabelecimentos culturais dotados de funcionários qualificados capazes não de “fazer marketing”, mas de colocar com eficácia os recursos do marketing a serviço das missões que são de sua responsabilidade? Por exemplo, para nos limitarmos a considerações muito operacionais, quantos deles aproveitam plenamente as potencialidades oferecidas em matéria de conhecimento dos públicos pelos programas de vendas de ingresso ou de gestão das assinaturas?

Público na exposição Trajetória da Luz na Arte Brasileira, 2001. Foto: Eduardo Castanho

Reintroduzir para valer a problemática do público no jogo da subvenção sem cair nas facilidades do discurso sobre a democratização começa por um melhor conhecimento dos usuários dos equipamentos, de seu perfil, de seus comportamentos e de suas expectativas, mas também daqueles que deixaram de vir (os “abandonistas”) e daqueles que nunca vieram (o “não público”). A necessidade de “conhecer seus públicos” já é de longa data uma figura retórica obrigatória para a maioria dos responsáveis culturais em vários setores, mas, sobretudo, no das artes cênicas as intenções estão longe de se traduzir em atos. Alguns denunciam a produção de números como uma capitulação à lógica dos índices de audiência que privilegiam as preferências do “grande público” para minimizar o poder dos programadores ou entravar a liberdade dos criadores, sem ne-

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cessariamente escapar ao medo da democracia finamente denunciada por Jacques Rancière.12 Outros continuam a falar do público de seu estabelecimento no singular, como de uma entidade abstrata, ou falam dos públicos no plural através de categorias ideológicas e/ ou administrativas (os jovens, o grande público...) sem interrogar sua pertinência no contexto que é o delas. Outros, enfim, arriscam-se no terreno das pesquisas, mas como que a contragosto, com preconceitos que não resultam apenas do caráter frequentemente literário de sua formação, evocando ora o risco de que os resultados sejam repetitivos, rotineiros, e não tragam nada que não se soubesse de início, ora o risco de eles revelarem o que seria melhor calar para não fornecer armas aos adversários (reais, potenciais ou imaginários). No fim das contas, são raros os que procuram desenvolver uma verdadeira abordagem da demanda, recrutando profissionais competentes, dominando sem tabu, mas sem fascinação os instrumentos do marketing, e destinando orçamentos suficientes para levar a cabo estudos “cientificamente corretos” sobre as problemáticas definidas por eles próprios em função da oferta que propõem e do contexto social no qual ela se inscreve. Assim também, são poucos os que vencem os velhos preconceitos dos meios culturais em relação a todas as medidas que visem apoiar a demanda – lembremos notadamente os vales-cultura – sempre suspeita de certa prepararação por parte dos poderes públicos, para abandonar o incentivo financeiro à criação. No entanto, a descrição da realidade é uma etapa obrigatória antes de definir as ações a ser adotadas para tentar modificá-la; os estudos estão presentes para ajudar a diagnosticar a situação, a refletir sobre os objetivos e, naturalmente, sobre as estratégias mais apropriadas para alcançar tais objetivos. Trata-se de fidelizar os públicos atuais? De ampliar o círculo dos amadores tentando atrair as pessoas cujo perfil social as torna público em potencial? De buscar uma diversificação pela conquista de novos públicos? Sabemos que, definidos os objetivos, é particularmente rica a gama dos registros de intervenção ao alcance de qualquer responsável preocupado em ampliar o perfil do público de seu estabelecimento: escolha dos horários, política tarifária, política de comunicação, condições de reserva e de atendimento, ações de sensibilização junto a populações-alvo etc. Todo o trabalho de um serviço encarregado do desenvolvimento dos públicos consiste precisamente em dominar o conjunto da cadeia de decisões que pesam sobre a recepção da oferta e em buscar a melhor combinação de fatores trabalhando com os diversos instrumentos possíveis. Naturalmente, não existe receita milagrosa: nenhuma medida pode pretender transformar radicalmente as condições gerais de produção do desejo de cultura. Seja como for, toda ação implementada em matéria de comunicação, toda modificação da política tarifária, ou das condições do atendimento etc., podem ajudar a dinamizar a situação. Toda iniciativa pode se aproximar do objetivo pretendido, embora possa também, por vezes, gerar efeitos inesperados ou contrários, como o distanciamento dos objetivos.13 A função principal da mediação cultural é franquear ao maior número de pessoas o acesso às obras, mas também zelar por todas as .28


outras dimensões, além da qualidade da oferta artística ou cultural em si mesma, que concorrem para a satisfação dos usuários: facilidade de acesso, convivialidade do lugar, qualidade do atendimento, diversidade dos serviços oferecidos etc. Ora, na França, mais do que em outros países, a sacralização das obras e dos artistas levou-se a considerar as pessoas responsáveis pela mediação mais como intercessores ou funcionários a serviço deles próprios do que como prestadores de serviços públicos. Não esqueçamos nunca que as experiências estéticas sempre são também atividades sociais, como salienta judiciosamente Dominique Pasquier quando nota que “a ida à ópera é por vezes menos uma relação com as obras do que com os outros”.14 O prazer experimentado no contato com as obras é frequentemente um prazer compartilhado, inscrito na sociabilidade amigável ou familiar e frequentemente alimentado pelo sentimento de ser esperado. Como no amor, no domínio cultural o desejo pode nascer do desejo do outro, e são inúmeros os meios de alimentar esse desejo tanto no plano da organização do espaço quanto no plano da atitude do pessoal encarregado da mediação. Algumas grandes instituições perceberam a importância dessa questão e assumem agora, sem pejo, uma estratégia de marketing na perspectiva não apenas de aumentar seu volume de frequentação, como também de melhorar a qualidade dos serviços oferecidos aos usuários. É o caso notadamente da Ópera de Paris, que instituiu há muitos anos um “programa de qualidade”.15 Entretanto, a existência de tais experiências em alguns lugares emblemáticos ou em certos museus ou midiatecas criados recentemente não deve nos iludir. Na realidade, ainda é longo o caminho a percorrer nesse terreno pela maioria dos estabelecimentos culturais! Correndo o risco de ser tachado de populista e de ser injusto com teatros, museus, midiatecas etc., que gastam muito para aparecer como lugares abertos e acolhedores, é preciso reconhecer – buscando um atenuante – que ainda há muito a progredir em matéria de acessibilidade, de comunicação ou de convivialidade. Não nos prestaremos ao jogo fácil que consistiria em identificar tudo o que, frequentemente, torna os estabelecimentos culturais lugares intimidadores ou pouco acolhedores para os não iniciados. Ainda: é preciso lembrar o conteúdo de certos suportes de comunicação para se persuadir de que os discursos dos meios culturais se fecham às vezes em si mesmos? Ou tornar-se um etnólogo para descrever no detalhe o catálogo dos códigos, dos tiques de linguagem e das diversas posturas que podem funcionar como máquinas de exclusão daqueles que não fazem parte do “meio”? Essas breves observações sobre a necessidade de uma política de desenvolvimento dos públicos nos estabelecimentos culturais não devem nos fazer esquecer de que, há muito, o encontro com as obras, pequenas e grandes, não passa mais sistematicamente por eles. Por essa razão, a questão das desigualdades de acesso não pode mais, como no tempo das casas de cultura, ser posta apenas numa perspectiva da distribuição territorial, sobretudo depois que a progressão espetacular da internet transformou profundamente as condições de difusão das obras. .29


Público na exposição Game o quê?, 2003. Foto: Rubens Chiri/Itaú Cultural

Desenvolver um serviço público de “cultura em domicílio” O crescente movimento de equipar os domicílios com aparelhos audiovisuais – desde a chegada da televisão até o advento da internet de banda larga – faz com que, hoje, a maior parte das nossas práticas e do nosso consumo culturais se dê no seio de nosso espaço doméstico. A política cultural tem dificuldade de levar em conta tal realidade, pois ela foi sempre pensada quase exclusivamente em relação aos equipamentos culturais: desde a criação dos primeiros museus nacionais até a política dos anos 1980, passando pela descentralização teatral, o objetivo sempre foi, qualquer que sejam a concepção da cultura ou as opções preferidas, trabalhar para a extensão de um espaço público da cultura definido por uma dupla oposição: de um lado, em relação ao domínio do privado/comercial (a cultura como lugar ao abrigo das leis do mercado e dos interesses econômicos) e, de outro, em relação ao domínio do privado/íntimo (os espectadores ou visitantes dos lugares culturais como cidadãos “sem identidade”, simples elementos do povo em seu conjunto). As transformações que vivemos nas últimas décadas tornaram extremamente caduca essa visão das coisas. De um lado, porque – como já evocamos a propósito das mutações ocorridas nos anos 1980 – as fronteiras entre o público e o privado/comercial se dissolveram em grande medida, graças ao impulso das indústrias culturais, mas também ao caráter da vida cultural cada vez mais voltada para eventos (festivais, exposições...) e para a “mercantilização” relativa dos estabelecimentos culturais, notadamente no domínio patrimonial com o desenvolvimento dos produtos derivados. De outro lado, porque as fronteiras entre o público e o privado/íntimo ficaram, elas também, bastante nebulosas com a evolução dos programas das diversas mídias – pensemos nas emissões das rádios livres, na telerrealidade16 e, obviamente, na explosão da blogosfera nos últimos anos. .30


O poder da “cultura em domicílio” ligada ao equipamento das casas e ao desenvolvimento das tecnologias digitais deslocou o centro de gravidade da dinâmica artística e cultural, transformando radicalmente as condições de produção, conservação, difusão e apropriação das obras. Por conseguinte, ela deslocou também o centro de gravidade da política cultural, obrigando-a a intervir em dinâmicas de desenvolvimento grandemente dominadas pela lógica do mercado e por comportamentos que pertencem essencialmente à esfera doméstica. A violência das mutações em curso, ligada ao fato de que estas tinham sido pouco previstas pelos setores culturais, pode explicar o caráter essencialmente defensivo do discurso ministerial, notadamente nas primeiras reações à difusão das práticas de partilha de arquivos. Hoje, entretanto, ficou evidente para todos: a era digital na qual acabamos de entrar abre para a política cultural um novo campo de intervenção considerável, ao menos tão importante quanto aquele aberto por Malraux na criação do Ministério dos Assuntos Culturais. Do lado da oferta, o desafio consiste em criar as condições de um serviço público de qualidade pela mobilização de grandes recursos – mas eles seriam no fundo maiores do que aqueles que permitiram nas últimas décadas implantar a política de Grandes Obras?17– para a digitalização dos fundos patrimoniais, sejam eles bancos de dados, documentos impressos, filmes, monumentos ou arquivos audiovisuais. A esse respeito, o sucesso encontrado pelo site “arquivos para todos”, criado recentemente pelo Instituto Nacional de Televisão (INA), traz muitas lições, pois mostra claramente a existência de uma forte demanda social por parte do que se convencionou chamar “grande público”, o que incita a não conceber projetos futuros ou em curso, considerando apenas profissionais e amadores esclarecidos. Do lado da demanda, o desafio consiste, como sempre, em zelar para que as riquezas culturais digitalizadas sejam acessíveis a todos, pois, apesar da tendência à diminuição da fratura digital nos dois últimos anos, a disparidade de equipamento entre os diversos estratos sociais permanece grande. De fato, o desenvolvimento da “cultura em domicílio” permanece essencialmente governado pela lógica do acúmulo: assim como os amadores do canal de televisão Arte ou dos programas culturais no rádio ou na TV são geralmente frequentadores habituais dos teatros e dos museus, os internautas amadores de sites culturais frequentam mais os equipamentos públicos do que a média.18 Assim, o desenvolvimento da “cultura em domicílio” até aqui permitiu, sobretudo às pessoas interessadas em arte e cultura, diversificar seu universo cultural acumulando vários modos de acesso a ela. Isso não quer dizer que a situação permanece como estava. Vimos bem nos últimos anos que o desenvolvimento das práticas de troca de músicas ou vídeos na internet repercutiu nos comportamentos em matéria de compra de discos ou frequentação de concertos, mesmo que devamos nos manter prudentes nesse domínio, evitando, sobretudo, raciocinar em termos de sim.31


ples substituição.19 Na verdade, o salto da “cultura em domicílio” já começou a transformar profundamente as práticas culturais “tradicionais”, e tudo indica que esse movimento se ampliará à medida que as gerações que com ela cresceram envelhecerem: não assistimos a um filme no cinema da mesma maneira como o vemos em casa; não lemos um livro da mesma maneira quando boa parte dos atos de leitura se faz na tela do computador; não travamos a mesma relação com as obras e com o saber na época do copiar/colar. É difícil, assim, não pensar que a difusão dessa “cultura em domicílio” ainda largamente por vir provocará, em médio prazo, profundas modificações nos modos de apropriação dos conteúdos e das hierarquias culturais.20 E como imaginar que o fato de a “cultura em domicílio” aparecer cada vez mais frequentemente como um recurso de acesso livre – por ser financiado pela publicidade ou por ser pago antes ou depois do uso – não dificulte que as novas gerações concordem em pagar pela cultura? Além disso, o impulso dessa “cultura em domicílio” nos leva à questão dos equipamentos culturais. As tecnologias digitais e os meios de comunicação de hoje (e mais ainda os de amanhã) oferecem aos estabelecimentos a possibilidade de enriquecer consideravelmente sua oferta ao propor uma gama diversificada de serviços “à distância” e, assim, alcançar novos públicos além dos círculos de seus frequentadores habituais, travando com estes um diálogo permanente e interativo. Esse dado novo contribui, assim, para descentrar a questão dos públicos, estendendo-a à questão do conjunto dos usuários (vindo eles ou não ao estabelecimento), e nos obriga a considerar os equipamentos culturais com um olhar novo: as bibliotecas, os museus e também os espaços das artes do espetáculo, uma vez os lugares privilegiados do contato direto com as obras e os artistas, são também, cada vez mais, chamados a se tornar centros de recursos e prestadores de serviços à distância, sobretudo quando possuem riquezas passíveis de digitalização. Feitas as contas, parece-nos que uma política que não renuncie a lutar contra a lógica do acúmulo, que faz com que “a cultura atraia a cultura”, deveria fixar a si ao menos três objetivos, aliás, perfeitamente complementares: incorporar, de forma permanente, a educação artística e cultural nas políticas educativas; dotar os estabelecimentos culturais dos recursos necessários para uma política ambiciosa de desenvolvimento dos públicos; produzir um serviço público de “cultura em domicílio” tendo em vista o maior número de pessoas. Tarefas consideráveis que, para ser cumpridas, requerem entusiasmo e voluntarismo, como nos primeiros tempos da distribuição cultural do território. Deixemos de nos achar modernos por considerarmos a “questão do público” como antiquada ou historicamente ultrapassada e enfrentemos aquilo que permanece um verdadeiro desafio, quase meio século após o nascimento do Ministério dos Assuntos Culturais: implantar uma “verdadeira” política da demanda para retirar a política de apoio à oferta do impasse no qual ela se encontra hoje. .32


Olivier Donnat Sociólogo e pesquisador do Departamento de Pesquisa, Planejamento e Estatística do Ministério da Cultura e Comunicação da França, palestrante do Instituto de Estudos Políticos de Toulouse e membro editorial da revista Réseaux. E-mail: olivier.donnat@culture.gouv.fr

Notas Artigo publicado originalmente em SAEZ, Jean-Pierre (dir.). Culture et société: un lien à reconstruire. Ed. de l’Attribut, março de 2008.

1

Já tratamos o primeiro ponto no artigo “La question de la démocratisation dans la politique culturelle française”, Modern and contempory France, vol. 11, 2003. O segundo ponto é desenvolvido numa versão mais longa do presente texto, consultável em linha no site do Observatoire des Politiques Culturelles (OPC).

2

Retomamos aqui deliberadamente os próprios termos do relatório de Rigaud J. “Pour une refondation de la politique culturelle”, La Documentation Française, 1996.

3

Uma publicação recente faz um balanço dessa questão: L’état des inégalités en France. Belin, 2006.

4

5

Quelles missions pour le ministère de la culture?.Esprit, n. 1, 1997.

Cf. HEINICH, N. L’élite artiste. Excellence et singularité en régime démocratique. Gallimard, 2005.

6

Saber se nesse caso convém ou não falar de discriminações positivas ou de affirmative actions escapa ao registro do nosso trabalho.

7

Pensamos particularmente nas reações contra Catherine Trautmann quando, na condição de ministra, ela declarou: “É preciso caminhar rumo à mediação, o acompanhamento educativo a partir de práticas artísticas e culturais dos públicos. Sem esse esforço de educação e de mediação, o discurso sobre a democratização não passa de teoria”. TRAUTMANN, C. Coletiva de imprensa em 26/2/1998 sobre as reformas adotadas para uma democratização da cultura.

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Aludimos aqui ao texto oficial que define a base comum de competências “mínimas” que todo aluno deve adquirir antes de sair do sistema escolar, texto em cujo capítulo sobre a cultura humanista se menciona a capacidade de “distinguir os produtos de consumo cultural e as obras de arte”.

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10

Cf. GAUCHET, M. “La redéfinition des âges de la vie”. Le Débat, n. 132, 2004.

Em 2003, quase a metade dos museus franceses carecia de um serviço dos públicos. Cf. Les museus de France en 2003. Notes statistiques du Deps. 2006. 11

Quando ele observa que a “verdadeira” democracia, entendida como o governo de qualquer um, “é votada ao ódio interminável de todos aqueles que têm títulos a apresentar para o governo dos homens: nascimento, riqueza ou ciência”, temos vontade de acrescentar a essa lista o capital cultural ou o sentido “inato” da estética. Cf. RANCIÈRE, J. La peur de la démocratie. La Fabrique, 2005, p. 103. 12

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Daí a necessidade de generalizar a prática da avaliação que – devemos reconhecer – no domínio cultural tem dificuldade de se tornar um hábito, apesar de aparecer, há muitos anos, como uma obrigação fundamental. 13

14 PASQUIER, D. La culture comme activité sociale. In: MAIGRET, E.; MACE, E. (dir.). Penser les médiacultures. A. Colin, 2005. 15

Ver, por exemplo, “Comment l’Opéra de Paris Soigne ses Spectateurs”. La Scène, 2006.

16

O que levou S. Tisseron a propor o termo “extimidade”. Cf. L’intimité surexposée. Ramsay, 2001.

17 Referência à política de F. Mitterand. Os Grand Travaux (pirâmide do Louvre, grande arco da Défense, entre outros) mobilizaram recursos fantásticos que foram alocados no Ministério da Cultura [nota do tradutor].

Assim, por exemplo, os que baixam músicas na internet frequentam mais os concertos do que os que não baixam. Cf. NICOLAS, Y. Le téléchargement sur les réseaux de pair à pair. Développement culturel, n. 148, 2005.

18

19 Sobre esse ponto, lembremos como são nuançadas, para dizer o mínimo, as conclusões dos estudos recentes sobre os vínculos entre o desenvolvimento do peer to peer e a queda nas vendas de discos. Cf. CURIEN, N.; MOREAU, F. L’industrie du disque à l’heure de la convergence télécoms/médias/internet. In: Création et diversité au miroir des industries culturelles. La Documentation Française, 2006. 20 B. Lahire, por exemplo, estabelece uma relação estreita entre a ascensão da “cultura em domicílio” e o caráter cada vez mais dissonante dos universos culturais, notadamente nos meios cultivados que prestariam menos atenção no espaço doméstico, naquilo que aparece como “erros culturais” do ponto de vista da legitimidade cultural. Cf. LAHIRE, B. La culture des individus. La Découverte, 2004.

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O maestro e pianista João Carlos Martins se apresenta na festa de comemoração dos 455 anos da cidade de São Paulo, 2009. Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress

As políticas culturais DIANTE Dos critérios de justiça: reflexões a partir do caso francês1 Philippe Coulangeon Na França, como na maioria das sociedades ocidentais contemporâneas, a disseminação do conceito do tempo livre, os progressos da produtividade do trabalho e a satisfação crescente das necessidades primárias contribuíram por muito tempo para alimentar a ideia de uma marcha inelutável rumo a uma “civilização dos lazeres”, para retomar a expressão pioneira de Joffre Dumazedier,2 e de uma erosão programada do poder distintivo dos lazeres e da cultura, que caracterizava a configuração das relações sociais nos estágios anteriores do desenvolvimento do capitalismo. A série de pesquisas sobre as práticas culturais dos franceses realizadas pelo Ministério da Cultura desde o início dos anos 1970 atesta, porém, a permanência, na ordem da cultura e dos lazeres, de importantes clivagens sociais, que se manifestam de maneira espetacular já no nível da ocorrência e da frequência das práticas, sem falar das diferenças ligadas a suas modalidades e a seus conteúdos. .35


Essas pesquisas mostram particularmente que o acesso às práticas mais legitimadas (frequência a museus, a monumentos históricos, a teatros, a concertos de música clássica ou a espetáculos coreográficos) continua especialmente “hierarquizado”: os desníveis na taxa ou na intensidade da frequentação entre as classes sociais permanecem grandes. Assim, enquanto os operários que não tinham frequentado nenhum dos equipamentos citados acima passavam de metade na primeira das cinco pesquisas sobre as práticas culturais dos franceses (em 1973) e chegavam a 65% na última da série (em 2008), menos de 20% dos executivos superiores em 1973 e mesmo menos de 15% em 2008 estavam nesse caso. Esses desníveis podem, é verdade, ser explicados por fatores muito prosaicamente materiais, ligados em parte ao custo do acesso a equipamentos cuja distribuição espacial tende a favorecer mais particularmente as categorias abastadas dos centros urbanos. Mas a inércia das desigualdades de acesso à cultura não poupa tampouco as práticas mais integradas à indústria dos bens culturais. Práticas essas que, por se inscreverem melhor no quadro das práticas domésticas, por se beneficiarem mais amplamente não apenas da redução dos custos associados à produção em larga escala, e hoje mais ainda, como das possibilidades oferecidas pelo desenvolvimento das tecnologias digitais, são menos fortemente submetidas aos fatores de natureza econômica e de localização domiciliar que dificultam a frequência aos equipamentos culturais. Em matéria de leitura, principalmente, nem a multiplicação das coleções de bolso nem a das coleções das bibliotecas que emprestam livros conseguiram até agora reduzir o gradiente social que hierarquiza as classes superiores, médias e populares quanto à frequência e à intensidade das práticas. Do mesmo modo, a superabundância dos suportes de difusão de música gravada não modifica substancialmente a escala social do gosto por suas formas mais eruditas. A democratização malograda Essas constatações põem inevitavelmente em causa o balanço da democratização da cultura e das políticas adotadas em seu nome, atingindo, assim, sua credibilidade e sua legitimidade, a ponto de um ex-ministro da Cultura (titular da pasta de 2002 a 2004) tomar a liberdade de levantar, numa entrevista ao jornal Le Monde em 2008, a questão da necessidade de um ministério.3 O questionamento recorrente das finalidades da ação dos poderes públicos torna também particularmente delicada a comunicação dos resultados das pesquisas sobre as práticas culturais dos franceses: por oferecer uma medida objetiva da inércia das desigualdades de acesso à cultura, eles podem ser usados, num contexto de racionalização dos gastos públicos, como argumento para a redução do apoio às artes e à cultura. Mais de 50 anos após a criação do Ministério da Cultura, essas constatações no mínimo colocam em questão os princípios que guiaram, naquela época, a ação de André Malraux e seus colaboradores.

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Democratização da cultura e democracia cultural A definição dos objetivos atribuídos à ação dos poderes públicos no campo da cultura é atravessada pela oposição entre as políticas ditas de ‘‘democratização da cultura’’ e as políticas de ‘‘democracia cultural’’.Essa distinção remete a dois registros de ação fundados em doutrinas políticas divergentes.4 A filosofia da democratização da cultura, central no modelo francês de política, se funda numa concepção universalista da cultura ‘‘legítima” que atribui à política cultural a tarefa prioritária de reduzir as desigualdades de acesso à ‘‘alta cultura”, à cultura ‘‘erudita’’. Essa concepção se propõe a superar os obstáculos à frequentação das obras do patrimônio e da criação contemporânea, notadamente por meio da implantação de um programa de distribuição cultural do território, encarnado inicialmente pelas Casas da Cultura e pela política de descentralização teatral desenvolvida nos anos 1960, e logo desdobrada noutros domínios por dispositivos que obedeciam à mesma inspiração (em matéria de ensino musical e de criação de orquestras sinfônicas em todo o território, por exemplo). Centrada na redução das desigualdades sociais e geográficas do acesso à cultura, essa concepção se baseia no postulado de universalidade do desejo pelos bens culturais, cuja apropriação é prioritariamente pensada em termos de barreiras a remover e obstáculos a superar. Tal postulado, porém, é contestável, e foi de fato fortemente criticado no fim dos anos 1960, no rastro do movimento de maio de 1968, que não poupou as instituições emblemáticas da política cultural da época.5 Salientando a dimensão de ‘‘arbitrário cultural’’ das políticas de democratização e fortemente inspiradas pela leitura de Bourdieu e Passeron (Les Héritiers e La Réproduction), as críticas a essa concepção da política cultural sugeriam privilegiar a dimensão propriamente cultural das desigualdades e enfrentar a autoridade das hierarquias culturais estabelecidas. A ideia de democracia cultural funda então uma estratégia política alternativa, que se inspira sobretudo em experiências de outros países, particularmente do mundo anglo-saxão. À ‘‘ação cultural’’ da política de democratização, centrada na redução das desigualdades, a política da democracia cultural opõe o ‘‘desenvolvimento cultural’’ atento às identidades locais ou regionais, às culturas minoritárias e às tradições populares. Apoiando-se num certo relativismo cultural, ela pensa os desníveis observados na frequentação dos equipamentos culturais ou na frequência das práticas menos como desigualdades do que como diferenças. É nessa concepção que se baseia grande parte das políticas de animação sociocultural orientadas para as crianças e os adolescentes das classes populares. Foi ela que se impôs progressivamente, desde o início dos anos 1980, até na concepção da política cultural do Estado, cujo dever seria .37


permitir a todos os franceses cultivar sua capacidade de inventar e criar, exprimir livremente seus talentos e receber a formação artística de suas escolhas; preservar o patrimônio cultural nacional, regional, ou dos diversos grupos sociais em benefício da coletividade inteira (decreto de 10/5/1982 relativo à organização do Ministério da Cultura).

Cumpre, porém, não superestimar a amplitude das reorientações da ação dos poderes públicos consubstancial a essas mudanças de doutrina, que operam essencialmente na ordem simbólica da consagração ou da reabilitação de formas de expressão e de culturas exteriores ao círculo das artes eruditas e das humanidades clássicas. Considerada sob o ângulo da distribuição dos recursos financeiros alocados pelos poderes públicos, a ação cultural permanece extremamente “legitimista”, em particular no seu escalão central. O orçamento do Ministério da Cultura continua a consagrar aos domínios mais legitimados (museus e teatros nacionais, óperas, conservatórios, patrimônio etc.) um esforço financeiro que não se compara com os recursos alocados nos domínios que entraram mais recentemente na sua alçada. A descentralização da ação cultural, que atribui às coletividades territoriais (regiões, departamentos e, sobretudo, municípios) um papel crescente em matéria cultural, modifica, porém, substancialmente o quadro. A ação das coletividades territoriais é de fato menos centralmente consagrada ao financiamento das grandes instituições de criação, conservação e difusão cultural, e passa mais pelo canal de subvenções concedidas a projetos conduzidos

Rumos Educação Cultural, aula-espetáculo com Barbatuques, 2005. Foto: Cia de Foto

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por estruturas mais leves, situadas num perímetro cultural mais diversificado e correspondendo mais à filosofia do desenvolvimento cultural. No entanto, o desenvolvimento do papel dos atores locais da política cultural, cujas modalidades de ação diferem muito claramente daquela do Estado (lógica de subvenção de “projetos”, de um lado, orçamento reservado ao funcionamento das instituições, de outro), ratifica o desequilíbrio entre o universo exuberante e eclético de iniciativas culturais que são encorajadas, mas apoiadas de maneira frágil no médio prazo, e o das instituições estruturantes da criação, da difusão e do patrimônio, que continua, de fato, dominado pela lógica da democratização. Política da oferta e política da demanda Mais importantes, talvez, do que os conflitos doutrinários sobre os objetivos, as controvérsias sobre a hierarquização dos recursos jogam uma luz essencial à compreensão dos fracassos imputados às políticas públicas da cultura em matéria de democratização e da dificuldade em revertê-los. Não é preciso nesse caso empreender um exame detalhado da estrutura dos gastos públicos para perceber a prioridade dada, nesse registro da ação pública, às políticas da oferta, isto é, ao apoio financeiro trazido, por meio da subvenção, à produção de bens e serviços culturais. Evidentemente não faltam argumentos para justificar o apoio a um setor que não poderia ser abandonado às leis do mercado sem, ao mesmo tempo, condenar ao desaparecimento bens culturais que não possuem as características dominantes da demanda (pelo menos de forma imediata) e sem ameaçar o equilíbrio financeiro de atividades estruturalmente déficitárias, como é o caso, sobretudo, de várias artes do espetáculo.6 Não faltam tampouco, em sentido inverso, adversários da prioridade dada a essa forma de mecenato público cujo efeito redistributivo parece dos mais incertos. Não temos razão de recear que, dando prioridade ao rebaixamento de custo dos bens menos acessíveis, a economia da subvenção beneficie em primeiro lugar o público mais avisado, sem ampliar em nada a demanda? Por mais legítima que ela seja, a crítica aos efeitos, na melhor das hipóteses, limitados da economia da subvenção para a ampliação do acesso à cultura é, porém, enfraquecida pela dificuldade de definir uma política cultural alternativa, política da demanda que tem na importância dos argumentos não monetários sua principal dificuldade. Como encorajar uma demanda que não dependa apenas (nem mesmo principalmente) de ser viabilizada financeiramente, ao contrário do que ocorre nas políticas ordinárias de apoio ao consumo? De fato, todo mundo percebe mais ou menos confusamente que as ‘‘escolhas’’ (e os gostos) culturais, assim como, de resto, as ‘‘ma.39


neiras’’ de habitar, se distrair, se vestir, se deslocar ou se alimentar (e não só o volume de despesas reservado a cada item) se inscrevem em redes complexas de influências e determinações, que misturam elementos de natureza diferente: restrições de tempo, renda ou preço, certamente, mas também peso dos hábitos ancorados na infância e na adolescência, efeitos de imitação (ou de singularização) em relação ao ambiente socioprofissional (ou escolar) ou à rede de amigos ou de vizinhos, preocupação com o conforto, mas também com a aparência etc. Essa crítica endereçada à orientação das políticas culturais repousa de resto na adesão implícita a um projeto, ele mesmo discutível: que legitimidade podemos reconhecer em uma política que visa não só distribuir os meios de garantir um acesso mais equitável a certos bens, como também, no fundo, suscitar a própria demanda?

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O que é uma política cultural justa?

Encontro Educação Não Formal: Ações e Repercussões, apresentação do projeto Joaninha (Ballet Stagium). Foto: Cia de Foto

A dificuldade de definir as estratégias adaptadas aos objetivos fixados para as políticas públicas da cultura fica ainda agravada por outra: a de adequar os critérios da intervenção pública no domínio cultural aos critérios de justiça operantes noutros domínios da política pública, como os da saúde ou da educação sobretudo. Nesses domínios, os desníveis aferidos na prevalência das patologias, no acesso aos cuidados, no acesso à educação, concebida como dotação em capital humano, se exprimem facilmente no léxico da desigualdade ou da injustiça. Mas isso não é tão simples no domínio da cultura: nem todo desnível, nem toda diferença no acesso à cultura, na distribução dos gostos ou na frequência das práticas, constitui necessariamente uma desigualdade.

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Itaú Numismática Museu Herculano Pires. Foto: Cia de Foto

Percebemos, no entanto, os limites de uma crítica do arbitrário universalista das políticas de democratização. Essa prática tem como pretexto o relativismo cultural – dar a cada um os meios de obter o que ele aspira –, acomodando-se, no fundo, à aporia das concepções habilitadoras da justiça. Nem todos os registros de gostos e de práticas, porém, se equivalem socialmente.7 Dito de outro modo, se consideramos que as políticas públicas da cultura não podem ter como horizonte principal a formação de batalhões de leitores de Stendhal ou de amadores de ópera barroca, consideramos também que elas não podem se contentar em remeter as diferenças sociais observadas à expressão de aspirações diversificadas e igualmente legítimas. Pode-se pensar, assim, que os desníveis nas práticas culturais percebidas como particularmente desejáveis e legítimas participam pelo menos da desigualdade das condições, e pedem, portanto, ações redistributivas. Nesse sentido, é difícil imaginar que frequentar a ópera mais do que o teatro, escutar Brahms em vez de Mozart, ler Balzac em vez de Proust ou preferir Rembrandt a Van Gogh entre na composição de uma escala do gosto ou da legitimidade das práticas. Em compensação, ler em vez de ver televisão, preferir Monet a Poulbot ou Flaubert a Barbara Cartland evoca muito mais diretamente esse componente hierárquico. Seja ou não o produto da imposição de um ‘‘arbitrário cultural’’, para retomar o vocabulário de Bourdieu e Passeron, a le.42


gitimidade reconhecida assim como o desejo por essas práticas provém da eficácia que lhes é, com ou sem razão, atribuída noutros setores da vida social, quer consideremos tais práticas portadoras de recursos cognitivos que contribuem a encorajálas (em particular nos mais jovens, na ótica notadamente de sua conversão escolar), quer as associemos mais diretamente a vantagens de distinção ou de acesso a certos status ou a certos grupos sociais valorizados. Evidentemente, a percepção dessas hierarquias é eminentemente complexa e variável segundo os meios, as épocas e as sociedades. Por isso, percebe-se que nesse terreno nunca é fácil definir critérios operacionais da “desejabilidade” legítima dos bens. Os esforços de democratização do acesso à cultura respondem, assim, a uma demanda social latente, difícil de satisfazer por colocar em jogo a distribuição desigual tanto dos recursos quanto das aspirações. Nessa ordem de ideias, o principal obstáculo no qual esbarra o voluntarismo democratizante das políticas públicas da cultura concerne à força das heranças sociais e familiares, em cujo cruzamento se forjam as disposições e os hábitos culturais, perante os quais a subvenção da oferta, a distribuição cultural do território ou as políticas tarifárias só podem ter um impacto muito limitado. Desigualdades de acesso a cultura e herança A diferenciação dos hábitos e das atitudes culturais não depende só das diferenças das condições de vida, de trabalho, dos níveis de educação ou, mais amplamente, do ambiente sociocultural dos indivíduos. Ela também depende diretamente de características ligadas à educação recebida na infância e na adolescência no seio da família e à sua influência persistente, que dá toda a sua força ao conceito de habitus mobilizado na sociologia de Pierre Bourdieu. Por isso, as atitudes culturais são ligadas não apenas à posição, mas também à origem social dos indivíduos, que remete por sua vez ao volume e à natureza dos capitais herdados, de modo que os gostos e os hábitos culturais de um ‘‘filho de’’ professor ou de uma ‘‘filha de’’ médico, por exemplo, costumam, mesmo numa posição social equivalente, se afastar sensivelmente daqueles dos filhos de operários e de agricultores. Provavelmente, em nenhum outro campo o efeito da socialização secundária, escolar ou profissional, anule de modo tão imperfeito o da socialização primária quanto no das atitudes culturais. Não há manifestação empírica mais clara da influência persistente da origem social sobre as atitudes e os hábitos culturais do que os desníveis observados na matéria em pessoas dotadas de propriedades equivalentes do ponto de vista de seu capital escolar e de sua posição social, mas de origem social distinta. Tomemos, para voltar a um indicador já evocado, as estatísticas francesas de frequência a museus, a monumentos históricos, a teatros, a concertos de música clássica ou a espetáculos coreográficos, consideradas, em 2008, segundo a origem e a posição social dos indiví.43


duos. Para cada combinação considerada de origem e posição, a proporção de indivíduos não tendo frequentado nenhum desses equipamentos culturais ao longo do ano que precedeu a pesquisa, ou, inversamente, tendo frequentado ao menos três, apresenta uma estrutura ‘‘diagonal‘‘ muito clara: a proporção de entrevistados, entre as pessoas de origem e de posição superiores, não tendo frequentado nenhum equipamento é mais fraca do que a das pessoas de origem e de posição média, que é, porém, menos elevada do que a das pessoas de origem e de pertença popular. O indicador de frequentação de pelo menos três desses equipamentos apresenta uma hierarquia simetricamente inversa (ver tabelas 1 e 2). Tabela 1: Taxas de não frequentação de museus, monumentos históricos, teatros, concertos de música clássica e espetáculos coreográficos segundo a origem e a posição sociais em 2008 (em %)

Origem social

Superior Média Popular

Superior 13 23 27

Posição social Média 21 30 46

Popular 46 55 67

Fonte: Ministério da Cultura e da Comunicação, pesquisas sobre as práticas culturais dos franceses, 2008. Campo: ativos e ex-ativos de 15 anos ou mais, que informaram à pesquisa sua última profissão e a de um de seus pais. Nota: as categorias superiores, médias e populares foram construídas, pela origem e pela posição, por agregação: dos diretores de empresas com dez ou mais assalariados, dos profissionais liberais e dos executivos superiores, no caso das categorias superiores; das profissões intermediárias, dos técnicos e professores, no das categorias médias; dos empregados, operários, agricultores, pequenos comerciantes e artesãos, no das categorias populares. Leitura: em 2008, 13% dos entrevistados de origem e de posição superior declararam não ter frequentado nenhum equipamento cultural ao longo do ano que precedeu a pesquisa. Tabela 2: Taxas de frequentação de pelo menos três equipamentos culturais entre museus, monumentos históricos, teatros, concertos de música clássica e espetáculos coreográficos segundo a origem e a posição sociais em 2008 (em %)

Origem social

Superior Média Popular

Superior 45 45 31

Posição social Média 34 24 16

Popular 15 9 4

Fonte: Ministério da Cultura e da Comunicação, pesquisas sobre as .44


práticas culturais dos franceses, 2008. Campo: ativos e ex-ativos de 15 anos ou mais, que informaram à pesquisa sua última profissão e a de um de seus pais. Em todo caso, a situação que mais chama a atenção aqui é a das categorias não homogêneas do ponto de vista da combinação de origem e posição. A origem superior distingue assim as práticas dos entrevistados de posição média ou popular de seus equivalentes de outras origens. Enquanto os entrevistados de categoria popular e de origem média ou popular figuram majoritariamente entre os que não frequentaram nenhum dos equipamentos culturais citados (respectivamente, 55% e 67%), só uma minoria dos entrevistados de mesma posição mas de origem superior está nesse caso (46%). Inversamente, a origem média ou popular é associada, nos entrevistados de posição superior, a taxas mais altas para esse indicador do que os entrevistados de origem e de posição superior (respectivamente, 23% e 27% de um lado, ante 13% do outro). A frequentação intensiva desses mesmos equipamentos (mais de três ao longo do ano) produz resultados perfeitamente simé-

Midiateca Itaú Cultural. Foto: Humberto Pimentel

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tricos, e observamos o mesmo tipo de combinação se tomamos como referência não mais a origem superior, mas a origem média ou popular. Tudo indica, assim, que as “forças de reiteração” da origem se associam sistematicamente às da posição ocupada, confirmando o poder e a persistência da influência exercida pelos hábitos e pelas atitudes adotadas ao longo da infância. O mesmo tipo de distribuição se observa mais geralmente em quase todos os indicadores de práticas culturais, assim como na ordem das preferências expressas em matéria de gêneros, obras, artistas etc. Assim, a distribuição da proporção de grandes leitores (ao menos 20 livros por ano) e de grandes consumidores de televisão (ao menos 30 horas de televisão por semana) hierarquiza identicamente as combinações de origem e posição sociais. Os indivíduos de origem superior e posição média ou superior são assim mais frequentemente grandes leitores que o conjunto das pessoas de mesma posição mas de origem inferior (tabela 3). A origem discrimina, porém, muito menos as atitudes perante a televisão: seja qual for sua origem, os membros das categorias médias, populares e, sobretudo, superiores apresentam proporções bastante homogêneas de telespectadores viciados (tabela 4). Tabela 3: Proporção de grandes leitores (ao menos 20 livros por ano) segundo a origem e a posição sociais (em %)

Origem social

Superior Média Popular

Superior 39 31 27

Posição social Média 34 20 18

Popular 22 17 11

Fonte: Ministério da Cultura e da Comunicação, pesquisas sobre as práticas culturais dos franceses, 2008. Campo: ativos e ex-ativos de 15 anos ou mais, que informaram à pesquisa sua última profissão e a de um de seus pais. Tabela 4: Proporção de grandes consumidores de televisão (ao menos 30 horas por semana) segundo a origem e a posição sociais (em %)

Origem social

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Superior Média Popular

Superior 6 6 7

Posição social Média 8 11 13

Popular 21 22 28


Fonte: Ministério da Cultura e da Comunicação, pesquisas sobre as práticas culturais dos franceses, 2008. Campo: ativos e ex-ativos de 15 anos ou mais, que informaram à pesquisa sua última profissão e a de um de seus pais. Seria possível mostrar mais amplamente que a balança dos efeitos de origem e de posição distingue as práticas mais legitimadas (para as quais os efeitos de origem se associam mais fortemente aos de posição) das práticas menos legitimadas, que são mais uniformemente ligadas às posições ocupadas. Isso leva a crer que a força relativa das heranças culturais varia em razão inversa da difusão das práticas, mais pronunciada para as práticas mais reservadas e mais modesta para as práticas de massa. O interesse desse tipo de indicador é, no entanto, mostrar a pluralidade dos canais de formação e de transmissão dos hábitos e das atitudes culturais, que nunca são puramente herdados ou adquiridos, como salienta muito justamente o modelo de socialização plural defendido por Bernard Lahire.8 Para além do desencanto Relembrar os limites das políticas de redução das desigualdades de acesso à cultura é às vezes percebido como fator de desencorajamento e mesmo de desqualificação da ação pedagógica ou cultural, que estaria condenada de algum modo a esbarrar interminavelmente no muro da herança sociocultural. Essa objeção seria plenamente fundada se a reiteração desses limites alimentasse apenas, nos atores da política cultural, como professores, posturas de lamento resignado, encorajando apenas uma forma sofisticada de renúncia, já que baseada na objetivação empírica da impotência da ação. Não é necessário, porém, que essa reiteração produza tais efeitos. Ao contrário, a robustez das constatações e o rigor das análises dos processos que lhes servem de base são também um convite permanente a apreender os problemas ali onde eles realmente se colocam, a preferir a educação artística ao marketing cultural, a privilegiar, como se faz mais geralmente em matéria educativa, a aspereza da transmissão explícita ao conforto da conivência implícita, ponto cego das versões antigas da doutrina da democratização, por meio da temática do “choque eletivo” de André Malraux, segundo o qual bastava colocar cada pessoa diante das obras-primas da arte e da cultura para que sua transcendência tornasse inútil qualquer mediação. As ilusões da conivência cultural não estão menos presentes nas práticas mais espontaneístas e relativistas de democracia cultural, quando se ignoram ao mesmo tempo os recursos necessários à expressão espontânea e o valor social desigual dos diferentes repertórios culturais. Na contracorrente de todo miserabilismo sociológico, a análise das políticas culturais não pode dissociar a reflexão sobre os meios de ação da discussão de suas finalidades.

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Philippe Coulangeon Diretor de pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS) e do Instituto de Ciências Políticas de Paris. Pesquisa temas relacionados à desigualdade social e às relações de classe nos campos da cultura, da educação e dos estilos de vida. E-mail: philippe.coulangeon@sciences-po.fr

Notas Este texto se apoia em grande parte nos elementos de reflexão desenvolvidos no capítulo 3 de Philippe Coulangeon, Les métamorphoses de la distinction. Inégalités culturelles dans la France d’aujourd’hui. Paris: Grasset, 2011.

1

2

Ver Joffre Dumazedier, Vers une civilisation du loisir? Paris: Seuil, 1962.

Cf. La question de la suppression du ministère de la Culture peut se poser. Le Monde, 30/12/2008, entrevista com Jean-Jacques Aillagon.

3

4 Sobre esta questão, ver notadamente Lise Santerre, “De la démocratisation de la culture à la démocratie culturale”. In: Guy Bellavance (Ed.). Démocratisation de la culture ou démocratie culturelle? Deux logiques d’action publique. Sainte-Foy: Presses de l’Université de Laval, 2000, assim como Philippe Poirrier, L’État et la Culture en France au XXe siècle. Paris: Libraire Générale de France, 2000.

Lembramos, por exemplo, a vaia levada em Avignon, em julho de 1968, por Jean Vilar (pilar da descentralização teatral), cujo nome foi rimado por jovens festivaleiros com o do ditador português Salazar.

5

6 Reconhecemos a teoria da assim chamada “doença dos custos”, dos economistas William Baumol e William Bowen, segundo os quais a coexistência de setores de atividade com produtividade crescente e setores com produtividade estagnante – entre os quais o setor das artes do espetáculo – conduz necessariamente, pelo alinhamento dos custos de mão de obra dos segundos aos dos primeiros, a um déficit estruturalmente progressivo do financiamento dos setores “arcaicos”. Cf. William J. Baumol e William G. Bowen, Performing arts – the economic dilemma, Cambridge: The MIT Press, 1966. 7 Para uma crítica particularmente esclarecedora das noções de justiça e de democracia habilitadoras, ver notadamente Patrick Savidan. Repenser l’égalité des chances. Paris: Grasset, 2007.

Ver especialmente Bernard Lahire, L’homme pluriel: les ressorts de l’action.Paris: Nathan, 1998, assim como La culture des individus. Dissonances culturelles et distinction de soi. Paris: La Découverte, 2004.

8

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Visita ao Rio Tietê, exposição H2Olhos, SP, 2008. Foto: Cia de Foto

O quarto ofício [métier] da infância:1 o de consumidor cultural Sylvie Octobre As crianças ocupam diversas cenas sociais, diante de sistemas de injunções e expectativas variáveis. Primeiro a ter sido analisado, o ofício de criança2 se define na esfera familiar: ele orienta as crianças no sentido de conhecer as expectativas dos pais e a economia moral dos lares, e a se inscrever numa filiação. O ofício de aluno3 se define na esfera escolar: ela as dirige para responder às expectativas e aos critérios de regulação de uma instituição e de seu programa de formação, trazendo à tona de maneira crucial a questão do desempenho. Da mesma maneira, o ofício de camarada/companheiro, que surgiu mais recentemente nos trabalhos de pesquisa,4 as orienta a dominar os códigos de definição das idades e dos grupos, para ser integradas e reconhecidas ao mesmo tempo. As relações entre esses três ofícios se tecem largamente no registro cultural, que age igualmente sobre eles: pode-se então falar de ofício de consumidor cultural5 com suas coerções, suas competências, seus modos de funcionamento, suas temporalidades.6 As articulações entre os ofícios de criança e de aluno podem ser traduzidas em “contratos” tácitos ou explícitos, que implicam o quarto ofício: bons resultados escolares são “trocados” na família por autorizações de mais consumo .49


ou mais saídas, ou, ainda, por mesada (que serve frequentemente para a compra de produtos culturais e para programas culturais). As injunções juvenis são, por seu turno – e essa é uma de suas características –, muito ligadas aos códigos culturais, nas quais se encarnam de maneira crescente desde a entrada no colégio, notadamente na dimensão expressiva e interativa da música, da internet, mas também dos comportamentos ligados à moda, ao look, à afirmação de uma identidade visível. A “culturalização” dos três primeiros ofícios é evidente, e se acelerou das primeiras observações de Jean-Claude Chamboredon e Jean Prévot para cá.7 1. O calendário do ofício de consumidor cultural Desse ofício de consumidor cultural, podemos hoje delimitar melhor os diferentes momentos8 entre consumos e envolvimentos, jogos e desafios dos ofícios de criança, de aluno e de jovem. O ofício de consumidor cultural revela então as dinâmicas que nascem dos outros registros e provoca ao mesmo tempo efeitos próprios, ligados ao espaço ganho pelas autonomias cultural e relacional, e às mutações do acesso aos produtos culturais, assim como à culturalização da definição das idades. Os lazeres não são mais meros suportes, mas podem tornar-se recursos simbólicos que permitem à criança afirmar sua idade: sua aquisição e seu desenvolvimento são típicos dos momentos de transição biográfica, num momento em que os ritos de passagem9 escassearam, foram privatizados e substituídos por novos ritos mais móveis, ritos de primeira vez,10 de alcance mais restrito e de forma menos institucionalizada11 (o primeiro computador, o primeiro telefone celular, o primeiro blog ou a primeira página no Facebook, a primeira ida ao cinema entre amigos, etc.), ou por fases cronológicas – entrada no colégio etc. A multiplicação e a diversificação dos registros de primeiras vezes “distribuem e fragmentam a aquisição dos atributos da maturidade, identificada então com uma acumulação de experiências pontuais“.12 Trabalhos qualitativos mostraram que esses calendários do crescimento/desenvolvimento das crianças são muito presentes em suas projeções, que elas sabem o que é de “tal“ ou “qual“ idade e exprimem a vontade de não “queimar etapas“ e de atravessar uma por uma todas as fases.13 Assim, podemse distinguir vários momentos (ver tópicos): – O momento lúdico, leitor e esportivo. O fim da infância é o momento do predomínio do esporte e do polo lúdico, que deixam em segundo plano os consumos culturais – certamente muito presentes (notadamente as mídias tradicionais), mas criando vínculos menores. Esse momento, que é também o das saídas controladas, vê nascer uma autonomia restrita aos bens de consumo culturais, ainda bastante relativa, já que eles permanecem ancorados em interações nas quais a filiação familiar opera em múltiplos níveis: consumos partilhados, acompanhamentos, discussão, regulação de acesso etc. Essa ausência de real autonomia cultural ecoa a imbricação forte dos ofícios de criança e de aluno e a fraqueza do ofício de amigo ou companheiro: a lógica da filiação ainda predomina. Nesse contexto, os objetos culturais suscitam um investimento ainda relativamente pequeno. .50


– A abertura do campo dos possíveis e a queda da leitura. A mutação das condições de escolarização provocada pela entrada no colégio coincide com uma modificação do ofício de aluno, mas também dos ofícios de criança e de amigo, companheiro. Se a pressão escolar indubitavelmente aumenta, ela é contrabalançada pelo reconhecimento de maior autonomia de gostos culturais que não se traduz ainda em uma independência material (de deslocamento, gasto etc.), mas se apoia na materialidade da cultura do quarto, no qual os objetos culturais ganham espaço crescente. Assim, o ofício de criança é atravessado pelas dinâmicas contrárias ao ofício de camarada: por um lado, a rede social dos colegiais se amplia; por outro, o controle parental se reconfigura, sob o efeito da modificação das agendas escolares, mas também da mutação das demandas de saídas (os aniversários dão lugar às festas, a rede de amigos se recompõe em geral num território geográfico mais vasto que o da escola primária). A primeira metade do percurso do aluno no colégio aparece assim como um período de redefinição dos equilíbrios que regiam, na época da escola primária, os quatro registros – família/ escola/grupo de pares/lazeres –, mesmo que as escolhas permaneçam ainda pouco individualizadas. – A guinada cultural. A culturalização das identidades, que articula “extimidade”14 e intimidade, o “para o outro” e o “para si”, se opera em seguida, no período da segunda metade do colégio e da entrada na pré-adolescência, notadamente com o papel cada vez mais importante das tecnologias digitais e a autonomia progressiva dos programas. A lógica estatutária que atribui um papel (criança, aluno) ainda vigora, mas dá lugar à lógica identitária, o que favorece a passagem a uma lógica da afiliação mais do que da filiação. Os equilíbrios entre os quatro registros são assim modificados, em proveito do grupo dos pares e em detrimento da escola, e dão o primado ao registro cultural, que deve ao mesmo tempo exprimir essas mutações e revelar os novos equilíbrios. – A expressividade dos gostos e dos sentimentos. A passagem à expressividade sucede à culturalização das identidades, num contexto de aumento da independência cultural. Ela prolonga e estrutura a autonomia dos gostos esboçada nas idades anteriores. As atividades mais propícias para essa pesquisa de expressividade são privilegiadas e constituem o epicentro dos universos de gostos: a escuta musical, individualizável pela emulação, tanto em termos de meios de escuta quanto de escolhas de conteúdos, mas coletivamente valorizada, assim como o uso do computador e da internet, que permite a mesma porosidade entre presença e distância, individualidade e coletividade. A cada idade, o ofício de consumidor cultural comporta injunções – conhecer certas faixas da produção midiática e saber se pôr em cena ao falar delas com os(as) amigos(as) – que constituem ao mesmo tempo uma barreira e um nível: trata-se de assumir sua idade distinguindo-se dos mais jovens, mas também dos mais velhos, não “parecer bebê“ nem “se fingir de grande“. Ou seja, ocupar seu lugar na sociedade de seus pares, mas também na família e na escola. .51


Agenda cultural Regime de pluralidade Momento cultural Idade biológica .52

Consumos culturais

Mídias tradicionais, leitura e esporte

Saídas culturais

Saídas culturais controladas e legitimadas

Fim da leitura de livros, multiplicação de lazeres, práticas de amador

Entrada no universo multimídia

Foco no computador e na escuta de música

Emancipação progressiva das saídas (cinema)

Saídas juvenis noturnas e autônomas (cinema, boate e show)

Saídas de lazeres lúdicos – Saídas de lazeres (circo, parque de diversão, jogos) Mise-enscène de si

Decoração do quarto baseada na filiação e nos gostos infantis (animais, família)

Ostentação de pertencer a grupos e dos gostos culturais

Envolvimento

Os lazeres culturais geram vínculos menores do que o esporte

Culturalização crescente dos vínculos

Ofício de criança

Ausência de autonomia real

Autonomia de gostos (restrição momentânea dos convites externos)

Autonomia crescente (cultural e relacional)

Ofício de aluno

O ofício de aluno assume um papel importante no ofício de criança

Declínio progressivo do ofício de aluno, mas conserva um lugar na negociação familiar

Retorno do ofício de aluno, variável segundo as orientações escolares

Ofício de jovem

Lógica da filiação

Mutação da rede de relações: ampliação e reconfiguração com a entrada no colégio

Lógica da afiliação

Lógica de expressividade psicológica (ser, sentimento)

Ofício de consumidor cultural

Início de autonomização por meio de escolha de equipamentos e estatuto de consumidor de produtos culturais

Importância crescente dos objetos culturais. Expressividade material (fazeres, gostos)

Desenvolvimento da expressividade material e transição para uma autonomia das escolhas de consumo

Rumo a um ofício de consumidor cultural?

Momento lúdico, leitor e esportivo, baseado na filiação

Abertura do campo dos possíveis e diminuição da leitura

Guinada cultural: desenvolvimento da articulação entre o “para si“ e o “para o outro”, e culturalização das identidades

Expressividade dos gostos e dos sentimentos

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Autonomia relacional, sobretudo através dos meios de comunicação e dos convites


2. Um ofício socialmente situado Se as variações ligadas à origem social são reais no acesso a esse ofício de consumidor cultural, nessa idade elas parecem menos determinantes do que as variações ligadas ao gênero (menina/menino), com as quais se imbricam. – As meninas na frente. As meninas se beneficiam, ao entrar no ofício de consumidor cultural, de um duplo efeito temporal: por um lado, elas conservam por mais tempo que os meninos certos lazeres da infância; por outro, elas se inscrevem mais precocemente nos consumos, práticas e usos que compõem a “cultura do quarto”,15 assim como nas saídas típicas da adolescência. Enquanto o contingente dos meninos leitores de livros cai bruscamente desde a entrada no colégio, 12% das meninas (o dobro dos meninos da mesma idade) ainda leem todos os dias, e permanecem mais fiéis a essa prática do que os meninos. Além disso, as meninas conservam por mais tempo as saídas ligadas à infância: em cada faixa etária, pelo menos metade delas frequenta museus e monumentos, e elas são sempre mais numerosas que os meninos a frequentar os parques de diversão, assim como os zoológicos e os parques de animais, ou ainda as bibliotecas. Paralelamente, elas se aproximam das margens culturais da adolescência mais cedo e são mais ligadas a esses consumos de forma mais durável que os meninos que a eles se entregam. Além disso, elas entram também mais cedo na cultura adolescente da saída, notadamente aquela ligada a seus interesses musicais (os shows e as salas de espetáculo). Esse duplo movimento – persistência das saídas ou consumos da infância e entrada mais precoce nos universos culturais da adolescência – torna o universo das meninas mais precoce e variado de maneira durável que o dos meninos, que só irão “alcançá-las”, em certos domínios, dois anos mais tarde. Tais diferenças de gênero são socialmente situadas e variam em função das práticas ou atividades consideradas. Em certos casos, os fatores se compensam; noutros, os descompassos perduram. Assim, uma origem social favorável não basta para que os meninos “recuperem” seu atraso em matéria de audiência radiofônica: aos 11 anos, quem mais escuta rádio são as filhas de executivos (39,5% o escutam todo dia), ao passo que as filhas de operários e os filhos de executivos apresentam níveis semelhantes de escuta cotidiana (35% e 34,5%), equilíbrio que não varia com o avanço da idade. O momento radiofônico pré-adolescente é, assim, maior entre as meninas do que entre os meninos, e as oposições de origem social são menos marcadas nesse terreno, ainda que os filhos de operários permaneçam ligados ao rádio por mais tempo. – Sistemas de oposição. O acesso às práticas não basta para explicar as posições em termos de gênero, e as distinções se deslocam para os universos de gostos, mesmo nas práticas “a princípio’’ largamente partilhadas. Assim, em matéria de escuta de música, as meninas de 11 anos escutam mais a canção francesa, seja Indochine ou Renaud (filhas de executivos), seja Johnny Hallyday, Garou, Jennifer (filhas de operários), enquanto os meninos da mesma idade e de origem .53


popular preferem a dance music e o R’n’B, e seus contemporâneos vindos das categorias favorecidas escutam ainda rock e rap. Seis anos mais tarde, aos 17 anos, essas oposições não desaparecem, mas se deslocam sob o efeito da importância que a escuta de música adquire e da construção de competências musicais, que modificam os perímetros do feminino e do masculino e rediferenciam as clivagens socialmente situadas entre ambos: um gosto popular masculino se constitui em torno do rap (outrora típico do gosto dos filhos de executivos) e do R’n’B, gosto popular feminino em torno da dance (outrora apreciada pelos meninos do mesmo meio), ao passo que filhos e filhas de executivos se encontram em torno do

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Foto: Cia de Foto

rock, ao qual os primeiros acrescentam o hard, o punk e o metal, e as segundas o rock francês (retomando seu gosto inicial pela canção francesa). Observa-se então um duplo movimento: das meninas em direção aos gostos dos meninos, e das categorias populares em direção aos gostos das categorias superiores, que mantêm sistemas de oposições nos quais cada um revela seu gênero, sua idade e sua origem social. As oposições de gênero são, portanto, de dois tipos: algumas parecem invariáveis no tempo e no espaço social, outras parecem móveis, definindo de maneira social e temporalmente situada estereótipos nos quais se colhem referências e recursos, em termos tanto de pertença quanto de exclusão.

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– Espaços de convergência: o quarto digital. Enquanto o computador permanece, entre os adultos, um objeto de clivagem por gênero,16 a observação dos comportamentos das crianças indica que os níveis de prática cotidiana são similares para meninos e meninas, assim como seus níveis de envolvimento com a prática desde os 13 anos. Os comportamentos das meninas e dos meninos em relação ao computador e à internet se parecem, portanto, cada vez mais à medida que eles crescem, notadamente entre as crianças de categorias superiores. No caso dos filhos de executivos, a vantagem inicial dos meninos não dura, pois eles são alcançados pelas meninas na segunda metade do período de colégio. Em compensação, isso não ocorre nos meios populares, nos quais os meninos de todas as idades investem mais no uso do computador que as meninas, os filhos de executivos apresentando sempre um nível de prática superior ao dos filhos de operários. À medida que as crianças crescem, nota- se um movimento de convergência global dos comportamentos das meninas e dos meninos em relação ao acesso ao computador e à internet, com um atraso, porém, das categorias populares. A internet reúne meninas e meninos em torno de usos comuns, que redefinem os perímetros do feminino e do masculino, redefinição essa que parece mais difícil nos meios populares. Para todos, meninas e meninos, filhos de operários e de executivos, o MSN é o uso mais frequente: o computador franqueia aos meninos uma entrada na cultura de quarto até então fortemente feminina. O “quarto digital“17 dota os meninos de competências e apetências dessa cultura de quarto feminina, que inclui a prática do manejo do telefone: a internet permite aos meninos um uso conversacional às vezes impossível nas outras cenas – os adolescentes podem conversar no MSN com pessoas do sexo oposto com as quais não falam no pátio de recreação do colégio. A participação dos meninos nos fóruns e nos chats é outro sinal dessa mutação dos estereótipos: se as práticas “tradicionais“ de escrita (diários íntimos, poemas etc.) são majoritariamente femininas, o uso das redes e dos blogs as franqueia aos meninos. Assim, a convergência dos universos culturais das meninas e dos meninos resulta de um duplo movimento de acesso das meninas a instrumentos “masculinos“, porque tecnológicos, e de inscrição dos meninos em usos de instrumentos tecnológicos que renovam práticas “femininas“ (escrita, conversa etc.). 3. Transmissões múltiplas As crianças são ao mesmo tempo agentes e atores das transmissões culturais. Enquanto agentes, elas se inscrevem num processo de herança de um capital cultural e simbólico. Enquanto atores, elas se reapropriam dessa herança: a transmissão supõe uma ação dos herdeiros que é sempre uma transformação, uma reinterpretação. O capital não é intangível, mas evolutivo. Esse processo de conversão, que conjuga construção, desconstrução e apropriação, é essencial à transmissão.18 Essa transformação pode se dar por um deslocamento dos conteúdos consumidos, das modalidades de consumo etc. Assim, os pais podem ouvir os Beatles num leitor de cd e as crianças Tokio Hotel num arquivo mp3, ou então um dos pais pode .56


ter feito música por muito tempo, e a criança outra atividade artística. Essa plasticidade decorre também de efeitos de contexto, notadamente aqueles ligados à evolução da oferta cultural: a aparição de novos objetos culturais, sobretudo em matéria de multimídia, e a evolução do nível de difusão dos equipamentos têm um impacto direto sobre os fenômenos de transmissão entre gerações. Nesse contexto, a transmissão varia em função de parâmetros individuais: posição na fratria,19 mas, sobretudo, emancipação da criança à medida que ela vai crescendo, pois o mecanismo da reprodução é atravessado pela reflexividade,20 seja provocada por informações colhidas no exterior, por meio das mídias, por exemplo, ou por um distanciamento pessoal de seus próprios hábitos. Enfim, e sobretudo, a criança deve ter vontade de herdar: o exemplo da leitura é impressionante a esse respeito.21 A questão das transmissões tem sido mais frequentemente entendida como algo ligado à família, “sujeito principal das estratégias de reprodução“,22 as outras instâncias de socialização parecendo resultar “de influências“. Vinda, sem dúvida, da história da sociologia e do peso que a noção de capital cultural e de sua metáfora material teve sobre as representações, essa distinção merece ser questionada. Conceito que “situa“ os indivíduos, o capital cultural inclui uma dimensão material (os objetos disponíveis), mas dela se afasta em sua forma incorporada (o habitus). A metáfora da herança sugere que o indivíduo recebe uma parte desse capital, constitui outra ao longo de sua vida e tende a transmitir outra ainda à geração seguinte, a incorporação dos capitais se fazendo pela família,23 pela instituição escolar, mas também pelo grupo dos pares etc. No entanto, essa metáfora deve ser usada com atenção, pois ela não esgota a explicação da realidade. Ela desconsidera, sobretudo, a complexidade da socialização familiar,24 na qual se deve distinguir

Exposição Sutil Violento, itinerância Chile, Museo Nacional de Bellas Artes, 2008. Foto: Cia de Foto

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o que vem do pai, da mãe, dos irmãos e das irmãs, segundo o sexo e a classe da criança. É necessário, portanto, mobilizar informações sobre as práticas e normas educativas passadas para compreender a relação atual com a cultura e as estratégias educativas das famílias,25 num contexto em que as normas educativas familiares foram transformadas pelo sucesso dos discursos sobre o florescimento da criança26 e a feminização dos habitus cultivados especialmente nos meios dotados de grande capital cultural.27 Mobilidade social dos pais, relação com o tempo, extensão e densidade das redes sociais, norma da realização pessoal, todos esses são parâmetros que intervêm na transmissão.28 Ela desconsidera também o peso das outras transmissões. Os transmissores potenciais são diversos: influências dos pares,29 da escola30 e das mídias – a interdependência dos ofícios de criança, aluno e consumidor cultural vai ficando mais complexa. A ascensão das dinâmicas juvenis provocou uma reavaliação do poder de transmissão que nelas se constrói e cujos efeitos concernem principalmente aos produtos das indústrias culturais. O papel dos pares se articula com o das mídias sem, porém, se reduzir a ele.31 As mutações da relação com a escola repuseram em questão as transmissões escolares32 e seu impacto sobre a construção da relação das crianças com a cultura. A escola promove atividades e valores culturais legitimados. A adesão a eles varia socialmente, em função sobretudo da situação escolar da criança. Às vezes, eles entram em contradição com os dos grupos juvenis. Os modelos, as referências e as coerções específicos desses diferentes espaços de socialização se exercem sobre as crianças e funcionam como recursos relativamente interdependentes, que elas podem mobilizar ou rejeitar em função de sua identidade sexual – convém rejeitar os gostos do outro sexo –, de sua origem social, mas também do lugar reservado a certas atividades culturais na construção de si [por parte] da criança ao longo do tempo. Ao longo do desenvolvimento da criança, essas combinações podem ser recompostas e remobilizadas. Elas nos permitem perceber que as culturas jovens são espaços de plasticidade (forte, mas transitória) das disposições e que, paralelamente, seus traços ecléticos perduram com o desenvolvimento dos jovens e modificam duravelmente as relações das novas gerações com a cultura. A análise da transmissão supõe, por outro lado, a distinção entre transmissão estrutural e mutações conjunturais. A passagem de uma geração a outra carrega os traços das mutações econômicas, sociológicas, tecnológicas, culturais, pedagógicas etc. Essas mutações da sociedade são filtros entre o que é transmitido e o que é herdado, transformando os objetos com o passar das gerações.33 A transmissão não é, portanto, a reprodução idêntica de comportamentos de uma geração a outra, mas deve ser entendida por meio das identidades geracionais.34 Nessa situação de pluralidade dos atores, das modalidades e mesmo dos tipos de transmissão, as inflexões de comportamentos ou de representações, que são em primeiro lugar individuais,35 mas se concretizam em mutações intergeracionais, podem ser interpretadas como motores da mu.58


dança social e cultural, entre ajustamento ou abandono. Trata-se não só de uma transformação do capital cultural de uma geração a outra – a cada geração de famílias correspondendo um contexto sociocultural próprio –, mas também de uma mutação da socialização: a sociedade contemporânea se caracteriza por uma individualização e uma desinstitucionalização relativas. Nesse contexto, a socialização não é mais considerada como a adoção das normas de um grupo, mas como o máximo aproveitamento dos meios ao alcance do indivíduo para que ele se realize. Esse modelo, inicialmente característico das classes favorecidas, se expandiu na sociedade, principalmente nas representações.36 Nem por isso as classificações desapareceram num espaço social atomizado: o que se transmite não é tanto o valor ou o volume absoluto desse capital, mas a posição que ele ocupa e faz ocupar no espaço social, num contexto sócio-histórico que evolui de uma geração para outra. A mudança social, como ruptura conjuntural, participa inteiramente desse processo de transmissão estrutural. A transmissão é uma transformação homotética.37 Os modos de transmissões são igualmente variados: elas funcionam bem mais por impregnação,38 de maneira implícita, do que por interação explícita (ou inculcação39), bem mais por persuasão clandestina do que por pedagogia.40 E os registros se interpenetram41 nas relações de interdependência – incitações, acompanhamento, consumo partilhado etc. –, nas quais os atores da socialização funcionam como modelos, positivos ou não, e como recursos. De resto, elas funcionam tanto no registro do simbólico – as representações da cultura – como no das práticas ou dos objetos, os dois registros permanecendo irredutíveis um ao outro. Da infância à grande adolescência, descompassos, oposições e convergências, mas igualmente temporalidades diferentes alimentam a construção desse ofício de consumidor cultural, que se situa na interseção de outros ofícios. Primeiro, o de “filho de” por meio das várias transmissões culturais ascendentes e descendentes, mas também das negociações de autonomia ligadas aos programas ou aos consumos culturais à medida que a criança vai se desenvolvendo. Depois, o de aluno, pois a escola propõe um modelo cultural com o qual os alunos devem negociar, e constitui – do ponto de vista dos resultados escolares – uma moeda de troca para a conquista da autonomia em matéria de consumos culturais. Enfim, o ofício de camarada, pois a identidade infantil e adolescente se constitui aí no “entre-si” de maneira importante, seja para a aquisição de competências culturais (conhecer os “bons” cantores, os “bons” jogos, os “bons sítios”), seja para a validação das identidades (ser legal, participar do grupo), que funcionam tanto para designar quanto para excluir. Em cada um desses ofícios, atuam o tempo todo saberes “minúsculos”,42 saber-fazer (encontrar as informações, os sites, as imagens, as músicas etc.), saber-ser (a boa aproximação, o bom look etc.) e fazer-saber (saber pôr em cena esse “si mesmo” junto às diversas cenas sociais com as quais a criança é confrontada), associando, permanentemente, competências e negociações. .59


Sylvie Octobre Socióloga, diretora de pesquisa no Departamento de Estudos da Previsão e da Estatística do Ministério da Cultura e da Comunicação da França. Trabalha com a sociologia de públicos e das práticas culturais, particularmente hábitos culturais juvenis. E-mail: sylvie.octobre@culture.gouv.fr

Notas Usamos aqui esse termo com um sentido amplo de menoridade, que engloba um processo de “crescimento” e pode incluir várias “idades”, cujas delimitações são passíveis de debate, mas cujo interesse metodológico basta para justificar este uso. Essa acepção foi validada pela Agência Nacional da Pesquisa (Agence Nationale de la Recherche) no lançamento de seu edital de projetos Infância, em 2009, e fundamenta a consideração da infância como categoria social (cf. os trabalhos do grupo de sociologia da infância da Associação Internacional dos Sociólogos de Língua Francesa, w3.aislf.univ-tlse2.fr).

1

2 Jean Claude Chamboredon, Jean Prévot, Le “métier d’enfant”. Définition sociale de la prime enfance et fonctions différentielles de l’école maternelle. Revue Française de Sociologie, 1973, 14-3; François de Singly. Les adonaiissants. Paris: Armand Colin, 2006. 3

Régine Sirota, Le métier d’élève. Revue Française de Pédagogie, n. 104, 1993.

Dominique Pasquier, Culturas lycéennes. La tyrannie de la majorité. Paris: Autrement, 2005.

4

A noção de consumo deve ser entendida aqui em sentido amplo, englobando todas as formas de participação cultural (práticas, saídas etc.).

5

Sylvie Octobre, Christine Detrez, Pierre Mercklé, Nathalie Berthomier. L’enfance des loisirs. Trajectoires communes et parcours individuels de la fin de l’enfance à la grande adolescence. Paris: Deps/MCC, 2010.

6

“Nosso objetivo é precisamente estudar a transformação da definição social da primeira infância e mostrar como o limite entre a idade que requer cuidados principalmente psicológicos e afetivos e as idades que requerem cuidados culturais recuou com a primeira infância”(Jean-Claude Chamboredon, Jean Prévot, op. cit., p. 295).

7

8 Preferimos o termo “momento” (que indica uma posição num processo temporal) ao termo “idade”, que corre o risco de reificar o processo no qual esses momentos se instalam. Esse processo se aproxima daquilo que psicólogos, pediatras, pesquisadores e clínicos chamam de “ritmo de desenvolvimento” (que não tem nada a ver com o crescimento), ”roteiro ao longo das idades dos diferentes desenvolvimentos que caracterizam a criança”. Certas etapas podem ser invertidas, faltar, se acoplar, outras podem surgir tardiamente – ou precocemente. Os roteiros individuais estão marcados pela personalidade e pelas influências do ambiente, e não pela existência de planos predeterminados. Hubert Montagnier, “Les rythmes majeurs de l’enfant“. In: Informations sociales, Temps sociaux: concordances et discordances, temps et cycle de vie, n. 153, maio- jun. 2009. 9

Martine Ségalen. Rites et rituels contemporains, Nathan: Paris, 1998.

10 Michel Bozon. Des rites de passage aux ‘premières fois, une expérimentation sans fin. Agora/Débats Jeunesse, n. 28, 2002.

“Podemos citar, de maneira desordenada, momentos de importância variável, como o primeiro cigarro, o primeiro beijo, a primeira conta bancária, a maioridade civil […] todos, momentos que contam e que se conta’’. Michel Bozon, op. cit., p. 29. 11

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12

Céline Metton Gayon. Les adolescents, leur téléphone et Internet, op. cit., p. 22.

13 Sara Bragg, David Buckingham. I think I’m too young to understand. In: Isabelle Charpentier (dir.), Comment sont reçues les œuvres. Paris: Creaphis, 2006. 14

Serge Tisseron. Virtuel mon amour. Paris: Albin Michel, 2008.

Hervé Glévarec. La cultura de la chambre, Préadolescence et culture contemporaine dans l’espace familial. Paris: Deps/MCC, 2009.

15

Olivier Donnat. Les pratiques culturais des Français à l’ère du numérique. Enquête 2008. Paris: MCC, Deps/La Découverte, 2009.

16

17 David Buckingham. La mort de l’enfance. Grandir à l’âge des médias. Paris: Armand Colin, 2010.

Claude Dubar. La socialisation. Paris: Masson et Armand Colin, 1997 (3. ed.); Bernard Lahire. Tableaux de famille. Paris: Gallimard, 1995. 18

Estudos sobre as dinâmicas familiares mostram que os membros de uma mesma fratria não “recebem“ a mesma coisa da mesma maneira. Frank J. Sulloway. Les Enfants rebelles. Paris: Odile Jacob, 1999. 19

20

Jean Claude Kaufman. Ego. Pour une sociologie de l’individu. Paris: Nathan, 2001.

Christian Baudelot, Marie Cartier e Christine Detrez. Et pourtant ils lisent. Paris: Le Seuil, 1999. 21

22

Pierre Bourdieu, Raisons pratiques. Paris: Minuit, 1994, p. 141.

Birgit Becker. The Transfer of cultural knowledge in the early childhood: social and ethnic disparities and the mediating role of familial activities. European Sociological Review, vol. 26, n. 1, p. 17-29. A autora mostra o impacto de certas atividades culturais (especialmente a leitura, pelos adultos, de livros para a criança) sobre a transmissão intergeracional do capital cultural incorporado.

23

Martine Ségalen. Familles: de quoi héritons nous?. In: Familles, permanences et métamorphoses.Paris: Éd. Sciences Humaines, 2002. 24

Jean Kellerhals e Cléopatre Montandon identificam três estilos educativos segundo os objetivos, os métodos, os papéis educativos e os modos pelos quais a família mediatiza as influências da escola, dos pares e das mídias: 1) o estilo autoritário se funda numa visão estatutária das relações pais/filhos e privilegia a obediência e a disciplina em famílias bastante fechadas em si mesmas; 2) o estilo negociador dá importância à autonomia e à criatividade da criança, e valoriza as relações pais/filhos no seio de famílias sob influência exterior (família associação); 3) o estilo maternal privilegia mais a conformidade e a disciplina do que a autonomia, embora desenvolva uma comunicação densa e uma grande proximidade entre pai e filhos, com uma atitude relativamente reservada dessas famílias em relação ao meio exterior. Cf. Jean Kellerhals e Cléopatre Montandon. Les Stratégies éducatives des familles. Milieu social, dynamique familiale et éducation des pré-adolescents. Lausanne: Delachaux et Nestlé, 1991. 25

Martine Ségalen, Nicole Lapierre, Claudine Attias-Donfut. Le nouvel esprit de famille. Paris: Odile Jacob, 2002; M. Ségalen. Familles: de quoi héritons nous? In Familles, permanences et métamorphoses: Paris: op. cit. 26

27 François de Singly. Les habits neufs de la domination masculine. Esprit, “Masculin/féminin“, nov. 1993. 28 N. Lin e M. Dumin.Access to occupation through social ties. Social Networks, vol. 8, 1986; Christian Baudelot, Michel Gollac, Céline Bessière, Isabelle Coutant, Olivier Godechot, Delphine Serre, Frédéric Viguier. Travailler pour être heureux?. Paris: Fayard, 2003; Gilles Pronovost. Temps sociaux et pratiques cultuelles. Québec: Presses Universitaires du Québec, 2005. 29

Gender, networks and cultural capital. Poetics, n. 32, 2004.

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Philippe Coulangeon. Quel est le rôle de l’école dans la démocratisation de l’accès aux équipements culturels?. In: Olivier Donnat e Paul Tolila (sous la dir. de). Les Publics de la culture, op. cit. e Lecture et télévision: les transformations du rôle cultural de l’école. Revue Française de Sociologie. n. 48-4, 2007; Éric Schön. La fabrication du lecteur. In: François de Singly (sous la dir. de). Identité, lecture, écriture. Paris: Centre Georges Pompidou/BPI, 1993. Os vínculos entre escola e práticas e consumos culturais suscitam explicações que variam segundo a adoção do ponto de vista da sociologia da educação (pesquisa dos impactos das práticas e consumos culturais extraescolares sobre as performances escolares) ou da sociologia da cultura (explicitação do efeito do grau de escolaridade sobre o acesso às atividades e aos consumos). 30

A pesquisa não permite delimitar as influências midiáticas, o que exigiria provavelmente análises de conteúdos e de recepção, entre as quais alguns trabalhos mostraram o quanto tais influências se articulam à sociabilidade juvenil e à construção de si. Dominique Pasquier. La culture des sentiments. L’expérience télévisuelle des adolescents. Paris: Éditions de la Maison des Sciences de l’Homme, 1999.

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François Dubet. Paradoxes et enjeux de l’école de masse. In: Olivier Donnat e Paul Tolila (sous la dir. de). Le(s) public(s) de la culture, op. cit. 32

Willy Lahaye, Jean-Pierre Pourtois, Huguette Desmet, Transmettre. D’une génération à l’autre. Paris: PUF, 2007.

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Uma comparação das práticas educativas de três gerações mostra uma evolução dos modelos educativos rumo a formas mais igualitárias (Martine Ségalen, Nicolas Lapierre, Claudine Attias-Donfut. Le nouvel esprit de famille. Paris: Odile Jacob, 2002), o que redefine as posturas parentais [François de Singly. À quoi sert la famille?. In: Jean-François Dortier (sous la dir. de). Familles, permanence et métamorphoses. Auxerre: Sciences Humaines, 2002]. A família moderna privilegiava as relações hierárquicas entre seus membros, a família pós-moderna privilegia um modelo igualitário, relacional e afetivo. Cf. Jean François Dortier. La famille aujourd’hui, bouleversements et recompositions. In: Jean François Dortier (sous la dir de), op. cit. 34

Bernard Lahire. De la théorie de l’habitus à une sociologie psychologique. In: Le travail sociologique de Pierre Bourdieu. La Découverte. Paris: 2001. 35

François de Singly. Comment aider l’enfant à devenir lui même?. Paris: Armand Colin, 2009. 36

37 Willy Lahaye, Jean-Pierre Pourtois, Huguette Desmet. Transmettre; D’une génération à l’autre, Paris: PUF, 2007. 38 Isso é o que Bernard Lahire chama de “socialização silenciosa” [Bernard Lahire. Héritages sexués et incorporation des habitudes et des croyances. In: T. Blöss (sous la dir. de). La dialectique des rapports hommes-femmes, 9-25. Paris: PUF, 2000] e o que as teorias do aprendizado social discutem sob o nome de “processo de observação” (Albert Bandura. L’apprentissage social. Bruxelas: Mardaga, 1980): o princípio da transmissão reside na observação e na imitação de comportamentos, mas também de atitudes e valores.

Anne Muxel. Mémoire familiale et projet de socialisation de l’enfant: des obstinations durables. Dialogue, 1984; Annick Percheron. La transmission des valeurs. In F. de Singly (sous la dir. de). La famille, l’état des savoirs. Paris: La Découverte, 2001. 39

40 François de Singly. Elias et le romantisme éducatif. Sur les tensões de l’éducation contemporaine. Cahiers Internationaux de Sociologie, 99, 1995. S. Octobre e Y. Jauneau. Tels parents, tels enfants? Une approche de la transmission cultural, art. cit. 41

Dominique Pasquier. Les savoirs minuscules, Le rôle des médias dans l’exploration des identités de sexe. Education et Sociétés, 2002/2, n. 10.

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Espetáculo O Tal do Quintal, Balangandança Cia. Foto: Cia de Foto

Os pÚblicos das artes do espetÁculo na França Jean-Michel Guy O conhecimento que adquirimos na França acerca dos públicos das artes do espetáculo nos últimos 40 anos fundamenta-se evidentemente na prática das pessoas que trabalham na relação com o público, assim como em certas pesquisas sociológicas. Entretanto, apenas as tais pesquisas serão abordadas neste artigo. Um primeiro tipo de pesquisa trata da frequentação (e mais raramente da não frequentação) de seus motivos. Mais comum, esse tipo abrange quatro outros, que correspondem a diferentes perspectivas: num primeiro nível, as pesquisas mais macroscópicas, sobre as práticas culturais ou os lazeres, permitem estimar as taxas de frequentação, estabelecer perfis sociodemográficos dos praticantes e situar as diferentes práticas umas em relação às outras; num segundo nível, aparecem os estudos sobre a frequentação de um gênero de espetáculo considerado globalmente (o teatro, a dança etc.), que permitem detalhar as modalidades da prática (frequência, sociabilidade, preferências etc.); num terceiro nível, e mais raro estão os estudos tratando do público de um espaço (como a sala Richelieu da Comédie-Française) ou de uma manifestação (como o Festival de Avignon); num nível ainda mais raro, estão os estudos sobre o público de uma obra particular (como os realizados pelo Etablissement Public du Parc et de la Grande Halle .63


de la Villetet1 em Paris junto aos espectadores dos espetáculos de circo). Haveria ainda, teoricamente, um quinto nível, com o estudo do público de uma representação particular – estudo mais próximo dos públicos reais. Um segundo tipo de pesquisa, por ora ainda bastante raro, debruça-se sobre a recepção dos espetáculos. Podemos situar aqui as pesquisas conduzidas pelo Théâtre des Jeunes Années de Lyon sobre a memória do público, os trabalhos de Anne Marie Gourdon sobre o público das grandes salas ou de Emmanuel Pedler sobre os espectadores do Alcazar em Marselha. Entre frequentação e recepção, encontramos ainda, geralmente conjugados com um ou outro tipo, os estudos sobre a imagem dos gêneros, das salas e das obras.

Espetáculo Felizardo, Banda Mirim, 2009. Foto: Cia de Foto

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Se compararmos nosso conhecimento atual com aquele de que dispúnhamos há 30 ou 40 anos, é inevitável constatar que progredimos consideravelmente. A pesquisa sobre as práticas culturais dos franceses abriu caminho e continua sendo uma mina de informações. Ela permite estimar o número de espectadores ocasionais e regulares; descrever as práticas de lazer dos espectadores; estabelecer hipóteses; e, até mesmo, avançar em explicações sobre os fatores sociais que influenciam a frequentação dos espetáculos. Essa pesquisa, periodicamente atualizada, permite ainda medir evoluções ocorridas ao longo de 30 anos. Em praticamente todos os países ocidentais existem pesquisas análogas. Mesmo permanecendo delicada, a comparação internacional permite ao mesmo tempo confirmar as teorias explicativas da frequentação e isolar a influência do fator “nacional”.

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Desse modo, as pesquisas sobre o público das artes do espetáculo são escassas, sobretudo se comparadas às disponíveis sobre museus, bibliotecas ou cinema. O Département des Etudes, de la Prospective et des Statistiques2, do Ministério da Cultura, realizou ou apoiou trabalhos sobre os públicos do teatro, da dança, do circo e das músicas ditas amplificadas, mas ainda não existe nenhum estudo global sobre o público dos concertos de outros gêneros de música; nenhum sobre os públicos das diversas formas de “arte da rua”; e nenhum sobre muitos gêneros, como marionetes, mimodrama ou opereta. Quanto aos estudos conduzidos por algumas instituições junto a seus espectadores, eles são ainda mais raros. Só o Parque de La Villette e a Ópera de Paris têm um serviço de estudos que realiza pesquisas sistemáticas junto aos espectadores. Além de grandes lacunas, nosso conhecimento enfrenta outros limites ligados à metodologia das pesquisas. Eles são, mais exatamente, de ordem epistemológica, política e metodológica. Sem me delongar, gostaria de evocar alguns, não para sugerir que nossos conhecimentos, por serem frágeis, não valeriam grande coisa, mas para nos ajudar a vislumbrar novas abordagens. O primeiro problema epistemológico refere-se ao uso pouco rigoroso de termos tão comuns como espetáculo, espectador e público. A multidão em movimento, incessantemente recomposta, que participa desses cortejos chamados de “ambulatórios” pelos artistas de rua é formada de espectadores e constitui um público? Nada é menos garantido. Essas formas artísticas visam precisamente problematizar tais noções. Ao mesmo tempo espectador e participante – alguns dizem “spectator” –, o passante, cuja atenção foi fisgada pelos artistas de rua, pode mudar várias vezes de estatuto ao longo do ‘‘espetáculo’’: de simples curioso, ele pode se tornar uma testemunha, ou espectador, e voltar a ser um curioso logo depois. Sem falar das formas de “teatro invisível”, inventadas por Augusto Boal e cultivadas por certos artistas de rua, que obrigam o passante, testemunha ou viajante malgré lui a tomar uma posição numa situação conflituosa engenhosamente criada pelos artistas e não identificável como um espetáculo. Entretanto, mesmo sem invocar esse caso extremo, e permanecendo no quadro convencional da maioria das formas de espetáculo (a reunião, num mesmo espaço fechado, de certo número de pessoas sentadas), um público é apenas, num sentido estrito, uma assembleia hic et nunc de espectadores de carne e osso. Em outros termos, só existe público de uma representação específica. Falar do público de um espaço, e a fortiori de um gênero, já é um abuso de linguagem; é fazer referência a uma construção estatística mais ou menos pertinente, mais ou menos eficaz, para representar uma realidade inapreensível de outro modo. O público da Comédie-Française, da dança, do festival de Avignon, assim definido, não existe. O que chamamos assim são coleções de indivíduos que têm poucas chances de se encontrar numa representação. Ora, um público real não consiste numa coleção de indivíduos, nem mesmo numa soma dos espectadores que o compõem. Características ainda enigmáticas do .66


público, isto é, de determinado público, como a sua heterogeneidade social, o seu número, a presença em seu seio de uma pessoa particular, a sua mobilidade eventual, a sua nacionalidade etc., são susceptíveis de exercer efeitos particulares sobre a recepção individual do espetáculo (pensemos no contágio das gargalhadas) e, mais ainda, sobre a sua significação social. Passando do público real ao público conceitual, definido pelo fato de que seus membros frequentaram tal lugar ou tal gênero ao longo de um período arbitrariamente fixado – por exemplo, os 12 últimos meses –, não nos arriscamos a perder precisamente ‘‘o público”? Neste ponto, uma palavra sobre os limites políticos das pesquisas. Elas são necessariamente orientadas pelas preocupações de quem as encomenda ou financia, mesmo quando se trata de organismos a priori imparciais (uma universidade, um serviço ministerial), movidos apenas pelo desejo de conhecer por conhecer. Alguns pesquisadores denunciaram os pressupostos políticos das pesquisas sobre as práticas culturais, que constroem implicitamente uma imagem de um não espectador infeliz, frustrado, cego, ao qual se deveria absolutamente trazer a felicidade contra sua própria vontade, conquistando-o para a causa da cultura. Outra questão política fundamental se esconde em todas as pesquisas: a da utilidade ou inutilidade dos resultados. Para que serve perguntar às pessoas qual a profissão delas se já se sabe de antemão que o fato de conhecê-la não aumenta a compreensão do fenômeno estudado nem fornece pistas para a ação? Ora, a maioria dos estudos sobre as artes do espetáculo, exceto talvez os deliberadamente orientados para o “marketing”, apresenta tal deficiência que podemos qualificar de política: de permanecer letra morta tão logo sejam publicados. Quanto às questões de estrita metodologia, elas não são próprias apenas das pesquisas sobre os públicos do espetáculo. Lembremos simplesmente que o estatuto social da frequentação da maioria dos gêneros de espetáculo é o estatuto de uma prática rara, cara e reservada e que há uma probabilidade grande de que as respostas dos entrevistados dependa desse estatuto. Para concluir esta brevíssima evocação dos limites das pesquisas, cumpre ainda assinalar que os estudos disponíveis tratam todos da frequentação ou da recepção de espetáculos profissionais e que sabemos muito pouco sobre a frequentação dos espetáculos amadores. Ainda, até recentemente, essas pesquisas tratavam exclusivamente de espectadores adultos, e todos os estudos tomam como unidade estatística de base o espectador, o que não é uma escolha inquestionável, quando sabemos que a frequentação dos espetáculos é em grande medida coletiva: a unidade social que vai ao espetáculo é mais frequentemente um casal ou um grupo, amigável ou familiar. Apesar dessas reservas, quais lições podemos tirar dos diferentes estudos disponíveis? Observemos primeiro que cada escala de observação fornece uma visão diferente da frequentação e que os .67


resultados obtidos nas diferentes escalas não se articulam facilmente entre si. Por exemplo, saber que a probabilidade de assistir a um espetáculo de qualquer gênero varia globalmente segundo o nível de instrução não permite em nada explicar a frequentação do circo ou dos concertos de rock. Mas, inversamente, se apenas estudamos no detalhe os públicos específicos, podemos perder de vista as grandes determinações sociais da frequentação. A articulação das abordagens micro e macro parece, desse ponto de vista, um dos principais desafios das pesquisas futuras. Comecemos pela escala maior, que considera as artes do espetáculo como um todo. A última pesquisa sobre as práticas culturais dos franceses permite estimar em 7% a proporção de franceses de 15 anos ou mais que nunca assistiram a um espetáculo artístico em sua vida.3 As taxas de não frequentação absoluta, isto é, a proporção dos franceses que nunca assistiram a um espetáculo do gênero em questão, são de 77% para a ópera, 81% para o concerto de jazz, 77% para a opereta, 71% para o concerto de rock, 76% para o concerto de música clássica, 68% para o espetáculo de dança clássica ou contemporânea, 42% para o espetáculo de teatro profissional e 22% para o circo. A mesma pesquisa estima em 55% a proporção dos franceses de 15 anos ou mais que, ao longo dos 12 meses anteriores à pesquisa, teriam assistido fora de casa a um espetáculo profissional, de algum dos diferentes gêneros. As taxas de frequentação nos “12 últimos meses” dos diferentes gêneros de espetáculo obtidas por tal pesquisa foram de 4% para a opereta e a ópera; 6% para o concerto de jazz, 8% para o espetáculo de dança clássica ou moderna, 7% para o concerto de música clássica, 10% para o concerto de rock, 11% para o espetáculo de variedades, 10% para o espetáculo de dança folclórica, 14% para o circo, 19% para o teatro e 34% para o espetáculo de rua. As taxas de frequentação dos espetáculos em geral e de cada gênero em particular variam consideravelmente de acordo com diversos indicadores do estatuto social das pessoas, como idade, sexo, nível de instrução e categoria profissional, assim como o tamanho da cidade da residência e a região da habitação. Evocar todas as variações gênero por gênero seria fastidioso. Eu me limitarei aqui a lembrar as mais conhecidas. A proporção de mulheres que frequentam os diferentes gêneros de espetáculo é sistematicamente superior à dos homens, exceto no caso dos concertos de rock e de jazz. Como, na França, as mulheres estão em maior número que os homens, isso se traduz em uma representatividade mais elevada das mulheres no meio dos públicos. As variações segundo a idade dependem do gênero de espetáculo: de maneira geral – e isso não concerne apenas à frequentação dos espetáculos –, sabemos que os jovens saem mais que as pessoas mais velhas. Entretanto, a proporção de jovens de menos de 20 anos que frequentam os diferentes gêneros é notavelmente superior à média no caso dos concertos de rock, de jazz, dos espetáculos de dança, do teatro e do espetáculo de rua. Em compensação, ela é claramente inferior nos casos da música clássica e da dan.68


ça folclórica. É o nível de instrução que produz as variações mais importantes: dependendo dos gêneros, as taxas de frequentação podem variar do simples ao dobro (casos do circo e do espetáculo de rua) ou do simples ao quíntuplo (caso do concerto de música clássica) entre as pessoas de pouca instrução ou não diplomadas e os franceses com muita diplomação. Citemos três exemplos: a dança, o teatro e o espetáculo de rua. Enquanto três pessoas sem curso superior a cada 100 dizem ter visto um espetáculo de dança clássica ou contemporânea nos últimos 12 meses, a proporção é de 21% nos mais diplomados (isto é, BAC4 mais 4, no mínimo). No caso do teatro, as taxas são respectivamente de 9% e de 47% (apenas 47%, diga-se de passagem). No caso do espetáculo de rua, as taxas são de 21% e de 53%, embora pudéssemos esperar que a gratuidade desses espetáculos e a igualdade de princípio dos passantes diante dos eventos que ocorrem no espaço público reduziriam ou mesmo anulariam os desníveis. O tamanho da cidade de residência exerce uma influência menor do que a do nível de instrução, se excetuarmos o caso de Paris, onde as taxas de frequentação são geralmente três, quatro ou cinco vezes superiores àquelas observadas em outras cidades. Um exemplo: 56% dos parisienses vão pelo menos uma vez por ano ao teatro, ante apenas 12% das pessoas que vivem em cidades de menos de 20 mil habitantes e 18% das que vivem em cidades maiores. Quanto aos efeitos da localização geográfica, eles continuam difíceis de estimar à luz da pesquisa sobre as práticas culturais dos franceses, em razão da fraqueza dos efetivos da amostragem nacional, que foram subdivididos em 22 regiões. Espetáculo A Mulher Caixa, Cia Rosa Vermelha de Teatro, projeto Domingo da Criança, 2003. Foto: Rubens Chiri

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Observemos também que as taxas de frequentação, gênero por gênero, categoria social por categoria social, evoluíram pouco desde que se começaram a realizar na França os estudos sobre as práticas culturais. As variações não ultrapassam 2% ou 3%, para mais ou para menos, de uma pesquisa à outra. Observamos esse mesmo fenômeno nos outros países em que se fazem tais pesquisas, o que permite supor que a frequentação aos espetáculos, inicialmente regida por fatores estruturais, é ligeiramente submetida à conjuntura, isto é, a parâmetros não diretamente ligados à posição social dos espectadores, como os fatores climáticos ou políticos (como a baixa da frequentação durante a Guerra do Golfo, por exemplo) ou ligados à oferta (como a presença em cartaz de espetáculos midiáticos como as produções de Robert Hossein ou certas comédias .70


Foto: Humberto Pimentel

musicais). Em todo caso, convém não esquecer que 1% da população francesa adulta representa 500 mil pessoas. A dança teria, assim, 1 milhão de espectadores em dez anos; o circo, entre 1,5 milhão e 2 milhões de espectadores. Há outra lição capital a ser extraída da observação macroscópica: a maioria dos espectadores de todos os gêneros, para não dizer a quase totalidade, tem uma frequentação ocasional. É bem verdade que não existe fronteira objetiva (nem acordo social acerca dela) que permita separar claramente uma frequentação ocasional de outra regular. Além disso, duas noções distintas, a intensidade (apreciada pelo número de saídas) e a regularidade (medida por um ritmo), se conjugam na definição do hábito ou da fidelidade. .71


De resto, o que pode nos parecer ocasional no caso do cinema (como uma frequentação de quatro saídas por ano) nos parecerá regular no caso do teatro, ou mesmo intenso no caso da dança. Deixando de lado tais considerações, percebemos que a maioria dos espectadores de determinado gênero não vê mais do que um espetáculo desse gênero por ano. Seja qual for a definição estatística dada à frequentação ocasional (isto é, ir uma ou duas vezes), o número de espectadores ocasionais é sempre claramente superior ao dos “não ocasionais”. Se, inversamente, definimos a frequentação regular por um número de saídas superior a três, então ela se aplica a uma ínfima minoria de espectadores. Sabe-se que a maioria das instituições do espetáculo, para não dizer a quase totalidade daquelas que se encontram na região, e algumas raras instituições parisienses têm um público formado sobretudo por assinantes ou membros. Como a frequentação das artes do espetáculo é muito ocasional, isso nos permite deduzir que a rede de teatros e orquestras públicas constitui não a norma, mas a exceção. De resto, a frequentação ocasional de um gênero particular está muito pouco vinculada à frequentação ocasional ou regular de outro gênero. Em geral, pode-se, portanto, formular de modo simples: a enorme maioria dos franceses que “saem” ao longo do ano vai ver um só espetáculo de um só gênero.

Concerto da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo durante inauguração da Sala São Paulo, SP, 1999. Foto: Evelson de Freitas/Folhapress

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O inverso também ocorre? Aqueles que saem muito diversificam seus programas culturais? A resposta é complexa. Cumpre lembrar de início uma evidência: como só 4% dos franceses vão ver uma ópera (ou uma opereta) ao longo do ano, aqueles que “além disso” vão ao teatro ou a um espetáculo de dança não poderiam representar, por definição, mais de 4% da população. Na verdade,


se construímos variáveis com “ter visto um espetáculo de determinado gênero e um de outro gênero, e de outro ainda”, e calcularmos o número de franceses que satisfazem essas condições, obteremos sempre, ao combinar três gêneros, sejam eles quais forem, uma ínfima minoria de pessoas, sempre inferior a 5% e mais frequentemente próxima de 1%. Os que viram todos os tipos de espetáculo nos últimos 12 meses representam menos de 0,5% da amostragem. Os que viram uma peça de teatro e um espetáculo de dança representam 4% dos franceses. Se acrescentarmos o critério, por exemplo, de ter visto um concerto de música clássica, essa proporção cai para 2%. Se combinarmos teatro, dança e concerto de rock, ela cai para 1%. Os efetivos desses diferentes grupos de “acumuladores” são tão pequenos na amostragem da pesquisa sobre as práticas culturais que não se pode subdividi-los segundo a variável da intensidade da prática, por exemplo, ou segundo as variáveis sociodemográficas usuais. No entanto, à luz de outros parâmetros pode-se mostrar que o acúmulo dos programas culturais se vincula positivamente a uma forte frequência das saídas em pelo menos um dos gêneros assim “acumulados”. Resumindo, podemos afirmar que a maioria dos franceses que, ao longo do ano, vão amiúde (isto é, pelo menos três vezes) a espetáculos costuma frequentar um só gênero. Quanto à minoria, deixemos claro o sentido das palavras: sabemos que 1% dos franceses adultos correspondem a cerca de 500 mil pessoas. Nesse contingente, há um grupo de hiperacumuladores, cujo número infelizmente não se pode precisar, que têm como dupla característica sair muito e ver espetáculos de gêneros variados. Desse modo, se mudamos a perspectiva, estudando o público de um gênero ou de um espaço particulares, percebemos duas coisas: 1) as pessoas que dizem frequentar um gênero de espetáculo frequentam na realidade um subgênero daquele gênero (por exemplo, a dança clássica, e não todos os gêneros de dança); 2) quando há acúmulo, ele não concerne a todos os gêneros de espetáculo, mas a diversas constelações de subgêneros. Quanto à frequência ocasional, ela aparece também nessas pesquisas mais precisas como bem merecedora de sua qualificação: os espectadores dizem ter aproveitado a ocasião que se apresentou para assistir a um espetáculo. Eles raramente justificam sua frequentação pelo amor à arte (amor à dança, gosto pelo teatro em geral etc.). Na verdade, essa frequentação aparentemente fortuita obedece a regras, pois não se aproveita qualquer ocasião. Correndo o risco de simplificar, podemos dizer que os espetáculos vistos pelos espectadores ocasionais têm como traço comum o fato de serem fortemente midiatizados. O termo “ocasionais” quer dizer que o espectador não escolhe um espetáculo numa lista analisada escrupulosamente. Um estudo realizado em 1993 .73


junto a jovens de 12 a 25 anos mostra que a “falta de informação” que eles invocam para explicar sua baixa frequentação é, na realidade, um excesso de informação, ou uma falta de hierarquia, de pertinência, de qualidade, de foco na informação pletórica que lhes chega. A grande lição das pesquisas de “segundo nível”, confirmadas pelas pesquisas ainda mais detalhadas, é que as categorias artísticas ou político-administrativas usuais, como teatro, dança, música, circo, não correspondem às categorias socialmente mobilizadas pelos espectadores para decifrar a informação e escolher ver ou não esta ou aquela peça. Tomemos o exemplo da dança: a pesquisa que lhe é especificamente consagrada mostra que existe uma dúzia de públicos estanques, correspondendo a uma dúzia de gêneros de dança; tudo distingue, por exemplo, o público da dança contemporânea do público da dança flamenca; ou dos espetáculos de revista, a idade, o sexo, a categoria socioprofissional etc. Cada um dos públicos inclui certamente na mesma categoria de “dança” os espetáculos que vai ver, mas esses públicos não se recobrem mais do que, geralmente, convivem os intérpretes ou os autores desses diferentes gêneros. Além disso, essas pesquisas revelam que há mais semelhança entre a frequência (e os públicos) de determinado gênero de dança e a de determinado gênero de teatro do que entre a frequência de determinado gênero de dança e a de todos os outros gêneros de dança. Isso significa que as fronteiras pertinentes não passam, entre os espectadores, pelas palavras usuais “dança” e “teatro” ou, digamos, só por elas, mas por outras, como “clássica”, “contemporânea”, “fácil” e muitas outras que ainda ignoramos, e mais geralmente por outros signos, que podem ser tanto visuais como sonoros, e remetem cada um a sistemas distintos de valores, a pertenças, a diferentes modos de distinção, no sentido que Bourdieu dá a tal termo. Mais precisamente ainda, devemos supor que o espectador decodifica a informação que lhe chega sobre um espetáculo com a ajuda de uma grade de palavras ou de imagens-chave, socialmente pertinente para ele. Os estudos sobre os públicos de uma obra específica, como os realizados pelo Parque de La Villette, mostram que essas palavras, ou constelações de palavras, são muito mais variadas do que aquelas com as quais os produtores (criadores, autores) dos espetáculos costumam descrever uma obra. Daí o fato de as questões habitualmente endereçadas aos espectadores (e que os entrevistados interessados costumam responder) sobre seu interesse relativo pelo título de uma obra; pelo nome de um diretor, de um coreógrafo, de um compositor, de uma orquestra ou de um regente; pelo gênero de espetáculo; pelo nome dos intérpretes etc. apreenderem mal os critérios reais de escolha e os motivos de satisfação dos espectadores. Não que esses elementos não contem, não que sua hierarquia seja mal avaliada, não que sua variação de um grupo social a outro não seja significativa. Em todo caso, não há dúvida de que os mecanismos de escolha de um espetáculo e de que os modos de circulação “boca a boca”, tão importantes no .74


caso das artes do espetáculo, são muito mais complexos do que as pesquisas geralmente permitem supor. Um estudo aprofundado realizado junto aos assinantes do Teatro Nacional de la Roche sur Yon calculou a probabilidade de frequência a determinado espetáculo em função da frequentação de cada um dos outros. A ideia é medir de algum modo o grau de curiosidade dos públicos, ou de fechamento de cada um dos gêneros. Tal estudo sugere que um espectador tende mais a se arriscar a descobrir uma peça que ele não conhece quando ela se aproxima em algum aspecto, pelo menos, daquilo que ele conhece; o que pode ser, aliás, a confiança global que ele tem na qualidade da programação de um espaço. Dado o peso demográfico relativamente pequeno das pessoas que saem muito, e que sabemos, portanto, provenientes das camadas mais ricas da população, a estrutura dos públicos é mais heterogênea do que se poderia pensar, tanto em termos sociodemográficos quanto em termos de familiaridade com o gênero ou o espaço considerado. É bem verdade que as pessoas com curso superior costumam representar um terço do público de uma obra ou de uma sala (como se calculou com precisão para os teatros nacionais), embora não passem de 10% da população francesa, mas é raro que os diplomados constituam a maioria de um público. Quanto aos espectadores ocasionais, sua importância numérica os torna, estatisticamente falando, mais frequentemente majoritários que minoritários em determinado público – o que reforça a estranheza [da composição] social dos públicos de assinantes. Se, portanto, a estrutura sociodemográfica de um público não corresponde muito à da população inteira (com a notável exceção do público do circo tradicional), ela também não é tão homogênea quanto um parisiense ou um assinante de teatro nacional gostariam de acreditar. Seja como for, a homogeneização é hoje, indubitavelmente, a tendência dominante. Os estudos “micro” realizados pelo Parque de La Villette sobre o público do novo circo são eloquentes a esse respeito: mesmo no seio de um gênero tão delimitado, e ainda que consideremos seu público bastante homogêneo, suas diferenças são tais que cada obra atrai um público distinto. Tal constatação não agrada muito aos militantes da transversalidade e da curiosidade cultural. Ela parece rebaixar as obras à categoria dos produtos de consumo, os públicos à categoria de clientes e a ação cultural à categoria de marketing. Entretanto, a atomização dos públicos, a especialização ou a personalização crescente das escolhas não significam que não exista mais um vínculo forte entre as pessoas que não se cruzam no mesmo espetáculo. O aparente “cada um no seu canto”, a diversidade cultural em suma, não deveria ser apressadamente interpretada como enfraquecimento da solidariedade social ou como desaparecimento dos grandes valores comuns. Ela tem sua própria dinâmica, que pode, é verdade, resultar em exclusão, mas também contribuir positivamente para a construção cultural coletiva. .75


Jean-Michel Guy Graduado pela Escola de Altos Estudos Comerciais de Paris, com mestrado em sociologia. Pesquisador do Ministério da Cultura e da Comunicação, junto ao Departamento de Estudos, Planejamento e Estatística. Conduz estudos sociológicos, principalmente sobre públicos das artes cênicas e do cinema. É professor de análise crítica na Escola Nacional das Artes do Circo de Rosny-sous-Bois e do Centro Nacional das Artes do Circo de Châlons-en-Champagne. E-mail: jean-michel.guy@culture.gouv.fr

Notas 1

Estabelecimento Público do Parque e da Grande Halle da Villette.

2

Departamento dos Estudos, da Prospectiva e das Estatísticas.

Os resultados dessa pesquisa de 2008 estão disponíveis em: http://pratiquesculturelles.culture.gouv.fr 3

4 BAC: abreviatura de baccaleauréat, titulação referente ao fim do ensino médio [nota do tradutor].

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O Corpo na Arte Contemporânea Brasileira, performance de Marco Paulo Rolla, São Paulo, SP, 2005. Foto: Cia de Foto/Itaú Cultural

A ARTE CONTEMPORÂNEA EXPOSTA ÀS REJEIÇÕES: CONTRIBUIÇÃO A UMA SOCIOLOGIA DOS VALORES Nathalie Heinich Grupo de Sociologia Política e Moral É próprio da arte contemporânea de vanguarda, no campo das artes plásticas, praticar uma desconstrução sistemática dos quadros mentais que delimitam tradicionalmente as fronteiras da arte. Assim se evidenciam, pela sua negação, as estruturas cognitivas do senso comum em matéria de identificação dos objetos passíveis de avaliação estética.1 E são os processos de avaliação que se explicitam então, na tensão entre os registros de valor pertinentes no universo artístico e os registros mais heterônomos, que tendem a solicitar os não especialistas, desde que o objeto escape à sua concepção do que se refere ao mundo da arte.2 A arte contemporânea constitui assim um terreno privilegiado para observarmos a articulação entre as fronteiras cognitivas, postas em jogo pelo alargamento dos limites tradicionais da arte, e os registros de valor mais ou menos autônomos ou heterônomos, isto é, mais ou menos próprios ao mundo da arte ou ao mundo ordinário. Assim, as .77


situações de desacordo sobre a natureza dos objetos deixam patente a pluralidade dos registros de avaliação de que dispõem os atores para construir e justificar uma opinião sobre o valor dos objetos submetidos à sua apreciação. A pluralidade dos valores já tinha sido afirmada por Durkheim em 1911: Existem diferentes tipos de valor. Uma coisa é o valor econômico, outra coisa são os valores morais, religiosos, estéticos, especulativos. As tentativas seguidamente feitas no sentido de reduzir umas às outras as ideias do bem, do belo, do verdadeiro e do útil foram sempre vãs.3

A pluralidade também estava no coração da teoria dos “quadros” de Erving Goffman, no plano formal dos modos de relação com a experiência;4 ela reaparece em outros planos nas “esferas de justiça” de Michael Walzer, assim como nas “economias de grandeza” de Luc Boltanski e Laurent Thévenot.5 Tentaremos explorá-la aqui, de maneira essencialmente empírica, a partir dos problemas de qualificação postos pela arte contemporânea, passando do polo mais “autônomo” ao polo mais “heterônomo”6. Registros de valor usados no mundo da arte A desqualificação pela ausência de beleza deveria, à primeira vista, ser um lugar comum em matéria artística, e encontramos de fato afirmações como “acho isso feio”, “é feio”, “não é bonito”, indicando um critério de julgamento estético. Todavia, encontramos mais frequentemente uma descrição subjetiva dos efeitos produzidos pela obra: “nenhuma emoção”, “isso não me toca”, “achei chato”. Aqui, o registro “estético”, próprio para qualificar o valor objetivo de uma criação quanto à sua beleza, sua harmonia, seu gosto, conjuga-se com um registro que poderíamos chamar de “estésico”, próprio para qualificar o efeito subjetivo produzido sobre os sentidos – prazer ou desprazer visual, auditivo, gustativo, olfativo, sensitivo ou erótico. Esse deslocamento do objetivo ao subjetivo, que acompanha o deslocamento do estético ao estésico, corresponde talvez a uma estratégia de minimização do próprio julgamento, quando o sujeito se crê insuficientemente qualificado para produzir uma avaliação “objetiva”, isto é, aplicada à obra e ao mesmo tempo generalizável para o conjunto dos espectadores. Ao contrário, um crítico de arte deve poder mobilizar o registro estético sem correr o risco de desqualificar sua competência.7 Assim, é menos surpreendente constatar que tais juízos estéticos em nome da beleza aparecem muito pouco no corpus de nossa pesquisa e, como notava um animador cultural, frequentemente na boca das crianças. Com efeito, os não especialistas, sobretudo diante dessas obras pouco familiares que constituem a arte contemporânea, têm consciência suficiente de sua pouca competência na matéria, para evitar se pronunciar publicamente sobre ela e para, quando o fazem, recorrer de preferência ao modo .78


subjetivo do efeito sensorial. A essa primeira razão da paradoxal raridade das desqualificações em termos de beleza acrescenta-se uma segunda, ligada ao método adotado: com efeito, o acesso às reações espontâneas é extremamente dependente de seu caráter público uma rejeição sendo tanto mais perceptível quanto menos limitada ao foro íntimo ou ao domínio privado da troca de opiniões entre amigos. Ora, essa barreira metodológica seleciona tudo aquilo que, nos juízos sobre a arte, advém não apenas do gosto pessoal (para cuja expressão a esfera privada basta), mas também

Exposição A Subversão dos Meios, São Paulo, SP, 2003. Foto: Rubens Chiri/Itaú Cultural

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de uma ética geral, de uma exigência política ou cívica capaz de justificar um posicionamento público. Quando valores gerais ou objetiváveis estão em jogo, como a justiça, a moral, o interesse nacional, é normal que os cidadãos exprimam publicamente sua indignação; porém, quando se trata de valores percebidos como subjetivos que escapam à conceituação, como o sentimento da beleza para os não especialistas, a única expressão possível é de ordem igualmente subjetiva, do tipo “eu não gosto”, ou privada, o “não é bonito” se exprimindo então numa interação imediata. Mas é difícil imaginar uma petição para denunciar a feiura de uma obra de arte: é preciso que outros valores gerais estejam em jogo, como a integridade do patrimônio, a conformidade dos procedimentos legais ou a justiça em relação aos outros artistas.8 O método escolhido leva, portanto, a privilegiar essas situações paradoxais em que um fenômeno artístico, supostamente situado na esfera privada “dos gostos e das cores”, se vê transformado pela rejeição em problema de sociedade, investido de valores morais, políticos, cívicos etc. Existe, enfim, uma terceira razão para tal escassez dos argumentos estéticos: para que o critério de beleza seja aplicado a uma obra de arte, é preciso pelo menos que esta seja considerada como tal, isto é, que ela apresente as características canônicas de uma pintura ou de uma escultura. Mas desde que estas estejam ausentes, como ocorre amiúde na arte contemporânea, o espectador tem apenas duas soluções: 1) aceitar redefinir as fronteiras do que é ou não artístico, alargando-as sob o risco de se deixar enganar ao admirar ou adquirir objetos sem valor, e de negligenciar, ao mesmo tempo, o trabalho dos autênticos artistas; 2) recusar o que transgride as fronteiras constituídas pela tradição, sob o risco de ignorar as tentativas que a posteridade reconhecerá como autênticas e mesmo geniais (caso típico do “efeito Van Gogh”). A questão pertinente deixa então de ser a questão da beleza do objeto e passa a ser a de sua natureza, artística ou não. Diante do vazio criado pelo descompasso entre as expectativas estéticas e a proposta artística, ou, no mínimo, pela dificuldade de harmonizá-los, outro registro, igualmente familiar ao mundo da arte, é solicitado pelos não especialistas: o registro “hermenêutico”, que implica a exigência de sentido, de significação, informando críticas do tipo “isso não quer dizer nada”, “é vazio”, “gostaria que alguém me explicasse o sentido” etc. Dele derivam todas as denúncias de absurdo, de falta de sentido (quando o sentimento de vazio é aplicado ao próprio objeto) ou, ainda, de esoterismo, de obscuridade (quando imputados a uma vontade de excluir os leigos, associada ao “esnobismo” ou ao “intelectualismo abstruso” dos artistas e dos especialistas). Próximo daquilo que Jon Elster chama de “obsessão do sentido”,9 e repousando sobre uma criação de enigma,10 esse registro é particularmente importante para compreender as implicações de uma arte contemporânea que desconstrói sistematicamente os critérios tradicionais da beleza e desloca, assim, a questão estética para a questão do sentido. .80


Essa denúncia apoiada na exigência hermenêutica de uma significação tão universal quanto possível, acessível, portanto, ao maior número de pessoas, pode visar não só à obra como também ao seu autor. Nesse último caso, trata-se então de usar o critério da reputação, constitutivamente ambivalente, pois a notoriedade pode ser conotada positivamente como honra ou negativamente como glória vã ou celebridade indevida: seja a qualidade da reputação (ser bem falado), seja sua quantidade (ser muito falado). Além disso, esse critério de notoriedade pode remeter tanto ao excesso de reputação, quando se suspeita que o artista só age para obter fama, aparecer na mídia e ser comentado, quanto à falta de reputação, quando ele é desqualificado como esotérico, pouco conhecido ou reconhecido apenas por uma pequena seita de adeptos, incapaz de existir para além do círculo de seus próximos. Nesse último caso, falta de fama, o julgamento é enunciado a partir de um “regime de comunidade”, em que é o grande número, o coletivo, o geral que determina a grandeza; no primeiro caso, de excesso de fama, o julgamento é enunciado a partir de um “regime de singularidade”, em que a grandeza se mede pela qualidade de um pequeno grupo de admiradores qualificados, pela individualidade de uma personalidade indiferente à opinião alheia, pela particularidade de uma expressão fora de série, incomum, sem paralelo. Entre a opinião como critério de valor e a dependência para com a opinião como índice de pequenez, essa ambivalência do registro “reputacional”, ou do “mundo da fama” (para retomar aqui a terminologia de Boltanski e Thévenot), explica-se pela diferença dos regimes axiológicos ou, se preferirmos, das “éticas” adotadas para se orientar no mundo dos valores: a “ética da raridade” sendo aquela que os estetas ou os especialistas da arte tendem a adotar espontaneamente em matéria artística, enquanto a “ética da conformidade” provém mais dos não especialistas e concerne mais ao “mundo ordinário” (se pudermos suspender provisoriamente uma qualificação mais fina desse último).11 Notemos enfim que as duas éticas, embora logicamente contraditórias, não são de modo algum incompatíveis na prática: uma mesma pessoa pode ao mesmo tempo acusar um artista de só agir “para consumo externo” para a sua própria publicidade, para que se fale dele (desqualificação por uma preocupação com a reputação contrária a uma autêntica singularidade), e sustentar sua ausência de valor pelo fato de ele ser totalmente desconhecido (desqualificação pela falta de reputação junto a uma comunidade mais ampla). O registro “reputacional” visa, como já dissemos, à pessoa do artista mais do que à sua obra. Essa duplicação do objeto do juízo em matéria artística – entre a obra e a pessoa – está também no coração de uma noção central para o nosso domínio e, mais geralmente, para toda qualificação em regime de singularidade: a noção de autenticidade. Esta pode se referir ou ao próprio objeto, isto é, à obra, quando se pergunta qual é o seu vínculo com seu autor ou qual é a sua origem presumida (é aí que intervêm as diferentes técnicas de autenticação, permitindo distinguir uma obra falsa de outra devidamente identificada, um original de uma cópia), ou à pessoa de seu criador, quando se pergunta qual é o seu estatuto de autor.12 .81


Aqui intervêm, em matéria de arte contemporânea, diferentes procedimentos de desqualificação, frequentemente mais pertinentes que a questão da autenticação das obras, pois não é a sua origem que os espectadores leigos questionam, mas sim as motivações do pretenso artista. Ele busca a fama, mais do que a expressão de suas próprias emoções, ou a beleza das coisas? Então, como vimos, ele é inautêntico por vaidade, falta de humildade para consigo mesmo ou para com a natureza. Ele se move pela busca do lucro? Então ele é inautêntico por falta de desprendimento. Ele imita, ou mesmo plagia, seus pares ou seus colegas mais velhos ao invés de inventar? Então ele é inautêntico por falta de originalidade e de profundidade. Ele tende a se repetir, a aplicar as mesmas receitas, a ceder à rotina? Rumos Artes Visuais, Caixa de Som, de Laila Terra, 2009. Foto: Edouard Fraipont/Itaú Cultural

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Então ele é inautêntico por falta de inspiração. Seu objetivo é zombar da arte, enganar os espectadores, vender gato por lebre e fazer passar meras brincadeiras por criações dignas de admiração? Então ele é inautêntico por falta de sinceridade, por cinismo, por irreverência para com a arte. Enfim, ele é louco, psicopata, delirante ou profundamente neurótico? Então ele é inautêntico por carecer de uma razão que indicaria sua pertença à comunidade humana – pelo menos enquanto sua loucura não tenha se transformado em sinal ou garantia de inspiração criadora, do gênio fora do comum, segundo a ambivalência do singular.13 Humildade, desprendimento, originalidade, interioridade, inspiração, sinceridade, seriedade, racionalidade: tais são os principais valores que atestam a autenticidade de um artista. Se a originalidade e a inspiração são mais privilegiadas no mundo da arte, pelos especialistas e pelos próprios artistas, os dois últimos critérios – seriedade e razão, ou ainda sinceridade e racionalidade do “pretenso artista” (as aspas se impõem aqui) – são frequentemente evocados pelos leigos, que invocam de bom grado a farsa, ou mesmo a loucura, para desqualificar propostas às quais nem sequer atribuem a seriedade que permitiria perguntar sobre sua originalidade ou sua inspiração: elas não passam então de piadas ou de rabiscos bons apenas para o lixo ou os arquivos de um psiquiatra. .83


Estamos aqui no cruzamento do registro “estético” – pois o problema posto é o do pertencimento ao mundo da arte – com o de um registro que proponho chamar de “purificatório”, pois tal pertencimento não é mais justificado pelo sentimento da beleza da obra, mas pela necessidade de classificar, de “separar o joio do trigo”, de preservar a integridade da arte limpando-a de tudo o que venha paralisá-la, desnaturá-la ou mesmo poluí-la. A noção de autenticidade pertence ao mesmo tempo à estética, enquanto se aplica à arte, e à defesa da integridade por assim dizer ontológica de um objeto valorizado: vejamos o caso das inúmeras críticas insistindo na necessidade de uma discriminação que evitaria misturar o que não combina ou confundir uma coisa qualquer com a verdadeira criação. Esse argumento da pureza, central na discriminação entre arte e não arte, aparece também em vários outros domínios: ele constitui por si só um registro inteiro, comum a tudo o que visa preservar a identidade de um ser, de um lugar, de um objeto, contra os ataques, as degradações, as deformações, ou respeitar os territórios tradicionais, as fronteiras estabelecidas – sejam elas territoriais, temporais ou cognitivas.14 Ele possui assim uma grande plasticidade, uma capacidade de assumir formas muito diferentes, remetendo tanto à proteção quanto ao fundamentalismo, à racionalidade, à demarcação ou à preservação: higiênica (limpo/sujo; saudável/ doentio), ecológica (poluído/não poluído), defensiva (protegido/ exposto), xenófoba (autóctone/estrangeiro), psíquica (normal/ louco), identitária (autônomo/heterônomo; específico/não específico). E em matéria artística, é ele que permite atestar a autenticidade, seja a do autor, na medida em que realmente pertença à categoria da qual se prevalece, seja a do objeto, na medida em que ele vem realmente do autor ao qual o atribuímos. Quando se contesta a autenticidade do gesto artístico e, assim, a própria pertença do objeto à categoria das obras de arte, perdem a vigência não só o registro estético como também a própria exigência de avaliação: um objeto desqualificado por postular indevidamente o estatuto de obra de arte é excluído da ordem dos valores, dos seres situados numa escala de mérito. E se há conflito ou desacordo com aqueles para os quais o objeto em questão seria de fato uma obra de arte, então o argumento incidirá não sobre seu valor, mas sobre sua natureza mesma: dito de outro modo, não sobre seu estatuto axiológico, determinado por uma escala de valores contínua, mas sobre seu estatuto ontológico, determinado por quadros mentais, fronteiras descontínuas entre o que deve ou não ser considerado como arte. É nesse tipo de fronteira que trabalham inúmeras propostas da arte contemporânea. Registros de valor próximos do mundo ordinário Frequentemente, os que protestam contra a arte contemporânea reagem às propostas sabendo-as movidas por uma intenção artística, mas sem chegar a avaliá-las segundo sua própria intencionalidade: nesses casos, os valores mais próximos do mundo ordinário .84


é que são espontaneamente mobilizados. Reencontramos aqui em primeiro lugar o registro que chamamos de “purificatório”, associado não mais à autenticidade artística, mas à natureza do lugar ocupado pela obra, que deve ser respeitado em sua integridade, preservado naquilo que lhe confere sua identidade. Esse é um argumento recorrente nas rejeições à arte contemporânea, quando as pessoas se pronunciam não sobre o valor intrínseco da proposta artística, mas sobre a congruência com o espaço que ela vem ocupar ou com a temporalidade na qual se inscreve: “em outro lugar talvez, mas não aqui”, “isto descaracteriza este lugar”, “isto não combina com o resto da praça”, “não é do mesmo estilo” etc. É o princípio das inúmeras desqualificações em nome da preservação do patrimônio – das quais o caso Buren no Palais-Royal é um dos melhores exemplos. Esse registro purificatório se conjuga com o registro “doméstico” quando se trata de preservar a integridade do passado ou do território. Cumpre notar, porém, que o “mundo doméstico”, tal como o constroem Boltanski e Thévenot, não dá conta da dinâmica em questão na preocupação com o patrimônio, que pode se aplicar a entidades muito amplas, como a nação ou mesmo o planeta, e só implica marginalmente questões de hierarquia e confiança – à diferença do “mundo doméstico”. Este, em compensação, está claramente implicado nas defesas do regionalismo, quando a arte contemporânea é atacada por privilegiar artistas nacionais ou mesmo internacionais em detrimento dos artistas locais. Tais argumentos, entretanto, parecem mais facilmente invocados em conversas privadas ou então por atores distantes do mundo da arte; nesse mundo, a amostra de nossa pesquisa não contém mais do que um exemplo público, com um artigo denunciando a fraca representação dos autóctones nas coleções do Fonds Régional d’Art Contemporain (Frac) Martinique. Marginal também é o registro “funcional”, no qual se inscrevem as queixas sobre os transtornos causados por obras ou exposições, por exemplo, quando elas atrapalham o trânsito, apresentam um risco para a segurança ou são percebidas como inúteis e supérfluas: “não se pode nem mais atravessar o hall, a construção não é sólida e de todo modo não vemos para que isto serve”. Situado entre o “mundo doméstico” do conforto, o “mundo cívico” do interesse geral e o “mundo industrial” da eficácia, esse registro funcional pode se desdobrar em diferentes níveis de generalidade. Se carece de pertinência em matéria de arte, é dele porém que decorre, no plano jurídico, o único argumento capaz de triunfar sobre o direito do autor: a segurança. Em compensação, é onipresente o registro “econômico”, que permite rebater a valoração sobre o critério eminentemente padrão que é a medida monetária: “quanto custou?”, “é caro para o que é” ou, ainda, “não compreendo como se paga a pessoas que fazem ‘uma coisa qualquer’ ou rabiscam um traço milhões e milhões com os quais se poderiam alimentar os etíopes”, como escreveu uma criança num livro de assinaturas de uma exposição consagrada à .85


vanguarda nova-iorquina numa galeria de província. Tal registro pode remeter ao “mundo industrial” segundo Boltanski e Thévenot, quando se enfatizam a racionalização das despesas e a eficácia dos investimentos; ao “mundo mercantil”, quando se enfatiza o lucro; mas, sobretudo, ao “mundo cívico”, quando se trata de dinheiro público, que deve ser gasto em conformidade com o interesse geral ou, ao menos, com o interesse de categorias carentes de ajuda específica – desempregados, doentes nos hospitais, velhos vulneráveis, grevistas. Esse registro “cívico” – para retomar a terminologia de Boltanski e Thévenot – também é, portanto, muito presente: seja, como vimos, na denúncia do mau uso dos fundos públicos, seja na denúncia do desrespeito aos procedimentos democráticos em matéria de consulta ou de encomenda pública (“mais um amigo de Jack Lang”, “o organismo responsável pelos monumentos históricos não foi nem mesmo consultado”); seja ainda nas inúmeras denúncias de elitismo, esnobismo, intelectualismo, parisianismo, que excluem os leigos, as pessoas de bom senso, os amantes da arte e da cultura, confiscando, em benefício de uma elite ou de um bando, esse valor universal que deveria constituir a obra de arte.

Rumos Artes Visuais, Cada Mudança É um Esforço de Permanência, de Tiago Romagnani, 2008. Foto: Edouard Fraipont/ Itaú Cultural

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O apelo às regras, que informa frequentemente a argumentação cívica, pode se formalizar num registro “jurídico”, do qual decorrem todas as referências à legalidade: sejam elas simplesmente


verbais (“é ilegal”) ou desdobradas em atos, quando os protestos se traduzem em queixa formal e processo judicial. Tal situação é rara (nem que seja porque esse registro possui um grau elevado de tecnicidade), mas pode acontecer mais facilmente quando a causa já é assumida por associações, como é o caso notadamente com a defesa do patrimônio (caso Buren) e com a defesa dos animais (caso Ping no Beaubourg em 1994, incidente envolvendo uma instalação de Annette Messager na Bienal de Lyon em 1993). É aqui, em todo caso, que as duas partes podem encontrar um terreno comum, diferentemente dos outros registros de valor, que só levam ao diferendo. O sentimento de afronta à justiça tende a se formular, de modo bem mais ordinário, no registro “ético” da indignação: seja diante das transgressões dos valores morais (religião, decência, dignidade da pessoa humana) desprezados pelas propostas dos artistas, seja diante da injustiça, dos maus-tratos, da falta de consideração, dos méritos mal recompensados ou das recompensas imerecidas, de tudo o que é espontaneamente sentido como contrário à equidade. Assim, vemos invocados em nosso universo de pesquisa os artistas autênticos e trabalhadores, injustamente relegados pelas instituições; os seres que sofrem (como os animais) vitimados pela sua crueldade; e, sobretudo – é mesmo um dos lugares-comuns mais significativos em matéria de rejeições da arte contemporânea –, o trabalho, o talento, o savoir-faire, a competência técnica opostos ao blefe ou à farsa daqueles que não conseguem compensar nem mesmo sua falta de talento pela demonstração de um trabalho. É esse o princípio subjacente a frases como “até uma criança poderia fazer isso”, “qualquer um poderia fazer igual”, tão frequentes nos livros de assinaturas de tantas exposições e nos comentários desencantados de tantos visitantes, que exprimem assim a prioridade que eles concedem ao mérito, atestado pela importância de um know-how adquirido pelo trabalho, por contraste com uma qualidade resultante de um acaso, de um capricho infantil ou tirada não se sabe de onde. Uma pintura pode certamente seduzir e agradar aos olhos (a ponto de se querer pregá-la na parede, como se faz com os desenhos das crianças), mas não a ponto de merecer a consideração trazida pelas paredes das galerias e dos museus ou as páginas das revistas especializadas. De fato, desde que a imagem circule num circuito de qualificação propriamente artístico, seu reconhecimento concorre então com o de outras, suscitando a indignação para com aqueles que negligenciam injustamente os artistas mais autênticos, ou a compaixão para com estes: duplo movimento dos afetos correspondendo aos tópicos da “denúncia” e do “sentimento” elencados por Luc Boltanski em sua análise do espetáculo do sofrimento.15 Registros de valor e diferendos Econômico, cívico, ético, jurídico, funcional, doméstico, purificatório, “reputacional”, hermenêutico, estésico, estético: tais são os diferentes registros de valor mobilizados, com frequência desigual, pelas diferentes maneiras de rejeitar a arte contemporânea. A par.87


tir desse repertório, que revela ao mesmo tempo a diversidade dos valores invocados e a grande coerência dos princípios sobre os quais repousam as rejeições, vários caminhos se abrem para um projeto explicativo. Poderíamos perguntar pelas probabilidades da aparição e da frequência de tal ou tal registro, em função da capacidade diferenciada dos atores a mobilizá-los segundo sua posição no campo, sua origem social, seu habitus (para retomar aqui as vias exploradas por Pierre Bourdieu). Poderíamos também analisar como as diferentes situações podem favorecer tal ou qual registro, a exemplo da oposição público/privado que, para além de considerações propriamente estéticas, alarga consideravelmente a gama disponível para os atores (e reencontraríamos aqui as preocupações contextuais caras à sociologia interacionista). Poderíamos também nos concentrar nas propriedades dos objetos, em sua capacidade desigual de acionar tal ou qual registro (na via aberta pela antropologia das ciências e das técnicas segundo Bruno Latour e Michel Callon). Enfim, uma reflexão mais aprofundada sobre a pluralidade dos registros de valor, articulada com a pluralidade dos modos de justificação segundo Boltanski e Thévenot, permitiria analisar empiricamente algumas questões: a da compatibilidade dos registros entre si e, portanto, a das combinações mais ou menos prováveis ou improváveis; a da força relativa desses registros em função dos sujeitos, das situações e dos objetos; a do grau de competência para manipulá-los, segundo a proximidade em relação ao senso comum ou a um saber especializado; a das modalidades de persuasão mais ou menos associadas a esses registros, no eixo expressão/argumentação. Contentemo-nos aqui em mostrar, no domínio que nos ocupa, em que esse modelo de análise esclarece a especificidade da arte contemporânea. Afinal, a pluralidade dos registros de valor ajuda a compreender o caráter frequentemente irredutível dos dissensos nessa matéria, na medida em que eles constituem o que Jean-François Lyotard, a propósito dos “gêneros de discurso”, define como um “diferendo”: este seria, segundo Lyotard, mais do que um litígio, pois “renasce mesmo das soluções dos pretensos litígios. Ele joga os homens em universos desconhecidos de frases, mesmo quando eles não sentem que algo deve ser formulado em frases”.16 Ora, detratores e defensores da arte contemporânea se veem no mais das vezes em situação de diferendo, pois os registros de valor nos quais eles argumentam são heterogêneos, de modo que os argumentos de uns careçam, no contexto em questão, de pertinência aos olhos dos outros. Eles têm assim bem pouca chance não só de chegar a um acordo, como também de se entender. A tais desacordos fundamentais sobre os valores em jogo se acrescentam os mal-entendidos quanto ao que é visto, nascidos do descompasso entre as referências mobilizadas pelos não especialistas e pelos especialistas da arte contemporânea. Para os não iniciados, o referente espontaneamente solicitado para perceber um objeto .88


sem as características canônicas de uma obra de arte tende a ser o mundo vivido, ao qual se aplicam os valores do mundo ordinário; para os iniciados, porém, o único referente realmente pertinente é a história da arte – e uma história da arte muito especializada, que ultrapassa largamente a cultura escolar. Assim, se os leigos têm clara dificuldade para “compreender” a arte contemporânea, os iniciados não estão mais bem equipados para “compreender” a incompreensão dos leigos. Contrariamente, portanto, ao que poderia ocorrer nos salões de pintura do século XIX com os detratores da pintura moderna, não se trata mais de um problema de gosto, provocando litígios entre participantes de um mesmo paradigma estético, mas de um problema de categorias cognitivas ou de bases interpretativas, provocando diferendos entre categorias de públicos agora dissociadas e heterogêneas. Não se trata mais de saber se o que vemos é bonito ou feio, se o artista tem ou não talento, se pinta bem ou não – mas de saber se o que vemos é arte ou não, se seu autor é artista ou não, e acessoriamente quais são os critérios pertinentes em matéria de arte. A questão da beleza dá lugar à questão da autenticidade artística, que não se reduz mais a uma querela de atribuição (de qual mão é esta obra?), mas se torna, em âmbito geral, uma discussão sobre as fronteiras da arte ou mesmo sobre os valores que devemos defender quando a obra põe em jogo a transgressão. Ora, a questão nunca se encerra, ela é reposta a cada inovação, a cada passo suplementar dado pelos artistas contemporâneos na desconstrução dos valores estéticos tradicionais. E não há mais, como nos salões do século XIX, o clã dos “antigos” contra o dos “modernos”, os partidários da academia contra os da vanguarda.17 De resto, nem há mais salões: somente lugares dispersos, cada vez mais discretos, exceto quando a encomenda pública ou os praticantes da land-art põem a arte na rua, diante dos leigos. Assim, não é só o consenso que cai por terra (como no caso do academismo), mas também o próprio dissenso, de modo que não haja uma rejeição da arte contemporânea, mas estratos de rejeição: pessoas que aceitam isto mas rejeitam aquilo, que se acostumaram com o cubismo mas recuam diante da não figuração, ou que militam pela arte abstrata mas entregam os pontos diante de Beuys, ou que adoram Christo mas não compreendem o que os outros veem em Buren... O analista deve refazer a cada vez o trabalho, distinguindo o que se defende e o que é rejeitado. Isso não significa o fim de toda constância de uma rejeição a outra, de toda margem para a generalização e portanto para a teoria, mas que as constantes não se distribuem mais entre detratores de um lado e partidários de outro. As linhas de clivagem se deslocaram, segundo uma configuração axiológica triplamente desenhada pela natureza da obra, pelas características da pessoa e pelas propriedades da situação. A essas diferenças estruturais entre modernidade e contemporaneidade se acrescenta uma transformação radical do papel do .89


Estado, notadamente a partir de 1981, na gestão de Jack Lang à frente do Ministério da Cultura.18 O financiamento sistemático da arte contemporânea de vanguarda pelo Estado contribuiu paradoxalmente para enrijecer as oposições a ela, acumulando a rejeição da vanguarda com a do poder: dois espantalhos opostos, no entanto, pois um resulta de uma sensibilidade de direita e o outro de uma sensibilidade de esquerda. Em vez de estar, como antes, do lado da marginalidade, a arte de vanguarda tende a se ver, ao menos no imaginário das pessoas, do lado do poder. Assim, as posturas de oposição, refratárias às instituições e aos espaços de poder, puderam se constituir contra essa arte, que já se constituíra, porém, na oposição às instituições artísticas: é a denúncia da arte contemporânea como novo academismo, como arte oficial. Esse fenômeno de reconhecimento antecipado da vanguarda pelas autoridades privou-a de sua dimensão anti-institucional, permitindo assim a acumulação da rejeição tradicionalista do vanguardismo com a rejeição progressista dos poderes constituídos. No fim das contas, é como se a ajuda institucional à arte contemporânea instaurasse uma espécie de “paradoxo permissivo”, que permite aos artistas escapar às normas ao normalizar sua transgressão. Assim como os pais que dizem aos filhos “Não sejam tão obedientes!” praticam uma permissividade em forma de double-bind, assim também os poderes públicos, construindo a aceitabilidade das propostas artísticas as mais singulares pelo encorajamento da inaceitabilidade, parecem dizer “Artistas, sejam inaceitáveis!”. Está aí toda a estranheza deste “jogo de mãos superpostas”19, em que as instituições culturais parecem apostar cada vez mais alto nas transgressões das fronteiras mentais (ou mesmo materiais, quando se trata das paredes do museu) praticadas pelos artistas, reintegrando-as no espaço dos possíveis tão logo elas se manifestam (quando não antes, ao subvencioná-las); e em que os não especialistas reagem a esses atentados aos valores que lhes são caros mobilizando todos os recursos axiológicos que lhes permitam justificar sua indignação – nem sempre percebendo que os registros assim mobilizados se arriscam, dada sua heteronomia em relação ao mundo artístico, a reforçar as convicções dos partidários da arte contemporânea, ao patentear a incompetência dos seus opositores. Assim, cada expressão dos desacordos, em vez de contribuir para uma possível solução de compromisso, agrava o diferendo.

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Nathalie Heinich Socióloga e diretora de pesquisas junto ao Centro Nacional de Pesquisa Científica (CNRS). Suas pesquisas tratam do estatuto do artista e da noção de autor, da arte contemporânea, de questões de identidade e da história da sociologia. É autora de diversos artigos em revistas científicas e culturais. E-mail: heinich@ehess.fr

Notas Desenvolvi esse argumento em N. Heinich. La partie de main-chaude de l’art contemporain. In: Art et contemporanéité. Bruxelas: La Lettre Volée, 1992. O presente artigo sintetiza algumas das conclusões de uma pesquisa/enquete realizada para a Delegação das Artes Plásticas do Ministério da Cultura: Heinich, N. Les rejets de l’art contemporain, 1995.

1

Sobre a noção de registros valorativos, cf. Heinich, N. L’esthétique contre l’éthique, ou l’impossible arbitrage: de la tauromachie considérée comme un combat de registres. Espaces et Sociétés, Esthétique et territoire, n. 69, 2, 1992; Esthétique, symbolique et sensibilité: de la cruauté considérée comme un des Beaux-Arts. Agone, n. 13, 1995. Optei pelo termo ‘‘registro’’ em detrimento de ‘‘tópico’’ (retórico demais) usado na análise do discurso, e de ‘‘attitude’’ (comportamental demais) usado em psicossociologia.

2

3 DURKHEIM, É. Jugements de valeur et jugements de réalité, 1911. In: Sociologie et philosophie. PUF, 1967, p. 95. 4 Cf. GOFFMAN, E. 1974. Les cadres de l’expérience. Paris: Minuit, 1991; HEINICH, N. Pour introduire à la cadre-analyse. Critique, n. 535, dez. 1991.

Cf. WALZER, M. 1983. Spheres of justice. A defence of pluralism and equality. Oxford: Blackwell, 1993. BOLTANSKI, L.; THÉVENOT, L. De la justification. Les économies de la grandeur. Paris: Gallimard, 1991.

5

A noção de “autonomia” é tomada de Pierre Bourdieu: cf. Les règles de l’art. genèse et structure du champ littéraire. Paris: Le Seuil, 1992. Esse repertório de registros tem como objetivo considerar a heterogeneidade das estratégias de avaliação em situação, tais como as observamos em corpus exaustivos, não expurgados, não reconstruídos a partir de um modelo de análise. Ele não se situa, portanto, em um mesmo plano que a mode-

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lização proposta por Boltanski e Thévenot, embora possa se articular com ela: trata-se aqui simplesmente de propor instrumentos mais finos para a análise empírica, permitindo seguir de perto os processos argumentativos (cf. HEINICH, N. Les colonnes de Buren au Palais-Royal: ethnographie d’une affaire. In: Ethnologie Française, 1995, n. 4). É especialmente a exploração do “mundo inspirado” (para retomar a terminologia deles) que parece exigir, diante do material empírico, uma diferenciação dos registros de valor mobilizados em matéria de avaliação artística: a distinção entre objetos e pessoas, o tipo de generalidade visada ou, ainda, a grandeza do particular são de fato problemas específicos e recorrentes em “regime de singularidade”, o qual necessita de um tratamento diferente do “regime de comunidade” ao qual obedecem as formas clássicas de construção de uma grandeza pela generalidade (cf. HEINICH, N. La gloire de Van Gogh. Essai d’anthropologie de l’admiration. Paris: Minuit, 1991; Façons d’etre écrivain. l’identité professionnelle en régime de singularité. Revue Française de Sociologie, 1995, XXXVI-3, 1995). 7 Para uma análise filosófica dessa questão: SCHAEFFER, Jean-Marie. Les célibataires de l’art. Pour une esthétique sans mythe. Paris: Gallimard, 1996.

Um dos únicos casos de rejeição expressa principalmente em termos estéticos foi o de uma fonte de Bernard Pagès em La Roche-sur-Yon, quando um jornal local abriu suas colunas aos leitores para que eles exprimissem sua opinião: a existência de um suporte público encorajando de antemão uma enunciação personalizada permitiu que protestos contra a ausência de beleza se façam ouvir no espaço público. Cf. HEINICH, N. Esthétique, déception et mise en énigme. La Beauté contre l’art contemporain. In: Art Présence, n. 16, 1995.

8

Cf. ELSTER, J. 1983. Le laboureur et ses enfants. Deux essais sur les limites de la rationalité. Paris: Minuit, 1986.

9

No original, “une mise-en-énigme” [nota do tradutor]. Sobre essa noção de “mise-enénigme”, cf. HEINICH, N. La gloire de Van Gogh, op. cit.; Esthétique, déception et mise-enénigme”, op. cit. 10

11

Desenvolvi essa oposição em N. Heinich, La gloire de Van Gogh, op. cit.

Cf. HEINICH, N. Les objets-personnes: fétiches, reliques et oeuvres d’art, Sociologie de l’art, n. 6, 1993. 12

13

Sobre a ambivalência do singular, cf. HEINICH, N. La gloire de Van Gogh, op. cit.

14 Sobre as bases antropológicas da noção de pureza, cf. DOUGLAS, Mary. De la souillure, 1967. Paris: Maspéro, 1981.

Cf. BOLTANSKI, L. La souffrance à distance. Morale humanitaire, medias et politique. Paris: Métailié, 1993.

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16

LYOTARD, J. F. Le différend. Paris: Minuit, 1983, p. 260.

Embora esse maniqueísmo seja em parte uma visão do espírito, mesmo na época dos salões. Basta pensar em Zola, partidário fervoroso de Manet, depois adversário de Cézanne através do personagem de Lantier: era ele favorável ou contrário à arte moderna?

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Sobre a evolução institucional das belas-artes a partir da revolução, cf. Des beaux-arts aux arts plastiques. Une histoire sociale de l’art. Besançon: La Manufacture, 1991. Sobre a situação atual, cf. Raymonde Moulin. L’artiste, l’institution et le marché. Paris: Flammarion, 1992. Sobre a lei de Baumol e o agravamento dos desequilíbrios entre oferta e demanda pelas subvenções públicas, cf. Pierre-Michel Menger. Le paradoxe du musicien. Le compositeur, le mélomane et l’Etat dans la société contemporaine. Paris: Flammarion, 1983. Sobre as instâncias de decisão, cf. Philippe Urfalino. Politiques culturelles: mécénat caché et académies invisibles. In: L’Année Sociologique, vol. 89, 1989. Sobre o papel dos Frac e a evolução de sua política desde a sua criação, cf. Pierre-Alain Four, L’Etat, les Frac et le monde de l’art. In: Raison présente, n. 107, 1993.

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No original, “jeu-de-main chaude”, nome francês da brincadeira de criança praticada com dois ou mais participantes, que devem superpor de modo alternado as mãos espalmadas, a mão que está em baixo da pilha vindo a cada vez cobrir a que estava em cima [nota do tradutor]. 19

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O Regresso de um Proprietário de Chácara, de Jean-Baptiste Debret. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil. Paris: Firmin Didot Fréres, 1835, coleção Banco Itaú. Foto: Horst Merkel

A CONQUISTA DOS PÚBLICOS, OS DESAFIOS DE UM CENTRO CULTURAL FRANCÊS NO EXTERIOR: O CASO DE ALEXANDRIA, NO EGITO Brigitte Rémer

Pois a finalidade mesma dos mitos é a de imobilizar o mundo. Roland Barthes, L’empire des signes1

Uma filosofia da cooperação A questão dos públicos nos centros culturais franceses no exterior transformou-se. Ela se formulava de modo completamente diferente há algumas décadas. É no pós-guerra, em 1945, que a maioria dos centros é criada, segunda geração de estabelecimentos cuja origem, bem no início do século XX, estava nas universidades, onde suas homólogas francesas instalavam representações.2 Isso traduzia uma política voluntarista desenvolvida pelo general de Gaulle para compensar a perda de influência econômica e militar da .93


França. Suas missões repousavam na política linguística e educativa. As trocas artísticas serviam principalmente às comunidades francesas expatriadas, e as manifestações propostas lhes eram destinadas: funcionários das embaixadas e consulados, dos liceus franceses e das empresas implantadas nos países. A circulação se fazia em circuito fechado, de maneira autofágica e contemplativa, variando de acordo com a história das relações diplomáticas nesta ou naquela região do mundo e com a noção de representação baseada no efeito vitrine do nosso país, orgulhoso da sua cultura e trabalhando de maneira vertical. A descolonização dos países da África nos anos 1960 e sua posterior independência introduziram os conceitos de cooperação e de auxílio ao desenvolvimento; ela criou os instrumentos e os meios da cooperação técnica e científica, entre os quais o Fundo de Solidariedade Prioritário estabelecido em 54 países. As mentalidades foram mudando também, primeiro, na África subsaariana; depois, em outros lugares, ainda que mais lentamente. O Ministério da Cooperação, criado por De Gaulle em 1959, transformado em Ministério da Cooperação e do Desenvolvimento em 1981, com a chegada da esquerda ao poder, foi integrado ao Ministério de Assuntos Exteriores em 1999. A noção de cooperação parecia consolidada. Na Alemanha, o Muro de Berlim havia caído. Da descolonização à mundialização, com o declínio da influência, da língua e das comunidades francesas no exterior, e com o aumento da visibilidade e do peso das organizações intergovernamentais (Unesco, Conselho da Europa, União Europeia),3 a ideia de modelo perdeu força, as missões se orientaram para a troca entre as culturas e os saberes. Passo a passo, “os Institutos conheceram uma evolução que transformou os melhores deles em verdadeiras referências de expertise na paisagem artística do país de acolhida, espaços de trocas e de partilha entre criadores franceses e estrangeiros, espaços de criação mesmo”.4 Até o fim dos anos 1990, a maioria dos 150 centros culturais franceses desfrutou de autonomia financeira. Ao longo da última década, alguns entraram na alçada dos conselheiros de cooperação e ação cultural, que se tornaram também seus diretores, conjugando assim a diplomacia e o trabalho de campo. Muitas críticas formuladas e ampliadas ao longo do tempo, pontuadas pela publicação de relatórios de eminentes políticos de diferentes orientações, levaram à assim chamada reforma do Instituto Francês, em meio a dores e críticas, cada um se agarrando ao seu pequeno feudo. O mais significativo e explosivo foi, em 2001, o Relatório Dauge. O deputado e prefeito da cidade de Chinon, Yves Dauge, havia entrevistado alguns diretores de centros culturais. Sua análise era inapelável: “os diretores dos centros culturais exprimem um mal-estar, uma solidão, que chega às vezes a uma certa revolta, frente ao desperdício dos trunfos, embora notem a combatividade, a criatividade (conseguir fazer coisas com poucos recursos), a busca da sintonia”.5 Em 2009, a reforma do Instituto Francês se anuncia timidamente. Ela visa unificar os estatutos e dar mais legibilidade à rede cultural, pela fusão dos centros culturais, institutos franceses e serviços culturais .94


das embaixadas. O anúncio é feito pelo ministro de Assuntos Exteriores e Europeus, Bernard Kouchner, em 28 de outubro de 2010. Ele foi, desde o início, mal recebido pela rede e pela imprensa. Os institutos franceses, novo nome para todos os institutos, deveriam ser os intermediários da agência parisiense, à maneira do British Council. Diante do redemoinho dos meios diplomáticos e dos protestos dos embaixadores que perdiam seu poder, mas também um instrumento de ação, essa reforma chamada de modesta6 dá meia-volta: os institutos franceses continuam vinculados às suas embaixadas – exceto dez deles, a título de experiência. Visão do campo Em cada país, entre a herança histórica e a dinâmica almejada, entre os pontos de passagem obrigatórios e a falta de transparência, qual posicionamento adotar? Qual margem de manobra, qual leitura propor, a quais públicos? Minha experiência de campo em Alexandria, no Egito, guia minhas reflexões:7 o que diz o presente nesta cidade? Qual é a concepção de política cultural num contexto em que a cidadania é maltratada? Alexandria, entre ontem e hoje Não se pode trabalhar em Alexandria sem ter em mente uma parte de sua história impressionante. Essa cidade mítica incita ao devaneio, às referências literárias. Cidade-símbolo do diálogo das culturas, visível em sua arquitetura, pérola do Mediterrâneo, capital da memória segundo Durrell. Um porto, uma encruzilhada. Uma cidade de arte e de história que encerra vários mistérios: “Alexandria nos fala de um Mediterrâneo em que tudo era possível, as fronteiras contavam pouco e os deslocamentos permaneciam livres. E é isso o que explica a presença forte do mito alexandrino: ele não nos fala do Egito, ele nos fala de uma outra face de nosso próprio mundo”.8 O golpe de Estado de Nasser em 23 de julho de 1952 marca o fim de um Egito multicultural. As comunidades estrangeiras são obrigadas a deixar o país em 1956, e seus bens são confiscados: armênios, judeus, libaneses, malteses, franceses, ingleses, gregos, italianos e magrebinos: “no início da era nasseriana, a cidade começou a se desfazer de seu cosmopolitismo, de sua mediterraneidade, para se tornar uma cidade puramente egípcia. Ela teve de renunciar à sua cultura e às suas aspirações, ao seu brilho e à sua exceção”.9 A questão posta pelo pesquisador e tradutor Richard Jacquemond: “O que resta desta época?”, Alaa Khaled, diretor da revista alexandrina Amkenah, responde: “Restam este imaginário de um país perdido, e esta interrogação obsessiva sobre a relação com o outro”.10 A Alexandria de hoje é uma megalópole onde “a pressão demográfica e a especulação imobiliária se conjugam para atingir irremediavelmente um patrimônio inestimável, mas em vias de desaparecimento”.11 A degradação dos edifícios da época clássica e das mansões do início do século XX, ou mesmo sua destruição, uma forte densidade populacional devida notadamente ao êxodo rural, tal é o rosto da .95


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Alexandria – Vista do obelisco Agulha de Cleópatra e da torre dita dos romanos na perspectiva sudoeste. Description de L’ Egypte, Antiquités, vol. V, pl. 32, coleção Banco Itaú. Foto: Iara Venanzi/Itaú Cultural

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cidade de hoje. A região metropolitana de Alexandria conta com 3,9 milhões de habitantes (alguns falam em 6 milhões), dos quais mais de 95% vivem em Alexandria, e os outros, na cidade nova de Burj al Arab e seus arredores. Segundo Roger Ilbert, Alexandria concentra todas as contradições do presente: Cidade livre de uma outra época, dominando as trocas econômicas de um país estreitamente integrado ao sistema econômico mundial, símbolo do capitalismo triunfante, modelo de modernismo, laboratório do Terceiro Mundo. Cidade do Mediterrâneo, certamente, mas também do Egito. Ainda mais ligada ao país por desempenhar o papel de sua segunda capital política e administrativa.12

Resta-lhe um passado que se projeta no presente de uma maneira particular. Política cultural Se o Egito conta com o turismo e a exploração de seus patrimônios, uma das primeiras fontes de renda do país, a arte de hoje procura corajosamente se desenvolver, em todas as áreas, em Alexandria, como em outras cidades, com as dificuldades agravadas de uma cidade provinciana. O Centro Cultural Jesuíta Le Garage é o espaço emblemático da cidade em termos de pensamento cultural. Isso se deve a Fayez Saad Attallah, padre jesuíta originário de Alexandria, apaixonado pelo despertar artístico, pela ação educativa, pela formação, pela pesquisa teatral e pelo desenvolvimento sustentável. De 1999 a 2006, data de sua morte, Attallah se engajou no campo da ação cultural e da formação, nos setores do teatro, da música e da dança. Artistas associados ajudam a dirigir o centro. Le Garage atrai um público jovem e popular e funciona como um ponto de encontro entre jovens artistas e públicos de todas as idades, no qual se cruzam as artes tradicionais – conto, poesia, canto, músicas, dança de bastão – e a criação contemporânea, sobretudo o teatro.13 Parceiro aberto e dinâmico para o Centro Cultural Francês, ele permitiu a programação de inúmeros concertos, sempre lotados.14 Os outros equipamentos culturais em Alexandria, como em toda parte no Egito, são controlados. 15 Uma exceção: o Alexandria Contemporary Arts Forum (Acaf ) – coletivo de jovens artistas plásticos que criou no coração da cidade, em 2006, um espaço de exposição alternativo com alguns subsídios de organizações intergovernamentais. Tais equipamentos se parecem mais com garagens ou lugares de passagem do que com espaços de democratização cultural; os funcionários são mal formados e mal pagos. Nenhuma estrutura da cidade propõe sistemas de assinaturas ou de adesão. Cada um trabalha num regime de caso a caso, sem relações com os públicos, sem pontes com os sistemas educativos, forçosamente sem noção .98


de fidelização, sem reflexão sobre a tarificação. A demanda cultural é muito aleatória e a oferta é vigiada. No Egito, não há nenhuma formação artística, não há estatuto do artista. Dessa forma, ele não é merecedor de respeito, pois o senso de civismo é precário. A falta de infraestrutura no país impede toda ideia de turnê, a lógica da difusão é uma abstração, a montagem de uma produção se improvisa, e o porta a porta junto aos centros culturais estrangeiros recolhe ajudas cada vez menores. Pouca oferta, pouca demanda – e vice-versa. Os principais equipamentos alexandrinos são a Ópera Sayyed Darwish, filial da Ópera do Cairo; o Centro de Desenvolvimento Cultural, programando caso a caso, sem linha nem política precisas; a Biblioteca Alexandrina, aberta em 2002, vasto centro pluridisciplinar à la Beaubourg, financiado por apoios internacionais, eminente espaço de congressos e de seminários que atrai os intelectuais e o turismo, mas sofre de um certo déficit de legibilidade, coerência e comunicação; o Ateliê de Alexandria, com seus ateliês de artistas, importante espaço de criação para as artes plásticas no início do século XX, hoje sucateados; os Palácios da Cultura, espécie de casas de bairro, com infraestrutura obsoleta e mal equipadas. Em Alexandria, como no país em geral, estamos longe de qualquer conceito de política cultural e de apoio ao desenvolvimento artístico: nenhuma noção de educação artística num sistema educativo público insuficiente; nenhum acompanhamento da criação artística contemporânea, amordaçada pela censura. Nenhuma vontade política em nível do Estado, senão para sua própria apologia: o setor está nas mãos de apparatchiks preocupados em preservar seus privilégios. O Ministério da Cultura, dirigido até janeiro de 2011 por um artista plástico que aspirava a uma carreira internacional,16 mais institucional que artística, possui um orçamento pouco significativo, diáfano para os artistas. No nível territorial, a descentralização é um conceito esquecido: as cidades, submetidas à autoridade de um governa dor nomeado pelo presidente da república, não possuem nenhuma consciência cultural nem patrimonial. Não existe serviço cultural. Paisagem artística A despeito dos relatos já esboçados, assistimos a uma espécie de renovação artística, e a pressão dos jovens artistas é forte, notadamente em teatro, música, artes visuais, literatura ou cinema. É nos flancos [desse jogo político] que eles procuram espaços para ensaiar ou expor seus trabalhos, teatros, plataformas de troca e de transmissão em que possam se confrontar e dimensionar seu valor. Eles experimentam uma bulimia criativa. O exemplo do teatro é significativo. Os artistas e os grupos independentes não são financiados pelo Estado, mas por organizações nacionais dos Estados Unidos, do Canadá e do norte da Europa ou internacionais como a Fundação Ford, a Fundação Sida – Swedish .99


International Development Cooperation Agency – e a Fundação Euro-Mediterrânea Ana Lindh para o Diálogo entre as Culturas, fundada em 2005 e sediada em Alexandria. O reservatório de talentos é grande, a energia também.17 Hassan El Geretly, diretor do Teatro Warsha, criado nos anos 1980, e porta-voz do teatro independente, descreve a situação: “Existem as instituições oficiais com seus empregados. Não há dinheiro do Estado, exceto para representar o Egito no cenário internacional, para onde o governo envia projetos, espetáculos e produtos de “sua” escolha”. Num país em que a independência é anátema, o teatro não encontrou seu lugar como atividade organizada. As leis contra a associação são fortes. Assumir um estatuto aparentado à associação francesa regulada pela Lei nº 1.901 significa tornar-se tributário do Ministério dos Assuntos Sociais. Os grupos preferem criar sociedades comerciais, evitando todo controle direto sobre suas atividades, mas “isso não reflete nossa realidade e nossa missão”, ressalva o diretor do Warsha, segundo o qual a linha de demarcação entre independentes e amadores é tênue: “Existe sim um público egípcio que gosta muito de teatro e tem uma força grande, uma energia, mas carece de acesso ao teatro que ele merece”. O Teatro Warsha atravessa os anos e carrega em seu rastro muitos jovens criadores: atores, dançarinos, realizadores, cenógrafos, autores, artistas plásticos etc. Ele é a matriz do teatro egípcio contemporâneo. Seu diretor traça suas etapas: Legitimação de textos ocidentais, redescoberta de nossa própria cultura, não como modelo, mas como fonte; trabalho sobre a vida cotidiana como fonte do teatro; trabalho sobre a guerra; apresentação das obras-primas da breve história do teatro egípcio. Creio que a chave disso tudo é a liberdade pela independência, com todas as suas dificuldades, e a busca da fraternidade, o apoio pela interdependência com artistas de outros países, pela solidariedade.18

O Centro Cultural Francês de Alexandria No início, as missões do centro repousavam em quatro eixos. Ele perderá no meio do caminho o setor da cooperação educativa e universitária, recentrado no Cairo, na matriz. Três departamentos, portanto, em Alexandria: o ensino do francês, os recursos documentários e o trabalho da midiateca, a programação cultural e a cooperação artística. Alexandria gera um orçamento delegado (pela matriz) cuja dotação é modesta. Ao lado dos eventos programados a partir de Paris pelo conselheiro de cooperação e de ação cultural – que é também diretor do Centro Cultural Francês do Cairo, situado a mais de 200 quilômetros, e chefe de três representações: o Cairo/Mounira, Heliópolis, Alexandria – e pelo adido cultural, dos quais alguns serão apresentados em Alexandria,19 estabelece-se um verdadeiro trabalho de ação cultural e de cooperação com os artistas locais. Isso se dá não apenas por necessidade orçamentária, mas também porque a ação .100


cultural (principalmente no exterior) só pode se desenvolver no contexto de uma troca horizontal, de um diálogo, de uma confrontação. Esse é um gesto cultural que se faz. Um instrumento de trabalho à disposição Se inscrever na dinâmica local, numa história de cidade; reencontrar as pessoas, todos os públicos, acolhê-los, criar as condições do diálogo entre diferentes grupos sociais, preocupações, gerações, religiões, e trabalhar a partir da identidade da cidade, intra e extramuros; descompartimentar as atividades da casa, desenvolver a curiosidade, abrir a porta aos jovens artistas; criar a confiança, construir pontes entre os artistas da França e os do Egito; ser uma janela aberta para o mundo, um espaço de democracia: grande e pequena ambição? No primeiro ano, a necessidade de trabalhar num espaço externo ao centro cultural, por falta de uma sala de espetáculo, foi salutar. Nos três anos seguintes, depois da reabertura do teatro, com 240 lugares, projetor de 35 milímetros, ar-condicionado e duas cabines de tradução, a constituição de um público e a construção da identidade da casa representaram um belo desafio. Elas não impediram o desenvolvimento de parcerias nem a continuação dos eventos programados fora do centro, pelo contrário. Todas as estruturas já citadas e todas as expressões artísticas estiveram no coração da troca. Sua reabertura em dezembro de 2005 ocorreu num momento traumático para o meio teatral egípcio: alguns meses antes, o Palácio da Cultura de Béni Suif, no Médio Egito, tinha pegado fogo durante um espetáculo. Cerca de 50 pessoas vindas de todo o Egito (inclusive de Alexandria), entre as quais vários artistas de teatro que foram ver o espetáculo, morreram no incidente. Desde o início, a sala do Centro Cultural Francês ficou à disposição dos artistas para ensaios, ateliês, residências e apresentação dos trabalhos, assim como a sala de dança, cheia de charme, sob os tetos e a imponente sala de exposição do térreo, espaço de recepção para todos os que entram no centro. O Centro Cultural Francês ficou em estado de vigília e de escuta, de maneira permanente, atento às estruturas e às criações: grupos de teatro, formações musicais, artistas plásticos, intelectuais, estruturas locais, nacionais e internacionais se encontraram ali. No registro do debate de ideias, o Centro de Estudos e de Documentação Econômicos, Jurídicos e Sociais do Cairo (Cedej) colaborou divulgando pontualmente o resultado de suas pesquisas.20 Duas estruturas atuaram como companheiros fiéis: o Centro de Estudos Alexandrinos,21 estrutura francesa de pesquisa que trabalha há mais de 20 anos em Alexandria, e a Universidade Senghor,22 estrutura de formação com estatuto de organização intergovernamental. Os centros culturais estrangeiros da cidade foram importantes parceiros, com a criação, entre outros, de um festival do filme europeu, “Eurocinéma”, em três edições,23 atraindo um público de jovens re.101


alizadores, atores, críticos – egípcios ou dos diferentes países representados – etc. Eventos bilaterais foram programados com cada um dos centros: com o Goethe Institut, foram organizados espetáculos de dança na Biblioteca Alexandrina,24 dois projetos realizados com o apoio do Fundo Franco-Alemão:25 uma exposição de fotografias, GlobaLocal, sobre o tema da modernidade no Egito,26 e um trabalho de coleta de contos no oásis de Siwa, com a publicação de uma brochura trilíngue, Contes du Désert, entre Passé et Present, l’Oasis de Siwa, participando da preservação da mémória social e coletiva do oásis e das identidades locais.27 O Centro Cultural Francês foi ativado e aberto às coletividades: escolas, notadamente bilíngues francófonas, universidades – Universidade de Alexandria, Universidade Francesa do Cairo, Universidade Senghor –, associações. Ele se preocupou em estimular a interação entre os artistas da França convidados para residências (fotógrafos, dançarinos, músicos, atores) e os artistas locais.28 A sala de espetáculos, muito frequentada pelos egípcios, mais francófilos que francófonos, tornou-se um instrumento federativo na cidade, dando espaço e visibilidade às atividades do centro, favorecendo a cooperação nos planos local, nacional e internacional. Programação, uma escrita na cidade: para quem, por quê? Foi preciso (re)ativar o Centro Cultural Francês, cujo setor cultural se encontrava com baixa atividade em setembro de 2004, desorganizado, sem arquivos, sem memória. O centro restringia-se a uma pequena sala de projeção para cerca de 50 pessoas, com televisão e videocassete. O público? Algumas poucas pessoas em torno de Marguerite, a mulher com o tricô. Um setor cultural baseado no rodízio dos estagiários de passagem. Profissionalizar a oferta para abrir o centro. Batalhar dia e noite para conseguir fazê-lo, isso não estava previsto quando eu saí de Paris... Compra imediata de um projetor de vídeo e de uma tela, de dimensões modestas mas honrosas, reforma das poltronas, reativação das atividades do cineclube com apresentação e debates em torno das projeções dos filmes, tradução sistemática de todas as atividades. Edição de um programa bilíngue, que passou de bimestral a mensal, em formato de bolso. Reconstituição, passo a passo, de um arquivo dos públicos que tinha desaparecido no servidor um pouco antes da minha chegada... Novo conceito de agenda utilizando cores e diversos materiais de informação – cartazes, flyers, cartões-postais. De 2 mil exemplares, a tiragem passou a 4 mil, e mais tarde a 5 mil e 6 mil. Distribuição sistemática e permanente junto a organismos educativos e culturais da cidade, assim como de turismo e de infraestrutura econômica. Criação de um boletim semanal de informações, alimentação do site. Uma parte da cooperação franco-egípcia se apoia, em Alexandria, nessa identidade perdida e por vir da cidade que ronda escritores, cineastas, artistas plásticos e músicos. Intelectuais e estudantes ten.102


tam recompor o puzzle. O Centro Cultural Francês participa do movimento com sua programação cultural. Tal programação se articula em torno de um tema mensal, escolhido e trabalhado de maneira transversal e pluridisciplinar: música, teatro, dança, artes visuais, cinema, debates de sociedade se sucedem nos diferentes espaços da casa e do jardim, bem como nas estruturas da cidade, mais tarde na sala de espetáculo.29 A escolha dos temas se inspira nos eventos culturais egípcios, franceses ou internacionais: Ramadã / Concertos do 9o Lunar, Salão do Livro de Alexandria / parceria com a Região da Provence-Alpes Côte d’Azur, Festival Internacional do Filme de Alexandria / Ópera Sayyed Darwish, Festa da Ciência / Biblioteca Alexandrina, Encontros das Jovens Companhias Teatrais Independentes / Teatro El-Hanager do Cairo. Ler em Festa, Festa da Música, Semana da Francofonia, Mês do Documentário, Dia da Mulher, Jornadas do Patrimônio etc., são alguns dos temas retomados nos programas, pretextos para confrontação dos pontos de vista. Do lado da França, a programação se alimenta das reuniões mensais que se fazem no Cairo e, uma vez por ano, da reunião de programação com os centros franceses numa das capitais da região da África do Norte ou do Oriente Médio (Argel, Túnis, Amã etc.). CulturesFrance, braço armado do Ministério de Assuntos Exteriores, hoje transformada na agência do Instituto Francês, participa delas e “vende” a oferta artística vinda de Paris, filtrada por suas comissões. Alexandria acolhe os eventos programados pelo Cairo, o Centro Cultural Francês da capital descentralizando uma parte de suas turnês em Alexandria. A articulação se faz de maneira concertada, em mão dupla. Viagens e cachês dos artistas são assumidos pelo Cairo. A grade de programação semanal típica, com alguma flexibilidade, é a seguinte: • •

• • •

Domingo: dia do cinema, ciclos como Telas do Mundo, Curtas-Metragens, Jovem Cinema Egípcio, projeções seguidas de debates. Segunda: conferências, debates e mesas-redondas sobre a arte; uma abordagem sociológica, econômica, social, científica, segundo o tema do mês. Presença de personalidades, intelectuais e artistas. Terça e quarta: espetáculos de dança ou teatro. Quinta: concertos de todos os estilos, do clássico ao moderno, do raï ao rap, do tradicional egípcio aos grandes clássicos internacionais. Sexta e sábado: a princípio, dias de folga, com várias exceções, segundo a demanda e as oportunidades.

A programação se inscreve no calendário egípcio, respeitando as festas religiosas muçulmanas, coptas, católicas, assim como os feriados franceses, os dois períodos de exames por ano (fevereiro e junho), quando tudo fica em suspenso,30 Copas do Mundo etc. Ela continua por todo o verão, propondo atividades para o jovem pú.103


blico – filmes, sobretudo –, como o ciclo Lanterna Mágica, e para adultos e todos os públicos, ciclos de filmes. É preciso colar à agenda, à atualidade, mantendo ao mesmo tempo certa flexibilidade (se negligenciamos tais regras, a sala de espetáculo corre o risco de ficar deserta). Há participação, fervor, expectativas, desejo de aprender, aquisição de saberes, busca da compreensão, abertura a outras culturas. Há encontros e convívio. Os frequentes agradecimentos na saída da sala de espetáculos, calorosos e encorajadores, valem todo o trabalho do mundo. Os públicos se reúnem segundo os tipos de atividade. Categorias sociais de classe média, maciçamente jovens, mas não só, predominantemente masculinas (ainda que mais misturadas nos jovens), estudantes, jovens artistas, globalmente não francófonos.31 A entrada da sala de espetáculo é baseada na gratuidade. Com os espaços parceiros, ela segue suas respectivas regras tarifárias. Como falar do peso dos gastos de consumo de bens e serviços culturais nos orçamentos domésticos, como fazemos na França quando dos estudos sobre as práticas culturais dos franceses,32 num país em que a sociedade tem dois ritmos, em que a realidade da maioria das pessoas é a do desemprego, da crise do pão e da luta pela sobrevivência? Em busca dos públicos Dadas a fragilidade do setor cultural no Centro Cultural Francês de Alexandria e sua necessária reconstrução diante da quase ausência de públicos no início, não pudemos elaborar um instrumento de medida e de interpretação que exigisse uma coleta de dados e um trabalho de médio prazo. Certo estudante, porém, esboçou um estudo, no contexto do seu mestrado, e observou o trabalho do setor cultural.33 Ele foi ao encontro dos públicos para melhor identificá-los e compreender seu modo de participação na vida do centro, suas expectativas, suas necessidades. Ele concebeu questionários bilíngues, deixados em lugares de grande afluxo – recepção, midiateca e entrada da sala de espetáculos. Ele adotou também o método da observação participante, colocando-se diante da entrada do teatro meia hora antes dos espetáculos. Segundo seus cálculos sobre o público, 1.849 pessoas assistiram em um mês ao conjunto dos eventos propostos pelo Centro Cultural Francês – dois terços homens, um terço mulheres. A tendência inverte-se quando se trata do público estrangeiro, majoritariamente francês. Ele notou que as moças egípcias têm dificuldade de sair de casa por causa do estatuto da mulher num país muçulmano. O levantamento da faixa etária dos frequentadores do centro francês deu os seguintes resultados: • • • .104

de 0 a 30 anos: 837 egípcios, 149 franceses; de 31 a 50 anos: 375 egípcios, 23 franceses; 51 anos ou mais: 437 egípcios, 28 franceses.


Constata-se que os egípcios frequentam mais o centro do que a comunidade francesa, pequena em Alexandria. Os números indicando que o grupo dos jovens é majoritário não surpreendem, se lembrarmos que 61% dos egípcios têm menos de 30 anos e que, de resto, eles se concentram em certos eventos, como os concertos. Os menos jovens são os pilares do cinema e assistem maciçamente aos encontros e debates. As motivações dos públicos, egípcio e francês, que frequentam o centro francês, são as seguintes: • • • • • • •

“ver a vida das outras pessoas”: 65% são egípcios e 34,7% são franceses; “passar momentos em família”: 64,6% são egípcios e 35,4% são franceses; “compreender melhor o mundo que os cerca”: 61,2% são egípcios e 38,8% são franceses; “preencher momentos de solidão”: 59,1% são egípcios e 40,9% são franceses; “descobrir coisas desconhecidas que não se encontrariam de outra forma”: 56% são egípcios e 44% são franceses; “ver pessoas célebres”: 52% são egípcios e 48% são franceses; “conviver com seu círculo de relações”: 38,6% são egípcios e 61,4% são franceses.

O que o Centro Cultural Francês de Alexandria representa para seus frequentadores: • “um espaço de liberdade”: 63% são egípcios e 37% são franceses; • “um lugar de troca”: 57% são egípcios e 43% são franceses; • “um espaço do saber”: 55,2% são egípcios e 44,8% são franceses; • “um lugar de convívio”: 52,3% são egípcios e 47,7% são franceses; • “um espaço de difusão de valores relevantes”: 39,4% são egípcios e 60,6% são franceses; • “um espaço de encontro”: 34% são egípcios e 66% são franceses; • “um lugar para onde ir”: 23,6% são egípcios e 76,4% são franceses. Para o público egípcio, o Centro Cultural Francês atrai sobretudo por ser “um espaço de liberdade”. Para o público francês, atrai por ser “um lugar para sair”. Inversamente, para o público egípcio, o centro é minoritariamente “um lugar para sair”, e para o público francês, ele é minoritariamente “um espaço de liberdade”. Os públicos francês e egípcio que frequentam o centro possuem claramente motivações e critérios diferentes. Outro tipo de trabalho como tentativa de leitura da frequentação dos públicos no centro foi o desenvolvido por Romain Tabau, estagiário34 que transcreveu em gráficos as taxas de frequência levantadas pela recepcionista na sala de espetáculo. Esses instrumentos não são utilizáveis como tais, mas poderão alimentar a reflexão para a continuação do movimento de busca dos públicos. Em quatro anos, se pensarmos naquele punhado de pessoas que frequentavam inicialmente o centro, podemos medir o caminho percorrido. Enquanto .105


Cena de Carnaval, de Jean-Baptiste Debret. Voyage Pittoresque et Historique au Brésil. Paris: Firmin Didot Fréres, 1835, coleção Banco Itaú. Foto: Horst Merkel

a oferta artística e cultural se desenvolvia, o instrumento de informação também se refinou. O levantamento das estatísticas, alguns números, primeiro esboço, indica que 17.750 pessoas em 2007 e 11.110 entre janeiro e agosto de 2008 assistiram a algum evento, segundo a seguinte repartição: • • • • • •

cinema: 4.171 pessoas em 2007 e 3.240 de janeiro a agosto de 2008; encontros e debates: 2.879 pessoas em 2007 e 2.005 de janeiro a agosto de 2008; exposições: 3.140 pessoas em 2007 e 940 de janeiro a agosto de 2008; concertos: 3.460 pessoas em 2007 e 2.320 de janeiro a agosto de 2008; teatro: 3.060 pessoas em 2007 e 1.930 de janeiro a agosto de 2008; lanterna mágica / jovem público: 1.040 pessoas em 2007 e 675 de janeiro a agosto de 2008.

Conclusão: a furtiva caçada cultural35 No Egito, esse país de alta cultura, de milênios antes da nossa era, país de castas sociais, econômicas, religiosas, culturais, a partilha dos .106


saberes não tem muito direito de cidadania e a abordagem das linguagens artísticas contemporâneas se aprende pouco a pouco. O “boca a boca” funciona.36 Espera-se uma conquista da palavra, a partir do que hoje se manifesta mediante uma torrente às vezes difícil de canalizar, ligada a uma sede de expressão e de confrontação dos saberes. Como diz Olivier Donnat no fim de sua pesquisa sobre As Práticas Culturais dos Franceses na Era Digital,37 “o futuro nunca está escrito”. Isso se aplica bem ao Egito de hoje, que disse Kefaya! ça suffit!,38 Nele, toda a relação cultural precisa ser construída: mediação cultural a elaborar, gastos e práticas culturais a observar. Jean Caune define o primeiro conceito, o de mediação: Se precisássemos dar de novo um sentido à noção de mediação, hoje banalizada a ponto de qualificar todo processo de criação de uma relação, o mito de Babel poderia servir de referência. Esse mito exprime a necessidade de se distinguir a dupla função da mediação: de um lado, estabelecer os vínculos entre os homens, no presente e através das gerações; de outro lado, introduzir a visada de um sentido que vai além da relação imediata para se projetar no futuro. Esse sentido pode ser buscado no projeto político; reconhecido na obra de arte; figurado nos mitos e nas narrativas reveladas ou ainda remetido ao horizonte da era messiânica.39

Philippe Coulangeon define o segundo conceito, o das práticas culturais: Por práticas culturais, entende-se geralmente o conjunto das atividades de consumo ou de participação ligadas à vida intelectual e artística, que convocam à definição dos estilos de vida: leitura, frequentação de equipamentos culturais (teatros, museus, salas de cinema, salas de concertos etc.), usos das mídias audiovisuais, mas também práticas culturais amadoras.40

Num país autocrático, todo questionário sobre suas próprias práticas poderia parecer suspeito, mas a página está sendo virada.41 Deveria ser possível modelizar os métodos de trabalho e de pesquisa ao nos debruçarmos sobre os centros culturais franceses no exterior, bem como medir seu impacto nos territórios respectivos de intervenção. Eles têm todos os mesmos programas de ação. A rede dos centros, porém, é disparatada, seus diretores vêm de horizontes diferentes, suas motivações diferem, os meios atribuídos variam muito, tornando complexa a elaboração de um método. O jornalista Daniel Conrod reconhece que “gerações de militantes e responsáveis políticos e culturais viram no acesso às artes e à cultura desafios de civilização e de sentido [...] Essa herança não foi transmitida, de modo que as profissões da cultura se tornaram profissões ordinárias, carreiras”. E ele fala “da arte que intimida e da cultura que exclui”.42 .107


A Unesco desenvolveu o conceito de “cultura da paz” e milita pelo reforço do diálogo entre as culturas: Todas as culturas fazem parte do patrimônio comum da humanidade. A identidade cultural de um povo se renova e se enriquece no contato com tradições e valores de outros povos. Cultura é diálogo, troca de ideias e experiências, apreciação de outros valores e tradições. No isolamento, ela se esgota e morre.43

Olivier Mongin, diretor da revista Esprit, fala em descentramento de maneira salutar: “O que é um descentramento? Antes de tudo, uma capacidade crítica, um olhar distanciado sobre si mesmo”.44 E se os centros culturais franceses trabalhassem de modo equitável, eles adotariam esta frase: “O desvio pelo outro não é um exotismo, é a ocasião de uma metamorfose de si”.45

Brigitte Rémer Doutora em sociologia e especialista na área de políticas culturais internacionais. Dirigiu por 12 anos a Formação Internacional Cultura, do Ministério da Cultura francês, que dá suporte a especialistas em políticas culturais de diversos países. Foi diretora adjunta do Centro Cultural Francês de Alexandria, no Egito, e atualmente é consultora em políticas culturais e internacionais. E-mail: brigitte.remer@free.fr

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Notas 1

BARTHES, Roland. L’empire des signes. Paris: Seuil, 2005, p. 76.

Chamados então de institutos: Florença cria o seu em 1908; Londres, em 1910; Lisboa, em 1928; Estocolmo, em 1937. Rapidamente, as universidades se articulam, a França lhes envia numerosos intelectuais como leitores (caso de Raymond Aron, por exemplo, enviado a Colônia em 1930) e os dois conceitos, o de centro e o de universidade, se dissociam.

2

Unesco: em 1988, lançamento da Década Mundial do Desenvolvimento; em 1992, criação da Comissão Internacional sobre a Educação (presidida por Jacques Delors) e da Comissão Mundial sobre a Cultura e o Desenvolvimento (presidida por Javier Perez de Cuellar); em 2001, adoção, pela Conferência Geral, da Declaração Universal sobre a Diversidade Cultural – Conselho da Europa: publicações, seminários de reflexão, formações, trabalho do serviço de políticas e ações culturais – União Europeia: promoção dos programas comunitários, como Cultura 2000, e de programas em países fora da Europa.

3

Devèze Laurent. Institutos Français à L’Étranger. In: WARESQUIEL, Emmanuel de (dir.). Dictionnaire des politiques culturelles. Paris: Larousse – CNRS, 2001, p. 341.

4

5

Rapport Dauge sur les centres culturels français, fevereiro de 2001.

6 No Le Monde de 1-2/11/2009, um artigo de Nathaniel Herzberg trazia no título “Reforma modesta da rede cultural francesa no exterior”.

Fui diretora adjunta do Centro Cultural Francês de Alexandria de 2004 a 2008. Caso particular, o cônsul-geral da França tem ali o estatuto de diretor. Como tal, está submetido ao conselheiro cultural junto à embaixada da França no Cairo, o que cria certa confusão. Como cônsul, ele continua sendo seu próprio chefe, numa missão chamada, em Alexandria, de “consulado de influência”.

7

8 ILBERT, Robert . Le symbole d’une Méditerranée ouverte au monde. In: Alexandrie 1830-1930: histoire d’une communauté citadine, op. cit., p. 16-17. 9

Amira Doss, Au grand désespoir d’Alexandrie. Al-Ahram Hebdo 25-31/7/2005.

10 Amkenah, une revue à Alexandrie (entrevista de Alaa Khaled a Richard Jacquemond). Egypte(s) littératures. Pensée de Midi, n.12. Marselha, Printemps, 2004, p. 46. 11

Amira Samir. Une cité polyphonique. In: Al-Ahram Hebdo, 30/4 – 6/5/2008, p. 27.

ILBERT, Roger. Alexandria 1830-1930, Histoire d’une communauté citadine, op. cit., p. 481.

12

13 O Centro Cultural Jesuíta tem duas salas: Le Garage, 200 lugares, convivial; o auditório, 320 lugares, menos convivial e menos equipado.

Concertos de Bumcello, Toma Sidibé, Orange Blossom e Clotaire K. Teatro com o Warsha Théâtre. Dança com a Companhia S’Evad e suas Lettres à Van Gogh, entre outros.

14

15

Frequentemente dirigidos por militares aposentados.

Farouk Hosni, que se candidatou ao posto de diretor-geral da Unesco há dois anos e, durante um período, esteve fortemente cotado para o cargo. 16

17

A revolução iniciada em 25 de janeiro de 2011 é uma prova.

18

Entrevista com Hassan El Geretly, diretor do Warsha Théâtre, em 2009.

19

Desde que o Cairo arque com os cachês dos artistas e com as viagens França-Egito.

“Façons de voir, manières de faire, les jeunes en Egypte” e “Etre femme en Egypte et au Maroc”, conferências de Alain Roussillon, diretor do Cedej. “La croissance urbaine du Caire”, conferência do geógrafo Olivier Pliez. “Le toktok dans les villes du Delta”, conferência do antropólogo urbano Philippe Tastevin. 20

21 Antena do CNRS, o Centro de Estudos Alexandrinos foi fundado em 1989, pelo arqueólogo Jean-Yves Empereur. Desde a sua criação, ele vem realizando um precioso trabalho de leitura do passado. Escavações arqueológicas, terrestres e submarinas, vestígios de superfície, arquivos, mapas antigos, textos de autores antigos e narrativas de viajantes alimentam o conjunto de suas pesquisas.

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Criada em 1989 por uma Conferência de Chefes de Estado e de Governo dos países francófonos, a Universidade Senghor é o operador da Organização Internacional da Francofonia, da qual Abdou Diouf é o atual secretário-geral. 22

23 Em cooperação com sete entre eles: British Council, Goethe Institut, Instituto Cervantes, centros culturais grego, russo, sueco, consulado-geral da Itália.

The Art of Human Dance, espetáculo de dança hip hop, entre outras, e ateliês de dança ministrados no Centro Cultural Francês. 24

25

Alimentado pelo Ministério de Assuntos Exteriores da França e da Alemanha.

GlobaLocal cruzava o olhar de dois fotógrafos, o franco-egípcio Nabil Boutros e o alemão Julian Röder. 26

No contexto do Fundo Franco-Alemão e da parceria Goethe Institut/Centro Cultural Francês de Alexandria, em colaboração com a Associação DayerMaydor de Siwa, o Teatro Warsha, do Cairo, a Companhia Alis, da França, o grupo musical Hossam Shaker, do Egito e da Alemanha. 27

Uma parceria com a École Nationale Supérieure de la Photographie d’Arles foi implementada. Fotógrafos aprendizes foram acolhidos nesse contexto a cada ano. 28

Espetáculos: Murs... Murs. Portraits. Quand le Rideau se Lève. Passage. Villes et Banlieues. Mouvement. Alexandria Quartiers d’Été. La Planète des Jovens. Père et Fils. Grand Écran. La Ville s’Écrit. Variações. Vues d’Afrique. Parfums d’Été. Lieux de Mémoire. Sur le Pont des Arts. Ecran Total. Francophonie Francofolie. Da Seine à la Scène. Culture em Images. L’Écriture Dans todos ses États etc. 29

30 A pressão escolar é muito forte nas famílias egípcias que se endividam para pagar cursos particulares a seus filhos.

Todas as atividades são traduzidas em cabine, os materiais escritos também são bilíngues.

31

32 A última delas, de 2008, realizada por Olivier Donnat, como as anteriores, tratava de As práticas culturais dos franceses na era digital. Paris: Departamento dos Estudos e da Prospectiva. Ed. La Découverte/Ministério da Cultura e da Comunicação. 33 Trata-se de Yannick Vernet, estudante da Universidade de Avignon e do País de Vaucluse, elaborando pesquisa para compor a sua tese de mestrado em ciência da cultura e da comunicação. 34

Em 2005/2006, estudante do Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux.

35

O conceito é de Michel de Certeau, em L’invention du quotidien.

36

E agora também Facebook e Twitter etc.

37

Les pratiques culturelles des français à l’ére numérique, op. cit., p. 224.

38

Nome de um partido político criado há alguns anos.

CAUNE, Jean. Pour une éthique da médiation. Le sens des pratiques culturelles. Presses Universitaires de Grenoble, 1999, p. 12. 39

40 COULANGEON, Philippe. Sociologie des pratiques culturelles. Paris: Ed. La Découverte, 2010, p. 5. 41 “Nem mesmo em sonho eu teria podido imaginar esta revolução”, diz o escritor Sonallah Ibrahim a R. Solé no Le Monde de 11/2/2011. 42 CONROD, Daniel. Une politique culturelle est-elle encore possible?. Télérama n. 3191, 2011. 43

Déclaration de Mexico sur les politiques culturelles. Unesco, 1970.

44 MONGIN, Olivier. Création et culture à l’âge post-colonial. Esprit, Quelle culture défendre?, 2002, p. 324. 45

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Ibid. p. 332.


Conheça os números anteriores da Revista Observatório Itaú Cultural, disponíveis em PDF para download no site do Observatório Itaú Cultural: http://www.itaucultural.org.br/index.cfm?cd_pagina=2798.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 11 – Direitos Culturais: um novo papel Este número é dedicado aos direitos culturais em diversos âmbitos: relata o desenvolvimento do campo, sua relação com os direitos humanos, a questão dos indicadores sociais e culturais e o tratamento jurídico dado ao assunto.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 10 – Cinema e audiovisual em perspectiva: pensando políticas públicas e mercado Esta edição trata das políticas para o audiovisual no Brasil e passa por temas como distribuição, mercado, políticas públicas para o audiovisual, direitos autorais e gestão cultural, novas tecnologias, além de trazer texto de Silvio Da-Rin, ex-secretário do Audiovisual. Parte dos artigos é de ganhadores do Prêmio SAV e do Programa Rumos Itaú Cultural Pesquisa: Gestão Cultural 2007-2008.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 9 – Novos desafios da cultura digital As novas tecnologias transformaram a indústria cultural em todas as suas fases, da produção à distribuição, assim como o acesso aos produtos culturais. Em 12 artigos, esta edição discute as questões que a era digital impõe à indústria cultural, os desafios que permeiam políticas públicas de inclusão digital, a necessidade de pensar os direitos autorais, e como trabalhar a cultura na era digital. Traz entrevista com Rosalía Lloret, da Rádio e TV Espanhola, e Valério Cruz Brittos, professor e pesquisador da Unisinos, sobre convergência das mídias e televisão digital, respectivamente.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 8 – Diversidade cultural: contextos e sentidos Esta edição é dedicada à diversidade. Na primeira parte, são explorados diversos aspectos culturais do país – aspectos que estão à margem da vivência e do consumo usual do brasileiro – e como as políticas de gestão cultural trabalham para a assimilação e preservação deles, de modo que não causem fortes impactos na dinâmica social. A segunda parte da revista é composta de artigos escritos por especialistas em cultura e tem como fio condutor a discussão sobre a sobrevivência da diversidade cultural em um mundo globalizado.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 7 A Lei Rouanet é o tema do sétimo número da revista Observatório Itaú Cultural. Nesta edição, os autores discutem diversos aspectos e consequências dessa lei: a concentração de recursos no eixo Rio-São Paulo, o papel das empresas estatais e privadas, o incentivo fiscal. O ministro da Cultura, Juca Ferreira, comenta em entrevista a lei e as falhas do atual modelo. O propósito deste número é apresentar ao leitor as diversas opiniões sobre o assunto para que, ao final, a conclusão não seja categórica; o setor cultural é tecido por nuances, portanto há que pensá-lo como tal.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 6 O gestor cultural é uma profissão que, no Brasil, ainda não atingiu seu pleno reconhecimento. A sexta revista Observatório Itaú Cultural é dedicada a expor e debater esse tema. Neste número, há uma extensa indicação bibliográfica em português, além de artigos e entrevistas com professores especializados no assunto. A carência profissional nesse meio é fruto da deficiência das políticas culturais brasileiras, quadro que começa a se transformar com a maior incidência de pesquisas e cursos voltados à formação do gestor.

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Revista Observatório Itaú Cultural nº 5 A quinta revista é resultado do seminário internacional A Cultura pela Cidade – uma Nova Gestão Cultural da Cidade, organizado pelo Observatório Itaú Cultural. A proposta do seminário foi promover a troca de experiências entre pesquisadores e gestores de Brasil, Espanha, México, Canadá, Alemanha e Escócia, que utilizaram a cultura como principal elemento revitalizador de suas cidades. Nesta edição, além dos textos especialmente escritos para o seminário, estão duas entrevistas para a reflexão sobre o uso da cultura para o desenvolvimento social: uma com Alfons Martinell Sempere, professor da Universidade de Girona, e outra com a professora Maria Christina Barbosa de Almeida, então diretora da biblioteca da ECA/USP e atual diretora da Biblioteca Mário de Andrade. A revista nº 5 inaugura a seção de crítica literária, com um artigo sobre Henri Lefebvre e algumas indicações bibliográficas. Para encerrar a edição, há o texto sobre a implantação da Agenda 21 da Cultura.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 4 O que é um indicador, como definir os parâmetros de uma pesquisa, como usar o indicador em pesquisas sobre cultura? A quarta revista Observatório Itaú Cultural trata desses assuntos por meio da exposição de vários pesquisadores e do resumo dos seminários internacionais realizados pelo Observatório no fim de 2007. Ao final da revista, há um texto da ONU sobre patrimônio cultural imaterial.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 3 A terceira revista Observatório Itaú Cultural discute políticas para a cultura, relata a experiência do Programa Rumos Itaú Cultural Pesquisa: Gestão Cultural e os seminários realizados nas regiões Norte e Nordeste do país para a divulgação do edital do programa. A segunda parte da revista traz artigos que comentam casos específicos de cidades onde a política cultural transformou a realidade da população, a experiência do Observatório de Indústrias Culturais de Buenos Aires e uma breve discussão sobre economia da cultura.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 2 O segundo número da revista é dividido em duas partes: a primeira trata das atividades desenvolvidas pelo Observatório, como as pesquisas no campo cultural e o Programa Rumos, e traz resenha sobre o livro Cultura e Economia – Problemas, Hipóteses, Pistas, de Paul Tolila. A segunda parte é composta de diversos artigos sobre a área da cultura escritos por especialistas brasileiros e estrangeiros.

Revista Observatório Itaú Cultural nº 1 Esta revista inaugura as publicações do Observatório Itaú Cultural. Criado em 2006 para pensar e promover a cultura no Brasil, o Observatório realizou diversos seminários com esse intuito. O primeiro número da revista é resultado desses encontros. Os artigos discutem o que é um observatório cultural, qual sua função, como formular e usar dados para a cultura, as indústrias culturais. A edição também comenta experiências de outros observatórios.

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