Observatório 33 - Metodologias de avaliação de projetos de arte, cultura e educação

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Revista

Metodologias de monitoramento e de avaliação de projetos de arte, cultura e educação

#33

Memória e Pesquisa / Itaú Cultural

Revista Observatório 33 : Metodologias de monitoramento e de avaliação de projetos de arte, cultura e educação   / organização Itaú Cultural. - São Paulo : Itaú Cultural ; 2022. il. ; PDF.

ISBN: 978-65-88878-57-6

1.Cultura. 2.Artes. 3.Educação. 4.Projetos. I. Instituto Itaú Cultural. III. Título.

CDD 780

Bibliotecária Geovanna de Barros Kustovich CRB-8/10630

ISSN 2447-7036

ISBN 978-65-88878-57-6

DOI: https://www.doi.org/10.53343/100521.33 contato: observatorio@itaucultural.org.br

Casa da cultura – Recife | Desenho de Wagner Montenegro

Expediente

Conselho editorial

Andréia Briene, Jader Rosa e Luciana Modé (Itaú Cultural)

Carla Chiamareli  (Itaú Educação e Trabalho)

Cláudia Varella Sintoni, Juliana de Sousa Yade e Patrícia Mota Guedes (Itaú Social)

Edição Luciana Modé

Preparação de texto Maria Clara Matos (terceirizada)

Design digital Guilherme Ferreira Yoshiharu Arakaki

Diagramação digital Iara Camargo (terceirizada)

Produção editorial Luciana Araripe

Captação WT1 (terceirizada)

Tradução Ateliê das Palavras (terceirizada)

Interpretação em Libras FFomin Acessibilidade e Libras (terceirizada)

Ensaio artístico Wagner Montenegro Revisão Equipe de Comunicação do Itaú Cultural

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Presidente do Conselho Curador Alfredo Setubal

Presidente da Fundação Eduardo Saron

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Coordenação editorial Carlos Couto

Curadoria de imagens André Seiti

Produção editorial Luciana Araripe

ITAÚ CULTURAL NÚCLEO OBSERVATÓRIO

Gerência Jader Rosa Coordenação Luciana Modé Produção Andréia Briene

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Gerência André Furtado

Coordenação Kety Fernandes Nassar

Produção audiovisual Amanda Lopes Júlia Sottili

Edição Algazarra Produção Cinematográfica (terceirizada)

Transcrição Paula Lousada (terceirizada)

Motion design João Zanetti (terceirizado)

O Itaú Cultural integra a Fundação Itaú para Educação e Cultura. Saiba mais em fundacaoitau.org.br

Zumbi | Desenho de Wagner Montenegro

Revista OBS 33 |

Metodologias de monitoramento e de avaliação de projetos de arte, cultura e educação

Nesta edição da Revista Observatório Itaú Cultural são abordadas algumas investigações e aplicações de modelos para a construção de indicadores de monitoramento e avaliação de projetos voltados para a educação, a cultura e as artes.

Com artigos de pesquisadores nacionais e entrevistas em vídeo com convidados de diferentes regiões do Brasil, a publicação também reflete sobre os principais desafios e as perspectivas futuras para um modelo cada vez mais integrado e com ampla atuação e participação da sociedade.

Sumário

Apresentação

Carta ao leitor

Avaliação de impacto de programas e projetos educacionais e culturais: considerações sobre o contexto de implementação e a tangibilidade de valores civilizatórios almejados, por Paulo de Martino Jannuzzi

A essencialidade do supérfluo: o papel das artes e dos esportes na busca por significado na educação, por Flavio Comim

O impacto da arte, do esporte e da cultura no desenvolvimento das funções executivas do cérebro, por Adele Diamond

Concepção e práticas de avaliação na Educação Integral: a participação como vetor da transformação social, por Fernando Mendes e Natacha Costa

Construção participativa de um referencial de avaliação do desenvolvimento integral, por Esmeralda Correa Macana, Jade Blanda Fonseca Saraiva, Luan Pires Paciencia e Rayssa Deps Bolelli

Relative values: apreendendo o valor da cultura, por Gustavo Möller, Karina Ruíz, Leandro Valiati, Natália Nunes Aguiar e Paul Heritage

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Por um Índice de Convivência Intercultural: a memória de um projeto em busca de uma agenda de políticas culturais para os desafios contemporâneos

Publicação on-line do Caderno Ensaios de fruição [e outras fricções]

Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth: relato de uma experiência qualitativa de pesquisa-ação de mediação e de criação artística, por Júlia Fontes e Maria Carolina Vasconcelos Oliveira

Como medir o preparo dos nossos jovens para o mundo do trabalho?, por Daniel D. Santos

Caminhos para unir o ensino técnico e a área cultural na formação de jovens, por Carla Christine Chiamareli

Desenvolvendo territórios urbanos vulneráveis: uma abordagem da teoria da mudança, por Fabiana Tock, José Geraldo Setter Filho, Lígia Vasconcellos e Sérgio Lazzarini

Sethico: um corpo negro num mundo branco, por Wagner Montenegro

Uma boa conversa entre Bel Santos Mayer e María Paulina Soto Labbé, conduzida por Juliana Yade

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Apresentação

Dados e evidências. Subjetividade e fruição. A edição 33 da Revista Observatório Itaú Cultural tem como centralidade propor uma reflexão profunda sobre esses termos. Quais são os pesos e as medidas quando o assunto é o impacto de iniciativas em cultura e educação na vida de cada um de nós?

A publicação tece uma trama conectada ao atual momento institucional, iniciado em 2020, no qual se entrelaçam mais fortemente os três segmentos que compõem a Fundação Itaú: o Itaú Social, o Itaú Cultural e o Itaú Educação e Trabalho. Ancorados em propósitos dialógicos, esses segmentos trabalham em prol do conhecimento, do desenvolvimento e da implementação de ações relacionadas ao ensino básico, à cultura e à educação profissional e tecnológica. Para tal, têm como ponto de partida monitoramentos e avaliações capazes de apontar caminhos de atuação e de embasar decisões.

Surge, assim, o necessário empenho em propor um olhar apurado não apenas para os indicadores que pautam as atividades desenvolvidas, mas também para o seu impacto na sociedade, em seus contextos e territórios. Os diferentes segmentos da Fundação Itaú estão expressivamente presentes na construção da revista. Além de apresentar experiências e estratégias de avaliação de impacto, esta edição propõe reflexões relevantes sobre metodologias diversas, como aquelas mais qualitativas e relacionadas a aspectos intangíveis.

Esses temas são relevantes para o Observatório Itaú Cultural, espaço de pesquisa, formação e reflexão sobre o setor cultural que se dedica a suprir lacunas de dados econômicos consistentes e atualizados que possam avaliar tendências e conjunturas.

O dimensionamento do valor da cultura é complexo e desafio semelhante se dá no campo da educação, que, embora mais abastado em dados, também carece de análises em perspectiva ampliada. Os temas da revista giram em torno da discussão sobre metodologias multidimensionais que possam evidenciar os impactos de atividades artísticas e culturais, assim como contribuir para a promoção do desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. Aborda-se também como análises educacionais mais conteudistas e tradicionais podem onerar uma visão mais abrangente dos resultados de aprendizagem.

Para além da produção de evidências, é importante destacar também a potencialidade que iniciativas em cultura e educação têm de contribuir efetivamente para que os públicos beneficiados tenham uma vida digna. Atenta a isso, a Fundação Itaú viabiliza e impulsiona ações de interesse da sociedade, além de desenvolver, fomentar e apoiar projetos e iniciativas educacionais, culturais e sociais.

Presidente da Fundação Itaú para Educação e Cultura

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Frame de Sethico | Foto de Breno César, montagem de Felipe Correia e lambe de Filipe Gondim

Carta ao leitor

Como avaliar o impacto das iniciativas ligadas à cultura e à educação em seus contextos, públicos e territórios? Quais são os desafios de mensuração das ações realizadas? Qual a relevância dos dados e das evidências e como a intangibilidade das atividades pode influenciar o processo avaliativo? Essas são algumas das perguntas que regem os textos que compõem a edição 33 da Revista Observatório Itaú Cultural.

Dedicada a investigar e conhecer estratégias de avaliação específicas e indicadores que captem o desejado impacto das intervenções em cultura e educação, a publicação apresenta artigos que se valem dessa temática. No primeiro deles, Paulo de Martino Jannuzzi faz uma ponderação importante, que tece conexão com os demais textos da revista. Ele enfatiza que a complexidade de se demonstrar o impacto produzido por programas e projetos, ou o desafio de sua avaliação, não torna as intervenções menos efetivas. “Nem tudo que é relevante e meritório é tangível e facilmente captado por indicadores no tempo e na intensidade que se espera avaliar”, escreve.

Tendo esse cenário como pano de fundo, as discussões presentes em outros artigos giram em torno da necessidade de se ampliarem o olhar e o portfólio de indicadores para uma análise mais assertiva de iniciativas em cultura e educação. A combinação de métodos quantitativos e qualitativos, assim como a criação de avaliações sistêmicas, integradas e participativas, é de extrema relevância para a construção de narrativas diversas e significativas que apoiem organizações, projetos e agentes criativos. São feitas, ainda, reflexões sobre experiências no campo do desenvolvimento integral de crianças e adolescentes, e sobre a geração de impacto das organizações da sociedade civil (OSC). A experiência de pesquisas combinadas com outras camadas de avaliação, que muitas vezes envolvem questões mais subjetivas, é outro assunto abordado.

Parte da revista, embora trace o mesmo caminho, se detém no tema do ensino e no quanto indicadores tradicionais muitas vezes não dão conta de aferir, por exemplo, quais as melhores competências a serem desenvolvidas para que os jovens estejam preparados para o mundo do trabalho. Coloca-se em pauta também a importância da área da cultura como uma frente de inserção produtiva dos jovens brasileiros.

Por meio de artigos, vídeos e entrevistas, a revista propõe uma leitura completa e diversificada sobre processos avaliativos nos universos da cultura e da educação. E, mais do que dar respostas, propõe reflexões e direcionamentos para a realização de investigações mais aprofundadas sobre o tema.

Equipe Observatório Itaú Cultural

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Frame de Sethico | Foto de Breno César e montagem de Felipe Correia

Avaliação de impacto de programas e projetos educacionais e culturais: considerações sobre o contexto de implementação e a tangibilidade de valores civilizatórios almejados

INTRODUÇÃO

Demonstrar que programas ou projetos produzem impacto pode ser bastante complexo em termos metodológicos, custoso em tempo e em recursos ou mesmo pouco factível em termos práticos, mas nem por isso tais empreendimentos deixam de ser meritórios. A problemática da realidade com que lidam, a intangibilidade dos efeitos da intervenção, a complexidade do contexto de operação, a brevidade da implementação e, em particular, as expectativas quanto ao programa ou projeto podem não favorecer a produção de evidências do que se propôs como impacto com a pretendida precisão estatística ou a desejada vinculação causal entre intervenção e efeito. E, ainda assim, o programa ou projeto pode ser relevante pela sua contribuição potencial para a melhoria de algum aspecto das condições de vida dos públicos afetados, para a disseminação de conhecimentos entre técnicos e gestores de intervenções, para uma maior capacidade de gestão e operação das atividades ou ainda para a ampliação de perspectivas de coesão social, respeito à diversidade sociocultural e étnica e sustentabilidade ambiental. Nem tudo que é relevante e meritório é tangível e facilmente captado por indicadores no tempo e na intensidade que se espera avaliar.

De fato, a comprovação de que o programa Bolsa Família impactava a estatura média de crianças de famílias beneficiárias levou dez anos para ser realizada, embora muitas evidências sobre o aumento do consumo de alimentos, a melhoria nutricional e a compra de gás, fogão e geladeira já tivessem sido apresentadas em pesquisas amostrais e em abordagens qualitativas.1 Os efeitos de projetos de qualificação da gestão escolar sobre o desempenho de adolescentes em avaliações de larga escala continuam difíceis de captar, mesmo depois de vários anos de investimentos e de criatividade dos desenhos avaliativos. E, contudo, esses projetos têm revelado efeitos importantes sobre a organização das escolas e a motivação dos professores. Em projetos culturais nos campos de arte-educação, música, dança e teatro, os resultados e os impactos parecem, em boa medida, não atender às expectativas de seus financiadores. Às vezes, podem ter efeitos econômicos mensuráveis, como projetos de economia criativa e de fomento ao artesanato, mas seriam esses os impactos realmente mais relevantes? Os efeitos do programa federal de proteção de espécies ameaçadas da fauna brasileira ainda está por

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ser demonstrado na forma de indicadores tangíveis, tarefa difícil em um contexto de subfinanciamento, de falta de fiscalização nos hábitats de espécies específicas e de tantas transgressões ambientais.

Esse programa da área ambiental, ou o Bolsa Família, deveria ter sido interrompido após quatro ou cinco anos de sua implantação por não ter apresentado o impacto idealizado? E quanto aos diversos projetos de formação de dirigentes escolares ou de oficinas culturais para adolescentes que teimam em não revelar seus efeitos por meio das notas de alunos ou dos índices de violência? Deveriam ser descontinuados, receber menos recursos até que demonstrem impactos ou, ao contrário, obter mais financiamento para contratar pessoal mais especializado, aperfeiçoar as atividades desenvolvidas e aprimorar o desenho e o arranjo operacional?

Em uma perspectiva responsável e ampla do papel da avaliação, esses programas e projetos deveriam ser mantidos, pois certamente cumprem o primeiro e mais fundamental dos critérios avaliativos: o da relevância. 2 São intervenções que foram criadas para atender a demandas públicas legítimas ou a problemas que se entendem como coletivos. Pode ser que ainda não cumpram adequadamente o que se espera em termos de eficácia, efetividade, eficiência e sustentabilidade dos efeitos, mas descontinuá-los ou retirar recursos só agravaria a situação para o qual foram idealizados. Tal como em tratamentos em saúde, enquanto não houver uma intervenção com desenho melhor e mais efetivo para atender à demanda ou à problemática considerada relevante, seria muito questionável a interrupção de programas ou projetos em operação.

Naturalmente, existem muitos programas e projetos nos campos social, da educação, da cultura e do meio ambiente que produzem impactos nos seus públicos-alvo e na sociedade em geral, como demonstram vários estudos avaliativos e meta-avaliativos publicados no Brasil e lá fora. Na própria edição 31 da Revista Observatório Itaú Cultural, lançada neste ano, há um artigo que faz uma ampla sistematização de projetos na área de artes e cultura que produziram impactos no bem-estar e na saúde mental de seus participantes, medidos por meio de indicadores sociais e econômicos ou evidenciados por depoimentos e indicações qualitativas.3 Textos como esse precisam certamente ganhar maior publicização na comunidade de práticas e de financiadores da área, pelas ideias de projetos inovadores que trazem nos campos social, da educação, das artes, da cultura e do meio ambiente. Esse material também contribui para a apresentação de desenhos operacionais mais exitosos, das dificuldades intrínsecas do contexto em que operam e também das estratégias avaliativas e dos indicadores que aportam.

O Brasil e seus estados, seus municípios e suas comunidades e organizações da sociedade civil são laboratórios de muitos experimentos e iniciativas meritórios que, ainda que não tenham sido formalmente avaliados, precisam ser mais bem conhecidos e documentados, pois podem ser escalonados ou transpostos para outras localidades. Bolsa-escola, projetos de formação de professores e de “mães crecheiras”, projetos de arte-educação com jovens e serviços de atendimento socioassistencial são algumas das várias experiências locais que vieram a ser escalonadas para o nível federal ao longo dos últimos 25 anos, mesmo com evidências tênues e parciais de seus êxitos. Conhecer essas iniciativas subnacio-

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Mas ainda persistem dificuldades de avaliação de programas e projetos sociais em educação e cultura pela inexistência de fontes de informação periódica, ampla e pública para se derivar indicadores

nais recentes, especialmente aquelas criadas para continuar atendendo demandas prejudicadas pelos cortes orçamentários, pelas descontinuidades de programas e pelo ocaso criativo na esfera federal, pode ser de grande valia em uma conjuntura política mais favorável nos próximos anos. Esse mergulho investigativo no país também pode contribuir para conhecer estratégias de avaliação específicas e até mesmo indicadores que captem o tão desejado impacto das intervenções, suprindo as lacunas às quais manuais mais gerais não conseguem atender ou atendem só parcialmente.

Mas ainda persistem dificuldades de avaliação de programas e projetos sociais em educação e cultura pela inexistência de fontes de informação periódica, ampla e pública para se derivar indicadores. Na atualização do livro Indicadores sociais no Brasil, 4 realizada há poucos anos, é possível perceber a ampliação dos levantamentos estatísticos nos campos da educação formal, do mercado de trabalho e da saúde pública e em alguns setores da política social no país. Também foram constatados avanços em outros campos nos quais as políticas públicas são mais incipientes, como em cultura e meio ambiente, mas a periodicidade dos levantamentos e os níveis de desagregação territorial não são suficientes para a escala em que operam muitos programas e projetos nessas áreas. A menos que se aporte mais recursos orçamentários e técnicos na produção estatística ou na avaliação de projetos sociais mais específicos, não há como dispor de evidências plurais e sistemáticas para o acompanhamento dos resultados e dos impactos gerados potencialmente por essas intervenções.

Enquanto essa expectativa concreta de produção e disponibilidade de informações regulares, granulares e sistemáticas em cultura, artes e meio ambiente vai lentamente se efetivando, talvez seja oportuno refletir sobre as expectativas idealizadas acerca do impacto de programas e projetos nessas áreas frente ao tempo requerido para a sua implementação e para as suas condições das intervenções. Seriam os efeitos econômicos em termos de empregos, de oportunidades e de renda os impactos mais importantes desses projetos? Ou seriam as suas contribuições potenciais e de mais longa maturação para a criatividade, para a ampliação de visões de mundo, para uma maior tolerância à diversidade sociocultural e para uma maior sensibilização acerca das desigualdades e da sustentabilidade ambiental? É factível esperar efeitos concretos nessas dimensões no curto prazo, em todos os contextos de operação dos programas, considerando a realidade socioeconômica desigual no país?

Procura-se refletir sobre as expectativas e a tangibilidade dos impactos de programas e projetos nos campos social, da educação e da cultura frente aos desafios de implementação pelo território brasileiro – tema da primeira seção do texto – e aos compromissos mais amplos que tais intervenções almejam em termos de valores éticos e civilizatórios – tema tratado em seção seguinte

Este texto procura trazer reflexões sobre essas questões em uma perspectiva ensaística. Não se oferecem aqui indicações de fontes de informação ou estratégias metodológicas para a produção de indicadores específicos de avaliação de

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projetos nessas áreas,5 mas sim alguns apontamentos que deveriam, na realidade, preceder o desenho das pesquisas, a busca de fontes e a construção de indicadores. Mais especificamente, procura-se refletir sobre as expectativas e a tangibilidade dos impactos de programas e projetos nos campos social, da educação e da cultura frente aos desafios de implementação pelo território brasileiro – tema da primeira seção do texto – e aos compromissos mais amplos que tais intervenções almejam em termos de valores éticos e civilizatórios – tema tratado em seção seguinte.

A IMPORTÂNCIA DO CONTEXTO DE IMPLEMENTAÇÃO PARA A MATURAÇÃO DOS RESULTADOS E DOS IMPACTOS

Em um país marcado por fortes contrastes socioeconômicos e diferenças de capacidade de gestão e implantação de programas e projetos pelo território, não se pode esperar que eles tenham o mesmo ritmo de implementação e de maturação dos seus resultados e impactos ao Norte ou ao Sul do país, nas capitais estaduais e nos municípios do interior, no centro das cidades e nas suas periferias. O grau de vulnerabilidade social dos públicos-alvo, o nível do dinamismo econômico do território em que vivem, a qualidade da infraestrutura de equipamentos e serviços e a capacidade geral de gestão dos agentes públicos, privados ou do terceiro setor envolvidos no arranjo operacional do programa ou do projeto configuram contextos diferentes, mais favoráveis ou não à implementação de suas atividades e às entregas de produtos e serviços. Assim, resultados e impactos podem não se concretizar com o mesmo ritmo e a mesma intensidade ao longo do tempo (Figura 1).

Tome-se como exemplo o público-alvo de programas educacionais, como profes-

Figura 1: Efeitos potenciais segundo o contexto socioeconômico de gestão de programas e projetos ao longo do tempo de implementação

Municípios de maior porte, dinâmicos e com boa capacidade de gestão

Municípios pobres com boa capacidade de gestão

Municípios médios, pouco dinâmicos, com baixa capacidade de gestão

Municípios pequenos, com públicos mais vulneráveis e com muita descontinuidade administrativa Efeitos medidos em avaliações realizadas

Fonte: elaboração própria.

sores, crianças e adolescentes de pequenas cidades do Semiárido nordestino ou da Amazônia e de cidades médias no interior paulista ou no Sul do país. Eles vivem em condições de vida e frequentam escolas com infraestrutura bem distintas, configurando contextos operacionais muito diferentes para programas ou projetos de aprimoramento da gestão escolar, de formação de professores ou de complementação de atividades no contraturno escolar. Essa realidade se reproduz em qual-

Tempo de implementação do programa ou do projeto realizadas

Programa de atenção à saúde infantil Programa de atenção

à saúde

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trabalhador
do

quer região e escala geográfica: escolas no centro da cidade têm, em geral, condições operacionais mais favoráveis que escolas de periferias em regiões mais afastadas ou violentas. A infraestrutura escolar, as possibilidades de fixação de professores com maior experiência, a duração da jornada do período noturno ou o número de dias efetivos com aula são distintos nesses contextos, interferindo no ritmo de maturação e na intensidade dos resultados e impactos de um mesmo programa.

Parecem óbvias essas constatações, mas não são entendidas desse modo por financiadores e avaliadores, distantes da realidade operacional dessas intervenções pelo país. Essa fração de financiadores e avaliadores “ingênuos” imagina que, ao selecionar municípios e públicos-alvo com os mesmos critérios de elegibilidade para um programa ou projeto no país, está se constituindo uma amostra relativamente homogênea de beneficiários ou usuários dos serviços e dos produtos entregues, cujos efeitos se materializam igualmente. Mas o Brasil não é uma Bélgica; é uma combinação de pequenas Bélgicas em um Oceano Índico, ou uma “Belíndia”, como analistas socioeconômicos experientes recorrentemente citam. Em cada contexto regional – semelhante mais à Bélgica ou à Índia –, as equipes dos programas e dos projetos enfrentam desafios diferentes na realização das atividades e nas entregas de serviços e produtos. Em algumas localidades, as intervenções podem ter sido implantadas de modo adequado mais rapidamente, sendo possível haver nelas resultados e impactos tangíveis a serem apurados. Em outros contextos mais desafiadores – e mais numerosos –, os programas e projetos podem nem sequer ter conseguido estruturar equipes, capacitá-las, iniciar as entregas ou, enfim, assegurar o tratamento planejado para o público-alvo. Nesse caso, não há efeito potencial a ser medido. Ou, se medido, é bem provável que não seja identificado nenhum resultado ou impacto da intervenção. Assim, uma avaliação apressada e não customizada para os diferentes contextos operacionais de um programa ou projeto pode trazer achados inconsistentes ou equivocados, reproduzindo uma situação muito semelhante (e indesejável) àquela que programas sociais enfrentaram nos Estados Unidos nos anos 1960, submetidos ao crivo precoce (e deslegitimador) de avaliações quasi-experimentais, que na época viviam o seu apogeu.6

Avaliações precoces podem colocar a perder a legitimidade de um programa ou projeto meritório que ainda não teve tempo de se estruturar. Avaliações tardias podem comprometer recursos e esforços que poderiam ser utilizados de forma mais eficiente e eficaz em outras iniciativas

Identificar o momento adequado para avaliações dessa natureza é um misto de técnica, política e arte. Avaliações precoces podem colocar a perder a legitimidade de um programa ou projeto meritório que ainda não teve tempo de se estruturar. Avaliações tardias podem comprometer recursos e esforços que poderiam ser utilizados de forma mais eficiente e eficaz em outras iniciativas. É certamente preciso considerar, além da vulnerabilidade do público-alvo, o contexto socioeconômico, a capacidade de gestão operacional, a complexidade setorial da intervenção e suas implicações em termos de tempo de implementação requerido. Programas de áreas setoriais diferentes, iniciados ao mesmo tempo e que contam com as melhores condições de equipes técnicas e de recursos podem apresentar resultados distintos – positivos, neutros ou negativos – quando submetidos à avaliação no mesmo momento.

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Efeitos medidos em avaliações realizadas

Mesmo com bons diagnósticos ex ante e com desenhos adequados, programas e projetos sociais em educação e cultura enfrentam dificuldades de implementação de várias naturezas, produzindo efeitos com uma trajetória mais lenta e menos linear e ascendente que, por exemplo, ações no campo da saúde infantil

Municípios de maior porte, dinâmicos e com boa capacidade de gestão

Municípios pobres com boa capacidade de gestão

Mas a fração “ingênua” da comunidade de financiadores e avaliadores parece esperar que programas e projetos de qualquer natureza setorial devam funcionar como se fossem intervenções em saúde com vacinas, medicamentos ou tratamentos intensivos sobre as problemáticas em que atuam. Com o tratamento adequado e o antígeno correto inoculado em professores, arte-educadores, crianças e adolescentes rapidamente se teria o efeito de mitigação dos sintomas ou de supressão da causa motivadora da disfunção enfrentada. Para identificar a tecnologia médica mais efetiva, o desenho avaliativo mais apropriado seria o delineamento experimental ou, com alguma concessão, o quasi-experimental. No entanto, no campo social, na educação e na cultura, não existe essa vacina ou esse tratamento de efeito instantâneo, e que funcione com a mesma eficácia em qualquer contexto. Não se desenvolveu ainda o capacete de transmissão de competências e habilidades imaginado nos livros de ficção científica de Isaac Asimov ou Aldous Huxley.

Municípios médios, pouco dinâmicos, com baixa capacidade de gestão

Municípios pequenos, com públicos mais vulneráveis e com muita descontinuidade administrativa

Tempo de implementação do programa ou do projeto

Na realidade concreta, mesmo com bons diagnósticos ex ante e com desenhos adequados, programas e projetos sociais em educação e cultura enfrentam dificuldades de implementação de várias naturezas, produzindo efeitos com uma trajetória mais lenta e menos linear e ascendente que, por exemplo, ações no campo da saúde infantil (Figura 2). Programas voltados ao combate da mortalidade infantil, envolvendo ações de ampliação da atenção primária de saúde a gestantes e a crianças recém-nascidas, suplementação alimentar, campanhas de vacinação e investimentos em saneamento básico, tendem a produzir resultados rápidos e sistematicamente positivos. Há muita tecnologia médica e sinergia com intervenções nos contextos de moradia, alimentação e orientação em saúde. Programas voltados à saúde do trabalhador, por sua vez, podem ter avanços menos regularmente positivos, pois envolvem ações menos padronizadas, com efeitos mais dispersos

Figura 2: Efeitos potenciais segundo a natureza setorial de programas e projetos ao longo do tempo de implementação

Efeitos medidos em avaliações realizadas

Tempo de implementação do programa ou do projeto

Fonte: elaboração própria.

Programa de atenção à saúde infantil

Programa de atenção à saúde do trabalhador

Programa de melhora do desempenho educacional de crianças de 6 a 9 anos

Programa de melhora do desempenho educacional de crianças de 6 a 9 anos de baixa renda

Programa de qualificação profissional para trabalhadores de baixa qualificação

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no tempo, e dependem de mudanças de atitudes efetivas do cidadão atendido, como parar de fumar, aderir à prática esportiva, mudar seus hábitos alimentares etc. Enquanto o “pacote de ações” da saúde infantil é bem conhecido e testado (pelas experiências nacionais e internacionais), pouco diversificado pelo território e mais controlável pelo gestor, o da saúde do trabalhador precisa de maior adequação ao contexto de problemas vivenciados pelo público-alvo (trabalhador portuário, da construção civil, de escritório etc.) e da sua disposição/sensibilidade para aderir a novos protocolos comportamentais.

Na educação e na cultura, em geral, os efeitos demoram mais a aparecer, como ocorre em programas estruturados como serviços, menos apoiados por produtos padronizados e por transferências. Programas no campo educacional ou da qualificação profissional produzem resultados mais demorados e ambíguos ao longo da implementação. Serviços educacionais demandam profissionais formados com um conjunto de competências técnicas específicas e com habilidades socioemocionais (empatia, paciência, didática, comunicabilidade etc.) ainda não plenamente desenvolvidas no contexto brasileiro. Mérito, competição e punição ainda marcam o contexto escolar mais do que o reconhecimento do esforço, a cooperação e o estímulo, seja no Brasil ou nos Estados Unidos.7

Na educação e na cultura, em geral, os efeitos demoram mais a aparecer, como ocorre em programas estruturados como serviços, menos apoiados por produtos padronizados e por transferências

Nesse sentido, por melhor que seja o material didático disponível ou a formação técnica do professor, os efeitos dos serviços educacionais dependem de atributos pessoais do formador e do engajamento do aluno no processo. Ademais, o desempenho escolar é fortemente determinado pelo contexto socioeconômico do aluno (condições materiais de vida, estímulo familiar etc.), além de outras condições objetivas da oferta (tamanho da turma, jornada escolar etc.). 8 Se os efeitos de programas educacionais custam a aparecer em crianças e adolescentes, isso é ainda mais lento em relação aos estudantes de baixa renda e aos adultos, de modo geral. Na cultura, qualquer que seja o público, os efeitos mais tangíveis parecem demorar ainda mais a aparecer.

Como se procurou mostrar nesta seção, avaliar impactos de programas sociais, de educação e de cultura requer medi-los no momento adequado e nos diferentes contextos socioeconômicos e de capacidade de gestão em que operam. A falta de impacto ou a constatação de impactos negativos pode decorrer, como sói acontecer de forma mais frequente do que se imaginaria, de um lado, de uma avaliação precipitada, realizada quando a intervenção ainda se encontra diante de desafios típicos da implementação de suas atividades em um ambiente complexo. De outro, essa constatação pode decorrer de um desenho avaliativo mal especificado, que se vale de um método padronizado muito pouco adequado ao contexto de intervenção e que desconsidera a necessidade da coleta de informações nos diferentes contextos de operação do programa ou projeto. A avaliação com métodos rígidos e com amostras não representativas do mosaico de situações enfrentadas pelos programas e projetos informa pouco ou mal em um país tão desigual como o Brasil.

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A constatação de que um programa ou projeto não gera impacto ou efeito na intensidade imaginada pode decorrer, ainda, das expectativas por vezes desproporcionais frente à natureza e à dimensão do programa ou projeto ou à tangibilidade de sua mensuração. É o que se discute a seguir.

O ESCOPO E A TANGIBILIDADE DOS IMPACTOS DE PROGRAMAS E PROJETOS

Na terminologia da avaliação, os impactos de um programa ou projeto não devem ser confundidos com os resultados esperados da intervenção nem com os efeitos identificados em um tipo particular de metodologia de pesquisa, como a avaliação experimental, como quer a comunidade de randomistas 9 Impactos não são produtos nem resultados, mas os efeitos que decorrem deles e que são, em alguma medida, atribuíveis à intervenção.

Pareceria desnecessária essa assertiva não fosse o fato de que, em situações concretas de avaliação, não é trivial o desdobramento de objetivos da intervenção nos seus efeitos mais controlados e imediatos para o público-alvo (os produtos e serviços), nos efeitos tangíveis e de médio prazo decorrentes do usufruto dessas entregas para o público-alvo (os resultados), e nos efeitos mais diversos e dispersos no tempo para esse público e para a sociedade (os impactos).10 Garantir a qualidade e a cobertura de produtos e serviços é certamente difícil e complexo, mas está mais suscetível ao controle por parte da equipe técnica de programas e projetos do que os resultados e os impactos. Ou melhor, esses dependem de outras condições não controláveis, inclusive referentes à disposição dos indivíduos do público-alvo atendido para mudar seus comportamentos e suas atitudes, como ocorre em programas na educação e na cultura.

Ter clareza sobre os objetivos de curto, médio e longo prazo dos programas e projetos, da tangibilidade dos efeitos, e do tempo e do modo como repercutem na população-alvo e na sociedade é um dos desafios da avaliação. A experiência de desenho e de análise de avaliações em diferentes organizações públicas tem demonstrado que os objetivos de políticas, de programas e de projetos são entendidos de forma bastante diversa entre as equipes envolvidas. Os objetivos e os motivos declarados nas normas fundantes das intervenções públicas são, em geral, mais abrangentes e ambíguos do que se esperaria em contextos técnicos de planejamento e avaliação, pela necessidade de legitimação política pela qual devem passar as políticas e seus programas. Assim, nem sempre são tão claras para gestores e operadores do programa, e até mesmo para as equipes avaliadoras, as diferenças entre as entregas e os resultados, e, sobretudo, entre os resultados a garantir e os impactos possíveis – no que o exercício coletivo de elaboração da lógica operacional da intervenção por meio do “Mapa de processos e resultados” (“MaPR”) pode ajudar. A criação do “MaPR” do programa obriga a explicitação dos recursos e das atividades-chave para a entrega dos produtos aos públicos-alvo, que, por sua vez, levam a resultados e impactos. Nesse processo, para garantir coerência na lógica operacional, consegue-se discutir e decidir como os objetivos se desdobram nos efeitos imediatos de curto e de longo prazo (Figura 3).

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Programas e projetos nos campos da educação, da cultura e das artes, e do meio ambiente propostos e operados por organizações da sociedade civil também padecem de “objetivite”, mas com uma gravidade menor, em razão da escala de público atendido e dos recursos envolvidos. No entanto, mesmo nesse contexto, as justificativas da relevância dos programas e as exposições de seus motivos e objetivos tendem a ser mais genéricas e ambíguas do que a boa técnica de desenho de projetos recomendaria. Embora os manuais de formulação de programas recomendem que suas finalidades sejam bastante precisas e claras, não é o que necessariamente acontece nos escritórios de planejamento. Afinal, programas precisam ser apreciados por outros decisores e financiadores, pela mídia e por outros atores direta ou indiretamente afetados pela intervenção proposta. No caso do setor público, para além de refletir a natureza democrática e participativa prevista constitucionalmente no processo de formulação de políticas e programas, a “imprecisão relativa” e invariavelmente abrangente dos seus objetivos permite que gestores e operadores façam as necessárias adaptações da intervenção quando de sua implementação no contexto local e/ou dos públicos atendidos. Objetivos mais abrangentes permitem que ações não antevistas na formulação dos programas – e que sejam entendidas como fundamentais para a sua implementação em determinados contextos – possam ser “encaixadas” na rubrica orçamentária.

Em um país tão diverso como o Brasil, nem sempre é possível ou mesmo factível antecipar os problemas a serem enfrentados na implantação de programas públicos, privados ou do terceiro setor, como requerem as técnicas estruturadas de elaboração e acompanhamento de projetos. Intervenções nos campos social, da educação e da cultura não são projetos de engenharia ou de infraestrutura, com objetivos mais específicos, sujeitos a menor influência do contexto externo e com maior capacidade de comando e controle. Alguma maleabilidade nos objetivos e nos arranjos operacionais precisa ser aceita como parte do processo de formulação de políticas e programas, sem o que não se pode garantir sucesso nos trâmites de apreciação nas diversas instâncias de poder, de financiamento e de adesão ou contratação de agentes envolvidos na implementação.

Certa ambiguidade e pluralidade dos objetivos é, pois, necessidade e condição para a implementação de bons programas e projetos, e precisa ser recuperada de modo mais objetivo e estruturado quando da avaliação. Se a tangibilidade da mensuração é um atributo imperativo quanto aos produtos e necessário quanto aos

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Construção do “MaPR” “MaPR” de um programa Figura 3: Desdobramento dos objetivos de um programa em produtos, resultados e impactos Objetivo
* * * *
Público-alvo Recursos Atividades Produtos Pressuposto Pressuposto Contexto Resultados Impactos Programa Fonte: Fundação João Pinheiro, 2022.

resultados, é também uma característica desejável quanto aos impactos. Desejável mas nem sempre factível, pela natureza abstrata, complexa ou fugidia de algumas dimensões potencialmente impactadas por programas sociais na educação, na cultura ou no meio ambiente. Essa é uma situação bastante recorrente em programas e projetos que têm a expectativa de contribuir para uma sociedade mais coesa, justa, tolerante e sustentável. É, por vezes, inescapável assumir tais compromissos civilizatórios como os impactos de diversas organizações da sociedade civil frente à missão institucional que se impõem. Programas e projetos acabam inevitavelmente se propondo ambiciosos em suas perspectivas de transformação da realidade social e de impacto se suas equipes compartilham da premissa republicana de que todos temos uma responsabilidade moral para com a coletividade e os demais, independentemente de precondições de nascimento, de características e de potenciais, como advoga Amartya Sen.11

Tais compromissos republicanos são ainda mais relevantes no Brasil pelo seu quadro de desigualdades e iniquidades sociais e pelo pacto político-social firmado na “Constituição federal de 1988”. O país é um dos vários casos em que a “Constituição” e outras normativas explicitam os direitos fundamentais inspirados na “Declaração universal dos direitos humanos” e em tratados internacionais. Os primeiros artigos da “Carta de 1988”, referentes aos princípios fundamentais (“Título I”) e aos direitos e garantias fundamentais (“Título II”), deixam claro o compromisso do Estado brasileiro – e da sociedade – com a promoção da cidadania e da dignidade humana (artigo 1º), assim como com a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, sem pobreza e menos desigual, sem preconceitos de qualquer natureza, e destinada a promover o bem de todos (artigo 3º). Compromissos com a prevalência dos direitos humanos, da cooperação, da moderação e da solução pacífica nas relações internacionais certamente também se aplicam no contexto interno (artigo 4º). Sem estender muito as referências, vale ainda registrar os direitos políticos, sociais, do trabalho, à saúde integral e à educação básica, assegurados nos artigos 5º, 6º, 7º, 196º e 205º.

Ao constitucionalizar os direitos políticos e sociais sem quaisquer ressalvas restritivas, a sociedade brasileira procurava seguir a trilha civilizatória dos países centrais europeus no século XX, que consistia em atender às aspirações e demandas coletivas sem condicionar o acesso aos direitos à disponibilidade de recursos ou ao “tamanho da economia”. Em boa parte dos países europeus, marcados pelas agruras de duas guerras mundiais devastadoras – em que os pobres morreram nas batalhas, a classe média perdeu seus empregos e as elites perderam suas propriedades –, o contrato político-social estabelecido prevaleceu sobre as restrições e os condicionantes econômicos, alargando-os para garantir o financiamento de políticas públicas mais abrangentes, o que, em seguida, levou à dinamização da própria economia pelos efeitos do investimento em construções de equipamentos públicos e da contratação de profissionais para a operação dos serviços.12

A discussão sobre valores públicos ainda está pouco presente nas comunidades epistêmicas e de práticas no país, o que explica parte da dificuldade de se dispor de indicadores sobre impactos referentes a compromissos civilizatórios. A “Agenda 2030” pode ajudar nesse sentido, pela proposta ampla de indicadores de monitoramento e de avaliação que traz. Os organismos estatísticos nacionais

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estão investindo na coleta e na disponibilização desses indicadores, ainda que esse processo seja mais lento do que se desejaria. E, para além de ser uma referência metodológica para a proposição e a construção de indicadores para programas e projetos, a “Agenda 2030” é uma referência política para a proposição de dimensões de impactos. Afinal, o documento retoma os valores universais contidos na “Declaração universal dos direitos humanos” em bases mais pragmáticas e operacionais, propondo o princípio de indissolubilidade entre crescimento econômico, desenvolvimento social e proteção ambiental. 13 A boa política pública no século XXI é aquela que é desenhada para maximizar simultaneamente bons resultados nessa tríade. A “Agenda 2030” resgata o compromisso civilizatório mais amplo ao advogar por um modelo de desenvolvimento, de políticas públicas e de iniciativas do setor privado e do terceiro setor que promova a dignidade das pessoas nas múltiplas dimensões sociais; a prosperidade econômica sem a debilitação do planeta; e a busca gradativa da paz interna e entre países, construída por meio de parcerias entre sociedade, Estado e instituições públicas não governamentais e privadas.

Para além de ser uma referência metodológica para a proposição e a construção de indicadores para programas e projetos, a “Agenda 2030” é uma referência política para a proposição de dimensões de impactos. Afinal, o documento retoma os valores universais contidos na “Declaração universal dos direitos humanos” em bases mais pragmáticas e operacionais, propondo o princípio de indissolubilidade entre crescimento econômico, desenvolvimento social e proteção ambiental

Qualquer que seja a sua escala de atuação, programas e projetos sociais nos campos da educação e da cultura têm, pois, muito a contribuir para essas cinco dimensões se continuarem ousando se comprometer com objetivos de impacto mais abrangentes. Seria uma pena s, pelas dificuldades técnicas de mensuração, estabelecessem compromissos mais modestos e mais tangíveis, sobretudo nestes tempos de aparente perda de adesão societária aos princípios de solidariedade, equidade, respeito à diversidade e sustentabilidade ambiental. Em muitas situações, sempre será difícil tornar tangíveis os impactos por meio de indicadores. Em alguns casos, os impactos potenciais terão que ser demonstrados mais pelos propósitos do programa, pelo seu desenho e pelas suas atividades do que propriamente pela disponibilidade de indicadores ou metodologias que mostrem alguma associação significativa atribuível entre o programa e seus efeitos.14 Nesse caso, a atribuição relacional pode ser defendida por uma robusta argumentação persuasiva, com apoio referenciado de outras pesquisas, meta-avaliação e evidências indiretas, como acontece em maior ou menor grau em toda narrativa científica nas ciências sociais sob a perspectiva latouriana.15

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Muitos programas e projetos sociais, de educação, de cultura e de meio ambiente parecem viver em constante crise de financiamento, de viabilidade e de identidade, nessa ordem. Visões curto-prazistas e ingênuas acerca dos impactos dessas intervenções podem estar inviabilizando iniciativas inovadoras que não tiveram tempo e condições contextuais de revelar seu mérito, ou levando-as a ajustar seus propósitos e desenhos de modo a torná-los mais rastreáveis por indicadores que revelem a atribuição causal entre atividades e efeitos. Mas as tentativas de verificação de atribuição causal por meio de desenhos experimentais e quasi-expe-

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rimentais podem ser bastante frustrantes, pois as mediações entre as atividades dos programas e seus efeitos mais abstratos podem ser minadas por uma série de variáveis contextuais de difícil mensuração e controle.16

A tangibilidade dos impactos não se adquire impunemente: é necessário reduzir a escala de cobertura da intervenção, escolher públicos-alvo em contextos mais favoráveis, abrir mão de atividades que requerem mais tempo de maturação e abolir compromissos civilizatórios mais abrangentes. Podem se tornar programas e projetos mais exitosos à luz dos tribunais econométricos em que se transformou a avaliação de impacto, mas talvez menos relevantes e fundamentais para a transformação social de que o Brasil necessita.

Pelas considerações feitas neste texto, talvez se deva começar a desconfiar que o problema de “falta de impacto” não está no programa, no seu desenho, nos produtos e serviços prestados ou na inexistência de indicadores que demonstrem cabalmente seus efeitos. Talvez se deva dividir a responsabilidade pela “falta de impacto” entre a avaliação e a precipitação com que é conduzida; a inadequação da metodologia aplicada; a desconsideração dos diversos contextos de operação no plano amostral proposto; e, por fim e não menos importante, entre as expectativas desmedidas de que o programa venha a transformar rápida e substantivamente a realidade dos públicos atendidos frente ao volume de recursos disponibilizados.

COMO CITAR

JANNUZZI, Paulo M. Avaliação de impacto de programas e projetos educacionais e culturais: considerações sobre o contexto de implementação e a tangibilidade de valores civilizatórios almejados. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. DOI: https://www. doi.org/10.53343/100521.33-1.

PAULO DE MARTINO

JANNUZZI

é professor da Escola Nacional de Ciências Estatísticas do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (Ence/IBGE) e da Escola Nacional de Administração Pública (Enap/ DF). Pesquisador PQ do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com o projeto “Informação estatística e políticas públicas no Brasil: uma análise comparativa internacional”, foi também secretário de Avaliação e Gestão da Informação do Ministério

do Desenvolvimento Social e Combate à Fome entre 2011 e 2016.

NOTAS

1. Ver: JAIME, P. et al. Desnutrição em crianças de até 5 anos beneficiárias do programa Bolsa Família: análise transversal e painel longitudinal de 2008 a 2012. Cadernos de Estudos –Desenvolvimento Social em Debate, Brasília, v. 17, p. 49-61, 2014.

2. Ver: JANNUZZI, P. Avaliação de programas públicos no Brasil: considerações sobre complexidade, valores públicos e critérios avaliativos. Anais do XLV Encontro da Anpad, Curitiba, 2021. Uma apresentação resumida dos critérios pode ser consultada em: https:// pp.nexojornal.com.br/ponto-devista/2020/Relev%C3%A2nciae-sustentabilidadedimens%C3%B5es-esquecidas-

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na-avalia%C3%A7%C3%A3o-deprogramas-sociais. Acesso em: 21 ago. 2022.

3. Ver: FONSECA, Ana Carla. Benefícios sociais e econômicos das artes e da cultura na promoção da saúde e do bemestar. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 31, 2022.

4. Ver: JANNUZZI, P. M. Indicadores sociais no Brasil: conceitos, fontes de dados e aplicações. 6. ed. Campinas: Alínea, 2017.

5. Para isso, entre diversos outros textos e manuais, ver: JANNUZZI (2016, 2017); GHEZZI e SANTOS (2017a, 2017b); e BRASIL (2018, 2020).

6. Ver: PATTON, M. Q. Utilizationfocused evaluation: the next century text. Thousand Oaks (Califórnia): Sage Publications, 1997; e LEÃO, L. S.; EYAL, G. Em busca do padrão-ouro? O percurso histórico do uso de experimentos na avaliação de políticas sociais. In: MELLO, J. et al. (org.). Políticas públicas e uso de evidências no Brasil: conceitos, métodos, contextos e práticas. Brasília: Ipea, 2022, p. 285-310.

7. Ver: SANDEL, M. J. A tirania do mérito. O que aconteceu com o bem comum? Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021.

8. INEP Sistema de avaliação da educação básica. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2018.

9. Ver: RAVALLION, M. Should the randomistas rule? Berkeley Electronic Press, v. 6, p. 1-5, fev. 2009.

10. Ver: ARCOVERDE, A. C. B.; ALBUQUERQUE, C. M. P. Avaliação de impactos: da teoria à práxis. Recife: Editora Ufpe, 2016.

11. Ver: SEN, A. Sobre ética e economia. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.

12. Ver: KERSTENETZKY, C. L. O estado do bem-estar social na idade da razão. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012.

13. Ver: JANNUZZI, P. M.; CARLO, S. Da agenda de desenvolvimento do milênio ao desenvolvimento sustentável. Bahia Análise e Dados, Salvador, v. 28, n. 2, p. 6-27, 2018.

14. Ver: GUSSI, A. Outras epistemologias e metodologias: a experiência do mestrado de avaliação de políticas públicas. Revista Aval, Fortaleza, v. 2, n. 16, p. 168-183, 2019.

15. Para uma introdução à perspectiva de Bruno Latour sobre a produção do conhecimento científico na contemporaneidade, ver: KROPF, S. P.; FERREIRA, L. O. A prática da ciência: uma etnografia no laboratório. História Ciências Saúde – Manguinhos, v. 4, n. 3, p. 589-597, 1998.

16. Ver: JANNUZZI, P. M. Mitos do desenho quasi-experimental na avaliação de programas. NAU Social, v. 9, n. 16, p. 76-90, 2018.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Estudos de si_autorretrato | Desenho de Wagner Montenegro

A essencialidade do supérfluo: o papel das artes e dos esportes na busca por significado na educação

INTRODUÇÃO

Há três anos concluímos o estudo “Artes e esportes: relação com desenvolvimento humano integral”, solicitado pela área de Pesquisa e Desenvolvimento do Itaú Social. Naquele momento, varremos a literatura internacional dos últimos dez anos que discutia a relação entre artes e esportes no desenvolvimento humano integral das crianças. Chegamos a resultados não muito animadores. Mostramos a baixa valorização dessas áreas nos currículos escolares nos ensinos primário e secundário, não somente no Brasil, mas em todo o mundo, contrastando com uma rica e variada gama de evidências que destacava sua importância para o desenvolvimento das crianças. Caracterizamos como o debate educacional, influenciado pela heurística de economistas, levou a educação a ser pensada como uma função de produção – entram insumos educativos e saem notas de alunos –, estimulando uma hierarquização curricular que a empobreceu. É claro que a pandemia deteriorou esse cenário de maneira expressiva e que os avanços logrados em termos de monitoramento e de avaliação se dissiparam perante a grande divisão dos alunos entre os que puderam ter aula vis-à-vis e os que ficaram fora do mundo da escola durante esse período.

Dado esse contexto, o objetivo deste artigo é resgatar alguns temas levantados pela pesquisa citada, aprofundando uma reflexão sobre o impacto que a educação tem na vida das crianças. Além disso, serão oferecidas sugestões concretas para algumas políticas de educação no Brasil pós-pandêmico. De fato, uma característica singular das literaturas sobre as artes e os esportes na educação é sua natureza visível, particular e objetiva. Esse não é um ponto menor. O debate sobre a educação é constituído, muitas vezes, de grandes análises baseadas em “grandes ideias” que fornecem pouca ou nenhuma concretude para o que se faz dentro da sala de aula. Empregam-se categorias analíticas muito abstratas, desperdiçando a riqueza de experiências pedagógicas concretas que constituem o dia a dia da prática didática.

O debate sobre a educação é constituído, muitas vezes, de grandes análises baseadas em “grandes ideias” que fornecem pouca ou nenhuma concretude para o que se faz dentro da sala de aula. Empregam-se categorias analíticas muito abstratas, desperdiçando a riqueza de experiências pedagógicas concretas que constituem o dia a dia da prática didática

A verdade, sem meias palavras, é que a Educação Básica brasileira é hoje parte de um modelo social com instituições extrativas, como diriam Acemoglu e Robinson (2012), reprodutor de desigualdades, na linha do que examinou Piketty (2020). Basta considerarmos as estatísticas do Sistema de Avaliação da Educação Básica (Saeb) sobre o percentual de estudantes com aprendizagem adequada em portu-

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guês e matemática (que se situam entre 41,4% e 24,4%, respectivamente, para o 9º ano do Ensino Fundamental) para ver que nem mesmo esse modelo produtivista da educação tem funcionado no Brasil. Estatísticas similares às produzidas e analisadas pelo Programa Internacional de Avaliação de Estudantes (Pisa) (OECD, 2021) ou pelo Todos pela Educação (2022) reforçam a gravidade desse quadro. O fosso entre os mais ricos e os mais pobres se materializa no hiato da evasão e do abandono escolar no Brasil pós-pandêmico.

Muito pode ser feito para reverter esse quadro, mas este artigo concentra-se no papel das artes e dos esportes não só na melhoria da educação, mas na busca de um modelo educativo que tenha mais significado para as próprias crianças e jovens. A procura de sentido, como um elemento fundamental da razão prática dos seres humanos, é premissa básica de uma visão educacional libertadora, segundo autores como Martha Nussbaum ou Adela Cortina. Com esse objetivo, o artigo está dividido em três partes. Na primeira, retomamos a discussão do estudo original sobre o papel das artes no desenvolvimento humano integral. Na segunda, procedemos a uma discussão similar quanto ao esporte. Contudo, não nos limitamos a uma mera repetição daqueles resultados, mas tentamos fazer uma aproximação mais analítica entre eles e a proposta central aqui, de evidenciar o potencial transformador dessas áreas para o desenvolvimento humano integral. Por fim, na terceira parte, exploramos soluções concretas para algumas políticas de educação neste Brasil pós-pandêmico.

AS ARTES NO ADMIRÁVEL MUNDO NOVO

As artes, mais do que as práticas ou as formas de conhecimento, são expressões de julgamentos éticos essenciais ao desenvolvimento das capacidades humanas (NUSSBAUM, 1990). Fazem parte do aparato individual de apreensão de fatos particulares moralmente relevantes. No mundo estético das escolas, os alunos podem fazer a apreciação das roupas de professores e colegas, das suas atitudes ou dos seus estilos de fala. Alguns autores, como Dissanayake (1992, 2000), chegam a defender que as artes foram centrais para o desenvolvimento e a sobrevivência da espécie humana. Isso porque as saliências estéticas das pessoas são um reflexo transformador das saliências éticas e de como sua razão prática e seu julgamento moral evoluem. Assim, as artes não tratam apenas das distintas capacidades de expressão plural das intersubjetividades e das idiossincrasias individuais e culturais, mas também das capacidades de agência, autonomia e conquista ética de indivíduos e de sociedades inteiras.

Nesse admirável mundo novo huxleano onde as novas tecnologias de automação de processos e a inteligência artificial já estão alterando dramaticamente (e não necessariamente para melhor) o mundo do trabalho (COECKELBERGH, 2022), e onde as reestruturações produtivas ocasionadas pela pandemia impõem um aumento de desigualdades intoleráveis que levam a questionamentos morais sobre os fundamentos das bases de cooperação social (COOPER; SZRETER, 2021), o reconhecimento das artes como elemento de expressão e ação é importante para a construção de uma perspectiva de futuro.

Claro, o mundo das artes é essencialmente plural. Mesmo no ambiente da escola, quando falamos de artes, tratamos de:

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i. visitas a museus de arte (ECKHOF, 2013; CARR, 2006; TERRENI, 2015);

ii. visitas a museus de arte on-line (ERICKSON; HALES, 2014; KIM; DARLING, 2009);

iii. classes de dança (ADAMS, 2016; FABER, 2017; HALLY; SINHA, 2018);

iv. teatro e drama (ADOMAT, 2012);

v. storycrafting e, de certo modo, literatura (AERILA; RONKKO, 2015); vi. uso de quadrinhos e imagens (AL-RABAANI; AL-AAMRI, 2017; KNIGHT, 2010);

vii. classes de música (BRINKMAN, 2010); viii. uso de tecnologias musicais (KING, 2009); ix. música (ALINTE, 2013);

x. classes de desenho (CHANG, 2012);

xi. artes plásticas (COJOCARIU; NASTURAS, 2014; ECKHOFF; SPEARMAN, 2009);

xii. fotografia (WISEMAN; MAKINEN; KUPIAINEN, 2016); e xiii. corotopia, atividades artísticas diversas associadas à exploração do espaço (chorós) e do lugar (tópos), feitas por meio de passeios fora da sala de aula (TRIMIS; SAVVA, 2009).

O denominador comum dessas ações artísticas é que envolvem um julgamento estético carregado de significados tanto para professores quanto para alunos. Assim, podem ser importantes como canais alternativos de expressão e de discernimento de qualidades éticas. Algumas atividades são mais explícitas que outras nesse sentido, como a análise de obras de arte ou de peças visuais que mais diretamente estimulam a metacognição das crianças (o pensar sobre o que você pensa), conforme argumentado por autores como Erickson e Hales (2014).

Outros tipos de atividade, como a dança, envolvem aspectos físicos e éticos relevantes. Assim, na primeira infância, a dança tem um impacto sobre a organização neurológica das crianças, sobre o desenvolvimento de sua inteligência espacial e sobre a criação de um sistema simbólico que precede a linguagem e fornece conexões neurológicas para o uso futuro de símbolos, como ocorre na matemática. As atividades sensório-motoras da dança fornecem glicose e oxigênio e ajudam na formação de novos caminhos neurais e conexões sinápticas. Do ponto de vista ético, a dança contribui para a criação de hábitos (um elemento destacado na noção de virtude defendida por Aristóteles e, mais recentemente, por Nussbaum) como uma precondição para o desenvolvimento de processos criativos (GILBERT, 2006, 2016). Na mesma linha, a dança pode ser vista também como um mecanismo de autocontrole e de adaptação social, que pode estimular a emoção e a comunicação afetiva (HANNA, 2008).

Em uma época na qual os novos mecanismos de interação social estimulam a automação de julgamentos e de escolhas que podem ser até desumanas – como caracteriza Virginia Eubanks em seu livro Automating inequality: how high-tech tools profile, police, and punish the poor –, a proteção de esferas essencialmente humanas, como as artes, oferece uma garantia e um mecanismo de estruturas colaborativas. Isso é mais evidente em artes como o teatro, que oferece uma estrutura colaborativa por meio da alocação de papéis e do desenvolvimento de sequências narrativas com criação de significados (ADOMAT, 2012). O teatro pode ser visto

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como um processo de decodificação da realidade, dando aos alunos a condição de agentes em uma busca ativa por significado – que pode incluir, além do seu posicionamento pessoal, uma reflexão coletiva sobre a narrativa em questão. Isso tem valor intrínseco e não seria necessário buscar avaliações que provassem seu impacto em outras esferas do conhecimento, mas elas existem. Evidências mostram que o teatro é positivo para a melhoria da leitura e da escrita formal dos alunos (CHIZHIC, 2009).

Não cabe repetir aqui a discussão sobre o papel das artes empreendida pela pesquisa original, mas é importante não deixar de fora a contribuição da música ao desenvolvimento das crianças. A literatura consultada é inequívoca quanto aos seus impactos, seja no estímulo a um bom ambiente de aprendizagem (ALINTE, 2013) como um meio de incentivo à interação social (CUSTODERO, 2002), seja na promoção da criatividade, da curiosidade e da tolerância das crianças (BRINKMAN, 2010). Do ponto de vista ético, um aspecto fundamental é o reconhecimento pedagógico dado à conexão emocional possibilitada pela música na promoção da identidade, da autonomia e da consciência social das crianças (DAVIS, 2013).

A pluralidade de ações é uma riqueza a ser explorada. Muito mais do que reconhecer que as artes são constitutiva e instrumentalmente benéficas para as crianças, importa destacar como são relevantes para uma melhoria das qualidades perceptivas e reflexivas dos estudantes

As artes têm o potencial de promover uma visão mais orgânica de mundo e de significação das experiências pessoais e sociais das crianças e dos jovens. Nesse sentido, a pluralidade de ações é uma riqueza a ser explorada. Muito mais do que reconhecer que as artes são constitutiva e instrumentalmente benéficas para as crianças, importa destacar como são relevantes para uma melhoria das qualidades perceptivas e reflexivas dos estudantes. Desse modo, o papel das artes na educação não é desejável, é necessário. Enquanto parte da literatura sobre o assunto sofre da visão produtivista difundida pelos economistas, limitamos as artes à sua relevância instrumental (BAMFORD, 2009, 2012), em geral destacando suas implicações para o desenvolvimento cognitivo ou o desempenho escolar das crianças. Por isso é essencial criticar a visão de que a arte é um supérfluo, valorizada apenas pelo seu impacto naquilo que seria mais importante. Essa visão, pouco defendida de maneira aberta, é cristalizada em sistemas de monitoramento e de avaliação educacional que levam em conta apenas matérias sujeitas à padronização em testes. Com isso, desvaloriza-se o sistema multimodal de desenvolvimento humano oferecido pelas artes, que propicia não somente outra gama de processos cognitivos como também uma pedagogia mais adequada a um mundo intensamente visual e estetizado (largamente ignorado em discussões pedagógicas). Como resultado, estimula-se uma batalha cotidiana nas salas de aula e nos lares, na qual crianças e jovens imersos em uma cultura visual se debatem contra pedagogias pouco adequadas não somente às suas realidades, mas aos seus modos de experimentar e viver o mundo.

O admirável mundo novo que se desenrola a olhos vistos está promovendo um conjunto de mudanças por meio da introdução da inteligência artificial (dos modelos mais simples de robotização, passando por machine learning, até chegar ao mais sofisticado deep learning, ainda em desenvolvimento), que deve alterar

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não apenas os mercados de trabalho como também aspectos essenciais no funcionamento de nossas sociedades. Algumas estimativas sugerem que o desemprego tecnológico pode representar um problema econômico e social de primeira magnitude (BAIN; COMPANY, 2018). Nesse contexto, a promoção do mundo das artes no ambiente escolar pode ter um caráter humanizador e socializador de proteção de uma esfera individual indispensável à condição humana. Além disso, as artes podem ajudar as pessoas a se entender “pelo coração” (LUTHER KING JR., 1963; HOOKS, 2000), resgatando vivências coletivas muito além do que é útil ou necessário à economia.

OS ESPORTES: UM MUNDO DE POSSIBILIDADES

Por um lado, o papel dos esportes é similar ao das artes na educação. Ambos são usualmente menos valorizados ou mesmo considerados supérfluos no currículo escolar dos ensinos Fundamental e Médio, e não apenas no Brasil, mas em todo o mundo, em parte por causa da visão produtivista da educação a que fizemos menção anteriormente. Por outro lado, o papel dos esportes é diferente, pois pode tanto ser usado para inclusão e empoderamento dos alunos como para sua opressão e exclusão. Isso porque os esportes têm um aspecto competitivo que pode ser exacerbado, além da existência de experiências traumáticas relacionadas (NOEL-LONDON et al., 2021).

Os esportes competitivos envolvem a aquisição de habilidades específicas (de acordo com a natureza do esporte praticado), assim como de competências interpessoais (no caso de esportes coletivos) e de aprendizado para lidar com experiências de sucesso e fracasso (JACOBS; WRIGHT, 2014). Nos Estados Unidos, onde há grande pressão sobre os estudantes do Ensino Médio para que realizem esportes de alto rendimento, há um debate sobre as vantagens e desvantagens da “especialização precoce versus práticas amostrais” dentro do esporte de competição.

De modo muito simplificado, podemos dizer que esse tipo de esporte é apenas uma área, diferente da atividade física geral, dos esportes para o desenvolvimento ou da educação física. A literatura às vezes não é muito precisa no uso dos termos (Pnud, 2017), variando de acordo com o contexto empregado. No entanto, a relevância do esporte para o desenvolvimento humano é amplamente reconhecida, com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) chegando a propor o conceito de esporte como um direito humano na sua reunião Education and sport, de 2004. Ela não está sozinha. A Comissão Europeia, a Organização Mundial da Saúde (OMS) e diversos ministérios nacionais da saúde têm um posicionamento consistente sobre os impactos positivos da atividade física nas escolas e nos direitos das crianças (HEIKINARO-JOHANSSON et al., 2018; WHO, 2022; WHO; UNESCO, 2021). Isso porque o universo escolar é um espaço de atuação pública no qual há grande potencial de transformação.

A relevância do esporte para o desenvolvimento humano é amplamente reconhecida, com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) chegando a propor o conceito de esporte como um direito humano

Um ponto comum entre as diversas linhas de literatura examinadas em relação ao papel dos esportes no desenvolvimento humano integral das crianças é que, em geral, alunos mais pobres são os mais beneficiados por esse tipo de intervenção,

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pois a pobreza priva muitos deles dessas oportunidades. No entanto, o mesmo não acontece com subgrupos raciais, como mostrou Harris (2014): para estudantes negros nos Estados Unidos, o esporte nem melhorou nem prejudicou significativamente seus resultados escolares.

Os esportes dão vazão a um desejo das crianças de contato e movimento (GERDIN, 2016). Independentemente dos impactos positivos da atividade física, desde a primeira infância, na formação de músculos e no desenvolvimento das habilidades motoras das crianças (MARCEL, 2011), há no esporte uma dimensão humana, de sentido ético e social, que não pode ser ignorada. Parte desse argumento está relacionada às evidências de que os esportes estimulam as funções executivas das crianças (em particular, o regulamento do comportamento), entre outras funções relacionadas ao sentido que elas dão à escola (HAGINS; RUNDLE, 2016). Algumas atividades físicas, como a ioga, uma prática aparentemente contemplativa, estimulam mais a autorregulação e as funções executivas (KAUTS; SHARMA, 2009). Como todas as atividades físicas, além de seus benefícios diretos mais óbvios (incluindo os cognitivos, como melhoria da concentração e da memória) (DAVIS et al., 2007; KIRK et al., 2014), existem outros não menos importantes associados ao comportamento das crianças, como melhoria da obediência a instruções, maior consciência do seu contexto social e maior capacidade de auto-organização. Não é por acaso que evidências, por exemplo, na Suécia mostraram que a atividade física no ambiente escolar está negativamente associada a ausências na escola, isso porque as crianças e os jovens a relacionam com um maior nível de bem-estar nesse ambiente (ERICSSON; CEDERBERG, 2015).

É também comum que os esportes apresentem às crianças e aos jovens oportunidades competitivas e cooperativas no contexto escolar. Por um lado, eles podem ser estimulados a jogar uns contra os outros, pensando apenas nos seus resultados individuais. No entanto, por outro, podem ser imbuídos de um sentido de pertencimento a uma estrutura de interação que promova a solidariedade. Nesse aspecto, os esportes apenas tornam explícito um conflito de escolha que ocorre em múltiplos momentos escolares. O fato é que os esportes, com suas regras e seus resultados estruturados, oferecem uma dinâmica de interação que é ao mesmo tempo diversa (dependendo do tipo de esporte) e comum em suas lógicas. Isso para não falar nos casos dos esportes cooperativos, que, como mostrou o estudo de Layne e Hastie (2016), podem mudar a compreensão que as crianças têm do próprio objetivo da competição, que passa de buscar a vitória para fazer bem suas atividades. Há uma recontextualização e uma mudança não apenas cognitiva, mas ética, no entendimento da qualidade dos processos e dos resultados finais das atividades esportivas. Os esportes possibilitam aguçar o entendimento sobre o outro, como no caso da introdução de atividades originalmente pensadas para pessoas com alguma deficiência (como o vôlei sentado e o basquete na cadeira de rodas) para todos os alunos, com o propósito de conscientizá-los e de torná-los moralmente mais sensíveis ao mundo que cerca essas pessoas (GRENIER; KEARNS, 2012). Dependendo do tipo de esporte praticado, pode-se estimular nas crianças o espírito de cooperação, a redução de estigmas e a inclusão. As evidências sugerem que mudanças de caráter emocional em relação aos outros não acontecem apenas por uma maior exposição a informação e por processos cognitivos, mas necessitam

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de um envolvimento emocional, como destacam Cortina (2017) e Nussbaum (1990). A capacidade de reconstruir imaginativamente a experiência de dor ou de alegria de outra pessoa depende de uma conexão emotiva, que tem ramificações neurais e físicas, em última instância.

As atividades físicas de modo geral, incluindo o esporte, criam situações práticas que demandam julgamentos éticos para o seu enfrentamento, e que acabam por se converter, antes de tudo, em aprendizados sobre vencer ou perder, cooperar ou competir etc. Quando pensadas de modo intencional para a produção de cooperação ou mesmo de empatia, como no estudo de Garcia-Lopez e Gutierrez (2015), as atividades físicas podem dar resultados muito positivos.

SOLUÇÕES CONCRETAS PARA UMA EDUCAÇÃO

EM ARTES E EM ESPORTES NUM BRASIL PÓS-PANDÊMICO

A área da educação está permeada com grandes teorias e recomendações generalizadas. Sem querer entrar em nenhuma controvérsia, dentro de uma perspectiva de desenvolvimento humano, propomos uma abordagem centrada em microações que enfoquem contextos particulares de implementação. O argumento é claro: políticas efetivas precisam ser específicas, concretas, factíveis e facilmente assimiláveis pelos gestores educacionais e por todos.

As evidências coletadas pelo estudo original sugerem que as artes e os esportes não somente são essenciais para o desenvolvimento integral das crianças como também podem ser muito custo-efetivos. Existem estratégias muito simples que podem melhorar, por exemplo, o desempenho das crianças em matemática, como mudanças no horário escolar que coloquem a aula de educação física no horário anterior à da matéria. Trocas de regras no jogo de futebol podem estimular a empatia e a alteridade. Ainda, a introdução de um jeito diferente de contar uma história, abrindo espaço para a criatividade das crianças, pode dar um significado novo para o que se planeja fazer. Claro que as artes e os esportes, principalmente porque são atividades que estimulam o prazer de estar na escola, são também instrumentalmente importantes. Mas o principal ponto é que a gestão de microações de modo coordenado, integrado e estratégico tem um grande potencial tanto do ponto de vista individual quanto do coletivo.

Do lado dos esportes, também faz sentido que as escolas tenham uma gama de práticas esportivas diversas. Em um contexto pós-pandêmico, no qual problemas de saúde mental entre os alunos ficaram mais explícitos, é possível usar o esporte e a educação física como um elemento estratégico de gestão do estresse

Escolas deveriam ser capazes de elaborar suas estratégias de escolha de portfólios específicos de artes e de esportes com o objetivo de gerar determinados impactos e estímulos para seus estudantes. Por exemplo, a escolha de classes de música pode ser estrategicamente fundamentada na necessidade de estímulo ao raciocínio espaçotemporal das crianças; e o teatro pode ser parte de um plano de aprofundamento da compreensão dos estudantes do comportamento e da narrativa humanos. Por outro lado, a dança pode ser usada para ensinar a persistência e para estimular a autoconfiança individual e o desenvolvimento social no grupo; e as artes plásticas podem ajudar os estudantes a pensar e interpretar o mundo de modos novos e diferentes.

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Do lado dos esportes, também faz sentido que as escolas tenham uma gama de práticas esportivas diversas. Em um contexto pós-pandêmico, no qual problemas de saúde mental entre os alunos ficaram mais explícitos, é possível usar o esporte e a educação física como um elemento estratégico de gestão do estresse. De fato, Hignett et al. (2018) mostraram que intervenções esportivas que envolvem exposição a ambientes naturais podem não somente levar a uma redução do estresse das crianças (medido objetivamente pelo batimento cardíaco e pela pressão) como também melhorar sua autoestima. Outras evidências, como no estudo de Majors e Bilson (1992), estabeleceram, no caso dos jovens americanos negros, que o esporte pode ajudar a suprimir sentimentos como raiva e agressão, provenientes das condições de privação socioeconômica e de discriminação às quais muitos deles estão sujeitos.

De modo geral, as evidências sobre o impacto positivo do esporte na diminuição da obesidade das crianças no curto prazo, e na melhoria das condições de saúde no longo prazo, com a queda do risco de doenças osteoartríticas e crônicas (hipertensão, obesidade, diabetes, câncer, doenças cardíacas, ansiedade, depressão etc.), são muito robustas (HERNANDEZ, 2014; BRUSSEAU; HANNON, 2015). Mas o ponto principal é como distintas intervenções esportivas podem ser mais adequadas para a promoção de competências diversas ou de estados de bem-estar social.

Os aspectos mais interessantes, entretanto, estão relacionados a como as artes e os esportes podem contribuir para que as crianças deem sentido à sua vida escolar, não somente por serem atividades nas quais elas podem exercer um protagonismo maior (se comparadas com a passividade em algumas aulas meramente expositivas), mas também por poderem construir o seu próprio significado de estar na escola, seja pela melhoria da sua autoestima, pelo desenvolvimento de habilidades psicoemocionais, pelo seu engajamento com os demais ou pelo aperfeiçoamento de funções importantes, algumas de caráter ético.

No entanto, há o risco de que algumas modalidades competitivas de esporte ou outras circunstâncias excludentes possam alienar crianças e jovens. Ang e Penney (2013) mostraram, no caso de Singapura, que há muitos relatos de estudantes que apresentaram grande dificuldade em lidar com o fracasso e a pressão da competição nos esportes. Eles se sentem inferiores, incompetentes e por vezes têm sentimentos de ansiedade, dados os objetivos estabelecidos, e por isso deixam de participar. O abandono do esporte é, assim, nada mais do que uma estratégia de preservação da autoestima e de preservação pessoal perante situações de humilhação e sentimentos de inferioridade. Muitas vezes, acontece também de os estudantes de alta habilidade esportiva serem violentos com aqueles de baixa, recusando-se a obedecer ao treinador e criando um clima de medo e constrangimento no grupo.

Essa questão é fundamental para entender como as artes e os esportes, independentemente de todos os benefícios instrumentais que geram, são importantes para o sentido que as crianças e os jovens possam dar ou não à escola. Quando os alunos desenvolvem uma atitude antijogos e antiexercícios como reação a práticas de exclusão, eles perdem o sentido de estar na escola. O que acontece é que as artes e os esportes, como diria Aristóteles ou Pierre Bourdieu, são espaços não apenas de práxis, mas de habitus que estruturam relações sociais e que geram diferentes padrões de engaja-

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mento. Estes, por sua vez, são fundamentais para o télos, o sentido que as crianças e os jovens conferem a essas atividades. De fato, o reconhecimento do valor da socialização (por exemplo, fazer novos amigos) é frequentemente notado na literatura como uma das razões pelas quais muitas crianças fazem esporte (IZZO et al., 2016).

A escola precisa voltar a ter sentido para os estudantes, não somente pelos seus benefícios imediatos ou futuros, mas pelo puro prazer e nexo de estar na escola. As artes e os esportes facilitam muito esse trabalho como espaços de práxis e de interação entre as crianças. No entanto, de nada adianta investir nessas áreas se as escolas continuarem com modelos pedagógicos baseados no ensino preparatório para os testes. As diferentes estratégias de implementação de modelos de gestão escolar precisam ser mais participativas para que o protagonismo dos alunos não fique somente no papel. As evidências analisadas sugerem que intervenções artísticas e esportivas podem ser muito custo-efetivas e, além disso, abrir uma nova perspectiva para que reflitamos sobre como a escola deve fazer sentido para aqueles a que deveria servir. Esses desafios são ainda maiores em um contexto de automação de processos e de mudança de paradigma tecnológico, no qual a própria busca pela definição do que é ser humano está no centro dos debates educacionais.

COMO CITAR

COMIM, Flavio. A essencialidade do supérfluo: o papel das artes e dos esportes na busca por significado na educação. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.33-2

FLAVIO COMIM

possui graduação, mestrado, doutorado e pós-doutorado em economia, respectivamente pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), pela Universidade de São Paulo (USP), pela Universidade de Cambridge (Inglaterra) e pela Universidade Harvard (Estados Unidos). Atuou no Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) entre 2008 e 2010, e foi consultor da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), da Organização das Nações Unidas para

a Alimentação e a Agricultura (FAO), do Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (Pnuma) e da Organização Mundial da Saúde (OMS). Tem experiência na área de economia com ênfase em economia da pobreza. É professor adjunto da UFRGS e professor visitante da Universidade de Cambridge.

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2 | Desenho de Wagner Montenegro

O impacto da arte, do esporte e da cultura no desenvolvimento das funções executivas do cérebro

Esportes, contato com a natureza, artes em geral e outras atividades que promovam o bem-estar devem ou não estar presentes no currículo escolar? Para a neurocientista Adele Diamond, diretora do Centro de Neurociência do Desenvolvimento Cognitivo da Universidade de British Columbia, em Vancouver, no Canadá, essas atividades são imprescindíveis em qualquer currículo que tenha por finalidade trabalhar com o desenvolvimento integral dos estudantes. E a justificativa para tal está em descobertas científicas e pedagógicas: jogos, brincadeiras, passeios e desafios ao ar livre, criação e fruição artística, e práticas corporais em geral contribuem para o desenvolvimento e o aprimoramento das funções executivas do cérebro.

As funções executivas são processos mentais que ajudam uma pessoa a raciocinar, solucionar problemas, compreender um texto escrito ou oral, fazer escolhas, autocontrolar-se, ter disciplina, criar e ser flexível quando há mudança de planos ou novas informações. Não é difícil perceber que todas essas habilidades são requisitadas em situações dentro e fora da sala de aula – ou seja, na escola e na vida.

Acompanhe o que a pesquisadora e especialista, preocupada com o excesso de atividades acadêmicas na escola em detrimento de outras igualmente ou mais importantes para as crianças, diz nos vídeos abaixo.

VÍDEO 1

Três das principais funções executivas do cérebro são:

• controle inibitório (ou autocontrole);

• memória de trabalho (ou memória operacional); e

• flexibilidade cognitiva.

Acesse os vídeos pelo QR Code ou pelo link: https://www. itaucultural.org.br/ secoes/observatorioitau-cultural/impactoarte-esporte-culturafuncoes-cerebro

O controle inibitório é a capacidade de resistir a tentações para realizar o que é mais adequado ou necessário em determinada situação. Ele favorece a manutenção do foco na execução de uma tarefa e, no comportamento diário, ajuda a esperar a vez de falar, a não ofender os outros e a não fazer xixi nas calças, por exemplo. Neste vídeo, Adele Diamond dá outros exemplos e explica a importância dessa função executiva, ressaltando como pode ser trabalhada na escola.

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VÍDEO 2

A segunda função executiva destacada pela pesquisadora e abordada no vídeo a seguir é a memória de trabalho, ou memória operacional. Trata-se da capacidade de ter informações em mente para usá-las nas tarefas e nas brincadeiras do dia a dia.

VÍDEO 3

A flexibilidade cognitiva nada mais é do que a capacidade de ver um problema por diferentes ângulos e ajustar-se a mudanças ou situações inesperadas. Neste vídeo, Adele Diamond apresenta um divertido e inusitado exemplo que ilustra essa função executiva e sua importância na escola.

VÍDEO 4

O controle inibitório, a memória de trabalho e a flexibilidade cognitiva relacionam-se ainda a outras funções executivas, como o planejamento e o raciocínio, que compõem o que a pesquisadora chama de inteligência fluida. Adele enfatiza que todas podem ser ensinadas, desenvolvidas e aprimoradas na escola. Para isso, os educadores não podem se preocupar apenas com a formação conteudista, pois as funções executivas são despertadas ou aprimoradas com outros tipos de atividades que não as acadêmicas.

VÍDEO 5

Para a neurocientista, as crianças têm que ser ativas, envolvendo-se em atividades práticas. Isso vale para crianças de todas as idades, mas sobretudo para as menores, que naturalmente encontram dificuldades em ficar imóveis ouvindo instruções orais.

Há, porém, uma atividade que não envolve movimentação física e se destaca ao produzir efeitos benéficos na memória ocupacional e na atenção sustentada: a contação de histórias. Saiba mais conferindo o vídeo.

VÍDEO 6

A contação de histórias pode ser realizada pelo professor, pelos pais ou por qualquer pessoa mais velha – os avós e outros adultos da comunidade. Eles podem narrar contos da literatura infantil ou compartilhar a própria história de vida com as crianças, falando sobre sua infância e suas vivências. A conversa e a interação que acontecem no contexto da leitura trazem benefícios tanto ao desenvolvimento da linguagem e do letramento quanto à maturação cerebral.

Para Adele Diamond, a escola precisa resgatar maneiras de educar as crianças que sempre se mostraram eficazes, como as atividades que envolvem a observação de adultos e de crianças mais velhas, acompanhadas de um incentivo e um convite para que participem das tarefas, colaborando com elas.

O que deve ser evitado são as situações estressantes que por vezes a escola proporciona, como as avaliações classificatórias, a pressão por notas e por desempenhos extraordinários, a alfabetização forçada precocemente e outras exigências desnecessárias. O motivo? O efeito que o estresse causa no tamanho do telômero. Você entende o que é telômero na explicação dada por Adele neste vídeo.

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VÍDEO 7

Uma maneira de anular o efeito do estresse sobre a rede neural é receber afeto e atenção, além de ter a oportunidade de se expressar. No caso das crianças, cabe aos mais velhos fazer uma escuta atenta das manifestações e, claro, ser fonte de carinho e de empatia. Tudo isso faz com que o organismo produza a telomerase, enzima restauradora dos telômeros.

VÍDEO 8

É importante ressaltar que um dos fatores que causam estresse nas crianças e nos jovens é o sentimento de que não são inteligentes o suficiente. Adele Diamond faz uma analogia com o bebê que está aprendendo a andar: antes que consiga se sustentar em pé e se locomover, ele cairá várias vezes, mas nem por isso os adultos o acharão um fracasso ou lhe darão uma “nota D” pelas tentativas sem sucesso. Ao contrário, é prática corrente estimular a criança a continuar se esforçando, dizendo: “Muito bem! Você está chegando lá! Já, já estará andando, eu tenho certeza!”. Mas o que acontece com a criança, na escola, quando não se sai bem em uma atividade? Veja o que diz a pesquisadora.

VÍDEO 9

Para além de manifestações de carinho e de afeto, como o abraço, há muitas outras ações que ajudam a reduzir o estresse de crianças, adolescentes e jovens: as atividades físicas e artísticas, a convivência com animais, o contato com a natureza, a meditação e a ioga. Adele Diamond ressalta que os desenvolvimentos motor e cognitivo estão entrelaçados: as partes cognitiva, espiritual, social, emocional e física afetam umas às outras e o mais eficiente é reforçar todas. Mas quais são as melhores atividades para treinar e desafiar as funções executivas e apoiar, indiretamente, as necessidades sociais? Veja o que a neurocientista tem a dizer.

VÍDEO 10

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Frame de Sethico | Foto de Breno César e montagem de Felipe Correia

Concepção e práticas de avaliação na Educação Integral: a participação como vetor da transformação social

RESUMO

Este artigo tem como principal objetivo analisar o contexto das políticas educacionais brasileiras e das experiências de práticas de avaliação formuladas a partir da concepção de uma educação escolar ampliada presente na obra e no pensamento de Anísio Teixeira e aprofundada por diversos agentes e instituições ao longo dos séculos XX e XXI, no Brasil, como parte do que chamamos de Educação Integral.

A concepção de Educação Integral (EI) aqui destacada tem sua gênese no “Manifesto dos pioneiros da educação nova”, de 1932. Considerado um documento de referência na luta em defesa da escola pública no país, seus fundamentos incluem a democratização das relações sociais a partir da crítica ao caráter excludente da escola tradicional. Anísio Teixeira (1900-1971) foi um dos expoentes desse movimento.

Em sua obra, o educador, jurista e escritor aborda o papel da instituição escolar para a democratização do país e para o enfrentamento das desigualdades sociais. Apontava, sobretudo, que os altos índices de evasão e de repetência das escolas brasileiras, já na década de 1930, eram resultado da desconexão entre a escola –baseada em modelos tradicionais – e os interesses e necessidades dos estudantes. Nesse sentido, ele propunha que as escolas brasileiras fossem de tempo integral e que vinculassem as atividades relacionadas aos conhecimentos formais a atividades físicas, esportivas, artísticas e literárias, entre outras (CHAGAS; SILVA; SOUZA, 2012).

Em sua obra, o educador, jurista e escritor aborda o papel da instituição escolar para a democratização do país e para o enfrentamento das desigualdades sociais. Apontava, sobretudo, que os altos índices de evasão e de repetência das escolas brasileiras, já na década de 1930, eram resultado da desconexão entre a escola – baseada em modelos tradicionais – e os interesses e necessidades dos estudantes

A constitucionalização do direito à educação, ocorrida há pouco mais de três décadas, foi seguida por um intenso movimento de universalização do acesso de crianças e adolescentes às escolas públicas brasileiras, especialmente caracterizado por políticas padronizadoras e desatentas para a realidade social do país. Isso revela que as questões político-pedagógicas declaradas por Anísio Teixeira seguem, ainda hoje, relevantes.

No Brasil, um país em que as mais distintas desigualdades coexistem com múltiplas diversidades, a padronização segue endossando uma representação tradicional de um modelo de escola – instrucional, fragmentada, rasa em interações com

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diferentes linguagens e agentes, e desconectada do território onde está situada e, portanto, dos interesses e das necessidades dos estudantes e das suas comunidades. Frente a esse cenário, propostas de EI desenvolvidas por redes, por escolas e por organizações sociais brasileiras vêm reivindicando o compromisso com o direito à educação de todos os educandos a partir de uma perspectiva participativa e contextualizada.

Propostas de EI desenvolvidas por redes, por escolas e por organizações sociais brasileiras vêm reivindicando o compromisso com o direito à educação de todos os educandos a partir de uma perspectiva participativa e contextualizada

Com o objetivo de incidir sobre a agenda de EI no país a partir da pesquisa e disseminação de experiências dos profissionais da educação, das redes e das escolas, e do desenvolvimento metodológico de referências identificadas como relevantes para a efetivação do direito à educação no Brasil, por iniciativa da Associação Cidade Escola Aprendiz, em parceria com organizações do campo educacional, foi criado o programa Centro de Referências em Educação Integral (Crei), em 2013.

A estruturação de um processo de escuta e pesquisa sistemática levou os profissionais do programa a identificar lacunas existentes nas referências disponíveis para escolas e redes, como a referência metodológica para a formulação de políticas públicas de Educação Integral. Não obstante a Educação Integral contar com largo histórico no país, como este artigo busca demonstrar, redes e escolas demandavam uma referência prática que respondesse à seguinte pergunta: “Como formular e implementar uma política de Educação Integral?”.

O Crei estrutura, então, uma equipe responsável por desenvolver um referencial instrumental. É assim que nasce o “Educação Integral na prática” (ou apenas “Na prática”), formulado a partir de experiências de políticas públicas municipais do país.

A análise do campo apontava dois desafios: primeiramente, a identificação de que a Educação Integral como política pública se encontrava restrita a escolas com jornada ampliada, deixando de se constituir como política universal nas redes. E, em segundo lugar, apontava para a desarticulação teórica e prática entre as políticas de currículo, de avaliação e de formação de profissionais nas redes. Assim, o “Na prática” busca apresentar a ideia de que a EI deve ser compreendida como concepção para toda a rede, independentemente de a jornada ser ampliada ou não. E que sua efetivação se dá pela construção colaborativa de um currículo orientado pelo compromisso com a aprendizagem e o desenvolvimento integral de todas as crianças e estudantes; por um sistema de avaliação que esteja além do rendimento escolar; e por um programa de formação que articule as diferentes propostas de formação da rede, com vistas à implementação do currículo e do sistema de avaliação. O “Na prática” se converte, portanto, em uma proposta integradora das políticas com o intuito de construir coletivamente práticas comprometidas com o desenvolvimento integral de todos.

Nesse contexto, a agenda da avaliação emerge como questão estratégica. Na busca por construir um referencial, o Crei desenvolveu uma publicação chamada “Avaliação na Educação Integral: elaboração de novos referenciais para políticas e programas”, em parceria com a Move Social e com financiamento da Fundação Itaú

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Social. A pesquisa gerou uma nota técnica, com ampla bibliografia especializada nacional e internacional, com uma proposta de matriz de avaliação para a Educação Integral e com instrumentos para a implementação de uma concepção sistêmica e integrada de avaliação.

O material posiciona a questão da avaliação em uma perspectiva dialógica e contextualizada. Nesse sentido, a proposta de avaliação prevê:

i. que a avaliação seja construída com os pares participantes da iniciativa a partir dos objetivos que se pretende alcançar;

ii. que os resultados sejam compartilhados e que, a partir deles, sejam realizados os ajustes no processo, nas rubricas e/ou nos indicadores da avaliação, assegurando uma reflexão permanente sobre o que avaliar e como avaliar;

iii. que a discussão da matriz reflita os princípios que orientam a implementação da proposta de EI e a eles responda em uma perspectiva emancipatória, crítica e contextualizada.

Para isso, insta-se que esse processo possibilite que todos os seus participantes consigam olhar para as suas respectivas realidades e refletir sobre o que pode ser melhorado, em diálogo permanente e contínuo com os atores que dela fazem parte.

Esse processo de avaliar alicerça-se:

Em primeiro lugar, na centralidade de processos qualificados de participação. Ou seja, na compreensão de que ao promover espaços qualificados de reflexão envolvendo os diversos sujeitos que fazem parte de um determinado contexto educacional, estes passam a tomar parte das definições e valores que abarcam a referida política, atribuindo à todas e todos pertencimento e responsabilidade pelas decisões, além de compromisso em fazê-las se concretizar (DAVIDSON, 2012). Desta forma, a avaliação na Educação Integral é sempre o fortalecimento de um pensamento autoavaliativo como um princípio formativo: buscar potencializar processos de ampliação da aprendizagem da comunidade sobre seu projeto educativo, criando espaços autônomos de reflexão sobre sua prática e sua relação com a sociedade em geral e com o sistema educacional em particular (CREI; MOVE SOCIAL; ITAÚ SOCIAL, 2019, grifo nosso).

A partir dessas premissas, passaremos a apresentar experiências promovidas pelo Crei que se encontram alicerçadas nesses fundamentos. As experiências que serão relatadas neste artigo foram realizadas em dois territórios distintos, Tremembé (SP) e Uruçuca (BA), e foram selecionadas pelo fato de terem conseguido, por meio de suas estratégias metodológicas, assegurar os princípios aqui apresentados.

A primeira experiência que abordaremos é a de Tremembé, cidade do interior do estado de São Paulo localizada no Vale do Paraíba, e que conta com mais de 48.228 habitantes, de acordo com estimativas para 2021. A rede municipal de educação congrega 18 escolas e aproximadamente 5.485 estudantes que estão distribuídos em unidades escolares que atendem a Educação Infantil, os anos iniciais e finais do En-

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sino Fundamental e a Educação de Jovens e Adultos. A parceria estabelecida com a Secretaria Municipal de Educação (SME) concretizou-se com o desejo de implementar a política de Educação Integral e de criar uma escola de tempo integral.

A rede de Tremembé dedicou-se, de 2012 a 2017, a apoiar a qualificação de práticas que pudessem promover a ampliação das aprendizagens dos estudantes, ancorando-se inicialmente no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Como uma das estratégias para a implementação dessas práticas, a rede fez adesão ao programa Mais Educação, de iniciativa do Ministério da Educação (MEC).

Após a consolidação material dos resultados da rede, cujo Ideb passou de 3,9 (2011) para 5,3 (2019), a equipe compreendeu que havia a necessidade de estabelecer políticas que pudessem alicerçar a ampliação das aprendizagens dos estudantes em português e matemática, aferidas pela Prova Brasil, para as demais dimensões do desenvolvimento integral.

A partir da parceria com o Crei, a SME de Tremembé implementou os sete passos previstos no “Na prática”: formação inicial, diagnóstico, desenho da política, pacto social, construção da matriz curricular da rede, planejamento e institucionalização da política. Esse trabalho foi desenvolvido por meio da formação das equipes gestoras da SME, das unidades escolares e dos professores, e culminou na escrita do documento curricular da rede, publicado em 2019.1

Após o estudo aprofundado dos territórios educativos e dos fundamentos da Educação Integral, com o objetivo de ancorá-los nas práticas docentes, realizou-se um processo de formação das equipes gestoras das escolas em planejamento reverso. A intenção da proposta era que, a partir de perguntas essenciais, os coordenadores pedagógicos pudessem avaliar e apoiar a construção dos planejamentos didáticos dos professores alinhados àqueles fundamentos.

O planejamento reverso prevê: i) a necessidade de identificar resultados desejados (grandes ideias, compreensões e perguntas para investigação), com o objetivo de mobilizar competências e desenvolver a capacidade de compartilhar; ii) a definição de evidências aceitáveis das aprendizagens desejadas (avaliação); e iii) o desenho de experiências de aprendizado e instrução (sequências didáticas, projetos, planos de aula) (WIGGINS; MCTIGHE, 2019).

A estratégia era que, a partir das perguntas essenciais, os educadores da rede pudessem tornar evidente o que e como gostariam que os estudantes aprendessem, tornando também mais visível o processo de aprendizado, e não apenas os seus resultados. Desse modo, os professores e as equipes gestoras pedagógicas da escola passariam a explicitar as intencionalidades do processo de ensino e aprendizagem e os pressupostos que orientam as práticas, bem como os contextos dos estudantes e dos seus respectivos territórios. Era necessário criar, portanto, uma rotina de reflexão profunda no processo do planejamento didático. Assim, a base da intervenção pedagógica promovida firmava-se nos fundamentos orientadores da avaliação mencionados anteriormente: i) definição comum de objetivos, pautados nos fundamentos que regem o trabalho da rede; ii) construção de indicadores e reflexão permanente sobre eles; e iii) compromisso com o desenvolvimento integral.

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A formação, realizada no momento em que os docentes construíam seus planejamentos didáticos para o segundo semestre, possibilitou que, a partir das perguntas essenciais, esses documentos explicitassem o que os estudantes aprenderiam e de que forma seriam avaliados. Além disso, fez com que as intencionalidades pedagógicas acerca do processo de aprendizagem, do ensino e da avaliação estivessem mais evidentes. No final, as equipes pedagógicas da rede adequavam seus instrumentos de planejamento didático e de avaliação aos postulados apresentados durante o processo formativo.

A estratégia era que, a partir das perguntas essenciais, os educadores da rede pudessem tornar evidente o que e como gostariam que os estudantes aprendessem, tornando também mais visível o processo de aprendizado, e não apenas os seus resultados. Desse modo, os professores e as equipes gestoras pedagógicas da escola passariam a explicitar as intencionalidades do processo de ensino e aprendizagem e os pressupostos que orientam as práticas, bem como os contextos dos estudantes e dos seus respectivos territórios

A segunda experiência foi realizada em Uruçuca, cidade no sul do estado da Bahia que conta com 20.312 habitantes e dispõe de uma rede municipal de educação com 31 escolas e 4.803 estudantes matriculados, entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental II. A iniciativa começou no ano de 2019, com o objetivo de, a partir da concepção de Educação Integral, apoiar a construção do “Projeto político pedagógico” (“PPP”) do Centro Integrado de Educação Integral (Ciei) de Serra Grande, distrito da cidade.

A SME e o Crei propuseram que o foco fosse apoiar a implementação do “PPP” no cotidiano da escola a partir da construção participativa do regimento escolar. Assim, passaram a discutir as diretrizes de funcionamento da escola consolidadas pelas necessidades e pelos anseios de toda a comunidade.

Durante esse processo formativo, notou-se um hiato significativo entre os dois documentos norteadores da escola: o “PPP” recém-escrito e o regimento escolar. As primeiras análises evidenciaram que os documentos refletiam escolas com princípios e fundamentos distintos, sugerindo questionamentos quanto a o que escola pretendia ser e que sujeitos pretendia formar.

Diante da elaboração dos fundamentos do “PPP”, os participantes decidiram construir um subsídio de avaliação que pudesse enunciar o que o coletivo da escola teria como expectativa para o documento do regimento escolar. Esse processo, disparado a partir da observação e da reflexão sobre o que se pretendia e como se pretendia realizar, materializado por uma matriz de indicadores, fez com que a comunidade pudesse discutir sobre seus desejos e implementar ações para a unidade escolar. Portanto, assim como na experiência anterior, o contexto da prática de Uruçuca/Serra Grande evidencia o potencial de que o processo avaliativo seja considerado um elemento disparador da mudança das práticas escolares.

Processos avaliativos se convertem, assim, em caminhos para a transformação social. Nas experiências descritas, as políticas e as iniciativas se orientam pela adoção de práticas dialógicas nas quais o sentido de avaliar está na promoção de processos reflexivos por parte das comunidades que possam se desdobrar em pactos coletivos nos territórios. É nessa costura permanente entre reflexão e prática coletiva que se alicerçam os projetos de Educação Integral.

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A experiência mostra que a pertinência da avaliação depende desse diálogo territorializado, mas essa ainda é uma fronteira na educação brasileira, tão marcada pelo caráter autoritário da avaliação utilizada como controle externo ou reduzida a provas e testes.

No livro Educação não é privilégio, Anísio Teixeira tece uma dura crítica ao que chama de “arcaísmo da escola brasileira”. Segundo ele:

A atividade escolar consiste em “aulas” que os alunos “ouvem” e, algumas vezes, tomando notas, e “exames” em que se verifica o que sabem, por meio de provas escritas e orais. [...] Esta pedagogia podia perfeitamente funcionar numa escola da Idade Média. A sua filosofia do conhecimento é de que o conhecimento é um corpo de informações sistematizadas sobre as coisas, que se aprendem, compreendendo-as e decorando-as para a reprodução nos exames (TEIXEIRA, 1994).

Superar a tradição brasileira denunciada por Anísio de escolas que selecionam e classificam seus alunos e construir em seu lugar uma escola “prática, de iniciação ao trabalho, de formação de hábitos de pensar, hábitos de fazer, hábitos de trabalhar e hábitos de conviver e participar em uma sociedade democrática, cujo soberano é o próprio cidadão” (TEIXEIRA, 1994), exige garantir a perspectiva participativa em todas as dimensões do fazer educativo. Exige conceber a escola como projeto coletivo e contextualizado.

Nesse sentido, o trabalho do Crei e de seus parceiros tem buscado criar caminhos nos quais a avaliação esteja a serviço da construção de condições para que sujeitos e territórios constituam autonomia em relação ao seu processo de aprendizagem e de desenvolvimento pessoal e coletivo.

Que este trabalho contribua para o necessário alargamento da visão de educação que orienta nossas políticas educacionais e nos permita, assim, superar as marcas centralizadoras, homogeneizantes e, por consequência, excludentes que nos trouxeram até aqui.

Ler, escrever, contar e desenhar serão por certo técnicas a ser ensinadas, mas como técnicas sociais, no seu contexto real, como habilidades sem as quais não se pode viver. O programa da escola será a própria vida da comunidade, com o seu trabalho, as suas tradições, as suas características, devidamente selecionadas e harmonizadas (TEIXEIRA, 1994).

COMO CITAR

MENDES, Fernando; COSTA, Natacha. Concepção e práticas de avaliação na Educação Integral: a participação como vetor da transformação social. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. DOI: https://www. doi.org/10.53343/100521.33-4

FERNANDO MENDES

é gestor do Centro de Referências em Educação Integral (Crei), iniciativa da Associação Cidade Escola Aprendiz. Formado em relações internacionais, atuou por 12 anos na construção e na implementação de políticas públicas educacionais em secretarias

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municipais de Educação na Região Metropolitana do estado de São Paulo.

NATACHA COSTA possui licenciatura em psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e cursa mestrado na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (Feusp). Diretora-geral da Associação Cidade Escola Aprendiz desde 2006, atualmente é membra do Conselho Estratégico Universidade-Sociedade da Universidade Federal de São Paulo (Ceus/Unifesp), do Movimento de Inovação na Educação (MIE), do conselho gestor do Observatório Nacional de Educação Integral da Universidade Federal da Bahia (Ufba), do conselho consultivo do programa “Escolas 2030” no Brasil, e do Coletivo Articulador do Centro de Referências em Educação Integral (Crei).

NOTA

1. Disponível em: https:// educacaointegral.org.br/wpcontent/uploads/2021/01/cadernosubs%C3%ADdios-final-02.pdf. Acesso em: 23 ago. 2022.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

AZEVEDO, Fernando de [et al.]. Manifestos dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores (1959) Fernando de Azevedo [et al.]. Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010.

BRASIL. Ministério da Educação. Plano nacional de educação. Brasília, DF: Ministério da Educação, 2014. Disponível em: http://pne.mec. gov.br/18-planos-subnacionaisde-educacao/543-plano-nacional de-educacao-lei-n-13-005-2014 Acesso em: 23 ago. 2022.

CHAGAS, Marcos Antonio M. das; SILVA, Rosemaria J. Vieira; SOUZA, Silvio Claudio. Anísio Teixeira e Darcy Ribeiro: contribuições para o debate atual. In: MOLL, Jaqueline et al Caminhos da Educação Integral no Brasil: direito a outros tempos e espaços educativos. Porto Alegre: Editora Penso, 2012, p. 72-81.

CREI Política de Educação Integral na prática. São Paulo: Centro de Referências em Educação Integral, 2016. Disponível em: https:// educacaointegral.org.br/napratica/. Acesso em: 23 ago. 2022.

CREI; MOVE SOCIAL; ITAÚ SOCIAL Avaliação na Educação Integral: elaboração de novos referenciais para políticas e programas. São Paulo: Centro de Referências em Educação Integral; Move Social; Fundação Itaú Social, 2019. Disponível em: https:// educacaointegral.org.br/wpcontent/uploads/2020/05/ caderno-avaliacao-na-educacaointegral-4_compressed.pdf Acesso em: 23 ago. 2022. TEIXEIRA, ANÍSIO. Educação não é privilégio. 5. ed. Organização e apresentação de Marisa Cassim. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1994. WIGGINS, G. J.; MCTIGHE, J. Planejamento para a compreensão: alinhando currículo, avaliação e ensino por meio da prática do planejamento reverso. 2. ed. Porto Alegre: Penso, 2019.

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Estudos sobre a serotonina | Desenho de Wagner Montenegro

Construção participativa de um referencial de avaliação do desenvolvimento integral

RESUMO

Este artigo discute o processo de construção e de aprendizado de um referencial de avaliação participativa do desenvolvimento integral de crianças e adolescentes. Esse referencial surge da necessidade de avaliações com uma perspectiva mais ampliada e que valorizem o trabalho das organizações da sociedade civil (OSC) na promoção de oportunidades de aprendizagem e na redução de desigualdades. São destacados aspectos teóricos do desenvolvimento integral e de abordagens de avaliações participativas para analisar as distintas etapas seguidas e os diferentes níveis de participação das OSC nesse processo.

INTRODUÇÃO1

Após dois anos de pandemia de covid-19, não há dúvida de que o Brasil enfrenta um grande desafio na garantia de direitos de crianças, jovens e adolescentes. A pandemia aprofundou desigualdades já existentes, que reduzem as oportunidades de desenvolvimento integral (DI) especialmente de grupos historicamente excluídos, como crianças negras e indígenas, com deficiência, das áreas rurais ou de baixo nível socioeconômico. Transformar esse cenário passa por romper com uma visão estreita das concepções de desenvolvimento humano e de educação.

Empobrecemos a visão da educação quando priorizamos só certas dimensões –como a cognitiva – e esquecemos de outras igualmente importantes, como a cultural, a social e a física. Também empobrecemos a perspectiva de DI quando não reconhecemos outros espaços de aprendizagem para além da escola, essenciais para a redução das desigualdades sociais.

O estudo “Cada hora importa”,2 realizado pelo Itaú Social e pelo Plano CDE em 2021, demonstra que, ao completarem 15 anos, crianças de famílias mais ricas recebem em média 7 mil horas de aprendizado a mais que crianças de famílias mais pobres. É um abismo equivalente a quase 8 anos de carga horária em uma escola regular. São contabilizadas nesse cálculo as horas de oportunidades de aprendizagem da educação formal desde a primeira infância, assim como dos aprendizados no ambiente da família e das atividades extracurriculares, como cursos de idiomas e de artes e atividades culturais, como cinema e teatro. Nesse sentido, o trabalho realizado pelas organizações da sociedade civil (OSC) pode ser um divisor de águas, especialmente por sua atuação em territórios em situação de extrema vulnerabilidade.

Empobrecemos a perspectiva de DI quando não reconhecemos outros espaços de aprendizagem para além da escola, essenciais para a redução das desigualdades sociais

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Mas como avaliar estratégias voltadas para o DI de modo a gerar aprendizados que aprimorem políticas e programas? Referenciais de avaliação do DI têm sido construídos por distintas organizações ou núcleos de pesquisa, mas nem sempre com uma perspectiva participativa. O que acontece, então, quando se escolhe valorizar as comunidades locais e os saberes de atores de fora da escola – como fazem as OSC – em todo o processo de uma avaliação?

O presente artigo tem como objetivo discutir estratégias e aprendizados do Itaú Social na construção de um referencial de avaliação do desenvolvimento integral (ADI) com a participação ativa de organizações sociais de base comunitária. Com esse referencial, nosso propósito é: i) gerar consciência sobre distintas dimensões que compõem o DI; ii) fomentar a reflexão sobre experiências essenciais para a promoção dessas dimensões; iii) apoiar processos formativos de educadores e aprimorar ações; e iv) identificar progressos e dar visibilidade ao trabalho das OSC.

A palavra-chave é aprendizado. Por isso, em vez de fazer rankings de desempenho que possam estereotipar crianças e organizações, o modelo de construção e implementação da ADI se concentra nos aspectos formativos que podem ser gerados em todo esse processo e nos seus resultados. Nesse sentido, a construção participativa do próprio referencial e dos seus instrumentos se torna um elemento fundamental. Este artigo compartilha a experiência dessa jornada em cinco seções. Esta introdução é seguida de uma discussão sobre a visão de DI e sobre o papel das OSC na sua promoção. Depois, descrevem-se o referencial teórico de avaliações participativas e a estrutura de construção da avaliação participativa de DI. Por último, são apresentadas as considerações finais, os aprendizados e os desafios para a construção do referencial.

O QUE SIGNIFICA DI?

O desenvolvimento integral de crianças, jovens e adolescentes é a combinação de diferentes processos que confluem para o florescimento do ser humano no seu sentido mais amplo e pleno, de modo que ele possa ser e realizar o que valoriza e o que busca perseguir na sua vida e inspirar na sociedade. Implica considerar toda a multidimensionalidade do sujeito, que articula desde funcionamentos elementares e essenciais para a vida, como o adequado desenvolvimento físico-motor, até habilidades e competências mais complexas, como o exercício da autonomia (SEN, 2000; ALKIRE, 2002).3

Promover o DI é dar importância a todas essas distintas dimensões sem hierarquia. Todas são igualmente importantes para se alcançar o pleno potencial humano

Alinha-se a essa perspectiva o conceito de educação integral, que reconhece a centralidade do sujeito e a importância de promover experiências não só para o seu desenvolvimento intelectual, mas também para o seu desenvolvimento físico, social, emocional e cultural. Assim, promover o DI é dar importância a todas essas distintas dimensões sem hierarquia. Todas são igualmente importantes para se alcançar o pleno potencial humano.

A educação integral considera os espaços, os tempos e os conteúdos necessários para o desenvolvimento humano (LOMONACO; SILVA, 2013). Os espaços são os diferentes ambientes em que se constroem experiências múltiplas de aprendizado, e com a participação de distintos agentes. Não se referem só à escola, mas também à

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Figura 1: Fatores e processos na promoção do DI

CONDIÇÕES

• Infraestrutura

• Recursos

• Oferta/acesso

• Espaços

• Ativos e organizações sociais dos territórios

• Formação de professores e de educadores sociais

• Nível socioeconômico

• Mentalidades e expectativas

PROCESSOS

• Práticas pedagógicas

• Qualidade de experiência

• Currículo

• Participação comunitária e de inclusão

• Articulações em rede de atores, setores e OSC

• Participação da família

• Formas de organização dos tempos e dos espaços para as experiências pedagógicas

RESULTADOS MULTIDIMENSIONAIS

• Emocional

• Cultural

• Social

• Físico

• Intelectual

Fonte: elaboração própria, com base nos estudos do Itaú Social e do Cenpec (2011), e do Centro de Referências em Educação Integral (WEFFORT; ANDRADE; COSTA, 2019).

família e à comunidade. Conforme a Figura 1, existem condições e processos que influenciam o resultado do DI, e deve-se reconhecer o papel das OSC nesses aspectos.

O PAPEL DAS ORGANIZAÇÕES SOCIAIS NA PROMOÇÃO DO DI

Garantir os direitos das crianças e dos adolescentes com absoluta prioridade é uma responsabilidade compartilhada entre o Estado e toda a sociedade, como determina a “Constituição federal de 1988”. Apesar disso, de acordo com um levantamento realizado pela organização Todos pela Educação, em 2021 existiam no Brasil mais de 650 mil crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos fora da escola, tendo seu direito básico à educação negado. Somam-se a essa situação outras violações de direito presentes na nossa sociedade e que representam barreiras para o desenvolvimento pleno de crianças, adolescentes e jovens, tais como: insegurança alimentar, trabalho infantil, violências de múltiplas naturezas e exclusão.

De acordo com o Mapa das Organizações da Sociedade Civil produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) em 2022, existem mais de 500 mil OSC que atuam nas áreas de defesa de direitos; cultura e recreação; assistência social; e educação e pesquisa. Essas organizações estão em atividade no país contribuindo diretamente para o DI de crianças, adolescentes e jovens, na medida em que ampliam o acesso à cultura, à educação, às práticas esportivas e ao lazer.

Apesar desse trabalho fundamental, as OSC ainda estão longe de receber o devido reconhecimento e o apoio amplo da sociedade. A quarta edição da “Brasil giving report” – pesquisa promovida pela britânica Charities Aid Foundation e pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis) –, de 2020, mostrou que somente um terço da população adulta brasileira confia nas OSC do país.

Um obstáculo para a superação dessa desconfiança é a dificuldade que as OSC têm em mensurar e comunicar para a sociedade seus resultados e impactos. Para aquelas que atuam em prol do DI de crianças, adolescentes e jovens, o desafio é ainda maior, uma vez que o DI é entendido como um conceito ou resultado amplo de-

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mais, pouco tangível, que pode demorar um longo tempo até ser observado, e que depende extremamente de fatores externos à atuação das organizações.

Dessa forma, entende-se que, ao propor uma metodologia factível e instrumentalizar as OSC para avaliarem o alcance dos resultados pretendidos, mais especificamente o desenvolvimento pleno de meninas e meninos, a ADI contribuirá para o fortalecimento dessas organizações não só na perspectiva da reflexão estratégica e da qualificação contínua de suas atividades, mas também para conquistarem maior credibilidade perante a sociedade.

A IMPORTÂNCIA DE AVALIAÇÕES PARTICIPATIVAS

Pesquisas e avaliações participativas envolvem ativamente tomadores de decisão ou comunidades em distintas fases do processo (BRANDON, 1998). Existem abordagens específicas, como a avaliação colaborativa (collaborative evaluation), que busca engajar sistematicamente os tomadores de decisão no planejamento e na implementação de um programa para tornar as avaliações mais potentes desde o desenho e a coleta de dados até a análise de resultados e seus usos (O’SULLIVAN, 2012). Outra abordagem, a avaliação de empoderamento (empowerment evaluation), fundamentada por Fetterman (2010), diferencia-se da anterior por considerar, além do envolvimento dos participantes, a sua maior autonomia para conduzir seu próprio processo de avaliação e para usar os resultados como forma de advocacy para fortalecer suas próprias causas (PATTON, 1997). Com base no trabalho de Vaughn e Jacquez (2020), na Figura 2, pode-se ilustrar as diferenças de abordagens pelo grau de participação dos interessados em um processo avaliativo.

Patton (1997) menciona que as avaliações participativas têm o propósito de “construir capacidades” nas comunidades ou nos atores. A construção de capacidades se fortalece na medida em que há uma aprendizagem no processo e

Figura 2: Níveis de participação em avaliações de programas

INFORMAR

Avaliadores informam as partes interessadas CONSULTAR

Avaliadores solicitam insumos e feedbacks às partes interessadas ENVOLVER

Avaliadores e partes interessadas estabelecem uma comunicação de mão dupla

COLABORAR

Avaliadores e partes interessadas trabalham em parceria

EMPODERAR

Partes interessadas lideram o processo de avaliação e a tomada de decisões

Fonte: adaptado de Vaughn e Jacquez, 2020.

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EMPODERARCOLABORARENVOLVERCONSULTARINFORMAR COLETA DESENHO PARCERIA DISSEMINAÇÃO AÇÃO ANÁLISE

no uso de resultados que reforça a participação e a capacidade de melhorar as intervenções. Creswell e Clark (2018) também mencionam que as avaliações participativas buscam incluir a voz de pessoas que são afetadas pelas problemáticas, assim como procuram ser sensíveis à realidade cultural e contextual das comunidades.

Essas avaliações não têm uma metodologia única, são mais bem descritas pelo conjunto de princípios escolhidos e pelo engajamento dos atores no processo (BURKE, 1998). Para este estudo, destacaram-se os princípios descritos por Burke (1998), por abrangerem qualquer abordagem participativa dentro de programas sociais:

i. a avaliação deve envolver e ser útil para os fins do programa e para as partes interessadas; ii. a avaliação deve ser responsiva em relação ao contexto cultural; iii. a metodologia de avaliação deve respeitar e usar os conhecimentos e as experiências das partes interessadas; iv. a avaliação deve construir capacidades tanto no processo quanto nos resultados para as partes envolvidas; v. a avaliação deve favorecer métodos coletivos de geração de conhecimento; vi. os avaliadores ou facilitadores do processo devem compartilhar de um balanço de poder com as partes interessadas do programa; vii. os atores que participam da avaliação devem continuamente fazer uma reflexão e uma autocrítica de suas atitudes, suas ideias e seus comportamentos. Dessa forma, gera-se o aprendizado dos próprios erros e acertos dos processos avaliativos.

Figura 3: Processo de avaliação participativa do DI

AVALIAÇÃO PARTICIPATIVA DO DI

CONSTITUIÇÃO DO GRUPO CONSULTIVO

Definição do grupo a partir de critérios de diversidade e participação das OSC

Construção coletiva dos papéis e das responsabilidades no projeto:

• participação nas reuniões virtuais

• análise e leitura crítica de materiais e realização de exercícios

• parceria na testagem e na aplicação do piloto do índice

Fonte: elaboração própria.

DEFINIÇÃO E VALIDAÇÃO DAS DIMENSÕES DO DI

Discussão coletiva sobre o DI e sobre a pertinência das dimensões para o trabalho

CONSTRUÇÃO DAS SUBDIMENSÕES

Revisão a partir das subdimensões da Base Nacional Comum Curricular (BNCC)

Sistematização das definições

Criação dos descritores com os especialistas

ESCOLHAS METODOLÓGICAS

Revisão bibliográfica de outras matrizes de avaliação

Proposta da escala (de três ou de cinco pontos)

Tipo de aplicação (autoaplicada)

Escolha da faixa etária (crianças a partir de 10 anos)

DESENVOLVIMENTO DO INSTRUMENTO

Criação dos itens Desenvolvimento do questionário Aplicação do pré-teste e avaliação do questionário com os educadores das OSC

Aprimoramento do instrumento com as devolutivas do pré-teste

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ATUAÇÃO
DO GRUPO CONSULTIVO

ESTRUTURA E PROCESSO DE CONSTRUÇÃO DA AVALIAÇÃO PARTICIPATIVA

A estrutura de avaliação seguiu as etapas elencadas na Figura 3 e o processo de participação das OSC foi acordado em conjunto. Esse processo de construção participativa será descrito a seguir.

Definição e validação das dimensões de DI O primeiro passo para garantir a construção da avaliação participativa foi a constituição, no início de 2020, de um grupo consultivo de dez OSC selecionadas com base nos seguintes critérios: i) receber apoio do Itaú Social e trabalhar com crianças, adolescentes e jovens na perspectiva do DI; ii) ter diversidade regional; iii) atuar em diferentes áreas; e iv) ter equipes com experiência em monitoramento e avaliação. Dessa forma, o grupo contribuiria de maneira coletiva, a partir do compartilhamento de experiências, críticas e sugestões ao longo de todo o projeto. Essas organizações apresentavam distintas estruturas e especialidades, e estavam distribuídas pelas cinco regiões do país. São exemplos a WimBelemDon, no Rio Grande do Sul, que trabalha com a inclusão e o desenvolvimento das crianças por meio da prática esportiva; e a AMFMT, do Mato Grosso, que tem como foco as manifestações folclóricas e culturais da região.

Casa do Rio Igapó-Açu (AM) Vaga Lume Amazônia

AMFMT Várzea Grande (MT)

Ibeac São Paulo (SP)

Bairro

WimBelemDon Porto Alegre (RS)

Fundação Raimundo Fagner Orós (CE) CPCD Belo Horizonte (MG)

BemTV Niterói (RJ)

Instituto Bola pra Frente Rio de Janeiro (RJ)

A partir do referencial teórico de avaliações participativas, garantimos que as OSC se engajassem de diferentes formas e intensidades no processo. Nas primeiras conversas, procuramos identificar como enxergavam a contribuição desse processo de avaliação para o desenvolvimento de suas atividades. Nesse exercício, que colaborou para uma visão compartilhada, educadores de distintas OSC mencionaram, por exemplo, que a ADI iria “mostrar as ações/os resultados já existentes, mas que não são registrados nem apresentados para a sociedade, pois estão ‘invisíveis’”; assim como “provocar uma autoanálise organizacional”; e que poderia

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Figura 4: Organizações da sociedade civil participantes do grupo consultivo Fonte: elaboração própria. da Juventude Criciúma (SC)

“levar acesso e oportunidades no meio urbano e rural a partir do conhecimento das realidades”.

Um segundo momento foi a definição das dimensões de DI. Esse processo teve como ponto de referência o repertório do trabalho do Itaú Social na promoção da educação integral iniciado em 1995 com o Prêmio Itaú-Unicef, uma parceria com o Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e o Centro de Estudos

Figura 5: Dimensões da ADI

CULTURAL SOCIAL

elaboração própria.

e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec). Essa experiência, em diálogo com as OSC, definiu as cinco dimensões do referencial da ADI explicitadas na Figura 5.

A dimensão física relaciona-se à compreensão das questões do corpo, do autocuidado, da atenção à saúde, da potência e da prática física e motora. A dimensão emocional refere-se às questões do autoconhecimento, da autoconfiança, da determinação, do sentimento de pertencimento, da autoestima, do equilíbrio emocional e da resiliência. A dimensão social é relativa à consciência social e ambiental, ao exercício da cidadania, à valorização das diversidades, à convivência, ao diálogo e à colaboração. A dimensão intelectual está associada à apropriação de linguagens, códigos e tecnologias, ao exercício da lógica e da análise crítica, ao planejamento de vida, à autonomia, à capacidade de expressão, à criatividade e à atenção. Por último, a dimensão cultural diz respeito à apreciação e fruição das diversas culturas, às questões identitárias, à produção cultural em suas diferentes linguagens e ao respeito de diferentes perspectivas, práticas e costumes sociais.

Construção das subdimensões

As dimensões foram trabalhadas em conjunto com especialistas e com as OSC para especificar seu significado no contexto de trabalho dessas organizações, desenvolvendo-se a partir daí as subdimensões, que eram até então uma lacuna. Em uma série de encontros mediados, as OSC avaliaram – com uma escala de muito relevante, relevante e pouco relevante – uma lista de subdimensões e descritivos gerados a partir das dimensões de DI do Centro de Referências em Educação Integral e do Movimento pela Base Nacional Comum Curricular.4 Esse trabalho foi

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Fonte: I N
TELECTUAL
FÍSICA EMOCIONA L

registrado coletivamente em um documento que também foi compartilhado com educadores e com o corpo técnico das OSC para contribuições colaborativas. A partir dessa análise conjunta, as subdimensões foram construídas, excluindo-se aspectos menos relevantes e adicionando-se subdimensões que estavam relacionadas ao trabalho das OSC mas não eram contempladas por esses referenciais. Na Figura 6, elencam-se as subdimensões definidas.

Figura 6: Subdimensões da ADI

INTELECTUAL

• Criatividade

• Multiletramento

• Análise crítica

• Lógica e raciocínio

• Atenção

• Capacidade de expressão e exposição de ideias

• Aprendizagem ao longo da vida

• Planejamento de vida

• Autonomia

Fonte: elaboração própria.

CULTURAL

• Respeito à diversidade cultural

• Fruição cultural

• Expressão cultural

• Valorização da cultura local

• Identidade cultural

EMOCIONAL

• Autoconhecimento

• Autoconfiança e determinação

• Sentimento de pertencimento

• Equilíbrio emocional

• Resiliência

• Autoestima

FÍSICA

• Autocuidado

• Movimento corporal

• Consciência corporal

SOCIAL

• Consciência social e ambiental

• Cidadania

• Convivência, diálogo e colaboração

• Valorização das diversidades

Para realizar a ponte entre as subdimensões e o instrumento de coleta, no primeiro semestre de 2021, desenvolvemos descritores com seus respectivos itens ou perguntas para medir cada subdimensão. Nesta etapa, os descritores foram propostos por especialistas em cada uma das dimensões e, com o apoio das OSC, posteriormente adaptados às suas realidades de trabalho.

Tabela 1: Exemplo de estruturação da dimensão cultural

Dimensão Subdimensão Definição Descritor

Itens – perguntas Cultural Respeito à diversidade cultural

Reconhece a existência e a importância das diversas culturas, convivendo respeitosamente com o diferente

Reconhece, respeita e valoriza a diversidade cultural de sujeitos e histórias, manifestando interesse pelo outro e pela sua cultura

Gostaria de participar de festivais e outros eventos de culturas e religiões diferentes da minha Eu me relaciono com pessoas que têm cultura ou crenças diferentes da minha

Gosto de ouvir, falar ou conhecer outras culturas (idiomas, comidas, costumes etc.)

Fonte: elaboração própria.

Escolhas metodológicas

Para fundamentar as escolhas metodológicas, foi feita uma comparação dos principais referenciais e metodologias de avaliação do desenvolvimento infantojuvenil,5 destacando-se aspectos como: i) os tipos de escalas (de 3 ou 5 pontos); ii) os prós e os contras dos métodos de aplicação (autodeclaração, observação ou aplica-

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ção com educadores ou familiares); e iii) a idade sugerida para a autodeclaração. Sobre o primeiro aspecto que se relaciona à construção da escala, buscava-se garantir uma maior facilidade de interpretação por parte de crianças e adolescentes, assim como permitir maior sensibilidade para captar mudanças do indicador ao longo do tempo. De acordo com a análise e as devolutivas de crianças e jovens, foi escolhida a escala de cinco pontos, vista na Figura 7.

Figura 7: Escala definida para o instrumento

ESCALA DE CONCORDÂNCIA DE CINCO PONTOS

Sobre as metodologias de aplicação, analisamos seus prós e seus contras e as evidências apontaram que os questionários autodeclarados, aqueles respondidos conforme a autopercepção das crianças, foram os que se mostraram mais viáveis em termos de facilidade de aplicação e de uso autônomo pelas OSC. Esses questionários também apresentaram maiores evidências sobre testes e validações das dimensões estudadas, além de serem os menos custosos. Os instrumentos de observação que podem ser aplicados por educadores tendem a ser mais custosos, pois implicam observar o comportamento da criança em uma atividade específica e por um espaço de tempo. Esses tipos de metodologia requerem maior treinamento e são mais demoradas.

Por fim, as referências apontaram que os questionários autodeclarados têm maior aderência entre crianças a partir dos 10 anos.6 A idade é um ponto crucial, considerando-se os aspectos da linguagem ou a alfabetização. A partir disso, optou-se pelo desenvolvimento de dois questionários, um com itens para crianças de 10 e 11 anos e outro para adolescentes de 12 a 18, com diferentes graus de complexidade, conectados a essas faixas etárias.

Desenvolvimento de instrumentos de coleta

O maior desafio enfrentado nesta etapa, considerando-se as premissas da avaliação participativa, foi manter o engajamento das OSC do grupo consultivo na revisão de bibliografia, nas definições metodológicas e na criação do questionário, já que envolviam muitos aspectos técnicos. Nesse sentido, foi realizado um pré-teste para colher sugestões dos educadores, das crianças e dos jovens participantes.

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Não entendi Não entendi Fonte: elaboração própria. ESCALA DE FREQUÊNCIA DE CINCO PONTOS Discordo Raramente Concordo totalmente Sempre Concordo Quase sempre Mais ou menos Às vezes Discordo totalmente Nunca

O pré-teste foi realizado em três OSC do grupo consultivo – Bairro da Juventude (SC), Casa do Rio (AM) e AMFMT (MT) –, escolhidas de modo a abarcar diferentes contextos regionais e de desenvolvimento institucional. Além da aplicação do questionário, foram feitas rodas de conversa para que as crianças e os jovens apontassem palavras não compreendidas, itens não aderentes e percepções sobre como se sentiram respondendo a um instrumento como aquele. Os educadores, por sua vez, avaliaram cada um dos itens do questionário apontando sua relevância, sua aderência e sua compreensão, e também participaram de uma roda de conversa. Tanto o questionário quanto as reflexões sobre os temas abordados foram muito bem recebidos, conforme ilustram os depoimentos de uma criança e de um jovem:

Nunca havia parado para pensar sobre como eu me sentia quando eu me olhava no espelho (Comentário de uma criança sobre um item da subdimensão autoestima).

Acho muito importante essa discussão sobre acesso à cultura. Às vezes a gente tem o local, tem o cinema, tem a biblioteca, mas não tem o acesso, não consegue ir porque é longe, porque é caro ou porque nem sabe que tem (Comentário de um jovem sobre um item da subdimensão fruição cultural).

Eles também apontaram que o bate-papo foi um momento importante para que pudessem expressar suas opiniões, tirar dúvidas, dar sugestões e conversar sobre o que responderam. Essa participação teve uma contribuição importante na ampliação do escopo do referencial de avaliação, ao mostrar um valor intrínseco da autopercepção dessas crianças e desses jovens do seu próprio desenvolvimento. Eles acharam valor na escuta e mostraram que a avaliação pode ser uma ponte para o diálogo sobre os temas de DI e a sua mediação.

O caráter formativo da avaliação também foi bastante destacado pelos educadores. Eles se surpreenderam positivamente ao identificar temas apontados que necessitavam de um maior trabalho por parte das OSC. Segundo o depoimento de um dos educadores: “As crianças e os jovens querem participar, querem se sentir parte dos processos. Dando uma abertura, eles mostram que querem melhorar, que querem nos ajudar a melhorar”.

Tendo em vista as devolutivas, foram feitos aprimoramentos no instrumento e definidos alguns pontos da metodologia que estavam em aberto. A partir das conversas e da análise dos resultados, a escala escolhida foi a de cinco pontos, também indicada pela literatura por permitir uma maior sensibilidade e a variação ao longo do tempo. Um dos adolescentes que participaram do pré-teste chegou a apontar: “Eu preferi a de cinco pontos pois me deu mais opções de responder às questões”.

A roda de conversa foi um momento marcante. As crianças e os jovens se sentiram acolhidos e escutados, e os educadores identificaram espaços formativos e de aproximação em relação aos seus educandos. Por causa do seu resultado positivo, esse processo de escuta entre crianças, jovens e educadores foi incorporado de modo definitivo à versão final da metodologia de aplicação. Com base nessas devolutivas do pré-teste, a aplicação da avaliação foi aprimorada para seguirmos à etapa do piloto com todas as OSC participantes do grupo consultivo, de forma

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a colher amostras suficientes para validar a metodologia e o questionário. Essa etapa está sendo implementada no momento da escrita deste artigo, podendo-se sistematizar seus aprendizados posteriormente.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A roda de conversa foi um momento marcante. As crianças e os jovens se sentiram acolhidos e escutados, e os educadores identificaram espaços formativos e de aproximação em relação aos seus educandos. Por causa do seu resultado positivo, esse processo de escuta entre crianças, jovens e educadores foi incorporado de modo definitivo à versão final da metodologia de aplicação

Nesse processo de construção participativa, aprendemos que avaliar o DI é um assunto muito complexo e desafiador. Qualquer questionário ou índice que possa ser utilizado em uma avaliação com esse sentido possui limitações, já que são simplificações da realidade. Isso não faz com que esses questionários e índices deixem de ser importantes para o fortalecimento das OSC, já que estabelecem parâmetros que lançam luz sobre os aspectos mais avançados de seu trabalho, assim como sobre os pontos que necessitam de mais apoio e melhoria.

Mais do que índices e medidas, o valor dessa construção participativa encontra-se no processo formativo. Cada etapa trouxe aprendizados de como garantir uma participação genuína e aderente aos princípios de avaliações participativas. Foi importante, no processo, a construção conjunta das etapas e das formas de participação entre avaliadores, mediadores, especialistas e OSC. Com essa diversidade de olhares, nem sempre é fácil garantir o balanço de poder e o acolhimento das contribuições. Abertura e flexibilidade foram necessárias, respeitando-se o processo de idas e vindas. O desafio se converteu em riqueza pelas oportunidades de interação, de revisão de escolhas, de discussão de ideologias, de alteração de rotas e de ampliação de perspectivas de DI.

Reconhecer a complexidade natural do tema e do processo sem se desmobilizar diante dos desafios nos permitiu dar passos importantes com o que era possível em cada momento, sem aguardar metodologias perfeitas. As trocas com participantes contribuíram muito mais para elucidar questões e desatar nós do que o esforço isolado de fazer revisões bibliográficas ou modelos estatísticos sofisticados. É assim, valorizando essa multiplicidade de saberes e de experiências de OSC, educadores, crianças, adolescentes e jovens em todo o processo, que enriquecemos a perspectiva de DI – e os usos de sua avaliação.

COMO CITAR

MACANA, Esmeralda C. et al Construção participativa de um referencial de avaliação do desenvolvimento integral. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.33-5

ESMERALDA CORREA

MACANA

é mestra e doutora em economia do desenvolvimento pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Atuou como consultora do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) e na equipe técnica do “Relatório nacional de desenvolvimento humano” do Brasil (2010) e do Panamá (2014). Lecionou

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economia na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS). Desde 2017, é especialista em monitoramento e avaliação no Itaú Social.

JADE BLANDA FONSECA SARAIVA

é bacharela em ciências e humanidades pela Universidade Federal do ABC (Ufabc) e graduanda em políticas públicas na mesma instituição, com experiência em projetos de organizações da sociedade civil (OSC). Atualmente, trabalha com monitoramento e avaliação no Itaú Social.

LUAN PIRES PACIENCIA

é mestre em economia pela Universidade de São Paulo (USP), com experiência em avaliação de impacto de programas de educação. Desde 2017, trabalha com monitoramento e avaliação de projetos sociais desenvolvidos por organizações da sociedade civil (OSC) no Itaú Social.

RAYSSA DEPS BOLELLI

é graduada em economia pela Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes) e mestra em desenvolvimento econômico pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi trainee em gestão pública pelo programa da Vetor Brasil, tendo atuado no monitoramento de políticas públicas na Secretaria de Economia e Planejamento (SEP) do Espírito Santo. Atualmente, trabalha com monitoramento e avaliação de projetos no Itaú Social.

NOTAS

1. Os autores agradecem a revisão e as contribuições de Patrícia Mota Guedes, assim como o apoio de Jade Blanda Fonseca Saraiva.

2. Este estudo, baseado no trabalho da organização não governamental (ONG) americana ExpandED Schools (2013), estima em horas as brechas de oportunidades de aprendizado das crianças e dos jovens brasileiros.

3. Essa definição é baseada na abordagem de desenvolvimento humano de Amartya Sen e de outros pensadores que o seguem, como Sabina Alkire (2002).

4. A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) é um documento de caráter normativo que define o conjunto orgânico e progressivo de aprendizagens essenciais que todos os alunos devem desenvolver ao longo das etapas e das modalidades da Educação Básica.

5. Alguns dos critérios definidos para escolher as metodologias de avaliação do desenvolvimento que seriam objeto de análise foram: avaliações abordando múltiplas dimensões com pesos equivalentes; avaliações com acesso público e/ou validadas em espanhol ou em português; e avaliações enfocando a faixa etária dos 6 aos 18 anos, excluindo-se instrumentos para a primeira infância e para os adultos. Entre as abordagens selecionadas, encontram-se aquelas de organizações como a Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE); a Unicef Oriente Médio e Norte da África; a Casel Framework; a Fundação Corona, da Colômbia; e a 21st Century Learning International.

6. As evidências indicam que os autorrelatos sobre personalidade e sobre habilidades sociais e emocionais podem ser usados com crianças a partir dos 10 anos

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de idade (SOTO et al., 2011). Essa capacidade depende de uma série de fatores críticos, que incluem a proficiência em linguagem e o desenvolvimento cognitivo e social (JOHN; DE FRUYT, 2015). As crianças precisam já ter adquirido certo vocabulário e um nível básico de leitura para poder realizar a avaliação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Frame de Sethico | Foto de Breno César, montagem de Felipe Correia e lambe de Filipe Gondim

Relative values: apreendendo o valor da cultura

RESUMO

O artigo apresenta a relative values, metodologia proposta pelo People’s Palace Projects, centro de pesquisa em artes com sede em Londres. Explicitam-se a relação entre os objetivos do trabalho e a importância do seu caráter colaborativo, reforçado a cada edição. Além de um breve histórico e de alguns dos resultados verificados, são apresentados os instrumentos que estruturam a metodologia e garantem sua multidimensionalidade, utilizada para evidenciar os diferentes impactos socioeconômicos das atividades artísticas e culturais analisadas.

Qual é o valor da cultura? Além das convencionais, quais medidas podemos utilizar para expressar o valor das artes e da cultura que sejam capazes também de evidenciar o impacto dessas sobre o desenvolvimento social? Nesse sentido, que histórias as organizações artísticas e culturais podem e desejam compartilhar sobre o valor de seu trabalho? Essas foram nossas principais inquietações para propor uma metodologia multidimensional de mensuração do valor da cultura em diferentes contextos, que chamamos de relative values, para dar a ideia de que o valor nunca é intrínseco, mas sempre referente às relações humanas.

Como David Throsby (2001), entendemos que o valor não é estático, e sim algo definido por meio de trocas e relações sociais. Nossa proposta, contudo, utiliza uma outra lente para pensar o valor cultural e buscar compreender como as artes e a cultura fazem a diferença para as pessoas. Com a metodologia relative values, analisamos o valor cultural a partir da perspectiva daqueles que se engajam em atividades artísticas e culturais nos mais diferentes contextos.

Em conjunto com organizações culturais, a metodologia desenvolve instrumentos analíticos capazes de evidenciar os diferentes impactos socioeconômicos de atividades artísticas e culturais. O objetivo é propor métricas que expressem o valor das artes e da cultura para além de contribuições monetárias, sem, contudo, desconsiderar sua dimensão econômica. Além disso, o caráter colaborativo é central nessa metodologia. Por um lado, trabalhar junto às organizações em todas as etapas da pesquisa contribui para o desenvolvimento de instrumentos de análise válidos. Por outro, entendemos que uma dinâmica horizontalizada de condução da pesquisa democratiza o processo e permite que se estabeleça uma cultura de pesquisa por meio do estímulo e da ativação das capacidades analíticas dos agentes criativos parceiros.

Compreender métodos de pesquisa e saber coletar dados que demonstrem o valor do trabalho criativo é essencial para que as próprias organizações culturais possam identificar, avaliar e divulgar o impacto socioeconômico de sua atuação. Com isso, podem aprimorar e reforçar essa atuação, bem como ter bases sólidas que subsidiem

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o diálogo e a articulação com suas comunidades e com demais agentes culturais, instituições, tomadores de decisões e atores relevantes para suas práticas.

BREVE HISTÓRICO

A primeira aplicação da metodologia ocorreu em 2016 e 2017, com o projeto “Relative values I”. Na ocasião, buscamos investigar o impacto de organizações artísticas que atuam em territórios urbanos socioeconomicamente vulneráveis do Brasil e do Reino Unido. Para isso, firmamos uma parceria com quatro organizações: a Agência de Redes para Juventude e o Centro de Artes da Maré, do Rio de Janeiro (RJ), o Battersea Arts Centre, de Londres, e o Contact Theatre, de Manchester (Inglaterra).

Posteriormente, adaptamos a metodologia para que pudesse ser aplicada por artistas e produtores culturais, e não apenas por grandes organizações. Por meio de uma parceria com a Redes da Maré e a Agência de Redes para Juventude, em 2019, iniciamos o projeto “Beyond exchange (relative values II)”. Essa edição da pesquisa consistiu em um programa de aprendizado compartilhado envolvendo jovens atuantes em projetos culturais e artísticos de periferias e favelas da Região Metropolitana do Rio de Janeiro.

A terceira edição da pesquisa, realizada em parceria com o programa Rumos, do Itaú Cultural, aplicou a metodologia em colaboração com cinco projetos brasileiros: a Editora Gráfica Heliópolis, o Grupo Ninho de Teatro, o Hip-hop caboclo, o verdeVEZ e o Retratistas do morro. Com isso, o escopo da pesquisa foi ampliado para o nível nacional, tornando possível empregar a metodologia em novos contextos.

Finalmente, a mais recente aplicação compreendeu o projeto “Raízes de resiliência”, que, em parceria com o instituto Inhotim, estruturou uma rede de colaboração entre cinco organizações do Quadrilátero Ferrífero, de Minas Gerais: a Corporação Musical Banda São Sebastião, a Casa Quilombê, o Clube Osquindô, a Fundação Cultural Carlos Drummond de Andrade e o Grupo Atrás do Pano. Essa edição, especificamente, abordou as relações socioeconômicas entre as organizações participantes e seu público, seus membros e seu território/comunidade, de um lado; e, de outro, a atividade minerária, tão presente na região. Dessa forma, a temática da percepção de riscos potenciais ao patrimônio cultural da região também foi dimensionada. Em razão do contexto sanitário dos anos 2020 e 2021, também foi avaliado o impacto da atuação dessas organizações sobre a saúde mental de seu público e de seus membros, bem como os efeitos da suspensão de suas atividades.

Atualmente, uma nova parceria entre o People’s Palace Projects e o Rumos está em desenvolvimento. Procurando consolidar a transversalidade da metodologia, assim como seu potencial de promover informações comparáveis, a pesquisa em andamento abrange 19 projetos desenvolvidos em todo o Brasil. Transitando entre o geral e o específico, essa experiência tem trabalhado com um volume maior de dados e projetos, sem, entretanto, perder de vista as singularidades de cada experiência e contexto. Temos buscado minimizar as limitações e potencializar as vantagens tanto das análises mais gerais quanto das mais aprofundadas, combinando metodologias e lançando mão do conhecimento e das vivências dos nossos parceiros responsáveis pelos projetos envolvidos no estudo.

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O VALOR DA CULTURA: DETALHANDO

A METODOLOGIA RELATIVE VALUES

Organizações culturais, por meio de seus projetos e de suas práticas criativas, tornam-se agentes capazes de afetar a realidade em que atuam. Entendemos que essas organizações e esses projetos podem ter efeitos positivos diretos ou indiretos sobre os indivíduos, os grupos sociais e os territórios com os quais interagem. Para captar esses diferentes impactos, propomos uma metodologia que combina métodos quantitativos e qualitativos por meio da construção de uma série de indicadores relativos ao desenvolvimento socioeconômico, à relação entre os indivíduos e sua comunidade, à autoconfiança, à democracia cultural, ao engajamento social e ao desenvolvimento de habilidades.

Indicadores são ferramentas analíticas que sistematizam informações variadas utilizando, para isso, códigos geralmente numéricos. Essas informações, que muitas vezes são conceitos abstratos, são organizadas como variáveis e compõem um banco de dados. Esse processo nos possibilita atribuir valor a essas informações, de maneira que nossos indicadores funcionem como medidas de um ou outro conceito. Por exemplo, indicadores do conceito “qualidade de vida” podem ser expressos por meio de taxas, de proporções ou de índices, calculados a partir de uma só variável ou de uma combinação de variáveis (JANNUZZI, 2001). Dessa forma, podemos gerar dados consistentes e comparáveis relativos ao valor do trabalho das organizações artísticas e ao seu impacto sobre o desenvolvimento social e econômico.

Visando desenvolver indicadores válidos e coerentes, bem como procurando oferecer dados e análises para além dessas medidas, estruturamos nossa metodologia em três eixos interconectados, que variam de acordo com a fonte de evidências correspondente a cada um. O primeiro eixo abarca o contexto no qual os projetos parceiros atuam. Nesse sentido, fazemos uso de dados secundários para caracterizar os territórios onde os projetos são desenvolvidos. O segundo eixo, por sua vez, enfoca a atuação dos agentes criativos e sua relação com as comunidades e o seu entorno. Dessa forma, buscamos acessar as trajetórias dessas pessoas e dos seus projetos, dando voz às suas narrativas e aos seus saberes. Para tanto, esta etapa aplica a metodologia qualitativa de pesquisa e conta com a condução de entrevistas em profundidade com os responsáveis pelos projetos.

Indicadores são ferramentas analíticas que sistematizam informações variadas utilizando, para isso, códigos geralmente numéricos

Buscamos acessar as trajetórias dessas pessoas e dos seus projetos, dando voz às suas narrativas e aos seus saberes

Finalmente, o terceiro eixo volta-se para os impactos socioeconômicos dos projetos sobre o seu público e/ou sobre a rede de pessoas envolvida na sua estruturação. Para cumprir esse objetivo, fazemos uso da metodologia quantitativa de pesquisa, aplicando questionários estruturados a dezenas (e até centenas) de pessoas que possam ter sido impactadas pela atuação dos projetos analisados. Em conjunto com os agentes criativos responsáveis pelos projetos e as organizações parceiras, definimos seis linhas temáticas a serem abordadas nos questionários, para além das questões sociodemográficas (gênero, raça, escolaridade, renda e local de moradia), a saber:

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i. acesso à cultura: partindo da compreensão de que os processos de democratização e dinamização cultural devem respeitar as práticas locais e suas referências, esta temática envolve indicadores relacionados às características dos participantes, à sua frequência de participação e à sua percepção sobre as atividades e práticas culturais realizadas;

ii. redes de contato e convívio: temática relacionada aos impactos dos projetos sobre as relações sociais dos indivíduos, a geração de novas redes e a presença de artistas e de outros profissionais da cultura nessas redes;

iii. autoconfiança: pelo caráter subjetivo da temática, esta linha mapeia a percepção dos indivíduos sobre si mesmos após a participação e/ou o contato com os projetos;

iv. identidade cultural: temática transversal aos projetos com os quais trabalhamos que analisa o impacto das atividades realizadas sobre as identidades e as memórias dos grupos sociais envolvidos;

v. vínculo com seu território e sua comunidade: considerando a conexão entre as ações culturais e os repertórios das comunidades em que ocorrem, esta temática mapeia os impactos dos projetos sobre a relação entre os indivíduos envolvidos e os territórios abarcados, como mudanças na sua sensação de pertencimento a esses lugares;

vi. engajamento social: avalia como – ou se – os projetos fomentaram reflexões de cunho político-social e ações propositivas por parte dos colaboradores.

Dessa forma, a pesquisa cobre uma gama de aspectos sociais e econômicos que podem ser afetados pelo envolvimento entre as pessoas entrevistadas e as organizações e os projetos culturais e artísticos analisados. Temos percebido que o vínculo com esses projetos promove o desenvolvimento de novas habilidades ligadas às artes e à criatividade, além de ampliar o contato das pessoas com várias formas de manifestação cultural. Nesse sentido, os indivíduos também expandem suas redes de relações sociais e profissionais, encontrando no campo cultural novas alternativas de atuação profissional. Além disso, esse público tem manifestado sentir-se mais confiante para desenvolver variadas atividades profissionais, sociais, educativas, culturais e políticas. Outro tipo de impacto recorrente é o estabelecimento ou o reforço da conexão entre essas pessoas e as práticas culturais de suas comunidades e de seus territórios – o que muitas vezes estimula seu engajamento em ações que tenham como foco esses lugares.

Muitos desses resultados são antecipadamente percebidos pelos agentes criativos, que estão em contínuo envolvimento com o público afetado por seu trabalho. A pesquisa cumpre, então, o papel de levantar os dados que evidenciam esses resultados. Assim, mais do que intuídas, essas informações podem ser acessadas e compartilhadas. Isso é relevante tanto para a dinâmica interna das organizações, que têm uma base para se planejar e identificar suas fragilidades e qualidades, quanto para as suas relações externas com potenciais investidores, com o poder público e com seus pares. Demais resultados, ainda que não antecipados, também informam e embasam o funcionamento desses projetos, afetando essas mesmas dinâmicas.

O mais importante, podemos dizer, é que o envolvimento e a prática com a pesquisa se mantêm, deixando um legado de experiências e de conhecimentos que

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servirão para futuros empreendimentos dos colaboradores. A partir de uma abordagem de pesquisa inclusiva, além de promover trocas de aprendizagem entre a nossa equipe e os agentes criativos, conseguimos promover também suas vozes e suas próprias narrativas sobre si e seu trabalho. A criação de redes entre os participantes e a linguagem comum adquirida ao apresentarem seus projetos durante as sessões de treinamento estimulam também um sentido de unidade no desenvolvimento das avaliações.

COMPREENDER O VALOR DA CULTURA: UM DESAFIO CONSTANTE

Pesquisar é um ato de percepção, mas também de expressão. Nesse sentido, nós nos comprometemos com o desafio de propor novas abordagens às avaliações de impacto das artes e da cultura, envolvendo diferentes perspectivas e trajetórias. Ao mesmo tempo, para compreender o valor multidimensional do trabalho criativo, é preciso ouvir e aprender com aqueles que fazem arte e que por ela são afetados. Por isso, propomos uma metodologia experimental, colaborativa e em constante desenvolvimento conjunto com as organizações e os projetos parceiros, a partir da qual fornecemos ferramentas para que esses agentes possam coletar e interpretar os dados relativos ao valor socioeconômico de seu trabalho.

Desde a sua elaboração, em 2016, a metodologia relative values tem permitido que nossos parceiros produzam evidências sobre os impactos de sua atuação, construindo narrativas diversas e significativas. No contexto da pandemia de covid-19, os dados da aplicação da metodologia no projeto “Raízes de resiliência”1 indicaram que a atuação das organizações culturais tem um impacto positivo sobre a saúde mental das pessoas, e que a suspensão de suas atividades foi sentida pelo público. Esse tipo de evidência corrobora a importância da arte e da cultura e dá força e parâmetro para que as organizações continuem seu trabalho. Com isso, esperamos que nosso trabalho permita a disseminação de dados capazes de informar políticas públicas de fomento à arte e à cultura que reconheçam seu papel fundamental nas várias áreas da vida social. E, principalmente, esperamos colaborar para a democratização da produção de conhecimento, essencial para amplificar as vozes daqueles que no dia a dia constroem e vivenciam as artes e a cultura.

COMO CITAR

MÖLLER, Gustavo et al. Relative values: apreendendo o valor da cultura. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.33-6.

GUSTAVO MÖLLER

é bacharel em relações internacionais pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestre e doutorando em estudos estratégicos internacionais na mesma instituição.

Atua como consultor na área de economia criativa e da cultura desde 2014. É assistente de pesquisa e gerente de projetos no People’s Palace Projects

KARINA RUÍZ

é bacharela em relações internacionais e mestra em políticas públicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Desde 2017, atua como pesquisadora em economia criativa. É assistente de pesquisa no People’s Palace Projects.

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LEANDRO VALIATI

é economista e ph.D. em desenvolvimento econômico, com pós-doutorado em indústrias criativas pela Universidade Sorbonne Paris 13 (França). Atua como professor titular de indústrias criativas e economia da cultura na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), e como professor visitante e pesquisador na Universidade Queen Mary de Londres (Reino Unido) e na Universidade Sorbonne Paris 13. É conselheiro, na área de indústrias culturais e criativas, do Ministério da Cultura (MinC), da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) e da Organização de Estados Ibero-Americanos (OEI). Criou o Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura da UFRGS (Neccult/UFRGS), tendo liderado, por quatro anos, 6 acordos internacionais (Brasil-Europa), 20 projetos de pesquisa em larga escala e 7 conferências internacionais.

NATÁLIA NUNES AGUIAR

é bacharela em ciências sociais pela Universidade Federal de Goiás (UFG) e mestra e doutoranda em ciência política na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atua como pesquisadora no People’s Palace Projects.

PAUL HERITAGE

é professor de teatro e artes performáticas na Queen Mary University of London e diretor do People’s Palace Projects. Entre 1992 e 2005, criou uma série de programas de arte em prisões de 12 estados do Brasil e dirigiu produções de William Shakespeare com alguns dos principais atores do país. Desde 2006, tem estabelecido colaborações de pesquisa e intercâmbio cultural entre organizações artísticas do Reino Unido e do Brasil. Em 2004, foi condecorado com a Ordem de Rio Branco por seus serviços à cultura brasileira.

NOTA

1. Ver relatório executivo (em inglês) em: https://peoplespalaceprojects. org.uk/wp-content/ uploads/2021/01/RoR-Short-report. pdf. Acesso em: 5 ago. 2022.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

JANNUZZI, Paulo de Martino. Indicadores sociais no Brasil. Campinas: Alínea, 2001.

THROSBY, David. Economics and culture. Cambridge: Cambridge University Press, 2001.

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A cruz do patrão_Recife_século_ _ | Desenho de
Montenegro
Wagner

Por um Índice de Convivência Intercultural: a memória de um projeto em busca de uma agenda de políticas culturais para os desafios contemporâneos

O crescimento dos conflitos regionais e locais constitui um sério empecilho para a implementação das políticas públicas e para conseguir um desenvolvimento harmônico e humano. As brechas entre as opiniões políticas, sociais, culturais e econômicas se aprofundam e produzem conflitos entre os diversos grupos sociais, prejudicando a consecução de metas de bem-estar e entendimento harmonioso. A paz social está em perigo ou já foi severamente prejudicada. Com as nuances e as características de cada país, de cada povo, de cada segmento da população, esse panorama é mundial.

O trecho acima abre a carta aos leitores escrita por Enrique Saravia para a Revista Observatório Itaú Cultural, edição especial “Convivência intercultural – perspectiva latino-americana”, lançada em março de 2020. Dada a atualidade do tema, indicamos novamente a publicação, que se debruça sobre o processo de criação do Índice de Convivência Intercultural (ICI), promovido pelo Observatório Itaú Cultural, e traz análises de especialistas sobre os conflitos sociais e culturais que dificultam a convivência com o outro.

Para um aprofundamento, destacamos dois artigos. O primeiro deles, “Memória de um índice: estudo sobre o projeto de criação do Índice de Convivência Intercultural”, de María Paulina Soto Labbé e Alejandra Ruiz Tarrés, descreve o processo de construção do ICI, com os objetivos iniciais, a metodologia aplicada e as renúncias necessárias pela falta de dados estatísticos e de uma dimensão territorial. O segundo artigo, “Agenda de políticas culturais para a convivência intercultural”, de María Paulina Soto Labbé, trata de como é possível contribuir para a redução de conflitos incluindo na agenda de políticas culturais as demandas e as reivindicações de grupos da sociedade civil que têm lutado para criar condições de convivência propícias ao reconhecimento de suas diferenças.

Saiba mais sobre o assunto também assistindo ao webinário Convivência intercultural: perspectiva latino-americana, realizado em novembro de 2020. O evento contou com três encontros, reunindo convidados de diversas áreas e nacionalidades, com mediação de Lilia Schwarcz e performances de Ricardo Aleixo e Alvimar Nunes.

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Mesa

Por um índice de convivência –o papel da cultura na sociedade com María Paulina Soto Labbé e Enrique Saravia

Painel 1

Conflitos relacionados a mulheres, identidades sexuais e pessoas com deficiência com Enrique Pelaez, Leandro Colling, Marcos Lima e Maria Salet Novelino

Painel 2

Conflitos relacionados a grupos indígenas, religiões e imigrantes e refugiados com Charly Kongo, Naine Terena e Regina Novaes

Acesse o conteúdo pelo QR Code ou pelo link: https://www. itaucultural.org.br/ secoes/observatorioitau-cultural/conversabel-mayer-mariapaulina-labbe

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Frame de Sethico | Foto de Breno César e montagem de Felipe Correia

Publicação on-line do Caderno Ensaios de fruição [e outras fricções]

O início da pandemia de covid-19, declarado em março de 2020, fez com que nos empenhássemos em ampliar o olhar para o universo cultural, fortalecendo-o e revisitando-o, tendo em vista os desafios que se colocavam, sobretudo a impossibilidade de realizar nossas atividades presencialmente, em razão do isolamento social. Iniciamos, assim, um intenso movimento de aprofundação em novas tecnologias no Itaú Cultural (IC), visando promover e incentivar experiências artísticas no ambiente digital.

Esse esforço gerou impacto na difusão das artes cênicas. Passamos a experimentar possibilidades de programação em outras plataformas e novos espaços para a participação do público. Nossa atenção se voltou com mais profundidade para o campo da mediação cultural, intensificando estratégias que gerassem uma atmosfera de presença e de encontro, a fim de estreitar vínculos com o público.

A experiência nos inspirou a compor grupos de espectadores de diferentes regiões do país, a partir de suas intervenções nas conversas mediadas que fizeram parte de nossa programação virtual. Delineou-se assim o Ensaios de fruição, conduzido pelo Núcleo de Artes Cênicas do IC. Com salas virtuais abertas aos interessados em geral, o programa teve início com a contribuição do público nos ensaios da peça teatral Que os mortos enterrem seus mortos, de Samir Yazbek, com direção de Marcelo Lazzaratto; e do espetáculo de dança De passagem – outras paisagens, da Cia. Dançurbana, dirigido por Marcos Mattos.

Em setembro de 2021, outra experiência foi realizada, desta vez com um grupo de espectadores assíduos nas programações anteriores, que foram convidados para acompanhar o processo de criação do novo trabalho cênico do Grupo Magiluth, do Recife. Esse público (cri)ativo se afetou, interveio e gerou estímulos, conteúdos e outras subjetividades para a obra em desenvolvimento. Inspirado no poeta pernambucano Miró da Muribeca, o espetáculo estreia no primeiro semestre de 2023 no palco do IC.

Com o foco do programa sendo a qualificação do protagonismo do público em condições muito novas – os ambientes virtuais –, as suas características dificultam uma mensuração quantitativa por meio de indicadores que avaliariam a experiência individual, inclusive apontando novas searas de investigação. Esse tipo de mensuração, porém, não foi deixado de lado, já que os encontros com o Grupo Magiluth tiveram dois importantes registros: uma publicação dedicada aos processos de criação, o Caderno Ensaios de fruição [e outras fricções], e uma pesquisa com os espectadores-participantes dos encontros, descrita no artigo “Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth: relato de uma experiência qualitativa de pesquisa-ação de mediação e de criação artística”, de Maria Carolina Vasconcelos Oliveira e Júlia Fontes, publicado nesta edição da revista.

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Mercado da Boa Vista | Desenho de Wagner Montenegro

Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth: relato de uma experiência qualitativa de pesquisa-ação de mediação e de criação artística

“[A emancipação] começa quando abrimos mão da oposição entre olhar e agir e entendemos que a partilha do visível é, em si, algo que faz parte da configuração da dominação e da sujeição. A emancipação começa quando percebemos que o olhar é também uma ação [uma prática ativa] que confirma ou modifica essa partilha, e que ‘interpretar o mundo’ já é, em si, um meio de transformá-lo e reconfigurá-lo. O espectador é ativo, assim como o estudante ou o cientista: ele observa, seleciona, compara, interpreta. Ele conecta o que vê com muitas outras coisas que já viu em outros palcos e em outros tipos de espaço.” (Jacques Rancière, 2007, tradução nossa)

APRESENTAÇÃO

Ensaios de fruição é um programa conduzido pelo Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural (IC) que tem como objetivo aproximar espectadores dos processos de criação de espetáculos, abrindo a sala de ensaio – o que vem sendo feito a partir de diferentes metodologias.

Entre setembro e outubro de 2021, durante o isolamento imposto pela pandemia de covid-19, o Núcleo de Artes Cênicas propôs uma edição do programa para acompanhar o trabalho do Grupo Magiluth, do Recife, formado por ex-alunos da Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), e que atua de modo bastante autoral dentro da cena contemporânea de teatro de grupo. Naquele período, eles estavam elaborando um trabalho sobre o poeta Miró da Muribeca.

Para essa edição, nós – Júlia Fontes e Maria Carolina Oliveira, pesquisadoras, arte-educadoras e realizadoras cênicas – fomos convidadas para conduzir uma prática qualitativa de avaliação/análise da experiência vivenciada pelos espectadores que acompanhariam virtualmente alguns dos ensaios do Grupo Magiluth.

Propusemos que essa atividade fosse expandida como um experimento que, ao mesmo tempo, i) captasse a experiência como pesquisa, mas também sugerindo um caminho de mediação em si – enunciando caminhos possíveis para a própria construção de sentidos sobre a experiência artística –; e ii) estivesse alinhado aos procedimentos utilizados no próprio processo de criação do grupo de teatro. Des-

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sa maneira, o projeto foi desenhado na forma de uma pesquisa-ação, ou pesquisa-projeto de mediação, já que o que estava em jogo era menos a pretensão de captar informações sobre a experiência dos participantes de forma supostamente neutra, objetiva e distanciada, e mais a proposta de partilhar ferramentas e caminhos para que eles construíssem formulações sobre suas experiências – o que, em si e por si, qualifica o exercício de construção e expressão de percepções. Ainda assim, por um lado mais objetivo, o projeto resultou em depoimentos e registros de percepção dos participantes sobre a experiência que não só consistem em material para uma análise qualitativa do programa, mas também geram insights para refletirmos sobre o tema dos processos artístico-pedagógicos de forma mais ampla, assim como para dialogarmos com a literatura já produzida, cumprindo também o papel de pesquisa.

A metodologia do projeto foi pensada de forma a assumir e valorizar algumas zonas de fricção: não somente entre pesquisa e ação, mas também entre espectadores e criadores, e entre processos de fruição e de criação

Como buscaremos mostrar no item a seguir, a metodologia do projeto foi pensada de forma a assumir e valorizar algumas zonas de fricção: não somente entre pesquisa e ação, mas também entre espectadores e criadores, e entre processos de fruição e de criação. Essa escolha decorre das nossas próprias trajetórias de práticas e estudos sobre mediação artística e processos artístico-pedagógicos.

A metodologia do projeto foi pensada de forma a assumir e valorizar algumas zonas de fricção: não somente entre pesquisa e ação, mas também entre espectadores e criadores, e entre processos de fruição e de criação.

Os participantes do experimento, um grupo de cinco pessoas selecionadas pelo Núcleo de Artes Cênicas do IC, contemplavam distintas regiões do Brasil, ocupações e faixas etárias. Esses espectadores-participantes já tinham tido a oportunidade de acompanhar outros processos de criação no âmbito do Ensaios de fruição, mas em experiências bastante diferentes em termos de proposta de encenação, de políticas e poéticas de construção de cena, e de mediação.

O Grupo Magiluth, em suas formas de fazer, pensar e ser teatro, flerta com práticas mais performativas e valoriza a poética do próprio processo de criação. Em seus trabalhos, o modo de fazer e a obra resultante estão profundamente entrelaçados, e muitas vezes a dramaturgia se desvela a partir de jogos, programas e encontros com pessoas, inclusive nas “fricções” com seus públicos. Isso estava alinhado às nossas próprias concepções sobre os processos artístico-pedagógicos, que entendemos como atos criativos em si, que incluem processos e dispositivos muito semelhantes aos da criação artística dita profissional. Por causa disso, propusemos um programa de práticas de mediação que serviram para experimentar e vivenciar alguns tipos de dispositivos utilizados pelos artistas na criação da obra – o que, em termos de processos artístico-pedagógicos, significaria partilhar os códigos. Além disso, essas práticas também consistiam, em si e por si, em práticas de construção de sentidos e de formulação da experiência sensível – ou seja, possibilitavam que os participantes formalizassem suas percepções sobre a experiência vivenciada (um processo de mediação), além de terem gerado material de registro para fins de pesquisa. Uma vez que o Grupo Magiluth enxerga nesses encontros substância

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para a elaboração teatral, os procedimentos ainda produziram insumos de criação para o próprio grupo.

O experimento aconteceu na forma de quatro encontros on-line com duas horas de duração cada, ocorridos em setembro de 2021. Na sala de ensaio virtual, estivemos reunidas com os cinco participantes, o Grupo Magiluth e integrantes da equipe do Núcleo de Artes Cênicas do IC. Além disso, foram realizadas discussões e propusemos algumas práticas por meio de um grupo de WhatsApp compartilhado com os espectadores-participantes. Por fim, fizemos uma entrevista em profundidade com cada um deles. O roteiro dos encontros dos espectadores-participantes com o Grupo Magiluth (as salas de ensaio) foi planejado previamente e validado pelos artistas, de modo que pudéssemos ter, além das suas apresentações de cenas e de jogos, um espaço para partilhas diversas e para a realização de algumas práticas artístico-pedagógicas.

Mapeando alguns territórios, especialmente nos campos da arte, da educação e da cultura, iniciamos este nosso mapa-cartografia-texto com uma síntese do trajeto que fizemos ao mediar a edição do Ensaios de fruição com o grupo recifense – experiência que resultará também em outra publicação, no caderno que será lançado no primeiro semestre de 2023, com a nossa organização.

O evento foi composto da transversalidade de muitos processos, entre os quais destacamos três: o de criação teatral, sobre os versos e o universo de Miró da Muribeca; o artístico-pedagógico, ou de mediação artística, envolvendo os espectadores-participantes para os quais a sala de ensaio foi aberta; e o de pesquisa-ação, pelo qual esses foram estimulados a criar e a formalizar e expressar suas percepções sobre a experiência, gerando um material que alimentou o próprio processo de criação dos artistas.

CAMINHOS PERCORRIDOS E INSTRUMENTOS

A partir de uma ideia surgida numa das primeiras conversas com o Grupo Magiluth – ao falarem do seu processo e, especificamente, do começo de tudo –, propusemos a construção de cartografias afetivas individuais, em todos os encontros, como prática mais estruturante do experimento. Apostamos que seria uma boa maneira de capturar as percepções dos espectadores-participantes e também de ajudá-los a situar suas experiências. Buscamos, assim, investir na produção de uma obra processual que se relatasse por meio de recursos textuais, visuais e corporais.

O desenho de processos existenciais como mapas tem sido comumente usado como um modelo de organização por quem tem interesse em registrar caminhos de produção traçando o passo a passo de sua realização, como nos conhecidos mapas mentais. Diferentemente desses, a cartografia é considerada um registro em movimento por meio do qual, inclusive, é possível registrar as vivências e os seus afetos como paisagens psicossociais, como sugere a cartografia sentimental proposta por Suely Rolnik (2011). Pensando na investigação dos territórios menos ou nada palpáveis da vida, as cartografias sentimentais ou afetivas parecem cumprir melhor o papel de registro vivo dos processos humanos, pelas suas múltiplas possibilidades simbólicas e expressivas. Usando de nossa criatividade ao relacionar as geografias humanas às físicas, podemos imprimir alma aos nossos deslocamentos por meio de cores, texturas e formas expressas, tal qual a vida vivida nos faz sentir. No mais, os mapas e as cartografias servem

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não apenas de orientação para a localização do presente ou para o planejamento do futuro, mas também de documentação dos movimentos do passado. Se nos localizam, impulsionam e reconectam, ao revisitar mapas e cartografias, poderemos ser convocados a atualizar os caminhos, presentificando-os com os pés do agora, calçados com os aprendizados e as tantas fricções das trilhas já traçadas.

A escolha desse procedimento artístico-pedagógico costurou todos os encontros, sendo combinado às entrevistas individuais e às práticas de coleta e formulação de percepções menos racionalizadas (como escrita automática; tempestades de perguntas; criação de enunciado para construção e narração de uma experiência no entorno; construção de depoimentos coletivos baseada em livre associação; e formulações utilizadas pelo Grupo Magiluth para levantar material cênico). Nos exercícios cartográficos, buscamos refletir a experiência vivida durante os Ensaios de fruição no espaço de uma folha de papel, na qual foram marcadas as paradas, os trajetos e suas múltiplas percepções. Projetando o vivido na materialidade, o instrumento escolhido como registro foi também um facilitador da ampliação dessas percepções, ao se transformar em plataforma de diálogo entre cartografia e cartógrafo por meio da expressão, elaboração e comunicação de suas formas e dos conteúdos emergidos. Nessa prática, nós nos apoiamos em certos códigos cartográficos que faziam sentido para a questão artística que estava sendo trabalhada pelo grupo de teatro, tratando especialmente da relação entre centro e periferia, mas passando também pelas relações entre espaço e tempo, marcos geográficos e simbólicos, trajetos e derivas, memória e imaginação.

O trajeto percorrido nos quatro dias de encontro está descrito de forma mais objetiva na imagem a seguir, e foi pensado para contemplar o repertório e os objetivos dos processos de criação do Grupo Magiluth, dos espectadores-participantes e das mediadoras. Sabíamos como começar: apresentando-nos e trazendo notícias sobre o ponto de que estávamos partindo. Refletimos sobre planejar os ensaios mantendo uma qualidade viva e porosa diante dos fenômenos que pudessem mudar a nossa rota, mas insistindo num roteiro que nos servisse de bússola. As conversas prévias, tanto com os artistas quanto com os espectadores-participantes, foram definidoras para organizar os encontros de maneira a compartilhar os códigos comuns do processo e garantir espaço e voz para todas as pessoas.

O primeiro dia de ensaio seria dedicado aos começos, às devidas apresentações, ao iniciar da caminhada; no segundo e no quarto dia, o Grupo Magiluth mostrou o seu material cênico, dramatúrgico e audiovisual, antes e depois de receberem os insumos vindos desses encontros; entre o segundo e o terceiro dia, propusemos aos espectadores-participantes uma prática fora do ambiente controlado da sala virtual, elaborando um enunciado com inspiração em outros já utilizados pelo grupo de teatro, o que resultou numa pequena criação de cada um dos participantes; e, no quarto dia, além da última apreciação da cena realizada pelo Grupo Magiluth, houve também a finalização do processo, a partilha dos trajetos e uma apresentação breve dos mapas afetivos.

ALGUNS PONTOS DE PARTIDA E JUSTIFICATIVAS

Para desenhar a abordagem posta em prática nesses Ensaios de fruição, partimos de ideias e conceitos que orientam nossas trajetórias como pesquisadoras e orientadoras de processos artístico-pedagógicos. Antes de tudo, trabalhamos com a ideia de que a fruição/experiência artística e as transformações que desencadeia ocor-

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Dia 1

Como começar? Estabelecendo o marco zero da experiência

Dia 2

A mostra das primeiras cenas / O primeiro contato dos espectadoresparticipantes com a obra; suas primeiras práticas de apreciação e formulação da experiência

Dia 2 para dia 3

Exercitando os caminhos: convite a ampliar os sentidos e levantar seu próprio material criativo (a partir dos achados do seu caminho)

Dia 3

rem na zona de intersecção entre aquilo que se vê/experimenta e aquilo que se pode dizer/nomear, como proposto por Rancière (2007, 2009). Partimos ainda da prerrogativa de que essas duas capacidades ou potencialidades, a de vivenciar experiências sensíveis a partir do encontro com uma obra artística, e a de formular esse processo, não são inatas, ou seja, não se trata de um tipo de dom – como bem mostra a tradição da sociologia das práticas culturais iniciada por Pierre Bourdieu e seus colaboradores –, mas de habilidades que se aprimoram. Aqui, estamos numa zona de intersecção entre a sociologia da cultura e o próprio campo de estudos da arte-educação e das pedagogias artísticas. Podemos mencionar estudos produzidos por pesquisadores-artistas como Fayga Ostrower, que discute a importância da criação para desenvolver processos de elaboração e de comunicação entre os indivíduos.

Segunda mostra de cenas: o que os participantes levam e o que o Magiluth absorve de suas criações

Dia 4

Partilhando os frutos: Magiluth apresenta as novas cenas O ponto de chegada dos Ensaios de fruição

Daí decorreram também duas posturas de partida: não hierarquizar as práticas artísticas mais legitimadas como superiores e, sobretudo, não enxergar essas expressões como monopólio das classes socialmente reconhecidas como artísticas – o que nos leva a observar que todo indivíduo tem potencial criativo e expressivo, que desenvolve de forma mais ou menos profunda de acordo com as ferramentas que lhe são apresentadas e com as oportunidades que tem de praticá-lo e aprimorá-lo. Essa abordagem é bastante alinhada à própria política do Grupo Magiluth, que também busca nas experiências cotidianas e no mundo ampliado – ou seja, não restrito à sala de ensaio nem às esferas de produção artística – os insumos para sua criação.

A compreensão da vivência da experiência e, sobretudo, da sua formulação como atos de criação em si, nos levou a propor caminhos e metodologias possíveis para esses processos. Utilizamos práticas que orientaram os participantes a formalizar suas percepções, acreditando também que a parte fundamental do processo de fruição artística tem a ver com as narrativas que criamos. Afinal, a formulação de percepções é um ato criativo, e que pressupõe um caminho que pode ser bastante semelhante ao da própria criação artística. Nos termos de Jorge Larrosa Bondía (2002), as palavras produzem sentido, criam realidades e funcionam como meca-

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nismos de subjetivação das experiências. Essas práticas e esses caminhos que propusemos consistiam em programas para pequenas criações-depoimentos que envolviam palavras, mas também representações gráficas, corporais e audiovisuais.

Dessa forma, o projeto se definiu como uma pesquisa, na medida em que produzimos relatos e análises sobre a experiência dos participantes e insights sobre os processos de mediação. Ao mesmo tempo, foi também um projeto de mediação e um projeto artístico-pedagógico, já que os instrumentos utilizados para propor um caminho para a formulação dos participantes constituíam, em si, caminhos de criação.

Com isso, questionávamos também a concepção da pesquisa como algo que registra a percepção de determinada experiência a partir de fora, com um distanciamento às vezes apresentado até em termos de ruptura entre pesquisador e objeto. Vale apontar, pegando novamente carona com Rancière, que isso também tem a ver com certo tipo de partilha do saber que é, ao mesmo tempo, política e estética. O que propusemos para os encontros, ao contrário, não foi uma maneira passiva de captar os dados de uma experiência e analisar seus impactos, mas uma abordagem que assume sua capacidade de agenciamento na sua própria construção – o que, ao fim e ao cabo, talvez aconteça em todo e qualquer tipo de pesquisa, uma vez que os objetos e os dados, nas ciências humanas, são sempre construções; mas aqui optamos por assumir deliberadamente esse objetivo e pensar estratégias para trabalhá-lo.

Os procedimentos propostos buscaram, ao menos em parte, constituir a própria experiência, já que estimularam a construção de narrativas sobre ela e sobre seus desdobramentos – o que, como apontamos, quando se trata de material sensível, é um ato de criação

Portanto, os procedimentos propostos buscaram, ao menos em parte, constituir a própria experiência, já que estimularam a construção de narrativas sobre ela e sobre seus desdobramentos – o que, como apontamos, quando se trata de material sensível, é um ato de criação.

Partimos ainda da ideia, presente ao menos desde as vertentes artísticas modernas da virada para o século XX, de que não somente a obra final, mas sobretudo o seu processo de criação, são considerados experiências estéticas e políticas. Dessa forma, optamos por estimular a formulação de depoimentos e percepções por parte dos espectadores-participantes não somente por meio de entrevistas e dos grupos focais que ocorriam após a fruição, mas principalmente durante o próprio acompanhamento dos ensaios, como parte da experiência em si. Na prática, isso significa que, durante os ensaios abertos, destinamos um tempo para que os espectadores-participantes elaborassem material sobre o que estavam vivenciando, por meio de depoimentos diretos ou de jogos diversos, o que também não deixa de ser uma forma de criação.

Seguindo esse caminho, os procedimentos colocados em prática nos ensaios incluíram enunciados para a construção de autonarrativas e para a formulação de sensações e sentidos, mesclando-se ferramentas mais reconhecidas como científicas no campo da pesquisa em ciências sociais (como entrevistas e observa-

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ção) com procedimentos de criação e de construção de experiências sensíveis mais frequentemente utilizados em processos artísticos ou artístico-pedagógicos. O quadro a seguir sintetiza as ideias fundamentais para o projeto de pesquisa-ação proposto.

A POEIRA LEVANTADA

A produção de arte e cultura reflete, ao mesmo tempo, épocas e processos de socialização específicos – os sujeitos, seus fazeres e seus códigos –, e também o estilo singular de quem a concebe como forma expressiva que comunica, elabora e propõe visões e intersecções de mundos. Se pudéssemos atribuir alguma utilidade primordial à arte e à cultura, talvez fosse a de nos tirar dos estreitos caminhos do que já está dado, concebido e formalizado. Instigando, assim, uma tradução do vivido expandida pelos sentidos, essas dimensões imaginativas e memoriais buscam conectar a forma e o conteúdo da experiência humana, configurando espaço e tempo pelas vias do sensível. Tanto o fazer artístico quanto o exercício de fruição

Da fruição à participação: espectadores-criadores; espectadores-participantes

• Buscamos transcender representações passivas de público, espectadores e fruição.

• Partimos de um questionamento da visão que enxerga as capacidades expressiva, simbólica e poética como monopólio do grupo socialmente reconhecido como classe artística.

• Formulamos procedimentos artístico-pedagógicos e de formalização de depoimentos que considerassem a capacidade propositiva e expressiva de ambos os lados (artistas; espectadores-criadores), que partissem das ideias de encontro e de fricção, e que fossem orientadas por colaboração, pertencimento e descentralização do protagonismo.

Alinhamento entre processo de criação, projeto de mediação e projeto de pesquisa/captação de experiências

• Partimos da prerrogativa de conhecer bem a proposta artística do Magiluth, bem como seus códigos e políticas de trabalho e de arte.

• Buscamos formular procedimentos artístico-pedagógicos de formalização e coleta de percepções que permitissem que os participantes vivenciassem, na prática, os mesmos conceitos que orientaram a criação artística, mais do que somente fossem informados a seu respeito. Prerrogativa de que a experiência artística/simbólica ocorre na fronteira entre o visível/dizível/formulável e aquilo que se vivencia na prática.

envolvem processos de mediação específicos, já que neles estão implícitos processos de criação. Ao abordar esses processos pelo viés da arte-educação, Ana Mae Barbosa (2009) assume que, quando exercidas pela práxis libertária, as práticas

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artístico-pedagógicas promovem autonomia, aprendizagem e criticidade, combatendo a visão alienadora das intervenções com público fundadas em modelos padronizados, pouco reflexivos e menos participativos.

Como resultado dos procedimentos realizados – ou a poeira levantada –, formalizamos algumas habilidades que percebemos, por meio das práticas de coleta de depoimentos e das entrevistas, que foram aprendidas ou potencializadas ao longo do processo. De maneiras diferentes, as dez habilidades que entendemos como desdobramentos do projeto foram nomeadas pelos cinco participantes. Escolhemos destacá-las pelo fato de extrapolarem o objetivo restrito da formação de públicos: são aprendizados que favorecem uma formação mais ampla dos espectadores-criadores-indivíduos, uma formação cidadã, sensível e política, e não

Praticar a formulação/ expressão (exercitar o “ser ouvido”)

Perceber que sua visão importa; permitir-se expressar

Abrir-se para praticar a escuta

Abrir-se para experimentar outras perspectivas; permitir-se enxergar por outros olhares Ampliar repertórios

Sentir-se parte; construir pontes Reconhecer-se no outro; exercitar capacidade de conexão

Desdobrar poesia de situações cotidianas; exercitar capacidade expressiva/ poética

Permitir-se construir narrativas e realidades, exercitar a capacidade de ficção, exercitar a capacidade de acreditar (e portanto, de interferir na realidade)

Desejar mais; buscar continuidade desse processo; vislumbrar futuros e possibilidades

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somente estética. Com esse horizonte mais largo, sugerimos que o desenvolvimento relacional, vinculativo, crítico e reflexivo dos espectadores-participantes foram habilidades fomentadas durante o Ensaios de fruição

Desdobramentos: habilidades desenvolvidas e aprimoradas pelos participantes

Podemos tecer algumas considerações sobre o que expusemos na imagem. Primeiramente, a ideia de que essas habilidades não são dons, talentos ou inclinações, mas aprendizados que se adquirem e se aprimoram com a prática. É o caso do exercício de identificar, nomear e expressar percepções, sentimentos e pensamentos em relação a conteúdos artísticos/intelectuais, ou de formulação e expressão. Do mesmo modo é também o poder ser escutado, que desencadeia o sentimento de pertencimento e de autoestima, que retroalimentam, por sua vez, a própria capacidade de formular e expressar. Para além de habilidades associadas à fruição/expressão artística e cultural, são aprendizados que se utilizam em muitas outras situações de convívio social e político. Poder ser escutado é um estímulo positivo que favorece também a prática da escuta dos outros, outra habilidade que pode ser aprimorada ao longo da vida. E, associadas, essas duas práticas ampliam a sensação de ser parte e de conectar-se a um todo, seja ele uma comunidade, um grupo ou um microcosmo qualquer. São essas as bases de uma abertura para novas perspectivas e novos olhares, o que desencadeia uma ampliação de repertórios que, novamente, são estéticos e também culturais e políticos.

Ademais, a vivência artístico-pedagógica conduzida no Ensaios de fruição junto ao Grupo Magiluth, num sentido mais estrito, potencializa o exercício da capacidade poética, algo que também se aprimora e se pratica, mais uma vez contrariando as ideias românticas de que seja uma espécie de dom. Treinar o olhar para enxergar poesia no cotidiano, nas frestas mais improváveis ou no convívio com o outro é algo que certamente favorece a criação e a fruição artística, mas que também desenvolve uma habilidade fundamental para a vida social e política: a de criar narrativas, sentidos, ficções e memórias. Ou seja, a habilidade de intervir na realidade, de imaginar futuros possíveis. Vislumbrar, transformar e acreditar são práticas que não podem estar restritas a grupos sociais específicos.

Meu Deus, que coisa mais linda, eu nunca pensei no que [as outras] pessoas estão olhando e enxergando! E eu não estou enxergando do jeito que elas enxergam, mas eu enxergo do meu jeito! Então, isso foi abrindo a minha mentalidade, os meus sentimentos, a minha observação, para captar a essência das coisas, da linguagem teatral. Lindo! Eu tenho muito a agradecer a vocês, sabe, que ampliaram a minha compreensão, a minha visão nesses dias. Foi muito aprendizado (Depoimento de um participante do Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth).

Consideramos que um marco importante dessa experiência foi o fato de ter acontecido on-line, durante o segundo ano da pandemia de covid-19, quando muitos dos participantes já estavam de alguma maneira habituados à fruição nesse formato, embora ainda como espectadores “clássicos”. O aumento do uso das tecno-

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logias de informação e comunicação (TIC) na produção de arte e cultura, assim como o crescimento do acesso da população à internet e o desenvolvimento de novas estratégias de interação para fins artísticos e pedagógicos, tende a abrir novas possibilidades também para o tema específico dos processos de mediação. Nesse Ensaios de fruição, contamos com duas plataformas de interação cujo uso já é relativamente disseminado, o Zoom e o WhatsApp. Por se tratar de um grupo relativamente pequeno, com exceção das poucas falhas de conexão de internet e das necessidades pontuais de orientação para a ativação da câmera e do microfone, não foram encontradas grandes dificuldades na condução das atividades no meio virtual.

Se, de um lado, tivemos de abrir mão de algumas práticas de trabalho em grupo por exigirem a presença num mesmo tempo-espaço, a realização do projeto no ambiente on-line possibilitou o encontro, por um período relativamente longo (ao todo, o grupo permaneceu mobilizado por cerca de um mês), de pessoas sediadas em diferentes localidades do Brasil, como Recife, São Paulo, Belém do Pará, Rio Branco e Rio de Janeiro. Um projeto nesse formato em modalidade presencial provavelmente seria inviável, em razão dos custos ou mesmo da disponibilidade dos participantes, já que envolveria necessariamente deslocamentos longos dentro do país. Sair do lugar comum, do conhecido, do esperado e de um perfil determinado de pessoas é algo que promove encontros e aprendizados humanos importantes. A sensação de ser quase um estrangeiro fazendo viagens – mesmo que virtuais –pelo Brasil afora gerou curiosidade e motivação entre os participantes. Além disso, em um país enorme e diverso como o nosso, possibilidades como essa apontam para novas perspectivas de encontros e de trocas. A manutenção do contato entre os participantes também parece ter se dado de uma forma mais sistemática do que costuma ocorrer nas trocas presenciais. Para além dos encontros síncronos pelo Zoom, o contato contínuo possibilitado principalmente pelo grupo criado no WhatsApp desencadeou uma série de trocas de percepções.

Como argumentamos na publicação resultante do projeto, o Caderno Ensaios de fruição [e outras frições], cada constelação de grupo se desdobra num microcosmo específico, no qual é possível construir um espaço de segurança para partilhar códigos comuns e também revelar singularidades. Quando o grupo percorre um caminho junto, seus participantes vão se apropriando daquela atmosfera, encontrando um ritmo próprio e uníssono, se motivando e se estimulando mutuamente, e construindo saberes que emergem desse encontro único. É uma alma grupal, um pacto coletivo de criação que se instaura e que produz seus próprios insumos. Na vivência on-line, essa rede se dá à sua própria maneira, com seus próprios tempos, com outros mecanismos de conectividade e novas possibilidades de vinculação e afeto.

Por fim, mas não menos importante, todos os participantes relataram a importância de vivenciar algo tão significativo no contexto da pandemia. Após quase dois anos de isolamento e de falta de presença, para muitos, essa experiência possibilitou uma qualidade de conexão singular, promovendo uma ponte firme de vínculo e motivação – prova disso é que o grupo permanece ativo e conectado até os dias de hoje, passados quase oito meses do momento em que se deram os encontros.

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Dialogar com um grupo de pessoas que não conheço, participar de um processo de criação, pesquisa e construção de novos saberes, trouxe para mim o vigor de estar na ativa sem julgamentos e com estado de atenção e disposição para participar de um projeto. Neste sistema virtual no qual estamos desde o início da pandemia, tenho constatado como foram poucas as vezes que consegui estar assim, inspirada e sentindo-me como parte de algo. A dificuldade de construir vínculo nesse espaço é para mim uma complexidade de variados aspectos, pois não se trata apenas de acessar o link e entrar na sala virtual, mas de lidar com instabilidades de conexão de internet e de pessoas. No meu ponto de vista, um dos aspectos que auxiliam na construção de vínculo, seja no on-line ou no presencial, é o planejamento, essa elaboração faz toda a diferença tanto para quem propõe como para quem está ali para assistir/participar. A proximidade que a internet nos propõe convive com o distanciamento mensurável e imensurável, dessa forma, assim como no modo presencial, precisamos nos programar para estar presentes (Depoimento de uma participante do Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth).

Parece que a gente está com saudades da vida. A vida não é só um ponto de vista, ela acontece (Depoimento de um participante do Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth).

Uma última consideração diz respeito às estratégias de mensuração e apreensão de processos de mediação artístico-culturais e artístico-pedagógicos. Pontuamos, novamente, a importância de refletirmos sobre instrumentos de pesquisa/apreensão da experiência que se atentem para o fato de que os processos de fruição e criação ocorrem na zona de intersecção entre aquilo que se vivencia na esfera do sensível e aquilo que se pode formular/sistematizar dessas vivências, de modo que esses processos de formulação já envolvem processos de mediação. Assim, a construção de instrumentos de pesquisa que possam ajudar a compreender as diferentes etapas desse processo – somadas, ainda, à etapa de poder prestar um depoimento ao pesquisador, o que envolve ainda outros processos de mediação –é uma tarefa bastante instigante. Além disso, consideramos fundamental ter em mente que, se qualquer tipo de pesquisa em ciências humanas (e sobretudo as de natureza qualitativa) possui certa capacidade de agência no sentido de influenciar as formulações que o informante constrói do objeto/tema pesquisado, isso ocorre de maneira ainda mais intensa quando o assunto é a fruição e a criação. Pensando em projetos como o Ensaios de fruição, que tem a intenção de gerar transformações, e não somente de compreender processos (menos ainda de compreendê-los a partir de um lugar de suposta neutralidade), essa sobreposição pode ser aproveitada como uma potencialidade, sobretudo se for assumida como estratégica e se nos dispusermos a pensar em instrumentos de pesquisa que, em si mesmos, organizem caminhos para a elaboração de sentidos e de narrativas.

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COMO CITAR

FONTES, Júlia; VASCONCELOS OLIVEIRA, Maria Carolina. Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth: relato de uma experiência qualitativa de pesquisa-ação de mediação e de criação artística. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.33-9.

JÚLIA FONTES

é artista da cena, arte-educadora, arteterapeuta e pesquisadora de tendências em comportamento e consumo. Atua com indivíduos, grupos e instituições facilitando processos de criação para o desenvolvimento humano com o objetivo artístico, pedagógico e/ou terapêutico.

MARIA CAROLINA

VASCONCELOS OLIVEIRA

é artista circense, docente e pesquisadora em cultura e artes, com pós-doutorado em andamento no Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA/Unesp). Integra o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e o Instituto Cultura e Democracia.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BARBOSA, Ana Mae; COUTINHO, Rejane Galvão (org.). Arte/ educação como mediação cultural e social. São Paulo: Editora Unesp, 2009.

BONDÍA, Jorge Larrosa. Notas sobre a experiência e o saber da experiência. Revista Brasileira da Educação. Rio de Janeiro: Anped, n. 19, jan.-abr. 2002.

BOURDIEU, Pierre. A distinção. Crítica social do julgamento. Tradução: Daniela Kern; Guilherme J.F. Teixeira. São Paulo: Edusp; Porto Alegre: Zouk, 2007 [1979].

BOURDIEU, Pierre; DARBEL, Alan. O amor pela arte: os museus de arte na Europa e seu público. São Paulo: Edusp, 2003 [1969].

FONTES, Júlia (org.); VASCONCELOS OLIVEIRA, Maria Carolina. Ensaios de fruição [e outras fricções]. São Paulo: Itaú Cultural. No prelo. OSTROWER, Fayga. Criatividade e processos de criação. 30. ed. Petrópolis: Vozes, 2014.

RANCIÈRE, Jacques. A partilha do sensível. 2. ed. São Paulo: Editora 34, 2009.

RANCIÈRE, Jacques. The emancipated spectator. Artforum, Nova York, v. 45, n. 7, mar. 2007.

ROLNIK, Suely. Cartografia sentimental: transformações contemporâneas do desejo. Porto Alegre: Sulina; Editora da UFRGS, 2011.

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Frame de Sethico | Foto de Breno César e montagem de Felipe Correia

Como medir o preparo dos nossos jovens para o mundo do trabalho?

MOTIVAÇÃO

A tomada de decisão em políticas públicas com base em evidência tem sido uma tendência crescente nos últimos 20 anos, e é razoável dizer que é considerada boa prática de gestão na atualidade. No caso de políticas e programas educacionais, para aferir o seu êxito e monitorar o seu progresso, convencionou-se utilizar predominantemente resultados de aprendizagem em disciplinas básicas, como português e matemática.

Se para muitos essa construção faz sentido, visto que uma das principais finalidades do sistema educacional é de fato transmitir conhecimentos fundamentais nessas disciplinas básicas, é importante ressaltar que, em um contexto de currículos já excessivamente propedêuticos, como no caso brasileiro, essa prática acaba por inibir a ampliação dos objetivos do sistema educacional em direção a outros desfechos que não os puramente acadêmicos.

Gostaríamos de discutir neste texto alguns desafios do Ensino Médio (EM) no Brasil e propor que tenhamos um conjunto mais abrangente de indicadores para avaliar uma etapa de ensino que precisa incumbir-se de uma missão igualmente mais abrangente do que o ensino apenas dos conteúdos curriculares tradicionais

Em particular, gostaríamos de discutir neste texto alguns desafios do Ensino Médio (EM) no Brasil e propor que tenhamos um conjunto mais abrangente de indicadores para avaliar uma etapa de ensino que precisa incumbir-se de uma missão igualmente mais abrangente do que o ensino apenas dos conteúdos curriculares tradicionais.

O EM brasileiro é possivelmente o segmento mais desafiador de nossa Educação Básica. É precisamente nessa etapa que o país tem mais dificuldade de perseguir as metas de aprendizagem fixadas no “Compromisso todos pela educação”; que as taxas de abandono e evasão escolar são mais elevadas; e que pesquisas qualitativas indicam maior desengajamento juvenil nos estudos.

Além disso, dados mostram que o ensino oferecido no EM parece ser bastante dissociado daquele que contribuiria para uma inserção positiva no mundo do trabalho. Em relatório do Instituto Brasileiro de Economia (Ibre) de 2019, os autores mostram que, entre 2013 e 2018, por exemplo, a produtividade do trabalho caiu 0,4% ao ano, a despeito de a escolaridade média da população de jovens adultos (18 a 29 anos) ter crescido de 9,9 para 11,4 séries completas (ou algo como 10,4, se considerarmos que, para essa geração e nesse período, o ciclo escolar obrigatório subiu de oito para nove anos). Em princípio, a maior permanência das pessoas na escola deveria estar associada a um aumento da produtividade, e não à sua diminuição. Essa dissociação não apenas reforça no jovem o

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questionamento sobre a importância e o significado da escola como ignora que mais de 60% dos concluintes do EM não terão o Ensino Superior como a etapa seguinte do seu percurso pessoal.

O resultado desta desconexão entre os currículos de EM e o mundo do trabalho não se resume ao desengajamento dos jovens na escola. Pesquisas que investigam o seu ingresso no mercado laboral mostram que os vínculos são significativamente mais precários e efêmeros para eles do que para os não jovens (CORSEUIL, 2020), e esse tipo de ingresso tem inclusive consequências danosas no longo prazo (ANDRADE, 2000).

Quando perguntados, empregadores respondem que falta aos jovens um maior desenvolvimento de competências sociais e de inteligência emocional (BASSI et al., 2012), fato confirmado pela literatura científica, que mostra que os postos de trabalho que mais foram criados e que mais se valorizaram no período recente são aqueles que utilizam intensamente competências sociais (DEMING, 2017). Mesmo sabendo que são necessárias mais pesquisas para determinar se o desenvolvimento dessas competências seria suficiente para melhorar a empregabilidade dos jovens brasileiros, fato é que foi apenas com o advento da recente Base Nacional Comum Curricular (BNCC), de 2017, que se começou a considerar esse tipo de competência como componente curricular e a falar da centralidade do projeto de vida na formação do jovem de EM.

A BNCC, bem como a Lei nº 13.415/2017, que normatiza o Novo Ensino Médio (NEM), são em parte formuladoras de políticas educacionais e reações de nossa sociedade a esse diagnóstico de desalento, de desconexão da escola com o trabalho e de consequente dificuldade de inserção laboral positiva. Novos programas vêm sendo propostos, e o NEM traz aos sistemas de ensino o desafio de implementar diferentes itinerários formativos para que o jovem possa ter protagonismo na construção de seu currículo. Entre os itinerários possíveis, é dada atenção especial ao último deles, de caráter técnico profissionalizante. Para esse, existem a necessidade de propostas que envolvam também experiências práticas e o problema de conciliação com as metas de matrícula em tempo integral estabelecidas no Plano Nacional de Educação (PNE, 2014).

A BNCC, bem como a Lei no 13.415/2017, que normatiza o Novo Ensino Médio (NEM), são em parte formuladoras de políticas educacionais e reações de nossa sociedade a esse diagnóstico de desalento, de desconexão da escola com o trabalho e de consequente dificuldade de inserção laboral positiva

CONSTRUINDO INDICADORES NOVOS PARA POLÍTICAS E PROGRAMAS COM FINALIDADES NOVAS

A janela de oportunidade existe: as normas educacionais brasileiras estão sendo revistas, e ao menos parte da sociedade simpatiza com o aumento do protagonismo juvenil e com a criação de políticas que aproximem o contexto escolar do mundo do trabalho. A avaliação e o monitoramento desses programas, contudo, não podem seguir o formato tradicional dos desfechos de aprendizagem em português e matemática. Reconhecendo a importância dessas aprendizagens, é preciso ampliar o olhar e incluir, no portfólio de indicadores, elementos que capturem de modo abrangente o quanto essas iniciativas estão efetivamente fa-

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vorecendo o preparo dos jovens para o mundo do trabalho. Foi justamente com esse propósito que, em 2019, um consórcio de pesquisadores da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade São Francisco (USF), de Campinas, aceitou o desafio de um grupo de instituições liderado pelo Itaú Educação e Trabalho (IET). Os pesquisadores deveriam elaborar uma taxonomia e um instrumento que pudessem medir as crenças e as competências requeridas para uma transição positiva ao mercado de trabalho.

De início, precisávamos responder a duas perguntas. A primeira era: “O que significa estar pronto para o mundo do trabalho?”. Embora a questão tenha sido formulada de maneira sucinta e fosse aparentemente fácil de responder, concluímos que há ao menos três perspectivas distintas para se pensar nesse assunto: a da maturidade, a da empregabilidade e a do propósito.

Maturidade

O ser humano é um mamífero que precisa ser cuidado durante uma parte relativamente grande de sua vida, até conquistar a autonomia e conseguir caminhar sozinho. Nas primeiras etapas de sua vida, contextos seguros, acolhedores e previsíveis são necessários para o desenvolvimento de competências e para a construção de sua identidade. São exemplos a família e a escola, tidas como os contextos que mais contribuem para o desenvolvimento e a aprendizagem. A transição para o mundo do trabalho, dessa forma, representa uma ruptura e demanda certo grau de amadurecimento. Ao contrário dos contextos frequentados anteriormente, esse costuma ser marcado pela cobrança de resultados, pela imprevisibilidade e pela necessidade de que o indivíduo acredite no seu potencial e possua repertório para lidar com essa incerteza. É bem documentada na literatura a crescente proporção de jovens que não trabalham nem estudam (popularmente conhecidos como “nem-nem”), e esse fenômeno pode ser indicativo de um amadurecimento tardio, o que posterga o ingresso de muitos no mercado de trabalho após o término do ciclo escolar.

Empregabilidade

Um jovem que terminasse o EM no final dos anos 1960 teria sua trajetória profissional praticamente garantida, com altíssima probabilidade de obter uma boa posição em relação ao seu salário e à sua estabilidade no emprego. Já nos dias de hoje, o público jovem é o que mais sofre com o desemprego e a precariedade do trabalho, ainda que a maioria consiga terminar o EM. O problema é que, embora a escola tenha atualmente um currículo bem mais extenso que o de 60 anos atrás, o mundo mudou em uma velocidade ainda maior, e não só essa complexidade deixou de ser acompanhada por semelhante ampliação da missão da escola, como também houve muito pouco esforço para atualizar as práticas pedagógicas de ensino-aprendizagem a fim de permitir que fosse trabalhada de forma efetiva em sala de aula. O argumento mostra que a prontidão para o mundo do trabalho exige também o desenvolvimento de competências produtivas que dependem do momento social e histórico.

Propósito

Outra característica marcante de nossa espécie é a consciência da finitude e a busca por realização pessoal. O trabalho sempre foi uma das principais formas de deixar no mundo as marcas de nossa passagem, de obter reconhecimento e valo-

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rização social, e de justificar nossa própria existência. Mudanças na organização produtiva da economia alteram a forma como nos relacionamos com o trabalho e até mesmo as possibilidades de que o vejamos como um meio para o nosso crescimento pessoal. Indivíduos que trabalham em empregos insalubres, sem significado e com poucas oportunidades de ascensão possuem mais chances de ter suas condições de bem-estar comprometidas, de precisar de apoio psicológico e de desistir precocemente de suas carreiras profissionais. Por esses motivos, nossa pesquisa mostrou ser necessário incorporar também esta perspectiva para conseguir responder plenamente à primeira pergunta formulada.

A segunda pergunta estabelecida no início de nosso trabalho era: “O que a escola pode fazer para favorecer o preparo dos jovens para o mundo do trabalho?”. E, novamente, constatamos que há três formas de abordar a questão.

Em primeiro lugar, o sistema educacional decide o que será trabalhado em sala de aula, ou seja, temos uma escolha curricular de quais competências serão priorizadas. Evidentemente, em qualquer itinerário de qualquer etapa de ensino, há que respeitar e incluir as dez competências gerais da BNCC entre aquelas que serão o foco da ação. No entanto, por ser uma base curricular, a BNCC não deve restringir a reflexão sobre quais outras competências poderiam ser desenvolvidas, especialmente se houver a intenção de aproximar os contextos escolar e do trabalho.

Em segundo lugar, a escola também leva informação para os jovens. Ensinar como escrever um currículo e quais são os direitos e os deveres dos trabalhadores, ou ajudar a se preparar para uma entrevista de emprego está no conjunto de iniciativas que contribuiriam para mitigar o problema.

Finalmente, a literatura especializada ressalta que as crenças e as formas subjetivas de interpretar o mundo têm papel decisivo no ingresso do jovem no mercado de trabalho. Características como a autoeficácia (crença de que se é capaz de trabalhar sozinho e de atender às expectativas do mundo do trabalho); a mentalidade de crescimento (crença de que talentos humanos não são determinados completamente pela genética e podem ser aprimorados); e os valores (consolidação mental daquilo que realmente importa e que se busca em um contexto profissional) são alguns exemplos desta forma de abordar a questão, e também podem se modificar com ação intencional da escola. O próprio currículo e as escolhas de estratégias pedagógicas (mais ou menos autoritárias, com ou sem protagonismo juvenil) são oportunidades que a escola tem para influenciar esses elementos.

Mudanças na organização produtiva da economia alteram a forma como nos relacionamos com o trabalho e até mesmo as possibilidades de que o vejamos como um meio para o nosso crescimento pessoal

Foi assim, com três grandes dimensões de preparo para o mundo do trabalho e três espaços de ação para a escola, que construímos uma taxonomia para elaborar um instrumento que aferisse quão prontos estão nossos jovens para a transição ao mundo do trabalho. Ao longo de 12 meses, uma equipe com quatro professores e seus pós-graduandos de mestrado e de doutorado elaborou um instrumento de autorrelato que permitia que os jovens expressassem suas percepções sobre a questão em 25 construtos1 distribuídos na taxonomia proposta.2

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NOVOS HORIZONTES PARA O DEBATE PÚBLICO

Ao final do processo descrito anteriormente, foi feita uma aplicação do instrumento com cerca de 5 mil estudantes de EM da rede pública do Paraná, a partir da qual já pudemos perceber alguns fatos interessantes. Em primeiro lugar, os dados mostravam que, em grande parte dos construtos, são as mulheres que se definiram como mais prontas para o mundo do trabalho do que os homens, rompendo com o estereótipo do homem provedor. Em segundo lugar, vimos que a grande maioria dos construtos está em transformação na faixa etária entre o 1º e o 3º ano do EM, indicando que tais atributos, de fato, podem ser trabalhados com esse público e trazer resultados positivos. Confirmamos também a existência de profissões com estereótipo de gênero, como o serviço social para as mulheres e a mecânica para os homens. Vimos, ainda, que apenas cerca de 5% da variância total dos construtos medidos por nosso instrumento são atribuídos à variância entre escolas, em comparação com os 15% que se costuma obter em resultados tradicionais de aprendizagem, como as notas de português e matemática. Isso sugere que há, atualmente, pouca influência da escola frequentada sobre o desenvolvimento dessas características, possivelmente porque não há a intenção de trabalhá-las.

Em outra frente, ajudamos quatro estados cujas Políticas Estaduais de Educação Profissional e Tecnológica (PEEPT) são apoiadas pelo IET – Paraíba, Piauí, Mato Grosso do Sul e Sergipe – a usar a nossa taxonomia para comparar seus programas e seus currículos de EM, em especial aqueles relacionados ao ensino técnico e profissionalizante e ao quinto itinerário do ensino regular, a fim de verificarem o seu grau de alinhamento e, com isso, aperfeiçoarem suas iniciativas. A partir desse exercício, foram realizadas oficinas com gestores educacionais na perspectiva de que possamos contribuir também para esse redesenho.

Ainda em 2022, pretendemos fazer uma avaliação diagnóstica do EM em três estados brasileiros – Piauí, Mato Grosso do Sul e Sergipe –, com o objetivo de mostrar a efetividade do sistema educacional em preparar os jovens para o mercado de trabalho. A partir dos resultados, discutiremos possibilidades de intervenção com os candidatos a governador de cada estado. Em paralelo, também pretendemos criar instrumentos para que professores e supervisores de trabalho possam relatar como estão os jovens brasileiros em termos de preparo para o mundo do trabalho ao final do EM. Finalmente, uma plataforma de uso aberto será desenvolvida para abrigar os instrumentos criados e os dados das coletas longitudinais que planejamos iniciar no mesmo ano para acompanhar egressos do EM nessa transição.

De modo geral, todas essas iniciativas têm como objetivo principal apoiar a implementação do NEM, fortalecer as políticas de ensino técnico e profissionalizante, e produzir evidências sobre as lacunas de formação dos jovens para, a partir disso, propor revisões curriculares, inclusive participando da revisão da BNCC prevista para ocorrer em breve.3 Outras instituições reguladoras do Sistema Educacional Brasileiro (SEB), como o Conselho Nacional de Educação (CNE), demonstraram interesse por esses indicadores como forma de ampliar o conjunto de medidas usadas para monitorar o EM brasileiro, de modo que podem eventualmente fazer parte do Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb) e do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem).

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COMO CITAR

SANTOS, Daniel D. Como medir o preparo dos nossos jovens para o mundo do trabalho? Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.33-10.

DANIEL D. SANTOS

possui graduação, mestrado e doutorado em economia, respectivamente pela Universidade de São Paulo (USP), pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e pela Universidade de Chicago, nos Estados Unidos. É professor de economia na USP, coordenador do Laboratório de Estudos e Pesquisas em Economia Social (Lepes) e vice-coordenador do Núcleo de Apoio à Pesquisa em Neurodesenvolvimento e Saúde Mental (NAP-N&SM) da USP. Pesquisa o desenvolvimento socioemocional no ambiente escolar, a demanda por serviços de atendimento à primeira infância e o desenvolvimento infantil.

NOTAS

1. Construtos podem ser entendidos como quantidades (neste contexto, características humanas), resultados de construções teóricas, que acreditamos existir mas não conseguimos medir diretamente. São exemplos a proficiência em matemática, a empatia, o clima escolar e o otimismo.

2. Relatório disponível em: https:// observatorioept.org.br/conteudos/ prontidao-para-o-mundo-dotrabalho-relatorio-1. Acesso em: 8 ago. 2022.

A revisão da BNCC está prevista para ocorrer cinco anos após a sua homologação, segundo o artigo 21o da Resolução CNE/CP no 2/2017, o que corresponderia ao ano de 2023.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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Frame de Sethico | Foto de Breno César, montagem de Felipe Correia e lambe de Filipe Gondim

Caminhos para unir o ensino técnico e a área cultural na formação de jovens

A Educação Profissional e Tecnológica (EPT) é um universo amplo, rico e diversificado que pode representar, para muitas pessoas, uma etapa dentro da sua longa trajetória de qualificação. A área da cultura está contemplada em diversos tipos de formações técnicas e, sem dúvida, constitui uma importante frente de inserção produtiva dos jovens brasileiros e de melhoria do ambiente escolar e comunitário. Este texto traça caminhos possíveis para aproximar a EPT de nível médio da área cultural.

Engana-se quem supõe que os cursos técnicos se restringem à formação do profissional para atuar apenas em parques industriais e tecnológicos ou em empresas do setor produtivo tradicional, como fábricas e montadoras. Segundo o “Catálogo nacional de cursos técnicos”, do Ministério da Educação (MEC), que lista os cursos da EPT de nível médio oferecidos no país, o eixo de produção cultural e design apresenta 31 cursos técnicos, com os mais variados focos: artes visuais, canto, dança, design, museologia, produção cultural, multimídia, teatro e moda, entre outros.

Além dos cursos de nível médio, que podem incluir a formação inicial e continuada (FIC), de curta duração, outros cursos que fornecem um diploma de graduação, como o de tecnólogo em produção cultural, representam uma chance de o jovem se aprofundar no nível superior, permitindo que continue o seu processo de qualificação para as múltiplas exigências do século XXI.

As possibilidades de formação são muitas, e colocar a cultura dentro de um itinerário profissional é dar a ela a importância que merece e, ao mesmo tempo, contribuir para fortalecer a chamada indústria criativa, ou economia criativa, que tem grande potencial no Brasil, com sua riqueza e diversidade cultural imensuráveis.

Cursos que fornecem um diploma de graduação, como o de tecnólogo em produção cultural, representam uma chance de o jovem se aprofundar no nível superior, permitindo que continue o seu processo de qualificação para as múltiplas exigências do século XXI

A economia criativa é abrangente e compreende muitas subáreas de atuação, reunindo toda uma cadeia de produtos e serviços. Em um único show ou exposição, por exemplo, podem trabalhar dezenas de profissionais técnicos antes, durante e depois do evento, o que ilustra as várias oportunidades de geração de trabalho e de renda para as juventudes – possibilidades que ainda podem e devem ser ampliadas.

Segundo levantamento do Observatório Itaú Cultural, que possui dados interessantes sobre o assunto, foram identificados 18 setores econômicos diretamente

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relacionados à produção criativa. Essas áreas empregaram 4,89 milhões de pessoas em 2021, das quais 2,89 milhões eram trabalhadores criativos. Contudo, a atuação desses profissionais não está restrita aos setores criativos: são mais de 1,28 milhão atuando fora deles, em um universo total de 4,18 milhões de trabalhadores da área no Brasil.

A atuação desses profissionais não está restrita aos setores criativos: são mais de 1,28 milhão atuando fora deles, em um universo total de 4,18 milhões de trabalhadores da área no Brasil

Os trabalhadores criativos podem pertencer a uma variedade de 57 ocupações, sendo que 21 delas – como profissionais da publicidade e da comercialização; desenhistas e projetistas técnicos; desenhistas e decoradores de interiores; e técnicos de radiodifusão e gravação audiovisual – são de pessoas formadas por qualificação profissional ou por cursos técnicos de nível médio, que somaram quase 2,27 milhões no segundo trimestre de 2021, segundo a “Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua” (“Pnad contínua”). Isso quer dizer que praticamente metade desses trabalhadores possui formação/conhecimento da EPT de nível médio e que ainda há espaço para esse número crescer.

No mesmo período de 2021, de acordo a pesquisa, um quarto (25,6%) dos trabalhadores criativos era formado por jovens (15 a 29 anos). Nesse universo, algumas ocupações eram compostas predominantemente dessa faixa etária, sobretudo as relacionadas à tecnologia da informação e outras diretamente ligadas às artes, como de modelo e ator. Além disso, em 14 das 57 ocupações, o percentual de jovens ultrapassava os 40%.

Para além dos 31 cursos técnicos do eixo tecnológico de produção cultural e design citados anteriormente, cursos de outros eixos, como de produção alimentícia e de turismo, hospitalidade e lazer (técnicos em gastronomia e em eventos), também contam com vários outros cursos para a formação de trabalhadores criativos.

Atualmente, o principal desafio do Brasil está em aumentar e democratizar a oferta da EPT, mas com qualidade, elevando o total de profissionais com formação realmente adequada, seja na área cultural ou em outra. Há ainda um longo caminho de mudança de percepção interna para que o país valorize mais a EPT como forma de inserção digna dos jovens no mundo do trabalho, a exemplo do que já acontece há décadas em nações desenvolvidas, como Alemanha, Áustria, Suíça, Holanda e Japão. Essa mudança é ainda mais urgente e necessária quando se observa que o país tem hoje um universo populacional de cerca de 50 milhões de jovens, ávidos por boa formação e por inclusão produtiva qualificada.

A pesquisa nacional Percepções dos jovens sobre o ensino técnico. Primeira parte: pesquisa quantitativa, realizada em 2021 pelo Plano CDE a pedido do Itaú Educação e Trabalho e da Fundação Roberto Marinho, reuniu mais de mil respostas de estudantes do 9º ano do Ensino Fundamental e do 1º ano do Ensino Médio da rede pública de ensino a um questionário on-line. Entre os dados mais preocupantes, tem-se que “43% dos jovens nunca ouviram falar de ensino técnico”. E, mesmo entre quem já ouviu, a maioria não conhece nenhuma escola de Ensino Médio que ofereça cursos técnicos.

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Há ainda um longo caminho de mudança de percepção interna para que o país valorize mais a EPT como forma de inserção digna dos jovens no mundo do trabalho, a exemplo do que já acontece há décadas em nações desenvolvidas, como Alemanha, Áustria, Suíça, Holanda e Japão

O curioso é que, apesar do baixo conhecimento, os estudantes que participaram da pesquisa têm atitudes positivas em relação ao ensino técnico, visto por eles como de boa qualidade e como uma opção adequada de preparação tanto para o vestibular quanto para o mundo do trabalho. Além disso, conseguir um emprego é o principal motivo de considerarem atrativo esse tipo de ensino. Ao mesmo tempo, o levantamento mostra que os alunos sentem uma desconexão da escola com o mundo. Há uma percepção predominante de que a escola os prepara pouco para o mundo do trabalho, de que deveria preparar mais.

O professor Bernard Charlot, da Universidade Federal de Sergipe (UFS), autor do livro Da relação com o saber às práticas educativas, esclarece que a escola formal foi concebida justamente para ser separada da vida e do trabalho. Segundo ele, os jesuítas desenvolveram um espaço “ideal” para as crianças estudarem e se formarem, que era apartado da vida: o internato. Agora, cabe aos novos gestores escolares promover uma reconexão entre esses universos, na perspectiva da formação integral do sujeito.

Já a segunda parte da mesma pesquisa, qualitativa, ouviu 96 jovens em profundidade e mostrou que eles têm dificuldade em encontrar sentido e conexão entre a escola e as suas vidas, e que sentem falta de conteúdos e aprendizados aplicáveis. Queixam-se também da falta de um diálogo maior entre a escola, os seus interesses e as suas necessidades, e gostariam de ter mais orientação para atingir o que desejam. Alegam, por exemplo, que há pouco conhecimento sobre profissões e áreas de atuação e sobre o mundo do trabalho de forma geral.

Os resultados das duas partes da pesquisa transmitem um recado: é clara a oportunidade para as redes de ensino repensarem e atualizarem suas ofertas curriculares, levando em conta os desejos dos estudantes e as possibilidades reais de contratação pelo mercado. Fica patente também a necessidade de melhoria da divulgação dos cursos técnicos entre os adolescentes do Ensino Fundamental II, a fim de que fiquem mais bem informados para fazer suas escolhas do Ensino Médio de forma mais estruturada.

Com a reforma implementada no Brasil a partir de 2022, o Ensino Médio passa a contar com o itinerário de formação técnica e profissional, ou quinto itinerário, e com flexibilização curricular, formação por competências e maior interdisciplinaridade, podendo unir muito mais educação, arte e cultura. Pode-se integrar, por exemplo, o itinerário técnico com o de linguagens (língua portuguesa, artes, língua inglesa etc.), e isso pode ser promovido por meio da FIC. Ademais, trabalhar o empreendedorismo na área da cultura propondo-se atividades “mão na massa” na escola é um meio possível para formar um jovem capaz de criar e gerir seu empreendimento cultural, seja ele um DJ, um youtuber ou um designer de moda.

A recente experiência de uma escola da rede estadual de ensino de Pernambuco pode inspirar as demais redes na oferta de cursos técnicos da área cultural

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no contexto do novo Ensino Médio. Desde fevereiro de 2021, a Escola Técnica Estadual (ETE) Professor Alfredo Freyre, no bairro de Água Fria, Zona Norte do Recife, oferece dois cursos integrados ao Ensino Médio: técnico em teatro e técnico em artes visuais.

Hoje, são 267 alunos e 25 professores (9 da base técnica e 16 da base comum) ocupando diferentes espaços da escola, que incluem um teatro para a exibição das peças e um local para as exposições artísticas dos alunos e para os aprendizados sobre cinema.

No fim de 2023, esses jovens estarão aptos a atuar no mercado cultural em cargos de nível médio. Mais que isso, estarão preparados para diversas atividades. Sairão da escola com habilidades para trabalhar na organização de eventos, com conhecimentos de som e de iluminação. Serão formados também artistas visuais prontos para se expressar esteticamente de diversas formas, capazes de inspirar o outro e de empreender em suas obras.

O levantamento mostra que os alunos sentem uma desconexão da escola com o mundo. Há uma percepção predominante de que a escola os prepara pouco para o mundo do trabalho, de que deveria preparar mais

Relatos dos gestores da unidade de ensino mostram que a associação com artes e cultura tem gerado sensações de engajamento e de pertencimento entre os estudantes, que quanto mais participam de projetos, ajudando a construí-los e exibi-los, mais querem estar presentes, com demonstrações de empolgação e de criatividade.

Um exemplo disso aconteceu na vivência do Dia da Matemática, quando os estudantes de artes visuais produziram objetos de arte baseados nas formas geométricas, que resultaram em uma exposição bastante criativa; e os alunos de teatro conceberam espetáculos inspirados na vida e na obra do matemático e escritor Malba Tahan, gerando significado para eles e para toda a escola.

Thayane Rhayane Sales de Oliveira, estudante do segundo ano do curso técnico em teatro integrado ao Ensino Médio da escola pernambucana, demonstra esses aspectos em sua fala: “Sempre me senti muito próxima da arte, e a experiência de atuar na peça de matemática foi incrível. Confesso que não estava muito animada, porque matemática nunca foi um dos meus fortes, mas foi maravilhoso usarmos o curso técnico para aprender mais e mais. Essa peça mudou meu ponto de vista, porque antes eu acreditava que o teatro era para ser só uma coisa dramática e para falar sobre romances, tal como as novelas. Percebi que o teatro traz vários benefícios: conhecemos mais nosso corpo e nossas limitações, fortalecemos trocas afetivas e principalmente o trabalho em grupo”.

Já Lucas Cauê da Silva Cordeiro, aluno do mesmo ano e curso, salienta a potencialização das suas habilidades: “Nas peças interdisciplinares, os professores utilizaram o ensino técnico para fazer um ensino mais descontraído. Não aprendi apenas a atuar, aprendi a estar atrás das câmeras para poder produzir minhas próprias coisas. Além de atuar, ajudei a produzir outras peças, e alguns amigos meus também tomaram esse rumo, fazendo iluminação, sonoplastia e roteiros.

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Vou explorar exponencialmente a parte técnica com a atuação para poder me destacar como profissional”.

Formar jovens em diferentes competências e habilidades no nível médio significa abrir as portas para que eles continuem a se desenvolver plenamente no futuro e estabeleçam uma carreira no longo prazo. Vários artistas consagrados tornaram-se capazes de exercer diferentes atividades. Emicida não é só rapper: é cantor, compositor, letrista, diretor de documentário, apresentador de TV, empreendedor e professor. Ney Matogrosso não é só cantor: é iluminador, ator, dançarino, artesão, compositor e diretor de espetáculos. Antes de se tornarem cantoras e dançarinas conhecidas mundialmente, Pabllo Vittar era maquiadora e Anitta cursou o técnico em gestão administrativa.

Infelizmente, o distanciamento social imposto pela pandemia de covid-19 aumentou ainda mais os desafios das redes de ensino para atrair e manter os alunos estudando e se formando, o que exige uma forte cooperação entre gestores públicos, famílias e sociedade como um todo. Com a recente retomada das atividades presenciais no país, o campo cultural pode voltar a se fortalecer e incentivar a inventividade de milhões de jovens brasileiros. Os cursos técnicos e profissionalizantes são, claramente, um vetor possível para proporcionar essa recuperação tão necessária e bem-vinda.

COMO CITAR CHIAMARELI, Carla C. Caminhos para unir o ensino técnico e a área cultural na formação de jovens. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.33-11

CARLA CHRISTINE CHIAMARELI é gerente de gestão de conhecimento do Itaú Educação e Trabalho. Advogada, atua há mais de 18 anos com direitos sociais, sobretudo na elaboração e na implementação de políticas públicas educacionais. Nos últimos anos, dedicou-se ao apoio técnico para a ampliação com qualidade da oferta da modalidade Educação Profissional e Tecnológica. Tem passagens pela Secretaria Estadual de Desenvolvimento Social de São Paulo (Seds) e pelo Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec).

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Frame de Sethico | Foto de Breno César e montagem de Felipe Correia

Desenvolvendo territórios urbanos vulneráveis: uma abordagem da teoria da mudança

Territórios subdesenvolvidos com múltiplas vulnerabilidades sociais povoam grandes cidades há décadas. Uma área periférica pode carecer de infraestrutura habitacional, de saneamento básico e de segurança e, ao mesmo tempo, ter altos índices de doenças, de desemprego e de evasão escolar. Melhorar esse cenário, que afeta a vida de milhões de pessoas, requer intervenções urbanas combinadas e complementares em diferentes áreas e a organização de múltiplos agentes.

No entanto, como fazer isso na prática? Quais são os diferentes fatores que limitam o desenvolvimento de áreas urbanas vulneráveis? Como organizar esforços e ações de diversas organizações e pessoas para alcançar conjuntamente múltiplos resultados que melhorem a vida das populações que residem em territórios urbanos subdesenvolvidos?

Em 2020, o Insper Metricis (centro de estudos de gestão e medição de impactos) firmou parceria com duas das principais organizações sem fins lucrativos brasileiras, a Fundação Tide Setubal e o Itaú Social, para estudar o desenvolvimento de áreas urbanas vulneráveis na cidade de São Paulo.

Embora o objetivo final do projeto fosse elaborar um painel de indicadores de desenvolvimento, ficou claro desde o início que uma parte fundamental do processo exigia uma compreensão profunda dos variados problemas enfrentados por essas áreas. Compreender essas questões e avaliar as maneiras pelas quais as organizações públicas e privadas poderiam colaborar também exigiu um processo estruturado e lógico para definir as ações potenciais e seus resultados de interseção. O problema exigia o desenvolvimento de uma grande e unificada teoria da mudança.

PROBLEMAS URGENTES EM ÁREAS URBANAS VULNERÁVEIS

Antes de delinear a teoria da mudança, a equipe do projeto começou com uma análise aprofundada dos problemas enfrentados pelas áreas vulneráveis. Para entendê-los melhor, a equipe entrou em contato e engajou ativamente um grupo diversificado de partes interessadas direta e indiretamente. A governança do projeto contou com um comitê gestor e um comitê consultivo, com membros de diversas organizações públicas e privadas, além da participação ativa de moradores de áreas vulneráveis.

Após interações com esses atores e uma profunda revisão da literatura, a equipe chegou a oito temas inter-relacionados que se mostraram relevantes para territórios urbanos vulneráveis, sendo eles: trabalho e renda; segurança; infraestrutura básica (decomposta em saneamento, energia, lazer e cultura); educação; saúde;

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mobilidade urbana; habitação; e capital social (por exemplo, a participação dos moradores em grupos e em associações comunitárias).

A equipe também estudou casos conhecidos de desenvolvimento urbano, como o de Medellín, na Colômbia, que envolveu um conjunto de ações abordando vários desses temas de maneira integrada.

PROPONDO TEORIAS TEMÁTICAS DE MUDANÇA

A partir dos oito temas definidos, vários especialistas foram consultados para a elaboração de um conjunto de ações para abordar e melhorar os territórios. Foi proposta uma teoria temática da mudança para cada um dos temas, a fim de tratar de problemas e de oportunidades de desenvolvimento (Figura 1).

Como se sabe, a teoria da mudança engloba etapas lógicas para materializar as transformações desejadas: insumos disponíveis (recursos humanos, físicos e financeiros); atividades (ações e programas); saídas (produtos e serviços resultantes das atividades); resultados das atividades focais (transformações diretas e tangíveis para a população-alvo); e resultados mais amplos para a sociedade, que foram explicitamente vinculados aos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), definidos pela Organização das Nações Unidas (ONU) Por exemplo, atividades que têm como foco fomentar o empreendedorismo local devem aumentar a renda familiar (um resultado baseado em atividades) e, consequentemente, promover “trabalho decente e crescimento econômico” (ODS 8).

Figura 1: Temas-chave para o desenvolvimento de áreas urbanas vulneráveis e a teoria temática de mudança correspondente Trabalho e renda

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Segurança
Infraestrutura
Capital social Moradia Mobilidade urbana Saúde Educação Recursos humanos, físicos e financeiros INSUMOS Linhas de ação e programas de intervenção ATIVIDADES Produtos e serviços ofertados à população-alvo PRODUTOS Mudanças tangíveis em variáveis-chave relacionadas à atividade local e valorizadas pela população-alvo RESULTADOS DAS ATIVIDADES Transformações sociais mais amplas causadas pela intervenção RESULTADOS PARA A SOCIEDADE
pública
básica

CONSTRUINDO UMA TEORIA DA MUDANÇA SISTÊMICA

O próximo passo foi integrar essas teorias temáticas de mudança a uma teoria geral e unificada, refletindo resultados múltiplos e cruzados. A teoria da mudança decorrente é muito complexa para ser descrita neste artigo, mas a ideia geral está representada na Figura 2. Os oito temas geraram teorias temáticas de mudança que foram posteriormente integradas por meio da identificação de atividades e de produtos de interseção, o que levou a um total de 37 resultados esperados.

Figura 2: Construção de uma teoria de mudança sistêmica a partir de temas múltiplos e cruzados que afetam o desenvolvimento dos territórios urbanos

Resultados

Por exemplo, uma intervenção de mobilidade urbana, como melhorias substanciais no transporte público, pode afetar positivamente o trabalho e o emprego, pois os indivíduos chegariam supostamente de maneira mais fácil às áreas comerciais com oportunidades de trabalho ou de transações. Da mesma forma, reparos em casas vulneráveis têm o potencial de contribuir para a melhora da saúde da população local, reduzindo doenças respiratórias e infecciosas; enquanto as intervenções de lazer e de cultura tendem a complementar as atividades escolares e ajudar a evitar a ação de grupos criminosos que tentam influenciar os jovens.

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R33 R34 R35 R36 R37 R32 R31 R30 R29 R28 R25 R24 R23 R21 R20 R19 R18 R17 R16 R15 R14 R13 R12 R10 R6 R5 R4 R1
Macrotemas

Tais ações e efeitos tornam-se tão emaranhados que, na teoria final de mudança, os limites dos temas originais se mostraram confusos e sobrepostos. Relacionados à cultura, destacam-se resultados como o acesso a espaços públicos e a atividades de lazer, de cultura, de esporte e de convivência, assim como o empoderamento e o engajamento da população.

A teoria da mudança sistêmica acabou cobrindo praticamente todos os ODS – exceto, por razões óbvias, “vida na água” (ODS 14).

A TEORIA DA MUDANÇA COMO UMA REDE

A teoria da mudança é essencialmente uma rede de relações causais: entradas levam a atividades, que por sua vez afetam saídas e resultados. Da mesma forma, os insumos são fornecidos por múltiplas organizações, públicas e privadas, que executam diversas atividades em territórios urbanos. A equipe do projeto, portanto, foi pioneira na ideia de vincular essas organizações à teoria da mudança, por meio de suas atividades existentes, e então observar os resultados esperados.

Esse exercício foi feito no contexto do Jardim Lapenna, território urbano de baixa renda com mais de 12 mil habitantes, localizado no bairro de São Miguel Paulista, na Zona Leste de São Paulo. Uma análise aprofundada do local constatou que a maioria de seus moradores está em situação de alta vulnerabilidade socioeconômica, vivendo em condições precárias de habitação e saneamento, e às margens de um rio (Tietê) com constante risco de enchentes. Após uma série de entrevistas, a equipe do projeto também mapeou as ações de nove organizações que já atuavam no território.

Ao conectar essas organizações com atividades especificadas na teoria da mudança, foi possível identificar quais tinham resultados em comum. A Figura 3 retrata uma rede dessas organizações, sendo que o vínculo entre elas indica que as suas atividades compartilham pelo menos um resultado comum associado à teoria da mudança.

Observe que esses laços mapeiam as interações potenciais entre as organizações –uma vez que buscam resultados comuns –, mas não indicam necessariamente que estão explorando de maneira efetiva essas conexões.

Há casos de organizações com alinhamentos na teoria da mudança (vê-se um empate na Figura 3) e que já estão executando projetos conjuntos no território. Por exemplo, a Fundação Tide Setubal e a Moradigna, empresa social dedicada à recuperação de moradias, se uniram para financiar e executar reformas de banheiros para famílias de baixa renda. Além disso, a fundação firmou parceria com o Comitê de Planejamento do Desenvolvimento Local do território para implementar diversos projetos, incluindo, por exemplo, a melhoria da infraestrutura viária para facilitar a mobilidade dos moradores. O comitê é um grupo permanente de planejamento formado por moradores e representantes de diversas organizações locais, com o objetivo de melhorar a qualidade de vida da comunidade.

Segundo o mapeamento realizado, sete das nove organizações contribuem para o resultado relacionado ao empoderamento e ao engajamento da comunidade via

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atividades de lazer e de cultura; e cinco contribuem mais diretamente para o acesso aos espaços culturais.

No entanto, existem vários casos de organizações que compartilham ações comuns e não estão em colaboração. Elas estão agindo de forma mais ou menos independente, embora seus projetos possam gerar sinergias substanciais. Ao identificar suas interações potenciais, a teoria da mudança sistêmica permite que essas organizações sejam reconhecidas como parceiras, aumentando a probabilidade de compartilharem recursos e esforços para transformar o território. É possível, assim, que entendam melhor seus objetivos comuns e que elaborem iniciativas complementares para maximizar os resultados esperados.

O vínculo entre estas organizações indica que compartilham pelo menos um resultado comum, conforme indicado pela teoria de mudança sistêmica

As próximas etapas do projeto incluem o desenvolvimento de um aplicativo que permitirá que organizações de outros territórios listem suas contribuições e atividades e identifiquem os efeitos esperados da teoria da mudança sistêmica. Esse esforço também poderá ajudar a mapear múltiplas intervenções e a identificar outras oportunidades para colaborações interorganizacionais. Longe de ser um exercício abstrato, uma teoria da mudança sistêmica é uma ferramenta prática e acionável para abordar de forma interconectada problemas prementes em áreas urbanas vulneráveis e negligenciadas.

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Soc Amigos Guardias Moradigna Fundação Tide Setubal Colegiado IAS Iguá Redeprot Vaga Lume Figura 3: Rede de organizações que atuam no território do Jardim Lapenna, na cidade de São Paulo

COMO CITAR

TOCK, Fabiana et al. Desenvolvendo territórios urbanos vulneráveis: uma abordagem da teoria da mudança. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. DOI: https://www. doi.org/10.53343/100521.33-12.

FABIANA TOCK

é mestra em administração pública e governo pela Fundação Getulio Vargas (FGV) e pós-graduada em sociologia e pesquisa social pela University College Dublin, na Irlanda, e em gestão pública pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Coordena o programa Cidades e Desenvolvimento Urbano da Fundação Tide Setubal.

JOSÉ GERALDO SETTER FILHO

é mestre em administração pelo Insper, com MBA executivo pela mesma instituição e especialização em finanças pela Escola de Administração de Empresas de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas (Eaesp/FGV). É doutorando em administração na Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA/ USP), professor assistente do Insper e diretor do Insper Metricis.

LÍGIA VASCONCELLOS

é doutora em economia pela Faculdade de Economia, Administração, Contabilidade e Atuária da Universidade de São Paulo (FEA/USP). Atua como consultora de avaliação de impacto social e pesquisadora associada do Insper Metricis.

SÉRGIO LAZZARINI

é ph.D. em administração pela John M. Olin School of Business, da Universidade de Washington, nos Estados Unidos. Foi professor visitante na Universidade Harvard em 2010 e em 2012, atualmente lecionando na Cátedra Chafi Haddad do Insper, em São Paulo. É fundador do Insper Metricis.

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Frame de Sethico | Foto de Breno César e montagem de Felipe Correia

Sethico: um corpo negro num mundo branco

Demorei 30 anos para entender que vivo num corpo negro. Não que eu não soubesse que a minha pele é mais escura que a da minha mãe, pessoa que sempre foi a minha referência do que é mundo. Eu sabia que a pele dela era branca e que a minha não. Mas achava que, nos lugares onde estivesse, sempre existiria alguém mais negro do que eu. Alguém para quem eu pudesse apontar e dizer: “Ele é negro, eu não!”. Era a minha tentativa de escapar das estruturas do racismo. Mas eu não escapava, e nem sempre encontrava alguém para apontar. Eu era apontado.

Segui a vida na ilusão de encontrar um reflexo branco no espelho. E só fui me compreender negro na medida em que percebi que eu era tudo aquilo que é ruim, mau, bruto e primitivo. Meu corpo era condenado. Não adiantava lutar contra a minha própria imagem: todas as pessoas pretas carregam consigo as marcas da tragédia colonial. Assim nasceu o filme Sethico, alegoria inspirada em Seth, o deus do caos do Antigo Egito que, todas as noites, luta contra a serpente Apophis, que ameaça engolir o mundo.

A luta de Seth para que o mundo não seja devorado pelo caos me inspira a criar estratégias de sobrevivência num mundo que deixa negros e negras para morrer. A sequência de autorretratos que inaugura o filme é uma tentativa de me compreender como um corpo negro num mundo branco.

Essa existência conflituosa causou alterações bioquímicas no meu corpo que me incluíram no terrível quadro da saúde mental da população preta brasileira: jovens negros têm risco 45% maior de desenvolver depressão e cometer suicídio, dizem os dados da pesquisa “Óbitos por suicídio entre adolescentes e jovens negros”, realizada pelo Ministério da Saúde e pela Universidade de Brasília em 2018.1

Não morremos apenas de bala, de fome, de pobreza. Vivemos num mundo que nos dinamita por dentro. O mesmo mundo em que 72% das pessoas que morreram de covid-19 eram pretas e pardas.2 Esses números eram exibidos todos os dias nos boletins oficiais da pandemia divulgados pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco na época da criação de Sethico, em fevereiro de 2021.

A videoarte promove um passeio pela cidade do Recife, marcada pela desigualdade racial desde o século XVI. As fotos e os desenhos são representações do caos colonial que, desde a travessia nos navios negreiros, deixa negros e negras mareados. É por viver nessa sensação que buscamos formas para sobreviver à feiura do mundo. As obras apresentadas também fazem parte do catálogo Sethico, criado para documentar a pesquisa que culminou no filme.

Acesse o conteúdo pelo QR Code ou pelo link: https://www. itaucultural.org.br/ secoes/observatorioitau-cultural/ensaioartistico-sethicowagner-montenegro

Acesse o trailer do filme pelo QR Code ou pelo link: https:// www.youtube.com/ watch?v=oPZWdOFEBNo

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SOBRE O FILME

Dirigido e protagonizado por Wagner Montenegro, Sethico nasce a partir de reflexões do ator sobre si mesmo e sobre estar no mundo como um corpo negro. A pesquisa que deu origem à produção, realizada ao lado de Andréa Veruska, uma das fundadoras do Núcleo de Experimentações em Teatro do Oprimido (Nexto), foi orientada pela cineasta Danielle Valentim. O filme ganhou menção honrosa no Atlanta black pride film festival (2021) e foi exibido em eventos como o 14º encontro de cinema negro Zózimo Bulbul – Brasil, África, Caribe e outras diásporas (2021), o VII dobra – festival internacional de cinema experimental, o Venice architecture film festival (2021), o Noble international film festival and awards (2021), o 5th international folklore film festival (2022), o 2º festival internacional de ecoperformance (2022) e o Palco virtual, do Itaú Cultural (2022).

COMO CITAR

MONTENEGRO, Wagner. Sethico: um corpo negro num mundo branco. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. DOI: https://www. doi.org/10.53343/100521.33-13.

WAGNER MONTENEGRO

é ator, palhaço, realizador audiovisual e cientista social. Desenvolve pesquisas e experimentações com o Teatro do Oprimido há 18 anos. É palhaço da Doutores da Alegria no Recife desde 2018. Cofundou o Núcleo de Experimentações em Teatro do Oprimido (Nexto), por meio do qual desenvolveu, em parceria com Andréa Veruska, as produções A coleira (2015), Mulheres que carregam homens (2018), Perseguida (2019) e Ferida (2020), entre outros experimentos audiovisuais. Assinou a direção de Laço branco (2016), Letal (2020), Sethico (2021) e Linhas cruzadas (2021).

NOTAS

1. Ver: https://bvsms.saude.gov.br/ bvs/publicacoes/obitos_suicidio_ adolescentes_negros_2012_2016. pdf. Acesso em: 2 ago. 2022.

2. Dados do boletim epidemiológico no 350 divulgado pela Secretaria Estadual de Saúde de Pernambuco em 15 de fevereiro de 2021. Disponível em: https://www.dropbox.com/s/ rq3cbacd5zwcfnb/Boletim%20 Covid-19%20-%20Secretaria%20 de%20Sa%C3%BAde%20de%20 Pernambuco%20-%2015.02. pdf?dl=0. Acesso em: 2 ago. 2022.

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Frame de Sethico | Foto de Breno César e montagem de Felipe Correia

Uma boa conversa entre Bel Santos Mayer e María Paulina Soto Labbé, conduzida por Juliana Yade

A edição 33 da Revista Observatório Itaú Cultural traz uma discussão sobre as metodologias de monitoramento e de avaliação de projetos de artes, cultura e educação. Diferentes contextos socioterritoriais nos ajudam a entender que os indicadores não podem ser métricas isoladas na apuração de resultados de projetos e programas que afetam diretamente as vivências e as experiências das pessoas, especialmente quando essas oportunidades garantem o acesso a direitos fundamentais, como a arte, cultura e educação.

No centro do debate, a necessidade latente de que a produção de conhecimento nos campos da economia, da cultura, da educação, da saúde e do trabalho dialoguem profundamente com os diversos modos de vida e cosmovisões, como as que se estruturam a partir da latino-americanidade afro-indígena. Essas nos trazem a possibilidade de enxergar, escutar e sentir os territórios como espaços de práticas coletivizadas demarcadas para o bem viver. Questões dessa importância atravessaram a conversa entre a educadora social Bel Santos Mayer e a professora e pesquisadora María Paulina Soto Labbé, conduzida pela especialista em educação Juliana Yade.

O convite para acompanhar esse encontro propõe um desafio: não desviar o olhar das desigualdades. No entanto, ao nos depararmos com indicadores e dados que mostram uma realidade indesejável, é preciso atentar também para as narrativas e as vozes que emergem nos diversos espaços periféricos, que certamente nos ajudarão, como apontam Maria Carolina Vasconcelos Oliveira e Júlia Fontes em “Ensaios de fruição com o Grupo Magiluth: relato de uma experiência qualitativa de pesquisa-ação de mediação e de criação artística”: “Treinar o olhar para enxergar poesia no cotidiano, nas frestas mais improváveis ou no convívio com o outro é algo que certamente favorece a criação e a fruição artística, mas também desenvolve uma habilidade fundamental para a vida social e política”.

Episódio 1

Como pensar indicadores?

Episódio 2

Metodologias coletivas versus individualismo

Episódio 3

A educação em transformação

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COMO CITAR

MAYER, Bel Santos; LABBÉ, María P. Soto; YADE, Juliana. Uma boa conversa entre Bel Santos Mayer e María Paulina Soto Labbé, conduzida por Juliana Yade. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 33, 2022. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.33-14

BEL SANTOS MAYER

é educadora social, com mestrado em turismo pela Escola de Artes, Ciências e Humanidades da Universidade de São Paulo (Each/USP). Atua como coordenadora do Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário (Ibeac) e cogestora da Rede LiteraSampa. Integra o Grupo de Pesquisa Direitos Humanos, Democracia e Memória do Instituto de Estudos Avançados da USP (IEA/USP).

MARÍA PAULINA SOTO LABBÉ

é pesquisadora, professora, gestora e colaboradora internacional em políticas culturais. Possui doutorado em estudos americanos, com especialização em estudos sociais e políticos pelo Instituto de Estudos Avançados da Universidade de Santiago do Chile (Idea/Usach). Ocupou o cargo de diretora do Departamento de Estudos e Documentação do atual Ministério das Culturas, das Artes e do Patrimônio do Chile, e foi vice-diretora acadêmica e reitora da Universidade das Artes do Equador. Atualmente, é subsecretária de Patrimônio no governo do presidente Gabriel Boric, no Chile.

JULIANA YADE é especialista em educação. Possui graduação em pedagogia pelas Faculdades Integradas Campos Salles e mestrado e doutorado em educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC), onde atuou também como pesquisadora. Foi professora nos anos iniciais do Ensino Fundamental.

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Frame de Sethico | Foto de Breno César e montagem de Felipe Correia
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