Observatório 29 - Plano Nacional de Cultura: Análises e Perspectivas

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PLANO NACIONAL DE CULTURA – ANÁLISES E PERSPECTIVAS

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PLANO NACIONAL DE CULTURA

ANÁLISES E PERSPECTIVAS Percursos, imprecisões e emergências para o novo PNC Modelos internacionais: América Latina, Estados Unidos, Europa e Brics Poder público e expectativas para as artes e a cultura

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O Plano Nacional de Cultura (PNC) 2010-2020 foi construído como um dos elementos constituintes do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e pretendia viabilizar o planejamento e a gestão compartilhada das políticas culturais entre os entes da federação, de maneira a garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais. Com o intuito de compreender esse processo e seus impactos e, principalmente, analisar se o PNC é o melhor modelo para atender às demandas de um país com a diversidade e a complexidade que possuímos, a edição 29 da Revista Observatório traz reflexões sobre essas questões e análises comparadas de países latino-americanos, europeus e asiáticos. A publicação também aponta os desafios que estão colocados para as artes e a cultura no Brasil e que deverão estar contemplados no próximo Plano Nacional de Cultura.


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Memória e Pesquisa / Itaú Cultural Revista Observatório Itaú Cultural - N. 29 ( jul. 2021/dez. 2021) – São Paulo : Itaú Cultural, 2007-. Semestral

ISSN 1981-125X (versão impressa) ISSN 2447-7036 (versão on-line)

1. Plano Nacional de Cultura. 2. Políticas culturais. 3. Planejamento cultural. 4. Modelos internacionais. 5. Plano Nacional das Artes. I. Itaú Cultural Bibliotecário Jonathan de Brito Faria CRB-8/8697


expediente REVISTA OBSERVATÓRIO Conselho editorial Adélia Zimbrão Andréia Briene Claudinéli Moreira Ramos Lia Calabre Luciana Modé Edição Claudinéli Moreira Ramos Preparação de texto Tatiana Diniz (terceirizada) Projeto gráfico Marina Chevrand/ Serifaria

Ensaio artístico Marília Marz Ilustração André Toma Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão Rachel Reis (terceirizada) EQUIPE ITAÚ CULTURAL Presidente Alfredo Setubal Diretor Eduardo Saron

Tradução Carmen Carballal (terceirizada)

NÚCLEO OBSERVATÓRIO

Design Iara Pierro de Camargo

Gerência Jader Rosa

Produção gráfica Lilia Góes

Coordenação Luciana Modé

Produção Andréia Briene Ediana Borges NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Ana de Fátima Sousa Coordenação editorial Carlos Costa Curadoria de imagens André Seiti Produção editorial Luciana Araripe O Itaú Cultural (IC), em 2019, passou a integrar a Fundação Itaú para Educação e Cultura, com o objetivo de garantir ainda mais perenidade às suas ações e o seu legado no mundo da cultura, ampliando e fortalecendo o seu propósito de inspirar o poder criativo para a transformação das pessoas.



aos leitores Quando a ditadura acabou no Brasil, as políticas públicas passaram a ser discutidas por inúmeros interlocutores. Propostas de modernização e desburocratização, demandas por garantia de direitos e contra desigualdades históricas somavam-se em uma arena política marcada pela mobilização crescente de agentes e propostas. Essa articulação envolveu agentes políticos e a sociedade civil, rendeu alterações constitucionais e teve, entre seus inúmeros frutos, a construção do Plano Nacional de Cultura (PNC), instituído por lei em dezembro de 2010. Em dezembro de 2020, o primeiro PNC desenvolvido na história democrática da nação brasileira chegou ao seu décimo aniversário – momento que deveria combinar a apresentação e avaliação de resultados com a finalização do processo de construção do plano para a década seguinte. Sem dúvida, o cenário mudou muito. A situação econômica do país, favorável e promissora no início dessa tramitação, enfrentou algumas crises no período e sobreviveu bem, até começar a se deteriorar. O governo sob o qual a construção do PNC foi estimulada se reelegeu e fez sucessora. Embora também reeleita, seu segundo governo não chegou ao fim regulamentar, devido a um impeachment. Seu vice, assumindo a Presidência, tentou extinguir o Ministério da Cultura (MinC). O setor cultural, com apoio popular,

não deixou. No entanto, meses depois, a população alçou ao Palácio da Alvorada um presidente, legitimamente eleito pelo voto direto, que tornou a extinção do MinC um dos seus primeiros atos oficiais, sem maiores repercussões além de críticas vindas quase que somente do setor cultural. Num resumo muito breve, o primeiro PNC brasileiro contou com cinco anos de priorização governamental e outros cinco de perda crescente de relevância. Às vésperas de seu encerramento, depois de praticamente ter desaparecido das pautas do governo federal desde 2018, o terrível surgimento da pandemia de covid-19, que abalou o Brasil e o mundo, teve como desdobramento inesperado um despacho do presidente da República, em outubro de 2020, encaminhando ao Congresso Nacional um projeto de lei para ampliar a vigência do PNC. É viável e necessário avaliar o que essa década que deveria ser dedicada à execução do plano alcançou em termos concretos. O caput do artigo 215 da Constituição Federal, no qual o PNC foi incluído por meio do parágrafo 3o, afirma que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Em que medida o PNC 2010-2020 contribuiu nessa direção? Mais: será que realmente é


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necessário um plano nacional para que esses objetivos sejam alcançados? Como um plano nacional poderia ser elaborado de maneira a não ficar tão suscetível às oscilações políticas (sobretudo de gestão) e econômicas do país, rumando de fato à garantia dos direitos culturais para todas as pessoas no Brasil? Este número da Revista Observatório espera contribuir para tais reflexões, reunindo subsídios para a análise do processo e do saldo até aqui, e somando referências de diversos outros países, no intuito de conhecer seus planos nacionais ou suas formas alternativas de organizar suas políticas de cultura. Nessa perspectiva, Lia Calabre e Adélia Zimbrão abrem os trabalhos, oferecendo uma revisão crítica em torno do processo vivenciado no Brasil. Em “PNC 2010-2020 – um olhar sobre os percursos”, as autoras discorrem sobre o processo de construção do plano, seus aspectos inovadores, o modelo de gestão dos indicadores, os aprendizados úteis à elaboração do próximo PNC e os desafios do atual contexto político-cultural. Frederico Barbosa da Silva, ao abordar as “Imprecisões sobre o Plano Nacional de Cultura”, situa o plano como um conjunto híbrido de apostas políticas e instrumentos de política pública, e aponta limites metodológicos dessa construção, marcada por antagonismos e criatividade. Ainda focando a experiência brasileira, apresento a “História e resultados do Plano Nacional de Cultura 2010-2020 e o anseio por um novo e aprimorado plano”, sob uma perspectiva diferente de avaliação e levantamento de subsídios, traduzida em um pequeno exercício coletivo de balanço e proposição. Trata-se da relatoria crítica de um encontro

de especialistas do setor cultural promovido pelo Observatório Itaú Cultural em 4 de março de 2020. Em outro contexto governamental, essa discussão sem nenhuma pretensão estatística ou de representatividade seria apenas uma entre inúmeras, espalhadas Brasil afora, voltadas para angariar subsídios para a política cultural da próxima década. No cenário atual, foi um esforço isolado com ganas de provocação a você, leitora ou leitor destas páginas, visando perguntar: se você fosse chamada/chamado a essa discussão, quais seriam as suas respostas? Note, porém, que a provocação não cessa nesse chamado, mas acaba retornando aos próprios participantes do encontro, na medida em que a leitura que apresento das contribuições de cada um não é o elenco das sugestões individuais, mas a síntese que esta relatora fez daquele pequeno e ativo conjunto de vozes que dedicou uma manhã a examinar o saldo e as tendências do PNC. Nessa perspectiva, cabe salientar que a intenção de lançar esta revista em novembro de 2020 também foi prejudicada pelos reflexos da crise sanitária, que ocasionou adiamento e demandou a retomada de contato com cada convidado do encontro de março para verificar em que medida a proposta precisava ser revista em razão da pandemia e de seus tantos efeitos deletérios. Tais reflexões trazem a riqueza peculiar da multiplicidade de referências reunidas. No entanto, até aqui, falávamos apenas da realidade nacional. Será que fazer planejamentos nacionais dessa forma é uma especificidade brasileira? Ou uma prática internacional? Como veremos, a experiência


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internacional nos mostra que a cultura está na centralidade política de diferentes países, com graus de organização variados, que incluem, mas não somente, a implementação de planos, estratégias e políticas nacionais de médio e longo prazo. Constanza Symmes Coll, no artigo “Fabricar política cultural no Chile: entre a participação setorial, os saberes do Estado e a cidadania cultural”, apresenta uma revisão analítica do processo chileno de elaboração da Política Nacional de Cultura 2017-2022, a partir das estratégias de construção utilizadas, em face do contexto histórico-político e da recente criação do Ministério das Culturas, Artes e Patrimônio, em 2017. “Plano Nacional de Cultura no Uruguai, um assunto inacabado”, por Hernán Cabrera, traz a análise descritiva do processo uruguaio de elaboração do PNC e da Lei de Cultura e Direitos Culturais entre 2016 e 2019. Ante a riqueza e as dificuldades do processo, o autor nos leva a refletir sobre a necessidade real de consolidar um PNC: para resolver quais demandas e organizar que instituições? Paula Félix dos Reis apresenta uma das primeiras experiências latino-americanas de construção de um PNC em “Políticas de cultura no longo prazo: o caso do Plano Nacional de Cultura da Colômbia”. O texto analisa esse processo e os principais conteúdos do PNC colombiano. Entre limites, avanços e desafios, como a falta de indicadores claros para avaliar os resultados do PNC que vigorou até 2010, a autora ressalta a inexistência de sinalização governamental para a construção de um novo plano. Em “Dos planos nacionais aos institutos setoriais de cultura na Argentina”, Rubens

Bayardo nos mostra como a Argentina percorreu, a partir dos anos 1980, caminho diferente dos países vizinhos, indo da redação de planos nacionais e de uma política mais totalizadora e federalista à conformação de institutos setoriais de cinema, teatro e música com fundos próprios e mais autonomia, ligados ao mercado e ao setor privado, sem preocupação abrangente com planejamento, avaliação e memória institucional. Eduardo Nivón Bolán aborda “O planejamento cultural no México durante o governo de Andrés Manuel López Obrador”, recuperando o histórico de inserção do tema cultural nos Planos Nacionais de Desenvolvimento a cada seis anos, a partir da criação do Conselho Nacional para a Cultura e as Artes, em 1988. O autor examina políticas de cultura dos últimos 30 anos para situar as diferenças do atual período, em que se verifica uma crise na política cultural caracterizada como política pública. “Política cultural nos Estados Unidos” é o tema de José Carlos Durand, que busca recuperar as particularidades históricas do país e os antecedentes do modelo adotado, a partir de complexa rede de órgãos públicos e privados de apoio econômico e institucional às artes, sem plano nacional e sem ministério de Cultura. O autor mapeia instituições e mecanismos que compõem o sistema de financiamento e gestão, em que a iniciativa privada contribui quatro vezes mais que as fontes públicas e o poder local é o maior provedor de recursos. O artigo de Maria Vlachou, “Plano Nacional das Artes: para todos e com cada um”, analisa o Plano Nacional das Artes de Portugal e seus três eixos de intervenção: Política

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Cultural; Capacitação; e Educação e Acesso, e como eles se desdobram em 5 programas e 27 medidas concretas. “A beleza que há na diversidade: o que podemos apreender do caso alemão?” é o tema que Suelen Silva adota para apresentar o modelo alemão do federalismo cultural, baseado em uma abordagem descentralizada na política cultural interna, que confere o protagonismo da ação e da decisão aos níveis locais e responde à busca de garantia dos direitos culturais com uma densa rede artística e cultural e com um dos maiores investimentos públicos em arte e cultura. Paul Heritage e Mariana Steffen encerram os relatos das experiências internacionais com o artigo “Um plano britânico para a cultura: um apelo ao coração e à cabeça da nação”, em que examinam a estratégia do Conselho de Artes da Inglaterra para o decênio 2020-2030, seus principais pontos e suas implicações para a política cultural na próxima década. Bruno do Vale Novais apresenta “Planos nacionais de cultura dos países do Brics: uma possível análise comparativa”, um estudo comparado de publicações sobre políticas culturais que guardam similaridade com planos nacionais de cultura ou de artes do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul no intervalo temporal de 2010 a 2020. O conjunto de artigos relacionados às experiências internacionais nos mostra a cultura inserida de variadas maneiras na centralidade política de diferentes países. Em comum, apesar das peculiaridades consideráveis, vemos a preocupação com a escuta dos segmentos artísticos e culturais e da sociedade civil, a atenção às especificidades

territoriais e à diversidade de públicos, o interesse em atuar transversal e estrategicamente com outros setores de políticas públicas, com destaque para a educação e o desenvolvimento local, e a preocupação com a sustentabilidade econômica e com a capacitação profissional no campo cultural, visando ampliar a qualidade e o alcance do direito à cultura pela população e também tornar o negócio da cultura mais bem-sucedido em favor das economias nacionais e da imagem desses países no mundo. Os relatos apresentados dão conta de planos, políticas ou estratégias – diferentes nomes para a maneira como são expressos os acordos sociais relacionados às políticas culturais. Mostram que a construção desses acordos pode ser bem-sucedida com ampla participação social e setorial. Igualmente evidenciam casos em que a consulta aos setores e a redação a cargo dos órgãos centrais (ou locais) das políticas culturais também podem gerar exemplos de sucesso. Demonstram, ainda, que as dificuldades acontecem tanto em uma opção como na outra, sobretudo relacionadas a governança, financiamento e articulação dos vários atores. Mais do que a defesa de um procedimento de construção da política de arte e cultura em detrimento de outro, essas narrativas nos ensinam a importância do contexto e do engajamento dos diversos agentes públicos e privados e a necessidade de monitoramento, avaliação e satisfação do público quanto aos impactos dessas ações. A entrevista que encerra o presente número da Revista Observatório traz um esforço final de escuta do poder público institucionalizado a respeito do Plano Nacional


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de Cultura brasileiro. Na condição de representantes governamentais em exercício nos Poderes Legislativo e Executivo investidos da autoridade para o tratamento desse tema, a deputada federal Jandira Feghali, o senador Eduardo Gomes e o secretário especial de Cultura do Ministério do Turismo, Mario Frias, apresentam suas visões e análises do PNC 2010-2020 e as expectativas para um novo plano nacional. Finalmente, esta publicação chega às suas mãos após o ano em que uma pandemia de reflexos globais mudou o ritmo da economia e das relações sociais nas casas, nas ruas, nas cidades e nos países do mundo. Enquanto escrevo esta carta, após um isolamento social que praticamente nos trancou em casa e paralisou os setores produtivos do planeta, neles incluído o (abalado) setor artístico e cultural, são difusas e assustadoras as projeções de cenário para os próximos meses e anos. Não sabemos muita coisa

sobre como será. Tampouco sabemos se o Brasil terá um novo PNC. A cultura, em nosso país, nunca foi – até o momento – uma aposta oficial contra a crise. Mais uma razão para ser a nossa aposta. O que é certo é que as políticas públicas de arte e cultura terão de encontrar novas maneiras de se relacionar num mundo fragilizado e que precisará se recuperar. Nossa esperança é que o diálogo com os diversos agentes do setor, as diversas camadas da população e os demais setores políticos e econômicos do país seja estimulado, na direção de um acordo social que efetivamente possa ser (e seja) implementado e que sirva para garantir a todos o pleno exercício dos direitos culturais e a chance de contribuir para um Brasil mais justo e menos desigual. Que muitas outras ações se somem a esta revista nessa direção.

Agradecemos às instituições culturais Aparelha Luzia, Biblioteca de São Paulo (e equipe SP Leituras), Centro Cultural São Paulo (CCSP), Cooperifa e Pombas Urbanas, que nos autorizaram o uso de suas imagens para as ilustrações que compõem o ensaio artístico desta edição. Os artigos deste número foram produzidos entre fevereiro e março de 2020, com

exceção de “História e resultados do Plano Nacional de Cultura 2010-2020 e o anseio por um novo e aprimorado plano”, de Claudinéli Moreira Ramos, elaborado em outubro de 2020. Em dezembro do mesmo ano, o presidente da República do Brasil assinou a medida provisória para prorrogação da vigência do Plano Nacional de Cultura (PNC) por mais dois anos.

Claudinéli Moreira Ramos

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9. Aos leitores

Claudinéli Moreira Ramos

1.

PNC 2010-2020: revisões necessárias

21. PNC 2010-2020 – um olhar

sobre os percursos Lia Calabre e Adélia Zimbrão

36. Imprecisões sobre o Plano Nacional de Cultura Frederico Barbosa da Silva

2.

Emergências e desafios para um novo PNC

55. História e resultados do

Plano Nacional de Cultura 2010-2020 e o anseio por um novo e aprimorado plano Claudinéli Moreira Ramos

3.

Planos de cultura: análise comparada de contextos internacionais América Latina e Estados Unidos

106. Fabricar política cultural no Chile: entre a participação setorial, os saberes do Estado e a cidadania cultural Constanza Symmes Coll 120. Plano Nacional de Cultura no Uruguai, um assunto inacabado Hernán Cabrera

132. Políticas de cultura no longo prazo: o caso do Plano Nacional de Cultura da Colômbia Paula Félix dos Reis 144. Dos planos nacionais

aos institutos setoriais de cultura na Argentina Rubens Bayardo


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sumário 154. O planejamento cultural

210. Um plano britânico para

174. Política cultural nos Estados Unidos José Carlos Durand

222. Planos nacionais de cultura dos países do Brics: uma possível análise comparativa Bruno do Vale Novais

no México durante o governo de Andrés Manuel López Obrador Eduardo Nivón Bolán

Europa e Ásia

188. Plano Nacional das Artes: para todos e com cada um Maria Vlachou 198. A beleza que há na diversidade: o que podemos apreender do caso alemão? Suelen Silva

a cultura: um apelo ao coração e à cabeça da nação Paul Heritage e Mariana Steffen

4.

A escuta do poder público

237. Entrevista com Mario Frias, Eduardo Gomes e Jandira Feghali Claudinéli Moreira Ramos

Os textos/entrevistas desta revista não necessariamente refletem a opinião do Itaú Cultural.

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Marília Marz é formada em arquitetura e trabalha com expografia e design gráfico. É também ilustradora e quadrinista independente, com particular interesse por narrativas que tratem da relação entre indivíduo, cidade e arquitetura. Em 2017, realizou seu primeiro quadrinho longo, que foi também seu trabalho de conclusão de curso (TCC) em arquitetura, com o título de Indivisível, uma narrativa sobre a cultura negra e oriental no bairro da Liberdade, em São Paulo. A HQ foi uma das cinco publicações ganhadoras da convocatória de publicações Des.gráfica, realizada pelo Museu da Imagem e do Som (MIS) em 2018, e foi reimpressa em 2019 através do Catarse.


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As ilustrações para esta edição foram produzidas durante o início da quarentena. Mesmo isolados, a cultura é fonte de alegria, conhecimento e tranquilidade, seja através dos concertos de varanda, filmes, livros, ou das tantas outras manifestações artísticas. Ela nos mantém humanos em meio às incertezas e dificuldades que enfrentamos no momento. Mais do que nunca, meus desenhos estão carregados de esperança e de saudade, à espera dos encontros, reencontros e desencontros proporcionados pela vida cultural de minha cidade.

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1.

PNC 2010-2020: REVISÕES NECESSÁRIAS

21. PNC 2010-2020 –

UM OLHAR SOBRE OS PERCURSOS Lia Calabre e Adélia Zimbrão

36. IMPRECISÕES SOBRE

O PLANO NACIONAL DE CULTURA Frederico Barbosa da Silva


PNC 2010-2020: REVISÕES NECESSÁRIAS

Lia Calabre e Adélia Zimbrão

PNC 2010-2020 – UM OLHAR SOBRE OS PERCURSOS Lia Calabre e Adélia Zimbrão

Este artigo se propõe a revisitar a trajetória das políticas públicas de cultura nos últimos dois decênios, tendo por objeto a análise do caminho percorrido para a construção do Plano Nacional de Cultura 2010-2020 (PNC). Busca fazer apontamentos críticos sobre esse processo, a fim de trazer ao debate reflexões que contribuam para a elaboração do próximo PNC. Ressalta-se como significativo ganho político a grande mobilização e participação social, bem como o exercício de democracia vivenciado por diversos segmentos e setores da sociedade, mas também são sinalizadas as implicações que poderão advir dessa iniciativa.

A

chegada do ano de 2020 para os estudiosos, gestores e ativistas do campo das políticas culturais trouxe inúmeros desafios e a inserção, na pauta das atividades, da tarefa de refletir sobre novas formas de produzir cultura e usufruir dela, sob o contexto inesperado da pandemia de covid-19. Foi um ano extremamente difícil em todas as dimensões: da vida, para o país e para o mundo e, não menos, para as questões relacionadas ao planejamento e à gestão de políticas públicas, em especial na área da cultura. O segmento cultural foi um dos primeiros a paralisar seus trabalhos em virtude da exigência/determinação do cancelamento das atividades com aglomeração de público, uma vez que o isolamento social foi tomado como uma das principais formas profiláticas para combater a disseminação do vírus. Nesse sentido, em razão da conjuntura

pandêmica, o 1o Plano Nacional de Cultura, cuja finalização do decênio de sua execução estar prevista justamente para 2020, teve sua vigência revista. A Medida Provisória (MP) no 1.012, de 1o de dezembro de 2020, alterou a Lei no 12.343, de 2 de dezembro de 2010, que instituiu o PNC, para ampliar seu prazo para o final de 2022. Tal MP foi convertida em lei em maio de 2021, após tramitar na Câmara e no Senado Federal. Revisitar a trajetória percorrida pelas políticas públicas de cultura nessas últimas duas décadas, tendo por objeto o PNC, é o desafio central deste artigo. O PNC, previsto inicialmente para o decênio 2010-2020, resultou de processos que envolveram e ainda envolvem diversas disputas, entre as quais destacamos duas aqui. A primeira considera que planejar cultura seria um contrassenso, em razão de sua especificidade em relação a uma

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potencialidade imaginativa. A outra está expressam lutas entre agentes sociais que relacionada ao embate quanto ao próprio buscam preservar a hegemonia de um moconceito de planejamento governamental. delo de “dominação cultural”, que legitima O primeiro PNC forjou-se em um contexto determinada visão de mundo, e os que estão no qual prevaleceram perspectivas teóri- voltados para questionar as categorias de cas de que o planejamento, apesar de ter percepção da ordem social vigente (BOURconteúdo técnico, é um processo político, DIEU, 2008, 2012). Portanto, como processo sobretudo nas sociedades que ambicionam político, a produção de um plano de cultura, a transformação das estruturas econômicas ou seja, o planejamento de políticas públicas e sociais (BERCOVICI, 2006), assim como de cultura, opera principalmente como um o predomínio do entendimento de que o Es- discurso aglutinador, como construção de tado tem papel ativo no desenvolvimento do narrativa que dá sentido. E o sentido dado, país. Nesse sentido, não se trata só de com- ancorado na Constituição vigente de 1988, petição por recursos matefoi o de que as políticas riais, mas de disputas por “Como os mitos, as políticas, públicas são para asseideias e valores referentes por sua vez, fornecem um gurar direitos culturais, a à responsabilidade do Es- meio de unificar o passado cidadania cultural. Para tado diante dos desafios e o presente, de modo a Shore (2010), as políticas dar coerência, ordem e econômicos e sociais. públicas funcionariam de Assim, o primeiro certeza às ações do governo, maneira similar ao “mito” PNC precisa ser analisa- muitas vezes incoerentes, em sociedades não letrado considerando-se esse desorganizadas e incertas” das. Assim, para esse aumovimento de resgate e (SHORE, 2010, p. 32) tor, da mesma forma que ressignificação do planejaos mitos, as políticas púmento governamental no Brasil que buscou blicas proveriam uma zona de aliança e um qualificar o plano como instrumento efe- modo de reunir as pessoas em torno de um tivo de planejamento e gestão de políticas objetivo comum. Além disso, públicas. Tal perspectiva visou superar a narrativa construída nos anos 1990 – forcomo os mitos, as políticas, por sua vez, temente marcada pelo discurso “gerenciafornecem um meio de unificar o passado e lista”1 e pelo domínio da ideologia neoliberal o presente, de modo a dar coerência, ordem e certeza às ações do governo, muitas vezes – de concepção restrita de planejamento e gestão como mecanismo de cunho eminenincoerentes, desorganizadas e incertas 2 temente técnico e normativo, a cargo de (SHORE, 2010, p. 32). especialistas, e em que o Estado tem papel mínimo, prevalecendo o mercado como ins- Voltando no tempo, observamos que o ano de tância determinante da vida social. 2003 foi de grande mobilização, por parte dos Seguindo essa linha, os embates por novos integrantes do Ministério da Cultura sentido e as apropriações conceituais (MinC), na busca da abertura de diversos


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e novos canais de diálogo com o campo da cultura, em sua concepção ampliada, e com a população em geral. Foi um primeiro passo na busca mais efetiva de inserir a área cultural no campo das políticas públicas. Um conjunto de projetos e medidas vinha sendo pensado, sendo que muitos deles já estavam expressos no programa de governo do presidente Lula e dialogavam com o que foi legalmente garantido em 1988. A Constituição de 1988 reservou à cultura um lugar entre as políticas públicas, mas faltavam mecanismos e regulamentações para fazer valer o preceito constitucional. Após um período de extrema guinada do Estado aos princípios neoliberais, algumas questões ligadas aos direitos fundamentais e à regulação da Constituição começaram a ser retomadas pelo Poder Legislativo. No ano 2000, o Poder Legislativo, em especial a Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara, iniciava as discussões sobre os desafios do século XXI, realizando a 1a Conferência Nacional de Educação, Cultura e Desporto, na qual se aprovou a construção de um Plano Nacional de Cultura. A regulamentação sobre o plano tramitou e foi aprovada em 2003 na Câmara. Seguiu para apreciação do Senado, tramitando por quase dois anos, já com ampla discussão com o Ministério da Cultura, transformando-se na Emenda Constitucional no 48, de 10 de agosto de 2005. Concomitantemente, em 2003, com o governo do presidente Lula, assume o Ministério da Cultura o cantor e compositor Gilberto Gil. Tem início um processo de reestruturação do ministério, com o objetivo de

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consolidar e ampliar a institucionalidade das políticas públicas culturais. Uma das marcas da gestão, já no primeiro ano, é o estabelecimento de estratégias de diálogo com diversos segmentos da sociedade. Já em 2003, consultas, seminários e escutas públicas realizados nas diversas regiões do país começaram a produzir conteúdo que contribuiu para a construção do Plano Nacional de Cultura. No novo organograma do Ministério da Cultura, aprovado em 2004, foram estruturadas algumas secretarias, das quais duas, em especial, nos interessam: a Secretaria de Políticas Culturais (SPC) e a Secretaria de Articulação Institucional (SAI). A construção do Sistema Nacional de Cultura (SNC) ficou sob a responsabilidade da SAI. A Conferência Nacional de Cultura (CNC), que começava a ser planejada para 2005, tinha um papel fundamental na contribuição da estruturação do Plano Nacional de Cultura, esse último de atribuição da Secretaria de Políticas Culturais. É importante ressaltar que essa foi a primeira experiência brasileira, de um governo eleito democraticamente, de construção de um plano de cultura que estruturasse e fornecesse as diretrizes de atuação das políticas públicas da área. A própria ideia da necessidade de construção de políticas para a cultura era objeto de muitas discussões e polêmicas. De maneira sintética, podemos dizer que havia, por um lado, um grupo que acusava o Estado de pretender implantar um modelo “dirigista”, que engessaria o fazer cultural com normas e princípios. Mas havia também os que defendiam que a cultura era um direito e que, para fazer valer o que estava previsto na Constituição, era necessário fornecer à

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área cultural um arcabouço institucional variedade de tipos de fóruns, eventos e inscomparável ao de outras áreas de políti- tâncias participativas. Entre essa múltipla cas públicas. Essa segunda vertente vai se origem, gostaríamos aqui de destacar o mafazendo majoritária dentro do governo. A terial originado na 1a Conferência Nacional multiplicidade de posições sobre as formas de Cultura, que tinha como principal objetivo de condução do processo de fortalecimen- recolher propostas de diretrizes para o PNC. to da institucionalidade na área da cultura O processo de organização da primeinos auxilia na compreensão das diferenças ra CNC em si era uma grande novidade; alde andamentos entre os vários projetos gumas áreas já possuíam experiências de que foram elaborados com esse fim. Mui- consultas e processos participativos, mas tos dos elementos que formam o Sistema não era o caso da cultura. Uma conferênNacional de Cultura, tais como o Plano Na- cia nacional, na lógica do que vinha sendo cional de Cultura, o Conselho Nacional de realizado pelo governo, é antecedida por um Política Cultural (CNPC) e conjunto de etapas. Tradia Conferência Nacional de Construir um primeiro cionalmente, primeiro se Cultura, terminaram ocor- Plano Nacional de Cultura realizam as conferências rendo, sendo aprovados e em um país com as municipais, seguidas das implementados em tem- dimensões, desigualdades conferências estaduais, que poralidades diversas. indicam os delegados locais e diversidades do Brasil Buscando romper com se apresentava como um que participarão da confeuma tradição de desconti- processo bastante complexo rência nacional. Porém se nuidade de políticas públirealizaria a primeira confecas, programas e ações, típica da forma de rência nacional de cultura que tinha como governar no país, o PNC foi proposto com uma das funções estratégicas iniciar o prouma periodicidade decenal. Isso significaria cesso de estruturação do Sistema Nacional que ele atravessaria dois governos e avança- de Cultura, além de contribuir diretamente ria mais a metade de um terceiro. Havia uma para o PNC. Para isso, os entes federados grande esperança no tocante à construção de (municípios ou estados) que realizassem políticas públicas mais duradouras e enrai- conferências, para ter seus delegados e zadas nos territórios, bastante inspirada na suas propostas validados, deveriam assiexperiência do Plano Nacional da Cultura nar o termo de intenção de adesão ao Sisda Colômbia, igualmente decenal e que na tema Nacional de Cultura. Tendo em vista época estava em plena vigência (2001-2010). as dificuldades que tal processo poderia Entretanto, construir um primeiro Pla- gerar, foram criadas outras instâncias inno Nacional de Cultura em um país com as termediárias de representação e discussão dimensões, desigualdades e diversidades para a primeira CNC. Foram realizados os do Brasil se apresentava como um processo Seminários Setoriais de Cultura (um em bastante complexo. O PNC foi construído a cada região do país), dos quais também partir de demandas oriundas de uma grande sairiam delegados, com direito a voz e voto,


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que representariam as regiões na primeira estratégias e ações previstas no PNC, que esCNC. Foram ainda realizadas as Conferên- tavam em áreas fora da governança do MinC. cias Intermunicipais – no caso dos estados De maneira sintética, é necessário resque não aderiram ao sistema. Tal desenho saltar aqui que todo esse processo particitanto produziu excelentes resultados em pativo muito alargado teve consequências termos participativos quanto deixou como favoráveis e desfavoráveis no momento da legado para o PNC um volume gigantesco de construção do PNC; havia uma demanda demandas dos mais variados grupos, que as- por políticas e ações do Estado reprimida, sinalavam a ausência de políticas públicas que aflorou, ou melhor, que “explodiu”. Isso da cultura no país. Trabalhar com esse lega- foi bom? Sim, por um lado, pois despertou o do, transformando-o em políticas factíveis olhar da sociedade sobre o direito à cultura e sem criar altos níveis de descontentamento os deveres do Estado. Porém, não perdendo e frustração, foi uma das tarefas impostas à de vista que o processo era de elaboração de equipe ministerial. um plano que guiaria políticas públicas idealPara além dos resultados na primeira mente exequíveis, dificultou muito o processo CNC, outros fóruns e conde delimitação do que efetisultas públicas foram rea- Todo esse processo vamente poderia ser realilizados. Um dos primeiros participativo muito alargado zado, ser transformado em e grandes desafios da ela- teve consequências favoráveis meta para a execução em boração de planos na área e desfavoráveis no momento um prazo de dez anos, em das políticas públicas está da construção do PNC; havia um país sem tradição de no que chamamos de trans- uma demanda por políticas execução de políticas em versalidade da cultura. Ao e ações do Estado reprimida, cultura e, mais ainda, de buscar trabalhar com um que aflorou, ou melhor, continuidade das ações das conceito mais amplo de que “explodiu” gestões anteriores. cultura, que ultrapassa o campo das artes, que a define como conjunto Processo de construção das metas de saberes e fazeres, o Ministério da Cultura do PNC: potências e fragilidades extrapola o que seriam suas “barreiras” mi- O processo de construção do PNC foi marnisteriais e adentra no campo de outras polí- cado pelas dificuldades que afetaram o conticas setoriais. Um volume considerável das junto de projetos do Ministério da Cultura propostas de diretrizes que obtiveram maior como um todo – as alterações e inovações adesão dos delegados extrapola a área de go- eram muitas. A área nunca havia vivenciado vernança do Ministério da Cultura – as duas um processo efetivo de construção de polímaiores áreas de políticas, fora a da cultura, ticas com qualquer grau de participação sopara as quais as demandas foram direciona- cial. As poucas experiências de gestões que das foram educação e comunicação. Mais à buscaram construir políticas efetivas para frente, verificaremos um conjunto de pro- a área estiveram marcadas pelos regimes de blemas acarretados pela incorporação das exceção democrática. Ao longo da ditadura

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civil-militar, na década de 1970, o país chegou a contar com uma política nacional de cultura – que gerou poucos resultados práticos ou avaliações e acompanhamentos de seus desdobramentos – construída por técnicos nos gabinetes do governo. O primeiro PNC foi sendo elaborado a partir de um amplo processo participativo, simultaneamente a uma série de outras políticas, programas e ações. Não estamos aqui querendo afirmar que poderia ser diferente. O processo de construção do plano em todas as suas etapas de aprovação levou mais de cinco anos para ser concluído – tenhamos como marco de início a construção e a realização dos seminários Cultura para Todos (2003) ou a aprovação no Legislativo de sua existência (2005). Havia uma série de necessidades urgentes, de medidas a ser tomadas, de políticas a ser elaboradas, de áreas a ser reguladas, de ações a ser implementadas, enfim, o ministério deveria atuar de maneira a buscar consolidar uma nova forma de fazer política pública no campo da cultura, desde os primeiros momentos do novo governo. Não era possível paralisar toda a máquina pública enquanto se aguardavam a elaboração e a aprovação do PNC. Logo, algumas áreas desenvolveram ações de institucionalização mais rápido que as outras, como foi o caso da área de museus. Já no início do governo é criado o Departamento de Museus (Demu), no âmbito do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan). Na segunda gestão do presidente Lula, a gestão dos museus sai da área de patrimônio, ganhando uma instituição própria, o Instituto Brasileiro de Museus [Ibram (2009)], com um plano nacional de museus, com uma base

de informações consolidada (o Cadastro Nacional de Museus), elementos fundamentais para a estruturação de uma política setorial. Ao longo dos quatro primeiros anos da gestão do ministro Gilberto Gil, várias frentes de diálogo com a sociedade foram abertas. Nos fóruns, encontros, seminários e conferências, recolheram-se contribuições que, de alguma maneira, foram incorporadas ao Plano Nacional de Cultura. Havia um extenso material a ser trabalhado. Um dos grandes problemas técnicos enfrentados no momento em que o conjunto do material começa a ser reunido para a consolidação do plano de cultura é o da diversidade das demandas apresentadas pelas mais variadas regiões do país. Tal diversidade diz respeito às múltiplas realidades regionais, mas também se refere aos diversos graus de capacidade de mobilização da sociedade para expressar suas demandas. Também foi detectada a ausência de alguns setores culturais, em especial aqueles ligados às artes do espetáculo mais consagrados pelo mercado, que não acreditam (ou não confiam) na capacidade do Estado de elaborar políticas públicas de cultura. Foram criadas novas etapas e formas de consulta buscando um maior equilíbrio na representação das demandas, o que resulta na ampliação delas. Segundo o MinC, o processo de construção do Plano Nacional de Cultura foi dividido em três etapas: Etapa I (2003-2005): Formulação e Articulação; Etapa II (2006-2007): Diagnóstico e Definição das Diretrizes Gerais; Etapa III (2008-2010): Consolidação e Votação. Durante a etapa I, ocorre a 1a Conferência Nacional de Cultura. Na etapa II, ocorrem alguns importantes eventos que também contribuíram para o PNC: II


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Seminário Nacional de Políticas Públicas para as Culturas Populares; Seminário Internacional de Direitos Autorais; I Fórum Nacional de TVs Públicas; e Seminário Internacional de Diversidade Cultural. São ainda dessa segunda etapa a estruturação e a posse do Conselho Nacional de Política Cultural. Um acompanhamento dos desdobramentos das etapas feito a partir dos documentos produzidos na época nos dá a dimensão das dificuldades de construção de um plano nacional setorial respeitando o processo participativo. Em 2007, o Ministério da Cultura publicou a primeira edição do documento Plano Nacional de Cultura: Diretrizes Gerais. O documento tinha a previsão de realização da II CNC e a aprovação do PNC em 2008 – seria um plano até 2018. Em 2008, uma nova edição revista e atualizada foi feita, já incorporando as contribuições trazidas pelo CNPC e pelo fórum virtual na internet. No mesmo ano foram realizados os Seminários Estaduais do Plano Nacional de Cultura. Havia a expectativa de aprovação do plano naquele ano. A segunda CNC deveria ocorrer, em 2009, já com o plano aprovado, porém os debates se alongaram, e tanto o PNC quanto a segunda CNC só se efetivaram em 2010. Em um grande esforço de síntese, a equipe do MinC chega a um plano que contém 36 estratégias e 274 ações.3 Uma questão então está colocada: qual é a viabilidade da implementação de um plano com 274 ações nas mais variadas áreas de atuação, com um altíssimo grau de transversalidade? Uma segunda questão: como criar sistemas de monitoramento para esse volume de ações, garantindo a mensuração da eficácia e (mais complexo ainda) da efetividade, ou não, delas?

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Com o PNC aprovado, os trabalhos de construção da tradução ou da transcriação (fazendo uma alusão ao poeta Haroldo de Campos) das estratégias e ações em metas executáveis e mensuráveis foram realizados ao longo do ano de 2011, com as metas aprovadas em dezembro. O trabalho foi complexo, as ações tiveram de ser reagrupadas por proximidade de proposta e através de uma análise detida e cuidadosa que resultou na sistematização de 53 metas, que buscavam se distribuir pelas três dimensões estratégicas elencadas pelo ministério como eixo de todas as políticas estabelecidas: as dimensões simbólica, cidadã e econômica. O processo de finalização das metas também foi submetido à consulta pública e à aprovação do CNPC. Algumas questões à guisa de uma avaliação do processo Uma questão delicada que esteve sempre presente nas consultas públicas, nos fóruns, nas conferências, nas demandas dos colegiados setoriais é a da transversalidade das políticas públicas de cultura. Muitas das proposições mais votadas nas conferências nacionais de cultura, por exemplo, dizem respeito às áreas da comunicação e da educação, que estão fora dos limites da governança do Ministério da Cultura. Um exemplo esclarecedor é o da demanda e do esforço para o reconhecimento dos saberes oriundos da área das culturas populares, o saber dos mestres. A meta 17 do PNC previa que, até 2020, o país deveria ter “20 mil trabalhadores da cultura com saberes reconhecidos e certificados pelo Ministério da Educação (MEC)”. O Ministério da Educação havia criado um programa de reconhecimento e certificação profissional – Rede Certific

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– através do qual artistas, mestres ou detento- Por outro lado, os desdobramentos territoriais res de saberes e fazeres da tradição oral teriam esperáveis do processo foram ocorrendo. seus conhecimentos certificados pelo MEC. Podemos exemplificar um pouco da Ao MinC caberia definir os saberes e mapear problemática acima com o caso do Sisteesses profissionais que seriam reconhecidos ma Nacional de Informações e Indicadopelo MEC. Esse programa do MEC foi rapi- res Culturais (SNIIC), cuja implantação damente descontinuado. Tendo em vista que foi muito retardada, em especial pela toda a meta estava calcada no reconhecimen- dificuldade de elaborar uma base de into do saber, que só teria validade no mercado formações de caráter nacional que desse de trabalho se reconhecido pelo MEC, o fim conta da complexidade do campo cultudo programa invalidou por completo a meta. ral, dificuldade essa tanto técnica quanto Temos um exemplo claro operacional. O SNIIC tanto de pleno reconhe- Questão relevante advinda seria replicado pelos cimento da demanda da do processo participativo estados. A implantação sociedade pelo Ministério de construção do primeiro do sistema em 100% das da Cultura, ao construir a PNC é o reconhecimento e a unidades da federação e meta 17 do PNC, quanto apropriação, por parte de agentes em 60% dos municípios da fragilidade a que fica e comunidades culturais, de que era a meta, que não será exposta uma meta cuja políticas públicas de cultura são cumprida. Porém o não governança se encontra meios – obrigação do Estado cumprimento dessa totalmente fora da alçada – para garantir a cultura como meta impacta na medido Ministério da Cultura. direito de cidadania ção de várias outras, tais O ato do MinC de acatar a como a meta 6 – “50% demanda da sociedade foi perfeito, porém o dos povos e comunidades tradicionais que mecanismo utilizado na busca de efetividade estiveram cadastrados no SNIIC atendipode resultar em descrédito das ações minis- dos por ações de promoção da diversidade teriais e do próprio PNC. cultural” – ou ainda a meta 3, que trata da É importante ressaltar que, quando as cartografia da diversidade das expressões metas foram elaboradas, em 2011, havia uma culturais em todo o território brasileiro. perspectiva de fortalecimento contínuo e Assim, tal como observado no docucrescente das políticas públicas de cultura, mento Análise e Avaliação Qualitativa das nos diversos níveis de governo. Fato que ocor- Metas e o Monitoramento do Plano Nacioreu, em parte, não no mesmo ritmo do decênio nal de Cultura (PNC),4 da Secretaria da Dianterior. O cumprimento das metas do PNC versidade Cultural, são muitas as questões estava também vinculado à efetivação de ou- que precisam ser consideradas e ponderatros mecanismos de políticas, em especial o das nessa experiência peculiar de produção, Sistema Nacional de Cultura, e à reestrutu- planejamento e gestão de um plano nacional ração dos mecanismos de financiamento das para a área da cultura. Nesse sentido, há que políticas – essa última não ocorreu até 2020. se destacar como significativo ganho político


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do processo de construção do PNC a grande parte de agentes e comunidades culturais, de mobilização e participação social, bem como que políticas públicas de cultura são meios – o exercício de democracia vivenciado por obrigação do Estado – para garantir a cultura diversos segmentos e setores da sociedade. como direito de cidadania, para assegurar a ciConforme vários dispositivos constitucionais dadania cultural e o pleno exercício dos direide 1988, a participação direta da população na tos culturais, em oposição ao que os gestores gestão pública pode se dar por diversos meios municipais costumam entender como política e instâncias, inclusive deliberativas. cultural: um somatório de ações implementaEntretanto, não se pode afirmar que essa das de maneira dispersa, não planejada, sem forma participativa de fazer política cultural relação entre si e de alcance limitado. está consolidada. O cenário é bastante comOutro ponto a destacar é que se tratou plexo, e algumas decisões do atual governo de um processo e plano de abrangência nafederal se mostram paradocional, disseminado de tal xais. Se por um lado o Poder No aspecto da gestão, forma que colocou o PNC Executivo Federal editou o houve apropriação parcial como o tema da cultura na Decreto no 9.759, de 11 de de ferramentas/instrumentos agenda pública brasileira. abril de 2019, que extingue como o desenvolvimento Como ressalta o referido e limita a formação de co- de diagnósticos, avaliações documento de análise e avalegiados na administração e definição de prioridades, liação das metas do PNC, a pública federal, incluin- o que não era comum nessa difusão da ideia de planejado-se conselhos, comitês, área, principalmente nos mento governamental para comissões, fóruns etc., governos municipais a área cultural e os incentipor outro publicou a MP vos feitos pela pasta federal no 1.012, em dezembro de 2020, que prorroga a reforçaram a atenção e o lugar da cultura na vigência do PNC para 2022, tendo como uma agenda municipal. Nessa perspectiva, há o das justificativas na Exposição de Motivos no reconhecimento de que o PNC possibilitou 00034/2020 a necessidade de alterações importantes no campo cultural, promovendo a adoção de novas atitudes rerealizar discussões em diferentes níveis de lativas ao planejamento e à gestão da cultura. governo e sociedade para a formulação de Assim, no aspecto da gestão, houve um novo Plano Nacional de Cultura, que apropriação parcial de ferramentas/instruculminarão na realização da IV Conferên- mentos como o desenvolvimento de diagnóscia Nacional de Cultura (CNC). ticos, avaliações e definição de prioridades, o que não era comum nessa área, principalHá que observar como isso vai afetar a ela- mente nos governos municipais. Além disso, boração do próximo PNC. pode ser considerada como ganho técnico Outra questão relevante advinda do pro- a prática de trabalhar os instrumentos de cesso participativo de construção do primeiro gestão de modo articulado, mesmo sendo PNC é o reconhecimento e a apropriação, por necessária a adoção de procedimentos e

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instrumentos mais claros para uma articu- documento Análise e Avaliação Qualitativa das lação mais eficaz entre as metas do PNC e os Metas e o Monitoramento do Plano Nacional eixos do PPA, conforme recomendação do de Cultura (PNC), aponta-se que a desativadocumento Análise e Avaliação Qualitativa ção de instâncias de governança do PNC, assim das Metas e o Monitoramento do Plano Na- como a não implantação de seu comitê executicional de Cultura (PNC). Esse fator favorece vo, provocou a descontinuidade de ações vitais a otimização de recursos. para sua consolidação. Pontua-se também em Outro fator relevante é que o processo tal documento que há pouca governabilidade participativo – tanto de construção do PNC das metas pelo então Sistema MinC (26 das 53 quanto de suas metas – permitiu a formação metas inscritas no PNC têm os entes federade quadros político-culturais nas três esferas dos estaduais e municipais como responsáveis do poder público e também na sociedade civil. por sua execução), o que demanda articulação Ainda no que se refere aos ganhos ad- e cooperação federativa para sua consecução. vindos do processo do primeiro PNC, com Portanto, trata-se de questões que requerem a incorporação da cultura de planejamento, atenção especial para o futuro PNC. aponta-se maior reconhePor se tratar de uma cimento – por parte de ins- A desativação de instâncias política pública que envoltituições públicas e outros de governança do PNC, assim ve necessariamente correagentes – da importância como a não implantação lação de forças, o processo de cursos de formação e de seu comitê executivo, de construção do primeiro capacitação para a área provocou a descontinuidade PNC ocorreu em meio aos cultural, assim como o de ações vitais para sua diversos embates polítidesenvolvimento de pes- consolidação cos em que as disputas de quisas e estudos para a narrativas foram sendo produção de conhecimento sobre o setor. E, travadas em direção à negociação de maior para tanto, o reconhecimento da necessida- participação social. Tal processo participativo de de produzir dados e informações sobre a foi conquistando espaço gradativamente. E, área. Nesse sentido, percebeu-se também dadas a abrangência e a complexidade de procomo relevantes a elaboração de sistemas dução do PNC, a própria experiência particide informações e indicadores voltados para pativa ganha caráter ensaístico e incremental. o campo da cultura e o desenvolvimento de Se por um lado essa aprendizagem de prática práticas avaliativas. democrática na gestão pública federal nesApesar desses reconhecimentos como ca- sa área resulta em ampliação do espectro da pazes de aprimorar a gestão cultural, os esfor- cidadania, há que se considerar implicações ços de produção, sistematização e divulgação que vieram e poderão advir dessa iniciativa. de informações sobre a cultura esbarraram em Nesse sentido, sinaliza-se como fragilimitações de financiamento, descontinuida- lidade técnica o número excessivo de ações des de ações administrativas, de gestores, de sem articulação entre elas e a dificuldade de técnicos e até mesmo de projeto do SNIIC.5 No priorizar metas, sendo estas por vezes até


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imprecisas. Ademais, identifica-se a possibilidade de perdas desse processo político como o risco de ter poucos resultados práticos (em razão da falta de financiamento, da dificuldade de governança, entre outros motivos), o que, por sua vez, pode resultar em descrença nas políticas públicas, nos seus instrumentos, como o plano, e na própria participação social. Mas, por outro lado, não se pode deixar de considerar que o processo de institucionalização de políticas públicas de cultura, promovido de forma participativa, pode ter contribuído para a maior resistência de setores culturais aos recentes desmontes na área. É importante ressaltar que o processo de publicização do monitoramento do PNC está desativado desde 2019. Enfim, há muitos aspectos inovadores envolvidos na experiência de elaboração do primeiro PNC. Entre eles, destacamos a prática da administração participativa, com pleno uso de instrumentos de gestão como o planejamento e a avaliação contínua no campo das políticas públicas culturais. Apesar desses avanços significativos, vimos que há diversos pontos que requerem aprimoramento. Ainda existem desafios no que diz respeito à definição de metas, à produção e disponibilidade das informações, à maior articulação entre instrumentos de gestão e à necessidade de maior clareza nas atribuições de competências e governabilidade. Mas tais fragilidades identificadas são esperadas, uma vez que o primeiro PNC é pioneiro no modo de construção de políticas culturais. O reconhecimento dessas fragilidades deve servir de balizador desse processo de aprendizagem para que sejam promovidos ajustes no próximo PNC.

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Lia Calabre Doutora em história pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Pesquisadora do Setor de Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa [FCRB (2002-2019)]; chefe do Setor de Políticas Culturais (2002-2014); presidente da FCRB (2015-2016). Coordenadora e membro da Cátedra Unesco de Políticas Culturais e Gestão/FCRB. Participou dos processos de construção das três conferências nacionais de cultura e das diversas etapas do Plano Nacional de Cultura (PNC). Autora de diversos livros e artigos sobre políticas culturais. Membro do Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura da Universidade Federal da Bahia (Cult/UFBA) e do Laboratório de Ações Culturais (Labac), da UFF. Professora dos programas de pós-graduação Memória e Acervos, da FCRB, e Cultura e Territorialidades, da UFF.

Adélia Zimbrão Doutora em psicologia social pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj). Com mestrado em administração pública [Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas, da Fundação Getulio Vargas (Ebape/FGV)], especialização lato sensu em sociologia urbana (Uerj) e formação em psicologia (Uerj). Coordenou cursos de pós-graduação e aperfeiçoamento na Escola Nacional de Administração Pública (Enap). Foi professora de Ensino Superior e analista de finanças e controle da Secretaria do Tesouro Nacional. Faz parte da carreira de especialista em políticas públicas e gestão governamental, atuando no Setor de Pesquisa em Políticas Culturais da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB), onde desenvolve estudos e assessoria relativos a políticas públicas de cultura [Plano Nacional de Cultura (PNC), Sistema Nacional de Cultura (SNC), Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC)]. Integrante da Cátedra Unesco de Políticas Culturais e Gestão/FCRB.

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Notas 1

Muito resumidamente, a administração pública gerencial (fundamentada na new public management), prevista no Plano Diretor da Reforma do Estado – 1995, visou implantar na administração pública uma racionalidade administrativa usada em organizações privadas.

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Tradução nossa de: “Como los mitos, las políticas a su vez proveen de medios para unificar el pasado y el presente, de tal manera que otorguen coherencia, orden y certeza a las acciones a menudo incoherentes, desorganizadas e inciertas del gobierno” (SHORE, 2010, p. 32). Para esse autor, a antropologia pode fornecer uma perspectiva crítica para o entendimento do modo como as políticas públicas funcionam, pois a visão analítica de uma disciplina sobre as práticas e premissas de outra pode gerar novas perspectivas sobre problemas antigos.

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Na publicação feita pelo MinC, em 2012, Sérgio Mamberti afirma que são 275 ações.

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Esse documento resulta de um projeto que foi desenvolvido pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) para o Ministério da Cultura com a finalidade de analisar e apresentar uma avaliação do monitoramento das metas do Plano Nacional de Cultura 2010-2020. A pesquisa foi realizada de maio a outubro de 2018, por uma equipe multidisciplinar sob a coordenação do pesquisador Antonio Albino Canelas Rubim.

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Idealizado inicialmente para ser um sistema de gestão, com o objetivo de fornecer um banco de informações e indicadores voltados para o monitoramento das metas do PNC, mas que sofreu diversos redesenhos e alterações de finalidade.


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IMPRECISÕES SOBRE O PLANO NACIONAL DE CULTURA Frederico Barbosa da Silva

O texto discute o Plano Nacional de Cultura (PNC) como um conjunto híbrido de apostas políticas e instrumentos de política pública. O PNC movimentou metodologias, mecanismos de ação e informações no contexto de diversas gramáticas atuacionais e, para quem o vivenciou, com muitos antagonismos, mas com uma ebulição criativa rara. Claras, as direções nele enunciadas para as políticas culturais tentam evitar a lógica de descontinuidades, fragmentação e descoordenação da articulação institucional. Entretanto, algumas imprecisões e improvisações ali presentes apenas serão solucionadas no contexto de intensas mobilizações coletivas e discussão democrática e participativa, de forma a alcançar os ideais de uma cultura política comum e solidária.

1. Contexto analítico

A

sociologia da ação pública, apesar de suas inumeráveis questões e modelos analíticos, se interessa fundamentalmente pelos instrumentos da ação pública como parte dos processos sociais de negociação, conflito, participação e decisão coletiva no contexto dos antagonismos políticos. Qualquer recurso à instrumentação de políticas públicas tem significação como escolha política, como parte de contextos de inteligibilidade, aceitabilidade e justificabilidade. Nada nas relações e produções sociais é neutro. Escolher um plano conectando-o ao sistema, ao conselho e ao fundo nacional e a estruturas homólogas nos Estados, no

Distrito Federal e nos municípios implica a produção de significados e justificativas certamente controversos e singulares para cada ator do campo das artes e da cultura. O valor das crenças, justificativas e argumentações mobilizadas é o próprio fazer coletivo, que envolve enunciadores, destinatários, aliados e adversários e tem caráter aberto, histórico e socialmente indexado. O Plano Nacional de Cultura (PNC), ao lado do Sistema Nacional de Cultura (SNC), constitucionalizou e estabeleceu como dever do Estado, com participação da sociedade, a garantia dos direitos culturais a partir de políticas públicas. O próprio PNC é um instrumento de política pública


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que se associa de forma interdependente a de cultura tratam-nos como parte de um outros inúmeros. Os instrumentos de políti- conjunto de ideias que podem ser agrupaca pública referem-se ao substrato técnico, das com noções como república, democracia, mas igualmente a esquemas organizacio- planejamento, avaliação e monitoramento. nais, filosofias de gestão, filosofias políticas, Os planos e seus métodos seriam reveladoe também a metas, indicadores, sistemas res dos desejos, interesses e orientações do de informações, de financiamento etc. Os campo cultural no que se refere a diretrizes instrumentos de política são técnicos, mas e orientações para a ação pública. Em concontêm uma visão conceitual, política, junto, isso tudo significa dizer que os planos estratégica etc., e por isso provavelmente de cultura constituem uma peça política, um serão objeto de controvérsias no âmbito consenso provisório no quadro de conflitos da administração pública e dos movimen- e de antagonismos políticos. Sem discortos artísticos, culturais e dar, propomos uma leitura sociais, podendo ser mais Os instrumentos de política alternativa, com ênfase na ou menos coerentes com são técnicos, mas contêm dimensão tecnopolítica. o conjunto de opções rea- uma visão conceitual, De um lado, os plalizadas. A publicização de política, estratégica etc., e nos de cultura interpelam argumentos, no entanto, por isso provavelmente serão ideias gerais tentando cotem desdobramentos im- objeto de controvérsias no lonizar as forças políticas portantes nas molduras da âmbito da administração em torno de uma cultura ação, nos quadros de perti- pública e dos movimentos política comum. A função nência e nas paisagens de artísticos, culturais e sociais seria político-ideológica, sentido da experiência. estabelecendo as condiAssim, para explicitar a abordagem que ções de instauração de um conjunto de vase fará a respeito do PNC como instrumento lores e organizando o campo das lutas por das políticas públicas culturais e como par- legitimidades globais. Ou seja, instituições te de rearranjos das relações entre Estado e interesses heterogêneos são unificados por e sociedade, nos deteremos rapidamente ideias gerais, em nome de certo conceito de no conceito de instrumentação de políticas democracia, de uma visão específica de Espúblicas. A intenção é dialogar com dois con- tado e de uma articulação simbólico-política juntos de ideias: a) a dos planos de cultura particular sobre suas funções e valores. como parte das estratégias discursivas de Nesse sentido, um conjunto de ideias legitimação da ação pública, sem maiores permite unificar forças sociais em torno de preocupações com as suas dimensões ma- noções comuns que estariam em disputa, teriais e técnicas; e b) a dos planos como em contradição, ou aparente contradição, parte de estratégias concretas, discursivas com outras. Assim, Estado e mercado, arte e simultaneamente materiais da ação. e cultura popular, cultura de elite e sentido Em geral, as análises dos planos ou mes- antropológico, popular nacional e internamo dos processos de elaboração de planos cional, tradicional e moderno, consumismo

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e valores autênticos etc. opõem atores e campos políticos no quadro da elaboração e da instauração de planos. Nesse caso, o que é importante é a conformação de consensos provisórios em torno de algumas poucas ideias comuns. Embora exista a possibilidade de estabelecimento de diretrizes, objetivos, metas e prazos, a razão mais importante não se relaciona com a implementação de ações específicas, mas com a mobilização da opinião em torno daquelas ideias e dos valores que elas expressam. Os efeitos de consenso criam grupos, alianças e oposições relativamente inerciais. Atores muito díspares se encontram em formulações estabilizadas de política, em princípios, diretrizes, objetivos, metas etc. Por outro lado, os planos podem ser vistos como um conjunto de instrumentos de políticas públicas. Nesse caso, ideias gerais sobre o poder e a legitimidade podem ser deixadas de lado em benefício da resolução de problemas singulares, de ideias ajustadas a campos particulares, de interesses articulados em torno de questões específicas e de instituições concretas. Nesse sentido, mais importantes do que a adesão a ideias configuradoras de posições político-ideológicas gerais seriam os instrumentos de política acionados para cada conjunto de áreas e problemas. Os consensos e dissensos são organizados em torno da instrumentação de ações públicas delimitadas. Diretrizes, objetivos, metas e prazos são articulados com possibilidades concretas de ação. Evidentemente, também a ação pública implica apostas, mobilização de recursos, estratégias, criação de ações de viabilidade. A

diferença é que o terreno deve ser explorado de forma mais concreta e estratégica, gerando informações que permitam a discussão das opções, dos seus limites e necessidades de ajustamentos. As ideias são importantes, mas as materialidades, a qualidade das opções e os instrumentos técnicos, os esquemas de ação e a filosofia de articulação das ações também. Analisar a ação pública por seus instrumentos não é algo usual. Lascoumes e Le Galès definem os instrumentos de políticas públicas da seguinte forma: [...] o conjunto de problemas colocados na agenda das políticas públicas e que implicam o uso de ferramentas (orçamentação, técnicas, meios, operações, dispositivos, projetos) que permitem materializar e operacionalizar a ação governamental.1

Em geral, leis e normas, recursos econômicos e fiscais, informações e comunicações são instrumentos, e é raro que um programa de ações públicas use apenas um instrumento operacional. Em geral, eles são múltiplos e interdependentes.2 Diferentes trabalhos fizeram apresentações do PNC e estabeleceram reflexões com distintos objetivos e métodos. Guilherme Varella (2014)3 descreve-o do ponto de vista jurídico; Inty Queiroz (2019)4 estabelece os enunciados do plano na arquitetônica da esfera político-cultural; Albino Rubim (2008)5 tece considerações a respeito de inconsistências teórico-conceituais; Paula Félix (2008)6 contextualiza-o como parte de estilos de governo; e não podemos deixar de remeter à avaliação qualitativa das metas e


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do monitoramento do PNC realizada pela 2. O Plano Nacional de Cultura11 Universidade Federal da Bahia (UFBA). 7 Pode-se dizer que as ações públicas exPessoalmente, fiz incursões pelas metas do pressas nos planos de cultura mobilizam PNC: em Barbosa da Silva e Labrea (2014), objetivos, configurações institucionais e discuti a meta 23 [15 mil Pontos de Cultura instrumentos específicos em um conjunem funcionamento, compartilhados entre to de princípios, premissas valorativas, Governo Federal, Unidades da Federação crenças, culturas políticas, mas também (UF) e os municípios integrantes do Siste- de hipóteses práticas, metodologias e insma Nacional de Cultura (SNC)]; em Bar- trumentos que expressam orientações para bosa da Silva (2016)8 e Barbosa da Silva e a ação em um conjunto mais amplo de posLabrea (2014),9 contextualizamos a meta sibilidades, ou seja, opções, priorizações e 28 (aumento em 60% no número de pessoas apostas entre alternativas possíveis. Um que frequentam museus, centro cultural, ci- plano pode optar por reconhecer todas as nema, espetáculos de teatro, circo, dança demandas e possibilidades teóricas, mas, e música); em Barbosa da sem fazer escolhas e, mais Silva e Coutinho (2016),10 Um plano pode optar importante, escolhas viádescrevemos o compor- por reconhecer todas as veis, perde força como tamento dos indicadores demandas e possibilidades instrumento concreto de das metas 12 (100% das teóricas, mas, sem fazer ação e accountability. escolas públicas de edu- escolhas e, mais importante, Analisar o PNC como cação básica com disci- escolhas viáveis, perde força um conjunto de instruplina de Arte no currículo como instrumento concreto mentos implica tratá-lo escolar regular com ênfase de ação e accountability não somente como um doem cultura brasileira, lincumento político e discurguagens artísticas e patrimônio cultural) sivo de pressão, de controle, de demanda ao e 13 (20 mil professores de arte de escolas setor público e até de mobilização coletiva, públicas com formação continuada), e os mas como um documento que orienta a ação relacionamos com questões conceituais da e a avaliação ponderada da ação. arte-educação. A avaliação – e o próprio funcionamento Em razão da existência desse conjunto do plano – tem, nesse sentido, uma dimensão de trabalhos, apenas sumariamos na seção crítica, não remete a um cinturão de defesa inseguinte a estrutura do PNC e na seção 3 transigente do que está colocado no plano, mas discutimos as metas 11 (aumento em 95% tem a função de incrementar, ajustar e mudar no emprego formal do setor cultural), 51 os rumos quando a experiência exige. A críti(aumento de 37% acima do PIB, dos recur- ca nesse caso chama a atenção para o experisos públicos federais para a cultura) e 52 mentalismo e a necessidade de aprendizado e (aumento de 18,5% acima do PIB da renún- aperfeiçoamento dos instrumentos de política. cia fiscal do governo federal para incentivo O PNC é um instrumento importante à cultura). para orientar, direcionar e priorizar ações

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no campo das políticas culturais. Mais importante, entretanto, é a possibilidade de dotar essas políticas de uma linha estável de atuação na garantia de direitos culturais. O PNC foi inscrito no artigo 215 da Constituição Federal pela Emenda Constitucional no 48 e regulamentado pela Lei no 12.343, de 2 de dezembro de 2010, como mecanismo de articulação da União, dos estados, dos municípios e da sociedade civil.12 Está previsto no artigo 215 que:

evidentemente, indica o papel da sociedade com complementaridade do Estado e de suas ações para o desenvolvimento cultural, respeitados os valores fundamentais. Na primeira década do século XXI, especialmente depois de 2003, apontou-se repetidamente para as três dimensões da cultura que deveriam ser objeto de cuidados por parte do poder público: a dimensão simbólica, a cidadã e a econômica. As possibilidades de planejamento conjunto entre os níveis de governo já estavam § 3o A lei estabelecerá o Plano Nacional de expressas no texto constitucional, bem como Cultura, de duração plurianual, visando ao de- os planos plurianuais já estavam informados senvolvimento cultural do País e à integração por diretrizes organizacionais dos órgãos de das ações do poder público planejamento, abertos às que conduzem à: possibilidades de integraA constitucionalização I – defesa e valorização do PNC em dispositivo ção de ações entre as esferas do patrimônio cultural específico fortaleceu a governamentais. Também já brasileiro; estavam previstos os mecaintenção de que o pacto II – produção, promoção e federativo se estendesse de nismos de participação sodifusão de bens culturais; forma explícita ao campo cial, direito fundamental, e a III – formação de pessoal cultural, além do fato de ter integração das ações, aspecqualificado para a gestão resultado de um processo to que decorre do fato de o da cultura em suas múl- gradual, mais intenso, de Brasil se organizar na forma tiplas dimensões; de um federalismo cooperamobilização coletiva IV – democratização do tivo. De qualquer maneira, a acesso aos bens de cultura; constitucionalização do PNC em dispositivo V – valorização da diversidade étnica e específico fortaleceu a intenção de que o pacto regional. federativo se estendesse de forma explícita ao campo cultural, além do fato de ter resultado O PNC foi elaborado com ampla e ativa par- de um processo gradual, mais intenso, de moticipação da sociedade civil e assim se serviu bilização coletiva, talvez o aspecto crucial da da escuta das demandas no campo das polí- construção do PNC, já que este envolve não ticas culturais. Essa ampla participação se apenas instrumentos técnicos, mas a mobireflete no escopo das demandas que abran- lização ampla de atores.16 gem a cultura como “sistema das artes”,13 Na verdade, a proposta do PNC confor14 “memória coletiva” e “modos de vida, sa- ma um vasto conjunto de conceitos, valores, beres e fazeres populares e tradicionais”15 e, objetivos, estratégias e diretrizes, nem sempre


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QUADRO 1: PNC CLASSIFICADO EM ESTRATÉGIAS, DIRETRIZES E OBJETIVOS ESTRATÉGIAS

DIRETRIZES E NÚMERO DE AÇÕES

OBJETIVOS

1. Fortalecer a ação do Estado no planejamento e na execução das políticas culturais

• Instituições e mecanismos de integração (25 ações)

Implantar o SNC, instituição de marcos legais e participação da sociedade civil; desenvolvimento de sistemas de informação, indicadores de avaliação, mecanismos de regulação de mercado e territorialização das políticas; aprimoramento das regras de financiamento e definição de prerrogativas e responsabilidades das esferas de governo

2. Incentivar, proteger e valorizar a diversidade artística e cultural brasileira

• Criação, conservação, preservação e valorização do patrimônio artístico e cultural diversificado (43 ações)

• Financiamento (19 ações) • Legislação (13 ações)

Adequar a legislação e a institucionalidade à convenção da diversidade da Unesco

• Estímulo à reflexão sobre as artes e a cultura (21 ações) • Valorização da diversidade (19 ações)

3. Universalizar o acesso dos brasileiros à fruição e à produção cultural

• Fluxos de produção e de formação de público (30 ações) • Equipamentos culturais e circulação da produção (22 ações)

Criar condições para a formação artística e de público, bem como facilitar a disponibilização de meios de produção e difusão

• Estímulo à difusão através da mídia (9 ações) 4. Ampliar a participação da cultura no desenvolvimento socioeconômico sustentável

• Capacitação e assistência ao trabalhador da cultura (18 ações) • Estímulo ao desenvolvimento da economia da cultura (35 ações) • Turismo cultural (13 ações)

Formação profissional; regulamentação do mercado de trabalho; estímulo ao investimento e ao empreendedorismo; inserção de bens culturais nas dinâmicas econômicas contemporâneas

• Regulação econômica (13 ações) 5. Consolidar os sistemas de participação social na gestão das políticas culturais

• Organização de instâncias consultivas e de participação direta (18 ações) • Diálogo com as iniciativas do setor privado e da sociedade civil (9 ações)

Criar condições para cogestão participativa das políticas com a sociedade; criar redes, canais de acompanhamento e transparência

Fonte: Diretrizes Gerais para o Plano Nacional de Cultura (BRASIL, 2007; 2013). Elaboração do autor.

claros, a ser acompanhado e avaliado. O plano, suas estratégias e suas diretrizes formam um texto denso e dotado de certa coesão, embora os conceitos trabalhados em cada parte se desloquem por eixos semânticos instáveis, ou seja, mudem, ganhando nuances novas a cada novo uso. Esse caminho nem sempre é

o melhor do ponto de vista do compartilhamento de métodos, de metas e de objetivos, dados o alto grau de imprecisão e a latitude semântica deixada a cada enunciado do plano. Ou seja, o que é bom para a poesia, para a literatura e para a filosofia nem sempre é bom para a clareza política.

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No entanto, deve-se reconhecer que, do ponto de vista processual, isto é, do reconhecimento do campo das políticas culturais, de seus objetos de ação e dos atores que ali estão se movimentando, há ganhos sensíveis, sobretudo, em relação ao amplo arco de apoio e de alianças que vai se configurando para a mudança do padrão de comportamento do Estado em relação à cultura. Destacam-se, aqui, as cinco estratégias e suas respectivas diretrizes, pois estas permitem a visualização das intenções e a apresentação do sentido geral que nutre o PNC. As estratégias se desdobram em diretrizes, cada uma com um número específico de ações, enquanto os objetivos detalham um pouco a linha de ação das estratégias. De modo geral, estratégias, diretrizes e ações, embora se repitam e sejam aparentemente fragmentárias, apresentam uma visão de conjunto dos problemas e dos desafios da área cultural. A par desse conjunto de considerações e descrições, pode-se afirmar que o PNC carrega elementos constituintes: princípios, objetivos, valores, metas e instrumentos de políticas. O plano pretende articular de forma sistemática um conjunto de ações para a garantia de direitos culturais e a realização de objetivos. Narra um conjunto de hipóteses práticas e reúne meios para o atingimento de fins determinados politicamente, sendo sua duração de dez anos. Na verdade, a instrumentação das políticas é a concretização de teorias em ação, envolvendo dimensões cognitivas, hipóteses de ação, métodos e instrumentos. Trata-se de uma questão política porque envolve a escolha de um regime de ação e não oblitera de forma alguma a política. Entretanto, também não é uma racionalização a posteriori. Não

tem por finalidade a defesa de posições globais, mas a demarcação de “complexidades no quadro de complexidades”, de tal forma a poder avaliá-las de maneira empírica, a partir das evidências. Todos esses elementos sinalizam questões simples. O sentido pragmático e os procedimentos político-técnicos dos instrumentos situam-se no espaço da política, não podem ser naturalizados nem considerados neutros, pois têm consequências nos resultados e na produção de grupos e representações sociais (imagens, crenças e argumentações). Entretanto, mantêm exigências específicas relacionadas ao acompanhamento e à avaliação crítica e criteriosa da qualidade e do alcance das ações e opções. Em um plano mais concreto, a análise dos instrumentos permite dar outro passo. Reconhecer os limites dos instrumentos permite conceber novas configurações e arranjos entre eles, coordenando-os e articulando-os de formas diferenciadas. O planejamento permite a produção de esquemas de organização e a aplicação sequenciada de instrumentos variados. A primeira coisa que devemos interpretar são os sentidos dos indicadores das 53 metas que compõem o PNC e o que deveriam ser. Lembremo-nos que o indicador é um instrumento ou dispositivo que articula elementos representacionais, conceituais, técnicos e, simultaneamente, explicações e normas de ação; portanto, metas, indicadores e argumentos estão conectados. Optamos por analisar algumas poucas metas e seus indicadores, tanto na sua medida numérica quanto conceitualmente, ou seja, como dispositivo técnico justificado argumentativamente.


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3. As metas De maneira mais direta, é necessário Para exemplificar alguns dos desafios que saber que papéis jogam os atores públicos esperam o PNC, sua avaliação e revisão, es- na produção dos fenômenos medidos pelos colhemos três metas. Os instrumentos de indicadores. Ou seja, qual é o papel concreto política – repetimos, os dispositivos, como das ações públicas culturais para produzir assinala Agamben – têm elementos discur- os efeitos desejados pelas metas e aferidos sivos, interpretativos ou simbólicos inter- pelos indicadores. Da mesma forma, deve-se dependentes, acoplados a materialidades.17 saber como acompanhar e calcular os indiUm instrumento e seus indicadores têm cadores, e como interpretá-los. sentidos diferentes para os atores, sentidos A meta 11 trata da geração de empreque dependem de suas posições e estratégias, gos formais no Brasil: “aumento em 95% no mas também do conjunto emprego formal do setor de crenças, interesses e O monitoramento e a cultural”. Além disso, detercálculos articulados às avaliação só atingem seus mina quantitativos, ou seja, práticas institucionais.18 objetivos se forem capazes criar mais de 1,3 milhão de Entretanto, o ponto de formalizar os problemas empregos formais no setor central da avaliação é que e as soluções esperadas, cultural. Os formuladores os instrumentos de política estruturando interpretações, foram cuidadosos, a base de façam sentido para quem afastando o voluntarismo cálculo é a Relação Anual conduz a ação e não apenas e o ativismo, aproximando de Informações Sociais sejam capazes de produzir o problema de quem se (Rais), administrada pelo um belo texto ou discurso. responsabiliza pela ação Ministério do Trabalho. A As metas 11, 51 e 52 meta foi otimista, talvez exsão acompanhadas de indicador, metodolo- cessivamente, não importa. As expectativas gia e argumentos que as justificam. São es- eram de que a economia mantivesse níveis de sas conexões de sentido que discutiremos. É crescimento; a crise econômica e política já interessante que todos os procedimentos de dava sinais, mas, de fato, era impossível inconstrução e interpretação das metas estejam corporar de maneira precisa todas as variábem delimitados, inclusive a reflexão sobre veis de contexto. Sem questionar as escolhas, quais são os agentes e os fatores causais res- que envolveram mobilização e debate entre ponsáveis pelas mudanças socioeconômicas um sem-número de atores, podemos analisar medidas pelo indicador. os dados do dinamismo do mercado de trabaO monitoramento e a avaliação só lho, imaginando que a partir deles é possível atingem seus objetivos se forem capazes questionar a escolha por metas, cujo comde formalizar os problemas e as soluções portamento se relaciona menos diretamenesperadas, estruturando interpretações, te com a ação dos setores da cultura e muito afastando o voluntarismo e o ativismo, mais com processo de regulação, normatizaaproximando o problema de quem se res- ção e desenvolvimento econômico de setores ponsabiliza pela ação. de mercado. Os impactos do financiamento

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público são importantes, mas não são capazes de mudar a dinâmica dos direitos sociais do trabalho, da sua proteção e, menos ainda, da sua gramática própria. Também não atingem de forma determinante a lógica do trabalho artístico. Dessa forma, fazemos algumas colocações rápidas sobre essas características e nos voltamos para os indicadores de mercado de trabalho. Acreditamos que a melhor base de cálculo para as metas é a Pesquisa de Amostra Domiciliar (Pnad-C). As fronteiras entre campos profissionais da cultura são conceitual e empiricamente imprecisas. Autonomia, flexibilidade e criatividade foram, no contexto da regulação das relações entre capital e trabalho e da proteção legal dos direitos sociais, ou do capitalismo organizado, negativamente identificadas aos negócios, às habilidades práticas gerenciais, aos valores e interesses do capitalista. No atual contexto são, inclusive, valorizadas ideologicamente.19 As artes são caracterizadas pela multifuncionalidade, pela flexibilidade e pela intermitência. Não há dúvidas sobre ser o trabalho artístico, em geral, criativo. A questão ganha relevância quando flexibilização e criatividade se aproximam da precarização e desproteção. Já trabalhamos em inúmeras análises a respeito das dinâmicas do trabalho cultural. Em todas elas, o fato mais marcante, entre outros, é verdade, como efeitos de composição e distribuição territorial, é o grande número e participação do número de trabalhadores na cultura. Essas análises são possíveis pela positivação estatística, sendo construídas a partir de sistemas de classificação padronizados; os quantitativos são tomados em base fixa, isto é, nas classificações da CNAE e CBO e, agora,

COB. É necessário, entretanto, registrar alguns dados e dificuldades. O primeiro é que as classificações não alcançam as atividades de terreno, tanto as geradas por inovações tecnológicas quanto as que demandam mediadores, ou seja, ações de planejamento e gestão das atividades. Em segundo lugar, não se captam fluxos de entrada e saída de trabalhadores do mercado de trabalho medido, nas transições por diferentes trabalhos e atividades, ou seja, o comportamento dos agregados não tem correspondência – e esta sempre fora nossa suspeita – com as atividades culturais como um todo, caracterizadas por fluxos de entrada e saída, múltiplas funções e múltiplas atividades cruzadas ou mesmo simultâneas dos indivíduos. Ou seja, os dados não permitem dimensionar fluxos de indivíduos para o desemprego ou para outros trabalhos nem no sentido inverso. Nenhuma fonte estatística atual permite quantificar com clareza a insubordinada dinâmica das atividades e carreiras culturais, suas distribuições e a intermitência.20 Não resolveremos o problema do dimensionamento preciso das atividades e recursos mobilizados para a dinamização dos mercados simbólicos, considerados de maneira restrita ou ampla, ou mesmo abrangendo a cultura com modos de vida, saberes e fazeres e criatividade como um todo [esta abrangendo não apenas as tecnologias da informação e comunicação (TICs), mas alcançando a criatividade tecnológica, organizacional e as várias habilidades de ação no espaço social]. Difícil imaginar a cultura como número fechado, e a reflexão a seguir não tem a intenção de insinuá-lo.


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Discutiremos os pressupostos metodológicos e os limites das informações e responderemos a algumas perguntas adicionais relativas a dinamismos culturais. 3.1. Limites metodológicos (meta 11): as classificações, a composição do mercado de trabalho cultural e os dinamismos As evidências da literatura mais recente e mais específica sobre o tema do trabalho nos mercados culturais sugerem dinamismos variáveis entre segmentos da cultura e não apenas heterogeneidades. Em um breve resumo, o mercado de trabalho cultural é determinado por considerações específicas ligadas a incertezas, intermitências, reconhecimento, prestígio, gerenciamento de portfólio, negociação de emprego, relações de rede, fomento público e outras interferências que carecem de maior investigação. Pesquisas recentes também sugerem desigualdades internas quanto a rendimentos e formalização do trabalho.21 Nesse caso, são necessários aprofundamentos para entender o funcionamento das redes e das estratégias tomadas pelos atores, inclusive para “sobreviverem” no mercado de trabalho nos períodos de intervalo entre projetos. Um passo adiante seria tentar comparar dados estruturais dos mercados de trabalho propriamente culturais com dados de outros mercados para mensurar, de forma mais precisa, até onde vão essas diferenças no contexto brasileiro. Nesse sentido, valeria também levantar novos dados que permitissem compreender as múltiplas atividades exercidas simultaneamente pelos atores e o papel das políticas culturais no fomento e na proteção do

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trabalho (formas jurídicas e organizacionais das empresas e sistemas previdenciários e de proteção ao trabalho). Essas relações não são dadas e os dinamismos de mercado não podem responder a demandas por aumento da formalidade, especialmente quando as relações trabalhistas são crescentemente objeto de reformas que têm como consequência a flexibilização e a desproteção. O trabalho de freelancers, autônomos e temporários é opção apenas em determinadas situações, mas em geral é constrangimento das estruturações das atividades culturais. As opções por flexibilidade, multiplicidade e descontinuidade de vínculos são parte das motivações, sentidos subjetivos e valorativos dos atores sociais que se movimentam na área cultural, mas é necessário também ampliar as bases empíricas “previstas” por essas hipóteses. Se os postos de trabalho em setores ditos culturais crescem mais do que a presença das ocupações ditas culturais na estrutura ocupacional, isso pode sugerir que o crescimento da cultura como atividade econômica nem sempre significa mais emprego para os trabalhadores da cultura especificamente – esse crescimento pode estar gerando um aumento proporcionalmente maior de ocupações não relacionadas à cultura do que de ocupações culturais. Como justificativa e orientação para direcionar investimentos para a cultura, o argumento não importa. A cultura tem sabido efeito multiplicador em outras atividades. O que se discute é a meta, não sua adequação, mas seu significado: o que ela mede. Valeria investigar melhor esse eventual descompasso e problematizar suas decorrências, mas não cabe ingenuidade na

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GRÁFICO 1: VARIAÇÃO TRIMESTRAL DO MERCADO DE TRABALHO CULTURAL – 2015-2018 8,0% 7,0% 6,0% 5,0% 4,0% 3,0% 2,0% 1,0% 0,0% -0,1% -0,2% -0,3% -0,4% -0,5% -0,6% -0,7% -0,8%

6,1% 4,9%

4,1%

3,6%

2,5%

2,0%

1,2%

-0,6%-0,5%

-1,2%

-0,6%

-0,1%

-2,2%

1,0% -0,1% -1,6%

-3,1% -4,6% -6,2%

Informal

Formal

-6,3%

Trimestre 1 – 2016

Trimestre 2 – 2016

Trimestre 3 – 2016

Trimestre 4 – 2016

Trimestre 1 – 2017

Trimestre 2 – 2017

Trimestre 3 – 2017

Trimestre 4 – 2017

Trimestre 1 – 2018

Trimestre 2 – 2018

Fonte: IBGE/Pnad-C 2015, 2016, 2017 e 2018. Elaboração do autor.

elaboração de metas, mesmo que elas se apresentem em forma de um grande otimismo e numa aposta de valorização das políticas culturais. Com esses valores compartimos: a cultura vale em si e tem efeitos de transbordamento evidentes. Vamos ao comportamento do mercado de trabalho pela Rais. Nossos resultados são muito próximos dos usados para a construção da meta do PNC. Em 2006, o número de trabalhadores formais era de 1,381 bilhão, 4% do total. Em 2015, dez anos depois, o número total atingia 1,761 bilhão, 28% maior do que em 2006, mas com participação de 3,8% no total. Nesse período, foram criados 383.600 postos de trabalho formal, sendo que entre 2012 e 2015 a queda no número de empregos foi significativa (179 mil empregos formais). As expectativas não eram promissoras em

2015 e, apenas de maneira muito tímida, vislumbram-se mudanças nas expectativas. Pela Pnad-C,22 o número de ocupados na cultura era de 7 milhões em 2015 e caiu para 6,7 milhões em 2018. A informalidade23 aumentou em 4% e o emprego formal caiu 7%. A queda nos empregos formais girava em torno de 314 mil. A informalidade representava 31% do mercado de trabalho no primeiro trimestre de 2016 e 35% no primeiro trimestre de 2018. O gráfico 1 mostra as variações positivas e negativas entre os trimestres. A parte informal da cultura, cerca de 30% do total, é mais dinâmica, e a formalização envolve não apenas investimento, mas uma complexa reorganização na estrutura das relações de trabalho, configuração de marcos legais no âmbito do direito do trabalho e previdenciário, bem como nos arranjos institucionais e nos modelos de negócio da área.


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3.2. Limites metodológicos (metas 51 e 52): contágio dos excedentes ideológicos As metas 51 e 52 fazem parte de um contexto bastante complexo de discussão do sistema de financiamento cultural. A meta 51 tem, na redação do PNC, “o objetivo de aumentar os recursos do Governo Federal para a área da cultura, sem contar os recursos provenientes das leis de incentivos fiscais”. O objetivo principal de alguns dos atores presentes no contexto político e a formulação desses objetivos não implicavam um cálculo de conveniência ou de custo-benefício em relação à estrutura pluralista de fontes de recursos que organizava o financiamento. Buscava-se o fortalecimento do Estado e das políticas realizadas com fontes do orçamento direto do Fundo Nacional de Cultura (FNC), inclusive partes desses recursos seriam passíveis de deliberação nos órgãos coletivos de participação. A crítica recorrente era a de que a renúncia (ou os incentivos fiscais) não seria objeto de deliberação pública, já que a decisão final de investimento seria das empresas. Então, a ideia de que os incentivos fiscais funcionavam em benefício das empresas e de “atores de mercado” era mais forte do que qualquer cálculo de conveniência, ou justificativas de outro tipo, como a garantia de uma pluralidade de fontes. Os incentivos seriam justificados por lógica concentradora, por benefícios privados e por concentração nas regiões mais ricas. Há toda uma evolução da discussão da Lei Rouanet (Lei no 8.313/93) e de sua reforma que aponta para essa substituição como preferência dos atores importantes do período, especialmente

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na burocracia federal. Seja como for, a meta 52 enuncia aumentos também para os recursos da renúncia ou incentivos fiscais. Assim, a meta 51 indica o aumento dos recursos orçamentários diretos em 37% acima do PIB e a renúncia fiscal em 18,5%. O texto das metas é mais claro quando afirma que a meta 51 deve significar, em 2020, no mínimo, 0,084% do PIB, numa projeção de que os recursos atingiriam aproximadamente 4,57 bilhões de reais; a meta 52 chegaria, em recursos da renúncia, a um total de aproximadamente 1,68 bilhão de reais (eram de 0,028% do PIB em 2010 e deveriam chegar a 0,033% em 2020). Em 2018, o 0,084% do PIB significaria algo em torno de 5,7 bilhões de reais, enquanto os dispêndios observados foram da ordem de 2 bilhões de reais. Também nesse ano, a renúncia observada foi de 1,2 bilhão de reais, e a “fórmula de cálculo”, caso aplicada a 2018 – e não a 2020 –, já indicaria um valor de aproximadamente 2,2 bilhões de reais. O erro não foi pequeno, sobretudo se considerarmos que tivemos recessão e crescimento negativo do PIB, algo imprevisível e inusitado nas condições de elaboração da meta. Claro, os desejos, dos quais compartilhamos, falaram mais alto nas formulações das duas metas, 51 e 52. A realidade causou surpresas, nem todas agradáveis, com a crise política, a desorganização das finanças públicas e o forte desajustamento econômico. Os formuladores do PNC esperavam crescimento de 4% ao ano. O crescimento do PIB em 2014 foi de 0,5%, em 2015 foi de -3,5%, no ano seguinte de -3,3% e voltou a crescer em torno de 1% a partir de 2017.

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Decerto, o aumento dos recursos financeiros para uma área tão importante é não apenas desejável, mas condição fundamental para seu desenvolvimento e amadurecimento institucional, e inclusive deve ser acompanhado com preocupações com a qualidade dos dispêndios. Assim, a simplicidade e o desenho mais direto e objetivo das metas são uma boa técnica para conformá-las como “bons” instrumentos de políticas públicas. O gráfico 2 apresenta os recursos do sistema de financiamento federal desde 1995. Todavia, a construção da meta 52 é completamente equivocada. O percentual de 0,033% do PIB corresponderia a 1,6 bilhão de reais, como indicado no texto, mas significaria usar no denominador da meta praticamente a base do PIB de 2012. O mesmo

percentual significaria 2,2 bilhões de reais em 2018. Podemos constatar que as expectativas dos formuladores das metas 51 e 52 eram corretas para o orçamento até 2013; no entanto, há dúvidas de que o aumento esperado tenha sido baseado na configuração real da economia ou do próprio orçamento, mesmo que as tendências não tivessem sido contraditadas pelas crises política, econômica e fiscal. As metas foram uma aposta política energicamente otimista. 4. Considerações finais Não podemos finalizar a reflexão a respeito do PNC restringindo-nos aos aspectos da racionalidade tecnopolítica, apesar de a considerarmos crucial. Do ponto de vista da

GRÁFICO 2: PARTICIPAÇÃO DOS RECURSOS ORÇAMENTÁRIOS E RENUNCIADOS NO PIB NA ÁREA CULTURAL DO GOVERNO FEDERAL – 1995-2018 0,0450 0,0400 0,0350 0,0300 0,0250 0,0200 0,0150 0,0100 0,0050

1995 1996 1997 1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004200520062007 20082009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018

% Renúncia PIB Fontes: Siafi/Senado; Salic/MinC; IBGE.

% Orçamento PIB


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Frederico Barbosa da Silva

análise dos instrumentos de políticas, o PNC formação nos leva a construir disposições, porta fragilidades que, esperamos, tenham se internalizar recursos e habilidades diferentornado evidentes. Entretanto, esses não são ciadas (teorias, conceitos, métodos de penos únicos usos atribuíveis aos instrumentos samento e planejamento, procedimentos de de políticas públicas. Eles servem para fazer levantamento de informações, capacidades outras coisas, relacionar atores, representar de testar hipóteses e dar redação a relatóposições institucionais, mobilizar atores ex- rios); essas experiências também se relacionam com sistemas de disposições mais ternos, criticar etc. Há uma pluralidade de gramáticas e ou menos estruturados para analisar objetiprocessos de justificação das políticas, dos vamente situações, dados, informações, inseus objetivos e metas. Embora o repu- formantes, documentos, fontes, técnicas etc. Assim, pode-se dizer que o PNC se conblicanismo, a democracia, a justiça como figura em conjunto híbriequidade, a crítica ao caDo ponto de vista da análise do de apostas políticas, pitalismo e ao mercado não sendo o resultado de sejam representações e dos instrumentos de políticas, vontades particulares valores recorrentemen- o PNC porta fragilidades que, colocadas em contextos te mobilizados, talvez esperamos, tenham se tornado evidentes. Entretanto, esses não discursivos abstratos. O outros interlocutores PNC movimentou metoocultos fujam ao discur- são os únicos usos atribuíveis dologias, instrumentos so explícito e se configu- aos instrumentos de políticas de ação e informações rem em orientadores das públicas. Eles servem para no contexto de muitas práticas e das decisões, fazer outras coisas, relacionar gramáticas atuacionais como a consideração de atores, representar posições e, para quem o vivenciou, posições de aliados pró- institucionais, mobilizar atores com muitos antagonisximos, de falas públicas externos, criticar etc. mos, mas com uma ebude lideranças, de adversários reais e imaginários. Fazer política é lição criativa rara. De qualquer forma, como também mobilizar, fazer alianças e oposi- toda peça política pode e deve ser objetivada, ções. Além disso, quando se fala de arenas criticada, monitorada e discutida de forma públicas, de espaço acessível a todos, esta- racional em seus pressupostos, mas também mos falando de fóruns híbridos, em que a em seus objetivos e métodos. As direções para racionalidade tecnopolítica, organizada em as políticas culturais são claras, tentam evitar nome do bem público, é sensivelmente com- a lógica das descontinuidades, fragmentação, descoordenação da articulação institucional. plicada de ser encontrada em estado puro. Nem todos os atores envolvidos em po- Algumas imprecisões e improvisações ainda líticas públicas têm os mesmos meios, isto é, marcam o PNC, mas nada como o rico processo competências específicas, rigor intelectual de mobilização coletiva e discussão democrá(no sentido técnico e escolar), dado que a tica e participativa para alcançar os ideais de estrutura de suas experiências, interesses e uma cultura política comum e solidária.

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Frederico Barbosa da Silva Doutor em sociologia pela Universidade de Brasília (UnB) e pesquisador do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

Referências bibliográficas BARBOSA DA SILVA, F. A.; SÁ, J. Políticas Sociais – acompanhamento e análise – cultura, n. 24, capítulo 5, 2016. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/ stories/PDFs/politicas_sociais/bps24_cap05.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2015. BARBOSA DA SILVA, F. A.; COUTINHO, E. Arte, educação e a prova do pudim: entre os direitos públicos subjetivos e a efetividade das políticas da arte. Texto para Discussão, n. 2.240. Brasília: Ipea, 2016. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/ portal/index.php?option=com_content&view=article&id=28765&Itemid=406>. Acesso em: 5 ago. 2015. BARBOSA DA SILVA, F. A.; LABREA, V. (Org.). Linhas gerais de um planejamento participativo para o Programa Cultura Viva. Brasília: Ipea, 2014. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/book_web_ redesenho_programa_cultura_viva.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2015. BRASIL. Ministério da Cultura. Secretaria da Diversidade Cultural. Análise e avaliação qualitativa das metas e o monitoramento do Plano Nacional de Cultura (PNC) / Ministério da Cultura. Secretaria da Diversidade Cultural. Salvador: UFBA, 2018. ______. Secretaria de Políticas Culturais (SPC). Ministério da Cultura discute proposta de revisão do Plano Nacional de Cultura. Disponível em: <http://pnc.cultura.gov. br/wp-content/uploads/sites/16/2018/12/PNC_final-31-12-18-1.pdf>. Acesso em: 5 ago. 2015. ______. Ministério da Cultura. Diretrizes gerais para o Plano Nacional de Cultura. Brasília: MinC, 2007. _______Ministério da Cultura. As metas do Plano Nacional de Cultura. 3. ed. 2013. CALABRE, L. (Org.). Políticas culturais: olhares e contextos. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; São Paulo: Itaú Cultural, 2015. FÉLIX, P. Políticas nacionais de cultura: o documento de 1975 e a proposta do governo Lula/Gil. Políticas Culturais em Revista, 2(1), p. 73-90, 2008. LASCOUMES, P.; LE GALÈS, P. L’action publique saisie par ses instruments. In: Gouverner par les instruments. Les Presses Sciences PO, 2004. QUEIROZ, I. A arquitetônica da esfera político-cultural brasileira nos enunciados do Sistema Nacional de Cultura. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 2019. RUBIM, A. Plano Nacional de Cultura em debate. Políticas Culturais em Revista, 2(1), p. 59-72, 2008. VARELLA, G. Plano Nacional de Cultura: direitos e políticas culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2014.


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Frederico Barbosa da Silva

Notas 1

Tradução livre e adaptada de: “nous entendons par instrumentation de l’action publique l’emsemble des problèmes posés par le choix et l’usage des outils (des techniques, des moyens d’opérer, des dispositifs) qui permettent de matérialiser et d’operationaliser l’action gouvernementale” (LASCOUMES, P.; LE GALÈS, P. L’action publique saisie par ses instruments. In: Gouverner par les instruments. Paris: Les Presses Sciences PO, 2004. p. 12).

2

Idem, p. 14: “Aplicado ao campo político e à ação pública, daremos como definição operacional de instrumento de política: um dispositivo técnico com vocação genérica, portador de uma concepção concreta das relações política/ sociedade, sustentada por uma concepção da regulação. É possível diferenciar os níveis de observação distinguindo: instrumento, técnica e ferramenta. O instrumento é um tipo de instituição social (recenseamento, cartografia, regulamentação, taxação etc.); a técnica é um dispositivo concreto que operacionaliza o instrumento (a nomenclatura estatística, o tipo de figuração gráfica, o tipo de lei ou decreto); enfim, a ferramenta é um microdispositivo no interior de uma técnica (a categoria estatística, a escala de definição da carta, o tipo de obrigação previsto por um texto, uma equação calculando um índice)” (tradução livre dos autores).

3

Plano Nacional de Cultura: direitos e políticas culturais no Brasil. Rio de Janeiro: Azougue Editorial, 2014.

4

A arquitetônica da esfera político-cultural brasileira nos enunciados do Sistema Nacional de Cultura. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, USP, 2019.

5

Plano Nacional de Cultura em debate. Políticas Culturais em Revista, 2(1), p. 59-72, 2008.

6

Políticas nacionais de cultura: o documento de 1975 e a proposta do governo Lula/Gil. Políticas Culturais em Revista, 2(1), p. 73-90, 2008.

7

Ver: Análise e avaliação qualitativa das metas e o monitoramento do Plano Nacional de Cultura (PNC) / Ministério da Cultura. Secretaria da Diversidade Cultural. Salvador: UFBA, 2018.

8

Políticas Sociais – acompanhamento e análise – cultura, n. 24, capítulo 5, 2016. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/politicas_ sociais/bps24_cap05.pdf>. Acesso em: 8 jan. 2021.

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BARBOSA DA SILVA, F. A.; LABREA, V. (Org.). Linhas gerais de um planejamento participativo para o Programa Cultura Viva. Brasília: Ipea, 2014. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/livros/livros/book_web_ redesenho_programa_cultura_viva.pdf>. Acesso em: 8 jan. 2021.

10

Arte, educação e a prova do pudim: entre os direitos públicos subjetivos e a efetividade das políticas da arte. Texto para Discussão, n. 2.240. Brasília: Ipea, 2016. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_ content&view=article&id=28765&Itemid=406>. Acesso em: 8 jan. 2021.

11

Esta síntese foi publicada em Políticas Sociais – acompanhamento e análise – cultura, n. 24, capítulo 5, 2016. Disponível em: <http://www.ipea.gov.br/portal/ images/stories/PDFs/politicas_sociais/bps24_cap05.pdf>. Acesso em: 8 jan. 2021.

12

A Lei no 12.343/10 estrutura-se em quatro capítulos: atribuições do poder público, financiamento, sistema de monitoramento e avaliação e disposições finais.

13

Música, dança, cinema, literatura e leitura, artes cênicas e teatro.

14

Patrimônio material e imaterial, museus e museus sociais.

15

Culturas indígenas, quilombolas, populares, ribeirinhas etc.

16

Esse processo resultou do trabalho da Câmara dos Deputados e do Ministério da Cultura (MinC) que colocou em foco diretrizes gerais para o debate público. Decorreram desse momento diversos seminários em cidades brasileiras durante 2008. Em 2009, foi apresentado o documento Por que Aprovar o Plano Nacional de Cultura: Conceitos, Participação e Expectativas.

17

AGAMBEN, G. O que é o contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Editora Argos, 2010.

18

SUREL, Y.; PALIER, B. Les “trois I” et l’analyse de l’État en action. Revue Française de Science Politique, v. 55, n. 1, février 2005, p. 7-32.

19

Ver: SENNET, R. A corrosão do caráter: consequências pessoais do trabalho no novo capitalismo. São Paulo: Editora Record, 1999; e ______. Respeito: a formação do caráter em um mundo desigual. São Paulo: Editora Record, 2004.

20 A nova estrutura das pesquisas domiciliares do Instituto Brasileiro de Geografia

e Estatística (IBGE), Pnad Contínua (Pnad-C), possivelmente nos permitirá evidenciar algumas dessas dinâmicas.


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Frederico Barbosa da Silva

Ver Barbosa da Silva, F. A. (2007) e Vasconcelos-Oliveira (2010).

22 As classificações que utilizamos não foram as mesmas para a construção

dos mercados de trabalho cultural na RAI e na Pnad-C. Os números não são estritamente comparáveis, mas permitem elaborar algumas considerações. 23 Informais são: trabalhadores sem carteira + trabalhadores por conta própria,

que não têm inscrição de CNPJ + empregadores que não têm inscrição no CNPJ + não remunerados.

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2.

EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC

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HISTÓRIA E RESULTADOS DO PLANO NACIONAL DE CULTURA 2010-2020 E O ANSEIO POR UM NOVO E APRIMORADO PLANO Claudinéli Moreira Ramos


EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC

Claudinéli Moreira Ramos

HISTÓRIA E RESULTADOS DO PLANO NACIONAL DE CULTURA 2010-2020 E O ANSEIO POR UM NOVO E APRIMORADO PLANO Claudinéli Moreira Ramos “Quem poderia afirmar que a eternidade de uma alegria poderia compensar um instante da dor humana?” (Albert Camus, A Peste)

O ensaio traz uma análise histórica da elaboração e do desenvolvimento do Plano Nacional de Cultura (PNC) 2010-2020 e formula uma avaliação geral de suas 53 metas. Na sequência, apresenta um balanço qualitativo dos avanços e limitações do plano, elaborado num exercício coletivo de revisão e formulação de propostas para um novo PNC, levando em conta desafios da conjuntura atual e os efeitos da pandemia de coronavírus que abalou o mundo em 2020.

E

screver sobre cultura, políticas de cultura, planos de cultura e temas afins na sequência de uma pandemia que instaurou estado de emergência em quase todos os países do mundo? Depois que um isolamento social se tornou mandatório em quase todas as cidades, como a principal medida de prevenção, portanto de segurança e sobrevivência, gerando efeitos sem precedentes nos relacionamentos interpessoais e na economia das nações e alterando a paisagem do mundo contemporâneo? Sim, isso pode parecer sem sentido num primeiro momento. Falar de cultura quando tantos milhares de pessoas morreram? Falar

de política cultural enquanto tanta gente perdeu o emprego e muitos passam fome, e a grave recessão instaurada compromete a todos hoje e no futuro próximo e quem sabe até quando? Pois esta é exatamente a hora de falar em políticas para a arte e a cultura. Tal afirmação não tem a ver com as leituras mais totalizadoras e generalizantes do conceito de cultura – que, numa frase, envolve toda a produção e interação humana –, no sentido de pensar em ações culturais em todas as áreas ou de analisar a característica cultural de cada ação. Não que isso não tenha sua importância, mas o momento pede mais do que elucubrações sobre como as coisas poderiam

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ser se tudo fosse diferente. Pensando numa raramente nos debruçamos em esmiuçá-la, mirada mais pragmática e, simultaneamente, voltando esforços para transformar suas limais estratégica, a perspectiva aqui proposta é ções em aprendizado e mudança planejada a de reconhecer nas políticas públicas de cul- e posta em prática colaborativamente. Este tura, a começar das já existentes, o potencial texto é uma tentativa nessa direção. de contribuição para lidar com a penosa situação atual e, sobretudo, para nos organizarmos Histórico do PNC 2010-2020 melhor para o porvir de cada era, com suas e o desafio de cumprir o planejado previsões e imprevistos, suas oportunidades e avaliar os resultados e alegrias, dramas e dificuldades. Ainda em 2019, quando ninguém sonhava Nestes tempos de coronavírus, é impor- que esse ano dataria a doença causada pelo tante observar que essa hipótese incomum vírus em forma de coroa que seria conhepara a grande maioria dos brasileiros ganha cido pela sigla em inglês covid-2019 (de cada vez mais adeptos entre médicos e pro- coronavirus disease 2019), o qual mudaria fissionais das mais diversas especialidades o rumo do mundo em 2020, começamos a do corpo e da mente, bem como das áreas idealizar um número da Revista Observade segurança pública e tório que pudesse probleeducação, e dialoga com a Falar de cultura quando tantos matizar a finalização do necessidade de haver um milhares de pessoas morreram? ciclo decenal de um plano repensar da formação Falar de política cultural nacional de cultura brasido ser humano, do nosso enquanto tanta gente perdeu o leiro, o PNC 2010-2020. impacto no planeta e das emprego e muitos passam fome, Tal como aconteceu formas como as pessoas e a grave recessão instaurada em diversos outros paíse relacionam na condi- compromete a todos hoje e no ses, também no Brasil a ção de indivíduos, grupos, futuro próximo e quem sabe até discussão sobre cultura corporações e nações. quando? Pois esta é exatamente como política pública teve A provocação aqui a hora de falar em políticas para impulso no século XX, proposta, pois, envolve a arte e a cultura especialmente a partir da perguntar: de que maSegunda Guerra Mundial. neira a política cultural pode se tornar uma Mas as especificidades da nossa história não ferramenta de enfrentamento da crise e uma contribuíram para que a pauta cultural fosse alternativa de planejamento do futuro? Gi- elevada ao patamar das políticas estratégicas rando a roda da história, a resposta buscada nem mesmo fosse considerada das pautas passa por um questionamento sobre como mais relevantes para o desenvolvimento do estava o mundo até aqui, pela reflexão acerca país, em termos de investimento e priorizado momento em que estamos e pelo compar- ção. Antes o contrário. Mesmo quando os tilhamento de visões a respeito de para onde discursos oficiais passaram a incluir temas queremos ir. Essa é a velha fórmula, conhe- ligados às artes e à cultura, o que se fortacida por todos. Clichê, até. O problema é que leceu pelo menos desde a vinda da corte


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portuguesa em 1808, com várias ações significativas em termos de políticas oficiais realizadas desde então, essa pauta foi acessória e ornamental. Isso começaria a mudar um pouco nos anos 1930, sob influência da Revolução de 1930, com a criação de órgãos nacionais da radiodifusão educativa, do cinema educativo, do patrimônio histórico, do teatro e do livro, além da incorporação de instituições remanescentes do império, como a Biblioteca Nacional, o Museu Histórico Nacional e o Museu Nacional de Belas Artes, e também da criação do Conselho Nacional de Cultura. E mudaria mais na ditadura militar, iniciada em 1964, com a criação do Conselho Federal de Cultura (1966), e especialmente a partir de 1975, com a Política Nacional de Cultura, implantada no bojo do segundo Plano Nacional de Desenvolvimento, com o objetivo geral de “apoiar e incentivar as iniciativas culturais de indivíduos e grupos e zelar pelo patrimônio cultural da Nação, sem intervenção do Estado, para dirigir a cultura” (BRASIL, 1975, p. 5). A Política Nacional definia cultura brasileira como sendo “aquela criada, ou resultante da aculturação, partilhada e difundida pela comunidade nacional” (BRASIL, 1975, p. 16) e indicava o que seria a política de cultura, os fundamentos legais da atuação do governo nesse campo, especialmente do Ministério de Educação e Cultura, especificando os objetivos, componentes, ideias, programas e as formas de ação dessa política. Sob a defesa do engrandecimento do homem brasileiro, esse documento atuava na suavização ou mesmo no ocultamento das desigualdades sociais, e numa construção da personalidade nacional a partir da

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apropriação da cultura popular como representação de uma nação unificada.1 Práticas de censura a produções culturais consideradas de oposição ao governo ou prejudiciais à “cultura nacional” e ao saneamento moral e ético da sociedade, associadas ao investimento em infraestrutura de telecomunicações e ao favorecimento da consolidação da indústria cultural no país, foram marcas da política cultural da ditadura militar, no bojo das políticas de integração e segurança nacional alinhadas a estratégias de modernização. Esse alinhamento também levou à criação de órgãos governamentais voltados para o planejamento e a implementação da política cultural oficial, o que fortaleceu o controle estatal sobre a produção e a circulação de bens culturais, reforçando uma centralização característica dos governos autoritários.2 Ao mesmo tempo que reconhecia e dava visibilidade ao campo cultural, a ditadura militar criava mecanismos para controlá-lo ou, no mínimo, circunscrevê-lo. As ações fragmentadas e as experimentações locais e regionais que marcaram os períodos anteriores na área de artes e cultura eram, assim, substituídas pelo novo direcionamento dado pelo governo autoritário, consolidando uma política cultural nacional. Por sua vez, zeloso de melhorar sua imagem enquanto dava início aos preparativos para conduzir a abertura democrática, o governo ditatorial criou e reorganizou órgãos (como a Funarte, a Embrafilme e o Serviço Nacional de Teatro) e conselhos (como o Conselho Nacional de Cinema e o Conselho Nacional de Direito Autoral), que estabeleceram as bases do que viria a ser, a partir de 1985, o Ministério da Cultura (MinC).

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Vale destacar que, apesar da atenção dada à área cultural, o desenvolvimento da política de cultura no período ditatorial não foi linear nem homogêneo, sendo igualmente marcado pela característica frequente nos diversos períodos anteriores (e posteriores) de pouca alocação de recursos, não raro seguida da retirada dos poucos recursos provisionados. Com a abertura democrática nos anos 1980, a política cultural ufanista e intervencionista do período militar foi imensamente criticada, num conjunto de movimentos que deram início ao que viria a ser o Plano Nacional de Cultura. Foi uma trajetória turbulenta. Durante a segunda metade dos anos 1980 e a década de 1990, a grave instabilidade econômica e as crises e alternâncias políticas impuseram a tônica do período, e o Ministério da Cultura foi rebaixado à Secretaria de Cultura vinculada à Presidência da República em 1990, na gestão de Fernando Collor de Mello, voltando ao status de ministério em 1992, já no governo de Itamar Franco. A partir de então, a estabilidade promovida pelo Plano Real e pelas duas presidências consecutivas de Fernando Henrique Cardoso, do Partido da Social Democracia Brasileira, pavimentou o trajeto para que a organização em torno da pauta cultural ganhasse novo impulso. Canalizando parte das demandas, a Comissão de Educação, Cultura e Desporto da Câmara de Deputados realizou, em 22, 23 e 24 de novembro de 2000, a I Conferência Nacional de Educação, Cultura e Desporto: Desafios para o Século XXI, mobilizando parlamentares artistas, intelectuais e interessados para: “1) analisar os resultados

da legislação, da fiscalização e das políticas públicas nas 3 áreas” e “2) propor alterações na legislação que atendam às necessidades nacionais, nas áreas de Educação, Cultura e Desporto”. O principal resultado desse evento foi a divulgação da Carta de Brasília, com dez propostas – seis ligadas à educação, duas ao desporto, uma transversal, em prol da viabilização de políticas públicas para a diversidade e a inclusão social nas três áreas, e uma para a cultura, que pretendia a “consideração da cultura como política de Estado e fator fundamental para o desenvolvimento social e econômico e a construção da cidadania”. Imbuídos desse espírito, o deputado federal Gilmar Machado (PT/MG), autor da proposição e presidente da comissão acima, e a deputada federal Marisa Serrano (PSDB/ MS) apresentaram, em 29 de novembro de 2000, a Proposta de Emenda Constitucional (PEC) no 306/2000, solicitando a inclusão de um terceiro parágrafo no artigo 215 da Constituição Brasileira, para determinar o estabelecimento do “Plano Nacional de Cultura, de duração plurianual, visando ao desenvolvimento cultural do País e à integração das ações do Poder Público”. Apresentada com 177 assinaturas, cinco dias após a publicação da Carta de Brasília, a PEC no 306/2000 tramitou por dois anos na Câmara dos Deputados, até ser aprovada por unanimidade nos dois turnos em julho de 2003. Seguindo para o Senado, onde passaria a ser a PEC no 57/2003, a proposta tramitou pelas comissões dessa casa por mais dois anos, novamente sendo aprovada por unanimidade nos dois turnos de votação em junho de 2005. É significativo observar que,


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nas fases de tramitação, o texto entrou e saiu Ainda em 2005, foram oficialmente de discussão diversas vezes, com adiamen- estabelecidas instâncias consultivas do tos por motivações variadas, sem que fosse CNPC, as chamadas Câmaras Setoriais, dos apresentada nenhuma alteração da redação segmentos de artes visuais, circo, dança, lioriginal, que acabou sendo aprovada como vro e literatura, música e teatro, no intuito Emenda Constitucional no 48. de ampliar os canais de diálogo entre o poder A eleição do presidente Luiz Inácio público e representantes dos campos artísLula da Silva, do Partido dos Trabalhadores, ticos na elaboração de políticas setoriais e em 2002 trouxe especial estímulo à pauta transversais de cultura. A atuação sistemáticultural nesse cenário, com um amplo con- ca dessas câmaras trouxe o segundo conjunto junto de medidas e discussões públicas. En- de subsídios para a elaboração do PNC. tre elas, paralelamente ao trânsito da PEC No mesmo ano, entre setembro e deno Congresso, o MinC realizou em 2003 o zembro, mais de 400 encontros municipais, Seminário Cultura para intermunicipais, estaduais e Todos, com 20 encontros Por sua vez, apesar setoriais somados a uma plepor todo o país, que reuni- de a discussão de um nária nacional conformaram ram produtores, artistas, plano nacional estar em a I Conferência Nacional de empresários, gestores e andamento, uma nova Cultura [CNC (http://cnpc. interessados em debater proposta de emenda cultura.gov.br/wp-content/ as políticas e o modelo de constitucional foi lançada uploads/sites/3/2017/03/ financiamento da cultura. para instituir o Sistema ANAIS-I-CNC_1%C2%AA Os registros desses eventos Nacional de Cultura -PARTE.pdf )], outro comcompuseram os primeiros ponente previsto na PEC do subsídios para o PNC. SNC, mobilizando nesse período mais de 60 mil Por sua vez, apesar de a discussão de pessoas, incluindo gestores de cerca de 1.200 um plano nacional estar em andamento, uma municípios, de 19 estados e do Distrito Federal, nova proposta de emenda constitucional foi segundo dados do Ministério da Cultura. lançada para instituir o Sistema Nacional de A transcrição dos resultados dessa conCultura, do qual o PNC seria um dos pilares. ferência deu origem à primeira proposta de Assim, a PEC no 416 foi apresentada pelo de- PNC, apresentada pelos deputados federais putado Paulo Pimenta (PT/RS) em junho de Gilmar Machado (PT/MG), Paulo Rubem 2005. Logo depois, em 24 de agosto do mes- Santiago (na época PT, atualmente PDT/PE) e mo ano, o Decreto Federal no 5.520/2005 vi- Iara Bernardi (PT/SP), sob a forma do Projeto ria a instituir o Sistema Federal de Cultura de Lei no 6.835, em março de 2006. Na sequên(SFC) e determinar a composição e o fun- cia, o Ministério da Cultura iniciou a elaboracionamento do Conselho Nacional de Polí- ção das diretrizes gerais do PNC, com base em tica Cultural (CNPC), outro pilar previsto diversos materiais (propostas das Câmaras na proposta de implementação do Sistema Setoriais, relatórios da primeira CNC, relatóNacional de Cultura. rios de seminários, documentos do ministério,

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estudos produzidos por intelectuais, suges- ao texto substitutivo do Projeto de Lei do tões de gestores públicos e privados, pesquisas PNC, que tramitava em caráter conclusivo estatísticas e o conteúdo de oficinas de traba- na Câmara. Um novo substitutivo foi aprelho), que seriam condensadas na publicação sentado com seu anexo, contemplando eixos Plano Nacional de Cultura: Diretrizes Gerais, gerais organizados em estratégias, diretridivulgada em 18 de dezembro de 2007. Nesse zes e ações. Foi então realizada a II Conferência Namesmo ano, a Câmara dos Deputados formaria sua Subcomissão Permanente de Cultura, cional de Cultura (http://cnpc.cultura.gov.br/ responsável pela realização de uma série de ii-conferencia-nacional-de-cultura/), tendo audiências públicas para o debate de propos- entre seus principais objetivos a intenção de “propor estratégias para a tas para o PNC. implementação, acompaParalelamente, foi O conselho constituiu uma nhamento e avaliação do instalado o CNPC no final comissão temática para o PNC, produzindo um trabalho PNC e recomendar metodo ano, com caráter condologias de participação, sultivo e deliberativo. O de ampla participação da diretrizes e conceitos para conselho constituiu uma sociedade civil, que levou subsidiar a elaboração dos comissão temática para à revisão das diretrizes do PNC e à publicação, em agosto Planos Municipais, Estao PNC, produzindo um duais, Regionais e Setoriais trabalho de ampla par- de 2008, de uma segunda de Cultura”. Ocorrendo em ticipação da sociedade edição, revista e atualizada, março de 2010, a II CNC civil, que levou à revisão do documento Plano Nacional envolveu, segundo o MinC, das diretrizes do PNC e de Cultura: Diretrizes Gerais 3.200 municípios e 225 mil à publicação, em agosto de 2008, de uma segunda edição, revista e participantes, evidenciando o crescimento e atualizada, do documento Plano Nacional a força da mobilização dos setores culturais. Pouco tempo depois, em maio de 2010, de Cultura: Diretrizes Gerais. Ao longo de 2008, foram ainda realiza- o projeto de lei teve aprovação unânime na dos Seminários Estaduais do Plano Nacional Câmara dos Deputados, seguindo para o Sede Cultura em todas as capitais do país, mo- nado, onde tramitou com celeridade. Em 2 de bilizando gestores de instituições culturais dezembro de 2010, a Lei no 12.343 instituiu públicas, privadas e civis, produtores, artis- o Plano Nacional de Cultura e criou o Sistetas e representantes de movimentos cultu- ma Nacional de Informações e Indicadores rais, além de representantes do MinC e da Culturais (SNIIC). Novamente aprovado por Câmara dos Deputados. A criação de uma unanimidade, o projeto contou com apenas página web para contribuições nesse mes- um veto do presidente Luiz Inácio Lula da mo ano completaria o esforço de ampliar a Silva, referente ao dispositivo que previa o estabelecimento de critérios para a valorizaparticipação social no processo. Todas essas contribuições foram reuni- ção da diversidade cultural nos mecanismos das e organizadas pelo MinC e incorporadas de avaliação, regulação e gestão dos meios de


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comunicação, especialmente internet, rádio e televisão, e que foi considerado como abertura de precedente para o controle dos meios de comunicação – pauta sempre polêmica no país. A Lei do PNC 2010-2020 estabeleceu como sua finalidade o planejamento e a implementação de políticas públicas de longo prazo, com duração de dez anos, para o campo cultural, a partir de 12 princípios e 16 objetivos, norteados por 5 eixos gerais: • fortalecer a ação do Estado; • reconhecer a importância da diversidade cultural; • universalizar o acesso à cultura; • promover a economia da cultura; • promover a participação social na elaboração das políticas culturais. Determinando que o Sistema Nacional de Cultura, a ser criado por lei específica, seria o principal articulador federativo do PNC, por meio de mecanismos de gestão compartilhada entre os entes federados e a sociedade civil, a lei também fixou as atribuições do poder público, definiu os mecanismos de financiamento e o sistema de monitoramento e avaliação, e indicou a necessidade de estabelecimento de metas prioritárias para contemplar a amplitude e a diversidade dos aspectos abarcados no PNC, estruturado em 36 estratégias e 274 ações. Nessa direção, uma portaria da ministra Ana de Holanda, publicada em 13 de dezembro de 2011, objetivou organizar e direcionar as reivindicações, para torná-las viáveis, estabelecendo as 53 metas do PNC, que foram fruto do trabalho do órgão de

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Coordenação-Executiva do PNC no Ministério da Cultura, sendo ouvido o CNPC. Para viabilizar a correta análise dessas metas, é importante observar que 16 delas são de responsabilidade exclusiva do MinC, 11 dependem de parceria com outros órgãos federais e 26 têm sua realização condicionada à responsabilidade compartilhada entre a União, estados, Distrito Federal e municípios. Os pressupostos de construção do PNC buscaram contemplar o campo cultural em três dimensões: a cultura como expressão simbólica; a cultura como direito de cidadania; e a cultura como potencial para o desenvolvimento econômico. As estratégias desenvolvidas pelo MinC para sua efetivação visavam ao fortalecimento da gestão cultural e da participação social. Um passo importante nessa direção foi a aprovação da PEC no 416/2005, em 30 de maio de 2012, convertida na Emenda Constitucional no 71, que acrescentou o artigo 216-A à Constituição Federal, criando o Sistema Nacional de Cultura, organizado em regime de colaboração descentralizada e participativa, para instituir um processo de gestão e promoção conjunta de políticas públicas de cultura, democráticas e permanentes, pactuadas entre os entes federados e a sociedade, com o objetivo de promover o desenvolvimento humano, social e econômico com pleno exercício dos direitos culturais. A emenda constitucional fundamentou o SNC na Política Nacional de Cultura e nas diretrizes estabelecidas no PNC, assentando seus princípios e uma complexa estrutura para seu funcionamento. Determinou, ainda, que ele deveria ser regulamentado por uma lei que também dispusesse sobre sua

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articulação com os demais sistemas nacionais ou políticas setoriais de governo. A III Conferência Nacional de Cultura foi realizada entre 26 e 29 de novembro de 2013 (http://cnpc.cultura.gov.br/iiiconferencia-nacional-de-cultura/), após 1.794 conferências municipais, intermunicipais, territoriais, regionais, estaduais e livres, que envolveram 2.991 municípios e mais de 450 mil pessoas, segundo o Ministério da Cultura. Com o tema “Uma política de Estado para a cultura: desafios do Sistema Nacional de Cultura”, a III CNC reuniu em Brasília 1.745 pessoas, entre delegados, convidados, observadores e profissionais (imprensa, expositores e pessoal de organização e apoio), com o objetivo de promover a participação social na reflexão, no diálogo e na construção de prioridades públicas acerca das diretrizes e estratégias para a implementação do sistema e do alcance e revisão das metas do PNC, valendo observar que a Lei do Plano previa essa revisão periodicamente, sendo que a primeira deveria ocorrer em quatro anos, para atualização e aperfeiçoamento de suas diretrizes e metas. Sessenta e quatro proposições resultaram da III Conferência Nacional, entre elas 20 priorizações indicadas para a revisão do PNC. Apesar do texto constitucional e das mobilizações subsequentes, a implantação do SNC acabou não sendo efetivada na prática, porque a lei regulamentadora nunca foi sancionada. Com efeito, tanto o Projeto de Lei Complementar no 338, de 3 de outubro de 2013, de autoria do deputado Paulo Rubem Santiago (PDT/PE), como o Projeto de Lei no 4.271, apresentado em 2 de fevereiro de 2016, pelo deputado João Derly (Rede/RS), para regulamentar o Sistema Nacional de Cultura,

não prosperaram. O último tramitou por três anos apenas na Câmara dos Deputados, sendo arquivado em 31 de janeiro de 2019, com base no dispositivo que permite o arquivamento de proposições da legislatura anterior que estejam em tramitação nos termos do artigo 105 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados. Ainda assim, pelo menos 15 estados, além do Distrito Federal, e mais de 600 municípios criaram seus respectivos sistemas de cultura por meio de leis próprias,3 avançando também na criação de seus planos estaduais, distrital e municipais de cultura. Certamente, além da militância de contingentes de base dos setores culturais, o sucesso do arcabouço legal criado pelo extinto Ministério da Cultura para estados e municípios teve bastante relação com a defesa institucional feita pelo MinC, associada à promessa de recursos, prevista nos mecanismos constitucionais de financiamento do SNC. Entretanto, a falta de regulamentação da lei federal fez com que a articulação entre os vários sistemas federativos acabasse não ocorrendo, o que enfraqueceu a defesa desses sistemas locais. Em que pese o cenário de retrocesso, o assunto nunca foi completamente esquecido, como demonstram a tentativa de retomada do PL de 2016 como Projeto de Lei no 1.801, de 27 de março de 2019, feita pelo deputado federal Luiz Lima (PSL/RJ), e a tentativa de retomada do PL de 2013 como Projeto de Lei no 1.971, de 2 de abril de 2019, feita pelo deputado Chico D’Angelo (PDT/RJ). Ainda assim, a perspectiva de estruturação da Política Nacional de Cultura por meio do SNC parecia cada vez mais distante, dada a


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atuação refratária do Executivo federal às Essa constatação demonstra que a resispolíticas culturais recentes e fortemente tência dos trabalhadores do setor cultural crítica da área cultural de modo geral. Até estatal por vezes consegue firmar conquistas que o contexto da pandemia de coronavírus ou evitar maiores perdas, ainda que na conreativou uma ampla mobilização de setores tramão dos direcionamentos hierárquicos culturais, sobretudo devido à exclusão de tra- principais. Ou, numa leitura mais otimista, balhadores da cultura do auxílio emergencial talvez se possa vislumbrar ali a semente de derivado das medidas excepcionais de pro- uma política de Estado capaz de sobressairteção social adotadas no enfrentamento do -se às políticas de governo. De todo modo, mesmo essa avaliação surto de covid-19. Numa articulação sem precedentes, fica prejudicada por outro fator que, somado sobretudo pela capacidade de sensibilizar à ausência de regulamentação da Lei do SNC, comprometeu o sucesso a população e o CongresAté que o contexto da pandemia do PNC 2010-2020: a pouso Nacional a distância, ca repercussão e efetividapraticamente apenas de coronavírus reativou uma de de seu monitoramento por meio de recursos di- ampla mobilização de setores e avaliação parametrizada gitais, o movimento do culturais, sobretudo devido à exclusão de trabalhadores da nos entes federados e em setor cultural culminou todas as políticas setoriais no sancionamento da Lei cultura do auxílio emergencial de cultura ao longo dos Aldir Blanc e na retoma- derivado das medidas da de várias pautas da excepcionais de proteção social anos de implementação. Vale registrar que política cultural previs- adotadas no enfrentamento do não faltaram esforços para ta constitucionalmente, surto de covid-19 a coleta e sistematização como as conferências de cultura e a regulamentação do Sistema Na- de dados. Porém o Plano Nacional, cuja téccional de Cultura. O Projeto de Lei no 3.139, nica de redação refletiu a opção por abranger de 4 de junho de 2020, apresentado pelo se- a maior multiplicidade de vozes e demandas, nador Jader Barbalho (MDB/PA), retomou pagou o preço dessa escolha, na forma de estratégias, ações e metas de formulações no Congresso esse debate. Nesse contexto, esforços irregulares variadas, por vezes genéricas ou falhas, de foram sendo envidados nos diversos entes difícil acompanhamento. Além disso, a falfederados e nas distintas políticas setoriais. ta de continuidade das próprias medidas de É válido destacar, por exemplo, que as áreas monitoramento do MinC, com destaque para de museus e de bibliotecas/livros/leitura falhas estruturantes na construção e atualimesmo no âmbito federal continuaram em- zação do SNIIC,4 contribuiu para gerar refepenhadas na execução de seus planos dece- renciais diversos e pontuais, não permitindo nais, ora com maior, ora com menor apoio que séries históricas confiáveis e consistengovernamental, mas em geral focadas no tes fossem estruturadas e disponibilizadas cumprimento de suas metas respectivas. ao público. Novamente, o clássico problema

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de tratamento dos dados comprometeu a boa gestão do monitoramento e avaliação: faltaram tanto a definição qualificada e amigável (para facilitar seu uso) de conceito, fonte e periodicidade dos dados quanto seu gerenciamento técnico adequado. Apesar disso, é necessário salientar a quantidade e diversidade de registros disponíveis para o estudo das políticas culturais no período, e o esforço feito pelo MinC de conciliar dados de diversas outras fontes oficiais para qualificar as análises, valendo destacar as plataformas do Sistema Integrado de Administração Financeira do Governo Federal (Siafi), do Sistema de Convênios (Siconv), do Sistema de Georreferenciamento (GEOCaps) e do Sistema de Apoio às Leis de Incentivo à Cultura (Salic), essa última uma das mais acessadas por pesquisadores ou agentes do setor que atuam com as leis de fomento. Além disso, uma série de pesquisas feitas em parceria com órgãos públicos e outras instituições ampliou a qualidade das informações culturais nos últimos anos, merecendo citação, entre outras: as diversas pesquisas feitas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), como a pesquisa Frequência de Práticas Culturais; a pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, do Instituto Pró-Livro (IPL); as Pesquisas de Informações Básicas Municipais (Munics) e Estaduais (Estadics), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE); e a Pesquisa do Índice de Competitividade do Turismo Nacional, patrocinada pelo Ministério do Turismo. Também contribuíram significativamente para ampliar o conhecimento do setor cultural iniciativas de outras organizações,

independentes do Ministério da Cultura ou contando apenas com o apoio institucional deste, como as pesquisas TIC Cultura, realizadas pelo Comitê Gestor da Internet no Brasil, e as pesquisas sobre os hábitos culturais dos brasileiros realizadas pela empresa J Leiva ou pelo Serviço Social do Comércio. Lançado em abril de 2020, o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural (OIC) avança na direção de se consolidar como uma fonte confiável e consistente para quem busca informações atualizadas sobre financiamento público à cultura, mercado de trabalho e empreendimentos no campo cultural e comércio internacional de produtos e serviços criativos. Apesar da contribuição de todos esses dados e estudos para a compreensão do campo cultural brasileiro, a falta de uma estratégia coesa e continuada de monitoramento voltada para o Plano Nacional de Cultura é uma das principais razões da dúvida quanto à efetividade alcançada pelo PNC em sua implementação. Mais que isso, o próprio ministério parece ter sucumbido às críticas aos problemas metodológicos da elaboração das estratégias, ações e metas, que, ainda que sejam procedentes, não deveriam ganhar mais destaque que as próprias realizações obtidas. De todo modo, o governo federal elaborou anualmente relatórios de acompanhamento das metas, e a maioria deles segue disponível on-line.5 Paralelamente a esse acompanhamento anual, o MinC iniciou vários trâmites para a primeira revisão do PNC, prevista para 2014, abordando o assunto na III CNC, como já citado, mas também realizando várias reuniões internas e constituindo um grupo de trabalho para reunir, consolidar, validar e


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disponibilizar as informações necessárias a 2015 marcou-se sobretudo pela adequaà revisão, conforme previsto no parágrafo ção e elaboração dos planos setoriais, pelo único do artigo 11 da Lei no 12.343/2010.6 No acompanhamento dos planos municipais e entanto, a Lei do PNC previu que o processo estaduais de cultura em gestação e pela tende revisão das diretrizes e estabelecimento tativa de revisão do Plano Nacional. Nesse de metas para o plano seria desenvolvido período, foram elaborados os planos setopor um Comitê Executivo do Plano Na- riais de arquivos, artes visuais, artesanato, cional de Cultura, composto de membros circo, culturas populares, culturas indígeindicados pelo Congresso Nacional e pelo nas, culturas afro-brasileiras, dança, deMinC, com participação de representan- sign, livro e leitura, moda, museus, música tes do CNPC, dos entes que aderiram ao e teatro. Houve também grande incentivo à PNC e de representantes do setor cultural. elaboração de planos regionais, por meio da celebração de Acordos de A criação desse comiApesar da contribuição de Cooperação com o MinC tê ficou condicionada à voltados para o Sistema publicação do decreto de todos esses dados e estudos Nacional de Cultura. Vale regulamentação da Lei para a compreensão do campo do PNC, porém a minuta cultural brasileiro, a falta de uma notar que, apesar de a Lei do SNC não ter sido aproinicial proposta em 2011 estratégia coesa e continuada pelo MinC sofreu várias de monitoramento voltada para vada, todos os estados e mais de 2.500 municíreformulações ao longo o Plano Nacional de Cultura pios aderiram ao acordo, dos anos e acabou não é uma das principais razões sendo publicada, invia- da dúvida quanto à efetividade principalmente devido à promessa de repasse de bilizando a revisão das alcançada pelo PNC em recursos diretos do Funmetas antes do encerra- sua implementação do Nacional de Cultura mento do prazo do plano. para o fundo estadual ou municipal que essa Além desses esforços, em maio de 2018 o Ministério da Cultura firmou uma formalização previa. Já a segunda metade do período de parceria com a Universidade Federal da Bahia (UFBA) com o intuito de promover realização do PNC foi marcada principaluma avaliação qualitativa e uma análise mente pelos reflexos da crise econômicrítica sobre o PNC e seu monitoramento, ca e da instabilidade política do período, e, também, visando reunir subsídios para a que afetaram os esforços para execução e construção do próximo Plano Nacional de acompanhamento das metas e inviabilizaram a realização da IV Conferência NacioCultura em 2020.7 Se os primeiros anos do PNC (2010- nal de Cultura em 2017. O final da vigência -2012) foram dedicados à formulação das do PNC deveria coincidir com uma ampla metas e ao início de desenvolvimento do avaliação de seus resultados e com a elaboSNIIC, simultaneamente ao início do mo- ração do próximo Plano Nacional, contudo nitoramento da execução, o período de 2013 a extinção do Ministério da Cultura em 1o

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de janeiro de 2019 e o direcionamento conservador dado à pauta cultural pela atual gestão federal não apontaram, até o momento, nenhum sinal nessa direção. A expressiva mobilização em torno das três conferências nacionais e dos demais eventos capitaneados pelo governo federal pelo menos até 2015, ano que marca o início de uma nova e grave crise econômica, evidencia a organização de amplos setores ligados à cultura, afinal centenas de milhares de pessoas participaram dessas discussões ao longo dos anos. Entretanto, justamente por isso fica difícil entender a desmobilização paulatina do setor nos anos seguintes, sobretudo no segundo governo Dilma Rousseff, também do Partido dos Trabalhadores, e após o impeachment dessa presidente. Talvez alguns fatores não tão evidentes naquelas mobilizações ajudem a explicar esse fenômeno, passando pelo fato de que houve considerável investimento do governo federal na viabilização dos encontros e conferências por todo o país, não só político, através das articulações federativas possíveis, mas também por meio de repasses de recursos diversos, inclusive para o custeio de passagens e estadia de milhares de participantes em eventos setoriais, estaduais e nacionais. Além disso, a mobilização foi muito eficiente no atingimento de setores ligados às culturas populares e periféricas, e aos partidos políticos aliados, mas teve pouca repercussão diante dos equipamentos e agentes mais fortes e consolidados do campo cultural ou das gestões de outros matizes políticos e quase nenhuma penetração nas indústrias culturais, salvo, em certa medida, nas áreas de livro e leitura e, em menor

escala, museus, que conseguiram viabilizar parte de seus planos setoriais. Quando o dinheiro do governo federal para viabilizar a realização dos eventos e os deslocamentos saiu de cena, não havia suficientes condições criadas no conjunto de municípios e estados para dar continuidade às políticas traçadas e não havia, na sociedade civil, grupos fortes sensibilizados para a pauta do PNC em curso. Entretanto, é importante dizer que, onde governos alinhados à política cultural proposta até então continuaram no poder ou a ele chegaram, os referenciais construídos no período foram importantes para orientar as iniciativas implementadas. Em outras palavras, reduziu-se a “invenção da roda”, e algumas iniciativas foram mantidas ou retomadas. Em que pesem as dificuldades vivenciadas para a plena consolidação das políticas culturais, estados como o Ceará e a Bahia, onde foram reeleitos governadores (ambos do PT) afetos à política de cultura estruturante em curso, consolidaram inúmeros frutos dessa relativa estabilidade das políticas culturais nos últimos anos.8 Por sua vez, também podem ser contabilizadas experiências em que gestões de outras cores político-partidárias avançaram na política cultural local segundo os direcionamentos incorporados à Constituição a partir de 2010, como aconteceu no município de Jacareí (SP),9 embora casos assim tendam a ser mais raros. Se esses são exemplos pontuais, que não traduzem a maioria dos relatos nacionais, por outro lado não podem deixar de ser considerados um legado de todo o processo de elaboração do PNC e do sucesso, ainda que relativo, no


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estímulo à construção de políticas locais de cultura, passo decisivo para um plano nacional construído como compromisso de todos os agentes e de todos os entes federados. Sob esse prisma, as falhas e a falta de coordenação federal não impediram que esforços fossem canalizados para que algumas importantes realizações previstas prosperassem. Avaliação das 53 metas do Plano Nacional de Cultura 2010-2020 Entre dificuldades, avanços e retrocessos, o primeiro Plano Nacional de Cultura brasileiro completou dez anos. O quadro a seguir é uma tentativa de contribuir para uma visão mais global do que foi essa experiência, a partir da consolidação dos dados disponíveis, numa sistematização que procura mostrar, de maneira objetiva e de fácil compreensão, um panorama quantitativo da situação das 53 metas do Plano Nacional de Cultura, segundo fontes oficiais, no ano de seu encerramento. Essa elaboração foi feita a partir dos relatórios anuais de acompanhamento e demais informações obtidas em portais federais e outras fontes indicadas na bibliografia.

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Os dados foram revisados pela última vez em outubro de 2020, momento em que ainda não tinham sido disponibilizados nas plataformas oficiais dados consolidados de 2019 correspondentes às metas do PNC, à exceção daqueles referentes às áreas de audiovisual e leitura. De acordo com este levantamento, o PNC 2010-2020 teve execução parcial ou total de 45% de suas metas. Foram consideradas cumpridas as 8 metas (15% do total) que até 2018 alcançaram 90% ou mais dos resultados previstos para 2020 (metas: 3, 10, 18, 21, 22, 31, 32 e 48); 16 metas foram consideradas parcialmente cumpridas (30% do total), porque até 2018 alcançaram entre 50% e 89% dos resultados previstos para 2020 (metas: 2, 7, 9, 12, 16, 19, 20, 27, 28, 36, 37, 38, 43, 44, 49 e 53); 29 metas foram consideradas não cumpridas (55% do total), porque até 2018 não alcançaram nem 50% dos resultados previstos para 2020, sendo 16 metas com execução entre 11% e 49% (metas: 1, 13, 23, 24, 25, 26, 30, 33, 34, 35, 40, 41, 45, 47, 51 e 52) e 13 metas com execução entre zero e 10% (metas: 4, 5, 6, 8, 11, 14, 15, 17, 29, 39, 42, 46 e 50).

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8 METAS CUMPRIDAS (15%)* META 3: Cartografia da diversidade das expressões culturais realizada em todo o território brasileiro Previsto: Produzir um mapa das expressões culturais e linguagens artísticas de todo o Brasil, com dados de, pelo menos, 70% dos municípios (3.899 municípios).

Realizado: Em 2017, 5.434 municípios possuíam informações no SNIIC (97,5% do total e 139% da meta). O portal PNC relata falta de informações que pudessem ser validadas sobre 2018. É necessário salientar que o SNIIC/ Mapas apresenta incorreções e duplicidades, carecendo ser revisto e aperfeiçoado.

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META 10: Aumento em 15% do impacto dos aspectos culturais na média nacional de competitividade dos destinos turísticos brasileiros Previsto: Aumentar o peso dos aspectos culturais no desenvolvimento do turismo, medidos no Índice de Competitividade do Turismo Nacional, do Ministério do Turismo, em relação à nota de 2010 (que foi de 55,9).

Realizado: Em maio de 2019, o Ministério do Turismo informou que o índice “foi descontinuado em 2015, pela gestão da época”. A nota em 2015 foi 64 (14% de aumento, ou 93% da meta de 64,3). A meta foi considerada cumprida em 2015 e o MinC repetiu o percentual de 14% de 2016 a 2018, mas não é possível saber se o cenário efetivamente se manteve.

META 18: Aumento em 100% no total de pessoas qualificadas anualmente em cursos, oficinas, fóruns e seminários com conteúdo de gestão cultural, linguagens artísticas, patrimônio cultural e demais áreas da cultura Previsto: Dobrar o número de pessoas qualificadas em cursos, oficinas, fóruns e seminários na área cultural, considerando o total de 18.204 pessoas capacitadas em 2010.

Realizado: Em 2018, foram capacitadas 47.233 pessoas (159% da meta prevista para 2020, de 36.408 pessoas capacitadas).

META 21: 150 filmes brasileiros de longa metragem lançados ao ano em salas de cinema Previsto: Aumentar o número de filmes de longa metragem brasileiros no circuito comercial de cinema.

Realizado: Foram lançados 160 filmes brasileiros de longa metragem no circuito comercial de cinema em 2017 (107%), 183 em 2018 (122%) e 167 em 2019 (111%).

META 22: Aumento em 30% no número de municípios brasileiros com grupos em atividade nas áreas de teatro, dança, circo, música, artes visuais, literatura e artesanato Previsto: Ter 30% mais cidades com grupos e coletivos artísticos locais nas áreas citadas em relação ao número total de municípios, com base na pesquisa Munic/IBGE.

Realizado: Com base na pesquisa 2014-2015, a meta foi superada em 100% ou mais nas áreas de circo, orquestras e associações literárias e atingiu pelo menos 91% nas áreas de dança, conjuntos musicais e artesanato. Nas áreas de teatro e artes visuais, até 2015 foram cumpridos 45% e 38%, respectivamente. A média dos indicadores informada pelo MinC foi de 96% de percentual de alcance da meta em 2015 em relação ao previsto para 2020. Não há dados posteriores.

META 31: Municípios brasileiros com algum tipo de instituição ou equipamento cultural, entre museu, teatro ou sala de espetáculo, arquivo público ou centro de documentação, cinema e centro cultural Previsto: Aumentar o número de cidades com espaços culturais, considerando o número de equipamentos culturais mínimos, conforme a faixa populacional (entre pelo menos um e pelo menos quatro tipos de espaços culturais).

Realizado: Em 2018, o percentual de municípios com os equipamentos previstos (1.741 em 2020) foi atingido em 100% ou mais, em todas as faixas populacionais, segundo a pesquisa Munic/IBGE 2018, que levantou 2.956 municípios adequados à meta.

META 32: 100% dos municípios brasileiros com ao menos uma biblioteca pública em funcionamento Previsto: Ter pelo menos uma biblioteca pública ativa em cada uma das 5.570 cidades brasileiras.

Realizado: Em 2018, o desempenho da meta foi de 99% do planejado para o ano. Na média dos indicadores, houve um alcance de 98% da meta de municípios prevista para 2020, considerando 5.458 municípios com 6.057 bibliotecas públicas em funcionamento em 2018.


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META 48: Plataforma de governança colaborativa implementada como instrumento de participação social com 100 mil usuários cadastrados, observada a distribuição da população nas macrorregiões do país Previsto: Ter uma plataforma na internet que permita o acompanhamento das políticas culturais por parte de, no mínimo, 100 mil usuários de diferentes regiões do país.

Realizado: O percentual de alcance da meta prevista para 2020 foi de 95% até 2017, considerando 95.051 usuários cadastrados em quatro “plataformas de governanças colaborativas”**, observada a distribuição populacional pelas cinco macrorregiões do país até 2017. Não há dados posteriores.

*Foram consideradas cumpridas as metas que atingiram 90% ou mais dos resultados previstos para 2020. **São elas: http://pnc.culturadigital.br/; http://culturadigital.br/; http://sniic.cultura.gov.br/ e http://cultura.gov.br/votacultura.

16 METAS PARCIALMENTE CUMPRIDAS (30%)* META 2: 100% das unidades da federação (UFs) e 60% dos municípios com dados atualizados no SNIIC Previsto: Obter e divulgar informações atualizadas sobre a área cultural de 26 estados e do Distrito Federal e sobre a área cultural de 3.342 municípios (60% de 5.570).

Parcialmente realizado: 24 estados e o Distrito Federal (93%) e 493 municípios (9% do total e 15% da meta) atualizaram informações no SNIIC até 2017. Na média dos indicadores, o alcance da meta prevista para 2020 foi de 54%. O portal PNC relata falta de informações que pudessem ser validadas sobre 2018.

META 7: 100% dos segmentos culturais com cadeias produtivas da economia criativa mapeadas Previsto: Mapear as cadeias produtivas dos seis segmentos da economia criativa definidos pela Unesco: patrimônio natural e cultural; espetáculos e celebrações; artes visuais e artesanato; livros e periódicos; audiovisual e mídias interativas; e design e serviços criativos.

Parcialmente realizado: O portal PNC relata mapeamentos de cinco cadeias produtivas (83%): música (2005); economia do Carnaval (2009); jogos digitais (2014); inserção do design nos eventos Copa do Mundo 2014 e Olimpíadas 2016 (2012); e museus (2014). A meta foi considerada cumprida em 50%, porque as cadeias de música e Carnaval citadas foram mapeadas antes do início da vigência do PNC (2005 e 2009).

META 9: 300 projetos de apoio à sustentabilidade econômica da produção cultural local Previsto: Desenvolver ao menos 300 projetos de apoio à sustentabilidade econômica da produção cultural local.

Parcialmente realizado: Considerando que a meta é global, até 2018 foram beneficiados 257 projetos de apoio à sustentabilidade econômica (86%), embora nenhum em 2017 e apenas 3 em 2018.

META 12: 100% das escolas públicas de educação básica com a disciplina de arte no currículo escolar regular com ênfase em cultura brasileira, linguagens artísticas e patrimônio cultural Previsto: Ter a disciplina de arte em todas as escolas públicas de ensino básico do país (100%).

Parcialmente realizado: Em 2018, das 141.298 escolas públicas de educação básica do país, 109.689 ministravam a disciplina de arte (78%), segundo os dados do Ministério da Educação (MEC).

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QUADRO DE AVALIAÇÃO DAS 53 METAS DO PLANO NACIONAL DE CULTURA 2010-2020

META 16: Aumento em 200% de vagas de graduação e pós-graduação nas áreas do conhecimento relacionadas às linguagens artísticas, ao patrimônio cultural e às demais áreas da cultura, com aumento proporcional do número de bolsas Previsto: Triplicar as vagas de graduação e pós-graduação nas áreas de arte e cultura em relação à quantidade existente em 2010.

Parcialmente realizado: Em relação a 2010, houve aumento de 173% no número de vagas de graduação (86,5% da meta) e de 46% de matrículas na pós-graduação (23% da meta). Na média dos indicadores, segundo o Relatório Anual 2018, a meta foi 53% cumprida.

META 19: Aumento em 100% no total de pessoas beneficiadas anualmente por ações de fomento a pesquisa, formação, produção e difusão do conhecimento Previsto: Dobrar o número de pessoas que recebem apoio para pesquisa, acadêmica ou de linguagem, nas áreas da cultura, de 481 pessoas (em 2010) para 962 (em 2020).

Parcialmente realizado: O número de beneficiados aumentou até 2015, tendo superado a meta prevista em 2012 e 2015. Houve um decréscimo a partir de 2016. Em relação a 2010, os dados de 2017 sofreram uma queda de 19%; e os dados de 2018, uma queda de 36% (apenas 307 pessoas beneficiadas). Porém, no período de 2011 a 2018, a média anual foi de 757 pessoas beneficiadas (78,7% da meta), dado relevante no decênio.

META 20: Média de quatro livros lidos fora do aprendizado formal por ano, por cada brasileiro Previsto: Aumentar o número de livros lidos fora da escola por ano, por cada brasileiro com 5 anos ou mais, de 1,3 livro (2010) para 4 (2020).

Parcialmente realizado: Citando a 4a Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil (2015), o portal PNC informa que o número de livros lidos fora da escola, nos últimos 12 meses, por brasileiro acima de 5 anos foi de 2,88 livros (72% da meta). A 5a Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, publicada em 2020, mostrou que esse índice baixou para 2,73 em 2019 (68% da meta).

META 27: 27% de participação dos filmes brasileiros na quantidade de bilhetes vendidos nas salas de cinema Previsto: Aumentar a venda de ingressos de filmes com produção ou coprodução brasileira em salas comerciais de cinema para 27% do total de ingressos vendidos.

Parcialmente realizado: O portal PNC indica que, dos 181,2 milhões de ingressos vendidos nos cinemas do país em 2017, 9,6% foram para filmes brasileiros (35% da meta). Segundo a Agência Nacional do Cinema (Ancine), dos 163,4 milhões de ingressos vendidos em 2018, 14,8% foram para filmes brasileiros (55% da meta) e, dos 176,4 milhões de ingressos vendidos em 2019, 13,7% foram para filmes brasileiros (51% da meta).

META 28: Aumento em 60% do número de pessoas que frequentam museu, centro cultural, cinema, espetáculos de teatro, circo, dança e música Previsto: Aumentar o número de pessoas que vão a museus, centros culturais, cinemas e espetáculos artísticos em relação à situação de 2010.

Parcialmente realizado: A média dos resultados para cada prática cultural indicou 84% de alcance da meta prevista para 2020 em 2013 (última pesquisa Ipea indicada).


EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC

Claudinéli Moreira Ramos

QUADRO DE AVALIAÇÃO DAS 53 METAS DO PLANO NACIONAL DE CULTURA 2010-2020

META 36: Gestores de cultura e conselheiros capacitados em cursos promovidos ou certificados pelo Ministério da Cultura em 100% das unidades da federação e 30% dos municípios, entre os quais 100% dos que possuem mais de 100 mil habitantes Previsto: Formar gestores e conselheiros em 26 estados e no Distrito Federal (100%), em 100% dos municípios com mais de 100 mil habitantes e em 30% dos municípios com menos de 100 mil habitantes.

Parcialmente realizado: Segundo o portal PNC, em média, houve alcance de 85% da meta prevista para 2020, considerando que foram capacitados gestores e conselheiros em 26 estados e no Distrito Federal (100%), 209 municípios com mais de 100 mil habitantes (70%) e 1.419 municípios com menos de 100 mil habitantes (85%).

META 37: 100% das unidades da federação e 20% dos municípios, sendo 100% das capitais e 100% dos municípios com mais de 500 mil habitantes, com secretarias de Cultura exclusivas instaladas Previsto: Ter secretaria de Cultura exclusiva em todas as UFs e em 1.113 municípios.

Parcialmente realizado: Em 2018 houve alcance de 64% da meta prevista para 2020 na média dos indicadores, considerando existência de secretaria de Cultura exclusiva em 20 estados/Distrito Federal (74%), 11 capitais (42%), 13 municípios com mais de 500 mil habitantes (33%) e 787 dos demais municípios (75% da meta). Com base nas pesquisas Munic e Estadic/IBGE, em 2018 houve diminuição do total de estados e municípios com secretaria de Cultura exclusiva.

META 38: Instituição pública federal de promoção e regulação de direitos autorais implantada Previsto: Criar uma instituição pública federal para regular, mediar, promover e registrar os direitos autorais.

Parcialmente realizado: 50% da meta: o instituto previsto não foi criado, porém foi criada no MinC a Secretaria de Direitos Autorais e Propriedade Intelectual – atualmente vinculada ao Ministério do Turismo –, responsável pela elaboração de políticas públicas e regulatórias em matéria de direitos autorais, porém sem a autonomia e a independência necessárias, segundo o portal PNC.

META 43: 100% das unidades da federação com um núcleo de produção digital audiovisual e um núcleo de arte, tecnologia e inovação Previsto: Criar em 26 estados e no Distrito Federal um núcleo de produção audiovisual e um núcleo de arte, tecnologia e inovação.

Parcialmente realizado: Em 2018, o desempenho da meta foi de 57% do planejado para o ano. Na média dos indicadores, houve um alcance de 50% da meta prevista para 2020, considerando 22 UFs com núcleo de produção audiovisual (81%) e 5 com núcleo de arte, tecnologia e inovação (19%).

META 44: Participação da produção audiovisual independente brasileira na programação dos canais de televisão Previsto: Aumentar a exibição de produções audiovisuais independentes nacionais nos canais de TV aberta e por assinatura, chegando a 25% nos canais de TV aberta e a 20% nos canais de TV por assinatura.

Parcialmente realizado: Na média dos indicadores de 2017, último ano com dados reais disponíveis, houve um alcance de 75,5% da meta para 2020 (com 20,46% de participação da produção nacional independente nos canais de TV aberta e 13,84% nos de TV paga).

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META 49: Conferências Nacionais de Cultura realizadas em 2013 e 2017, com ampla participação social e envolvimento de 100% das unidades da federação e 100% dos municípios que aderiram ao Sistema Nacional de Cultura Previsto: Garantir a participação da sociedade na elaboração e avaliação das políticas públicas de cultura, com amplo envolvimento dos estados e das cidades nas Conferências Nacionais de Cultura de 2013 e 2017.

Parcialmente realizado: A III CNC ocorreu em 2013, com a realização de conferências estaduais por 100% das UFs e municipais por 77% (1.432) dos 1.866 municípios integrantes do SNC. A IV CNC, prevista para 2017, não foi realizada, porém 3 estados e 22 municípios fizeram conferências estaduais e municipais. O alcance da meta foi de 50%.

META 53: 4,5% de participação do setor cultural brasileiro no Produto Interno Bruto (PIB) Previsto: Aumentar de 2,46% para 4,5% a participação do setor cultural no PIB brasileiro (aumento de 83%).

Parcialmente realizado: Crescendo apenas 6% em relação a 2010, a participação do PIB Criativo produzido no Brasil em 2017 foi de 2,61% do PIB (58% da meta).

*Foram consideradas parcialmente cumpridas as metas que atingiram entre 50% e 89% dos resultados previstos para 2020.

29 METAS NÃO CUMPRIDAS (55%)* META 1: Sistema Nacional de Cultura institucionalizado e implementado, com 100% das unidades da federação e 60% dos municípios com sistemas de cultura institucionalizados e implementados Previsto: Regulamentar o SNC por lei e ter sistemas de cultura com conselho, plano e fundo em todos os 26 estados e no Distrito Federal (100%) e em 3.342 cidades do Brasil (60%).

Não realizado: O Relatório Anual 2018 indica média de 63% de cumprimento da meta, porém o SNC não foi regulamentado por lei. De acordo com o portal SNC, 26 estados e o Distrito Federal (100%) e 2.709 municípios (48,6% do total e 81% da meta) firmaram acordos de cooperação relativos ao SNC até outubro de 2020. O portal PNC mostra que, até 2018, apenas 17 estados/Distrito Federal instituíram seus sistemas por leis próprias (63% da meta), e só 11 criaram por lei conselho, plano e fundo (41% da meta). Entre os municípios, apenas 512 (15% da meta) criaram seus sistemas por lei, e 128 (4% da meta) instituíram por lei conselho, plano e fundo.

META 4: Política nacional de proteção e valorização dos conhecimentos e expressões das culturas populares e tradicionais implantada Previsto: Ter leis que valorizem e protejam as culturas populares e tradicionais.

Não realizado: As duas principais leis identificadas para essa meta não foram aprovadas ainda (PL no 1.786/2011, que institui a Política Nacional Griô, apensado em 2013 ao PL no 1.176/2011, que institui o Programa de Proteção e Promoção dos Mestres e Mestras dos Saberes e Fazeres das Culturas Populares). Após arquivamentos e desarquivamentos, a matéria permanece em trâmite na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), da Câmara dos Deputados (última ação realizada em 4 de junho de 2019).


Claudinéli Moreira Ramos

EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC

QUADRO DE AVALIAÇÃO DAS 53 METAS DO PLANO NACIONAL DE CULTURA 2010-2020

META 5: Sistema Nacional de Patrimônio Cultural (SNPC) implantado, com 100% das unidades da federação e 60% dos municípios com legislação e política de patrimônio aprovadas Previsto: Implantar o SNPC; ter leis e políticas de patrimônio cultural aprovadas nos 26 estados, no Distrito Federal (100%) e em 3.342 municípios (60%), com coordenação das ações pelo SNPC e sistema de financiamento.

Não realizado: Embora 25 estados/Distrito Federal (96%) e 1.768 municípios (32% do total e 53% da meta) tenham legislação de patrimônio aprovada, o SNPC não foi implantado, e não há informações das políticas de patrimônio de estados e municípios nem coordenação entre elas, tampouco sistema de financiamento correspondente.

META 6: 50% dos povos e comunidades tradicionais e grupos de culturas populares que estiverem cadastrados no Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais (SNIIC) atendidos por ações de promoção da diversidade cultural Previsto: Garantir que um número maior de povos e comunidades tradicionais e de grupos de culturas populares seja atendido por ações públicas de promoção da diversidade cultural, considerando a existência de 26 povos e comunidades tradicionais com 4,5 milhões de famílias e a existência de grupos populares em todo o país, sem quantificação ou mapeamento-base.

Não realizado: Em 2018, não foi possível aferir o desempenho da meta de atendimento a cadastrados no SNIIC. Em 2017, dos 1.268 povos, comunidades e grupos cadastrados no SNIIC, 76 foram atendidos (2%). O percentual de alcance da meta prevista para 2020 considerando a média de todos os anos foi 4%. O portal PNC informa que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) não consegue mensurar a quantidade de povos e grupos atendidos pela política de salvaguarda do patrimônio imaterial e, por isso, tais dados não foram considerados.

META 8: 110 territórios criativos reconhecidos Previsto: Reconhecer 110 territórios com requisitos que os qualifiquem como criativos, por meio de uma chancela (selo).

Não realizado: Nenhum território criativo foi reconhecido, o selo previsto não foi criado e não foram realizadas atividades que contribuíssem para a meta.

META 11: Aumento em 95% no emprego formal do setor cultural Previsto: Criar 1.453.060 empregos formais a mais no setor cultural, de acordo com dados da Relação Anual de Informações Sociais (Rais), do Ministério do Trabalho e Emprego (de 1.529.535 empregos formais em 2010 para 2.982.595 em 2020).

Não realizado: Em 2018, foi registrada a existência de 1.520.418 empregos formais no setor cultural (apenas 5% da meta prevista e 1% a menos do que em 2010). Em lugar de crescer em mais 1,4 milhão de empregados formais, o setor cultural perdeu 9.117 empregos formais em 2018 em relação a 2010.

META 13: 20 mil professores de arte de escolas públicas com formação continuada Previsto: Proporcionar aperfeiçoamento profissional a 20 mil professores que possuam licenciatura em artes e que atuem no ensino médio em escolas públicas.

Não realizado: Foram atendidos 3.700 professores em 2015 e 98 em 2016 (totalizando 19% da meta). Não houve registro de atendimento nos demais anos.

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META 14: 100 mil escolas públicas de educação básica desenvolvendo permanentemente atividades de arte e cultura Previsto: Oferecer atividades de arte e cultura em 100 mil escolas públicas de ensino básico em horário complementar ao turno escolar, por meio do programa Mais Cultura nas Escolas.

Não realizado: Em 2014 foram beneficiadas 5.069 escolas pelo edital Mais Cultura nas Escolas de 2013 (5% da meta). Sem dados posteriores.

META 15: Aumento em 150% de cursos técnicos, habilitados pelo Ministério da Educação, no campo da arte e cultura, com proporcional aumento de vagas Previsto: Ter 1.047 novos cursos técnicos em arte e cultura, passando de 698 (2010) para 1.745 cursos (2020) técnicos de arte e cultura oferecidos pelo MEC.

Não realizado: O indicador da meta foi alterado no portal PNC (de cursos para matrículas) e retomado no Relatório Anual 2018, que informa o cumprimento de 5% do planejado para o ano e de 2% da meta, na média dos anos, em relação ao previsto para 2020.

META 17: 20 mil trabalhadores da cultura com saberes reconhecidos e certificados pelo Ministério da Educação Previsto: Reconhecer os saberes de 20 mil trabalhadores de todas as áreas da cultura e dar a eles certificação profissional, por meio da Rede Nacional de Certificação Profissional e Formação Continuada (Rede Certific), a partir de 2011.

Não realizado: Até 2018 o reconhecimento de saberes e a certificação dos trabalhadores da cultura não foram iniciados, e ações para viabilizar essa meta foram realizadas somente até 2016.

META 23: 15 mil Pontos de Cultura em funcionamento, compartilhados entre o governo federal, as unidades da federação e os municípios integrantes do Sistema Nacional de Cultura Previsto: Ter 15 mil Pontos de Cultura em funcionamento, entre pontos e pontões estaduais, distritais, municipais e intermunicipais, pontos e pontões por convênio direto, pontos indígenas e pontões de bens registrados, que recebam apoio do Ministério da Cultura no país, até 2020.

Não realizado: Em 2018, 3.956 Pontos de Cultura receberam apoio do Ministério da Cultura, o que corresponde a 31% do planejado para o ano e a 26% da meta.

META 24: 60% dos municípios de cada macrorregião do país com produção e circulação de espetáculos e atividades artísticas e culturais fomentados com recursos públicos federais Previsto: Ter, em cada região do Brasil, mais cidades que produzem ou recebem espetáculos e atividades artísticas financiados com recursos públicos federais, oriundos do Fundo Nacional de Cultura e do orçamento direto do ministério e de suas instituições vinculadas, chegando a 3.342 municípios em 2020.

Não realizado: Em 2018, 474 municípios foram beneficiados por projetos de produção e circulação de espetáculos e atividades artísticas e culturais fomentados com recursos públicos federais (8,5% do total de municípios e 19% da meta anual). Considerando os resultados dos demais anos, a média dos indicadores foi de 13% do previsto para 2020.

META 25: Aumento em 70% nas atividades de difusão cultural em intercâmbio nacional e internacional Previsto: Aumentar o intercâmbio nacional e internacional de atividades que divulguem as manifestações culturais brasileiras, considerando a quantidade anual de atividades apoiadas pelo governo federal para intercâmbio nacional ou internacional com finalidade de difundir as expressões culturais, em comparação com 2010 (637 atividades), chegando a 1.083 atividades realizadas em 2020.

Não realizado: No lugar do aumento previsto, em 2018 foram realizadas 391 atividades, havendo, assim, uma redução de 38,6% em relação a 2010, num alcance de apenas 36% da meta prevista.


Claudinéli Moreira Ramos

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QUADRO DE AVALIAÇÃO DAS 53 METAS DO PLANO NACIONAL DE CULTURA 2010-2020

META 26: 12 milhões de trabalhadores beneficiados pelo Programa de Cultura do Trabalhador (vale-cultura) Previsto: Distribuir vale-cultura a 12 milhões de trabalhadores.

Não realizado: Em 2018 foram beneficiados 551.760 trabalhadores (5%). Somando todos os beneficiados entre 2011 e 2018, houve um alcance de apenas 20% da meta prevista para 2020.

META 29: 100% de bibliotecas públicas, museus, cinemas, teatros, arquivos públicos e centros culturais atendendo aos requisitos legais de acessibilidade e desenvolvendo ações de promoção da fruição cultural por parte das pessoas com deficiência Previsto: Garantir que as pessoas com deficiência possam ter acesso aos espaços culturais, seus acervos e atividades.

Não realizado: Em 2018, foram registrados apenas 40% dos museus, 9% das bibliotecas públicas e 8% dos centros culturais atendendo aos requisitos legais de acessibilidade. Sem informações de cinemas, arquivos públicos e teatros. Na média dos indicadores, segundo o Relatório Anual 2018, o desempenho previsto para o ano foi de 12% e o percentual de alcance da meta foi de 10%.

META 30: 37% dos municípios brasileiros com cineclube Previsto: Aumentar o número de cidades com cineclube de 682 (2010) para 2.060 (2020), por meio de editais e parcerias da ação Cine Mais Cultura ou programa equivalente.

Não realizado: O número cresceu apenas até 2014, chegando a 701 municípios com cineclube (12,6% do total de municípios e 34% da meta). Segundo o Relatório Anual 2018, não houve instalações de novos cineclubes desde então.

META 33: Mil espaços culturais integrados a esporte e lazer em funcionamento Previsto: Criar mil espaços com atividades mensais a partir de 2011, como as Praças dos Esportes e da Cultura, posteriormente denominadas Centros de Artes e Esportes Unificados (CEUs).

Não realizado: Em 2018, o desempenho da meta foi de 24% do planejado para o ano (40 espaços culturais). Na média dos indicadores, houve alcance de 19% da meta, com um total de 189 espaços culturais do governo federal em funcionamento até 2018.

META 34: 50% de bibliotecas públicas e museus modernizados Previsto: Melhorar instalações, equipamentos e acervos de bibliotecas e museus.

Não realizado: Até 2018 foram modernizadas 1.932 de 6.057 bibliotecas públicas (32%) e 255 de 3.769 museus (7%). Na média dos indicadores, houve alcance de 39% da meta.

META 35: Gestores capacitados em 100% das instituições e equipamentos culturais apoiados pelo Ministério da Cultura Previsto: Formar pelo menos um servidor ou gestor de cada equipamento ou instituição cultural apoiada pelo órgão federal gestor da cultura.

Não realizado: Em 2018, 2.657 das 6.275 instituições apoiadas pelo MinC tiveram gestores ou servidores capacitados (42% da meta). No total, 14.602 pessoas receberam capacitação. Em 2018, houve redução do número de instituições e equipamentos com gestores capacitados.

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META 39: Sistema unificado de registro público de obras intelectuais protegidas pelo direito de autor implantado Previsto: Criar um sistema unificado para registro de obras musicais, literárias, dramatúrgicas, visuais e audiovisuais.

Não realizado: O sistema unificado para registro de obras musicais, literárias, dramatúrgicas, visuais e audiovisuais não foi criado.

META 40: Disponibilização na internet dos conteúdos que estejam em domínio público ou licenciados Previsto: Disponibilizar na internet o acervo das instituições vinculadas ao MinC: 100% das obras do Centro Técnico Audiovisual (CTAv) e da Cinemateca Brasileira; 100% do acervo da Fundação Casa
de Rui Barbosa (FCRB); 100% dos inventários do Iphan; 100% das obras do acervo da Fundação Biblioteca Nacional (FBN); 100% do acervo iconográfico, sonoro e audiovisual do Centro de Documentação da Fundação Nacional das Artes (Cedoc/Funarte).

Não realizado: Em 2018, o desempenho da meta foi de 13% do planejado para o ano. Na média dos anos, o percentual de alcance da meta prevista para 2020 foi de 25%. Foram disponibilizados na internet: 0% do acervo do CTAv; 1,7% do acervo da Cinemateca; 16% do acervo da FCRB; 30% do acervo do Iphan; 100% do acervo do Cedoc/Funarte. Obs.: Os dados da FBN não permitiram identificar o percentual de obras disponibilizadas.

META 41: 100% de bibliotecas públicas e 70% de museus e arquivos disponibilizando informações sobre seu acervo no SNIIC Previsto: Disponibilizar informações na internet sobre o acervo de 100% das bibliotecas públicas e 70% dos museus e arquivos.

Não realizado: Em 2018, o desempenho da meta foi de 28% do planejado para o ano. Na média dos anos, o percentual de alcance da meta prevista para 2020 foi de 23%, sendo que a disponibilização de informações sobre acervos no SNIIC foi feita por: zero das 6.057 bibliotecas públicas cadastradas; 1.712 dos 3.550 museus cadastrados (48%); e zero dos 33 arquivos cadastrados no SNIIC.

META 42: Política para acesso a equipamentos tecnológicos sem similares nacionais formulada Previsto: Criar política para facilitar a importação de tecnologias usadas em atividades culturais.

Não realizado: A política não foi formulada, e a última ação referente a essa meta foi realizada em 2016 (elaboração de projeto de isenção fiscal temporária para importação de bens sem similares no país).

META 45: 450 grupos, comunidades ou coletivos beneficiados com ações de comunicação para a cultura Previsto: Atender 450 grupos com ações de comunicação para a cultura.

Não realizado: Somando os atendimentos em 2012 e de 2014 a 2017, foram beneficiados 211 grupos, comunidades ou coletivos, e 47% da meta foi alcançada. Não houve atendimento em 2011, 2013 e 2018.

META 46: 100% dos setores representados no Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) com colegiados instalados e planos setoriais elaborados e implementados Previsto: Instalar colegiados e elaborar planos de cultura para todos os setores representados no CNPC com sistemas de acompanhamento, avaliação e controle social em funcionamento.

Não realizado: Segundo o Relatório Anual 2018, o percentual de alcance da meta em relação ao previsto até 2020 foi de apenas 7%. O portal PNC indica alcance da meta de 42% em 2017 em relação ao previsto para 2020. A ausência de memória dos cálculos dificulta a verificação.


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Claudinéli Moreira Ramos

QUADRO DE AVALIAÇÃO DAS 53 METAS DO PLANO NACIONAL DE CULTURA 2010-2020

META 47: 100% dos planos setoriais com representação no CNPC com diretrizes, ações e metas voltadas para infância e juventude Previsto: Incluir políticas culturais para jovens e crianças em todas as áreas da cultura, considerando o número de planos setoriais de cultura elaborados no âmbito do MinC com diretrizes, ações e metas para infância e juventude em relação ao total de planos.

Não realizado: Até 2018, foram elaborados 14 planos setoriais, 2 deles com diretrizes, ações e metas para infância e juventude (os planos setoriais de museus e de cultura afro-brasileira). O percentual de alcance da meta em relação a 2020 foi de 13%.

META 50: 10% do Fundo Social do Pré-Sal para a cultura Previsto: Definir 10% dos recursos do Fundo Social do Pré-Sal para a área da cultura.

Não realizado: Segundo o Relatório Anual 2018, não existem dados disponíveis para aferir o indicador da meta. Não há informação sobre destinação de recursos do pré-sal para a cultura.

META 51: Aumento de 37%, acima do PIB, dos recursos públicos federais para a cultura Previsto: Aumentar os recursos públicos federais para a cultura de 0,032% do PIB em 2010 para 0,043% em 2020.

Não realizado: De 2011 a 2018, o percentual de recursos federais para a cultura em relação ao PIB foi sempre inferior ao alcançado em 2010, chegando a 0,008% do PIB em 2018, num alcance de apenas 18,6% da meta prevista e 25% do percentual atingido em 2010.

META 52: Aumento de 18,5%, acima do PIB, da renúncia fiscal do governo federal para incentivo à cultura Previsto: Aumentar a renúncia fiscal do governo federal para incentivo à cultura de 0,0246% do PIB para 0,0291%.

Não realizado: Embora tenha alcançado 60% do previsto para 2020, a meta foi considerada não cumprida porque, de 2012 a 2018, o percentual da renúncia fiscal para a cultura em relação ao PIB foi sempre inferior ao alcançado em 2010 e 2011, chegando a 0,0175% do PIB em 2018 – número acima apenas do percentual de 2017 e 29% menor que o atingido em 2010.

*Foram consideradas não cumpridas as metas que atingiram menos de 50% dos resultados previstos para 2020. Fonte: elaboração da autora a partir dos dados divulgados pela Secretaria Especial da Cultura, do Ministério do Turismo, nas páginas sobre metas disponíveis em: http://pnc.cultura.gov.br/; dos relatórios anuais do PNC localizados em: http://pnc.cultura.gov.br/biblioteca-dedocumentos/; dos dados referentes ao Sistema Nacional de Cultura divulgados em: http://portalsnc.cultura.gov.br/estatisticas/; da quinta edição da Pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, em: https://prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-brasil-2/a-pesquisa-5aedicao; e dos dados referentes ao mercado audiovisual disponibilizados em: https://oca.ancine.gov.br. Consultas realizadas entre 20 e 24 de outubro de 2020.

Do PNC 2010-2020 ao PNC 2021-2030: subsídios de um exercício coletivo de revisão e propostas O Plano Nacional de Cultura 2010-2020 materializa a política pública de cultura constitucionalmente prevista e em vigor no Brasil. Primeiro planejamento de cultura desenvolvido de forma estruturada, interfederativa e

socialmente participativa na história da nação brasileira, o PNC atual chegou ao final de seus dez anos em 2020. Qual é a avaliação qualitativa que temos a respeito de todo o processo, a experiência e os resultados do Plano Nacional de Cultura 2010-2020? Que propostas deveriam constar de um PNC 2021-2030? Uma reflexão dessa

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envergadura sobre um plano construído participativamente e que envolve a todos não pode prescindir de diálogo. Por isso, como parte do processo de construção da análise do PNC, além da importância de examinar histórico e dados oficiais disponíveis e de ampliar o conhecimento acerca de experiências de outros países – trazidas nos demais artigos desta publicação –, ficou logo clara a necessidade de compartilhar a reflexão. Sem nenhuma pretensão representativa, mas apenas como ilustração de uma demanda premente de abertura ao diálogo, surgiu a ideia de promover um encontro para debater os desafios postos para as artes e a cultura no Brasil na próxima década, a ser contemplados no eventual próximo PNC. Assim, com atenção aos eixos estruturantes e partindo dos 16 objetivos do Plano Nacional de Cultura com olhos voltados para a próxima década, o Observatório Itaú Cultural reuniu um grupo pequeno porém diversificado de ativistas da pauta artístico-cultural para debater quais objetivos devem ser prioritários para a área e ponderar acerca de algumas questões: faz sentido a feitura de um novo PNC no cenário atual? Como ele deveria ser feito? Quais pessoas deveriam estar envolvidas? Como seria realizado o engajamento de diferentes atores no processo? Sob o tema “O Plano Nacional de Cultura: análises e perspectivas”, a discussão foi promovida em 4 de março de 2020, antes ainda que a pandemia de coronavírus assumisse a dimensão que adquiriu e sem que fosse possível, naquele momento, imaginar como isso se daria. O encontro reuniu:

• Antônio Grassi, ator e gestor cultural, atualmente diretor do Instituto Inhotim; • Bel Santos Mayer, educadora social e mestranda em biblioteconomia, atuante na área de bibliotecas comunitárias e participante do processo de construção do Plano Nacional do Livro e da Leitura (PNLL); • José Castilho Marques Neto, ex-secretário-executivo do PNLL e professor universitário da Universidade Estadual Paulista (Unesp), tendo dirigido a Editora Unesp por 27 anos; • Jurema Machado, arquiteta e consultora independente, foi presidente do Iphan e atuou no escritório de representação da Unesco no setor de cultura; • Leandro Valiati, economista, professor de economia da cultura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e da Universidade Queen Mary de Londres; • Pablo Ortellado, filósofo e professor do curso de políticas públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (EACH/USP); • Paula Gomes, produtora de cinema da Bahia e integrante da comissão do Rumos em 2019 e 2020; • Paulo Roberto Ferraz von Zuben, músico e compositor, presidente da Associação Brasileira das Organizações Sociais de Cultura (Abraosc) e diretor artístico-pedagógico e musical da organização social Santa Marcelina Cultura;


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• Vincent Carelli, cineasta, indigenista e secretário-executivo da organização de produção audiovisual indígena Vídeo nas Aldeias. O Itaú Cultural esteve representado pelo diretor Eduardo Saron e pela equipe do Observatório Itaú Cultural, nas figuras de seu gerente, Marcos Cuzziol, da coordenadora Luciana Modé e da produtora Andréia Briene. Os trabalhos contaram com a facilitação de Saulo Bonassi e Fernanda da Costa, e com a relatoria de Agda Sardinha. A metodologia adotada pautou-se pela combinação de rodadas de discussão, iniciadas com a apresentação dos participantes, cada um apontando um balanço próprio e aqueles que, em sua visão, seriam três aspectos positivos ou avanços e três limitações do PNC 2010-2020. Em seguida, teve lugar uma dinâmica para formular um mapa de grandes tendências que impactam ou impactarão a cultura na próxima década. Por meio do método Pestel (que analisa fatores políticos, econômicos, sociais, tecnológicos, ambientais e legais), cada participante somou ao debate três oportunidades e três ameaças que despontarão nos próximos dez anos. A partir desses resultados agrupados de forma bem visual, os participantes avançaram para a reflexão em torno das prioridades do novo PNC, discutindo, afinando, confrontando perspectivas e buscando construir um consenso. O texto a seguir é a minha leitura desse trabalho, a partir da articulação das falas, mescladas e ressignificadas numa construção que abandona a autoria individual em favor de uma orquestração de vozes que

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compõe uma análise e uma proposição ao mesmo tempo única e coletiva. Um balanço de avanços e limitações Quando se faz uma avaliação coletiva, presencial, dialógica de uma política pública, mais do que a precisão das respostas corretas – será que existem num caso assim? –, o que se pode colher é a repercussão das ações na soma das vivências reunidas, considerando o quanto cada um dos presentes participou (ou não) de sua elaboração e de sua execução e o quanto testemunhou, usufruiu, foi afetado (ou não) pelos seus sucessos e insucessos. Entre os avanços identificados pelo grupo reunido pelo OIC, o primeiro destaque cabe ao próprio processo de elaboração do plano, que foi também um período de diagnóstico e avaliação, no qual cada setor de arte e cultura teve a chance de refletir sobre suas demandas, infraestrutura e políticas. Foi um momento pedagógico, que permitiu uma ampla discussão dentro do próprio campo cultural e também com gestores públicos e lideranças políticas acerca do que é a cultura e sua afirmação como uma política pública – como área que também demanda organização, planejamento, governança, conselhos representativos e pensamento prospectivo. O reconhecimento e a valorização da diversidade brasileira entraram em pauta, mobilizando milhares de pessoas, especialmente muitos agentes – como jovens das periferias, grupos populares, indígenas, comunidades tradicionais – que não estavam integrados às discussões estruturantes das políticas públicas e desconheciam essa possibilidade para o campo cultural. Pela primeira vez, algumas iniciativas, como o

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projeto dos Pontos de Cultura e a política de cotas, chegaram ao Brasil profundo e promoveram encontros de mundos. Foram criadas ilhas de iniciativas e pontes para o intercâmbio. O conhecimento tradicional em algumas universidades virou pauta, e tecnologias chegaram a mãos inéditas, permitindo novas experimentações. A diversidade social aumentou nas universidades, mais cores de pele e mais faixas de renda tiveram acesso ao ensino superior, atraindo novos atores para o campo cultural e para as políticas públicas de cultura. A construção e a implementação do PNC ampliaram em diversos públicos (sobretudo de agentes culturais e de agentes políticos) uma visão sistêmica da cultura e criaram uma dinâmica de participação estruturada e dialógica (por meio de encontros e conferências) na construção de políticas públicas de cultura, que se estendeu em vários segmentos culturais e promoveu simultaneamente o empoderamento de grupos que não tinham visibilidade, como os grupos tradicionais e periféricos, e o engajamento dos entes federativos. A existência de eixos e metas nacionais discutidos no âmbito dos municípios permitiu que a cultura se tornasse uma reivindicação prioritária, não mais acessória ou complementar, em várias localidades. Pela primeira vez diversos grupos começaram a pautar e demandar a cultura como um direito humano, reconhecendo suas dimensões simbólica, cidadã e econômica. Isso contribuiu para problematizar a necessidade de diminuir a chamada “política de balcão”, de solicitações de ajudas pontuais para eventos específicos, estimulando uma

perspectiva de planejamento mais estratégico de atendimento às demandas. Ao mesmo tempo, esse movimento tornou mais visíveis as deficiências de gestão, de capacitação e de infraestrutura do meio cultural, permitindo a identificação de possibilidades para saneá-las. No entanto, ficou evidente a falta de uma estratégia de ação territorial e de evolução gradativa, que fosse mais coerente com a diversidade da situação dos municípios, com foco no nível local, o que permitiria resultados mais visíveis e motivadores, porque mais concretos e eficazes. Também ficou clara na formulação do plano a ausência de bons indicadores de desempenho e de resultado que pudessem servir de norteadores de aonde pretendemos chegar, bem como a necessidade de ampliar o conhecimento e a compreensão acerca dos impactos socioeconômicos das políticas culturais e de incrementar a transversalidade do campo da cultura, no sentido de maior integração com a educação, a saúde, a geração de emprego e renda e outras esferas públicas. É consensual o entendimento de um conjunto de falhas na formulação do PNC, que comprometeram sua execução. O excesso de ações, estratégias e metas, a falta de foco e dificuldades de formulação conceitual e metodológica resultaram em um plano complexo, em alguns aspectos muito genérico ou de difícil, até inviável, monitoramento e avaliação. Embora tenha sido muito importante a ampla participação dos setores culturais, não houve a necessária integração entre eles, na medida em que os encontros e conferências eram organizados de maneira a manter as pautas setoriais agrupadas. O


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resultado foi a falta de coesão e priorização, um composto fragmentado de demandas paralelas de difícil conciliação. A articulação pretendida com a área educacional – uma das mais estratégicas para o sucesso do PNC – não avançou. O distanciamento entre educação e cultura é um contrassenso que prejudica ambas as políticas públicas. A desarticulação com políticas de outros setores, como saúde e turismo, foi outra falha que prejudicou o alcance esperado. Parte dos problemas identificados se relaciona com a falta de bons mapeamentos. A começar da necessidade de dados confiáveis, abrangentes e atualizados do próprio setor cultural: que segmentos o compõem? Como se relacionam? Que usos fazem das tecnologias? Quantos empregos, quanto trabalho e quanto de renda geram? Que envolvimentos e apropriações e pertencimentos criam na sociedade? A falta dessas informações dificulta o estabelecimento de políticas específicas, a identificação de gargalos e a demonstração de eventuais bons desempenhos e impactos sociais e econômicos obtidos. O PNC não conseguiu lidar com uma dificuldade inerente ao setor cultural: como há uma parte considerável da produção e fruição cultural que aparentemente não tem preço para a população, ou seja, cujo acesso não passa por uma relação comercial direta, ainda é difícil para uma enorme parcela da sociedade compreender os custos da cultura. Os recursos (de tempo, dinheiro, qualificação técnica) necessários para garantir a criação artística, a preservação de patrimônio, as apresentações e tudo o mais na difusão cultural são desconhecidos para a maioria, e

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ainda é considerável a quantidade de pessoas que não reconhecem o gasto com cultura e arte como objeto de política pública. Muitos são os que consideram gastar dinheiro com fruição, emoção, alegria ou tristeza como algo da esfera do eminentemente pessoal, privado, e não social. O PNC não avançou quase nada na reversão dessa visão, na medida em que pouco contribuiu para demonstrar a importância social e econômica das políticas públicas de arte e cultura. Ao mesmo tempo, o pouco conhecimento dos diversos públicos que compõem a sociedade brasileira em termos não só de hábitos culturais, mas de demandas e desejos de arte e cultura, de visões e preconceitos, de necessidades e vontades relacionadas à construção de repertório artístico e cultural também constitui uma limitação que interfere no engajamento social e, consequentemente, no sucesso da cultura como política pública, requerendo esforços de pesquisa e mapeamento em favor da construção de novas formas de lidar com a realidade encontrada. É necessário saber como a cultura está presente na vida das pessoas, como elas gostariam que estivesse e quais outras possibilidades podem ser pensadas. Nesse sentido, embora tenha aumentado a produção nacional, pouco se avançou em direção a tornar os canais de comunicação, como televisão e rádio, espaços de diversidade no sentido mais plural do termo; e o uso da internet, especialmente nas plataformas oficiais, ficou restrito a aspectos de gestão e não logrou alcançar um público fora do próprio setor cultural. O mapeamento do setor cultural feito nessas plataformas foi parcial, datado e pouco eficiente.

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É importante registrar que não só aspectos inerentes ao próprio PNC foram dificultadores do seu sucesso. Questões conjunturais de natureza política e econômica, como mudanças de governo e crises orçamentárias, representaram desafios quase intransponíveis para o atingimento de algumas metas, na medida em que minaram a força política que liderava o processo e secaram os recursos que tornavam o plano exequível. Nesse sentido, a ausência de estratégias mais bem resolvidas e viáveis de financiamento foi um dos defeitos capitais do PNC. Recursos previstos para a cultura historicamente (como o da loteria) ou no próprio arcabouço do plano (como o do pré-sal) continuaram indisponíveis, e aqueles que se pretendia aumentar (como os percentuais do PIB), ao contrário, foram drasticamente reduzidos. Em 2010, o orçamento federal previsto para a cultura foi de 3,66 bilhões de reais, com uma execução de apenas 39% desse total, ou 1,43 bilhão. O cenário ruim piorou ao longo da década. Em 2018, o orçamento federal foi de 2,22 bilhões e, embora a execução tenha sido um pouco maior, de 49%, não atingiu sequer o montante de 2010, ficando em 1,09 bilhão. Os anos de 2019 e 2020 viram a previsão orçamentária cair ainda mais, para 2,02 bilhões e 1,88 bilhão. A execução em 2019 voltou ao patamar de 39%, baixando o total de recursos federais aportados na cultura para 780 milhões de reais.10 Vê-se, pois, que o que ocorre é mais grave do que não aumentar os recursos para a cultura; é mais grave até do que, em lugar de aumentar, diminuir ano a ano os recursos federais destinados à cultura. O que acontece é que nem sequer os diminuídos recursos orçados são aplicados

na íntegra. O golpe em termos financeiros é triplo: o pequeno recurso não aumenta; o pequeno recurso diminui; o pequeno recurso diminuído é investido pela metade ou menos nas demandas culturais do país. Ao longo dessa década, não houve diversificação das fontes de recurso nem desburocratização aos meios públicos de financiamento. Apesar do papel estratégico na ocupação do tempo livre dos brasileiros, de atuar de forma não agressiva ao meio ambiente e de ser relevante gerador de trabalho e renda – com 6,2 milhões de trabalhadores no segundo trimestre de 2020 e mais de 147 mil empresas criativas em 2017, de acordo com o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural –, o setor cultural continuou tendo acesso a incentivos fiscais pífios quando comparados com os de setores que empregam e ocupam menos e que poluem muito mais, devido a uma visão equivocada de desenvolvimento econômico, que não traz benefício efetivo nem faz mais sentido no cenário da quarta revolução industrial. Também a falta de tradição nacional de realização de políticas de Estado, e não somente políticas de governo, foi um dificultador, já que mesmo a sucessão de governos similares e a alternância democrática não garantiram a manutenção de políticas de Estado, com raríssimas exceções. Prova disso é que o Ministério da Cultura, que era o responsável principal por promover as mobilizações e prover a estrutura e os meios para organização sistêmica do setor cultural, foi um dos primeiros alvos das forças políticas de oposição ao governo que impulsionou o PNC. A extinção provisória do MinC no


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governo que sucedeu o impeachment da presidente Dilma Rousseff foi revertida pela mobilização do setor cultural, porém viria a tornar-se definitiva, pelo menos até o momento, quando o governo conservador seguinte chegou ao poder, em janeiro de 2019. O campo cultural não teve força para resistir. Apesar de algumas ocupações e mobilizações, na prática não foi difícil dissolver tudo, o que demonstrou, de maneira triste, que não se pode esperar que a mobilização social resolva tudo. A política cultural requer um grau de institucionalidade com controle social que a proteja das instabilidades políticas. Tais fatores inviabilizaram a consolidação da cultura como política pública de papel relevante na agenda nacional, ainda que seja inegável que sua importância aumentou na última década. Apesar da fragilidade e do desmantelamento, mesmo hoje, estamos em outro momento, o que é sentido especialmente em alguns setores, como o de livro e leitura e o do audiovisual. Há também municípios com ações que foram muito mais bem estruturadas nesses últimos anos. Em que pese o cenário ser longe do ideal, o avanço da última década não pode ser desprezado. Ao contrário, é preciso aprender com aquilo que, apesar de tudo, resistiu, combinando escuta, mobilização social e ação local, nas cidades, para que o próximo PNC possa ter outra estratégia, outro engajamento, outro resultado. Mapa de contexto e tendências: oportunidades e ameaças Não há como falar em planejamento de política pública sem contextualização. O exame

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do PNC evidencia sua construção e parte da execução durante um período em que o governo federal deu centralidade à política cultural. O período entre 2000 e 2010 foi marcado pelo processo de ascensão dessa ideia, e ela perdurou na primeira metade do decênio seguinte. Com os governos Dilma Rousseff e Michel Temer, teve início o processo de gradual decadência da política de cultura, o que se acelera fortemente na gestão de Jair Bolsonaro. O momento atual é pontuado não só pelo declínio da centralidade política da cultura, mas também por um forte antagonismo com o setor cultural e artístico. A concomitância desse acontecimento com as consequências de uma grave crise econômica, que corrobora e serve de pretexto para a perda de espaço do campo cultural, torna mais complicado o cenário. A extinção do Ministério da Cultura e a rotatividade de gestores à frente da Secretaria Especial de Cultura que foi criada para substituí-lo (e atravessou seis mudanças de titular só nos primeiros 14 meses de gestão) somam-se à ausência de mobilização em torno da conclusão e avaliação do PNC vigente e da formulação do próximo, configurando apenas alguns dos dilemas instalados. Por sua vez, proliferam discursos preconceituosos, críticas a artistas e medidas polêmicas, que vão da imposição de valores conservadores para o desenvolvimento de projetos culturais à redução ou eliminação de ações afirmativas, passando pela censura de conteúdos artísticos. A política cultural atual é ofensivamente dirigista e caminha na contramão do respeito à diversidade. Se não tem causado maior prejuízo, é por desorganização e baixo investimento. Muitos movimentos artísticos e

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culturais, para sobreviver, têm buscado arranjos de sustentabilidade longe do poder público. A mobilização social e política que deu origem ao PNC 2010-2020 desarticulou-se. Ao mesmo tempo, os avanços do período corroboram o potencial de realização e impacto da área, o que também é demonstrado pelos inúmeros estudos e pesquisas realizados nos últimos anos, ainda que estejam dispersos e não sejam utilizados pelo governo. Nessa perspectiva, a questão financeira é vital e preocupante. O orçamento para a cultura segue em queda nos últimos anos, mas, pior que isso, a execução orçamentária nunca atinge o patamar orçado na íntegra. Em muitos anos, nem sequer a metade dos recursos previstos para a cultura foi aplicada. É necessário garantir uma institucionalidade ao setor cultural que tenha lastro orçamentário e financeiro, com um marco regulatório que assegure sua execução integral. É preciso pensar novas formas de compor a questão econômica, respondendo primeiro às demandas setoriais mais graves, que se relacionam a segmentos que correm o risco de não continuar. Mais do que nunca, o enfoque em pequenos projetos pode ser uma saída viável. Considerando a gravidade da conjuntura, além dos aspectos já tratados, as maiores ameaças identificadas no cenário atual estão relacionadas a questões mais gerais, como o aumento da pobreza e da desigualdade decorrentes da crise econômica e política do país; o aumento do populismo e da retórica difamatória, que estigmatiza o campo cultural como elitista; a fissura social ocasionada pelo aprofundamento da polarização, dos atritos e conflitos entre conservadores e progressistas; e o crescimento

do conservadorismo religioso intolerante, associado ao acirramento de preconceitos diversos, como aqueles voltados para as religiões de matriz africana ou os manifestados contra imigrantes, como tem sido verificado com venezuelanos e haitianos, entre outros. Nesse caldo, a tendência ao desrespeito em todos os níveis se amplifica, a liberdade de expressão e o direito à privacidade são constantemente ameaçados, e a censura a pautas consideradas imorais, supostamente contrárias à família ou ao país, é retomada. Por outro lado, há também uma série de oportunidades que precisam ser reconhecidas e aproveitadas, a começar por reconhecer a importância dos movimentos sociais e que a mobilização social pode ser retomada, especialmente pelo fortalecimento de redes locais, regionais e temáticas, pela ampliação de uso de novas tecnologias e pelo crescimento da conscientização referente ao lugar de fala das periferias, onde também pode ser observado o surgimento de novos espaços culturais.11 O desafio é dar continuidade à inserção das periferias, tanto urbanas quanto rurais e regionais, e de grupos alijados do poder político-econômico nas políticas culturais, em termos tanto de usufruto quanto de participação decisória, indo além do que foi iniciado na década passada, quando uma tônica foi a democratização do acesso. Conquanto continue primordial, o acesso já não é suficiente. Muitas pessoas querem fazer parte, tanto nos setores progressistas quanto nos conservadores, das esferas decisórias. A questão da participação surge como tendência em todos os aspectos: social, econômico, político, tecnológico, legal e ecológico. O novo planejamento cultural deverá, necessariamente,


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ter a participação social como eixo matricial e o uso de ferramentas digitais para a democratização do acesso, da produção cultural e da participação decisória como uma das estratégias centrais. Nessa direção, é essencial estimular o diálogo entre interlocutores variados, como universidades, coletivos e organizações da sociedade civil, e intensificar a construção de pontes, intercâmbios e trocas interculturais, no sentido da valorização da diversidade e na contramão das polarizações, bem como fomentar a aproximação das demandas locais com pautas transversais agregadoras, como a questão ambiental, a saúde mental e as metas do milênio. Há que se levar em conta também o questionamento aos conceitos do imediatismo e do isolamento que pontua as sociedades contemporâneas – características que o avanço da pandemia de coronavírus alçou a um patamar dramático de necessária ressignificação. Da mesma forma como a arte e a cultura desempenham papéis estratégicos, por vezes antagônicos, em momentos de mudança de paradigma como parece ser o atual, as políticas artísticas e culturais precisam acompanhar e participar proativamente da busca de novos caminhos. A proteção da história, da memória e do patrimônio cultural não deve aparecer apenas como preservação do passado, mas como uma necessidade absoluta da civilização e do convívio presente, sustentável, tanto quanto o acesso a diferentes repertórios e a meios de criação. As políticas de arte e cultura podem protagonizar o esforço pela construção de uma nova temporalidade das relações, que não se paute pelo consumismo, imediatismo, superficialidade e descartabilidade, numa concepção de

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fruição que contempla muito mais do que entretenimento e passatempo. Por sua vez, é necessário conseguir avançar na construção de sistemas baseados em evidências, que promovam a mensuração de impactos e evidenciem os valores envolvidos nos processos e os ganhos sociais e econômicos, ainda que seja necessário construir métricas diferentes das convencionais. Da mesma maneira, mais do que nunca o financiamento privado para a arte e a cultura precisa ser considerado em novas perspectivas, a começar da potencialização das iniciativas de financiamento coletivo. E as transformações tecnológicas que a economia contemporânea tem sofrido e que têm levado ao surgimento de novas concentrações e monopólios precisam ser objeto de atenção regulatória também no campo cultural, com atuação estatal em defesa da qualificação e atualização tecnológica de profissionais para o novo contexto produtivo. Esse movimento é determinante do sucesso econômico do campo cultural e da expansão dos impactos sociais positivos, internos e internacionais, pela alavancagem do softpower brasileiro, entretanto não haverá avanço se o setor cultural não se organizar e promover as devidas medidas de advocacy. Por fim, é justamente quando a cultura e a arte se tornam indesejadas por tantos que fica mais evidente a falta que fazem para cada um e mais fundamental cada esforço de formação e de ampliação de repertório. A redução do vasto patrimônio cultural da humanidade ao estreito conjunto de valores de um grupo, seja ele qual for, é sempre negadora da história, limitadora de potenciais e desumanizadora. O crescimento do número de escolas em tempo integral, o surgimento de novas

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formas de distribuição da literatura e da produção cultural, o desenvolvimento de novos recursos de acessibilidade e as perspectivas crescentes, graças às novas tecnologias, de interação mais individual com essa produção cultural (interação criadora, contemplativa e transformadora) apresentam possibilidades de estabelecimento de novos canais de comunicação com os diversos públicos, de criação de vínculo e de valorização da arte e da cultura, aspectos que precisam ser mais bem compreendidos e experimentados. Tudo isso sinaliza o imperativo de refundar a política cultural brasileira, por meio da concertação de novos acordos sociais, a partir dos quais os planos e projetos de políticas públicas devem emergir. Um dos maiores desafios nesse sentido é garantir a elaboração de um planejamento que seja efetivamente mandatório às gestões que sucedem sua criação. Há que se pensar numa propositura mais simples, objetiva e sensibilizadora dos diversos atores sociais, lidando com a diversidade cultural brasileira em toda a sua extensão, o que envolve não só o próprio pessoal do setor cultural, mas também a sociedade de maneira geral, incluindo as parcelas expressivas de setores conservadores que ganharam visibilidade especialmente a partir de 2016. Exemplo disso, o crescimento do número de evangélicos entre os jovens aponta a importância de estabelecer um novo diálogo. Também é necessário garantir que esse planejamento consistente e participativo se transforme em um plano vivo e real, com execução técnica e orçamentária acompanhada, monitorada e avaliada como efetiva política pública de Estado, ultrapassando os limites de gestões de órgãos públicos com continuidade e estabilidade.

Aqui, o desafio é enfrentar a tendência a tentar contemplar todas as pautas e todas as vozes individualmente, o que é inviável na esfera das políticas públicas – incapazes de dar conta de todas as demandas específicas simultaneamente – e acaba acirrando as tensões. Sem de modo algum ignorar as desigualdades de condições e oportunidades, as políticas culturais precisam contrapor o discurso ufanista de uma só identidade nacional a uma proposta que não reforce a ruptura e a fragmentação. Eis a questão que se coloca, pois: é possível ter um plano nacional de cultura que, de fato, seja um plano de cultura capaz de ser abraçado pela grande maioria das pessoas do país? Prioridades para um novo PNC O PNC 2010-2020 pode ser lido sob uma considerável gama de seus defeitos e irrealizações. Essa, porém, não deve ser a única nem a principal leitura. Primeiro, porque não será justa, já que houve méritos e avanços resultantes tanto do processo de feitura quanto da própria execução do primeiro Plano Nacional de Cultura do Brasil. Além disso, é preciso romper com a tradição de sempre começar do zero, ignorando os aprendizados possíveis tanto dos erros quanto dos acertos do período anterior. Fazer política pública de Estado e de sociedade passa pela construção da continuidade, da correção, do aprimoramento. Aprender com os equívocos do PNC 2010-2020 passa por reconhecer a necessidade de um planejamento mais focado e unificador, mais conciso e mais exequível. Um planejamento que seja participativo tanto na concepção quanto no monitoramento e avaliação e que envolva mecanismos garantidores


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do orçamento e da continuidade de execução, para além das gestões políticas periódicas. No qual o compromisso de transparência e visibilidade seja pressuposto, garantindo a divulgação de processos, resultados e impactos periodicamente. Aproveitar os acertos do PNC 2010-2020 requer consolidar a avaliação coletiva e oficialmente. O quadro de avaliação das 53 metas do PNC apresentado neste artigo se move nessa direção, mas é fundamental que os dados sejam validados pelos agentes competentes, para permitir uma visão compartilhada acerca dos ganhos e das limitações dessa empreitada, viabilizando, consequentemente, um horizonte mais visível de onde estamos e de para onde é preciso rumar. Numa reflexão que é também um manifesto, o entendimento aqui defendido é de que é possível e necessária a elaboração amplamente participativa do novo Plano Nacional de Cultura, de maneira organizada, objetiva e capaz de promover um acordo nacional que valorize as dimensões simbólica, cidadã e econômica do fazer artístico e cultural em favor do povo e do país. Nessa direção, o exercício proposto nesta publicação traz uma última contribuição, na forma de uma reorganização de prioridades – mais que tudo, uma provocação final para a continuidade do debate. Considerando os 16 objetivos presentes na Lei no 12.343/2010, que instituiu o Plano Nacional de Cultura, e analisando o cenário atual e os desafios que se impõem hoje para a próxima década, foram definidos quatro objetivos prioritários, a ser foco do PNC 2021-2030:

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• objetivo I – reconhecer e valorizar a diversidade cultural, étnica e regional brasileira; • objetivo VI – estimular a presença da arte e da cultura no ambiente educacional; • objetivo IX – desenvolver a economia da cultura, o mercado interno, o consumo cultural e a exportação de bens, serviços e conteúdos culturais; • objetivo XIV – consolidar processos de consulta e participação da sociedade na formulação das políticas culturais (bem como fortalecer a institucionalidade da cultura). Na intenção de evitar reproduzir novo excesso de ações e consequente ausência de foco, buscou-se elaborar um rol sucinto e viabilizável de metas. Assim, se o grupo reunido pelo OIC fosse instado à responsabilidade de elaborar o Plano Nacional de Cultura 2021-2030, essa carta náutica teria 4 grandes objetivos centrais e as seguintes 20 metas, a ser detalhadas em prazos, quantidades e impactos pretendidos, para tornar mais preciso e fácil o seu acompanhamento, eventuais revisões e ajustes e sua avaliação.12 I – Reconhecer e valorizar a diversidade cultural, étnica e regional brasileira 1. Realizar e divulgar, por meio de uma plataforma digital pública, com curadoria de especialistas e gestores da informação, um mapeamento do setor artístico e cultural brasileiro, identificando: manifestações

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culturais; linguagens artísticas; artistas; agentes culturais (trabalhadores remunerados e não remunerados, tais como realizadores, produtores e gestores); espaços culturais; organizações públicas e privadas formalizadas; movimentos e coletivos informais; patrimônio imaterial. 2. Aumentar os recursos públicos federais para a cultura, garantir a destinação de percentual legal da loteria e promover transferências regulares para os fundos estaduais e municipais de cultura de entes federativos que atuem no reconhecimento e valorização de suas produções artísticas e culturais. 3. Promover editais de fomento: a) à produção artística e cultural e à universalização do acesso aos bens artísticos e culturais, assegurando a participação de projetos de base comunitária e a diversidade de selecionados; b) a estudos e pesquisas relacionados à diversidade cultural brasileira, que viabilizem conexões e autorias compartilhadas entre instituições de ensino e pesquisa e grupos culturais detentores de saberes não formais; e c) a festivais regionais e nacionais de diversidade cultural. 4. Estimular a criação de programas e campanhas de divulgação e valorização da diversidade cultural nos diversos meios de comunicação. 5. Desenvolver o Plano Nacional de Preservação do Patrimônio Cultural, que promova reconhecimento e registro de saberes, conhecimentos

e expressões tradicionais e assegure o acesso público e os direitos de seus detentores. II – Estimular a presença da arte e da cultura no ambiente educacional 6. Implantar a disciplina de arte no currículo escolar regular com ênfase em cultura brasileira, linguagens artísticas e patrimônio cultural em 100% das escolas de educação básica no país. 7. Proporcionar aperfeiçoamento profissional aos professores de arte na educação básica das escolas públicas e produzir material pedagógico relacionado a temáticas artísticas e de diversidade cultural, com ênfase na ampliação do conhecimento a respeito das culturas indígenas, africanas e demais formadoras do país em cada região. 8. Oferecer atividades de arte e cultura no contraturno escolar em 100% das escolas públicas de educação básica e fomentar programas que viabilizem a presença mais frequente de estudantes da educação básica e superior em espetáculos artísticos e visitas a equipamentos culturais. 9. Ampliar a oferta de cursos de mestres de saberes tradicionais em universidades. III – Desenvolver a economia da cultura, o mercado interno, o consumo cultural e a exportação de bens, serviços e conteúdos culturais


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10. Mapear as cadeias produtivas de todos os segmentos da economia criativa, promovendo a mensuração do valor e do impacto socioeconômico das atividades de arte e cultura e o cálculo do retorno social derivado do investimento em políticas públicas culturais. 11. Desenvolver projetos de apoio à sustentabilidade econômica da produção cultural local que criem empregos formais no setor cultural e que qualifiquem e profissionalizem agentes e gestores culturais no setor público e no setor privado. 12. Estimular a diversificação dos mecanismos de financiamento para a cultura (por meio de orçamentos governamentais; renúncia fiscal atualizada e ampliada; incremento dos fundos públicos e incentivo ao estabelecimento de fundos privados; incentivo a doações e patrocínios de instituições e empresas públicas e privadas e ao financiamento facilitado, por parte de instituições bancárias e de crédito) e promover a coordenação entre os diversos agentes econômicos, visando elevar o total de recursos destinados ao setor cultural de forma descentralizada e atenta às suas especificidades. 13. Estruturar programas permanentes de divulgação e valorização da diversidade cultural brasileira no exterior, ampliando a presença e o intercâmbio da cultura nacional no mundo contemporâneo de maneira

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estratégica, sistemática e continuamente avaliada. IV – Consolidar processos de consulta e participação da sociedade na formulação das políticas culturais, bem como fortalecer a institucionalidade da cultura 14. Aprovar a lei do Sistema Nacional de Cultura (SNC) e consolidar sua efetiva implantação, articulando e integrando os demais sistemas estaduais e municipais de gestão cultural. 15. Realizar as Conferências Municipais e Estaduais de Cultura bienalmente e a Conferência Nacional de Cultura a cada quatro anos, mobilizando sociedade civil, gestores públicos e privados, organizações e instituições do setor e agentes artísticos e culturais. 16. Garantir a instalação regular dos colegiados e a elaboração dos planos de todos os setoriais do CNPC, bem como estimular a criação e atuação de conselhos paritários democraticamente constituídos nos demais entes federados. 17. Criar uma plataforma digital para consulta, acompanhamento e manifestações referentes ao PNC, que seja periodicamente atualizada para assegurar a transparência e visibilidade das ações e resultados e para facilitar o controle social. 18. Criar mecanismos de participação e representação das comunidades

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tradicionais, indígenas e quilombolas na elaboração, implementação, acompanhamento, avaliação e revisão das políticas de proteção e promoção das próprias culturas. 19. Estimular a ampliação da participação da sociedade civil organizada na realização das políticas culturais, por meio dos mecanismos legais disponíveis, como as leis de Pontos de Cultura, do MROSC e das organizações sociais. 20. Apoiar, por meio de recursos do Fundo Nacional de Cultura e outros, a implementação dos planos de cultura municipais e estaduais e dos planos setoriais das áreas de arquivo, artes visuais, artesanato, circo, culturas populares, culturas indígenas, culturas afro-brasileiras, dança, design, livro e leitura, moda, museus, música e teatro, bem como estimular a elaboração dos demais planos setoriais de arte e cultura. Emergências e desafios de um plano nacional de cultura em tempos de pandemia A terrível crise sanitária que mudou o curso de 2020 atingiu esta publicação quando caminhávamos para uma conclusão, trazendo uma longa, dura e imprevista interrupção. O exercício tinha sido realizado, a avaliação feita e as propostas elaboradas. Então, o mundo iniciou a travessia desse apocalíptico revés. Essa forçosa pausa trouxe mudanças expressivas para todo mundo, em todo o mundo. Não são poucos os que defendem o aflorar de um novo normal a partir dessa crise. Há quem se

refira à pandemia como um marco, sinalizando um antes e um depois do vírus. Existem expectativas positivas de que uma nova lucidez se dissemine entre as pessoas, renovando a consciência de que não podemos mais viver assim nem explorar o planeta assim. Despontam temores de retrocesso e acirramento de desigualdades, em face da crise econômica que é o primeiro mais certeiro legado de todo esse cenário emergencial, colado ao mal maior causado – a perda de incontáveis vidas. Todas essas possibilidades estão abertas e mudaram o caldo das reflexões e proposições que víamos pela frente quando começamos nossa jornada de produção desta publicação. Foi inevitável perguntar: toda essa formulação continua válida? Uma vez que fomos impelidos a um momento de radical repensar do presente e do futuro, coube refletir se o que imaginávamos para o novo Plano Nacional de Cultura se mantinha, se havia mudado e, nesse caso, em que consistiriam as possíveis mudanças. Por isso, os convidados presentes no encontro de março foram novamente provocados a contribuir e, por meio de contatos virtuais, realizados via e-mail ou videochamadas, sete dos nove participantes originais se posicionaram: Antônio Grassi, José Castilho Marques Neto, Leandro Valiati, Pablo Ortellado, Paula Gomes, Paulo Roberto Ferraz von Zuben e Vincent Carelli. O entendimento de que ainda faz sentido pensar na construção coletiva de um novo PNC é unânime. A verdade é que a pandemia e suas consequências apenas aprofundaram as observações e as recomendações formuladas. Cresceram a intensidade e a urgência dos problemas, todavia continuaram pertinentes as críticas e sugestões apresentadas, os objetivos e metas apontados.


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“Este momento de perdas em tantos âmbitos evidenciou ainda mais a importância da política pública cultural. Afinal, foi assistindo a filmes, lendo livros ou escutando o vizinho tocar uma música da janela que muita gente amenizou suas dores ou encontrou a forma de manter-se saudável, física e mentalmente, durante os dias tão difíceis de confinamento”, afirma Paula Gomes.

Paradoxalmente, a pandemia que fez a produção cultural ser tão valorizada acentuou a crise de desvalorização do setor de arte e cultura. A crise imposta pela impossibilidade do exercício presencial das atividades culturais ao vivo, que afastou as pessoas dos espaços de convívio e fruição coletiva, lançou uma enorme quantidade de artistas e produtores numa situação de calamidade e quase penúria. As mesmas pessoas que consumiram avidamente arte e cultura pelos canais digitais demonstraram muito pouca sensibilidade ao drama do setor cultural, exacerbado quando o governo federal excluiu artistas e trabalhadores da cultura do auxílio emergencial para os trabalhadores brasileiros. Diferentemente do que aconteceu nos países mais desenvolvidos do mundo, o governo brasileiro tentou se eximir de qualquer apoio ao setor cultural. Enquanto a União Europeia aprovava um enorme pacote de auxílios públicos para o setor cultural, o Estado brasileiro rumava na contramão da defesa da importância cultural para o país, numa visão que prejudica tanto o desenvolvimento social quanto a economia. “Na história da economia mundial, momentos de grandes crises só foram superados com planejamento e atuação consistente do Estado. Os

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diversos níveis – municipal, estadual e federal – precisam de uma atuação mais intensa e coordenada nacionalmente, para que os esforços não se fragmentem e gerem mais perdas. A atuação forte e inteligente do Estado é decisiva nesses momentos. Por isso, a União Europeia aprovou um enorme pacote de auxílios públicos para o setor cultural.” Leandro Valiati

O novo golpe acabou reavivando a mobilização do setor cultural brasileiro. Os canais digitais testemunharam a movimentação da área em busca de socorro, numa rearticulação que ultrapassou as barreiras do isolamento e conseguiu acionar o Poder Legislativo, culminando na Lei no 14.017, de 29 de junho de 2020, conhecida como Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, em homenagem ao brilhante letrista, compositor e cronista brasileiro que relatou dificuldades financeiras agravadas pela pandemia e padeceu vítima de covid-19. A pandemia afetou a todos, mas apenas o setor cultural teve de correr atrás de uma lei de auxílio emergencial específica. O aumento do consumo cultural por meio dos canais digitais foi imenso, e nem assim o desprestígio da classe artística foi revertido ante o governo federal. Mesmo consumindo mais arte e cultura durante o isolamento, de modo geral, a grande maioria da sociedade permaneceu alheia aos destinos do setor de cultura e arte. Os acontecimentos de 2020 evidenciaram que, mais do que nunca, o Brasil precisa de um projeto nacional para o setor cultural, na forma de uma política cultural consistente e democraticamente construída. “O desafio acima de todos os outros envolve não apenas a cultura, mas toda a sociedade,

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que cada vez mais terá que decidir se segue pela via democrática ou se criará um Estado vassalo e subordinado, necessariamente autoritário, que exercerá um poder apenas aparentemente democrático. A essa encruzilhada política, que depende de muitos fatores, devemos ficar atentos e, sempre que possível, vigilantes, para não pensarmos que o setor cultural flutua acima do Brasil autoritário e excludente que está em marcha e que a sociedade civil precisa recusar.” José Castilho

Primeiro, porque as antigas necessidades se mantiveram e agravaram. Ficou mais evidente a urgência de uma atuação consistente e ampla, capaz de ir além das divisas do próprio setor cultural, sensibilizando a sociedade para o entendimento de que a política cultural do país se refere a todos em nosso território. Ela tem a ver com educação, saúde, segurança. Envolve o aprendizado e o exercício da cidadania, em direitos e deveres que passam pela expressão de diferenças, pela prática do respeito e pela construção de convívio democrático. Afeta campos simbólicos, sentimentos, emoções, tanto no plano individual quanto no coletivo, e certamente tem muito de entretenimento. Para que tudo isso seja possível, uma complexa rede de profissionais e instituições precisa ser mobilizada. É preciso que todos entendam que o que para muitos é pura diversão, experiência informal, ocupação do tempo livre e até aquela agradável companhia enquanto se faz outra coisa, para outros muitos, é vocação e trabalho árduo. Não se trata de pretender favorecimento em relação aos demais setores produtivos, mas de ser considerado como um. Sobretudo, trata-se de não ser prejudicado por preconceito e pela ausência de aceitação

do setor como cadeia produtiva. É preciso inserir a pauta das políticas culturais no mesmo rol de defesa e fortalecimento dos demais polos geradores de emprego e renda, o que requer o conhecimento e reconhecimento da importância da arte e da cultura como vetores estratégicos de desenvolvimento social e econômico. “Minha maior lição na área cultural foi a de que não se pode disputar com a área de segurança, educação, saúde. Será sempre mais importante construir um hospital do que um teatro. Nesse grau de disputa, perdemos. Por isso, mais importante do que ter uma secretaria de Cultura dedicada é ter uma área de cultura em cada secretaria, para que a importância da cultura seja observada em cada campo e possa ser pensada de maneira mais transversal.” Antônio Grassi

A conjuntura adversa demonstrou ainda que essa construção precisa ser não só coletiva, mas plural, mais plural do que antes, na perspectiva de ir além da mobilização corporativa do próprio setor cultural e do setor político. A participação coletiva na construção do PNC foi decisiva para dar voz a muitos agentes culturais excluídos da formulação das políticas públicas para a cultura no país, e essa conquista histórica não pode ser perdida. Entretanto, é essencial que a construção do plano de cultura do Brasil se volte para a sociedade brasileira, mais do que para a área cultural nacional. “É essencial compreender que o objetivo principal de uma política cultural mais abrangente não deve ser os fazedores de


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cultura, os artistas, mas sim a sociedade. E também é quase impossível se a sociedade não abraçar esse entendimento, se não reconhecer a necessidade do setor cultural. Muitas vezes ficamos fechados na nossa própria ‘bolha’, até na própria linguagem com que a gente trabalha. Nosso grande desafio continua sendo descobrir como trazer a causa da cultura para o interesse das pessoas. Entre outras coisas, precisamos de uma linguagem mais direta, acessível sem desmerecer a inteligência de ninguém, voltada para quem está fora da nossa ‘bolha’. Lembrando Gilberto Gil: o povo sabe o que quer, mas também quer o que não sabe.” Antônio Grassi

Além disso, a multiplicidade de vozes envolvidas não pode acarretar a construção de um documento complicado demais. Esse plano precisa ser simples, efetivamente estratégico e popular, nos sentidos mais amplos do termo, tanto de pertencimento geral quanto de conhecimento generalizado. É preciso indicadores objetivos para metas viáveis, uma análise de risco e um cronograma bem construídos, além de clara definição de papéis e responsabilidades, para que a realização desses objetivos possa ser alcançada. “É fundamental que se leve em conta que a discussão do PNC precisa ser conduzida com os entes federativos, com a participação do Legislativo e da sociedade, para que a cultura possa ser um eixo central na elaboração das políticas públicas. Para isso acontecer, é necessário um mapeamento extensivo do nosso ecossistema, uma análise confiável do impacto financeiro do nosso setor na economia e, principalmente, o cálculo estimado do

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impacto social que a cultura tem na vida das pessoas.” Paulo Zuben

A pandemia deixou mais exposto o abismo de desigualdade social no Brasil, manifesto também na diferença gigantesca em termos de acesso e capacitação para o uso adequado das ferramentas tecnológicas de informação e cultura, tanto no cenário macrossocial quanto no campo especificamente cultural. O isolamento foi imposto a todos, mas alguns não puderam ficar em casa ou tiveram de retornar mais cedo ao trabalho, quando ainda não era seguro. Na ausência de espaços de convívio social, as tecnologias de informação e comunicação eram a alternativa que permitiu a continuidade do trabalho, do estudo, do lazer e da fruição cultural para milhões de pessoas. Não para todos. Não para a maioria. Ao mesmo tempo que cresceram vertiginosamente a venda e o uso de ferramentas e plataformas digitais, muita gente ficou de fora da única interação social possível no momento, a virtual, justamente pela ausência de equipamentos, conhecimentos e acesso à internet. “Apesar do desastre humanitário provocado pelo vírus, o Brasil que temos ainda é o mesmo de antes. As carências estruturais que temos ainda são as mesmas, as consciências das elites mandantes são as mesmas, o desprezo generalizado dos governos à cultura e à educação é o mesmo. Há uma situação geral do setor cultural neste ‘mundo real’, que é a situação da absoluta maioria dos brasileiros, que vive em condições de penúria econômica, impossibilitada da maior parte dos direitos de cidadania. O cenário

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pandêmico aprofundou e desnudou, ainda mais, o que já era dado.” José Castilho

A questão digital foi simultaneamente um ganho inesperado e a confirmação de uma infeliz tradição. De um lado, demonstrou que o trabalho remoto, a educação a distância, a comunicação para os mais diversos fins e mesmo a fruição cultural podem ter muito mais possibilidades, vantagens e adeptos do que se imaginava. De outro, exibiu a duplicação da desigualdade que historicamente assola o país do mundo real para os meios virtuais. A covid-19 não causou a exclusão digital, apenas revelou o tamanho do problema e os prejuízos enormes que ele causa, como um ano letivo praticamente perdido para a rede pública de ensino do país. No âmbito cultural, apontou a dificuldade de um sem-número de artistas, coletivos e instituições que, de um dia para o outro, praticamente ficaram sem público e sem condições de sobrevivência e que não faziam ideia de como utilizar as novas janelas, ou não tinham a mínima condição de fazê-lo. “Ensaiamos uma nova era, em que o mundo virtual ocupará um espaço cada vez maior na informação e comunicação, reconfigurando a educação e a produção e difusão da cultura. Assim como a pandemia revelou a necessidade de uma renda mínima para a população sem renda, a marginalização dos milhões de jovens estudantes das populações mais fragilizadas que não têm internet em casa clama pela universalização desse acesso.” Vincent Carelli

A superação das desigualdades virtuais pela garantia de acesso qualificado à internet e pela

capacitação para o uso das novas tecnologias despontou como uma das principais tarefas do setor cultural pós-pandemia. É um desafio duplo, que envolve a democratização dos bens digitais no âmbito do próprio setor cultural e da sociedade em geral, para garantir tanto aos fazedores quanto aos públicos culturais o ingresso e a participação nesse universo novo. A área cultural agora precisa lidar mais atentamente com as questões de acesso à internet, qualificação para o uso dos recursos tecnológicos, suporte técnico para criação e compartilhamento de conteúdo, apropriação de novas linguagens e formatos para produção e distribuição de conteúdo, construção de meios de monetização de seus produtos, compreensão das demandas e hábitos desse novo público, que poderá ter contato com aquela criação tanto no momento de sua exibição como, a depender dos formatos desenvolvidos, no dia seguinte ou muito tempo depois. Tudo isso sem deixar de buscar responder a todas as demais necessidades que já faziam parte do universo presencial, físico, no qual se pretende continuar a atuar e a crescer. “A primeira lição da pandemia para o setor cultural é que não estávamos preparados para a mudança na maneira como as pessoas passaram a consumir cultura com o isolamento social. Não antecipamos a possibilidade de que a fruição presencial de arte e cultura poderia não ser possível e, por isso, poucas foram as instituições que estavam realmente preparadas para migrar para o mundo virtual de maneira consistente. Por outro lado, isso trouxe para todos uma perspectiva positiva de que podemos alcançar um público muito maior, mas, para isso


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acontecer de maneira efetiva, vai ser necessário repensar o formato, o conteúdo e o tempo que as pessoas terão para consumir cultura no futuro.” Paulo Zuben

A tentativa de realização de conferências populares de cultura ainda no cenário pandêmico de 2020, entre diversos outros eventos relacionados às políticas culturais, demonstra que o setor começa a se apropriar dessa possibilidade como uma alternativa concreta para encurtar fronteiras, evitar grandes deslocamentos (e os respectivos gastos) e promover novas ações conjuntas. A elaboração do PNC 2021-2030 poderá se beneficiar muito desse aprendizado, desde que se observe a necessidade de novas estratégias de aproximação e diálogo, que permitam a escuta da diversidade de vozes, o estabelecimento de pontes entre realidades bem diferentes, o intercâmbio de experiências e a construção coletiva de propostas e de um consenso. “A gente tem um desafio grande nesse contexto pós-pandemia, que é, por um lado, neste país onde o abismo social só aumentou, assegurar que as diferentes vozes estejam contempladas nesse pensamento por uma política cultural. E, por outro lado, entender como democratizar o acesso a essa produção cultural tão diversa para que ela de fato circule, chegando aos públicos dos seus territórios, mas também cruzando as fronteiras para além deles.” Paula Gomes

Nessa direção, também cabe propor outras formas de fomento à participação, para além dos mecanismos legais previstos, como as conferências e os conselhos, por vezes

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marcados por dinâmicas partidarizadas. Sem ignorar o legado dessas práticas, internacionalmente reconhecidas, é fácil perceber que elas tendem a ter mais sucesso quando existe alinhamento entre os entes governamentais e os representantes da sociedade civil. Em tempos de desacordo, é comum ver as instâncias participativas ser esvaziadas ou sofrer intervenções controversas. O desgaste desses períodos tende a ser maior do que os avanços. Essa reflexão é necessária para que se avaliem as reais possibilidades de consolidação das políticas públicas a partir de mecanismos de participação social, seja para fortalecê-los de maneira a evitar partidarizações e desaparelhamentos, seja para rever a estratégia de ação, utilizando, por exemplo, conselhos compostos por meio de sorteio. “Será que podemos começar a experimentar no Brasil formas de participação como os modelos de democracia deliberativa baseados em conselhos compostos por meio de sorteio? Experiências internacionais têm mostrado que formas de participação na qual representantes são sorteados entre os membros da comunidade favorecem a indicação de pessoas comuns, em vez de lideranças políticas, levando a processos deliberativos menos conflitivos. Isso poderia favorecer a aceitação das políticas públicas que venham a ser deliberadas por forças político-partidárias mais amplas, colaborando para que se consolidem como ações de Estado, e não de governo.” Pablo Ortellado

De fato, é urgente pensar novos formatos de relacionamento, participação, produção e fruição de arte e cultura, considerando o

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legado do PNC e o aprendizado deste doloroso 2020, para que suas lições não persistam como ameaça de novas tragédias. As oportunidades e desafios mais evidentes envolvem as novas janelas digitais e uma aproximação maior com a educação e a saúde. A histórica questão do financiamento igualmente se recoloca com ênfase, reforçando a importância de aprovação de leis estaduais e municipais de fomento regular, que beneficiem editais das diversas linguagens artísticas e culturas populares, além de um trabalho permanente de pesquisa e divulgação relacionado à economia da cultura. A inovação também precisa ser experimentada, para gerar mais equidade em termos de financiamento e acesso ao mercado, de maneira que mais agentes tenham capacidade de ser sustentáveis economicamente, mesmo que seja por meio de auxílios públicos, o que é legítimo para as artes e é o que acontece em vários lugares do mundo. Não podemos depender apenas de leis de incentivo, sobretudo considerando a assustadora crise econômica que se avizinha na sombra da pandemia. “Precisamos gerar mais equidade nos mercados culturais brasileiros. Só sobreviveu na pandemia quem tinha algum poder de mercado, quem teve capacidade de ser sustentável economicamente. O setor cultural brasileiro é muito frágil estruturalmente, em termos de financiamento e de acesso ao mercado. Nosso modelo de financiamento público com base na oferta final, de ‘produtos na vitrine’, como no caso da Lei Rouanet, simplesmente é um modelo que faliu. O PNC precisa dedicar grande atenção a novos mecanismos de financiamento, que criem induções. O modelo

britânico do Arts Council, que conta com recursos da loteria, e as leis da França e da Inglaterra, que permitem que as instituições possam receber recursos ininterruptos por alguns anos, entre outras referências internacionais, poderiam servir de inspiração para o modelo brasileiro.” Leandro Valiati

Mesmo a Lei Aldir Blanc (LAB), talvez a maior mobilização do setor cultural na história do país, tão importante para assegurar direitos e evitar uma catástrofe ainda maior do setor cultural brasileiro em 2020, não é política indutora, simplesmente compensa grandes perdas do setor. Ela nos permitiu lidar com um dos grandes desafios da pandemia e fator de constante risco do setor: a necessidade de proteção do trabalhador informal, num contexto em que a transferência de renda simultaneamente combateu a pobreza e apoiou os rendimentos do trabalho informal. Para ir além de medidas sempre mitigadoras ou compensatórias e iniciar um ciclo de desenvolvimento continuado, no entanto, é necessário transformar essa experiência pontual imprescindível, advinda de um contexto dramático, numa conquista estruturante, de implementação de um mecanismo de proteção permanente. Mas algo tão impactante não será conseguido sem que uma extraordinária mobilização seja mantida. Por isso, e porque não há como iniciar uma nova e massiva luta a cada pauta, é decisivo que a mobilização que deu origem à Lei Aldir Blanc avance para uma construção mais estruturante. A convergência dos mecanismos de transferência de recursos dessa lei com os componentes do Sistema Nacional


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de Cultura já serviu para impulsionar a retomada da discussão de sistemas de cultura em diversos entes federados. A regulamentação do SNC voltou à pauta do Congresso Nacional, e a Presidência da República se manifestou em outubro de 2020 num despacho ao Congresso solicitando a prorrogação da vigência da lei do PNC. Certamente a recente movimentação da área cultural teve influência nessas medidas. Por sua vez, todo o processo de construção da LAB, usando as redes sociais, os encontros virtuais e acionando fortemente o Poder Legislativo, foi uma injeção de ânimo e um vetor de unidade do setor e sinaliza um caminho promissor para a rearticulação em prol de um movimento forte de implantação do SNC, de construção do novo PNC e de novas reivindicações coletivas. “A Lei Aldir Blanc é a retomada de uma articulação do setor cultural com um socorro emergencial aos trabalhadores da cultura, e nos mostra também que a via do Legislativo é importante para impor ao governo compromissos, num momento em que instituições culturais são desarticuladas.” Vincent Carelli

Tal como no caso da LAB, o setor cultural precisa se articular na direção de um novo PNC e, mais que nunca, fazer isso em diálogo estreito com a sociedade, para que nossas muitas vozes possam se encontrar no compartilhamento de uma construção conjunta, na qual, como diria Paula Gomes, a partir da sabedoria ubuntu, “eu sou porque nós somos”; ou haverá uma política cultural ampla e capaz de abraçar toda a nossa diversidade ou não haverá política cultural. Não

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por acaso, Vincent Carelli chama a atenção para a responsabilidade que temos nessa nova era que ensaiamos viver, em que cabe a todos nós, como sociedade civil, propor e difundir o mundo que queremos. Mas como aproximar as pessoas que não atuam diretamente no setor cultural? Precisamos demonstrar que cultura é educação, observa Paulo Zuben. E apontar a cultura como direito e cidadania, para que possamos ter um novo PNC civicamente são e generosamente humano, ressalta José Castilho. Por sua vez, Leandro Valiati destaca que cultura gera bem-estar em distintos níveis, e o que a pandemia nos mostrou é que precisamos sofisticar o que nos gera bem-estar. Afinal, como bem lembra Antônio Grassi, a cultura é um bem de todos, não é só de quem a faz, e, por isso, sempre fará sentido pensar num PNC, mesmo sabendo que muitas vezes ainda estaremos longe de conseguir executá-lo plenamente. Todos concordamos com isso. Estamos dispostos a esse empenho de diálogo, elaboração e realização coletiva. Considerando que a leitora ou o leitor que chegou até aqui também esteja, vale a pena terminar esta reflexão com uma provocação de Pablo Ortellado ao próprio setor cultural: o que podemos fazer para ampliar a legitimidade das atividades culturais que estão sendo tão atacadas por algumas forças políticas? Que possamos juntos responder a essa questão nos próximos encontros de construção do Plano Nacional de Cultura. Finalizando: por um novo PNC Os resultados aqui sintetizados não têm a pretensão de relatar cada atividade feita e

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conclusão apontada ou de externar com exatidão as vozes presentes, seja no encontro promovido ou na consulta em face da pandemia, mas, sim, de apresentar, a partir do diálogo estabelecido, o consenso que foi possível construir nesse experimento de dedicação de alguns profissionais do campo cultural. Foi um pequeno exercício de uma tarefa bastante ambiciosa e complexa, dessas que em geral constituem somas em que há perdas e transformações; acordos formados em cima de divergências e, não raro, conflitos. Numa escala infinitamente menor, essa formulação compreende – tanto para seus participantes como, e principalmente, para seus leitores – o mesmo desafio de um PNC: é preciso muita abertura, diálogo, compreensão de limites, interação e disposição para criar pertencimento e compromisso de realizar. Eis uma lição a mais a ser considerada para a elaboração do próximo Plano Nacional de Cultura, que nos leva a observar nossos próprios limites – não só de tempo e quantidade de pessoas, mas mesmo de diversidade. Apesar das inúmeras diferenças de lugares de origem e atuação, o grupo que deu origem às formulações aqui expostas era todo oriundo do campo cultural. Essa discussão precisa chegar àqueles que ignoram sua existência e importância. Atividades assim mostram a riqueza e a complexidade do trabalho coletivo. Os artigos internacionais que completam esta publicação indicam várias maneiras de compor o planejamento pretendido: com participação popular em reuniões e conferências, com participação popular virtual, com comitês de gestores públicos, com comitês de acadêmicos e especialistas, com a mistura, em diferentes

graus, de todas essas possibilidades e outras mais. O desafio está em promover uma construção que aproveite a contribuição da diversidade, que mobilize e permita a expressão de todos os interessados de maneira estruturada e produtiva, que não se pretenda exaustiva, resolvedora das complexidades do setor e da sociedade, mas viável, consensual, significativa, e dotada de afinidade com os diversos públicos. Que posicione a cultura nas pautas estratégicas com centralidade, com institucionalidades adequadas e sustentáveis, com envolvimento público na gestão e na viabilização, avaliações que façam sentido e mais fruição e repertório. Foi essa a conclusão possível antes que um novo personagem entrasse na história. Então nos perguntamos: será que o resultado apresentado aqui seria igual se tivesse sido produzido após a pandemia de coronavírus? A pergunta agora é: de que tipo de Plano Nacional de Cultura o Brasil necessita para esse novo cenário que ainda não descobrimos qual é? Este registro conclui um trabalho que talvez seja muito transformado, em direções que ainda não há como precisar de dentro do furacão de onde escrevo. Um novo encontro e novos diálogos serão necessários até que possamos apresentar uma conclusão mais adequada ao novo (desconhecido?) compasso em que gira a roda da história. Todavia, a velha convicção que se mantém foi testada muitas vezes durante esse complexo cenário: teremos mais chance de superar bem a crise se alinharmos planejamento construído junto, engajamento dos agentes do setor, ampla participação social e a atuação consistente de um poder público ciente de suas responsabilidades.


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Claudinéli Moreira Ramos Historiadora, mestre em filosofia da educação e doutoranda em informação e cultura pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP). Foi coordenadora das unidades de museus e de monitoramento e avaliação da Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo e atualmente é consultora da Unesco e professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP).

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EMERGÊNCIAS E DESAFIOS PARA UM NOVO PNC

Claudinéli Moreira Ramos

MINISTÉRIO DA CULTURA. As metas do Plano Nacional de Cultura. 3. ed. Brasília/DF: out. 2013. MINISTÉRIO DA CULTURA. Guia de orientações para os estados – Sistema Nacional de Cultura – perguntas e respostas. Brasília/DF: dez. 2011. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Política Nacional de Cultura. Brasília/ DF: MEC, 1975. Disponível em: http://rubi.casaruibarbosa.gov.br/ bitstream/20.500.11997/7834/1/753%20Politica%20nacional%20de%20 ultura%201975.pdf. MOREIRA-RAMOS, C. Emergência cultural e Sistema Nacional de Cultura ou emergência cultural do Sistema Nacional de Cultura? São Paulo: Cultura e Mercado, 21 set. 2020. (Texto elaborado originalmente para o curso EAD Lei Aldir Blanc, promovido pelo Observatório Itaú Cultural entre 24 de agosto e 4 de setembro de 2020). Disponível em: https://www.culturaemercado.com.br/site/ emergencia-cultural-e-sistema-nacional-de-cultura-ou-emergencia-culturalsistema-nacional-de-cultura/. OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL. 10 anos de economia da cultura no Brasil e os impactos da covid-19: um relatório a partir do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural (out. 2020). São Paulo: Itaú Cultural, 2020. Portais consultados http://pnc.cultura.gov.br/ http://portalsnc.cultura.gov.br/ http://oca.ancine.gov.br/ http://prolivro.org.br/5a-edicao-de-retratos-da-leitura-no-brasil-2/a-pesquisa-5a-edicao/

Notas 1

AZEVEDO, Sônia Cristina Santos de. Ditadura militar brasileira e Política Nacional de Cultura (PNC): algumas reflexões acerca das políticas culturais. Revista Brasileira de Sociologia, v. 4, n. 7, p. 317-339, jan.-jun. 2016.

2

FERNANDES, Natalia Ap. Morato. A política cultural à época da ditadura militar. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar. São Carlos, v. 3, n. 1, p. 173-192, jan.-jun. 2013.

3

Mais informações sobre leis de sistemas de cultura podem ser obtidas em: http:// portalsnc.cultura.gov.br/legislacoes/.

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Idealizado como uma plataforma de coleta e sistematização de dados, o Sistema Nacional de Informações e Indicadores Culturais passou por diferentes concepções de desenvolvimento. A que mais prosperou, chegando aos dias atuais, perfaz um mapeamento autodeclaratório de agentes culturais diversos, com deficiências conceituais, metodológicas e informacionais que, apesar de valiosos esforços coordenados pelo MinC até 2016, não lograram ser resolvidas. Contrariando o que seus idealizadores pretendiam, hoje o SNIIC é uma base desatualizada, não raro com páginas fora do ar, com duplicidade de informações ou graves lacunas, sem checagem e sem validação das informações disponíveis e praticamente inútil para aferição de quaisquer indicadores. Apenas a título de exemplo, em consulta feita ao endereço http://mapas.cultura.gov.br – atual repositório do SNIIC – em 23 de outubro de 2020, foram localizados 88.591 agentes (entre individuais e coletivos), 21.415 espaços culturais (incluindo 2.232 “espaços sem localização”) e 3.013 projetos na plataforma. Se considerarmos apenas o número de participantes pessoa física da III CNC, estimado em 450 mil, segundo o Ministério da Cultura, vemos que até mesmo os agentes que contribuíram ativamente para a construção do Plano Nacional de Cultura estão, em sua maioria, ausentes do SNIIC. Mas, se quisermos uma abordagem com dados mais contemporâneos, basta dizer que a própria Secretaria Especial de Cultura do Ministério de Turismo, que mantém a plataforma, não defendeu sua utilização para o cadastramento para repasse dos recursos previstos na Lei Aldir Blanc.

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Os relatórios de acompanhamento das metas de 2013 a 2017, publicados entre maio de 2014 e dezembro de 2018, pelo Ministério da Cultura, e o relatório sobre 2018, datado de dezembro de 2019 e publicado on-line em fevereiro de 2020, estão disponíveis em: http://pnc.cultura.gov.br/biblioteca-de-documentos/. O relatório sobre 2012, publicado no início de 2013, não está disponível on-line.

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Esse trabalho resultou numa consulta pública disponibilizada pela plataforma virtual http://pnc.culturadigital.br/revisaodasmetas entre 1o de setembro de 2015 e 15 de fevereiro de 2016.

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MINISTÉRIO DA CULTURA; UFBA. Análise e avaliação qualitativa das metas e monitoramento do Plano Nacional de Cultura (PNC). Ministério da Cultura. Secretaria da Diversidade Cultural. Brasília/DF: Ministério da Cultura; Salvador: UFBA, 2018.

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O Ceará criou seu Sistema Estadual de Cultura (Siec) por lei em 2006. A política cultural do estado conta com conselho, plano, fundo e a plataforma Mapa Cultural, de mapeamento do cenário cultural cearense – todos em funcionamento. Vale dizer que a versão cearense da plataforma dos Mapas Culturais, software-base do Sistema Nacional de Informações e Indicadores desde 2015, é a mais desenvolvida e atualizada do país, tendo se tornado uma instalação de referência. Legislação disponível em: https://www.secult.ce.gov. br/legislacao-cultural/. A Bahia instituiu sua Lei Orgânica da Cultura em 2011,


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Claudinéli Moreira Ramos

criando o Sistema Estadual de Cultura, com conselho, fundo e sistema de indicadores culturais em funcionamento. O Conselho de Cultura da Bahia, criado em 1967, foi o primeiro do Brasil a realizar amplo processo eleitoral para a escolha dos representantes da sociedade civil, seguindo os parâmetros da Lei Orgânica, alinhados à política nacional de então. Legislação disponível em: http://www. cultura.ba.gov.br/modules/conteudo/conteudo.php?conteudo=78. 9

Sob gestão petista, Jacareí estabeleceu em 2012 a sua legislação cultural, com sistema, fundo, conselho e plano, esse último aprovado por lei em 2016. A atual gestão (PSDB) regulamentou em 2019 a lei do fundo, atualizou a lei do conselho e realizou uma série de pré-conferências, fóruns e conferências setoriais pautadas na revisão do Plano Municipal de Cultura. Na prática, a gestão peessedebista revisou e aprimorou iniciativas estruturantes idealizadas ou iniciadas pelas gestões petistas anteriores, dando continuidade à política pública de cultura como política de Estado, e não apenas de governo. Legislação disponível em: http://www.fundacaocultural.com.br/leis-culturais.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL. Financiamento público. In: 10 anos de economia da cultura no Brasil e os impactos da covid-19: um relatório a partir do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural (out. 2020). São Paulo: Itaú Cultural, 2020.

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Toda a movimentação pela Lei Aldir Blanc durante a pandemia de covid-19 confirmou essa afirmação feita em março de 2020 e reforça o entendimento aqui apresentado, ao mesmo tempo que expõe a necessidade de que as políticas públicas sejam direcionadas à superação das imensas desigualdades de acesso às tecnologias de informação e comunicação e à internet de qualidade.

12

Não é demais lembrar novamente que o registro apresentado é fruto de um exercício de um grupo pequeno em poucas horas. Ainda assim, é notável o alinhamento das conclusões percebidas com demandas prioritárias efetivas, numa clara demonstração do potencial de processos de produção coletiva para a construção de políticas públicas mais consistentes e factíveis.

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3.

PLANOS DE CULTURA: ANÁLISE COMPARADA DE CONTEXTOS INTERNACIONAIS

AMÉRICA LATINA E ESTADOS UNIDOS

106.

FABRICAR POLÍTICA CULTURAL NO CHILE: ENTRE A PARTICIPAÇÃO SETORIAL, OS SABERES DO ESTADO E A CIDADANIA CULTURAL Constanza Symmes Coll

120. PLANO NACIONAL

DE CULTURA NO URUGUAI, UM ASSUNTO INACABADO Hernán Cabrera

132. POLÍTICAS DE CULTURA

NO LONGO PRAZO: O CASO DO PLANO NACIONAL DE CULTURA DA COLÔMBIA Paula Félix dos Reis

144. DOS PLANOS NACIONAIS AOS INSTITUTOS SETORIAIS DE CULTURA NA ARGENTINA Rubens Bayardo

154. O PLANEJAMENTO

CULTURAL NO MÉXICO DURANTE O GOVERNO DE ANDRÉS MANUEL LÓPEZ OBRADOR Eduardo Nivón Bolán

174.

POLÍTICA CULTURAL NOS ESTADOS UNIDOS José Carlos Durand


PLANOS DE CULTURA

EUROPA E ÁSIA

188. PLANO NACIONAL DAS ARTES: PARA TODOS E COM CADA UM Maria Vlachou

198.

A BELEZA QUE HÁ NA DIVERSIDADE: O QUE PODEMOS APREENDER DO CASO ALEMÃO? Suelen Silva

210.

UM PLANO BRITÂNICO PARA A CULTURA: UM APELO AO CORAÇÃO E À CABEÇA DA NAÇÃO Paul Heritage e Mariana Steffen

222. PLANOS NACIONAIS DE

CULTURA DOS PAÍSES DO BRICS: UMA POSSÍVEL ANÁLISE COMPARATIVA Bruno do Vale Novais

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FABRICAR POLÍTICA CULTURAL NO CHILE: ENTRE A PARTICIPAÇÃO SETORIAL, OS SABERES DO ESTADO E A CIDADANIA CULTURAL Constanza Symmes Coll

O presente artigo oferece uma revisão analítica do processo de elaboração da Política Nacional de Cultura 2017-2022 no Chile, a partir da perspectiva dos modos de construção utilizados. Aborda a questão de uma especificidade nas formas e nos mecanismos participativos do setor cultural. Também considera a influência do contexto político-histórico e, em particular, sua correspondência com a recente criação do Ministério da Cultura, Artes e Patrimônio (2017).

Introdução

S

em dúvida, nenhuma política pública começa do zero. Cada uma traz em si um longo horizonte de processos anteriores que vão consolidando aprendizagens, tanto institucionais quanto do mundo social e associativo. Nesse sentido, examinar uma política cultural implica entrar em um processo que engloba uma rede de atores, discursos, trocas complexas, produção de acordos e propostas que se encaixam nessa espécie de resultado final. Quadro político-institucional (1990-2017) Desde o retorno à democracia chilena, em 1990, vale mencionar a organização de duas comissões consultivas presidenciais em cultura. A Comissão Garretón1 (1991), cuja missão foi:

examinar a estrutura organizacional da vida cultural existente, fazer um inventário das instituições participantes e reorganizar seus aspectos normativos.2

E a Comissão Ivelic (1997), com a tarefa de atualizar os diagnósticos e estudos dos setores artístico e cultural, estudar as políticas de fomento às atividades artísticas e culturais, revisar as instituições culturais e propor uma estrutura organizacional de acordo com o desenvolvimento atual do país.3

Culmina com a apresentação do relatório Chile Está en Deuda con la Cultura [O Chile Está em Dívida com a Cultura], propondo a criação de uma instituição orgânica para o setor.


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Nesse mesmo ano, o artista visual e governo, e institucional, por coincidir com o dramaturgo Claudio Di Girólamo foi no- processo de criação de uma nova morfologia meado chefe da Divisão de Cultura, depen- institucional, sendo elaborada durante esse dência do Ministério da Educação. É uma trânsito de CNCA a ministério. entidade cujos resultados chamam atenção Correspondendo a um terceiro exercípelo desequilíbrio entre o tamanho de sua cio de política pública, esta tem como anteceequipe e a abrangência do trabalho desen- dentes dois ciclos anteriores de formulação e volvido: a Cartografia Cultural, um diretó- implementação, os documentos Chile Quiere rio completo dos criadores nacionais, que Más Cultura. Definiciones de Política Cultuconstituirá um banco de dados em primeira ral 2005-2010 [O Chile Quer Mais Cultura. mão para gerar políticas futuras. Ou a inau- Definições de Política Cultural 2005-2010], guração, em 1999, dos Cabildos Culturales4 o primeiro do período democrático, e Política [Conselhos Culturais], sob Cultural 2011-2016.9 o lema “Do Chile vivido ao Em 2003 foi criado o A atual carta de naveChile sonhado”, com o ob- Conselho Nacional de Cultura gação, apresentada publicajetivo de receber propos- e Artes, por meio da Lei no mente em janeiro de 2018, tas das bases de cidadania. 19.891, órgão que dirigiu, por foi aprovada por unanimiFinalmente, após essa 14 anos, a atividade cultural dade pelo novo Conselho trajetória, em 2003 foi nacional, até a fundação do Nacional.10 Com esse ato, é criado o Conselho Nacio- Ministério da Cultura, Artes dada a ela continuidade de nal de Cultura e Artes,5 por e Patrimônio, em 2017 Estado, reconhecendo-a meio da Lei no 19.891, órgão como a política oficial do que dirigiu, por 14 anos, a atividade cultural ministério, o que não é pouca coisa.11 nacional, até a fundação do Ministério da O Mincap, criado por meio da Lei no 6 Cultura, Artes e Patrimônio, em 2017. 21.045,12 reúne duas culturas institucionais diferentes: a Direção de Bibliotecas, ArquiPolítica Nacional de Cultura 2017vos e Museus (Dibam), criada em 1929 e que -2022. Cultura e Desenvolvimento tem uma longa história de marcos culturais, Humano. Direitos e Território7 como a fundação da Biblioteca Nacional, Para analisar os modos de construção des- em 1813; e o CNCA, uma instituição jovem sa política, focaremos em três aspectos: criada em 2003. Esse processo de cocriação os níveis de participação dos cidadãos em de um novo órgão para a cultura nacional, sua elaboração, o tratamento técnico-ins- juntamente com a modificação de funções titucional e o mapa de conteúdos e orien- e competências e a incorporação de novas tações estratégicas que a constituem. Suas áreas, aumenta a complexidade de seu trapeculiaridades a tornam particularmente balho, (re)definindo os contornos da ação complexa e interessante como objeto de pública em cultura no Chile. Isso, encarnaestudo.8 Isso do ponto de vista político, ao do em seu próprio nome, de modo plural, estar atravessada por uma mudança de como um legado do processo de Consulta

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Indígena,13 é um reconhecimento da diversidade de culturas e expressões artísticas que o país possui. A declaração de “uma política para o reconhecimento da cidadania cultural”14 se justifica precisamente na passagem de uma relação preponderante com a comunidade artística, como eixo central do trabalho desenvolvido até aquele momento, para outra que compreende a cidadania em sentido amplo. Com base em um conceito ampliado de cultura,15 que incorpora outras formas de participação cultural, agrega ao seu trabalho novos sujeitos e grupos de cidadãos: migrantes, povos nativos, territórios criativos, culturas populares e comunitárias, ampliando e fortalecendo suas linhas de trabalho, por exemplo, naquilo que o patrimônio implica. Participar a partir do campo cultural: singularidades, pontos fortes e dificuldades Como sabemos, as políticas públicas buscam a modificação de um estado de coisas percebido como problemático ou insatisfatório. Nesse sentido, a dimensão da participação dos cidadãos ainda é relativamente jovem no Chile, propiciada especialmente pelo Decreto Presidencial no 002,16 inserido no processo de modernização da gestão pública iniciado nos anos 1990,17 e pela Lei no 20.500, sobre associações e participação dos cidadãos na gestão pública. Com base nela, cada órgão da administração do Estado pode estabelecer seus próprios mecanismos. Vemos que, gradualmente, os cidadãos começam a ser considerados – de forma diferente e com diferentes níveis de contribuição – na elaboração das políticas

públicas. E essa participação deve ser reconhecida como um direito. A participação dos cidadãos assume forma própria conforme cada setor. É evidente que não é a mesma coisa participar da política habitacional e da política de saúde. Dois casos que apenas mencionaremos, mas que explicam como os mecanismos participativos se adaptam conforme a missão e a natureza de cada ministério. O Ministério da Justiça, por exemplo, implementou como ferramentas o acesso a informações relevantes, as consultas aos cidadãos, as contas públicas participativas e os conselhos da sociedade civil.18 Por sua vez, em dezembro de 2019, o recém-criado Ministério da Ciência e Tecnologia anunciou que sua primeira Política Nacional abria a participação dos cidadãos por meio de mesas autogerenciadas, habilitando uma plataforma.19 Embora seja muito cedo para avaliar esse processo, observamos iniciativas que buscam direcionar os mecanismos para o seu trabalho concreto. Seria necessário explorar até que ponto é uma resposta a certa “convicção institucional” com relação à relevância de contar com os cidadãos em seus processos de construção de políticas públicas ou simplesmente porque constitui uma obrigação legal. Se considerarmos que as políticas culturais têm certas características únicas em seu modo de produção, em virtude de sua própria constituição como campo, poderíamos nos perguntar em que o seu ethos influencia o modus operandi da gestão pública como sistema geral. Toda expressão cultural possui uma dupla condição: uma material, ligada ao modo como se (re)apresenta como prática única e, ao mesmo tempo,


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reproduzível; e uma simbólica, como produtora de senso individual e coletivo. Desse modo, a função social da cultura está associada a uma compreensão do mundo em que o desenvolvimento das capacidades humanas é central e à (res)significação de um passado em um presente. A partir dessa aproximação, pesquisamos que eles constituíram uma experiência participativa sem paralelo. Nascidos da necessidade de revitalização após 17 anos de “apagão cultural”,20 fundamentam-se na noção de “cidadania cultural”, produzida e colocada em circulação nesses anos. Di Girólamo a concebe desta forma: [...] entendo a cultura como o processo que desencadeamos ao transformar o nosso ambiente. Em seu decorrer, modificamos irremediavelmente os nossos comportamentos e, ao mesmo tempo, o nosso modo de pensar. Portanto, a qualidade dessa determinada cultura dependerá exclusivamente da nossa capacidade de praticar o nosso relacionamento com os outros e com o mundo próximo e distante, como uma unidade harmônica que precisa de constantes revisões e cuidados.21

Esse reconhecimento da qualidade de cidadãos culturais das pessoas que exercem essa categoria sociopolítica em seus territórios teve um componente representativo de caráter soberano: um representante por município com direito a voz e voto. Acreditamos que, precisamente pelas próprias lógicas subjacentes ao projeto incorporado pela Divisão de Cultura, bem como pela precariedade orgânica e de recursos da

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época, a geração de espaços participativos criativos e consistentes foi possível e eficaz. A partir da revisão dessa experiência, encontramos práticas de gestão institucional menos rígidas e tecnocráticas, atravessadas pelo voluntarismo e sustentadas por um olhar reflexivo e dialógico. Como apontamos, cada setor possui dinâmicas e problemáticas próprias. Também varia quem, como e para que se participa, conforme fatores setoriais e/ou territoriais. O mundo da cultura historicamente tem exibido uma capacidade única de aglutinação e mobilização, contando com um notável capital simbólico e legitimidade perante os cidadãos (em que sua visibilidade pública provavelmente desempenha um papel não negligenciável), autoconcedendo-se como agentes com responsabilidade moral perante a sociedade.22 Com a criação do CNCA, integra-se desde o início a comunidade artística em suas instâncias de representação, resultando sua participação em maior institucionalização. Isso, além da experiência participativa anterior dos conselhos (cabildos), marca uma característica constitutiva diferencial. Seus agentes possuem certa musculatura participativa, treinamento na geração de trocas e acordos, em que provavelmente a instabilidade característica do setor (do ponto de vista trabalhista e previdenciário) desempenha um papel, tornando-o especialmente envolvido e dinâmico. No entanto, ele não é organizado como um movimento social, mas como um grupo em que cada subsetor artístico tem seus próprios interesses, com diferentes níveis de organização, associatividade, coesão e

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maturidade. Não existe “um” setor cultu- abertos, entre múltiplos atores, visando ao ral constituído como um todo uniforme. levantamento de insumos. Tanto a metodoDe nossas pesquisas extraímos que o nível logia da convenção quanto a das políticas de maturidade dos agentes que compõem culturais e sua estrutura foram elaboradas o ecossistema da escrita não tem nenhuma pelo Departamento de Estudos25 do CNCA e relação, por exemplo, com as dinâmicas co- validadas pelo Comitê de Políticas do Direletivas do setor das artes visuais, que é mui- tório Nacional. Esse trabalho técnico consito mais desagregado e tem baixos níveis de derou a geração de uma matriz de processos, trabalho conjunto. documentos de apoio para os moderadores Outro fator que acreditamos que pode de mesas, metodologias para o levantamento influenciar em sua disposição de participar e a sistematização de informações, construe mobilizar-se através de múltiplos canais ção de diagnósticos, trabalho sobre pontos é a fragilidade política23 do setor cultural. críticos e para a consolidação e redação de Isso em termos de seu peso constitutivo di- propostas em um documento final. Conferencial em relação a outras pastas, como a centrou-se em um modelo combinado, resda Fazenda, a da Defesa ou pondendo à organização a da Economia. Como veremos, a ênfase institucional em transforparticipativa foi colocada mação e, ao mesmo tempo, Um desenho no desenvolvimento de uma procurando incorporar a metodológico metodologia de participação relativa tradição particiinstitucional centrada nas competências pativa e a aprendizagem com pertinência técnicas da equipe de projeto, institucional, embora esta de campo? para garantir a promoção tivesse sofrido mutações Fernández e Ordoñez, 24 adequada de debates abertos, e ajustes, e a progressiva em seu estudo de 2007, entre múltiplos atores, visando institucionalização vinha definem três modalida- ao levantamento de insumos contendo e enquadrando des de participação: insesses modos participativos trumental, informativa e empoderadora. em direção a formas mais convencionais e No caso do antigo CNCA, observamos que instaladas. Como aponta Delamaza: há uma combinação das três, embora a última fosse praticamente inexistente para os espaços e mecanismos de participação além do “acompanhamento acordado” conestão enraizados (embedded) em uma trama templado na Política Nacional de Leitura institucional mais ampla. Suas possibilidae Escrita 2015. des de avanço, sustentabilidade, apropriação Como veremos, a ênfase participativa cidadã, aumento de impacto (scaling up) e foi colocada no desenvolvimento de uma mecapacidade transformadora estão diretatodologia de participação centrada nas commente relacionadas à coerência e articulapetências técnicas da equipe de projeto, para ção interna dos desenhos institucionais da garantir a promoção adequada de debates gestão pública.26


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Dessa perspectiva, consideramos que não houve acompanhamento de uma decisão política que fosse além no fortalecimento de uma participação mais deliberativa, vinculante e habilitadora dos atores sociais, no âmbito federativo, mas também no individual. As convenções se propuseram revigorar a participação dos cidadãos e a transparência do Estado, mas é necessário abri-las e diversificar sua composição para além dos sindicatos. Canais institucionais de participação Em relação às instâncias institucionais que estruturaram e alimentaram a PNC, existem as convenções (nacional, regionais e macrorregionais), 27 as contas públicas e diálogos participativos e os encontros setoriais (e aqueles com foco em patrimônio). Em 2014 foi iniciado um processo participativo que atingiu seu auge em 2017 e contemplou a intervenção de mais de 5 mil pessoas em 90 encontros.28 A Convenção Nacional é uma instância de debate, de caráter anual (desde 2004), de todos os órgãos colegiados do CNCA: o Diretório Nacional, os representantes do setor artístico e cultural, o Comitê Consultivo Nacional, os Conselhos Regionais, os presidentes dos Conselhos Consultivos Regionais e dos Conselhos Setoriais (Escrita e Leitura, Música e Audiovisual), autoridades e expositores convidados, corpo diretivo e funcionários do CNCA. A partir desse conjunto de instâncias, levantaram-se os conteúdos temáticos, que foram constituindo o substrato conceitual e os diagnósticos trabalhados tecnicamente a seguir pelo CNCA.29 Os números de participação apresentados acima, embora sejam consideráveis ​​para

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um setor pequeno como este, na realidade não dizem muito sobre a abrangência e a qualidade dessa participação nem sobre a idade, o gênero ou a presença de pessoas de outros países provenientes de povos nativos ou outras comunidades cultoras.30 Em vez disso, eles falam sobre a eficácia do desenho institucional, o acompanhamento de um cronograma e um plano de trabalho que foram efetivamente cumpridos e conseguiram reunir um amplo repertório de agentes da sociedade civil organizada. Não há participação de pessoas individuais interessadas e​​ m temáticas culturais, é uma participação que privilegia a presença de corpos federados. No que diz respeito à estruturação interna, é pertinente destacar que, embora em exercícios anteriores de renovação das políticas as regiões e os setores artísticos tiveram como base uma Política Nacional previamente aprovada, na versão atual se trabalhou a partir de uma lógica inversa: “de cima para baixo”. Primeiro, foram formuladas as Políticas Setoriais a partir dos territórios e setores artísticos e, em seguida, as Políticas Regionais, para depois, com esses insumos, alimentar a PNC. Esse ponto é relevante, em termos estratégicos e de sustentabilidade da política, uma vez que se optou por operar com a lógica consagrada no novo quadro jurídico ministerial que entraria em vigor. Abordagens constitutivas presentes O conteúdo da PNC está associado a duas abordagens: a abordagem de direitos, baseada nos direitos culturais,31 e a abordagem dos territórios, que considera o território como uma relação social, identitária e cultural, além do desenvolvimento humano, da perspectiva do Programa das Nações

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Unidas para o Desenvolvimento (Pnud). Essas orientações estratégicas são Elas foram trabalhadas com o apoio exter- coerentes com os eixos estratégicos instino de especialistas da Comissão Econômica tucionais oferecidos para levantar problepara a América Latina e o Caribe (Cepal).32 máticas e propostas no âmbito das políticas Por sua vez, a PNC possui 10 orien- regionais e setoriais: fomento das artes e tações e 46 objetivos estratégicos que de- das culturas, participação e acesso a estas, finem a ação pública em cultura durante formação e sensibilização artística e patriesse período de cinco anos: 33 a cultura monial dos cidadãos, resgate e difusão do como pilar do desenvolvimento sustentá- patrimônio cultural, valorização dos espavel; uma criação livre e diversificada, indi- ços culturais dos cidadãos e reconhecimenvidual e coletiva, socialmente valorizada, to dos povos indígenas. respeitando a propriedaMapa de desafios de intelectual e os direitos Da ação pública na cultura, existe uma necessidade Observamos que, a parautorais; um campo artístir da ação pública na tico-cultural fortalecido, estratégica de trabalhar cultura, existe uma neestável e sustentável que de forma coordenada e respeite os direitos tra- articulada, tanto da perspectiva cessidade estratégica de trabalhar de forma balhistas de seus traba- interinstitucional quanto da lhadores; cidadãos ativos intersetorial. Essa necessidade é coordenada e articulacom influência na ação uma condição sine qua non para da, tanto da perspectiva interinstitucional quanpública em cultura; um a efetiva implementação das to da intersetorial. Essa tecido social coeso através políticas culturais necessidade é uma conda participação cultural de todos, sem discriminação; a interculturali- dição sine qua non para a efetiva implemendade e a diversidade cultural como fontes tação das políticas culturais. Isso considerando que as políticas ende riqueza cultural para a sociedade como um todo; o patrimônio como bem público volvem um conjunto de dimensões que exe construção social, em que as comunida- cedem o campo estritamente cultural, mas des colaboram com aqueles referenciais que determinam a garantia de obras e patrisignificativos que lhes dão sentido e iden- mônios, dos quais o ministério é garantidor. tidade; memórias históricas e coletivas re- O que a Receita Federal, a Alfândega ou o conhecidas, valorizadas e (re)construídas Ministério de Minas têm a ver com o camem equilíbrio com a institucionalidade e as po cultural? Na verdade, têm muito a ver se comunidades; uma educação integral que pensarmos em políticas públicas integrais. considera as artes, a cultura e o patrimô- Por exemplo, se nos referirmos às condições nio como componentes fundamentais no de produção nas quais se encontram os criadesenvolvimento das pessoas e da comuni- dores, a reprodução material de sua vida, a dade; e processos inovadores e diversos de previdência social, a saúde, o acesso às mamediação cultural, artística e patrimonial. térias-primas ou os direitos de propriedade


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intelectual. Tudo isso exige um trabalho impacto públicos. Da mesma forma, contriconjunto com instituições do Estado cuja buiria para adaptar desenhos e instrumenmissão diz respeito a esses outros aspectos tos institucionais, torná-los menos rígidos específicos. Isso com responsabilidades cla- e dar-lhes maior robustez setorial. ras associadas a metas e indicadores. Talvez seja “propriamente cultural” Da mesma forma, a profissionalização pensar nesse campo como uma estrutura dos agentes culturais e seu ecossistema, o em permanente diálogo com outros setofortalecimento de capacidades, o estabele- res, em que a cultura – representando toda cimento de tarifas equilibradas e a circulação a atividade humana criativa e transformainternacional de obras, entre dora – toca múltiplos espaços. outros aspectos, exigem ir A organização e Pensemos, por exemplo, na além de uma abordagem cen- a coordenação temática ambiental, na viotrada somente no potencial de de instâncias de lência de gênero, na cultura mercado. O objeto e a prática participação requerem científica, na saúde mental, cultural são inseparáveis, ​​e a um esforço e entre outras esferas, em que proteção da obra depende di- capacidade institucional as questões culturais são deretamente da salvaguarda de significativos, tornando safiadas, podendo contribuir seu criador. para a construção de políticas a experiência da PNC Em terceiro lugar, acre- particularmente valiosa públicas com maior entreladitamos que é necessária çamento e coerência estatal. uma melhor articulação interna dos três Para concluir, diremos que a organizaníveis de desenvolvimento governamen- ção e a coordenação de instâncias de partital existentes: as políticas, os planos e os cipação requerem um esforço e capacidade programas. Essa orquestração pode ajudar institucional significativos, tornando a exa conciliar os planos de gestão institucio- periência da PNC particularmente valiosa. nal com os programas, ampliando e forta- Apesar da riqueza desse processo, resta lecendo as possibilidades de participação como tarefa ter maior diversidade de atores das comunidades artísticas, cultoras e dos locais e territoriais, fortalecendo as possicidadãos em geral na gestão de seus patri- bilidades de desenvolver cidadãos ativos e mônios, das ofertas programáticas e na de- empoderados em assuntos comuns. Nesse finição de fundos concursáveis, dotando-os sentido, o ministério tem um grande desafio de maior pertinência territorial, eficiência e e uma possibilidade histórica.

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Constanza Symmes Coll É doutora em sociologia pela École des Hautes en Sciences Sociales (EHESS), Paris. Tese Indépendante dans un Contexte de Transition Politique au Chili (1990-2010): Mobilisation Locale d’une Définition Transnationale, sob a orientação do professor Yves Dezalay. Mestre em estudos latino-americanos pela Universidade do Chile e bacharel em governo e gestão pública pela mesma universidade. Atualmente, trabalha como pesquisadora em assuntos culturais e acadêmicos na Universidade de Santiago do Chile. Suas linhas de pesquisa se centram na sociologia da cultura e dos bens simbólicos (principalmente do livro e da edição), nas políticas culturais, no patrimônio e na gestão cultural. Foi chefe do Departamento de Estudos do antigo Conselho Nacional de Cultura e Artes no período de 2016 a 2018.

Referências bibliográficas BENHAMOU, Françoise. Politique culturelle, fin de partie ou nouvelle saison? Paris: La Documentation Française, 2015. BUSTAMANTE, Mauricio; SYMMES, Constanza. Los editores independientes y la constitución de un capital simbólico transnacional: condiciones sociales del ingreso de la diversidad cultural en Chile. Revista del Museo de Antropología, v. 6, p. 91-106, 2013. ISSN 1852-060X. CARRASCO, Eduardo; NEGRÓN, Bárbara. La cultura durante el período de la transición a la democracia 1990-2005. Santiago: Consejo Nacional de la Cultura y las Artes (CNCA), 2006. CNCA-INE. Encuesta Nacional de Participación Cultural 2017. Santiago, 2018. CONSEJO NACIONAL DE LA CULTURA Y LAS ARTES. Chile quiere más cultura. Definiciones de política cultural 2005-2010. Valparaíso: CNCA, 2005. CONSEJO NACIONAL DE LA CULTURA Y LAS ARTES. CNCA. Política cultural 2011-2016. Valparaíso: CNCA, 2011. CONSEJO NACIONAL DE LA CULTURA Y LAS ARTES. CNCA. Política Nacional de Cultura 2017-2022. Cultura y Desarrollo Humano: Derechos y Territorio. Santiago: CNCA, 2017. CUCHE, Denys. La noción de cultura en las ciencias sociales. Buenos Aires: Nueva Visión, 2007. DE CEA, Maite. “L’expérience chilienne du gouvernement de la culture: vers une véritable politique culturelle”, Thèse de doctorat en sciences politiques, sous la direction de M. Guy Saez, Université de Grenoble, Institut d’Études Politiques, 2010.


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DELAMAZA, Gonzalo. Espacio público y participación ciudadana en la gestión pública en Chile: límites y posibilidades. Polis, Revista de la Universidad Bolivariana, v. 10, n. 30, p. 45-75, 2011. DELAMAZA, Gonzalo. Tan lejos tan cerca. Políticas públicas y sociedad civil en Chile. Santiago: Lom, 2005. DUBOIS, Vincent (dir.) Le politique, l’artiste et le gestionnaire. (Re) configurations locales et (dé) politisation de la culture. Paris: Éditions du Croquant, 2012. DUBOIS, Vincent. La politique culturelle: genèse d’une intervention publique. Paris: Éd. Belin, 1999. GARRETÓN, Manuel Antonio et al. El espacio cultural latinoamericano. Santiago: Fondo de Cultura Económica-Convenio Andrés Bello, 2003. GÜELL, Pedro; PETERS, Tomás (ed.). La trama social de las prácticas culturales. Sociedad y subjetividad en el consumo cultural de los chilenos. Ediciones Universidad Alberto Hurtado, 2012. URFALINO, Philip. Après de Lang et Malraux, ¿une autre politique culturelle est-t-elle possible? Paris: Esprit, 2004. p. 55-72.

Notas 1

Dirigida pelo sociólogo e ganhador do Prêmio Nacional de Ciências Sociais e Humanas 2007, Manuel Antonio Garretón.

2

Propostas para a institucionalização da cultura chilena. Ministério da Educação, Comissão Assessora de Cultura. Santiago, 1991.

3

Relatório Ivelic, p. 6.

4

O cabildo era uma instituição colonial através da qual os criollos [crioulos (descendentes de espanhóis nascidos na América)] representavam os moradores, cuidavam da administração local, da manutenção e do planejamento da cidade, da saúde pública e de aspectos judiciais, legislativos e políticos.

5

Doravante denominado CNCA.

6

Doravante denominado Mincap.

7

Doravante denominada PNC.

8

Por razões de ética profissional, a autora deste texto deve salientar que teve um campo de observação privilegiado. Isso por trabalhar na época de 2016 a 2018 como chefe do Departamento de Estudos do CNCA.

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9

Desde o retorno à democracia no Chile, em 1990, tivemos três políticas nacionais. A primeira foi em 2005. Antes disso, havia orientações gerais (como o documento Cultura, Estado e Cidadania, de 1996, publicado pela Divisão de Cultura, ou o documento Nossa Diversidade Criativa, de Javier Pérez de Cuéllar), mas não uma “política” como tal. Existe um Plano Nacional de Leitura, mas este é o declínio ou “rebaixamento” da Política Nacional de Leitura e Escrita.

10

Conforme a ata da sessão ordinária número 2, de 6 de junho de 2019.

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Isso deveria ser, mas não é totalmente evidente nos contextos chileno e latino-americano, em que, a cada mudança de administração, ocorrem movimentos de entrada e saída de funcionários públicos. Isso dificulta a continuidade da função pública, as diretrizes e a ênfase dos programas em andamento e a solidez da gestão estatal. Embora nos últimos anos tenham sido feitos avanços nos níveis de institucionalização e profissionalização acima dos critérios político-partidários, ainda há um longo caminho a percorrer.

12

Promulgada em 3 de novembro de 2017.

13

Realizada no período de 2014 a 2015, em conformidade com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT).

14

Política Nacional, p. 36.

15

Nesse sentido, a definição de cultura emanada da Conferência Mundial sobre Políticas Culturais, realizada no México em 1982, marca um ponto de inflexão, ampliando-a: “A cultura [...] engloba, além das artes e das letras, modos de vida, direitos fundamentais aos seres humanos, sistemas de valores, tradições e crenças e dá ao homem a capacidade de refletir sobre si mesmo [...]”.

16

De 6 de agosto de 2014.

17

Veja o trabalho: OLAVARRÍA, Mauricio (ed.). ¿Cómo se formulan las políticas públicas en Chile? Tomo I. Santiago: Editorial Universitaria, 2012.

18

Órgão colegiado, de natureza consultiva, composto de representantes da sociedade civil organizada, relacionados às políticas, programas, serviços ou planos executados pelo Ministério da Justiça.

19

Nesse site, as pessoas podiam inscrever sua mesa, colocando-a em um dos quatro eixos propostos pelo ministério: Relação com a Sociedade; Fortalecimento do Ecossistema de Ciência, Tecnologia, Conhecimento e Inovação; Futuro do Chile; e Capacidades Institucionais. O processo compreende, além dessas mesas, a realização de workshops presenciais e mesas técnicas.


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20 Termo usado no Chile para descrever a situação vivida pela cultura como

resultado da ditadura militar. 21

Claudio Di Girólamo, na Conferência Seminário CNCA Experiências Comparativas em Ação Pública na Cultura, em março de 2017.

22 Mencionaremos o papel desempenhado pelos artistas na campanha “Não

a Pinochet”. E, mais recentemente, em 2018, no caso do então ministro da Cultura, Mauricio Rojas, novamente demonstraram sua força e capital simbólico, convocando um grande ato cultural nos arredores do Museu da Memória e dos Direitos Humanos. Rojas havia afirmado em um texto, reproduzido pelo jornal La Tercera, que esse museu era uma “montagem”. Essa ação levou à sua imediata destituição, antes que assumisse formalmente sua pasta. 23 Lembremos o caso argentino em que, com uma mudança de governo,

o presidente Mauricio Macri rebaixou o ministério à categoria de secretaria dentro do Ministério da Educação (renomeado como Ministério da Educação, Cultura, Ciência e Tecnologia). Por sua vez, no Brasil, o governo do presidente Jair Bolsonaro, em seu primeiro dia de governo, eliminou o Ministério da Cultura. Ambas as decisões são preocupantes em termos de continuidade da função pública e, sobretudo, devido ao sinal claro de que a cultura constitui um campo prescindível. 24 Participação dos cidadãos na Agenda Governamental de 2007. Caracterização

dos compromissos. Programa de Cidadania e Gestão Pública. Disponível em: <http:// www.innovacionciudadana.cl/portal/imagen/File/barometro/ Informe%20final%20S.E...pdf>. 25 Unidade técnica formada por profissionais que, em um nível importante, possuía

especialistas temáticos. Estava organizada em duas seções: Estatísticas Culturais, a área mais especializada, que produzia estudos baseados em medições culturais e alimentava o Sistema de Informações Culturais (SIC), e Políticas Culturais, com uma composição disciplinar mais heterogênea: jornalistas, uma engenheira industrial que conhecia bem o desenho de processos e fluxogramas, uma profissional formada em estética com um trabalho relevante no âmbito territorial e uma socióloga com experiência prévia na formulação da Política Nacional de Leitura e Escrita, além de uma cientista política especialista em metodologia e nas áreas de acompanhamento e avaliação de políticas. 26 DELAMAZA, 2005, p. 68. 27 As regiões decidem se organizar em macrorregiões ou espaços que

compartilham certas características e problemáticas para dialogar sobre suas preocupações e desafios.

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28 Fonte: CNCA. 29 O Chile possui uma divisão político-administrativa que atualmente se baseia

na existência de 15 regiões. Em cada região existia uma Direção Regional (atualmente são Secretarias Regionais Ministeriais de Cultura), representante da ministra na região. 30 De fato, este é um termo usado especialmente no Chile. A Unesco fala somente

das “comunidades”. Dizem que no Brasil se fala mais de “portadores”. Isso se refere às comunidades que realizam práticas culturais associadas a um território, tradição e história, como danças, festividades e ritos. Em suma, o que constitui o Patrimônio Cultural Imaterial. 31

Baseados fundamentalmente no Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (Desc).

32 Em um convênio de colaboração entre a Cepal e o CNCA, foi feito um trabalho

com os especialistas Alicia Williner, Guillermo Sunkel e Ernesto Espíndola. 33 A partir da administração pública, distinguimos três níveis ou estágios: políticas,

planos e programas. A política é a principal carta de navegação, o plano é um nível intermediário e mais concreto e o programa é uma unidade de trabalho que vincula projetos ou áreas de intervenção de base.


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PLANO NACIONAL DE CULTURA NO URUGUAI, UM ASSUNTO INACABADO Hernán Cabrera

Este artigo procura esclarecer o processo que ocorreu no Uruguai no que diz respeito à elaboração de um Plano Nacional de Cultura e de uma Lei de Cultura e Direitos Culturais entre os anos de 2016 e 2019. Centra-se em sua análise descritiva, com ênfase nos eixos orientadores propostos pela Direção Nacional de Cultura do Ministério de Educação e Cultura para a discussão cidadã e dos setores artístico-culturais organizados.

Antecedentes e contexto geral do Plano Nacional de Cultura no Uruguai

E

m toda a América Latina, muitos países têm ou tiveram vários processos de discussão, mais ou menos centralizados nos poderes do Estado, sobre o futuro de sua diversidade cultural, elaborando diferentes rotas ou visões de longo prazo por meio de Planos Nacionais de Cultura (PNCs). México, El Salvador, Colômbia, Equador, Chile e Brasil são alguns dos países que realizaram seu PNC. Cada um utilizou suas próprias formas de participação de acordo com os contextos nacionais, regionais ou locais. Na maioria dos casos, é o Estado, através do Poder Executivo, que lidera o processo de discussão, possibilitando espaços de participação cidadã com múltiplos critérios:

• dando preferência aos aspectos territoriais; • priorizando as vozes dos setores artísticos e criativos; • considerando mais os cidadãos organizados ou grupos ou coletivos agrupados por critérios identitários; • consultando grupos de especialistas para traçar as principais diretrizes a ser seguidas; • gerando espaços para a participação de cidadãos não organizados através de plataformas digitais construídas para cada caso. Além disso, alguns desses processos contaram com a parceria do Poder Legislativo


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e resultaram em leis que organizam o que A partir dessa última assembleia e de está culturalmente institucionalizado, para outras instâncias consultivas promovidas moldar esses PNCs de forma mais potente pelos governos da Frente Ampla, a cultuno longo prazo. ra organizada começou a adquirir maior O fator comum em todos esses casos vigor. A institucionalidade floresceu e foi foram os processos consultivos que, de uma reorganizada; criaram-se leis relacionaforma ou de outra, resultaram em uma apro- das à cultura; o Ministério de Educação e priação que possibilitou encerrá-los com Cultura (MEC) esteve presente em todo o documentos apontando uma perspectiva território nacional; foram criados vários futura, planejando o que fazer para atingir os tipos de fundos concursáveis; retomaramobjetivos elaborados coletivamente de modo -se incentivos e estímulos para os artistas a organizar o que existe e com a intenção de e criadores, ou foram criados novos, acomantecipar alguns acontecimentos dos pró- panhando os novos contextos. ximos anos que afetarão o Entre 2012 e 2013, a setor cultural. Alguns desses processos preocupação voltou impulA estrutura dos proces- contaram com a parceria sionada por alguns setores, sos dos planos desses países do Poder Legislativo e com a demanda a partir do é, em termos gerais, muito e resultaram em leis território, que entendiam similar: diagnóstico situa- que organizam o que que era necessário orgacional, processo consultivo e está culturalmente nizar melhor os recursos elaboração dos objetivos de institucionalizado, para existentes com a intenção longo prazo, aprovação, exe- moldar esses PNCs de forma de eliminar ou diminuir as cução e acompanhamento. mais potente no longo prazo lacunas causadas pela disO Uruguai é um dos tância de Montevidéu (capoucos países da região que não têm um Pla- pital do país). Durante esses anos, a Direção no Nacional de Cultura fechado. Mas isso Nacional de Cultura (DNC) do MEC comenão foi por falta de tentativas. De fato, pelo çou a realizar reuniões com autoridades lomenos nos últimos 25 anos, foram realizadas cais nos 19 departamentos (equivalentes a inúmeras iniciativas que não conseguiram estados) do país. O resultado desse trabalho chegar a um documento único que servisse foi um compromisso assinado pelas 19 direde pacto nacional a esse respeito. Entre 1995 ções departamentais de cultura (que fazem e 1999 foram feitas cinco reuniões (San Gre- parte da Rede de Direções de Cultura) e pela gorio de Polanco, Las Cañas, Rivera, Trinidad DNC, no qual foi estabelecido um acordo soe Maldonado) de diretores de cultura em nível bre oito pontos estratégicos de longo prazo: 1 nacional para traçar objetivos comuns. Em 1996, foi realizada a 1a Assembleia de Cultura, • fortalecimento da institucionalidade em Montevidéu, e, em 1998, a segunda, em cultural; Durazno. Em 2003, foi realizada uma em • democratização da cultura; Paysandú e, em 2006, mais duas em Salto. • promoção do patrimônio;

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• promoção do desenvolvimento econômico sustentável na cultura e nas artes; • incentivo à presença da cultura uruguaia no exterior; • fortalecimento da territorialidade e descentralização; • profissionalização da cultura; • promoção da participação cidadã. Em março de 2015, um novo governo tomou posse em nível central e, em maio desse mesmo ano, em nível departamental. Com as novas autoridades, iniciou-se um período de revisão do que havia sido feito até então e de elaboração de um plano de trabalho para consulta aos cidadãos em todo o território nacional. Nesse sentido, a DNC fez um acordo com a Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da República (FCS/UdelaR) com o objetivo de liderar conjuntamente o processo de diálogo denominado Hacia el Plan Nacional de Cultura [Rumo ao Plano Nacional de Cultura]. Paralelamente, dois grupos de especialistas de todos os partidos políticos, alguns agrupados em torno do Poder Legislativo e outros do Ministério de Educação e Cultura, foram elaborando um Projeto de Lei sobre Cultura e Direitos Culturais que procurava ser uma síntese-resultado do anteriormente exposto. A seguir, vamos nos aprofundar no referido processo de diálogo, que, embora tenha avançado em relação a iniciativas anteriores, não conseguiu chegar a um consenso sobre um documento único que estabelecesse claramente o que era o Plano Nacional de Cultura. Também abordaremos alguns aspectos adicionais que foram trabalhados no projeto de lei acima mencionado, tentando

complementá-lo com um fechamento de caráter jurídico.2 Sobre o diálogo Hacia el Plan Nacional de Cultura do Uruguai e o Projeto de Lei sobre Cultura e Direitos Culturais Esse processo envolveu mais de 1.500 agentes culturais dos 18 departamentos do interior do país (sem contar Montevidéu) em 21 jornadas diferentes,3 com os quais também se deu continuidade ao trabalho por meio de consultas e trocas via plataforma web. Além disso, em Montevidéu, foram desenvolvidas 12 instâncias de trabalho setoriais, nas quais participaram mais de 300 representantes dos coletivos e grupos artísticos, sindicatos e dos cidadãos organizados. Esse trabalho também envolveu a realização de 45 entrevistas com especialistas ligados a várias instituições culturais do país, bem como a sistematização de insumos qualitativos, a elaboração de um levantamento de agentes e a atualização do mapa de infraestruturas culturais realizado4 em 2012 e 2013, além de um espaço de consulta aos cidadãos através de uma plataforma interativa que teve aproximadamente 15 mil visitas (DNC-FCS, 2017a, p. 3 e 4). Cada uma das jornadas de trabalho nos departamentos se centrava no aspecto territorial, com dados de cada um deles e o objetivo de pensar territorialmente sobre como funcionam atualmente e quais são os possíveis futuros dos eixos estratégicos propostos para o PNC. Foram utilizadas diferentes abordagens para as jornadas setoriais, dado que os níveis de consolidação e desenvolvimento entre elas são muito díspares. É fácil


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ver a reflexão que os participantes fizeram em relação aos eixos estratégicos propostos traduzidos em algumas questões que parecem (pelo menos a partir de uma construção teórica) ser transversais ao setor cultural como um todo. Nesse processo, foram definidos seis eixos ou condutores, muito similares nos pontos nevrálgicos aos oito previamente acordados pelos diretores de cultura, sintetizados da seguinte forma: 1. Arte e Criatividade As discussões foram férteis no reconhecimento do papel da arte e da criatividade como motores de expressão da diversidade cultural. Em termos de inclusão, foi decidido sintetizar ou articular pensamentos de modo a separar a produção e a difusão da arte comunitária e os setores artísticos profissionais. Para os grupos comunitários, reconheceu-se com alguma facilidade que existe um panorama rico e variado em todo o país, que carece de melhor distribuição territorial dos fundos existentes para facilitar o seu acesso. No que diz respeito aos setores profissionais, uma das principais urgências detectadas é a situação de trabalho dos artistas – embora ela tenha melhorado notavelmente com a Lei dos Artistas,5 continuam existindo a precariedade e a informalidade de forma generalizada. Além disso, foi dada ênfase à necessidade de ampliar as bolsas de formação e as residências no exterior, bem como a circulação nacional e internacional de peças e espetáculos. Foi destacada também a necessidade de modernização da infraestrutura existente e de construção de novas

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infraestruturas, particularmente em algumas regiões do interior do país. Finalmente, em termos de profissionalização e valorização de artistas e criadores, foi considerado fundamental melhorar os registros existentes com a finalidade de que estejam em constante crescimento, especialmente no que diz respeito à informação estatística disponível sobre cada setor, que deverá constituir uma parte crucial do sistema de informação cultural do país. Vale destacar que a concepção a partir de uma lógica de indústrias culturais e criativas é uma das grandes ausências no tocante a este eixo, não sendo utilizada como categoria analítica nem em termos de organização da discussão para gerar ou aprofundar as políticas públicas em cultura existentes nesse sentido. A criatividade e a arte se limitam às duas abordagens acima descritas (setores artísticos profissionais e setores comunitários), em que a dimensão econômica ligada a elas não é mencionada de forma alguma. 2. Cultura e Inclusão Este eixo se centrou no valor da cultura como reconhecimento dos outros, como gerador de espaços de encontro e de diferenciação que nos permitem pensar juntos sobre o futuro a ser construído, mas também como elemento diferenciador e espaço especialmente carregado de lutas ideológicas e de poder. Nesse sentido, entre os primeiros aspectos que se destacam estão a fragmentação e a segregação territorial que reproduz, de forma quase permanente, lógicas de centro-periferia (capital versus interior em nível nacional e departamental; o urbano e o rural). Outros aspectos que surgiram são as

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problemáticas geracionais (adultos versus conjunto dos organismos públicos e privados, como os instrumentos jurídicos, jovens); as desigualdades de gênero, em que financeiros, de infraestrutura e de gestão a mulher tem um papel significativamente relegado em termos de consumo; o uso e a que tanto o Estado quanto a sociedade civil produção de bens e serviços culturais; e as criam e colocam ao serviço do desenvolvidesigualdades étnico-raciais especialmenmento artístico e cultural e da conservação te visíveis no relegado reconhecimento das e difusão do patrimônio do país, em nível expressões afro-uruguaias. internacional, regional, nacional, comuniÉ recomendável examinar duas questário e do bairro onde se desenvolve a vida tões: o aprofundamento de alguns camidas pessoas [...] A rigor, refere-se apenas nhos iniciados na última década através do aos órgãos públicos e privados que desemconceito de cidadania cultural e o trabalho penham funções e procuram alcançar obcoordenado em políticas sociais com outras jetivos no campo cultural (CARÁMBULA, instituições (Ministério do Desenvolvimen2011, p. 305). to Social, coletivos sociais e comunitários e governos departamentais). Neste eixo, foram priorizados o aprofunA verdade é que neste eixo podem ser en- damento e a continuidade dos diálogos contradas pouquíssimas propostas concretas interinstitucionais e territoriais que facipara organizar melhor a realidade sociocultu- litam a governança cultural, bem como a ral do país, atual e futura. Embora o diagnós- geração de acordos destinados à formação, tico seja feito de forma clara gestão e produção de bens e e consistente, essa ausência Embora o diagnóstico serviços culturais, além da parece ser extremamente seja feito de forma clara profissionalização dos agenimportante devido ao reco- e consistente, essa tes culturais. nhecimento inicial do papel ausência parece ser Também foram detecda cultura nesse sentido. O extremamente importante tadas a falta de organização Projeto de Lei sobre Cultura devido ao reconhecimento sindical de alguns setores, e Direitos Culturais, em seu inicial do papel da cultura a desatualização de regulaartigo 15, faz menção especial nesse sentido mentos em alguns campos às políticas culturais inclusida cultura, a precarização vas, estabelecendo que os órgãos do Estado dos contratos de alguns artistas e gestores e uruguaio devem promover o caráter inclusivo a falta de organogramas claros para facilitar dos serviços que prestam, bem como propor- a execução de políticas públicas na cultura. cionar espaços formais para denúncias de Os problemas de distribuição territorial deviolações de direitos culturais. sigual de recursos humanos, financeiros e de infraestrutura também foram destacados. 3. Institucionalidade Embora esse processo de diálogo se Quando falamos de institucionalidade cul- aprofunde na organização da institucionatural, estamos nos referindo ao lidade cultural uruguaia, o Projeto de Lei


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sobre Cultura e Direitos Culturais propõe a criação de um Ministério da Cultura e Direitos Culturais (separado da Educação), a criação de um Conselho Nacional de Cultura e Direitos Culturais (órgão assessor, consultivo e honorário) e a criação de vários institutos que se somariam aos já existentes (alguns discutidos anteriormente foram: um de música, um de artes visuais, um de indústrias criativas e um de cidadania), bem como a criação e consolidação de um Sistema Nacional de Cultura.6 4. Patrimônio e Desenvolvimento Econômico As discussões em torno desse eixo se centraram na salvaguarda e proteção do patrimônio cultural natural, material e imaterial, por meio do fortalecimento da gestão, assim como de melhores instâncias de coordenação entre as instituições públicas, privadas e da sociedade civil. Além disso, foi abordada a geração de mais empregos ligados ao turismo cultural e ao desenvolvimento responsável, bem como a formação e profissionalização dos recursos humanos. Também foi manifestada a necessidade de reconhecer o papel dos artistas e criadores e das manifestações e dos costumes ligados aos modos de fazer e de estar no mundo próprios de determinados territórios. O processo de discussão abordou ainda a criação de “rotas do patrimônio” ligando os bens e manifestações patrimoniais ao turismo cultural, à melhor distribuição territorial dos recursos e à conservação e valorização da diversidade patrimonial existente. O Projeto de Lei sobre Cultura e Direitos Culturais dedica seu artigo 9o à proteção

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da diversidade cultural, com particular ênfase no papel do Estado em termos de conservação, difusão, restauração e pesquisa.7 5. Formação São reconhecidos os avanços realizados nos últimos anos na formação de profissionais ligados às artes, à criatividade e à gestão cultural. No entanto, a demanda por oficinas de formação artística persiste em todo o território, e as várias iniciativas de descentralização não conseguiram cobri-la. Além disso, vê-se a necessidade de padronizar o conhecimento e fortalecer os laços entre a cultura e a educação formal, assim como reconhecer os saberes da educação não formal. O projeto de lei acima mencionado fala da formação de recursos humanos e da formação de público. Além disso, no artigo 14, propõe-se a incorporação nos currículos escolares da apreciação das artes e da diversidade cultural. 6. Território O territorial, como construção social, implica que a cultura tem um papel fundamental em sua construção simbólica. “Ao ser um projeto, o território está semantizado. É suscetível de discurso. Tem um nome. Projeções de todos os tipos estão ligadas a ele e o transformam em um sujeito” (CORBOZ, 2001, p. 28). Nesse sentido, os agentes territoriais destacam que o PNC deve contemplar três níveis para a promoção cultural: i) desenvolvimento local sustentável; ii) desigualdades locais e políticas de descentralização; iii) práticas e manifestações locais e globais. Além disso, fala-se da criação de circuitos e rotas que incluam as festas e festivais, assim

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como as manifestações culturais patrimoniais da diversidade territorial. Evidencia-se a necessidade de uma atenção especial aos territórios fronteiriços, devido ao seu caráter identitário híbrido, bem como de atenção específica à macrocefalia nacional que as políticas públicas em cultura não devem ter, ou seja, o cuidado específico que se deve ter para respeitar e promover a diversidade territorial ao pensar e colocar em prática as políticas decididas em Montevidéu para todo o país.8 Como fatores-chave para o desenvolvimento do PNC, são mencionadas a coordenação interinstitucional e a participação permanente dos cidadãos. Um grande acerto do processo de trabalho foram as jornadas setoriais realizadas. Nelas, procurou-se envolver os mais diversos representantes dos seguintes setores: • • • • • • • • • • • • •

artes visuais; bibliotecas; Carnaval; circo; cultura viva comunitária; dança; design; letras/editorial; museus; música; patrimônio; teatro; marionetes.

Um dos grandes ausentes foi o audiovisual. A razão dessa ausência é desconhecida, mas este é um dos setores mais bem organizados do país, com sindicatos, câmaras e instituições públicas fortes que apostaram em um

crescimento constante nos últimos 15 ou 20 anos. Sendo, além disso, o setor das indústrias culturais e criativas que gera mais valor agregado e emprego.9 Outro setor que ficou de fora das considerações e que normalmente está associado ao audiovisual é o dos videogames, que, embora tenha uma irrupção mais recente, conseguiu emergir, com empresas muito fortes e exportações significativas dos seus produtos. No tocante a aspectos transversais aos setores que foram trabalhados no processo de diálogo, são significativos os apresentados a seguir. Como foi mencionado ao falar do eixo territorial, a descentralização aparece recorrentemente em cada um dos setores como um dos principais obstáculos a ser resolvidos. O centralismo de Montevidéu tem marcado historicamente o futuro cultural do país, invisibilizando boa parte da riqueza artística e criativa do resto do país. Outro aspecto se refere ao papel do Estado na promoção, no estímulo e na difusão, criação ou ampliação de fundos específicos setoriais. A institucionalidade é outra grande questão, pois está intimamente ligada à coordenação, à descentralização, a mercados nacionais e internacionais, alocação de recursos, legislação e infraestrutura (que aparece recorrentemente como uma demanda específica de cada setor). A profissionalização e a atualização dos saberes também são preocupações persistentes, particularmente para os setores artísticos profissionais que procuram abordar as lógicas de mercado atuais, visando especialmente à internacionalização de seus


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produtos. Junto com essas demandas, surge cultura, com especial ênfase no desenvolvitambém, especialmente nos setores das in- mento local, essa leitura parece não ter sido dústrias culturais e criativas, o aprofunda- suficientemente profunda a ponto de ser mento de novos papéis, como os agentes de apropriada por esses outros setores, deivendas (literários, musicais xando a transversalidade e audiovisuais), capazes de A institucionalidade é da cultura como um valor colocar os produtos cultu- outra grande questão, nominal e declarativo. rais nacionais nos merca- pois está intimamente Sem dúvida, graças ligada à coordenação, à dos internacionais. à forma de trabalhar e à Os processos consul- descentralização, a mercados quantidade de jornadas reativos e participativos tam- nacionais e internacionais, lizadas ao longo do processo bém são uma necessidade alocação de recursos, de discussão, o eixo territoque preocupa os integran- legislação e infraestrutura rial é o mais desenvolvido tes desses setores, que en- (que aparece recorrentemente e trabalha­do. A riqueza de fatizam especialmente a como uma demanda detalhes nos diagnósticos atualização da informação específica de cada setor) e informações relativas aos cultural e dos orçamentos territórios, assim como o alocados às instituições do setor que atuam levantamento dos agentes culturais e a atuana esfera pública. lização do levantamento da infraestrutura, Finalmente, e com menos frequência, está entre os pontos mais fortes dos docusurgem outras questões: o relegado papel mentos finais produzidos pelo acordo entre das mulheres, a formação de público e a a DNC e a FCS. acessibilidade. A abordagem por setores também mostra o seu vigor e força, não se esquivando dos Para terminar detalhes e facilitando espaços de diálogo e Não há dúvidas sobre a riqueza do proces- discussão entre atores muito diversos. Nesso de discussão e diálogo em torno do PNC sas jornadas, ficou evidente que alguns setodescrito anteriormente. Tem sido dos mais res têm mais claros seus pontos fortes, suas frutíferos e participativos na breve história necessidades e seus pontos fracos, leituras dos debates sobre essa questão no Uruguai. que dependem do nível de institucionalizaNo entanto, não foi capaz de produzir um do- ção e de associação. cumento único que estabelecesse claramenFalta saber como será desenvolvido o te as bases para os caminhos que a cultura Projeto de Lei sobre Cultura e Direitos Culsocialmente organizada deve seguir no país turais, que ainda está sob análise do Poder Lenem foi capaz de manifestar claramente o gislativo. O que está claro é que a preocupação vínculo com outros setores estratégicos que existe há cerca de 25 anos e que, tanto em nível têm uma visão de longo prazo. Embora os do- territorial quanto nos setores artístico-cultucumentos que tratam do processo reconhe- rais, a demanda tomou forma e atingiu proçam recorrentemente o valor transversal da porções até o momento inusitadas.

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Restam duas grandes perguntas. A primeira: pensando que até agora foram desenvolvidas políticas públicas em cultura que não existiam antes, podemos dizer que as políticas culturais uruguaias não precisam de um PNC? A segunda: qual é a real necessidade por trás da consolidação de um PNC? Para resolver quais demandas? Para organizar quais instituições? Podemos ensaiar respostas que seguiriam dois sentidos. Por um lado, a preocupação e a demanda existem e são cada vez maiores porque estão mais organizadas, os agentes culturais de todo o país estão se juntando e se conectando há muitos anos em assembleias, reuniões e jornadas de discussão. Embora as políticas públicas em cultura tenham sido desenvolvidas por vontade e decisão política do Poder Executivo, boa parte desse desenvolvimento e dessa concretização se deve a esses processos de discussão. Da mesma forma, a maioria dos atores acredita que esses processos não resultaram em algo que estabeleça um universo claro de existência e os limites do que será feito em termos de políticas públicas em cultura, o que será priorizado, o que será feito primeiro e o que será feito depois. Boa parte do problema há 25 anos era que havia poucas coisas feitas. No entanto, boa parte do problema atual é que há muitas coisas feitas e muitas a ser feitas, por isso devemos priorizar e enfatizar sua importância. Planejar é criar um universo do que é abrangido, um mapa de ação que organize ao mesmo tempo quais são as áreas a ser

desenvolvidas primeiro, quais questões ou setores precisam de uma intervenção estatal mais urgente, quais podem ser bem trabalhados somente com políticas de estímulo e quais podem ser desenvolvidos sem nenhuma intervenção do Estado central. Algo similar acontece no tocante aos direitos e à diversidade cultural. Quais direitos precisam de mais atenção, quais populações e territórios devem ser colocados em primeiro lugar, com quais instituições deve ser ajustada a coordenação e com quais instrumentos isso poderia ser feito. Mariana Wainstein, em seu artigo “Cartografía cultural. Algunos apuntes y reflexiones”, fala sobre a necessidade de justificar o mapa cultural no Uruguai. Embora estas últimas linhas tenham a intenção de refletir a necessidade de planejar, é necessário tomar decisões e delimitar o que deve ser feito e ao longo do tempo. O Projeto de Lei sobre Cultura e Direitos Culturais parece ter essa intenção, embora, por necessidade, seja generalista. Entendo que um plano deve lançar as bases do que se quer fazer, com uma série de ações gerais que tendam a estabelecer essas linhas, organizando-as no tempo e facilitando o alcance de metas e objetivos de curto, médio e longo prazos. Para chegar a um Plano Nacional de Cultura com visão de longo prazo e espírito de política de Estado, talvez falte um contexto político e de cidadania ampliada que possa se apropriar do processo de tal forma que este não fique apenas nas mãos dos principais envolvidos, mas de todos os cidadãos.


PLANOS DE CULTURA

Hernán Cabrera

Hernán Cabrera Tem formação em sociologia pela Faculdade de Ciências Sociais e pós-graduação em gestão cultural, ambas pela Universidade da República (UdelaR), no Uruguai. Mestrando em cultura pública pela Universidade Nacional das Artes da República Argentina e em política cultural pelo Centro Universitário Regional Leste da UdelaR. É gestor cultural, pesquisador e professor da licenciatura em gestão cultural da Universidade Centro Latino-Americano de Economia Humana (UCLAEH). Além disso, ocupou vários cargos de coordenação ligados às políticas públicas em cultura, tanto na Direção Nacional de Cultura do Ministério de Educação e Cultura quanto na Direção de Planejamento do Gabinete de Planejamento e Orçamento da Presidência da República.

Referências bibliográficas CARÁMBULA, Gonzalo (2011). La institucionalidad cultural pública como problema. In: AROCENA, Felipe (coord.). Regionalización cultural del Uruguay. Montevidéu: Universidad de la República-Dirección Nacional de Cultura-Programa Viví Cultura. p. 295-355. CORBOZ, Andre (2001). El territorio como palimpsesto. In: CORBOZ, A. (coord.). Le territoire comme palimpseste et otres esáis. Besançon, Paris. p. 15-36. DIREÇÃO NACIONAL DE CULTURA DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da República (2017a). Plano Nacional de Cultura. Relatório do Convênio de assistência e assessoria técnica para a promoção de um diálogo nacional destinado à elaboração do Plano Nacional de Cultura 2017-2027. Montevidéu. DIREÇÃO NACIONAL DE CULTURA DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da República (2017b). Diagnóstico territorial. Montevidéu. DIREÇÃO NACIONAL DE CULTURA DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA. Departamento de Sociologia da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade da República (2017c). Diagnóstico cidadão. Fase setorial. Montevidéu. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E CULTURA (2019). Projeto de lei sobre cultura e direitos culturais. Montevidéu. TRYLESINSKI, F.; ASUAGA, C.; PIENIKA, E.; MEDEIROS, G.; MENDEZ, I.; BARRETO, Y. (2013). Hacia la Cuenta Satélite de Cultura del Uruguay. Montevidéu: Departamento das Indústrias Criativas da Direção Nacional de Cultura do Ministério da Educação e Cultura. WAINSTEIN, Mariana. Cartografía cultural. Algunos apuntes y reflexiones. Cuadernos del CLAEH, Segunda Série, Montevidéu, ano 37, n. 107, p. 301-310.

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Notas 1

Documento Declaração Diretores de Cultura, 1 abr. 2014.

2

O projeto de lei foi apresentado pelo Poder Executivo em 13 de agosto de 2019 e está sendo estudado pela Comissão de Educação e Cultura. Entretanto, em meados de fevereiro de 2020, os representantes de ambas as câmaras (senadores e deputados) vão mudar, de modo que se espera que esse projeto seja rejeitado ou sofra grandes modificações.

3

O departamento de Canelones, o segundo mais populoso do país, precisou de mais jornadas de trabalho, devido à sua densidade e distribuição populacional.

4

Durante os anos de 2012 e 2013, a Área de Gestão Territorial da Direção Nacional de Cultura do Ministério de Educação e Cultura realizou um processo de levantamento das infraestruturas e instituições culturais. Um dos principais resultados desse trabalho foi a concretização do Mapa Cultural do Uruguai, lançado em dezembro de 2013 (disponível em: http:// fondosdeincentivocultural.gub.uy/innovaportal/v/45149/24/mecweb/mapa_ cultural_del_uruguay?parentid=29678). Esse mapa funcionou até 2015 sem grandes problemas. A partir desse ano, começou o trabalho de atualização dele, iniciando um novo processo, desta vez com aqueles que haviam desenvolvido o mapa cultural de software livre para São Paulo (Mapas Culturais/Instituto TIM) e depois para outras áreas ou regiões do Brasil. Essa jornada resultou em uma excelente plataforma que funciona até hoje: http://culturaenlinea.uy/. Além disso, no ano de 2016 foi publicado o trabalho de levantamento realizado em 2012 e 2013, disponível em: https://www.bcu.gub.uy/Acerca-de-BCU/Concursos%20 Externos/Relevamiento%20de%20Inst.%20e%20Infr.%20Culturales%20del%20 Uruguay%20-%20MEC.pdf.

5

Lei no 18.384, “Estatuto dos artistas e trabalhos afins”.

6

Op. cit.

7

Op. cit.


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8

O Uruguai sofre com o problema de que Montevidéu (sua capital) concentra quase a metade de toda a população. Fala-se de macrocefalia porque praticamente todas as decisões do governo central são tomadas na capital e depois “descem” para o resto do território nacional. É por isso que a descentralização e a desconcentração aparecem recorrentemente como problemas centrais nas políticas públicas.

9

De acordo com dados da Conta Satélite da Cultura do Uruguai de 2009, as indústrias criativas geravam um valor de 0,93% do PIB e empregavam aproximadamente 19 mil pessoas. Só o setor audiovisual gerava 0,45% do PIB e empregava pouco mais de 5 mil pessoas.

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POLÍTICAS DE CULTURA NO LONGO PRAZO: O CASO DO PLANO NACIONAL DE CULTURA DA COLÔMBIA Paula Félix dos Reis

As políticas culturais dos governos geralmente acompanham o período de uma determinada gestão, sem previsão de continuidade após a mudança dos dirigentes públicos. O governo colombiano, ao propor um Plano Nacional de Cultura (PNC) com vigência decenal (2001-2010) se contrapôs a essa realidade, convertendo-se em uma experiência pioneira na América Latina. Este artigo analisa o processo de construção e os principais conteúdos do Plano Nacional de Cultura da Colômbia, investigando as intenções de continuidade da política.

I – Alguns antecedentes importantes

N

a segunda metade do século XX, o governo da Colômbia realizou reformas políticas e administrativas importantes que se destacam na história do país. No setor cultural, através do Decreto no 3.154, de 26 de dezembro de 1968, o Instituto Colombiano de Cultura (Colcultura) e o Conselho Nacional de Cultura foram criados, ambos ligados ao Ministério de Educação. O Colcultura, organizado pelo Decreto no 994, de 10 de junho de 1969, era o órgão responsável pelas políticas culturais do governo. Ao instituto cabia a elaboração, o desenvolvimento e a execução dos planos de estímulo e fomento às artes e às letras, o cultivo ao folclore nacional, o estabelecimento de bibliotecas, museus

e centros culturais e outras atividades no campo da cultura (DECRETO No 994, 1969, artigo 4o, tradução nossa).

A criação do Colcultura e a do Conselho de Cultura foram momentos importantes no processo de institucionalidade da cultura colombiana no interior do Estado, o que culminaria na criação de um ministério próprio em 1997. O Colcultura reuniu diversas instituições culturais existentes, como o Teatro e o Museu Nacional, e as agregou em torno das três subdireções que compunham o instituto: Patrimônio; Comunicações Culturais; e Belas-Artes. Outro antecedente importante foi a formulação de uma nova Constituição Federal para o país. Em 1991, é promulgada uma nova


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carta magna na Colômbia, gerando uma nova concepção do Estado e trazendo novos desafios diante da cultura. A constituição anterior datava de 1886. Segundo o ex-ministro Juan Luis Mejía, esse é um dos marcos da política cultural colombiana: A política cultural é uma antes e outra depois da Constituição de 1991. O que tínhamos antes? De forma geral, tínhamos uma política cultural sob uma institucionalidade pensada para um país culturalmente homogêneo, um país que havia se estruturado ao redor de um mito falso de ser um país branco, cristão, que só falava espanhol (MEJÍA, 16 abr. 2012, tradução nossa).

cultural, entre outros aspectos-chave [...]. É, pois, a Constituição de 1991 o fato político cultural de maior transcendência.

Como resultado das novas exigências e responsabilidade do Estado em relação à cultura, é aprovada a Lei Geral da Cultura da Colômbia. A referida lei, de número 397, de 7 de agosto de 1997, dita as normas sobre patrimônio cultural, fomentos e estímulos à cultura. Outro ponto importante é a criação do Ministério da Cultura e a extinção do Colcultura:

Cria-se o Ministério da Cultura como organismo reitor da cultura, encarregado de formular, coordenar, executar e vigiar a política do Estado na maA criação de um téria, em concordância com os ministério específico planos e programas de desenvolpara a cultura não foi vimento, segundo os princípios de algo desejado por participação contemplados nesta todos ou isento de lei (LEI No 397, 1997, artigo 66, tratensões dução nossa).

Um dos grandes marcos da Constituição de 1991 é justamente o reconhecimento da diversidade cultural do país e da obrigação do Estado diante da cultura. Isso se evidencia nos princípios fundamentais da Constituição, em que se afirma que “o Estado reconhece e protege a diversidade étnica e cultural da nação colombiana” e que “é obrigação do Estado e das pessoas proteger as riquezas culturais e naturais da nação” (COLOMBIA, 1991, artigos 7o e 8o, tradução nossa). Segundo Bravo (2008, p. 215, tradução nossa), a Constituição de 1991 ressalta conceitos culturais básicos, como plurietnicidade e pluriculturalidade, liberdade de criação, relações entre cultura e desenvolvimento [...], relevância do papel do Estado na relação com o patrimônio

Apesar de a Lei Geral da Cultura ter sido discutida amplamente antes da sua aprovação, registram-se discordâncias e oposições importantes. A criação de um ministério específico para a cultura não foi algo desejado por todos ou isento de tensões. Primeiro, havia um paradoxo pertinente ao período, década de 1990, em que se observava uma Constituição que dava mais responsabilidades ao Estado, ao mesmo tempo que a conjuntura política externa pregava políticas neoliberais, exigindo estruturas mais enxutas e uma atuação mínima do governo. Havia, também, a desconfiança em relação ao dirigismo do

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governo no âmbito cultural, pois alguns grupos acreditavam que esta não deveria ser uma área de atuação do Estado. Cabe ainda destacar a oposição de um grupo importante de intelectuais liderados por Gabriel García Marquez, máximo expoente das letras colombianas, figura mundial da literatura [...], não considerava conveniente sua criação pelo temor da burocratização e da intervenção do governo na cultura (BRAVO, 2008, p. 297, tradução nossa).

Diante dos antecedentes destacados, percebe-se a importância da década de 1990 para as políticas culturais da Colômbia. Há uma maior institucionalidade da cultura no âmbito governamental e a construção de políticas participativas, envolvendo processos de escuta. Todo esse cenário é fundamental para a formulação do Plano Nacional de Cultura (PNC), que esteve em vigência entre os anos de 2001 e 2010, e pode ser citado como um dos exemplos de políticas participativas do país. II – Processo de elaboração O período de formulação do Plano Nacional de Cultura colombiano ocorreu especialmente entre os anos de 2000 e 2001. É importante relembrar que, nesse período, o Ministério da Cultura era recente, com apenas dois anos de criação, e já estava com um terceiro ministro.1 Somente no intervalo entre a formulação e a finalização do plano, foram três gestores. Segundo o então ministro da Cultura, Luis Mejía,2 o PNC teve como inspiração os Cabildos Culturais do Chile, programa desenvolvido

pelo governo chileno entre 1999 e 2002, consistindo em encontros realizados em âmbitos local, regional e nacional para pensar e discutir o desenvolvimento cultural do país. O processo de elaboração do Plano Nacional de Cultura da Colômbia levou cerca de um ano, período em que se destacam as seguintes convocatórias: I) c onvocatórias cidadãs; II) convocatória do Ministério da Cultura; III) convocatória do Conselho Nacional de Cultura. As convocatórias cidadãs ocorreram entre julho e novembro de 2000, envolvendo reuniões setoriais e consultas à sociedade civil. Nas reuniões setoriais, houve encontros com grupos ligados às artes, a comunicações, patrimônio, bibliotecas e museus. As consultas à sociedade civil mobilizaram encontros nos âmbitos municipal (540 encontros); departamental e distrital (realizados em todos os 32 departamentos e nos 4 distritos colombianos); regional (7 encontros); e nacional. Ao todo, cerca de 23 mil pessoas participaram do processo de convocatória (MINISTERIO DE CULTURA, PNC, 2001). A convocatória do Ministério da Cultura esteve relacionada com todos os esforços e mobilizações necessários interna e externamente ao órgão. O ministério precisava estar consciente da importância do processo de formulação e do próprio Plano Nacional de Cultura. Além disso, havia um trabalho de articulação com os grupos culturais e os outros âmbitos da administração pública (municípios, departamentos, distritos e regiões).


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A convocatória do Conselho Nacional de Cultura envolveu a participação deste na formulação do plano. Juntamente com o Ministério da Cultura, o conselho compôs a comissão mista responsável por analisar as consultas cidadãs e finalizar o Plano Nacional de Cultura. No processo de formulação do PNC colombiano, vale ressaltar a articulação com o Conselho Nacional de Política Econômica e Social (Conpes). O documento Conpes 3162 foi aprovado em 10 de maio de 2002, indicando diretrizes para a sustentabilidade do plano. Na justificativa apresentada pelo documento, discute-se a importância da cultura como base de desenvolvimento e a intervenção do Estado no setor cultural. Ainda segundo o Conpes 3162, os objetivos descritos no Plano Nacional de Cultura dependeriam de ações que fortalecessem o ministério e reorganizassem as políticas culturais do país. III – Estrutura e avaliação de conteúdo do PNC O Plano Nacional de Cultura da Colômbia foi apresentado pelo governo no dia 10 de dezembro de 2001, tendo vigência até 2010. Um aspecto importante relacionado ao PNC colombiano é que ele não está previsto em nenhuma lei. O documento do plano e o Conpes 3162 são os principais registros da sua intencionalidade. Quando questionado sobre a definição do prazo decenal de validade do plano, o ex-ministro Juan Luis Mejía afirmou: Porque estávamos começando o século e queríamos ter, primeiro, um número redondo e queríamos ter uma visão da primeira década do século. [...] não é um prazo

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demasiado longo, mas naquela época o víamos assim, e também porque acreditamos que é um período em que realmente se pode fazer avaliações das políticas culturais (MEJÍA, 16 abr. 2012, tradução nossa).

O tema do PNC da Colômbia 2001-2010 é Para uma Cidadania Democrática Cultural: um Plano Coletivo desde e para um País Plural. Esse tema é um reflexo de todo o momento anterior pelo qual passou o país em busca do reconhecimento da diversidade cultural existente e de um Estado mais participativo. O próprio documento afirma isso logo em seu prólogo: Este plano é uma criação que reúne as vozes de milhares de colombianos. É um plano de um país com múltiplas culturas. Um plano de uma nação diversa. Um plano que fala de um país plural e pelo qual fala um país plural. Um plano que se diz de muitas maneiras, como o país (MINISTERIO DE CULTURA, PNC, 2001, p. 9, tradução nossa).

Em relação à sua estrutura, o documento possui 80 páginas e divide-se da seguinte maneira: I) P ropósito do PNC; II) Natureza do PNC; III) Considerações históricas e sociais; IV) Princípios gerais; V) Campo das políticas; VI) Orientações do PNC; VII) Etapas. A primeira parte do documento, “Propósito do PNC”, descreve o principal objetivo do plano, que é propiciar a construção de uma

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cidadania democrática cultural na Colômbia. A ideia de construção coletiva e democrática é recorrente ao longo do documento. Em matéria publicada pelo jornal El Tiempo, registra-se o receio da falta de interesse e participação social, fato que surpreendeu positivamente os integrantes do Ministério da Cultura: O país possui 1.081 municípios. Todos foram convidados a pensar o desenho das políticas culturais que querem para a Colômbia. O susto se havia apoderado dos funcionários do Ministério da Cultura, que não sabiam se, diante da situação em que se vive, os habitantes iriam responder. Hoje, a notícia de que 523 localidades assistiram à reunião e discutiram o tema os deixou contentes (NULLVALUE, 2000, tradução nossa).

No tópico “Natureza do PNC”, definem-se as qualidades que permitiriam o cumprimento dos objetivos do plano. Destaca-se a característica dinâmica da cultura e a importância de pensar a cultura dialogando com as dimensões política, territorial, da diversidade e da sustentabilidade. Também afirma o plano como política de Estado, com vistas ao longo prazo, e como projeto pedagógico, contribuindo para a construção da participação e da cidadania como exercício democrático de transformação da cultura política (MINISTERIO DE CULTURA, PNC, 2001). A terceira parte do documento, “Considerações históricas e sociais”, trata da “revolução cultural” vivida pela sociedade nas últimas décadas, marcada por questões como diferentes concepções sobre sexualidade;

novas demandas políticas, de participação social, de relações e expectativas nos espaços da família e do trabalho; formas alternativas de desfrute do tempo livre; e processos inéditos de comunicação (MINISTERIO DE CULTURA, PNC 2001, p. 22). Nesse tópico, o plano também aborda as mudanças sociais e culturais da Colômbia, que não foram acompanhadas por um sistema político capaz de reconhecer a diversidade cultural do país: O sistema central não deu cabimento nem respostas à presença crescente de atores e agentes sociais na sua diversidade e dinâmica. Em algumas ocasiões tentou sua cooptação por mecanismos clientelistas, mas as novas expressões transbordaram essas práticas no país. [...]. Desde a criação da República, a história política colombiana poderia se caracterizar por um centralismo político-estatal, manejado por partidos hegemônicos pouco dispostos a se abrir e a tramitar novas demandas de setores populares. Configurou-se um Estado monopolizado por interesses e setores tradicionais, pobre e débil em sua capacidade e presença [...] (MINISTERIO DE CULTURA, PNC, 2001, p. 23, tradução nossa).

O documento retrata, como consequência desse descompasso, uma Colômbia elitista, desigual e pouco democrática, dando espaço para o crescimento da corrupção e da violência. Na quarta parte do documento são elencados os princípios gerais do plano. Ao todo, são 11 princípios gerais, que envolvem, entre outros aspectos, a construção


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de uma cidadania democrática, cultural e plural; a configuração de um projeto coletivo de nação; o Estado como garantidor do reconhecimento e respeito pela diversidade cultural; a apreciação criativa das memórias e proteção do patrimônio; a inter-relação e articulação das políticas culturais; e o cultural como base para a construção do desenvolvimento social, político e econômico (MINISTERIO DE CULTURA, PNC, 2001). A quinta parte do documento, “Campo das políticas”, pode ser considerada uma das principais, em que se encontram as propostas para o setor cultural, divididas em três áreas: “Participação”; “Criação e memória”; e “Diálogo cultural”. Para cada uma delas, o plano apresenta um texto introdutório, diagnóstico do setor, definição de políticas e estratégias. “Criação e memória” é o campo que mais concentra políticas e estratégias, conforme a tabela a seguir: CAMPO DAS POLÍTICAS CAMPO DAS POLÍTICAS

TOTAL DE POLÍTICAS

TOTAL DE ESTRATÉGIAS

Participação

4

16

Criação e memória

10

59

Diálogo cultural

5

25

do país. Um Estado cujas ações se apresentam de forma pontual e no curto prazo. O Plano Nacional de Cultura colombiano, através das convocatórias à população, é citado como um esforço para reverter esse cenário de pouca aproximação entre as políticas do governo e as demandas e realidades sociais. O segundo campo definido no plano é “Criação e memória”, que possui maior destaque no documento. Relaciona-se com a riqueza cultural do país e a necessidade de estimular a criação sem esquecer a memória coletiva. Uma das preocupações apontadas nesse campo refere-se à possibilidade de excluir grupos e manifestações representativos da memória coletiva do país: Este diálogo das memórias possui profundas implicações políticas, na medida em que ali se define o que merece ser recordado ou deveria ser esquecido; é estabelecida a relevância que possuem para a memória coletiva os diferentes atores sociais e seus suportes patrimoniais, e se qualificam relações de continuidade ou descontinuidade entre o passado, as situações presentes e os projetos de futuro (MINISTERIO DE CULTURA, PNC 2001, p. 46, tradução nossa).

Fonte: dados obtidos do documento Plan Nacional de Cultura 2001-2010: Hacia una Ciudadanía Democrática Cultural, do Ministério da Cultura da Colômbia (2001).

O campo “Diálogo cultural” trata das estratégias para reconhecimento da diversidade e do convívio equilibrado entre as culturas.

O campo “Participação” reforça, mais uma vez, o propósito do plano colombiano, que é o de envolver a população na formulação das políticas culturais. Revela-se um Estado pouco aberto às demandas sociais e às realidades

Em síntese, este campo estimula o diálogo, o intercâmbio e a negociação nas culturas e entre as culturas para o reconhecimento, a dignificação e a valoração da diversidade

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coletivos de nação plural (MINISTÉRIO DE CULTURA, PNC, 2001, p. 75). É importante destacar que os temas da pobreza, dos refugiados e da violência são recorrentes no PNC colombiano. O O PNC colombiano segue com “Orientações país ainda sofre com sérios problemas popara o plano”, destacando três aspectos: líticos, econômicos e sociais, muitos deles consequentes e relacionados ao narcotráI) cenários de reconhecimento e par- fico e ao paramilitarismo. No período de ticipação: ressalta a imimplantação do PNC, a siportância dos espaços Os temas da pobreza, dos tuação do conflito armado regionais e locais, a for- refugiados e da violência era gravíssima, com altas mação de redes e o estí- são recorrentes no PNC taxas de violência, homicímulo ao diálogo e à escuta; colombiano. O país dio e migração. Seria difícil e incoerenainda sofre com sérios II) critérios: define os problemas políticos, te pensar uma política para a critérios de sustentabili- econômicos e sociais Colômbia, inclusive a polítidade; pactuação; articuca cultural, sem abordar tais lação; acompanhamento e ajuste para temas. A migração de famílias e pessoas das o plano; suas terras de origem de forma involuntária certamente traz impactos para a cultura III) condições para a gestão do plano: do país. Inibe a liberdade e a criatividade de trata de iniciativas relacionadas às grupos culturais, coagidos pelo medo e pela instâncias de coordenação do plano; violência. O próprio consumo e a circulação redefinição institucional do ministério cultural, bem como as demais etapas do proe uso de instrumentos de planejamento, cesso cultural, são comprometidos. gestão, infraestrutura, formação, inforO Plano Nacional de Cultura colommação, legislação e financiamento. biano se encerra com as etapas para a implementação do documento, a saber: I) soO plano finaliza com o tópico “Orientações do cialização e apropriação do plano; II) discusPNC”, em que se destacam as prioridades de são e ajuste da proposta do plano nacional; ação. Nele, os “sujeitos imediatos das políti- III) adequação institucional; IV) combinacas culturais” são: I) populações afetadas por ção de prioridades de ação; V) execução do deslocamentos violentos; II) populações em plano através dos seus cenários. situação de extrema pobreza; III) localidades em desvantagem por não terem as condições IV – Algumas considerações finais básicas para a criação, a produção e o con- A Colômbia apresenta propostas pioneiras sumo cultural; e IV) ausência de espaços de para o campo cultural. Como exemplo, citacriação cultural que identifiquem projetos mos o próprio PNC, pensado no longo prazo, e a pluralidade no cenário do público nos contextos locais e regionais do país (MINISTERIO DE CULTURA, PNC, 2001, p. 58, tradução nossa).


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o Sistema Nacional de Cultura e o Sistema para a análise de resultados, conforme Nacional de Informação Cultural. Tais ini- salienta Zapata (2012), que coordenou o ciativas antecedem as de muitos países, processo de avaliação do plano. Muitas incluindo o Brasil. Infelizmente, muitas questões que foram colocadas como imestratégias contidas no documento do pla- portantes no plano nacional ficaram à parte no não puderam ser implantadas conforme das avaliações. Entre elas, podemos citar os o esperado. grupos e instituições prioritários indicados Em 2009, o Ministério da Cultura do no plano decenal, já citados anteriormente. país iniciou o processo de criação de me- Em nenhum momento da avaliação houve todologia e avaliação do Plano Nacional um enfoque neles. Também não foram side Cultura, cujos resultados foram divul- nalizadas áreas e ações que não avançaram, gados em 2010 na publicação que encontraram maior difiGestión del Ministério de Cul- O pioneirismo culdade em gerar resultados tura en el Marco del Plan De- colombiano traz positivos. Essa é uma análise cenal 2001-2010: Elementos de como consequências importante para pensar políEvaluación. Para a avaliação, aspectos positivos, ticas futuras. foram criados cinco cenários mas também impõe Ressalta-se a preocupa(Institucional e Normativo; desafios ção em articular as inúmeras Diálogo Intersetorial, Público ações e políticas no interior do e Privado; Desenvolvimento Autônomo; governo, como a aproximação entre os planos Desenvolvimento Regional; e Dimensão decenal e os de desenvolvimento; em ir além Global), que, articulados com os campos dos limites ministeriais, identificando parcede política do plano (“Criação e memória”, rias com outros setores e países; em acom“Participação” e “Diálogo cultural”) e suas panhar os avanços legais e administrativos políticas e estratégias derivadas, com as do setor cultural e do ministério. diretrizes propostas pelo Conpes 3162 e No final do documento, há recomencom os informes de gestão apresentados dações e propostas para a próxima década. pelo Ministério da Cultura, compuseram Mas em nenhum momento fala-se na elaboos indicadores para a análise do plano co- ração de um novo plano. O PNC da Colômlombiano após dez anos. Além desses do- bia teve seu período de vigência finalizado cumentos de base, foram aplicadas outras em 2010, ano em que assumiu a ministra da ferramentas para a coleta de dados: pesqui- Cultura Mariana Garcés Córdoba. Passados sas, análise do desenvolvimento regional e dez anos, não há, até o momento, demonsencontros regionais. tração de interesse ou de mobilização por De forma geral, o documento apresenta parte do ministério para dar continuidade inúmeros projetos e iniciativas positivas li- a um novo PNC. Vale ressaltar que ela assugados a cada um dos cinco cenários criados. me justamente após as jornadas regionais, Mas observa-se que a falta de indicadores que tinham como um dos objetivos pensar claros no PNC foi um dos grandes desafios o novo Plano Nacional de Cultura.

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Isso nos leva ao questionamento sobre a fragilidade dos planos de longa duração, à mercê dos interesses momentâneos da gestão pública, e nos faz pensar de que forma poderíamos fortalecer os instrumentos da política cultural. É importante salientar que o pioneirismo colombiano traz como consequências aspectos positivos, mas também impõe desafios. A inexistência ou o número reduzido de experiências que pudessem servir de comparativos para auxiliar na criação de indicadores e avaliações de resultados do plano, bem como para sua aprovação através de uma lei específica, podem ser citados como exemplos. Outro ponto a ser observado foi o tempo para mobilização, formulação e finalização do plano. Talvez tenha sido insuficiente para consolidá-lo, efetivamente, nos âmbitos do governo e da sociedade. Para finalizar, ressalta-se que o Ministério da Cultura colombiano era uma instituição recente, com dificuldades iniciais para sua consolidação. Mesmo hoje, apresenta desafios relacionados aos recursos humanos, materiais e técnicos. Esse aspecto precisa ser considerado em todo o contexto que envolve o Plano Nacional de Cultura. Destaca-se, ainda, o panorama político vivenciado pelo país. Na Colômbia, tem-se como pano de fundo das estratégias e ações do PNC o desejo de construir um projeto coletivo de nação, em que a cultura teria um papel importante de resgatar e fortalecer valores enfraquecidos pela violência e pelas desigualdades.

Paula Félix dos Reis Professora adjunta do Centro de Cultura, Linguagens e Tecnologias Aplicadas da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB). Doutora e mestre em cultura e sociedade pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), com estágio doutoral na Universidade de Barcelona e pós-doutorado no Center for Iberian and Latin American Studies, da Universidade da Califórnia. Atua desenvolvendo trabalhos nas áreas da gestão e da política cultural, com enfoques locais, regionais e internacionais. E-mail: paula.fr@gmail.com.


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Paula Félix dos Reis

Referências bibliográficas BRAVO, Marta Elena. Itinerarios culturales 1985-2007: voces y presencias. Medellín, 2008. COLOMBIA. Constitución Política de Colombia. 1991. Disponível em <https://zh.unesco. org/sites/default/files/colombia_constitucion_politica_1991_spa_orof.pdf>. Acesso em: jan. 2020. ______. Conpes 3162: lineamientos para la sostenibilidad del Plan Decenal de Cultura 2001-2010 “Hacia una ciudadanía democrática cultural”. 10 mayo 2002. MEJÍA, Juan Luis. Entrevista oral realizada durante pesquisa de campo em Medellín no dia 16 de abril de 2012. MINISTERIO DE CULTURA. Ley General de Cultura (Ley 397, de 1997). Alberto Sanabria Acevedo (Comp.). Bogotá: Imprenta Nacional de Colombia, 2000. ______. Gestión del Ministerio de Cultura en el marco del Plan Decenal 2001-2010: elementos de evaluación. Bogotá, 2010. ______. Plan Nacional de Cultura 2001-2010 – hacia una ciudadanía democrática cultural. Bogotá, 2001. NULLVALUE. Plan Nacional de Cultura. Publicación El Tiempo.com. Sección Cultura y Entretenimiento. 28 de julio de 2000. Disponível em: <http://www.eltiempo.com/ archivo/documento/MAM-1256572>. Acesso em: ago. 2012. REIS, Paula Félix dos. Políticas de cultura a longo prazo: estudo comparativo entre o Plano Nacional de Cultura do Brasil e da Colômbia. Tese (Doutorado)–Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2013. ZAPATA, Clara Mónica. Entrevista oral realizada durante pesquisa de campo em Medellín no dia 16 de abril de 2012.

Notas 1

Relação de ministros(as) da Cultura da Colômbia desde sua criação: I) 1997-1998: Ramiro Osorio; II) 1998-1999: Alberto Casas Santamaría; III) 1999-2000: Juan Luis Mejía Arango; IV) 2000-2001: Consuelo Araújo Noguera; V) 2001-2002: Araceli Morales López; VI) 2002-2006: María Consuelo Araújo Castro; VII) 2006-2007: Elvira Cuervo de Jaramillo; VIII) 2007-2010: Paula Marcela Moreno Zapata; IX) 2010-2018: Mariana Garcés Córdoba; X) 2018: Carmen Vásquez (atual).

2

No que se refere à formulação do PNC, destaca-se a gestão do ex-ministro da Cultura Juan Luis Mejía Arango, à frente do cargo nos anos de 1999 e 2000. Mesmo com o plano sendo finalizado somente em 2001, pode-se afirmar que ele foi o grande incentivador da sua formulação.

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DOS PLANOS NACIONAIS AOS INSTITUTOS SETORIAIS DE CULTURA NA ARGENTINA Rubens Bayardo

Este artigo trata de uma mudança significativa nas políticas culturais da Argentina, que passaram da redação de planos nacionais de cultura para a formação de institutos setoriais de cinema, teatro e música. Refere-se à passagem de uma administração relativamente centralizada e planejada de ação pública nos domínios da área para outra de institutos por setor, com fundos próprios que concedem subsídios, créditos e outros apoios a atores privados e independentes. Isso está em sintonia com as regulamentações de mercado para promover a cultura como economia e negócio, propiciadas pela abstenção do Estado.

E

ste artigo trata de uma mudança significativa nas políticas culturais da Argentina, que passaram da redação de planos nacionais de cultura, nas décadas de 1980 e 1990, para a formação de institutos setoriais, de meados da década de 1990 até a atualidade. Os planos foram elaborados pela Secretaria de Cultura da Nação (SCN),1 com princípios, objetivos, programas e linhas de ação prioritárias, fazendo referência a debates em encontros de autoridades federais, regionais e provinciais. Durante a transição democrática, a Argentina teve quatro planos de cultura, que depois deixaram de ser feitos. Por outro lado, foram criados o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (Incaa, Lei no 24.377/1994), o Instituto Nacional de Teatro (INT, Lei n o 24.800/1997) e,

mais recentemente, o Instituto Nacional da Música (Inamu, Lei n o 26.801/2013). Esses institutos têm uma matriz comum em sua organização como instrumentos de promoção e desenvolvimento voltados para os praticantes de cada um desses domínios. Embora estejam no âmbito da SCN, são caracterizados pelo poder de decisão conferido às suas autoridades e por ter estatutos jurídicos que consagram sua autonomia administrativa e financeira. O Incaa e o Inamu têm status de “entidade pública não estatal”, razão pela qual são regidos pelo direito privado, facilitando fugir das regulamentações públicas e aceitar vínculos com os mercados. Assistimos, assim, à passagem de uma administração relativamente centralizada2 e planejada de ação pública nos domínios da área para o


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modelo de institutos por setor com fundos próprios que concedem subsídios, créditos e outros apoios a atores privados e independentes. Isso está em sintonia com as regulamentações de mercado para promover a cultura como economia e negócio, propiciadas pela abstenção do Estado. Os planos nacionais de cultura Na transição democrática, a Argentina teve quatro planos de cultura, sendo um durante o governo de Raúl Alfonsín (União Cívica Radical), o Plano Nacional de Cultura de 1984-1989; e três durante o primeiro governo de Carlos Menem (Partido Justicialista), o Plano Federal de Cultura de 1990, o Plano Nacional de Cultura de 1992 e o Plano Nacional de Cultura de 1994.3 Estavam claramente relacionados aos momentos políticos em que foram elaborados e estabeleciam princípios gerais de política cultural, objetivos, iniciativas jurídicas, organizacionais e de ação cultural que visavam atingir todo o território nacional. O Plano Nacional de Cultura de 1984-1989, encabeçado pelo slogan “A cultura é de todos”, dava especial atenção ao retorno à vida democrática e ao papel da cultura na recuperação do espaço público após as ditaduras. Baseava-se nos princípios de liberdade de criação, estímulo à produção cultural, participação na distribuição de bens e serviços culturais e preservação do patrimônio cultural. Era um plano conceitualmente fundamentado, com uma elaboração cuidadosa dos objetivos, programas e ações a ser seguidos, organizados em torno da estrutura de administrações e organizações descentralizadas da SCN [museus, livro, música, teatro

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e dança, artes visuais, Instituto Nacional de Cinema (INC), entre outras]. O Plano Federal de Cultura de 1990 se destacou pelo caráter protagonista que as províncias e as regiões4 do país deveriam adquirir em detrimento do “centralismo portenho”. Daí sua denominação como “federal” e sua proposta de novos olhares: “a região a partir da região”, “a metrópole a partir da região” e “o mundo a partir da região”. O plano se baseava em três eixos centrais: a unidade nacional, a revolução produtiva e a integração latino-americana. Apelava para slogans historicamente associados ao partido no poder e destacava o papel das ações culturais na construção de um novo pacto social para consolidar a unidade nacional. O eixo da “revolução produtiva” se referia aos bens culturais como objetos de mercado, enfatizando seu caráter industrial e midiático, estabelecendo uma visão econômica da cultura que se tornaria predominante. Ao mesmo tempo, sustentava a necessidade de uma nova cultura do trabalho para aprofundar reformas neoliberais. As áreas programáticas nas quais o plano era organizado e as ações planejadas seguiam as diretrizes anteriormente mencionadas com uma estrutura similar à do plano anterior. No Plano Nacional de Cultura de 1992 havia poucas definições da questão cultural, e a fundamentação das propostas de ação era mínima. O plano destacava o protagonismo dos destinatários da ação cultural, entendidos como uma comunidade que deveria fortalecer a identidade, o sentimento nacional e a unidade nacional. Havia menos referências político-partidárias do que no plano anterior, e as áreas em torno das quais o planejamento

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cultural estava organizado evidenciavam menor elaboração e maior ênfase nos eventos específicos a ser realizados. O Plano Nacional de Cultura de 1994 propunha como diretrizes a “preservação e conservação do patrimônio cultural da nação”, a “elevação do nível cultural do nosso povo” e a “projeção da cultura argentina para o mundo”, com referência especial ao Mercosul. Reiterava os tópicos da união nacional e da cultura nacional, entendidos como a soma das culturas regionais e a base do “federalismo”. A fundamentação e os eixos do plano recebiam pouca atenção, e os programas estavam mais bem desenvolvidos, com um caráter técnico que mais tarde se tornaria habitual na gestão. Depois, não foram mais formulados planos nacionais com fundamentos, eixos e iniciativas a ser desenvolvidos em todos os domínios de ação da SCN e em todo o território do país. O orçamento da área é historicamente baixo (cerca de 0,25% do total nacional) e nenhum plano tinha previsão de recursos para concretizar suas propostas. Além disso, as províncias argentinas são soberanas e as ações federais das autoridades centrais dependem do acordo das províncias e dos municípios. Embora os planos fossem diferentes e contextualizados, mantinham uma continuidade de enquadramento que duplicava a estrutura organizacional da área e mostrava a inércia do aparato administrativo com pouca inovação na ação cultural (MÉNDEZ CALADO, 2004a). Posteriormente, sem planejamento, com uma institucionalidade frágil e descontínua, o perfil do responsável pela área, suas definições pessoais e sua adequação ao jogo político

em mudança ganhariam mais relevância do que já tinham, consolidando o tratamento da cultura como economia e negócios. Os institutos setoriais de cultura Cinema, teatro e música são domínios com tradição e visibilidade pública na Argentina, e suas práticas coletivas artísticas e de trabalho estimularam interações e reivindicações. Institutos semelhantes foram propostos no livro e na dança, porém não se concretizaram. Os institutos setoriais (Incaa, INT, Inamu) foram fundados por meio de leis que criaram fundos concursáveis específicos para a promoção e o desenvolvimento do cinema, do teatro e da música, substituindo as áreas preexistentes na SCN. As leis foram sancionadas pelo Congresso Nacional de acordo com o Poder Executivo em contextos políticos específicos, a pedido de atores sociais envolvidos nos trabalhos setoriais e de diversas organizações que se mobilizaram para sua aprovação. Cinema Na Argentina, o cinema foi incluído desde cedo nos assuntos culturais do Estado, por se tratar de uma indústria próspera que tinha um papel na disseminação em massa de narrativas e imagens promotoras da nacionalidade. Já em 1944, foi estabelecida uma cota de tela para favorecer o cinema nacional e, em 1957, foi criado o Instituto Nacional de Cinema (INC). Mais tarde, foi aprovada uma lei (no 17.741/1968) que, com sucessivas modificações, resultou na regulamentação vigente (Lei no 24.377), que estabeleceu, em 1994, o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais (Incaa) e o Fundo de


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Fomento Cinematográfico que o financia. A missão de promoção é realizada por Desde a década anterior, esse fundo era uma meio de subsídios e créditos com baixas tareivindicação das organizações do setor, xas para a produção cinematográfica naciocomo a Associação Argentina de Diretores nal e/ou coproduzida, para a melhoria das de Cinema (AADC), os Diretores Argenti- salas de cinema, para a participação em fesnos Cinematográficos (DAC), o Sindicato da tivais e outros itens. Também foram estabeIndústria Cinematográlecidas uma “cota de tela” fica Argentina (Sica) e a O Incaa foi constituído como e uma “média de conAssociação Argentina de “uma entidade pública não tinuidade” de exibição Atores (AAA). para o cinema argentino, estatal” no âmbito da SCN, A lei foi aprova- com autarquia financeira, e foram criados espaços da em um momento de personalidade jurídica e cinematográficos prógrande declínio da in- patrimônio próprio, fora da prios. O Incaa é dirigido dústria (baixa produção administração pública e do por um presidente e um de filmes, fechamen- orçamento nacional e sujeito ao vice-presidente, uma to de salas de cinema, direito privado, contando com assembleia federal (commenos público e menor transferências diárias automáticas posta dos secretários de índice de concorrên- e livre disponibilidade de fundos Cultura das províncias) cia), durante o governo e um conselho consultivo de Carlos Menem, que estava tentando se (que inclui membros da assembleia federal reeleger como presidente em um contexto e representantes das regiões culturais e das de recessão e procurava se aproximar dos entidades do setor). setores culturais contrários às suas políticas neoliberais. Teatro O Incaa foi constituído como “uma O teatro argentino é um domínio com traentidade pública não estatal” no âmbito da dição de autogestão do pessoal de teatro SCN, com autarquia financeira, personali- que remonta aos anos 1930. O chamado dade jurídica e patrimônio próprio, fora da Movimento Teatral Independente (MTI) administração pública e do orçamento na- proclamou uma “independência” tripla cional e sujeito ao direito privado, contando das grandes figuras, dos patrões e do Estacom transferências diárias automáticas e do, promovendo um teatro de arte contralivre disponibilidade de fundos (MORENO, posto ao cenário comercial bem-sucedido 2004). Isso inclui, além dos fundos preexis- daquele momento, e acabou por moldar o tentes, 10% de tributação sobre o preço bá- atual campo teatral. O setor, objeto da ação sico das entradas de cinema e outros títulos, cultural do Estado desde o início, foi afeta10% de impostos sobre o aluguel e a venda de do pelos cortes e pela crise econômica duVHS e DVD e 25% da receita total do Comfer5 rante o governo de Menem, de modo que se de encargos sobre o faturamento publicitário multiplicaram os protestos do pessoal de das televisões aberta e a cabo. teatro reunido em torno do Movimento de

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Apoio ao Teatro (Mate), liderado por figuras Independentes (ATI), a Associação Argenemblemáticas do MTI. Segundo Mario “Pa- tina de Empresários Teatrais (Aadet), a cho” O’Donnell, então secretário de Cultura, Sociedade Geral de Autores da Argentina foi por proposta dele que foram iniciadas (Argentores) e a AAA. conversas em torno de uma lei que, embora fosse uma antiga reivindicação do setor, Música entrou em vigor e se concretizou durante A música ao vivo, gravada e/ou transmitida sua gestão (MENDES CALADO, 2004 b). por meios audiovisuais ou outros, também A Lei Nacional do Teatro (no 24.800 / é um domínio importante no país, regido 1997) criou o Instituto Nacional do Teatro por repartições da área cultural. Em 1958, (INT) como um órgão descentralizado com foi aprovado o Regime Legal de Trabalho autarquia administrativa sob jurisdição da dos Executantes Musicais (Lei no 14.597), SCN. O INT administra um fundo para a pro- que não entrou em vigor por falta de regumoção da atividade integrado pelo orçamen- lamentação, até que o presidente Néstor to nacional, porcentagens Kirchner o regulamentou fiscais e renda própria. No- A Lei Nacional do Teatro por decreto (no 520/2005). A o venta por cento dos recur- (n 24.800/1997) criou lei foi impulsionada pelo Sinsos devem ser destinados o Instituto Nacional do dicato Argentino de Músicos às despesas operacionais Teatro (INT) como um (Sadem), a fim de regulamende apoio a criadores, pro- órgão descentralizado com tar as condições de trabalho jetos, elencos e teatros in- autarquia administrativa em relação à dependência de dependentes, às salas com sob jurisdição da SCN executantes musicais, que timenos de 300 lugares, nham que se filiar à entidade obras de autor nacional ou residente e pro- para ser reconhecidos como tais (VREIS, postas que envolvam programações anuais. 2018, p. 138 e seguintes). Os recursos são distribuídos para Quase meio século depois, porém, as produção, equipamentos, melhoria da in- práticas musicais mudaram. O salário e as fraestrutura, estudos, aperfeiçoamento e contratações diminuíram, e predominou o intercâmbios, assistência técnica, edição de trabalho autogerido e independente com materiais etc., através de concursos, bolsas pouca ou nenhuma formalização. Muitos de estudo, prêmios, festivais e mostras, por músicos não se sentem representados pelo exemplo. O INT é presidido por um diretor- Sadem, uma entidade que consideram não -executivo, acompanhado por um conselho ter legitimidade para julgar se são ou não de administração composto de um represen- músicos, e questionam a forma como ela getante da SCN, seis representantes regionais rencia a arrecadação das contribuições dos (um para cada região, eleitos por e entre os filiados e previdenciárias. Inúmeros artistas, 24 representantes provinciais concursados) empresários e organizações de músicos ine quatro representantes do setor aprovados dependentes protestaram contra o decreto, por entidades como a Associação de Teatros que finalmente foi revogado por Kirchner,


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potencializando os debates, a mobilização e o desta, 15% de “música independente”. Mais agrupamento de atores em torno da redação importante, porém, estabelecia que 2% da de uma nova lei. arrecadação da entidade reguladora, a AuEm 2008, foi formado o Conselho Fe- toridade Federal de Serviços de Comunicaderal da Música, integrado pela Socieda- ção Audiovisual (Afsca), seria destinada ao de Argentina de Autores e Compositores Instituto Nacional da Música (Inamu). Este (Sadaic), pela Associação Argentina de ainda não havia sido criado, o que ocorreu Intérpretes (AADI), pela Câmara Argen- algum tempo depois, quando foi aprovada tina de Música ao Vivo (Camuvi), pela a Lei Nacional de Música (no 26.801/2013). Aadet e pelo Sadem. Várias organizações A lei criou o Inamu como uma entidade 6 de músicos independentes de todo o país pública não estatal, no âmbito da SCN, para também confluíram na Federação Argenti- a promoção da atividade musical em geral e na de Músicos Independentes (Fami) e na da nacional em particular, através de subsíFederação Independente dios e créditos à produção de Músicos Argentinos A lei foi impulsionada pelo e de contribuições para (Fima). Naquela época, Sindicato Argentino de a formação dos músicos. o novo governo, liderado Músicos (Sadem), a fim de Embora inclua músicos e por Cristina Fernández de regulamentar as condições produtores fonográficos Kirchner, obteve o apoio de trabalho em relação à nacionais e estrangeiros (de do mundo da cultura, da dependência de executantes acordo com sua nacionaliciência e do ensino supe- musicais, que tinham que dade ou residência), estaberior (entre outros) em um se filiar à entidade para ser lece a “atuação necessária conflito difícil com o setor reconhecidos como tais de músicos nacionais” em de agroexportação e com o todos os shows ao vivo no grupo multimídia Clarín. Esse confronto país. Diferentemente do regime anterior, foi apresentado publicamente como uma que se referia ao trabalho (pressupunha “batalha cultural”, e a promulgação de uma a relação de dependência), a lei enfatiza a nova lei de mídia, que já vinha sendo rei- arte da música, a forma autogerida, e define vindicada há anos, foi apresentada como a o músico nacional registrado independente “mãe de todas as batalhas”.7 A participação (como aquele que não possui um contrato), de organizações da sociedade civil de todo demonstrando o impacto desses últimos em o país (PRATO; TRAVERSANO; SEGURA, sua aprovação. O Inamu é regido por uma di2018) foi decisiva nos debates, na redação e retoria (presidente e vice-presidente), uma na aprovação da Lei de Serviços de Comu- assembleia federal (de um representante nicação Audiovisual (no 26.522/2009). Em por província) e um comitê representativo seus artigos era possível vislumbrar o futuro (composto de 6 coordenadores das Sedes próximo da lei de música, uma vez que esta- Regionais e 12 representantes do setor: aubelecia que rádios deveriam transmitir uma tores, compositores, intérpretes, sindicatos, cota de 30% de “música nacional” e, dentro produtores, estabelecimentos).

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Luzes e sombras Os planos nacionais de cultura fizeram parte de um breve ciclo nas políticas culturais argentinas após as últimas ditaduras. De acordo com o papel democratizante que o governo atribuiu à cultura, o plano de 1984 teve uma divulgação pública significativa, diferentemente dos que vieram depois. A ambição totalizadora dos planos ficou só nas declarações, não se refletindo em ações culturais da SCN, sempre limitadas às próprias condições institucionais, territoriais e orçamentárias. As falhas habituais nas políticas públicas do país se agravam nesse nível jurisdicional, com competências pouco claras e incapazes de coordenar as políticas culturais federais (SCHARGORODSKY, 2019), com recorrentes mudanças organizacionais e de autoridade, de modo pouco hierarquizado e mal financiado. Paradoxalmente, a maior ênfase no federalismo foi seguida pela descontinuidade desse tipo de plano estatal e por sua substituição pela nova fórmula dos institutos setoriais mais ligados ao mercado e ao setor privado, de acordo com a mudança para a cultura como economia e negócios. Os subsídios, créditos e apoio para o cinema, o teatro e a música por parte dos institutos e fundos são reivindicações e conquistas do ativismo de atores comprometidos e das organizações setoriais. São produtos de exercícios de democracia em políticas culturais que combinaram aspirações de bases, líderes e autoridades governamentais. A “independência” que eles promovem é uma categoria proteica, confusa e abrangente de atores emergentes, consagrados, alternativos, empreendedores e empresas que a utilizam como estratégia de marketing.

Ao mesmo tempo, os institutos reforçam uma hierarquia de domínios (por exemplo, o teatro acima da dança) e subsetores (por exemplo, o cinema de ficção acima do documentário), embora gêneros e práticas artísticas se cruzem e hibridizem. Também abrem e veiculam conflitos entre subsetores, elos das cadeias produtivas, artistas em diferentes estágios de seu ciclo de carreira, vertentes estéticas, posicionamentos pessoais e partidários enquanto legitimam o próprio Estado. Os institutos de cinema, teatro e música promovem essas expressões em todo o país, e sua ação é mais federal do que a da administração central, porque eles têm representantes provinciais e regionais, conhecedores das realidades locais. O papel dos secretários de Cultura de cada província e dos representantes é fundamental em seus territórios e nos órgãos de governança dos institutos. Eles têm a capacidade de fortalecer o movimento local ou cooptar fundos sem que o setor seja beneficiado. Também têm o poder de endossar ou questionar a direção institucional, sendo frequentes conflitos em que a esta (quando não ao representante provincial) é atribuída discricionariedade, ocultações, má administração ou corrupção. Os institutos carecem de planejamento, avaliação e memória de suas ações, estão focados na administração de subsídios, créditos e apoio, e lhes falta uma política global. Respondem às demandas dos atores mais destacados e informados, e, como há mais projetos na capital nacional e nas grandes cidades, não lidam ativamente com os espaços menos desenvolvidos, gerando efeitos antirredistributivos.


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O apoio a diversas iniciativas culturais pontuais e independentes pode ter um impacto de descentralização e resposta rápida a mudanças que de outra forma não seriam processáveis para uma área geralmente conservadora (belas-artes, patrimônio, folclore) em um Estado lento e centralizador. Mas isso também fragmenta a ação cultural e renuncia a perspectivas estratégicas, e os setores desprovidos de orientações sobre capacidades e estratégias de serviço público se transmutam em mercados. Os institutos alcançam, com o consenso de seus beneficiários, uma nova hegemonia em que as formas preferenciais para a arte são subsídios independentes que naturalizam a falta de direitos trabalhistas e de proteção social. Uma função catalítica da cultura como economia e negócios agora se junta à tradicional função legitimadora das políticas culturais.

Rubens Bayardo

Rubens Bayardo Doutor em antropologia, professor e pesquisador da Universidade de Buenos Aires. Diretor do curso de especialização em gestão cultural e políticas culturais do Instituto de Altos Estudos Sociais, Universidade Nacional de San Martín.

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Referências bibliográficas BAYARDO, R.; LACARRIEU, M.; ROTMAN. M. Cultura y políticas culturales en los tiempos del menemismo. Informe Final de Investigación, Departamento de Ciências Sociais, Universidade Nacional de Luján, 1998. BAYARDO, R. Políticas culturales en la Argentina. In: RUBIM, A.; BAYARDO, R. (org.). Políticas culturais na Ibero-America. Salvador: Edufba, 2008. BAYARDO, R.; BORDAT-CHAUVIN, E. Changing philosophies of action? Argentine’s cultural policies in the 21st century. International Journal of Cultural Policy, 24, p. 5, 2018. MENDES CALADO, P. Veinte años de políticas culturales democráticas. La acción de la Secretaría de Cultura de la Nación. Revista Gestión Cultural, ano 1, n. 1, Untref, 2004a. MENDES CALADO, P. Nos faltaron acción y compromiso. Entrevista com Mario “Pacho” O’Donnell. Revista Gestión Cultural, ano 1, n. 1, Untref, 2004b. MORENO, O. Los subsidios y los créditos como forma de promoción de las industrias culturales (el caso del cine). Revista Gestión Cultural, ano 2, n. 2, Untref, 2005. PRATO, A.; TRAVERSANO, N.; SEGURA, M. La participación de la sociedad civil en las nuevas normas culturales. De la Ley de Servicios de Comunicación Audiovisual al proyecto de Ley Federal de las Culturas. In: PRATO, A.; SEGURA, M. (ed.). Estado, sociedad civil y políticas culturales. Rupturas y continuidades en Argentina entre 2003 y 2017. Caseros: RGC Libros, 2018. SCHARGORODSKY, H. Una reflexión sobre las políticas culturales nacionales. In: FUENTES FIRMANI, F.; TASAT, J. (coord.). Gestión cultural en la Argentina. Caseros: RGC Libros, 2019. VREIS, S. La organización de músicos y la Ley Nacional de Música. In: PRATO, A.; SEGURA, M. (ed .). Estado, sociedad civil y políticas culturales. Rupturas y continuidades en Argentina entre 2003 y 2017. Caseros: RGC Libros, 2018.

Notas 1

A SCN é um órgão executivo, com antecedentes que datam de 1933, e já teve diferentes denominações (comissão, subsecretaria e secretaria) e pertencimentos institucionais (BAYARDO, 2008). Atualmente é um ministério, como também o foi entre 2014 e 2015, porém era uma dependência de outros ministérios, como o da Educação e do Interior, ou da Presidência da Nação.

2

A SCN faz parte da Administração Pública Nacional e reúne organizações centralizadas, descentralizadas e desconcentradas (BAYARDO; BORDAT-CHAUVIN, 2018).


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Graças a um subsídio de pesquisa da Universidade Nacional de Luján, realizamos uma análise mais exaustiva dos planos culturais da década de 1990 em Bayardo, Lacarrieu e Rotman (1998).

4

A regionalização do país estava sendo debatida e foi incorporada à nova Constituição Nacional de 1994. Foram estabelecidas cinco regiões, porém algumas entidades definem como seis, pois distinguem uma área metropolitana ao redor da capital.

5

O Comitê Federal de Radiodifusão (Comfer) era a autoridade de aplicação da Lei de Radiodifusão (no 22.285/1980), que regulamentava o rádio e a televisão.

6

União de Músicos Independentes (UMI), Músicos Argentinos Convocados (MAC), Movimento de Músicos Convocados de Córdoba (Mucc), Movimento Independente de Músicos Mendocinos e União de Músicos Independentes Tucumanos Autoconvocados (Umita), entre muitas outras.

7

Estava em vigor a Lei de Radiodifusão sancionada durante a ditadura militar e desatualizada. Também houve mobilização em favor de uma Lei Nacional de Dança, que não avançou, juntamente com propostas normativas que surgiram até a formulação de um projeto de Lei Federal das Culturas apresentado pela Frente de Artistas e Trabalhadores da Cultura (FAyTC), que também não prosperou.

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O PLANEJAMENTO CULTURAL NO MÉXICO DURANTE O GOVERNO DE ANDRÉS MANUEL LÓPEZ OBRADOR Eduardo Nivón Bolán

O planejamento cultural no México teve um desenvolvimento significativo a partir da criação do Conselho Nacional para a Cultura e as Artes, em 1988. Desde então, foi inserido no conjunto de definições de política pública contidas no Plano Nacional de Desenvolvimento de cada sexênio. No entanto, embora tenha servido para definir objetivos prioritários e inovadores, sofreu uma avaliação sistemática. O atual governo (2018-2024) modificou o sentido geral das políticas públicas em todas as áreas, incluindo a cultura, mas não conseguiu desenhar um projeto convincente e organizado para uma nova política cultural, o que revela uma crise nessa área.

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política cultural no México é, sem dúvida, um dos fatores que contribuíram para a notável estabilidade do regime que surgiu da Revolução Mexicana. Esta foi, na realidade, um conjunto de movimentos sociais pela democracia, pela restituição das terras de onde haviam sido retirados camponeses e povos indígenas durante o século XIX, pelos direitos sociais dos trabalhadores e moradores das cidades e pela defesa da soberania da nação. Atualmente entendida como a construção do ajuste simbólico do campo político, a política cultural conseguiu dar sentido ao novo Estado como um dispositivo legítimo de transformação da realidade social, que merecia o apoio e a adesão da maioria dos cidadãos, especialmente dos trabalhadores do campo e da cidade. Professores, artistas

e intelectuais afins articularam um projeto que valorizou a cultura popular, o patrimônio e a educação nacionalista. Foi um processo cultural que conseguiu direcionar a adesão dos setores populares para uma organização política corporativa, conhecida desde 1946 como Partido Revolucionário Institucional (PRI), e para o regime de nacionalismo revolucionário. Essa política cultural impetuosa, cujo impulso chegou à década de 1970, começou a declinar no último terço do século XX, ao mesmo tempo que a capacidade do Estado de atender às demandas sociais foi se esgotando e o obrigou a reestruturar suas políticas econômicas e o próprio modelo de gestão pública. Embora o planejamento público remonte às próprias origens do Estado pós-revolucionário,1 foi na década de 1980


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que ocorreu uma profunda transformação desse departamento.2 Desta forma, abriu-se normativa. Miguel de la Madrid Hurtado, a possibilidade administrativa de planejar que foi presidente de 1982 a 1988, veio da a cultura de forma específica, além das diSecretaria de Programação e Orçamento e retrizes da SEP. De fato, até antes de 1988, testemunhou os excessos autocráticos de o planejamento cultural, inclusive a polítipresidentes anteriores e o colapso econô- ca cultural, estava centrado no que os dois mico de 1982. Agora, encarregado de um grandes institutos nacionais de cultura, o Estado com graves limitações econômicas, de antropologia e história e o de belas-artes em um ambiente internacional que promo- e literatura, definiam para seus respectivos via uma virada para o neoliberalismo e com campos de competência. Agora, era possível a pressão de movimentos sociais cada vez fincar uma bandeira no planejamento do gomais amplos em prol da democracia, dos di- verno federal e definir um orçamento preciso reitos humanos e da defesa das condições de para a cultura. vida de seus simpatizantes, assumiu o poder Isso faz pensar em um certo paralecom dois objetivos básicos: um chamado à lismo com o desenvolvimento da política Renovação Moral da Sociecultural francesa, uma vez dade e a promoção de uma A capacidade do Estado de que a primeira tarefa que o gestão organizada da ativi- atender às demandas sociais ministro de Assuntos Culdade pública a partir do pla- foi se esgotando e o obrigou turais, A. Malraux, assumiu nejamento estatal. Também a reestruturar suas políticas foi a de incorporar o setor foi ele quem deu uma virada econômicas e o próprio cultural ao planejamento radical no modelo econômi- modelo de gestão pública cultural (e a necessidade co predominante, acabando de atribuir-lhe recursos). com o protecionismo estatal e abrindo a eco- Quando, em 1970, a Unesco publicou o renomia para a competitividade internacional. latório Some Aspects of French Cultural Em termos de cultura, quase no final Policy, elaborado pelo Departamento de Esde seu período de governo e quando a nova tudos e Pesquisa do Ministério da Cultura administração de Carlos Salinas de Gortari francês,3 os autores iniciaram o documento estava prestes a iniciar, as duas câmaras le- apontando precisamente a virada causada gislativas constituíram duas comissões de pelo planejamento, um dos elementos que cultura que permitiram, pela primeira vez, mais tarde foram considerados dentro dos uma atenção focada especificamente nesse padrões mínimos de ação de qualquer inssetor à margem da educação. Poucos dias tância cultural.4 depois de assumir o poder, Carlos Salinas criou o Conselho Nacional para a Cultura A regulamentação federal e as Artes (Conaculta), desligando o setor sobre planejamento cultural da tutela imediata da Secretaria de É conveniente levar em conta pelo menos Educação Pública (SEP), embora isso, na três elementos normativos do planejamento realidade, dependesse da vontade do titular governamental no México:

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a. sentido geral: a lei estabelece que o planejamento é um meio de “cuidar do desempenho eficaz da responsabilidade do Estado pelo desenvolvimento equitativo, inclusivo, integral e sustentável do país, com uma perspectiva de interculturalidade e de gênero, e deve procurar atingir as finalidades e objetivos políticos, sociais, culturais, ambientais e econômicos” (artigo 2o); b. é um instrumento de governança. O plano nacional e os planos setoriais e institucionais são a base de referência para “reportar anualmente ao Congresso da União o estado de suas respectivas áreas; [e] deverão informar o avanço e o grau de cumprimento dos objetivos e prioridades estabelecidos no planejamento nacional que, em virtude de sua competência, correspondem a estes e os resultados das ações previstas” (artigo 8o). Da mesma forma, os programas das diversas entidades são indispensáveis para a própria gestão do governo federal. O conteúdo das contas públicas federais, por exemplo, deve estar ligado ao programa nacional e aos programas setoriais (artigo 6o), e o acompanhamento, que deverá ser feito pela Secretaria da Fazenda e Crédito Público da administração governamental, levará em consideração, entre outras bases, os objetivos e metas do Plano Nacional de Desenvolvimento e seus programas (artigo 9o). Em outras palavras, o planejamento tem um sentido de prestação de contas

concretizado nos relatórios anuais dos departamentos e na própria gestão interna do governo federal; c. tem finalidades cognitivas e de avaliação. Além disso, a elaboração dos planos setoriais tem vários objetivos importantes. O principal é o conhecimento que o setor pelo qual o ou os departamentos envolvidos são responsáveis tem sobre o Estado. Ou seja, conforme estabelecido no artigo 26 bis, deve conter um diagnóstico geral sobre os problemas a ser tratados, os objetivos específicos, as estratégias para executar as ações, as linhas de ação para apoiar a implementação das ações e os “indicadores estratégicos para acompanhar o atingimento dos objetivos”. Portanto, o plano tem um sentido de conhecimento, priorização de problemas e ações e avaliação. Os planos culturais Como apontado, a partir da criação do Conaculta, iniciou-se a elaboração de programas específicos para atender ao desenvolvimento do setor cultural.5 No entanto, havia uma situação ambígua, uma vez que o conselho era uma instituição criada para coordenar as instituições culturais, mas dependia organicamente do secretário de Educação Pública. Portanto, os planos expressavam certa autonomia, mas não podiam ser elaborados sem a anuência do titular do setor educacional. Quais características tiveram os planos setoriais de cultura? De 1989 a 2018, foram publicados cinco programas setoriais de cultura,


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abrangendo os governos de Carlos Salinas de Gortari (CS) e Ernesto Zedillo Ponce de León (EZ), do PRI; Vicente Fox (VF) e Felipe Calderón (FC), do Partido Ação Nacional (PAN); e Enrique Peña Nieto (EPN), também do PRI. Os seguintes aspectos predominam neles.

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durante todo o seu desenvolvimento, das quais uma das mais frequentes é a sua parcialidade, embora tenham existido outras mais sérias e construtivas. Até muito recentemente, essas críticas quase nunca envolveram a proposta de seu desapare• Papel prioritário do patrimônio na pocimento. A estabilidade do Fonca lítica cultural. Com exceção do prograse deve ao fato de que ele implicou ma 2013-2018 (EPN), a preservação, uma mudança radical na forma de a difusão e a pesquisa do patrimônio expressar o compromisso público foi o primeiro assunto mencionado. com a cultura, assumindo que o julRafael Tovar y de Teresa, que foi pregamento dos pares era o único crisidente do Conaculta de 1992 a 2000 tério para conceder os recursos em e de 2012 a 2016, em apoio aos artistas. Além disso, que incluo sua desig- O modelo do Fonca o modelo do Fonca também nação como primeiro também serviu para serviu para canalizar recursecretário de Cultura, canalizar recursos para sos para suporte às culturas afirmou, em um ba- suporte às culturas populares e para a criação de lanço da política cul- populares e para a fundos estatais e fundos mistural dos anos 1990, criação de fundos estatais tos de apoio à criatividade. que o patrimônio era e fundos mistos de apoio “o carro-chefe da po- à criatividade • Descentralização. Durante lítica cultural” (1994). os cinco primeiros planos de O programa de Peña Nieto não tirou cultura, foi colocada uma grande êndo patrimônio a sua grande relevânfase na descentralização do equipacia, mas decidiu colocá-lo em quarto mento cultural a partir da promoção lugar, sem oferecer nenhuma explicae do apoio a iniciativas culturais dos ção sobre essa ordem. estados e municípios. Inicialmente, esse processo foi realizado de forma • Incentivo à criatividade artística. “corporativa”, replicando o modelo Logo após a criação do Conselho NaConaculta com pouca originalidade. cional para a Cultura e as Artes, foi No entanto, também é verdade que criado o Fundo Nacional de Cultura as entidades federativas desenvole Artes (Fonca). Esse órgão é o prinveram profusamente suas próprias cipal instrumento de apoio a artistas instituições culturais e as respece criadores e à promoção de novos tivas regulamentações, levando a campos de desenvolvimento da arte. processos atraentes e avançados em Ele foi objeto de diversas polêmicas vários assuntos.

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• Inovação. Nos diversos planos de cultura, é possível visualizar um esforço de inovação diante do surgimento de problemas ou situações desconhecidas no campo da cultura. Por exemplo, no segundo programa (1995-2000 – EZ) foram definidas como objetivos

a descentralização dos bens e serviços culturais e a cooperação cultural internacional. Também foram construídos dois importantes programas especiais: Desenvolvimento Cultural Infantil e Desenvolvimento Cultural dos Trabalhadores (posteriormente

CONTEÚDO DOS PROGRAMAS SUBSTANCIAIS DE CULTURA NO MÉXICO, 1989-2018 1989-19946

1995-20007

2001-20068

2007-20129

2014-201810

1. Preservação e difusão do patrimônio cultural nacional.

1. Preservação, pesquisa e difusão do patrimônio cultural.

Principais campos de ação:

Eixos da política cultural:

Objetivos:

1. patrimônio e diversidade cultural;

2. Estímulo à criatividade artística e à difusão das artes.

2. Educação e pesquisa artísticas.

1. pesquisa e conservação do patrimônio cultural;

3. Desenvolvimento da educação e da pesquisa no campo da cultura e das artes.

4. Cultura em meios audiovisuais.

3. patrimônio, desenvolvimento e turismo;

5. Promoção do livro e da leitura.

4. incentivo à criação artística;

4. Promoção do livro e da leitura.

6. Incentivo à criação artística.

5. Preservação e difusão das culturas populares.

7. Fortalecimento e difusão das culturas populares.

5. educação e pesquisa no campo artístico e cultural;

6. Promoção e difusão da cultura através dos meios audiovisuais de comunicação.

8. Descentralização dos bens e serviços culturais.

A partir de 1992:

3. Difusão da cultura.

9. Cooperação cultural internacional.

2. culturas populares e indígenas;

6. difusão cultural; 7. leitura e livro;

2. infraestrutura cultural; 3. promoção cultural nacional e internacional; 4. incentivos públicos à criação e patrocínio; 5. formação e pesquisa antropológica, histórica, cultural e artística;

8. meios audiovisuais;

6. recreação cultural e promoção da leitura;

9. vínculo cultural e cidadania;

7. cultura e turismo; 8. indústrias culturais.

1. promover e difundir as expressões artísticas e culturais do México, assim como projetar a presença do país no exterior; 2. impulsionar a educação e a pesquisa artística e cultural; 3. dotar a infraestrutura cultural de espaços e serviços dignos e fazer um uso mais intensivo dela; 4. preservar, promover e difundir o patrimônio e a diversidade cultural;

• projetos especiais de arqueologia;

Programas especiais:

• Centro Nacional das Artes;

• desenvolvimento cultural infantil;

5. apoiar a criação artística e desenvolver as indústrias criativas para reforçar a geração e o acesso a bens e serviços culturais;

• Sistema Nacional de Criadores.

• desenvolvimento cultural dos trabalhadores (redefinido como programa de animação cultural).

6. possibilitar o acesso universal à cultura, aproveitando os recursos da tecnologia digital.

Fonte: elaboração do autor.

10. cooperação internacional.


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redefinido como Programa de Animação Cultural). O seguinte programa, 2001-2006 (VF), transformou o programa de descentralização em Vínculo Cultural e Cidadania. O de 2007-2012 (FC) criou dois programas específicos: Infraestrutura Cultural e Indústrias Culturais. Já o de 2013-2018 (EPN) inovou ao propor um programa para “permitir o acesso universal à cultura, aproveitando os recursos da tecnologia digital”, o que posteriormente resultou na Agenda Digital de Cultura proposta pelo governo mexicano na Cúpula Ibero-Americana de 2014. • Baixa participação. Em relação à elaboração dos programas, estes sofreram com a fraca participação dos cidadãos. Não houve interesse ou capacidade de promover a ampla participação da sociedade na construção dos programas e na discussão de formas de alcançar os objetivos propostos. Em vez disso, a elaboração dependeu de uma burocracia cultural consistente e abrangente que permaneceu no setor cultural por um longo período, apesar das mudanças nas administrações públicas. • Falta de orçamento e de critérios de avaliação. Uma crítica comum a todos os programas culturais elaborados pelos diversos governos desde 1989 é a ausência de um orçamento preciso e de elementos claros para a avaliação dos programas. Isso gerou grande

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desconfiança em relação ao planejamento cultural e os transformou em instrumentos pobres para a correção das políticas públicas de cultura. Em uma visão geral, pode-se observar a continuidade e as mudanças ou problemas emergentes que os diversos planos de cultura tiveram de 1989 até 2018 (conforme a tabela ao lado), ano de término do governo Peña Nieto, que em 2015 transformou o Conaculta em Secretaria de Cultura (SC). Essa mudança, do ponto de vista da lei de planejamento, transformou os programas de cultura de especiais em setoriais. Ou seja, sendo o Conaculta um órgão dependente da Secretaria de Educação Pública, a sua capacidade de planejamento era dependente desse órgão (por isso, era apresentado após o programa de educação). Agora, como Secretaria de Estado, é responsável pela elaboração de um programa setorial. O planejamento cultural durante o governo de López Obrador Perfil de AMLO Ao longo de sua vida política, o atual presidente do México, Andrés Manuel López Obrador (AMLO), tem sido um político diferente, quase sempre disposto a privilegiar suas opiniões políticas, o que chama de seus princípios, em detrimento do padrão tradicional ou comum da atividade de governo. Isso ajudou a moderar sua forma de ver os assuntos públicos, sua história pessoal e os duros acontecimentos que viveu em sua luta pela Presidência da República. López Obrador é incompreensível se não reconhecermos

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que é o fruto de seu compromisso com os povos indígenas e com os setores populares de seu estado natal, além de sua luta obstinada pela Presidência da República e pela denúncia da corrupção. Como caracterizar López Obrador como político? Poucos dias antes das eleições de 2006, Enrique Krauze publicou um ensaio intitulado “O messias tropical”. É um dos inúmeros observadores que tentaram elucidar o caráter e as ideias do atual presidente em termos de seu próprio desenvolvimento pessoal, sua sensibilidade e seu pensamento íntimo, sem beirar o psicologismo. López Obrador se convenceu muito cedo de seu papel na história. Ele se sentiu chamado a renovar o poder político a partir de uma prática incorruptível e a tornar o relacionamento povo-governo em povo que governa. Às vezes, expressa um pensamento religioso, com o qual teve cuidado para que não se tornasse um elemento que o afastasse de alguns setores da população, mas que está presente em muitas de suas definições políticas e ideológicas. Assim, frequentemente expõe um pensamento político baseado no amor e na fraternidade, que guia, segundo ele, sua política social e cultural, as decisões orçamentárias, suas iniciativas legais e até seu programa de segurança. Deve-se insistir no caráter messiânico de sua ação política. O cientista político e jornalista David Rieff, que acompanhou sua campanha no sul do México em 2006, escreveu que, apesar de sua derrota, com seu entusiasmo pessoal, López Obrador construiu uma aliança praticamente incondicional com os desencantados com o sistema, apesar de muitas de suas propostas serem vistas como impossíveis de realizar se ele

chegasse ao governo. Em 2018, esses 35% de eleitores que o apoiaram 12 anos antes cresceram para 53%. A chegada de López Obrador à Presidência da República tem, como ele se esforçou para mostrar, um sentido fundacional. Sua liderança carismática se expressa, no governo e na forma como ele se comporta diante dos outros poderes do Estado, na supressão de qualquer tipo de mediador institucional, incluindo seu próprio partido, para o acesso aos recursos públicos. Ele convoca, fala, decide e faz isso diariamente com vigor. Não há, nem houve, orgulha-se López Obrador, um governante no mundo que dê uma coletiva de imprensa diária. Uma das chaves das políticas públicas que López Obrador quer desenvolver é sua intenção de fazê-las com um tom participativo, embora as formas deixem muito a desejar. É o povo, e não os técnicos, que realmente conhece os problemas e, portanto, as decisões que devem ser tomadas. Por exemplo, a grande obra de infraestrutura do governo anterior, o novo aeroporto da Cidade do México, que já tinha uma grande porcentagem de realização, foi submetida a uma consulta pública em outubro de 2018 para decidir sobre seu cancelamento ou sua continuidade. Com uma participação de quase 713 mil pessoas e sem controles para verificar a qualidade da consulta, mostrou-se que a obra deveria ser cancelada, o que foi feito. Após algumas semanas, foi realizada outra convocatória para votar sobre dez programas que o novo governo considerava de primordial importância, como a construção de uma enorme obra de infraestrutura ferroviária chamada Trem Maya, o plantio de


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milhões de árvores frutíferas e a pensão para pessoas com deficiência.11 A consulta teve a participação de quase 950 mil cidadãos, pouco mais de 1% das pessoas com direito a voto, e uma resposta positiva de cerca de 90%. Os debates prévios mostraram perplexidade sobre o motivo da consulta, uma vez que ninguém ou pouquíssimos cidadãos poderiam se opor aos programas propostos, mas também é verdade que eles nunca foram expostos a um programa orçamentário abrangente e, portanto, não se sabia quais seriam as implicações. Dessa forma, uma vez iniciado seu governo, a sociedade percebeu que os programas exigiriam muito das finanças públicas, o que o governo chamou de austeridade republicana, querendo dizer que era necessário acabar com as despesas consideradas supérfluas ou desnecessárias, demitir funcionários externos, suprimir outros programas sociais de grande importância e empobrecer muitas políticas públicas estratégicas, como as relacionadas ao meio ambiente. Somente no setor cultural, mais de mil pessoas foram demitidas e muitos programas de promoção e divulgação cultural foram cancelados. Planejamento cultural de AMLO 1. As propostas culturais no programa eleitoral de AMLO A terceira campanha triunfante de López Obrador teve várias características notáveis e inovadoras. Uma muito importante é que, quase no início dela, ele anunciou o seu futuro gabinete de governo. Para a cultura, nomeou Alejandra Frausto Guerrero, uma gestora

cultural com experiência em administração, já que havia assumido a Secretaria de Cultura do Estado de Guerrero, um dos mais pobres do país (2011-2013), e a Direção Geral de Culturas Populares (2013-2017). Esses cargos a dotaram de experiência e sensibilidade em relação aos problemas das culturas populares do campo e das cidades e dos povos indígenas do México. O papel dos futuros secretários deveria ser o de vincular-se aos atores do seu respectivo setor e colaborar na elaboração dos programas. Isso foi realizado com muito sucesso, principalmente no que diz respeito ao vínculo e, menos claramente, em relação ao desenvolvimento do programa. Com o nome de Projeto de Nação 2018-2024,12 o programa do partido Movimento de Renovação Nacional (Morena) traçou as linhas mais gerais de seu projeto. Em geral, trata-se de um documento que é uma mistura de diagnóstico, análise e propostas, algumas muito mal elaboradas e outras surpreendentes por ser alheias ao pensamento de esquerda13 ou cópias de outros projetos. Quanto à cultura, o que foi definido nesse documento de mais de 460 páginas abrangia apenas um ponto com o título de “Cultura comunitária” (p. 444-446). As linhas básicas desse capítulo são: Pontos gerais • A cultura é um elemento essencial de integração comunitária. • Serão promovidas metodologias participativas com base social. O que se dizia quanto ao diagnóstico do setor cultural

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• A diversidade cultural do nosso país é a maior força criativa que temos. • A cultura apoiada pelo Estado carece de uma visão de terra, de uma visão do país como um todo complexo e vital. • Os programas de base da Secretaria de Cultura Federal e dos governos estaduais não possuem uma política social em sua atividade e têm pouco relacionamento com as pessoas que criam e vivem a cultura. • Apesar das demandas sociais e dos setores críticos das políticas culturais, continua-se promovendo uma cultura colonialista ou de elite. • Os programas que promoveram um vínculo social eficaz durante esse sexênio sofrem, a cada ano, graves reduções orçamentárias. • As políticas culturais são ditadas a partir das instituições de forma centralista. Proposta e linhas de ação • O programa de cultura comunitária promoverá o acesso à cultura de forma gratuita e o exercício dos direitos culturais da população em situação vulnerável, com pleno respeito à diversidade cultural. Impactos esperados • Um programa nacional de cultura que responda às necessidades sociais do México. • Um envolvimento responsável e comprometido da comunidade

cultural com a sua sociedade. • Encurtar o caminho entre o orçamento público e os beneficiários. • Impacto imediato nas comunidades mais vulneráveis e estigmatizadas. Economias orçamentárias/orçamento necessário/alteração legislativa • A proposta com o Legislativo é alocar pelo menos 50% desse orçamento à cultura comunitária. Pode-se observar que os responsáveis pela elaboração do projeto tinham clareza sobre seus objetivos. Eles consideraram que a política cultural seguida até então era colonialista ou elitista e desligada da prática real das pessoas que criam e vivem a cultura. Por exemplo, criticava-se o orçamento de grandes obras de infraestrutura e espetáculos por estarem desvinculados dos grupos locais. Apontava-se que havia programas de infraestrutura que eram apropriados pelas comunidades ou investimentos em espetáculos efêmeros. Em vez disso, propunha-se ampliar o orçamento da cultura comunitária em até 50% e direcionar os recursos de forma rápida e fácil aos seus usuários. Por outro lado, todas as áreas tradicionais da política cultural, como o patrimônio, o apoio à criatividade e a difusão, educação artística ou cooperação internacional, são marginalizadas, porque, em geral, carecem de uma política social vinculada às comunidades. 2. As propostas da futura secretária de Cultura, Alejandra Frausto


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Talvez devido à precariedade desse projeto (havia, por exemplo, um subtítulo de “Vínculo com o livro” que carecia de conteúdo), a futura Secretaria de Cultura distribuiu, em junho de 2018, poucos dias antes das eleições, um pequeno folheto mais preciso, cujo título era O Poder da Cultura,14 em que define mais amplamente os princípios e as linhas de seus programas e princípios. •

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fortalecimento das artes e ofícios; narrativas digitais; inovação social; e inserção na economia cultural. • Vida criativa. Programas: ensino da arte; pesquisa e profissionalização em arte, estudos culturais, promoção e gestão cultural; abordagem comunitária; e museus vivos.

Além disso, indicava os assuntos prioritáRedistribuição da riqueza cultural (por rios: perspectiva de gênero; olhar de frente “redistribuição” se entende a promo- para o mundo; da cultura do poder ao poção das culturas locais der da cultura (que se refere e suas criações), que Eles consideraram exclusivamente à adaptação abrange quatro progra- que a política cultural como centro cultural da Remas: missões culturais; seguida até então era sidência Oficial “Los Pinos”, patrimônio; patrimônio colonialista ou elitista que AMLO não estaria mais cultural imaterial; e cir- e desligada da prática utilizando); e patrimônio dacuitos culturais. nificado pelos terremotos de real das pessoas que Cultura para a paz e a criam e vivem a cultura 2017. convivência. Programas: aproximação às artes a partir 3. As propostas do Plano Nacional de da primeira infância; vida para a inDesenvolvimento fraestrutura cultural; polos culturais comunitários; e recuperação afetiva Por disposição legal, o novo governo deveria do espaço público. submeter o Plano Nacional de DesenvolviEconomia cultural. Programas: in- mento (PND) 2019-2024 ao Congresso, de dústrias culturais e empresas cria- maioria morenista. A lei prevê que o secretivas; participação privada; direitos tário da Fazenda e Crédito Público é o resautorais e direitos de propriedade ponsável pela elaboração do PND, e isso foi intelectual da comunidade; e finan- feito por Carlos Urzúa, que ocupou o cargo ciamento cultural. até julho de 2019, ou seja, durante quase sete Agenda digital. Programas: distri- meses. O plano elaborado por Urzúa seguiu buição; acesso; fortalecimento dos as diretrizes dos regulamentos vigentes e direitos autorais; apropriação tec- dedicou à cultura o item 2.9 do capítulo nológica; uma nova agenda digital; “Bem-estar” (p. 118-122). O item começae cultura científica e arte. va lembrando a base legal da intervenção Juventude na cultura. Progra- do Estado em questões culturais, insistinmas: apropriação cultural e digital; do que se trata de um direito humano. Ele

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destaca a diversidade cultural, coleta alguns dados sobre infraestrutura e patrimônio material e imaterial, o planejamento artístico e se concentra na questão do acesso e inclusão. Define sete estratégias: • fomentar o acesso à cultura para toda a população, promovendo a redistribuição da riqueza cultural e desenvolvendo esquemas de planejamento intercultural, inclusivo e participativo; • impulsionar a formação e profissionalização artística e cultural dos indivíduos, comunidades, coletivos e trabalhadores da cultura, e fornecer opções de iniciação, capacitação e atualização para toda a população; • promover e ampliar a oferta cultural em todo o território nacional e desenvolver o intercâmbio cultural do México com o exterior; • salvaguardar e difundir a riqueza patrimonial do México, material e imaterial, bem como promover a apropriação social das ciências humanas, das ciências e das tecnologias; • fortalecer as indústrias culturais e empresas criativas para gerar e difundir seus conteúdos; • desenvolver e otimizar o uso da infraestrutura cultural pública, levando em consideração as particularidades e necessidades regionais do país; • reconhecer, preservar, proteger e estimular a diversidade cultural e linguística do México, com atenção especial às contribuições dos povos indígenas e afro-mexicanos e de outros grupos historicamente discriminados.

No entanto, o PND elaborado por Carlos Urzúa não agradou ao presidente López Obrador, que o viu como “continuísmo”. Era uma concepção ainda na inércia neoliberal e era necessário fazer a diferença.15 Ou seja, não se diferenciava dos planos da “época neoliberal”, a ponto de usar inclusive a mesma linguagem técnica. Por esse motivo, ele rapidamente decidiu elaborar outro documento, mostrando a ruptura que seu governo representava. Esse outro documento, disse ele, “tem como contexto o plano liberal de 1906 e o plano sexenal do general Lázaro Cárdenas [1934], sem termos próprios da política neoliberal”.16 Então, resultou em um texto basicamente declarativo, uma soma de suas promessas de campanha com um escopo pouco preciso. Ao submeter dois planos ao Congresso, gerou confusão, pois alguns deputados acharam que o Executivo não tinha metas precisas e que não era possível entender a relação entre os dois documentos. Isso foi “resolvido” indicando que o verdadeiro Plano Nacional era o elaborado pelo presidente e que o elaborado pelo secretário da Fazenda e Crédito Público era apenas um anexo. Por fim, apenas o primeiro documento foi aprovado e publicado no Diário Oficial da Federação, em 12 de julho de 2019. Trata-se de um documento feito com muita pressa e pouca supervisão a partir dos discursos do próprio presidente. Há questões muito relevantes, como a ambiental, que não são tratadas no documento, e outras são tratadas de forma incompleta. Nos quatro parágrafos dedicados à cultura, menciona-se, por exemplo, o Instituto Nacional de Belas Artes e Literatura, mas não o Instituto Nacional de Antropologia e História. Há quatro linhas centrais sobre a cultura:


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• amplo significado da noção de cultura; • sentido não excludente da política cultural e reconhecimento de sua importância para a paz, a convivência e a espiritualidade; • priorização dos setores mais marginalizados;

• atenção às questões tradicionais cobertas pelas instituições culturais sem fazer com que estas centralizem ou monopolizem a atividade cultural. Como veremos a seguir, o governo mexicano não apresentou o plano setorial para a

CONTEÚDO DOS PROGRAMAS SUBSTANCIAIS DE CULTURA NO MÉXICO, 2019-2024 DEFINIÇÕES DO PROGRAMA DO PARTIDO MORENA (PROJETO DE NAÇÃO) 2017

DEFINIÇÕES DE ALEJANDRA FRAUSTO, ANUNCIADA COMO SECRETÁRIA DE CULTURA (O PODER DA CULTURA)

DEFINIÇÕES DO PROJETO DE PLANO NACIONAL DE DESENVOLVIMENTO (PND-SUPLEMENTO), DO SECRETÁRIO DE FAZENDA E CRÉDITO PÚBLICO

DEFINIÇÕES DO PROJETO DE PLANO NACIONAL (PND), DE ANDRÉS MANUEL LÓPEZ OBRADOR ABRIL DE 2019

JUNHO DE 2018 ABRIL 2019 O programa de cultura comunitária promoverá o acesso à cultura de forma gratuita e o exercício dos direitos culturais da população em situação vulnerável, com pleno respeito à diversidade cultural.

1. Redistribuição da riqueza cultural. 2. Cultura para a paz e a convivência. 3. Economia cultural. 4. Agenda digital. Programas: 5. juventude na cultura; 6. vida criativa. Assuntos prioritários: • perspectiva de gênero; • olhar de frente para o mundo; • da cultura do poder ao poder da cultura (que se refere exclusivamente à adaptação como centro cultural da Residência Oficial “Los Pinos”, que AMLO não estaria mais utilizando); • patrimônio danificado pelos terremotos de 2017.

Fonte: elaboração do autor.

1. Fomentar o acesso à cultura para toda a população. 2. Impulsionar a formação e profissionalização artística e cultural dos indivíduos, comunidades, coletivos e trabalhadores da cultura. 3. Promover e ampliar a oferta cultural. 4. Salvaguardar e difundir a riqueza patrimonial do México, material e imaterial. 5. Fortalecer as indústrias culturais e empresas criativas. 6. Desenvolver e otimizar o uso da infraestrutura cultural pública. 7. Reconhecer, preservar, proteger e estimular a diversidade cultural e linguística do México.

1. Amplo significado da noção de cultura. 2. Sentido não excludente da política cultural e reconhecimento de sua importância para a paz, a convivência e a espiritualidade. 3. Priorização dos setores mais marginalizados. 4. Atenção às questões tradicionais cobertas pelas instituições culturais sem fazer com que estas centralizem ou monopolizem a atividade cultural.

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cultura 2020-2024, o que suscita diversas reflexões sobre a situação do setor cultural no país. No entanto, com o que foi apontado até aqui, pode-se desenhar o que seria o planejamento cultural no país. Esse quadro mostra a preeminência política de atenção aos setores marginalizados a partir do programa chamado cultura comunitária. Isso representa efetivamente uma virada com relação aos programas anteriores centrados no patrimônio ou na difusão. A virada também se expressou em nível orçamentário, porque, embora o orçamento da Secretaria de Cultura não tenha aumentado, a atenção aos grupos comunitários sim. O Plano Setorial de Cultura ou a crise nas políticas públicas de cultura O presidente López Obrador tinha até 12 de janeiro de 2020, ou seja, seis meses, para publicar os planos setoriais e institucionais das diversas dependências de seu governo. Embora em outras administrações tenha havido atrasos na comunicação de planos específicos, agora era notável a ausência de uma ampla discussão sobre o planejamento setorial em todas as áreas. As razões pelas quais ele não o fez são desconhecidas, e só resta supor algumas. A primeira é que o presidente da República e seus colaboradores imediatos consideram que o planejamento é desnecessário. As linhas de governo já estão definidas: redistribuição de renda, combate à corrupção, relançamento de empresas estatais, universalização dos serviços, moralização da vida pública e privada, priorização do ataque aos fatores causais dos problemas sociais e não aos seus sintomas, entre os objetivos mais

importantes. Por que planejar esses objetivos se a sociedade em geral os entende e os apoia? É possível sustentar que o atual governo acompanha essa consideração com uma segunda, a qual considera que a entronização do planejamento do Estado ocorreu junto com a instauração do neoliberalismo, que colocou a tônica na gestão para envolver suas finalidades perversas com uma aura de racionalidade que agora precisa ser desmontada. Em outras palavras, os critérios para planejamento e avaliação das políticas públicas não são adequados para promover um verdadeiro desenvolvimento, justo e sem desvios. Com muita frequência, o presidente tem rejeitado conceitos usados no planejamento e na avaliação das políticas públicas por serem insuficientes e encobridores: crescimento não é desenvolvimento; emprego não é a mesma coisa que ocupação; descentralização não é um fator de eficiência; subsidiariedade não é desenvolvimento local; autonomia não é liberdade para se governar, mas para se corromper; a divisão de poderes não é garantia de controle do Estado... Em sua perspectiva, é necessário produzir uma revolução no sentido da ação pública, e isso não é possível se for assumida a linguagem do planejamento. Finalmente, pode-se pensar que o planejamento é simplesmente uma perda de tempo, porque os planos não são cumpridos e, pelo contrário, dificultam a tomada de decisões, o que é evidente na rapidez com a qual o presidente emite uma diretriz e nas dificuldades para que esta se traduza em ações percebidas pela sociedade.


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Quaisquer que sejam as razões, o fato é que o planejamento não foi realizado e, muito provavelmente, não será realizado. No caso específico da cultura, pode ser que existam outros motivos próximos aos mencionados anteriormente. Após 30 anos de planejamento cultural, seus resultados nunca foram medidos e, aparentemente, não há intenção de fazê-lo agora. Ou pode ser que o projeto de uma política cultural que nasça de baixo tenha dificuldade em encontrar o fio que lhe permita generalizar o amplo conhecimento dos problemas locais e da comunidade para dar origem a uma política nacional. Em resumo, estamos em uma situação de grande obscuridade nesse campo, e tudo isso pode nos levar a acreditar que tanto as políticas públicas quanto as políticas públicas de cultura, em particular, estão em um momento de definição ou talvez de crise. Em 2018, o professor Per Mangset, da Universidade de Telemark, na Noruega, publicou o artigo “The end of cultural policy?”. Nele, faz uma reflexão interessante sobre as políticas públicas culturais nas democracias ocidentais. Ele observa que essas últimas não se adaptam às grandes transformações que as sociedades contemporâneas estão vivendo, produzindo desafios significativos para as políticas culturais. Mangset apresenta sete cenários problemáticos das políticas culturais: • a democratização da cultura parece ser muito difícil; • as autoridades públicas apoiam sistematicamente instituições culturais que podem ser consideradas obsoletas; • os artistas profissionais vivem em

• •

condições de precariedade econômica, apesar dos planos de apoio público; as políticas públicas de cultura são predominantemente nacionais, apesar da globalização da produção e distribuição cultural; as autoridades públicas justificam o aumento dos subsídios à cultura com os efeitos benéficos que a arte e a cultura podem ter além do próprio campo cultural. No entanto, é possível argumentar que tais efeitos poderiam ser iguais ou maiores se os recursos fossem aplicados em outros campos sociais; um setor cultural público específico pode parecer aprisionar a cultura em uma gaiola de ferro burocrática; finalmente, poderia ser proposto que uma política cultural pública não tem sentido em um período de estagnação das competências públicas.

Como mostrei ao longo deste texto, no México, a aposta central da Secretaria de Cultura foi definida em favor do desenvolvimento de culturas comunitárias que abrangem as culturas marginalizadas do campo e da cidade, especialmente das comunidades indígenas. Isso já foi implementado com diferentes programas. Grande parte das informações sobre em que consiste o programa pode ser obtida na internet.17 São ações que, de alguma forma, replicam o que foi feito em outros momentos, embora com uma ênfase diferente e, principalmente, mais metódica. Evidentemente, o programa procura evitar o assistencialismo e se preocupa com o diagnóstico, a promoção de atores locais e a conexão com

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os problemas da comunidade, especialmente áreas tem apenas capacidade reguladora. o combate à violência. Apresenta vários pro- No caso das culturas comunitárias, é imblemas, e destaco três deles. possível para uma secretaria federal se enO primeiro está relacionado ao pes- carregar das inúmeras comunidades rurais soal necessário para o programa. Depois de e indígenas. Portanto, sua intervenção deve demitir mais de mil trabalhadores da Secre- ser indireta, basicamente de promoção e retaria de Cultura, agora a cultura comunitária gulamentação, em apoio aos governos estafoi forçada a contratar pessoal especializado duais e municipais. No entanto, ao tentar (630 pessoas com um orçamento de 178 mi- produzir ações diretas nesse campo, houve lhões de pesos, afirmam) para trabalhar em uma sobreposição de funções e atividades. 279 municípios que precisam ser atendidos Na prática, os governos estaduais trabalham urgentemente. Essas contratações tiveram separadamente da ação federal. que ser rápidas e sem critérios precisos em reSe a cultura comunitária constitui o lação às características do pessoal necessário. eixo central da política cultural, isso signifiOutra questão relecaria que a política de covante é que as atividades Apesar de o programa possuir municação, de patrimônio, que o programa implica recursos significativos para de formação artística, de não são precisas e, por isso, sua execução, não se baseia cinema, rádio e televisão e ele não possui regras claras em uma ideia transversal todos os outros aspectos da de operação. Por exemplo, na qual criadores, gestores política pública de cultura o subprograma Semilleros culturais e, em geral, todos os deveriam ser incluídos na Creativos [Viveiros Criati- agentes sociais interessados cultura comunitária. No vos] – talvez a aposta mais em cultura trabalhem em entanto, o que vemos é a importante da Secretaria coordenação com ele segregação do programa. de Cultura – tem um orçaPor esse motivo, apesar de mento de 200 milhões de pesos, um terço do possuir recursos significativos para sua exevalor destinado ao Fundo Nacional de Cul- cução, ele não se baseia em uma ideia transtura e Artes (Fonca), mas seu acesso e seu versal na qual criadores, gestores culturais exercício são menos rigorosos do que no caso e, em geral, todos os agentes sociais interesdo fundo. Vários especialistas em adminis- sados em cultura trabalhem em coordenação tração pública manifestaram preocupação com esse programa. com a negligência ou a ausência de regras As críticas do professor Per Mangset à operacionais. capacidade das democracias ocidentais de Um terceiro problema é que a Secre- desenvolver uma política cultural moderna taria de Cultura possui capacidade de pro- certamente apresentam algumas lacunas. dução e gestão em certas áreas, como na Para começar, o sociólogo norueguês se repolítica de cooperação internacional, pa- fere às mudanças nas sociedades modernas trimônio monumental ou gestão de grandes que muitos autores trataram nos últimos 20 infraestruturas culturais, mas em outras ou 30 anos. Por exemplo, na década de 1990,


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Ulrich Beck descreveu uma “sociedade de risco” e Zygmunt Bauman, no início do século XXI, a implantação de uma crescente “modernidade líquida”, conceitos que podem não ser aplicáveis ao México. Além disso, embora esse país talvez esteja longe das condições de pós-modernidade descritas por esses autores, nem um pouco condescendentes com o neoliberalismo, o México, na concepção do presidente da República, deve estar cada vez mais próximo da visão de um país pré-moderno, no sentido de uma sociedade centralizada e dependente de um líder carismático que deseja definir a política para si mesmo. Para aprofundar-nos nesse sentido, podemos ver que a cultura é, para López Obrador, conforme ele declarou em meados de 2018, “aquilo que tem a ver com os povos” e, diante das críticas ao orçamento da Secretaria de Cultura, explicou: “Nunca os povos originários, os membros de nossas culturas, haviam sido tratados como agora”.18 Pode-se dizer que o governo federal decidiu desenvolver uma política baseada em um sentido amplo de cultura, focada nos grupos marginalizados da sociedade, sem fazer com que as tarefas tradicionais às quais as instituições culturais se dedicaram até agora sejam o centro ou mantenham o monopólio da atividade cultural. Não há outras definições públicas que nos permitam ir além dessas considerações. Tais objetivos podem nos levar a examinar alguns aspectos fundamentais das políticas culturais modernas no México e a tentar elucidar o compromisso do setor público com eles. Para não dispersar demais a atenção, reduzirei a quatro as questões básicas.

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O paradigma fundamental das políticas culturais modernas se concentra na democracia. Esta se desenrola em dois aspectos: acesso e participação. Uma política cultural moderna é aquela que coloca seu esforço em desenvolver todos os instrumentos que possibilitam o acesso dos cidadãos aos bens culturais. Agora, desde meados do século XX, as questões de acesso tiveram seu principal oponente ou cúmplice nos meios de comunicação de massa. Não foram poucos os programas culturais que enfrentaram esse problema, começando pelas famosas definições em termos de cultura que André Malraux adotou na década de 1960. Como desenvolver uma política cultural democrática, inclusive a favor dos setores culturais, sem levar em consideração o rádio, a televisão, o cinema e, agora, a internet e as redes sociais? É possível dividir a atenção da sociedade em uma política preocupada com as maiorias marginalizadas camponesas e indígenas e, por outro lado, os grupos urbanos populares, médios e altos da sociedade? Um segundo aspecto das políticas culturais atuais é o seu vínculo com o desenvolvimento. Para isso, foi necessário ampliar a noção de cultura de uma inicialmente focada na criação e circulação de bens simbólicos – o interesse voltado para as artes plásticas – para outra que via a cultura como um modo de vida, conforme proposto pelo Plano Nacional de Desenvolvimento. Agora, uma vez que a ação cultural se centra nesse modo da ação cultural, o desenvolvimento exige objetivos que possibilitem sua apropriação pelos cidadãos. O governo federal tentou focar sua ação pública no desenvolvimento, e não no

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crescimento, mas ainda não definiu em que e normativa, como foi feito em termos de isso consiste. Se se trata da implantação cultura comunitária, é abrir uma frente de de políticas redistributivas que reduzam fragilidade e ineficiência. a desigualdade, como elas se expressam Com base nos critérios que apresenno campo da cultura? Na “redistribuição tei, considero que existe uma profunda crida riqueza cultural”, como foi expresso no se de política cultural no México, agravada confuso Projeto Nação divulgado antes das pelo silêncio e pela falta de uma atitude eleições? Não seria melhor considerar que proativa da Secretaria de Cultura Federal consiste em ampliar as capacidades ele- para construir uma visão global da política tivas de todos os setores da sociedade em cultural no país. termos culturais? Uma política cultural é inseparável de Palavras finais uma ideia adequada de como ela é geren- Neste texto, segui o curso do planejamento ciada. A política define o “que”; e a gestão, cultural nos últimos 30 anos, a fim de enquao “como”. Para isso, foram drar mais facilmente as difedesenvolvidas diversas re- Focar a política cultural em renças que implica a política flexões que caminharam equipamentos com fraca cultural de López Obrador. em três âmbitos: o que as definição institucional Na minha perspectiva, o que instituições devem produzir e normativa, como foi está acontecendo atualmende acordo com os objetivos feito em termos de cultura te no México sugere que há públicos definidos pelas ins- comunitária, é abrir uma crise na política cultutâncias de participação da uma frente de fragilidade ral entendida como política sociedade; a definição des- e ineficiência pública. A institucionalidade ses objetivos públicos atracultural em si não corre risco, vés de políticas de participação cidadã; e as mas sim a integralidade da política cultural e medidas de coerção e estímulo para que os seu vínculo com o que foi chamado de setor objetivos sejam cumpridos. Isso é ainda mais cultural, constituído por todos os atores e emnecessário do que a política cultural federal. presas culturais que geram uma parte signiPor não possuir os instrumentos para atin- ficativa do PIB nacional (3,2%) e empregam gir toda a sociedade, requer a participação e cerca de 1 milhão de pessoas. O motivo dessa o acordo com as instituições culturais dos desvinculação não está na abordagem da culestados e municípios do país. tura comunitária, mas em sua segregação da Finalmente, uma política cultural pre- política cultural como um todo e na falta de cisa de instrumentos institucionais que vínculos que deem sentido a toda a orientapossuam normas precisas de operação. No ção cultural do Estado. Uma reflexão pública México, os institutos, centros e fundos cul- sobre o planejamento cultural, com o envolturais estão mais bem estabelecidos nesse vimento de todos os setores que intervêm no sentido. Focar a política cultural em equi- campo cultural, provavelmente possibilitaria pamentos com fraca definição institucional a superação dessa crise.


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Eduardo Nivón Bolán Doutor em antropologia e coordenador da especialização em políticas culturais e gestão cultural oferecida pela Universidade Autônoma Metropolitana-Iztapalapa. É membro do Sistema Nacional de Pesquisadores (México).

Referências bibliográficas KRAUZE, Enrique (2006). El mesías tropical. Letras Libres, México, 30 jun. Disponível em: https://www.letraslibres.com/espana-mexico/revista/el-mesias-tropical MANGSET, Per (2018). The end of cultural policy? International Journal of Cultural Policy. DOI: 10.1080/10286632.2018.1500560. MARTÍNEZ, Eduardo (1967). La política cultural de México. Unesco, 1977, 67 p. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000037076. MINISTÈRE DES AFFAIRES CULTURELLES – Service des Études et de la Recherche (1970). Some aspects of French cultural policy. Paris: Unesco. Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0000/000012/001205eo.pdf. RIEFF, David (2006). Sobre López Obrador. Letras Libres, México, 30 nov. Disponível em: https://www.letraslibres.com/mexico/sobre-lopez-obrador. RUÍZ DUEÑAS, Jorge (1983). La vía de la planificación mexicana. Revista de Administración Pública, México, Inap, n. 55/56, jul.-dez., p. 35-64. SEP. Política cultural del Estado mexicano. Documentos básicos. Primera reunión nacional de evaluación del sector cultural, 1986. SHERIDAN, Guillermo (2017). AMLO: el proyecto contra el proyecto. Letras Libres, México, 29 nov. Disponível em: https://www.letraslibres.com/mexico/politica/ amlo-el-proyecto-contra-el-proyecto. TOVAR Y DE TERESA, Rafael (1994). Modernización y política cultural: una visión de la modernización de México. México: FCE, 1994.

Notas 1

“Os antecedentes do planejamento no México contemporâneo remontam aos anos posteriores ao movimento revolucionário de 1917 e seu início coincide com a primeira transmissão pacífica de poder” (RUIZ DUEÑAS, 1983, p. 35).

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De 1959 a 1988, existiu uma Subsecretaria de Cultura, com objetivos institucionais muito diversos.

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Disponível em: http://unesdoc.unesco.org/images/0000/000012/001205eo.pdf.

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Anteriormente, Malraux havia insistido em incorporar ao Ministério da Cultura o IV Plano de Desenvolvimento Econômico e Social (1962-1965), pois assim seria incluído nos orçamentos anuais do Estado.

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Antes da existência do Conaculta, os programas culturais eram apresentados como um capítulo dos planos da Secretaria de Educação. Assim, por exemplo, no período de 1977 a 1982, a cultura foi tratada em um capítulo no qual se mencionava “o patrimônio, as belas-artes, as culturas populares, a cultura impressa, a cultura e a educação audiovisual, as associações culturais e a proteção da obra artística e intelectual e os intercâmbios”. As linhas gerais de política cultural se sustentavam na atenção a múltiplas concepções do mundo, nas quais “o Estado deve estar a serviço da cultura e esta a serviço da maioria, sendo tarefa do poder público promover uma cultura crítica e democrática, estabelecendo uma ponte entre esta e a educação” (MARTÍNEZ, 1977, p. 67). No período de 1983 a 1988, o Plano Nacional de Desenvolvimento tratou da cultura na seção “Educação, cultura, recreação e esporte”, na qual falava sobre o desenvolvimento de uma cultura nacional. No respectivo programa nacional, eram levantados alguns pontos sobre patrimônio, descentralização, promoção e difusão da cultura (SEP. Política cultural do Estado mexicano. Documentos básicos. Primeira reunião nacional de avaliação do setor cultural, 1986).

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ELEM. Consejo Nacional para la Cultura y las Artes (Conaculta). Enciclopedia de la literatura en México, ELEM. Disponível em: http://www.elem.mx/institucion/ datos/323.

7

CONACULTA (2000). Nueva proyección de la política cultural. In: Memoria 1995-2000, tomo I, Conaculta, México, p. 15-24.

8

CONSEJO NACIONAL PARA LA CULTURA Y LAS ARTES. Programa Nacional de Cultura 2001-2006. La cultura en tus manos, Conaculta, México.

9

CONSEJO NACIONAL PARA LA CULTURA Y LAS ARTES. Programa Nacional de Cultura 2007-2012, Conaculta, México. Disponível em: https://www.cultura.gob. mx/recursos/acerca_de/pnc2007_20121.pdf.

10

CONSEJO NACIONAL PARA LA CULTURA Y LAS ARTES (2014). Programa Especial de Cultura y Arte (2014-2018), México, Diario Oficial de la Federación, 24 abr.

11

Disponível em: https://lopezobrador.org.mx/wp-content/uploads/2018/11/ Boleta-Consulta-Nacional-Programas-Prioritarios.pdf.

12

Disponível em: https://contralacorrupcion.mx/trenmaya/assets/plan-nacion.pdf.


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O escritor Guillermo Sheridan, crítico incisivo da esquerda e de AMLO, comentou que, no campo educacional, o Projeto de Nação 2012-2024 tinha um capítulo intitulado “As instituições de ensino superior privadas que atingiram altos padrões de desempenho devem ser reconhecidas”. Sheridan ficou surpreso com essa proposta, porque era contrária à tradicional posição de esquerda sobre a educação privada. Ao investigar esse assunto, descobriu que essa proposta tinha sido considerada havia algum tempo pelo governo Peña Nieto: “Há um ano [2016], alguém publicou na internet o rascunho de uma iniciativa de lei que concede autonomia a universidades privadas de qualidade garantida, que o presidente Peña Nieto apresentaria à Câmara dos Deputados em 3 de março de 2013. Essa iniciativa de lei, que obviamente fazia parte das reformas educacionais, elogiava as instituições de ensino superior privadas e dava motivos para conceder-lhes autonomia. Aparentemente, nunca foi formalmente apresentada”. Para sua surpresa, a equipe que fez as propostas sobre educação no programa de AMLO achou interessante copiar essa iniciativa (SHERIDAN, 2017).

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A versão completa do documento está em: https://es.scribd.com/ document/390892591/EL-PODER-DE-LA-CULTURA-pdf. A versão gráfica que teve maior difusão está em: https://www.elfinanciero.com.mx/elecciones-2018/ el-poder-de-la-cultura-nuevo-documento-de-politicas-de-amlo. A diferença entre os dois documentos é que o primeiro tem uma introdução de Alejandra Frausto um pouco mais extensa.

15

Disponível em: https://www.marcrixnoticias.com/amlo-rechace-a-urzua-su-pndde-inercia-neoliberal/.

16

Disponível em: https://www.jornadabc.mx/tijuana/10-07-2019/admite-amloque-tuvo-discrepancias-con-el-ex-secretario-de-hacienda.

17

Disponível em: http://culturacomunitaria.gob.mx/.

18

Disponível em: https://www.contrapesociudadano.com/amlo-preocupa-consu-definicion-de-cultura/. Na realidade, o orçamento da Secretaria de Cultura é ligeiramente inferior ao do ano passado, de Peña Nieto, mas o orçamento específico para as culturas comunitárias é muito maior do que em outros períodos.

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POLÍTICA CULTURAL NOS ESTADOS UNIDOS José Carlos Durand

O artigo recupera traços da história cultural dos Estados Unidos e se atém ao período mais recente, a partir dos anos 1960, quando começa a se formar uma complexa rede de órgãos públicos e privados de apoio econômico e institucional às artes. A referência principal é o National Endowment for the Arts (NEA), fundado em 1965, que oferece bolsas e prêmios, encomenda obras de arte, incentiva doações via imposto de renda, cria e gerencia instalações culturais, tomba e conserva o patrimônio e protege os direitos de autor. Faz tudo isso com verba diminuta e cuidados especiais para não contrariar o conservantismo moralista dentro e fora do Congresso. Ao fim, caracteriza-se o lado big-business do cinema, da edição de livros e dos megashows da Broadway.

I. Singularidades históricas dos Estados Unidos

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ólidas razões enraizadas na história dificultam que se localize, na experiência política e administrativa dos Estados Unidos, algo que lembre um plano nacional de cultura. Em contraste com antigas nações europeias (França, em particular), podem-se aventar algumas razões: a) ausência de uma cidade capital que haja concentrado, ao longo do tempo, a representação do poder político, econômico, cultural e religioso; b) ausência de uma elite única, visível e coesa, capaz de irradiar seu poder país afora; c) correlatamente, ausência de um sistema público e integrado de ensino capaz de impor sua pedagogia em

escala nacional; d) ausência de uma classe política e burocrática estável e importante em Washington. A razão dessa última é a desconfiança visceral do cidadão comum em relação a um poder central sempre suspeito de querer virar tirania, o que responde pela força dos governos estaduais, marcando a história política federativa dos Estados Unidos. Por outro lado, presença de um dinâmico amálgama de culturas minoritárias: negros, indígenas, imigrantes de procedência diversa, com línguas e costumes próprios, que se mesclaram no vigoroso processo de expansão geográfica e de mobilidade social que os Estados Unidos viveram entre o fim da Guerra Civil (1861-1865) e o fim da Primeira Grande Guerra, em 1918, e prosseguindo


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depois, ainda que em ritmo menor. Como Tendo o país um sistema de valores que efeito de conjunto, restou um fraco poder celebra o indivíduo, a propriedade privada e simbólico da cultura erudita, incapaz de a comunidade local, o governo federal ficou exercer hegemonia ampla e de se sobrepor como que dispensado de articular ações mais às indústrias culturais, que, estas sim, se for- decisivas e ter papel proeminente no apoio às maram rapidamente e prosperaram na esfera artes. Isso só aconteceu pontualmente: por privada, sob a égide do mercado. exemplo, em 1935, quando, diante da pobreza O que se chama hoje de cultura popular, desesperadora que se seguiu à crise de 1929, o no singular, para os Estados Unidos, é basica- presidente Roosevelt criou o Work for Progress mente o resultado desse processo, e por isso Administration e chegou a empregar 3.700 aré sinônimo de cultura de massa. Inclua-se tistas, encomendando, entre outras iniciativas, aí o remanescente de culturas locais antigas telas e esculturas para prédios públicos. e ainda relativamente ínteNa fronteira internaciogras, a folk and traditional Sólidas razões enraizadas nal, houve momentos em que a culture, tal como aparece na história dificultam que estratégia político-militar imhoje no discurso de preser- se localize, na experiência pôs reforçar a imagem do país vação do patrimônio. no estrangeiro. Por exemplo, política e administrativa O dinamismo econô- dos Estados Unidos, algo em 1941, quando se implantou mico ocorrido entre 1870 e que lembre um plano em Nova York, por iniciativa e 1920 elevou a renda de gran- nacional de cultura patrocínio de outro magnata, de parte da população e fez Nelson Rockefeller, um prograemergir a figura do magnata, dono de grande ma de aproximação cultural com a América fortuna. Para se proteger do estigma de violar Latina. Artistas latino-americanos eram lea livre concorrência ao operar como trustes e vados a visitar o país, a fazer apresentações cartéis, alguns bilionários se voltaram para a fi- e exibições, a conhecer suas grandezas e, lantropia, criando fundações poderosas. Entre assim, a reforçar em si os princípios liberais outras causas, alguns deles apoiaram significa- contra a crescente influência nazifascista tivamente as artes e a cultura (A&C). É o caso sobre a América do Sul. de Andrew Carnegie, que, em 1919, financiou a O segundo pós-guerra foi um momento construção de 2.800 bibliotecas públicas pelo importante de recuperação da vida cultural país, além de um importante centro cultural não só nos Estados Unidos, como também (Carnegie Hall, Nova York) e de duas universi- na Europa, onde a ação de Estado foi fortadades (Nova York e Pittsburgh). E de Jean-Paul lecida pela criação ou pelo fortalecimento de Getty, filho de um empresário de petróleo que, ministérios ou secretarias. Na França, por além de ampliar a fortuna paterna no mesmo exemplo, foi fundado, em 1959, o Ministère negócio, colecionou obras de arte, criou um des Affaires Culturelles, que, durante seu museu de arte na Califórnia (Getty Museum) primeiro decênio, foi dirigido por um intee nele instalou importantes coleções de grande lectual de respeito, André Malraux, e serviu valor compradas no estrangeiro. de exemplo para outros países do continente.

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II. O novo sistema de financiamento e gestão Na mesma época, em 1965, o governo federal estadunidense cria uma agência federal para arte e cultura: o National Endowment for the Arts (NEA). Em nada ela se parece com um ministério de gestão centralizada e orçamento de peso. Tendo baixa dotação, cerca de 160 milhões de dólares anuais, cabe-lhe oferecer bolsas para a criação (consagrada ou de vanguarda), para ampliar o acesso do público às artes e para a educação artística (A&E), e prêmios para quem se destaque em alguma dessas atividades-fim. Somando tudo, emprega o NEA desde sempre em torno de 80% de seus recursos. Por muito tempo, concedeu bolsas diretamente a artistas, mas acabou abandonando a prática, sendo convencido de que, quando os pedidos são subscritos por organizações, a transparência é maior. Em toda a sua história, o NEA concedeu bolsas e auxílios no valor total de 5 bilhões de dólares. O clima era bem favorável na década de 1960, pois se exacerbavam os movimentos sociais, o questionamento da ordem pelos jovens, as tentativas de ruptura estética. Como no sistema de ensino elementar e médio a iniciação artística não tinha lugar muito claro e seguro, cabia melhorar sua posição nos currículos oficiais. Como agência independente, carente da aprovação do Congresso para continuar existindo, o NEA foi ameaçado algumas vezes de extinção: ou porque financiou exposições de arte acusadas de obscenas por parlamentares conservadores ou simplesmente porque alguns presidentes republicanos (Reagan, por exemplo) não viam razão em sua existência. Só no governo Trump

houve duas tentativas de extinção, mas até agora não foram adiante. Para sobreviver, o NEA, desde 1989, vem se esmerando em prestações de conta minuciosas e em seguir a estratégia de distribuir recursos em regime cooperativo (com os state arts councils e com os local arts councils, além das nonprofit arts organizations. Dilui-se, assim, a responsabilidade de quais projetos financiar, ou não. Não se esqueça, também, que os governos regionais, estaduais e locais têm forte poder garantido pela política federativa da nação. A partilha de responsabilidade acompanha-se da divisão de recursos, o que se processa sob a rubrica do matching grants, ou “subsídio equivalente” em tradução técnica: o NEA exige 1 dólar não federal para cada dólar concedido. Comunidades ou indivíduos de poucos recursos podem entrar com horas de trabalho ou outro recurso para pagar sua parte. De início, essa divisão era difícil, pois a grande maioria dos estados e localidades não tinha autoridade cultural constituída. Mas, logo depois, os 50 estados e mais de mil localidades criaram seus conselhos de arte (state ou local arts councils). E assim os recursos sempre modestos do NEA se multiplicam até 7 vezes. Ademais, o fato de um artista ou instituição receber do NEA constitui em si uma credencial, ou seja, uma chancela de qualidade. A dinâmica de implantação de instituições então se acelera, formando uma densa malha que hoje reúne o NEA, os state e os local arts councils, as fundações (que atualmente são 56 mil em todo o país), e as corporações que mantêm linhas de apoio à cultura. Mais importante em valor do que a soma de todos os recursos vindos de fontes


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públicas é o dinheiro que passa a fluir da fi- ditaduras. Nesse sentido, é-lhe indispenlantropia privada. Esta cria endowments, ou sável operar com discrição e ser visto pela fundos multimilionários aplicados no mer- população como “diminuto, ágil e flexível”. cado financeiro, cujos rendimentos anuais Convém, nessa linha sempre, alardear que são usados, no caso, para sustentar organiza- seus recursos são ínfimos, não passando de ções sem fins lucrativos, assim como grupos 1% do orçamento total com artes e cultura. informais e até outras instituições. Mas o NEA não financia apenas projePara uma ideia aproximada da parte tos. Vai muito além, ao propor e criar evencorrespondente a cada fonte de financiamen- tos e premiações, ao engajar críticos de arte, to, pode-se citar, na ausência de dados mais jornalistas, patronos e noticiaristas em corecentes, um documento do NEA que mostra mitês variados de que participam notáveis a divisão entre elas, calculada na média de e leigos. Ao construir, anunciar e, finalmenvários exercícios fiscais dos anos 1990. As te, fazer avançar uma agenda de pesquisas principais conclusões são: a) a respeito do lugar da arte e a parte que vem da iniciativa Mais importante em cultura nas práticas de laprivada é quatro vezes maior valor do que a soma de zer, no orçamento doméstido que a das fontes públicas; todos os recursos vindos co, no mercado de trabalho, b) o poder local é o maior pro- de fontes públicas é o nos currículos escolares e na vedor, respondendo por 60% dinheiro que passa a fluir destinação de doações individe toda a receita governa- da filantropia privada duais e corporativas. mental destinada a A&C; c) É possível tomar o conos recursos privados chegam na mesma pro- junto das orientações, metas e objetivos preporção, ou seja, dos indivíduos, via incentivo sentes nos principais documentos analíticos fiscal (20%), e das organizações (20%). e prospectivos do NEA até certo ponto como Somando tudo, cobre-se com con- sucedâneo de um plano nacional de cultura. tributed income a metade das receitas das Afinal, não é preciso existir um ministério da nonprofits do setor. O mais notável é que a cultura estabelecido, com muitos funcionáoutra metade é gerada pelas próprias orga- rios e dinheiro, para que linhas de ação sejam nizações não lucrativas com suas atividades. definidas e resultados produzidos. É interesÉ o earned income, reunião de receitas de sante aqui ampliar o foco da análise e incluir bilheteria, de bares, restaurantes e lojas de também o que se faz ou se deixa de fazer em souvenir, e de venda de espaço publicitário outros países. em folhetos e cartazes, além de subscrições. O NEA não almeja muita visibilidade, III. Singularidades de A&C pois sabe que ela, em geral, é acompanha- como esfera de gestão pública da de desconfianças e críticas ao que possa Arte e cultura é uma área que não pressupõe parecer, na fantasia de muitos, um meio de responsabilidades precisas, necessárias e extentar impor determinado tipo de arte em cludentes entre níveis de governo. Ou seja, em detrimento de outros, coisa que só cabe em nações federativas, como os Estados Unidos,

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localidades, estados e União têm liberdade com formas, volumes, espaços, traços, cores, muito elevada, senão total, para decidir o que sons e vocábulos: não são particularmente financiar, por quanto tempo e em que montan- chegados a números. tes. O poder público pode escolher o que fazer, ou simplesmente não fazer nada. Suas orga- IV. As ações de governo nizações podem pertencer à administração em A&C nos Estados Unidos direta ou assumir a forma de fundações ou de Vamos aqui enumerar as frentes de ação de outras figuras jurídicas, e ligar-se através de governo em arte e cultura, que convergem parcerias ao setor privado. Para aumentar as para seis finalidades distintas: diferenças no cenário estadunidense, cada um dos 50 estados tem alguma particularidade em 1. sustento total ou parcial de artistas matéria de política cultural. com bolsas e prêmios ou, em casos A&C é uma área não dominada ou conmais raros, com salário e até mesmo trolada por membros de uma corporação proprevidência social; fissional específica, como a dos médicos na 2. encomendas ou aquisições públicas saúde e a dos engenheiros em de obras, tiragens e direitos; obras públicas. Não tem, assim, Afinal, artistas lidam 3. incentivo fiscal a pessoas, um ethos e um saber profissio- com formas, volumes, empresas e/ou outras organinal demasiado definidos, que espaços, traços, cores, zações para financiar projetos; possam virar camisa de força sons e vocábulos: não 4. criação e administração na prática ou garantir mono- são particularmente de instalações e equipamentos pólio duradouro de posições chegados a números culturais; de mando. Também não é uma 5. tombamento e conservação área em que se almeje atender equitativado patrimônio histórico e artístico; mente a todos os segmentos sociais. A razão 6. proteção à propriedade intelectual: é que a audiência, isto é, o público, se divide direitos autorais e copyright. entre repertórios de gosto muito diferentes, e cada indivíduo ou família usa o tempo livre Apontam-se a seguir alguns traços dessas a seu modo. ações nos Estados Unidos. Os segmentos sociais mais cultos e ricos (1) O apoio sazonal de artistas com são mais assíduos em museus, concertos e bolsas e prêmios é prática corrente desteatros. Quanto mais se desce na escala so- de, ao menos, a criação do NEA, em 1965. cial, mais o público passa as horas de lazer Financiar com base em projetos – como em casa, pouco desfrutando das mostras e hoje praticamente todas as agências fazem dos espetáculos financiados com dinheiro de – é garantia dessa prática. Não se localizou governo, contribuintes e fundações. estatística a respeito de qual parcela da Como a área envolve vários gêneros ar- população de artistas (hoje um total de 2 mitísticos, seus gestores não precisam ser ne- lhões) recebe ou alguma vez recebeu grants cessariamente artistas. Afinal, artistas lidam ou awards de fontes privadas ou de governo.


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Em 2019, o NEA anunciou que surgiram no país nada menos que 1.114 premiações e que sua contribuição aos artistas se concretizou em programas como Arts Works II, Our Town, State and Regional Partnership, e Research, nos quais investiu ao todo 80,4 milhões de dólares. Em toda a sua história, o NEA despendeu 5 bilhões de dólares em bolsas e auxílios. Já para pagar salários e garantir previdência social, não. Estes não fazem parte da cartilha liberal nem sequer aparecem como itens de apoio público e privado, não se podendo concluir se alguma vez existiram e foram importantes: certamente não. (2) Encomendas ou aquisições públicas de obras, tiragens e direitos parecem ser ações mais episódicas, em geral emergenciais, não havendo exemplos a citar de práticas permanentes. Por hipótese, essa modalidade, assim como salários e previdência, parece ser mais significativa em países em que o Estado do bem-estar social é mais enraizado, como Suécia, Noruega e Dinamarca. (3) Incentivo fiscal a pessoas e organizações para financiamento de projetos. O imposto sobre a renda garante o mais importante suporte às artes nos Estados Unidos. Contribuintes pessoa física respondem por 50% do total, as fundações por 33% e as corporações por 17%. É costume, sobretudo entre os contribuintes mais esclarecidos e ricos, indicar na declaração de renda qual destinação desejam incentivar, e muitos indicam A&C. As doações contemplam em maior grau as nonprofits, entre elas as que administram museus, orquestras sinfônicas e companhias de ópera, para as quais a

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contribuição da bilheteria e a ajuda de governo se tornam secundárias, a ponto de não superar 5% do orçamento total. (4) A criação e a gerência de equipamentos e instalações culturais. A criação de organizações culturais em nível nacional depende de aval do Congresso, que assume a condição de suporte de sua institucionalidade. Mas o Executivo precisa prosseguir assegurando os recursos necessários à sua sustentação. Como tendência, a administração dessas iniciativas é cada vez mais partilhada com o setor privado. Os matching grants e as doações corporativas, que garantem a gestão compartilhada, servem antes para fortalecer uma visão privada de como gerir uma organização cultural do que o seu inverso. Como se lê no estudo de Adams e Goldbard (apud HUFFMAN, 2015, p. 11), o sistema de crenças que fundamenta os critérios de gestão na área artística pressupõe que “a missão cultural do governo é seguir a liderança do setor privado e que não há propriamente objetivos públicos no reino da cultura” (grifo meu). Assim, é difícil até mesmo saber quantos são e o que fazem os civil servants e/ou officials na gestão das artes. (5) O trabalho de classificação (ou tombamento), o restauro, a conservação, o reúso ou a abertura a visitas do patrimônio histórico, artístico e natural são feitos pelo National Park Service, junto com o Special Committee on Historic Preservation, criado em 1966. Até 2006, já se haviam mobilizado, por meio do Historic Preservation Fund, criado em 1970, mais de 1 bilhão de dólares para estados e localidades, grupos indígenas, nonprofits e escolas em

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todo o país. O dinheiro federal funciona, V. Os novos espaços e novos agentes assim, como catalisador de investimentos de intermediação em A&C privados, ou “seed money”. A preservação A malha de organizações de todo tipo e tamado patrimônio absorveu, de 1977 a 2006, nho que dá vida ao setor de A&C nos Estados mais de 36 bilhões em investimento pri- Unidos vem se adensando de longa data. Mas vado, distribuídos por toda a nação. Mais ela praticamente se duplica com a expansão de 1.550 governos locais pediram adesão do mundo virtual, com novos portais, weba esse programa para conservar mais de sites e blogs anunciando a programação de 1.500 bens tombados, tendo sido aprovados museus e salas de concerto, vendendo inmais de 1.100 projetos através do Federal gressos, filmes e discos. E, ao mesmo tempo, Historic Preservation Tax Credit, em regi- ajudando na visibilidade de novos nichos de me de matching grants. Está devidamente prestação de serviços para artistas ou contombado o ônibus em que a negra Rosa tribuindo para aproximá-los de seus pares e Parks, em 1955, chocou a todos recusando-se parceiros, clientes, fornecedores, congresa ceder seu assento a um branco. sistas, voluntários, ativis(6) Proteção à pro- Está devidamente tas etc. Ou distanciá-los de priedade intelectual e ar- tombado o ônibus concorrentes e adversários. tística (direitos autorais e em que a negra Rosa Crescem também novos escopyright). A legislação de Parks, em 1955, chocou paços nos quais alguém pode copyright nos Estados Unidos a todos recusando-se se atualizar em questões de de certo modo acompanhou a a ceder seu assento política cultural e discuti-las, dos direitos de patente, a par- a um branco propor e votar. tir de fins do século XIX. O US Bom exemplo desse Copyright Office, criado em 1897 como or- avanço está no site da Americans for the ganismo autônomo vinculado à Biblioteca Arts, nonprofit que tem por missão prido Congresso, é o órgão mais importante. mária fazer avançar as artes nos Estados Ele recebe para registro centenas de mi- Unidos. Ela existe desde 1996 e tem sede lhares de pedidos de copyright sobre livros, em Washington e Nova York. Resultou de revistas, música, cinema, registros sono- uma fusão entre uma entidade associativa ros, software, fotos ou outros trabalhos de agências públicas locais e um comitê emde autoria. Em 2018, recebeu 520 mil pe- presarial para as artes, e tem por objetivos didos, quase todos pela internet, e emitiu ajudar a construir ambientes nos quais as mais de 560 mil registros. A desmateria- artes e a arte-educação prosperem e conlização dos suportes, com a digitalização tribuam para forjar comunidades mais vide acervos, vem abrindo novas frentes de brantes e criativas; fomentar políticas por concorrência e colaboração na disputa parte dos setores público e privado e mais desses direitos. A Organização Mundial recursos e liderança para as artes e para a do Comércio (OMC) acabou se tornando educação artística; e assegurar a estabilia arena principal da disputa. dade operacional das organizações e sua


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capacidade de responder criativamente a desafios e oportunidades. Tais objetivos serão atingidos por meio de parcerias entre, de um lado, agências dos governos locais, dos estados e do governo federal; e, de outro, lideranças empresariais, filantropos, educadores e patronos por todo o país. Além disso, a Americans for the Arts organiza eventos anuais para aumentar a visibilidade do setor artístico, como o National Arts Awards. O prêmio contempla artistas que produziram obras notáveis nacionalmente e líderes que se destacaram nas artes. O Business Committee for the Arts (BCA) seleciona as empresas com maior comprometimento com o setor e as premia com bolsas, parcerias locais, programas de voluntariado, patrocínios e participação em colegiados. Os dirigentes públicos que mais se destacaram no apoio às artes concorrem ao Leadership in the Arts Awards, em parceria com a United States Conference of Mayors. Como anfitriã no Dia Nacional de Proteção às Artes, no Capitólio, a Americans for the Arts convoca animadores e incentivadores de todo o país a reivindicar mais apoio federal. O Americans for the Arts Action Fund se empenha em mobilizar 1 milhão de militantes de base para defender políticas públicas em todos os níveis de governo. A filiação ao The Arts Action Fund é aberta a quem quiser. A Americans for the Arts serve a mais de 150 mil indivíduos, entre pessoas e organizações, além de seus parceiros. O público atingido pelas agências locais é o foco da atenção da organização. Ela aproxima, de modo original, uma grande variedade de redes de parceria com interesses tais como arte pública, fomento para projetos multidisciplinares,

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para A&E e para o fortalecimento de novas lideranças. Em matéria de informação e conhecimento destinados aos que decidem, a Americans for the Arts coleta, elabora e dissemina dados que servem de ferramenta necessária para todos os interessados na “indústria das artes”. Aqui, o sentido desse conceito nada tem a ver com o conceito de indústria cultural empregado pela conhecida Escola de Frankfurt. Enquanto os autores alemães o usavam para salientar algo negativo (o efeito de alienação pessoal), arts industry1 simplesmente se refere aos agentes que operam dentro de padrões de racionalidade econômica e divisão do trabalho inerentes às sociedades capitalistas. Considerações finais Com este número, visou a Revista Observatório Itaú Cultural dar meios de comparação entre cenários nacionais da gestão de arte e cultura, propondo focos de análise. Cabe aqui, como conclusão, tentar responder a cada um desses focos. Participação da sociedade civil É notável como nos Estados Unidos a força da sociedade civil se manifesta, em geral sob a égide do mercado. Entretanto, são muitos, e em todos os níveis, os coletivos que tomam decisões abertas e democráticas. Vão desde os comitês que avaliam projetos individuais, como um pedido de bolsa, até as comissões que definem e aprovam linhas de ação de entidades públicas e privadas da área. Em nível mais alto e relevante está a mobilização e defesa do setor em situações críticas, como a ameaça moralista de forças conservadoras.

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Cite-se ainda a arregimentação de votos no Congresso em moções contra censura e restrições orçamentárias. Sem exagero, é possível dizer que existe uma “bancada das artes” tanto na Câmara como no Senado: a luta é dura e exige vigilância. Orientações do plano nacional de cultura ou seu equivalente Dado que os Estados Unidos não têm um ministério que pudesse definir propriamente um plano nacional de cultura, a solução aqui adotada foi tomar o NEA como a autoridade pública mais responsável por implementar princípios, diretrizes e praxes administrativas. O NEA tem longa história no confronto com forças conservadoras e desenvolveu uma rede de colaboradores em várias instâncias públicas e privadas. A manifestação anual de seu presidente reitera seus princípios, relata suas atividades e suas expectativas de futuro. Poderia até passar por um plano nacional não fosse o NEA uma agência autônoma, facilmente extinguível e que aporta somente uma parcela ínfima (em torno de 1%) do dinheiro que sustenta o setor cultural. Nível de diálogo com a realidade e as demandas do setor cultural A sintonia do NEA com o público e os interlocutores do campo cultural é grande, o que pode ser medido por suas tomadas de posição que provocam não raro duradouras polêmicas. Na medida em que as escolhas em política cultural, assim como em outras políticas públicas, reforçam de uns tempos para cá a ênfase nos segmentos mais pobres e desassistidos, aguçam elas prioridades que também geram discussões. Aos poucos as

escolhas por “excelência artística” vão cedendo lugar aos juízos “de mérito”, em que os benefícios sociais do atendimento aos carentes são valorizados. O cinema de Hollywood, as editoras de best-sellers e os shows da Broadway Num esboço rápido do polo big-business da mídia e do entretenimento nos Estados Unidos, é obrigatório antes de tudo definir alguns conceitos. Por exemplo, o de concentração econômica (expansão do volume de bens e serviços produzidos por uma única empresa); o de centralização econômica (controle financeiro de várias empresas feito por um único conglomerado de negócios); e o de verticalização (expansão da capacidade produtiva de uma empresa via criação ou compra de firmas que fabricam ou distribuem bens ou serviços complementares entre si e aos dela própria, até chegar ao consumidor final). Desde o início do século XX, mídia e entretenimento vêm tendo uma sucessão intensa desses processos. É um mundo de cifras impressionantes, geradas por estúdios de cinema e editoras focadas em best-sellers. Os shows da Broadway (embora em salas que, na maioria, ultrapassam mil assentos) não alcançam tamanha grandeza financeira, pois seus espetáculos são únicos e ao vivo, e não fabricados em série, como cópias de filmes, discos e livros. Apenas três corporações controlam a maioria das salas de espetáculos: Shubert Organization (17 salas), Nederland Organization (9 salas) e Jujamcyn (5 salas). Em 2019, o público da Broadway somou 14,8 milhões de pessoas, das quais dois terços eram turistas. O faturamento total atingiu 1,8 bilhão de dólares.


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Necessário salientar que a Broadway também comporta um segmento mais experimental, conhecido por Off-Broadway. Nos intervalos entre uma temporada e outra, as comédias musicais circulam pelo país. Hollywood produz 700 filmes de longa metragem ao ano. Apenas as cinco top-five, conhecidas como majors (Comcast, Disney, AT&T, CBS e Viacom), controlam de 80% a 85% da bilheteria nacional, sem contar o exportado, sabendo-se que de 40% a 50% da receita de Hollywood provém do estrangeiro. Em proporções, o mercado internacional aumentou de 35% para 62% entre 1990 e 2016. Um conglomerado de mídia hoje envolve TV, rádio, música e áudio, videogame, edição de livros, cinema e parques temáticos. O faturamento global de mídia e entretenimento em 2019 foi de 717 bilhões de dólares. Só os videogames arrecadaram 26 bilhões; e o setor de publicações, 38 bilhões. Apenas a cerimônia do Oscar de 2019 custou 44 milhões. Contra tais montantes, o orçamento do NEA é de pouquíssima importância: 150 milhões anuais. Significa dizer que cinema, best-sellers e comédias musicais são independentes, não precisam do governo em nada, apenas coabitam no mesmo espaço nacional, não carecendo de políticas públicas? A resposta é não. O poder de “formador de opinião” do cinema e dos best-sellers é um trunfo muito apreciado nas altas esferas do governo federal. Tanto em situações normais quanto, sobretudo, em períodos turbulentos, como guerras, depressões e disputas de áreas de interesse, o cinema e os livros, as revistas e os jornais de grande circulação são convocados a encorajar disposições positivas na população.

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Como em geral se trata de comportamentos coletivos e de conflito de valores entre classes e raças distintas, ou entre nações inimigas, cabe aos órgãos nacionais de segurança (Departamento de Estado, CIA etc.) “influenciar” ou “tentar influenciar”, propondo uma agenda de conteúdos prioritários para filmes, discos e livros. Como essa “influência” pode facilmente ser confundida com censura, e muitas vezes o é, precisa-se recorrer a canais sigilosos e diluir suas mensagens em enredos de aventura, de amor e paixão, de faroeste, de ação policial, e em quaisquer outras narrativas em que se possa exaltar a excepcionalidade da América, a coragem e a devoção nacional e cristã de seu povo, sem chamar muita atenção. Alguns dados são significativos. Lê-se na internet que a aproximação entre o Pentágono e entidades de mídia e entretenimento começou em 1948, o mesmo ocorrendo com a CIA em 1996. Consta também que, entre 1911 e 2017, cerca de 800 filmes de destaque receberam apoio do Departamento de Defesa. Na TV, 1.100 programas teriam tido, ao longo do tempo, apoio do Pentágono, entre os quais 900 a partir de 2005. Outras razões da proximidade entre governo e mídia são o raio internacional do capitalismo estadunidense e os inevitáveis choques de interesse comercial aí envolvidos. Afinal, se os Estados Unidos exportam dez filmes para cada um importado, e se quase a metade da receita total de Hollywood provém do estrangeiro, o mercado internacional demanda muita atenção. Como a concorrência de cópias ilegais prolifera, coadjuvada por inovações tecnológicas que

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multiplicam e barateiam os suportes audiovisuais e facilitam tentativas furtivas, a contrapartida repressora precisa intensificar-se. Assim, o serviço diplomático é convidado a respaldar iniciativas das corporações dominantes no que concerne a direitos autorais e de copyright. Para finalizar, o leitor interessado em conhecer as dinâmicas do big-business em cultura, mídia e entretenimento poderá se valer dos conceitos descritos no início deste item. Deverá estudar caso por caso, em perspectiva histórica, para discriminar onde e quando operam estratégias de concentração, centralização, verticalização, ou elas todas ao mesmo tempo. Um grande desafio.

José Carlos Durand Sociólogo. Professor da pós-graduação em estudos culturais da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (Each/ USP). Publicou Política Cultural e Economia da Cultura (Ateliê Editorial e Edições Sesc/SP). Ministra palestras dentro e fora do Brasil.


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Nota 1

Arts industry é apenas um conceito que lembra que arte e cultura são cada vez mais praticadas e conservadas em ambientes nos quais prevalecem a divisão do trabalho e a racionalidade.


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PLANO NACIONAL DAS ARTES: PARA TODOS E COM CADA UM Maria Vlachou “A revolução cultural não é eu poder ir tocar em mais lugares; a revolução cultural é eu ir aos lugares e encontrar música de lá.” (Zeca Afonso, compositor e cantor português)

Qual é o lugar da cultura em uma sociedade? De que forma políticos, profissionais e cidadãos interpretam esse conceito e como o veem aplicado no seu dia a dia? De que forma se planejam as ações que contribuirão para a construção de uma cultura social? Olhando primeiro para o exemplo britânico – que tem traçado um caminho sobre o qual, ao longo de muitas décadas, se vai sempre construindo –, iremos analisar o Plano Nacional das Artes português. Sendo ainda cedo para qualquer avaliação, iremos refletir sobre os pontos fortes e fracos do plano anunciado.

O lugar da cultura

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m uma conversa recente com representantes do poder político municipal e agentes culturais portugueses, foi dito pelos políticos que o investimento na cultura é a única área que reúne consenso. Em outras áreas, pode haver diferenças partidárias, mas todos concordam em relação à cultura. No que será que pensam exatamente quando pensam em “cultura”? Uma consulta rápida aos Planos Municipais de Cultura das Câmaras Municipais revela que as referências mais comuns estão relacionadas com a animação cultural

da cidade, a criação e formação artística, a memória, a tradição e o turismo. Vários apresentam uma mera listagem de equipamentos culturais, eventos e outras iniciativas; e trazem como objetivo a criação de uma agenda cultural. Raramente (ou, talvez, nunca) indicam o que entendem por “cultura” e qual é o lugar que esta ocupa na forma como pensam e imaginam as suas cidades, a vida em comum dos cidadãos. Também entre os profissionais que trabalham no setor, não é raro o pensamento de o lugar da cultura limitar-se à criação artística e à realização de eventos


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chamados “culturais”, normalmente em esAssim, e falando em termos gerais, a paços formais. Assim, entra-se num círculo visão sobre o lugar da cultura de políticos e vicioso de produção de eventos – cuja perti- profissionais do setor e, consequentemente, nência e necessidade poucos questionam – e as expectativas dos cidadãos não apresentam de apresentação de números – sobre os quais uma visão do mundo, da sociedade em que poucos refletem. vivemos como indivíduos e como coletivos e Nesse cenário, qual é a posição dos cida- do futuro que queremos construir. Para muidãos? O estudo realizado pelo Arts Council tos, cultura são apenas “as artes”, os museus, England (ACE) a fim de preparar a estraté- os teatros e as bibliotecas; e o que acontece gia para a cultura na década de 2020-2030 à sua volta, nas comunidades que rodeiam apresenta resultados que não seriam muito esses espaços, pouco ou nada tem a ver com diferentes se realizado em Portugal: muitas eles. Quando o medo, o ódio, o autoritarismo pessoas se sentem dese a barbárie batem à nossa confortáveis​​com o rótulo Quando o medo, o ódio, o porta, quando faltam amor “as artes” e associam-no autoritarismo e a barbárie e respeito, quando as difiapenas às artes visuais batem à nossa porta, quando culdades da vida testam a ou à “alta cultura”, como o faltam amor e respeito, quando nossa humanidade, muitos bailado ou a ópera; ao mes- as dificuldades da vida testam defendem que o que falta é mo tempo, a maioria das a nossa humanidade, muitos educação, mas não cultura. pessoas naquele país tem defendem que o que falta é No seu mais recente vida cultural ativa e valori- educação, mas não cultura livro, Imaginação: Reinza oportunidades de criaventando a Cultura, a pentividade (sendo que em Portugal a reflexão é sadora brasileira Marta Porto escreve que, centrada na cultura e nas artes produzidas e apresentadas em espaços formais e com quando os exemplos são exceções, podemos apoio público); existem grandes variações falar de falta ou de necessidade de educação. socioeconômicas e geográficas nos níveis de Quando são a maioria, falamos de cultura envolvimento com a cultura que recebe fisocial, de um imaginário de como nos maninanciamento público; as oportunidades para festamos, percebemos e agimos como corpo crianças e jovens experimentarem a criativisocial (PORTO, 2019, p. 37). dade e a cultura dentro e fora da escola não são iguais em todo o país; ainda existe uma Devemos tornar-nos mais conscientes da urfalta persistente e generalizada de diversi- gência de construir “paideia” para o nosso dade nas indústrias criativas e nas organi- corpo social. Muitos sonhamos com uma sozações culturais com financiamento público, ciedade na qual os exemplos sejam a maioria. embora na Inglaterra a conscientização so- Com uma cultura social que possa ser defenbre o assunto seja maior do que costumava sora dos direitos humanos e da democracia; ser, o que não se verifica ainda em Portugal que celebre a riqueza da diversidade; que re(ARTS COUNCIL ENGLAND, 2020, p. 9). force a empatia e que afaste a barbárie. Essa

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cultura social requer esforço, requer tempo, requer conhecimento e carinho. Requer também planejamento, no curto e no longo prazo.

propósitos enunciados pelos governos são trabalhados e complementados por entidades públicas e privadas da área da educação e da cultura. Planejar a cultura Em 2016, o governo britânico assumia A publicação do The Culture White Paper, que o seu papel é “permitir o florescimento em 2016, pelo governo britânico deu-nos uma de grande cultura e criatividade – e garantir ideia mais clara do que é planejar a cultura de que todos possam ter acesso a elas”. Aliás, forma sustentada e estruturada. David Came- duas das suas quatro grandes prioridades ron, na época primeiro-ministro, apesar de eram que “todos devem aproveitar as oporresponsável por graves cortes no setor cultu- tunidades oferecidas pela cultura, indepenral, afirmava: “Se acreditam no financiamento dentemente de onde eles começam na vida” público das artes e da cultura, como eu apai- e “as riquezas da nossa cultura devem bexonadamente acredito, neficiar as comunidades então devem também Muitos sonhamos com uma em todo o país”. O docuacreditar na igualdade sociedade na qual os exemplos mento cita responsáveis de acesso, atraindo to- sejam a maioria. Com uma cultura de outras áreas – Edudos e acolhendo todos”. social que possa ser defensora cação, Comunidades e Cinquenta anos antes, dos direitos humanos e da Governo Local, Turismo o primeiro White Paper democracia; que celebre a riqueza e Patrimônio, Finanças para as artes, publicado da diversidade; que reforce a –, tornando claro que em 1965, afirmava que empatia e que afaste a barbárie. este deve ser um esforço “o melhor deve ser mais Essa cultura social requer coletivo e coordenado. amplamente disponí- esforço, requer tempo, requer Assim, Nicky Morgan, vel” (THE CULTURE conhecimento e carinho. Requer na época secretária de WHITE PAPER, 2016, também planejamento Estado da Educação, diz p. 4-5). que “o acesso à educação A ideia do acesso e da inclusão tem para a cultura é uma questão de justiça sovindo a ser pensada e trabalhada no Reino cial”; e o secretário de Estado das ComuUnido de forma concreta ao longo de mui- nidades e do Governo Local, Greg Clark, tas décadas, acompanhada também por um afirma que questionamento insistente e necessário sobre “acesso a que”, “inclusão de quem e por estamos no meio de uma revolução de dequem”. Há, sem dúvida, aspectos que estão volução. Queremos que as nossas instituilonge de ser resolvidos ainda hoje. Assim ções culturais nacionais e locais trabalhem como há conceitos em constante desenvolem conjunto e apoiem as localidades, para vimento, fruto de um olhar atento sobre a estas poderem usufruir do poder da cultura sociedade, seus desafios e necessidades. O e impulsionar o crescimento econômico, a que é interessante é ver a forma como os educação e o bem-estar.1


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Um ano depois da publicação do White Paper, saiu o relatório do King ’s College London intitulado Towards Cultural Democracy, que alertava sobre a urgência de haver abordagens novas e radicais para muitos processos políticos, no contexto da profunda e generalizada divisão política expressa durante a campanha e o voto no referendo do Brexit.

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primeiro de muitos ensaios sobre essa temática –, a nova estratégia declara que

Valorizará o potencial criativo de cada um de nós, proporcionará às comunidades de todos os cantos do país mais oportunidades para apreciar a cultura e celebrar a grandeza de qualquer tipo. Marca uma mudança significativa, mas evolutiva: honrar e aproveitar os sucessos da última década enquanto enIsto inclui a forma como funciona a polítifrenta os desafios e abraça as emocionantes ca cultural – e para quem e para que serve possibilidades da próxima. Esses desafios – a política cultural. Perguntas sobre como a desigualdade de riqueza e de oportunidades, cultura é feita e por quem, e qual atividade isolamento social e problemas de saúde mencriativa é reconhecida e tal e, acima de tudo, a emergência apoiada, são assuntos em “Quem faz arte e cultura climática acelerada – são muitos que todos temos um inte- é o povo, os artistas, mas (ARTS COUNCIL ENGLAND, resse profundo e cada vez quem cria as condições 2020, p. 4). mais urgente (WILSON; para que ela seja GROSS; BULL, 2017, p. 6). democrática, se amplie Os resultados desejados pelo

ACE são pessoas criativas, e faça sentido para o Aqui, a cultura não é vista conjunto da sociedade comunidades culturais, país apenas como um fim que se é a política” criativo e cultural. O ACE atinge quando a democracia irá investir em projetos que está assegurada, mas como uma ferramenta mostram ambição e qualidade; dinamismo; que contribui para alimentar e fortalecer a responsabilidade ambiental; inclusão e releprópria democracia. vância. Podemos questionar o que serão as No início de 2020, foi publicada a estra- “comunidades culturais” ou um “país cultutégia do Arts Council England para os pró- ral”. O próprio ACE esclarece que usa a paximos dez anos. Intitulada Let’s Create, é o lavra “cultura” para se referir de uma forma resultado de uma consulta alargada a agentes mais inclusiva às áreas em que investe (artes culturais e cidadãos de todas as idades e vem visuais e performativas, museus e biblioteatualizar a anterior, Great Art and Culture cas). De qualquer forma, o que pretendemos for Everyone, publicada em 2010. Dando se- demonstrar aqui é que a cultura, sendo mais guimento à reflexão e à prática desenvolvi- que “as artes” e os equipamentos culturais fordas nas décadas que se antecedem – muito mais, necessita de um plano e de políticas para marcadas também pelo pensamento de John poder esculpir o nosso corpo social. Essas poHolden, que em 2008 publicou “Democratic líticas devem ser criadas de forma coletiva e culture: opening up the arts to everyone”, o ainda devem ser estruturadas, continuadas,

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avaliadas e atualizadas; ligadas ao presente, mas com uma visão de futuro. Citando novamente Marta Porto, “quem faz arte e cultura é o povo, os artistas, mas quem cria as condições para que ela seja democrática, se amplie e faça sentido para o conjunto da sociedade é a política” (PORTO, 2019, p. 42). Portugal: o Plano Nacional das Artes O Plano Nacional das Artes (PNA) em Portugal é uma iniciativa conjunta do Ministério da Cultura e do Ministério da Educação. Foi apresentado em junho de 2019, e a sua primeira fase de implementação tem um horizonte de cinco anos (2019-2024). Uma das suas fontes de inspiração é a poetisa Sophia de Melo Breyner Andresen, que, na sua intervenção na Assembleia Constituinte de 2 de setembro de 1975, afirmou: “A cultura não existe para enfeitar a vida, mas sim para a transformar – para que o homem possa construir e construir-se em consciência, em verdade, em liberdade e em justiça”. O plano assenta-se também na própria Constituição da República Portuguesa, nomeadamente nos seguintes artigos: Artigo 73o – O Estado promove a democratização da cultura, incentivando e assegurando o acesso de todos os cidadãos à fruição e criação cultural, em colaboração com os órgãos de comunicação social, as associações e fundações de fins culturais, as coletividades de cultura e recreio, as associações de defesa do patrimônio cultural, as organizações de moradores e outros agentes culturais (art. 73). Artigo 78o – 1. Todos têm direito à fruição e criação cultural, bem como o dever de

preservar, defender e valorizar o patrimônio cultural; 2. Incumbe ao Estado, em colaboração com todos os agentes culturais: a) Incentivar e assegurar o acesso de todos os cidadãos aos meios e instrumentos de ação cultural, bem como corrigir as assimetrias existentes no país em tal domínio; b) Apoiar as iniciativas que estimulem a criação individual e coletiva, nas suas múltiplas formas e expressões, e uma maior circulação das obras e dos bens culturais de qualidade […] (PLANO NACIONAL DAS ARTES, 2019, p. 10).

Encontramos aqui, portanto, um princípio arrojado, que, apesar de referir concretamente a promoção da “democratização da cultura”, apresenta as condições para a construção de uma cultura democrática. O PNA estrutura-se em três eixos de intervenção: Política Cultural; Capacitação; e Educação e Acesso. Esses eixos se desdobram em 5 programas e 27 medidas concretas, conforme a tabela ao lado. É intenção do PNA articular a sua ação com aquela de outros programas e planos, nomeadamente o Plano Nacional de Leitura, o Plano Nacional de Cinema, o Programa de Educação Estética e Artística, o Programa Rede de Bibliotecas Escolares, a Rede Portuguesa de Museus e o Arquivo Nacional de Som. Menos de um ano após sua apresentação, o PNA encontra-se ativo em 65 agrupamentos escolares, um pouco por todo o país, incentivando e auxiliando as escolas no uso das artes em várias disciplinas. Cada agrupamento tem, conforme previsto, um coordenador cultural. Este deverá dispor de


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um conselho consultivo, que incluirá professores e alunos, mas também elementos da comunidade cultural que rodeia a escola. As temáticas trabalhadas são diversas. Em um agrupamento escolar próximo a Faro, quiseram tratar do desperdício alimentar; em Abrantes, estão desenvolvendo uma flash mob com a interpretação de uma dança baseada no problema do bullying. Em Odemira, foi identificada a questão dos imigrantes que vêm trabalhar para as estufas e dos seus filhos, que não sabem falar português e entram na escola no meio do ano letivo. Em Castro d’Aire, a preocupação é com o abandono daquela região pelos jovens em direção às

grandes cidades (ALMEIDA, 2020: entrevista Antena 1; e QUEIRÓS, 2020). O PNA foi recebido com um misto de entusiasmo e desconfiança pelos profissionais da cultura. Apesar de não ter sido amplamente consultado,2 o “setor” reconheceu as qualidades e a experiência profissional dos membros da equipe e mostrou a sua apreciação por um plano que reconheça o papel da cultura na sociedade, que revele ter uma clara consciência dos desafios que enfrentamos no século XXI e que se apresente de forma bem estruturada. Foram expressas preocupações, no entanto, em relação ao seu financiamento e à capacidade de envolver os

Plano de ação estratégica Eixos

Eixo a. Política cultural

Eixo b. Capacitação

Eixo c. Educação e acesso

Programas

Impacto e Sustentabilidade

Pensamento e Formação

Indisciplinar a Escola

KM2: Arte e Comunidade

360o Comunicar

Medidas

Índice de Impacto Cultural das Organizações

Escola de Porto Santo

Projeto Cultural de Escola

Projeto Deslocar: Campo Criativo

Portal e Newsletter PNA

Coleções PNA

Estar Presente

Patrimônio e Artes nos Cursos de Educação

Projeto Artista Residente

Projeto Criar+

Plano Estratégico Municipal Cultura-Educação

Cidadania: Recursos Pedagógicos

Prêmios PNA

Contrato de Impacto Social das Organizações Culturais

Academia PNA

Financiamento Público Arte-Educação-Comunidade ID Cultura Legislação Compromisso Cultural Organizações Empresariais Consultoria Monitorar e Avaliar o PNA Fonte: Plano Nacional das Artes.

Bolsa PNA

Desvio: Sair para Entrar

Conferências

Em Aberto Tutorias Criativas

Festival_ Bienal PNA

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professores – muitos deles bastante cansados e indiferentes ou desmotivados, devido às políticas que gerem esse setor. Olhando com mais atenção para o PNA, este apresenta uma série de pontos que consideramos fortes. A equipe reunida é reconhecida pela qualidade profissional e tem o respeito dos seus pares. Tratando-se de pessoas com bons conhecimentos e experiência de trabalho nesse meio, conseguiram reunir nesse documento aqueles princípios que movem o setor cultural e construir uma visão partilhada por muitos. Destaca-se que o PNA vai além da “democratização da cultura” (um processo com muitas boas intenções, mas que, muito facilmente, se torna paternalista) e fala de democracia cultural, processo que requer outra abertura e também outra preparação e disponibilidade da parte dos profissionais do setor e dos cidadãos em geral. Os três eixos propostos representam elementos fundamentais para a elaboração de uma estratégia que possa ser coerente e eficaz: pensamento e formação; políticas públicas; ação. As premissas e valores (PLANO NACIONAL DAS ARTES, 2019, p. 15-17) e os princípios estratégicos anunciados (PLANO NACIONAL DAS ARTES, 2019, p. 19) mostram que existe um rumo claro, que poderá resultar numa ação sólida. Outros aspectos que consideramos muito positivos são a intenção em colaborar com outros planos e programas nacionais, a criação de Planos Estratégicos Municipais Cultura-Educação e o foco na avaliação, raramente referida e pensada em Portugal no início de processos como esse. Nessa fase, é com particular interesse que aguardamos o resultado da colaboração do PNA com o

ISCTE-IUL/Opac3 para a criação do Índice de Impacto Cultural das Organizações, dado esta ser uma área muito pouco investigada e praticada no setor cultural em todo o mundo. De referir ainda que, pelos indícios que nos traz essa primeira fase de implementação do plano, este, através das ações promovidas, consegue juntar pela primeira vez no mesmo espaço, e com o mesmo propósito, agentes (culturais, políticos e membros da sociedade civil) cuja colaboração é desejada e urgente para a construção de uma cultura democrática. O PNA apresenta também pontos que são motivo de preocupação e que se prendem sobretudo com conceitos e, consequentemente, com a sua aplicação. Começamos pelo uso indiscriminado das palavras “cultura”, “artes” e “patrimônio”. Essa questão se coloca em relação a vários planos e estudos sobre a cultura e as artes em vários países do mundo, pelo que teria sido útil incluir as definições. A indefinição poderá afetar a ação no terreno, os objetivos traçados, a forma de avaliar os resultados obtidos. Nesse mesmo contexto, pensamos que o PNA apresenta ideias mais concretas sobre a democratização da cultura (na página 18 e, ainda, em compromissos e ações propostas nas páginas 27 e 28 na versão on-line) e mais vagas sobre a construção de uma cultura democrática. Esse fato poderá comprometer a ambição de “para todos e com cada um”. As intervenções públicas mais recentes pelos responsáveis pelo PNA destacam de forma mais afirmativa a necessidade de contribuir para a democracia cultural. Esperamos que as ações desenvolvidas venham confirmar esse objetivo.


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Nessa primeira fase de implementação na forma como se compreendem, se veem do PNA, o foco na escola foi uma opção conse se podem projetar. Ou seja, não apenas a ciente. Trata-se, sem dúvida, de uma área de partir do que já são, mas do que podem vir a atuação fundamental na criação de uma culser. E a cultura tem essa grande responsatura social, mas, ao mesmo tempo, é uma área bilidade de ser o depósito da humanidade, na qual habitualmente os governos procuram e um depósito sempre renovado. Portanagir. Seria necessário olhar simultaneamente, to, essa possibilidade de, a partir dela, nos e com a mesma intensidade, para outras áreas, construirmos, construirmos a identidade outros grupos, que complementem o sistema enquanto pessoas, mas também enquanto escolar e que envolvam também os adultos. comunidade (VALE, 2020). Apesar de haver referências no documento aos seniores ou a comuNão há dúvida de que o nidades “vulneráveis” ou A construção de uma cultura PNA trouxe para o setor excluídas, essas são prati- democrática requer o cultural (e educativo) em camente residuais. Além reconhecimento da falta de Portugal um olhar aprodisso, a construção de diversidade e inclusão no próprio fundado sobre o papel da uma cultura democrática setor cultural e educativo (e dos cultura na sociedade e requer o reconhecimento problemas de relacionamento uma estratégia que perda falta de diversidade e e de representatividade que mitirá dar alguns passos inclusão no próprio setor resultam dela) e uma visão mais à frente na construção de cultural e educativo (e dos aberta em relação à cultura uma relação com os cidaproblemas de relaciona- desses mesmos grupos subdãos de várias idades e mento e de representati- -representados, excluídos e no envolvimento destes. vidade que resultam dela) “vulneráveis”, que pode ser forte, Acreditamos que o PNA e uma visão mais aberta mas continua marginalizada e poderá ser uma das baem relação à cultura des- invisibilizada pelo sistema ses para a elaboração da ses mesmos grupos subtão necessária estratégia -representados, excluídos e “vulneráveis”, que nacional para a cultura em Portugal, no longo pode ser forte, mas continua marginalizada e prazo e independentemente das mudanças de invisibilizada pelo sistema. Executivo. Uma estratégia baseada em estuNuma entrevista dada recentemente ao dos de público, feita com tempo e que garanta programa televisivo Filhos da Nação, o comis- um envolvimento alargado tanto dos profissário do PNA, Paulo Pires do Vale, afirmou que sionais do setor como dos próprios cidadãos. é necessário: Uma estratégia que não apenas dê valor à cultura “formal”, mas que alimente a imaginação Criar estrutura política, legislativa, territo- coletiva e apoie a criatividade individual, em rial, para que mais se possa fazer. A cultura qualquer ponto do território nacional. Uma tem um papel determinante na construção cultura que seja um verdadeiro direito de toda comunidade, na construção dos cidadãos, dos; para todos e com cada um.

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Maria Vlachou Consultora em gestão e comunicação cultural. Membro fundador e diretora-executiva da Acesso Cultura. Autora do blog Musing on Culture. Foi diretora de comunicação do São Luiz Teatro Municipal (Lisboa) e responsável de comunicação do Pavilhão do Conhecimento. Fellow do International Society for the Performing Arts [Ispa (2018, 2020)]; fellow do DeVos Institute of Arts Management at the Kennedy Center in Washington (2011, 2013); e mestre em museologia pela University College London (1994).

Referências bibliográficas ARTS COUNCIL ENGLAND. Let's Create. London, 2020. Disponível em: https://www. artscouncil.org.uk/letscreate. Acesso em: 3 mar. 2020. PLANO NACIONAL DAS ARTES. Lisboa, 2019. Disponível em: https://www.portugal. gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=00a06c3f-f066-4036-adc2b030b946e6ba?. Acesso em: 3 mar. 2020. PORTO, M. Imaginação: reinventando a cultura. São Paulo: Pólen, 2019. QUEIRÓS, L. M. O plano para “indisciplinar” a escola através das artes já está no terreno. Público, Ípsilon, 1 fev. 2020. Disponível em: https://www.publico. pt/2020/02/01/culturaipsilon/noticia/plano-indisciplinar-escola-atraves-artesja-terreno-1902506?fbclid=IwAR1N5KUYInPpb62rTC1gW-HpG9fLlxHtXRn_ JjRztnjfC7zKfqKdxyIuMa8. Acesso em: 5 mar. 2020. THE CULTURE WHITE PAPER. London, 2016. Disponível em: https://assets.publishing. service.gov.uk/government/uploads/system/uploads/attachment_data/ file/510798/DCMS_The_Culture_White_Paper__3_.pdf. Acesso em: 3 mar. 2020. VALE, Paulo Pires do. Plano Nacional das Artes: uma estratégia chamada desejo. [Entrevista cedida a] Cláudia Almeida. RTP, 29 jan. 2020. Disponível em: https://www.rtp.pt/noticias/cultura/plano-nacional-das-artes-uma-estrategiachamada-desejo_n1201366. Acesso em: 5 mar. 2020. VALE, Paulo Pires do. [Entrevista cedida a] Cláudia Almeida para o programa televisivo “Filhos da Nação”. RTP, 11 jan. 2020. Disponível em: https://www.rtp.pt/play/ p5487/e449669/filhos-da-nacao. Acesso em: 5 mar. 2020. VLACHOU, M. Reflexões governamentais sobre o acesso à cultura. Musing on Culture, 22 jun. 2016. Disponível em: https://musingonculture-pt.blogspot.com/2016/06/ reflexoes-governamentais-sobre-o-acesso_24.html. Acesso em: 3 mar. 2020. WILSON, N.; GROSS, J.; BULL, A. Towards cultural democracy: promoting cultural capabilities for everyone. London: King’s College London, 2017. Disponível em: https://www.kcl.ac.uk/cultural/resources/reports/towards-cultural-democracy2017-kcl.pdf. Acesso em: 3 mar. 2020.


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Notas 1

Consultar a apresentação mais analítica do documento em: VLACHOU, 2016.

2

Durante os três meses de preparação do plano, os responsáveis fizeram visitas e tiveram reuniões com vários agentes nas áreas de cultura e educação (por exemplo, universidades, escolas, docentes de todos os níveis de ensino, alunos, cidadãos de várias áreas de interesse e profissões, arquitetos, programadores, políticos, associações, museus, teatros, bibliotecas, câmaras municipais, autarcas, artesãos, técnicos, artistas de todas as áreas).

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Instituto Superior de Ciências do Trabalho da Empresa – Instituto Universitário de Lisboa/Observatório Português das Atividades Culturais.

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A BELEZA QUE HÁ NA DIVERSIDADE: O QUE PODEMOS APREENDER DO CASO ALEMÃO? Suelen Silva

A Alemanha contemporânea adota o federalismo cultural, modelo que se baseia em uma abordagem descentralizada, que garante à sociedade civil, a cidades e estados federados o protagonismo na política cultural interna. Sem um ministério ou um plano nacional para a arte ou cultura em nível federal, o país tem, todavia, uma das mais densas redes artísticas e culturais, e é um dos que mais investem recursos públicos nessa área. Como se desenvolveu esse modelo, quais são os seus princípios e o que podemos apreender da experiência alemã?

Destruição e criação “[O] sonho nazista de criar, através da pureza, um mundo mais harmonioso”1

O

regime nazista (de 1933 a 1945) estabeleceu a “pureza ariana” como um ideal (racista) a ser protegido pela sociedade alemã. Pessoas judias e também ciganas, imigrantes, miscigenadas, negras, homossexuais, com deficiências e quaisquer outras fora do espectro inventado de pureza e perfeição nazistas foram no período definidas como inferiores, como o motivo dos problemas da Alemanha e, por fim, como coisas sem humanidade – equiparadas a micróbios – que deveriam ser exterminadas. É preciso enxergar o nazismo não apenas em seus termos políticos, mas também

como uma engrenagem de destruição cujo fim, paradoxalmente, era a criação: a criação de uma Alemanha supostamente bela e pura, porque livre de diversidade ou contradições, capaz de liderar o mundo para uma erudita, elevada e nova era. E, como criticar é, em essência, contradizer, tudo o que fosse considerado potencialmente crítico a essa ideologia nazista era reprimido, criminalizado ou eliminado. Assim, a negação de liberdades individuais, de reunião e de expressão foi progressivamente colocada em prática, a ponto de estas serem abolidas quando não servissem ao regime do Terceiro Reich. Na engrenagem nazista alemã de extermínio e criação, a arte teve papel emblemático. Primeiro, se considerarmos


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Hitler como um artista frustrado, 2 cujos O vocabulário cultural sonhos de grandeza são forjados também do pós-Segunda Guerra nas artes,3 e se lembrarmos que “a noção de arte para uma nova civilização” (inspi- Direitos culturais, políticas rada em Richard Wagner) dará “contorno culturais e planos de cultura à visão de Hitler sobre o mundo” (KURTZ, Não só o nazismo na Alemanha, mas tam1998, p. 3). Segundo, ao ratificarmos que o bém o fascismo na Itália e os sangrentos regime nazista e a sociedade que o apoiou processos colonizadores e suas escravidões trataram de ridicularizar e reprimir ma- e genocídios são alguns fatos históricos que nifestações artísticas e culturais que con- evidenciam os efeitos nefastos de quando se sideravam impuras ou “degeneradas” 4 é negado o direito à diversidade. Não é à toa – nesses casos, negando a que, no período após a Segunelas o próprio status de arte. É preciso enxergar o da Guerra, cultura ganhou Adicionalmente, se consi- nazismo não apenas em relevância na arena política derarmos que o cinema e seus termos políticos, internacional e passou a ser o rádio foram não apenas mas também como uma reconhecida como direito a ferramentas de comunica- engrenagem de destruição ser protegido e promovido, ção do regime nazista, como cujo fim, paradoxalmente, de fundamental importância também peças fundamen- era a criação para a dignidade humana.6 tais para consolidar o naNesse sentido, uma sézismo a partir do controle do imaginário, rie de tratados e convenções foi elaborada pela força de uma estética profundamente no pós-guerra pela Organização das Nações elaborada. Unidas (ONU), com a missão de restaurar o Aliás, não é por acaso que, em regi- diálogo entre as nações e promover a paz, e mes baseados na violência do poder, arte pela Organização das Nações Unidas para a e cultura, longe de serem assuntos sem Educação, Ciência e Cultura (Unesco), em importância, ganham contornos centrais: um esforço de criar diretrizes que apoiem o o Estado trata de querer controlá-los a entendimento internacional de cultura como seu próprio favor, uma vez que a criação parte fundamental dos direitos humanos.7 e o imaginário são campos de batalha es- Esse processo tem se dado com a ampliasenciais a ser dominados para o sucesso de ção do conceito de cultura para além de um seus projetos.5 A Alemanha nazista só foi elemento de distinção e erudição (“direito possível uma vez que o Estado se esforçou à cultura” como direito a acessar/consumir por controlar simbólica e efetivamente bens e serviços culturais), para o reconhequais discursos, valores e práticas pode- cimento de sua essencial relevância para o riam circular na sociedade alemã: somente desenvolvimento pleno do ser humano (“diaqueles que servissem direta ou indireta- reitos culturais”).8 mente à ideologia antissemita, racista e Dessa forma, ganhou evidência pogenocida do Terceiro Reich. lítica, internacionalmente, a seguinte

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pergunta: como Estados podem garantir e exemplo peculiar do que é conhecido como efetivar os direitos culturais das pessoas? O federalismo cooperativo: com uma forte diconjunto de ações e programas colocados em visão do poder político e administrativo enprática para alcançar esse objetivo, em resu- tre os estados e a federação, em vez da sua mo, é uma tarefa das políticas culturais. Nes- centralização no plano federal (SCHAVAAL; se contexto, diversos governos têm elaborado GALVANO, 2017). planos nacionais de cultura, entendendo-os Os estados federais alemães devem como uma ferramenta importante para as cumprir a Lei Fundamental do país, a qual suas políticas na área. estabelece que “o exercício do poder estaMas, na Alemanha, com a traumática tal e o cumprimento das funções públicas experiência do nazismo em sua história, a competem aos estados” (artigo 30). Além pergunta se coloca de outra forma: como a de seguir a Lei Fundamental,9 cada estado Alemanha pode garantir e efetivar os direi- federado tem a sua própria constituição, tos culturais das pessoas sem parlamento e soberania adque o Estado novamente se Como a Alemanha pode ministrativa em áreas como aproprie da cultura como garantir e efetivar os educação, economia, saúde, ferramenta ideológica, como direitos culturais das cultura e segurança interaconteceu durante o nazis- pessoas sem que o Estado na. Essa mesma lei também mo? Em resumo, buscando novamente se aproprie da afirma que os estados devem garantir a distância da in- cultura como ferramenta garantir aos municípios o difluência do Estado nos assun- ideológica, como aconteceu reito e a responsabilidade de tos culturais internos. Como durante o nazismo? tratar de todos os assuntos se organiza, então, o modelo da comunidade, protegendo cultural da Alemanha, quais são os seus prin- a autonomia política e administrativa para cípios e que ferramentas se destacam? lidar com questões locais. Dessa maneira, os assuntos públicos são tratados sempre A inexistência de um plano de uma perspectiva “de baixo para cima”, ou nacional de cultura na Alemanha primeiro dos menores níveis administrativos (cidades e municípios) para os mais amplos O federalismo alemão e a (estados-membros federados, seguidos por descentralização política governo federal). Para entender esse modelo, é preciso olhar Pode-se dizer que esse modelo é uma também para o sistema político alemão. A resposta contundente à história de um país Alemanha contemporânea é uma república marcado pela arbitrariedade, centralização federativa composta de 16 estados-membros. do poder e violência do nazismo? Também. De um modo geral, significa que os estados Mas, desde o período feudal com seus estatêm autonomia e responsabilidades que dos independentes (até 1871), passando pelo não podem ser definidas ou alteradas pelo Reich (1871-1918) e pela república de Weimar governo federal alemão. A Alemanha é um (1919-1933), já existia uma certa tendência


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federalista no país. O que houve no nazismo é autônomo para definir sua própria política foi uma centralização forçada, sendo a cultura cultural, considerando os atores, recursos e usada direta e indiretamente para atender ao prioridades do seu contexto. Os estados têm propósito do regime nazista (BLUMENRICH, os seus próprios ministérios e/ou secreta2016). Não por acaso, desde que a república se rias oficiais responsáveis pelos assuntos da estabeleceu, em 1949, a Alemanha não tem área cultural (frequentemente combinados mais um ministério nacional com outros temas, como que cuide de assuntos cultu- Existe uma preocupação educação ou ciência). rais internos. compartilhada em manter As cidades têm também o setor artístico e cultural autonomia para decidir O reflexo do federalismo protegido da interferência sobre as questões lono setor cultural alemão estatal, mas também em que cais de ordem cultural, Nacionalmente, no lugar de o funcionamento do setor não sendo responsáveis por um ministério da cultura, o fique sujeito aos interesses de criar as suas estrutuque existe é o Comissariado ordem tão somente neoliberal ras administrativas, de Cultura e Mídia, órgão estabelecer programas encarregado de assuntos definidos como de e espaços públicos, como teatros, bibliote“relevância nacional”. Suas principais fun- cas e museus. Dessa forma, do “menor” ao ções são: 1) representar culturalmente o país “maior”, diferentes níveis de governo atuam na sua capital (Berlim) e em relações cultu- em uma perspectiva de cooperação. Com frerais internacionais; 2) propor debates e leis quência, por exemplo, instituições culturais favoráveis à cultura e à mídia; 3) apoiar ins- locais recebem subsídios tanto do orçamento tituições10 e patrimônios específicos como: municipal quanto do estadual. bens declarados patrimônios mundiais pela Adicionalmente, há hoje uma tendênUnesco, bens do antigo estado da Prússia, cia por parte dos estados e das cidades em centros de documentação e memoriais às ví- abdicar da gestão direta de equipamentos timas do nazismo (BUNDESREGIERUNG culturais. Essa tendência é, em geral, apoiada FÜR KULTUR UND MEDIEN, 2016). Além pelo setor público, privado e pela sociedade disso, há um Comitê Parlamentar de Cultu- civil, desde que se garanta a manutenção da ra e Mídia, responsável por supervisionar o responsabilidade do investimento público trabalho do comissariado, avaliar mudanças na área.11 Tal fenômeno converge com a exisna legislação com potencial de afetar o cam- tência de uma preocupação compartilhada po cultural e iniciar debates de relevância em manter o setor artístico e cultural protepara o setor. gido da interferência estatal, mas também Fora isso, o protagonismo da política em que o funcionamento do setor não fique cultural interna alemã situa-se na arena sujeito aos interesses de ordem tão somente das cidades e dos estados, seja através de neoliberal. Compreender o sistema cultural organizações da sociedade civil, fundações, alemão contemporâneo requer considerar estruturas públicas ou privadas. Cada estado que o país essencialmente busca:

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do setor à sua maneira. Significa dizer que até mesmo a definição do que conta como investimento em cultura pode variar entre os níveis municipal, estadual e federal. Por exemplo, museus científicos e bibliotecas são incluídos como “cultura” em nível municipal, enquanto em nível federal são alocados em “educação”. Há ainda casos em que os investimentos são considerados em seus valores brutos em um nível, enquanto para outros órgãos o que conta é o valor líquido (BLUMENRICH, 2016).12 De tal modo, e considerando o fato histórico Segue-se a isso um debate crescente por do nazismo, tentativas que soem similares profissionais da área sobre a capacidade (e a “direcionar” nacionalmente o campo ar- a necessidade) de renovação de instituições tístico e cultural são vistas que historicamente rececomo problemáticas no O entendimento geral de bem incentivos públicos, país. O entendimento ge- que o Estado e o governo ou o quanto o investimenral de que o Estado e o go- (nacional) não têm e não to federal na capital Berlim verno (nacional) não têm e podem ter competência para não gera um desequilíbrio não podem ter competên- se encarregar dos assuntos na paisagem cultural alecia para se encarregar dos culturais internos torna mã, fazendo com que se assuntos culturais inter- controverso, até então, intensifique a pergunta se nos torna controverso, até um plano nacional de cultura não é chegada a hora de ter então, um plano nacional na Alemanha um ministério federal para de cultura na Alemanha. a área. Em vez de um plano nacional, o que existem Todavia, os benefícios desse modelo são projetos, planos e/ou políticas culturais federalista descentralizado, que valoriza das cidades e/ou dos estados federados, tão e protege a autonomia das cidades e dos diversos entre si quanto são as suas priori- estados nos assuntos culturais internos, dades e realidades. são também salutares. Referências na área Certamente, a ausência de um nível (BLUMENRICH, 2016; MANDEL, 2017) nacional de atuação em cultura traz alguns sugerem que é justo por causa desse modelo desafios para o setor, os quais aprofundam que a paisagem cultural e artística alemã é ainda mais os desafios para elaborar um tão densa e diversa em atores e instituições, (hipotético) plano nacional. Um deles diz pois tal descentralização acaba gerando respeito a informações e indicadores so- também uma “concorrência” salutar entre bre cultura, já que cada município e estado os estados e municípios. Outro reflexo do pode priorizar, coletar e organizar os dados modelo pode ser visto no investimento em encontrar um equilíbrio entre a responsabilidade do setor público de assegurar a existência e o financiamento de instituições e programas culturais, sem interferência do governo nas atividades culturais. A Constituição [...] não só fornece a base para a autonomia artística e os direitos autônomos das instituições e organizações culturais, mas também estipula uma forma de proteção contra diretivas estatais e regulamentação de conteúdos (BLUMENRICH, 2016, p. 54).


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Fora isso, no nível federal, a Alemanha busca estimular o setor através de ações indiretas, respeitando a soberania das cidades e dos estados federados na matéria. Em 2003, por exemplo, o Comitê Parlamentar de Cultura e Mídia iniciou uma ampla pesquisa sobre política cultural e fomento para o setor. O estudo contou com a participação de especialistas independentes e gerou um relatório com mais de 400 recomendações práticas para políticos, legisladores e gesQue outras possibilidades? tores culturais atuando em diversos níveis Da experiência alemã e de outras experiên- (DEUTSCHER BUNDESTAG, 2007). Outro cias mundo afora, uma das coisas que po- exemplo de iniciativa federal foi a pesquisa demos apreender é que Mulheres na Cultura e não há um modelo por si Há experiências que Mídia, lançada em 2016. só certo ou errado quan- funcionaram ou não dentro Realizado pelo Conselho do tratamos de política e de determinados contextos, Cultural Alemão13 e figestão cultural. Há expe- os quais carregam históricos, nanciado pelo Comissariências que funcionaram recursos e/ou condições sempre riado de Cultura e Mídia, ou não dentro de determi- específicos. De tal modo, torna- o estudo resultou em um nados contextos, os quais -se relevante perguntar, em relatório de mais de 400 carregam históricos, primeiro lugar, se e quando é páginas apontando tenrecursos e/ou condições necessária a existência de um dências, desafios e prosempre específicos. De tal plano nacional de cultura posições para alcançar a modo, torna-se relevante igualdade de gênero no perguntar, em primeiro lugar, se e quando é setor cultural (SCHULZ; RIES; ZIMMERnecessária a existência de um plano nacional MANN, 2016). A partir dessa publicação, de cultura. o referido conselho criou um programa de Na inexistência desse plano, vejamos mentoria para mulheres em cargos de gestão então quais outras ferramentas e estratégias cultural, além de um ponto de contato dentro têm sido adotadas pela Alemanha para orien- da organização para transformar os debates tar a ação pública na área. Como já citado, há em ações e projetos concretos, também com a Lei Fundamental e os planos e políticas de financiamento do governo federal. cultura específicos dos estados federados, Pode-se apreender também que a consalém da adoção de tratados e diretrizes in- tante defesa do distanciamento entre Estado ternacionais, como a Convenção de 2005 da e cultura, no caso alemão, não é sinônimo de Unesco e a Agenda para a Cultura da União deixar o setor à revelia do livre mercado, seEuropeia (2019-2022). guindo uma lógica neoliberal. Pelo contrário, cultura. A Alemanha é um dos países que mais investem recursos públicos na área – que teve um crescimento de mais de 30% entre 2005 e 2015. A maioria desses recursos provém dos municípios/cidades (45%), seguidos dos estados (40%) e, por último, do governo federal (15%), segundo o Relatório Financeiro Relativo à Cultura lançado em 2018 pelo Departamento de Estatística da Alemanha.

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a regulação governamental (em seus diversos níveis) é necessária e se dá através de leis específicas e, sobretudo, do respeito à Lei Fundamental, que garante a autonomia das artes e cultura. Tal regulação depende e se coaduna, por sua vez, com o constante monitoramento e atuação da sociedade civil organizada. Em um país cuja história foi marcada pela sua súbita privação, a liberdade e a autonomia do setor artístico e cultural são agora entendidas não como algo dado, mas como frutos de um trabalho em constante construção e de interesse público.

Por fim, o que é adotado na Alemanha em termos de política e gestão cultural não necessariamente terá os mesmos resultados se aplicado em outros lugares. Como profissionais da cultura, é necessário termos sempre em mente que as sociedades, artes e culturas – grosso modo, “matérias” com as quais trabalhamos – são, essencialmente, diversas em seus potenciais e desafios. Que, ao invés de recear, continuemos a enxergar, prezar e aprender com a beleza que existe na diversidade e em suas contradições, inclusive dentro da própria gestão e política cultural como disciplina e prática.


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Suelen Silva Gestora cultural com interesse em teorias pós-coloniais e práticas decoloniais na área artístico-cultural. Possui bacharelado em ciências sociais (Universidade da Amazônia/ Brasil), mestrado em antropologia (Universidade do Pará/Brasil) e especializações em gestão e políticas culturais (Universitat de Girona/Espanha e Itaú Cultural/Brasil) e em políticas culturais de base comunitária (Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales/ Argentina). Contemplada com a Bolsa Chanceler Alemã para Futuros Líderes, pela Fundação Alexander von Humboldt (2018/2019).

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Notas 1

Trecho de Arquitetura da Destruição, filme de Peter Cohen (1989).

2

O ditador antissemita foi rejeitado mais de uma vez pela Academia de Belas-Artes de Viena.

3

“Quando ingressou no NSDAP (Nationalsozialistische Deutsche Arbeiterpartei) em 1919, Hitler procurou inspirar-se no princípio da arte total wagneriana aplicando-a no terreno da política de massas, encenando todas as suas aparições públicas de orador do partido como se fosse a entrada de um célebre tenor nos palcos de um teatro” (VENTURELLI, 2010, p. 225).


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Considerar a perseguição a intelectuais e artistas, que culminou em eventos como a queima pública de livros em várias cidades alemãs, no dia 10 de maio de 1933, ou na exposição nacional Arte Degenerada (COSTA, 2018; BARRON, 1991).

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Consultar Pereira (2003) e Ferro (1992) sobre as relações entre cinema, história, política e poder.

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Não que no período anterior ao mencionado cultura não fosse uma questão política e institucionalmente tratada pelos governos. Diversos países possuíam já instituições públicas que se ocupavam de assuntos culturais, como o México e a Argentina, para citar casos anteriores à Segunda Guerra e à criação do Ministério da Cultura francês, em 1959 (que se converteu em um dos casos mais pesquisados na área). Todavia, o trabalho de articulação e regulação da ONU através da Unesco teve e tem forte influência na forma como os debates governamentais e internacionais passaram a ser direcionados no pós-guerra.

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A despeito do debate possível quanto à pretensão de universalidade que está no cerne do nascimento desse conceito, especialmente iluminado pelas críticas pós-coloniais (como de Maldonado-Torres, 2017), a Organização das Nações Unidas (fundada no pós-guerra) definiu, no artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), que “1. Toda pessoa tem o direito de tomar parte livremente na vida cultural da comunidade, de fruir as artes e de participar no progresso científico e nos benefícios que deste resultam. 2. Todos têm direito à proteção dos interesses morais e materiais ligados a qualquer produção científica, literária ou artística da sua autoria”.

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Na Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948, artigo 27), no Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Internacionais e Culturais (1966, artigo 15), na Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais (2005) e em uma série de outras ferramentas internacionais, os direitos culturais são citados, mas de modo disperso. É na Declaração de Friburgo (2007) que há um esforço de revisão crítica que parte da sociedade civil para consolidar e reafirmar o que são esses direitos.

9

A Lei Fundamental alemã tem três artigos de especial relevância para entender o sistema cultural da Alemanha: o artigo 5o, que garante a liberdade de expressão, da arte e da ciência; o artigo 28, que estabelece a autonomia administrativa dos municípios nas questões locais; e o artigo 30, que define o poder soberano dos estados federados.

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Mesmo nesse caso, o apoio se dá sobretudo de forma indireta, por intermédio de fundações ou organizações da sociedade civil.

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Vale frisar que o financiamento público à cultura na Alemanha não significa necessariamente interferência pública nos assuntos culturais. Movimentos lidos como tentativas de interferência política no conteúdo ou na programação são duramente criticados em sua violação da liberdade artística e da Lei Fundamental. Com o recente crescimento de discursos nacionalistas e xenófobos (disfarçados como sendo de ordem econômico-protecionista), essa liberdade tem sido monitorada e novos casos criticados como sendo de violação a ela. Não por acaso, a rede Die Vielen [Os Muitos] foi fundada em 2019, liderada por instituições, profissionais e cidadãos espalhados por toda a Alemanha preocupados em assegurar a liberdade das artes (www.dievielen.de).

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Também segundo Blumenrich (2016, p. 54), desde o início de 2003 esforços nos diferentes níveis têm sido tomados com o intuito de alcançar uma base ou harmonização parcial das estatísticas relativas à cultura (e o que esses níveis entendem por cultura), também visando facilitar comparações em nível internacional.

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Deutsche Kulturrat e.V. é uma associação guarda-chuva que representa politicamente os interesses de uma ampla rede de organizações culturais sem fins lucrativos na Alemanha. Seu objetivo é “estimular a discussão da política cultural em todos os níveis políticos e defender a liberdade de arte, publicação e informação” (https://www.kulturrat.de/ueber-uns/).


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UM PLANO BRITÂNICO PARA A CULTURA: UM APELO AO CORAÇÃO E À CABEÇA DA NAÇÃO Paul Heritage e Mariana Steffen

A recém-lançada Estratégia do Conselho de Artes da Inglaterra para o decênio 2020-2030 é o mais próximo do que podemos entender da versão britânica de um plano nacional para a cultura. Neste artigo, apresentamos as estruturas institucionais da política cultural britânica, sua origem e evolução, a fim de compreender o que o documento representa para a Inglaterra de hoje. Abordamos, de forma crítica, os pontos levantados pela estratégia e suas implicações para a política cultural do país na próxima década.

E

m 2020, o Conselho de Artes da Inglaterra (ACE, na sigla em inglês) lançou sua estratégia para o decênio 2020-2030, chamada Let’s Create [Vamos Criar]. Nesse texto, ressaltou o papel da cultura e da criatividade na orientação das políticas culturais, aprofundando o paradigma das indústrias criativas, bem como lançou as bases para mudanças no setor cultural em termos de responsabilidade ambiental e qualidade e acesso às experiências culturais e aos processos criativos. Embora não possa ser considerado equivalente ao que entendemos por plano nacional de cultura, é esse documento que orientará a operacionalização das políticas culturais na Inglaterra na próxima década. Para entender o que a estratégia significa para a política cultural do Reino Unido,

é preciso, antes, retornar a 1946 e à famosa figura de John Maynard Keynes. É nesse ponto da história que começam a se desenhar as atuais estruturas institucionais que organizam a política para as artes e a cultura na nação, mais bem definidas nos anos 1990. Neste artigo, apresentaremos uma breve contextualização histórico-institucional sobre essas políticas no Reino Unido, para então analisarmos criticamente a estratégia proposta para elas. De volta a Keynes: as bases para a política cultural britânica Em 1939, o governo britânico criou o Conselho para o Incentivo à Música e às Artes (Cema, no acrônimo em inglês), responsável por organizar os esforços estatais do campo cultural durante a Segunda Guerra Mundial,


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em uma iniciativa para entreter soldados e em tempos de paz” (ARTS COUNCIL OF cidadãos passando por situações típicas da GREAT BRITAIN – ACGB, 1946, p. 20). guerra, aumentando o moral, por um lado, e O modelo de financiamento desenvolvido provendo empregos para artistas, por outro por Keynes e materializado no Conselho (UPCHURCH, 2004). Keynes assume a di- de Artes difundiu-se por outros países e reção do órgão em 1942. Influenciado pelas permanece até hoje. Por mais convicto que ideias do Bloomsbury Group1 e utilizando seu estivesse de sua proposta para as artes, nem prestígio, experiência e conexões dentro do o economista poderia ter pensado que, nos governo, o economista lança as bases para 50 anos seguintes, a cultura seria reimaa criação do Conselho de Artes da Grã-Bre- ginada no discurso da economia criativa tanha, consolidada em 1946, logo após a sua como base para a reconstrução industrial súbita morte. do Reino Unido – naquele momento, o ConO conselho traduzia a visão keynesia- selho de Artes era capitaneado pelo desejo na de que o Estado deveria proteger os mo- de restaurar a “boa saúde” da nação, e não numentos do passado, criar novos para o para construir sua capacidade econômica: futuro e proteger os artistas “não está longe o dia em dos “caprichos do capitalis- O modelo de financiamento que o Problema Econômimo” (UPCHURCH, 2004, p. desenvolvido por Keynes e co ocupará o banco de trás 209), oferecendo a artistas e materializado no Conselho a que pertence, e a arena do organizações artísticas ins- de Artes difundiu-se por coração e da cabeça estará talações, financiamento e outros países e permanece ocupada, ou reocupada, por aconselhamento distante do até hoje nossos problemas reais: os aparato político e burocrátiproblemas da vida e das co estatal. Para isso, o conselho nasce como relações humanas, da criação e comportaum órgão público não departamental,2 isto é, mento e religião” (ACGB, 1946, p. s.n.). vinculado a um departamento, mas mantenEm 2020, enquanto o Conselho de Artes do funcionamento e corpo de funcionários da Inglaterra prepara o investimento público independentes dele. Sem competir com o nas artes da próxima década, a Grã-Bretanha mercado, alocaria fundos para financiamen- não está mais se recuperando da guerra, mas, tos limitados seguindo um papel específico no que foi amplamente acolhido como uma na vida cultural nacional: o de apoiar a vida estratégia ousada, apresenta uma visão que artística de formas que o setor privado não apela ao coração e à cabeça da nação. A esconseguiria (UPCHURCH, 2004). tratégia faz perguntas fundamentais sobre Em 1945, quando expôs o que se tor- como as artes podem reverter as desigualnaria de fato um plano nacional de cultura, dades sociais, nutrir a saúde e o bem-estar, Keynes notou que seu objetivo inicialmente transformar comunidades, responder à era substituir o que a guerra havia retirado, emergência climática e reconstruir o rela“mas logo descobrimos que o que estáva- cionamento da Grã-Bretanha com o mundo mos oferecendo não havia existido sequer pós-Brexit.

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Estruturas e dinâmicas atuais mesmo guarda-chuva institucional, o goverda política cultural britânica no remodelou sua política cultural em torno O atual contorno das estruturas institucio- da criatividade, em uma agenda liderada pela nais responsáveis pela política cultural britâ- sociedade da informação e pelo conhecimennica toma forma nos anos 1990. O Conselho to econômico, sob a égide das indústrias criade Artes da Irlanda do Norte foi criado em tivas3 (HESMONDHALGH et al., 2015, p. 57). 1964, mas somente em 1994 o Conselho de A política cultural britânica é efetivaArtes da Grã-Bretanha é descentralizado mente implementada por meio do trabalho entre os outros três países constituintes do dos órgãos e agências vinculados ao DCMS. Reino Unido, dando origem ao Conselho de Esse é o caso dos Conselhos de Artes, que, Artes Inglês, ao Conselho de Artes Galês e ao como mencionado acima, distribuem recurConselho de Artes Escocês (atual Creative sos para projetos, indivíduos e organizações Scotland). Nesse mesmo ano, com a criação atuando no campo das artes e da cultura, da Loteria Nacional, o sistema de financia- decidindo quem recebe (ou não) recursos mento da cultura britânica públicos para fazer cultura passa por uma reestrutura- Embora o Reino Unido no país. É por essa razão que, ção completa: os três novos não tenha a pretensão neste artigo, abordamos especonselhos, juntamente com o de ter um plano nacional cificamente a estratégia adoda Irlanda do Norte, passam a de cultura, isso é tada pelo Conselho de Artes administrar diretamente os subentendido em todas da Inglaterra para o decênio recursos para a área, utilizan- as ações no campo da 2020-2030. Os recursos disdo fundos da loteria e alocados política cultural ponibilizados pelo ACE vêm, pelo governo. Outros recursos além da já mencionada Loteda loteria seriam também aportados na cul- ria Nacional, do próprio DCMS e do Departura, distribuídos pelo Instituto Britânico do tamento de Educação (este específico para Filme (BFI, na sigla em inglês) e pelo Fundo um programa de educação musical). O ACE da Loteria Nacional para o Patrimônio. é, ainda, responsável por museus, bibliotecas Em 1997, a eleição do New Labour leva e coleções ingleses desde 2011. uma nova perspectiva política para a área cultural. Uma das primeiras ações do gover- Vamos criar? O Conselho de Artes da no foi substituir o Departamento do Patrimô- Inglaterra e sua estratégia 2020-2030 nio Nacional pelo Departamento de Cultura, Hoje em dia, embora o Reino Unido não teMídia e Esporte (DCMS, na sigla em inglês), nha a pretensão de ter um plano nacional ajustando as estruturas institucionais ao que de cultura, isso é subentendido em todas seria o mote do governo trabalhista para as as ações no campo da política cultural. A artes e a cultura, transformadas no novo e ideia de plano nacional remete ao esforço brilhante motor rumo ao futuro do país – a de guerra, uma realidade ainda recente, se chamada Cool Britannia (VALIATI; HERI- considerarmos que a Segunda Guerra MunTAGE, 2018). Ao unir cultura e mídia em um dial ocorreu nos tempos de Getúlio Vargas


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no Brasil. De herança desses tempos, per- (430 milhões de reais) por ano para o Fundo maneceu subjacente às estruturas insti- de Desenvolvimento, que foca o desenvolvitucionais a visão instrumentalista sobre a mento de modelos de negócios e liderança cultura, do Cema até os tempos atuais de e a ampliação da gama de pessoas que traConselhos de Artes. balham no setor cultural. Deve-se considerar, ainda, que o Reino Consultas públicas são, em geral, basUnido é uma união de países e que, dentro tante comuns no Reino Unido – o DCMS, destes, há um grau significativo de descen- por exemplo, realizou mais de 15 processos tralização política, com autonomia das au- de consulta ao público em diferentes tópitoridades locais em algumas decisões para cos durante 2019 (DCMS, 2020). O Consea política cultural. A ideia de estruturas nor- lho de Artes da Inglaterra tem a obrigação mativas em um país com tal nível de descen- legal de levar em consideração a igualdade tralização e sem constituição é diferente da em seu processo de formulação de políticas que se tem no Brasil e nos públicas, bem como deve ser demais países da Améri- A estratégia para capaz de demonstrar como visa ca Latina. A estratégia do o decênio 2020evitar a discriminação e promoACE deve ser compreendi- -2030, chamada ver igualdade e diversidade para da nesse contexto e, graças Let’s Create [Vamos pessoas que pertencem ao chaaos esforços keynesianos de Criar], busca orientar mado grupo de características mais de 70 anos, ela pode o desenvolvimento, protegidas, conforme definido ser entendida como uma a atuação e os pela Lei de Igualdade do Reino orientação para a política financiamentos Unido (2010), o que inclui idacultural do Estado inglês concedidos pelo ACE de, deficiências, redesignação para a próxima década, em de gênero, casamento e parceria larga medida independente das ocasionais civil, gravidez e maternidade, raça, religião trocas de governo que possam ocorrer. ou credo, sexo e orientação sexual. O ACE, no A estratégia para o decênio 2020-2030, entanto, deseja declaradamente ir além desse chamada Let’s Create [Vamos Criar], busca dever legal e garantir que seu investimento orientar o desenvolvimento, a atuação e os seja direcionado para trabalhos que reflitam financiamentos concedidos pelo ACE. Para a diversidade da Inglaterra contemporânea. o período 2018-2022, o plano do ACE inclui Dada a importância da estratégia na o investimento de 407 milhões de libras por definição de subsídio público das artes para ano (2,5 bilhões de reais, aproximadamente) toda a próxima década, o ACE encomendou em 828 organizações culturais, museus e uma auditoria externa do processo de conbibliotecas que constam em seu Portfólio sulta, entregue seis meses antes da conclusão Nacional, além de 97,3 milhões de libras para assegurar que todos os ajustes necessá(580 milhões de reais) anuais da Loteria rios fossem realizados. A chamada Auditoria Nacional para o programa de financiamen- de Igualdade analisou as evidências secundáto de acesso aberto e 72,2 milhões de libras rias usadas para construir a estratégia, bem

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como até que ponto os grupos de características protegidas (conforme descrito acima) foram efetivamente incluídos na consulta (ARTS COUNCIL ENGLAND – ACE, 2019). Em um relatório detalhado de 60 páginas, os auditores forneceram evidências quantitativas da natureza representativa do processo de consulta, concluindo que a estratégia foi construída por uma ampla gama de vozes, incluindo indivíduos e organizações, que garantiriam sua relevância para pessoas de todos os contextos econômicos e sociais. Além disso, a auditoria fez várias recomendações importantes de ajustes para a fase final da consulta, como o desenvolvimento de um plano de ação para tratar de questões de igualdade durante o período de vigor da estratégia, e solicitou que o ACE desse atenção a como abordaria casos de discriminação, se ocorressem, bem como pensasse em como a igualdade de oportunidades poderia ser disseminada no setor cultural. O processo consultivo de construção da estratégia ouviu mais de 6 mil pessoas entre 2017 e 2019, em conversas, workshops e consultas on-line (ACE, 2020a). O ACE empenhou-se em garantir que a consulta incluísse não apenas aqueles que produzem arte, como profissionais e organizações culturais, mas também aqueles cujos impostos serão gastos no subsídio à cultura na próxima década, instituindo um processo de oficinas públicas com membros do público em geral, incluindo crianças e jovens. Já no início do processo, o ACE alterou a linguagem que utilizava, substituindo “artes” e “artistas” por “cultura”, “criatividade” e “profissionais criativos”, aproximando-se das indústrias criativas e diversificando os projetos que

podem ser considerados para financiamento. No documento, a cultura é entendida como o resultado do processo de criatividade, e faz referência às “formas de arte e organizações nas quais o ACE investe: coleções, artes combinadas, dança, bibliotecas, literatura, museus, música, teatro e artes visuais” (ACE, 2020, p. 12, tradução própria). Nicholas Serota (presidente do ACE) apresenta a estratégia citando a obra de Jeremy Deller (artista vencedor do Turner4) e Rufus Norris (diretor do National Theatre) criada para marcar o centenário da Primeira Guerra Mundial. Ocorrendo em todo o território britânico, We Are Here Because We Are Here (2018) envolveu centenas de voluntários de todas as idades e profissões, treinados em segredo para sair às ruas usando os uniformes dos soldados que morreram cem anos antes, no primeiro dia da Batalha do Somme. Serota a considera uma “obra de arte pública monumental” que, em sua escala e ambição, indica o que a cultura pode fazer na vida das pessoas: A ousadia de sua visão e a trajetória dos espaços públicos para as mídias sociais; a criatividade coletiva de todos os participantes; as parcerias, locais e nacionais, que deram vida à peça; e, talvez o mais importante de tudo, a dissolução de barreiras entre artistas e o público com quem eles interagem: esses são os elementos que nossa nova estratégia apoia (ACE, 2020, p. 2, tradução própria).

Embora Keynes tenha sido cauteloso sobre como o Estado deveria patrocinar as artes, insistindo que se mantivesse comedido e a distância, ele certamente compartilhava a


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visão de Serota em relação à aspiração e am- a maneira como o ACE defende o valor do bição por uma infraestrutura cultural finan- investimento do dinheiro público na cultura ciada pelo Estado para garantir o surgimento como sendo enraizado na relação entre o sode novos trabalhos em formatos e lugares cial e o econômico, marcando uma mudança inesperados, a partir do acesso universal a sísmica dos argumentos sobre o quanto as inartes tradicionais e contemporâneas de qua- dústrias artística e cultural contribuem para lidade. A nova estratégia do ACE reflete, sem a economia do Reino Unido. Há, ainda, uma dúvida, a visão de Keynes de que o objetivo preocupação com o posicionamento internade um governo não deve se limitar a prover cional da Inglaterra como referência no setor “abrigo e conforto para nos cobrir quando criativo e cultural, considerando os novos estamos dormindo” se não puder também termos da relação com a Europa pós-Brexit oferecer um “local conveniente de congre- e o papel crescente que terá o ACE na intergação e prazer quando estamos acordados” nacionalização dos profissionais criativos. (KEYNES, 2015, p. 132, tradução própria). Quanto à operacionalização da estraCom o documento, o ACE reforça seu tégia, o conselho indica algumas diretrizes papel de agência de desenque orientarão sua atuavolvimento para a cultura A estratégia propõe que ção, embora não apresente e a criatividade, reconhe- o ACE torne possível aos planos e metas detalhacendo sua importância na indivíduos explorar sua dos. Promover pesquisa e interligação entre público, própria criatividade e desenvolvimento, apoiar organizações financiadas aproveitar experiências a adoção de novas tecnoe indústrias criativas em culturais de alta qualidade logias e incentivar novas torno da cultura e da criatimaneiras de promover vidade. Destacam-se, no decorrer da estra- responsabilidade ambiental são algumas tégia, a valorização do papel das parcerias, das principais ações propostas. No campo sobretudo com autoridades políticas locais e econômico, pretende atuar sobre a falta de instituições de ensino superior, e a intenção diversidade da força de trabalho nas indúsde expandi-las e diversificá-las; o forte foco trias criativas, no que toca a características em crianças e adolescentes, materializado como gênero, deficiências físicas, surdez e através da parceria com o Departamento de perfil étnico-social, bem como ao contexto Educação; e o investimento no reconheci- socioeconômico de origem dos trabalhadomento do valor socioeconômico do investi- res. Ainda, propõe-se a investir em novos mento público em cultura. Essa não é uma prédios culturais para promover regeneração estratégia projetada para obter retornos econômica local. financeiros predeterminados para o invesO núcleo da estratégia apresenta resultimento público. Não se trata de objetivos, tados esperados e princípios de investimenmas de melhorar as táticas de como o jogo to que deverão ser seguidos para atingi-los. pode ser jogado ou talvez até de mudar o Com os primeiros, o conselho busca agir campo de jogo. A estratégia visa melhorar sobre padrões desiguais de financiamento

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históricos no campo cultural, com aqueles que tradicionalmente obtêm menos acesso aos recursos disponibilizados, como minorias e camadas econômica e socialmente desfavorecidas da sociedade (ACE, 2020b, p. 26). Os três resultados propostos se referem a: i) desenvolvimento e expressão da atividade criativa voluntária e amadora; ii) abordagem colaborativa da cultura, aproximando praticantes culturais amadores e profissionais; e iii) fortalecimento do setor cultural profissional, tornando-o mais inovador e consolidando-o como referência internacional. Em resumo, a estratégia propõe que o ACE torne possível aos indivíduos explorar sua própria criatividade e aproveitar experiências culturais de alta qualidade. Já os princípios de investimento buscam orientar as mudanças necessárias nas organizações e indivíduos para atingir os resultados propostos, com intenção de alterar o perfil dos indivíduos e organizações financiados pelo ACE até 2030. Os quatro princípios determinados traduzem a consciência de que os recursos distribuídos são públicos e, portanto, devem ser aplicados de forma a gerar experiências culturais de qualidade e sincronizadas aos ideais democráticos da sociedade inglesa. São eles: i) ambição e qualidade, comprometendo-se com a entrega de experiências culturais cada vez melhores; ii) dinamismo, para responder aos desafios da próxima década; iii) responsabilidade ambiental; e iv) inclusão e relevância, refletindo a diversidade da Inglaterra. Esses serão os princípios por meio dos quais as organizações financiadas regularmente pelo ACE, que compõem o Portfólio Nacional, serão selecionadas e avaliadas

anualmente durante o próximo ciclo de financiamento de quatro anos (com início em 2022, mas atrasado para 2023 por causa do coronavírus). Como em cada ciclo anterior, a seleção das organizações do Portfólio Nacional será realizada pelo próprio Conselho de Artes, que atualmente consiste em mais de 500 pessoas trabalhando em 9 escritórios em toda a Inglaterra. Muitas delas trabalharam nas artes ou na cultura, outras têm experiência em finanças, tecnologias digitais ou outras áreas. O objetivo é que o Conselho de Artes represente as comunidades, organizações e indivíduos com os quais trabalha e financia. Os funcionários são nomeados pelos processos abertos usuais para organizações públicas, o que significa prestar atenção especial no grupo de características protegidas (veja acima). O princípio que Keynes estabeleceu em 1946 permanece fiel ao Conselho de Artes hoje: existe um conflito entre os políticos que decidem sobre o nível de investimento público nas artes e os responsáveis​​ pela distribuição do financiamento. A estratégia estabelece quais serão as medidas pelas quais a qualidade será avaliada, tanto para quem busca financiamento quanto para quem presta contas sobre os recursos que recebeu. Solicita-se às organizações artísticas que indiquem as medidas pelas quais essa qualidade deve ser julgada, e a equipe do Conselho de Artes avaliará a relevância dessas medidas e o sucesso de cada organização em alcançar os resultados em relação ao que propõe a estratégia. Esta é, talvez, mais bem entendida como parte de um debate contínuo e em constante mudança sobre o que a Inglaterra entende como


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qualidade artística. Como John Keats disse ao tentar avaliar os feitos de Shakespeare, a qualidade nas artes pode ser mais bem expressa como “uncertainties, mysteries, doubts, without any irritable reaching after fact and reason” (KEATS, 1889, p. 277) – ou, na tradução possível: “incertezas, mistérios, dúvidas, sem a necessidade frustrada de alcançar os fatos e a razão”.

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um manual de instruções. O que estabelecemos não é um plano de ação, mas uma visão” (ACE, 2020b, p. 60). Há pouca ou nenhuma ação concreta proposta na estratégia e, às vezes, o que parecem ambições contraditórias são mantidas juntas em uma harmonia impossível. Promessas são igualmente feitas para nutrir novos talentos e apoiar aqueles “que já estão no topo de seu jogo”, sem oferecer orientação sobre o que precisa Considerações finais: estratégias, começar ou terminar. promessas e aprendizados Outro ponto ignorado pelo documento Formular planos estratégicos não é uma no- é a queda brusca no financiamento das auvidade para Serota. Quando nomeado diretor toridades locais. Ao apresentar uma visão da Tate Gallery, em 1988, destacou-se por seu das instituições culturais centradas no nível plano intitulado Agarrando a local em todo o país, a estraUrtiga, que defendia mudan- Para que a estratégia tégia não oferece nenhuma ças fundamentais na relação de dez anos do ACE pista sobre como os modelos da galeria com o público se seja bem-sucedida, “ela de financiamento público essa desejava se tornar ama- precisa ser flexível […] responderão a uma década da, e não apenas respeitada. uma luz orientadora, de devastação causada pela Doze anos depois, Serota em vez de um manual política de austeridade briabriu o Tate Modern na anti- de instruções” tânica. Os comentários do ga usina de Bankside, tornansetor cultural, de modo geral, do-a um componente definitivo do horizonte elogiaram as ideias que estão na vanguarda de Londres da noite para o dia. Quando Se- da estratégia (maior colaboração com os rota assumiu a presidência do Conselho de setores amador e comercial; uma força de Artes da Inglaterra, o Tate Modern havia se trabalho mais diversa; arranjos de finantornado o museu/galeria mais popular do ciamento mais flexíveis; foco em iniciativas Reino Unido, com mais de 5 milhões de visi- culturais locais), mas lamentaram a falta de tantes por ano. Serota conhece o poder de um detalhes sobre como isso será alcançado Essa plano estratégico, e a importância de enten- não é uma estratégia militar que estabelece der, e não evitar, os problemas espinhosos. um plano de ação para vencer a guerra, mas Uma estratégia é geralmente enten- serviu ao que talvez fosse seu objetivo: reudida como um plano de ação, mas Darren nir as tropas para violar as barricadas que Henly, diretor-executivo do ACE, esclare- atualmente impedem as artes de cumprir seu ce que, para que a estratégia de dez anos do verdadeiro potencial. ACE seja bem-sucedida, “ela precisa ser Keynes nos pediu para não pensarmos flexível […] uma luz orientadora, em vez de no Conselho de Artes como um professor:

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“à medida em que instruímos, é um novo jogo que estamos ensinando a jogar – e a assistir” (MOGGRIDGE, 1974, p. 46). Essa tradição é mantida na estratégia 2020-2030 do ACE, na qual a comunidade cultural britânica tem que inventar as regras para si mesma, pois colaborou na criação de um plano de jogo que envolve os corações e as cabeças de uma nação para resolver os desafios que enfrenta como sociedade hoje. Post-scriptum: no momento em que enviamos este artigo aos editores, surge uma nova forma de guerra global para combater a força de um vírus. De Wahun a Washington, da Itália ao Irã, a pandemia de coronavírus atinge governos, devasta indústrias e destrói o tecido familiar da sociedade. Até agora, o setor de arte e cultura foi apenas mais uma vítima do ataque, como ocorreu na Grã-Bretanha nos primeiros anos da Segunda Guerra Mundial. Naquela época – como agora –, teatros, cinemas e museus foram fechados por causa dos perigos das aglomerações públicas. Embora não fossem pensadas como um setor industrial na época, as indústrias criativas estavam sendo gradualmente reduzidas a escombros por bombardeios, assim como agora estão sendo levadas à beira da aniquilação pelo impacto da covid-19. De uma paisagem devastada um plano surgiu na Grã-Bretanha em 1942 para repensar o próprio propósito a que a arte pode servir em tempos de guerra. Tornou-se um plano nacional quando as armas silenciaram e lançaram as bases para a estrutura cultural da Grã-Bretanha nos próximos 75 anos. Desafios urgentes nos encaram novamente. Podemos sair desta guerra contra um vírus com um plano para os setores das artes e da cultura que tornará

nossas sociedades mais fortes e nossos cidadãos mais saudáveis? Nosso foco agora deve ser garantir que as artes sejam adequadas ao objetivo, enquanto buscamos nos recuperar de tudo o que esse vírus revelou sobre a fragilidade do nosso mundo.

Paul Heritage Professor de teatro da Queen Mary University of London e diretor artístico da People’s Palace Projects. Atua em projetos de pesquisa aplicada em artes e cultura entre o Brasil e o Reino Unido há mais de 20 anos, trabalhando com artistas e profissionais criativos de periferias e comunidades indígenas, entre outros.

Mariana Steffen Graduada em relações internacionais e mestre em políticas públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atua como pesquisadora-assistente na People’s Palace Projects.


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VALIATI, L.; HERITAGE, P. Economia criativa e disparidades: inspirações e desafios do Cool Britain para um Brasil criativo. Revista do Centro de Pesquisa e Formação, n. 6, jun. 2018. Disponível em: https://www.sescsp.org.br/files/artigo/ aaecb443/9b72/426b/8046/78ca43978c64.pdf. Acesso em: 19 abr. 2020.

Notas 1

Círculo de artistas e intelectuais formado por nomes como Keynes e Virginia Woolf, envolvido ativa e diretamente na discussão acerca da política cultural britânica (UPCHURCH, 2004).

2

Esses órgãos são caracterizados por possuírem um papel no governo nacional sem fazer parte dele, com possibilidade de atuação mais próxima ou mais distante do corpo ministerial (UNITED KINGDOM, 2018). No caso do ACE, está relacionado principalmente à execução de políticas públicas, semelhantes a agências executoras no Brasil, como a Apex-Brasil. Ficaram popularmente conhecidos pelo nome de Quango, abreviação para organização não governamental quase autônoma (MELO, 2011).

3

Sobre o tema, ver Garnham (2005).

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Prêmio anualmente conferido a artistas britânicos das artes visuais com menos de 50 anos de idade.


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PLANOS NACIONAIS DE CULTURA DOS PAÍSES DO BRICS: UMA POSSÍVEL ANÁLISE COMPARATIVA Bruno do Vale Novais

Publicações sobre políticas culturais dos países do Brics, de modo comparado, são raras e estão em seus primórdios. A fim de contribuir para esse processo embrionário de investigações acadêmicas sobre o campo cultural intra-Brics, este trabalho intentou analisar documentos similares relativos a planos nacionais de cultura ou de artes do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul no intervalo temporal de 2010 a 2020. Objetivou-se, assim, identificar e compreender similitudes e particularidades desses instrumentos de planejamento estratégico de gestão e políticas culturais dos países do agrupamento em tela.

Palavras iniciais

E

m 2019, publiquei um artigo na Políticas Culturais em Revista1 intitulado: “Políticas culturais dos países do Brics no período de 2003 a 2018: uma análise comparativa”. Esse trabalho é inaugural no que se refere a estudos específicos sobre políticas culturais comparadas entre os países que formam o Brics. O objetivo foi oferecer primórdios de indicadores culturais intra-Brics e conhecer semelhanças e especificidades de cada país no que tange ao desenvolvimento de suas políticas culturais. Nesse texto, compreendi que a cultura não ocupa lugar prioritário no rol de atuação do bloco. Mas a existência do Plano de Ação para a Cultura do Brics para o Período de 2017 a 2021 é trabalho inicial

para a construção de políticas culturais entre os países do Brics. Além disso, há campo cultural em desenvolvimento em cada país do agrupamento, com similitudes, como a arquitetura de dados, informações, estatísticas e indicadores culturais; legislações de políticas culturais nacionais; e financiamento público da cultura, o que oportuniza possibilidade de intercâmbio cultural entre os membros do Brics. Ao receber o convite para escrever sobre o processo de construção de planos nacionais de cultura ou de artes dos países que formam o acrônimo Brics para esta edição da Revista Observatório Itaú Cultural, dar-se-á continuidade ao que foi iniciado na publicação previamente mencionada. É, portanto, para mim, um


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desafio fazer uma análise comparativa em relação a fatores que incidem sobre o processo de construção e aplicação de planos nacionais de cultura ou artes em países geograficamente, economicamente, culturalmente e politicamente distintos, como são Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul, pela diferença na qual a gestão da política cultural de cada país é desenvolvida, bem como pela baixa disponibilidade de publicações em língua inglesa relativas ao trabalho das políticas culturais desses países. Ao mesmo tempo, o fato de os cinco estarem situados no que os especialistas das relações internacionais advogam por “Sul Global” ajuda a mantê-los em um geoespaço cultural compartilhado – o que favorece a relevância pela produção de novos estudos e pesquisas. O artigo foi então escrito a partir de algumas perguntas referentes ao processo de construção dos planos nacionais de cultura ou artes dos países que formam o Brics. São elas: (a) houve participação da sociedade civil no processo de elaboração? Em caso positivo, de que forma ocorreu esse envolvimento social? (b) Quais foram as diretrizes, os eixos estratégicos, os objetivos principais e as metas? (c) O plano em análise dialoga com a realidade e as demandas do setor cultural do país? (d) Quais são as interfaces do plano com as políticas públicas dos demais setores estratégicos do país? (e) Há institucionalização do plano? Como ele foi criado? (f ) Qual é a periodicidade/duração prevista? Antes, contudo, de apresentar possíveis respostas para essas indagações, falarei de modo breve sobre o que é, afinal, o Brics e quais são suas prioridades, finalidades e perspectivas para a segunda década do

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século XXI, a fim de compreender melhor o espaço que a cultura ocupa na agenda do grupo e como esse lugar dialoga com as políticas culturais de cada país do acrônimo. O Brics na contemporaneidade: brevíssimo panorama Em 2019, o Brasil foi anfitrião da XI Cúpula do Brics. Desde 2008, os Brics se encontram anualmente, com exceção da África do Sul, que adentrou no agrupamento em 2011. São mais de 30 áreas de cooperação entre os países que formam o Brics, com destaque para: econômico-financeira; saúde; ciência, tecnologia e inovação; segurança e empresarial. Em 2014, na cúpula realizada em Fortaleza, foram lançados dois projetos que destacaram o Brics nas relações internacionais: o Novo Banco de Desenvolvimento (NDB) e o Arranjo Contingente de Reservas (ACR). O objetivo do banco é ser instância de articulação de recursos para investimentos nos setores de infraestrutura e desenvolvimento sustentável, tanto para os países do Brics quanto para outras economias emergentes. O arranjo, por sua vez, é um mecanismo macroeconômico de cooperação financeira para os países do Brics em possíveis crises de balanço de pagamentos. Nessa última cúpula, o Brics teve por foco a interface entre crescimento econômico e inovação. Ademais, priorizou-se: (a) fortalecer a cooperação em ciência, tecnologia e inovação; (b) reforçar a cooperação em economia digital; (c) adensar a cooperação no combate aos ilícitos transnacionais, notadamente ao crime organizado, à lavagem de dinheiro e ao tráfico de entorpecentes; e (d) incentivar a aproximação entre o banco do Brics e o conselho empresarial do

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agrupamento (MINISTÉRIO DAS RELAA principal constatação é que os demais ÇÕES EXTERIORES DO BRASIL, 2020). países do Brics não possuem um plano nos Embora integrante das áreas de coope- moldes do Plano Nacional de Cultura do Braração do Brics, a cultura não é uma priori- sil.2 Ou seja: fiz um exercício de comparação dade. No entanto, a aprovação do Acordo de entre diferentes documentos que abordam Cooperação Cultural do Brics, em 2015, na as políticas públicas de cultura nos países Cúpula de Ufá, na Rússia, é primórdio de pos- do Brics, buscando verificar quais elementos sibilidade de fortalecimento da cooperação aparecem nos discursos culturais desses paícultural entre os membros do agrupamento ses ou quais são as principais preocupações em tela. O mencionado acordo intenta, por estratégicas que eles apresentam. No caso sua parte, aproximar a produção cultural da Rússia, utilizei o documento preparado realizada pelos países do Brics, e disponibilizado pela União especificamente, em alguns se- Embora integrante das Europeia intitulado 2013-2014 tores: (a) preservação de livros áreas de cooperação Preparatory Action “Culture in raros; (b) funcionamento de do Brics, a cultura não the EU’s External Relations”: bibliotecas digitais; e (c) com- é uma prioridade Country Report Russia, redigipartilhamento de produções do por Yolanda Smits, pelo fato jornalísticas e realização de feiras e festivais de não conseguir um documento específico (MINISTROS..., 2018). sobre plano de cultura produzido por esse país em língua inglesa. Em relação à Índia, Planos nacionais de cultura ou artes analisei o Relatório Anual do Ministério da nos países do Brics: princípio de Cultura – 2018 e 2019. Sobre a China, estudei análise comparativa o artigo “2011-2015: princípios da estratéEm termos didáticos, passei a olhar a ques- gia nacional de cultura e desenvolvimento tão dos planos nacionais de cultura e/ou de das indústrias culturais na China”, produartes dos países do Brics ou de documen- zido por Hardy Yong Xiang e publicado no tos que se aproximam desses tipos de pla- Jornal Internacional de Cultura e Indústrias no a partir de algumas variáveis: (a) modo Criativas em 2013, o qual relata o processo de institucionalização; (b) periodicidade/ de construção da estratégia nacional de duração; (c) forma de envolvimento com cultura da China e o caráter estratégico das a sociedade; (d) direcionadores/públicos- indústrias culturais chinesas para o projeto -alvo; (e) eixos estratégicos; (f ) objetivos; de desenvolvimento do país. No tocante à (g) metas; (h) interface com demandas África do Sul, avaliei o Plano Anual de Traculturais do país; e (i) diálogo com políticas balho 2018-2019, o qual reflete as diretrizes públicas de setores estratégicos do país. A do Planejamento Estratégico do Departapartir desses tópicos, organizei um quadro mento de Artes: 2015 a 2019. Ou seja: busquei com vistas à congregação dos dados a ser documentos mais recentes que congregaram avaliados, o qual está disponível no anexo ações e políticas culturais pensadas e defideste trabalho. nidas pelos países que formam o Brics. Isso


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ajuda a compreender como cada país integrante do agrupamento tem pensado e inserido políticas culturais de modo planejado e escrito em documentos de planejamento e avaliação dessas políticas públicas, e como isso contribui para o processo de desenvolvimento do campo cultural em cada um dos países do acrônimo.

em 2005, após as conferências municipais e estaduais (SECRETARIA ESPECIAL DA CULTURA, 2020, p. 1).

O Brasil possui, portanto, grau avançado de institucionalização do Plano Nacional de Cultura (PNC) em relação aos demais países do Brics. Em artigo publicado em 2008, Albino Rubim identificou a criação do plano como instrumento para a implementação de políticas culturais sólidas no Brasil. Em suas paO Brasil possui, portanto, lavras, grau avançado de Além deste caráter inaugural, o institucionalização do Plano Nacional de Cultura PNC pode dotar o país de políticas culturais de médio e longo (PNC) em relação aos prazo, enfrentando simultaneademais países do Brics

Análise dos dados No que se refere ao modo de institucionalização, isto é, à forma pela qual o plano nacional de cultura ou de artes (ou similar) se encontra na atualidade, identificou-se que apenas o Brasil afirma ter transformado o plano em lei. Segundo o site específico do plano,

O Plano Nacional de Cultura (PNC) é um conjunto de princípios, objetivos, diretrizes, estratégias, ações e metas que orientam o poder público na formulação de políticas culturais. Previsto no artigo 215 da Constituição Federal, o Plano foi criado pela Lei no 12.343, de 2 de dezembro de 2010. Seu objetivo é orientar o desenvolvimento de programas, projetos e ações culturais que garantam a valorização, o reconhecimento, a promoção e a preservação da diversidade cultural existente no Brasil. O Plano Nacional de Cultura (PNC) foi elaborado após a realização de fóruns, seminários e consultas públicas com a sociedade civil e, a partir de 2005, sob a supervisão do Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC). Um marco importante nesse processo foi a 1a Conferência Nacional de Cultura, realizada

mente nossas três tristes tradições no campo das políticas culturais: ausência, autoritarismo e instabilidade. O PNC, inscrito na carta constitucional e com prazo de duração previsto para dez anos, configura, pela primeira vez, a possibilidade de uma política de Estado na cultura, que necessariamente transcende a temporalidade de governos. Simultaneamente, o PNC pode, deve e está sendo construído como política pública, porque está submetido ao crivo de uma discussão e deliberação públicas, que incorpora a participação ativa da comunidade cultural e da sociedade brasileira. Portanto, com esta conjunção o Brasil pode passar a dispor, ao final do processo, de uma política pública de Estado, vital para o desenvolvimento sustentável da cultura no país (RUBIM, 2008, p. 60).

Na Rússia, o instrumento político que se assemelha ao PNC brasileiro foi anunciado

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pelo presidente Vladimir Putin à Assembleia Federal no dia 12 de dezembro de 2012 e dialoga com a estratégia nacional de defesa e inteligência russas. É um documento voltado para o exterior, com foco na imagem internacional da Rússia. Esse instrumento tem por objetivo geral: promover a cultura e língua russas em suas relações internacionais. De modo específico, busca: (1) construir uma imagem da Rússia como um país grande e famoso; (2) aproximar-se da diáspora russa; (3) disseminar o idioma russo; (4) promover intercâmbios acadêmico e estudantil russos; (5) preservar o patrimônio cultural russo; e (6) promover projetos de anos bilaterais com outros países, como o Ano do Brasil na França, promovido pelo Brasil e pela França em 2005. No caso dos demais países do Brics – Índia, China e África do Sul –, os documentos foram elaborados pelos órgãos nacionais responsáveis pela aplicação das políticas culturais em seus territórios pátrios – Ministério de Cultura (Índia e China) e Departamento de Artes e Cultura (África do Sul). No caso da Índia, o foco do documento analisado é o patrimônio cultural, tanto o tangível quanto o intangível. Os programas, os equipamentos culturais e a estrutura organizacional do Ministério da Cultura justificam esse argumento, conforme está expresso na publicação em análise (MINISTÉRIO DA CULTURA DA ÍNDIA, 2019). O plano do Brasil é o que prevê maior periodicidade/duração: dez anos. A Rússia tem um plano para seis anos; a China, para quatro; e a Índia e a África do Sul, para cinco anos, embora este trabalho tenha analisado apenas o planejamento do último biênio no tocante à África do Sul. No que se refere à forma de envolvimento da sociedade civil com a elaboração

do plano, não há informações para o caso da Índia, da China e da África do Sul. Em relação à Rússia, não houve envolvimento. Já no caso do Brasil, ocorreram fóruns, seminários e consultas públicas. O Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) é o órgão colegiado do Sistema Nacional de Cultura (SNC) responsável pela supervisão da implementação do PNC (SECRETARIA ESPECIAL DA CULTURA, 2020). Sobre esses dois instrumentos de políticas culturais nacionais do Brasil, Paula Reis defendeu, na Universidade Federal da Bahia (UFBA), sua dissertação de mestrado. Nesse trabalho, a pesquisadora sinalizou que: Os desafios históricos, caracterizados por um Estado instável na formulação de políticas culturais, e o reconhecimento da cultura enquanto fator de desenvolvimento humano, econômico e social, demonstram a importância de se viabilizar e concluir as propostas do Sistema Nacional de Cultura e do Plano Nacional de Cultura. Através delas, espera-se, dentre outras coisas, uma melhor aplicação de recursos, descentralização política e administrativa, o estabelecimento de parcerias entre esferas de governo e setores sociais, o planejamento de ações culturais em todos os níveis federativos e a diminuição das desigualdades observadas no país (REIS, 2008, p. 107).

Com a nova gestão da União a partir de 2019 e posterior extinção do Ministério da Cultura e sua transformação em uma secretaria especial integrante do Ministério da Cidadania e, em novembro de 2019, nova transferência para o Ministério do Turismo, pesquisadores das políticas culturais temem que o processo


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de construção do SNC e do PNC seja, paula- estratégicas: (a) cultura como expressão simtinamente, reduzido, o que pode enfraquecer bólica; (b) cultura como direito de cidadania; o campo das políticas culturais no Brasil, as e (c) cultura como potencial para o desenvolquais já são acometidas por três tristes tra- vimento econômico. A Índia também definiu dições, sinalizadas pelo professor da UFBA três eixos: (a) patrimônio cultural tangível; Albino Rubim: ausência, autoritarismo e ins- (b) patrimônio cultural imaterial; e (c) patritabilidade (RUBIM, 2007, p. 101). mônio cognitivo. A Rússia direcionou seus eiO fator direcionadores/público-alvo xos de atuação para seis áreas temáticas: (a) apresentou o seguinte quadro: o Brasil desti- construção de imagem; (b) divulgação para a nou o plano para o poder público, já que com- comunidade da diáspora russa; (c) divulgação preende o PNC como uma política pública do idioma russo; (d) intercâmbio internaciofruto da construção coparticipativa entre nal acadêmico e estudantil; (e) esquema de governo e sociedade. O plano da Rússia obje- anos bilaterais ou estações de cultura com tivou comunicar-se com cidadãos russos no países estrangeiros; e (f ) preservação do paexterior. A Índia e a África trimônio cultural. A África do Sul buscaram atingir O plano da Rússia objetivou do Sul definiu a promoção públicos mais diversifi- comunicar-se com cidadãos e desenvolvimento das arcados. A Índia direcionou russos no exterior. A Índia e a tes e cultura e a promoção seu plano para artistas África do Sul buscaram atingir e preservação do patrimôindividuais, grupos de ar- públicos mais diversificados. nio como finalidades. Em tistas, organizações e ins- A Índia direcionou seu plano termos de similitudes, pertitutos; a África do Sul, por para artistas individuais, grupos cebe-se que Índia, Rússia e sua parte, para artistas, de artistas, organizações e África do Sul escolheram a comunidades marginali- institutos; a África do Sul, área temática do patrimôzadas, áreas rurais, jovens, por sua parte, para artistas, nio no rol de seus eixos de mulheres e pessoas com comunidades marginalizadas, atuação. Em termos pardeficiência. É positiva, áreas rurais, jovens, mulheres ticulares, há ênfase nas portanto, a diversidade e pessoas com deficiência indústrias culturais por de públicos objetivados parte da China. No caso por esses documentos, o que está em conso- do Brasil, os eixos são mais complexos e têm nância com a Convenção sobre a Proteção perspectiva macro ao abarcar três dimensões e Promoção da Diversidade das Expressões previamente mencionadas com vistas à conCulturais, articulada pela Organização das templação das demandas do campo cultural Nações Unidas para a Educação, a Ciência nacional brasileiro em todas as regiões. e a Cultura (Unesco) e em vigor desde 2005. Os objetivos estão em consonância com Os eixos estratégicos diferiram entre os os eixos apresentados no parágrafo anterior. países que formam o Brics. A China definiu as No caso do Brasil, orientar o poder público indústrias culturais como prioridade. O Brasil na formulação de políticas culturais. Além categorizou três dimensões da cultura como disso, guiar o desenvolvimento de programas,

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projetos e ações culturais que garantam a valorização, o reconhecimento, a promoção e a preservação da diversidade cultural existente no país. Já a Rússia objetivou promover a cultura e a língua russas em suas relações internacionais; a Índia, preservar e conservar o patrimônio cultural tradicional indiano e promover a arte e cultura tangível e intangível indiana; a África do Sul, por fim, promover e desenvolver as artes e cultura sul-africanas, bem como preservar o seu patrimônio cultural. Em relação às metas, Rússia e Índia não as especificaram. A China apresentou dez e a África do Sul três. O Brasil tem 53 metas definidas no PNC.3 Em 2013, o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), vinculado ao Ministério da Economia, publicou um texto sobre as metas do Plano Nacional de Cultura do Brasil. Esse material é bastante didático e traz, além da apresentação detalhada de cada meta, os passos necessários para a eficiente e eficaz implementação do PNC no país. Esse documento apresenta perspectivas que deveriam ser alcançadas até o último ano de vigência do PNC: Imaginar o cenário da Cultura em 2020 é pensar que até lá o povo brasileiro terá maior acesso à cultura e que o país responderá criativamente aos desafios da cultura de nosso tempo. A expressão dessas mudanças será visível na realização das 53 metas do Plano Nacional de Cultura. Até 2020, as políticas culturais terão passado por diversas transformações, a começar pelo pleno funcionamento de um novo modelo de gestão, o Sistema Nacional de Cultura. Esse sistema possibilitará a estados, Distrito Federal e cidades, a promoção de políticas públicas

conjuntas, participativas e duradouras. Ele contará com recursos do Fundo Nacional de Cultura que serão repassados a fundos municipais e estaduais. Também serão desenvolvidas políticas para fortalecer a relação entre a cultura e áreas como a educação, a comunicação social, o meio ambiente, o turismo, a ciência e tecnologia e o esporte. As metas refletem uma concepção de cultura que tem norteado as políticas, os programas, as ações e os projetos desenvolvidos pelo Ministério da Cultura (MinC). Essa concepção compreende uma perspectiva ampliada da cultura, na qual se articulam três dimensões: a simbólica, a cidadã e a econômica (IPEA, 2013, p. 15).

Todos os documentos analisados dos cinco países que formam o Brics dialogaram com a realidade e demandas do setor cultural de seus territórios nacionais, bem como com políticas públicas dos demais setores estratégicos. No entanto, só existem políticas culturais realmente públicas em regimes verdadeiramente democráticos. É complexo analisar de modo comparado políticas culturais entre os países do Brics, cujos contextos políticos internos diferem. A própria noção e a forma de desenvolvimento e concretização do que compreendemos – no Ocidente – por democracia diferem entre os países que formam o Brics. Não nos cabe, ademais, realizar julgamento de valor a respeito do modo pelo qual cada país do acrônimo organiza seu sistema político doméstico. Interferiria na forma de análise comparativa dos documentos, já que o objetivo de utilizar esse instrumento como fortalecimento da cidadania cultural é frágil. Isso se justifica pelas limitações apresentadas neste texto.


PLANOS DE CULTURA

Palavras finais: à guisa de conclusão A observância de planos nacionais de cultura dos países do Brics permite constatar a necessidade de o campo cultural articular maior diálogo e intercâmbio de políticas culturais entre si, pois há setores culturais prioritários em cada documento dos países aqui analisados que podem servir de objeto de intercâmbio de experiências de políticas culturais, como o patrimônio cultural, tanto material quanto imaterial. Na atual conjuntura das relações internacionais, o Brics possui peso importante no cenário global. Embora imersos em contextos domésticos distintos, é possível compartilhar práticas exitosas de políticas culturais, já que todos os países que formam o bloco têm pretendido inserir políticas culturais – expressas em seus planos aqui estudados – condizentes com os principais instrumentos internacionais norteadores de políticas públicas de cultura, como a mencionada convenção da Unesco sobre a diversidade cultural. Este artigo não almejou caráter rigoroso no que concerne à escolha dos planos nacionais de cultura para estudo comparado. Ao contrário, intentou-se avaliar documentos que, escritos e disponíveis em língua inglesa, pudessem servir de amostra da forma pela qual cada país do Brics tem planejado sua política cultural, ao menos no interregno de dois anos consecutivos. É, portanto, desafio para os países que constituem esse acrônimo fortalecer o diálogo sobre práticas e planejamento de suas políticas culturais, haja vista que a agenda de cooperação econômico-financeira tem ocupado lugar de destaque nas reuniões de trabalho e de cúpula.

Bruno do Vale Novais

Ou seja: é preciso fortalecer a presença de pesquisadores, produtores culturais, gestores culturais, artistas, empresários culturais, instituições culturais públicas e privadas e demais agentes do campo cultural do Brasil, da Rússia, da Índia, da China e da África do Sul nas instâncias de debate e troca de informações culturais do Brics, bem como aplicar de maneira sólida os objetivos e as metas do acordo de cooperação cultural do agrupamento. Por meio do diálogo será possível, portanto, experienciar uma agenda de cooperação da esfera da cultura intra-Brics de maneira eficaz. Assim, de modo concreto, gradualmente há chances de aperfeiçoar o desenvolvimento de políticas culturais em cada país do agrupamento, bem como vivenciar experiências compartilhadas entre Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul no que se refere às suas políticas culturais da contemporaneidade.

Bruno do Vale Novais Doutorando e mestre em cultura e sociedade no Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade (Pós-Cultura), no Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, da Universidade Federal da Bahia (IHAC/ UFBA), com estudos para produção de tese sobre dilemas da diplomacia cultural do Brasil na contemporaneidade, sob a orientação do professor doutor Antonio Albino Canelas Rubim. É pesquisador no Grupo de Pesquisa Observatório de Políticas e Gestão Culturais, coordenado por Rubim, no Centro de Estudos Multidisciplinares em Cultura (Cult) da UFBA. É bacharel em comunicação pela UFBA.

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Referências bibliográficas BRASIL. Ministério da Cidadania. Site. [S.l.], 2020. Desenvolvido pela Secretaria Especial da Cultura do Brasil. Apresenta informações sobre o Plano Nacional de Cultura. Disponível em: http://pnc.cultura.gov.br/entenda-o-plano. Acesso em: 19 abr. 2020. BRICS BRASIL 2019. Ministério das Relações Exteriores do Brasil. Site. [S.I.]. Desenvolvido pelo Ministério das Relações Exteriores. Apresenta informações sobre a presidência brasileira do Brics em 2019. Disponível em: http://brics2019. itamaraty.gov.br/. Acesso em: 19 abr. 2020. BRICS estabelece plano de ação para a cultura. Hora Minas, Belo Horizonte, 10 jul. 2017. Disponível em: http://www.horaminas.com.br/noticia/entretenimento/bricsestabelece-plano-de-acao-para-investimentos-em-cultura. Acesso em: 19 abr. 2020. DEPARTAMENTO DE ARTES E CULTURA DA REPÚBLICA DA ÁFRICA DO SUL. 2018-2019: Annual Performance Plan. Disponível em: http://www.dac.gov.za/sites/ default/files/DAC%20APP%20%2020182019%20FY.pdf. Acesso em: 15 jan. 2020. INSTITUTO DE PESQUISA ECONÔMICA APLICADA (IPEA). As metas do Plano Nacional de Cultura. 2. ed. Brasília: 2013. Disponível em: http://www.ipea.gov.br/ participacao/images/pdfs/conferencias/IIICNCultura/metas-do-plano-nacionalde-cultura.pdf. Acesso em: 19 abr. 2020. MINISTÉRIO DA CULTURA DA ÍNDIA. Annual Report 2018-2019. Disponível em: https:// www.indiaculture.nic.in/sites/default/files/annual-reports/Ministry%20of%20 Culture%20AR%20English.pdf. Acesso em: 15 jan. 2020. MINISTROS dos Brics levam debate sobre cooperação cultural à reunião na África do Sul. Diário de Notícias, Lisboa, 30 out. 2018. Disponível em: https://www.dn.pt/ lusa/interior/ministros-dos-bricslevam-debate-sobre-cooperacao-cultural-areuniao-na-africa-dosul-10107948.html. Acesso em: 19 abr. 2020. NOVAIS, Bruno do Vale. Políticas culturais dos países do Brics no período de 2003 a 2018: uma análise comparativa. Políticas Culturais em Revista, Salvador, v. 12, n. 1, 2019. Disponível em: https://periodicos.ufba.br/index.php/pculturais/article/ view/29646. Acesso em: 19 abr. 2020. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS PARA A EDUCAÇÃO, A CIÊNCIA E A CULTURA (UNESCO). Convenção sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais: texto oficial ratificado pelo Brasil por meio do Decreto Legislativo 485/2006. Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/ pf0000150224. Acesso em: 19 abr. 2020. REIS, Paula Félix dos. Políticas culturais do governo Lula: análise do sistema e do plano nacional de cultura. 2008. 140 f. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Faculdade de Comunicação, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2008. Disponível em: https://repositorio.ufba.br/ri/handle/ri/10812. Acesso em: 19 abr. 2020. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Plano Nacional de Cultura em debate. Políticas


PLANOS DE CULTURA

Bruno do Vale Novais

Culturais em Revista, Salvador, v. 2, n. 1, 2008. Disponível em: https://repositorio. ufba.br/ri/bitstream/ri/1234/1/2449.pdf. Acesso em: 19 abr. 2020. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições. Revista Galáxia, São Paulo, n. 13, p. 101-113, jun. 2007. Disponível em: https://www.redalyc. org/pdf/3996/399641239008.pdf. Acesso em: 19 abr. 2020. SMITS, Yolanda. 2013-2014 Preparatory action ‘Culture in the EU’s external relations’: country report Russia. 2014. Disponível em: https://ec.europa.eu/assets/eac/ culture/policy/international-cooperation/documents/country-reports/russia_ en.pdf. Acesso em: 19 abr. 2020. XIANG, Yong. Princípios da estratégia nacional de cultura e desenvolvimento das indústrias culturais na China: 2011-2015. Jornal Internacional de Cultura e Indústrias Criativas, Taiwan, v. 1, set. 2013. Disponível em: https://www.springer.com/gp/ book/9783642381560.

Notas 1

Texto disponível em: https://portalseer.ufba.br/index.php/pculturais/article/ view/29646/19444. Acesso em: 13 jan. 2020.

2

Talvez no caso da África do Sul exista um documento cuja leitura possa ser feita como um plano nacional de cultura. Esse instrumento é resultado da estruturação das políticas públicas sul-africanas a partir de 1994, com o advento do regime democrático. Assim, foram construídos documentos oficiais, nomeados por White Papers. No campo da cultura, o primeiro documento é de 1996, e sua terceira revisão ocorreu em 2017, alinhada às ações do National Development Plan, disponível em: https://www.gov.za/sites/default/files/gcis_ document/201706/revised-3rd-draft-rwp-ach-february-2017.pdf. Acesso em: 19 abr. 2020.

3

As metas do Plano Nacional de Cultura do Brasil estão disponíveis em: http:// www.ipea.gov.br/participacao/images/pdfs/conferencias/IIICNCultura/metasdo-plano-nacional-de-cultura.pdf. Acesso em: 19 abr. 2020.

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Anexo QUADRO 1 – ELEMENTOS DE ANÁLISE COMPARATIVA DOS DOCUMENTOS DE PLANEJAMENTO DE CULTURA DOS PAÍSES DO BRICS NO INTERREGNO 2010-2020

TÓPICOS

BRASIL

RÚSSIA

Modo de institucionalização

Instituído pela Lei nº 12.343/2010

Anunciado pelo presidente Vladimir Putin para a Assembleia Federal no dia 12 de dezembro de 2012

Periodicidade/duração

10 anos

6 anos

Forma de envolvimento da sociedade civil com a elaboração do plano

Fóruns, seminários e consultas públicas

Não houve

Direcionadores/públicos do plano

Poder público e sociedade civil

Cidadãos russos no exterior

Eixos estratégicos do plano

1. Cultura como expressão simbólica; 2. cultura como direito de cidadania; e 3. cultura como potencial para o desenvolvimento econômico

1. Construção de imagem; 2. divulgação para a comunidade da diáspora russa; 3. divulgação do idioma russo; 4. intercâmbio internacional acadêmico e estudantil; 5) esquema de “anos” bilaterais ou “estações” de cultura com países estrangeiros; e 6) preservação do patrimônio cultural

Objetivos principais do plano

1. Orientar o poder público na formulação de políticas culturais; e 2. orientar o desenvolvimento de programas, projetos e ações culturais que garantam a valorização, o reconhecimento, a promoção e a preservação da diversidade cultural existente no Brasil

Promover a cultura e a língua russas em suas relações internacionais

Metas do plano

53 metas

Não especificadas

Há diálogo do plano com a realidade e demandas do setor cultural do país

Sim

Sim

Há diálogo do plano com as políticas públicas dos demais setores estratégicos

Sim

Sim

Fonte: elaborado pelo autor.


Bruno do Vale Novais

PLANOS DE CULTURA

ÍNDIA

CHINA

ÁFRICA DO SUL

Desenvolvido pelo Ministério da Cultura da Índia

Desenvolvido pelo Ministério da Cultura da China

Desenvolvido pelo Departamento de Artes e Cultura da África do Sul

2 anos

5 anos

5 anos

Não informado

Não informado

Não informado

Artistas individuais, grupos de artistas, organizações, institutos

Agentes das indústrias culturais

Artistas, comunidades marginalizadas, áreas rurais, jovens, mulheres, pessoas com deficiência

1. Patrimônio cultural tangível; 2. patrimônio cultural imaterial; e 3. patrimônio cognitivo

Indústrias culturais

1. Promoção e desenvolvimento das artes e cultura; 2. promoção e preservação do patrimônio

Preservação e conservação do patrimônio cultural tradicional indiano e promoção da arte e cultura tangíveis e intangíveis indianas

Desenvolver as indústrias culturais chinesas

1. Promover e desenvolver as artes e cultura sul-africanas; e 2. promover e preservar o patrimônio sul-africano

Não especificadas

10 metas

3 metas

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

Sim

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PLANOS DE CULTURA

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4.

A ESCUTA DO PODER PÚBLICO

237.

ENTREVISTA COM MARIO FRIAS, EDUARDO GOMES E JANDIRA FEGHALI Claudinéli Moreira Ramos


A ESCUTA DO PODER PÚBLICO

PLANO NACIONAL DE CULTURA: ANÁLISES E PERSPECTIVAS

Entrevistas: deputada federal Jandira Feghali (Câmara dos Deputados do Brasil), senador Eduardo Gomes (Senado Federal) e secretário especial da Cultura Mario Frias (Ministério do Turismo)

A

s entrevistas a seguir apresentam mais um elemento decisivo para a construção do Plano Nacional de Cultura (PNC): a escuta do poder público institucionalizado. Inicialmente, a deputada federal Jandira Feghali (PCdoB/RJ) e o senador Eduardo Gomes (MDB/TO), na condição de representantes governamentais em exercício no Poder Legislativo, apresentam suas visões e análises do PNC 2010-2020 e as expectativas para um novo plano nacional. Em seguida, investido da autoridade para o tratamento desse tema pelo Poder Executivo, o secretário especial da Cultura do Ministério do Turismo, Mario Frias, traz seu entendimento do assunto e indica os próximos passos previstos pelo governo federal. Eduardo Gomes e Mario Frias apresentaram suas respostas às nossas questões por escrito, em 5 de outubro e 5 de novembro de 2020, respectivamente, e Jandira Feghali abordou a pauta em uma entrevista a distância, por videochamada, em 8 de outubro de 2020.

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Jandira Feghali | ilustração: André Toma


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Os parlamentares Jandira Feghali (PCdoB/RJ) e Eduardo Gomes (MDB/TO) falam sobre o Plano Nacional de Cultura gestora. Fizemos a 1a Conferência Municipal PROCESSO DE CONSTRUÇÃO E IMPLEMEN- de Cultura do Rio, com muitas pré-conferênTAÇÃO DO PLANO NACIONAL DE CULTURA? cias por linguagens, por bairros... Assim, reuQUAL É A SUA OPINIÃO A RESPEITO? O BRASIL nimos um conjunto de proposições e linhas PRECISA DELE? de trabalho nas dimensões social, simbólica, Jandira Feghali: A construção do Plano econômica e cidadã, e, a partir do eixo CulNacional de Cultura foi um processo muito tura: Direito à Cidade, apresentamos nossa importante, que partiu das cidades e da di- contribuição para o PNC. versidade brasileira, com diretrizes muito É muito importante ter um plano nadiversas. O ex-ministro Gilcionalmente construído e coordenado, para permitir berto Gil fez uma revolução É muito importante ter conceitual na gestão do Mi- um plano nacionalmente o controle de realização das construído e coordenado, nistério da Cultura, e isso metas nos estados e mupossibilitou que as cidades para permitir o controle de nicípios, com participação realização das metas nos se pronunciassem. orçamentária nacional e exeQuando o plano pre- estados e municípios, com cução pelos entes federados. visto na Constituição foi participação orçamentária regulamentado, eu estava nacional e execução pelos fora do Congresso, à frente entes federados da Secretaria da Cultura do município do Rio de Janeiro. O meu envolvimento no processo se deu na condição de O/A SENHOR/A CONHECE EM DETALHES O

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Eduardo Gomes | ilustração: André Toma


A ESCUTA DO PODER PÚBLICO

Eduardo Gomes: A previsão, constante O PLANO NACIONAL DE CULTURA É UMA do parágrafo 3o do artigo 215 da ConstituiPREVISÃO CONSTITUCIONAL, ASSIM COMO ção, de estabelecimento do Plano Nacional O SISTEMA NACIONAL DE CULTURA (SNC). HÁ de Cultura por meio de lei, com base nos ALGUMA CONSEQUÊNCIA OU INICIATIVA NO cinco princípios igualmente inseridos pela ÂMBITO DO CONGRESSO CASO O PODER EXEEmenda Constitucional no 48, de 2005, marCUTIVO DEIXE DE ELABORAR O PRIMEIRO E cou um importante passo para que a atuação IMPLEMENTAR O SEGUNDO? do Estado na área cultural pudesse se tornar JF: É muito difícil fazer uma análise homais abrangente e profunda. Por sua vez, a mogênea do PNC, porque cada cidade e cada elaboração do primeiro Plano Nacional de estado realizou de um jeito, e o Brasil veio Cultura, instituído pela Lei no retrocedendo no processo. 12.343, de 2 de dezembro de Não há dúvida, a meu Desde 2015, temos um brutal 2010, resultou de um amplo ver, de que o país retrocesso no plano nacional, processo de discussão com não deve retroceder que ficou ainda maior de um integrantes da sociedade ci- em relação a essa ano e meio para cá, porque há vil, por meio de seminários, significativa conquista uma não gestão da cultura. fóruns e consultas públicas. no âmbito da cultura Uma avaliação coordenada Isso representou a consagraseria bem importante para a ção do importante princípio de participação elaboração do novo plano, e o que vemos é o da sociedade no âmbito do planejamento das encaminhamento, pelo Executivo federal, de diretrizes, estratégias e ações adotadas pelo apenas prorrogar, sem nenhuma análise do Estado na área cultural. que foi feito nos dez anos. É a expressão nítida Não há dúvida, a meu ver, de que o país não da incapacidade política e técnica desta gestão deve retroceder em relação a essa significati- de pelo menos dizer que metas foram ou não va conquista no âmbito da cultura. cumpridas. Eles não conseguem se relacionar com as secretarias, com os fóruns, não estabelecem diálogo, para ao menos conseguir dizer, diante das metas estabelecidas, onde a gente cumpriu 20%, 30%, ou se não cumpriu ou que

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determinados pontos podem ser melhorados. A prorrogação deveria incluir um cronograma de análise diante dos resultados analisados e da pandemia, mas isso não existe. É apenas uma prorrogação para não dizer que não fez nada. Por isso, a mobilização do setor cultural, da sociedade e do Parlamento é muito importante, acompanhando o que conseguimos em 2020 no processo da Lei Aldir Blanc [LAB]. Acredito que 2021 será um ano de construir a perenização de um novo critério para a cultura que nos permita trabalhar e não ficar conjunturalmente buscando saídas a cada situação adversa. Será o ano para construir uma perenização do sistema, com descentralização e orçamento para a cultura, e para trabalhar os critérios para as novas metas do PNC. Um dos legados da Lei Aldir Blanc foi justamente a Conferência Nacional Popular de Cultura, que já está acontecendo e trará muitos dados que podem compor uma proposta para o Plano Nacional de Cultura, a partir das cidades.

EG: Entendo que o Congresso Nacional deva assumir seu papel de defender essas duas importantes conquistas, que correspondem a mandamentos constitucionais. Se o Poder Executivo se mostrar omisso em relação a ambas as previsões constitucionais – o que acredito que não vá ocorrer devido à responsabilidade do governo com esse tema –, o Parlamento conta com algumas opções para interpelá-lo sobre tal omissão. Ademais, ele pode assumir a iniciativa de propor e aprovar um novo Plano Nacional de Cultura, para viger nos próximos dez anos, assim como a de regulamentar, por meio de lei, o Sistema Nacional de Cultura. Ocorre que as proposições, com esses ou quaisquer outros objetivos, se submetem a diversas contingências, sendo fundamental garantir a prioridade e a celeridade em sua tramitação para que venhamos a ter sucesso em sua apreciação.


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HÁ ALGUMA PROPOSTA DE APRESENTAÇÃO DE UM NOVO PROJETO DE LEI PARA REGULAMENTAR O SNC, JÁ QUE O QUE ESTAVA EM DISCUSSÃO HAVIA ANOS ACABOU SENDO ARQUIVADO?

JF: Eu já estava de volta ao Parlamento quando aprovamos a emenda para o SNC no artigo 216-A da Constituição, em 2012. Atualmente existe o Projeto de Lei no 3.319/2020, do senador Jader Barbalho, para essa regulamentação. Mas considero que o Sistema Nacional de Cultura já vem sendo implementado e está em funcionamento, pois a adesão de muitos estados e municípios já ocorreu, segundo o critério do “CPF”: conselho, plano e fundo. Certamente não é um funcionamento pleno no país, porque desde 2015 tem havido um grau de retrocesso da gestão nacional que dificulta a implantação desse sistema historicamente recente no Brasil todo, continental como ele é. Por isso, é necessário que a gente retome a implementação do SNC. O projeto de regulamentação pode ajudar, mas o que já existe poderia estar mais avançado se tivéssemos uma gestão nacional que funcionasse plenamente para fazer acontecer. Precisamos do sistema com descentralização de recursos e políticas, com construção

coletiva, com conselhos funcionando, e que tenha um trabalho de controle social e de fiscalização coordenado pela gestão nacional. Hoje isso não existe no Brasil. Vale dizer que a questão do controle social na cultura está hoje em um contexto de eliminação do controle social no Estado brasileiro. O governo federal simplesmente desmontou o conjunto dos conselhos. O controle social hoje não existe mais, e onde ainda existe conselho eles tiraram a sociedade civil, como no Conselho Nacional de Meio Ambiente. O controle social externo deixou de existir no governo Bolsonaro. Todos os conselhos foram desmontados, e o Conselho de Cultura nem sequer consegue se reunir, nem o Conselho Nacional dos Pontos de Cultura, que é um conselho à parte. Sou autora da Lei Cultura Viva também, e esse conselho deveria se reunir para estabelecer as políticas para os Pontos de Cultura, Pontos e Pontões, Redes, Teias... Isso deixou de existir. Precisamos rever tudo isso.


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EG: No âmbito do Senado Federal, foi apresentado pelo senador Jader Barbalho o Projeto de Lei (PL) no 3.139, de 2020, que toma como ponto de partida o PL no 4.271, de 2016, do deputado João Derly, introduzindo, contudo, algumas inovações. Na Câmara dos Deputados, por sua vez, já tramitam dois projetos que reproduzem os termos do PL no 4.271, de 2016: PL no 1.801, de 2019, e PL no 1.971, de 2019. O PL no 3.139 foi apresentado em 4 de junho de 2020, não tendo sido distribuído até agora a nenhuma comissão. Isso pode ser explicado, ao menos em parte, pelo período de excepcionalidade por que passa o Congresso Nacional em razão da pandemia e das prioridades que esta passou a “pautar”. Creio que o advento da Lei Aldir Blanc chamou a atenção de todos para a necessidade de regulamentar e estruturar o Sistema Nacional de Cultura com mecanismos de repasse fundo a fundo. Caso isso já existisse quando sofremos com a pandemia de covid, a Lei Aldir Blanc teria tido uma implementação mais rápida e simplificada, com os repasses a estados e municípios utilizando a estrutura do SNC.

O CENÁRIO DA PANDEMIA DESCORTINOU UMA SITUAÇÃO CALAMITOSA EM TODO O PAÍS, E A ÁREA CULTURAL FOI ESPECIALMENTE ATINGIDA, CHEGANDO A PONTO DE DEMANDAR UMA LEI EMERGENCIAL ESPECÍFICA PARA QUE TRABALHADORES E INSTITUIÇÕES DO SETOR PUDESSEM SER SOCORRIDOS. QUAL É A SUA VISÃO DESSE PROCESSO E COMO O CONGRESSO PODE ATUAR PARA QUE SITUAÇÕES ASSIM NÃO SEJAM NOVAMENTE NECESSÁRIAS?

JF: No período da pandemia, os conselhos deveriam estar se reunindo virtualmente, da mesma forma como Regina Duarte, então secretária, e [o atual secretário] Mario Frias deveriam ter se reunido com os secretários de Cultura do país, com os fóruns. Nada disso aconteceu. Eu participei das quatro reuniões de regulamentação da Lei Aldir Blanc no Rio, no Ministério do Turismo, e o secretário não foi. Fizemos três audiências públicas na Câmara tratando da cultura e da Cinemateca, e o secretário também não foi. Não existe diálogo entre o secretário, o setor cultural e o Parlamento. Isso dificulta muito. Apesar disso, a construção da Lei Aldir Blanc foi um dos processos mais bonitos que já vivi. Da mesma maneira que fiz quando relatei a Lei Maria da Penha, eu circulei pelo


A ESCUTA DO PODER PÚBLICO

Brasil. Na Lei Maria da Penha, presencialmente, e agora pelas estradas digitais. Assumi a relatoria no dia 7 de maio, e no dia 26 de maio nós votamos na Câmara. Em 19 dias, nós falamos com o Brasil inteiro, com o Brasil profundo, em todos os estados, com todas as linguagens, com todas as regiões e com os gestores também, de municípios e estados. A lei foi construída a partir desse debate, tanto que o texto votado não foi nenhuma das leis proponentes originais. Foram 6 projetos de lei, com 34 autores, de 11 partidos diferentes. Depois de todas as contribuições, acabei apresentando um texto de concepção diferente de todos os seis projetos, porque, no meio do caminho, vimos a necessidade de basear a lei em alguns parâmetros: o primeiro deles, da descentralização, fortalecendo o SNC; o segundo, da universalidade, reconhecendo nela a diversidade cultural brasileira, razão pela qual a descentralização é fundamental; e o terceiro, da desburocratização. A aplicação da lei deveria ser algo simples, identificado com a realidade de cada cidade e de cada estado. Ela foi construída assim, e consegui dar um valor, ou seja, um impacto financeiro conhecido e fontes conhecidas também, possíveis. Com isso, nós construímos uma pressão de fora para dentro

e uma boa negociação dentro do Parlamento, com todos os partidos. Eu falava com 20 líderes por dia. Absorvi emendas e contribuições, até que acabamos trazendo o governo para o acordo e a lei foi sancionada com um único veto, que foi o de prazo de 15 dias para aplicar. Não houve veto de conteúdo na lei. No Senado, ela foi votada uma semana depois, também sem alterações. Houve só uma emenda de redação. Foi sancionada no último dia do prazo, como é praxe neste governo, e dez dias depois saiu a medida provisória do crédito de 3 bilhões de reais, que, para a cultura, é pouco, mas historicamente foi o maior valor aportado em uma única vez em um prazo tão curto. A regulamentação demorou um pouco mais. Foram quatro reuniões; participei de todas. A regulamentação burocratizou o que a lei não burocratizou, e estamos tendo dificuldade agora em alguns estados e municípios, pelos critérios que cada um acabou utilizando. Tenho participado de reunião em tudo que é lugar para discutir a aplicação da lei, que está em plena fase de aplicação. Até este momento [outubro de 2020], 2.730 municípios já aderiram. É a maior descentralização de recursos que já existiu na cultura. A Lei Cultura Viva chegou a 1.100 municípios.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Ainda temos tempo para mais adesões e, nos em razão da pandemia. Então existe muita municípios que não aderirem, o dinheiro se- reclamação, mas é a crise da existência do guirá para o estado. Então o recurso todo será dinheiro e da existência da lei. A não exisdescentralizado. tência seria muito pior. Qual é o legado disso? Um processo de Temos tentado ajudar nessas crises. O mobilização muito inovador, que movimen- fórum dos secretários estaduais está atuando tou o Brasil inteiro. Um grau de organização e, em muitos lugares, tem conseguido simplisuperior, de muita gente se organizando em ficar processos, fazer busca ativa em cidades conselhos e comitês, de exclusão digital e até com muitos municí- Qual é o legado disso? Um processo colocar gente de barco pios aderindo ao SNC de mobilização muito inovador, para buscar povos ine criando suas formas que movimentou o Brasil inteiro. dígenas e quilombolas de organização. Muito Um grau de organização superior, para entrarem nos edidiálogo que não existia de muita gente se organizando em tais e nos auxílios. É um entre gestores, conse- conselhos e comitês, com muitos processo muito bonito, lhos e a sociedade civil municípios aderindo ao SNC e um legado muito intepassou a acontecer. criando suas formas de organização. ressante que a Lei Aldir Mas a gente ainda Muito diálogo que não existia entre Blanc deixa. encontra situações de gestores, conselhos e a sociedade Penso que esse lepouco diálogo, como civil passou a acontecer gado da lei nos permite no estado de São Paubuscar uma perenizalo, que recebeu o maior volume de recursos ção do critério de descentralização, reunindo e teve dificuldade de diálogo entre o secre- os projetos que já existem de constitucionatário estadual e os secretários municipais, lizar o orçamento. Estamos agora tentando e também com a sociedade civil. São Paulo aprovar a ampliação da aplicação dos readotou um edital elitista, excludente de vá- cursos e a prestação de contas para 2021. rias linguagens, com uma burocratização Muitas coisas acontecerão em 2021 ainda excessiva, pedindo certidões negativas, sem a partir da lei, como os projetos que entranenhuma flexibilização das procuradorias ram nos editais e que acontecerão em 2021,


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as contrapartidas... Além disso, a LAB teve como legado a criação de escola de políticas culturais, de página da lei emergencial, de fóruns diversos em escala nacional, de Instagram e uma série de formas de contato e interatividade que a lei possibilitou. E agora a Conferência Nacional Popular de Cultura. Tudo isso foi incrível, e manter essa mobilização pode nos possibilitar a mudança do plano, a regulamentação do sistema e a perenização dos critérios de descentralização do orçamento.

EG: Não há dúvida de que a área cultural foi uma das mais duramente atingidas pela pandemia, ao lado de outras como as de turismo e esportes. Compreendo que a chamada Lei Aldir Blanc demonstrou a preocupação dos parlamentares de ambas as casas do Congresso Nacional com as dificuldades vividas pelo setor cultural, assim como sua capacidade de se sobrepor às divergências partidárias e ideológicas para aprovar um conjunto de medidas de efeitos práticos e emergenciais, que ajudam a superar parcialmente as referidas dificuldades. Entendo que os ensinamentos oriundos desse processo vão tornar o Congresso Nacional, assim como toda a sociedade brasileira, mais preparado para o enfrentamento de uma eventual e indesejável nova pandemia, com consequências, por certo, para a área cultural. Cabe aqui ressaltar que o setor cultural se mostrou uma ferramenta essencial para a população atravessar os períodos de isolamento físico, e muitas vezes social, exigidos pela pandemia. Afinal, o que seria das pessoas sem os filmes, as séries, as apresentações musicais de seus artistas nacionais e locais favoritos transmitidas pelos serviços de streaming, além de iniciativas como

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música na varanda dos prédios ou em trios elétricos? A criatividade, a paixão e a solidariedade dos agentes culturais foram decisivas nesses momentos, levando inclusive os canais de TV pagos a liberar filmes e canais de entretenimento. Ainda mais importante, a meu ver, é a percepção de que um sistema cultural consistente e integrado, contando com um suporte de mecanismos legais, como o PNC e o SNC, que o estimulem e que abranjam as instâncias públicas e privadas de diversos âmbitos (ou seja, instituições, empresas, criadores e produtores da cultura em geral, nas diversas áreas geográficas do país), permite enfrentar as crises de modo bem mais eficaz. Cada uma dessas novas possíveis situações futuras de crise vai demandar, contudo, uma avaliação e soluções próprias, adequadas às suas especificidades e não de todo previsíveis.

COMO O/A SENHOR/A VÊ O TEMA DA CENSURA ATUALMENTE NO BRASIL? QUAL É O PAPEL DO CONGRESSO EM RELAÇÃO A ESSA PAUTA?

JF: Hoje estamos vivendo sob um governo que, na minha opinião, é a face mais obscura do capitalismo contemporâneo. Um governo que concentra recursos e poder no capital financeiro, que sequestra direitos, destrói o papel do Estado e tem características de restrições democráticas profundas e fascistizantes. O governo Bolsonaro, como espelho de algumas outras forças pelo mundo, trabalha com a pulsão pelo ódio, pela violência, e vê a cultura e a educação como a contradita da sua suposta verdade. Então, cultura e educação passam a ser inimigos, numa visão de negação da ciência, da liberdade crítica, da liberdade de pensamento, da liberdade de ensinar e de aprender, da liberdade de amar. Negam as identidades, a liberdade religiosa, a liberdade de fé. É um processo extremamente crítico e, na cultura, essa censura já se expressou – na negação de recursos para filmes de conteúdo LGBTQIA+, na restrição de publicidade. Eles atuam com a censura e com a inexistência da contradita. E o que podemos fazer? Primeiro, a denúncia. Segundo, onde cabem instrumentos legislativos, estamos atuando. Já fizemos


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vários projetos de decretos legislativos contra decretos, portarias e medidas, além de ação judicial, por meio de representações no Ministério Público e até no Supremo Tribunal Federal, em medidas contra censura, por exemplo, na publicidade, na questão da Ancine [Agência Nacional do Cinema] e na questão da Fundação Palmares. EG: Compreendo que a Carta Magna consagrou os princípios da inadmissibilidade da censura e da liberdade de expressão, ao mesmo tempo que estabeleceu a classificação por faixas etárias e alguns limites para o exercício dessa liberdade (como o que se refere à prática do racismo). Não cabe ao Congresso Nacional instituir qualquer lei que afronte essas disposições constitucionais.

E QUANTO AO TEMA DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO NO BRASIL HOJE? DE QUE MANEIRA O CONGRESSO ESTÁ ATUANDO A RESPEITO? QUAIS SÃO AS PRIORIDADES?

JF: A liberdade de expressão está cerceada, porque o governo federal fala em liberdade de expressão para ser a liberdade de expressão da verdade deles. É um momento de “pós-verdade”, em que é atacado tudo o que fala contra aquilo que eles consideram verdade, que, na realidade, é a mentira propagada e a divulgação de fake news. Como médica, eu fiquei muito assustada, ao ver, por exemplo, essa indução de comportamentos erráticos numa pandemia, arriscando a vida das pessoas. A propaganda de falsas verdades ou de inverdades arrisca a vida das pessoas! E eles defendem isso em nome de uma liberdade de expressão que é a impossibilidade da contradita, da contenção. É a antidemocracia. Contra isso temos atuado em todos os fronts, na denúncia política, na pressão, nas medidas legislativas e na Justiça. Estamos empenhados numa árdua luta de defesa de direitos.

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EG: A liberdade de expressão é um dos fundamentos da democracia e de uma cultura autêntica e criadora. Deve o Congresso Nacional, a meu ver, fazer sua parte no sentido da construção de uma cultura livre e solidária, na qual seja respeitada a diversidade de opções religiosas, culturais e comportamentais, incluídas as relativas a sexo e gênero, desde que a prática dessas opções não afronte os direitos alheios e respeite as leis do país. O Legislativo deve, ademais, zelar pelo cumprimento da legislação que protege as crianças e as minorias e eventualmente aperfeiçoá-la.

Mario Frias fala sobre o Plano Nacional de Cultura A ELABORAÇÃO DO PLANO NACIONAL DE CULTURA MOBILIZOU MILHARES DE PESSOAS AO LONGO DE DEZ ANOS, E SUA IMPLEMENTAÇÃO DEMANDOU MUITO DIÁLOGO E ARTICULAÇÃO. O SENHOR ACOMPANHOU ESSE PROCESSO OU TEVE ALGUMA INTERAÇÃO COM ELE?

Mario Frias: Não, nesse período estava concentrado nas minhas atividades artísticas e de produtor. Apesar de não ter participado da construção do plano vigente, tenho convicção da importância de um plano nacional para orientar a formulação de políticas culturais em âmbito nacional.


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Mario Frias | ilustração: André Toma

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executadas. Entendo que em uma próxima edição é importante definir prioridade, ter PNC? ELE MAIS ENGESSA OU MAIS EMPRESTA uma visão pragmática dos desafios que os DINAMISMO AO SETOR? gestores públicos no governo federal, estaMF: O PNC foi produzido com base em duais, no Distrito Federal e nos municípios amplos debates e deliberações envolvendo enfrentam no seu dia a dia e propor metas o antigo MinC e parte da sociedade civil, há factíveis de ser alcançadas e, principalmenmais de dez anos, em oute, mensuradas. tro contexto político. O PNC vigente foi elaborado Um plano focado, O primeiro Plano Na- abarcando 53 metas, a maioria contemplando as várias cional de Cultura foi em delas genérica, imensurável e formas de pensamento 1975, o atual é o segundo; inalcançável, o que dificulta o sobre cultura e economia podemos dizer que é uma entendimento sobre as ações criativa, sem dúvidas, experiência nova e sujeita que devem ser realmente pactua as prioridades que a uma série de falhas de executadas. Em uma próxima a sociedade elegeu e que os implementação, equívocos edição é importante definir gestores públicos deverão na amplitude de conceitos prioridade, ter uma visão se esforçar para viabilizar. e intercorrências, difíceis pragmática dos desafios que de prever dado o seu quase os gestores públicos enfrentam ineditismo. no seu dia a dia e propor metas Infelizmente, o PNC factíveis de ser alcançadas e, vigente foi elaborado principalmente, mensuradas abarcando 53 metas, a maioria delas genérica, imensurável e inalcançável, o que dificulta o entendimento sobre as ações que devem ser realmente QUAL É A SUA OPINIÃO A RESPEITO DO PNC

2010-2020? O PAÍS PRECISA OU NÃO DE UM


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ESTÁ EM CURSO NA SECRETARIA ESPECIAL DA CULTURA (SECULT) ALGUMA AÇÃO NO SENTIDO DE AVALIAR O PNC 2010-2020? QUAL É O PRINCIPAL OBJETIVO DESSA AVALIAÇÃO?

MF: A Secretaria Especial da Cultura é a responsável por monitorar e avaliar as metas do Plano Nacional de Cultura, devendo periodicamente conferir se o plano está sendo cumprido de forma eficaz e de acordo com suas diretrizes. O monitoramento de políticas públicas tem por objetivo subsidiar a avaliação de programas governamentais, buscando assegurar o cumprimento dos seus objetivos e metas com eficiência e eficácia. Tanto o monitoramento quanto a avaliação são incumbências de gestão imprescindíveis para a consolidação do planejamento dos programas e para o aumento da efetividade das ações. No momento, o nosso foco está na construção do próximo Plano Nacional de Cultura. Para isso, levaremos em

consideração todo o histórico das 53 metas e seus indicadores. Ressalto que foi publicada, em 2018, a Análise e Avaliação Qualitativa das Metas e o Monitoramento do Plano Nacional de Cultura, para embasar a construção do próximo PNC. Anualmente também é realizado um relatório de monitoramento das 53 metas do PNC (o ano de 2019 está em construção). Com isso, utilizaremos todos esses materiais já consolidados para embasar a construção do normativo. Além disso, destaco que, para balizar a construção das metas do próximo PNC, é fundamental que tenhamos um panorama do cumprimento do PNC nesses dez anos. A equipe também está trabalhando para que a avaliação do decênio 2010-2020 se concretize no próximo ano.

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NESSE MESMO CONTEXTO, HÁ ALGUMA DE-

DE QUE MODO OS AGENTES DO SETOR E A

CISÃO OU ENCAMINHAMENTO COM VISTAS

POPULAÇÃO EM GERAL VÃO TOMAR PARTE

A ELABORAR O PNC 2020-2030?

NESSE PROJETO? QUAL É A ESTRATÉGIA PARA

MF: Sim, atualmente toda a nossa equipe está concentrada para elaborar a metodologia de construção do próximo plano. É uma orientação do governo federal que os projetos sejam construídos com a máxima eficiência possível. Por isso, contaremos com suporte de todos os órgãos do governo federal. Em breve, divulgaremos em detalhes como se dará o fluxo desse processo. Queremos garantir tanto a existência de um instrumento legal orientador válido quanto a plena participação do Estado e da sociedade no desenvolvimento qualificado das etapas de elaboração e aprovação de um novo normativo orientador das políticas culturais.

MOBILIZÁ-LOS?

MF: Lembro que a construção de um plano perpassa por algumas instâncias de participação, entre elas o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) e a Conferência Nacional de Cultura (CNC). Essas instâncias são as principais para que os agentes do setor e a população possam participar e opinar. Também estamos avaliando outras formas de permitir um acesso mais amplo a todos os brasileiros. Além disso, segundo o pacto federativo, os municípios e estados brasileiros participantes do Sistema Nacional de Cultura devem orientar a gestão de cultura local à luz das diretrizes estabelecidas no PNC, conforme preconiza o parágrafo 1o do artigo 216-A da Constituição Federal. Nesse sentido, será necessária a participação deles no processo de construção do plano.


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HÁ PREVISÃO CONSTITUCIONAL PARA O SISTEMA NACIONAL DE CULTURA, MAS TODOS SABEMOS QUE SÃO NECESSÁRIOS ESFORÇOS EFETIVOS PARA SUA IMPLEMENTAÇÃO E CONSOLIDAÇÃO. QUE ATENÇÃO VEM SENDO DISPENSADA A ESSE ASSUNTO? COMO O SENHOR, NA CONDIÇÃO DE SECRETÁRIO ESPECIAL DA CULTURA, PRETENDE ESTIMULAR ESSE PROCESSO E, POR FIM, QUAL É A PERSPECTIVA OU PERSPECTIVAS, NO CURTO PRAZO, EM TERMOS DE TEMPO E DEDICAÇÃO PARA AVANÇAR NESSES ESFORÇOS?

MF: Sabemos que, desde 2012, quando o Sistema Nacional de Cultura foi integrado à Constituição Federal (artigo 216-A) e começou a ser executado, houve muitos esforços para que os estados e municípios fizessem a sua adesão ao SNC e iniciassem o processo de institucionalizar seus sistemas de cultura locais. Por muito tempo, esse foi o foco das ações do SNC. Contudo, estamos agora em uma nova fase do SNC, que consiste na institucionalização, que trata da regulamentação das leis do sistema de cultura e de seus componentes (como plano, fundo, conselho de política cultural), bem como na implementação desses elementos, ou seja, que os entes federados coloquem em prática a execução desses normativos.

Tudo isso tem o intuito de que as políticas públicas de cultura sejam geridas e executadas de forma mais clara, transparente e eficiente. Contamos com o Departamento do Sistema Nacional de Cultura, que lida especificamente com essas questões e tem o foco primordial em auxiliar os entes na institucionalização e implementação da gestão pública de cultura. Por meio do VerSNC (http://ver. snc.cultura.gov.br/), é possível acompanhar a institucionalização e implementação dos sistemas de cultura dos entes federados. Ainda precisamos de uma lei que regulamente o funcionamento do SNC, principalmente no que se refere ao repasse de recursos para os entes federados integrantes. Por causa disso, estamos em articulação com outros órgãos para que isso aconteça o mais breve possível. É evidente que a consolidação do Sistema Nacional de Cultura nas esferas federal, estaduais, municipais e distrital é uma tarefa complexa e de longo prazo.

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FINANCIAMENTO É SEMPRE UM TEMA QUE GERA PREOCUPAÇÃO, SOBRETUDO EM MEIO A UMA CRISE COMO ESTA CAUSADA PELA PANDEMIA, QUE SITUOU A NOÇÃO DE NECESSÁRIA SUSTENTABILIDADE EM PATAMARES MAIS COMPLEXOS E URGENTES. COMO SE DARÁ O FINANCIAMENTO DA CULTURA NO PAÍS A PARTIR DE 2021? HÁ DISPOSIÇÃO PARA INCREMENTAR O FUNDO NACIONAL DA CULTURA? ESTADOS E MUNICÍPIOS TERÃO REPASSES – PODERÃO CONTAR COM RECURSOS – DO FUNDO? HÁ INTENÇÃO DE UTILIZAR A EXPERIÊNCIA DE REPASSES DA LEI ALDIR BLANC PARA APERFEIÇOAR A SISTEMÁTICA DE FINANCIAMENTO À CULTURA NO PAÍS? SE SIM, COMO? SE NÃO, POR QUÊ?

MF: Por sua capilaridade, o Sistema Nacional de Cultura é o ambiente mais adequado para tratar o problema da concentração regional dos recursos que caracteriza o financiamento à cultura no Brasil. A implementação dos sistemas estaduais, distrital e municipais de cultura, somada ao fortalecimento do Fundo Nacional da Cultura, colocará a política cultural do Brasil na rota para alcançar um dos objetivos fundamentais da Constituição Brasileira: reduzir as desigualdades sociais e regionais (inciso III do artigo 3o).

A ausência da regulamentação do SNC incide na desarticulação entre os seus subsistemas já existentes – sistemas municipais, estaduais e distrital de cultura –, fato esse que, por exemplo, inviabiliza os entes federados de receber recursos financeiros por meio do repasse fundo a fundo de cultura, o que, caso fosse garantido, teria capacidade de fomentar o desenvolvimento da cultura no âmbito local. Com a publicação da Lei no 14.017, de 29 de junho de 2020 (Lei Aldir Blanc), pudemos ter uma experiência preliminar de como seria a transferência de recursos entre fundos de cultura. Notadamente, ela servirá de base para podermos avaliar a melhor forma de implementar, no futuro, esse tipo de transferência. Destaco que é necessário um projeto de lei para alterar a natureza do Fundo Nacional da Cultura, transformando-o em um fundo especial de natureza contábil. A mudança se faz necessária para possibilitar a realização de descentralizações de créditos para os entes federados. Nossa equipe está atuando no sentido de construir um PL e arcabouço legal para a instituição do Fundo a Fundo. Temos a intenção de articular a criação ou revisão das legislações com vistas à implementação de um PNC factível, que


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viabilize as descentralizações de recursos Secult. Diferentemente dos municípios, os públicos de forma regular e automática na fundos de cultura dos estados estão vinculados área da cultura. ao SNC. Dos 27 entes federados com fundo, 21 Segundo levantamento do IBGE (2018), apresentam o fundo dentro dos moldes previso Brasil possui 1.111 municípios com fundo tos no SNC, ou seja, 77% do total. de cultura ou fundos similares com outras O financiamento, muito mais do que áreas de governo, como turismo, esporte e gerar preocupação, gera emprego, renda e lazer. Esse total repreoportunidades para uma senta 19% do total de É necessário um projeto de grande cadeia produtimunicípios do Brasil. lei para alterar a natureza do va do setor cultural, que Porém, quando analisa- Fundo Nacional da Cultura, envolve técnicos de som, mos quais desses fundos transformando-o em um fundo técnicos de iluminação, estão ligados ao Sistema especial de natureza contábil. engenheiros, ou seja, um Nacional de Cultura, o A mudança se faz necessária leque imenso de profisnúmero de municípios para possibilitar a realização de sionais. O financiamento com fundo cai para 536. descentralizações de créditos e o incentivo não devem Esse total representa 9% para os entes federados. Nossa ser vistos como um prodos municípios e ainda equipe está atuando no sentido blema, mas, sim, como está longe do ideal para de construir um PL e arcabouço uma solução, devendo a viabilização das trans- legal para a instituição do Fundo ser executados de maferências fundo a fundo a Fundo neira democrática e resprevistas na lei do FNC. ponsável. A equipe está Quando analisamos os estados e o Distrito atualmente estudando os programas, leis e Federal, a situação é mais favorável; possuímos projetos existentes para identificar as poten100% (26 estados e o Distrito Federal) com fun- cialidades e também os problemas, para que do de cultura ativo e vigente. Esses fundos já estes sejam corrigidos. Nesse sentido, temos recepcionaram os recursos da Lei Aldir Blanc trabalhado em constante diálogo com a Adem uma primeira experiência de maior escala vocacia-Geral da União, a Controladoria e o sobre transferência fundo a fundo dentro da TCU [Tribunal de Contas da União].

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HÁ UMA ANSIEDADE DE PARTE DO SETOR CULTURAL EM TORNO DA CONFERÊNCIA NACIONAL DE CULTURA 2020, TRADUZIDA RECENTEMENTE NA PROPOSTA DA CONFERÊNCIA POPULAR DE CULTURA – INICIATIVA DA SOCIEDADE CIVIL, QUE SE MOBILIZOU ANTE A EMERGÊNCIA OCASIONADA PELA PANDEMIA E AGORA SE VOLTA PARA O REPOSICIONAMENTO DO PAPEL ESTRATÉGICO DA CULTURA COMO POLÍTICA PÚBLICA E DIREITO SOCIAL DE TODOS OS BRASILEIROS E BRASILEIRAS. COMO A SECRETARIA ESPECIAL DA CULTURA VÊ ESSA MOVIMENTAÇÃO E QUAIS SÃO OS SEUS PLANOS EM RELAÇÃO À CONFERÊNCIA NACIONAL? HÁ ALGO EM ESPECIAL SENDO PLANEJADO? HÁ A HIPÓTESE DE ELA SER REALIZADA SÓ EM 2021? OU ATÉ DE NÃO SER REALIZADA? QUAL É A JUSTIFICATIVA?

MF: Sim, conforme o Decreto no 9.891/2019, a Conferência Nacional de Cultura compõe a estrutura do Conselho Nacional de Política Cultural; é a instância de debate e de proposição de diretrizes para a formulação das políticas públicas de cultura.

Nesse sentido, a ideia é que a IV Conferência Nacional de Cultura debata as diretrizes do próximo Plano Nacional de Cultura. Temos a previsão de que ela aconteça ainda em 2021, mas deverá ser levada em consideração toda a situação da pandemia causada pela covid-19. Ressalto que o referido decreto define como competência do conselho avaliar as diretrizes do Plano Nacional de Cultura a partir das propostas emanadas da Conferência Nacional de Cultura.


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RECENTEMENTE O TEMA DA CENSURA TEM

NA MESMA DIREÇÃO, QUE MEDIDAS ESTÃO

GERADO GRANDE INQUIETAÇÃO. ELE VEM

SENDO ADOTADAS OU PREVISTAS PELA PAS-

SENDO DISCUTIDO PELA EQUIPE DA SE-

TA PARA O SETOR EM FUNÇÃO DA NOVA LEI

CRETARIA? HÁ A INTENÇÃO DE PUBLICAR

GERAL DE PROTEÇÃO DE DADOS PESSOAIS?

ALGUMA RECOMENDAÇÃO OU INSTRUÇÃO NORMATIVA SOBRE ESSE TEMA?

MF: Não há censura em nenhuma ação do governo federal; o que há é a reestruturação e priorização de programas.

COMO A SECRETARIA PRETENDE ASSEGURAR O DIREITO AO PLENO EXERCÍCIO DA LIBERDADE DE EXPRESSÃO? É ALGO QUE, DO SEU PONTO DE VISTA, NECESSITA DE REGULAMENTAÇÃO ESPECÍFICA, ALÉM DO QUE JÁ ESTÁ NA PREVISÃO LEGAL? OU DEMANDA OUTRA MEDIDA?

MF: O direito ao pleno exercício da liberdade de expressão já é assegurado desde a Constituição Federal de 1988. Não há nenhuma proposta do presidente Jair Bolsonaro e do governo nesse quesito.

MF: A Secult trabalhará em consonância com a legislação e a orientação das áreas especializadas nesse tema do Ministério do Turismo e com as recomendações dos órgãos de controle.

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COLEÇÃO OS LIVROS DO OBSERVATÓRIO A Tragédia da Cultura Georg Simmel

A Máquina Parou E. M. Forster

Pistas Falsas Néstor García Canclini

Com o Cérebro na Mão Teixeira Coelho

eCultura – Utopia Final Teixeira Coelho

A Economia Artisticamente Criativa Xavier Greffe

A Singularidade Está Próxima Raymond Kurzweil

O Lugar do Público Jacqueline Eidelman, Mélanie Roustan e Bernardette Goldstein


PLANO NACIONAL DE CULTURA – ANÁLISES E PERSPECTIVAS

Identidade e Violência: a Ilusão do Destino Amartya Sen

Cultura e Estado. A Política Cultural na França, 1955-2005 Teixeira Coelho

As Metrópoles Regionais e a Cultura: o Caso Francês, 1945-2000 Françoise Taliano-des Garets

Cultura e Educação Teixeira Coelho (org.)

Afirmar os Direitos Culturais – Comentário à Declaração de Friburgo Patrice Meyer-Bisch e Mylène Bidault

Saturação Michel Maffesoli

Arte e Mercado Xavier Greffe

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O Medo ao Pequeno Número Arjun Appadurai

Leitores, Espectadores e Internautas Néstor García Canclini

A Cultura e Seu Contrário Teixeira Coelho

A República dos Bons Sentimentos Michel Maffesoli

A Cultura pela Cidade Teixeira Coelho (org.)

Cultura e Economia Paul Tolila


PLANO NACIONAL DE CULTURA – ANÁLISES E PERSPECTIVAS

SÉRIE RUMOS PESQUISA Os Cardeais da Cultura Nacional: o Conselho Federal de Cultura na Ditadura Civil-Militar − 1967-1975 Tatyana de Amaral Maia

Por uma Cultura Pública: Organizações Sociais, Oscips e a Gestão Pública Não Estatal na Área da Cultura Elizabeth Ponte

Discursos, Políticas e Ações: Processos de Industrialização do Campo Cinematográfico Brasileiro Lia Bahia

A Proteção Jurídica de Expressões Culturais de Povos Indígenas na Indústria Cultural Victor Lúcio Pimenta de Faria

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AS REVISTAS

Revista Observatório Itaú Cultural ed. especial – Convivência Intercultural: Perspectiva Latino-Americana

Revista Observatório Itaú Cultural No 25 – Sertões: Imaginários, Memórias e Políticas

Revista Observatório Itaú Cultural No 28 – Cultura, Artes e Pandemia

Revista Observatório Itaú Cultural No 24 – Arte, Cultura e Educação na América Latina

Revista Observatório Itaú Cultural No 27 – Cultura e Desenvolvimento

Revista Observatório Itaú Cultural No 23 – Economia da Cultura: Estatísticas e Indicadores para o Desenvolvimento

Revista Observatório Itaú Cultural No 26 – Gestão de Pessoas em Organizações Culturais

Revista Observatório Itaú Cultural No 22 – Memórias, Resistências e Políticas Culturais na América Latina


PLANO NACIONAL DE CULTURA – ANÁLISES E PERSPECTIVAS

Revista Observatório Itaú Cultural No 21 – Política, Transformações Econômicas e Identidades Culturais

Revista Observatório Itaú Cultural No 17 – Livro e Leitura: das Políticas Públicas ao Mercado Editorial

Revista Observatório Itaú Cultural No 20 – Políticas Culturais para a Diversidade: Lacunas Inquietantes

Revista Observatório Itaú Cultural No 16 – Direito, Tecnologia e Sociedade: uma Conversa Indisciplinar

Revista Observatório Itaú Cultural No 19 – Tecnologia e Cultura: uma Sociedade em Redes

Revista Observatório Itaú Cultural No 15 – Cultura e Formação

Revista Observatório Itaú Cultural No 18 – Perspectivas sobre Política e Gestão Cultural na América Latina

Revista Observatório Itaú Cultural No 14 – A Festa em Múltiplas Dimensões

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Revista Observatório Itaú Cultural No 13 – A Arte como Objeto de Políticas Públicas

Revista Observatório Itaú Cultural No 9 – Novos Desafios da Cultura Digital

Revista Observatório Itaú Cultural No 12 – Os Públicos da Cultura: Desafios Contemporâneos

Revista Observatório Itaú Cultural No 8 – Diversidade Cultural: Contextos e Sentidos

Revista Observatório Itaú Cultural No 11 – Direitos Culturais: um Novo Papel

Revista Observatório Itaú Cultural No 7 – Lei Rouanet. Contribuições para um Debate sobre o Incentivo Fiscal para a Cultura

Revista Observatório Itaú Cultural No 10 – Cinema e Audiovisual em Perspectiva: Pensando Políticas Públicas e Mercado


PLANO NACIONAL DE CULTURA – ANÁLISES E PERSPECTIVAS

Revista Observatório Itaú Cultural No 6 – Os Profissionais da Cultura: Formação para o Setor Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural No 3 – Valores para uma Política Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural No 5 – Como a Cultura Pode Mudar a Cidade

Revista Observatório Itaú Cultural No 2 – Mapeamento de Pesquisas sobre o Setor Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural No 4 – Reflexões sobre Indicadores Culturais

Revista Observatório Itaú Cultural No 1 – Indicadores e Políticas Públicas para a Cultura

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Esta revista utiliza as fontes Sentinel e Gotham sobre o papel Pólen Bold 90 g/m2. Os pantones 419 U e 514 U foram os escolhidos para esta edição. Mil unidades foram impressas pela gráfica Margraf, em São Paulo, no mês de julho do ano de 2021.


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Realização

/itaucultural itaucultural.org.br fone 11 2168 1777 fax 11 2168 1775 atendimento@itaucultural.org.br avenida paulista 149 são paulo sp 01311 000 [estação brigadeiro do metrô]


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