Observatório [edição especial] - Convivência Intercultural: Perspectiva Latino-Americana

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ed.

especial

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL PERSPECTIVA LATINO-AMERICANA Proposta de criação do Índice de Convivência Intercultural Conceitos de convivência intercultural Experiências nacionais e latino-americanas de conflitos identitários e culturais


O Observatório Itaú Cultural dedicou-se à criação de um índice que possibilitasse a tradução das condições que favorecem a convivialidade a partir de práticas e dinâmicas culturais relevantes para os diferentes povos no mundo. Assim, surgiu a proposta de criação do Índice de Convivência Intercultural (ICI). O trabalho foi realizado com a colaboração de pesquisadores de diferentes países da América Latina e de especialistas internacionais da área cultural, com olhares críticos sobre as dimensões determinadas na etapa de revisão final do projeto. A busca por dados disponíveis e confiáveis foi o primeiro desafio, refletido nos desenhos iniciais do índice. Depois de identificar dados de fontes confiáveis (instituições e organismos internacionais produtores ou organizadores de dados sobre algumas temáticas), o projeto passou por fases de modelagem, chegando-se a 17 variáveis e 7 dimensões a partir das quais se buscou traduzir a proposta do índice. O resultado de todo esse processo e análises de especialistas sobre os conflitos que dificultam uma convivência intercultural foram reunidos nesta revista.





Memória e Pesquisa / Itaú Cultural Revista Observatório Itaú Cultural - Edição Especial (mar. 2020). – São Paulo : Itaú Cultural, 2007-.

ISSN 1981-125X (versão impressa) ISSN 2447-7036 (versão on-line) 1 . Interculturalidade. 2. Problemas sociais. 3. Política cultural. 4. Inclusão cultural. 5. Indicadores sociais. 6. América Latina. I. Itaú Cultural

Bibliotecário Jonathan de Brito Faria CRB-8/8697

O Itaú Cultural (IC), em 2019, passou a integrar a Fundação Itaú para Educação e Cultura com o objetivo de garantir ainda mais perenidade e o legado de suas ações no mundo da cultura, ampliando e fortalecendo seu propósito de inspirar o poder criativo para a transformação das pessoas.


expediente REVISTA OBSERVATÓRIO Conselho editorial Andréia Briene Enrique J. Saravia Luciana Modé Equipe de pesquisa Ana Paula do Val Alejandra C. Ruiz Tarrés Daniela O. Navarro Ortega Daniele Dantas Enrique J. Saravia (coord.)

Tradução Carmen Carballal (terceirizada) Design Girafa Não Fala Ensaio artístico Pierre Michel Jean Ilustração André Toma

NÚCLEO OBSERVATÓRIO Gerência Marcos Cuzziol Coordenação Luciana Modé Produção Andréia Briene

Supervisão de revisão Polyana Lima

NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Ana de Fátima Sousa

Neale A. El Dash

Revisão Karina Hambra Rachel Reis (terceirizadas)

Edição Enrique J. Saravia

EQUIPE ITAÚ CULTURAL

Preparação de textos Leticia de Castro

Presidente Alfredo Setubal

Projeto gráfico Marina Chevrand/ Serifaria

Diretor Eduardo Saron

Liliana Sousa e Silva (coord.) Maria Carolina de Vasconcelos e Oliveira María Paulina Soto Labbé (coord.)

Coordenação editorial Carlos Costa Curadoria de imagens André Seiti Produção editorial Luciana Araripe



aos leitores

O

crescimento dos conflitos regionais e locais constitui um sério empecilho para a implementação das políticas públicas e para conseguir um desenvolvimento harmônico e humano. As brechas entre as opiniões políticas, sociais, culturais e econômicas se aprofundam e produzem conflitos entre os diversos grupos sociais, prejudicando a consecução de metas de bem-estar e entendimento harmonioso. A paz social está em perigo ou já foi severamente prejudicada. Com as nuanças e as características de cada país, de cada povo, de cada segmento da população, esse panorama é mundial. Na intenção de contribuir para o amortecimento dessa preocupante situação, o Observatório Itaú Cultural cogitou

a construção de um Índice de Convivência Intercultural (ICI), universalmente válido, que permitisse auferir os alcances e a gravidade dos conflitos e apoiar soluções para sua neutralização. Numa primeira etapa foram analisadas d ​ imensões nas quais costumam ocorrer conflitos sociais, tais como raça, orientação sexual, mulheres, religião, imigrantes e refugiados, grupos etários e pessoas com deficiência. Paralelamente foram preparadas as estatísticas e os aspectos matemáticos do índice. Concluímos, no entanto, que era ambicioso demais criar um índice aplicável universalmente. Isso nos fez reduzir o âmbito para apenas a América Latina, com a intenção de torná-lo universal à medida que funcionasse.


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Encontramos muitos problemas, principalmente a falta de dados estatísticos, na maioria dos países, sobre cada uma das dimensões e a dificuldade em estabelecer pesos equivalentes entre elas. Assim, por exemplo, por que as mulheres, que são mais da metade da população, teriam o mesmo peso que os dados sobre exilados ou os relacionados com religiões? Isso sem contar a possível e muito frequente superposição de características na mesma pessoa ou grupo social. Foram realizadas entrevistas com especialistas em cada segmento. Com base no exitoso resultado dessa atividade, pedimos que cada um deles escrevesse um breve ensaio sobre o tema de sua especialidade para integrar esta publicação. Como conclusão desse trabalho, entrevistamos pessoas com conhecimento generalista sobre a problemática. O material se inicia (capítulo 1) com a conceituação dos termos básicos e as definições adotadas no projeto do índice, tais como cultura, convivência intercultural, desenvolvimento e direitos humanos, que integram o referencial teórico.

“Memória de um índice”, de autoria de María Paulina Soto Labbé – inspiradora e realizadora do projeto de construção do ICI – e Alejandra Tarrés – que trabalhou nele desde o começo –, apresenta uma memória da construção do índice e descreve os objetivos iniciais e o processo de escolha das dimensões a ser analisadas. Relata, também, as reflexões sobre as opções em cada etapa, inclusive as relacionadas com a consulta a especialistas. Daniele Dantas, especialista em estatística e métodos quantitativos que se incorporou à equipe do projeto na segunda etapa, contribui com a complexa perspectiva da construção do ICI. Em “Agenda de políticas culturais para a convivência intercultural”, María Paulina Soto Labbé analisa as propostas de políticas culturais para a convivência intercultural, seu marco político e conceitual, os novos atores sociais e sua incidência na agenda de políticas culturais. O capítulo 2 dá início à descrição das dimensões identitárias e culturais. Moema de Poli Teixeira relata e analisa os conflitos relacionados aos grupos indígenas, tribais e raciais.


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AOS LEITORES

O capítulo também inclui entrevista, realizada por Andréia Briene e Duanne Ribeiro, com a ativista indígena Mirian Cisneros, líder dos Kichwa de Sarayaku, na Amazônia equatoriana. Fabrício Toledo de Souza descreve os conflitos relacionados aos imigrantes e refugiados. “Para valorizar a diversidade religiosa: solidariedade, afetos e ações públicas” trata dos conflitos relacionados a religiões, na perspectiva dos especialistas Regina Novaes, Thiago Almeida e Verónica Giménez. Os desacordos no que diz respeito à situação social e trabalhista das mulheres são analisados por Maria Salet Ferreira Novellino e Paula Alves de Almeida. Leandro Colling e Gilberto Vieira, por sua vez, tratam do tema em relação às orientações e identidades sexuais. Os conflitos ligados aos grupos etários são analisados pelos especialistas Enid Rocha e Enrique Pelaez. “Convivialidade: um dilema para as pessoas com deficiência”, Marcelo Pinto Guimarães e Marcos Lima descrevem e analisam os problemas relacionados a essa população.

A cultura como dimensão necessária é analisada por Diana Rey. “A política cultural na encruzilhada, uma perspectiva latino-americana” traz entrevista com Néstor García Canclini, conduzida por mim. Por fim, em “Referências bibliográficas da memória do projeto” apresentamos a você todo o material que consultamos na construção do índice. Boa leitura e ótimas reflexões! Enrique Saravia


9. Aos leitores

Enrique Saravia

1.

UM ÍNDICE PARA UMA POLÍTICA CULTURAL DO SÉCULO XXI

22. Bases conceituais da

2.

CONFLITOS RELACIONADOS AOS GRUPOS INDÍGENAS, TRIBAIS E RACIAIS

79. Experiências nacionais de

convivência intercultural Enrique Saravia

levantamento de identidades étnico-raciais Moema de Poli Teixeira

30. Memória de um índice: estudo

93. O bem viver na convivência

sobre o projeto de criação do Índice de Convivência Intercultural María Paulina Soto Labbé e Alejandra Ruiz Tarrés

42. A perspectiva complexa na construção do Índice de Convivência Intercultural Daniele Dantas

61. Agenda de políticas culturais para a convivência intercultural María Paulina Soto Labbé

dos povos Kichwa de Sarayaku – entrevista com Mirian Cisneros Andréia Briene e Duanne Ribeiro

3.

CONFLITOS RELACIONADOS AOS IMIGRANTES E REFUGIADOS

106. Hospitalidade para

os refugiados e migrantes: a diferença como perspectiva e a paz como método Fabrício Toledo de Souza


sumário 4.

CONFLITOS RELACIONADOS ÀS RELIGIÕES

5.

CONFLITOS RELACIONADOS ÀS MULHERES

113. Para valorizar a diversidade

139. Medidas de desigualdade

123. Convivência inter-religiosa

149. Mulheres e homens: harmonia

religiosa: solidariedade, afetos e ações públicas Regina Novaes

e discriminação na Argentina: perspectiva histórica, legislação e experiências atuais Verónica Giménez Béliveau

131. O respeito à diversidade religiosa como caminho para a promoção da convivência intercultural e para o combate à intolerância Thiago Almeida Garcia

entre mulheres e homens: educação, trabalho, política, violência Paula Alves de Almeida e complementaridade na divisão sexual do trabalho Maria Salet Ferreira Novellino

6.

CONFLITOS RELACIONADOS A ORIENTAÇÕES E IDENTIDADES SEXUAIS

157. A convivência intercultural e a diversidade sexual e de gênero Leandro Colling

165. Transversalidades LGBTQ+:

dados e narrativas sobre a diferença Gilberto Vieira



7.

CONFLITOS RELACIONADOS AOS GRUPOS ETÁRIOS

173. A dimensão etária e a

convivência intercultural: conflitos e potencialidades Enid Rocha Andrade da Silva

179. A dimensão idade na convivência intercultural latino-americana Enrique Peláez

8.

9.

CULTURA, UMA DIMENSÃO NECESSÁRIA

204. Diálogo de saberes: o caminho para a convivência intercultural Diana Marcela Rey

210. A política cultural na

encruzilhada. Uma perspectiva latino-americana – entrevista com Néstor García Canclini Enrique Saravia

235. Referências bibliográficas da memória do projeto

CONFLITOS RELACIONADOS À POPULAÇÃO COM DEFICIÊNCIA

187. Pela porta da frente: a

importância da acessibilidade para a inclusão cultural de pessoas com deficiência Marcos Lima

194. Convivialidade: um dilema para as pessoas com deficiência Marcelo Pinto Guimarães

Os artigos e entrevistas que compõem esta revista não necessariamente refletem a opinião do Itaú Cultural.


Pierre Michel Jean é cineasta e fotojornalista freelancer há sete anos. Fundador do Kolektif 2D, vive e trabalha em Porto Príncipe, capital do Haiti, onde colabora em diferentes mídias, como o jornal Le Nouvelliste e a agência Agence France-Presse. Sensível a temas relacionados à imigração haitiana na República Dominicana e no Brasil, ao urbanismo e aos direitos humanos, Pierre Michel estudou comunicação social e ciências jurídicas na Universidade do Estado do Haiti. Participou de numerosas exposições em diversos países e ganhou o Young Journalism Award em 2018, por seu trabalho sobre a comunidade LGBTQIAP+ no Haiti.


“A convite da organização Lanchonete, pude ficar três meses no Brasil a partir de junho de 2016, quando iniciei um trabalho sobre a imigração haitiana. Dois anos antes, investiguei o mesmo tema na República Dominicana. Foi uma oportunidade de entender as dificuldades e as possibilidades desta nova diáspora haitiana surgida no contexto pós-terremoto. Meus compatriotas viajam quase que exclusivamente por razões econômicas e vivenciam o choque cultural e a perda de identidade no exterior. A maior riqueza do país, para não dizer que talvez seja a única, tem sido, nas últimas décadas, a força de trabalho de seu povo, que, mesmo vivendo no exterior, mantém a economia viva graças ao dinheiro enviado às famílias que permaneceram no país. Nesse sentido, o Brasil tem sido uma tremenda promessa para os imigrantes haitianos nos últimos cinco anos. Os primeiros sinais de desaceleração da economia brasileira levaram milhares de imigrantes para outros lugares, como o Chile e os Estados Unidos.”




1.

UM ÍNDICE PARA UMA POLÍTICA CULTURAL DO SÉCULO XXI

22. BASES CONCEITUAIS DA

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL Enrique Saravia

30. MEMÓRIA DE UM ÍNDICE: ESTUDO

SOBRE O PROJETO DE CRIAÇÃO DO ÍNDICE DE CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL María Paulina Soto Labbé e Alejandra Ruiz Tarrés

42. A PERSPECTIVA COMPLEXA NA CONSTRUÇÃO DO ÍNDICE DE CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL Daniele Dantas

61. AGENDA DE POLÍTICAS CULTURAIS PARA A CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL María Paulina Soto Labbé


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BASES CONCEITUAIS DA CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL Enrique Saravia

“Começavam a lhes ensinar como eles devem viver, como eles devem respeitar as pessoas, como eles devem se entregar ao conveniente e ao correto, como devem evitar o mal, fugindo da força da maldade, da perversão e da cobiça.” [Huehuetlatolli 1 (inscrição nos muros do Museu Nacional de Antropologia do México)]

C

onvivência intercultural é um termo equívoco. Não é só multiculturalismo ou pluralidade cultural. Envolve a ideia de coexistência dinâmica entre culturas, partindo do pressuposto de que toda sociedade é pluricultural e de que as culturas que a integram interagem e se influenciam mutuamente. E aí entramos no conceito básico de cultura e na dificuldade de obter uma definição satisfatória. Como dizia G. K. Chesterton, as ideias enlouquecem. Vide o caso da palavra democracia: a partir da definição grega que lhe dá vida como vocábulo, chegou-se ao extremo de usar a palavra para estabelecer ditaduras. Num famoso e muito citado texto, Kroeber e Kluckhohn (1952, p. 181) listam 164 definições de cultura. Trabalhar na ação prática com essa imensidão de conceitos nos impediria de chegar a soluções concretas.

Consequentemente, quem lida com esse tipo de atividade (projetos, políticas, programas culturais etc.) necessita basear-se em conceitos operacionais. Desse ponto de vista, deixando de lado simbolismos, significâncias e outras categorias de valor científico, seria possível selecionar dois desses conceitos para fins puramente práticos. Um deles seria considerar aquilo que tradicionalmente tem se entendido como cultura como o conjunto de manifestações e produtos da criatividade humana, consagrados como símbolos ou expressões da evolução civilizatória. A outra ideia é considerá-la como o conjunto sistemático de valores, crenças, tradições, comportamentos e normas que dão identidade a uma sociedade específica. Esse é o que se denomina o conceito antropológico de cultura. O idioma alemão é um dos poucos que designam de forma diferente cada um desses conceitos: Bildung


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

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para o primeiro, Kultur para o segundo. De- se a soma total dos seus efeitos positivos é nominações que permitem maior clareza e maior que a soma total dos efeitos positidão base para a antropologia. vos produzidos por qualquer outra ação que Quando falamos em convivência inter- possa ser realizada no lugar dela. Immanuel cultural, estamos nos referindo claramente Kant (1724-1804) construiu o fundamento, ao segundo conceito. A questão é verificar válido até hoje, do que ele chamou de impee analisar como coexistem – ou convivem – rativo categórico: o homem deve agir como culturas diferentes e até antagônicas entre gostaria que todos agissem. Ele não deve nações, regiões, religiões, orientações políti- fazer alguma coisa que não gostaria que cas ou ideológicas, etnias, gêneros, gerações, fosse feita com ele. Mais ainda, deve fazer classes sociais, grupos profissionais ou ou- com os outros o que gostaria que os outros tras agrupações sociais que compartilham fizessem com ele. “Age de tal forma que a tua o mesmo cenário – que pode conduta possa sempre valer ser físico ou virtual. como princípio de uma legisA questão é verificar A realidade mostra que e analisar como lação universal”, postulava essa convivência harmôni- coexistem – ou Kant. “Age de tal forma que ca tem sido sempre difícil convivem – culturas sempre tomes a humanidade diferentes e até ou inexistente, apesar de se como fim e jamais a utilizes apresentar como um anseio antagônicas entre nações, como simples meio, seja na humano. Concepções filosófi- regiões, religiões, tua pessoa, seja na pessoa de orientações políticas cas e religiosas têm predicado qualquer um”, reiterava. ou ideológicas, etnias, esse tipo de comportamento, gêneros, gerações, Tradicionalmente, os apesar de elas mesmas causa- classes sociais, grupos códigos éticos se baseavam rem incompreensão e dor. na revelação sobrenatural: profissionais ou outras O espectro de constru- agrupações sociais que as normas haviam sido ouções filosóficas vai desde compartilham o mesmo torgadas pela divindade, e aos o chamado intuicionismo cenário – que pode ser homens só cabia a sua intermoral, cujo expoente mais físico ou virtual pretação. É assim na maioria extremado foi Thomas Hobdas religiões. Lembremos o bes (1588-1679), que afirmava que o esta- mandamento de Jesus Cristo: “Amai-vos do natural da humanidade é uma guerra uns aos outros” (João 13:34-35). Porém, de todos contra todos e que o homem é o na prática, a intolerância tem prevalecido lobo do homem. Outra, talvez a que tenha no comportamento religioso. deixado marcas mais profundas no comE, nesse ponto, surge outro conceito portamento empresarial, é o utilitarismo, importante: o etnocentrismo. Em 1906, para o qual tudo se justifica em função da W. G. Sumner, fundador da antropologia eficácia. Jeremy Bentham (1748-1832) moderna, dizia que o conceito tem origens sintetiza essa posição quando afirma que antigas: “etnocentrismo é o nome técniuma ação é correta do ponto de vista ético co para o modo de ver as coisas conforme

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o qual o meu grupo é o centro de todos, e O fato de as pessoas gostarem da sua todos os outros são pensados e avaliados cultura e se sentirem confortáveis dentro com referência a ele. Cada grupo alimenta dela não é negativo. Pelo contrário, esse sua própria soberba e sua vaidade, clama sentimento contribui para a coesão social sua superioridade, exalta suas próprias di- e para a sua melhora. O aspecto perigoso é vindades e olha com desprezo os profanos” quando essa preferência pela cultura pró(SUMNER, 1979). pria leva a desprezar as outras e até a lutar A definição de Sumner é muito pre- contra elas. Num extremo, muitas vezes cisa. Só foi criticada pelo fato de tomar atingido, leva a exterminar o diferente. como referência o grupo como tal e não o É bom mencionar, também, o conceito grupo identificado pela sua cultura (PER- de etnocentrismo negativo proposto por ROT; PREISWERK, 1979). Ele estaria Swartz e desenvolvido por Perrot e Preiswerk. definindo o que Piaget2 deEles constatam a existência, nomina sociocentrismo. em muitos povos e grupos coloO aspecto perigoso é É que a preferência pelos quando essa preferência nizados, de um complexo colevalores e estilo de vida próprios pela cultura própria leva tivo de inferioridade derivado em detrimento dos outros não a desprezar as outras e de um questionamento radié o que caracteriza o etnocen- até a lutar contra elas. cal de suas culturas por parte Num extremo, muitas trismo: “Não é, no entanto, o do colonizador, que impõe sua simples fato de preferir os va- vezes atingido, leva a superioridade militar e tecnolores culturais próprios o que exterminar o diferente lógica. Os estudos sobre a psiconstitui etnocentrismo, mas cologia do colonizado mostram o preconceito acrítico em favor da cultura que muitas vezes ele pretende superar sua própria e a crítica distorcida e tendenciosa sensação de inferioridade compartilhando os a respeito das culturas dos outros” (SILLS; valores do colonizador. Se a cultura tradicioMERTON, 1968). Em outras palavras, para nal é preservada, o etnocentrismo do grupo Piaget, o sociocentrismo seria “a atitude de subsiste, mas desenvolve-se no indivíduo todo grupo humano de se considerar superior uma crise de identidade produzida pela inaos outros. Isso contribui, por um lado, para a certeza sobre a posição a ser adotada diante coesão do grupo, mas leva, por outro, à incom- de valores culturais contrários aos seus. Pode preensão de outras formas de vida diferentes acontecer, também, um autodesprezo entre da própria” (GONZALES VASQUEZ, 1985). os que estão à procura de uma identidade ou O etnocentrismo seria “aquela tendên- que estão parcialmente assimilados. Paralelacia a supor o universo girando em torno do mente à referência negativa sobre os próprios próprio povo e que considera o endogrupo valores, a consideração dos exogrupos vira, sempre situado no correto e verdadeiro, e logicamente, positiva (PERROT; PREIStodos os exogrupos como equivocados e in- WERK, 1979). Dito de forma irônica, seria o corretos toda vez que sua conduta difere da que Nelson Rodrigues denomina de “compledo grupo próprio” (KROEBER, 1952). xo de vira-lata”.


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

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Pareceria exagerado estender a noção O enunciado básico da teoria cepalina é, de etnocentrismo a outras questões além em síntese, que era necessário estimular o de nacionalidades ou raças (xenofobia e ra- progresso econômico por meio do desenvolcismo), como, por exemplo, de deficientes, vimento de políticas e estruturas estatais. idosos, orientações sexuais. Mas é possível O desenvolvimento deveria ser econômico, fazê-lo se considerarmos que o impulso psi- baseado na industrialização substitutiva de cológico, afetivo ou físico que leva ao ódio ou importações. Todos os demais aspectos (sodesprezo por outras etnias possui a mesma cial, político, educacional, administrativo) se raiz psicológica, isto é, parte de impulsos dariam como consequência automática do desemelhantes aos que levam ao etnocentris- senvolvimento econômico. A industrialização mo em sentido estrito. Qual seria a melhor daria lugar ao surgimento de uma classe emforma de evitar o etnocentrismo? Existem presarial autóctone que seria a base para uma aspectos culturais que fapolítica nacional independente. vorecem o desenvolvimen- Todos os demais Esse esforço deveria estar intimato humano das sociedades, aspectos (social, mente vinculado a um processo de fortalecendo as capacidades político, educacional, planejamento governamental. Em individuais e ampliando o le- administrativo) resumo: planejamento para o deque de possibilidades que se se dariam como senvolvimento econômico baseado consequência oferecem às pessoas. Seria na industrialização substitutiva de possível medi-los por meio automática do importações (SARAVIA, 1980). de indicadores, apesar das desenvolvimento Vários países adotaram o dificuldades de definir os in- econômico modelo, com sucesso no que diz dicadores pertinentes e obter respeito ao crescimento econômiesses dados (MCKINLEY, 1999). co, mas houve efeitos não esperados e não Talvez as palavras de Nelson Mandela, desejados: urbanização irracional, aumento maior figura na luta contra as discrimina- da desigualdade, instabilidade política, deções e exclusões, nos iluminem: “Ninguém terioração do meio ambiente e subordinação nasce odiando outra pessoa pela cor de de todos os setores sociais, entre eles, a edusua pele, pela sua origem ou ainda pela sua cação e a cultura, às variáveis econômicas. religião. Para odiar, as pessoas precisam O modelo entrou em crise no final da déaprender, e, se podem aprender a odiar, elas cada de 1970, e paralelamente foi surgindo oupodem ser ensinadas a amar”. tra concepção de desenvolvimento que levaria Outro conceito largamente vinculado em conta as variáveis não econômicas. A ideia à cultura é desenvolvimento. A palavra foi foi mudando, mas não a predominância da adotada e se incorporou rapidamente aos economia em todas as decisões governamenenunciados sobre cultura, a partir dos anos tais. O discurso do desenvolvimento integral de pós-guerra, por influência dos trabalhos colapsa com o fortalecimento das tendências da Comissão Econômica para a América La- neoliberais. Hoje fala-se em desenvolvimento tina e o Caribe (Cepal) das Nações Unidas. sustentável, fundamentado nas preocupações

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sociais e ambientais, mas, na prática, continua o domínio do discurso econômico. As políticas culturais sofrem na medida em que a cultura não é considerada essencial na prática política nem tampouco um instrumento do crescimento econômico. O que importa é a sua contribuição para o PIB, a exportação de seus produtos, a geração de mão de obra. Ganha impulso a ideia de indústrias criativas ou economia criativa, limitando o apoio às atividades propriamente artísticas e culturais. O conceito de direitos humanos é outro elemento basilar da convivência social. Desde a sua sanção, quando da criação da Organização das Nações Unidas (ONU), após a Segunda Guerra Mundial, o conceito foi-se impondo. A crítica repetida contra essa enunciação é que ela reflete valores ocidentais emanados da filosofia do iluminismo. Mas vale destacar que os quase 200 países que integram a ONU os aceitaram explicitamente. Eles passaram a ser uma espécie de consenso universal, observado por cada país de acordo com a sua cultura e idiossincrasias. O respeito a esses direitos é considerado condição essencial para a convivência harmônica. A questão que se coloca é como passar desses enunciados à ação prática. Aceitos esses objetivos, é necessário verificar como eles vão se tornando parte da cultura de cada povo e grupo social. A sociedade precisa monitorar a observância e o respeito a esses direitos à medida que eles vão se transformando em parâmetros para a vida social. Se bem enunciados na sua aplicação concreta, é mister observar cientificamente o comportamento social diante desses objetivos. É necessário, em consequência, estabelecer indicadores que permitam analisar

qualitativa e quantitativamente o processo de assimilação desses objetivos por parte da sociedade. Mas como verificar se a convivência é harmônica em seu conjunto? E como apreciar o seu cumprimento por parte de todo o conjunto de nações e grupos sociais? Daí a ideia de um índice único de convivência intercultural, empreendimento que o Observatório Itaú Cultural tomou a seu cargo. Esta publicação descreve e analisa os avanços e obstáculos que apareceram ao longo do projeto de construção do Índice de Convivência Intercultural.

Enrique Saravia Doutor pela Universidade Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), é pesquisador sênior do Centre for Global Cooperation da Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha, e professor de economia criativa e de política cultural na Universidad del Rosario (Bogotá), assim como de política pública na Universidad Andina Simón Bolívar (Quito). É professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP) e coordenador de projetos de consultoria na FGV Projetos, no Rio de Janeiro. É também membro do conselho editorial do International Journal of Arts Management (Montreal) e do Droit et Économie de la Régulation (Paris). Foi professor associado da Universidade Paris 1, professor visitante da Universidade do Texas (Austin, EUA) e professor conferencista da Escola Nacional de Administração da França.


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Enrique Saravia

Referências BREWER, Marilynn B.; CAMPBELL, Donald T. Ethnocentrism and intergroup attitudes. East African evidence. New York: John Wiley & Sons, 1976. GONZALEZ VASQUEZ, Fernando. Qué es cultura? Tertulia. Revista Nacional de Cultura, San José, n. 6, p. 15-16, abr./jun. 1981. GUSDORF, Georges. Mito e metafísica. São Paulo: Convívio, 1979. KROEBER, A. L.; KLUCKHOHN, C. Culture: a critical review of concepts and definitions. Cambridge, MA: Peabody Museum, 1952. MCKINLEY, Terry. Medida de la contribución de la cultura al bienestar humano: los indicadores culturales del desarrollo. In: Informe Mundial sobre la Cultura de Unesco. Madri: Unesco, 1999. PERROT, Dominique; PREISWERK, Roy. Etnocentrismo e historia. México: Nueva Imagen, 1979. PIAGET, Jean. Psicología y epistemología. Barcelona: Ariel, 1975. _______. El nacimiento de la inteligencia en el niño. Madri: Aguilar, 2014. SARAVIA, Enrique J. Cultura y desarrollo. Criterio, Buenos Aires, ano 53, n. 846, 23 out. 1980. SILLS, D.; MERTON, R. K. International encyclopedia of the social sciences. New York: Macmillan, 1968, p. 546. SUMNER, William G. Folkways. New York: Ginn, 1953, p. 18. Apud: UNESCO. Diccionario de ciencias sociales. Madri: Instituto de Estudios Políticos, 1975; PERROT, Dominique; PREISWERK, Roy. Etnocentrismo e historia. México: Nueva Imagen, 1979, p. 54. UNESCO. Diccionario de ciencias sociales. Madri: Instituto de Estudios Políticos, 1975.

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Bibliografia recomendada ADORNO, Theodor W. et al. The authoritarian personality. New York: Harper, 1950. BARTH, Fredrik. Ethnic groups and boundaries. The social organization of culture difference. Boston: Little, Brown and Company, 1969. COPANS, Jean. Antropologia política. In: COPANS, Jean et al. Antropologia, ciência das sociedades primitivas? Lisboa: Edições 70, 1971. DUVIGNAUD, Jean. Change at Shebika. Report from a North African village. Austin: University of Texas Press, 1977. EDWARDS, Paul (Ed.). The encyclopedia of philosophy. New York: Macmillan, 1967. GARCÍA MORENTE, Manuel. Fundamentos de filosofia. 3. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1967. HEIDEGGER, Martin. La pregunta por la cosa. Buenos Aires: Sur, 1964. ______. Que é isto – a filosofia. In: Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores.) ______. O fim da filosofia e a tarefa do pensamento. In: Conferências e escritos filosóficos. São Paulo: Abril Cultural, 1979. (Coleção Os Pensadores.) JAULIN, Robert. La paix blanche. Introduction à l’ethnocide. Paris: Ed. du Seuil, 1970. KOSSOU, Basile. Problèmes de développement culturel dans le Tiers-Monde. Considérations générales introductives à une philosophie du développement. Cotonou: Université Nationale du Benin, 1979 (mimeo). LEVINE, Robert A.; CAMPBELL, Donald T. Ethnocentrism: theories of conflict, ethnic attitudes and group behavior. New York: John Wiley & Sons, 1972.


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Enrique Saravia

MONDOLFO, Rodolfo. O pensamento antigo. 3. ed. São Paulo: Mestre Jou, 1971. MUDIMBE, V. Y. L’autre face du royaume. Une introduction à la critique des langages en folie. Lausanne: L’Âge d’Homme, 1973. PARAIN, Brice (Dir.). Historia de la filosofía, v. 1. El pensamiento prefilosófico y oriental. México: Siglo XXI Editores, 1978. PIAGET, Jean. El nacimiento de la inteligencia en el niño. Madri: Aguilar, 1972. PRESAS, Mario A. Jaspers contra Heidegger. Criterio, ano 53, n. 1838, Buenos Aires, 26 jun. 1980. SACHS, Ignacy. La découverte du tiers monde. Paris: Flammarion, 1971. SALAZAR BONDY, Augusto. Sentido y problema del pensamiento filosófico hispanoamericano. México: Unam, 1978. SINCLAIR, Andrew. The savage: a history of misunderstanding. London: Weidenfeld and Nicolson, 1977. VOLTAIRE. Tratado sobre a tolerância. São Paulo: Martin Claret, 2017.

Notas 1 Os huehuetlatolli, ou huēhuehtlahtōlli (que significa, no idioma náhuatl, “os provérbios

dos antigos”), são extensos relatos que descrevem as normas de conduta, a visão moral, as celebrações e as crenças do povo Nahua. 2

PIAGET, Jean. Psicología y epistemología. Barcelona: Ariel, 1975.

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MEMÓRIA DE UM ÍNDICE:

ESTUDO SOBRE O PROJETO DE CRIAÇÃO DO ÍNDICE DE CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL María Paulina Soto Labbé e Alejandra Ruiz Tarrés

O Índice de Convivência Intercultural (ICI) tinha o objetivo de evidenciar fatores de natureza cultural que favorecem ou dificultam a convivência no mesmo território, com ênfase nas relações entre grupos sociais diversos e considerando as diferenças como oportunidades para o desenvolvimento sustentável, em um mundo carregado de novas violências e conflitos.

O

artigo descreve o processo de construção do Índice de Convivência Intercultural (ICI), desde os seus fundamentos políticos e filosóficos, passando por consultas relevantes a especialistas, até chegar a uma estrutura final, que teve de renunciar a questões importantes, principalmente em razão da ausência de dados estatísticos nacionais e globais sobre grupos sociais específicos, como os afrodescendentes, ou sobre certas temáticas prementes, como o feminicídio. A segunda grande renúncia foi o redimensionamento territorial para a análise das relações de convivência entre indivíduos e grupos. Um contexto territorial teria permitido abordar empiricamente o debate sobre os direitos culturais e sua origem coletiva que questionam a natureza universal dos direitos humanos. A cultura, como uma jaula flexível e invisível (GINZBURG, 1999), não respeitaria os princípios que deveriam ser iguais para toda a espécie humana, sem distinções.

1.1 Conceitos centrais e hipóteses O Observatório Itaú Cultural, de São Paulo, montou, em 2016, uma equipe de pesquisa chileno-brasileira1 para a criação do ICI, a partir das hipóteses sustentadas pela pesquisadora María Paulina Soto Labbé, que destaca as seguintes questões: a) existe uma crise do modelo de desenvolvimento, em que os conflitos com causas culturais aumentam e se diversificam; b) a dimensão cultural contribui para encontrar alternativas complementares às econômicas para sair da crise; c) é necessário reorientar as políticas culturais para melhorar a valorização social da convivência como fator de desenvolvimento; e d) o aumento das capacidades culturais humanas afeta diretamente as matrizes produtivas, alcançando crescimentos ambiental e socialmente sustentáveis ​​(SOTO, 2014 e 2016). Entendemos a convivência intercultural como experiências de intercâmbio prolongado


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María Paulina Soto Labbé e Alejandra Ruiz Tarrés

entre linguagens expressivas provenientes que não estão sendo resolvidos pelas vias de diferentes culturas, que se encontram no institucionais ou comunitárias habituais. A mesmo território e cujo desenvolvimento aposta é que a própria sociedade dissolveem diferentes cenários (históricos, políticos, rá os conflitos de convivência que têm sua comunicacionais e ecológicos) pode originar origem nos padrões culturais, por meio de processos dinâmicos enriquecedores, mas mudanças substanciais em seus comportatambém conflitos, intolerâncias e violências. mentos cotidianos. A história nos mostra que Assim, a consideração das diferenças cultu- a sustentabilidade depende mais desse tipo rais como oportunidades de desenvolvimento de transformações do que das medidas insticoletivo e realização pessoal exige uma disposi- tucionais que a comunidade internacional ou ção política favorável à convivência solidária e os Estados nacionais possam adotar. colaborativa nas comunidades humanas interExperimentamos mudanças demográfi-relacionadas, mutantes e complexas. cas estruturais que contribuíram para o auÉ fundamental considerar as políticas mento de conflitos com motivações culturais, dirigidas ao diálogo intercultural como fer- os quais devemos identificar e tornar visíveis. ramenta de valorização dos intercâmbios es- Uma primeira mudança estrutural é a entratéticos, e não apenas como da desigual das mulheres no discursos acadêmicos, jurídi- A valorização dos espaço público e no mercaintercâmbios estéticos cos ou políticos. A valorização do de trabalho remunerado, implica condições estáveis dos intercâmbios estéticos para a negociação de sem mudanças culturais implica condições estáveis​​ identidades e práticas substanciais nos papéis para a negociação de identi- cotidianas de convivência privados, reprodutivos e de dades e práticas cotidianas cuidados. Uma segunda mude convivência. Os intercâmbios estéticos são dança é o envelhecimento da pirâmide etáconcebidos aqui como “processos de substitui- ria, em um modelo carente de solidariedade ção ou conversão, equivalência e continuidade intergeracional que pressiona a população nas relações que o sujeito estabelece consigo economicamente ativa, reforçando a ideia mesmo, com os outros e com o ambiente, atra- de que os idosos são um fardo social negativés de declarações que colocam em jogo iden- vo com pouca importância sociocultural. A tidades individuais ou de grupo em termos de terceira são as migrações em massa, temposua valorização” (MANDOKI, 2006). rárias ou definitivas, que obrigam populações Desde o início, o ICI pretendia ser uma não acostumadas ao cosmopolitismo a uma contribuição para a sociedade a partir do interação cultural sem precedentes para elas, campo da cultura, para além da representa- exacerbando-se preconceitos e novas formas ção ou manifestação de expressões artísticas de discriminação. A essas três dimensões se ou patrimoniais, mas uma cultura entendida somam os conflitos culturais derivados de como um espaço de relações simbólicas em causas étnicas, tribais, raciais, religiosas, de que é possível encontrar respostas alterna- orientação sexual e das pessoas em situação tivas aos conflitos humanos e ambientais de deficiência.

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Considerando o aumento desses conflitos, as organizações internacionais colocaram vários desafios. A Organização das Nações Unidas (ONU) propõe na Agenda 2030 para o Desenvolvimento Sustentável: “Estamos determinados a promover sociedades pacíficas, justas e inclusivas, livres do medo e da violência. O desenvolvimento sustentável não é possível sem a paz, nem a paz pode existir sem o desenvolvimento sustentável” (ONU, 2015). Partimos, então, do pressuposto mais geral de que a cultura faz parte do processo de desenvolvimento e de que as pautas de convivência e diálogo intercultural são cada vez mais importantes q​​ uando se trata de pensar em uma agenda de desenvolvimento. 1.2. Por que um índice? “Um bom indicador sintetiza todo um conceito, principalmente as intenções políticas que há por trás dele. Ou seja, um bom indicador é aquele que diz facilmente algo complexo e, além disso, declara explicitamente as intenções daquilo que mede e/ou avalia. Um indicador tem este duplo sentido: rapidez e transparência.” (Trecho de entrevista com P. Soto – OIC, 2014.)

Os índices permitem fazer medições da realidade por meio de indicadores que geram efeitos de avaliação. O ICI pretendia ser uma ferramenta sintética que contribuiria para a avaliação social e institucional da convivência intercultural e que daria visibilidade ao papel da cultura no “âmbito político” (ARENDT, 2005), em tempos de conflitos e violência que não encontram explicação suficiente nas causas econômicas e sociais (MOUFFE, 1999;

BAUMAN, 2008; WALSH, 2009; OCHOA, 2003; SEN, 2015; COELHO, 1999). Teve as limitações e as potencialidades que impunha a abordagem quantitativa e empírica do estudo da realidade, bem como o uso de fontes secundárias de produção de dados estatísticos para informá-la. O ICI seria destinado a contribuir para identificar com muita simplicidade, mas também com o pragmatismo derivado da disponibilidade ou não de fontes de informação, as ideias, os comportamentos e as práticas que são determinantes para que os Estados, as pessoas e as comunidades valorizem suas diferenças como constitutivas do bem-estar. Em sentido contrário, identificaria as condições de natureza simbólica que prejudicam as relações de convivência, indicando pontos sensíveis de desigualdades, contradições e conflitos sociais que se somam aos econômico-estruturais. Uma ferramenta como o ICI dimensionaria as condições e a qualidade da interação intercultural, interviria na conversa social com base nos números e, a partir daí, encaminhar-se-ia às perguntas por trás dos indicadores, contribuindo para identificar os componentes culturais da crise. 2. A construção do ICI Após um intenso processo reflexivo, baseado em uma exaustiva revisão bibliográfica e nas diversas estatísticas globais disponíveis, em reuniões e consultas a especialistas, a equipe encarregada da criação do Índice de Convivência Intercultural decidiu concentrar a medição nas dimensões que evidenciam o tratamento dado a vários grupos sociais em luta e que compreendem parcialmente a convivência intercultural


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em cada país. Dessa forma, as dimensões que compõem o ICI são as seguintes: • tratamento dado aos grupos indígenas, tribais e raciais; • tratamento dado aos imigrantes e refugiados; • tratamento dado às religiões; • tratamento dado às mulheres; • tratamento dado às orientações e identidades sexuais; • tratamento dado aos grupos etários; • tratamento dado às pessoas em situação de deficiência.

Por outro lado, foram diferenciadas subdimensões relevantes, tais como: convivência pacífica e proteção de direitos; igualdade econômica e política e inclusão educacional e profissional. Com base nos cruzamentos entre dimensões e subdimensões, foram identificados os indicadores que finalmente integram o ICI. Os principais critérios para a seleção de indicadores foram a opinião de especialistas, a complementaridade (não sobreposição) com outros índices que abordam aspectos relacionados e a existência de dados e indicadores pertinentes para os países verificados.

ÍNDICE DE CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL (ICI) TRATAMENTO DADO Assinatura e ratificação da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) AOS GRUPOS INDÍGENAS, Uso da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial TRIBAIS E RACIAIS Instituição especializada em grupos étnicos

AOS IMIGRANTES E REFUGIADOS

Assinatura da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos dos Trabalhadores Imigrantes e dos Membros das Suas Famílias Proporção de pessoas refugiadas ou em situação de asilo recebidas pelo país Proporção de pessoas refugiadas ou em situação de asilo geradas pelo país

ÀS RELIGIÕES

Restrições governamentais a religiões Hostilidade social a religiões Proporção de mulheres com ensino secundário

ÀS MULHERES

Proporção de assentos no Parlamento para mulheres Ratificação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher

ÀS ORIENTAÇÕES E IDENTIDADES SEXUAIS

Direito à união civil de pessoas do mesmo sexo e direito à adoção Existência de proibições e punições para atos sexuais Ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança

AOS GRUPOS ETÁRIOS

Existência de exploração de mão de obra infantil Morte entre jovens por causas externas Existência de leis contra o abuso de idosos

ÀS PESSOAS EM SITUAÇÃO DE DEFICIÊNCIA

Ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

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2.1 Revisão bibliográfica e identificação são principalmente culturais; b) que possuam da estrutura ideal conotação coletiva e pública; c) que tenham A primeira fase consistiu em realizar mais relevância significativa do que quantitauma profusa revisão bibliográfica de dis- tiva; d) que sua gravidade afete a convivência cursos filosóficos, políticos e de diferentes; e e) que, mesmo técnicos que constatam um Surge a urgência de que estejam protegidos por uma tentar medir as relações mundo no qual a violência de norma escrita, não tenham sido natureza cultural se diversifi- humanas a partir de incorporados aos usos e práticas componentes que cou e aumentou fortemente. sociais cotidianos. permitam dar visibilidade A bibliografia corroboEm sua primeira versão, o à contribuição da ra as mudanças nas formas cultura, sob a premissa ICI – que chamaremos de ideal – de representação social e na de que as diferenças considerava central a noção de violência contra as mulhe- podem configurar território cultural, entendido res e as populações infantil e oportunidades como “uma trama de relações idosa. Também demonstra a mais ou menos acolhedoras, enintensificação de movimentos migratórios e tre humanos e não humanos, que constituem suas causas (humanas e naturais), ao mes- locais de intercâmbio suficientemente estáveis​​ mo tempo que verifica o recrudescimento de para gerar identidades espaciais, individuais conflitos étnicos e religiosos, enquanto se re- e coletivas, que sempre estão em movimento velam persistentes dificuldades para incor- e que são consideradas valiosas por quem as porar a diversidade sexual e incluir pessoas compartilha, pois expressam seus modos parem situação de deficiência. ticulares de ser e de estar no mundo”2. Além disso, evidencia a dificuldade de O ICI ideal foi dividido nas três dimenestabelecer convivências interculturais de- sões a seguir: mocráticas que permitam maior bem-estar e • estudo do hábitat: seu objetivo era desenvolvimento social. Daí surge a urgência medir as condições humanas e da de tentar medir as relações humanas, indinatureza determinantes para a conviduais e coletivas, a partir de componentes vivência entre os habitantes do mesque permitam dar visibilidade à contribuição mo território; da cultura, sob a premissa de que as diferen• pluralismo e respeito às identidades ças podem configurar oportunidades. coletivas: propunha medir a incorpoPor isso, a primeira estrutura do ICI e de ração ou não da diversidade cultural de suas dimensões incluiu as mais diversas quesgrupos humanos a partir de princípios tões relacionadas à valorização da convivência democráticos de convivência religiosa, intercultural. Em razão da pluralidade de variáétnica, linguística e patrimonial; veis ​​e indicadores e com a certeza de que não • respeito e aceitação de identidades inseria possível incluir todos em um único índice, dividuais: concentrava-se em medir a foi feita a redução com base nos seguintes critéexistência de estereótipos negativos rios: a) que expressem realidades cujas causas ou significações positivas que afetam


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a convivência entre os segmentos populacionais aos quais são atribuídos determinados elementos simbólicos.

Essas três dimensões estavam compostas de 16 variáveis, conforme mostrado no seguinte esquema:

ICI 3 dimensões

CONSIDERAR AS MEMÓRIAS DO HÁBITAT

PLURALISMO E RESPEITO ÀS IDENTIDADES COLETIVAS

RESPEITO E ACEITAÇÃO DAS IDENTIDADES INDIVIDUAIS

VARIÁVEIS DA DIMENSÃO 1:

VARIÁVEIS DA DIMENSÃO 2:

VARIÁVEIS DA DIMENSÃO 3:

1. traumas territoriais

1. religiosas

2. cultura política

2. étnicas

1. d e gênero (mulher e orientação sexual)

3. e spaço público e comunicacional

3. linguísticas

2. etárias

4. r econhecimento/salvaguarda dos patrimônios materiais e imateriais

3. migrações

4. governança ambiental

2.2 Visão dos especialistas sobre a composição do ICI ideal O ICI ideal, composto de 16 variáveis ​​e 50 indicadores, foi exposto a uma revisão por pares, com seis especialistas de origem ibero-americana, durante uma reunião em São Paulo nos dias 4 e 5 de agosto de 2016, sob o lema: “ICI. Uma contribuição da cultura para a sociedade em época de mudanças”. Por meio de uma pauta de oito perguntas conceituais e políticas, metodológicas e operacionais, esses especialistas desenvolveram suas críticas e sugestões.

4. deficiência

Participaram do encontro Enrique Saravia (Argentina, Brasil, Colômbia), Fernando Carrión Mena (Equador), José Teixeira Coelho Netto (Brasil), Patricio Rivas Herrera (Chile, Colômbia, Equador), Silvio Luiz de Almeida (Brasil) e Victor Vich (Peru), além da participação a distância de Alfons Martinell Sempere (Espanha), junto com a equipe ICI do Itaú Cultural. Os especialistas foram convidados a fazer observações críticas sobre três aspectos do índice: sua pertinência política, sua contribuição social e as definições conceituais

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que melhor comunicavam suas intenções. internacionais. Ou seja, existe uma disposição Suas contribuições permitiram ajustar e favorável à institucionalidade para regular os melhorar a proposta do ICI ideal. conflitos culturais. Eles acharam especialmente Após a revisão por pares de agosto, as prioritários os indicadores relacionados à prodimensões do ICI foram reformuladas em teção dos direitos das crianças, das pessoas com duas: a) avaliação de diferentes identidades orientações sexuais diversas e das pessoas em culturais; e b) condições estruturais para a situação de deficiência (mais de 80%), seguidos convivência. Esta última compreendia a di- dos indicadores que protegem os direitos das mensão territorial, em que parecia relevan- mulheres, dos refugiados e imigrantes e dos grute considerar a existência ou não de eventos pos raciais, indígenas e tribais (mais de 70%). naturais ou humanos que tenham mudado Em relação às dimensões, eles se inradicalmente a convivência; clinaram pela avaliação das de hábitos de participação Existe uma diferenças entre homens e mudisposição favorável cidadã na governança local e lheres e, em segundo lugar, dos à institucionalidade nacional; de conflitos comuimigrantes. Uma importância para regular os nitários devidos a causas am- conflitos culturais marginal foi atribuída por esse bientais; e de espaços e meios grupo de especialistas à avaliade comunicação abertos e disponíveis a toda ção das pessoas em situação de deficiência, a população para o desenvolvimento de prá- e a avaliação de diferenças etárias ficou na ticas de convivência intercultural. Aqui foi última posição. No que diz respeito à avaliaincorporada a mensuração do consumo cul- ção das diferenças étnicas, sua importância tural, para entender a relação entre convi- foi bastante reduzida pelos consultados. vência e expressões artísticas. Dois meses após a reunião de especia- 2.3 Reformulação de dimensões listas em São Paulo, foi realizada uma segune indicadores de acordo com a da consulta, por meio de um questionário em disponibilidade de fontes quatro idiomas (português, espanhol, inglês Essas visões externas sobre a compoe francês), com mais de cem especialistas sição do ICI, além da busca por fontes de no campo da cultura, dos cinco continentes. informação para obter seus indicadores, deO instrumento se destinou a solicitar suas limitaram as mudanças que deram estrutura opiniões sobre o ICI já reformulado, após a ao ICI real. revisão por pares, com ênfase em duas quesA revisão dos metadados internacionais tões: avaliação hierárquica das dimensões e disponíveis para cada indicador do ICI real avaliação hierárquica dos indicadores. para o máximo de países nos mostrou a falta Em relação aos indicadores, o balanço das de fontes secundárias para explicar a convirespostas obtidas permitiu afirmar que os espe- vência intercultural, especialmente a respeicialistas classificam como sendo “muito impor- to dos grupos sociais observados. Além disso, tantes” os indicadores referentes à ratificação de essa busca nos permitiu descobrir que esses convenções e outros instrumentos normativos atores sociais em luta têm pouca influência


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nos sistemas nacionais e mundiais de pro- social e institucional dado a grupos da sociedução de informação. dade civil que defendem o reconhecimento A inexistência de dados mensurados de suas diferenças culturais. Algumas pautas periodicamente em vários países foi uma li- tão relevantes e urgentes, como o feminicídio, mitação fundamental no momento de decidir carecem de cifras regularmente medidas nos os indicadores do ICI real. Isso resultou na países. Isso contrasta com o grau de repercusinclusão de uma quantidade maior de indi- são no debate público que esse tema adquiriu cadores sobre o tratamento institucional dado nas últimas décadas. A falta de dados também às diferenças culturais do que daqueles que ocorre com grupos que têm séculos de presenrepresentam comportamentos socioculturais ça no continente e no debate público, como da população, que são indicadores de resulta- os afrodescendentes. dos. Ou seja, sensos comuns inUma segunda conclusão é corporados nas comunidades. O ICI seria uma que foi preciso desistir do uso A dimensão territorial, por ferramenta que nos de uma dimensão territorial, permitiria destacar que sua vez, por razões metodológique nos permitiria medir as cas e pela dificuldade de obter vivemos em culturas condições humanas e da nafontes secundárias de dados machistas, xenofóbicas tureza que são determinantes pertinentes e comparáveis, foi e/ou homofóbicas e para a convivência. A ausência que suas causas estão eliminada. Optou-se por trabade contexto territorial para a associadas a crenças lhar com essas variáveis ​​como análise das relações de concompartilhadas pelas contexto, ou seja, como fatores comunidades que vivência entre indivíduos e importantes para a posterior in- as permitem ou as grupos nos confronta com o terpretação do resultado do ICI. restringem, e não debate sobre a natureza coleAo mesmo tempo, destacou-se a a comportamentos tiva dos direitos culturais e a importância de acentuar o ca- psicológicos individuais exceção ou o relativismo geráter relacional que caracteriza e de exceção rado por eles, diferentemente o índice e, portanto, decidiu-se dos direitos humanos, de preenfatizar dados que digam algo sobre a condi- tensão universal e ontológica, distribuídos ção de determinado grupo e deste em relação a em sujeitos individuais. outro. O foco das relações entre os grupos está No entanto, o ICI seria uma ferramenta alinhado com uma visão de que os direitos cul- que nos permitiria destacar que vivemos em turais são coletivos. culturas machistas, xenofóbicas e/ou homofóbicas e que suas causas estão associadas a 3. Conclusões: a invisibilidade crenças compartilhadas pelas comunidades estatística do aspecto sociocultural e que as permitem ou as restringem, e não a seu caráter territorial comportamentos psicológicos individuais e Como fica evidente, uma primeira con- de exceção. A ficção por trás dessa confusão clusão do estudo sobre o ICI é a falta de dados, do tratamento judicial dos conflitos de conem nível nacional e global, sobre o tratamento vivência intercultural deriva do fato de que

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o ideal moderno declara e garante a igualdade e a liberdade individual, mas não as apoia no âmbito coletivo. Assim, o normativo e o punitivo não foram suficientes para alterar comportamentos culturalmente discriminatórios, demonstrando que a modificação de crenças é uma tarefa socioeducativa amplamente sustentada ao longo do tempo, como qualquer mudança cultural. Tanto a falta de dados estatísticos quanto a carência de um contexto territorial de análise fazem com que o ICI real reflita principalmente o tratamento dos Estados com relação às diferenças, e não tanto aos hábitos de suas populações. O ICI real acaba sendo mais institucional do que social, e isso significa que as realizações políticas dos atores socioculturais e suas reivindicações se expressam na academia e nos regulamentos, mas não na comunidade. Assim, as realizações se tornam técnicas e burocratizadas, perdendo seu caráter transformador de comportamentos e de significados comuns para a convivência intercultural. Por outro lado, parecia não haver disposição para medir esses comportamentos e, portanto, era necessário promover urgentemente a geração de sistemas de produção de metadados internacionais, relacionados com os atores sociais em luta pelo reconhecimento de suas diferenças e particularidades. Isso implica se dispor a gerar agendas de caráter intersetorial e de múltiplos atores, e não apenas das artes e do patrimônio. Finalmente, o que não foi possível medir em razão da falta de nomenclatura ou dados nos diz quão importante ou possível é que a cultura contribua para o desenvolvimento sustentável em termos de convivência.

María Paulina Soto Labbé Doutora em estudos sociais e políticos americanos, é atualmente vice-reitora acadêmica da Universidade das Artes do Equador.

Alejandra Ruiz Tarrés Socióloga e doutora em estudos sociais e políticos americanos.


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Referências ARENDT, H. ¿Qué es la política? Madri: Paidós, 2005. BAUMAN, Z. Miedo líquido. Buenos Aires: Paidós, 2008. COELHO, T. Guerras culturais. São Paulo: Iluminuras, 1999. MANDOKI, K. Prácticas estéticas e identidades sociales. México, DF: Siglo XXI Editores, Conaculta-Fonca, 2006. MOUFFE, C. El retorno de lo político. Tradução de Marco Aurelio Galmarini. Barcelona: Paidós, 1999. OCHOA, A. M. Indicadores culturais para tempos de desencanto. In: Políticas culturais para o desenvolvimento. Uma base de dados para a cultura. Brasília: Unesco, 2003. Disponível em: <http://unesdoc.unesco.org/ images/0013/001318/131873por.pdf>. Acesso em: 4 set. 2019. ONU. Transformar nuestro mundo: la agenda 2030 para el desarrollo sostenible. Documento oficial das Nações Unidas. Resolução A/RES/70/1, 2015. Disponível em: <http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/70/L.1&Lang=S>. Acesso em: 4 set. 2019. SEN, A. Identidade e violência: a ilusão do destino. São Paulo: Iluminuras: Itaú Cultural, 2015. Disponível em: <https://www.itaucultural.org.br/identidade-e-violencia>. Acesso em: 4 set. 2019. SOTO, M. P. La revolución de lo bello. Capacidades culturales para el desarrollo. Revista del Observatorio Cultural. CNCA-Chile. Edição especial. 6ª Cúpula Mundial de Artes e da Cultura, 2014. _______. (2016). El poder de los símbolos. Un índice internacional de convivencia intercultural, para la valoración de lo sensible. Palestras centrais do Seminário Internacional de Políticas Culturais. Rio de Janeiro: Casa de Rui Barbosa; São Paulo: Observatório Itaú Cultural, 2015. Disponível em: <https://www.academia. edu/29527294/El_poder_de_los_s%C3%ADmbolos_version_2016.pdf>. Acesso em: 4 set. 2019. WALSH, C. Interculturalidad, Estado, sociedad. Luchas (de)coloniales de nuestra época. Quito: Ed. Abya-Yala, 2009.


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MARÍA PAULINA SOTO LABBÉ E ALEJANDRA RUIZ TARRÉS

Notas 1

Formada por María Paulina Soto Labbé, Alejandra Ruiz Tarrés e Daniela Oda Navarro Ortega, do Chile, e por Liliana Sousa e Silva, Maria Carolina Vasconcelos Oliveira e Ana Paula do Val, do Brasil. Na terceira e última fase, juntaram-se à equipe Neale El-Dash, Enrique Saravia e Daniele Dantas.

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SOTO, María Paulina. Definição de território cultural proposta para ser analisada pelo painel de especialistas na revisão por pares desenvolvida como parte do processo metodológico de criação do ICI.

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A PERSPECTIVA COMPLEXA NA CONSTRUÇÃO DO ÍNDICE DE CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL Daniele Dantas

O presente artigo trata de aspectos relacionados ao processo de estruturação de um índice sobre o estado da convivência intercultural em diferentes países, utilizando-se dados sobre sete dimensões do cotidiano social: étnica; migrantes; religião; mulheres; diversidade sexual e de gênero; etária; e de pessoas com deficiência. A aplicação de técnicas básicas de estatística descritiva e do método de estatística multivariada possibilitou análises mais robustas sobre esse tema, baseadas no resultado matemático do índice, na análise de suas dimensões e na comparação com outros índices e indicadores, permitindo reconhecer contribuições com análises mais amplas. O processo evidenciou que o uso de instrumentos matemáticos e estatísticos tem contribuições importantes para a análise de aspectos culturais. Contudo, perspectivas que consideram a complexidade inerente ao objeto em estudo tendem a oferecer respostas mais críveis e contribuições mais substanciais.

A

gestão e as políticas culturais no século XXI incorporam a complexa rede de diversidades da vida dos diferentes grupos sociais no mundo. Simultaneamente, variados instrumentos gerenciais foram adotados na busca por respostas tempestivas e dotadas de empatia suficiente para atender à ampla gama de perfis de atores sociais e suas demandas. Nesse contexto, nota-se o crescente uso de dados, indicadores e índices, métodos e referenciais quantitativos auxiliando a leitura de cenários e a identificação e o reconhecimento da diversidade de práticas e atores culturais, além do incremento de análises de contextos mais amplos e complexos. Mas pode-se perceber, nesse ambiente fluido, de fronteiras

flexíveis e territórios móveis, que instrumentos e recursos estáticos tendem a não ser suficientes. O desafio de construção de um Índice de Convivência Intercultural (ICI), que sintetizasse condições de convivialidade e manutenção de ambientes harmônicos entre pessoas de diferentes povos, envolveu o uso de dados que representam a informação quantitativa para a leitura de aspectos qualitativos de condições e práticas cotidianas de diferentes países. Reconhecendo o potencial e as contribuições para a gestão cultural advindos do uso de indicadores e índices para fins específicos, fundamentados e contextualizados no tempo e no espaço, a construção do ICI se deu em um momento oportuno em relação às disponibilidades metodológicas


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Daniele Dantas

e tecnológicas. Está colocada em e para um Um índice como um ambiente para leisegmento no qual as fronteiras conceituais turas das realidades, como um espaço para a são maleáveis e demandam sensibilidade e construção de muitas narrativas com os vacuidado em seus usos para que não se tornem lores de verdade daqueles que delas se aproinstrumentos de hierarquização, imposição priam. Porque assim são as relações, assim de superioridades, invisibilização de alteri- é a cultura: espaço aberto para significações, dades. Dadas as capacidades técnicas reuni- construção de sentidos, respeitando-se condas e os desejos de bem aplicá-las, a natureza textos espaciais e temporais para que maiodos desafios tem seu escopo ampliado com res descobertas e contribuições surjam. níveis de complexidade presentes em todo A experiência de construção de um Íno processo. dice de Convivência Intercultural mostrou Para que as capacidades e os recursos que os recursos técnicos e tecnológicos exisdisponíveis se aliassem a decisões meto- tentes são oportunos para sua proposição, dológicas, técnicas, teórico-conceituais e desde que orientados pelos aspectos temátiempíricas, precisou-se buscar cos que os métodos aplicados a aproximação, o entrosamen- Possibilitou considerar a busquem explorar. Também to e o alinhamento diante das análise de um objeto em possibilitou reiterar o caránuances temáticas e da nego- um campo amplo como ter desafiador e essencial da ciação inerente às questões da o das relações culturais, complexidade e da diversidacultura, bem como dos pontos abdicando de verdades de, vistas como riquezas, prede concessão e da empatia ne- e razões a priori; mas sentes nas fronteiras móveis, cessários. Isso em uma busca permitindo lidar com a na maleabilidade sábia e nas diversidade que lhe é permanente pelo melhor canuances que envolvem os asinerente e bela. talisador para o processo – pectos teóricos, conceituais e uma vez que, para realidades contextuais do campo da gescomplexas, respostas fechadas e simples tão e das políticas culturais. Seus catalisadotambém tendem a não existir. res? As aproximações possíveis, as conexões É necessário reconhecer que a leitura imprevisíveis e as relações imponderáveis, sintética de uma realidade, proposta por mas diligentes em surpreender. Possibilitou meio de um índice, se apresenta como um considerar a análise de um objeto em um proxy1 no apoio à leitura exploratória mais campo amplo como o das relações culturais, ampla do objeto, aqui a convivência inter- abdicando de verdades e razões a priori; mas cultural. Aspira ser um ambiente para a permitindo lidar com a diversidade que lhe observação das diferentes dimensões que é inerente e bela. compõem o índice e para uma avaliação O contexto da realização da pesquisa para multidimensional de resultados que repre- o desenvolvimento do ICI, um instrumento sentam os incontáveis lugares de cada um, para a leitura do estado da convivência interpor perspectivas nem sequer imagináveis cultural nos anos recentes, trouxe reflexões quando inicialmente reunidos. marcantes sobre questões metodológicas e

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sobre a complexidade desse tema. O reconhecimento da cultura como um campo de possibilidades para a significação foi reiterado durante todo o processo, levando a aproximações que permitiram descobertas, mobilizando empatia em um olhar interessado mais em saber da diversidade que vive em todos nós do que em construir afirmações sobre ela. Desafios e oportunidades metodológicos A proposta de construção do Índice de Convivência Intercultural compreendeu a estruturação de uma ferramenta que favorecesse a observação e a análise do estado da convivência entre diferentes culturas inseridas em uma unidade territorial comum: um país formalmente constituído. O processo de construção metodológica considerou etapas de revisões processuais e matemáticas, bem como de conceitos relacionados, que encaminharam o projeto para uma rodada de entrevistas com especialistas das áreas compreendidas nas sete dimensões propostas inicialmente (étnica; migrantes; religião; mulheres; diversidade sexual e de gênero; etária; e de pessoas com deficiência). Desafios e complexidades da coleta de dados sistematizados e confiáveis de fontes variadas, bem como a limitação da disponibilidade de dados sobre algumas temáticas ou em alguns países, foram comuns. O conjunto de países que apresentavam dados de acordo com o modelo matemático proposto foi limitado, sendo necessário assumir premissas que permitissem a leitura dos resultados de forma equilibrada. A proposta matemática do índice ambiciona resultados representativos da

realidade de diferentes países sobre as relações humanas a partir das sete dimensões anteriormente apontadas. O resultado do cálculo apresenta um valor numérico, que busca representar o estado da convivência intercultural em diferentes países. A dinâmica de mudanças rápidas da sociedade, a existência e a disponibilidade dos dados e a possibilidade de sua atualização de acordo com padrões de qualidade apontados por protocolos internacionais apresentam-se como desafios sensíveis e de gerenciamento custoso – do mesmo modo que a identificação de dados produzidos em diferentes lugares e por diferentes instituições, que podem não ter a mesma referência conceitual. Isso poderia fazer com que os valores numéricos não traduzissem a mesma ideia. A possível limitação das fontes de dados disponíveis demanda um empenho que tem grandes contribuições para o campo cultural. Negociadas e equacionadas questões relacionadas aos dados a ser utilizados, a composição do índice trouxe desafios em relação à sua estrutura e à definição das dimensões e das variáveis que a compõem. A distribuição dos pesos das diferentes dimensões e das variáveis de cada uma delas de forma esclarecida e voluntária foi essencial. Isso porque é necessário admitir a paridade ou não das diferentes dimensões e variáveis na contribuição para a leitura do objeto em análise e seus porquês. São decisões técnicas com influência no resultado final que foram debatidas e sobre as quais não é fácil alcançar consenso. Utilizando dados de fontes secundárias2, as sete dimensões, com igual distribuição de pesos, reúnem 18 variáveis, sendo o recorte temporal dos dados de aproximadamente


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cinco anos (de 2012 a 2017). As variáveis têm pesos iguais no interior de suas respectivas dimensões. Porém, nem todas as variáveis

têm o mesmo peso, uma vez que as dimensões têm diferentes quantidades de variáveis, como se vê na Tabela 1:

TABELA 1: VARIÁVEIS, DIMENSÕES E PESOS DIMENSÃO (d)

Étnica

Migrantes

Religião

Mulheres

Diversidade sexual e de gênero

Etária

Pessoas com deficiência

PESO DA DIMENSÃO (Wd)

1/7

1/7

1/7

1/7

1/7

1/7

1/7

Fonte: Banco de dados do ICI.

NOME DA VARIÁVEL (i)

PESO DA VARIÁVEL (Wi)

PESO INDIVIDUAL (Wki)

1. Assinatura e ratificação da Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT)

1/3

1/21 (≈ 0, 0476)

2. Utilização da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial

1/3

1/21 (≈ 0, 0476)

3. Países com população nativa que conta com instituições especializadas governamentais e não governamentais

1/3

1/21 (≈ 0,0476)

1. Assinatura da Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de Todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das Suas Famílias

1/3

1/21 (≈ 0,0476)

2. Pessoas refugiadas segundo o país de destino

1/3

1/21 (≈ 0,0476)

3. Pessoas refugiadas segundo o país de origem

1/3

1/21 (≈ 0,0476)

1. Existência no país de restrições governamentais a religiões

1/3

1/14 (≈ 0,0714)

2. Ocorrência no país de hostilidade social relacionada a religiões

1/2

1/14 (≈ 0,0714)

1. Proporção de mulheres e homens com mais de 25 anos com pelo menos o ensino secundário

1/3

1/21 (≈ 0,0476)

2. Proporção de assentos no Parlamento para homens e mulheres

1/3

1/21 (≈ 0,0476)

3. Ratificação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher

1/3

1/21 (≈ 0,0476)

1. Existência no país de direitos relativos à união de pessoas do mesmo sexo e à adoção

1/2

1/14 (≈ 0,0714)

2. Existência no país de proibições ou punições para atos sexuais entre pessoas do mesmo sexo

1/2

1/14 (≈ 0,0714)

1. Ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança

1/4

1/28 (≈ 0,0357)

2. Existência no país de exploração de mão de obra infantil

1/4

1/28 (≈ 0,0357)

3. Morte entre jovens de 15 a 24 anos por causa externa

1/4

1/28 (≈ 0,0357)

4. Existência de leis contra o abuso de idosos

1/4

1/28 (≈ 0,0357)

1. Ratificação da Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência

1/1

1/7 (≈ 0,1429)

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O cálculo do índice considerou o produto entre os pesos individuais e os valores correspondentes às variáveis nas bases de dados organizadas pela equipe do ICI. A soma das

parcelas de cada dimensão totalizará o valor do Índice de Convivência Intercultural de cada país (ICIp). A operação é representada por:

ICIp= [(Ei * Wki) + ... + (Mi * Wki)+ ... + (Ri * Wki) + ... + (Mui * Wki ) + ... + (Di * Wki) + ... + (Eti* Wki) + ... + (Pi * Wki)]

Sejam Ei, Mi, Ri, Mui, Di, Eti e Pi elementos da matriz de informações do quadro de dimensões e variáveis que compõem o Índice de Convivência Intercultural, em que “i” corresponde à variável da dimensão representada por E (étnica), M (migrantes), R (religião), Mu (mulheres), D (diversidade sexual e de gênero), Et (etária) e P (pessoas com deficiência), variando entre 1 e 4. E Wki representa o peso individual atribuído a cada variável específica de cada dimensão para o cálculo, correspondente ao “i” que representa, conforme apresentado na Tabela 1. Assim, a operação do cálculo utilizando os valores das variáveis cabíveis e seus pesos foi proposta para levar a resultados que traduzam a construção conceitual do índice com a operação matemática apresentada, buscando traduzir um proxy da representação das condições de convivência intercultural nos países estudados. Considera-se que todos os entes analisados contribuam com informações sobre os mesmos aspectos, para que o cálculo guarde isonomia no tratamento e os resultados possam traduzir uma avaliação equânime, com

base nos mesmos parâmetros. Às variáveis para as quais alguns entes não apresentaram informação atribuiu-se o valor zero, possibilitando os cálculos conforme estruturado, e traduzindo com esse valor que à ausência do dado fica subentendido o não atendimento àquela condição representada pelo índice. A proposta de análise dos resultados por uma perspectiva multidimensional, observando também individualmente as dimensões que compõem o ICI, visa considerar aspectos que se destaquem para alguns entes em relação a outros, no tocante às especificidades temáticas das variáveis e das dimensões. Na contemporaneidade, nota-se que análises complexas tendem a favorecer a leitura de realidades com dinâmicas ágeis e fluidas, igualmente complexas, como se vivencia na gestão e nas políticas culturais e como se traduz no contexto do ICI. Por estarmos inseridos em uma realidade complexa, a proposta de observação do resultado do ICI, em conjunto com análises das sete dimensões e das 18 variáveis que o compõem, oferece leituras mais amplas dos resultados, favorecendo a visualização de nuances e a


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percepção de contribuições temáticas dimensionais e de suas variáveis. Os testes das análises foram realizados com dados de um grupo de 57 países de diferentes continentes para todas as variáveis do índice, nas sete dimensões. Foram considerados países que apresentassem dados faltantes (missing data) para até uma entre as 18 variáveis. Assim, a concepção do resultado do ICI foi considerada conjuntamente com análises das dimensões e das variáveis que o compõem, favorecendo uma leitura ampla, que considera as perspectivas temáticas do índice e suas nuances. Entre os países que constam do escopo do estudo preliminar, a região da América Latina e Caribe (20; 35%) formou o grupo em maior proporção, seguida de África Subsaariana (10; 17,5%), Europa e Ásia Central (9; 16%), Norte da África e Oriente Médio (7; 12%). Essas regiões, que reúnem os maiores conjuntos de países na amostra da pesquisa, juntas representam, aproximadamente, 80% do conjunto em análise. América do Norte (2; 4%), Sul da Ásia (3; 5%) e Ásia Ocidental e Pacífico (6; 10,5%) reúnem, aproximadamente, 20% do conjunto em análise. Buscando explorar os resultados, a análise multivariada3, a partir de análise de agrupamento4 pelo método não hierárquico de Ward5, foi o recurso técnico adotado para uma leitura ampliada dos resultados, utilizando o software estatístico R, versão 3.2.3. O resultado alcançado do ICI também foi analisado em par com índices e indicadores globais standard, contemplando os contextos social, demográfico e econômico: tamanho de população, coeficiente de Gini (2014), IDH (2014), PIB per capita (2014), faixa de

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renda bruta, região, índice de democracia, índice de progresso social, índice de pobreza, proporção de população urbana (2015) e expectativa de vida (2014). Isso possibilitou considerações temáticas oportunas, em perspectiva com as realidades socioeconômicas dos diferentes países. As análises do ICI em par com alguns indicadores sugerem correlação positiva entre seus resultados. Contudo, com outros, os resultados não sinalizam aproximações que ajudem a explicar ou entender melhor os resultados alcançados para o ICI. Na análise conjunta, com uso de técnica e software estatístico, verificou-se que, em geral, países situados entre os primeiros no ranking tinham resultados mais elevados para a maior parte dos índices e indicadores comparados. Pode-se perceber uma aproximação maior entre a distribuição dos resultados do ICI com perfil de renda, índice de democracia, índice de progresso social e proporção de população urbana, reconhecendo que os resultados de alguns poucos países fugiram a esse padrão. Os resultados das análises em par com demais indicadores e índices não deram elementos suficientes para que se afirme que existe correlação com os resultados mais elevados ou mais baixos dos diferentes índices e indicadores. Em relação ao perfil de renda, identificou-se alinhamento na distribuição da pontuação em relação a perfis de renda e resultados do ICI, sugerindo que podem existir contribuições em investigar o perfil de renda dos países como um fator que ajude a entender e explicar os resultados do ICI. Vale destacar que na composição do ICI não foram incluídas variáveis sobre renda. Entre

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os países com os resultados mais elevados para o ICI estão os classificados como de alta renda ou renda média-alta, como Holanda, Noruega, Austrália, Suíça, Equador, Brasil e México. Entre os menores resultados do ICI estão países classificados como de renda média-baixa ou renda baixa, como Burundi, Quênia e Quirguistão. Também foi percebida relação entre as distribuições dos países com ICI elevado e dos resultados do índice de democracia (ID). Entre os países com resultados mais elevados para o ICI, encontram-se países com ID superior a 9 (em uma escala de 1 a 10), como Noruega, Suíça, Austrália e Finlândia. Contudo, também se encontram países com ID próximo de 5, como Equador e Bolívia. Isso indica a importância de se buscar mais meios para verificar a percepção inicial de proximidade na distribuição dos resultados do ICI e do ID, particularmente no que se refere às variáveis que compõem o ID, pois podem explicar a orientação comum de alguns resultados. Da mesma forma que os anteriores, a distribuição dos resultados do índice de progresso social (IPS) sugere aproximação com a distribuição dos resultados do ICI. Tendo em vista o entendimento comum sobre progresso social, seria plausível encontrar orientação comum e positiva entre os resultados do ICI e do IPS, sendo desejável observar as variáveis que compõem ambos os índices, tal como é oportuno em relação ao ID. Mesmo com distribuição heterogênea dos resultados, a proporção de população em área urbana também sugere alinhamento com a distribuição do resultado do ICI. Os resultados apontam ICIs mais elevados

quanto mais urbanos os países, corroborando as notas do relatório inicial da equipe que desenvolveu a primeira etapa do Índice de Convivência Intercultural. Das análises em par com o ICI que não dão elementos suficientes para verificar alinhamentos entre os resultados, ao analisar o tamanho da população, nota-se que em todos os estratos de população estão presentes países com resultados que variam, assim como a distribuição deles nos rankings, não favorecendo a leitura de elementos que apoiem a compreensão ou ajudem a explicar o cenário traduzido pelo ICI. Tal como se verificou com tamanho de população, os resultados não favorecem afirmar que a distribuição dos países a partir de seu IDH permita avaliações seguras sobre o alinhamento com o resultado do ICI. Assim como entre os resultados mais elevados do ICI se encontram países com IDH acima de 8, como Argentina e Chile, entre os menores ICIs encontram-se países como Estados Unidos e Bahrein, com IDH acima de 8. Não identificando um padrão na análise em par dos resultados, seria frágil fazer afirmações desse teor. Os resultados em par do ICI com o PIB per capita também não favorecem o reconhecimento de aproximação em relação à distribuição de seus resultados. Os três países com maior PIB per capita que fizeram parte do estudo são Noruega, Suíça e Estados Unidos. Os dois primeiros estão entre aqueles com os dez maiores ICIs, e os Estados Unidos entre os 12 menores ICIs. Algumas análises do ICI com outros índices, como é o caso do PIB per capita, reiteram que é oportuno fazer análises mais complexas dos resultados de um índice


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proposto, considerando aspectos que favoreçam observá-lo como um instrumento mais robusto para a compreensão dos dados analisados. Mesmo com a identificação de proporção maior de países com expectativas de vida mais elevadas entre os maiores ICIs, não se encontram evidências para afirmar que exista uma relação direta entre eles. Isso porque, nas diferentes coortes6, é possível encontrar países com resultados variados para o ICI, suscitando reflexões acerca de outros aspectos que possam ajudar a compreender a dinâmica identificada. Da mesma forma, os resultados do índice de pobreza (IP) não apresentam evidências consistentes em relação ao Índice de Convivência Intercultural, reconhecendo-se uma distribuição heterogênea dos resultados do ICI dos países nas diferentes faixas de resultados do IP. É desejável observar a composição do índice de pobreza para verificar se as variáveis que o compõem trazem contribuições para a compreensão do resultado do ICI. O desafio da disponibilidade de dados conformou a base de modo que restringiu o uso de dois dos indicadores selecionados: região e coeficiente de Gini. Os resultados sobre a região (continente) onde o país está situado poderiam sugerir que esse aspecto tenha alinhamento com a distribuição dos resultados do ICI. Contudo, a representação de países de algumas regiões se apresenta em maior proporção no conjunto estudado, particularmente com resultados mais elevados do ICI em países da América Latina e Caribe, por exemplo; e isso cria um viés que desfavorece inferências com o uso de seus resultados no estudo.

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A ausência de dados também afeta o uso do coeficiente de Gini, uma vez que faltam dados para 37 dos 57 países considerados no escopo do estudo, o que representa aproximadamente 65% dos países analisados. Para os países que apresentam a informação, verifica-se que aqueles com coeficiente de Gini mais elevado tendem a apresentar resultados do ICI também mais elevados. Com a falta de dados de parte significativa dos países em análise, não se tem evidência suficiente para afirmar que a tendência observada se confirmaria com um conjunto de dados mais completo, o que compromete a possibilidade de leitura dos resultados do ICI em relação ao Gini. Isso ratifica a importância, em um contexto mais amplo, de buscar parcerias para a organização, a disseminação e o acesso a dados com relevância para estudos sobre condições de vida. A análise direcionada do ICI com cada um dos 11 índices e indicadores evidencia que a mensuração de aspectos complexos da realidade social agrega valor em contextos analíticos igualmente complexos e ampliados. Reconhece-se que índices e indicadores globais que traduzem aspectos relacionados com as dimensões capturadas pelo ICI podem apoiar a leitura de seus resultados, mas também podem contribuir para leituras relacionadas aos recortes temáticos das dimensões. Para análises mais aprofundadas, utilizou-se o processamento conjunto dos dados com apoio de técnica e software estatístico oportunos em estudos de aspectos sociais mais aplicados. Observando conjuntamente os resultados dos índices e indicadores standard, pode-se verificar que, em geral, os países que estão

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entre os primeiros no ranking do ICI apresentam resultados mais elevados para diferentes índices, como IDH, faixa de renda e expectativa de vida – com exceções ao padrão, como o Equador, primeiro colocado no ranking do ICI. A aplicação da análise multivariada, utilizando análise de agrupamento pelo método não hierárquico de Ward, com o software estatístico Rne versão 3.2.3, agrupou dados do resultado do ICI, informações sobre dados faltantes e posição no ranking de cada país, além de IDH 2014, PIB per capita 2014, faixa de renda, índice de democracia, índice de progresso social, índice de pobreza, população urbana 2015 e expectativa de vida 2014. Os dados sobre região e coeficiente de Gini não foram utilizados em razão da fragilidade técnica do conjunto de dados.

FIGURA 1: CLUSTER DENDROGRAMA DIMENSÕES

Já os dados sobre população apresentavam um país (Índia) com valor muito maior que os demais, criando viés e o isolando em um cluster7. Assim, optou-se por não os utilizar na análise conjunta. Os resultados mostram que os diferentes agrupamentos não reúnem os países especialmente em função de suas posições no ranking do ICI, mesmo tendo-se mantido três variáveis diretamente relacionadas ao ICI (o resultado do ICI, o do ranking e os dados faltantes), com vistas a reiterar características relacionadas a ele. Contudo, pode-se notar que a composição dos clusters tendeu ao agrupamento dos países em função de aspectos sociodemográficos, econômicos e, em alguns casos, regionais, comumente percebidos em relação aos países em estudo (Figuras 1, 2 e 3).


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FIGURA 2: CLUSTER DENDROGRAMA VARIÁVEIS

FIGURA 3: CLUSTER DENDROGRAMA INDICADORES

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Considerando contribuições pertinen- outras análises, que consideram padrões de tes em análises globais, o ICI pode evidenciar similaridade com a pontuação dos diferentes aspectos destacados por algumas caracterís- países, permitem novas leituras. Reconheticas que as variáveis que o compõem podem ce-se a influência das nuances dos valores traduzir, sem que isso permita inferências parciais (das dimensões e variáveis) que assertivas acerca de seu resultado final, que compõem o resultado final, uma vez que não necessitaria de avaliações mais aprofunda- são apenas os “vizinhos diretos” no ranking das, mas especialmente apresentadas em que se agrupam. função das informações mais desagregadas O uso da análise multivariada possibique o compõem. litou reconhecer a proximidade dos padrões O estudo das variáveis do ICI apresen- de comportamento dos países em relação a ta-se com relevância para o entendimento e diferentes aspectos das dimensões e das a explicação de padrões de revariáveis sobre as condições sultado do índice, bem como O processamento que traduzem a convivialidados dados mais oportuno para análises com de no ICI. Isso parece sugerir conjuntos de índices e indica- desagregados permitiu que a observação exclusiva do verificar que, apesar dores maiores e diversos. resultado final do índice, desA observação das va- de os dados serem vinculado de análises mais processados a partir riáveis e das dimensões complexas das variáveis e das do mesmo algoritmo, utilizando também análise dimensões que o compõem, outras análises, que multivariada considerou seus consideram padrões pode induzir a conclusões resultados e buscou reconhe- de similaridade com incipientes. É desejável uma cer a contribuição de cada uma a pontuação dos leitura dos dados em formato na construção do índice. Esse diferentes países, de painel, para evidenciar, estipo de análise possibilita uma permitem novas leituras clarecer, informar ou mesmo observação dos resultados do apoiar processos de tomada de ICI não limitada à construção de rankings decisão pautados em análises mais aprofuncom os valores sintéticos alcançados para dadas e com mais informações. cada país. O uso de índices e indicadores globais Confirmando a hipótese de realidades que traduzem aspectos relacionados com as complexas, com avaliações para além da or- dimensões capturadas no ICI pode apoiar a dem dos resultados em um ranking, notou-se compreensão dos resultados do índice e conque os resultados dos agrupamentos tanto tribuir para a leitura dos recortes temáticos das dimensões quanto das variáveis não re- das dimensões. Contudo, algumas análises uniram os países estritamente conforme a não foram significativamente conclusivas, ordem do resultado final do ICI. O proces- evidenciando que o estudo empírico de alguns samento dos dados mais desagregados per- conjuntos de dados não é suficiente quando se mitiu verificar que, apesar de os dados serem busca identificar padrões comuns e possíveis processados a partir do mesmo algoritmo, relações entre os resultados. Para conclusões


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mais agregadoras é oportuno fazer análises mais complexas dos resultados, considerando aspectos que favoreçam observar o índice como um instrumento robusto para a compreensão das condições de convivialidade entre as pessoas indistintamente. A análise do ICI em perspectiva com cada índice e indicador standard observado evidencia que a mensuração de aspectos complexos da realidade social pode agregar valor em contextos analíticos igualmente complexos e ampliados. Quando os scores desses índices e indicadores foram observados utilizando estatística multivariada, o resultado da análise de agrupamento, assim como os resultados anteriores, mostrou que, nos diferentes agrupamentos, os países não guardam proximidade com suas posições no ranking. Isso sugere que as análises que se limitem à construção de rankings e considerações sobre a ordem percebida podem não ser suficientes para apreciações mais robustas ou mesmo para a descoberta de padrões que traduzam comportamentos não esperados. Perspectiva complexa e recomendações pertinentes O escopo temático da proposta do Índice de Convivência Intercultural (ICI) compreende um conjunto diverso e amplo de aspectos da vida em sociedade. A abrangência geográfica do índice tende a alcançar grandes escalas, mesmo que se adote como recorte apenas um continente. Situadas as reflexões no campo da gestão e das políticas culturais, considerando aspectos simbólicos, as avaliações dos processos de coleta de dados, a identificação de padrões de comparabilidade adequados e de construção matemática

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compõem um contexto complexo e sensível por natureza. A operacionalização do processamento dos dados, da extração de resultados e de suas análises completa o cenário. Em processos desse tipo é importante que alguns aspectos sejam conjugados, especialmente em relação a recortes conceituais; disponibilidade e confiabilidade de dados; construção lógica das bases para o processamento; uniformização de escalas; padronização de unidades de medida, de escalas comuns e do tratamento comum a questões que avaliam temáticas diferentes; determinação e distribuição de pesos entre variáveis e dimensões; definição das variáveis em função de referenciais internacionais convencionados ou de aspectos que melhor atendam às demandas do índice, entre outros aspectos. Isso reitera a complexidade do processo de operacionalização do ICI. Buscando aproximar a tradução dos resultados da realidade teórico-conceitual das dimensões e dar a eles legitimidade, a colaboração de especialistas temáticos de cada dimensão com análises e críticas traz contribuições importantes e favorece maior aproximação das abordagens teórico-conceituais e práticas, como a identificação de outras fontes e perfis de dados e a definição de variáveis que melhor traduzam as temáticas abordadas, além de contribuir com maior legitimidade ante formadores de opinião em contextos regionais e internacionais. A proximidade dos especialistas com aspectos diversos das temáticas e sua autoridade e legitimidade em relação a decisões sobre abordagens conceituais, conjuntos e bases de dados mais apropriados, bem como especificidades e nuances, são sensíveis e

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estruturais em projetos como o do Índice de Torna-se um desafio identificar os Convivência Intercultural. meios pelos quais as políticas culturais efeIsso tende a sedimentar os níveis de con- tivamente possam ajudar a responder às fiança em relação aos resultados apresenta- questões abordadas e de que maneiras suas dos, caso as referências teórico-conceituais ações podem operacionalizar e reconhecer e as decisões metodológicas e procedimen- suas contribuições efetivas como respostas tais tomadas estejam mais alinhadas com aos processos socioculturais. Isso porque a realidade de cada dimensão. Nesse con- as variadas questões abordadas pelas sete texto, a atenção à perspectiva metodológica dimensões e pelas 18 variáveis acessam e conjugada com a perspectiva são acessadas por estímulos teórico-conceitual tende a tra- Torna-se um desafio e caminhos autônomos, comduzir uma boa aliança entre identificar os meios plexos e de baixo potencial de as decisões técnicas e aquelas pelos quais as políticas controle objetivo por ações de qualificadoras das nuances culturais efetivamente um campo específico. possam ajudar a existentes em cada dimensão, As possibilidades de anáaumentando as chances de os responder às questões lise sugerem uma perspectiva abordadas e de que resultados traduzirem, com sobre diversidade e conviviamaneiras suas ações maior pertinência, o que se podem operacionalizar lidade. Vale dar atenção espretenda em relação ao objeto e reconhecer suas pecial às variadas percepções em análise. e interpretações sobre divercontribuições efetivas Paralelamente, a estrutu- como respostas sidade tanto em contextos ração dos resultados de forma aos processos dominados por referenciais aberta, apresentada como sis- socioculturais ocidentais quanto em relação tema ou painel de indicadores, à gama de leituras pertinentes orientando a uma análise mais ampla dos em contextos com outros referenciais. Assim, resultados, permite aos usuários do ICI se mantém-se uma perspectiva de respeito e não apropriarem melhor do instrumento e dar julgamento do estado das práticas culturais sentidos ampliados a ele. Tendo em vista as dos diferentes lugares. E pauta-se a avaliaoportunidades de qualificação e melhoria ção por algum referencial qualificador, que contínuas, apresentar o ICI como obra aber- seja fundamentado em argumentos que se ta, passível de significações e leituras a partir respaldem e agreguem, e não que se excluam. das diferentes realidades, pode oferecer mais Reconhece-se que a Unesco e outras vantagens aos diferentes públicos do projeto instituições internacionais atuam a partir de do que entregar um resultado fechado que se uma perspectiva ampliada de cultura. Vale pretenda tradutor de uma leitura estática de saber de que modo, em contexto ampliado e verdade. Isso parece ter maior alinhamento regido por estímulos de origens diversas, é com o conceito ampliado de cultura e com os possível auferir de onde vêm – e se vêm de referenciais de reconhecimento de diversida- estímulo específico – as mudanças ocorridas des adotados no desenvolvimento do índice. em quaisquer contextos, dado o recorte inter,


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multi e transdisciplinar das ações que afetam a publicação de resultados, a apresentação o campo das sociabilidades e da cultura. A das fichas padronizadas com metadados das aproximação de instituições que já desenvol- variáveis junto com a base de dados alinha vem trabalhos e agregam expertises no cam- projetos que coletam, organizam e analisam po da gestão e das políticas culturais reitera dados na cultura com as boas práticas de uso oportunidades de potencializar um instru- de dados pela perspectiva do acesso aberto, mento com possibilidade de contribuir para em um processo de aproximação de práticas o desenvolvimento de ações, programas e polí- internacionais de transparência, integridade ticas no campo da cultura para diferentes paí- e accountability. ses. Tornar o desenvolvimento Compreender que todo do ICI um projeto colaborativo O destaque do projeto indicador traduz uma visão de entre instituições de diferentes de construção do ICI mundo e constrói uma narratilugares do mundo pode se apre- reside no trabalho va sobre aspectos semânticos sentar como uma oportunidade extenso e robusto de e cognitivos alerta sobre a imlevantamento de fontes destacada de liderança internaportância do reconhecimento cional e em contexto ampliado, e coleta e organização das diferenças entre categorias da base de dados. amadurecendo a proposta do jurídicas, técnicas e morais Trabalho extenso e índice e fazendo dele um ins- amplo em contexto presentes no campo das repretrumento de governança no global, que tem um sentações simbólicas, fundacampo da cultura. mentais para a apresentação caráter pragmático O destaque do projeto de importante, dados o sem dubiedades das diferentes construção do ICI reside no escopo e a diversidade realidades. Isso alcança os tertrabalho extenso e robusto de de repositórios mos utilizados e os conceitos levantamento de fontes e co- consultados que os fundamentem no escoleta e organização da base de po do índice, como diversidade dados. Trabalho extenso e amplo em con- sexual, orientação sexual, gênero, migrante, texto global, que tem um caráter pragmático refugiado e uma ampla gama de termos e seus importante, dados o escopo e a diversidade conceitos que merecem atenção e sensibilidade repositórios consultados. Fontes de dados de no processo de tomada de decisão e de sua que traduzem realidades e são captadas pela adoção. Isso também deve estar presente na visão de mundo dos que as buscam. Proces- seleção das fontes de dados e na definição das sos complexos e essenciais. variáveis que comporão o estudo. A organização dos dados com a aprePara isso, reuniões com especialistas fasentação das variáveis a partir de modelos de vorecem a identificação e o reconhecimento fichas metodológicas com metadados (ver de oportunidades de amadurecimento e atenmodelo de ficha metodológica no anexo) adi- dimento às especificidades das áreas tocadas ciona referenciais e apresenta informações pela proposta. Em perspectiva geral, podemclaras e sistematizadas sobre os dados utiliza- -se reconhecer os resultados numéricos como dos no cálculo do índice. Especialmente para instrumentos para contar as histórias dos

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lugares e das pessoas: não só contar histórias com dados, mas a partir deles, do que eles tenham um real potencial de expressar, de suas narrativas essenciais. Assim, toma-se o ICI como recurso não que explica a realidade de modo unilateral, mas sim que ajuda a compreender as múltiplas, dinâmicas e complexas possibilidades ali existentes. Isso considerando a adoção de uma perspectiva agregadora da realidade, e não fracionada. Tomando como princípio a não comparação de diferentes a partir de referenciais e métricas iguais, reconhece-se, com as contribuições dos especialistas, que os diferentes entes analisados já se encontram em realidades culturais diversas. Eles adotam processos de construção simbólica em condições diferentes de interculturalidade, de acordo com os referenciais do projeto do ICI. Como avaliar mensurando com as mesmas medidas? Vale destacar que utilizar variáveis já adotadas como padrão nos campos específicos contemplados nas dimensões do índice, como taxa de mortalidade infantil, pode favorecer a comparabilidade com outros estudos e modelos de indicador. Isso porque, por ser uma variável clássica, favorece sua identificação em bases acessíveis e com atualizações regulares, sendo possível identificar outros estudos que a utilizem e permitam ampliar análises em relação ao aspecto que represente. É complexo e necessário reconhecer que aspectos relacionados às diferentes dimensões costumam se entrelaçar no cotidiano, não sendo capturados por dados estanques sobre um fato isolado, pois podem se apresentar de formas combinadas

e entrelaçadas em dados sobre diferentes outros aspectos da vida social. Isso reitera a importância de uma análise aprofundada dos resultados, não os reduzindo a um valor final ou mesmo a alguns valores parciais, mas compreendendo as oportunidades de percepção das realidades a partir de suas combinações. E, nesse contexto, a atenção a aspectos semânticos e as formas de expressar avaliações com mais sutileza podem dificultar a identificação de respostas com padrões objetivos e diretos em indicadores estáticos. Não se garante que a análise multidimensional e complexa dos dados supra todas as limitações. Contudo, ela pode permitir que outras questões emerjam; que, com olhar atento e sensível, se permitam surpreender com outras respostas presentes, mas não evidentes. Algumas considerações O processo de construção do Índice de Convivência Intercultural apresentou-se como uma oportunidade de reflexão sobre o uso de recursos quantitativos para a avaliação de aspectos majoritária e substancialmente subjetivos. Até o momento, seu legado registra (1) a importância e a urgência da organização de bases de dados culturais (e de temas relacionados), (2) a necessidade de composição de equipes multidisciplinares que tenham especialistas temáticos em projetos de escopo temático amplo, (3) a necessidade do uso de termos e conceitos específicos (particularmente em relação a temas sensíveis e temáticas com maiores especificidades) e (4) a importância do uso de recortes mais amplos de análise de resultados quantitativos, que extrapolem o uso de indicadores e/ou índices


Daniele Dantas

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

pontuais, agregando uma perspectiva de sistema ou painel de indicadores. Soma-se ao legado desse estudo a oportunidade de iniciar a coleta de dados por meio de algoritmos, uma vez que no mercado cultural já se verificam experiências exitosas com o uso desse recurso. Vale considerar a reunião dos dados em diferentes recortes geográficos e temporais, constituindo recursos para o monitoramento de ações, projetos e políticas, compondo suas estratégias de avaliação, favorecendo ajustes e pautando planejamentos futuros. Fazendo isso, tais recursos tendem a permitir comparabilidade em diferentes momentos no tempo e em relação aos diferentes atores envolvidos. Considerando as contribuições oportunas com a percepção de padrões ou mesmo de aspectos em análises pontuais, vê-se no processamento conjunto dos dados, a partir de métodos mais robustos, um recurso para ampliar as avaliações dos resultados com vistas a aumentar as possibilidades de extrair mais informações dos dados. A experiência de trabalho com o ICI apresenta-se como um referencial no campo da pesquisa em cultura especialmente pelos aprendizados que adicionou. Tendo como referenciais a busca por melhoria contínua e o aprimoramento dos resultados, adaptou-se exemplarmente às respostas recebidas, compreendendo um processo aberto e de grande disponibilidade e empatia. Isso permitiu que o desafio de lidar com questões sensíveis e relevantes para os diferentes grupos sociais esteja traduzido em oportunidades de contribuir para o amadurecimento do estado da pesquisa, da gestão e das políticas culturais no Brasil.

Daniele C. Dantas É mestra em estudos populacionais e pesquisas sociais pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ence/IBGE), com especialização em estatística aplicada pelo Departamento de Matemática da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (Demat/UFRRJ) e em gestão pública municipal pela Escola de Contas e Gestão do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro (ECG/TCE-RJ). Teve dissertação selecionada no programa Observatório Itaú Cultural de Pesquisa em Economia da Cultura 2017, na categoria Pesquisa Concluída, e recebeu menção honrosa na segunda edição do Prêmio IPP Mauricio de Almeida Abreu, em 2017, com a mesma pesquisa. No doutorado, pelo Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Ibict/UFRJ), pesquisa avaliação de ativos intangíveis culturais e aspectos relacionados a valores simbólicos e econômicos. Produtora cultural desde 2003, trabalhou em instituições públicas, privadas e do terceiro setor. Diretora da Axía – Inteligência em Negócios Culturais e pesquisadora do Centro de Referência em Inteligência Empresarial (Crie/ Coppe/UFRJ), trabalha com dados e indicadores culturais e métodos aplicados aos processos de gestão, incluindo monitoramento e avaliação na gestão cultural, com uso de analítica de dados e big data estratégico.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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ANEXO: MODELO DE FICHA METODOLÓGICA NOME DO INDICADOR

COLOCAR O NOME DO INDICADOR

Conceitos e definições

Breve descrição do que trata o indicador, sua base conceitual e de interpretação. Podem ser incluídos conceitos relevantes para a compreensão do indicador e informações sobre possíveis limitações na utilização de dados para comparações ao longo do tempo ou no espaço

Fórmula de cálculo

Fórmula utilizada para a obtenção do indicador

Unidade de medida

Unidade de medida utilizada para a apresentação do indicador Cada uma das variáveis que compõem o indicador deve ser definida detalhadamente. Mencionar a fonte de dados (pesquisa, registro administrativo etc.) e a instituição que produz cada uma dessas variáveis. Devem ser registradas de acordo com o exemplo a seguir

Variáveis que compõem o indicador, suas respectivas fontes e instituições produtoras

VARIÁVEIS

FONTES

INSTITUIÇÕES

Nome da variável 1

Pesquisa X

IBGE

Nome da variável 2

Registro administrativo Y

Inep

Nome da variável 3

Pesquisa Y

IBGE

Abrangência geográfica

Recorte espacial/territorial de referência do indicador (unidade da federação, município, bacia hidrográfica, bioma, ponto de coleta, trecho de rio etc.)

Níveis de desagregação

Referem-se às possíveis desagregações que os dados têm nas suas bases. Dependendo da meta, as desagregações podem dizer respeito a sexo/gênero, raça/cor, faixa etária, urbano/rural, geografia etc.

População-alvo

É o conjunto de unidades às quais os dados se referem. Ex.: pessoas de 14 anos ou mais, empresas com cinco ou mais pessoas ocupadas, população residente etc.

Periodicidade de atualização do indicador

De quanto em quanto tempo faz sentido (e é viável) recalcular o indicador. Isto é, com que regularidade podem ser atualizados os seus valores ou a sua mensuração

Série histórica disponível

Especificar a série histórica disponível (primeiro ano e último ano)

Acesso ao indicador

Link de acesso para o indicador

Instituição produtora

Instituição responsável pela produção do indicador

Contato

Contato da instituição produtora do indicador

Referências

Citar quaisquer referências teórico-metodológicas ou analíticas relevantes para constar na ficha metodológica


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Daniele Dantas

Referências HAIR Jr., J. F.; BLACK, W. C.; BABIN, B. J.; ANDERSON, R. E.; TATHAM, R. L. Análise multivariada de dados. 6. ed. Porto Alegre: Bookman, 2009. MINGOTI, S. A. Análise de dados através de métodos de estatística multivariada: uma abordagem aplicada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005.

Notas 1

Variável utilizada em substituição a outra de difícil mensuração, construída por meio de inferência ou obtida com o uso de outros indicadores existentes.

2

São fontes de dados coletadas de outros. São dados que não foram produzidos pela própria instituição.

3

“Técnicas estatísticas que simultaneamente analisam múltiplas medidas sobre indivíduos ou objetos sob investigação” (HAIR Jr. et al., 2009, p. 23). Compreende “um conjunto de métodos estatísticos utilizados em situações nas quais várias variáveis são medidas simultaneamente, em cada elemento amostral. Em geral, as variáveis são correlacionadas entre si e, quanto maior o número de variáveis, mais complexa torna-se a análise por métodos comuns de estatística univariada” (MINGOTI, 2005, p. 21).

4

“Também conhecida como análise de conglomerados, classificação ou cluster, tem como objetivo dividir os elementos da amostra, ou população, em grupos de forma que os elementos pertencentes a um mesmo grupo sejam similares entre si com respeito às variáveis (características) que neles foram medidas, e os elementos em grupos diferentes sejam heterogêneos em relação a estas mesmas características” (MINGOTI, 2005, p. 155).

5

Método que considera que “produz os grupos mais homogêneos possíveis e de forma que os elementos dentro de cada grupo sejam homogêneos (MINGOTI, 2005, p. 176)”. Assim, busca-se verificar se alguma característica do conjunto de dados é evidenciada a partir dos agrupamentos, apoiando análises que não se limitem à verificação da distribuição objetiva dos valores em função de aspectos geográficos, do tamanho do país ou outras informações pontuais, pela perspectiva social, demográfica ou econômica.

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Em demografia, coortes são grupos de uma população que compartilham características comuns ocorridas num mesmo período.

7

Também chamado de agrupamento ou conglomerado.

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CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

María Paulina Soto Labbé

AGENDA DE POLÍTICAS CULTURAIS PARA A CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL María Paulina Soto Labbé

Os acordos, discursos, normas e ações punitivas não foram suficientes para impedir a América Latina de ser um continente desigual, instável e violento. Neste período de crise mundial, caracterizado por desastres ambientais e agressões por motivos religiosos, racistas, xenófobos, homofóbicos e sexistas, entre outros, a cultura deve ocupar um lugar de responsabilidade ética, e não apenas estética.

P

odemos contribuir para a redução dos conflitos incorporando em nossa agenda de políticas culturais as demandas dos grupos da sociedade civil engajada, que têm lutado para criar condições de convivência propícias ao reconhecimento de suas diferenças. O Índice de Convivência Intercultural (ICI) seria uma ferramenta que identificaria e daria visibilidade às ideias e aos comportamentos discriminatórios ou favoráveis ao intercâmbio simbólico – que estão fortemente enraizados nas comunidades e impactam na sustentabilidade do desenvolvimento humano – com base nas capacidades coletivas dos cidadãos, e não apenas na somatória das realizações individuais. A abordagem de convivência intercultural promove agendas setoriais nas quais as políticas da arte e dos patrimônios podem estimular o intercâmbio simbólico entre diferentes, transformando-os em sensos comuns que enriquecem as comunidades e seus

territórios globalizados, complementando as políticas culturais da diversidade e da criatividade implementadas nos últimos 25 anos. Introdução: conflitos por questões culturais Vivemos em culturas machistas, xenófobas ou homofóbicas cujas causas se originam em crenças compartilhadas, não em comportamentos psicológicos individuais. As variáveis desigualdade e violência aumentam os conflitos por questões culturais, e seus escassos canais institucionais ou comunitários de resolução impõem um desafio às políticas culturais, abrindo oportunidades para reduzi-los à medida que a sociedade possa identificá-los e torná-los visíveis. Esse é o propósito do Índice de Convivência Intercultural (ICI). A evolução dos debates sobre a contribuição da cultura para o desenvolvimento não conectou os atores socioculturais que lutam por reconhecimento (FRASER, 2006),

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e essa é uma das principais razões para a insatisfação social que vivenciamos. A arte e os patrimônios são veículos poderosos para promover mudanças culturais, mas precisam recuperar sua conexão social crítica. A partir da década de 1990, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) incorporou as dimensões humanas do desenvolvimento de uma perspectiva individual. Acreditamos que as demandas dos atores socioculturais, tais como grupos indígenas, tribais e raciais, mulheres, crianças, jovens e idosos, imigrantes e refugiados, grupos de orientação e identidades sexuais diversas e pessoas com deficiência, adquirem uma conotação de legitimidade pelo reconhecimento simbólico que vai além do desenvolvimento individual das reivindicações por redistribuição material ou econômica. Os novos e urgentes debates sobre desenvolvimento devem incorporar as dimensões próprias das relações simbólicas entre coletivos e destes com a sociedade e seu entorno natural. A gênese metodológica do ICI foi o resultado de três momentos: um de profusa revisão bibliográfica internacional, teórica, de relatórios estatísticos e de caracterização da convivência e de seus atores sociais; um segundo momento em que foram submetidos à avaliação de peritos e especialistas internacionais as dimensões, as variáveis e os indicadores que comporiam o ICI; e um terceiro, de comparação da estrutura ideal com a existência de metadados internacionais destinados a informar cada um dos indicadores, uma vez que o ICI é calculado com fontes secundárias disponíveis, no maior número de países possível1.

O projeto de criação do Índice de Convivência Intercultural nos convenceu de que as políticas culturais para o desenvolvimento devem favorecer as relações entre diferentes culturas, intensificadas pelo deslocamento de corpos e imagens em todas as direções do planeta. Podem contribuir para a redução da alta conflitualidade e das desigualdades sociais geradas por causas culturais. Avaliar a diferença é uma fonte de oportunidades para o desenvolvimento e sua sustentabilidade. 1. Violência, desigualdade e desenvolvimento O ICI pretende ter cobertura global, mas nos concentraremos na América Latina, cujos índices de violência são desestabilizadores. Juntamente com a África do Sul, quadruplicamos a média mundial da taxa de homicídios2. Cinco dos países que encabeçam a lista mundial de países com mais homicídios estão na América Latina. Mais de um terço deles ocorre aqui: Em 2012, quase meio milhão de pessoas (437.000) perderam a vida por homicídios dolosos no mundo todo. Mais de um terço deles (36%) ocorreu no continente americano, 31% na África, 28% na Ásia, enquanto a Europa (5%) e a Oceania (0,3%) apresentaram as menores taxas de homicídios em nível regional (UNODC, 2012, 2013).

A violência e a desigualdade se correlacionam. Segundo a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), nos últimos 50 anos, as estratégias de


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

desenvolvimento econômico implementadas na região não tiveram resultados favoráveis na redução da desigualdade. Na década de 1980 houve a pior crise econômica da qual nos lembramos e, naquela época, o pensamento econômico estruturalista fez alguns ajustes visando reduzir as nefastas consequências sociais resultantes da chamada dívida externa: “A crise dos anos 1980 deslocaria para um segundo plano a produção desenvolvimentista na Cepal e o principal esforço intelectual passaria para o plano historicamente imposto. […] Questões imediatas ligadas à dívida, ao ajuste e à estabilização eram privilegiadas” (CEPAL, 1998). Os anos 1980 coincidem com a primeira metade da Década Mundial do Desenvolvimento Cultural, mas, nos debates continentais, a economia manteve o seu domínio disciplinar sobre orientações mais culturais, como as políticas de educação ou de alfabetização não funcional, próprias das décadas anteriores. A partir dos anos 1990, lógicas sociológicas entraram nas equipes da Cepal e a preocupação com a equidade e a desigualdade tomaram a agenda de reflexões desse órgão e da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso): “[…] atualmente, a violência é, sem dúvida, o principal limitador do desenvolvimento econômico da América Latina […] A destruição e transferência de recursos é de aproximadamente 14,2% do PIB da América Latina” (CARRIÓN, 1994). A partir dos anos 2000 foram feitos progressos, mas a aposta no crescimento macroeconômico só aumentou a brecha de desigualdade:

María Paulina Soto Labbé

Os países de renda média foram os mais desiguais em 2007 [...] Os países de industrialização tardia seguiram esse padrão: implementaram políticas sociais universais que garantiram a aceitação das classes médias e, simultaneamente, reduziram a pobreza (Mkandawire, 2006; Deacon, 2010), mas isso difere radicalmente da atual fórmula padrão de desenvolvimento, baseada em um crescimento que beneficia os quintis de renda mais alta, acompanhado de assistência residual (“safetynets”) dirigida aos mais pobres (ORTIZ; CUMMINS, 2011).

Além da perspectiva econômica, nos anos 1990 vivenciamos os efeitos psicossocioculturais do choque pós-ditatorial e das guerras fratricidas da América Central que duraram duas décadas: Em 1971, a maioria dos países da América Latina e do Caribe não eram democracias e, durante essa década, várias nações democráticas retrocederam para o autoritarismo. [Houve golpes de Estado em Honduras, em 1972; no Chile e no Uruguai, em 1973; na Argentina, em 1976; na Bolívia, em 1980; e na Guatemala, em 1982.] Após uma onda de mudanças políticas, por volta de 1990, quase 80% dos países já haviam recuperado a democracia. E, em 2008, após as mudanças nos regimes do Equador e do Peru, a porcentagem subiu para 87% (PNUD, 2010).

Algumas das características socioculturais mais importantes dessas transições foram as expressões do excesso consumista produzido pelo cansaço da crise da década anterior, a decepção pela permanência

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do modelo de desenvolvimento imposto pelas ditaduras e o medo persistente que acompanhou as elites que encabeçaram os novos governos. Ao mesmo tempo, começou a haver uma reflexão sobre as razões das crises das democracias, bem como do impacto e do avanço arrasador das novas tecnologias de comunicação. O protagonismo decisivo dos centros de estudo, das organizações internacionais de cooperação e das alianças feitas nos exílios por integrantes das elites dos novos governos de transição foi sentido no debate sobre o desenvolvimento, sendo criados novos “lugares” para a troca de ideias, muito mais dinâmicos e interdisciplinares do que os acadêmicos clássicos, mas que não tinham a participação social das décadas anteriores. Até agora, os atores sociais em luta não foram integrados aos debates sobre desenvolvimento, exacerbando-se a distância entre estes e as propostas técnicas e burocráticas das elites de transição. 2. Diversidade cultural, criatividade e convivência Nas últimas duas décadas, o Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), a Unesco, o Pnud, a Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), a International Federation of Arts Councils and Culture Agencies (Ifacca) e a Agência Espanhola de Cooperação Internacional para o Desenvolvimento (Aecid), entre outras organizações transnacionais, encarregaram intelectuais, acadêmicos e gestores culturais de diferentes países de levantar

propostas teóricas, diagnósticos e medições do impacto econômico da produção de símbolos para produzir conhecimento aplicável às políticas anticíclicas a partir de premissas de sustentabilidade, expandindo, assim, o campo de ação política da cultura em direção à inovação e ao desenvolvimento do capital cultural, especialmente nas sociedades pobres3. A migração de políticas culturais para campos mais amplos do que as artes e os patrimônios, e especialmente a agenda pró-inovação, adiou os debates iniciados na década de 1990 que situaram a diversidade cultural como uma riqueza de amplas projeções. Atualmente, a Estratégia Unesco 20142021 afirma: A criatividade é entendida como a capacidade humana, através da imaginação ou invenção, de produzir algo novo e original para resolver problemas. É um recurso único e renovável. A criatividade permite que as pessoas ampliem suas habilidades e desenvolvam todo o seu potencial. Nas sociedades globais, baseadas no conhecimento de hoje, os ativos criativos estão gerando novas formas de renda e emprego que estão estimulando o crescimento, principalmente entre os jovens. Liberar várias fontes de inspiração, a inovação e a criatividade contribui para a construção de sociedades abertas, inclusivas e pluralistas. Como um recurso humano multifacetado que envolve processos, ambientes, pessoas e produtos, a criatividade pode inspirar uma mudança transformadora positiva para as gerações futuras.


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No âmbito da sociedade, a expansão cultura é amplamente composta de sensos das tecnologias da informação e comuni- comuns transcendentes” (SOTO, 2014a). cação e das indústrias culturais, bem como Essa abordagem cultural não teve promoda mobilidade humana, amtores internacionais, como pliou a alfabetização nas A abordagem de os paradigmas da diversidalinguagens do sensível para convivência intercultural de criativa (Unesco, 1996) e segmentos da população que que propomos valoriza da economia criativa (BID, hoje têm acesso às linguagens os direitos culturais Pnud, Unctad, Unesco, 1997artísticas e se relacionam de dos diferentes e 2018). Foi o Observatório Itaú exige que os sistemas forma afetiva com os diversos Cultural, de São Paulo, que jurídicos respeitem os tipos de patrimônio. colocou sua atenção nela. mínimos/máximos do Na proposta inicial de exercício da cidadania Na crise atual, o giro criação do ICI, reafirmamos cultural globalizada conceitual das políticas culque: “estamos interessados​​ turais estendidas ao uso econa alfabetização simbólica porque acre- nômico, social e político das artes e dos ditamos que é a base da convivência e a patrimônios é insuficiente para os enormes principal contribuição que a cultura pode desafios mundiais pela paz e pelo meio amdar às condições de diversidade cosmopo- biente que vivenciamos. lita que estamos vivenciando no mundo” A abordagem de convivência inter(SOTO, 2014b). cultural que propomos valoriza os direitos E destacamos que: culturais4 dos diferentes e exige que os sistemas jurídicos respeitem os mínimos/ [...] concebemos a criatividade como máximos do exercício da cidadania cultural o lugar onde se resolve o que parecia im- globalizada. Ou seja, que a diferença cultupossível. A criatividade resulta de um tipo ral seja respeitada e protegida, independende matéria-prima de natureza intangível: temente de onde você esteja. a imaginação e o conhecimento liberados. Os direitos culturais particularizam, Embora todas as sociedades a possuam, protegem e garantem a condição criativa e sua expressão depende da existência de um gregária da espécie humana e são irrenunacervo cultural que pode ou não estar cris- ciáveis ​​porque são o produto de um imtalizado. Ou seja, não emerge em qualquer perceptível processo cotidiano de trocas e contexto. Para transformá-la em valor, é prolongadas convivências entre as pessoas necessário identificar suas manifestações, e delas com o seu entorno. Não importa para armazená-las, colocá-las em circulação e onde vamos, independentemente da nossa projetá-las no tempo (SOTO, 2014b). vontade, todos os seres humanos carregam essas marcas (SOTO, 2018). O ICI recorre a uma ideia de cultuO desafio é grande. No direito internara que supera as expressões artísticas e cional, os direitos culturais são considerapatrimoniais porque acreditamos que “a dos direitos humanos subdesenvolvidos,


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existindo o preconceito de que apoiá-los afirmaria o “relativismo de valor” em relação aos direitos de pretensão universal (PRIETO DE PEDRO, 2004). Então, enfrentamos “a necessidade de desenvolver formas práticas democráticas baseadas no reconhecimento do direito à diferença como um direito humano fundamental. Portanto, trata-se de conceber a cidadania de uma forma diferente e específica, a partir da nossa realidade pluricultural” (RIVERA, 2010). A abordagem da “cultura para o desenvolvimento” contribuiu para essa perspectiva de convivência entre diferentes: é um componente determinante no crescimento e sustentabilidade global de uma comunidade, promovendo que as políticas culturais sejam orientadas por um conjunto coerente de iniciativas transversais a outras áreas setoriais de desenvolvimento. O princípio é que, sem desenvolvimento cultural, os avanços na conquista do bem-estar coletivo e na luta contra a pobreza e todas as formas de exclusão e discriminação não se sustentariam, porque o desenvolvimento não depende apenas de uma economia estável e de uma solidez institucional democrática (SOTO, 2014a).

A sustentabilidade deve ser cultural, e não apenas discursiva. Os tratados e convenções internacionais amplamente assinados têm sido insuficientes para resolver os conflitos característicos do nosso tempo. O “cosmopolitismo da diferença” é uma formulação descrita por Giacomo Marramao (2009) para destacar os desafios que

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enfrentamos como sociedades limitadas por crenças e comportamentos arraigados. Precisamos dimensioná-los e torná-los visíveis como hábitos coletivos ou comportamentos culturais que podem ser modificados. 3. Atores socioculturais missing Os debates que antecederam a criação de instrumentos jurídicos internacionais que protegem os direitos das diferenças de negros, indígenas, mulheres, crianças, imigrantes, diversidades sexuais e pessoas com deficiência se limitaram a ativistas e especialistas, mas não tiveram impacto cultural na sociedade ou na mídia, impedindo a redução dos conflitos e da violência associados. O ICI enfoca os direitos culturais de grupos sociais que não podem sobreviver sem o reconhecimento de sua diferença. Um homossexual rico pode ser igualmente agredido por sua orientação sexual. O que o ICI promove é o respeito e a valorização de sua diferença. Para que ocorra uma mudança cultural ou de percepção, é necessário questionar o que parece inamovível ou impossível de aceitar. Depois, incorporar na vida cotidiana o valor simbólico do sujeito que reivindica o valor de sua diferença e a redistribuição do sensível diante de uma sociedade de ideias hegemônicas (Rancière). A sustentabilidade dessa mudança dependerá da persistência do ator em luta. O ICI seria uma ferramenta que complementa as agendas de diversidade e criatividade, porque se concentra na criação de condições sociais – e não apenas individuais – favoráveis ​​à sustentabilidade do desenvolvimento cultural propício às diferenças. Nesse período de crise de violências

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humanas e ambientais, a cultura deve ocuRefugiados e imigrantes, bem como par um lugar de responsabilidade ética, e identidades e orientações sexuais, avannão apenas estética, contribuindo para çaram rapidamente no fornecimento de encontrar alternativas de informações para suas causas, resolução a partir da própria Nesse período de seguidos em eficácia informaticrise de violências sociedade civil ativa. va por mulheres e indígenas, que humanas e ambientais, Denominamos missing não avançaram tanto em dados os indicadores substanciais a cultura deve estatísticos, mas sim na formuque tivemos de abandonar ocupar um lugar de lação de direitos e na visualização responsabilidade ética, por falta de dados. Embora de seus conflitos como experiêne não apenas estética, a diferença de escolaridade cias verificáveis. No entanto, as contribuindo para entre homens e mulheres encontrar alternativas diferenças religiosas e etárias tiseja medida mundialmen- de resolução a veram um avanço menor no forte 5 , os feminicídios não partir da própria necimento de dados e, finalmente, têm estatísticas interna- sociedade civil ativa as pessoas com deficiência estão cionais estáveis. praticamente fora do espectro doAinda que tenhamos descartado in- minante, sendo o maior número de missing dicadores significativos como esse último, nos metadados internacionais e nos sistemas observamos uma clara distinção entre a im- de registro separados por países. portância pública de grupos socioculturais Para uma agenda de políticas culturais e seus registros estatísticos: alguns tinham orientadas às convivências entre diferentes, dados disponíveis, outros praticamente não é imprescindível promover a inclusão desexistiam nas estatísticas nacionais e, me- sas populações nas estatísticas nacionais. nos ainda, nos metadados internacionais. Sem elas, não é possível medir os discurConstatamos que há uma relação entre a sos que promovem a diversidade cultural, existência de atores sociais dinâmicos, a o direito à diferença e a eficácia das normas eficácia de suas estratégias de reclamação internacionais e nacionais. por um tratamento discriminatório da sua diferença e a produção de dados estatísticos 4. Caracterização de atores que permitam uma intervenção informada socioculturais: estratégias e sua mensuração. guarda-chuva Certos atores coletivos intervieram Observar e caracterizar o ator social no diálogo público, conseguindo instalar que reivindica um tratamento de reconhesuas demandas como questões socialmen- cimento de sua diferença foi outro aprendite iniludíveis, mas seu impacto na agenda zado para o ICI. Identificamos a modalidade política internacional tem um correlato ou a estratégia que esse teria usado para medesigual no sistema de registro e represen- lhorar o reconhecimento de sua dignidade tação da sua presença, especialmente nas social e sua proteção contra os abusos que estatísticas nacionais. essa diferença poderia ocasionar.


María Paulina Soto Labbé

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

TABELA 1: TIPO DE INDICADOR E SEUS ATORES SOCIAIS

DIMENSÃO

Tratamento dado aos grupos indígenas, tribais e raciais

Tratamento dado aos imigrantes e refugiados

INDICADOR ATIVADO POR SOCIEDADE CIVIL/ ESTADO/ORGANIZAÇÃO SUPRANACIONAL

ESTRATÉGIA DE GESTÃO DE SUA DIFERENÇA

Sociedade civil organizada/estatal/ supranacional

O tratamento da questão racial é antigo, mas politicamente fraco, já que foi possível instalar uma hegemonia discursiva que, no entanto, não tem correlato com as medições que permitem implementar ações em escala territorial. As questões indígenas e tribais, por outro lado, tiveram uma emergência mais recente, porém bastante eficaz, na intervenção territorial das próprias comunidades organizadas e de seus movimentos sociais indígenas, sustentados em epistemologias e cosmovisões próprias, alterando as estruturas hegemônicas e mostrando grande capacidade de usar estratégias de comunicação supranacionais

Supranacional/nacional

Embora as migrações humanas façam parte de uma longa história planetária, o atual aumento e diversificação dos deslocamentos intensificou as normas de acesso aos países ricos e a pressão política sobre os Estados nacionais. Nos países, multiplicam-se as experiências cotidianas de relações entre diferenças culturais, sendo um desafio em nível social e institucional. Nesse cenário, destacam-se como principais atores as organizações internacionais especializadas

Tratamento dado às religiões

Nacional

Este ator é muito antigo e provavelmente o mais desprovido de proteção. Atualmente, emerge com especial crueza nas lutas fratricidas, responsáveis ​​por genocídios e deslocamentos forçados. Sua padronização internacional é muito difícil

Tratamento dado às mulheres

Sociedade civil organizada/estatal/ supranacional

A luta das mulheres tem sido política e institucionalmente eficaz, e sua instalação no discurso social se acelerou nos últimos tempos. No entanto, os dados estatísticos sobre fenômenos intoleráveis, como o feminicídio e a desigualdade salarial em relação aos homens, ainda estão atrasados com relação à redistribuição do poder político

Tratamento dado às orientações Supranacional e identidades sexuais

Este ator social avançou muito rapidamente nas últimas décadas, tanto na agenda pública quanto nos regulamentos institucionais, o que o coloca entre os grupos aos quais os Estados nacionais devem o fornecimento de dados estatísticos, uma vez que a maioria das informações existentes não é produzida por órgãos públicos

Tratamento dado aos grupos etários

Supranacional/nacional

Os grupos etários geralmente não se constituem como tais, mas são representados pelos especialistas que se preocupam em estudá-los. Portanto, este é um dos grupos que possuem menos informações disponíveis. Em geral, conta com informações sobre a existência ou não de normas de proteção. O grupo com os maiores desafios de tipo cultural é o dos idosos

Tratamento dado às pessoas com deficiência

Sociedade civil/ supranacional/nacional

Estes grupos, recentemente visibilizados pelas famílias e pelos especialistas que se dedicaram ao seu acompanhamento, obtiveram pequenas conquistas com relação a medidas práticas e, recentemente, começaram a gerar uma norma internacional à qual os países estão aderindo

Fonte: Elaboração própria.

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A caracterização das estratégias dominantes é: que os atores sociais protagonistas e ativos conseguem hegemonia discursiva e a transformam em instrumentos legais nacionais ou internacionais, depois reivindicam que os governos os transformem em decisões políticas em seus territórios locais. Aparentemente, sua eficácia depende do dinamismo e da pressão que eles possam continuar exercendo no nível local. Chamamos isso de “estratégias guarda-chuva”, que procuram validar suas reivindicações de cima para baixo na sociedade. Parece que esses acordos escondem a transversalidade das vias usadas pelos grupos locais que começaram a gerar redes de colaboração transterritorial em diferentes lugares do mundo e fora das instituições. Os Estados nacionais e as supraorganizações não seriam a única forma de mobilizar a sociedade ativa nas várias temáticas que impactam diretamente na convivência das pessoas; poderiam ser também pequenas organizações comunitárias, mas não temos como medir esse tipo de instância. Finalmente, as políticas culturais para a convivência não podem ser apenas setoriais. Devem atravessar saúde, educação, transporte etc. A transversalidade das condutas e os atores que mobilizam as mudanças de comportamentos na sociedade dependem dos supraestados, dos Estados nacionais e do próprio sujeito individual e coletivo em luta. 5. Descartes devidos à falta de dados No decorrer da construção do ICI houve vários indicadores que fomos obrigados a descartar em razão da ausência de dados ampliados e confiáveis. Queremos incluí-los

em uma futura agenda de políticas culturais, pois são relevantes para continuar avançando em estratégias que ajudem a melhorar a convivência dos culturalmente diversos. 5.1. Desigualdades salariais e de acesso e reconhecimento na educação para grupos indígenas, tribais e raciais O relatório global da Organização Internacional do Trabalho (OIT) de 20116 declara: é importante destacar que hoje a luta contra o racismo continua sendo tão importante quanto sempre foi. […] É preciso eliminar os obstáculos que impedem a igualdade de acesso ao mercado de trabalho para as pessoas de origem africana ou asiática, os povos indígenas, as minorias étnicas e, principalmente, as mulheres que fazem parte desses grupos. O enquadramento de determinados grupos em função de estereótipos pode ser muito prejudicial.

Na Bélgica e na Austrália, em 2009, cerca de 45% das reclamações recebidas por atos de discriminação no emprego estavam relacionadas a raça. Na França, essa é a razão de discriminação mais citada nos processos (OIT, 2011, p. 12). Um estudo do Brasil, realizado em seis regiões metropolitanas que abrigam 43,2% da população negra e parda do país, revela que as taxas de desemprego desses grupos atingem 50,5%. Na África do Sul (2010), a taxa de desemprego de negros é de 29,5% e, nos Estados Unidos, após a explosão financeira de 2008, foi a que mais cresceu (7,9%). Os povos indígenas, apesar de não terem taxas de desemprego significativamente


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

mais altas, mostram uma grande diferença em relação aos salários. Na Bolívia, eles recebem em média 34% do salário por hora dos trabalhadores não indígenas. Além disso, o relatório indica que, nesse mesmo país, 46,3% dos trabalhos domésticos e dos trabalhos familiares (sem remuneração) são realizados por povos indígenas, enquanto no Peru isso representa 45,2%. Bolívia, Peru e Equador avançaram na instalação de escolas e universidades interculturais bilíngues, com a complementaridade de saberes que resguardam a memória coletiva patrimonial. Os movimentos indígenas latino-americanos instalaram a educação intercultural, enquanto na Europa e nos Estados Unidos isso se relacionou mais com as comunidades imigrantes. 5.2. Feminicídios e casamento precoce De acordo com o Relatório Anual da ONU Mulheres 2015-2016, “uma em cada três mulheres sofrerá alguma forma de violência física ou sexual ao longo de sua vida” (ONU, 2016, p. 16). “No entanto, alguns estudos nacionais mostram que até 70% das mulheres sofreram violência física e/ou sexual de um parceiro íntimo durante a vida” (OMS, 2013)7. Além disso, “estima-se que, em praticamente a metade dos casos de mulheres assassinadas em 2012, o autor da agressão tenha sido um familiar ou um parceiro íntimo, em comparação com menos de 6% dos homens assassinados no mesmo ano” (ONU, 2014a)8. Uma forma de trabalhar para a eliminação da violência contra mulheres e meninas seria identificar os comportamentos e preconceitos sustentados nas relações de

María Paulina Soto Labbé

convivência que potencializam e/ou facilitam esse tipo de ato. Apesar do grande número de campanhas globais de organizações internacionais e das manifestações sociais mundiais, os casos de feminicídio não estão totalmente codificados ou registrados nas estatísticas gerais dos países. Por isso tivemos de descartar essa informação e a questão dos casamentos precoces dos indicadores que configuram o ICI, apesar de considerá-los fenômenos da maior importância, urgência e gravidade para compreender as relações entre homens e mulheres. 5.3. Educação e trabalho para pessoas em situação de deficiência As pessoas com deficiência constituem os grupos sociais mais vulneráveis. Elas são discriminadas na educação, na saúde, na renda e têm dificuldades de inserção no mercado de trabalho e de acesso a espaços públicos e ao transporte. Suas dificuldades são materiais e simbólicas. De acordo com o primeiro e único Relatório Mundial sobre Deficiência, “estima-se que mais de 1 bilhão de pessoas no mundo convivem com algum tipo de deficiência, ou seja, cerca de 15% da população mundial (conforme as estimativas da população mundial em 2010)” (OMS, 2011). Essa cifra aumenta com o envelhecimento da pirâmide etária. O tipo de deficiência e as condições sociais e ambientais potencializam a vulnerabilidade dessa população. As mulheres com deficiência são mais discriminadas do que seus pares masculinos; as pessoas com deficiência intelectual têm mais dificuldade para encontrar trabalho; as crianças com

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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deficiência física se integram mais nos estabelecimentos de ensino do que aquelas com deficiência mental ou sensorial. As desigualdades econômica e étnica duplicam os riscos: “Os dados das pesquisas baseadas em múltiplos indicadores em países selecionados mostram que as crianças das famílias mais pobres e as pertencentes a grupos étnicos minoritários apresentam um risco significativamente maior de deficiência do que outras crianças” (OMS, 2011). Os preconceitos e ignorâncias que motivam a exclusão social no mundo do trabalho têm impacto econômico nas sociedades: […] privam as sociedades de 1,37 a 1,94 trilhão de dólares em perdas anuais do PIB. Cerca de 80% de todas as pessoas com deficiência vivem em áreas rurais de países em desenvolvimento e têm pouco ou nenhum acesso aos serviços de que necessitam. Por essas razões, oferecer trabalho decente às pessoas com deficiência tem um sentido social e econômico (OIT, 2007, p. 1).

5.4. O peso da velhice e as meninas-mulheres Os indicadores que representariam a variável etária no ICI eram institucionais, a ratificação de instrumentos jurídicos internacionais que consagram e garantem os direitos de crianças, jovens e idosos. Então, abordamos outros de saúde: anos de vida prematuramente perdidos (AVPP), para representar a alta taxa de acidentes e suicídio de jovens; previdência social como garantia de aposentadoria para idosos; e exploração da mão de obra infantil. Uma terceira abordagem foi a existência no país de autorização

para o casamento precoce, que cruzava componentes de gênero e idade ao mesmo tempo. Esses dois últimos indicadores de caráter social tiveram de ser descartados por falta de metadados para informá-los. O envelhecimento da população é determinante. A pirâmide etária regressiva será universal até o ano de 2045. Espera-se que em 2050 os idosos representem 22%. A mortalidade na velhice e a fertilidade estão diminuindo. Isso não tem precedentes na história da humanidade. A população economicamente ativa (de 15 a 59 anos) terá que sustentar os idosos e as crianças (ONU, 2010). É um processo generalizado, profundo e desestabilizador. Generalizado porque afeta quase todos os países; profundo em razão de suas consequências econômicas (investimento, consumo, mercado de trabalho, aposentadorias, impostos e transferências intergeracionais), sociais (composição familiar e vital, demanda habitacional, migração, epidemiologia e serviços de saúde) e políticas (altera os padrões de voto e a representação política); e desestabilizador porque afeta a justiça intergeracional e intrageracional e a solidariedade. A pressão sobre a população economicamente ativa reforçará a ideia de que os idosos são uma carga social negativa com escassa valorização sociocultural. O casamento precoce afeta desproporcionalmente mais as mulheres do que os homens, por isso está associado a comportamentos de discriminação de gênero. De acordo com os cálculos do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef ), em 2012, cerca de 400 milhões de mulheres de 20 a 49 anos de idade em todo o mundo (41%


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

da população total de mulheres nessa faixa etária) haviam se casado ou estabelecido uma relação antes de completar 18 anos. O Fundo das Nações Unidas para a População (Unfpa) informou que a proporção de casamentos de meninas antes dos 18 anos nos países em desenvolvimento (excluindo a China) é de um em cada três, sendo que a maioria das nubentes tem baixo nível de escolaridade e vive em áreas rurais, em condições de extrema pobreza (ONU, 2014b, p. 3)9. Apesar dos inúmeros tratados internacionais, o casamento precoce é um costume arraigado em várias culturas em todo o mundo, especialmente nas mais patriarcais. As áreas de maior recorrência são: países do Oriente Médio, África, Ásia, América Latina e Caribe. As meninas forçadas a se casar precocemente são expostas à violência sexual e física, à gravidez infantil e adolescente e à contração de doenças venéreas ou Aids/HIV. Sua clara conotação cultural o situa como um direito humano violado que afeta a saúde pública. É um ressaibo cultural da espécie humana, mesmo se nos situarmos no paradigma do relativismo cultural, já que se origina na incapacidade do sujeito de se defender ou reivindicar o direito de exercer sua liberdade e vontade, e seus efeitos superam a dimensão individual. 6. Propostas de convivência intercultural nas agendas de políticas culturais para o desenvolvimento A convivência intercultural é uma abordagem que nos permite observar ou visibilizar as relações desiguais de poder geradas por causas culturais ou crenças associadas a cor da pele, condição de gênero, idade,

María Paulina Soto Labbé

orientação sexual, opção religiosa ou outras características corporais ou de aparência que compõem a identidade das pessoas ou dos grupos. A questão cultural entrou no discurso normativo nos últimos 50 anos, mas não nas agendas institucionais e em seu planejamento político, muito menos na mensuração estatística. Um exemplo claro é o feminicídio. A condição política do ICI nasce de sua vocação transformadora, propícia a crenças e comportamentos favoráveis ​​à coexistência pacífica e harmoniosa entre diferentes grupos humanos. A gestão das artes e do patrimônio deve acompanhar essas outras dimensões da cultura que são transversais aos afazeres da vida social cotidiana. O ICI é uma síntese discursiva que pretende que as instituições e os agentes mediadores promovam o desenvolvimento de uma opinião pública capaz de observar e cuidar das considerações culturais de sua convivência e comunicação cotidianas. Medi-las é insuficiente, mas imprescindível. Não reduzirá conflitos próprios da interculturalidade, mas permitirá que os mais graves sejam reconhecidos. A proposta é: 1. que a convivência intercultural como expressão mais viva da sociedade atual se integre aos debates sobre institucionalidade e financiamento da produção cultural e artística, utilizando o ICI como uma ferramenta que contribua para complementar as agendas de diversidade e criatividade anteriores, que já têm um amplo avanço global;

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2. que as principais destinatárias de recursos para o desenvolvimento cultural sejam as comunidades com boa convivência intercultural, autossustentadas e reguladas, desencorajando comportamentos individuais violentos e cumplicidade dos pares; 3. que o setor cultural incorpore as linguagens do sensível na sociedade civil, para impactar os processos econômicos, sociais e políticos como uma responsabilidade ética, e não apenas estética. A arte e a alfabetização emocional como um direito humano; 4. que o campo cultural incorpore as dimensões simbólicas dos grupos indígenas, tribais, raciais, das mulheres, crianças, jovens e idosos, dos imigrantes e refugiados, dos grupos de orientação e identidades sexuais diversas e das pessoas com deficiência nos debates sobre desenvolvimento, bem como seus próprios atores sociais; 5. que os indicadores que tivemos de descartar fiquem registrados nas agendas de produção estatística de cada país e na sistematização dos metadados mundiais realizados pelas organizações internacionais dedicadas à gestão cultural.

María Paulina Soto Labbé Doutora em estudos sociais e políticos americanos, é atualmente vice-reitora acadêmica da Universidade das Artes do Equador.


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

María Paulina Soto Labbé

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

María Paulina Soto Labbé

Notas 1

Para mais detalhes, consulte o capítulo “Estudo de criação do Índice Internacional de Convivência Intercultural”.

2

A média mundial é de 6,2 para cada 100 mil habitantes.

3

Os estudos mundiais da economia criativa concordaram que há uma clara implicação econômica, política e social dessa abordagem, especialmente nos países Sul-Sul (Pnud e Unctad, 2008, 2010, 2013). A Declaração de Hangzhou (2013) e a Declaração de Florença (2014) das assembleias da Unesco incluíram a cultura como chave fundamental para o desenvolvimento sustentável da humanidade, e as contribuições da cultura foram incluídas nos Objetivos do Milênio para ser avaliadas na Agenda 2030 da ONU.

4

Karel Vasak, jurista tcheco-francês, sugere que existem três gerações de direitos humanos. Os direitos econômicos, sociais e culturais estão, segundo ele, na segunda geração, depois dos civis e políticos.

5

Sua importância se devia à sua contribuição para a visualização de componentes culturais nas relações entre diferenças (homem-mulher, indígena/negro-não indígena/não negro etc.).

6

OIT (2011): Igualdad en el trabajo: un objetivo pendiente de cumplirse. Disponível em: <http://www.ilo.org/declaration/info/publications/ eliminationofdiscrimination/WCMS_166923/lang--es/index.htm>. Acesso em: 14 set. 2019.

7

Organização Mundial da Saúde, Departamento de Saúde Reprodutiva e Pesquisa, Escola de Higiene e Medicina Tropical de Londres, Conselho de Pesquisa Médica da África do Sul (2013). Global and regional estimates of violence against women: prevalence and health effects of intimate partner violence and non-partner sexual violence.

8

Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (2014). Global Study on Homicide 2013, p. 14.

9

Relatório do Escritório do Alto Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos: Prevenção e eliminação do casamento infantil, precoce e forçado. Disponível em: <www.ohchr.org/EN/HRBodies/HRC/RegularSessions/.../A_ HRC_26_22_SPA.DOC>. Acesso em: 14 set. 2019.

77


2.

CONFLITOS RELACIONADOS AOS GRUPOS INDÍGENAS, TRIBAIS E RACIAIS

79. EXPERIÊNCIAS NACIONAIS DE LEVANTAMENTO DE IDENTIDADES ÉTNICO-RACIAIS Moema de Poli Teixeira

93. O BEM VIVER NA CONVIVÊNCIA DOS POVOS KICHWA DE SARAYAKU – ENTREVISTA COM MIRIAN CISNEROS Andréia Briene e Duanne Ribeiro


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Moema de Poli Teixeira

EXPERIÊNCIAS NACIONAIS DE LEVANTAMENTO DE IDENTIDADES ÉTNICO-RACIAIS Moema de Poli Teixeira

Compreendendo que a questão racial emerge das relações sociais, sobretudo em momentos de oposição, conflito ou de seleção social dos indivíduos (TEIXEIRA PACHECO, 1986) e que, por outro lado, o reconhecimento de identidades étnico-raciais constitui um dos aspectos mais importantes da convivência intercultural, em um país multicultural e multiétnico como é o Brasil desde a sua origem, o artigo reflete sobre as experiências do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) na investigação dessa dimensão por meio de perguntas abertas à população sobre esse tema. Em três momentos diferentes no tempo (1976, 1998 e 2008), o instituto procurou levantar os termos que a população elegeria espontaneamente para identificar o seu pertencimento étnico ou racial. O objetivo do artigo é tentar vislumbrar, nesses estudos, espaços em que a população brasileira é capaz de enfrentar a tensão historicamente latente entre identidades conflitantes, ao afirmar ou reafirmar identidades étnico-raciais que sofrem discriminação social.

O

Brasil possui uma base de dados sólida e de referência para os países latino-americanos sobre o levantamento étnico-racial das populações. Desde 1872, data do primeiro censo demográfico, ainda no Império, o país investiga a cor da população. Foi nesse levantamento, inclusive, que foram produzidas as primeiras estatísticas da população escravizada, que podia ser classificada como preta ou parda, em um reconhecimento de que a miscigenação de brancos e escravizados negros, bem conhecida pela literatura, ocorria ainda que pudesse não alterar a condição de escravidão. Naquele momento, e certamente durante um bom tempo, “negro” indicava uma condição social análoga à de escravo1. Nesse primeiro censo, a população livre foi classificada como: branca, preta, parda ou

cabocla, esta última para designar os indígenas. Investigou-se a cor da população também no censo de 1890, o primeiro da República e pós-abolição, com pequenas alterações nas categorias: a cor parda foi substituída pela categoria “mestiça”, talvez vista como mais genérica, permitindo a inclusão das mais diversas “misturas” ou “mestiçagens”. O censo de 1940 merece destaque não apenas por ter sido o primeiro do recém-criado IBGE, mas também por sua peculiaridade. Ainda que não tivesse sido pensado dessa forma, na prática funcionou com um misto de questões abertas e fechadas, porque as instruções foram mal compreendidas tanto pelo agente recenseador quanto pelo recenseado. Quem não se classificasse como preto, branco ou amarelo deveria colocar um traço

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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na resposta, mas muitos entenderam que poderiam escrever nesse espaço categorias com as quais melhor se identificassem, e o IBGE apurou essas respostas em um relatório interno. Mais tarde, na publicação do censo, todas essas alternativas de resposta foram agrupadas como “parda”. Beltrão e Teixeira, em um estudo sobre aquele censo2, constataram que, já naquela época, a categoria “moreno” havia sido a opção de maior frequência entre aqueles que não se enquadraram nas categorias pré-codificadas. A categoria “amarela” foi introduzida na pesquisa para quantificar o volume de imigração de orientais ocorrida nas primeiras décadas do século XX e nunca mais saiu dos censos que se seguiram. Os levantamentos seguintes (1950, 1960, 1980, 1991, 2000 e 2010) mantiveram praticamente intacta a estrutura estabelecida no censo de 1940, com as categorias branca, preta, parda, amarela e indígena (esta incluída em 1991). Todas as respostas alternativas foram agregadas na categoria “parda”. O censo de 2010 incluiu algumas especificidades para os declarados indígenas, como língua falada e registro de nascimento como indígena. O presente texto, no entanto, visa refletir sobre as experiências que o órgão realizou com a resposta aberta no quesito “cor”, com vistas a medir o grau de adequação das categorias utilizadas. A primeira experiência foi em um suplemento da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 1976, que pretendeu, a partir dos resultados desse estudo, preparar a reintrodução do quesito no censo de 1980, uma vez que ele havia sido excluído do censo de 19703, em consequência de críticas4. Foi a primeira vez que se implementou

em uma pesquisa em nível nacional uma pergunta totalmente aberta (“Qual é a sua cor?”)5, com o objetivo de levantar as categorias que a população brasileira utilizava de forma espontânea para se classificar racialmente. O resultado dessa primeira investigação6, na qual surgiram mais de uma centena de termos diferentes, mostrou que mais de 95% das respostas estavam contidas nas categorias oficiais tradicionais: branco, preto, pardo, amarelo, acrescida de uma quinta categoria, “moreno”, preferida pela população, até onde se sabe, desde 1940. Uma grande parcela se identificou como morena (cerca de um terço da população) e, entre essas, a maioria se classificou como parda na pergunta fechada. Os resultados dessa pesquisa também serviram para os primeiros estudos – após a grande pesquisa da Unesco7 nos anos 1950 – que revelaram as desigualdades raciais existentes no Brasil por meio de dados estatísticos8. Pretos e pardos estavam em situação desvantajosa em todos os indicadores socioeconômicos: educação, mercado de trabalho e rendimento. E assim têm permanecido, desde que essa variável passou a ser considerada uma característica fundamental da população nos estudos e perfis estatísticos. A investigação dessa questão por meio de respostas abertas foi repetida na Pesquisa Mensal de Emprego (PME) de julho de 1998, novamente com o intuito de preparar como o quesito deveria ser tratado no censo de 2000, considerando-se que trata de uma questão – a identidade étnico-racial da população – especialmente, mas não exclusivamente, sensível a mudanças no tempo. Foi também incluída no levantamento de 1998 outra dimensão, que faz parte dos processos de construção


Moema de Poli Teixeira

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

da identidade racial, que é a origem familiar. As respostas à pergunta aberta de cor ou raça apresentaram, de certa forma, um quadro semelhante ao de 1976, e a pergunta sobre origem revelou que 75% dos entrevistados se identificaram como de origem brasileira, o que refletiria um ideário de mistura racial compatível com a escolha da categoria moreno. A maior parte dos que declararam

outras identidades raciais também afirmava possuir origens múltiplas ou desconhecidas. A categoria “moreno” não se prestaria à investigação estatística justamente por sua possibilidade de englobar todas as demais, nesse sentido, não discriminando grupos, mas sim funcionando como uma categoria-síntese, integradora das demais opções em um nível ideológico.

TABELA 1 RESULTADOS DA PERGUNTA ABERTA DE COR – 1976 E 1988 DISTRIBUIÇÃO DAS RESPOSTAS À AUTOIDENTIFICAÇÃO DE COR (PERGUNTA ABERTA) CATEGORIAS

PME/98

ACUMULADO

PNAD/76

ACUMULADO

Branca

54,24

Morena

20,89

75,13

24,80

74,25

Parda

10,40

85,53

8,47

82,72

Preta

4,26

89,79

5,61

88,33

Negra

3,14

92,93

0,10

88,43

Morena clara

2,92

95,85

2,75

91,18

Amarela

1,11

96,96

1,53

92,71

Mulata

0,81

97,77

1,24

93,95

Clara

0,78

98,55

1,50

95,45

Morena escura

0,45

99,00

0,54

95,99

Escura

0,38

Indígena

0,13

Brasileira

0,12

Mestiça

0,08

0,05

Loira

0,05

0,39

Branca + outras

0,04

0,01

Outras

0,19

2,48

Total

100,00

100,00

49,45

1,08

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Em 2008, o IBGE realizou uma nova investigação, denominada pesquisa-estudo, inteiramente dedicada a essa questão e intitulada Pesquisa das Características Étnico-Raciais da População (Pcerp), implementada em cinco unidades da federação – Mato Grosso, Amazonas, Paraíba, São Paulo e Rio Grande do Sul –, acrescidas do Distrito Federal (DF)9. A pesquisa trouxe muitas inovações teórico-metodológicas, entre elas a investigação da multietnicidade, ou seja, a possibilidade de a pessoa identificar-se com

mais de uma categoria para definir a sua cor ou raça e também para definir a sua origem. Os resultados mostraram que mais de um terço não sabe ou não deseja reconhecer nenhuma origem específica, e, entre aqueles que declaram alguma, mais de 70% declararam uma única origem. Apenas 27% declararam múltiplas origens e, entre eles, o maior contingente foi o dos que se declararam pretos, negros ou pardos (em torno de 40% de cada categoria), como se pode verificar na Tabela 2.

TABELA 2 DISTRIBUIÇÃO DAS COMBINAÇÕES DE DECLARAÇÃO DE ORIGEM POR MULTIPLICIDADE NAS RESPOSTAS SEGUNDO A COR DECLARADA – PCERP 2008

ORIGEM DECLARADA

BRANCA

MORENA

PARDA

NEGRA

PRETA

AMARELA

TOTAL DA AMOSTRA

Sem declaração

25,9%

52,6%

40,0%

40,8%

45,4%

7,3%

35,0%

Origem única dado que declarou

78,6%

67,5%

60,8%

58,7%

59,1%

81,5%

72,9%

Múltiplas origens dado que declarou

21,4%

32,5%

39,2%

41,3%

40,9%

18,5%

27,1%


Moema de Poli Teixeira

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

A Tabela 3 permite observar a diversidade regional brasileira na autodeclaração espontânea de cor ou raça. Levando em conta o total da amostra, um quarto dos indivíduos pesquisados nas cinco regiões se declararam afrodescendentes. Essa declaração é maior no Centro-Oeste (Mato Grosso e Distrito Federal), assim como a declaração de branco, que é de 68,7% no total, é maior em São Paulo (70%) e no Sul (Rio Grande do Sul, 82%). A autodeclaração de pretos (19%), pela primeira vez desde as pesquisas de 1976 e 1998, é menor que a de

negros (28%), denotando crescimento da autoafirmação de uma identidade racial vinculada à origem étnica (negra) em detrimento de mera descrição fenotípica representada por uma categoria de cor (preta). No escopo da amostra, Mato Grosso foi a unidade da Federação que apresentou esse reconhecimento em maior grau (40%), ao lado do Distrito Federal (37,5%). Em torno de 45% se reconhecem como pardos, percentual que cresce em todas as unidades da federação, com exceção apenas do Rio Grande do Sul.

TABELA 3 PORCENTAGEM DE INDIVÍDUOS QUE ASSINALARAM AS DIFERENTES ALTERNATIVAS DE IDENTIFICAÇÃO SEGUNDO UF DE RESIDÊNCIA – PCERP 2008

CATEGORIAS

AMAZONAS

PARAÍBA

SÃO PAULO

RIO GRANDE MATO DO SUL GROSSO

DISTRITO FEDERAL

TOTAL DA AMOSTRA

Afrodescendente

17,5%

16,8%

26,3%

20,8%

30,7%

36,6%

25,0%

Indígena

48,0%

13,5%

19,2%

17,8%

25,4%

28,8%

20,4%

Amarelo

10,1%

2,6%

5,1%

4,0%

7,3%

5,4%

5,1%

Negro

23,4%

25,6%

29,4%

19,5%

40,4%

37,5%

28,0%

Branco

45,3%

53,1%

70,0%

82,0%

52,0%

51,8%

68,7%

Preto

25,2%

14,1%

19,5%

13,5%

28,3%

25,2%

19,0%

Pardo

73,6%

51,8%

45,2%

25,8%

58,1%

65,7%

44,7%

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Os resultados da Tabela 4 revelam a declaração de origem segundo a declaração de cor. Chama atenção que, entre os que não identificam nenhuma origem, encontra-se mais da metade dos que se declararam morenos, em torno de 40% dos que se declararam

pretos, pardos ou negros, assim como um em cada quatro que se declararam brancos. Os que se declaram brancos são os que mais declaram uma origem, ainda que esta seja genérica e imprecisa, possivelmente por esse reconhecimento ser motivo de orgulho.

TABELA 4 DISTRIBUIÇÃO DAS COMBINAÇÕES DE DECLARAÇÃO DE ORIGEM SEGUNDO COR DECLARADA – RESPOSTAS MAIS REPRESENTATIVAS

ORIGEM

BRANCA

MORENA

PARDA

NEGRA

PRETA

AMARELA

Nenhuma

25,9%

52,6%

40,0%

40,8%

45,4%

7,3%

sul-americana

0,8%

1,0%

1,0%

0,2%

0,5%

0,0%

extremo oriente

1,4%

2,5%

1,6%

0,5%

0,9%

72,6%

indígena

4,5%

14,3%

15,2%

11,8%

15,3%

0,3%

europeia

50,1%

10,5%

11,4%

5,1%

0,8%

2,7%

africana

0,8%

3,5%

6,6%

17,0%

14,9%

0,0%

europeia+indígena

6,1%

5,0%

6,9%

1,2%

0,5%

2,3%

africana+europeia

2,3%

1,6%

4,0%

5,8%

14,5%

0,2%

africana+indígena

0,6%

2,7%

3,4%

9,6%

4,0%

0,6%

europeia+indígena+africana

1,5%

2,0%

3,8%

4,6%

0,0%

0,4%

europeia+extremo oriente

1,8%

0,2%

0,8%

0,0%

0,0%

4,3%

indígena+extremo oriente

0,4%

0,8%

0,8%

0,5%

0,0%

5,4%


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Moema de Poli Teixeira

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Na medida em que a pesquisa permitia mais de uma classificação de cor ou raça, seguindo uma tendência mundial de perspectiva multicultural da etnicidade, procurou-se verificar, entre os que se

designaram pretos, pardos, negros ou afrodescendentes, quantos se identificavam com mais de uma dessas categorias. As respostas a essa indagação estão numeradas a seguir.

1. PROBABILIDADE PARA SITUAÇÕES SELECIONADAS SEGUNDO O ITEM DE IDENTIFICAÇÃO DADO QUE SE IDENTIFICOU COM O TERMO “NEGRO” Negros que só se identificam com esse termo

19,9%

Negros que também se dizem pardos

62,9%

Negros que também se dizem pretos

52,7%

Negros que também se dizem pardos ou pretos

80,1%

Negros que também se dizem pretos e pardos

35,4%

2. PROBABILIDADE PARA SITUAÇÕES SELECIONADAS SEGUNDO O ITEM DE IDENTIFICAÇÃO DADO QUE SE IDENTIFICOU COM O TERMO “AFRODESCENDENTE” Afrodescendentes que só se identificam com esse termo

24,1%

Afrodescendentes que também se dizem pardos

62,6%

Afrodescendentes que também se dizem pretos

42,6%

Afrodescendentes que também se dizem pardos ou pretos

75,9%

Afrodescendentes que também se dizem pretos e pardos

29,3%

3. PROBABILIDADE PARA SITUAÇÕES SELECIONADAS Preto ou pardo que se identifica com o termo “negro”

47,2%

Preto ou pardo que se identifica com o termo “afrodescendente”

39,8%


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Moema de Poli Teixeira

A maior parte dos que se identificam i) a visão do indivíduo sobre si mesmo; como “negros” (80%) também se identifica como “pretos” ou “pardos”. O mesmo aconii) a visão do indivíduo sobre alguém próxitece com a categoria “afrodescendente” mo (um familiar, por exemplo); (75,9%). Quase a metade daqueles que se iii) a visão do indivíduo sobre um descoidentificam como “pretos” ou “pardos” tamnhecido, baseado tão somente na aparência bém se identifica como “negros”, mas a outra deste último; metade não, o que nos remete à discussão de que essas categorias de cor (pretos e pardos) iv) a visão de um indivíduo de como é pernão podem ser vistas simplesmente como cebido pela sociedade em geral; sinônimos de uma origem negra. Isso se confirma na categoria “afrodescendente”, uma v) a descrição de como um indivíduo quer vez que apenas 40% dos que se declararam ser percebido em dado contexto. “pretos” e “pardos” também se identificam com essa categoria. Por outro lado, os dados Diferentes mídias são alimentadas mostram que os entrevistados não se fecham em uma única categoria, aceitando outros diariamente por materiais que veiculam termos próximos, como se a relativização conflitos inter-raciais de forma mais aberdas categorias de classificação étnico-ra- ta e direta ou mais sutil e resistente a uma análise ligeira. Um olhar mais ciais compusesse um campo Sabe-se que os atento pode cogitar que, por de possibilidades10. conflitos identitários trás dos principais conflitos Sabe-se que os conflitos baseados em categorias sociais existentes no Brasil, identitários baseados em categorias étnico-socioculturais étnico-socioculturais se existe potencialmente uma ancoram numa visão de questão racial embutida. Talse ancoram numa visão de si si mesmo em relação a vez, dizendo de outra forma, mesmo em relação a outros outros que surgem em que surgem em determinados determinados contextos não seja possível compreender o Brasil e seus conflitos e contextos. Em alguns contextos, esses termos podem ser mais prementes desigualdades sem compreender a dimenque em outros, podem ou não ajudar a de- são étnico-racial que dá suporte à construfinir espaços, determinar alianças ou criar ção da nação, com a persistência de seus barreiras11. Por outro lado, processos iden- problemas, conflitos e desigualdades. A titários tornam-se complexos de ser com- realidade está disponível ao analista, e os preendidos, uma vez que envolvem diversos dados sobre conflitos inter-raciais ainda níveis de subjetividade. As pesquisas (ver necessitam ser trabalhados de forma mais BELTRÃO; TEIXEIRA, 2015) informam abrangente, com metodologias cientificaque existem pelo menos cinco referências mente confiáveis. Mesmo os dados crimipara a classificação de um indivíduo, que nais, por exemplo, entendidos como a face mais violenta dos conflitos, são bastante podem envolver:

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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deficientes no levantamento da variável cor ou raça, por causa do sub-registro, por um lado, e, por outro, por não se saber quem informa e com base em quais critérios ou categorias de classificação. Uma pesquisa com esse foco, talvez inspirada no grande projeto da Unesco da década de 1950, que pretendia explicar para o mundo o Brasil como exemplo de convivência racial pacífica, ainda está por ser realizada. Uma ideia interessante poderia ser tomar por base a grande mídia para fazer um levantamento sobre diferentes tipos de conflito que são noticiados, mas nem sequer chegam às instituições formais ou aos grupos que oferecem apoio e orientação sobre direitos, por exemplo. Poderiam ser delimitadas algumas categorias de investigação e uma escala de conflitos a ser medidos em um período de referência. Especificamente na área da cultura, algumas expressões da cultura negra, como o funk, envolvem tanto um processo de inclusão na cultura brasileira mais ampla quanto atos de discriminação e preconceito de parte da sociedade, só possíveis de ser acompanhados em larga escala por meio do que aparece na mídia. Enfim, são ideias de pesquisa que poderiam contribuir para mapear melhor essa área de conhecimento. Espera-se que as análises dos resultados das pesquisas realizadas pelo IBGE possam contribuir como ponto de partida para futuras investigações que enfoquem identidades étnico-raciais.

Moema de Poli Teixeira Cientista social, mestra e doutora em antropologia social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é pesquisadora aposentada do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), Departamento de População e Indicadores Sociais, e da Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence). É assessora do departamento acadêmico da Fundação Cesgranrio.


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Moema de Poli Teixeira

Referências AZEVEDO, Thales. As elites de cor: um estudo de ascensão social. Brasiliana. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1995. BELTRÃO, K.; TEIXEIRA, M. P. El yo y el otro: alteridad próxima en la declaración del color y la raza en preguntas abiertas. Notas de Población, Cepal, n. 101, jul.dez., ano XIII, 2015. Disponível em: <https:/repositorio.cepal.org/bitstream/ handle/11362/39365/1/S1500721_es.pdf>. Acesso em: 10 set. 2019. _______. Moreno: preferência nacional desde 1940. Relatório de pesquisa. Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence/IBGE), 2009. COSTA PINTO, Luiz de A. O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em mudança. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1952. COSTA, T. C. O princípio classificatório “cor”, sua complexidade e implicações para um estudo censitário. Revista Brasileira de Geografia, v. 36, n. 3, 1974 , p. 91106. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/115/ rbg_1985_v47_n1_2.pdf>. Acesso em: 10 set. 2019. HASENBALG, C. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979. IBGE (1970). O quesito cor no censo de 1970. Parecer da Subcomissão do Censo Demográfico apresentada na 5ª Sessão Ordinária da Comissão Censitária Nacional, realizada em 28 de agosto de 1969. Disponível em: <https://biblioteca. ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv15022.pdf>. Acesso em: 10 set. 2019. _______. Características étnico-raciais da população: um estudo das categorias de classificação de cor ou raça 2008. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: <https:// ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/caracteristicas_raciais/default_ raciais.shtm>. Acesso em: 10 set. 2019. IBGE (2013). Características étnico-raciais da população: classificações e identidades. Série Estudos & Análises 2. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/ visualizacao/livros/liv63405.pdf>. Acesso em: 10 set. 2019. KERSTENETZKY, I. Carta-resposta à moção da SBPC de 1976. Ciência e Cultura, v. 29, n. 4, 1977. NOGUEIRA, O. Tanto preto quanto branco: estudo de relações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1985. ARAÚJO, T. C. N.; OLIVEIRA, L. H. G. de; PORCARO, R. M. O lugar do negro na força de trabalho. IBGE, 1985.

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TEIXEIRA PACHECO, M. P. Família e identidade racial. Dissertação de mestrado pelo Programa de Pós-Graduação em Antropologia Social do Museu Nacional (UFRJ), 1986. _______. A questão da cor nas relações e representações de um grupo de baixa renda. Estudos Afro-Asiáticos, n. 14, 1987, p. 85-97. _______ (1985). Negros na universidade: identidades e trajetórias de ascensão social no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2005. VALLE SILVA, N. do (1999). Morenidade, modo de usar. In: HASENBALG, C.; SILVA, N. V.; LIMA, M. (Org.). Cor e estratificação social. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999, p. 86-106.

Notas 1

Alguns de meus entrevistados de pesquisa (TEIXEIRA PACHECO, 1986) assim se referiam ao termo: “Eu não sou negro. Eu sou preto. Negro era o escravo”. Ver também: TEIXEIRA PACHECO, 1987.

2

BELTRÃO, K.; TEIXEIRA, M. P. Moreno: preferência nacional desde 1940. Mimeo – Escola Nacional de Ciências Estatísticas (Ence/IBGE).

3 IBGE. O quesito cor no censo de 1970. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.

br/visualizacao/livros/liv15022.pdf>. Acesso em: 10 set. 2019. 4

Ver COSTA, T. C. O princípio classificatório “cor”, sua complexidade e implicações para um estudo censitário. Revista Brasileira de Geografia, v. 36, n. 3, 1974, p. 91-106. Disponível em: <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/115/ rbg_1985_v47_n1_2.pdf>. Acesso em: 10 set. 2019; e KERSTENETZKY, I. Cartaresposta à moção da SBPC de 1976. Ciência e Cultura, v. 29, n. 4, 1977.

5

Na teoria das relações raciais no Brasil, sabe-se que a cor (fenótipo ou aparência), e não a raça (genótipo ou origem), é o principal determinante das identidades étnico-raciais. Ver: NOGUEIRA, Oracy. Preconceito de marca e preconceito de origem. In: ______. Tanto preto quanto branco: estudo de relações raciais. São Paulo: T. A. Queiroz Editor, 1985.

6

Ver: VALLE SILVA, N. do. Morenidade, modo de usar. In: HASENBALG, C.; SILVA, N. V.; LIMA, M. (Org.). Cor e estratificação social. Rio de Janeiro: Contracapa, 1999, p. 86-106.


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Ver especialmente os estudos de Thales de Azevedo na Bahia (AZEVEDO, Thales. As elites de cor: um estudo de ascensão social. Brasiliana. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1955); e de Costa Pinto no Rio de Janeiro (COSTA PINTO, Luiz de A. O negro no Rio de Janeiro: relações de raças numa sociedade em mudança. São Paulo: Cia. Editora Nacional, 1952), com os dados do censo de 1950, especialmente tabulados para o projeto.

8

Ver: ARAÚJO, T. C. N.; OLIVEIRA, L. H. G. de; PORCARO, R. M. O lugar do negro na força de trabalho. IBGE, 1985; e HASENBALG, C. Discriminação e desigualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1979.

9

IBGE. Características étnico-raciais da população: um estudo das categorias de classificação de cor ou raça 2008. Rio de Janeiro, 2011. Disponível em: <https:// ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/caracteristicas_raciais/default_ raciais.shtm>. Acesso em: 10 set. 2019.

10

Ver a discussão do conceito de “campo de possibilidades” aplicado às categorias de classificação de cor ou raça em: TEIXEIRA, M. P. (1985). Negros na universidade: identidades e trajetórias de ascensão social no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Pallas, 2005.

11

Pesquisando a questão racial na construção de famílias de baixa renda em uma favela no Rio de Janeiro (TEIXEIRA PACHECO, 1986), observei que termos raciais para classificar os indivíduos surgiam em momentos de conflito ou escolha de parceiros, como na organização da associação de moradores ou na “escolha preferencial do cônjuge”, quando são observadas as pessoas elegíveis para o casamento.

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O BEM VIVER NA CONVIVÊNCIA DOS POVOS KICHWA DE SARAYAKU – ENTREVISTA COM MIRIAN CISNEROS Andréia Briene e Duanne Ribeiro

Mirian Cisneros é líder dos Kichwa de Sarayaku, na Amazônia equatoriana, povo que desde a década de 1990 esteve no centro de disputas que opõem a autogestão territorial indígena e a liberação do espaço nacional para a exploração de petróleo. Aproveitamos a sua presença no Brasil – Mirian fora convidada para participar, em outubro de 2019, do Brechas Urbanas, ciclo de debates mantido pelo Itaú Cultural que trata da vida nas cidades – para a conversa a seguir. Entre os temas abordados estão a trajetória cidadã dos Kichwa, os desafios da articulação política dos povos indígenas e o conceito de bem viver, ligado ao respeito à natureza e à dignidade das comunidades, em contraposição a um modelo de desenvolvimento que enfoca exclusivamente a economia.

C

isneros nos revela um modelo de vida e de cultura de um povo originário da América Latina. Embora a Constituição de seu país, o Equador, reconheça o conceito de bem viver, os direitos dos povos indígenas não são integralmente respeitados, o que gera conflitos relacionados ao entendimento de desenvolvimento. VOCÊ PODE NOS CONTAR UM POUCO SOBRE O POVO KICHWA, SEU MODO DE VIDA E SUA CULTURA?

Nossa vida no povoado de Sarayaku é muito diferente da vida no Ocidente. Temos uma rotina livre e harmoniosa em nosso território porque o nosso povo ainda não chega à estrada. A única forma de chegar lá é de avião ou de transporte fluvial, pelo rio. É a única forma de chegar a Sarayaku.

Sarayaku tem escolas com professores nativos, e estamos trabalhando em um projeto de educação para que nossas crianças e jovens tenham uma visão clara de como interpretamos a vida em nosso território, onde vivemos. Os trabalhos são comunitários, trabalhamos por meio de mutirões, dos quais todas as pessoas participam. Não há dinheiro para pagar ao trabalhador, mas todos nós participamos. Existe solidariedade na minha aldeia, mas ainda temos certas necessidades. Embora tenhamos os mutirões, também produzimos artesanatos que são comercializados para gerar recursos econômicos para criar os nossos filhos. Então, temos um fundo solidário ao qual toda a comunidade contribui, para poder continuar investindo em seus produtos, vendê-los e, assim, adquirir seus próprios recursos financeiros para ajudar seus filhos a estudar.


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Vemos que é necessário, neste início de século XXI, que os nossos jovens também se preparem para ser porta-vozes da nossa cultura no futuro. Porque, junto com aqueles que foram os nossos anciãos, nossos líderes, agora estamos vivendo uma mudança na qual há uma vida entre a nossa e a ocidental. Esse é o povo de Sarayaku, que, com sua luta e resistência, usa muitos meios de comunicação para chegar às pessoas, para que elas nos ouçam e também para abrir um espaço de reflexão. H Á P R O D U Ç Õ E S AU D I OV I S U A I S E M SARAYAKU, COMO O FILME KAWSAK SACHA

esforçado para aprender, porque queremos que os nossos filhos façam melhor. PODE SÓ NOS EXPLICAR QUEM SÃO OS POVOS KICHWA NO EQUADOR E ONDE FICA SARAYAKU?

Bem, Sarayaku está dentro da nacionalidade1 Kichwa, que é a maior da Amazônia e está no Centro-Sul, em um território de 1.250.000 hectares. Dentro dele, Sarayaku ocupa um espaço de 135 mil hectares e tem entre 1.200 e 1.400 habitantes. Sarayaku, apesar de ser um povo muito pequeno, marcou história na luta e resistência diante das empresas extrativistas e em outras lutas pelos direitos humanos.

– LA CANOA DE LA VIDA, DO CINEASTA KICHWA ERIBERTO GUALINGA?

Em Sarayaku, temos um grupo de jovens interessados em questões de comunicação. O interesse deles nasceu quando as companhias de petróleo entraram em nosso território. Os jovens começaram a usar as câmeras que tinham (dos celulares) e, mesmo sem saber usar direito, fizeram um bom trabalho. O que conseguimos agora é continuar treinando os jovens, motivando-os, incentivando-os para que possam se profissionalizar. Temos materiais que eles estão produzindo, são curtas-metragens sobre a vida de Sarayaku, entrevistas com os nossos anciãos. São coisas que eles vão aprendendo na prática: como falar na mídia, como entrevistar, como dar uma entrevista, uma palestra. Todos nós estamos tentando preparar os nossos jovens. No nosso caso foi difícil aprender a falar em público, porque não tínhamos ninguém para nos dizer como deveríamos falar. A partir disso, temos nos

EM GERAL, EM QUE CONDIÇÕES VIVEM OS POVOS INDÍGENAS NO EQUADOR? DE FATO, ELES REPRESENTAM 7% DA POPULAÇÃO, ENQUANTO 71% SERIAM MESTIÇOS?

Em relação a essa pergunta, a minha resposta é que os povos indígenas sempre são colocados em uma porcentagem mínima. Na verdade, somos a maioria no Equador, porque estamos nas três regiões: serra, costa e Amazônia. Nas montanhas, estão os Kichwa andinos, que são diferentes povos e têm diferentes formas de cultura, costumes e tradições. No litoral estão os Tsáchila, os Épera, os Cofán. Ao norte da Amazônia estão os Cofán, além dos Kichwa e uma parte dos Shuar. Ao sul estão os Shuar e os Achuar. Na Amazônia somos: os Zápara, os Shiwiar, os Andoa, nós, os Kichwa, os Achuar e os Shuar. Portanto, há uma cultura diversificada no Equador. Quem mora na cidade tenta nos mostrar como uma minoria, sendo que em todas as regiões do Equador somos a maioria dos povos e nacionalidades.


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OS DADOS OFICIAIS, ENTÃO, SÃO DE 7% E NÃO REFLETEM A REALIDADE?

Isso. No Equador, eles não refletem a realidade que vivemos. Porque internacionalmente acredita-se que, como o Equador é um país muito pequeno, tem um relacionamento mais responsável e respeitoso com todos os seus habitantes, o que não acontece na realidade.

Andréia Briene e Duanne Ribeiro

nossa cultura é o que somos. Eles não querem a presença de um indígena, aí pintam uma mulher de fora e dizem: “Ela representa a cultura Shuar, a cultura Kichwa”. Nós dizemos não. É como se eu me maquiasse e dissesse: “Eu sou branca”. Não, não pode ser, é preciso ter identidade e cultura para dizer: “Eu sou isso”. Portanto, é assim! EU QUERIA SABER DAS CONDIÇÕES DE VIDA

HÁ RACISMO NO EQUADOR, COMO NO BRASIL?

Sim. No início, os estudantes indígenas não eram aceitos nas escolas mistas da cidade, porque eles sempre nos viram como inferiores, como não inteligentes e como pessoas – como eu diria – com quem eles não devem se misturar. Eu vivi essa realidade porque fui para a cidade com 13 anos. Senti muito claramente a discriminação. Porque a nossa primeira língua é o kichwa e a segunda o espanhol. Às vezes, não falávamos bem e, muitas vezes, eles nos imitavam e diziam: “Olhem, essa índia não sabe falar”. Isso me machucava, claro que me machucava, mas ao mesmo tempo eu me sentia bem, porque pelo menos eu tentava viver o que era deles, enquanto eles, os supostos mestiços brancos, não podiam nem ao menos tentar viver ou falar como o povo indígena. Até agora eles não podem fazê-lo, mas nós sim. Então, essa foi a grande diferença, houve um choque. Mas, com tanta luta e resistência, conseguimos acessar vários espaços em âmbito nacional e internacional. Porque temos a mesma capacidade de exercer cargos públicos, privados, organizacionais, tudo. Mas, atualmente, há muitos mestiços que se vestem de indígenas e fazem danças culturais. Nós dizemos que eles estão fazendo folclore. A nossa cultura não é folclore, a

DOS POVOS INDÍGENAS NO EQUADOR. VOCÊ FALOU QUE NÃO HÁ UMA SITUAÇÃO DE POBREZA, QUE VOCÊS TÊM TUDO, PORQUE CONSEGUEM PEGAR O QUE PRECISAM DA FLORESTA. MAS AS PESSOAS ACHAM QUE VOCÊS VIVEM NA POBREZA. QUERIA QUE VOCÊ COMENTASSE.

Bem, eu estava me referindo ao espaço em que vivemos, porque muitas vezes os povos indígenas são vistos como pobres. E, de repente, podemos ser pobres com relação à economia, ao dinheiro que se tem nos bancos, às bolsas de valores. Mas nós nos sentimos ricos com os recursos naturais que temos no território que defendemos. Esse é o espaço pelo qual lutamos, porque, se esse espaço de vida, onde usufruímos de tudo, acabar... Os governos nos enviam empresas de petróleo, dizendo: “Vamos ajudar os povos indígenas que estão aqui, temos blocos petrolíferos, vamos dar dinheiro ou comida”. Mas nós não queremos chegar a isso. Todos nós precisamos de dinheiro para sobreviver, comprar algo ou dar estudo aos nossos filhos. Mas não precisamos de muito dinheiro, não precisamos ser de classe alta. Porque para nós não há isso de classe alta, média e baixa. Não. Somos todos iguais, ou seja, ninguém é superior nem inferior no

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meu povo, temos todos a mesma capacidade. Por que eu acharia que você é inferior a mim? Inferior em quê? Por outro lado, na cidade há uma grande diferença quando se diz: “Eu sou de classe alta”. Eu acho que essa pessoa é igual a mim, exceto pelo dinheiro. Quando as companhias de petróleo ou qualquer empresa entrarem no território, elas acabarão com o que temos. Ou seja, a nossa riqueza vai acabar, as pessoas perderão sua cultura, sua identidade, suas tradições, começarão a comprar coisas materiais para a nossa área. Aí não vamos mais usar os nossos utensílios de barro para tomar chicha, e muitas pessoas ou muitas famílias vão esquecer como preparar a chicha de mandioca, como fazer uma horta. Porque as empresas virão e darão dinheiro e nós iremos ao mercado para comprar a nossa comida. Então, começará uma vida fácil de consumismo. Nós não queremos chegar a isso, queremos que os nossos filhos também vivam como nós. De repente, quando vamos para a cidade... Eu sempre digo: eu saio, tenho uma vida na selva, vou para o povoado ou para a cidade e me transformo, porque tenho que calçar sapatos, tenho que me vestir bem, conversar com a mídia, pegar um carro ou um táxi para ir ao trabalho. Ou seja, muda, porque em Sarayaku eu tenho que andar, tenho que pegar a minha cesta, ir para a horta, limpar, colher a mandioca, ter o meu próprio produto, da minha horta. Por outro lado, na cidade eu tenho que ir ao mercado, pegar uma cesta, comprar e: “Ah, que lindo. E não me sujo, não suo nem um pouco”. Então, valorizamos a vida conforme o sacrifício que fazemos... Que sacrifício?

Cuidar para que tudo esteja bem, ou seja, cuidar das crianças, cuidar para que não haja pragas, não haja doenças, para termos um bom produto, para comer uma refeição saudável e orgânica. Porque nos mercados o que eles dão muitas vezes são produtos químicos, enxertados, que não foram semeados. E, quando tudo dá certo, ficamos felizes. Por outro lado, no mercado escolhemos tudo bonito, mas não sabemos qual foi o sacrifício da pessoa que produziu os produtos que vamos consumir. Isto é tudo o que valorizamos: a terra, a colheita e nós mesmos. O BEM VIVER É UM CONCEITO IMPORTANTE EM SUA LUTA. COMO VOCÊ ENTENDE ESSE CONCEITO?

Eu me lembro muito claramente de quando era criança, na escola. Os nossos professores nos falaram sobre o bem viver. Eu cresci com a minha avó, ela falava sobre Sumak Kawsay2, sempre dizia: “Minha filha, nós temos que fazer o Sumak Kawsay”. Para nós, significa ter boas terras, bons produtos, uma boa educação de acordo com a nossa cultura, ter nosso próprio alimento e um bom relacionamento com todos. Para que haja um bem viver é preciso ter solidariedade e muita colaboração em todos os aspectos: saúde, educação, espiritual, psicológico. Quando uma pessoa está doente, devemos ir visitá-la, ajudar. Mas, em 2008, o presidente da República [Rafael Correa] se apropriou desse conceito. Ele disse: “Eu tornarei o Equador um Estado nacional e intercultural, que terá Sumak Kawsay para os povos indígenas e para todos”. Para nós, perfeito. Finalmente temos um presidente que fala sobre bem viver. Não


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veremos mais pessoas nas ruas, pedindo esmolas na cidade, veremos pessoas que terão um espaço onde pelo menos vão trabalhar, cultivando seus produtos, elaborando seus artesanatos, teremos atendimento de saúde para todos, sem importar a cor, se é indígena, negro, montubio3, mulato, mestiço ou o que for. Todos seremos iguais, com o pensamento de ajudar um ao outro. E acabariam o racismo, a discriminação e a violência. Mas, depois, em uma viagem, eu li pela primeira vez, em uma entrada para a região amazônica: “Petróleo é vida”. Isso foi um grande choque para nós. Como é que, no momento em que se está falando em bem viver, eles vêm nos dizer que petróleo é vida? Para nós, o petróleo simplesmente é a morte, dor para a Mãe Terra e para a natureza. Então, do que estamos falando? Muitos dos dirigentes protestaram, é claro, e até disseram: “Deem ao presidente um copo de petróleo, petróleo bruto, para ver se é tóxico! Que ele faça o bem viver em sua casa e tome petróleo todos os dias”. Porque, para nós, o petróleo é veneno. Ele somente pode dar vida à terra, porque é como se fosse o sangue dela. Ele interpretou do jeito dele, achou que a solução era aproveitar todos os recursos naturais, pagar-nos bem e que as pessoas ficariam assim. Mas a reação foi tão terrível que até agora estamos com essa questão, embora o atual presidente [Lenín Moreno, que havia sido vice-presidente durante o mandato de Rafael Correa (2007-2017)] não fale muito sobre o bem viver, porque ele não pode falar de algo que não está sendo aplicado, onde realmente não se aposta na vida prática.

Andréia Briene e Duanne Ribeiro

Na cidade se fala menos de bem viver. Há muitas pessoas dos povoados que vão para a cidade. Sem dinheiro, você não come. Até para ir ao banheiro é preciso pagar. No entanto, em uma comunidade indígena, você vai a uma casa humilde e eles lhe dão, pelo menos, uma cuia de chicha e dizem: “Venha, entre”. Eles não ficam perguntando se você tem carteira de identidade, se trouxe seu passaporte para entrar... É livre. Essa é a vida que nos harmoniza, porque praticamos o bem viver. E essa é a nossa luta, porque isso está acabando. Muitos povos indígenas já abandonaram as práticas dos nossos costumes. Na minha própria aldeia... Em algumas aldeias Kichwa aonde a estrada chegou, as crianças não querem mais falar sua própria língua, elas já querem ter as novas tecnologias. Tudo bem usarmos, mas com responsabilidade. As estradas, a própria colonização, são um perigo, porque os madeireiros entram, compram madeira o tempo todo. E o que é feito com esse dinheiro? Há alcoolismo, dependência de drogas, crimes, ou seja, impacta em muitas coisas quando chegam às aldeias. Para nós, isso não é mais bem viver. COMO PODEMOS SAIR DESSE MODELO E RETORNAR ÀS NOSSAS AÇÕES PARA VIVER EM HARMONIA, PRESERVAR E CONSERVAR OS RECURSOS NATURAIS? VOCÊ ACHA QUE ISSO É POSSÍVEL?

No ritmo em que vamos, se a humanidade não tiver vontade de se conscientizar, é difícil. Em vez disso, estamos acelerando os nossos passos para uma vida que não seria harmoniosa, para uma vida de egoísmo. Somos egoístas porque não estamos

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percebendo o que vai acontecer, para aqueles que virão, porque o que passou não volta. Agora estamos vivendo o presente. Se não refletirmos no presente para caminhar para o futuro, estaremos em um mundo incerto. Ou seja, não há uma resposta. Falei recentemente para uma economista que estamos sem horizonte. É verdade, é uma questão muito complexa para a qual não encontramos resposta. Eu digo que viajei para tantos lugares falando sobre o mesmo assunto... Somos poucas as pessoas responsáveis, que estamos procurando ajudar os outros a mudar. Há muitas pessoas que não se importam de pegar o lixo e jogar na rua, nós criamos mal as pessoas. Porque nós, a humanidade, somos um perigo. Por que eu digo isso? Porque somos responsáveis por como queremos conduzir nossas vidas. Se quisermos uma vida harmoniosa, temos que começar nas nossas famílias, depois nas escolas, nas faculdades, que são espaços grandes, onde podemos continuar transmitindo. E é isso que fazemos em Sarayaku. A educação nasce na família, tenho que começar a formar os meus filhos e, depois, vem a parte com os professores, na escola. Eles já vão se formando como jovens ou profissionais responsáveis, com uma visão que nós passamos para eles. Mas há também a educação irresponsável. Quando eles vão para outros espaços, como a cidade. Há professores que trabalham com essa condição, com esse amor pela educação, para formar as pessoas. Mas há professores que não têm isso, estão lá só porque precisam do dinheiro, não porque gostam de fazer o que estão fazendo.

Então, eles também são uma responsabilidade nossa. Por exemplo, nós somos dirigentes... e nós não temos salário, ninguém nos paga. Nós só recebemos apoio para sair, comer e para o deslocamento, mas não temos um salário para dizer: “Eu ganho mil dólares mensais e é por isso que estou aqui”. O que nos interessa é que a humanidade mude, que ela se conscientize, socialize, porque ainda dá tempo de escapar. Sem a terra não existe a humanidade, porque a humanidade depende da terra, por isso falamos muito sobre a Mãe Terra. Para nós, a Mãe Terra é tudo, porque sem ela não há vida. POR FAVOR, COMENTE A SITUAÇÃO POLÍTICA EM QUE O SEU POVO ESTÁ ENVOLVIDO NESTE MOMENTO.

Neste momento, nós temos uma estrutura organizacional que é mista. Eu sou a presidente4 e temos comissões com responsabilidades em diferentes áreas, e há as nossas autoridades tradicionais, que organizam toda a parte dos mutirões. Somos filiados à Confederação de Nacionalidades Indígenas da Amazônia Equatoriana (Confeniae), que inclui povos de toda a região amazônica. Por meio da Confeniae estamos organizados na Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (Conaie), que é a maior confederação nacional. Também somos filiados à Coordenadoria das Organizações Indígenas da Bacia Amazônica (Coica), que inclui povos indígenas de nove países. Há vários representantes de todos os países da Amazônia: do Brasil, da Bolívia, da Guiana, do Peru, do Equador e outros lugares. As decisões são tomadas


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

em conjunto pelas organizações regionais e de base, que também cumprem a função de porta-vozes dos povos da Amazônia. Atualmente, Sarayaku está com um processo judicial que é muito conhecido e emblemático. Em 2002, Sarayaku se ergueu, tirou as empresas de petróleo de seu território e entrou com um processo na Corte Interamericana de Direitos Humanos. Após dez anos, a corte decidiu a favor de Sarayaku. Algumas cláusulas foram cumpridas, mas há as que não foram respeitadas, como a retirada dos explosivos plantados no território. E é um mistério por parte do governo, que não disse nada. Eles deram três anos para o cumprimento da decisão, mas esperamos e fomos tão pacientes que se passaram sete anos. Nesta semana, teremos uma agenda de ações. Vamos até a capital apresentar uma queixa ao Tribunal Constitucional para que se cumpra a decisão da Corte Interamericana sobre o caso Sarayaku e também vamos solicitar o monitoramento do cumprimento dessa decisão, porque todos esses casos não podem ficar impunes. Existe uma irresponsabilidade por parte do governo quando este não dá respostas. Neste momento, estamos nesse processo e a mobilização que está ocorrendo no Equador pode, quem sabe, derrubar o governo. Estamos em um caos, em uma crise em nosso país. NO EQUADOR EXISTE UMA FUNDAÇÃO COMO A FUNDAÇÃO NACIONAL DO ÍNDIO (FUNAI) BRASILEIRA, CRIADA PARA DEFENDER OS DIREITOS DOS POVOS INDÍGENAS?

Não.

Andréia Briene e Duanne Ribeiro

EXISTEM APENAS ESSAS CONFEDERAÇÕES?

Sim, só temos grandes organizações que nos representam e também o Movimento de Unidade Plurinacional Pachakutik, que atua apenas no âmbito político. E também trabalhamos em coordenação com a Conaie, que atualmente é o segundo poder político no país. COMO VOCÊS SE ORGANIZARAM? PORQUE É UM TRABALHO DE BASE MUITO DIFÍCIL, CERTO? FAZER UM MOVIMENTO SOCIAL, ORGANIZAR, ARTICULAR. COMO VOCÊS CONSEGUIRAM FAZER ISSO? COMO FOI A CONSTRUÇÃO DO MOVIMENTO?

A construção do movimento indígena já tem 24 anos. Isso nasce antes da necessidade de governar, de chegar ao poder. Não havia uma participação dos povos indígenas nas eleições. Sempre éramos excluídos dos partidos políticos, fossem eles de direita ou socialistas. Então, os nossos líderes acharam que os povos originários do país também deveriam ter representantes na Assembleia Nacional e em diferentes instâncias do governo. Nós nos organizamos e conseguimos avançar. Tivemos representantes na Assembleia – temos até hoje, e com um grande número de eleitos. Conseguimos ter prefeitos, vereadores, membros das assembleias, conselhos paroquiais e, nas últimas eleições, quase, quase ganhamos. Então, vemos que a capacidade do movimento indígena foi tão forte... Mesmo com o nosso fundo partidário cortado por sete anos, conseguimos nos levantar. Agora somos a segunda força política no Equador e continuaremos trabalhando. Nas próximas eleições presidenciais, queremos levar um candidato indígena à Presidência da República. Esse é o objetivo no qual estamos trabalhando.

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DUAS PERGUNTAS A ACRESCENTAR. UMA É SE VOCÊ PODE NOS CONTAR COMO FOI A PASSEATA PELA DEMARCAÇÃO DOS TERRITÓRIOS NO ANO DE 1992, E A OUTRA É SE O CONSEJO DE DESARROLLO DE LAS NACIONALIDADES Y PUEBLOS DEL ECUADOR (CODENPE)5 AINDA EXISTE.

O Codenpe não existe mais. Sobre a passeata de 1992, foi a primeira em que saíram povos amazônicos, nesse caso liderados pela nacionalidade Kichwa de Pastaza, à qual pertencemos. Por quê? Porque as terras que habitávamos eram declaradas como terrenos baldios, terras sem dono. Então, os nossos líderes marcharam para pedir a legalização dessas terras. Eles marcharam por um mês e ficaram dois meses em Quito. Foi quando o governo de Rodrigo Borja Cevallos6 aceitou e deu a escritura para os povos indígenas. Naquela época, eu tinha mais ou menos 11 anos, e fomos nós que preparamos a logística para enviar mandioca, banana e chicha para os integrantes da passeata. A minha vontade era participar, mas minha avó não deixou. Eu sempre digo que eu tinha que ter ido nessa passeata. Mas tudo bem, eu participei da logística e ajudamos as pessoas. É claro que muitas pessoas que participaram não estão mais conosco. Elas conseguiram algo com que um dia sonhamos. E nós achamos que essas escrituras eram a grande solução, que nós éramos os proprietários e que o governo não iria deixar as empresas de petróleo e de mineração ficar em nosso território. Mas um tempo depois... O presidente passou, veio outro e eles começaram com isso. Eles praticamente não nos deram nenhuma garantia, apesar de termos as escrituras...

Podemos falar de governo porque o governo é quem nos representa, mas não de Estado, porque nós somos o Estado. Esse foi o ponto de discussão, mas conseguimos uma grande parte do território. Quando eu me tornei presidente do Conselho de Tayjasaruta, eles me nomearam para ser representante. Mas o governo anterior, de Rafael Correa, tirou todas as instituições indígenas. Nós tínhamos educação bilíngue em nível nacional, saúde intercultural, com o Codenpe, tínhamos várias secretarias e podíamos administrar as nossas nomeações, e agora tudo isso nos foi tirado. Ele até criou um ministério chamado Ministério do Bem Viver, mas praticamente não fez nada para os povos indígenas. Ele não fez absolutamente nada. COMO SÃO A RELAÇÃO E O DIÁLOGO ENTRE OS POVOS INDÍGENAS EQUATORIANOS E OS POVOS INDÍGENAS DO BRASIL? VOCÊ JÁ OUVIU FALAR DO CONCEITO DE TEKO PORÃ DOS GUARANI, QUE TAMBÉM É TRADUZIDO COMO BEM VIVER?

O relacionamento que temos é por meio da Coica, uma coordenadoria de nove países. Então, em vários encontros, estamos em contato com o restante dos povos indígenas, com o restante da Amazônia, e eles pensam do mesmo jeito que nós. As únicas coisas que mudam são o idioma e as práticas culturais, porque os conhecimentos são todos os mesmos. Portanto, não há nenhuma diferença, as lutas são pela mesma causa, ou seja, são lutas semelhantes. Em vários encontros eu já estive com o Raoni, que é um grande líder, com Sônia Guajajara, que é uma líder que também fala alto


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e representa internacionalmente. Já estivemos em vários países, em passeatas, é lamentável o que está acontecendo. E, assim como eu estou contando, elas também contam. Não podemos chorar, o único caminho é a luta, é tudo o que nos resta. Então, é o que dissemos: dar-nos as mãos, dar-nos força, coragem. A distância não importa, mas estamos conectados e sempre estaremos. EM 2019, A UNESCO E SEUS PARCEIROS COMEMORARAM O ANO INTERNACIONAL DAS LÍNGUAS INDÍGENAS PARA ENFATIZAR A NECESSIDADE DE PRESERVAR, CONSERVAR E MANTER AS LÍNGUAS INDÍGENAS VIVAS NO MUNDO. COMO VOCÊ PERCEBE ESSAS AÇÕES? VOCÊ ACHA QUE TRAZEM RESULTADOS PERMANENTES?

Tudo tem uma parte positiva e negativa. Porque há muitos povos que perderam sua língua, e não podemos falar sobre resgate de algo que já se perdeu na história. No Equador, os Zápara perderam sua língua, os Andoas também perderam completamente sua língua. Hoje, eles falam kichwa, eles têm costumes kichwa. Quando participei como assistente de um linguista do Instituto Linguístico de Verão7 para a construção de um dicionário, pude sentir que há muitas coisas que estão sendo esquecidas e em risco de extinção, porque não é mais possível identificar a língua zápara nem os costumes, e restam poucas famílias que praticam sua cultura. Depois do dicionário fizeram alguns documentários, assim pudemos recuperar algumas coisas. E a nova geração? O que é feito para que essa nova geração recupere o que é deles quando há uma invasão de outras culturas?

Andréia Briene e Duanne Ribeiro

Eu digo que nós, os Kichwa, somos assim, em todos os lugares. É como os Shuara; aonde eles vão, sua língua brota. Então, vão aprendendo e sua língua não fica em lugar nenhum, porque com quem eles vão falar zápara no Equador? O idioma oficial reconhecido no Equador é o kichwa e o shuara. E o restante? Quando se fala de preservar, recuperar, eu digo que é bom, mas, ao mesmo tempo... Eles não pensam... Aqui no Brasil há muitas culturas que praticamente perderam tudo, não é mais possível identificá-las. No Equador também temos os povos Taromenanes, que são povos isolados, que ainda não têm contato com a civilização, assim como no Brasil também existem povos não contatados. Então, é um mistério. E quem faz algo por eles? Quando as empresas estão na selva, acham que não há ninguém nela, mas sabemos que nessa selva existem povos não contatados. Quando viajei pela primeira vez a uma comunidade que estava iniciando o processo de socialização, os Waorani/Huaorani, encontramos um avô que tinha colares de tampas de Coca-Cola. Eu estava observando e, como não podia falar com ele, alguém me contou o porquê: “É que eles não sabem, não conhecem o que são aquelas tampas, e para eles é um adorno que podem encontrar e colocar”. E todos os materiais que encontramos com eles, eles vestiam. Quando o pessoal das companhias de petróleo bebe Coca-Cola e joga por aí, eles pegam e é algo diferente, algo novo. Isso me deu uma tristeza, porque, quando você não vê o mundo como ele é, acha que isso é uma joia. É um pobre inocente.

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VOCÊ PODE NOS EXPLICAR COMO FUNCIONA

DEZOITO ALÉM DA NACIONALIDADE

A PLURINACIONALIDADE NO EQUADOR? O

EQUATORIANA?

QUE É A PLURINACIONALIDADE?

Atualmente, no Equador, nós fazemos a plurinacionalidade8 como Conaie, em que queremos a participação equitativa de todos, ou seja, sem que ninguém seja excluído. Esse conceito de plurinacionalidade nos fez reconhecer as organizações e as formas de trabalho social com os afro-equatorianos, os montubios, os mulatos. Os montubios têm uma cultura própria, com formas de vida diferente. Antes diziam: “Ah, mas o que essa Montubia está fazendo aqui?”. Não, agora eles fazem parte. De todo modo, desde 2008, o Equador é “formalmente um país plurinacional”. Então, conquistamos nosso espaço e estamos em pleno exercício dos nossos direitos. E praticamos isso, estamos exercitando isso. Toda essa luta não foi fácil, foi um processo muito longo, no qual tivemos que passar por momentos lamentáveis, algumas vidas foram perdidas e alguns foram presos. Esse é o resultado que temos. Embora o governo anterior tenha tirado todos os espaços que tínhamos, temos esperança de que vamos recuperar novamente, porque toda a nossa luta não pode ser em vão. Ainda estamos nessa luta. Então, a plurinacionalidade, a interculturalidade não é mais uma novidade como antes. Agora somos inclusivos.

Sim. Então, são povos que têm os mesmos direitos. FINALMENTE, SE VOCÊ PUDER RESPONDER NOVAMENTE À PERGUNTA QUE FOI TEMA DO BRECHAS URBANAS NA ÚLTIMA QUARTA-FEIRA: PARA VOCÊ, O QUE É DESENVOLVIMENTO?

O desenvolvimento, para mim e para o pensamento dos povos indígenas, é a morte, o desaparecimento dos povos e a morte da nossa mãe Pacha Mama. É isso que temos como conceito de desenvolvimento, porque para nós não há desenvolvimento. O bem viver é o conceito que nos guia, não o desenvolvimento.

Andréia Briene É graduada em administração pelo Centro Universitário Assunção (Unifai/SP), com especialização em bens culturais: cultura, economia e gestão pela Fundação Getulio Vargas de São Paulo (FGV/SP). Atua como pesquisadora do Observatório Itaú Cultural. Dirigiu o documentário Território Coletivo (2017).

Duanne Ribeiro Graduado em jornalismo pela Universidade

QUANTAS NACIONALIDADES E POVOS

Santa Cecília (Unisanta/SP) e em filosofia pela Uni-

EXISTEM?

versidade de São Paulo (USP), é mestre em ciência da

No âmbito da Conaie, somos 18 nacionalidades e de 24 a 28 povos, porque existem outras recentes.

informação também pela USP. É analista de comunicação para o Itaú Cultural. Escritor, publicou o romance As Esferas do Dragão (2019), pela editora Patuá.


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Andréia Briene e Duanne Ribeiro

Notas 1

No Equador, cada povo indígena é considerado uma nacionalidade. Ver nota de definição de plurinacionalidade.

2

Sumak Kawsay é uma expressão originária da língua kichwa, idioma tradicional dos Andes. Sumak significa plenitude; e Kawsay, viver. A expressão é usada como referência ao modelo de desenvolvimento que se tenta aplicar no Equador e que implica uma forma organizada e sustentável dos sistemas econômicos, políticos, socioculturais e ambientais, que garantem a realização do bem viver.

3

Montubio ou montuvio é o nome dado aos camponeses da costa equatoriana. Dedicam-se à agricultura e são conhecidos pelo uso de roupas leves e chapéu estilo panamá, uma parte importante da cultura costeira.

4

Foi eleita, pelo povo Kichwa de Sarayaku, presidente do Conselho de Governo Tayjasaruta de maio de 2016 a 2019. Tayjasaruta é o nome da associação desse povo, de sua assembleia.

5

O Consejo de Desarollo de las Nacionalidades y Pueblos del Ecuador (Codenpe) surgiu em 1988 e era um órgão de deliberação nacional composto de representantes das comunidades indígenas, afrodescendentes e outros povos tradicionais do Equador. Foi extinto em 2014. Disponível em: <https://latinno.net/ es/case/8080/>. Acesso em: 12 nov. 2019.

6

Rodrigo Borja Cevallos foi presidente do Equador no período de 1988 a 1992.

7

O Instituto Linguístico de Verão, também conhecido como SIL International (e anteriormente conhecido como Summer Institute of Linguistics), é uma organização científica de inspiração cristã sem fins lucrativos cujo objetivo primário é o estudo, o desenvolvimento e a documentação de línguas menos conhecidas a fim de traduzir a Bíblia. Fornece recursos para estudos linguísticos através de Ethnologue.com. A SIL tem estatuto formal de consultora da Unesco e das Nações Unidas.

8

A plurinacionalidade é o reconhecimento das várias nações que compõem o Equador. Cada povo indígena é uma nação. Por isso, eles o fazem via Conaie, que é a articulação entre as nações indígenas.

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3.

CONFLITOS RELACIONADOS AOS IMIGRANTES E REFUGIADOS

106. HOSPITALIDADE PARA OS

REFUGIADOS E MIGRANTES: A DIFERENÇA COMO PERSPECTIVA E A PAZ COMO MÉTODO Fabrício Toledo de Souza


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HOSPITALIDADE PARA OS REFUGIADOS E MIGRANTES: A DIFERENÇA COMO PERSPECTIVA E A PAZ COMO MÉTODO Fabrício Toledo de Souza

Fugindo da hostilidade de seus países originários, os refugiados, não raro, encontraram hostilidades nas comunidades que deveriam os acolher. Tornaram-se, assim, expressão de uma guerra que é conduzida não apenas em termos militares, mas também no âmbito das sensibilidades e das narrativas. As rivalidades são justificadas por diversos motivos, incluindo o choque de diferenças e os supostos riscos para a economia, a cultura e a identidade das sociedades de acolhida. Em resposta ao ódio e à agressividade, é preciso propor um novo conceito de hospitalidade, que não pretenda pôr termo aos conflitos e às diferenças, mas que possa ensejar outros tipos de questões, a partir de diferenciações produtivas e incessantes.

C

ompartilhamos este mundo com 70,8 milhões de pessoas que foram obrigadas a deixar suas casas por motivos de conflitos, perseguições e diferentes formas de violência. Entre elas estão refugiados, solicitantes de refúgio e deslocados internos1. O drama dessas pessoas, contudo, não termina quando elas deixam seus lares. A hostilidade tornou-se uma prática corrente em grande parte do mundo, não apenas por gestos espontâneos de grupos ideologicamente motivados ou de comunidades economicamente afetadas, mas especialmente como política oficial dos Estados, incluindo aqueles que sempre se anunciaram como o berço dos direitos humanos. Não é diferente no Brasil, onde, de modo peculiar, o tratamento a refugiados e migrantes segue o mesmo padrão de hostilidade destinado a grupos desfavorecidos.

Para os que se debruçam sobre esse problema, parece evidente que o único modo de evitar a xenofobia seria garantir e ampliar os direitos de refugiados e migrantes, o que implica assistência e proteção sem descuidar da população local, garantindo as condições para o exercício pleno de sua cidadania. A grande questão seria como tornar isso possível num mundo cada vez mais hostil a eles. E como fundamentar a hospitalidade em termos que façam justiça aos novos desafios. Desigualdade na distribuição dos deslocados A maior parte das pessoas refugiadas (85%) vive em países pobres ou em desenvolvimento, como Paquistão, Bangladesh, Etiópia, Quênia, Sudão e República Democrática do Congo2. Países que já enfrentam graves problemas internos, como fome, seca,


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doenças, falta de liberdade e violência generalizada, acabam por suportar também o ônus das guerras e dos deslocamentos. Na região das Américas, Colômbia, Peru, Chile, Argentina, Equador e Brasil, entre outros países, sentem os efeitos da aguda crise na Venezuela, de onde saíram quase 4 milhões de pessoas nos últimos anos. Nessa mesma região, em virtude de um longo conflito, a Colômbia se tornou o país com o maior número de deslocados internos no mundo. E no chamado Triângulo Norte (Honduras, El Salvador e Guatemala), considerado uma das regiões mais perigosas do mundo3, centenas de milhares de pessoas fogem da violência endêmica. A tragédia dos refugiados e migrantes se dá nesse contexto global de pobreza, desigualdade e violência institucionalizada. Quanto ao Brasil, pela primeira vez em sua história e desde o estabelecimento de um sistema oficial de refúgio4, o número de solicitações de refúgio é superior a 100 mil5. Em razão do crescimento do número de venezuelanos que entram pela fronteira no Norte6, a vida da população em Roraima foi drasticamente afetada, a despeito de todos os investimentos e esforços adotados para o acolhimento dos refugiados. Os sutis sinais de insatisfação rapidamente se transformaram em atos de agressão. Quanto aos representantes políticos, muitos deles, na esperança de angariar atenção eleitoral, incluíram o tema em suas agendas, mas sob perspectiva pouco generosa. Podemos nos perguntar se os refugiados e migrantes já são uma presença em nosso inconsciente coletivo, em nosso vocabulário comum e em nossas agendas políticas. Além das notícias e imagens na mídia, dos

Fabrício Toledo de Souza

diferentes enunciados, nós os vemos em nosso cotidiano. Essa alteridade é notada pelas caraterísticas próprias de cada corpo (de suas marcas culturais e estéticas) e, ao mesmo tempo, percebida como parte de uma identidade comum, de um conjunto de acontecimentos, expressivo de um fenômeno mais amplo e global: a crise mundial dos refugiados. Esse acontecimento grandioso e mundial, divulgado e disputado por inúmeras narrativas e mídias, alterou nossa sensibilidade para sua presença, na mesma medida em que sua presença se tornava concretamente mais relevante. A crise mundial dos refugiados e a crise da verdade Há uma tendência em tratar a crise global de refugiados como “crise de migrantes”. Dessa perspectiva, a narrativa consiste, entre outras coisas, em escusar alguns Estados do cumprimento de deveres assumidos com a comunidade internacional em relação aos direitos das pessoas deslocadas, transferindo o ônus e as causas dos problemas à voluntariedade dos indivíduos que se deslocam. Um dos efeitos pretendidos por essa narrativa é direcionar a sensibilidade social para a questão, como forma, por vezes, de angariar apoio a medidas restritivas de direitos e de mobilidade. Do lado oposto há um esforço por parte das agências humanitárias em distinguir os refugiados dos migrantes, com base na causa dos deslocamentos, separando aqueles motivados por perseguição ou por conflitos armados e esses últimos movidos pela busca de melhores condições de vida. É uma maneira de buscar um consenso mínimo que

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permita exceções às rígidas regras impostas pelos Estados aos fluxos de deslocados. Assim, a partir dessa distinção é possível garantir a aplicação de legislações mais generosas, que visam impedir o rechaço de pessoas refugiadas. A outra possibilidade de pensar e narrar tais fenômenos é abandonando essa dualidade baseada na existência ou não de espontaneidade. Podemos dizer que os fenômenos migratórios massivos sempre são efeitos de alguma grave violação de direitos. E, desta forma, apagando a voluntariedade e a espontaneidade dos deslocamentos, desmistificar a distinção entre as categorias. De maneira mais potente, é também possível pensar que ambos, refugiados e migrantes, nunca perderam a capacidade de decidir. São portadores de desejo e da capacidade de fugir. E as razões de sua fuga podem ser explicadas não por um julgamento moral alheio, mas por uma ética própria, criada por sujeitos que se constituem como tais justamente a partir de sua decisão: fugir, sobreviver, desejar sua liberdade e segurança. E, por isso, no lugar daquelas classificações jurídicas, poderíamos reconhecê-los como sujeitos em fuga. Isso não significa relativizar as tragédias, mas, ao contrário, permitir que se vislumbre nesse gesto de fuga uma afirmação potente da vida e do desejo. Desse ponto de vista, há muito mais nuances entre as diferentes categorias jurídicas. E, ao mesmo tempo, ele nos permite ver que a maior parte dos migrantes e refugiados está lutando por algo em comum: a constituição de novos espaços – subjetivos, sociais, culturais, políticos e geográficos – de liberdade.

Mover os afetos e deslocar os mundos Reconhecer os refugiados e migrantes como vítimas é um passo importante para tornar efetivas e justas as ações de assistência e proteção, sem as quais as hostilidades aumentam na mesma proporção que as vulnerabilidades. Esse reconhecimento, porém, não é suficiente e, além disso, encontra limites éticos e práticos. A sensibilidade em relação às vítimas está comumente associada à condescendência, que pressupõe a assimetria nas relações, estabelecidas a partir de dívidas sociais e morais entre quem oferece ajuda e quem a recebe. Seria producente encontrar outros modos de incidir sobre os afetos e as sensibilidades, que permitam aos sujeitos reconhecerem-se em níveis de igualdade mantendo suas diferenças. Migrantes e não migrantes e, entre essas categorias, todas as nuances e singularidades. As mesmas que compõem a nossa infinita diversidade humana. Nesse horizonte, seria importante ir além das imagens e dos antagonismos achatados, sem nuances nem peculiaridades: de um lado a vítima, de outro a ameaça. Em vez disso, interessaria pensar que, invariavelmente, o contato entre as diferenças acontece permeado de conflitos e atritos. É desse processo de atrito e constante diferenciação que surge a cultura pulsante e vívida das nossas cidades. É preciso pensar, portanto, como investir nas dinâmicas de diversificação produtiva. Fronteiras e encontro de diferenças Os migrantes e refugiados são percebidos social e culturalmente pelos traços de sua identidade e também por imagens produzidas a partir de narrativas baseadas em categorias


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jurídicas. E que são, acima de tudo, categorias morais. Narrativas, ao final das contas, sobre uma imensa guerra, que é militar e cultural. A burocracia dos processos de refúgio, por sua própria forma e em suas minúcias, é a literatura da nossa guerra. As ordens de expulsão dadas aos migrantes são registros do nosso estado de perpétua insegurança. E são modos de marcar a vida e os corpos daquelas pessoas. Como sujeitos, eles são, contudo, capazes de avaliar, decidir e agir. Possuem habilidades para analisar as tensões e para negociar com os contextos culturais em que estão inseridos. Poderão decidir aquilo que querem reivindicar e inventar, e, portanto, de que cultura e de que cidadania desejam participar. Do mesmo modo como sua presença nos adverte que a guerra está em toda parte e em cada minuto de nosso cotidiano, ela também nos incita a pensar que a paz somente pode ser obtida pelo encontro radical das diferenças, afastando o medo e criando seus próprios valores. São os migrantes que nos dão o testemunho do nascimento das grandes cidades e das grandes riquezas. As imensas metrópoles mundiais foram forjadas pelo trabalho artístico da mão de obra migrante. O que chamamos de cidadania e nossa cultura democrática, a despeito de suas supostas fragilidades, são também resultado do trabalho deles. Se considerarmos que todo trabalho é simultaneamente material e imaterial – labor físico e labor cultural, afetivo e comunicativo, ação sobre coisas e sobre as imagens –, então podemos considerar que nossa cultura é resultado direto dos movimentos de pessoas plenas de desejos. O desejo de fugir, o esforço pela sobrevivência, a necessidade de reconstruir a vida

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ou de inventar uma nova, tudo isso se dá no território – as nossas cidades – onde todos nós nos reconhecemos como sujeitos que desejam uma vida mais ampla. Não sem dramas nem fracassos. A questão não é negar a dor, a frustração ou a tristeza. O que interessa é fugir das dialéticas improdutivas e ajustar nossas sensibilidades para os gestos mais importantes, mesmo quando são feitos em meio a tanta tristeza e mesmo quando banais. Esse lugar comum em que as diferenças se encontram e se tornam produtivas não é dado a priori. Não é um lugar pacificado nem uma trincheira de guerra. Um longo caminho por concluir Nesse espaço de convivência e disputa que são as cidades, onde se dão os encontros entre indivíduos com as mesmas capacidades de desejar, com estatutos (níveis de cidadania e acessos), provenientes de diferentes contextos (guerras, conflitos ou estabilidade) e vivendo em situações diferentes (maiores ou menores vulnerabilidades), a paz surge como possibilidade real e como abertura para cidades ainda mais inclusivas. Como luta constante contra a pacificação forçada ou o apaziguamento das diferenças, no esforço de deslocamento de si mesmo. Alteridades deslocando as identidades. Uma alteridade que supõe a autonomia em relação às classificações automáticas e aos lugares e papéis socialmente disponíveis. A cidade e a cidadania são, afinal, fruto desse trabalho forjado pelos constantes êxodos e pelo constante esforço de diferenciação. A paz não é um fim, mas uma ética, um caminho que pressupõe a diferença e que incentiva as diferenciações.

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Fabrício Toledo de Souza Advogado e pesquisador, desde 2008 trabalha em ONGs na defesa dos direitos de refugiados, solicitantes de refúgio e migrantes. Tem suas pesquisas de mestrado [Escola de Comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ECO/UFRJ)], doutorado [Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio)] e pós-doutorado [PUC-Rio/ Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)] nesse tema. Faz parte da rede de pesquisadores da Universidade Nômade.

Referências DELEUZE, Gilles. Post scriptum sobre as sociedades de controle. In: Conversações. São Paulo: Editora 34, 1992. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. História do abismo e da luneta. In: TADEU, Tomas (Org.). Quatro novelas e um conto: as ficções do platô 8 de Mil platôs. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014. FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro: Graal, 1979. _______. Uma trajetória filosófica: para além do estruturalismo. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2010. _______. Un diálogo sobre el poder y otras conversaciones. Madri: Alianza Editorial, 2012. HAYTER, Teresa. No borders: the case against immigration controls. Feminist Review: Exile and Asylum: Women Seeking Refuge in “Fortress Europe”. Hampshire, Reino Unido, n. 73, 2003, p. 6-18. JANOUSH, Gustav. Conversas com Kafka. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983. KAFKA, Franz. A Grande Muralha da China. Lisboa: Europa-América, 1975. PELBART, Peter Pál. Vida capital: ensaios de biopolítica. São Paulo: Iluminuras, 2003.


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Fabrício Toledo de Souza

Notas 1 UNHCR. Global trends. Forced displacement 2018. Jun. 2019. Disponível em: <https://

www.unhcr.org/5d08d7ee7.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2019. 2

Mais dados podem ser obtidos neste relatório do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (Acnur): UNHCR. Global trends. Forced displacement 2018. Jun. 2019. Disponível em: < https://www.unhcr.org/5d08d7ee7.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2019.

3

A taxa de homicídios nos países do Triângulo Norte é sete vezes superior à média mundial, de acordo com o relatório Fleeing for Our Lives: Central American Migrant Crisis, da Anistia Internacional. Disponível em: <https://www.amnestyusa. org/fleeing-for-our-lives-central-american-migrant-crisis/>. Acesso em: 23 ago. 2019.

4

O Brasil teve sua lei de refúgio (Lei nº 9.474/97) promulgada em 1997; em 1998, surgiu o Comitê Nacional para os Refugiados (Conare).

5

De acordo com dados oficiais, são 126 mil solicitações feitas entre 2010 e 2017, das quais 86 mil aguardam decisão. Vide a terceira edição do relatório Refúgio em Números, do Conare/Secretaria Nacional de Justiça. Disponível em: <https://www.acnur.org/portugues/wp-content/uploads/2018/04/refugio-emnumeros_1104.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2019.

6

De acordo com estatísticas oficiais, 74.860 venezuelanos vivem com residência no país e 103.697 estão como solicitantes de refúgio, colocando o Brasil no segundo lugar entre os países com os maiores números de solicitações de refúgio feitas por venezuelanos. Dados disponíveis no site da Coordination Platform for Refugees and Migrants from Venezuela. Disponível em: <https://data2.unhcr.org/ en/situations/platform>. Acesso em: 23 ago. 2019.

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4.

CONFLITOS RELACIONADOS ÀS RELIGIÕES

113. PARA VALORIZAR A DIVERSIDADE RELIGIOSA: SOLIDARIEDADE, AFETOS E AÇÕES PÚBLICAS Regina Novaes

123. CONVIVÊNCIA INTER-RELIGIOSA E DISCRIMINAÇÃO NA ARGENTINA: PERSPECTIVA HISTÓRICA, LEGISLAÇÃO E EXPERIÊNCIAS ATUAIS Verónica Giménez Béliveau

131. O RESPEITO À DIVERSIDADE

RELIGIOSA COMO CAMINHO PARA A PROMOÇÃO DA CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL E PARA O COMBATE À INTOLERÂNCIA Thiago Almeida Garcia


Regina Novaes

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

PARA VALORIZAR A DIVERSIDADE RELIGIOSA:

SOLIDARIEDADE, AFETOS E AÇÕES PÚBLICAS Regina Novaes

O presente artigo se propõe a refletir sobre intolerância religiosa no Brasil, sugerindo caminhos para ampliar as possibilidades de convívio inter-religioso. Na primeira parte são fornecidas informações sobre a configuração histórica do campo religioso brasileiro e sobre as suas transformações recentes. Na segunda parte são apresentados três eixos de reflexão que podem apontar caminhos para evitar generalizações apressadas e melhor compreender as dinâmicas sociais em questão. A proposição é que se levem em conta as disputas institucionais e as diferentes trajetórias pessoais e familiares, a fim de compreender os desafios colocados para que o poder público reafirme sua laicidade e, ao mesmo tempo, estabeleça parâmetros legais que favoreçam uma convivência plurirreligiosa pautada na valorização da diversidade cultural.

Para valorizar a diversidade religiosa: solidariedade, afeto e ações públicas A fim de compreender as atuais repercussões da “intolerância religiosa”, é preciso não isolar a religião de outras dimensões da vida social e da história de cada sociedade. Embora a Igreja Católica tenha se feito presente na formação social de toda a América Latina, nos diferentes países foram diferentes os modelos de separação Igreja/ Estado (ORO, 2007), bem como têm sido diferentes os caminhos encontrados para promover discriminações e/ou favorecer a valorização da diversidade religiosa. Neste artigo, buscaremos compreender o que tem acontecido no Brasil.

Conformação e transformações recentes no campo religioso1 brasileiro O catolicismo teve grande importância na conformação da sociedade brasileira. Durante o período colonial, a Igreja Católica se constituiu como religião oficial do império português. Depois de nossa independência, na Constituição de 1824, artigo 5, lia-se “religião Católica Apostólica Romana continua a ser a religião do Império”, assegurando às demais comunidades religiosas o “culto doméstico ou particular em casas para isto destinadas, de forma alguma exterior ao templo”. No artigo 179, postulava-se “que ninguém pode ser perseguido por motivo de religião, uma vez que respeite a do Estado e não ofenda a moral pública”.

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Já o Código Criminal de 1830 reforça a pertencimento religioso”. Por estratégia de ideia de “moral pública”, condenando quem apresentação social e/ou por vivenciar cultu“praticar qualquer ação que, na opinião pú- ralmente uma fé sincrética, a maior parte dos blica, seja considerada como evidentemente adeptos de religiões afro também se declarava ofensiva da moral e bons costumes, sendo em (e ainda se declara) católica. lugar público” (artigo 280). As ambiguidades Nesse contexto, com os protestantes dessas formulações deram lugar a situações históricos, estabeleceu-se uma convivência de repressão às religiões de matriz africana, (mais ou menos) pacífica. Os herdeiros da bem como ao repúdio às músicas, ao som de Reforma Protestante do século XVI (baatabaques, às danças, aos transes místicos e tistas, presbiterianos, luteranos, metodisaos sacrifícios de animais (BASTIDE, 1971). tas etc.) chegaram aos poucos, com pouca Com a Proclamação da República, de- visibilidade e crescimento vagaroso, e não clarou-se a separação da Igreja do Estado. ultrapassaram a situação de minoria religioA primeira Constituição de 1891 aboliu sa, não representando, assim, uma ameaça à formalmente o conceito de preponderância católica. “religião oficial”, asseguran- Por estratégia de Porém, no decorrer do do formalmente a liberdade apresentação social tempo, vários fatores ime/ou por vivenciar de culto. Porém, a defesa dos pulsionaram mudanças no culturalmente uma “bons costumes” e a manutencampo religioso brasileiro. fé sincrética, a maior ção da ordem pública justifi- parte dos adeptos de Entre esses fatores, destacaram perseguições policiais religiões afro também ca-se a chegada do chamado ao espiritismo kardecista e, se declarava (e ainda se “pentecostalismo de berço principalmente, às religiões declara) católica protestante”. Os primeiros rede matriz africana. presentantes dessa vertente Paralelamente, o catolicismo continuou chegaram ao país no começo do século XX, garantindo a atualização dos seus símbolos e principalmente via Estados Unidos, como rituais tanto no calendário oficial de feriados indica a história da Assembleia de Deus e da e festas religiosas quanto na conformação Congregação Cristã do Brasil. de seus territórios rurais e urbanos. Assim, Renovadas pela crença nos dons espea grande maioria dos brasileiros se definia ciais concedidos pelo Espírito Santo, com como católica, interpretando sua experiência suas ofertas de êxtase religioso, essas e muide vida e organizando sua conduta a partir tas outras dezenas de denominações – vindas de símbolos, rituais e narrativas católicos. de fora ou nascidas no Brasil – se espalhaContudo, nesse campo religioso de ram, com um ativismo proselitista, ganhando hegemonia católica – em que as religiões adeptos sobretudo entre as camadas populade matriz africana foram muitas vezes res e introduzindo a concorrência explícita combatidas, silenciadas ou ignoradas –, no interior do campo religioso brasileiro. registrou-se também uma peculiar forEm um primeiro momento, segundo relama de convivência/resistência: o “duplo tos dos mais velhos, “igrejas de crentes”, como


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eram chamadas de forma pejorativa, foram compreendida tanto pela necessidade dos apedrejadas por católicos no interior do Brasil. convertidos de renegar seu passado de caMas os casos de violência explícita contra pen- tólicos/adeptos de religiões de matriz afritecostais não foram tão numerosos. Ao mesmo cana (“duplo pertencimento”) quanto pelo tempo, certos preconceitos em relação a essa fato de o “pentecostalismo à brasileira” ter população foram se espalhando pela sociedade elevado orixás e entidades afro-brasileiras a católica, não acostumada com uma concorrên- uma condição de poderosos demônios com cia religiosa explícita, e em camadas intelec- os quais vale a pena lutar. A partir daí, o polo tualizadas que consideravam os pentecostais mais ativo da intolerância religiosamente ignorantes, manipuláveis, alienados. motivada deixou de se circunscrever às iniContudo, na mesma época, sobretudo a ciativas das correntes tradicionais da Igreja partir das concessões de rádios e de TV reali- Católica3 e passou a residir em terrenos das zadas durante a ditadura militar, vozes pen- denominações pentecostais. tecostais se espalharam, chegando aos lares É verdade que, desde a redemocratizacatólicos e abrindo terreno para ção do país (1985), represenmudanças no perfil religioso dos A partir das concessões tantes evangélicos agiram brasileiros2. Esse reforço midiá- de rádios e de TV dentro das regras estabelecirealizadas durante tico, somado ao proselitismo dos das no campo político defena ditadura militar, fiéis, foi importante para que dendo a laicidade do Estado vozes pentecostais se manifestações de intolerância espalharam, chegando e reivindicando o mesmo religiosa também ganhassem aos lares católicos e tratamento dado à Igreja espaço entre pentecostais em abrindo terreno para Católica no que diz respeito relação aos católicos e, sobre- mudanças no perfil à isenção fiscal, a espaços tudo, em relação aos cultos de religioso dos brasileiros para a construção de temmatriz africana. plos, à inclusão de feriados No que diz respeito ao catolicismo, ao evangélicos no calendário oficial, ao apoio renegar a “idolatria”, os pentecostais atin- financeiro público para seus eventos etc. giam um dos componentes constitutivos do Por outro lado, também não se pode catolicismo popular: a devoção aos santos. O negar a articulação e ação conjunta entre episódio em que um bispo da Igreja Univer- parlamentares católicos, evangélicos e essal do Reino de Deus chutou uma imagem píritas quando estão em jogo pautas morais, de Nossa Senhora Aparecida durante um com destaque àquelas que criminalizam o programa da Rede Record transmitido em aborto e discriminam as populações LGBT. rede nacional é um exemplo sempre citado Assim sendo, cabe indagar: por que as repara caracterizar o combate dos evangélicos percussões das tomadas de posição dos à idolatria católica. representantes da bancada evangélica reNo que diz respeito aos adeptos das percutem mais fortemente na sociedade do religiões afro-brasileiras, inaugurou-se que as posições de representantes de outras uma espécie de “guerra santa”, que pode ser alternativas religiosas?

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Sem dúvida, a resposta para tal questão passa pela veemência de suas lideranças, bem como pelo uso de categorias religiosas para tratar de questões morais e identitárias. Essa modalidade discursiva lhes permite se comunicar com boa parte da população e, direta ou indiretamente, fornece um aval para ações de grupos que atacam violentamente terreiros de umbanda e candomblé, que são vistos como locus de ações de demônios e, consequentemente, de atentados aos “bons costumes”. Além disso, a grande imprensa lhes dá visibilidade pública, contribuindo para uma visão homogeneizante do chamado “mundo evangélico”. Em busca da diversidade Diferenciar para compreender: quem pode falar pelos evangélicos? No Brasil de hoje, pode-se dizer que conluios conservadores – envolvendo atores religiosos e não religiosos – produzem sofrimento, discriminação e negação de direitos de cidadania. Nesse contexto, pode-se dizer ainda que valores e causas defendidos por lideranças evangélicas contribuem para barrar conquistas relacionadas à política indigenista e às políticas de saúde pública na área de direitos reprodutivos e na área de redução de danos no caso de drogas ilícitas. Também se opõem à implantação de cotas raciais e ao reconhecimento das identidades de gênero e orientação sexual. Contudo, é preciso atentar para a grande diferenciação interna no chamado mundo evangélico. Em primeiro lugar, vale destacar a constante segmentação denominacional. Pouco se fala sobre a existência das igrejas evangélicas inclusivas, que acolhem e

são dirigidas por pastores gays, lésbicas e trans (NATIVIDADE, 2016). Pouco se fala de igrejas menores não envolvidas com as mesmas batalhas contra a intolerância religiosa, como a denominação à qual pertence o pastor Henrique Vieira, que se solidariza publicamente com os adeptos das religiões afro-brasileiras, condenando ataques de evangélicos aos terreiros (NOVAES, 2018). Também a Rede Fale e a Frente de Evangélicos pelo Estado de Direito são bons exemplos que apontam para a diversidade evangélica. Em segundo lugar, é importante observar as dissintonias entre o que dizem os “coronéis da fé”4 e o que pensa o povo evangélico, por exemplo, sobre políticas públicas e a circulação de armas de fogo. Sobre essa questão, vale consultar pesquisas recentes realizadas pelo Instituto Datafolha e comentadas por Vital e Lopes (2013). Em resumo, no Brasil, falar genericamente em “evangélicos” significa contribuir para amplificar a voz dos “coronéis da fé” e silenciar vozes de diferentes grupos que precisam ser reconhecidos para aumentar a ressonância de suas ações de combate à intolerância. Considerar experiências pessoais e vivências familiares Com a diminuição da transferência religiosa intergeracional do catolicismo, há hoje uma maior ênfase na escolha individual: seja para declarar-se sem religião, ateu ou agnóstico, seja para mudar ou permanecer na religião dos pais. Por esse caminho, amplia-se o número de famílias plurirreligiosas, e o núcleo familiar pode tanto tornar-se um espaço de conflito e


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intolerância quanto representar um espaço de experimentação do convívio inter-religioso baseado em laços afetivos. Com o objetivo de enriquecer a reflexão sobre convivialidade inter-religiosa, vale a pena considerar trajetórias pessoais e promover a escuta de experiências recentes de vivências familiares. Vejamos dois exemplos. Ribeiro (2019) nos apresenta Pedro Rebelo, de 27 anos, filho de pai ateu e mãe evangélica. Durante sua adolescência, Pedro frequentou a Assembleia de Deus, e hoje é filho de santo da casa Ogum das Águas. Ele conta que fazia parte daquele grupo de pessoas que demonizavam o candomblé e “passavam óleo ungido nas portas das lojas que vendiam artigos religiosos”. Hoje, Pedro não se orgulha de seu comportamento passado, mas – por ter tido essa experiência – se sente capaz de compreender o que se passa na cabeça de pessoas que, em certos momentos da vida, se sentem desprotegidas e encontram sentido nas guerras santas propostas pelas igrejas. Já Ana Paula Lisboa ( jovem, negra, ativista, filha de Oxum) conta que, mesmo quando frequentava a Assembleia de Deus, tinha certeza de que “orixá não era demônio disfarçado”. Criada na umbanda, Ana Paula já havia frequentado festas de santo antes de se tornar evangélica. A experiência religiosa anterior e o afeto familiar permitiram que ela selecionasse os conteúdos das mensagens que circulavam na igreja. Referindo-se aos seus atuais amigos da Igreja Universal do Reino de Deus, Ana Paula questiona preconceitos “da esquerda” e diz conhecer “pessoas abertas, seres pensantes e questionadores, tem até feminista” (NOVAES, 2018).

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Os dois exemplos nos fazem pensar que: a) existem diferentes formas de pertencer a uma mesma denominação evangélica; b) existem trânsitos religiosos no sentido do pentecostalismo para religiões afro-brasileiras; c) as pregações religiosas não são nunca absorvidas totalmente como blocos monolíticos pelos fiéis, pois existem filtros que se referem às trajetórias pessoais e às experiências familiares; e d) as interpretações dos fiéis também são permeáveis a outras visões e narrativas em circulação pela sociedade. Articular laicidade e valorização da diversidade: o papel do poder público Para fazer face às manifestações de intolerância avalizadas por lideranças evangélicas e outros setores (políticos e/ou religiosos) da sociedade, também surgiram no Brasil várias redes, grupos e movimentos (ecumênicos e/ou leigos) que, evocando documentos de organismos nacionais e internacionais, defendem a laicidade do Estado e valorizam a diversidade cultural. Por meio de tais iniciativas, demanda-se a implementação de ações públicas que criem constrangimentos à intolerância religiosa. Em resposta a essas demandas, o tema ganhou espaço na pauta das diversidades brasileiras. Assim, representantes de diferentes religiões ganharam assento nos canais de participação social criados pelo poder público, entre 2004 e 2016, e levaram a questão do pertencimento religioso para audiências públicas, conselhos e conferências setoriais e identitárias. Como resultado da pressão de movimentos sociais, em muitos lugares, o poder público criou mecanismos para mediar e

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arbitrar conflitos de natureza religiosa por valorização da diversidade (maior abermeio de operadores da justiça e da criação tura ao hibridismo cultural e religioso). de comissões de combate à intolerância re- Por outro lado, evidencia-se o aumento ligiosa. Nesses novos juizados, as vítimas do fundamentalismo (sectarismo e vio(no geral, afro-brasileiros) podem buscar lências político-religiosas). Assim sendo, retratação moral e reconhecimento de sua para criar um “índice de convivialidade”, é identidade religiosa. preciso considerar sempre os vários lados O que não é simples. Isso porque no da mesma moeda. Brasil, como se sabe, os conflitos religiosaEm tempos passados eram as famímente motivados não apenas remetem ao lias e as autoridades religiosas reconhedireito constitucional de liberdade religio- cidas como tal que se encarregavam de sa, mas frequentemente vêm acompanhados entregar imagens estáveis do mundo, de de outras discriminações, tais como injúrias geração a geração. Hoje, as religiões faraciais, machismo e homofobia. miliares não são mais as principais fonNa medida em que as heranças de tes distribuidoras de sentidos da vida, nosso passado escravocrata e, assim, são maiores as e da cultura machista, inte- As possibilidades de possibilidades de trânsiriorizadas no processo de convivência produtiva tos religiosos que podem entre adeptos de socialização, são ativadas em resultar tanto em novos situações inicialmente clas- diferentes religiões sectarismos quanto em sificadas como intolerância crescerão na medida em mais oportunidades de que as políticas públicas religiosa, a construção de um convivência com a diver(programas educativos convívio religioso harmônico sidade religiosa. Nesse e ações punitivas) deve combater preconceitos reafirmem o Estado laico sentido, em pleno século e discriminações. XXI, a religião não deixou e realmente valorizem a Contudo, apesar da di- diversidade religiosa de ter importância tanto ficuldade de isolar um vetor nas biografias das novas produtor de intolerância, é indispensável a gerações quanto nas disputas pela consação do poder público. As possibilidades de trução do espaço público. convivência produtiva entre adeptos de difeNesse novo contexto, possíveis “ínrentes religiões crescerão na medida em que dices de convivialidade” têm de ser consas políticas públicas (programas educativos truídos a partir da escuta e do exame das e ações punitivas) reafirmem o Estado laico e experiências historicamente inéditas de realmente valorizem a diversidade religiosa. fiéis e cidadãos que hoje – por vivência, solidariedade e/ou afetividade – valoriNota final zam a diversidade, questionando todo o Como se sabe, vivemos em um mun- conjunto de preconceitos e discriminado em que há convivência de duas tendên- ções causadoras de sofrimentos pessoais cias contraditórias. Por um lado, cresce a e exclusões sociais.


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Regina Novaes

Regina Novaes Antropóloga, com mestrado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutorado pela Universidade de São Paulo (USP), é atualmente professora visitante do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), na linha de pesquisa Juventude e Políticas Públicas. Por dez anos foi editora da revista Religião & Sociedade. Também presidiu o Instituto de Estudos da Religião (Iser) e o Conselho Nacional de Juventude (Conjuve) (2005-2007). É pesquisadora sênior do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), desenvolvendo projetos sobre juventude, cultura, religião e política. Tem prestado consultoria para entidades internacionais, como o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), em atividades de avaliação de programas e ações voltadas para a juventude.

Referências BASTIDE, Roger. As religiões africanas no Brasil: contribuições a uma sociologia das interpretações de civilizações. São Paulo: Pioneira, 1971. BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1992. GIUMBELLI, Emerson. A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil. In: Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, v. 28, n. 2, 2008, p. 80-101. NATIVIDADE, M. Margens da política. Estado, direitos sexuais e religiões. Rio de Janeiro: Garamond, 2016. NOVAES, Regina. Juventude e religião, sinais do tempo experimentado. In: Interseções, Rio de Janeiro, v. 20, n. 2, dez. 2018, p. 351-368. ORO, A. P. Religião e política na América Latina: uma análise da legislação dos diferentes países. Revista Horizontes Antropológicos, v. 13, n. 27, jan./jun. 2007, Porto Alegre. RIBEIRO, M. I. O negro na irmandade cristã e na família de santo. Discursos raciais nas igrejas evangélicas e nos terreiros. Dissertação de doutorado pela Escola de Serviço Social da Universidade Federal do Rio de Janeiro (ESS/UFRJ), 2019.

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VITAL DA CUNHA, C.; LOPES, P. V. Religião e política: uma análise da atuação de parlamentares evangélicos sobre direitos das mulheres e de LGBTs no Brasil. Rio de Janeiro: Fundação Heinrich Böll, 2013.

Bibliografia recomendada NOVAES, Regina. Errantes do novo milênio: salmos e versículos bíblicos no espaço público. In: BIRMAN, Patrícia (Org.). Religião e espaço público. Brasília: CNPq/ Pronex; São Paulo: Attar Editorial, 2003. _______. Juventude, religião e espaço público: exemplos “bons para pensar” tempos e sinais. In: Religião & Sociedade, Rio de Janeiro, v. 32, n. 1, 2012.

Notas 1

Bourdieu (1986) define campo religioso como um conjunto de práticas e valores específicos, formado por diferentes atores, instituições, discursos e forças em tensão, em que tudo adquire sentido em termos relacionais, por meio de posições e oposições.

2

Segundo o Censo de 2010, os evangélicos somam 22% da população, assim distribuídos: 4% de evangélicos de missão/históricos, 13,3% de evangélicos pentecostais, e 8% foram classificados como “evangélicos não determinados”. Trata-se de um aumento significativo (com 9,2 milhões de respondentes) daqueles que se classificam apenas como evangélicos, sem explicitar vínculos institucionais.

3

Para completar esse quadro, é importante refletir sobre os carismáticos e sobre as comunidades eclesiais de base, bem como sobre as demais diferenciações internas da Igreja Católica.

4

A expressão “coronéis da fé” – para designar os pastores que se colocam como porta-vozes de pautas conservadoras – foi usada pelo pastor Henrique Vieira em uma atividade pública, cujo vídeo foi também muito compartilhado nas redes sociais.


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Verónica Giménez Béliveau

CONVIVÊNCIA INTER-RELIGIOSA E DISCRIMINAÇÃO NA ARGENTINA: PERSPECTIVA HISTÓRICA, LEGISLAÇÃO E EXPERIÊNCIAS ATUAIS Verónica Giménez Béliveau

Este artigo tem como objetivo refletir sobre a liberdade religiosa e a convivência intercultural na Argentina. Para isso, falaremos sobre a legislação que regulamenta a convivência entre instituições e indivíduos de diferentes religiões, analisaremos as características do campo religioso na Argentina contemporânea e abordaremos as situações históricas e atuais de discriminação contra comunidades e pessoas por motivos religiosos. Tomaremos como exemplo o caso do debate público sobre a lei do aborto em Buenos Aires para analisar a dinâmica da inter-relação entre elementos religiosos e outras disposições sociais. Finalmente, serão sugeridas algumas linhas de trabalho para abordar a convivência inter-religiosa.

P

ensar sobre a liberdade religiosa na Argentina exige considerar simultaneamente a história, a legislação e os debates mais atuais no espaço público: só assim entenderemos as lógicas de restrições, liberdade religiosa e conflito que se abrem e moldam as relações sociais. O presente artigo pretende fazer uma breve revisão da convivência inter-religiosa e da discriminação na Argentina, considerando a legislação, a perspectiva histórica e as experiências atuais. Partindo da pergunta-guia “Os princípios da liberdade religiosa são respeitados?”, vamos nos concentrar nos estudos da religião como campo de observação.

Na primeira seção, apresentaremos as características da legislação e das regras que dão suporte ou determinam a possibilidade de convivência religiosa. Na segunda, analisaremos o campo religioso na Argentina, a presença histórica das religiões, as novas tendências e os episódios de discriminação, conforme fontes estatísticas estatais e comunitárias. Na terceira, trataremos dos debates públicos sobre questões relacionadas com a lei, a religião e o gênero, enfocando a discussão parlamentar e pública da lei do aborto legal, seguro e gratuito na Argentina. Finalmente, encerraremos o artigo com propostas para abordar as dinâmicas de discriminação

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e convivência – entre as igrejas e entre os diferentes grupos religiosos – no território, temas que parecem mais suscetíveis de gerar ações nas políticas públicas. A legislação e as religiões na Argentina Na Constituição argentina, cuja primeira versão data de 1853, está previsto o direito à liberdade religiosa dos indivíduos. Embora a liberdade de prática das religiões seja garantida, ela é marcada por uma profunda desigualdade, já que a Igreja Católica tem um estatuto privilegiado. O texto constitucional, mais precisamente em seu artigo 2, estabelece que o Estado apoia a Igreja Católica, com toda a ambiguidade que a palavra apoiar implica (apoiar economicamente pagando especialistas religiosos, mantendo a infraestrutura de conventos e templos? Apoiar politicamente?). Além disso, o Estado argentino concede um subsídio mensal aos bispos (Lei nº 21.950, de 1979) e padres de fronteira (Lei nº 22.162, sancionada em 1980) (ESQUIVEL, 2009). Portanto, a liberdade religiosa está presente desde a fundação do Estado nacional, mas não é ratificada por nenhuma lei específica. Algumas províncias, como Córdoba, tentaram propor uma lei de liberdade religiosa, argumentando sua necessidade; porém, no final, ela não foi aprovada. Esses projetos de lei de liberdade religiosa estão mais relacionados com as prerrogativas das igrejas do que com a possibilidade efetiva de os fiéis praticarem sua religião, que não está ameaçada: hoje não há nenhuma penalidade para a prática de qualquer culto religioso. Até 1994 havia uma restrição para ter acesso à presidência e à vice-presidência da República,

anulada com a reforma constitucional, que revogou os artigos 76 e 80. O primeiro determinava que quem quisesse acessar a primeira magistratura deveria pertencer à “comunhão católica, apostólica, romana”; já o segundo dizia que o presidente e o vice-presidente deveriam prestar juramento de acordo com uma fórmula que começava com “Deus nosso Senhor e os Santos Evangelhos”. Embora o exercício da liberdade religiosa na Argentina seja pleno, as instituições religiosas não recebem tratamento igualitário: continua vigente uma trama de leis e decretos que reforçam a desigualdade entre a Igreja Católica e as demais instituições religiosas. A Lei nº 21.745, de 1978 (sancionada pela ditadura militar e ainda em vigor), regulamenta a existência do Registro Nacional de Cultos, no qual todas as instituições religiosas não católicas devem se cadastrar. Em relação aos regulamentos contra a discriminação, a Lei nº 23.592, sancionada em 1988, condena ações discriminatórias, estabelecendo a eliminação e reparação dessas ações. “Quem arbitrariamente impedir, obstruir, restringir de alguma forma ou prejudicar o pleno exercício, em bases igualitárias, dos direitos e garantias fundamentais reconhecidos na Constituição Nacional” será obrigado a suspender o ato lesivo e restaurar os danos causados. Os motivos contemplados pela lei contra a discriminação estão relacionados a raça, religião, nacionalidade, ideologia, opinião política ou sindical, sexo, posição econômica, condição social ou características físicas. E, embora a legislação argentina esteja se abrindo pouco a pouco para bases mais laicas, nas quais a pertença religiosa não


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signifique uma restrição ao acesso a cargos públicos e as pessoas que praticam outras religiões que não a católica não sejam discriminadas, a instituição católica ainda goza de um regime preferencial que não foi revogado nas reformas constitucionais e legislativas.

Verónica Giménez Béliveau

pertença religiosa dos habitantes da Argentina: 90% eram católicos. Em 2008 foi realizada a primeira Pesquisa sobre Crenças e Atitudes Religiosas na Argentina, fonte estatística mais confiável para conhecer a distribuição da população de acordo com sua religião. Esse estudo (MALLIMACI, 2013) revela que 76,5% dos O campo religioso na Argentina: argentinos se declaram católicos; 11,3% afirsituação atual, episódios de mam não ter religião, ser agnósticos ou ateus; discriminação e 9% se identificam com o protestantismo. Para pensar sobre o contexto dos fa- Outros credos estão presentes e constituem tos da discriminação religiosa e sua gestão, minorias significativas: Testemunhas de Jeoé importante levar em conta o estado e as vá, Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últransformações do campo religioso no país. timos Dias (mórmons), judaísmo, islamismo, A Argentina é, desde sua conquista pelo reino budismo, espiritismo e hinduísmo. Cada um da Espanha, um território marcado pela pre- dos grupos religiosos é internamente plural, sença da Igreja Católica. Culto monopolista e é possível identificar diferentes correntes: em tempos coloniais, a forte é importante levar em considePara pensar sobre o presença do catolicismo marração a diversidade dentro das cou políticas e identidades no contexto dos fatos religiões, pois elas não podem território do país. A fé católica da discriminação ser entendidas como um todo foi identificada com a naciona- religiosa e sua gestão, homogêneo que responde de é importante levar lidade, a ponto de certos setores forma unânime às diretrizes de em conta o estado e da Igreja identificarem o ser arseus referenciais ou hierarquias as transformações do gentino com a pertença ao credo campo religioso (GIMÉNEZ BÉLIVEAU; IRRAcatólico (MALLIMACI, 2015). no país ZÁBAL, 2010). Como podemos No âmbito da imigração em ver, a Argentina é uma sociedamassa que mudou definitivamente as carac- de complexa cujo espaço religioso se pluraterísticas da população argentina, entre o fi- lizou, embora mantenha em certos setores nal do século XIX e o início do século XX, essa ideias sobre a estreita associação entre peridentificação gerou atos de discriminação de tença nacional e pertença religiosa católica. pessoas e grupos pertencentes a outros credos Conforme relatórios do Instituto Na(particularmente protestantes e judeus) com cional contra a Discriminação, se nos conbase em um discurso que os excluía simbólica centrarmos nas causas da discriminação, e discursivamente da comunidade nacional veremos que a religião é um dos maiores (BIANCHI, 2004). geradores de comentários discriminatórios: A hegemonia do catolicismo se mante- “22% dos comentários discriminatórios em ve relativamente até os anos 1960, quando diferentes plataformas de mídia social são foi realizado o último censo que pesquisou a por motivos religiosos”1.

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Um dos grupos religiosos que sofreram mais fortemente discriminação na Argentina é a comunidade judaica. As organizações comunitárias fazem um acompanhamento sistemático dos fatos de discriminação e destacam a particular aversão aos judeus durante a última ditadura militar (1976-1983): nos campos de concentração da ditadura, os centros clandestinos de detenção, os judeus eram perseguidos por sua condição religiosa. Os especialistas falam da semelhança de métodos repressivos na Alemanha nazista e do “antissemitismo institucionalizado” (WEISZ, 2007, p. 12). Além da situação extrema do campo de concentração, a Delegação das Associações Israelitas Argentina (Daia) identifica em seus relatórios diversas formas de discriminação contra a comunidade judaica: expressões xenofóbicas tradicionais, antissemitismo religioso/teológico, expressões ligadas à ganância e à exploração, antissemitismo nacionalista e teorias da conspiração sobre a dominação mundial (BRAYLAN, 2011). A comunidade islâmica também tem sido objeto de discriminação na mídia, por meio da associação entre a pertença religiosa e comunitária ao islamismo e uma atividade criminosa transnacional, o terrorismo. A partir dos anos 1990 – quando ocorreram atentados contra a embaixada de Israel, em 1992, e contra a Associação Mutual Israelita Argentina (Amia), em 1994, em Buenos Aires, e certos meios de comunicação de massa emitiram opiniões islamofóbicas –, membros da comunidade islâmica entraram na esfera pública da mídia para desmontar a associação entre árabe, muçulmano e terrorista (MONTENEGRO, 2014). Esses

fenômenos discriminatórios se intensificaram após os atentados de 11 de setembro de 2001 em Nova York. Debates públicos e implicações para a convivência inter-religiosa: o caso da discussão da lei do aborto legal, seguro e gratuito na Argentina Na Argentina, a questão da liberdade religiosa tem um ponto de inflexão na discussão sobre a legalização do aborto promovida pelo Parlamento, em 2018, com intensa intervenção de igrejas, grupos religiosos e indivíduos em nome da religião. O debate público foi um momento de conflito social discursivo ligado a questões religiosas e não religiosas. Embora tenham acontecido alguns episódios de agressão a pessoas que usavam o lenço verde, símbolo da legalização do aborto, ou o lenço azul-celeste, símbolo da luta contra a descriminalização, os atos de violência foram isolados. Neste ponto, é muito importante perguntar-nos: devemos enquadrar esse conflito exclusivamente no âmbito religioso? A opinião mais amplamente compartilhada entre especialistas é que ele ultrapassa os limites do que normalmente definimos como disputas ou discussões enquadradas na esfera da religião. Nesse conflito, é comum que as pessoas favoráveis à legalização do aborto não se reconheçam como religiosas ou digam que sua pertença a uma religião é algo íntimo e pessoal, que não afeta suas posições políticas e públicas. Por sua vez, as pessoas contrárias à descriminalização do aborto costumam destacar não apenas a pertença religiosa, mas também certos argumentos científicos que têm a ver com a origem da


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vida. Ou seja, a fundamentação do discurso muito próximos das igrejas e crescem sem público se baseia também em elementos que necessariamente manter uma relação com não são religiosos. uma estrutura institucional. São grupos desEncerro o desenvolvimento deste caso regulamentados difíceis de conter, aos quais na Argentina (2018) com uma última ideia: é também difícil oferecer um espaço de forpara trabalhar a possibilidade de uma me- mação para a convivência. Esses grupos não lhor convivência, é necessário ampliar as submetidos às institucionalidades clássicas margens da tolerância em relação ao outro têm protagonizado episódios de agressões ou religioso. O conceito de tolerância, de uso intervenções ilícitas em hospitais e escolas. complicado no campo político, social e das Esses episódios infringem as normas legais opções personalíssimas como a sexualidade, vigentes, no espaço da sociedade civil, e apreparece mais adequado ao campo religioso, no sentam sérios desafios para a convivência. qual as formas de ver o outro e os princípios fundadores de cada tradição, quando levados Conclusões e recomendações: novos ao extremo, reduzem as chances de diálogo. atores, novas intervenções políticas O que resta é a necessidade de tolerar o ouPara terminar, gostaríamos de salientro, aceitar sua presença no espaço público e, tar brevemente algumas conclusões e reassim, reduzir os níveis de agressão. comendações. É importante enfatizar aqui A convivência sem conflitos é mais que a intolerância religiosa está intimamente difícil, uma vez que a disputa ligada ao medo: medo do outro no espaço público está colo- A convivência sem (encarnado no diferente, na cada e se expressa por meio conflitos é mais mulher, no trans, no homossede mobilizações em massa a difícil, uma vez que xual), da incerteza existencial favor do aborto e contra sua a disputa no espaço e do futuro. Pensar nas possibilegalização, essas últimas público está colocada lidades de exercício da liberdaconvocadas e divulgadas pe- e se expressa por de religiosa e na discriminação meio de mobilizações las igrejas, tanto a católica envolve abordar algumas perquanto as evangélicas. Essas em massa a favor do guntas mais amplas sobre o aborto e contra sua manifestações ocorreram sentido dos medos nas socielegalização, essas em um contexto de relativo dades latino-americanas conúltimas convocadas e respeito, embora nos espaços divulgadas pelas igrejas, temporâneas e sua circulação, sociais pouco regulamentados tanto a católica quanto e sobre as vivências religiosas institucionalmente fossem vi- as evangélicas e as experiências discriminavenciados episódios de agrestórias. O que significa para as sões contra pessoas. Na Argentina, os grupos vítimas ser discriminadas religiosamente? que agiram de forma mais violenta contra a Em que consiste essa violência? legalização do aborto não tiveram o apoio diÉ importante destacar dois pontos que reto e explícito das igrejas. São grupos que estão transformando os cenários antes de nascem seguindo os interesses de agentes passar para as recomendações. O primeiro

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ponto é o crescimento significativo de pessoas sem religião nas sociedades latino-americanas nos últimos anos. Os “sem religião” não manifestam essa rejeição do velho ateísmo anticlerical em relação às crenças religiosas. É um fenômeno principalmente das sociedades urbanizadas e, em especial, das faixas mais jovens da população (MALLIMACI, 2013), ou seja, dos espaços que estão aumentando populacional e socialmente. Isso nos permite afirmar que é um grupo que vai crescer no futuro. O amplo espaço das pessoas sem religião não faz parte de minorias ativas; elas geralmente não são incluídas nas mesas de diálogo inter-religioso; no entanto, suas crenças, ou não crenças, e atribuições têm cada vez mais espaço social. E é importante buscar formas de entender as dinâmicas de crença e identidade nesses espaços. O segundo ponto a destacar é o valor dos instrumentos existentes nos diferentes países que permitem coletar dados sobre os fatos mais graves de discriminação e violência contra a diversidade religiosa. Isso é fundamental, porque a análise desses casos extremos nos permitirá entender quais elementos caracterizam a dinâmica da convivência intercultural em diferentes sociedades. É claro que nem todos os casos são denunciados e, quando há uma denúncia, é porque já existiam problemas que atingiram níveis intoleráveis ​​para os atores. Mas é fundamental saber em que termos a discriminação religiosa não é tolerada, o que significa para as pessoas ser discriminadas ou atacadas por causa de sua religião, em que se baseiam as agressões, quais processos seguem, que tipos de violência exercem e contra que tipos de pessoa. É essencial procurar os instrumentos

disponíveis para desenvolver dados confiáveis ​​e indicadores consistentes. Na Argentina, o Instituto Nacional contra a Discriminação, a Xenofobia e o Racismo (Inadi) trabalha há algum tempo no registro da discriminação religiosa. Como em outros espaços, as primeiras demandas que chegam para o Estado são as dos grupos. As minorias ativas recorrem ao Estado, e isso tem mais a ver com a identidade desses grupos religiosos do que com processos de discriminação ou violência religiosa nas bases. Esses grupos trabalham a partir da internacionalização das demandas por liberdade religiosa e se articulam com espaços políticos, principalmente legislativos. Para concluir, gostaríamos de fazer algumas recomendações que permitam fortalecer as políticas públicas e o trabalho das organizações sociais: É necessário trabalhar em uma educação intercultural que leve em consideração as diferenças religiosas, sociais e de gênero. Nas denúncias de intolerância religiosa geralmente há outros elementos que se combinam para a agressão: homofobia, sexismo, racismo, aporofobia (medo e rejeição aos pobres). Estamos diante de problemas sociais complexos, nos quais etnia, política, raça, gênero e religião convergem e se articulam. Os instrumentos estatais de denúncia e registro deveriam ser fortalecidos. É fundamental aqui considerar alguns aspectos, como o monitoramento dos casos e das minorias afetadas; o aperfeiçoamento e a ampliação dos sistemas de recebimento de denúncias de discriminação religiosa; a


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análise dessas denúncias, considerando a complexidade dos elementos nelas incluídos, o mapeamento do tipo, da magnitude e da ancoragem territorial das ações de discriminação e/ou ataque a pessoas ou grupos religiosos; e, finalmente, a geração de sistemas de troca de informações entre países sobre esses eventos, que permitam identificar precocemente os fenômenos de discriminação e ataque.

Essas duas ações combinadas contribuiriam para reduzir os conflitos entre grupos e contra indivíduos em particular por causa de suas crenças e para trabalhar por uma sociedade mais justa, mais aberta, mais tolerante e mais democrática, na qual os fiéis possam praticar livremente suas religiões.

Verónica Giménez Béliveau Doutora em sociologia pela École des Hautes Études en Sciences Sociales de Paris e doutora em ciências sociais pela Universidade de Buenos Aires (tese em cotutela, 2004), trabalha como pesquisadora independente do Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (Conicet), no Centro de Estudios e Investigaciones Laborales (Ceil), onde coordena o Programa Sociedad, Cultura y Religión. Suas áreas de pesquisa giram em torno das dinâmicas sociais e religiosas do catolicismo, das características das crenças nos tempos contemporâneos, da articulação entre religião e saúde e das formas de constituição das identidades e mobilidades de grupos religiosos. É professora adjunta do Seminário de Pesquisa em Sociedade e Religião, da Faculdade de Ciências Sociais da Universidade de Buenos Aires.

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Referências BIANCHI, Susana. Historia de las religiones en Argentina. Las minorías religiosas. Buenos Aires: Sudamericana, 2004. BRAYLAN, Marisa (Comp.). Informe sobre antisemitismo en la Argentina 2010. Buenos Aires: Centro de Estudios Sociales da Delegación de Asociaciones Israelitas Argentinas (CES/Daia), 2011. ESQUIVEL, Juan Cruz. Cultura política y poder eclesiástico. Arquivos de Ciências Sociais das Religiões [on-line], 146, abr.-jun. 2009, publicado em 29 nov. 2013. Disponível em: <http://journals.openedition.org/assr/21217;DOI:10.4000/ assr.21217>. Acesso em: 2 set. 2019. GIMÉNEZ BÉLIVEAU, Verónica; IRRAZÁBAL, Gabriela. Católicos en Argentina: hacia una interpretación de su diversidad. Sociedad y Religión, v. 22, n. 34/35, 2010. GIMÉNEZ BÉLIVEAU, Verónica. En los márgenes de la institución. Reflexiones sobre las maneras diversas de ser y dejar de ser católico. Corpus, v. 3, n. 2, 2013. INADI. Disponível em: <www.inadi.gob.ar>. Acesso em: 19 set. 2019. MALLIMACI, Fortunato (Dir.). Atlas de las creencias religiosas en Argentina. Buenos Aires: Biblos, 2013. _______. El mito de la Argentina laica. Buenos Aires: Capital Intelectual, 2015. MONTENEGRO, Silvia. El Islam en la Argentina contemporánea: estrategias institucionales y modos de estar en el espacio nacional. Estudios Sociológicos, v. 32, n. 96, 2014, p. 593-617. Disponível em: <http://www.jstor.org/ stable/24368229>. Acesso em: 19 set. 2019. WEISZ, Martina L. Argentina durante la dictadura de 1976-1983: antisemitismo, autoritarismo y política internacional. Revista Índice, ano 37, n. 24, 2007.

Notas 1

Relatório técnico do Observatório da Internet, Inadi. Disponível em: <http://www. inadi.gob.ar/2017/11/13/repudio-a-las-declaraciones-racistas-de-columnista-detv/>. Acesso em: 9 mar. 2019.


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Thiago Almeida Garcia

O RESPEITO À DIVERSIDADE RELIGIOSA COMO CAMINHO PARA

A PROMOÇÃO DA CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL E PARA O COMBATE À INTOLERÂNCIA Thiago Almeida Garcia

Este artigo busca contribuir nas discussões sobre a garantia da liberdade de pensamento, consciência e religião, e sua relação com a promoção da convivência intercultural e da harmonia social. Para isso, trazemos dados relacionados à intolerância e à violência por motivos religiosos, buscando demonstrar que a superação do quadro atual no país demanda a ampla mobilização da sociedade e do Estado em defesa da diversidade religiosa. Não é algo simples diante da ampliação dos conflitos sociais que estamos observando nos últimos anos.

E

ntre as dimensões que possibilitam o estabelecimento da convivência intercultural e a harmonia social de um país estão o respeito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião e a valorização da diversidade das religiões e crenças professadas por seus cidadãos. A liberdade religiosa é um direito humano fundamental, garantido por compromissos internacionais e, no caso brasileiro, pela legislação nacional. A proteção desse direito humano fundamental é uma questão de cidadania e permite que cada cidadã e cada cidadão possa vivenciar as suas formas próprias de espiritualidade e convicção. Na medida em que a espiritualidade desempenha um papel significativo na vida das pessoas, a garantia do direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião contribui para a promoção da dignidade humana e do direito à diferença, e para o

desenvolvimento de uma cultura de paz nas sociedades. No entanto, em que pesem os avanços nos instrumentos internacionais de direitos humanos sobre esse tema e o desenvolvimento de políticas e ações para a promoção da diversidade religiosa no Brasil, os dados disponíveis nos mostram um aumento substancial de casos de intolerância relacionados às religiões. É nesse contexto que se faz necessária a mobilização da sociedade e do Estado para o desenvolvimento de ações voltadas para a promoção do respeito à diversidade religiosa e para a convivência intercultural. Ações que não podem ser vistas de forma isolada em relação às políticas sociais de superação da pobreza e da desigualdade. Nas próximas páginas, buscamos colaborar com algumas reflexões sobre a questão da liberdade religiosa e de crença e suas contribuições para a convivência intercultural e a harmonia social.

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1. O problema da intolerância religiosa no Brasil A violência e a intolerância justificadas por questões religiosas têm raízes profundas no Brasil e, infelizmente, são parte constituinte da nossa formação como nação. Basta lembrar que o Brasil é um país formado a partir de um violento processo que exterminou física e culturalmente centenas de povos originários, sem o devido respeito às suas religiões e crenças. Um projeto colonial que buscou reduzir esses povos, categorizando-os arbitrariamente como “índios”, sem direito aos seus territórios, às suas línguas, culturas, tradições religiosas, de crença e convicção, ao seu livre exercício da autodeterminação. Somado à colonização dos povos indígenas, no Brasil, tivemos um longo processo de escravização de populações do continente africano. Milhões de pessoas que foram transladadas de forma criminosa sem direito a suas vidas, sua liberdade, seus corpos, suas culturas e suas religiões, crenças e convicções. Após a proibição da escravidão no país, no fim do século XIX, não foram desenvolvidas políticas para a inclusão social dessas populações, mantendo-as à margem da sociedade e sem direitos. A violência extrema da colonização e da escravização no Brasil precisa ser lembrada porque é um fator determinante da sociedade brasileira atual. Durante quase cinco séculos, o projeto brasileiro se baseou na ideia de um país, uma língua (português), uma religião (católica romana) e um modelo de cidadão. Todos os outros que não se enquadravam nesse perfil ideal de cidadão poderiam ser perseguidos, desrespeitados, invisibilizados, violentados. Em consequência, as religiões

e crenças dessas populações foram, e ainda são, vilipendiadas e discriminadas, no que podemos classificar como uma situação de racismo religioso1. Ainda que a Constituição nacional de 1891 já tivesse estabelecido a separação entre a Igreja Católica e o Estado, foi só em 1988, com uma nova Constituição Federal, que o Brasil passou a se reconhecer, em termos legais, como um país pluriétnico, com expressiva diversidade de religiões e crenças. Um país com enorme diversidade, representada hoje por 305 povos indígenas e 2.500 comunidades quilombolas, além de dezenas de povos e comunidades tradicionais, como os povos ciganos, pomeranos e de terreiro (matriz africana). Mesmo com tais avanços legislativos, existe ainda um longo percurso para que avanços legais se reflitam de fato na consolidação de uma sociedade plural, democrática e harmônica. Os dados disponíveis mostram, todos os anos, centenas de casos de violência e intolerância religiosa no Brasil. Apesar dos números crescentes, eles ainda têm pouca visibilidade. Boa parte das vítimas não consegue acessar os órgãos competentes para lidar corretamente com a denúncia, o que também compromete a elaboração de indicadores específicos e, consequentemente, a construção de políticas de combate à intolerância e à violência religiosa. Além disso, muitas vezes as vítimas que procuram os canais de comunicação de crimes são desencorajadas e desacreditadas em suas denúncias, o que nos leva a uma grave situação de subnotificação de casos de intolerância motivada por questões religiosas. Por exemplo, casos de violação de espaços sagrados de religiões de matriz africana acabam


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sendo tratados como briga de vizinhos. O fator religioso é invisibilizado de forma permanente no Brasil. Por causa disso, é preciso reforçar a caracterização do conceito de intolerância religiosa. A base jurídica e conceitual nos é dada pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, pela Constituição Federal de 1988 e pelo Plano Nacional de Direitos Humanos: Toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de consciência e de religião; este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pelos ritos (DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, 1948). VI – é inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias (CONSTITUIÇÃO FEDERAL DE 1988). 109. Garantir o direito à liberdade de crença e culto a todos os cidadãos brasileiros; 110. Prevenir e combater a intolerância religiosa, inclusive no que diz respeito a religiões minoritárias e a cultos afro-brasileiros (PLANO NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS, 2010).

Diante desses princípios, identificamos a intolerância e a violência por motivos religiosos como o conjunto de atitudes ofensivas

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às diferentes crenças e religiões e às pessoas que as professam. Em muitos casos, a intolerância acaba por gerar agressões físicas, mortes e vandalização de espaços sagrados e símbolos religiosos. 2. Dados sobre intolerância religiosa no Brasil Os dados existentes sobre intolerância religiosa são fundamentais para a mensuração do problema no país. Uma publicação que pode contribuir nesse trabalho é o Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa (Rivir), organizado pela então Secretaria Especial de Direitos Humanos da Presidência da República (atualmente Ministério das Mulheres, Família e Direitos Humanos), que reúne dados de intolerância e violência religiosas de abrangência nacional no período de 2011 a 2015. Foram coletadas e analisadas informações de todas as regiões, com um foco maior em dez estados selecionados (Amazonas, Bahia, Espírito Santo, Distrito Federal, Minas Gerais, Paraíba, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul e São Paulo). O relatório apresenta índices crescentes de ocorrências registradas em delegacias de polícia, casos publicados em jornais e denúncias recebidas por ouvidorias de direitos humanos. No caso, por exemplo, dos dados obtidos através do Disque 100 – da Ouvidoria Nacional dos Direitos Humanos –, percebe-se um crescimento expressivo no número de denúncias. Se comparamos 2011 e 2015, vemos que o número de denúncias cresceu quase 20 vezes: em 2011 foram 15 denúncias; já em 2015, 252. Tanto entre vítimas como entre agressores é possível identificar um amplo

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espectro de religiões, sinalizando a complexidade dessa violência. Em que pese tal constatação, podemos afirmar que questões relacionadas a gênero, raça, etnia e classe social estão intimamente ligadas aos casos de intolerância. Mulheres negras, pobres e de religiões afro-brasileiras têm chances substancialmente maiores de sofrer violência religiosa do que homens brancos cristãos2. 3. Caminhos possíveis para a convivência harmônica Nesse contexto é preciso perguntar qual é o papel do Estado na promoção do respeito à diversidade religiosa e na garantia de sua laicidade. Em nossa visão, o Estado tem um papel amplo e fundamental na educação para o enfrentamento à intolerância, à violência e ao racismo religioso por meio da promoção de uma cidadania plural. Para além disso, o Estado tem o papel de fomentar o diálogo religioso, com espaços de participação social e escuta qualificada da sociedade em relação a tais temas. Um exemplo disso é a criação e manutenção, pelo Governo Federal, do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa (CNRDR) 3, formado por 20 integrantes, entre religiosos e especialistas representativos da diversidade brasileira. Faz-se importante que os governos estaduais também busquem fomentar esses espaços de participação e diálogo por meio da criação de comitês estaduais de respeito à diversidade religiosa. Outro aspecto relevante, e que deve ser um princípio das instituições públicas, é a busca dos meios para garantir a laicidade estatal em políticas e decisões, de forma a respeitar cada cidadã, cada cidadão,

independentemente de sua religião, crença e pensamento. Vale lembrar que a laicidade do Estado não é, em absoluto, a existência de um Estado antirreligioso. É, sim, um princípio que garanta que todas as religiões e crenças, seus espaços sagrados e seus adeptos sejam respeitados em todas as dimensões alcançadas pelas políticas e ações estatais, garantindo que os representantes das diversas religiões, credos e convicções participem dos debates na esfera pública. Por fim, o Estado tem como papel fundamental a superação das desigualdades sociais, na medida em que não há liberdade religiosa sem superação de outros aspectos da vulnerabilidade da população. O diálogo religioso é muito mais difícil em um contexto de assimetrias historicamente construídas. Para além das ações estatais, a sociedade civil tem um papel fundamental na promoção da liberdade religiosa, por meio de ações de conscientização da população e monitoramento das ações estatais nessa área. Em meio às turbulências atuais no Brasil, torna-se ainda mais importante o trabalho permanente de todas e todos para a construção de um país verdadeiramente inclusivo e plural. A convivência intercultural aponta para a construção de uma cidadania alicerçada na busca da igualdade de oportunidades, no reconhecimento das diferenças e na superação da intolerância, o que contribui sobremaneira para o aprimoramento da democracia. Para tanto, são necessários o estabelecimento do diálogo permanente, a criação de condições de igualdade de oportunidades, o reconhecimento, o respeito e a valorização das diferenças para a cidadania inclusiva.


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Thiago Almeida Garcia

Thiago Almeida Garcia Doutor em ciências sociais pela Universidade de Brasília (UnB), foi coordenador do Comitê Nacional de Respeito à Diversidade Religiosa (CNRDR) e da Assessoria de Diversidade Religiosa, do Ministério dos Direitos Humanos, no período de 2016 a 2019.

Referências FONSECA, Alexandre Brasil. Povos tradicionais, direitos humanos e liberdade religiosa. XVIII Colóquio Anual do Consórcio Latino-Americano de Liberdade Religiosa (CLLR). Rio de Janeiro, 2018. SDH/PR. Relatório sobre intolerância e violência religiosa no Brasil (2011-2015): resultados preliminares. Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos. Brasília: Secretaria Especial de Direitos Humanos, SDH/PR, 2016. 146 p.

Notas 1

Fonseca (2018) discute como a questão da intolerância religiosa está intimamente ligada aos diferentes tipos de violências, desigualdades e racismos que envolvem aspectos tanto étnicos como etários e de gênero dos grupos sociais historicamente subalternizados no Brasil.

2

Relatório sobre Intolerância e Violência Religiosa no Brasil (2011-2015): Resultados Preliminares, do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos.

3

Portaria 18/2014 da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República.

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5.

CONFLITOS RELACIONADOS ÀS MULHERES

139. MEDIDAS DE DESIGUALDADE

ENTRE MULHERES E HOMENS: EDUCAÇÃO, TRABALHO, POLÍTICA, VIOLÊNCIA Paula Alves de Almeida

149. MULHERES E HOMENS:

HARMONIA E COMPLEMENTARIDADE NA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO Maria Salet Ferreira Novellino


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Paula Alves de Almeida

MEDIDAS DE DESIGUALDADE ENTRE MULHERES E HOMENS:

EDUCAÇÃO, TRABALHO, POLÍTICA, VIOLÊNCIA Paula Alves de Almeida

As hierarquias construídas social e culturalmente entre mulheres e homens estabeleceram, ao longo do tempo, desigualdades ainda presentes, em menor ou maior grau, em praticamente todos os países. Essas diferenças entre os sexos determinam vulnerabilidades e acesso desigual a recursos e oportunidades em todos os setores da vida, como educação, trabalho, relações familiares e sociais, tomada de decisão, direitos e responsabilidades, que definem situações de convivência harmoniosa ou de conflitos entre mulheres e homens.

E

m todo o mundo, com menor ou maior impacto, diferenças culturais entre mulheres e homens determinam desigualdades entre os sexos em diversas áreas, como educação, trabalho, vida familiar, bem-estar, oportunidades, acesso a recursos e tomada de decisão. A produção de estatísticas é fundamental para revelar essas desigualdades e investigar aspectos específicos que afetam mais um sexo do que o outro (IBGE, 2018). Algumas reivindicações femininas já foram formalmente conquistadas em boa parte dos países ocidentais, como acesso à escolarização e ao mercado de trabalho, direitos trabalhistas e proteção contra a violência. Mas, em alguns países, as mulheres ainda exercem atividades mais desvalorizadas do que os homens e enfrentam

dificuldades no acesso à educação formal e altos índices de violência doméstica. A discriminação contra a mulher ainda existe tanto em países desenvolvidos quanto em países em desenvolvimento. Principais pontos de conflito: medidas de convivência social Medir níveis de convivência harmoniosa ou conflitiva não é tarefa fácil, visto que envolve muitas dimensões, sendo algumas de difícil mensuração. Considerando a vida social das mulheres, os principais pontos de desigualdade em âmbito global estão concentrados nas áreas educacional, laboral e política, e nas diferentes formas de violência que atingem as mulheres. Lembrando que essas esferas se relacionam e se influenciam.

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Apesar de contínuos avanços no que se refere à participação das mulheres na educação e no mercado de trabalho, algumas assimetrias ainda persistem, como a diferença salarial (no Brasil, em 2016, o rendimento médio mensal das mulheres representava 77% do rendimento dos homens), a desproporção nos cargos de chefia (as mulheres ocupavam 39% dos cargos gerenciais em 2016 no Brasil) e a segmentação de ocupações – concentração de oportunidades de trabalho para as

mulheres em determinadas carreiras com status e remuneração, em geral, mais baixos (IBGE, 2018). Entre os motivos apontados para essas desproporções no trabalho remunerado está a divisão desigual das responsabilidades com afazeres domésticos e com o cuidado de pessoas, que ainda recaem predominantemente sobre as mulheres. No quadro a seguir, apresentam-se aspectos destacados e algumas variáveis que podem contribuir na identificação de conflitos sociais entre os sexos.

QUADRO 1: DESIGUALDADE ENTRE OS GÊNEROS – ASPECTOS E VARIÁVEIS

ASPECTO Educação

Uso do tempo

VARIÁVEIS DESTACADAS Proporção de mulheres e homens com ensino superior completo Proporção de mulheres e homens com ensino secundário completo Horas dedicadas aos afazeres domésticos por mulheres e por homens Horas dedicadas ao cuidado de pessoas por mulheres e por homens Taxa de atividade feminina e masculina

Trabalho

Taxa de desocupação feminina e masculina Renda média feminina e masculina por hora trabalhada

Política

Proporção de assentos no Parlamento para mulheres e homens Ratificação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher Número de ocorrências de violência doméstica

Violência

Existência de delegacias especializadas em atendimento às mulheres Existência de legislação que criminalize a violência contra as mulheres


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Educação formal Em relação à educação, as meninas e mulheres no Brasil apresentam indicadores superiores aos dos meninos e homens, tanto no acesso à educação quanto na permanência na escola, nos três níveis de ensino (do fundamental ao superior) (BRASIL, 2007). Internacionalmente, a comparação entre a proporção de mulheres e a de homens com ensino secundário ou superior completo ainda é um dado muito significante sobre o desenvolvimento dos países no que diz respeito ao empoderamento de meninas e mulheres. Apesar de as mulheres já terem superado os homens na educação formal em todos os níveis no Brasil e em boa parte dos países da América Latina, ainda há desigualdades persistentes em determinados cursos superiores e áreas do conhecimento, e é importante destacar que homens e mulheres com ensino médio ou superior conseguem melhores oportunidades de trabalho. Uso do tempo e afazeres domésticos A forma como homens e mulheres utilizam seu tempo indica desigualdades de oportunidades, de condições e de papéis sociais (HANY et al., 2010). Segundo Ávila (2010), aqueles que deixam de fazer trabalho doméstico enquanto outros o fazem em seu lugar ganham horas do seu tempo, pois deixam de usá-lo em tarefas fundamentais às suas necessidades. As mulheres, sobrecarregadas pelas responsabilidades familiares, deixam de usar seu tempo com cuidados pessoais, lazer, estudos, cultura e maior dedicação ao trabalho remunerado. Ramos (2009) observa que a desigualdade de dedicação ao trabalho doméstico entre homens e mulheres não é

Paula Alves de Almeida

exclusividade de países em desenvolvimento. Ao analisar pesquisas realizadas na Alemanha, na Inglaterra e nos Estados Unidos, a autora conclui que, nesses países, o aumento do tempo dedicado aos afazeres domésticos pelos homens é proporcionalmente bem menor do que o incremento da participação feminina no trabalho remunerado. Alves e Falcão (2018) compararam o tempo dedicado por mulheres e homens de 20 a 34 anos à realização de tarefas domésticas, em 2015, no Brasil, considerando características socioeconômicas. Os resultados apontam que fatores como situação de ocupação e nível de escolaridade e de renda têm alguma influência nas horas de trabalho doméstico de mulheres e homens, mas não diminuem a diferença entre os sexos. As mulheres mais escolarizadas, com maior renda e ocupadas realizam menos tarefas domésticas do que as mulheres com menor escolaridade e renda e desocupadas, e o mesmo acontece entre os homens. No entanto, elas gastam em média o dobro de horas semanais em tarefas domésticas do que eles, tanto entre os ocupados quanto entre os desocupados, em todos os grupos de escolaridade e todos os grupos de renda. Trabalho e carreira Araújo e Guedes (2010) consideram que o mercado de trabalho é um dos campos em que tanto as conquistas das mulheres quanto a permanência de discriminações se fazem mais perceptíveis. O campo laboral reflete o contexto educacional e diferenças sociais e culturais. Uma medida de fácil interpretação é a comparação entre as taxas de atividade feminina e masculina

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(proporção de mulheres e homens economicamente ativos em relação ao total de mulheres e homens em idade ativa). Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT) (2017), a taxa de atividade feminina era menor do que a masculina em todos os países da América Latina em 2017. Os países que apresentaram as maiores diferenças nas taxas de atividade foram Honduras, México e Guatemala. Outra medida relevante é a comparação entre as taxas de desocupação feminina e masculina (proporção de mulheres e homens desocupados em relação ao total de mulheres e homens economicamente ativos). Em 2017, na América Latina, a taxa de desocupação feminina era maior do que a masculina em todos os países. As maiores diferenças ocorreram em Belize, Jamaica e Honduras, e as menores em Barbados, Chile e México (OIT, 2017). Embora a renda não seja uma variável de fácil acesso e manipulação, é considerada uma das principais evidências de desigualdades no trabalho. Conforme o terceiro relatório nacional de acompanhamento dos Objetivos de Desenvolvimento do Milênio, quanto mais elevado o nível de escolaridade, maiores as desigualdades de salário entre os sexos (BRASIL, 2007). Nas funções menos qualificadas existe, em geral, maior homogeneidade, enquanto nos postos mais qualificados a divisão sexual das ocupações impede que as mulheres assumam postos mais valorizados e de maior grau hierárquico. Política e tomada de decisão Um aspecto muito usado internacionalmente para mensurar a equidade de gênero nas sociedades é a participação política,

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normalmente a comparação entre o número de assentos no Parlamento ocupados por mulheres e homens. Na América Latina, em 2019, as mulheres representam 31% do Parlamento; seis países superam os 40% de participação feminina: Cuba (53%), Bolívia (53%), México (48%), Granada (47%), Nicarágua (46%) e Costa Rica (46%). Por outro lado, 14 países não alcançam 20% de representação de mulheres na Câmara, como Brasil e Paraguai, ambos com 15% de assentos. As mais baixas representações estão no Haiti (2,5%) e em Belize (9%) (CEPAL, 2019). Outro indicador é a ratificação pelos países da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, que trata dos temas: práticas que pressuponham a inferiorização das mulheres (artigo 5); prostituição e tráfico (artigo 6); participação política e pública (artigo 7); participação internacional (artigo 8); nacionalidade (artigo 9); educação (artigo 10); trabalho (artigo 11); saúde e planejamento familiar (artigo 12); benefícios econômicos e sociais (artigo 13); mulheres rurais (artigo 14); igualdade legal (artigo 15); e casamento e família (artigo 16) (SOUZA, 2009). Os Estados comprometeram-se a enviar relatórios sobre as medidas legislativas, administrativas e judiciárias implementadas, permitindo o acompanhamento e a avaliação do cumprimento das metas pelo Comitê sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, ligado à Organização das Nações Unidas (ONU). Segundo Santo (2006), pela primeira vez, os Estados prestam contas a organismos internacionais de como defendem os direitos das mulheres. No entanto, Souza (2009) pontua que o comitê

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não tem poder de obrigar os Estados a cumprir o instrumento, o que gera uma distância entre a situação teórica (jurídica, legal) das mulheres e a realidade. Outra questão apontada pelas duas autoras citadas é o fato de a convenção não tocar na temática da violência contra as mulheres de forma explícita. Violência contra as mulheres A violência contra as mulheres influencia todos os demais campos, pois interfere em toda a vida das mulheres, inclusive na educação e no mercado de trabalho. Dados sobre feminicídio, violência sexual e violência doméstica estão disponíveis em algumas fontes internacionais. O número de ocorrências de violência doméstica (registros oficiais de casos), embora disponível em algumas fontes de dados internacionais, esbarra no problema da subnotificação, pois nem todos os casos são registrados, e, nos países onde a violência doméstica não é considerada crime, dificilmente haverá registros oficiais. Pode-se verificar a existência no país de delegacias ou outras estruturas semelhantes especializadas em atendimento à mulher em casos de violência, ou também a existência no país de legislação que criminalize a violência contra as mulheres ou outros recursos jurídicos semelhantes. Considerações A elaboração de um trabalho analítico sempre pressupõe um recorte. A mensuração de níveis de conflitos na dimensão mulheres pode considerar os aspectos acima citados, além de outros. No entanto, a construção de um índice deve levar em consideração a disponibilidade de dados em todos os países

que se pretende pesquisar, a não repetição de informações, a combinação de elementos não transferíveis entre si, a identificação dos fatores de maior impacto naquilo que se pretende mensurar, a facilidade ou a dificuldade de interpretação1. No caso do Brasil, por exemplo, os principais entraves à autonomia das mulheres estão relacionados às desigualdades no mercado de trabalho, à baixa representação feminina na esfera política e à violência. Mas, como as informações sobre violência têm problemas de subnotificação, o que prejudicaria a confiabilidade do índice, a mensuração de conflitos na convivência social entre mulheres e homens na América Latina pode ser mais eficaz se composta de uma variável de cada uma das seguintes áreas: educação, trabalho e política – levando em consideração, por exemplo, a proporção de mulheres e homens com ensino superior, a taxa de atividade feminina e masculina, e a proporção de assentos no Parlamento ocupados por mulheres.

Paula Alves de Almeida Doutora em população, território e estatísticas públicas pela Escola Nacional de Ciências Estatísticas, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ence/IBGE), é mestra em estudos populacionais e pesquisas sociais pela mesma instituição. É diretora do Instituto de Cultura e Cidadania Femina, no Rio de Janeiro.


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Bibliografia recomendada ALVES, José; CAVENAGHI, Suzana. Indicadores de desigualdade de gênero no Brasil. Mediações, v. 17, n. 2, Belo Horizonte, jul./dez. 2012, p. 83-105. ATAL, Juan; ÑOPO, Hugo; WINDER, Natalia. New century, old disparities: gender and ethnic wage gaps in Latin America. IDB Working paper series, n. 109. InterAmerican Development Bank, 2009. BELTRÃO, Kaizô; ALVES, José E. A reversão do hiato de gênero na educação brasileira no século XX. Cadernos de Pesquisa, v. 39, n. 136, São Paulo, jan./abr. 2009, p. 125-156. Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/cp/v39n136/a0739136.pdf>. Acesso: 18 fev. 2011. RODRIGUES, Almira; CORTES, Iaris R. Legislação sobre trabalho e gênero: período 1988-2010. Revista do Observatório Brasil da Igualdade de Gênero. Brasília: Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2010. SCANDAR NETO, Wadih; JANNUZZI, Paulo; SILVA, Pedro. Sistemas de indicadores ou indicadores sintéticos: do que precisam os gestores de programas sociais? In: XVI Encontro Nacional de Estudos Populacionais, 2008, Caxambu. Anais... Belo Horizonte: Abep, 2018. YANNOULAS, Silvia Cristina. Dossiê: políticas públicas e relações de gênero no mercado de trabalho. Brasília: CFEMEA: FIG/Cida, 2002.


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Paula Alves de Almeida

Sites recomendados como fornecedores de estatísticas de gênero internacionais <https://genderstats.org/ http://data.worldbank.org/topic/gender>. Acesso em: 4 set. 2019. <http://www.unece.org/gender/welcome.html>. Acesso em: 4 set. 2019. <https://www.ilo.org/global/lang--en/index.htm>. Acesso em: 4 set. 2019. <https://www.dol.gov/wb/stats/stats_data.htm>. Acesso em: 4 set. 2019. <http://www.unwomen.org/en>. Acesso em: 4 set. 2019. <https://www.cepal.org/es/areas-de-trabajo/asuntos-de-genero>. Acesso em: 4 set. 2019. <https://www.gapminder.org/data/>. Acesso em: 4 set. 2019. <https://www.ipu.org/>. Acesso em: 4 set. 2019. <https://unstats.un.org/home/>. Acesso em: 4 set. 2019. <https://international.ipums.org>. Acesso em: 4 set. 2019.

Notas 1

Segundo Torres et al. (2003), os atributos indispensáveis a um bom indicador são: credibilidade, simplicidade, desagregação espacial, reprodutibilidade, comparabilidade, periodicidade, acurácia, baixo custo e sensibilidade.

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MULHERES E HOMENS:

HARMONIA E COMPLEMENTARIDADE NA DIVISÃO SEXUAL DO TRABALHO Maria Salet Ferreira Novellino

O propósito deste trabalho é investigar se tem havido uma reordenação sexual do trabalho, na qual mulheres que cursaram universidade e participam do mercado de trabalho partilhariam com seus cônjuges atividades próprias dos espaços privados, evidenciada pelas horas dedicadas aos afazeres domésticos por ambos. Para isso, utilizam-se dados extraídos da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad) de 2015 para mulheres e homens na classe etária de 18 a 60 anos. Analisa-se a desigualdade social entre as mulheres relacionando seu grau de instrução com variáveis referentes ao trabalho e aos afazeres domésticos.

O

s diferentes papéis sociais e culturais atribuídos às mulheres e aos homens, antes percebidos como garantia de uma espécie de “harmonia” pela complementaridade entre ambos, passam a ser vistos e denunciados não mais como diferentes, mas como desiguais. A desigualdade entre mulheres e homens reflete uma ordem sexuada, segundo a qual há representações e normas diferentes para mulheres e para homens. Essa ordem sexuada está institucionalizada no imaginário, no agir, e segui-la dá uma ideia de harmonia entre os sexos, na qual homens e mulheres agiriam de acordo com os seus papéis de gênero, sendo designados aos primeiros os espaços públicos ou as esferas produtivas e às mulheres os espaços privados ou as esferas reprodutivas. A ordem sexuada, atribuindo a cada sexo um lugar na ordem social e política em função de uma or-

dem natural presumida, confirma uma repartição desigual de poder, na qual a esfera reprodutiva se subordina hierarquicamente à produtiva (SÉNAC-SLAWINSKI, 2007). A ordem sexuada será aqui evidenciada pela análise da divisão sexual do trabalho. Para Hirata e Kergoat (2007), estudar a divisão sexual do trabalho é mais do que comparar as distribuições de mulheres e de homens no mercado de trabalho, nas ocupações, nos territórios e suas variações ao longo do tempo; a divisão sexual do trabalho é mais do que a divisão de tarefas no espaço doméstico. A divisão sexual do trabalho deve ser entendida como o resultado dos papéis e das funções social e culturalmente atribuídas a homens e a mulheres. A naturalização da divisão sexual do trabalho legitima as desigualdades sociais e políticas entre os sexos em nome da ordem social e do respeito à harmonia natural.

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A divisão entre trabalho produtivo mulheres e homens na classe etária de 18 a (aquele que é realizado no espaço público) 60 anos, emergiu uma diferença brutal entre e reprodutivo (aquele que é realizado no as próprias mulheres, observada nas assoespaço privado) garantiria uma harmonia ciações entre os graus de instrução e as vaentre mulheres e homens. Uma desordem riáveis referentes ao trabalho e aos afazeres nessa divisão levaria a uma desarmonia, domésticos. Isso levou à tomada de decisão pois os papéis femininos e masculinos não de, inicialmente, apresentar comparações estariam mais claramente demarcados. feitas exclusivamente entre as mulheres Há, entretanto, uma positividade nessa segundo seus graus de instrução. Em condesordem, pois ela pode conduzir a uma tinuação, volta-se para a ordem sexuada do reordenação em que mulheres e homens trabalho, comparando-se exclusivamente participariam em igualdade de condições homens e mulheres com nível superior de do mundo do trabalho, bem como partilha- ensino. Isso porque se acredita que seriam riam dos compromissos próprios do espaço essas as mulheres que poderiam ou teriam privado: o lar e a família. as condições objetivas para atuar na revisão O marco dessa desordem ou a possibi- da divisão sexual do trabalho. lidade de uma nova ordem foi a entrada das As mulheres brasileiras com idade enmulheres em número signifitre 18 e 60 anos distribuemcativo em universidades e no A naturalização da -se, segundo o grau máximo mercado de trabalho, em posi- divisão sexual do de instrução alcançado, da trabalho legitima as ções mais qualificadas e mais seguinte maneira: com fundadesigualdades sociais e bem remuneradas. Conduziria mental incompleto são 28,6%; políticas entre os sexos isso a uma reordenação sexual em nome da ordem com fundamental completo do trabalho tanto no espaço social e do respeito à são 15,5%; com médio comprivado quanto no público? A harmonia natural pleto são 40,3%; com superior análise estatística aqui realicompleto são 15,3%. Como se zada, com dados extraídos da Pesquisa Na- pode ver na Tabela 1, as mulheres com nícional por Amostra de Domicílios (Pnad) de vel superior de ensino participam em nú2015, tem como objetivo investigar se tem mero muito maior do mercado de trabalho: havido uma reordenação sexual do trabalho, 78,3% delas estavam trabalhando na semasegundo a qual mulheres, ao menos aque- na de referência, enquanto os percentuais las que cursaram universidade e participam de mulheres com graus de instrução infedo mercado de trabalho, partilhariam com riores que estavam trabalhando variavam seus cônjuges atividades próprias dos espa- de 42% a 60%, aproximadamente. ços privados (cuidados com a casa e com os A qualidade da participação das mufilhos), aqui evidenciadas pelas horas dedi- lheres no mercado de trabalho pode ser cadas aos afazeres domésticos. observada pela contribuição a institutos Em uma análise inicial e explorató- de previdência, seja federal, seja estadual ria com os dados sociodemográficos de ou municipal, o que lhes garante benefícios


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sociais no presente e no futuro. As mulheres com nível superior de instrução que contribuíam para institutos de previdência eram 71,6%. O nível de instrução é determinante

para a participação no sistema de seguridade social. A diferença entre aquelas com fundamental incompleto e as com superior era de 52 pontos percentuais.

TABELA 1: DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DAS MULHERES COM IDADE ENTRE 18 E 60 ANOS QUE TRABALHAVAM NA SEMANA DE REFERÊNCIA E QUE CONTRIBUÍAM PARA O INSTITUTO DE PREVIDÊNCIA, POR GRAU DE INSTRUÇÃO – BRASIL – 2015

FUNDAMENTAL INCOMPLETO

FUNDAMENTAL

MÉDIO

SUPERIOR

Trabalhavam

42,6

49,3

59,6

78,3

Contribuíam

19,5

29,2

44,9

71,6

Diferença

23,1

20,1

14,7

6,7

Fonte: Pnad 2015.

Na Tabela 2 mostra-se a relação entre graus de instrução e quartis de rendimento, sendo o primeiro quartil o grupo com a renda mais baixa. As mulheres com nível superior não só participam em quase sua totalidade do mercado de trabalho como 66,8% estavam no grupo com renda mais

alta. As mulheres com curso superior possuem condições objetivas para alcançar autonomia econômica, o que significa participar do espaço público em condições semelhantes às dos homens, o que pode levar a uma reordenação da divisão de trabalho predominante.

TABELA 2: DISTRIBUIÇÃO DAS MULHERES COM IDADE ENTRE 18 E 60 ANOS POR QUARTIS DE RENDA E POR GRAU DE INSTRUÇÃO – BRASIL – 2015

FUNDAMENTAL INCOMPLETO

FUNDAMENTAL

MÉDIO

SUPERIOR

Primeiro quartil

41,3

33,1

20,9

4,5

Segundo quartil

27,8

26,0

22,8

8,3

Terceiro quartil

22,1

26,8

29,3

20,4

Quarto quartil

8,8

14,1

27,0

66,8

Fonte: Pnad 2015.

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A posição na ocupação (Tabela 3) com maior participação de mulheres é a de empregada, cujo percentual aumenta à medida que se eleva o grau de instrução; observa-se uma diferença de 53,5 pontos percentuais entre as mulheres com nível superior e aquelas

com fundamental incompleto nessa posição. A ocupação que se destaca entre as mulheres com menor nível de instrução é a de trabalhadora doméstica. Das trabalhadoras domésticas, somente 41,4% contribuíam para institutos de previdência.

TABELA 3: DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DAS MULHERES COM IDADE ENTRE 18 E 60 ANOS COM NÍVEL SUPERIOR POR POSIÇÃO NA OCUPAÇÃO – BRASIL – 2015

FUNDAMENTAL INCOMPLETO

FUNDAMENTAL

MÉDIO

SUPERIOR

Empregado

12,4

23,5

43,2

65,9

Empregador

0,4

0,8

1,5

3,6

Conta própria

8,1

10

9,1

9

Trabalhador doméstico

14,8

12,1

5,2

0,8

Não informado

63,4

52,6

40,2

20,3

Não remunerado

0,9

1,0

0,9

0,4

Fonte: Pnad 2015.

Quanto ao setor de emprego, a participação das mulheres no setor público aumenta consideravelmente à medida que se eleva o grau de instrução. Para as mulheres com fundamental incompleto e completo, os percentuais não chegam a 3%, passando a quase 10% para aquelas com nível médio. O percentual das mulheres com nível superior empregadas no setor público era de aproximadamente 35%. Há não só uma ordem sexual, mas uma ordem social cuja desigualdade se revela pelos graus de instrução alcançados. As mulheres com baixa escolaridade (fundamental incompleto ou completo) encontravam-se em percentuais consideráveis na esfera privada, ou, se na esfera pública, em ocupações com baixos

salários, e raramente contribuíam para institutos de previdência, destacando-se como ocupação o trabalho doméstico. As análises que se seguem voltam-se para a ordem sexuada do trabalho, e para essa consideram-se exclusivamente mulheres e homens com grau de instrução superior. Observa-se, inicialmente, a distribuição de homens e mulheres por grupos ocupacionais. Entre eles, destacam-se, por ordem de importância: dirigentes, no qual o percentual de mulheres é de 7,7% e o de homens é quase o dobro, 14,4%. O segundo grupo em ordem de importância são os profissionais das ciências e das artes, no qual o percentual de mulheres é superior ao dos homens – respectivamente, 44,9% e 38,4%.


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Entre os técnicos de nível médio, a superioridade é masculina: 12,7% de homens e 7,6% de mulheres. Isso se inverte para os trabalhadores em serviços administrativos, com percentual mais alto para as mulheres, que perfazem 11,4%, ante 7,7% de homens. A análise da divisão sexual do trabalho, considerando as possibilidades da fonte de dados utilizada, compreende horas dedicadas ao trabalho e aos afazeres domésticos. Na Tabela 4 apresentam-se as horas dedicadas ao trabalho e aos afazeres domésticos. Quanto às horas trabalhadas, percebe-se um pouco mais da metade de mulheres e homens trabalhando em horário integral (entre 40 e 44 horas semanais), com percentuais semelhantes, diferindo em menos de 1 ponto. No entanto, trabalhando abaixo e acima das 40 a 44 horas semanais, o percentual de mulheres, no primeiro caso, e o de homens, no segundo, guardam diferenças

significativas, com maior número de mulheres trabalhando em tempo parcial e maior número de homens em jornadas superiores à regulamentar. Quanto aos afazeres domésticos, a diferença também era bastante significativa: 42,4% dos homens não dedicavam tempo algum aos afazeres domésticos e 41,5% dedicavam-se entre uma e dez horas semanais; os que se dedicavam de 21 a 30 horas eram 3,3%. Vê-se que a ordem sexuada se mantém e, graças a ela, as mulheres continuam carregando de maneira unilateral as responsabilidades familiares (ABRAMO, 2007, p. 34). Entra aí a questão da “conciliação”, cabendo às mulheres conciliar atividades produtivas e compromissos com a família. De fato, grande parte das mulheres se equilibra entre o privado e o público e seus respectivos compromissos em cada um desses espaços.

TABELA 4: DISTRIBUIÇÃO PERCENTUAL DAS MULHERES E DOS HOMENS COM IDADE ENTRE 18 E 60 ANOS COM NÍVEL SUPERIOR POR HORAS DEDICADAS AO TRABALHO E A AFAZERES DOMÉSTICOS – BRASIL – 2015

HORAS DE TRABALHO

MULHERES

HOMENS

HORAS DE AFAZERES

MULHERES

HOMENS

Até 14

3,5

2,8

Nenhuma

13,8

42,4

De 15 a 39

25,9

13,9

De 1 a 10

28,8

41,5

De 40 a 44

55,7

56,5

De 11 a 20

28,4

11,9

45 ou mais

14,9

26,8

De 21 a 30

17,2

3,3

31 ou mais

11,7

0,9

Fonte: Pnad 2015.

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Considerações finais Pode-se dizer que houve uma reordenação sexual do trabalho no espaço público para as mulheres com grau de instrução superior, por duas razões: (1) o percentual de mulheres com esse nível de ensino é maior do que o dos homens em 5 pontos percentuais (15,3% e 10,9%, respectivamente); e (2) mais de 70% delas trabalhavam em período integral. Quanto ao espaço privado, a ordem sexual se mantém, pois quase 80% dos homens ou não se dedicam de modo algum ou se dedicam em torno de uma hora semanal aos afazeres domésticos. O espaço privado continua sendo, mesmo para as mulheres com nível superior e dedicação integral ao trabalho remunerado, o “lugar” das mulheres.

Maria Salet Ferreira Novellino Doutora em ciência da informação pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), é professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (ENCE/IBGE) – onde leciona metodologia da pesquisa e estudos de gênero –, além de pesquisadora visitante no Instituto de Ciências Políticas da Universidade de Viena, na Áustria. Conduz pesquisas sobre participação e representação das mulheres no campo político, violência de gênero, políticas públicas de gênero e feminização da pobreza. É autora de artigos em diversas publicações.


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155


6.

CONFLITOS RELACIONADOS A ORIENTAÇÕES E IDENTIDADES SEXUAIS

157. A CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL E A DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO Leandro Colling

165. TRANSVERSALIDADES LGBTTIQ+:

DADOS E NARRATIVAS SOBRE A DIFERENÇA Gilberto Vieira


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Leandro Colling

A CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL E A DIVERSIDADE SEXUAL E DE GÊNERO Leandro Colling

O texto apresenta informações sobre problemas e conquistas da comunidade LGBTTIQ+ e defende que a convivência intercultural em relação à diversidade sexual e de gênero, além de políticas públicas efetivas, necessita de uma nova compreensão sobre as relações e diferenças entre sexualidade e gênero.

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ara que tenhamos uma convivência intercultural harmoniosa, o que seria necessário realizar a respeito da questão de diversidade sexual e de gênero? Na América Latina, temos vários indicadores que apontam como as pessoas LGBTTIQ+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis, transexuais, intersexo e queer) enfrentam vários problemas e violências que as impedem de conviver tranquilamente em sociedade. O último Atlas da Violência apontou, com dados do Disque 100 (serviço telefônico do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos que recebe denúncias de violações de direitos humanos), que em 2015 foram registradas 28 denúncias de homicídios de pessoas LGBTTIQ+, número que aumentou para 85 em 2016 e para 193 em 20171. O Grupo Gay da Bahia contabilizou o assassinato de 420 pessoas LGBTTIQ+ em 2018. Os números não deixam dúvida de como os avanços do discurso de ódio e a ascensão de grupos políticos e religiosos

conservadores ao poder põem em perigo o respeito à diversidade sexual e de gênero2. Ao mesmo tempo, também existem avanços importantes em alguns países, como Argentina e Uruguai, que regulamentaram o casamento civil igualitário e criaram a Lei de Identidade de Gênero. No Brasil, algumas vitórias aconteceram na Justiça, mas não no Congresso Nacional. Em 5 de maio de 2011, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a união civil entre pessoas do mesmo sexo, e o casamento civil igualitário foi garantido em 14 de maio de 2013, com a Resolução nº 175 do Conselho Nacional de Justiça. No dia 1º de março de 2018, o STF decidiu que pessoas trans têm o direito de alterar o nome social e o gênero no registro civil, mesmo que não tenham sido submetidas à cirurgia de redesignação sexual ou a tratamento hormonal. E, no dia 13 de junho de 2019, o STF decidiu que a discriminação por orientação sexual e identidade de gênero é um crime equivalente ao racismo.

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Penso que, para uma convivência intercultural respeitosa das pessoas LGBTTIQ+ na sociedade, são necessárias políticas públicas efetivas em todas as esferas. Mas essa convivência também poderia ser bem mais tranquila se todos(as) compreendessem um pouco mais sobre diversidade sexual e de gênero. Vou apenas abordar uma incompreensão muito comum e que causa uma série de violências e problemas. Trata-se de compreender as diferenças e conexões entre orientação sexual e identidade de gênero. As identidades trans, por exemplo, são compreendidas por muitas pessoas como questões exclusivas de orientação sexual, quando, nos últimos anos, ativistas e pesquisadores(as) têm evidenciado que se trata de identidade de gênero. Esse equívoco ocorre inclusive com quem pensa e executa políticas de respeito à diversidade, estando relacionado não apenas a uma questão de nomenclatura, mas a como as pessoas trans se identificam e quais problemas de convivência intercultural elas enfrentam em nossa sociedade. De forma preponderante, as pessoas trans sofrem discriminações não em razão de sua orientação sexual ou de sua própria genitália e do que fazem com ela, mas em razão da sua identidade de gênero. As pessoas trans não se identificam com a identidade de gênero que lhes foi determinada no nascimento, e isso não tem nada a ver, necessariamente, com a orientação sexual ou com o sexo dessas pessoas. Para ser bem didático: quem se identifica com o gênero que lhe foi designado em seu nascimento tem sido chamado, nos últimos anos, de cisgênero ou cisgênera. Esse conceito, criado por ativistas e pesquisadoras trans, é usado para evidenciar que todas

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as pessoas possuem identidades de gênero. As reflexões também produziram o conceito de cisgeneridade e cis-heteronormatividade (VERGUEIRO, 2015), que designam como as normas sociais exigem que todas as pessoas sejam cisgêneras e heterossexuais. Beatriz Pagliarini Bagagli, ativista trans brasileira, conceitua cisgênero da seguinte forma: “[...] uma explicação simples é que, se você se identifica com o gênero que lhe foi designado em seu nascimento, você é cis” (BAGAGLI, 2014). Hailey Kaas, outra importante ativista transfeminista, diz: O alinhamento cis envolve um sentimento interno de congruência entre seu corpo (morfologia) e seu gênero, dentro de uma lógica onde o conjunto de performances é percebido como coerente. Em suma, é a pessoa que foi designada “homem” ou “mulher”, se sente bem com isso e é percebida e tratada socialmente (medicamente, juridicamente, politicamente) como tal (KAAS, 2012).

Muitas pessoas transgridem de uma forma mais intensa as normas de gênero, como as travestis, transexuais, transgêneras, pessoas não binárias e com gênero fluido. Existe uma série de identidades de gênero, constantemente criadas e recriadas, com as quais as pessoas preferem ser identificadas. No Brasil, quando se fala em travestis, geralmente as pessoas pensam em indivíduos que “nasceram homens e se vestem de mulher”, e fazem algumas intervenções no corpo, como o uso de silicone (em especial nos seios e nas nádegas). Mas qualificar as travestis dessa forma pode ser considerado transfóbico, porque não leva

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em conta a questão da identidade. As tra- da Classificação Internacional de Doenvestis são pessoas que tiveram um corpo ças, a CID-11, divulgada no dia 18 de junho lido como masculino e que se identifica- de 2018. Mas ela continua no documento ram fortemente com o universo feminino, como “incongruência de gênero”, em uma e, por isso, realizam variadas mudanças nova categoria chamada “condições relacorporais e comportamentais. A identi- tivas à saúde sexual”. Ou seja, ocorreu um dade dessas pessoas é feminina e deve ser avanço, fruto de décadas de luta de acadêrespeitada dessa forma. Por isso, o correto micos(as) e ativistas trans e cisgêneros que é dizer as travestis, e não os travestis. utilizam um argumento potente: o entenJá as pessoas que se identificam como dimento de que as identidades trans são transexuais, diferentemente das travestis, identidades de gênero e que, portanto, o em geral são caracterizadas pela sociedade que a CID fazia era patologizar um gênero. como aquelas que desejam fazer alguma Apesar disso, os profissionais da saúde que intervenção cirúrgica em sua genitália. No deliberam acerca da CID alertam sobre o entanto, essa explicação está fato de que a criação de uma errada, porque várias vivên- Quando as pessoas não nova seção no código, a tal cias trans e vários estudos diferenciam orientação “saúde sexual”, mostra que a acadêmicos realizados no sexual da identidade de compreensão do mundo méBrasil, como os produzidos gênero, é comum que dico sobre as identidades de considerem todos os por Berenice Bento (2006), gênero ainda é parcial. indivíduos trans como apontam que existem muiDefinir o que são peshomossexuais. Esse tas pessoas que reivindicam é outro dos grandes soas transgêneras também é a identidade transexual, mas equívocos cometidos um desafio. Embora seja fornão desejam fazer nenhuma nessa área te no exterior, essa categoria cirurgia em sua genitália, innão obteve muita aderência clusive porque não possuem aversão a elas. no Brasil. Pesquisadoras e ativistas usam o Muitas vezes, essas pessoas se contentam termo como um guarda-chuva para se refeem realizar parte do processo transexua- rir a todas as pessoas que, de alguma forma, lizador, como implantar ou retirar os seios transitam entre os gêneros mais conhecie tomar hormônios para que cresçam ou dos (ou seja, o masculino e o feminino). Indesapareçam pelos no corpo. dianare Sophia, importante ativista do Rio No Brasil, até bem pouco tempo atrás, de Janeiro, utiliza o conceito de “transvespraticamente só conhecíamos as mulheres tigênere”. As pessoas que transitam de fortransexuais, mas nos últimos anos cres- ma mais intensa entre os gêneros também ceu a visibilidade dos homens transexuais, têm se identificado como não binárias, de que inclusive fundaram uma associação gênero fluido ou outras várias identidades. nacional própria. A Organização Mundial São indivíduos que não aspiram ao gênero da Saúde (OMS) retirou a transexualidade que é tido pela sociedade como oposto ao da lista de doenças mentais na nova versão seu, desejo que às vezes encontramos em


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travestis e transexuais. Há, por exemplo, aquelas pessoas que se consideram trans não binárias por não se identificarem com o que a sociedade construiu como dicotômicas identidades masculinas e femininas. Esses indivíduos se sentem bem no trânsito e, com isso, estão sempre construindo novas combinações de gênero. Quando as pessoas não diferenciam orientação sexual da identidade de gênero, é comum que considerem todos os indivíduos trans como homossexuais. Esse é outro dos grandes equívocos cometidos nessa área. Pessoas trans podem se identificar como homossexuais, gays ou lésbicas, mas também podem se identificar como heterossexuais, bissexuais, pansexuais e assexuais. Por não compreenderem isso, muitas pessoas acham impossível um homem trans engravidar, por exemplo. Ainda mais se a mãe for uma mulher trans! Ora, todas as pessoas trans devem ter o direito de exercer seus direitos reprodutivos. Em relação aos problemas de convivência intercultural motivados por orientação sexual e identidade de gênero, outra reivindicação importante é a existência de uma legislação que criminalize os atos homolesbotransfóbicos em cada país. Essa sempre foi uma prioridade do movimento social do Brasil, que conseguiu uma histórica vitória no STF em junho de 2019, quando o tribunal decidiu que homofobia é crime passível de punição pela Lei do Racismo (nº 7.716/89). No entanto, o STF tomou essa decisão por entender que o Congresso Nacional fora omisso em não legislar sobre o tema, e os(as) parlamentares ainda terão de se manifestar sobre o

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assunto. Na configuração atual, o quadro não é positivo para alguma legislação mais progressista sobre esse tema. Tudo indica que teremos muitos embates em torno dessas questões no Brasil nos próximos anos. A plena convivência intercultural para as pessoas LGBTTIQ+ ainda está distante.

Leandro Colling Professor permanente do Programa Multidisciplinar de Pós-Graduação em Cultura e Sociedade e professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Estudos Interdisciplinares sobre Mulheres, Gênero e Feminismo da Universidade Federal da Bahia (UFBA). É coordenador do Núcleo de Pesquisa e Extensão em Culturas, Gêneros e Sexualidades (NuCuS/UFBA).

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Referências BAGAGLI, Beatriz Pagliarini. O que é cisgênero. Transfeminismo, 23 mar. 2014. Disponível em: <http://transfeminismo.com/o-que-e-cisgenero/>. Acesso em: 7 set. 2019. BENTO, Berenice. A reinvenção do corpo: sexualidade e gênero na experiência transexual. Rio de Janeiro: Garamond, 2006. KAAS, Hailey. O que são pessoas cis e cissexismo?. Disponível em: <http://diversidade. blogsdagazetaweb.com/2017/03/22/8137/>. Acesso em: 15 out. 2019. VERGUEIRO, Viviane. Por inflexões decoloniais de corpos e identidades de gênero inconformes: uma análise autoetnográfica da cisgeneridade como normatividade. Dissertação de mestrado pelo Instituto de Humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos da Universidade Federal da Bahia (Ihac/UFBA), Salvador, 2015. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/19685/1/ VERGUEIRO%20Viviane%20-%20Por%20inflexoes%20decoloniais%20de%20 corpos%20e%20identidades%20de%20genero%20inconformes.pdf>. Acesso em: 7 set. 2019.

Bibliografia recomendada CARVALHO, Mario; CARRARA, Sérgio. Em direção a um futuro trans? Contribuição para a história do movimento de travestis e transexuais no Brasil. Sexualidad, Salud y Sociedad – Revista Latinoamericana, n. 14, ago. 2013, Rio de Janeiro, p. 319-351. Disponível em: <http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S198464872013000200015&script=sci_abstract&tlng=pt>. Acesso em: 7 set. 2019. COLLING, Leandro (Org.). Stonewall 40 + o que no Brasil?. Salvador: EDUFBA, 2011. Disponível em: <https://repositorio.ufba.br/ri/bitstream/ri/2260/5/stonewal-40cult9-RI.pdf>. Acesso em: 7 set. 2019. _______. A igualdade não faz o meu gênero. Em defesa das políticas das diferenças para o respeito à diversidade sexual e de gênero no Brasil. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar, v. 3, 2013, p. 405-428. Disponível em: <http:// www.contemporanea.ufscar.br/index.php/contemporanea/article/view/149>. Acesso em: 7 set. 2019. _______. Gênero e sexualidade na atualidade. 1. ed. Salvador: UFBA, Instituto de Humanidades, Artes e Ciências; Superintendência de Educação a Distância, v. 1, 2018, 69 p. Disponível em: <https://educapes.capes.gov.br/bitstream/ capes/430946/2/eBook_%20Genero_e_Sexualidade_na_Atualidade_UFBA. pdf>. Acesso em: 7 set. 2019.


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Leandro Colling

LOURO, Guacira Lopes. O corpo estranho: ensaios sobre sexualidade e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2008. SALIH, Sara. Judith Butler e a teoria queer. Belo Horizonte: Autêntica, 2012. SIMÕES, Júlio Assis; FACCHINI, Regina. Na trilha do arco-íris: do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2009.

Notas 1

Veja dados completos em: <http://www.forumseguranca.org.br/wp-content/ uploads/2019/06/Atlas-da-Violencia-2019_05jun_vers%C3%A3o-coletiva.pdf>. Acesso em: 31 ago. 2019.

2

Disponível em: <https://universa.uol.com.br/noticias/redacao/2019/01/25/grupoconta-420-crimes-contra-lgbt-em-2018-bolsonaro-nao-provocou-aumento.htm>. Acesso em: 31 ago. 2019.

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Gilberto Vieira

TRANSVERSALIDADES LGBTQ+: DADOS E NARRATIVAS SOBRE A DIFERENÇA Gilberto Vieira

Este artigo levanta algumas problemáticas de dados e narrativas protagonizadas por pessoas LGBTQ+ no Brasil, por uma óptica interseccional, na qual questões de gênero, raça, classe e território estão atravessadas por todos os debates possíveis para a contribuição na construção de políticas garantidoras de direitos plenos nas democracias. O trabalho está baseado em pesquisa sociológica, como a de Rodrigo Reduzino (2016); em relatórios e pesquisas de ONGs; e em algumas ações desenvolvidas pelo data_labe, uma organização da sociedade civil sem fins lucrativos cuja centralidade são as narrativas produzidas por sujeitos periféricos por meio de dados.

Por mais análises interseccionais Este texto joga luz sobre uma questão estruturante da sociedade brasileira: a visibilidade, o controle e a consequente garantia de direitos da população constituída por lésbicas, gays, bissexuais, pessoas transgêneras e travestis, assim como outras classificações que desviam da heterossexualidade instituída. O propósito é levantar pontos e experiências que sirvam de base para debates amplos, na perspectiva de construir um projeto de convivência intercultural entre camadas distintas da sociedade. O enfoque está na constituição de narrativas produzidas com base em dados e evidências que possam levar ao aumento significativo de políticas públicas destinadas a essa população. É fundamental entendermos que raça, gênero e sexualidade devem ser lidos como temas transversais da constituição social

brasileira. Portanto, as análises e os levantamentos acerca da população LGBTQ+ estão atravessados por esses temas – que determinam o que se convencionou chamar “diferente” na sociedade brasileira: Neste projeto de modernidade nacional nunca coube a diferença, é a existência de negros e homossexuais que perturbam a pseudo-harmonia social, desmistificando o mito da democracia racial. Se a modernidade almejada é o padrão racial branco e heterossexual, a promessa de inclusão social da população racializada e homossexual se torna uma dívida constante enquanto não for revisto este projeto teórico/político societário, colocando estes grupos em vulnerabilidade, na privação de garantia mínima de direitos (REDUZINO, 2016, p. 15).

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Essa interseccionalidade já faz parte de uma parcela importante de grupos organizados por direitos LGBTQ+. A organização Conexão G, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro1, é gerida por Gilmara Cunha, mulher transexual. Ela afirma que as reivindicações da população LGBTQ+ sempre passam por questões de raça, classe e território. Enquanto alguns lutam pelo direito ao matrimônio e à adoção, por exemplo, mulheres e homens trans e homossexuais que vivem em territórios periféricos (em sua maioria negros) estão lutando pela garantia da vida. É fundamental, então, refletir sobre questões interseccionais que garantam um olhar diverso para a real população LGBTQ+ do Brasil. A importância da geração de dados e narrativas protagonizadas por LGBTQ+ A ausência de dados censitários oficiais sobre a população LGBTQ+ e de informações atualizadas sobre a variabilidade das experiências de violência faz com que grupos e coletivos empenhem seus próprios levantamentos. Em sua maioria, essas pesquisas se baseiam na análise de mídia e em coleta de informações realizadas sobretudo por meio de redes de apoio e contato. Quando um dos jovens participantes do programa de residências2 expôs a falta de dados públicos produzidos pelo Estado sobre essa população, em 2016, o data_labe produziu uma pesquisa intitulada Transdados, com o intuito de responder a essa lacuna narrativa. Se uma pessoa transexual ou travesti presta queixa sobre um crime de ódio, dificilmente verá nos protocolos da polícia civil da maioria dos estados brasileiros que

a motivação foi transfobia. O mesmo pode acontecer no atendimento de um órgão de saúde, de transporte ou de educação. Essa negligência dos serviços públicos gera dados genéricos e invisibiliza um problema social, reforçando preconceitos e marginalizando ainda mais essa população. O Disque 100 e a ouvidoria do Sistema Único de Saúde (SUS) são fontes oficiais que reúnem denúncias de violação de direitos humanos e reclamações de atendimento em hospitais contra transexuais e travestis. Mas a produção desses dados ainda é precária, pois muitas vezes os registros das denúncias são incompletos. O cenário crítico para o debate sobre direitos LGBTQ+ não é novidade no Brasil, embora tenha ganhado novos contornos com a ascensão de um governo de extrema direita. Isso já representa retrocessos na expectativa de produção de análises, pesquisas e, consequentemente, políticas de proteção e cidadania. É da sociedade civil que partem dados fundamentais para avançarmos no debate. Para compreender a percepção das pessoas LGBTQ+ a respeito deste momento, da eleição de 2018 até os primeiros dias do governo Bolsonaro, a organização Gênero e Número produziu a pesquisa Violência contra LGBTs+ nos Contextos Eleitoral e Pós-Eleitoral3. Mais da metade dos entrevistados (51%) afirmou ter sofrido algum tipo de violência motivada por sua orientação sexual ou identidade de gênero no período. Ainda nas primeiras semanas de 2018, ano eleitoral, o Grupo Gay da Bahia (GGB) lançou uma edição atualizada do relatório Pessoas LGBT Mortas no Brasil4, que


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compila números de assassinatos e suicídios de pessoas LGBTQ+. Foram 445 registros de LGBTQ+ mortas no Brasil durante 2017, um aumento de quase 30% em relação a 2016 e um recorde de mortes desde que a pesquisa passou a ser realizada, em 1980. É necessário também situar o Brasil como o país com maior número de assassinatos de travestis e trans no mundo. De acordo com um levantamento realizado pela ONG Transgender Europe (Tgeu)5, dos 72 países analisados desde 2008, o Brasil ocupou o primeiro lugar em todos os anos, totalizando 1.238 mortes catalogadas até 2018. Se os dados sobre vida e morte de pessoas travestis e transgêneras são incertos, os números sobre mulheres lésbicas estão ainda mais escondidos. As mulheres da pauta L organizadas politicamente têm ganhado cada vez mais força na agenda pública – resultado de anos de luta dos movimentos sociais em torno desse tema. No dia 29 de agosto de 1996, aconteceu o primeiro Seminário Nacional de Lésbicas no Brasil, o Senale, um marco histórico para o movimento de mulheres lésbicas brasileiras. No entanto, as pesquisas ainda não ganharam corpo. A centralidade do Senale é a saúde, uma das pautas mais importantes para o movimento lésbico. É nessa esfera que a invisibilidade das pautas desse grupo fica evidente: questões como atendimento básico de saúde da mulher e reprodução assistida – um dos direitos reprodutivos garantidos pelo SUS – são tratadas como algo que não faz parte da realidade das lésbicas. Não são poucos os relatos de mulheres que não passam pelo exame preventivo, estratégico para detectar lesões e fazer o diagnóstico de câncer do colo

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do útero. Isso porque o protocolo médico não considera o exame necessário para mulheres que não mantêm relações sexuais com homens. Seja por preconceito ou desinformação, orientações sobre sexo seguro também não fazem parte do atendimento médico. É preciso falar sobre HIV Segundo Reduzino (2016), foi a epidemia de HIV/Aids em 1980 que fez os estudos sobre sexualidade adquirirem nova importância: [...] A sexualidade se torna um dos principais eixos de reflexão sobre a construção da pessoa moderna. A intimidade e a vida privada são encaradas na sociedade ocidental do século XX como elementos constitutivos do indivíduo moderno, com as experiências de gênero e de sexualidade tornando-se centrais para a formação de identidades (REDUZINO, 2016).

No Brasil contemporâneo, as narrativas geradas pela mídia sobre HIV/Aids são uma barreira para a ressignificação de um estigma que pesa sobre as vidas LGBTQ+. Uma reportagem publicada pela Folha de S.Paulo6 em junho de 2018 reviveu o tema no debate popular. Segundo a publicação, um a cada quatro homens que fazem sexo com homens entre 15 e 29 anos, em São Paulo, é portador do vírus do HIV. Os dados não mentem. Em nove anos (2007-2016), a razão entre homens e mulheres infectados foi de 1,4 para 2,5. Segundo o Boletim Epidemiológico de 2017 do Ministério da Saúde7, entre os homens, o crescimento da epidemia foi maior em jovens da faixa etária de 15 a 29 anos (2007, 34,1%; 2016, 46,8%).

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O estigma é uma das maiores problemáticas na luta contra o HIV. O relatório The People Living with HIV Stigma Index8, de 2017, levantou que, em sete países da região do Pacífico, 22% das pessoas que vivem com HIV cogitaram suicídio naquele ano e mais de 70% se sentiam culpados, envergonhados e com baixa autoestima. A luta contra o HIV é uma questão mundial. Uma das metas do Unaids, Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids, adotado pelo Ministério da Saúde em 2014, é a “90/90/90”. De acordo com ela, até 2020, 90% das pessoas com HIV no país estariam devidamente diagnosticadas; desse grupo, 90% realizariam o tratamento com antirretrovirais; e, destes, 90% ficariam com carga viral indetectável. Até o final de 2017, 84% haviam sido diagnosticados e, destes, 72% estavam em tratamento. Nesse grupo, 91% atingiram supressão viral, segundo o Boletim Epidemiológico do Ministério da Saúde de 20179. A meta do Unaids ainda prevê zero discriminação e novas infecções limitadas a 500 mil casos ao ano. Conclusão Declarações das atuais autoridades públicas sobre pessoas LGBTQ+ e as políticas para HIV/Aids indicam mudanças no tratamento desse tema no Brasil. A julgar pela forma como têm sido contestados dados oficiais de instituições como o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) e o Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe), torna-se necessário um diálogo amplo com a sociedade civil sobre problemas reais que precisam ser conhecidos e discutidos para que sejam resolvidos.

Isso vale principalmente para o Ministério da Saúde, que já verifica mudanças na política de prevenção e tratamento de HIV e Aids. A invisibilidade da população LGBTQ+ durante todas essas décadas nos dados oficiais dos governos é também responsável pelos números que colocam o Brasil em primeiro lugar no vergonhoso título de país que mais mata LGBTQ+ no mundo. A convivência cultural plena para um desenvolvimento como sociedade, no plano econômico inclusive, depende de que todos os estratos sociais sejam reconhecidos, identificados e tenham políticas públicas específicas para melhoria de suas vidas, o que inevitavelmente vai refletir no coletivo. Só assim poderemos talvez evitar que a existência e sobretudo a morte de um LGBTQ+ deixe de ser apenas uma estatística invisível em algum lugar além do arco-íris.

Gilberto Vieira Cofundador do data_labe (datalabe.org), laboratório de dados e narrativas na favela da Maré, é mestre em cultura e territorialidades pela Universidade Federal Fluminense (UFF).


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Referências GÊNERO E NÚMERO. Violência contra LGBTs+ no contexto eleitoral e pós-eleitoral. Relatório. Rio de Janeiro, 2019. Disponível em: <http://violencialgbt.com.br>. Acesso em: 11 set. 2019. GRUPO GAY DA BAHIA. População LGBT morta no Brasil. Salvador, 2017. Disponível em: <http://bit.ly/2OH84se>. Acesso em: 11 set. 2019. MINISTÉRIO DA SAÚDE. Boletim Epidemiológico HIV/Aids, 2017. Disponível em: <http:// bit.ly/2M22Ox9>. Acesso em: 11 set. 2019. REDUZINO, Rodrigo. De João Francisco dos Santos à Madame Satã: análise da incorporação do racismo científico do século XIX pelas instituições brasileiras. Dissertação de mestrado pela Universidade Federal Fluminense (UFF). Rio de Janeiro, 2016, p. 15. _______. Raça e sexualidade: a “borra” ao projeto de modernidade da sociedade brasileira. Artigo não publicado. Rio de Janeiro, 2016.

Notas 1

O Complexo da Maré é um bairro carioca com cerca de 140 mil habitantes, que vivem privações diárias de direitos básicos, além de uma política ostensiva de segurança pública, cujo foco são operações violentas com resultados quase sempre fatais. É no território também que a Conexão G realiza bianualmente uma parada LGBT voltada para moradores de favelas.

2

O data_labe promove residências jornalísticas para jovens moradores de favelas do Rio de Janeiro metropolitano.

3

Disponível em: <http://violencialgbt.com.br>. Acesso em: 11 set. 2019.

4

Disponível em: <http://bit.ly/2OH84se>. Acesso em: 11 set. 2019.

5

Disponível em: <https://tgeu.org/>. Acesso em: 11 set. 2019.

6

Disponível em: <https://bit.ly/2JevIZJ>. Acesso em: 11 set. 2019.

7

Disponível em: <http://bit.ly/2nmK0xv>. Acesso em: 25 set. 2019.

8

Disponível em: <https://bit.ly/2ODHVui>. Acesso em: 11 set. 2019.

9

Disponível em: <http://bit.ly/2M22Ox9>. Acesso em: 11 set. 2019.

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7.

CONFLITOS RELACIONADOS AOS GRUPOS ETÁRIOS

173. A DIMENSÃO ETÁRIA E A

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL: CONFLITOS E POTENCIALIDADES Enid Rocha Andrade da Silva

179. A DIMENSÃO IDADE NA

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL LATINO-AMERICANA Enrique Peláez


Enid Rocha Andrade da Silva

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

A DIMENSÃO ETÁRIA E A CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL: CONFLITOS E POTENCIALIDADES Enid Rocha Andrade da Silva

Este artigo trata dos conflitos intergeracionais sob a óptica do contexto demográfico no Brasil. Analisa de que forma o acelerado envelhecimento populacional do país, em articulação com o fenômeno da “onda jovem”, pode ser fonte potencial de conflitos redistributivos entre jovens e idosos no campo das políticas de proteção social e do mercado de trabalho. Trata ainda das principais políticas necessárias para promover e proteger os direitos da pessoa idosa e dos jovens brasileiros.

O

s conflitos intergeracionais são observados, principalmente, em dois campos da vida em sociedade. O primeiro tem origem no debate interpessoal. Pode ocorrer em diferentes espaços: familiar, escolar, de trabalho ou de comunidade. É o campo dos valores, do conjunto de crenças, dos interesses e das concepções de mundo, que orientam a forma como as pessoas se comportam e agem socialmente. Cada lado deseja desenvolver seu próprio estilo de vida e seus próprios valores culturais. Nesse caso, a solução passa pela dimensão do diálogo, da razoabilidade, bem como pela disposição de reconsiderar julgamentos e aceitar a diversidade. O segundo campo tem uma dimensão mais social e econômica. É observado na arena das disputas redistributivas por bens e serviços disponibilizados pelo Estado,

com destaque para o sistema de seguridade social – saúde, assistência social e previdência – e para a oferta de oportunidades de trabalho e emprego disponibilizadas pelo mercado. Este artigo se dedica a analisar a dimensão redistributiva dos conflitos, com ênfase na interação entre a dinâmica populacional e os desafios e as oportunidades que decorrem do atual momento demográfico do Brasil. Nesse sentido, duas são as principais questões de fundo que orientam este texto: (i) quais seriam os principais conflitos geracionais que emergem de uma sociedade como a brasileira, que está em processo acelerado de envelhecimento e que, ao mesmo tempo, vivencia o fenômeno demográfico conhecido por “onda jovem”; e (ii) quais são as principais ações públicas e privadas que já estão sendo implementadas ou que poderiam vir a ser

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implementadas ou aprimoradas para contribuir para melhorar a convivência entre os diversos grupos etários. Este artigo está organizado em quatro seções, incluindo esta apresentação, que traz algumas definições importantes sobre grupos etários e gerações. A segunda parte analisa o contexto demográfico e sua importância para compreender o potencial de conflito redistributivo na sociedade brasileira e os conflitos intergeracionais subjacentes ao campo da proteção social e do mercado de trabalho. A terceira parte explora as principais políticas públicas existentes e os marcos jurídicos voltados para a proteção dos direitos dos idosos e dos jovens. Finalmente, a quarta destaca algumas considerações gerais. A importância da demografia para a compreensão dos conflitos e das oportunidades geracionais A análise do desenvolvimento demográfico é fundamental para a compreensão dos problemas sociais que afetam as relações entre os diferentes grupos etários, bem como para identificar oportunidades que podem ser aproveitadas no presente a fim de proporcionar uma sociedade melhor para as gerações futuras. Desde o final da década de 1960, a maior parte dos países da América Latina e do Caribe tem experimentado profundas mudanças demográficas, que afetam o crescimento, a estrutura etária e a distribuição territorial da população. Entre as grandes tendências verificadas na dinâmica populacional da região, destacam-se: (i) a redução da mortalidade e o aumento da esperança de vida, (ii) a diminuição da taxa de fertilidade

total com permanência de taxas altas de fertilidade na adolescência e (iii) o acelerado envelhecimento populacional. A redução da mortalidade e o aumento da esperança de vida na América Latina devem-se à implementação de políticas exitosas, por parte de muitos países da região, nas áreas de atenção básica, saneamento básico e campanhas de vacinação populacional, que resultaram na erradicação de inúmeras doenças infecciosas, sobretudo aquelas associadas aos problemas da má qualidade da água e da ausência de esgoto e tratamento de resíduos sólidos. A queda na mortalidade foi acompanhada de expressivo aumento na esperança de vida ao nascer. De acordo com um informe da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal) [CEPAL, 2018a, p. 35], a expectativa de vida passou de uma média aproximada de 51 anos entre 1950 e 1955 para 76 anos no período atual, ou seja, a população da América Latina ganhou, em média, 25 anos ao longo das últimas seis décadas. A queda na fertilidade total na América Latina também foi expressiva: saiu de uma taxa muito elevada de 5,5 crianças por mulher em 1970 para 2,04 filhos por mulher em 2017. No entanto, a taxa de fertilidade na adolescência segue elevada na região, evidenciando a necessidade de políticas públicas de educação sexual e uma fragilidade nos direitos reprodutivos. Em relação ao envelhecimento populacional, dados do Panorama Social da América Latina (2018b) estimam que, entre 2015 e 2040, o grupo de pessoas com 60 anos ou mais crescerá em quase 87 milhões de pessoas na região, e a população de 20 a 59 anos chegará a quase 63 milhões de pessoas. No


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entanto, a população de crianças e jovens onda jovem, que é quando o país atinge de até 20 anos apresentará uma redução o ápice da população juvenil. Esse pico de 26 milhões até 2040 em relação a 2015. aconteceu em 2010, quando o país alcanDe acordo com especialistas, o processo de çou o patamar de 52 milhões de jovens na envelhecimento populacional na América faixa etária de 15 a 29 anos. A onda jovem Latina tem sido muito mais rápido do que começou em 2003, e o número de jovens aquele que ocorreu nos países desenvolvi- deve perdurar próximo à magnitude de 50 dos, demandando ajustes rápidos nas polí- milhões até meados de 2023, quando essa ticas públicas de apoio à pessoa idosa, a fim população começará a decrescer e as novas de proporcionar cuidados e proteção social gerações de jovens tenderão a ser menores. para essa população. Para aproveitar ao máximo os benefícios da O Brasil, por sua vez, a exemplo do que transição demográfica, é necessário invesvem sendo observado na América Latina, tir o quanto antes na formação dos jovens. também apresenta uma profunda transfor- Apesar de essa população já estar perto do mação populacional guiada seu declínio, ainda é possível pela transição demográfica Mais adiante, essa e urgente a formulação de desde os anos 1950, acentua- geração de jovens se políticas públicas para que da pelo declínio expressivo da tornará a população o Brasil não desperdice tode adultos que fecundidade, que atingiu nível talmente o potencial dessa presenciarão a redução abaixo da reposição populaciochamada onda jovem. Afinal, da população em nal em 20051. A queda aceleramais adiante, essa geração de idade ativa, o que da na taxa de fecundidade e de ressalta ainda mais a jovens se tornará a população mortalidade, principalmente necessidade de ter uma de adultos que presenciarão a mortalidade infantil, trouxe força de trabalho bem a redução da população em mudanças importantes na es- preparada e produtiva idade ativa, o que ressalta trutura etária da população em ainda mais a necessidade de menos de 50 anos. As transformações demo- ter uma força de trabalho bem preparada gráficas provocaram redução relativa e abso- e produtiva. luta no segmento populacional de crianças Porém, aumentar a produtividade da e adolescentes. De acordo com projeções do atual geração de jovens para que se tornem IBGE (2015), essas tendências apontam uma adultos produtivos não será uma tarefa fácil. queda de cerca de 10 milhões no número de A produtividade do trabalho no Brasil tem crianças na população brasileira nos próxi- se elevado lentamente e permanece em um mos 20 anos, o que representa uma média patamar inferior ao de outros países da Améde 500 mil crianças e adolescentes a menos rica Latina, como Argentina, Chile e México. a cada ano. A produtividade brasileira medida em PIB Paralelamente ao processo acelerado por trabalhador (em milhares de dólares, de de envelhecimento populacional, o Brasil 2011) é de cerca de 28,8, o que equivale a um também passa pelo fenômeno denominado quarto da produtividade dos Estados Unidos

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(111,8) e a menos da metade (43%) da produtividade da Coreia do Sul (66,9). A capacidade produtiva dos jovens depende tanto da sua educação formal quanto da sua experiência no mercado de trabalho. Diversos são os obstáculos à aquisição de capital humano nessa etapa de transição entre escola e trabalho na juventude. Na educação formal há problemas como defasagem idade-série, abandono da escola e baixo desempenho do aluno. Já no mercado de trabalho, os jovens enfrentam elevadas taxas de informalidade, rotatividade e desemprego (COSTA; SILVA, 2018). Tendo em vista a atual dinâmica demográfica do país, chama-se atenção, a seguir, para cinco fatores que podem ser potencializadores de conflitos redistributivos: (i) a elevada situação de dependência do sistema de proteção social por parte da população acima de 60 anos; (ii) a situação fiscal do Estado brasileiro, que detém recursos escassos para fazer jus à sobrecarga provocada pela dinâmica demográfica, atrelada à lenta retomada do crescimento econômico do país; (iii) a permanência mais prolongada de pessoas acima de 60 anos no mercado de trabalho, ocupando vagas que poderiam ser preenchidas por jovens; (iv) a necessidade de aumentar os gastos em políticas de cuidados, saúde e assistência social para a população idosa, enquanto os gastos sociais com os demais grupos populacionais continuam elevados, à exceção dos gastos em educação básica, que tendem a ficar menores, graças à diminuição da população na faixa etária do ensino básico; e (v) a necessidade de maiores investimentos em formação e qualificação dos jovens, em razão da onda jovem. É importante esclarecer que a discussão

sobre os fatores potencializadores de conflito aqui elencados leva em consideração apenas a óptica econômica e desconsidera outros recortes analíticos, como o fato de que grande parte dos idosos de hoje é mais inserida socialmente e chega aos 60 anos em plenas condições de contribuir no processo de geração de riqueza do país, a partir de suas experiências e bagagens acumuladas ao longo da vida. E também desconsidera a situação social da pessoa idosa no Brasil, que mostra um quadro de vulnerabilidades e desproteção, em total desrespeito aos marcos jurídicos de proteção a essa população no país. Políticas públicas de proteção aos direitos da pessoa idosa O Brasil pode ser considerado uma referência em relação aos países da América Latina no que tange à legislação e às políticas públicas de proteção aos direitos da pessoa idosa. Desde 1994, o país tem a Política Nacional do Idoso, e, desde 2003, o Estatuto do Idoso, que dispõem sobre os direitos dessa população, com o objetivo de criar as condições para promover sua autonomia, integração e participação efetiva na sociedade. Há ainda legislações específicas na área de saúde, como a Política Nacional de Saúde da Pessoa Idosa, voltada para recuperar, manter e promover a autonomia e a independência dessa população. Apesar de serem inúmeras as iniciativas existentes para a promoção dos direitos da pessoa idosa, as políticas ainda são insuficientes para garantir, de forma universal, o Sistema de Proteção dos Direitos a todos os idosos com a agilidade e a efetividade que a situação requer. Assim, é necessário dar a devida atenção para a efetiva


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implementação da legislação e para a cobertura das políticas existentes em relação ao total da população idosa do país. Por sua vez, o arcabouço institucional da Política Nacional de Juventude é recente no país e bastante amplo. Seu início tem como marco o ano de 2004, quando começou o processo de diálogo entre governo e movimentos sociais sobre a necessidade de instaurar uma política de juventude em âmbito nacional. Em 2005 foi institucionalizada a Política Nacional de Juventude no Brasil. O Estatuto Nacional da Juventude, de 2013, ampliou os direitos desse grupo social e passou a considerar jovem a população de 15 a 29 anos. Desde sua institucionalização até a presente data, as políticas públicas federais voltadas para a juventude congregam grande pluralidade de temas: educação, trabalho decente, segurança, esporte, cultura, tecnologias da informação e comunicação (TICs), saúde, empreendedorismo, direitos humanos e participação social. Considerações finais Inúmeras pesquisas mostram que as pessoas idosas correm maior risco de ser discriminadas e de sofrer abusos e maus-tratos, além de violência nas esferas pública e privada, em razão de sua maior idade e vulnerabilidade. Assim, é importante a realização de ações, por parte do Estado e da sociedade, que apoiem as pessoas idosas no desempenho do papel de protagonista na sociedade. Também é fundamental considerar a perspectiva de gênero no envelhecimento, que denota a maior proporção de mulheres nas idades mais avançadas. Esse fenômeno é chamado de “feminização da velhice” e

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ocorre pelo fato de a média da expectativa de vida ser maior para as mulheres. Em relação aos jovens, os avanços foram expressivos nos últimos 15 anos no campo da institucionalidade dos direitos e da política. Porém, da mesma forma como ocorre com a população idosa, as políticas destinadas a esse grupo também carecem de concretização para poder efetivamente contribuir com a diminuição dos principais problemas que atravessam grande parte da juventude brasileira, como baixa escolaridade, precária qualificação para o trabalho e elevado índice de violência cometida pelos ou contra os jovens.

Enid Rocha Andrade da Silva Economista e doutora em ciências sociais pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp).

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Referências BOURDIEU, Pierre. A “juventude” é apenas uma palavra. Rio de Janeiro: Marco Zero, 1983. CEPAL. Proyecto de primer informe regional sobre la implementación del Consenso de Montevideo sobre Población y Desarrollo (LC/CRPD.3/3), Santiago, 2018a. _______. Panorama social de América Latina, 2017 (LC/PUB.2018/1-P), Santiago, 2018b. COSTA, Joana; SILVA, Enid Rocha Andrade da. Vozes da juventude: aspirações e prioridades. In: NOVELLA, R. et al. Millennials en América Latina y el Caribe: ¿ trabajar o estudiar. [s.l.], BID, 2018. FERRIGNO, José Carlos. Coeducação entre gerações. 2. ed. São Paulo: Edições Sesc SP, 2010. IBGE. Estudo e análise – mudança demográfica no Brasil no início do século XXI – subsídios para as projeções da população. Rio de Janeiro, 2015. MOTTA, Alda Britto da. Envelhecimento e relações entre gerações. In: LONGHI, Marcia; ALMEIDA, Maria da Conceição Lafayette. Etapas da vida: jovens e idosos na contemporaneidade. Recife: Ed. Universitária da UFPE, 2011, p. 81-105. SILVA, Enid Rocha Andrade da (Coord.). O direito à convivência familiar e comunitária: os abrigos para crianças e adolescentes no Brasil. Brasília: Ipea: Conanda, 2004. SILVA, Enid Rocha Andrade da; GUERESI, Simone. Adolescentes em conflito com a lei: situação do atendimento institucional no Brasil. Brasília: Ipea, 2003. SILVA, Enid Rocha Andrade da; BOTELHO, Rosana. Dimensões da experiência juvenil brasileira e novos desafios às políticas públicas. Brasília: Ipea, 2016.

Nota 1

IBGE, 2015.


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A DIMENSÃO IDADE

NA CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL LATINO-AMERICANA Enrique Peláez

O presente capítulo analisa o efeito da dimensão idade no avanço da convivência intercultural na sociedade. Em primeiro lugar são apresentadas as mudanças na estrutura etária ocorridas na segunda metade do século XX e no início do século XXI na América Latina. Em seguida, os avanços regulatórios que essas mudanças propiciaram. Com base nesses antecedentes, são propostos indicadores a ser considerados para destacar a dimensão idade em um índice de convivência cultural para a América Latina.

A

maioria dos países da América Latina e do Caribe passou por profundas mudanças em sua dinâmica demográfica a partir do final da década de 1960. Essas mudanças afetaram o crescimento, a estrutura etária e a distribuição territorial da população. A região também é caracterizada por uma acentuada heterogeneidade na dimensão demográfica entre países, territórios e grupos populacionais. O crescimento populacional na região nos próximos 40 anos terá como principal causa a inércia demográfica. Esse crescimento é caracterizado por uma mudança na estrutura etária, ocorrendo uma concentração populacional nas idades reprodutivas (CEPAL, 2008). A região passou de uma estrutura populacional jovem, em 1950, para uma população em processo de envelhecimento atualmente, tendência que

continuará se acentuando nas próximas décadas (CEPAL, 2018). O declínio da fecundidade foi a principal característica da transformação demográfica regional na segunda metade do século XX. A região passou de taxas de fecundidade muito altas (5,5 filhos por mulher) em comparação com o contexto global, de 1965 a 1970, para taxas um pouco superiores (2,2 filhos) no atual nível de reposição (CEPAL, 2016). Uma característica da fecundidade da região é que, apesar de seu declínio acentuado, persistem as taxas elevadas nos grupos pobres e excluídos, como as populações indígenas, os estratos socioeconômicos mais baixos e com menor nível de escolaridade e as adolescentes (CEPAL, 2016). A fecundidade entre adolescentes na região [estimada em 61,3 nascidos vivos para cada mil mulheres de 15 a 19 anos no quinquênio de 2015 a

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2020 (NAÇÕES UNIDAS, 2019)] é a segunda de qualidade; incorporar os idosos como foco maior do mundo depois da África e teve uma prioritário dos programas públicos; e ampliar redução muito menor que a fecundidade to- os sistemas de proteção e seguridade social – tal. Claramente, seu nível é superior ao que questões relacionadas à dimensão idade, traseria esperado para o desenvolvimento social balhada no índice proposto. da região. A fecundidade na adolescência é Dois anos depois, em 15 de junho de reconhecida como um fator que influencia 2015, a Organização dos Estados Americanos a reprodução da pobreza, as dificuldades na (OEA) aprovou a Convenção Interamericana conclusão da escolarização e a diminuição de sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos oportunidades de emprego de qualidade, tor- Idosos (OEA, 2015), tornando-se o primeinando-se uma questão prioritária na agenda ro órgão intergovernamental a acolher um de políticas públicas. instrumento juridicamente vinculante nessa Houve um aumento significativo, de 25 matéria. O objetivo da convenção é promoanos, na expectativa de vida de 1950 até hoje, ver, proteger e garantir o reconhecimento e passando de 51 anos no quino pleno gozo do exercício, em quênio de 1950 a 1955 para Formular políticas com igualdade de condições, de 76 anos no atual quinquênio. uma abordagem de todos os direitos humanos e As características próprias gênero que garantam das liberdades fundamentais um envelhecimento de da dinâmica demográfica da dos idosos, a fim de contribuir qualidade; incorporar região fizeram com que, na 1ª para a sua plena inclusão, inos idosos como Conferência Regional sobre tegração e participação na foco prioritário dos População e Desenvolvimento, programas públicos; sociedade. O documento reem agosto de 2013, na Comis- e ampliar os sistemas corda, em seu preâmbulo, que são Econômica para a Améri- de proteção e todos os direitos humanos e ca Latina e o Caribe (Cepal), seguridade social as liberdades fundamentais fosse aprovado o Consenso de reconhecidos nos instrumenMontevidéu sobre População e Desenvolvi- tos internacionais se aplicam aos idosos, mento (CEPAL, 2013). mas, como afirma posteriormente, a discriEntre os assuntos prioritários desse minação em relação à velhice muitas vezes consenso estão os direitos, as necessidades impede o seu pleno gozo. Para esse fim, a e as demandas de crianças, adolescentes e convenção define a discriminação etária jovens. Os países concordaram em garantir a na velhice como sendo qualquer distinção, todos esses grupos a oportunidade de ter uma exclusão ou restrição baseada na idade vida livre de pobreza e violência, sem qual- cujo objetivo ou efeito é anular ou restrinquer tipo de discriminação. Quanto ao enve- gir o reconhecimento, gozo ou exercício em lhecimento, à proteção social e aos desafios igualdade de condições dos direitos humanos socioeconômicos, os delegados concordaram e das liberdades fundamentais nas esferas em formular políticas com uma abordagem política, econômica, social, cultural ou qualde gênero que garantam um envelhecimento quer outra esfera das vidas pública e privada.

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Considerando esses antecedentes no que diz respeito à dinâmica demográfica e aos acordos políticos, sugere-se incorporar alguns indicadores que possam facilitar a análise dos elementos que contribuem para a convivência intercultural, tendo em conta a dimensão etária. • Taxa de fecundidade na adolescência (mães com menos de 20 anos). Embora nos últimos 30 anos, na América Latina e no Caribe, a fecundidade total – ou seja, o número de filhos por mulher – tenha diminuído, as taxas de fecundidade em adolescentes continuam altas e afetam principalmente as populações que vivem em condições de vulnerabilidade, mostrando as desigualdades entre e dentro dos países. A gravidez na adolescência pode ter um efeito profundo na saúde das meninas, pois não só cria obstáculos para o seu desenvolvimento psicossocial como está associada a resultados deficientes na saúde e a um maior risco de morte materna, abandono escolar e reprodução da pobreza (RODRIGUEZ, 2017). • Porcentagem de cobertura dos sistemas de seguridade social para pessoas com mais de 60 anos por sexo. A evolução do processo de envelhecimento na América Latina e no Caribe tem sido muito mais rápida do que no mundo desenvolvido

(HUENCHUAN, 2013). Isso significa que os governos da região têm menos tempo e, portanto, menos margem para erros para fazer os ajustes necessários a fim de atender às demandas de uma população que está envelhecendo e de promover uma sociedade equitativa e inclusiva para todas as idades

As transformações demográficas envolvem mudanças quantitativas e qualitativas na organização social, e é importante levá-las em conta para o planejamento das políticas de proteção e seguridade social (CEPAL, 2016). Em particular, a transição demográfica aumenta as dúvidas sobre a situação atual da equação Estado-mercado-família e também a demanda por respostas públicas contundentes para atender às antigas e novas necessidades que surgem desse fenômeno (CEPAL, 2011). As tendências apresentadas trazem uma série de desafios para os sistemas de pensões. A sustentabilidade financeira dos sistemas contributivos será afetada pelas mudanças demográficas e pela diminuição na relação entre contribuintes e beneficiários, especialmente nos sistemas públicos. À medida que a proporção de idosos crescer, a pressão sobre os recursos dos sistemas de distribuição aumentará. Na América Latina e no Caribe, a expansão do acesso à proteção social continua sendo uma questão pendente. É a região mais desigual do mundo em termos de distribuição de renda, o que se reflete em várias dimensões do desenvolvimento às quais os


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sistemas de proteção social não são alheios. Em teoria, eles devem se adequar não só às mudanças no mercado de trabalho e à economia como um todo, mas também à variável estrutura etária da população. Da mesma forma, sua institucionalidade na região geralmente é fraca, embora tenha um papel significativo em seu desempenho final e em sua capacidade de se adaptar a novas realidades (BERTRANOU, 2006). • Ratificação da Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos. Esse novo tratado retifica uma omissão do Direito Internacional dos Direitos Humanos em relação a esse grupo social e padroniza garantias muito relevantes, que nenhum outro instrumento internacional vinculante havia considerado de forma explícita anteriormente no caso dos idosos, como a ligação entre o direito à vida e à dignidade na velhice e o direito à independência e à autonomia. Países que assinaram: Argentina, Bolívia (Estado plurinacional), Chile, Costa Rica, Equador, El Salvador e Uruguai. • Morte entre jovens de 15 a 24 anos por causa externa. Número de óbitos por 100 mil habitantes entre jovens de 15 a 24 anos. A violência cresceu na maior parte da região nos últimos anos, e os

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jovens estão claramente sobrerrepresentados na incidência e na gravidade dessa tendência, como vítimas e perpetradores. Em muitos países da América Latina, os jovens cometem crimes violentos em idade cada vez mais precoce, ao mesmo tempo que também morrem prematuramente por causa deles. Embora seja muito difícil mensurar todas as formas de violência, as taxas de mortalidade juvenil por causas violentas são um indicador disponível para isso (CEPAL, 2010). Conclusões Na América Latina, o século XX foi de crescimento da população regional, enquanto o século XXI será de envelhecimento. As mudanças demográficas nos últimos 60 anos não só fizeram o ritmo de crescimento populacional diminuir como também transformaram a estrutura etária da população, levando ao seu processo de envelhecimento. Essas mudanças ocorrem em um contexto regional caracterizado pela persistência da desigualdade e pelas dificuldades de acesso aos direitos humanos da população. A convergência na dinâmica demográfica dos países não implica a solução para esse contexto. A atual conjuntura demográfica latino-americana combina desafios particulares para a juventude, que atinge o seu maior número absoluto na história, juntamente com o surgimento de desafios próprios das sociedades envelhecidas. No caso da juventude, a persistência da gravidez na adolescência, os elevados níveis de violência e as dificuldades

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de acesso a empregos de qualidade determinam o futuro desse grupo populacional e, portanto, o futuro de toda a sociedade. No caso dos idosos, a estrutura demográfica envelhecida desafiará os sistemas previdenciário, assistencial e de saúde. A solução está no planejamento de longo prazo e no desenvolvimento de políticas públicas que considerem o impacto dos processos demográficos na evolução das demandas sociais. Portanto, é necessário considerar as mudanças na dinâmica demográfica para planejar políticas públicas sustentáveis d ​​ e longo prazo que permitam uma melhor convivência da sociedade, levando em conta os desafios de acesso aos direitos da população gerados por essas mudanças. A atual fase do bônus demográfico (CEPAL, 2014) é uma oportunidade para repensar a organização social de sistemas como o acesso à previdência e assistência social e à saúde. Esses sistemas serão fortemente desafiados nos próximos anos, em razão das mudanças na estrutura etária da população. Acordos legais, como a Convenção Interamericana sobre a Proteção dos Direitos Humanos dos Idosos, consagram direitos essenciais, como o direito à saúde, à assistência de longo prazo e à segurança econômica. O planejamento de longo prazo permitirá que a sociedade discuta soluções sustentáveis a​​ o longo do tempo para o acesso a esses direitos. O processo de envelhecimento da população constitui uma grande conquista da humanidade. Se essa grande conquista se tornar uma tragédia, teremos falhado como civilização. Uma reflexão do demógrafo espanhol Julio Pérez Díaz (2016, p. 9) resume esse pensamento:

Não é a elevada expectativa de vida, a baixa fecundidade ou a nova pirâmide populacional que deve provocar uma sensação de perigo; é o medo da mudança demográfica que é errado e perigoso. As sucessivas gerações de idosos estão mudando o mundo para melhor, desde que nasceram, e mudarão ainda mais nas próximas décadas. As sociedades contemporâneas precisam, urgentemente, apoiar e aproveitar essas novidades, em vez de tentar revertê-las.

Enrique Peláez Doutor (2003) e mestre (1998) em demografia pela Universidade Nacional de Córdoba e engenheiro de sistemas pela Universidade Católica de Córdoba (1992), na Argentina. Consultor em assistência técnica em questões populacionais [Fundo de População das Nações Unidas (UNFPA, na sigla em inglês)]. Pesquisador principal do Centro de Investigações e Estudos sobre Cultura e Sociedade, do Conselho Nacional de Investigações Científicas e Técnicas (Ciecs/Conicet) e professor associado da Faculdade de Ciências Econômicas da Universidade Nacional de Córdoba, é coordenador do Programa de Pesquisas sobre Sociedade e Idosos do Ciecs/Conicet. Atua como assessor regional para população e desenvolvimento do UNFPA e é funcionário do Centro Latino-Americano e Caribenho de Demografia, da Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Celade/Cepal).


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Referências BERTRANOU, Fabio. Envejecimiento, empleo y protección social en América Latina. Santiago do Chile: OIT, 2006. CEPAL. Panorama Social de América Latina, 2017. Santiago, 2018. _______. Derechos de las personas mayores: retos para la interdependencia y autonomía (LC/CRE.4/3). Santiago, 2017. _______. Panorama Social de América Latina, 2015 (LC/G.2691-P). Santiago, 2016. _______. La nueva era demográfica en América Latina y el Caribe: la hora de la igualdad según el reloj poblacional, 2014. ______. Consenso de Montevideo de Población y Desarrollo, 2013. ______. Proyección a largo plazo. Observatorio Demográfico, n. 11 (LC/G.2515-P). Santiago, 2011. _______. Población y salud en América Latina. Retos pendientes y nuevos desafíos. Santiago do Chile, 2010. _______. Transformaciones demográficas y su influencia en el desarrollo en América Latina y el Caribe (LC/G.2378). Santiago, 2008. HUENCHUAN, Sandra. Envejecimiento, solidaridad y protección social en América Latina y el Caribe. La hora de avanzar hacia la igualdad. Comisión Económica para América Latina y el Caribe (Cepal), Santiago do Chile, jan. 2013. NAÇÕES UNIDAS. World Population Prospects 2019. Nova York. OEA. Convención Interamericana sobre la Protección de los Derechos Humanos de las Personas Mayores, 2015. PÉREZ DÍAZ, J. El temor al envejecimiento demográfico. In: HUMET, Joan Subirats et al. Edades en transición. Envejecer en el siglo XXI. Barcelona: Ariel, 2016. RODRIGUEZ, Jorge. Deseabilidad y planificación de la fecundidad adolescente en América Latina y el Caribe: tendencias y patrones emergentes. Notas de Población, n. 104, Santiago do Chile, Cepal, 2017.

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8.

CONFLITOS RELACIONADOS À POPULAÇÃO COM DEFICIÊNCIA

187. PELA PORTA DA FRENTE:

A IMPORTÂNCIA DA ACESSIBILIDADE PARA A INCLUSÃO CULTURAL DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Marcos Lima

194. CONVIVIALIDADE: UM DILEMA PARA AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Marcelo Pinto Guimarães


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Marcos Lima

PELA PORTA DA FRENTE: A IMPORTÂNCIA DA ACESSIBILIDADE PARA A INCLUSÃO CULTURAL DE PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Marcos Lima

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que você faria se entrasse em um restaurante e os cardápios estivessem escritos apenas em lituano ou em esloveno? Sem saída, você apontaria para um prato qualquer e torceria para que ele atendesse às suas expectativas? Interessante? Difícil? Frustrante? Angustiante? Pois é, é o que as pessoas com deficiência passam todos os dias quando buscam atividades culturais no Brasil. Sem elementos básicos de acessibilidade física, atitudinal ou informacional, cadeirantes, pessoas com dificuldades de locomoção, pessoas cegas ou com baixa visão, surdos e pessoas com deficiência intelectual acabam simplesmente impedidos de consumir cultura por problemas tão corriqueiros como a falta de rampas de acesso, banheiros

acessíveis, audiodescrição e intérpretes de Língua Brasileira de Sinais (Libras). E olhe que não estamos falando de um contingente pequeno de pessoas. Segundo o último Censo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)1, cerca de 45 milhões de brasileiros declararam possuir algum tipo de deficiência. Isso quer dizer que, em um universo de 200 milhões de habitantes, estamos nos referindo a um em cada quatro brasileiros. Se fosse um país, seria mais populoso que a Argentina ou a Espanha. Falando especificamente da deficiência visual, mais de 6,5 milhões de brasileiros são cegos ou possuem grande dificuldade de enxergar; isso é equivalente ao número de habitantes da cidade do Rio de Janeiro, a segunda mais populosa do país.

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É nesse grupo que me encaixo. TotalSempre fui um ávido consumidor de mente cego desde que, aos 6 anos de idade, cultura, mas bastante moldado ao que a perdi o pouco que me restava da visão em acessibilidade (não) me ofereceu. Ou seja, virtude de um glaucoma congênito diag- muito pouco. Talvez por isso hoje em dia nosticado quando eu ainda tinha meses eu prefira livros a filmes, já que minhas exde vida, estou em busca de me adaptar a periências em cinemas sempre estiveram esse mundo tão visual. Algumas pesqui- limitadas basicamente a filmes nacionais sas 2 apontam que 85% das informações e à companhia de algum amigo que se disque uma pessoa recebe em um dia comum pusesse a descrever as cenas para mim, ao se dão através da visão. Como fazem as menos enquanto não ouvíamos um “Psiu, pessoas que simplesmente não possuem cala a boca” de alguém próximo que estiesse sentido? Será que fazem? É, mui- vesse incomodado com nossa audiodestas vezes não fazemos. E o não fazer já crição improvisada. Encontrava filmes quer dizer por si só uma exclusão. Uma com audiodescrição apenas em festivais exclusão das escolas, das especializados. Teatro com universidades, do mercado Uma exclusão audiodescrição? Apenas uma das escolas, das de trabalho, dos transportes vez na vida, em uma repreuniversidades, do públicos e também das ativi- mercado de trabalho, sentação de Ensaio sobre a dades culturais. Cegueira. Museus? Exposidos transportes A acessibilidade pode públicos e também ções? Para ser sincero, apeser dividida em três grandes das atividades culturais nas fora do Brasil, quando ramos: a física, a atitudinal encontrava museus em que e a informacional. Acessibilidade física é tocar fosse obrigatório, e não proibido, e aquela que atende a requisitos espaciais, em que a experiência fizesse parte da visicomo banheiros acessíveis, rampas e tação. Afinal, não há nada mais frustrante piso tátil. A acessibilidade informacional do que o “Por favor, não toque”... É como se é aquela que permite o acesso de pessoas dissessem a vocês: “Por favor, não olhe”. com deficiência sensorial a determinado Lembro-me da primeira vez que assisti conteúdo, por meio de adaptações como a uma partida de futebol com narração auo intérprete de Libras, a audiodescrição diodescritiva. Assíduo frequentador do ese as publicações no sistema braile. Por tádio do Maracanã, já havia acompanhado fim, a acessibilidade atitudinal é a ca- dezenas e dezenas de jogos tendo o radinho pacidade que funcionários possuem de como meu companheiro. Mas naquele doatender da melhor forma usuários com mingo foi diferente, porque eu estava diante deficiência, possibilitando a eles conforto de algo novo. Fora convidado para testar o e o máximo de autonomia e independên- serviço de narração audiodescritiva que cia. Quantos lugares que você frequenta em alguns meses seria utilizado na Copa com seus amigos e familiares atendem a do Mundo Fifa 2014. Destinada ao usufruesses requisitos? to de pessoas cegas ou com baixa visão, a


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narração audiodescritiva nada mais é do Quando nós, cegos, assistimos a um filme que a audiodescrição que vemos (ou que que não tem audiodescrição, buscamos deveríamos ver) em filmes ou em peças de entender o contexto com base apenas nos teatro adaptada à dinâmica de uma partida diálogos; para ter uma ideia de como isso é de futebol. Foi emocionante. Mas, além de precário, apenas feche os olhos na próxima tudo, senti algo que me lembro de ter expe- vez em que estiver diante da televisão e rimentado poucas vezes na vida. Para bem você verá (ou não). Uma peça teatral sem além das considerações esportivas, a au- audiodescrição parece um caminho sem diodescrição me fez me sentir único, me fez placas, em que vamos seguindo o fluxo naviver um dia de cliente. Porque, sim, somos tural das falas sem entender exatamente clientes, 45 milhões de potenciais consu- onde estamos. midores. Nós, cegos, em geral, utilizamos E por que é assim? Por que os espetámuitas das coisas e desfrutaculos culturais ainda não se Nós, cegos, em geral, mos de muitos dos serviços preocupam com as questões apenas porque damos algum utilizamos muitas das ligadas à acessibilidade? Projeitinho; é o que eu chamo de coisas e desfrutamos fissionais da área afirmam acesso pela porta dos fundos, de muitos dos serviços que não existe demanda, mas apenas porque damos como se tivéssemos sempre será que é assim mesmo? Será algum jeitinho; é o que de fazer uma gambiarra para que nenhum dos 45 milhões eu chamo de acesso sermos incluídos: um ami- pela porta dos fundos, de brasileiros com algum tipo go contando as cenas de um como se tivéssemos de deficiência gostaria de, no filme no cinema, eu tendo sempre de fazer próximo fim de semana, ir a de usar o banheiro feminino uma gambiarra para um museu, a um teatro, a um quando saio em casal por não sermos incluídos show, a um concerto? Ou será ter banheiro acessível ou peque a falta de acessibilidade dindo informação a um desconhecido ao faz com que eles, assim como acontece tanmeu lado porque o programa da peça não tas vezes comigo, fiquem com preguiça de estava em braile. Mas naquele domingo eu sair de casa? “Ah, não vai ter nada acessítive um serviço que era feito para mim. Ali, vel mesmo” é o que muitos dizem, é o que com o celular em mãos, eu sorria porque muitos de nós pensamos. sabia que, numa salinha do Maracanã, haPara preencher essa lacuna, um aplivia um grupo de pessoas trabalhando para cativo como o Vem Cá, lançado no Festival atender a uma necessidade nossa. Não, não sem Barreiras em setembro de 2019, em arrombamos a porta da cozinha; entramos São Paulo (SP), e apoiado pelo Itaú Culcom todo o glamour pela porta da frente da tural, surge com a pretensão de conecacessibilidade, como quase nunca acon- tar produtores culturais que promovem tece na vida. espetáculos acessíveis a pessoas com E por que não podemos transportar deficiência que estejam buscando acesessa experiência para o mundo cultural? sibilidade em atividades culturais como

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teatro, cinema, shows musicais, festas diversas, museus, centros culturais e exposições. Atividades com acessibilidade em aspectos tão diferentes quanto piso tátil, rampas de acesso, banheiros acessíveis, audiodescrição, tradução em Libras etc. É importante pontuar que a acessibilidade não é apenas para quem possui algum tipo de deficiência. Rampas são mais adequadas que escadas também para gestantes, idosos, pessoas com obesidade, pessoas transportando carrinhos de bebê... Sem falar no papel educador da acessibilidade. Quantas conversas sobre diferenças, diversidade e deficiência não começaram quando uma criança perguntou aos pais por que tem braile no elevador ou o que é o piso tátil no metrô? A acessibilidade cria um mundo mais inclusivo não apenas porque inclui quem sem ela não pode participar, mas porque abre portas para que pessoas que não possuem deficiência entendam que há muita gente que precisa de acessibilidade. E, como vemos no caso do Brasil, são milhões de pessoas esperando o próximo espetáculo acessível.


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Marcos Lima Jornalista, palestrante, youtuber e criador do canal Histórias de Cego, possui uma empresa que presta serviços de palestras, treinamentos e consultorias.

Notas 1

Pesquisa do IBGE. Disponível em: <https://educa.ibge.gov.br/jovens/conheca-obrasil/populacao/20551-pessoas-com-deficiencia.html>. Acesso em: 26 ago. 2019.

2

Pesquisa da Organização Mundial da Saúde (OMS). Disponível em: <http://www. saude.gov.br/saude-de-a-z/doencas-oculares>. Acesso em: 26 ago. 2019.

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CONVIVIALIDADE:

UM DILEMA PARA AS PESSOAS COM DEFICIÊNCIA Marcelo Pinto Guimarães

Há um dilema sobre convivialidade relativo à pessoa com deficiência e, consequentemente, ao contexto de seu meio, incluindo pessoas, processos, sistemas e estruturas. A natureza desse dilema está no contraste entre expectativas de fracasso ou de sucesso, entre aspirações e modos de vida, entre direitos e deveres de pessoas com deficiência e de outras pessoas que, aparentemente ou momentaneamente, não sentem os efeitos diretos da deficiência. Trata-se aqui de autonomia como autodeterminação em situações de práticas de ajuda na interação social. Isso decorre da formação da identidade e do processo de socialização, além da estruturação de novos espaços e meios culturais que sejam atraentes e inclusivos.

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ais reflexões constituem aqui uma análise crítica sobre o embasamento e o exercício das leis atuais e sobre a construção de processos inclusivos na evolução do conceito de deficiência. A abordagem envolve certos benefícios políticos e institucionais de pessoas com deficiência como conquistas sociais em relação às demais pessoas, tais como acesso à tecnologia assistiva e acessibilidade adaptada. Vai além, e envolve a perspectiva mais ampla de intervenções sobre o meio edificado e para o aprimoramento de sistemas de comunicação, informação, mobilidade e transporte para todas as pessoas, com habilidades incomuns e em diferentes estágios de vida. Desse modo, evidencia fatores que devem ser levados em consideração para que favoreçam a convivialidade a partir de práticas e dinâmicas culturais relevantes.

A problemática da convivialidade para pessoas com deficiência Ao entendermos convivialidade como um processo de socialização em que as pessoas superam limites egocêntricos, reduzem conflitos de interação social e trabalham para o interesse comum e equilibrado, consideramos que os problemas peculiares de uma pessoa com deficiência podem afetar a convivialidade, principalmente com as pessoas próximas, mas também com o grupo social como um todo. Isso está diretamente vinculado aos estágios de formação da identidade cultural, aos mecanismos de comportamento social e às condições de acessibilidade do meio onde os indivíduos atuam. É natural que crianças se desenvolvam a partir de relações de dependência com seus responsáveis até que, quando se tornarem


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jovens e adultas, essa dependência não mais Caso a deficiência passe a ser uma exexista e seja substituída por relações de in- periência cotidiana para indivíduos adultos terdependência entre indivíduos: amigos, ou maduros e idosos que se acidentaram ou colegas, vizinhos e outros, até mesmo os sofreram com disfunções cognitivas, físicas, desconhecidos. A ocorrência de traumas, sensoriais ou intelectuais mais tarde na vida, o enfermidades ou distúrbios degenerativos luto diante do choque de transformação brusca irá afetar a expectativa de normalidade irá afetar sua convivialidade também, e talvez desse desenvolvimento natural, e a relação isso ocorra por muito tempo. Diferentemende dependência com a famíte da criança que formará sua lia e os demais pode vir a ser Viver com deficiência identidade com as experiências depois de adulto constante na vida de pessoas de superação ou de submissão significará reaprender com deficiência. com dependência das pessoas As limitações caracte- a viver, considerada a próximas, na visão predomirísticas da inacessibilidade na falta de referências de nante de incapacidade, a pesnormalidade para sua moradia e nos ambientes que a soa com deficiência que adquire condição. Isso pode pessoa com deficiência frequenessa condição mais tarde irá lidemorar para aqueles ta podem dificultar a prática do que não tiverem dar com a confrontação de sua controle da privacidade e dos contato próximo com imagem social antes e depois espaços de influência pessoal experiências de sucesso do evento traumático. Para ela, (proxemia), estreitando a visão de outras pessoas viver com deficiência depois de de mundo e reduzindo o re- com deficiências ao adulto significará reaprender a pertório de respostas bem-su- longo da vida viver, considerada a falta de recedidas aos desafios. Espaços ferências de normalidade para inacessíveis são aqueles cuja tecnologia as- sua condição. Isso pode demorar para aqueles sistiva e de suporte individual é insuficiente que não tiverem contato próximo com expepara assegurar o alcance de objetivos com in- riências de sucesso de outras pessoas com dependência. As barreiras no meio edificado e deficiências ao longo da vida. Essa situação nas dificuldades de comunicação total parecem assombra muita gente, a ponto de rejeitar o conter mensagens de persistente desestímulo espectro de uma deficiência ou uma pessoa emitidas pelas estruturas sociais desprepara- por causa de sua vida com deficiências. das para lidar com as distintas deficiências. Alguns estereótipos sobre a natureza de A inacessibilidade se manifesta conti- uma pessoa com deficiência são evidentes, nuamente, para novos casos e em cada ge- com leves variações de uma cultura para ouração. Arranjos improvisados com base no tra em regiões do Brasil e na América Latina. preconceito são disponibilizados somente Um dos principais estereótipos é que pessoas após insistente e aflitiva demanda. Soluções com deficiência já possuem justificativas susatisfatórias, uma vez desenvolvidas em fa- ficientes para se sentirem objetos de piedade tos isolados, não sugerem valores sensíveis e caridade. A dependência até mesmo para para alterar atitudes e comportamento. atividades simples do cotidiano confere a

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essas pessoas um sentido de fragilidade, de subordinação e de resignação ao seu destino. Outro estereótipo é contraditório ao anterior. Baseia-se na noção de que uma pessoa com deficiência seja uma guerreira e, na maioria das vezes, uma vencedora, somente pelo fato de tentar seguir vivendo, lutando intensamente para alcançar papéis sociais ativos. Nesses casos, viver com deficiência necessariamente significa obter excelência pelo menos num dos aspectos da vida social, como esporte, profissionalismo ou convivialidade. Entre esses extremos há pessoas que buscam estabelecer condições razoáveis de migrar entre as distintas etapas da vida, mesclando sucessos com fracassos eventuais, aprendizados com perdas, desistências com reinícios. Certamente, o maior impacto da deficiência sobre a convivialidade tem relação com as respostas culturais que permitam a fácil disponibilidade de três recursos: tecnologia assistiva; o desenvolvimento de processos inclusivos; e a implementação da acessibilidade plena para todos. Somente assim haveria referências positivas de vida com deficiência o suficiente para a redução do preconceito (que é relativo à dependência, à submissão e à incapacidade) e para a desconsideração de extremos estereótipos (seja de sucesso inigualável, seja de fracasso constante) como alusivos às peculiaridades de pessoas com deficiência. Então, deficiência poderia deixar de ser algo deplorável para, simplesmente, ser um modo diferente, mas satisfatório, de viver. A legislação e a convivialidade para pessoas com deficiência Avanços na legislação têm sido muito importantes para promover em pouco tempo

as mudanças de atitudes, comportamentos e valores culturais. Por meio da legislação, conceitos importantes têm sido implantados, conceitos esses forjados pelo movimento de cidadania plena organizado por pessoas com deficiência. Sem isso, as transformações sociais seriam muito lentas comparativamente ao avanço de outras questões de ordem social e poderiam até bloquear o aprimoramento e a disponibilidade de tecnologia assistiva e acessibilidade, impedindo que formas de justiça social pudessem ser inseridas e implementadas em locais longínquos dos centros de concentração econômica e de poder político mais democrático. Um dos conceitos fundamentais se vincula à autonomia da pessoa com deficiência, para que lhe sejam asseguradas iguais oportunidades no convívio. A autonomia, ou poder de decisão espontânea, tem direta relação com a supressão da dependência interpessoal como alternativa à indisponibilidade de recursos acessíveis e inclusivos. Outro conceito essencial é que as condições de solução técnica de acessibilidade destinadas às pessoas com distintas deficiências prioritariamente sirvam de referência de boa qualidade inclusive para pessoas sem deficiência ocasional ou aparente. Para a aplicação desses conceitos, a acessibilidade de edifícios e de infraestrutura de comunicação e transporte deve ser pensada de modo sistêmico, abrangendo todas as instalações e infraestrutura, todas as formas comerciais, institucionais e todos os meios de serviço coletivo ou público. A legislação federal no Brasil é muito abrangente, extensa, complexa e pode ser exemplar para a América Latina.


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Recentemente, mediante pressão de mo- e um consenso intercultural sobre condivimentos sociais organizados, ela foi quase ções mínimas de respeito às pessoas com toda condensada num formato sintetizado deficiência na luta contra a discriminação de documento único, a Lei Brasileira de In- negativa e contra o preconceito. Contudo, clusão da Pessoa com Deficiência (LBI, Lei isso não é condição suficiente para aferir a nº 13.146/2015). Apesar de tratar de temas convivialidade nas relações sociais de pesespecíficos vinculados à discriminação e ao soas com deficiência no processo de inclusão. preconceito, bem como às reformas estrutuA legislação deflagra e revela conflitos rais, a LBI tem como fragilidade a dissociação de convivialidade à medida que pessoas com dos assuntos sobre deficiência de outras ques- deficiência que vivam de forma ativa reivintões de cidadania presentes em diquem tratamento digno em leis federais diversas, nas quais Certamente, tratados territórios de acessibilidade, a acessibilidade plena teria de internacionais ainda que limitada ou de baixa estar sempre contemplada. estabelecem uma qualidade. Assim, por exemLeis estaduais e municipais linguagem e um plo, esses conflitos são detectêm como atributo o detalha- consenso intercultural tados onde a demanda geral é mento circunstancial e contex- sobre condições forte para uma oferta escassa tualizado das normas técnicas mínimas de respeito às de recursos, tais como: vagas e dos regulamentos federais. pessoas com deficiência de estacionamento, assentos Nesse aspecto, as implicações na luta contra a de transporte coletivo, assendiscriminação negativa de especificidades locais e de tos em locais privilegiados em e contra o preconceito aspectos culturais em diferenauditórios e teatros, vagas para tes estágios de conscientização ensino ou para trabalho. Com social dos problemas da deficiência tornam isso, a característica de recurso desejável por ainda discrepantes os resultados e as perspec- todos, mas reservado para pessoas com defitivas de desenvolvimento sustentável mais ciência, implica divisão conflituosa entre os regular e equilibrado. Com efeito, se por um indivíduos e os interesses. Os conflitos delado a reunião de questões de inclusão social vem ser entendidos como um sinal de matunum pacote legislativo pode tornar mais con- ridade da consciência sobre especificidades tundentes ações de transformação em curto e generalidades no usufruto do bem coletivo. prazo, por outro, a consolidação de processos De fato, isso deveria aglutinar esforços para inclusivos dependerá da maior amplitude da a implantação de uma acessibilidade ampla legislação em geral, para que sempre contem- e de boa qualidade para todos. ple aspectos de vida inclusiva e de acessibilidade plena para todos no dia a dia. Índices demográficos e a convivialidaA ratificação da Convenção Internacio- de para pessoas com deficiência nal das Pessoas com Deficiência por diferenÉ necessário saber fatos relativos ao nútes países é benéfica. Certamente, tratados mero preciso de pessoas com deficiência para internacionais estabelecem uma linguagem que políticas efetivas sejam implementadas.

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Reconhecer a população de pessoas com deficiência significa respeitar o fato de que seus problemas existem e devem ser tratados adequadamente mediante a participação direta das pessoas mais afetadas. Contudo, os índices demográficos disponíveis para a América Latina revelam distúrbios nos processos de coleta e de interpretação dos dados, fenômeno que parece ser comum e semelhante. Verifica-se que os dados são de baixa qualidade e que a metodologia de levantamento dos dados resulta em números variados e discrepantes para cada país ou até, em diferentes momentos históricos, num mesmo país. Quanto mais pobre for a população e menos desenvolvidos forem os recursos e a infraestrutura, menor é a disponibilidade de informações precisas sobre o modo de vida de pessoas com deficiência. Em países com predomínio da população rural em condições de pobreza, em pontos geográficos de difícil acesso por selva e montanhas, e em comunidades com serviços escassos de saúde e educação, o número absoluto de pessoas com deficiência constatado nos censos demográficos tem sido bem pequeno em relação ao do restante da população – diferentemente de regiões ricas, de maior concentração urbana, e de outros países onde rigor e precisão parecem ser melhores. É comum a vinculação do termo “pessoa com deficiência” como título e rótulo de um grupo de pessoas com características especiais, como se deficiência fosse um fenômeno único e homogêneo que seria atribuído somente a certo contingente da população. Então, ao tratarmos da definição de um grupo, “pessoas com deficiência”, temos em

mente, de modo oposto, a existência também de outro grupo: pessoas sem deficiência. Ao citarmos percentuais demográficos ínfimos em relação a esses grupos formados por categorias de deficiência, reforçamos a ideia de que há clara distinção, como se pessoas de uma categoria não pudessem fazer parte de outras ou que indivíduos do grupo “pessoas sem deficiência” não viessem a se tornar elementos do grupo “pessoas com deficiência” numa ou mais de uma categoria num futuro possível. Não há, nessa lógica, o conceito intermediário: pessoas em transição para a vida com deficiência. A tendência é a redefinição do conceito para abordar as condições de desempenho e de socialização. O efeito é cíclico, pois mudam-se os atores, mas os papéis permanecem os mesmos. Enquanto mais pessoas com deficiência surgem em diferentes gerações, os problemas parecem ser únicos, as soluções são estranhas para cada realidade individual e, também, há despreparo geral para lidar com tudo isso. Recomendações e conclusões Em relação aos efeitos de uma deficiência, há muitas dificuldades para o alcance natural da convivialidade em relações sociais equilibradas. Isso se deve aos efeitos prejudiciais do preconceito contra a pessoa com deficiência nos processos de socialização e de cidadania. Ao nascer com defeitos e disfunções de natureza física, sensorial ou resultantes de eventos lesivos ao desenvolvimento cognitivo, psicológico e intelectual, a pessoa com deficiência tem sua convivialidade vinculada ao sentimento de luto. O luto é por essa


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pessoa deixar de cumprir expectativas de cidadania se submetem ao fracasso e à frusum crescimento, vigor e maturidade mol- tração como sendo inerentes à sua naturedado nas referências de sua família, de seus za limitada. Por isso, muitas vezes, a pessoa parceiros ou de sua comunidade. com deficiência pode se enxergar incapaz, e Tornar-se pessoa com deficiência na se conforma, confirmando a submissão que adolescência ou na idade adulta, após a lhe é imposta, ou pode se tornar intoleranformação da personalidade e da identidade te, e se revolta ou se vitimiza, confirmando social nas primeiras fases da vida, pode ser expectativas sociais repulsivas sobre sua muito impactante, pela quebra de referen- condição de vida. ciais de vida. A convivialidade da pessoa com Um importante questionamento é que deficiência dependerá de seus esforços e dos uma prestação de ajuda com laços de derecursos sociais e tecnológicos disponíveis pendência crônica possa ser dispensável para que essa nova vida predisponha laços sem prejuízos ao respeito pela natureza e conexões com possibilidades de sucesso. de uma pessoa com deficiência. Quando Viver a cidadania com uma deficiência a pessoa com deficiência consegue exeré empreender o enfrentamencer sua autonomia e definir to de desafios contínuos para Viver a cidadania as condições em que a ajualém dos muros familiares com uma deficiência da lhe seja eficaz, ela sofre é empreender o com resiliência e determinaconsequências na convição, apesar de empecilhos à enfrentamento de vialidade. Ela provoca uma constituição da autoestima desafios contínuos ruptura de expectativas de em grandes vazios de apren- para além dos subserviência pelas formas muros familiares dizado nas trocas sociais. As de tratamento. com resiliência e adaptações na casa e na cidade Assim, somente as exdeterminação, apesar são incompletas e impróprias de empecilhos à periências de tecnologia em grande parte, pois resul- constituição da assistiva apropriada, de protam da falta de experiências autoestima em grandes cessos inclusivos e da acesbem-sucedidas de acessibili- vazios de aprendizado sibilidade plena em cidades, dade plena. edifícios e em sistemas de nas trocas sociais A moradia tem grande comunicação poderão asimportância para que uma pessoa com de- segurar a formação da individualidade de ficiência supere as restrições de dependên- uma jovem pessoa com deficiência com cia na relação com outras pessoas. Sendo autoestima, autodeterminação e predisacessível, permitirá que habilidades sejam posição à convivialidade social. A pessoa desenvolvidas e que a pessoa alcance com- com deficiência pode se sentir única, mas petência. A consideração em geral parece ao mesmo tempo comum e em harmonia ser de que, vivendo com deficiência numa com o meio, e pode ter aceita sua condicasa com barreiras, tanto a criança quan- ção como cidadã atuante, diferente, rica to o adulto que reconstrói sua identidade e em convivialidade.

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O investimento em tecnologia que melhore a interface individual com o desempenho de tarefas resulta numa redução de tensões entre os papéis sociais na relação de ajuda em função da deficiência. Então, numa convivialidade equilibrada, pessoas com deficiência deixam de ser o alvo e passam também a prestar auxílio em trocas de experiências com pessoas sem deficiência aparente ou manifesta. A aplicação de tecnologia assistiva e sua absorção sistêmica nos elos de acessibilidade favorecem a ampliação do repertório de sucessos nos desafios cotidianos da pessoa com deficiência. Consequentemente, os processos de socialização permitem a alternância de papéis e o reconhecimento do valor de cada contribuição. Com isso, a autoestima de pessoas com deficiência tende a crescer e se consolidar, não mais pela tentativa de negação ou de superação dos efeitos da deficiência, mas pela natural expressão de peculiaridades, entre virtudes e falhas, fato que é comum a todos. Outra consideração de agenda política se faz necessária, numa transformação cultural para que pessoas em geral invistam nos meios para lidar com suas próprias deficiências, mesmo sendo estas ainda latentes, eventuais ou circunstanciais. Interpretando essa lógica sobre fatores de convivialidade, poderemos então imaginar que o impacto de uma deficiência possa ser cada vez mais geral, comum e, com isso, mais sensível, chegando ao ponto de ser fato consumado. Noutras palavras, não existiriam “pessoas normais sem que vivessem com uma deficiência superada”; não existiriam “pessoas com deficiência

sem que fossem pessoas normais usufruindo da tecnologia em serviço da inclusão”. No geral, ainda hoje muitas pessoas se dizem sensíveis à gravidade do problema da deficiência, mas poucas se predispõem ao comprometimento pessoal por mudanças conjunturais no local onde vivem, nos lugares que ocupam, no tratamento da comunicação total, nas formas de servir, na convivialidade. Não podem estabelecer real empatia. Caso o esforço para minimizar os efeitos da deficiência fosse amplo e socializado, os custos individuais (emocionais, financeiros, sentimentais, sexuais) poderiam ser menores para as novas gerações. Essa nova agenda política se estenderia para além da inclusão social de pessoas com deficiência visível e marcante, consolidando uma sociedade verdadeiramente inclusiva em que deficiência seja só um detalhe.

Marcelo Pinto Guimarães Professor de arquitetura na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), é mestre pela Universidade do Estado de Nova York (Suny) e doutor pela Universidade Estadual da Carolina do Norte (NCSU), nos Estados Unidos. Atua em aplicações do design universal para a sociedade inclusiva.


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Referências <http://www.adaptse.org/1723>. Acesso em: 15 set. 2019. <https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/94/cd_2010_religiao_deficiencia.pdf>. Acesso em: 15 set. 2019. <https://ww2.ibge.gov.br/home/estatistica/populacao/censo2000/tendencias_demograficas/c omentarios.pdf>. Acesso em: 15 set. 2019. <https://www.cepal.org/notas_p/74/Titulares2.html>. Acesso em: 15 set. 2019. <https://www.cepal.org/pt-br/noticias/relatorio-recomenda-que-regiao-incorpore-diretrizesinternacionais-medir-deficiencias>. Acesso em: 15 set. 2019.

Bibliografia recomendada CAMBIAGHI, Silvana. Desenho universal: métodos e técnicas para arquitetos e urbanistas. São Paulo: Ed. Senac, 2007. 269 p. CORRÊA, Rosa Maria. Avanços e desafios na construção de uma sociedade inclusiva/organizadora. Belo Horizonte: Sociedade Inclusiva/PUC-MG, 2008. 198 p. GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. 4. ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1988. PRADO, Adriana et al. Desenho universal: caminhos da acessibilidade no Brasil. São Paulo: Annablume, 2010. SANTOS, Igor dos. Acessibilidade projetada e acessibilidade real: avaliação com base no retorno de experiência de pessoas com deficiência física. Dissertação de mestrado em engenharia de produção pela Escola de Engenharia da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Minas Gerais, 2018. 146 p. SASSAKI, Romeu K. Inclusão: construindo uma sociedade para todos. Rio de Janeiro: WVA, 1997.

Sites

<https://www.otempo.com.br/opiniao/leonardo-boff/a-convivialidade-necessaria-para-ahumanidadenao-perecer-1.736>. Acesso em: 17 set. 2019. <https://www.monografias.com/pt/trabalhos908/o-papel-familia/o-papel-familia.shtml>. Acesso em: 17 set. 2019. <https://diversa.org.br/artigos/acessibilidade-tecnologia-assistiva-ajuda-tecnica/>. Acesso em: 17 set. 2019. <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em: 17 set. 2019.

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9.

CULTURA, UMA DIMENSÃO NECESSÁRIA

204. DIÁLOGO DE SABERES: O CAMINHO PARA A CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL Diana Marcela Rey

210. A POLÍTICA CULTURAL NA

ENCRUZILHADA. UMA PERSPECTIVA LATINO-AMERICANA – ENTREVISTA COM NÉSTOR GARCÍA CANCLINI Enrique Saravia


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DIÁLOGO DE SABERES:

O CAMINHO PARA A CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL Diana Marcela Rey

Este artigo explora como, por meio do diálogo de saberes, é possível alcançar a convivência intercultural. Seu objetivo é justificar que a simples implementação de ações afirmativas para alguns grupos vulneráveis na América Latina, assim como a aparente existência de uma cibersociedade, na qual o acesso a expressões criativas é ilimitado, não conduz à coexistência intercultural.

O ponto de partida A existência de normas e instituições para a proteção dos direitos das minorias étnicas e migrantes, assim como a aparente possibilidade que temos de ler, dançar e experimentar as expressões culturais de qualquer canto do mundo, transmite a sensação de que vivemos em uma aldeia global diversa, na qual a interculturalidade é efetiva. Porém, não há nada mais errôneo. O abismo entre a interculturalidade formal e a real é tão significativo quanto é equivocado o fato de que todos os cidadãos têm as mesmas possibilidades para acessar as expressões criativas. Nesse sentido, o objetivo deste texto é, por um lado, mostrar que existe convivência intercultural quando se estabelece o diálogo de saberes1 como caminho para atuar na esfera pública, e, por outro, desmistificar a ideia romântica de que o aumento da circulação

das indústrias criativas fornecido pela sociedade da cibercultura se traduz em convivência intercultural. O diálogo de saberes como práxis da convivência intercultural e suas limitantes O modelo teórico da interculturalidade tem promovido na América Latina a adoção de diversos marcos jurídicos orientados fundamentalmente à proteção dos direitos culturais das minorias étnicas. Entre o final dos anos 1980 e a segunda década do século XXI, todas as novas cartas constitucionais da região (Brasil – 1988; Colômbia – 1991; Paraguai – 1992; Peru –1993; Venezuela – 1999; Equador – 2008; Bolívia – 2009) incluíram enunciados a esse respeito, enquanto outros Estados, como a Guatemala (1996) e o México (2001), optaram por promover reformas


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constitucionais para centrar o debate na Em contraste, na Bolívia, no Equador e identidade cultural de suas minorias étnicas, no Peru, onde as comunidades étnicas têm sem ir além para reconhecer outros direitos sido historicamente discriminadas por parte de autodeterminação (REY, 2011). de uma minoria branca, o objetivo foi ultraNesse sentido, o auge desse direito passar os direitos culturais para estabelecer positivo na região contrasta rapidamente uma interculturalidade crítica no sentido de com a práxis política da institucionalida- Walsh. Ali, procurou-se repensar a democrade, porque, como tem sinalizado Catherine cia a partir do questionamento do sistema Walsh (2010), o ordenamento jurídico lati- de valores ocidental, que impera na instituno-americano limitou a interculturalidade a cionalidade latino-americana, para pôr na um assunto de reconhecimento racial, sem esfera pública a necessidade de construir questionar na maioria dos casos o problema Estados plurinacionais, respeitando as dihistórico-estrutural-racial-colonial do cam- ferenças e em concordância com as cosmopo jurídico. visões desses povos. Os exemplos mais claros aconteceram Foi assim que se gerou uma ruptura do no Chile, na Colômbia e no México. Os re- status quo, essa aspiração definida por Comgimes políticos desses países, boni e Suarez (2013) como o dominados por uma agenda O diálogo de saberes dever ser da interculturalidade, foi assumido, portanto, econômica e política neolia qual foi só possível quando as beral, deram prevalência à como o caminho comunidades entenderam que, filosofia do Estado de direi- para primeiramente como ponto de partida para enreconhecer as to próprio das sociedades de frentar o sistema-mundo no diferenças entre tradição do direito romano, povos diversos e, sentido de Wallerstein2, preciem contraposição aos mo- logo, convidar a savam estabelecer um diálogo delos de organização social institucionalidade de saberes para reconfigurar as e política das comunidades a um novo cenário regras do jogo. étnicas. A imagem do subco- de interlocução O diálogo de saberes foi mandante Marcos, em 2001, assumido, portanto, como o liderando a marcha de um grupo de zapa- caminho para primeiramente reconhecer tistas desde Chiapas para se encontrar com as diferenças entre povos diversos e, logo, o presidente Vicente Fox está presente na convidar a institucionalidade a um novo memória do México como um dos pontos al- cenário de interlocução. Nesse processo, tos da confrontação direta entre essas duas definiu-se uma nova linguagem e regras de lógicas políticas. A neoliberal, que procurava interlocução em que as hierarquias do coa limitação dos direitos dos indígenas a re- nhecimento ocidental cederam espaço a um gras gerais do direito positivo, e a zapatista, intercâmbio de saberes real. O resultado foi reivindicando uma ruptura da linguagem de superar a interculturalidade formal para dar exclusão até então utilizada, como ponto de prevalência às discussões sobre os sistemas partida para iniciar um diálogo entre iguais. de justiça, os modelos de saúde e educação

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e, especialmente, o desenvolvimento local segundo as cosmovisões de cada povo. Não em vão, nas últimas duas décadas, as comunidades latino-americanas encontraram no diálogo de saberes sua estratégia descolonizadora. Essa “dialética da libertação”3, no sentido de Fornet-Betancourt, permite às comunidades questionar, a partir de seus territórios, a definição de desenvolvimento contida no marco jurídico que os chama a participar da sociedade pós-moderna. Este é o resultado mais significativo: tendo o diálogo como proposta de ação, conseguiu-se dar um norte à estratégia descolonizadora e viabilizar a convivência intercultural. Mas o caminho para repensar o modelo das assimetrias econômicas e neocoloniais não tem sido fácil. Os conflitos políticos e econômicos da região incrementam a complexidade de cada processo. Um claro exemplo acontece na Colômbia. Ali, o Conselho Regional Indígena do Cauca tem feito esforços para estabelecer um diálogo de saberes com a institucionalidade, mas o controle do território por parte dos cartéis da droga impede a convivência intercultural. Aqueles espaços ancestrais que foram controlados por várias décadas pela guerrilha e pelos paramilitares são, agora, no pós-conflito, invadidos pelos cartéis de Sinaloa e Jalisco, tornando impossível a interculturalidade. Uma situação similar, mas de proporções mais amplas, ocorre na América Central. Nesse território, os 63 povos indígenas que ocupam 48% dos bosques, segundo a União Internacional para a Conservação da Natureza (UICN), não conseguem estabelecer iniciativas de desenvolvimento local segundo as suas cosmovisões ante a imperante

convergência das máfias de tráfico humano, armas e drogas que dominaram a região no conflito (AGUDELO, 2012). Ali, os desafios para conseguir a convivência intercultural escapam das correlações de poder entre as comunidades étnicas locais e a institucionalidade, pois a ação de atores ilegais limita os resultados dos diálogos de saberes, tornando a interculturalidade uma prática expropriada do seu sentido. Desmascarar o mito da aldeia intercultural Diferentemente do que aconteceu com a análise da interculturalidade, na esfera acadêmica latino-americana, a reflexão sobre a existência de uma aldeia intercultural na qual circulam bens e serviços culturais sem restrições foi invisibilizada. Se, por um lado, a partir dos anos 1990 as vozes de Jesús Martín-Barbero, Germán Rey e García Canclini começaram a questionar a fundo a limitação das expressões culturais como simples indústrias criativas e ressaltaram os problemas estruturais que impedem o acesso a elas, por outro, os avanços tecnológicos transmitiram a ideia errada de que todos os cidadãos participam de uma aldeia intercultural. Um espaço no qual se pode acessar, com um simples clique, sons, letras, imagens e expressões autênticas de todos os âmbitos geográficos. Um “não lugar” no sentido de Marc Augé, que, no contexto do espaço público, configura territórios de simples circulação, consumo e comunicação anônima, contrários ao intercâmbio que implicaria uma aldeia intercultural. Não só porque nesses “não lugares” as regras do mercado estimulam o individualismo do consumo cultural


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

e, portanto, limitam a interpretação do contexto histórico no qual foi pensado, gerado, produzido e divulgado esse bem ou serviço cultural; mas também porque essa aldeia cultural, na prática, só é desfrutada parcialmente por uma faixa da população. Na Guatemala, por exemplo, segundo o portal Statista, 34% dos cidadãos têm conexão à internet, enquanto os outros ficam excluídos do ecossistema digital, sem desfrutar do valor simbólico dos produtos culturais que circulam nessa aldeia. Nos outros países da região, mesmo que a taxa da população com acesso à internet móvel e fixa seja mais alta, muitos cidadãos ficam fora das estratégias de circulação e desfrute dos serviços culturais empreendidas pelos setores público e privado. Seja porque habitam longe dos chamados clusters que têm reconfigurado bairros das grandes cidades com a ativação de cadeias de produção criativa, seja porque esses serviços culturais ocupam espaços renovados segundo as regras do turismo, em áreas gentrificadas. O sofisma da aldeia intercultural é, então, uma ideia contrária à de convivência intercultural, pois reduz o acesso às expressões culturais ao simples consumo e omite que a interlocução entre culturas se dá quando existe o reconhecimento do valor simbólico desses bens ou serviços. Pior ainda, a meta da convivência intercultural é cada vez mais reticente nessa cibercultura, pois, pelas ânsias do consumo cultural, a sociedade não questiona a espetacularização das manifestações culturais e chega, inclusive, a fechar os olhos para as reivindicações das comunidades étnicas que procuram a proteção dos seus direitos de autor ante a vulneração desses por parte de multinacionais.

Diana Marcela Rey

Hoje, a luta das comunidades indígenas e afrodescendentes contra essa aldeia intercultural está apenas se configurando. As assimetrias do comércio com os mercados da China, da Índia e dos países do Sudeste Asiático tornam cada vez mais difícil uma solução para garantir o respeito às regras de propriedade intelectual, sendo poucos os casos exitosos de grupos étnicos que têm sido protegidos pelo uso indevido do seu patrimônio cultural e natural. O desafio de valorar a convivência intercultural da região O desafio para estabelecer a convivência intercultural não se limita, assim, à geração de um diálogo de saberes entre a institucionalidade e a diversidade dos povos indígenas e afrodescendentes da região. A comunidade acadêmica latino-americana está chamada a entender que os limitantes da convivência intercultural não estão só na estrutura de exclusão da história racial-colonial que atinge os regimes institucionais. Os atores ilegais são, em várias regiões, o principal desafio para conseguir o desenvolvimento local, enquanto a sociedade da cibercultura obriga a desmascarar o mito da aldeia intercultural. Para entender essa complexidade é preciso uma intelectualidade capaz de questionar os estereótipos e linguagens de exclusão que estão sendo reproduzidos pelas indústrias criativas, mapear e denunciar os processos de gentrificação e encontrar caminhos práticos para evitar a apropriação dos sons, desenhos, receitas, letras e expressões em geral da diversidade cultural que representa essa região do mundo.

207


OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Diana Marcela Rey Cientista política, mestra em cooperação e doutora pela Universidade Complutense de Madri, na Espanha, é especialista em economia criativa, sociologia da cultura e economia digital. Tem sido também consultora da Unesco, do Parlamento Andino e da ONU Women, além de diretora da área de cultura do Convênio Andrés Bello (CAB). Professora e autora de vários livros e artigos, é membro do Comitê Internacional de Expertos das Contas Satélites de Cultura do Instituto de Estatística da Unesco e do conselho internacional do Creative Industries Policy and Evidence Centre (PEC) do British Council e Nesta.

Referências AGUDELO, Irene. Violencia y trata de personas en Centroamérica: oportunidades de intervención regional. Save the Children, 1. ed. Manágua, 2012. 189 p. COMBONI SALINAS, Sonia; JUÁREZ NÚÑEZ, José Manuel. Las interculturalidades, identidades y el diálogo de saberes. Reencuentro, n. 66, abr. 2013. México, DF: Universidad Autónoma Metropolitana, Unidad Xochimilco, p. 10-23. FORNET-BETANCOURT, R. Filosofar para nuestro tiempo en clave intercultural. Aachen: Wissenschaftsverlag Mainz, 2004, p. 136-137. Cf. também: FORNET-BETANCOURT, R. Transformación intercultural de la filosofía. Bilbao: Desclée de Brouwer, 2001. REY, Diana Marcela. Los derechos culturales, la categoria subdesarrollada de los derechos humanos. Revista de Políticas Públicas. Universidade Federal do Maranhão, v. 15. n. 2., 2011. SANTOS, Boaventura de Sousa. Descolonizar el saber, reinventar el poder. Montevidéu: Trilce, 2010. WALSH, Catherine. Interculturalidad crítica y pluralismo jurídico. Apresentação no Seminário Pluralismo Jurídico. Ministério de Justiça, Brasília, 13-14 abr. 2010.

Bibliografia recomendada AUGÉ, Marc. Não lugares: introdução a uma antropologia da modernidade. Campinas: Papirus, (1994). BARIÉ, Cletus. Pueblos indígenas y derechos constitucionales en América Latina: un panorama. Instituto Indigenista Interamericano e Instituto Nacional Indigenista de México, 2000.


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Diana Marcela Rey

WALLERSTEIN, Immanuel. Geopolítica y geocultura. Ensayos sobre el moderno sistema mundial. Barcelona: Kairos, 2007.

Sites <https://vaventura.com/divulgacion/geografia/camino-la-droga/>. Acesso em: 18 set. 2019. <https://es.statista.com/grafico/13903/cuantos-usuarios-de-internet-hay-en-americalatina/>. Acesso em: 18 set. 2019. <https://www.iucn.org/>. Acesso em: 18 set. 2019

Notas 1

O diálogo de saberes pode ser entendido como uma prática e postura epistemológica que permite identificar prioridades e soluções coletivas por meio da interação entre sujeitos com diferentes tipos de conhecimento e saberes. Esse diálogo parte do reconhecimento da diversidade, procura a reflexão transdisciplinar e acontece em cenários sem hierarquias.

2

Esse conceito foi proposto por Immanuel Wallerstein nos anos 1970, para explicar a globalizaçāo econômica do ponto de vista da teoria marxista. De acordo com ele, os intercâmbios comerciais levam a uma divisão mundial entre os países do centro (desenvolvidos), os semiperiféricos e os periféricos. As nações do centro controlam, assim, o capitalismo (meios de produção e a tecnologia), os países periféricos produzem matéria-prima, mão de obra e produtos agrícolas, enquanto os semiperiféricos têm características dos dois grupos.

3

A dialética da libertação é um conceito da filosofia latino-americana segundo o qual o ser humano é o centro, ator e protagonista do seu destino, com o objetivo de superar o sistema de dominados e opressores. Nesse sentido, a dialética da libertação pensada por Fornet-Betancourt procura que os sujeitos reconheçam o desequilíbrio das relações de poder como ponto de partida para pensar a interculturalidade.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Néstor García Canclini

Ilustração: André Toma


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Enrique Saravia

A POLÍTICA CULTURAL NA ENCRUZILHADA.

UMA PERSPECTIVA LATINO-AMERICANA – ENTREVISTA COM NÉSTOR GARCÍA CANCLINI Enrique Saravia

N

éstor García Canclini é professor emérito da Universidade Autônoma Metropolitana do México e pesquisador emérito do Sistema Nacional de Pesquisadores desse país. Foi professor visitante nas universidades de Austin, Duke, Nova York, Stanford, Barcelona, Buenos Aires e São Paulo. Recebeu a bolsa Guggenheim e vários prêmios internacionais, entre eles, o Bryce Wood Book Award da Latin American Studies Association pelo seu livro Culturas Híbridas. Seus principais livros foram traduzidos para o inglês, o francês, o italiano, o português e o coreano. Em 2014, obteve o Prêmio Nacional de Ciências e Artes no México. Atualmente, estuda as relações entre antropologia e estética, leitura, estratégias criativas e redes culturais dos jovens. Seu livro mais recente, Pistas Falsas (Editorial Sexto Piso), é uma ficção e em breve será lançado na Coleção Os Livros do Observatório, do Itaú Cultural. Na entrevista a seguir, concedida ao professor Enrique Saravia e à equipe do Observatório, García Canclini fala sobre o papel das políticas culturais na América Latina, as noções de patrimônio, os conflitos que impedem uma convivência intercultural e os impactos da tecnologia na vida das pessoas.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

212

O ÍNDICE DE CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

PENSAMOS EM ENTREVISTAR PESSOAS QUE

COMEÇOU COM A IDEIA DE CRIAR UM ÍNDICE

TÊM CONHECIMENTO PROFUNDO DESSA PRO-

UNIVERSALMENTE VÁLIDO. PARA ISSO, FORAM

BLEMÁTICA, COMO É O SEU CASO. A LEITURA DO

ANALISADAS DIMENSÕES EM QUE COSTUMAM

SEU ÚLTIMO LIVRO AUMENTOU O INTERESSE

OCORRER CONFLITOS SOCIAIS, TAIS COMO

EM TER A SUA PARTICIPAÇÃO NESTE PROJETO.

RAÇA, ORIENTAÇÃO SEXUAL, MULHERES, RE-

LIGIÃO, IMIGRANTES E EXILADOS. PARALELA-

SUA VISÃO SOBRE A POLÍTICA CULTURAL NA

MENTE FORAM PREPARADAS AS ESTATÍSTICAS

AMÉRICA LATINA, QUE VOCÊ ACOMPANHA

E OS ASPECTOS MATEMÁTICOS DO ÍNDICE.

HÁ DÉCADAS. E QUAIS SÃO OS PROBLEMAS

CONCLUÍMOS, NO ENTANTO, QUE ERA

QUE ELA ENFRENTA E AS CRISES SÉRIAS QUE

AMBICIOSO DEMAIS CRIAR UM ÍNDICE APLI-

SE MANIFESTAM NA MAIORIA DOS PAÍSES.

CÁVEL UNIVERSALMENTE. ISSO NOS FEZ

PARECE-ME QUE A POLÍTICA CULTURAL PER-

REDUZIR O ÂMBITO A APENAS A AMÉRICA

DEU IMPORTÂNCIA. HÁ UMA TENDÊNCIA DE

LATINA, COM A INTENÇÃO DE TORNÁ-LO

SUPRIMIR OS MINISTÉRIOS DA CULTURA E

UNIVERSAL À MEDIDA QUE FUNCIONASSE.

PRINCIPALMENTE OS FINANCIAMENTOS PARA

INTERESSA-NOS CONHECER QUAL É A

ENCONTRAMOS MUITOS OBSTÁCULOS,

A CULTURA. ESTAMOS VIVENDO ISSO MUITO

PRINCIPALMENTE A FALTA DE DADOS ESTA-

DURAMENTE NO BRASIL NESTE MOMENTO.

TÍSTICOS SOBRE CADA UM DOS PROBLEMAS NA

MAIORIA DOS PAÍSES LATINO-AMERICANOS E A

XOU DE TER PRESTÍGIO NO AMBIENTE POLÍ-

DIFICULDADE EM ESTABELECER PESOS EQUI-

TICO. NO INÍCIO DO SÉCULO XX OU NO FINAL

VALENTES PARA CADA UMA DAS DIMENSÕES.

DO SÉCULO XIX, OS POLÍTICOS FAZIAM GRAN-

ASSIM, POR EXEMPLO, POR QUE AS MULHERES,

DES OBRAS PARA A GLÓRIA DELES: TEATROS

QUE SÃO MAIS DA METADE DA POPULAÇÃO,

DE ÓPERA, BIBLIOTECAS, MUSEUS E OUTROS

TERIAM O MESMO PESO QUE OS EXILADOS OU

EQUIPAMENTOS. ISSO NÃO INTERESSA MAIS.

QUE OS DADOS RELACIONADOS A RELIGIÕES?

AGORA, UM ESTÁDIO DE FUTEBOL É MUITO

COM BASE NAS ENTREVISTAS COM ESPE-

MAIS IMPORTANTE DO QUE QUALQUER PA-

CIALISTAS EM CADA SEGMENTO, DECIDIMOS

TRIMÔNIO HISTÓRICO. E ISSO, OBVIAMENTE,

PEDIR QUE CADA UM DELES ESCREVESSE

CRIA DIFICULDADES PARA OBTER RECURSOS

UM BREVE ENSAIO SOBRE A SUA MATÉRIA E

E INCLUSIVE PARA MANTER A CULTURA VIVA.

COM ISSO ALIMENTAR UMA PUBLICAÇÃO.

ESSA É A PREOCUPAÇÃO E GOSTARÍAMOS DE

CONHECER A SUA OPINIÃO.

COMO CONCLUSÃO DESSE TRABALHO,

PERCEBE-SE TAMBÉM QUE A CULTURA DEI-


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Acho que dá para perceber esse movimento que você descreve de declínio do papel das políticas culturais dos países após um período em que houve um auge de tentativas institucionais de fortalecer e atualizar a ação cultural dos Estados. Desde o final do século passado até os anos 1990, ou a primeira década do século XXI, foi reformada a constituição de vários países latino-americanos e nelas foi incluído o pluralismo cultural ou o caráter plurinacional desses países. Também houve a ascensão das secretarias ou departamentos de cultura, geralmente subordinados ao Ministério da Educação, estabelecendo-se como ministérios da cultura em vários países. Isso nem sempre veio acompanhado de um fortalecimento real dos orçamentos. Havia, porém, uma dignificação simbólica, uma maior facilidade para os novos ministros da Cultura de interagir com outros membros do gabinete e com o próprio presidente, quando, como no caso do México, só existia um Conselho Nacional de Cultura e Artes. Em outros países, o departamento ou a subsecretaria de Cultura faziam parte da Secretaria da Educação, não do Ministério da Educação. Ao mesmo tempo, observa-se que, nesses anos, ainda nesse período do final do século XX e início do século XXI, o papel da cultura e da comunicação aumentou.

Enrique Saravia

E tenho a impressão de que uma dificuldade dos países é não saber o que fazer com as novas tecnologias, com a cultura digital, com os usos sociais e comunicacionais da cultura, das artes feitas no novo período, e, em outros casos, ter cedido expressamente para as empresas privadas, incluindo empresas transnacionais, a gestão desses novos dispositivos ou recursos culturais e comunicacionais. Isso provocou o visível declínio do papel público dos órgãos estatais, enquanto aumentou, como sabemos, o papel da comunicação cultural no PIB de cada país, nas transações internacionais e nos efeitos simbólicos, ideológicos, que a cultura ou as culturas podem ter na vida social e até na econômica e financeira. Parece-me que houve esse desencontro entre os governos, que não queriam atuar nesse contexto e muitas vezes preferiam deixá-lo nas mãos de iniciativas privadas e transnacionais, e um desacordo sobre o que fazer. Eu diria que, em um período anterior, nos anos 1970 e 1980, de expansão dos meios de comunicação de massa, como os chamávamos naquela época, havia essa desorientação dos poderes públicos, com exceção de alguns poucos ministros que entendiam o que estava acontecendo com as organizações da esfera pública, as trocas de articulação

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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entre poderes e comunicação social e como os cidadãos tinham acesso a ela. E, desde a passagem da diversão das praças para as telas (não foi uma substituição total, mas parcial), os órgãos públicos de comunicação ficaram deslocados. Além de ter havido, em muitos países, transferências de canais públicos de televisão para empresas privadas. Pelo contrário, acho que devemos lembrar que houve um período de crescimento da integração ibero-americana nas reuniões de ministros da Cultura, na criação de novos órgãos, períodos de certa expansão da Organização dos Estados Ibero-Americanos, que permitiram a criação de programas de cooperação, alguns voltados para a mídia de massa, mas muito menos para o campo digital. Pensando nas chamadas “Iber”, o Ibermedia1 foi muito importante, e ainda é, para promover filmes e programas de TV em coprodução, e também outros programas, como o Ibermuseos2. Bem, sabemos que houve um período de auge dessas tentativas de integração, que, em alguns casos, como o Ibermedia, assumiram com certa seriedade a responsabilidade pública em relação às formas contemporâneas de comunicação.

Sabemos, também, que esses programas tiveram sérias limitações. Em cinco anos, o Ibermedia, que acho que foi o mais forte, multiplicou por cinco a produção de filmes ibero-americanos. Passou de, se me lembro bem dos números, aproximadamente 58 filmes coproduzidos entre os países ibero-americanos nos 15 anos anteriores à criação do Ibermedia para cerca de 300 nos anos seguintes. Depois, esse avanço parou, porque eram programas de coprodução, mas não de codistribuição. E os filmes ficavam sem possibilidade de ser exibidos, de chegar ao público, de circular fluidamente entre os países. Ficavam restritos a cinematecas, universidades, pequenas salas. Parece-me que havia uma baixa capacidade de produzir programas como o Ibermedia ou iniciativas equivalentes à Netflix, no âmbito privado. Também devemos mencionar o zigue-zague desses avanços de entrada na nova forma de comunicação, integrando-nos continental ou regionalmente, porque as mudanças de governo na Espanha, que tem sido a principal fornecedora de financiamento para esses programas, fizeram com que, no período do Partido Popular3, caísse


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

muito o estímulo. A instabilidade dos países latino-americanos, que vocês conhecem muito bem no Brasil, na Argentina, no México, na Colômbia, principais países produtores de audiovisual e de recursos de comunicação avançados, fez com que a participação no programa Ibermedia fosse muito limitada. Parece-me que esses são alguns indicadores significativos de por que as políticas culturais perderam força e não atuam nos locais onde a população está conectada. Ou atuam de forma muito fraca e descontinuada. Às vezes, com baixa compreensão daquilo que muitos diagnósticos acadêmicos, e ainda políticos, mostraram sobre qual é a disposição do público latino-americano para se conectar. Parece-me que todas essas questões têm muito a ver com a iniciativa de construir um Índice de Convivência Intercultural. Acho que essa fórmula é muito boa e estou ansioso para ver os resultados, ver o material que vocês conseguiram reunir, porque acredito que, com as fraturas muito significativas de todos os tipos, não apenas entre nações, mas também entre grupos étnicos, gêneros, grupos etários, é decisivo entender como podemos conviver.

Enrique Saravia

NA VERDADE É MUITO MAIS DO QUE ISSO. TEMOS ALGUNS CONFLITOS BÁSICOS... OS PAÍSES ESTÃO APRESENTANDO UMA DIVISÃO, UMA BRECHA, COMO SE DIZ NA ARGENTINA, MUITO RADICAL, ENTRE DOIS SETORES QUE PODEMOS CHAMAR DE CONSERVADORES E PROGRESSISTAS. E ISSO GEROU INCLUSIVE UM DISCURSO DE ÓDIO. VEMOS ISSO NO BRASIL, NA ARGENTINA, EM RAZÃO DAS ELEIÇÕES PRESIDENCIAIS DE 2019; APARECE NA COLÔMBIA, COMO CONSEQUÊNCIA DA NÃO APLICAÇÃO DOS ACORDOS DE PAZ. EM MUITOS LUGARES SURGE, ENFIM, ESSA PROFUNDA DIVISÃO DA POPULAÇÃO, PARA ALÉM DAS CLASSES SOCIAIS, DOS GÊNEROS. BEM, ANTES NÃO EXISTIA, EM GERAL, ESSE TIPO TÃO PROFUNDO DE DIVISÃO POLÍTICA. HOJE, A SITUAÇÃO É MUITO MAIS GRAVE. ENTÃO, TUDO ISSO GERA UMA NECESSIDADE AINDA MAIOR DE VERIFICAR COMO É QUE SE FAZ PARA CONSEGUIR UM SISTEMA DE CONVIVÊNCIA E COMO A CULTURA É USADA PARA ISSO. NÃO SE TRATA DE “USAR A CULTURA”, MAS SERIA BOM CONSIDERAR COMO ELA PODE SER UMA FERRAMENTA PARA PROMOVER A CONVIVÊNCIA, PARA PERMITIR QUE AS PESSOAS SE ENTENDAM, PARA ALÉM DE SUAS DIFERENÇAS, DE SUAS PARTICULARIDADES ESPECÍFICAS.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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ENTÃO, A QUESTÃO É ESSA, ISTO É,

À CALÚNIA. VIMOS ISSO NOS ESTADOS UNIDOS,

COMO A CULTURA PODE SERVIR PARA ISSO?

COM A CAMPANHA ELEITORAL DO TRUMP. NÃO

EXISTEM MUITOS EXEMPLOS DE PRO-

HÁ DÚVIDA DE QUE AS REDES SOCIAIS TÊM

JETOS CONCRETOS PARA PERMITIR, POR

UM PAPEL EXTREMAMENTE IMPORTANTE

MEIO DA MÚSICA, DO TEATRO, DA FOTO-

A DESEMPENHAR. ELAS SÃO MUITO POSITI-

GRAFIA OU DO QUE FOR, QUE SEJAM CRIA-

VAS, MAS ACABAM SENDO USADAS COMO UM

DOS ÂMBITOS DE AÇÃO E DE CONVIVÊNCIA

INSTRUMENTO NEGATIVO, ANTISSOCIAL.

INTERESSANTES. ALÉM DAS DIVERGÊN-

CIAS QUE POSSAM VIR EM OUTRO SENTIDO.

ÇÕES: COMO É ASSIMILADA ESSA NOVIDADE

UM DOS POLICIAIS QUE ORGANIZARAM O

TECNOLÓGICA NO AMBIENTE POLÍTICO, NO

BATALHÃO DE OPERAÇÕES POLICIAIS ESPE-

AMBIENTE SOCIAL E EM TODOS OS CAMPOS DA

CIAIS (BOPE) DO RIO DE JANEIRO DISSE QUE

CULTURA, QUE MANTÊM TODAS AS SUAS FOR-

A VIOLÊNCIA DIMINUI EM TODAS AS COMU-

MAS TRADICIONAIS, BASICAMENTE AS ARTES?

NIDADES DA CIDADE ONDE SE ESTABELECE-

RAM LONAS CULTURAIS. ELAS SÃO UM LUGAR

FIZEMOS A VOCÊ SOBRE A QUESTÃO DO PA-

ONDE HÁ DIFERENTES MANIFESTAÇÕES

TRIMÔNIO CULTURAL E HISTÓRICO. HÁ UM

ARTÍSTICAS TODOS OS FINS DE SEMANA.

DIÁLOGO MUITO INTERESSANTE E INSTIGAN-

PERGUNTAMOS A ELE POR QUÊ. “AH,

TE DO PERSONAGEM CHINÊS DO SEU LIVRO

EU NÃO SEI, ISSO É VOCÊS QUE VÃO DI-

QUE É QUASE UM VERDADEIRO ENSAIO SOBRE

ZER, MAS É UM FATO QUE, ONDE É CRIA-

O PATRIMÔNIO, SOBRE A QUESTÃO DE COMO A

DA UMA LONA CULTURAL, A TAXA DE

UNESCO TEM DETERMINADO O PATRIMÔNIO

VIOLÊNCIA DIMINUI.” ESSE É UM EXEMPLO

HISTÓRICO DA HUMANIDADE, MUITAS VEZES

DO QUE PODE SER, MAS, ACIMA DE TUDO,

COMO UMA QUESTÃO DE EXPRESSÃO POLÍTI-

UM EXEMPLO DE COMPREENSÃO MÚTUA.

CA DOS RESPECTIVOS PAÍSES OU, EM OUTROS

AÍ VEM A QUESTÃO DAS REDES SOCIAIS.

CASOS, COMO UMA FORMA DE DIGNIFICAR O

AS REDES SOCIAIS ESTÃO SENDO USADAS

QUE EM DETERMINADO MOMENTO FOI UM

COMO INCENTIVO AO ÓDIO, À MENTIRA E ATÉ

IMPORTANTE ÍNDICE DE CULTURA.

ENTÃO, ESTA É OUTRA DAS PREOCUPA-

NESSE PONTO, HÁ UMA PERGUNTA QUE


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Sim, se entendermos o patrimônio como aquilo que uma comunidade ou um conjunto de comunidades, uma nação, sente como próprio, experimentamos o que lhes pertence e isso nos dá o senso de pertencimento. Os patrimônios consagrados como tais, patrimônios da humanidade em primeiro lugar, mas também patrimônios nacionais, na realidade são feitos de muitas fraturas, às vezes pouco reconhecidas ou que se tenta simular como locais de encontro. Parece-me que a noção de patrimônio passou por várias fases desde que a Unesco estabeleceu uma carta e um conjunto de regras para criar a noção de patrimônio da humanidade e fomentar o desenvolvimento desse conceito, em 1972. Inicialmente, os critérios de determinação de um patrimônio eram a beleza, a qualidade estética, a autenticidade, como supostamente aquilo representava bens comuns e os interesses compartilhados em uma sociedade ou em um conjunto de sociedades. Fizemos muitas críticas a esses critérios, porque, quando se olhava o mapa do patrimônio mundial da Unesco, era claro o domínio da Europa Ocidental. Parecia que a cultura estava somente na Europa Ocidental,

Enrique Saravia

onde se localizavam 350 ou mais locais do patrimônio. Então, quando você ia descendo o mouse e escolhendo no mapa, o norte da África parecia não ter quase nenhum patrimônio. Ou, se olhasse a América Latina, havia apenas Mesoamérica, México, Guatemala e região andina, especialmente a Bolívia e o Peru, um pouco do Chile, um pouco do Equador. E depois havia grandes áreas aparentemente vazias. Era muito arbitrário. Houve, então, uma reconsideração, ainda insuficiente, da Unesco sobre quais deveriam ser os critérios para dizer que algo pertence a todos nós como patrimônio. É uma abstração difícil de sustentar a do patrimônio da humanidade, porque a enorme maioria desses mil, duzentos e não sei quantos lugares que agora são reconhecidos como patrimônios da humanidade não é conhecida nem mesmo por especialistas, que nunca estiveram nesses lugares e às vezes nem sabem o que são. Há muitos acordos políticos, convenções arbitrariamente estabelecidas, que depois são modificados várias vezes. Mas é uma questão importante, porque envolve o que temos em

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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comum, em que podemos nos reconhecer com certo orgulho e a possibilidade de projetar-nos e trocar bens, mensagens com o futuro. Aqui seria necessário colocar outra questão da maior importância. Em muitos casos, edifícios, sítios arqueológicos, museus que, por razões muito variadas, foram reconhecidos como patrimônio adquiriram uma alta valorização, quando havia muitos outros que também poderiam ocupar esse lugar. E hoje sabemos que grande parte do patrimônio é virtual, está nas redes e na internet. E o fato de que esse patrimônio tenha sido apropriado por pouquíssimas empresas transnacionais traz uma séria limitação ao acesso e o submete a uma comercialização muito injusta. É o que vemos, por exemplo, quando o Google digitaliza milhões e milhões de livros e aparentemente os coloca à disposição dos leitores que não tinham a oportunidade de acessá-los, mas a um custo, é claro. Houve algumas iniciativas4, como a do historiador Robert Darnton, quando ele era diretor do sistema de bibliotecas de Harvard,

que envolvia muitas universidades, especialmente do Primeiro Mundo, dos Estados Unidos e da Europa, para ser uma alternativa a esse empreendimento comercial do Google. Isso teve certo efeito, mas, embora eles possuam patrimônios e acervos muito ricos, não conseguiram concorrer, nem de longe, com esses empreendimentos desregulados. De outra parte, há o enorme patrimônio menos reconhecido, mas que existe. Pensemos no que acontece com as fotos no Instagram. Há uma “musealização” das imagens do mundo realizada por significativas empresas que adquiriram milhões de fotografias com a ideia de controlar o que circularia e de que modo se falaria dessas imagens e em qual contexto teriam significado. Tudo isso está conturbado neste momento pelos bilhões de imagens que todos captamos diariamente e fazemos circular no Facebook e em outras redes, especialmente no Instagram, e que são captadas por agentes que não conhecemos, que não nos pagam e que vão usá-las de forma arbitrária.


Enrique Saravia

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Aí há outro patrimônio que exigiria uma regulamentação para que possamos ter formas de convivência mais razoáveis e justas, não de apropriação, subtração, desapropriação daqueles que ingenuamente ou resignadamente tiram fotos e as publicam. Parece-me que, nessas diferentes áreas do patrimônio material, intangível ou virtual, há uma tarefa enorme a ser realizada. É extremamente difícil, especialmente a questão do patrimônio intangível. Quem é que determina que isso é um símbolo de autenticidade ou de coesão social? Por outro lado, caímos novamente na questão não só de quão ocidental no sentido dos cânones tradicionais das artes, mas também no sentido de que tudo está mais ou menos orientado, basicamente, pelos Estados Unidos. É o que acontece hoje com o boom das séries da Netflix ou coisas desse tipo, substituindo amplamente o cinema. Elas são uma forma de elaboração audiovisual. E tudo isso vai nos orientando de uma forma determinada.

A SOCIEDADE NORTE-AMERICANA É UMA SOCIEDADE COM MUITAS VIRTUDES, MAS TAMBÉM COM SÉRIOS DEFEITOS. E UM DELES É O GOSTO PELA VIOLÊNCIA. HOJE QUALQUER FILME TEM ELEMENTOS DE VIOLÊNCIA, ESPECIALMENTE AQUELES QUE SÃO SUCESSO DE PÚBLICO. E, POR OUTRO LADO, VEMOS QUE OS FILMES DIRIGIDOS ÀS CRIANÇAS O TEMPO TODO APRESENTAM LUTAS, EXPLOSÕES, VIOLÊNCIA, PERSEGUIÇÕES E COISAS DESSE TIPO. ENTÃO, ISSO ESTÁ MOLDANDO UMA FORMA DE VER AS COISAS E TAMBÉM DE MINIMIZAR, EM ALGUMA MEDIDA, A VIOLÊNCIA COMO UMA SITUAÇÃO NÃO DESEJADA PELA SOCIEDADE.

É MUITO DIFÍCIL DIZER “ISSO NÃO É UM

PATRIMÔNIO INTANGÍVEL”. POR EXEMPLO, AQUI NO BRASIL, EM ALGUMAS CIDADES, EM ALGUNS ESTADOS, O HIP-HOP FOI CONSIDERADO PATRIMÔNIO INTANGÍVEL, QUANDO, POR OUTRO LADO, HÁ MANIFESTAÇÕES MUSICAIS BRASILEIRAS DE ENORME VALOR E PRODUÇÃO CONSTANTE E PERMANENTE QUE NÃO SÃO CONSIDERADAS. É PRECISO DIZER QUE SE CHEGOU AO EXTREMO DE A

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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TORCIDA DO CLUBE FLAMENGO, UMA DAS

MAIS POPULARES DO BRASIL, SER CONSI-

ÇÃO DE VÁRIOS PAÍSES, COMO A COLÔM-

DERADA PATRIMÔNIO INTANGÍVEL. ESSES

BIA, O EQUADOR E O BRASIL, E REALMENTE

EXEMPLOS MOSTRAM A DIFICULDADE DE DE-

ESSA QUESTÃO DAS INDÚSTRIAS CRIATI-

TERMINAR O QUE É PATRIMÔNIO INTANGÍVEL.

VAS ESTÁ SE TORNANDO UM ELEMENTO

MUITO RECENTEMENTE, AS MANIFES-

DE SUBTRAÇÃO DE FUNDOS TRADICIONAL-

TAÇÕES AFRO-BRASILEIRAS FORAM CONSI-

MENTE DESTINADOS À CULTURA PARA PRO-

DERADAS PATRIMÔNIO HISTÓRICO. ALGUNS

MOVER AS INDÚSTRIAS CULTURAIS EM SEU

TERREIROS DE CANDOMBLÉ FORAM ASSIM

ASPECTO MAIS COMERCIAL, MAIS DE MAR-

DECLARADOS. MAS É UM FATO MUITO RE-

KETING, DO QUE PROPRIAMENTE CULTURAL.

CENTE, ESSA HISTÓRIA NÃO TEM 20 ANOS, E

SÃO POUCOS TERREIROS, SE COMPARARMOS

TRINGIDOS, A CRIAÇÃO CULTURAL PERDE FI-

COM A ENORME QUANTIDADE DE IGREJAS

NANCIAMENTO. MAS, POR OUTRO, É LANÇADA

E CONVENTOS CATÓLICOS QUE FORAM DE-

UMA ENORME QUANTIDADE DE MANIFESTA-

CLARADOS PATRIMÔNIOS. NADA CONTRA OS

ÇÕES DA INDÚSTRIA CULTURAL, A MAIORIA

CONVENTOS CATÓLICOS, MAS SERIA BOM QUE

DAS QUAIS NÃO DESEJA ESTAR NA JURISDI-

AS MANIFESTAÇÕES DE OUTRAS RELIGIÕES

ÇÃO DO MINISTÉRIO DA CULTURA. ISSO É

TIVESSEM O MESMO TIPO DE TRATAMENTO

ALGO QUE A UNESCO LANÇOU PORQUE GOS-

POR PARTE DO MINISTÉRIO DA CULTURA,

TOU DO QUE OS INGLESES E OS AUSTRALIA-

DA IMPRENSA E DA SOCIEDADE EM GERAL.

NOS FIZERAM, E AGORA TODOS ESTÃO NISSO.

OUTRA QUESTÃO DA UNESCO É O PAPEL

EU ACOMPANHO DE PERTO A SITUA-

POR UM LADO, OS ORÇAMENTOS SÃO RES-

ASSIM, POR EXEMPLO, O ATUAL GOVER-

DECISIVO QUE ELA EXERCE EM MATÉRIA DE

NO DA COLÔMBIA LANÇOU UM PROGRAMA

POLÍTICAS CULTURAIS A PARTIR DA CONFE-

DE INCENTIVOS FINANCEIROS PARA A ATI-

RÊNCIA MUNDIAL DO MÉXICO DE 1982. ELA

VIDADE CULTURAL CHAMADO ECONOMIA

LANÇA E RECOMENDA UMA DETERMINADA

LARANJA, E TODOS OS CRIADORES ESTÃO

AÇÃO. UMA FOI A DO PATRIMÔNIO INTANGÍVEL

CONTRARIADOS PORQUE OS RECURSOS

E OUTRA, AGORA MUITO FORTE, É A DAS INDÚS-

SÃO ENTREGUES ÀS GRANDES EMPRESAS

TRIAS CULTURAIS, AS INDÚSTRIAS CRIATIVAS.

PRODUTORAS DE MÍDIA, DA INDÚSTRIA

ISSO ESTÁ CRIANDO UM PROBLEMA SÉRIO.

EDITORIAL, DA INDÚSTRIA DA MÚSICA ETC.


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

NESSE SENTIDO, GOSTARÍAMOS DE OUVIR

A SUA OPINIÃO SOBRE ESSA QUESTÃO DAS INDÚSTRIAS CRIATIVAS.

Fizemos, no México e em Madri, de 2010 a 2012, uma pesquisa sobre os chamados jovens criativos ou empreendedores. O objetivo era conhecer a perspectiva deles, e das redes criadas entre eles, sobre esse impulso tão grande às indústrias criativas. Vimos que havia uma tensão da qual se tenta não falar nas organizações nacionais e internacionais, entusiasmadas com a chamada Economia Laranja. É preciso lembrar que inclusive o atual presidente da Colômbia, Iván Duque Márquez, é um impulsionador dessa expressão e dessa linha de atividade. Durante a pesquisa, trabalhamos com um grupo de economistas mexicanos que defenderam essa iniciativa como uma espécie de recurso de geração de emprego para jovens desempregados, para resolver, entre aspas, as dificuldades que eles encontravam em conseguir empregos não precários. E o que eles tentaram ressaltar é que essas relações de trabalho da economia criativa são muito mais flexíveis, trabalha-se por projetos, em casa, ou seja, uma série de supostas vantagens.

Enrique Saravia

Mas, quando fizemos estudos etnográficos da vida cotidiana desses jovens, percebemos que há muitas dezenas de milhares nessa situação no México, especialmente em cidades como a Cidade do México, Guadalajara – que está tentando, com as autoridades atuais, ser uma espécie de pequeno Vale do Silício – e o norte de Tijuana, onde essas atividades foram muito exercidas; mas também em quase todo o país. Vimos algo que também descobrimos em Madri. Eles sentem muita precarização, perderam totalmente a noção de carreira, porque agora acreditam que precisam trabalhar por projetos. Essas informações estão na publicação Jovens, Culturas Urbanas e Redes Digitais, organizada pela Fundación Telefónica e que pode ser baixada gratuitamente. Partindo dessa investigação, tenho observado em grupos de jovens empreendedores e criadores que a terceirização da produção se acentuou e muitos deles, na verdade, com suas pequenas redes ou empresas de geração de conteúdo, estão trabalhando para as megaempresas transnacionais por pagamentos ridículos, e sentem uma precarização muito alta. Por isso, muitos deles agora nem sequer apoiam a ideia do projeto.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Porque trabalhar por projeto substitui a ideia de uma carreira e de estudar para ter um emprego seguro por 20 anos, como foi a experiência dos mais velhos... Eu diria que, há uma década, ainda havia a ideia de que “eu posso trabalhar com projetos que vão durar seis meses, um ano e depois passar para outro, em uma área diferente”. Um artista formado na escola de artes visuais vai trabalhar por seis meses desenhando páginas digitais, depois vai fazer o cenário para um filme, seis meses depois ele fica sem trabalho. Eu acho que esse tipo de trabalho se tornou muito difícil por várias razões. Uma é que aumentou a taxa de exploração desses trabalhadores terceirizados e cresceu o número de candidatos a ocupar essas posições, porque há cada vez mais formados pelas universidades e, além disso, muitos conseguem se candidatar ao emprego sem ter uma qualificação acadêmica. De fato, houve uma difusão das tecnologias e da autocapacitação de muitos jovens para resolver problemas que se tornaram complexos para nós. Muitos de nós temos um consultor técnico quando o computador ou os telefones celulares quebram. E muitas vezes essa pessoa é alguém que nem terminou o curso universitário.

Então, há muita autocapacitação, porque eles entenderam que precisam se capacitar para essa nova condição de trabalho. Isso diminui os salários ou os pagamentos por contratos de curta duração e, finalmente, há uma deterioração do trabalho. Assim, onde os economistas ou esses ideólogos da Economia Laranja e da indústria criativa veem flexibilidade, liberdade de escolha, na realidade os jovens estão vendo cada vez mais precarização e instabilidade. Além disso, esse estilo de organização do trabalho é incorporado em instituições públicas. Sabemos que isso está acontecendo internacionalmente, em todos os países da América Latina. No México, temos contratos por quatro, cinco meses em órgãos estatais. Nos museus, por exemplo, há curadores com uma excelente formação, um excelente desempenho curricular, que são contratados por quatro meses, depois são desligados por dois meses, para que não adquiram direitos trabalhistas, e, posteriormente, são recontratados porque são necessários. Mas há também o risco de outro aparecer e se tornar mais amigo do diretor do museu, e o curador ser trocado. Então, aquele que estava antes fica sem trabalho. Ou um projeto é cortado e é passado para outro.


Enrique Saravia

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

ESSE PROBLEMA É GERAL. PODEMOS APLICAR

É ESCASSO E, ATÉ CERTO PONTO, PERVERSO,

O QUE VOCÊ ESTÁ DIZENDO AO BRASIL, À AR-

NA MEDIDA EM QUE INTERFERE NA PRODUÇÃO

GENTINA, À COLÔMBIA E PROVAVELMENTE A

ARTÍSTICA. ISSO SEM MENCIONAR A TREMEN-

MUITOS OUTROS PAÍSES. NO CASO ESPECÍFI-

DA BUROCRACIA QUE QUALQUER PESSOA QUE

CO DO BRASIL, HÁ INCLUSIVE O PROBLEMA DA

GANHA UM EDITAL OU UM CONCURSO DEVE EN-

ORIENTAÇÃO DO FINANCIAMENTO ESTATAL.

FRENTAR: RELATÓRIOS MENSAIS, RELATÓRIOS

ASSIM TAMBÉM ACONTECE NA COLÔMBIA.

SEMESTRAIS, DISCUSSÕES DE TODOS OS TIPOS,

OS CONCURSOS E EDITAIS SELECIONAM AS

INCLUSIVE RIDÍCULAS EM MUITOS ASPECTOS.

MANIFESTAÇÕES CULTURAIS QUE RECEBE-

RÃO A AJUDA CADA VEZ MENOR DO ESTADO.

PRECARIZAÇÃO. EU ACOMPANHO DE MUITO

ENTÃO, TUDO ISSO CONTRIBUI PARA A

O QUE É QUE ACONTECE? QUEM ES-

PERTO A ATIVIDADE DOS TÉCNICOS DA INDÚS-

TABELECE OU ELABORA OS EDITAIS E OS

TRIA MUSICAL E DO TEATRO, E É UM PROBLE-

CONCURSOS SÃO PESSOAS QUE NÃO SÃO

MA MUITO SÉRIO, PORQUE ESTÃO SUJEITOS

ARTISTAS E NÃO ATUAM NO CAMPO DA

ÀS TRANSFORMAÇÕES TECNOLÓGICAS QUE

CULTURA. ENTÃO, ELES IMPÕEM CERTAS

AFETAM O SEU TRABALHO. ANTES, ELES GRA-

CONDIÇÕES, COMO A REALIZAÇÃO DE UM

VAVAM E VENDIAM CDS, MAS AGORA OS CDS

TRABALHO SOCIAL OU EDUCACIONAL, OU DE

NÃO SÃO MAIS VENDIDOS. ENTÃO, ELES TÊM

OUTRA AÇÃO NÃO ESPECIFICAMENTE CUL-

DE PERCORRER O PAÍS FAZENDO SHOWS, LE-

TURAL. ISSO SIGNIFICA UMA INTERFERÊN-

VANDO OS TÉCNICOS, E TODOS SOFREM COM O

CIA MUITO SÉRIA NA CRIAÇÃO ARTÍSTICA.

PROBLEMA DA PRECARIZAÇÃO: GANHAM MAL,

UM PROFESSOR DA FACULDADE DE ARTES

TÊM DE PASSAR DIAS E DIAS FORA DE CASA, AN-

DE BOGOTÁ DISSE QUE “O GRANDE PROBLE-

DANDO PELO MUNDO PARA REALIZAR O TRABA-

MA QUE TEMOS AGORA É QUE NO TEATRO E

LHO DE TÉCNICO DE APOIO.

NA MÚSICA QUASE TUDO QUE SE FAZ É O QUE É PUBLICADO EM EDITAL PELO MINISTÉRIO DA CULTURA, PELA PREFEITURA DE BOGOTÁ OU POR OUTROS ÓRGÃOS PÚBLICOS”. E ISSO TAMBÉM PROVOCA UMA DETERIORAÇÃO DA PRODUÇÃO ARTÍSTICA. OU SEJA, O DINHEIRO

Acho interessante destacar isso, porque há uma deterioração, como você disse antes, da própria lógica da criatividade e da produção cultural, e uma deterioração das condições de vida dos criadores, inclusive além do artístico e cultural.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Uma jovem curadora mexicana, com menos de 30 anos, de bom nível profissional, disse-me: “Tenho mestrado, sei inglês e francês, tenho uma longa formação, mas, por esse sistema de contratos temporários ou pequenos projetos de curta duração, não posso comprar um carro nem engravidar”. Porque existem direitos sociais básicos, direitos à vida, que estão sendo abolidos. E não é simplesmente uma macrovisão do neoliberalismo que anula leis e direitos. É assim que isso é internalizado nas vidas e deteriora a capacidade de reprodução da vida e da sociedade como um todo. Porque a cultura é criatividade, é transgressão, mas também é continuidade, é acúmulo de experiências e necessita de certas garantias institucionais para ter relações consistentes com o público, para ter uma presença simbólica na vida social que seja valiosa, acumulável para a nação como um todo.

SIM, ISSO SEM CONTAR A INTERNACIONALIZAÇÃO DE TODAS ESSAS ÁREAS. EM MUITOS CASOS, SÃO AS GRANDES EMPRESAS QUE DIRIGEM A INDÚSTRIA MUSICAL, POR EXEMPLO, OU A INDÚSTRIA CINEMATOGRÁFICA. NESSE SENTIDO, HÁ UMA EXPRESSÃO USADA PELO PROTAGONISTA DE SEU LIVRO. É A DA GLOBALIZAÇÃO VINDA DE BAIXO. É UMA IDEIA MUITO INTERESSANTE E EU GOSTARIA DE OUVIR UM POUCO MAIS SOBRE ESSE ASSUNTO.

É uma ideia que emprestei de um antropólogo brasileiro, ex-professor da Universidade de Brasília, que atualmente mora no México, chamado Gustavo Lins Ribeiro. Ele tem um livro que foi publicado em português e agora também em espanhol, chamado Outras Globalizações: Cosmopolíticas Pós-Imperialistas. Ele fez um trabalho de campo nessas grandes feiras e mercados populares alternativos informais, muitas vezes controlados por máfias. Acho que em Bogotá há um chamado San Andresito, assim como há


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

também o Saara, no Rio de Janeiro, a Rua 25 de Março, em São Paulo, La Salada, na Argentina... Enfim, lugares como a Tríplice Fronteira, entre Brasil, Argentina e Paraguai, que é um grande ponto, como tradicionalmente se dizia, de tráfico ilegal e de todos os tipos de contrabando. E acho que é muito mais do que isso agora. Então, a ideia é a de outras globalizações que estão ocorrendo, que não passam somente pelo Google, pela Apple ou pelas grandes lojas de roupas internacionais, mas também por esses mercados que copiam as marcas famosas, que geraram uma economia poderosíssima, inter-relacionando os aspectos formal e informal, não somente pelas cópias de designers, mas porque há investimentos cruzados. Alguns antropólogos consideram isso como uma alternativa, e são os setores populares que se organizam para buscar uma globalização diferente daquela oferecida pelas grandes corporações. Porém, minha impressão é que também são sistemas de exploração

Enrique Saravia

mais desregulados ainda e que deveriam ter certo controle, porque a destruição de vidas que estão causando e a deterioração do comércio, inclusive pela supersaturação de produtos gerados em oficinas em regime de semiescravidão, são muito graves. Portanto, é verdade que a noção de outras globalizações ou globalizações vindas de baixo é útil para ver que existem muitos setores populares que estão se organizando para ter seu lugar, seu nicho nessa globalização hegemônica. Não existe uma única lógica globalizadora, há muitas em disputa. Um lugar muito significativo é, na Cidade do México, o Tepito, um antigo bairro de importação por contrabando e de comercialização ilegal, que foi ampliado e enriqueceu com o comércio internacional. Então, os pequenos comerciantes de origem muito popular de Tepito têm escritórios em Xangai e viajam várias vezes por ano. E têm negócios em redes, que também precisamos analisar como parte da globalização.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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OUTRA IDEIA INTERESSANTE MENCIONADA

SOCIEDADE, ESTÁ NO GOVERNO, E, DIANTE

VÁRIAS VEZES EM SEUS LIVROS É QUE HITLER

DISSO, TEMOS ESSE PROBLEMA ADICIONAL.

ESTÁ NA SOCIEDADE. PODEMOS COMPARAR MUITOS POLÍTICOS COM HITLER E CONCLUIR QUE HOJE ELES SÃO ATÉ PRESIDENTES DA REPÚBLICA. ELES PARTIRAM PARA UM DIRIGISMO CULTURAL EXTREMAMENTE NEFASTO, PORQUE SÃO MUITO CONSERVADORES, MUITO REGRESSIVOS, E TUDO ISSO ESTÁ CRIANDO ENORMES CONFLITOS SOCIAIS.

AQUI, O PRESIDENTE QUE TEMOS CRIOU

SITUAÇÕES MUITO DIFÍCEIS PARA TODOS OS GRUPOS QUE DE ALGUMA FORMA ELE CONSIDERA POUCO FUNCIONAIS. ENTRAM AÍ OS GAYS, INCLUSIVE O FEMINISMO, A GRANDE QUESTÃO RELIGIOSA. PARA ELE E SEUS SEGUIDORES, SE NÃO FOR IGREJA EVANGÉLICA, NÃO PRESTA; OS ÍNDIOS SÃO SERES QUE NÃO TÊM NENHUMA FUNÇÃO SOCIAL; ALÉM DE TODO O PROBLEMA INTERNACIONALIZADO DO ATAQUE À AMAZÔNIA E AO MEIO AMBIENTE.

ENTÃO, NESSA QUESTÃO, O QUE RES-

PONDERÍAMOS É QUE HITLER NÃO ESTÁ NA

Claro, mas em muitos casos são governos eleitos por uma sociedade que já tinha advertências da natureza autoritária e corrupta desses governantes. Isso me parece ser um problema da “desdemocratização” que estamos sofrendo. Não é a lógica das ditaduras sofridas pelos países latino-americanos nas décadas de 1960 a 1980. Agora são ditaduras ou regimes autoritários que chegam com o voto da maioria. Então, para mim, a pergunta sobre o que está acontecendo na sociedade se torna muito importante. Na ficção Pistas Falsas, de fato, eu começo com uma frase que emprestei de um músico contemporâneo: “Goya conheceu Hitler antes de Hitler conhecer Goya”. Porque, na realidade, o que Goya observou é que havia mudanças no início da modernidade que já deveriam ser temidas. E nos acostumamos muito a pensar na


Enrique Saravia

CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

modernidade, agora menos, como um processo de evolução, democratização, redistribuição da iniciativa social e de controles democráticos do poder. Mas há uma deterioração que não é apenas econômica, mas também social e cultural, que se instalou na sociedade. É por isso que o protagonista da minha ficção, em um momento, vendo a deterioração da sociedade na Cidade do México e os motivos de corrupção que a explicam, ouve o arquiteto que o está levando de carro dizer: “O suborno é o novo contrato social”. Parece-me urgente olhar para os processos de desdemocratização e de desconfiança que estão instalados na sociedade, uma descrença ainda maior em todas as formas de representação, inclusive nos partidos políticos tradicionais. E como criar formas de convivência, como vocês dizem, e de confiança não em líderes excepcionais, mas em formas organizacionais democraticamente controladas.

ISSO FOI AMPLAMENTE VISTO AQUI. O ATUAL PRESIDENTE, QUANDO ERA CANDIDATO, NÃO ESCONDEU QUAL ERA SUA FILOSOFIA, SE É QUE SE PODE CHAMÁ-LA ASSIM.

E HÁ A QUESTÃO DA DEFESA DA DITA-

DURA MILITAR. ESTÃO QUERENDO PROIBIR CHAMAR O GOVERNO MILITAR DE DITADURA. E PROMOVEM A INSERÇÃO DE CERTAS IDEIAS COMO A DE QUE A TORTURA É PERFEITAMENTE ACEITÁVEL EM CERTAS SITUAÇÕES; OU QUE AS MULHERES SÃO SERES INFERIORES, DE SEGUNDA CLASSE; OU A PERSEGUIÇÃO AOS GAYS. ESSE TIPO DE COISA É ALTAMENTE DECEPCIONANTE, NA MEDIDA EM QUE 57 MILHÕES DE BRASILEIROS VOTARAM NESSE HOMEM SABENDO QUE ELE PENSAVA TUDO ISSO. OU SEJA, TUDO ISSO SIGNIFICA QUE OU AS PESSOAS CONCORDAM OU NÃO SE IMPORTAM COM ESSE TIPO DE SITUAÇÃO.

EU ACHO QUE ISSO É MUITO NOVO, NAS

DITADURAS NÃO HAVIA ISSO. TALVEZ NO NAZISMO, NA FORMA COMO MOBILIZOU A POPULAÇÃO. MAS, EM GERAL, ISSO É UM

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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PROBLEMA SÉRIO, PORQUE ESTÁ NA SOCIE-

É UM MOVIMENTO MUITO SÉRIO E OBVIA-

DADE, É COMO SE TIVESSE VOLTADO À TONA

MENTE COLOCA A CULTURA EM XEQUE.

UMA SÉRIE DE COISAS QUE ESTAVAM OCULTAS PORQUE O DISCURSO ERA OUTRO, PORQUE SE SUPUNHA, DIGAMOS, QUE CERTAS IDEIAS PROGRESSISTAS ESTAVAM SE IMPONDO, QUE ERAM SINÔNIMOS DE MODERNIDADE ETC.

DE REPENTE, RETROCEDEMOS E ATÉ A PA-

LAVRA MODERNIDADE SE TORNOU UMA PALAVRA RUIM. OU SEJA, TODA ESSA SITUAÇÃO QUE TAMBÉM ESTAMOS VENDO NOS ESTADOS UNIDOS, COM O TRUMP E AQUELES QUE VOTAM EM TRUMP, E EM VÁRIOS OUTROS LUGARES.

Em grande parte da Europa Oriental, o crescimento da extrema direita na Europa Ocidental.

Parece-me que isso obriga aqueles que historicamente foram a favor de causas progressistas a pensar no que está radicalmente deteriorado na sociedade e sobre qual é a responsabilidade das forças políticas históricas, como os partidos políticos, em primeiro lugar, mas também alguns movimentos de organização social, como os sindicatos, sem dúvida, e os chamados movimentos sociais clássicos. O atual governo do México, de López Obrador, tirou todos os subsídios dos movimentos sociais. Em alguns casos, isso foi muito grave. Por exemplo, os subsídios para as creches foram suspensos porque descobriram que em algumas dessas organizações havia corrupção, mas nenhuma investigação foi feita sobre quais deveriam ser punidas e de quais deveria ser tirado o subsídio. Foi tirado de forma geral. Então, a corrupção de alguns partidos, de alguns movimentos sociais, gerou na sociedade uma desconfiança sobre se é possível esperar algo disso ou se é necessário apelar para a violência. Porque o inverso disso é a crença de que somente com uma convivência violenta podemos superar a hostilidade dessa sociedade.


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

O LIVRO MAIS RECENTE DE MANUEL CASTELLS, RUPTURA, É EXTREMAMENTE INTERESSANTE. FAZ UMA ANÁLISE E COLOCA, DIGAMOS, COMO UMA CAUSA FUNDAMENTAL O FATO DE QUE AS INSTITUIÇÕES DEMOCRÁTICAS TRADICIONAIS PERDERAM TOTALMENTE SUA REPRESENTATIVIDADE. NÃO É POR OUTRA RAZÃO QUE TODOS ESSES MOVIMENTOS SOCIAIS QUE OCORRERAM EM VÁRIOS PAÍSES NOS ÚLTIMOS ANOS USAM A MESMA EXPRESSÃO DE “ELES NÃO NOS REPRESENTAM”. MAS ELES, OS POLÍTICOS, CONTINUAM DIRIGINDO O ESTADO, A SOCIEDADE, MESMO PERDENDO CADA VEZ MAIS REPRESENTATIVIDADE. OS PARTIDOS POLÍTICOS TRADICIONAIS ESTÃO DESAPARECENDO, E EMERGEM ESSAS NOVAS FORÇAS TOTALMENTE ANÔNIMAS QUE NÃO TÊM DIRIGENTES E QUE ESTÃO SE IMPONDO. VEMOS O 5 ESTRELAS, NA ITÁLIA; VOX, NA ESPANHA. E, AQUI, O MOVIMENTO QUE ELEGEU ESSE PRESIDENTE É TOTALMENTE AMORFO, NÃO É UM PARTIDO POLÍTICO TRADICIONAL.

Enrique Saravia

Na América Latina, os movimentos neoevangélicos – prefiro chamá-los assim para diferenciá-los dos evangélicos tradicionais que tiveram um papel na democratização da América... Os neoevangélicos, essas novas emergências em massa, tornaram-se fundamentais como contentores do mal-estar social, oferecendo proteção, humanitarismo, um novo tipo de apoio afetivo em meio a processos de negligência histórica dos governos e dos partidos, inclusive daqueles que se diziam de esquerda. É por isso que eu acho que a autocrítica dos partidos de esquerda é fundamental para a deterioração das pretendidas revoluções que ocorreram no século XX e é um alerta muito sério. Porque, se não for possível confiar, se isso causar fome, falta de medicamentos, como no caso da Venezuela, é preciso pensar em como se chegou a isso.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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GOSTARÍAMOS DE CONHECER SUA OPINIÃO SOBRE AS POLÍTICAS CULTURAIS: QUAIS SÃO OS PONTOS DE INFLEXÃO DELAS NO FINAL DO SÉCULO XX E INÍCIO DO SÉCULO XXI? QUAIS SÃO AS CONQUISTAS E AS QUESTÕES QUE, APESAR DE CENTRAIS, NÃO FORAM DEVIDAMENTE TRATADAS?

Vou falar brevemente. Parece-me que há conquistas inquestionáveis, como o fato de ter sido construído um senso comum, com certos consensos muito amplos sobre feminismo, igualdade e diversidade de gênero, direitos dos migrantes, embora aí tenha sido criada uma área muito mais contraditória, porque também gerou xenofobias que não conhecíamos no passado. É o que mencionamos no início da conversa, que o caráter pluricultural

das nações é reconhecido em muitas constituições. Poderíamos listar muitos avanços nas políticas sociais que vêm da cultura ou que têm um significado sociocultural. Acho que isso não deve ser esquecido, e alguns desses processos estão no auge: o amplo espectro de defesa das causas feministas, da descriminalização do aborto etc. Tudo isso deve ser reconhecido. Conseguiu-se descriminalizar o aborto em algumas cidades e países, e, diante disso, parece-me que permanece a falta de compreensão inteligente dos novos processos comunicacionais, que não são apenas processos das grandes empresas, gerados de cima para baixo, mas novas formas. Nós nos comunicamos por meio do Skype neste momento, porém,


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

usando dispositivos que temos nas mãos e que trouxeram a convergência tecnológica que nos dá a possibilidade de acessar, fascinados, sons, imagens, textos de uma só vez, misturá-los, criar arte de outra forma, agora muito mais flexível. Portanto, existem aspectos muito positivos com cargas negativas, inclusive com cargas destrutivas, que me parece que não só deixaram atordoados os governos autoritários ou menos sensíveis às transformações sociais e aos setores mais pobres, como também deixaram atordoados os liberais. Então, um ponto que eu gostaria de colocar aqui é que não se trata apenas de uma deterioração da esquerda ou dos governos de esquerda, como algumas vezes se pretende mostrar, apontando para o PT ou para o

Enrique Saravia

peronismo, na Argentina, ou para o PRD, Partido da Revolução Democrática, no México, que está em plena decadência. Mas ainda existem muitos intelectuais acadêmicos liberais que dizem que o que precisa ser defendida é a transparência do voto. Sim, é claro que é preciso defender isso, mas, em primeiro lugar, é necessário pensar por que as pessoas não querem sair para votar ou votam de forma contrária àquilo que as ideias liberais trouxeram com a modernidade. E me parece que há um estado de atordoamento, de desconcerto radical, mesmo daqueles que se consideraram os legítimos representantes da democracia.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Enrique Saravia Doutor pela Universidade Paris 1 (Panthéon-Sorbonne), é pesquisador sênior do Centre for Global Cooperation da Universidade de Duisburg-Essen, na Alemanha, e professor de economia criativa e de política cultural na Universidad del Rosario (Bogotá), assim como de política pública na Universidad Andina Simón Bolívar (Quito). É professor colaborador do Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvolvimento da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), membro do Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP) e coordenador de projetos de consultoria na FGV Projetos, no Rio de Janeiro. É também membro do conselho editorial do International Journal of Arts Management (Montreal) e do Droit et Économie de la Régulation (Paris). Foi professor associado da Universidade Paris 1, professor visitante da Universidade do Texas (Austin, EUA) e professor conferencista da Escola Nacional de Administração da França.


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Enrique Saravia

Notas 1

Ibermedia é um programa de incentivo à coprodução de filmes de ficção e documentários realizados na nossa comunidade, integrada por 21 países: Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, Espanha, Guatemala, Itália, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, Peru, Porto Rico, Portugal, República Dominicana, Uruguai e Venezuela.

2

Ibermuseos é o principal programa de cooperação para os museus iberoamericanos. Tem o objetivo de promover o fortalecimento de mais de 9 mil instituições existentes na região. É dirigido por um conselho intergovernamental, que define suas ações, estratégias e prioridades. Esse conselho possui representantes de 12 países membros: Argentina, Brasil, Chile, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Equador, Espanha, México, Peru, Portugal e Uruguai. As ações e os projetos são executados por uma unidade técnica, que atualmente tem sede no Instituto Brasileiro de Museus (Ibram).

3

O Partido Popular (PP) é um partido político conservador da Espanha, fundado em 1989, a partir da fusão da Aliança Popular com os partidos Democrata Popular e Liberal Espanhol. É um dos dois partidos majoritários da Espanha, junto com o Partido Socialista Operário Espanhol. Faz parte do Partido Popular Europeu (PPE), da Internacional Democrata Centrista (IDC) e da União Internacional Democrata (IDU). Esteve à frente da presidência espanhola de 1996 a 2004.

4

A iniciativa é chamada de DPLA (Digital Public Library of America, sigla para Biblioteca Pública Digital dos Estados Unidos), lançada em abril de 2013 por Robert Darnton, que visava pôr em rede o acervo em domínio público de dezenas de bibliotecas acadêmicas. Criada como antítese do Google Books, financiado por recursos privados.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DA MEMÓRIA DO PROJETO

235. REFERÊNCIAS CONCEITUAIS E TEMÁTICAS

I. INFORMES INTERNACIONAIS A) Globais B) América Latina e Caribe II. TEORIA E ARTIGOS ACADÊMICOS A) Filosofia e política B) D iversidade cultural, identidade e convivências interculturais C) Territórios e globalização D) Direitos culturais e políticas públicas III. DADOS GLOBAIS, INDICADORES E OUTROS ÍNDICES A) Indicadores e outros índices B) Fontes de dados

249. REFERÊNCIAS METODOLÓGICAS


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

REFERÊNCIAS CONCEITUAIS E TEMÁTICAS I. Informes internacionais A) Globais CARROLL, A. State-sponsored homophobia 2016. A world survey of sexual orientation laws: criminalisation, protection and recognition. 11 ed. Genebra: Ilga (International Lesbian, Gay, Bisexual, Trans and Intersex Association), 2016. Disponível em: <http://ilga.org/downloads/02_ILGA_State_Sponsored_Homophobia_2016_ ENG_WEB_150516.pdf>. Acesso em: 30 set. 2019. HENNE, P. Trends in global restrictions on religion. Pew Research Center, 2016. Disponível em: <http://www.pewforum.org/2016/06/23/trends-in-globalrestrictions-on-religion/>. Acesso em: 30 set. 2019. IDMC – NRC. Global estimates 2012. People displaced by disasters. Internal Displacement Monitoring Centre – Norwegian Refugees Council, 2013. ILGA. The Ilga-Riwi 2016 global attitudes survey on LGBTI people in partnership with Logo. Genebra, 2016. Disponível em: <http://ilga.org/downloads/07_THE_ILGA_ RIWI_2016_GLOBAL_ATTITUDES_SURVEY_ON_LGBTI_PEOPLE.pdf>. Acesso em: 30 set. 2019. OMS. Informe mundial sobre la discapacidad, 2011. Disponível em: <http://www.who.int/ disabilities/world_report/2011/es/>. Acesso em: 30 set. 2019. ONU. International migration report. United Nations Department of Economic and Social Affairs/Population Division 1, 2013. Disponível em: <http://www.un.org/ en/development/desa/population/publications/pdf/migration/migrationwallchart2013.pdf>, <http://www.un.org/es/ga/68/meetings/migration/pdf/ press_el_sept%202013_spa.pdf> e <https://www.oecd.org/els/mig/SPANISH. pdf>. Acesso em: 30 set. 2019. ______. Prevención y eliminación del matrimonio infantil, precoz y forzado. Informe anual del Alto Comisionado de las Naciones Unidas para los Derechos Humanos, 2014. Disponível em: <http://www.acnur.org/fileadmin/scripts/doc. php?file=fileadmin/Documentos/BDL/2014/9585>. Acesso em: 30 set. 2019. ______. Transformar nuestro mundo: la Agenda 2030 para el Desarrollo Sostenible. Resolución A/RES/70/1, 21 out. 2015. Disponível em: <https://unctad.org/meetings/ es/SessionalDocuments/ares70d1_es.pdf>. Acesso em: 30 set. 2019. ONU Mujeres. Informe anual 2015-2016, 2016. Disponível em: <http://annualreport. unwomen.org/en/2016>. Acesso em: 30 set. 2019.

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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ORTIZ, I.; CUMMINS, M. Desigualdad global: la distribución del ingreso en 141 países. Nova York: Unicef, 2012. PNUD. Relatório do desenvolvimento humano 2004: liberdade cultural num mundo diversificado, 2004. PNUD; UNESCO. Informe sobre la economía creativa. Edicíon especial 2013: ampliar los cauces de desarollo local, 2013. Disponível em: <https://unesdoc.unesco.org/ ark:/48223/pf0000230576>. Acesso em: 30 set. 2019. ______. 3º Informe de economía creativa, 2013a. UNCTAD. 1º Informe sobre la economía creativa 2008 [resumen]. El desafío de evaluar la economía creativa: hacia la formulación de políticas públicas informadas, 2008. Disponível em: <http://unctad.org/es/docs/ditc20082ceroverview_sp.pdf>. Acesso em: 30 set. 2019. ______. Economía creativa. Informe 2010. Economía creativa: una opción factible de desarollo, 2010. Disponível em: <https://unctad.org/es/Docs/ditctab20103_ sp.pdf>. Acesso em: 30 set. 2019.

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______. Countries compared by lifestyle > Quality of life index. International Statistics at NationMaster.com, quality of life. Disponível em: <http://www.nationmaster. com/country-info/stats/Lifestyle/Quality-of-life-index>. Acesso em: 12 out. 2019. ______. Countries compared by people > Ethnicgroups. International Statistics at NationMaster.com, CIA WorldFactbooks, 18 dez. 2003 a 28 mar. 2011. Disponível em: <http://www.nationmaster.com/country-info/stats/People/Ethnic-groups>. Acesso em: 12 out. 2019. ______. Countries compared by people > Urbanization in 2015. International Statistics at NationMaster.com, UN (United Nations), 2002. World Urbanization Prospects: the 2001 Revision. Department of Economic and Social Affairs, Population Division. New York. ______. Countries compared by religion > Religious diversity score. International Statistics at NationMaster.com. Wikipedia: list of countries ranked by ethnic and cultural diversity level. Ethnic, Linguistic and Religious Fractionalization. Natalka Patsiurko, John L. Campbell, John A. Hall. Measuring cultural diversity: ethnic, linguistic and religious fractionalization in the OECD. Ethnic and Racial Studies , v. 35, n. 2, 2012, p. 195-217. ______. Countries compared by religion > Religions. International Statistics at NationMaster.com. CIA WorldFactbooks, 18 dez. 2003 a 28 mar. 2011. Disponível em: <http://www.nationmaster.com/country-info/stats/Religion/Religions>. Acesso em: 12 out. 2019. ______. Global Rankings. Vision of Humanity. Aggregates compiled by NationMaster. Disponível em: <http://www.nationmaster.com/country-info/stats/Military/ Global-Peace-Index>. Acesso em: 12 out. 2019. OECD. Anos potenciais de vida perdidos. Disponível em: <https://data.oecd.org/ healthstat/potential-years-of-life-lost.htm>. Acesso em: 12 out. 2019. OHCHR. Países com denúncias no Comitê de Eliminação de Discriminação (Cerd). Disponível em: <http://juris.ohchr.org/Search/Results>. Acesso em: 12 out. 2019. ______. Países que ratificaram diversos convênios internacionais contra todas as formas de discriminação: racial, gênero, migrantes e suas famílias, deficientes etc. Disponível em: <http://tbinternet.ohchr.org/_layouts/TreatyBodyExternal/Treaty. aspx>. Acesso em: 12 out. 2019. OIT. Ratificação do Convênio 169, sobre povos indígenas e tribais. Disponível em: <http://www.ilo.org/dyn/normlex/es/f?p=NORMLEXPUB:11310:0::NO::P11310_ INSTRUMENT_ID:312314>. Acesso em: 12 out. 2019.


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

THE WORLD BANK. Women, Business and the Law: Data 2010, 2012, 2014 and 2016. Disponível em: <http://wbl.worldbank.org/>. Acesso em: 12 out. 2019. UNICEF. Direitos das crianças. Disponível em: <http://data.unicef.org/topic/childprotection/child-marriage/>. Acesso em: 12 out. 2019. WHO. WHO Mortality DataBase. Disponível em: <http://apps.who.int/healthinfo/ statistics/mortality/whodpms/>. Acesso em: 12 out. 2019.

REFERÊNCIAS METODOLÓGICAS ARCHENTI, Nelida; MARRADI, Alberto; PIOVANI, Juan Ignacio. Manual de metodología de las ciencias sociales. Buenos Aires: Siglo XXI Editores, 2018. HAIR JR., Joseph F.; BLACK, William C.; BABIN, Barry J.; ANDERSON, Ralph E.; TATHAM, Ronald L. Análise multivariada de dados. 6. ed. Porto Alegre: Bookman, 2009. MINGOTI, S. A. Análises de dados através de métodos de estatística multivariada: uma abordagem aplicada. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2005. STIGLITZ, Joseph E.; SEN, Amartya; FITOUSSI, Jean-Paul. Mismeasuring our lives: why GDP doesn’t add up. The Report by the Commission on the Measurement of Economic Performance and Social Progress. New York; London: The New Press, 2010.

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COLEÇÃO OS LIVROS DO OBSERVATÓRIO

eCultura – A Utopia Final Teixeira Coelho

A Economia Artisticamente Criativa Xavier Greffe

A Singularidade Está Próxima Ray Kurzweil

O Lugar do Público Jacqueline Eidelman, Mélanie Roustan e Bernardette Goldstein

A Máquina Parou E. M. Forster

Identidade e Violência: a Ilusão do Destino Amartya Sen

Com o Cérebro na Mão Teixeira Coelho


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

As Metrópoles Regionais e a Cultura: o Caso Francês, 1945-2000 Françoise Taliano-des Garets

Cultura e Estado. A Política Cultural na França, 1955-2005 Teixeira Coelho

Afirmar os Direitos Culturais – Comentário à Declaração de Friburgo Patrice Meyer-Bisch e Mylène Bidault

Cultura e Educação Teixeira Coelho (org.)

Arte e Mercado Xavier Greffe

Saturação Michel Maffesoli

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O Medo ao Pequeno Número Arjun Appadurai

Leitores, Espectadores e Internautas Néstor García Canclini

A Cultura e Seu Contrário Teixeira Coelho

A República dos Bons Sentimentos Michel Maffesoli

A Cultura pela Cidade Teixeira Coelho (org.)

Cultura e Economia Paul Tolila


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

SÉRIE RUMOS PESQUISA Os Cardeais da Cultura Nacional: o Conselho Federal de Cultura na Ditadura Civil-Militar (1967-1975) Tatyana de Amaral Maia

Por uma Cultura Pública: Organizações Sociais, Oscips e a Gestão Pública Não Estatal na Área da Cultura Elizabeth Ponte

Discursos, Políticas e Ações: Processos de Industrialização do Campo Cinematográfico Brasileiro Lia Bahia

A Proteção Jurídica de Expressões Culturais de Povos Indígenas na Indústria Cultural Victor Lúcio Pimenta de Faria

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AS REVISTAS

Revista Observatório Itaú Cultural No 26 – Gestão de Pessoas em Organizações Culturais

Revista Observatório Itaú Cultural No 22 – Memórias, Resistências e Políticas Culturais na América Latina

Revista Observatório Itaú Cultural No 25 – Sertões: imaginários, memórias e políticas

Revista Observatório Itaú Cultural No 21 – Política, Transformações Econômicas e Identidades Culturais

Revista Observatório Itaú Cultural No 24 – Arte, Cultura e Educação na América Latina

Revista Observatório Itaú Cultural No 20 – Políticas Culturais para a Diversidade: Lacunas Inquietantes

Revista Observatório Itaú Cultural No 23 – Economia da Cultura: Estatísticas e Indicadores para o Desenvolvimento

Revista Observatório Itaú Cultural No 19 – Tecnologia e Cultura: uma Sociedade em Redes


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Revista Observatório Itaú Cultural No 18 – Perspectivas sobre Política e Gestão Cultural na América Latina

Revista Observatório Itaú Cultural No 15 – Cultura e Formação

Revista Observatório Itaú Cultural No 17 – Livro e Leitura: das Políticas Públicas ao Mercado Editorial

Revista Observatório Itaú Cultural No 14 – A Festa em Múltiplas Dimensões

Revista Observatório Itaú Cultural No 16 – Direito, Tecnologia e Sociedade: uma Conversa Indisciplinar

Revista Observatório Itaú Cultural No 13 – A Arte como Objeto de Políticas Públicas

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Revista Observatório Itaú Cultural No 12 – Os Públicos da Cultura: Desafios Contemporâneos

Revista Observatório Itaú Cultural No 9 – Novos Desafios da Cultura Digital

Revista Observatório Itaú Cultural No 11 – Direitos Culturais: um Novo Papel

Revista Observatório Itaú Cultural No 8 – Diversidade Cultural: Contextos e Sentidos

Revista Observatório Itaú Cultural No 10 – Cinema e Audiovisual em Perspectiva: Pensando Políticas Públicas e Mercado

Revista Observatório Itaú Cultural No 7 – Lei Rouanet. Contribuições para um Debate sobre o Incentivo Fiscal para a Cultura


CONVIVÊNCIA INTERCULTURAL

Revista Observatório Itaú Cultural No 6 – Os Profissionais da Cultura: Formação para o Setor Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural No 3 – Valores para uma Política Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural No 5 – Como a Cultura Pode Mudar a Cidade

Revista Observatório Itaú Cultural No 2 – Mapeamento de Pesquisas sobre o Setor Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural No 4 – Reflexões sobre Indicadores Culturais

Revista Observatório Itaú Cultural No 1 – Indicadores e Políticas Públicas para a Cultura

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Esta revista utiliza as fontes Sentinel e Gotham. As cores #4e008e e #daa900 foram as escolhidas para esta edição especial, lançada no mês de março do ano de 2020.



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