Observatório 32 - Perspectivas das ancestralidades no fazer cultural

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Revista#32Perspectivas fazerancestralidadesdasnocultural

Memória e Pesquisa / Itaú Cultural Revista Observatório Itaú Cultural - N. 32 (jun/2022) –São Paulo : Itaú Cultural, 2007-. ISSNTrimestral2447-7036 (versão on-line) 1. Política cultural; 2. Gestão cultural; 3. Culturas negras; 4. Culturas indígenas; 5. Relações raciais; 6. Diversidade cultural. I. ItaúBibliotecáriaCultural Ana Luisa Constantino dos Santos CRB-8/10076 ISSN 2447-7036 ISBN 978-65-88878-44-6 DOI: contato:https://www.doi.org/10.53343/100521.32observatorio@itaucultural.org.br

Gentes e livros | imagem: Mauricio Negro

Expediente Conselho editorial Guilherme Miranda Silva Jader RafaelMarcioMarcelLucianaRosaModéFracassiBlackGamaFigueiredo Editora Luciana Modé Preparação de texto Adriana Ferreira Silva e Letícia de Castro – Grená Conteúdo Multiplataforma (terceirizada) Design digital Guilherme Ferreira Yoshiharu Arakaki Diagramação digital Iara Camargo (terceirizada) Produção editorial Luciana Araripe Interpretação em Libras Ponte Acessibilidade Ensaio artístico Mauricio Negro Revisão Equipe de Comunicação do Itaú Cultural EQUIPE ITAÚ CULTURAL Presidente Alfredo Setubal Diretor Eduardo Saron NÚCLEO OBSERVATÓRIO Gerência Jader Rosa Coordenação Luciana Modé Produção Guilherme Miranda Silva NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E LITERATURA Gerência Claudiney Ferreira Coordenação Kety Nassar Produção Julia Sottili Edição Richner Allan Teixeira Santos NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Ana de Fátima Sousa Coordenação editorial Carlos Couto Curadoria de imagens André Seiti Produção editorial Luciana Araripe O Itaú Cultural integra a Fundação Itaú para Educação e Cultura. Saiba mais em fundacaoitau.org.br

Colmeia | imagem: Mauricio Negro

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 6

Revista Observatório 32 –Perspectivas das ancestralidades no fazer cultural A edição 32 da Revista Observatório Itaú Cultural debate como as ancestralida des negras e indígenas incidem na gestão, na economia e nas políticas culturais no Brasil. A partir de diferentes perspectivas e reflexões, busca-se demonstrar de que modo, em um país marcado profundamente por desigualdades de renda e de raça, a pro moção de uma sociedade mais justa passa também pela defesa e valorização das culturas negras e indígenas. Assim, os leitores são convidados a refletir sobre como as ancestralidades, plurais e diversas, impactam os setores culturais e artísticos, a fim de interpretar o pre sente e projetar um futuro mais igualitário. Confira abaixo o conteúdo da revista.

Gestão cultural na perspectiva afro-indígena: ressignificação, reencantamento e cosmovisões, por Stéfane Souto Mapeamento de aldeias e aquilombamentos culturais, por Stéfane Souto

Sumário AncestralidadesApresentação negras e indígenas em diálogo, Ana Maria Gonçalves e Leda Maria Martins entrevistam Ailton Krenak

Desigualdades raciais no setor criativo: evidências quantitativas, por Larissa Couto da Silva e Marcelo Henrique Romano Tragtenberg O funk e o rap em números: participação na indústria cultural, por Leonardo Morel e Vitor Gonzaga dos Santos A importância da implementação de políticas públicas direcionadas à cultura funk, por Renata Prado de Almeida Não queira! Ah, ah, Candaces! Notas da Casa de Candaces sobre a ballroom, por Casa de Candaces O papel da juventude na comunicação e na luta indígena por direitos ambientais e culturais, por Alice Pataxó Representação e representatividade: a obra de arte de autoria negra em circulação, por Deri Andrade Reflexões artístico-filosóficas sobre a indústria cultural, por Aza Njeri Em prol da igualdade racial: as políticas públicas e a importância do incentivo à arte e à cultura negra brasileira (linha do tempo), por Guilherme Miranda Silva Entrevistas: A importância de políticas inclusivas para a arte e a cultura, entrevista com Erica Malunguinho, Hilton Cobra, Naná Sodré e Nell Araújo Ensaio artístico, por Mauricio Negro

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Boa leitura! Equipe Observatório Itaú Cultural

Apresentação

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O Brasil, um país profundamente marcado pela diversidade de cores, de pessoas, de culturas e de costumes, lida também com uma intensa desigualdade racial, evidente na ausência de direitos e de políticas públicas, na disparidade de renda e na dificulda de de falar sobre os racismos. Analisando o presente e apontando para um futuro mais igualitário, a edição 32 da Revista Observatório Itaú Cultural, “Perspectivas das ancestralidades no fazer cultural”, debate como as heranças negras e indígenas incidem na gestão, na economia e nas políticas culturais. Como escreve Stéfane Souto em um de seus artigos, “o campo cultural é espaço de imaginação e criação radical de realidades outras. É terreiro de reencantamento e sacudimento do mundo”. A partir de diferentes perspectivas e reflexões, busca-se demonstrar de que modo a promoção de uma sociedade mais justa passa também pela defesa e valorização das culturas negras e indígenas. Nos dez textos que compõem a revista, discorre-se sobre a participação das artes negras na indústria cultural e no mercado e sobre a importância de políticas públicas voltadas para a igualdade racial. Há também aná lises sobre cenas expressivas, como do funk e da ballroom, e uma investigação sobre a mobilização da juventude indígena nas redes em prol da luta por direitos ambien tais e culturais. A partir de um mapeamento de instituições culturais, esta edição reflete ainda sobre como as tecnologias afro e indígenas incidem na gestão cultural.

Ao lado dos textos, uma série de entrevistas em vídeo aborda as políticas inclusivas para a arte e para a cultura sob o aspecto da diversidade racial no Brasil. São qua tro conversas com especialistas, gestores e artistas sobre esse tema fundamental quando se trata de combater a discriminação e promover a igualdade racial. Além disso, a terceira temporada do podcast Observe também traz conversas sobre funk, artes visuais e mediação cultural. Esta edição da revista dialoga, ainda, com o projeto Ancestralidades (www.ances tralidades.org.br), parceria do Itaú Cultural (IC) com a Fundação Tide Setubal que tem como objetivo reunir e difundir conhecimentos sobre a história e a cultura negra no Brasil em uma plataforma digital. O espaço é destinado ao debate, à for mação e à reflexão sobre as relações raciais no país, atualmente enfocando as ex periências da população negra, de modo a transbordar suas ações e pesquisas para o conjunto da sociedade. Dito isso, convidamos os leitores a refletir sobre como as ancestralidades, plurais e diversas, impactam os setores culturais e artísticos no país, conhecendo e se co nectando às histórias e memórias que nos antecederam, a fim de interpretar o pre sente e projetar um futuro mais igualitário.

Afeto | imagem: Mauricio Negro

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Ancestralidades negras e indígenas em diálogo, Ana Maria Gonçalves e Leda Maria Martins entrevistam Ailton Krenak

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A Revista Observatório Itaú Cultural lançou sua 32ª edição, intitulada Perspectivas das ancestralidades no fazer cultural, que debate a influência das ancestralidades negras e indígenas na gestão, na economia e nas políticas culturais. Para abrir esta edição, aconteceu o evento de lançamento “Ancestralidades negras e indígenas em diálogo”, transmi tido ao vivo no YouTube do Itaú Cultural. A conversa teve a participação do ambientalista e filósofo Ailton Krenak, con siderado uma das mais importantes lideranças do movimen to nacional indígena. A poeta, ensaísta e dramaturga Leda Maria Martins, referên cia no movimento negro, também foi presença confirmada no encontro, que teve como mediadora a escritora Ana Maria Gonçalves, autora da premiada obra Um defeito de cor. O diálogo foi transmitido ao vivo no dia 22 de junho, às 17 horas.

Ibeji | imagem: Mauricio Negro

Assim, ao dominar uma narrativa e torná-la hegemônica, um determinado grupo social passa a ditar as noções de verdade que colonizam o ser, o saber e o poder, conforme expõem as teorias decoloniais formuladas no Sul global.

Nesse sentido, alienar os sujeitos dos seus saberes e da sua cultura, promovendo esquecimento e fragmentação, é uma das formas mais eficientes de aniquilar um povo sem necessariamente exterminar (todos) os seus corpos, pois “uma vez alie nado, desvia-se a produção de significados sobre sua cultura para os sujeitos que não vivenciam, e, pelo contrário, aproveita-se da cultura agora explorada semióti ca e economicamente” (OLIVEIRA, 2009). No Brasil, não é difícil entender como tal dinâmica opera e se estabelece ao mi rar exemplos como o samba, a capoeira e as práticas rituais sagradas de matriz ameríndia ou africana. Nesses casos, como em tantos outros, a produção artísti ca e cultural dos grupos sociais racializados e marginalizados é primeiramente

Gestão cultural na perspectiva afro-indígena: reencantamentoressignificação,ecosmovisões

Para compreender esse movimento e sua relevância, é importante ressaltar que, historicamente, a cultura é a dimensão pela qual as relações de poder, de domina ção e de exploração são estabelecidas, uma vez que é nesse âmbito que os discursos acerca do coletivo são elaborados e pactuados nas constituições das sociedades.

STÉFANE SOUTO RESUMO

A partir da compreensão de que existe um cenário emergente de narrativas negras e indígenas no âmbito da gestão cultural contemporânea no Brasil, o presente tra balho busca entender de que formas esse campo se apresenta, na atualidade, como um meio possível para o fortalecimento da produção cultural indígena e afrodias pórica, contribuindo para a tessitura de um devir coletivo. O campo cultural é espaço de imaginação e criação radical de realidades outras. É terreiro de reencantamento e sacudimento do mundo. Por esse motivo, áreas de atuação como a produção e a gestão cultural vêm ganhando novos significados para além de suas atribuições tradicionalmente técnicas, ligadas à administração de equipamentos e à execução de projetos artísticos e culturais. Colocadas em perspectiva por agentes culturais que vivenciam cotidianamente as condições impostas às populações negras e indígenas no interior do regime de de sigualdade racial que estrutura a sociedade brasileira, tais áreas se tornam espa ços táticos de atuação implicada no campo da cultura e favorecem, com seus códi gos, meios e instrumentos, a expressão cultural, a produção e a difusão de saberes ancestrais e a elaboração de narrativas insurgentes anticoloniais.

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Entendendo o conceito de insurgência como o encontro entre a resiliência – re construção tática a partir dos cacos despedaçados pela violência colonial – e a transgressão – invenção de novos seres para além do cárcere racial, do desvio e das injustiças cognitivas (RUFINO, 2019) –, a emergência da gestão cultural em perspectiva afro-indígena se revela como um movimento insurgente à medida que avança na política da representatividade para criar novos estatutos de existência e regimes de representação. Por meio da criação de coletivos, casas, plataformas e laboratórios, ou seja, de modelos organizativos diversos capa zes de dar suporte à experimentação e à expressão criativa de forma expandida e multidisciplinar, agentes culturais negros(as) e indígenas assumem posições de gestão à frente de iniciativas de im pacto potencialmente estruturante, se comparadas a ações e projetos que não raro têm um curto prazo de vida.

Ao se distanciarem da rigidez dos espaços institucionais de cultura, esses agen tes fundam formas inovadoras de atuação, mais alinhadas aos seus propósitos e princípios, e se apropriam dos instrumentos de produção necessários para criar as condições básicas de desenvolvimento de suas propostas, desde a idealização até a efetiva realização, incorporando assim um pensamento processual que pode au mentar as chances de continuidade e perenização dos projetos. Nesse movimento, a introdução de uma lógica de gestão nos processos criativos se apresenta como um caminho para a mobilização de sentidos e de construções alternativas. Embora o termo gestão cultural, em comparação com produção cultural, seja pou co utilizado fora da esfera da institucionalidade pública da cultura no Brasil,3 o pungente cenário que se manifesta na atualidade tem como protagonistas os mo vimentos culturais sociopolíticos que se dedicam a reconfigurar as relações entre as diferenças a partir de paradigmas outros, e aponta para uma necessária ressig nificação desse termo. O campo cultural é espaço de imaginação e criação radical de realidades outras. É terreiro de reencantamento e sacudimento do mundo

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 13 criminalizada, quando praticada dentro das suas comunidades de origem, para, em seguida, ser convertida em “símbolo nacional” e diluída sob o signo genéri co de “cultura popular”. Ou seja, esses são exemplos de apropriação abusiva por parte do sistema cultural hegemônico regulado pela branquitude, aqui enten dida como “a normatividade monocultural e monolíngue que classifica expres sividades e linguajares criativos e originários do existir liminar do negro como práticas ‘fora do lugar’” (TAVARES, 2020).

Nesse fluxo, muitos e muitas artistas negros e negras e, mais recentemente, ar tistas indígenas tornaram-se expoentes da representatividade de suas raízes culturais ao disputar e ocupar espaços hegemonicamente brancos nos circuitos artísticos. No caminho aberto a facão por essas pessoas, é inevitável observar a emergência de uma gestão cultural contemporânea em perspectiva afro-indíge na,1 ou seja, uma prática de gestão atuante no campo da cultura orientada e refe renciada pela confluência dos saberes indígenas e afrodiaspóricos.2

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Historicamente investido de uma aura superiorizada, muitas vezes, o título de gestor cultural não é utilizado por aqueles que corporificam suas ideias e impri mem suas vivências e identidades no trabalho que realizam. No entanto, quando despido de camadas e camadas do ranço colonial que desconecta o pensamento do corpo e suprime pluralidades, é possível entrever que o ato de gestar nada mais é que o movimento de imaginar, semear, cultivar e, enfim, conceber. Assim, a gestão cultural é um trabalho que se realiza no processo, e seu tempo é o do gerúndio: atravessando, vivenciando, cultivando e gerando. Ocupar-se dela é emprenhar-se de um devir. Ela é o terreiro no qual as culturas negras e indígenas podem invocar sua força criativa e a partir do qual operam o reen cantamento do mundo. Não faltam exemplos nesse sentido. A pesquisadora e artista multidisciplinar potiguar Naymare Azevedo, fundadora da Ayabá Produtora Criativa e Audio visual e idealizadora da Afrotonizar, plataforma de formação, imaginação polí tica e produção de narrativas criativas negras e indígenas, realiza um trabalho que materializa a discussão aqui proposta. Sobre o conceito que orienta a sua ação, ela enuncia: Sugiro afrotonizar como o ato de mapeamento das feridas coloniais e a prática de curas. [...] Afrotonizar é uma energia-gesto de cura, que surge de um processo individual que não seria possível sem o coletivo. Sem a troca com os meus semelhantes, sem os espelhos que fizeram com que me enxergasse negra. Surge na tentativa de reintegração de posse do meu corpo e de todos os outros corpos não brancos. Surge do esforço de juntar os cacos espalhados sobre mim, sobre os meus semelhantes (AZEVEDO, 2021).

Portanto, Azevedo concebe “afrotonizar” como conceito-ação e, a partir disso e por meio da arte e da cultura, instaura processos de cura que levem os povos ra cializados a elaborar estratégias de livramento das violências coloniais e a cons truir outras possibilidades de futuro (AZEVEDO, 2021, p. 166). Dessa forma, ela se utiliza do lugar que ocupa nos campos da produção e da gestão cultural para mobilizar sentidos que atravessam o seu corpo e outros corpos afro-indígenas em direção a ações fundadoras de imaginários outros. Em sua ação mais recente, no ano de 2021, a plataforma Afrotonizar conectou pes soas negras e indígenas de diversas regiões do Brasil em um laboratório virtual e articulou encontros que se dividiram em dois momentos. O primeiro deles reuniu também artistas, pesquisadores(as), pensadores(as) e produtores(as), que condu ziram um exercício de imaginação política em aulas remotas; e o segundo promo veu oficinas de experimentação e produção de narrativas por meio de linguagens como fotografia, audiovisual, mapping, realidade virtual, performance e multidis ciplinaridades, resultando em um catálogo disponibilizado on-line.

Outro exemplo é o projeto Museu Vivo de Cucurunã, comunidade localizada entre Santarém e Alter do Chão, no oeste do Pará. A iniciativa é um desdobramento do Museu da Silva, projeto criado pela artista e curadora Moara Brasil em 2019, nas cido da investigação sobre suas origens indígenas. Em suas palavras:

Na gestão cultural em perspectiva afro-indígena, a ancestralidade ocupa lugar central. Sendo constantemente invocada como princípio filosófico de presença, manifesto na continuidade dos saberes que atravessaram oceanos, florestas e sé culos de subjugação, “a ancestralidade como sabedoria pluriversal ressemantiza da por essas populações em diáspora emerge como um dos principais elementos que substanciam a invenção e a defesa da vida” (RUFINO, 2019).

Como eixo constitutivo da experiência afro-indígena na contemporaneidade, a ancestralidade revela a dimensão presentificada das cosmovisões que orientam as proposições negras e indígenas em sua atuação no campo da cultura. Ubuntu e Teko Porã, por exemplo, são visões de mundo que se interseccionam na percep ção da vida humana como parte de um todo. De origem bantu, ubuntu pode ser

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Parte de meu trabalho, já há dois anos, tem sido desenvolver uma pesquisa que tem sido fundamental tanto para minha construção enquanto artista como pessoa: investigo minha origem indígena. Inicialmente comecei por levantamentos em artigos, dissertações e teses acadêmicas. Ao me aprofundar no tema, me deparei com discussões pertinentes ao modo como se construiu a história do Brasil e como ela é contada. Nesse processo me deparei com textos sobre a Retomada Indígena, o Retorno à terra e o processo de autoafirmação indígena na região do Baixo Rio Tapajós, na terra Indígena Maró, RESEX Tapajós, Arapiuns, Borari de Alter-do-chão. Esses estudos me impulsionaram, inicialmente, a entrevistar meu pai de modo a entender sobre a sua cultura e identidade indígena e assim entender melhor minha história. Esta pesquisa me motivou, no primeiro semestre de 2019, a viajar para a região onde meu pai nasceu, Cucurunã, e foi lá que comecei uma pesquisa mais profunda e reveladora sobre minhas origens e minha família, a família Silva. (Moara Tupinambá) 4 Nesse percurso, a artista se depara com uma realidade comum às pessoas que bus cam suas raízes indígenas: o apagamento histórico e a escassez de registros e de documentação da experiência de comunidades tradicionais e originárias. Com entrevistas dirigidas e documentadas por fotos, vídeos e áudios gravados com os membros da comunidade, Moara Brasil deu início, na primeira fase da pesquisa, à documentação da memória de suas origens indígenas, reconstituindo a histó ria provável dos seus avós por meio dos elos estabelecidos com amigos, parentes e com o próprio território, o que deu origem ao Museu da Silva. Em seguida, ela avançou para a fase dois, que teve como objetivo salvaguardar a memória da comu nidade com a criação do Museu Vivo de Cucurunã.

Como tantas outras, ambas as iniciativas têm pontos em comum que fornecem al gumas pistas sobre questões importantes quando falamos da gestão cultural em preendida na perspectiva afro-indígena. Em cada uma delas, está presente a impli cação das pessoas que as realizam. A impressão das suas experiências e vivências é evidente no cerne das suas propostas, afirmando, ainda que implicitamente, o movimento de um corpo político, ou seja, de um corpo que é também território de ação insurgente e de representação de uma experiência coletiva, engajado na criação de espaços físicos ou simbólicos nos quais seja possível costurar o resgate da memória ancestral para a invenção de futuros possíveis.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 16 traduzido como “o que é comum a todas as pessoas” (NOGUERA, 2011) e orien ta uma forma de existir segundo a qual a vida humana deve ser configurada co letivamente, pois pertencer a uma co munidade é o que confere sentido à vida (LOPES; SIMAS, 2021). Já Teko Porã, o bem viver dos Guarani Mbya, é “um conceito filosófico, político, social e espiritual que expressa exatamente essa grande Teia, onde vivemos em equilíbrio, respeito e harmonia. É a representação da boa maneira de Ser e de Viver” (TAKUÁ, 2018). Atualmente, orientadas por cosmovisões que valorizam a integração da existên cia humana à experiência comunitária e biointerativa,5 ao mesmo tempo que re sistem à lógica hegemônica predatória que sobrepõe o capital financeiro à vida, iniciativas negras que se denominam quilombos urbanos ou quilombos culturais se multiplicam de forma plural. São projetos que buscam promover no campo da cultura o aquilombamento,6 ou seja, a experiência de organização sociocultural negra africana inaugurada na história da diáspora, durante o período escravo crata, que se reconfigurou continuamente até alcançar os dias atuais como uma tecnologia ancestral. Da mesma forma, vivenciamos o que Naine Terena chama de quarto momento da história indígena, quando “indígenas agenciam suas próprias ações via tecnolo gias (todas elas) com mais impacto, tendo destaque as mídias indígenas, a literatu ra, as artes, as ‘cosmoações’” (TERENA, 2021). Os grupos e indivíduos indígenas vêm produzindo contrainformação massivamente na disputa com as narrativas hegemônicas (TERENA, 2021), e os campos da cultura e das artes exercem papel central nesse movimento. Com uma atuação cada vez mais plural e contundente, a gestão cultural na pers pectiva negra e indígena existe e resiste na contramão do epistemicídio e do etno cídio, reeditando postos de colaboração interculturais no percurso de uma missão em comum: a promoção do reencantamento da vida a partir de uma política cultu ral insurgente e anticolonial.

Como eixo constitutivo da experiência afro-indígena na contemporaneidade, a ancestralidade revela a dimensão presentificada das cosmovisões que orientam as proposições negras e indígenas em sua atuação no campo da cultura

6. Com base na compreensão de Beatriz Nascimento, na qual o quilombo assume um sentido ideológico, o aquilombamento se apresenta como uma tecnologia simbólica, ancestral e cultural própria da organização das comunidades negras e derivada

3. Esse fato pode ser explicado por alguns fatores: a recente tradição dessa área de atuação no campo dos estudos sobre as políticas culturais; a forma como essa prática profissional se estabeleceu e se sistematizou como setor produtivo da cultura; e também o caráter elitista, supostamente neutro e distanciado do fazer cultural atribuído a essa função.

NOTAS 1. O termo afro-indígena não se refere a uma possível categoria identitária étnico-racial – tema que compreende uma ampla discussão, não abarcada neste artigo –, mas às aproximações e interseções presentes e possíveis a partir do encontro entre as perspectivas negras e indígenas no contexto cultural brasileiro. 2. A noção de confluência aqui adotada pode ser entendida, conforme define o pensador quilombola Antônio Bispo dos Santos, como a lei que rege a relação de convivência harmônica e colaborativa entre os diferentes elementos da natureza.

4. Fala compartilhada por Moara Tupinambá em resposta à pesquisa Mapa aldeias e aquilombamentos culturais, realizada em 31 de março de 2022, para esta edição da Revista Observatório Itaú Cultural

STÉFANE SOUTO, mulher transatlântica em movimento, atua como pesquisadora, gestora cultural e produtora criativa. É graduada em produção cultural e mestra em cultura e sociedade pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), além de especialista em gestão cultural contemporânea pela parceria entre o Itaú Cultural (IC) e o Instituto Singularidades. Como estratégia de convergência entre pesquisa acadêmica, atuação profissional e engajamento pessoal e político, busca operar a partir de uma afroperspectiva, assumindo o aquilombamento como tecnologia ancestral capaz de referenciar uma prática de gestão insurgente, implicada e pluriversal nos campos artístico e cultural. É cofundadora da Denda Coletiva, grupo de produção cultural protagonizado por mulheres negras que parte da convergência criativa para atuar no desenvolvimento e na gestão de projetos autorais. Idealizou É tudo quilombo?, podcast que procura expandir o diálogo sobre a cultura como território possível de (re)criação do aquilombamento.

5. Antônio Bispo dos Santos chama de biointeração a relação de integração entre todos os elementos do universo que sustenta o fluxo contínuo de energia orgânica. Segundo ele, é possível superar “os processos expropriatórios do desenvolvimentismo colonizador e o caráter falacioso dos processos de sintetização e reciclagem do desenvolvimentismo (in) sustentável, pelo processo de reedição dos recursos naturais pela lógica da biointeração” (SANTOS, 2015).

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 17 COMO CITAR SOUTO, Stéfane. Gestão cultural na perspectiva afro-indígena. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 32, 2022. DOI: org/10.53343/100521.21/1https://www.doi.

SOUTO, Stéfane Silva de Souza. Aqui lombamento: um referencial negro para uma gestão cultural insurgen te. 2021. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Instituto de Humanidades, Artes e Ciências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021. TAKUÁ, Cristine. Teko Porã, o sistema milenar educativo de equilíbrio. Rebento, São Paulo, n. 9, p. 5-8, dez. TAVARES2018.,Julio Cesar (org.). Gramáti cas das corporeidades afrodiaspó ricas: perspectivas etnográficas. 1. ed. Curitiba: Appris, 2020. TERENA, Naine. Quarto momento, alianças afetivas, primavera indíge na, entre outros enunciados para doutor não reclamar. São Paulo: Itaú Cultural, 2021. Disponível Acessoto-primavera-indigena-enunciadossecoes/colunistas/quarto-momenhttps://www.itaucultural.org.br/em:em:16mar.2022.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 18 da instituição quilombo. Operando como um continuum cultural, o aquilombamento se atualiza durante o seu percurso na história e produz diferentes formas de organização social, “criando possibilidades de existência alternativas às condições de opressão impostas no momento histórico e que compreende a fuga, a organização interna e o enfrentamento através da luta como forma de resistência, sobrevivência e produção de vida” (SOUTO, 2021).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AZEVEDO, Naymare Santos de. Afro tonizar: estratégia de livramento, criatividade e processos de cura. Políticas culturais em revista, Salvador, v. 14, n. 2, p. 160-183, jul./ dez. 2021. LOPES, Nei; SIMAS, Luís Antônio. Fi losofias africanas: uma introdução. 4. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2021. NOGUERA, Renato. Ubuntu como modo de existir: elementos gerais para uma ética afroperspectivista. Revista da ABPN, São Paulo, v. 3, n. 6, p. 147-150, nov. 2011/fev. 2012.

OLIVEIRA, Eduardo David. Epistemo logia da ancestralidade. Entrelu gares: revista de sociopoética e abordagens afins, Fortaleza, v. 1, p. 1-10, 2009. RUFINO, Luiz. Pedagogia das encruzilhadas. 1. ed. Rio de Janeiro: Mórula Editorial, 2019. SANTOS, Antônio Bispo dos. Colonização, quilombos, modos e significações. Brasília: Incti/UnB, 2015.

Aldeia Yanomami | imagem: Mauricio Negro

Mapeamento de aldeias e aquilombamentos culturais

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STÉFANE SOUTO APRESENTAÇÃO O Mapa aldeias e aquilombamentos culturais é resultado de um mapeamento que se propôs a identificar instituições e organizações1 culturais negras e indígenas nas regiões Norte, Nordeste, Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil, com o objetivo de compreender como tecnologias ancestrais e saberes de base comunitária têm pro duzido formas diversas de organização, produção e gestão no âmbito da cultura. Em um primeiro momento, foram identificadas as instituições e organizações cul turais em cada região, por meio de uma pesquisa on-line que considerou as inicia tivas que fossem majoritariamente ou integralmente protagonizadas por pessoas negras e/ou indígenas em seus quadros de gestão, e que desenvolvessem ações vol tadas para o fortalecimento e a promoção das culturas negras e indígenas. Feito o primeiro contato e recebida a confirmação do interesse por integrar o mapea mento, foi realizada a coleta de dados dessas iniciativas, a partir da aplicação de formulários digitais estruturados segundo as categorias Identificação, Estrutura interna e Atuação. Por último, esses dados obtidos foram examinados e interpreta dos pelo método da análise temática. O mapeamento reúne informações sobre 27 instituições e organizações culturais negras e indígenas em diversas localidades do território brasileiro. Esta é apenas uma amostra da pluralidade de perspectivas, de formas organi zativas e de atuação que emergem da sociedade e constituem o campo da cul tura no Brasil. No entanto, é o suficiente para evidenciar que a gestão cultural contemporânea é um importante território de ações insurgentes, de construção sociopolítica e de reelaboração de narrativas e possibilidades de (re)existência, na medida em que a atuação nesse campo é instrumentalizada por agentes cultu rais negres e indígenas para a elaboração de práticas desviantes. Essas condutas se desviam inclusive de uma institucionalidade hegemônica, que absorve sím bolos culturais de matrizes africana e ameríndia invisibilizando seus sujeitos, suas comunidades e seus saberes de origem. Frente ao etnocídio, ao epistemicí dio e à necropolítica, agentes culturais negres e indígenas fazem da cultura um terreiro de reinvenção das condições de existência de suas comunidades. Assim, a cultura e as artes reafirmam o seu compromisso com a sua dimensão social e política, sobretudo em um contexto de desmonte.

É importante ressaltar que este trabalho surge de um convite feito pelo Observa tório Itaú Cultural – que fez parte da minha formação como pesquisadora, produ tora e gestora cultural – e é um desdobramento de uma pesquisa iniciada no curso Gestão cultural contemporânea: da formação de equipes colaborativas à ampliação do repertório poético, uma parceria entre o Itaú Cultural e o Instituto Singularida des. Aluna da primeira turma do curso (2018-2019), dei início também ao mestra

ANÁLISE TEMÁTICA Embora seja uma pequena amostragem em relação à dimensão territo rial e à infinita capacidade inventiva, criativa e organizativa dos povos aqui trabalhados, a comparação entre os dados das 27 iniciativas desta cadas é capaz de apontar algumas tendências quando se trata de pensar a gestão cultural contemporânea na perspectiva negra e indígena.

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No que se refere à infraestrutura e à estruturação interna dessas inicia tivas, por exemplo, o mapeamento revela que um fator importante é pos Acesse o anexo | QRculturaisaquilombamentosdeMapeamentoaldeiasepeloCodeoupelolink: ANEXO2.pdfOBS32_diagramacao_file/100940/uploads/attachment/icnetworks.org/https://portal-assets.

do multidisciplinar em cultura e sociedade da Universidade Federal da Bahia (Ufba) e, em dezembro de 2021, defendi a dissertação Aquilom bamento: um referencial negro para uma gestão cultural insurgente, que gerou o podcast É tudo quilombo?, produzido com recursos da Lei Aldir Blanc. Agora, este trabalho se materializa no Mapa aldeias e quilombos culturais, que amplia a percepção para a gestão cultural na perspectiva indígena, pois, como afirma Denilson Baniwa, “o Brasil é terra indíge na”, e nela estamos (re)construindo a aldeia-quilombo.

Composta de pessoas

Entre as iniciativas consultadas, 63% contam com ambiente físico, embora a maior parte ocupe um endereço alugado, com alto custo mensal, ou cedido por entidades ou pessoas físicas. A minoria, portanto, possui espaço físico próprio. Entre os 37% que não possuem ou não têm acesso a qualquer espaço de encontro, essa é uma de manda importante a ser superada, que esbarra na necessidade de recursos financei ros que a viabilizem. Ao tratarmos da formalização jurídica, a maior parte (29,6%) das 27 iniciativas consultadas é representada juridicamente por um microempreendedor individu al (MEI), seguidas por aquelas não formalizadas, sem CNPJ e representadas por pessoas físicas (25,9%). Em menor proporção, aparecem como possibilidades de formalização a microempresa (ME) (22,2%) e as ONGs (14,8%). Considerando-se o predomínio da coletividade no formato institucional autodeclarado pelas orga nizações (44,4%) e um total de 55,5% de iniciativas representadas por MEI ou por pessoa física, é possível concluir que há uma subformalização entre as iniciativas culturais negras e indígenas, o que impacta tanto os direitos trabalhistas das pes soas envolvidas quanto o acesso a recursos financeiros e a possibilidades de finan ciamentos de fontes variadas. Sobre o formato de gestão assumido pelas iniciativas consultadas, a horizontali dade e a autogestão são as protagonistas. No formulário aplicado, era possível es colher mais de uma opção ou indicar modelos não previstos ali. Já quanto ao seu ano de fundação e tempo de existência, a maioria surgiu entre os anos 2010 e 2019, somando 21 das 27 iniciativas mapeadas. Cinco iniciativas foram criadas durante a pandemia de covid-19, entre 2020 e 2022; três delas entre 2000 e 2009; e apenas uma na década de 1990. Gráfico 1: A sua iniciativa possui endereço físico? NãoSim 27 respostas negras e/ou indígenas na mesma proporção que pessoas brancas 51,9% 63% 37%

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suir um espaço físico próprio ou ter acesso a algum para a realização das atividades.

Gráfico 3: Considerando a equipe total que integra a organização, podemos dizer que é: Startup - Modelo de gestão Horizontalágil 15 (55,6%) 1 (3,7%) Associação 1 (3,7%) Coorporativa 1 (3,7%) Cooperativa 6 (22,2%) Autogerida 15 (55,6%) Vertical 3 (11,1%) Integralmente negra e/ou indígena 27 respostas 27 respostas 27 respostas Majoritariamente negra e/ou Compostaindígenade pessoas negras e/ou indígenas na mesma proporção que pessoas brancas 40,7% 51,9% 7,4% Gráfico 2: No que se refere ao modelo de gestão, marque as opções que melhor descrevem sua iniciativa: Startup - Modelo de gestão Horizontalágil 15 (55,6%) 1 (3,7%) Associação 1 (3,7%) Coorporativa 1 (3,7%) Cooperativa 6 (22,2%) Autogerida 15 (55,6%) Vertical 3 (11,1%)

NãoSimIntegralmente negra e/ou indígena 27 respostas 27 respostas 27 respostas Majoritariamente negra e/ou Compostaindígenade pessoas negras e/ou indígenas na mesma proporção que pessoas brancas 40,7% 51,9% 7,4% 63% 37%

Das 27 pessoas que responderam ao formulário representando suas organizações, 63% são mulheres cisgênero. Em relação a cor e raça, predominam pessoas pretas (44,4%, 12 pessoas), seguidas por pardas (25,9%, sete pessoas), indígenas (18,5%, cinco pessoas), brancas (7,4%, duas pessoas) e uma amarela (3,7%). Catorze delas, a maioria, tem entre 30 e 39 anos de idade. Sobre o número total de membros em cada iniciativa, o mapeamento revela um predomínio das pequenas equipes, pois 37% possuem de um a cinco integrantes; seguidos de 33,3% com seis a dez; e de 14,8% com 11 a 20 integrantes. Dessas equipes, 51% são compostas somente de pessoas negras e/ou indígenas, enquanto em 40,7% essas pessoas são a maioria.

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Por fim, no que diz respeito ao grupo de integrantes que atuam diretamente na ges tão das instituições, é composto somente de pessoas negras e/ou indígenas em 59,3% delas, enquanto em 29,6% essas pessoas são predominantes. Há, no entanto, um dado não estimado na pesquisa: a presença de pessoas asiáticas trabalhando em colaboração com negras e indígenas, como é o caso na Diáspora Galeria.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 24 A transversalidade da arte e da cultu ra com outros temas revela, quanto a todas as iniciativas mapeadas, a rea lização de um trabalho engajado em questões sociopolíticas. Identidades e relações étnico-raciais; questões de gênero; cidadania e desenvolvimento comunitário; preservação ambiental; e sexualidades foram os temas mais presentes entre as propostas de atuação iden tificadas. Esse dado pode ser interpretado à luz do conceito de interseccionali dade, definido pela pesquisadora Carla Akotirene como “um sistema de opressão interligado” (AKOTIRENE, 2019). Oriundo da epistemologia feminista negra e cunhado pela intelectual afro-estadunidense Kimberlé Crenshaw, esse conceito “visa dar instrumentação teórico-metodológica à inseparabilidade estrutural do racismo, capitalismo e cisheteropatriarcado – produtores de avenidas identitá rias em que mulheres negras são repetidas vezes atingidas pelo cruzamento e sobreposição de gênero, raça e classe, modernos aparatos coloniais” (AKOTI RENE, 2019). Ampliada para as vivências ameríndias, a interseccionalidade permite compreender como tais temas se encontram no exercício da gestão cul tural na perspectiva negra e indígena para tentar promover melhores condições de vida por meio da cultura de forma integral, considerando a sobreposição de opressões nesses corpos.

As cosmovisões ou cosmopercepções de matrizes africanas e indígenas tam bém se fazem presentes no trabalho desenvolvido pelas iniciativas consulta das. São filosofias das ancestralidades que orientam e conduzem eticamente os seus projetos, bem como as práticas organizativas assumidas. A pedago gia griô, por exemplo, compreendida como o diálogo entre gerações e o enal tecimento atualizado e contextualizado de saberes e valores ancestrais, está na base da criação do Ponto de Cultura Quilombo do Sopapo. A sabedoria dos terreiros de candomblé também se manifesta em muitas das ações descritas, como perspectiva epistemológica e como orientação presentificada pelos ori xás por meio de consultas rituais acerca do andamento dos trabalhos. A cos movisão indígena do bem viver, seguida por muitos povos de Abya Yala, está presente em iniciativas como a Denda Coletiva, que a pratica “como nortea dora de nossa atuação e organização, para um desenvolvimento cultural inte grado, coletivo, horizontal e saudável, que leve em conta nossa corporeidade como um todo, nossa ancestralidade, as rodas, os cantos, que seja sensível às nossas dores e traumas, em prol de um bem viver coletivo e para todes”. Outros modos de vida indígenas orientam ações como o preparo da farinha de man dioca, tecnologia ancestral cuja importância é central na história do Museu Vivo de Cucurunã. Por sua vez, filosofias africanas como ubuntu e sankofa se fazem presentes e apontam para a prática do aquilombamento, sobretudo en tre as iniciativas predominantemente negras. Como disse Beatriz Nascimento, o quilombo é um avanço, é uma possibilidade nos dias de destruição (NASCI MENTO, 2018). Para muitas das instituições e organizações mapeadas, o aqui lombamento representa ajuntamento, união, articulação e fortalecimento, um espaço de organização estratégica, de construção coletiva antirracista, de fuga e de práticas desviantes. A gestão cultural contemporânea é um importante território de ações insurgentes, de construção sociopolítica e de reelaboração de narrativas e possibilidades de (re)existência, na medida em que a atuação nesse campo é instrumentalizada por agentes culturais negres e indígenas para a elaboração de práticas desviantes

O racismo estrutural também se manifesta na ausência de políticas públicas pen sadas de acordo com as especificidades desses grupos sociais. Poucos são os pro gramas ou editais públicos voltados à manutenção contínua de iniciativas cultu rais. Na maioria dos casos, apoiam-se projetos – o que não dá conta de demandas estruturais próprias de organizações – ou destinam-se editais para instituições de cultura de tradição hegemônica, que representam os interesses de uma elite inte lectual e artística.

CONCLUSÕES

Soma-se a isso o racismo estrutural e institucional, que opera de diferentes ma neiras para dificultar ainda mais o acesso de agentes culturais negres e indígenas a recursos. Exemplo disso é o enquadramento que mecanismos de financiamento de diversas naturezas impõem às linguagens, às narrativas e aos conteúdos propos tos por corpos racializados. Quanto mais emancipatórias, experimentais e propo sitivas forem as iniciativas, menores as suas chances nesses processos.

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Em um contexto no qual as iniciativas culturais emergem da sociedade, sobre tudo das comunidades negras e indígenas, a partir de coletivos não formaliza dos que assumem formatos de gestão inovadores – como plataformas e labo ratórios – e que não possuem espaço físico, utilizando a internet a seu favor, tais políticas de cultura não alcançam a demanda real, o que faz com que seja mantido esse estado precarizado de trabalho. Portanto, fica evidente um pro É possível concluir que há uma subformalização entre as iniciativas culturais negras e indígenas, o que impacta tanto os direitos trabalhistas das pessoas envolvidas quanto o acesso a recursos financeiros e a possibilidades de financiamentos de fontes variadas

As iniciativas que compõem o Mapa aldeias e aquilombamentos culturais represen tam um pequeno recorte das inúmeras possibilidades de atuação sociopolítica no campo da cultura. Com essa amostra, que permite perceber o crescente número de instituições e organizações culturais negras e indígenas auto-organizadas na última década, revela-se a emergência de uma produção que parece apontar os ca minhos pelos quais a gestão cultural contemporânea deve se pautar, uma vez que é insurgente, engajada, implicada, aquilombada e comprometida com a prática do bem viver. As experiências aqui apresentadas indicam que a gestão da cultura vem sendo entendida pelas populações negras e indígenas como um espaço possível para a retomada e a promoção da autonomia, da autogestão e da liberdade criativa, desviando-se do roubo e da apropria ção promovidos pelas indústrias artís ticas, culturais e do entretenimento, que se baseiam numa lógica colonial de exploração e expropriação. Não há nada de romântico, no entanto, em abrir um caminho alternativo em um contexto de escassez. Não é à toa que, entre as iniciativas consultadas, a problemá tica financeira, a ausência de apoios e a busca por sustentabilidade e por recursos financeiros de forma continuada são apontadas como os principais desafios para a manutenção e a realização das atividades. Embora a gestão possibilite autonomia, autogestão e uma maior liberdade criativa, a ausência de capital financeiro per manece sendo um entrave.

COMO CITAR SOUTO, Stéfane. Mapeamento de aldeias e aquilombamentos culturais. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 32, 2022. DOI: www.doi.org/10.53343/100521.32/2https://

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 26 fundo descompasso, ou mesmo um abismo, entre a institucionalidade pública da cultura e a gestão social da cultura que emerge principalmente das comuni dades (CANCLINI et al ., 2021).

Considerando-se o cenário atual de desinstitucionalização da cultura, resultado do desmonte e do sucateamento do setor, não há espaço para que as transforma ções contemporâneas pautem as instituições tradicionais. Nesse sentido, espe ra-se que o Mapa aldeias e aquilombamentos culturais possa ser um instrumento de articulação e de formação de redes e de novos postos de colaboração, pois é necessário construir desde já as bases para uma futura refundação das políticas públicas de cultura em uma perspectiva negra, indígena e comprometida com a transformação e a justiça social. É preciso que aldeia e quilombo utilizem a cultura como território de construção coletiva e pluriversal, no sentido de fazer com que essas políticas emerjam da própria sociedade.

STÉFANE SOUTO, mulher transatlântica em movimento, atua como pesquisadora, gestora cultural e produtora criativa. É graduada em produção cultural e mestra em cultura e sociedade pela Universidade Federal da Bahia (Ufba), além de especialista em gestão cultural contemporânea pela parceria entre o Itaú Cultural (IC) e o Instituto Singularidades. Como estratégia de convergência entre pesquisa acadêmica, atuação profissional e engajamento pessoal e político, busca operar a partir de uma afroperspectiva, assumindo o aquilombamento como tecnologia ancestral capaz de referenciar uma prática de gestão insurgente, implicada e pluriversal nos campos artístico e cultural. É cofundadora da Denda Coletiva, grupo de produção cultural protagonizado por mulheres negras que parte da convergência criativa para atuar no desenvolvimento e na gestão de projetos autorais. Idealizou É tudo quilombo?, podcast que procura expandir o diálogo sobre a cultura como território possível de (re)criação do aquilombamento.

1. Por instituição cultural, a pesquisa compreende a “estrutura relativamente estável voltada para a regulação das relações de produção, circulação, troca e uso ou consumo da cultura” (COELHO, 1997, p. 2.019), que “não são necessariamente organizadas por aqueles mesmos que animam o sistema de produção cultural” (COELHO, 1997, p. 2.019), como artistas e público. São exemplos museus, escolas, bibliotecas, teatros, centros de cultura etc. Por organização cultural, entendem-se outros modos associativos além das instituições formais, assim como o que Teixeira Coelho denomina formações culturais, ou seja, organizações que “decorrem da iniciativa direta de produtores ou usuários da cultura” (COELHO, 1997, p. 2.019), frequentemente articulados em torno de cooperativas, coletivos, associações ou espaços culturais independentes, podendo possuir ou não natureza

CANCLINI, Néstor García (coord.); BRIZUELA, Juan Ignácio; COELHO, Teixeira; COBOS, Carla; MELO, Sharine Machado Cabral; SILVA, Liliana Sousa e (org.). A institucio nalidade da cultura e as mudanças socioculturais. Cadernos de pes quisa. Cátedra Olavo Setubal de Arte, Cultura e Ciência. São Paulo: Editora Amavisse, n. 1, jul. 2021.

NASCIMENTO, Maria Beatriz. Beatriz Nascimento, quilombola e inte lectual: possibilidades nos dias da destruição. São Paulo: Editora Filhos da África, 2018.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 27 NOTA

suanoorganizativasdeascultura,desinstitucionalizaçãodefluxosConsiderando-sejurídica.oscontemporâneosinstitucionalizaçãoedaserãoadotadasambasterminologias,nointuitocompreenderasformasnegraseindígenasâmbitodaculturaempluralidade.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS AKOTIRENE, Carla. Interseccionalida de. São Paulo: Pólen, 2019.

SOUTO, Stéfane Silva de Souza. Aqui lombamento: um referencial negro para uma gestão cultural insurgen te. Orientadora: Gisele Marchiori Nussbaumer. 2021. 177 f. il. Disser tação (Mestrado em Cultura e So ciedade) – Instituto de Humanida des, Artes e Ciências, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2021.

Cabeça feita | imagem: Mauricio Negro

Desigualdades raciais no setor criativo: evidências quantitativas

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INTRODUÇÃO O Brasil é um país com enormes desigualdades econômicas, isso é unânime entre pesquisadores e leigos. Em 2020, a renda do 1% mais rico da população era semelhante à dos 50% mais pobres1. Usando o índice de Gini, que mede a desigualdade de renda, em 2019, o Brasil era o nono país com maior concentra ção de renda do mundo2 – como referência, a Organização das Nações Unidas (ONU) tem 193 países-membros. No mesmo ano, as 15 famílias mais ricas do país tinham3 um patrimônio que valia cerca de 13 vezes a renda de 14 milhões de famílias beneficiárias do Bolsa Família, programa de transferência de renda recentemente extinto. Durante muito tempo, no entanto, o profundo contraste entre brancos e ne gros (pretos e pardos) era desconhecido de grande parcela da população. Desde a década de 1930, o movimento negro (em particular, a Frente Negra Brasileira) vem denunciando esse desequilíbrio. Nas décadas de 1940 e 1950, isso se deu também por meio do Teatro Experimental do Negro, fundado por Abdias Nascimento – que, eleito deputado federal em 1983, chegou a propor um projeto de lei contendo ações afirmativas para negros. 4 A partir dos anos 1970, estudos quantitativos tornaram pública essa desigualdade racial: o so ciólogo argentino Carlos Hasenbalg, por exemplo, demonstrou o papel cen tral da discriminação na reprodução dessa iniquidade em tese de doutorado pela Universidade da Califórnia (UCLA), nos Estados Unidos, publicada em 1979. Paralelamente, em 1978, o Movimento Negro Unificado havia ressigni ficado a categoria “negro” com o agrupamento de pretos e pardos, grupos com indicadores sociais próximos. Mais recentemente, nos anos 2000, Marcelo Paixão mostrou a abrangência des sa situação por meio de estudos e relatórios sobre a desigualdade racial no Brasil. Nessa mesma década, a discussão sobre a adoção de cotas para negros no ingres so no Ensino Superior trouxe de forma mais consistente a temática do racismo e suas consequências na criação da discrepância entre negros e brancos. Parte des se ocultamento pode ser explicado pela prevalência do mito da democracia racial e pelo sentimento de que, como afirmava o sociólogo Florestan Fernandes, “o bra sileiro tem preconceito de ter preconceito”.

LARISSA COUTO DA SILVA MARCELO HENRIQUE ROMANO TRAGTENBERG RESUMO Este artigo ressalta a importância da análise de dados quantitativos com desagre gação racial no setor criativo brasileiro, caracterizado por uma grande desigualda de racial. Os indicadores de renda e de formalidade no trabalho criativo são abor dados com recorte racial e exemplificam esse panorama de desequilíbrio.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 30 O diagnóstico quantitativo dessa desigualdade é importantíssimo para desvelá-la. Por outro lado, a construção de indicadores pertinentes a esse recorte racial é um insumo fundamental para a elaboração e a avaliação de políticas públicas, além de fornecer um retrato da evolução das injustiças raciais no país. Com esse propósi to, o artigo pretende discutir o recorte setorial para a avaliação de como as carac terísticas estruturais do segmento cultural e criativo influenciam, acentuando ou atenuando, o processo de desigualdade racial. Para tanto, utiliza-se a definição do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural para agregar as ocupações perten centes ao segmento criativo: são 57 reunidas em dez segmentos.5 Para fundamentar a discussão sobre a relevância do recorte de cor e raça na construção de indicadores quantitativos, este artigo foi estruturado em quatro seções, incluindo esta breve introdução. A segunda seção busca apresentar uma síntese argumentativa da importância da utilização desses indicadores e quais seriam seu potencial e suas limitações. A terceira mostra alguns indicadores próprios do setor cultural e criativo, explicitando a relevância do recorte de cor e raça para o debate da desigualdade e apresentando o panorama geral do setor sob essa desagregação. Por fim, as considerações finais estão sintetizadas na úl tima seção do artigo.

A RELEVÂNCIA DO RECORTE DE COR E RAÇA NA CONSTRUÇÃO DE INDICADORES QUANTITATIVOS Indicadores quantitativos são amplamente utilizados no campo das políticas públicas como mecanismo de fundamentação teórica para a promoção de políti cas que visem à redução das desigualdades socioeconômicas. Nesse contexto, o recorte social por cor e raça, 6 há algum tempo, se tornou fundamental na cons trução de pesquisas e indicadores no Brasil, sendo recorrente o uso dessa desa gregação nos estudos promovidos pelo IBGE. De acordo com um levantamento realizado pela instituição em 2019, o recorte racial se relaciona com as condi ções históricas do desenvolvimento brasileiro e as importantes diferenciações entre os grupos étnicos e raciais construídas ao longo do tempo. Desde o primei ro Censo demográfico, realizado em 1872, utiliza-se o recorte racial em pesquisas quantitativas (IBGE, 2011). Esse dado tem tanta importância que, durante parte do período da política de branquea mento (nos censos de 1900 e 1920) e no regime militar (censo de 1970), não foi Todaviarecolhido.tampouco são desprezíveis os avanços recentes conquistados no âm bito das políticas públicas voltadas para a redução da desigualdade socioeconô mica, levando em consideração o fator racial como justificativa para a formulação das políticas e ações. Além do proposto pela própria Constituição de 1988, que reforça o componente antidiscriminatório das relações sociais e institui, inclusive, o racismo como crime inafiançável, ou tras conquistas recentes ocorreram no âmbito legal. Como destaque, o Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 2010) e a Lei de Cotas (Lei nº 12.711, de 2012), sendo esta última uma importante política de mobilidade social. Diretamente re

As estatísticas e os indicadores quantitativos revelam as vulnerabilidades sociais e raciais e guiam a instituição de políticas públicas. Os resultados quantitativos são fundamentais para a percepção da influência do recorte de cor e raça na desigualdade social brasileira e necessários para a visualização das mudanças estruturais ocorridas ao longo do tempo

OS REFLEXOS DA DESIGUALDADE SOCIOECONÔMICA: COR E RAÇA COMO PARÂMETROS DAS CONDIÇÕES DE TRABALHO NO SETOR CRIATIVO BRASILEIRO A apresentação das estatísticas quantitativas reforça a importância da desa gregação racial como um parâmetro nas pesquisas que investigam a realidade socioeconômica brasileira. Buscando ilustrar o mercado de trabalho do setor criativo7 sob essa óptica, esta seção analisa alguns importantes indicadores de sagregados pela classificação de cor e raça utilizada pelo IBGE. Conforme in dicado pelo instituto (2019), a baixa representação de indígenas e amarelos na população brasileira dificulta a análise dos dados amostrais para esses grupos8 e, por esse motivo, as informações serão apresentadas apenas para brancos, par dos e pretos, que constituem ampla maioria da população, além de 98% dos tra balhadores criativos em 2021.9

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 31 lacionados a isso estão as estatísticas e os indicadores quantitativos que revelam as vulnerabilidades sociais e raciais e que guiam a instituição de políticas públi cas. Os resultados quantitativos são fundamentais para a percepção da influência do recorte de cor e raça na desigualdade social brasileira e necessários para a visu alização das mudanças estruturais ocorridas ao longo do tempo.

O Gráfico 1 revela a remuneração mensal média para brancos, pretos e pardos no quarto trimestre de cada ano. Ao longo do período de análise, há uma relativa es tabilidade na remuneração de cada grupo, com quedas pontuais na dos brancos em 2013 e 2021. O ponto de destaque é a diferença nos salários de brancos e não brancos: ao longo da série, mantém-se um elevado patamar de discrepância entre os dois grupos, enquanto pardos e pretos conservam remunerações médias muito semelhantes. Essa é uma justificativa para unificar as categorias de pretos e par dos e de negros. Outra forma de apresentar o nível da discrepância nos rendimentos de brancos, pretos e pardos é a partir da razão entre as remunerações médias, conforme a 2012.4 2013.4 2014.4 2015.4 2016.4 2017.4 2018.4 2019.4 2020.4 2021.4 R$ 4.0003.0002.0001.0004.271 4.651 4.511 4.912 4.837 4.857 4.858 4.763 4.2792.4804.841 2.426 2.239 2.335 2.425 2.489 2.361 2.103 2.417 2.492 2.284 2.221 2.184 2.259 2.359 2.390 2.407 2.404 2.450 2.643 6.0005.000 Branca Preta Parda Fonte: IBGE - PNAD Contínua (vários anos). Reajuste de preços pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor (IPCA) de dezembro de 2021. Gráfico 1: Remuneração mensal média por “cor e raça” dos trabalhadores criativos (em R$)

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 32

Fonte: IBGE - PNAD Contínua (vários anos) À guisa de comparação, os negros apresentavam 57,5% da renda dos brancos no Brasil segundo a Pnad de 2018. A série histórica da Tabela 1 mostra que, de forma geral, a desigualdade de renda é maior no setor criativo do que na sociedade como um todo. O dado discrepante de 2021 merece um estudo mais cuidadoso. Outros indicadores do mercado de trabalho também revelam uma maior vulne rabilidade social dos trabalhadores pardos e pretos. Em relação à formalidade,10 em 2021, 64% dos trabalhadores brancos do setor criativo eram formais, índice que cai para 51% entre os pretos e apenas 46% entre os pardos. Ao longo da série histórica, essa condição teve flutuações, com a diferença relativa de formalidade variando entre 13 e 26 pontos porcentuais entre brancos e pretos, e entre 10 e 20 pontos porcentuais entre brancos e pardos. Essa condição demonstra que, além de uma média salarial inferior, as condições de seguridade social no mercado de trabalho também atendem em menor grau os trabalhadores pretos e pardos. A Tabela 2 sumariza a relação de formalidade dos trabalhadores criativos entre 2015 e 2021. Destaca-se a tendência de aumento da formalidade entre trabalhadores pretos e pardos, movimento negativamente afetado pelo primeiro ano da pandemia. Outra tendência verificada é o aumento da informalidade no setor criativo de pretos em relação a pardos, com exceção do ano de 2021. Tabela 2: Relação de trabalhadores formais no setor criativo por “cor e raça” 2015.4 2016.4 2017.4 2018.4 2019.4 2020.4 2021.4 Branca 60,10% 59,30% 57,10% 56,40% 60,30% 64,10% 64,00% Preta 33,80% 37,40% 38,90% 39,10% 45,90% 37,80% 50,70% Parda 41,40% 43,90% 42,80% 44,40% 50,00% 43,70% 45,60% Fonte: IBGE - PNAD Contínua (vários anos)

Tabela 1. Os dados mostram a porcentagem do salário de pardos e pretos em re lação ao pagamento médio feito aos trabalhadores brancos. O ano de 2016 mar ca a menor razão da série, enquanto 2021 apresenta a maior, o que indica que este último período expõe maior convergência entre a remuneração de brancos e não brancos. Esse resultado, no entanto, foi motivado pela queda na remune ração média de brancos, e conserva ainda uma grande discrepância no padrão remuneratório por cor. Sobre as consequências da crise sanitária e financeira gerada pela pandemia de covid-19, observamos um impacto relativo maior nos proventos de pretos e pardos logo no início, conforme indica a queda substancial da razão entre 2019 e 2020. Tabela 1: Razão da remuneração de trabalhadores brancos, pretos e pardos no setor criativo 2012.4 2013.4 2014.4 2015.4 2016.4 2017.4 2018.4 2019.4 2020.4 2021.4 Pretos 47,20% 52,00% 51,80% 53,30% 44,50% 46,70% 50,40% 54,40% 49,50% 55,80% Pardos 51,20% 56,80% 50,80% 46,60% 45,60% 48,30% 49,80% 51,30% 50,90% 58,20%

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 33 Podemos, à guisa de comparação, verificar a taxa de formalidade no conjunto da sociedade na Pnad contínua de 2018. Naquele ano, 65% dos brancos estavam em ocupações formais, enquanto entre os negros (pretos e pardos) essa relação era de 53%. De modo geral, a informalidade é maior no setor criativo. Tabela 3: Relação de trabalhadores formais no Brasil 2012 2013 2014 2015 2016 2017 2018 Branca 65,20% 66,70% 68,20% 68,50% 68,40% 66,30% 65,40% Preta ou parda 52,00% 53,10% 54,10% 54,20% 54,40% 53,20% 52,70% Fonte: IBGE - PNAD Contínua (vários anos)

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este artigo se propôs analisar a importância da inclusão de desagregações raciais na construção de indicadores socioeconômicos. Debateu-se a necessidade de in dicadores quantitativos para a implementação e a avaliação de políticas públicas, sendo importante a construção desses dados, portanto, na presença de vulnerabi lidades sociais, a fim de atenuar as desigualdades. Partindo desse ponto, foi possí vel apresentar informações sobre o mercado de trabalho criativo e sua conjuntura desagregada por cor e raça. A renda média de pretos e pardos no período avaliado foi bem menor que a de brancos. A taxa de informalidade entre os brancos também foi sensivelmente maior que entre os pardos, e esta um pouco maior que entre os pretos. Verificou-se a existência de múltiplos indicadores que apontam a ausência de igualdade nas relações de trabalho entre brancos, pretos e pardos. As diferenças relativas no rendimento e na formalidade são persistentes ao longo da série his tórica, e as pequenas variações positivas agregam resultados modestos para uma mudança no panorama geral de desigualdade persistente.

NOTAS 1. Segundo dados da Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua (Pnad contínua) de 2020, realizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). A multiplicação da renda média dos 50% mais pobres por 50 é igual à renda média do 1% mais rico. Leve-se em conta que a Pnad não captura rendimentos milionários ou grande patrimônio. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.

5. Os segmentos incluem: publicidade e marketing; arquitetura; artesanato; design; filme, TV, vídeo, rádio e fotografia; TI, software e serviços de informática; editorial; museus, galerias e bibliotecas; música, artes cênicas e artes visuais; e gastronomia. Para consultar a listagem completa de ocupações, acesse: 26criativa#trabalhadores-da-economia-paineldedados/pesquisa/itaucultural.org.br/observatorio/https://www..Acessoem:maio2022.

LARISSA COUTO DA SILVA é bacharela em ciências econômicas pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e mestranda em economia do desenvolvimento pelo Programa de Pós-Graduação em Economia da instituição (PPGE/ UFRGS). Atua como assistente de pesquisa no Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura (Neccult) da UFRGS.

Acessoinferior-a-1-dos-mais-ricos/mais-pobres-no-brasil-tem-renda-br/business/ibge-metade-dos-em:4abr.2022.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 34 COMO CITAR SILVA, Larissa Couto; TRAGTENBERG, Marcelo Henrique Romano. Desigualdades raciais no setor criativo. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 32, 2022. DOI: org/10.53343/100521.32/3https://www.doi.

2. Segundo dados do Banco Mundial. Disponível em: desc=trueSI.POV.GINI?most_recent_value_bancomundial.org/indicator/https://datos..Acessoem:4abr.2022.

6. Neste artigo, utiliza-se a nomenclatura proposta pelo IBGE de acordo com a Pnad contínua. Questionamentos e propostas acerca da nomenclatura e das definições utilizadas foram amplamente debatidos em diversos trabalhos, não sendo

3. Ver: Acessogastos-governo-070036578.htmlyahoo.com/noticias/bolsa-familia-brazil-2019/billionaires-richest-people-in-biz/2019/11/25/brazilian-https://ceoworld.;https://esportes..em:11abr.2022.

4. O projeto de lei dispunha sobre a reserva de 40% das vagas abertas nos concursos vestibulares do Instituto Rio Branco para os candidatos de etnia negra. Disponível em: ao=190742fichadetramitacao?idProposiccamara.leg.br/proposicoesWeb/https://www..Acessoem:11abr.2022.

MARCELO TRAGTENBERG Marcelo Tragtenberg é doutor em Física pela Universidade de São Paulo, Professor do Departamento de Física da Universidade Federal de Santa Catarina, membro do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia de Inclusão no Ensino Superior e na Pesquisa do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e do Centro de Estudos e Dados sobre Desigualdades Raciais (CEDRA).

Relatório anual das desi gualdades raciais no Brasil (20092010). Rio de Janeiro: Garamond; Laeser; Instituto de Economia/ UFRJ, 2010. Disponível em: PETRUCCELLI11gualdades-raciais/xao/publications/relatorios-desitps://sites.utexas.edu/marcelo-paiht.Acessoem:abr.2022.,JoséLuis.Raça,identidade,identificação:abordagemhistóricaconceitual.In:PETRUCCELLI,JoséLuis;SABOIA,AnaLucia(org.). Características étni co-raciais da população: classifica ções e identidades. Rio de Janeiro: IBGE, 2013.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 35 o foco do presente artigo. Para saber mais, ver: ARAUJO, 1987; OSORIO, 2013; IBGE, 2011; e PETRUCCELLI, 2013.

O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. São Paulo: Ed. Perspectiva, OBSERVATÓRIO2016.ITAÚ CULTURAL. Painel de Dados. Disponível OSORIOquisaobservatorio/paineldedados/peshttps://www.itaucultural.org.br/em:.Acessoem:17fev.2022.,RafaelGuerreiro.AclassificaçãodecorouraçadoIBGErevisitada.In:PETRUCCELLI,JoséLuis;SABOIA,AnaLucia(org.). Laeser; Ins tituto de Economia/UFRJ, 2008. Disponível em:

8. Os dados apresentam alta variabilidade e possivelmente dificultam a consistência das análises.

HASENBALGAcessopublicacoes/cp/arquivos/785.pdfhttp://www.fcc.org.br/pesquisa/em:em:17fev.2022.,C. Discriminação e desi gualdades raciais no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Graal, 1979. IBGE Características étnico-raciais da população: um estudo das catego rias de classificação de cor ou raça 2008. Rio de Janeiro: IBGE, 2011. IBGE. Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Rio de Janeiro: IBGE, 2019. IBGE Pesquisa nacional por amostra de domicílios contínua (Pnad contínua) 2020. Rio de Janeiro: IBGE, 2020. Disponível em: http://www.ibge.gov. br. Acesso em: 10 fev. 2022. MUNIZ, J. O. Sobre o uso da variá vel raça-cor em estudos quan titativos. Revista de sociologia e política, [s. l.], v. 18, n. 36, p. 277-291, jun. 2010. Disponível em: NASCIMENTO1744782010000200017http://dx.doi.org/10.1590/s0104-s0104-44782010000200017"http://dx.doi.org/10.1590/.Acessoem:fev.2022.,A.

PAIXÃOAcessorelatorios-desigualdades-raciais/edu/marcelo-paixao/publications/https://sites.utexas..em:11abr.2022.,M.;CARVANO,L.M.;ROSSETTO,I.;MONTOVANELE,F.(org.).

10. Foram considerados trabalhadores formais aqueles com carteira assinada, servidores públicos estatutários e pessoas jurídicas com CNPJ. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARAUJO, T. C. N. A classificação de “cor” nas pesquisas do IBGE: notas para uma discussão. Cadernos de pesquisa, Rio de Janeiro, n. 63, p. 14-16, nov. 1987. Disponível

Características étnico-raciais da população: classificações e identi dades. Rio de Janeiro: IBGE, 2013. PAIXÃO, M.; CARVANO, L. M. (org.). Relatório anual das desigualdades raciais no Brasil (2007-2008). Rio de Janeiro: Garamond;

7. O recorte setorial utilizado segue a metodologia do Observatório Itaú Cultural e pode ser consultado em seu Painel de Dados.

9. A saber: 59,9% brancos; 30,4% pardos; e 7,5% pretos.

Gentes | imagem: Mauricio Negro

ENTENDENDO A PISTA

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 37

INTRODUZINDO A BATIDA O rap e o funk são movimentos culturais e dois dos principais estilos musicais capazes de traduzir as diferentes identidades e realidades da periferia brasileira. Ambos vêm se popularizando, ganhando cada vez mais relevância no mercado na cional de música e competindo por espaço nos rankings ao lado de ritmos como o sertanejo2 e a pisadinha. Existe, no entanto, uma carência de estudos sobre o rap e o funk que abordem dados quantitativos e mercadológicos, uma vez que grande parte das pesquisas sobre es ses gêneros se concentra nas suas características socioculturais. Este levantamento tem como objetivo apresentar e analisar dados mercadológicos do rap, do funk e das suas ramificações no Brasil. Como fontes de informação, foram utilizados livros, ar tigos acadêmicos e relatórios de mercado. A análise de dados de plataformas digitais como Spotify Charts Brasil e YouTube Charts Brasil permitiu traçar o atual cenário do consumo desses estilos. Por fim, esta pesquisa teve a relevante contribuição de informações quantitativas e qualitativas exclusivas, gentilmente fornecidas pela ONE Revolution People's Music (ONErpm). Aproveitamos para agradecer a Thie ssa Torres, Arthur Fitzgibbon e toda a equipe da empresa pela atenção que nos foi dada durante elaboração deste trabalho.

O barateamento do acesso às tecnologias de gravação, produção e distribuição musical permitiu que artistas de segmentos musicais como o funk e o rap, histori camente marginalizados, se inserissem na indústria cultural. Ademais, a difusão em plataformas como o YouTube e em aplicativos como o TikTok deu voz a artis tas desses estilos, abrindo caminho para a sua expansão no Brasil.

LEONARDO MOREL VITOR GONZAGA DOS SANTOS RESUMO O funk e o rap se popularizaram no Brasil graças ao barateamento do acesso aos meios de gravação, produção e distribuição de música. A difusão em plata formas como o YouTube e em aplicativos como o TikTok contribui para dar voz a esses gêneros, tradicionalmente marginalizados pela indústria cultural no país. Dados fornecidos pela distribuidora digital de música ONE Revolution People's Music (ONErpm) exclusivamente para a elaboração deste estudo per mitiram aprimorar o entendimento do atual cenário do rap e do funk . Apesar dos avanços em termos de popularidade, ainda é cedo para afirmar que ambos irão se massificar a ponto de atingir os níveis de difusão observados em esti los como o sertanejo e a pisadinha. 1 Ademais, há predominância de artistas do sexo masculino, e que ainda enfrentam barreiras discriminatórias estabeleci das por parte da sociedade brasileira.

O funk e o rap em números: participação na indústria cultural

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 38 A difusão em plataformas como o YouTube e em aplicativos como o TikTok deu voz a esses artistas historicamente marginalizados pela indústria cultural, abrin do caminho para estilos musicais como o funk e o rap no Brasil (Leonardo Morel)

NA BATIDA DO RAP

DE ONDE VEIO ESSA BATIDA? É de grande importância compreender a relevância do rap e do funk para o mer cado brasileiro de música e para a cultura como um todo a partir da contextuali zação das suas origens. Ambos os estilos possuem raízes ligadas ao intercâmbio afrodiaspórico ocorrido durante o período colonial no continente americano, e se desenvolveram nos Estados Unidos. Fundamental para entender o surgimento do movimento hip-hop e do funk é discorrer, primeiramente, sobre a black music, gê nero que nasceu nos campos de colheita de algodão dos Estados Unidos e que se desenvolveu em um contexto de luta por direitos civis e por igualdade racial com a chamada soul music. 4 Em função do seu ritmo dançante, a black music podia ser interpretada como apenas uma forma de lazer, todavia, nas letras das melodias, os artistas denun ciavam a violência policial, a estrutura educacional não igualitária e outras desigualdades socioeconômicas vivenciadas pelas comunidades negras. Essas ideias encontraram ressonância nos pensamentos e na atuação de alguns ar tistas brasileiros, como Tim Maia e Jorge Ben Jor, que se tornaram referência do estilo no país. Logo, a black music se espalhou entre as juventudes negras periféricas de todo o mundo, que viram na cena uma possibilidade de repre sentação e de autoafirmação. Embora apresentando origens semelhantes, o rap e o funk diferenciam-se entre si por apresentarem traços identitários distintos.

Além dessa contribuição, a distribuição pelos serviços de streaming tornou-se a principal responsável pelo aumento das receitas geradas pelo formato digital de música gravada. Esse cenário vem proporcionando uma gradual recuperação finan ceira dos agentes da indústria fonográfica, após um longo período de perdas. Em ter mos de receitas, em 2020, por exemplo, o mercado brasileiro de música gerou uma receita estimada de 1,4 bilhão de reais, o que representou um crescimento de 15% em relação ao ano anterior. 3 Aplicativos como o TikTok tornaram -se poderosas ferramentas de marke ting do mercado musical, por permitir que seus usuários criem conteúdos utilizando trilha sonora. Quando uma músi ca se populariza – ou “viraliza”, de acordo com o termo usado por esses usuários –, os artistas têm a possibilidade de expandir sua base de fãs, atingindo pessoas de outras regiões do país e de diferentes classes sociais. Esse fenômeno vem sen do amplamente observado nos segmentos do rap e do funk.

Abreviação em inglês de rhythm and poetry, ritmo e poesia, o rap é um dos elemen tos da cultura do hip-hop5 e caracteriza-se por mesclar batidas e rimas poéticas. Por A difusão em plataformas como o YouTube e em aplicativos como o TikTok deu voz a esses artistas historicamente marginalizados pela indústria cultural, abrindo caminho para estilos musicais como o funk e o rap no Brasil (Leonardo Morel)

A partir da segunda década do século XXI, a cultura hip-hop se expandiu com a popularização de batalhas, 8 saraus e slams 9 Esses eventos foram porta de entra da para muitos artistas que viriam a se tornar referência no setor, como Djonga, BK, Baco Exu do Blues, Xamã, Matuê, Clara Lima, Cynthia Luz e Flora Matos.

Como destaca Ricardo Teperman (2015), os Racionais MC’s assumiram um posi cionamento crítico diante das violências, das discriminações e das desigualdades socioeconômicas sofridas pela população negra na sociedade brasileira, temas presentes no álbum Sobrevivendo no inferno, de 1997, um dos maiores clássicos do hip-hop nacional. Por suas letras poli tizadas, o grupo se destacou como uma das principais influências para as novas gerações do rap brasileiro. De acordo com Bráulio Loureiro (2016), uma “nova geração” do rap nacional sur giu no final dos anos 2000, composta so bretudo de rappers vinculados às bata lhas de rima – competições que buscam promover o conhecimento, integrar membros e expressões artísticas do hip-hop e estimular a difusão do movimento. Entre os principais nomes dessa geração, desta cam-se Emicida, Criolo, Kamau, MC Marechal e Negra Li. Beneficiando-se do aces so à internet e a outras tecnologias, eles foram capazes de compor, cantar e desen volver seus trabalhos tendo em vista como iriam se inserir nos canais mais centrais e mercadológicos da música brasileira (NARDINI, 2018, p. 36).

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 39 causa da ausência de informações sobre o hip-hop estadunidense, a música rap e a dança breaking6 foram as principais referências do movimento no Brasil. Segundo Micael Herschmann (2000), a relação entre os brasileiros e o hip-hop se baseou no consumo de produções estrangeiras inéditas no país, reproduzidas por DJs.

Xamã é um exemplo de artista que vem despontando no mercado. Atualmente, ele possui 9,5 milhões de ouvintes mensais no Spotify, sendo parte significativa do seu sucesso calcada na música “Malvadão 3”, que lidera os rankings dos serviços de streaming no país. Aos 32 anos, o ex-camelô de Sepetiba, bairro na Zona Oeste do Rio de Janeiro, começou a sua carreira versando sobre as jujubas e os amendoins que vendia nos vagões dos trens da Central do Brasil. O sucesso de “Malvadão 3” foi potencializado por regravações feitas por artistas de outros estilos, como Dodô Pressão (brega), Biu do Piseiro (pisadinha) e Nattan (forró). Esses registros fize ram a música de Xamã se comunicar com outros públicos, expandindo sua base de fãs nacionalmente. A disseminação dessa cultura contribuiu para que os jovens, inicialmente das periferias de São Paulo, se inspirassem no rap produzido nos Estados Unidos. Valores como o enfrentamento do racismo estrutural e a exaltação de África, e referências como Malcolm X, Martin Luther King e Panteras Negras, serviram de inspiração para esses jovens paulistanos

A disseminação dessa cultura contribuiu para que os jovens, inicialmente das perife rias de São Paulo, se inspirassem no rap produzido nos Estados Unidos. Valores como o enfrentamento do racismo estrutural e a exaltação de África, e referências como Malcolm X, Martin Luther King e Panteras Negras, serviram de inspiração para es ses jovens paulistanos, que passaram a desenvolver o rap consciente.7 Segundo Ales sandro Buzo (2010), os atributos da cultura hip-hop foram disseminados na década de 1990 pelo grupo Racionais MC’s e por artistas como MC Thaíde e DJ Hum.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 40 A popularização do artista despertou também o interesse de grandes marcas por parcerias comerciais, e seu nome se difundiu em veículos de comunicação que historicamente dão pouco espaço aos criadores de rap. Além disso, outro fator de terminante para o desenvolvimento de seu trabalho foi o TikTok, aplicativo muito popular entre o público infanto-juvenil que permite que os usuários criem seus próprios conteúdos utilizando músicas gravadas. Essas postagens ajudaram a vi ralizar o trabalho de Xamã, que atualmente soma mais de 1,5 milhão de criações de vídeo no TikTok, ao lado de 511 mil criações de reels10 e 9,4 milhões de stories, ferramentas semelhantes do aplicativo Instagram. Essa aproximação com os usuários por meio das redes sociais surtiu um efeito importante na audiência do artista: com dois meses de lançamento, “Malva dão 3” gerou um crescimento de 800 mil seguidores em sua conta no Insta gram e de 129 mil seguidores em seu perfil no Spotify, uma variação de 11,61%. Ademais, sua métrica de ouvintes mensais 11 praticamente dobrou. Ao todo, a música já foi tocada mais de 140 milhões de vezes nas principais plataformas de streaming 12 NA BATIDA DO FUNK

A sonoridade do funk conhecida atualmente é completamente distinta do gênero de mesmo nome criado nos Estados Unidos na década de 1960, com James Brown como um de seus principais expoentes. A sua popularidade entre os jovens fez com que, aqui do Brasil, nesse período, surgissem e se espalhassem as equipes de som – como Soul Grand Prix, Black Power e Furacão 2000 –, que tocavam em bailes reunindo os fãs do estilo. A partir de 1980, surge o funk brasileiro, inicialmente caracterizado por utilizar em sua base as batidas da versão estadunidense do miami bass 13 À época, artistas nacionais adaptavam para o português as letras desse subgênero, originalmente cantadas em inglês, criando as chamadas melôs.14 Essa tradução das músicas norte-americanas para a língua portuguesa difundiu-se por meio do trabalho do DJ Marlboro, um dos vanguardistas do funk carioca. Segundo Silvio Essinger, foi ele o principal idealizador da “nacionalização do funk” (2005, p. 84).

Se a popularização dos bailes na década de 1990 contribuiu para que o gênero adquirisse notoriedade no mercado brasileiro, o entendimento do funk como expressão identitária das periferias cariocas, no entanto, não proporcionou um reconhecimento cultural ampliado (SÁ, 2007, p. 11). Ao contrário, foi justamente durante esse período que o preconceito e a difamação midiática cresceram. Em 1995, o funk carioca alcançou sua fase dourada. Os MCs 15 Cidinho e Doca romperam as barreiras da periferia com o “Rap da felicidade”, que se tornou um hino do movimento. No mesmo período, segundo Mauricio Guedes, “sur gem os bons moços do funk , Claudinho & Buchecha” (2007, p. 47). Com letras ingênuas e divertidas, a dupla de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, conquistou o país e vendeu 3 milhões de discos. No mesmo período, outro artista que se consolidou foi Latino, o “príncipe” do funk melody 16 que, com músicas anima das, conquistou parte da classe média e fez com que o gênero se popularizasse ainda mais (GUEDES, 2007).

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 41 Em paralelo a esse crescimento, o chamado funk proibidão também se tornou co nhecido nas comunidades, com letras que falavam sobre o tráfico de drogas e que faziam apologias sexuais, exaltação de facções criminosas locais e provocações a grupos rivais. Inicialmente, essas músicas estavam restritas aos bailes e às rádios dessas comunidades. O início do século XXI foi marcado pela expansão do gênero na indústria cultural. Ar tistas passaram a figurar em trilhas sonoras de novelas e isso acabou fomentando a disseminação do funk pelo país e o surgimento de novas ramificações. Em São Paulo, por exemplo, despontou o chamado funk ostentação, que ganhou notoriedade no mer cado musical a partir de 2008, quando MC Backdi e Bio G3, da Zona Leste paulistana, lançaram a faixa “Bonde da Juju”. A letra enaltecendo o tênis do modelo Nike Shox e os óculos Juliet se difundiu pelas perife rias e inspirou novos funkeiros por todo o Brasil, como os MCs Guimê, Pocahontas, Nego do Borel e Nego Blue.

O racismo produz o desperdício do potencial artístico-cultural dos jovens negros, além de impossibilitar o seu desenvolvimento social e a ampliação de retornos financeiros (Vitor Gonzaga dos Santos)

O racismo produz o desperdício do potencial artístico-cultural dos jovens negros, além de impossibilitar o seu desenvolvimento social e a ampliação de retornos fi nanceiros (Vitor Gonzaga dos Santos)

A partir de 2011, esses artistas passaram a utilizar os videoclipes para es palhar não só sua música, mas também conceitos estéticos. Da periferia paulista na, MC Guimê, por exemplo, obteve milhões de visualizações no YouTube com o videoclipe de “Tá patrão”. Essa conquista teve o auxílio de Konrad Dantas, criador da KondZilla, atualmente a maior produtora brasileira de videoclipes de funk e a detentora do maior canal de YouTube do país. Assim como aconteceu com o rap, as mídias sociais digitais contribuem para a popularização do funk como um exem plo da cultura periférica nacional. No entanto, embora o funk e o rap sejam executados em múltiplos espaços e sejam tema de inúmeros estudos acadêmicos, ainda enfrentam barreiras para se consoli dar como gêneros culturais relevantes no país. Acreditamos que esse fato se dê em virtude das origens negras de ambos. O racismo produz o desperdício do potencial artístico-cultural dos jovens negros, além de impossibilitar o seu desenvolvimen to social e a ampliação de retornos financeiros (SANTOS, 2020).

O RAP E O FUNK EM NÚMEROS O rap e o funk competem com estilos de grande relevância, como o sertanejo, por posições em diversos rankings.17 Para compreender essa popularidade, foram co letados dados dos rankings das duas principais plataformas de streaming de mú sica no Brasil – Spotify e YouTube – e das faixas mais executadas nas rádios na cionais. Para a análise, foram comparadas as duas últimas semanas de janeiro de 2021 com o mesmo período de 2022. De acordo com a ferramenta Spotify Charts Brasil, na última semana de janeiro de 2022, artistas de rap, funk e trap18 ocupavam três das dez primeiras posições, com a faixa “Malvadão 3” liderando o ranking:19

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 42 Tabela 1: Artistas mais ouvidos no Spotify Semana de 21/jan/2022 - 28/jan/2022 (em milhões) Música Artista Streams 1 Malvadão 3 Xamã, Gustah, Neo Beats 9.9 2 Mal Feito - Ao Vivo Hugo & Guilherme; Marília Mendonça 7.6 3 212 Chefin; Mainstreet 7.1 4 Vai lá em Casa Hoje George Henrique & Rodrigo; Marília Mendonça 6.6 5 Bloqueado - Ao Vivo Gustavo Lima 6.4 6 Pandora DJ Matt D; Menor MC; MC GP; Vulgo FK 6.1 7 Esqueça_me Se For Capaz Marília Mendonça; Maiara & Maraísa 5.7 8 Toma Toma Vapo Vapo Zé Felipe; Mc Danny 5.3 9 Presepada Marília Mendonça; Maiara & Maraísa 5 10 Parada Louca Mari Fernandez; Marcynho Sensação 5 Fonte: Spotify Charts No mesmo período de 2021, o Top 10 do Spotify Brasil apresentava somente um ar tista do segmento trap, com as demais posições ocupadas por artistas do sertanejo e da pisadinha:20 Tabela 2: Artistas mais ouvidos no Spotify Semana de 22/jan/2021 - 29/jan/2021 (em milhões) Música Artista Streams 1 Ele é Ele, Eu Sou Eu Wesley Safadão, Os Barões da Pisadinha 5.7 2 Meia Noite (Você tem meu Whatsapp) Tarcísio do Acordeon 5.3 3 Mds Kawe, Mc Lele JP 4.9 4 Lance Individual Jorge e Mateus 4.3 5 Alô Ambev (Segue Sua Vida) - Ao Vivo Zé Neto e Cristiano 4.3 6 Recairei - Ao Vivo Os Barões da Pisadinha 4.3 7 Esquema Preferido DJ Ivis, Tarcísio do Acordeon 4.2 8 Modo Turbo Luísa Sonza, Pabllo Vittar, Anitta 4.2 9 Facas - Ao Vivo Diego & Victor Hugo, Bruno & Marrone 4.1 10 Amor ou o Litrão Petter Ferraz, Menor Nico 3.6 Fonte: Spotify Charts No YouTube Charts Brasil, na última semana de janeiro de 2022, três artistas de rap, funk e ramificações constavam no Top 10 da plataforma:21

Naspisadinha.rádiosbrasileiras,

Dados exclusivos compartilhados para a elaboração deste estudo nos permitiram aprimorar o nosso entendimento sobre o atual cenário dos gêneros destacados.

Fonte: YouTube Charts No mesmo período de 2021, também três músicas dos segmentos rap e funk apa reciam entre as mais executadas no YouTube: “MDS”, de Kawe e MC Lele JP; “Camisa do flamengo”, de MC Meno K e DJ 2L da Rocinha; e “Xerecard”, de Jeff Costa e MC Danny. As demais posições eram ocupadas por artistas de sertanejo e

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 43 Tabela 3: Artistas mais ouvidos no YouTube Semana de 28/jan/2022 - 03/fev/2022 (em milhões) Música Artista Streams 1 Malvada Zé Felipe (Forró) 19.3 2 Malvadão 3 Xamã, Gustah e Neo Beats (RAP) 17.7 3 Depende DJ Guuga e Wesley Safadão (Forró) 11 4 Vontade de morder Simone & Simaria e Zé Felipe (Sertanejo) 10.9 5 212 Chefin Oficial e Mainstreet (RAP) 10.8 6 Mal feito (live) Hugo & Guilherme e Marília Mendonça (Sertanejo) 10.2 7 Toma toma vapo vapo Zé Felipe e MC Danny (Forró) 9.7 8 Ameaça Paulo Pires, MC Danny e Marcynho Sensação (Forró) 8.9 9 Bloqueado (ao vivo) Gusttavo Lima (Sertanejo) 8.3

de acordo com o ranking da Crowley, empresa que as moni tora, na última semana de janeiro de 2022 e no mesmo período de 2021, nenhum artista de funk, rap e ramificações figurou entre os dez mais executados. O predo mínio, nesses dois anos, foi de artistas do sertanejo. Isso comprova que o consumo de música gravada no país muda de acordo com o veículo. NO DETALHE DA BATIDA A ONErpm, uma das plataformas que lideram o segmento de distribuição digital de música no Brasil, é referência para o rap, o funk e as suas ramificações, servindo de base para a distribuição digital de artistas de pequeno, médio e grande portes e para o desenvolvimento de suas carreiras.

10 Pandora (feat. MC GP e Vulgo FK), DJ Matt D e Menor MC (RAP) 7.9

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 44 O TOP 100 ARTISTAS DA ONERPM Gráfico 1: Top 100 artistas ONErpm (outubro/2021 - janeiro/2022) Fonte: ONErpm Em termos de execuções musicais, de acordo com a base de dados da ONErpm, entre outubro de 2021 e janeiro de 2022, o rap e o funk foram os estilos dominantes na distribuidora, correspondendo, juntos, a 55% do seu Top 100. O TOP 100 DA ONERPM DIVIDIDO POR GÊNERO Gráfico 2: Top 100 ONErpm RAP Fonte: ONErpm Analisando os cem artistas mais executados na base de dados da ONErpm, obser va-se uma significativa predominância masculina. No rap, a representatividade de mulheres é de 8%. No funk, esse número sobe para 17%. HomensMulheresOutrosFunkRap45% 22%33%8% 6.2 4.9 5 Xamã Mano Brown OrochiHomensMulheresHomensMulheresOutrosFunkRap45% 22% 92%83% 33%17%8%

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 45 Gráfico 3: Top 100 ONErpm FUNK Fonte: ONErpm Para amenizar essa discrepância, Arthur Fitzgibbon, CEO da distribuidora, afir ma que se tem buscado fomentar a presença de mulheres nesses estilos nacionais: "Desejamos ver cada vez mais artistas mulheres lançando seus trabalhos no rap e no funk. A ONErpm trabalha forte para que isso se torne realidade num curto período” (Arthur Fitzgibbon, CEO da ONErpm). O mercado musical é historicamente dominado por homens. Esse cenário não se restringe aos artistas, sendo ob servado também entre os profissionais que atuam nas empresas do segmento da música gravada, de acordo com da dos da ABMI. Por isso, é preciso incentivar o ingresso de mulheres e de pessoas LGBTQIAP+ e não binárias em todos os segmentos do setor musical para torná-lo mais igualitário em termos de gênero. Essa necessidade também se vê em termos de raça ou etnia. Entre os artistas ne gros pertencentes ao catálogo da ONErpm, os mais seguidos na rede social Insta gram são Xamã, Mano Brown e Orochi. Gráfico 4: Artistas da ONErpm mais seguidos no Instagram (em milhões) 0 1.0 2.0 3.0 4.0 5.0 6.0 7.0 Xamã Mano OrochiBrown 6.2 5.04.9 Fonte: ONErpm HomensMulheresHomensMulheresOutrosFunkRap45% 22% 92%83% 33%17%8% 6.2 4.9 5 "Desejamos ver cada vez mais artistas mulheres lançando seus trabalhos no rap e no funk. A ONErpm trabalha forte para que isso se torne realidade num curto período” (Arthur Fitzgibbon, CEO da ONErpm)

CONSIDERAÇÕES FINAIS O rap, o funk e as suas respectivas ramificações vêm se popularizando graças ao barateamento do acesso aos meios digitais de gravação, edição e distribuição, que possibilitou o ingresso de seus criadores no mercado musical. O YouTube tem um papel crucial nesse processo, por dar voz a esses gêneros, historicamente margi nalizados pela indústria cultural. Os serviços de streaming de música e aplicativos como o TikTok contribuem para a difusão do rap e do funk, fazendo com que suas bases de fãs cresçam para além das periferias e ganhem adeptos nas classes sociais economicamente mais favore cidas. A popularização de músicas desses estilos e de suas ramificações represen ta, ainda, uma possibilidade de ascensão social para muitos artistas. Apesar disso, o sertanejo e a pisadinha ainda são predominantes quando o tema é o consumo de música no país. É cedo para afirmar que o rap e o funk irão se massi ficar a ponto de prevalecerem nos rankings, pois, apesar da atual atenção que des pertam, são gêneros que ainda enfrentam barreiras discriminatórias impostas por parte da sociedade. Por fim, o mercado da música carece de políticas que o tornem mais igualitário em termos de gênero e etnia. O incremento da capacitação dos agentes de mer cado e a ampliação do acesso ao conhecimento são meios indispensáveis para o desenvolvimento do setor como um todo.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 46 AS NOVAS BATIDAS

Novos estilos foram criados a partir do rap e do funk e alguns deles vêm se popularizando, como o grime , que surgiu em Londres no início dos anos 2000, mesclando referências de rap , UK Garage e drum'n’bass . Em termos de anda mento 22 das músicas, o grime é marcado pela utilização de 140 BPMs (batidas por minuto) e, em geral, seus MCs fazem uso de oito compassos de rima, dife renciando-se dos 16 compassos utilizados tradicionalmente pelo rap . A partir da década de 2010, o grime se popularizou internacionalmente, com artistas se apresentando em grandes festivais ao redor do mundo. No Brasil, tornou-se conhecido graças a iniciativas como o Brasil Grime Show, pro jeto no YouTube que reúne artistas para rimar sobre beats23 desse estilo. O canal também possui uma ramificação fonográfica e lança artistas por seu selo musical.24 Outro estilo que vem se espalhando pelo país é o drill. Criado em Chicago, nos Es tados Unidos, no início da década de 2010, é uma variação do trap, gênero muito popular no mundo todo. O drill é marcado por frequências graves oscilantes em suas batidas e, no Brasil, os artistas fazem letras que descrevem a violência obser vada nas comunidades carentes e nas periferias urbanas. Um dos principais artis tas nacionais do gênero é o rapper Leall, que, em 2021, ganhou o Prêmio Rap TV nas categorias Melhor Álbum, Melhor Capa e Melhor MC Masculino. Seu single "Faça dinheiro, se mantenha vivo" atingiu o Top 50 viral brasileiro do Spotify. Por terem conquistado notoriedade principalmente nos subúrbios, tanto o grime quanto o drill apresentam influências do funk

NOTAS 1. Ritmo derivado do forró – como o forró de vaquejada, o romântico, o eletrônico, o xote e o baião.

12. Dados fornecidos pela distribuidora digital de música ONErpm para este estudo.

2. Gênero musical brasileiro produzido a partir da década de 1910 por compositores urbanos e rurais, com predominância do som da viola. Pode ser chamado genericamente também de moda ou embolada. 3. Estimativa feita pela Associação Brasileira da Música Independente (ABMI) levando em consideração dados de crescimento publicados pela Federação Internacional

VITOR GONZAGA DOS SANTOS é graduado em relações públicas pelo Centro Universitário UNA e mestrando em comunicação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

11. Número atualizado diariamente, que leva em conta a soma de ouvintes únicos que um artista conquistou nos últimos 28 dias.

13. Subgênero do hip-hop que se tornou popular nos Estados Unidos e em países da América Latina nos anos 1980 e 1990.

4. Soul music, ou apenas soul, é um gênero musical popular que se originou na comunidade afro-americana dos Estados Unidos entre os anos 1950 e o início dos anos 1960. Combina elementos da música gospel, do rhythm and blues e do jazz. da Indústria Fonográfica (Ifpi) e dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 47 COMO CITAR MOREL, Leonardo; SANTOS, Vitor Gonzaga dos. O funk e o rap em números. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 32, 2022. DOI: org/10.53343/100521.32/4https://www.doi.

Diretor-geral da Encruza Produções, atua como produtor e empreendedor cultural, em produções dentro e fora da capital mineira.

5. O hip-hop tem quatro elementos principais: o rap, o DJ, o breaking (praticado pelos chamados b-boys e b-girls) e a arte do grafite. Entre as diferentes manifestações artísticas do movimento hip-hop, a música se insere como papel principal, com DJs, MCs (mestrede-cerimônias) e o rap 6. Estilo de dança de rua, parte da cultura do hip-hop, criada por afro-americanos e latinos na década de 1970, em Nova York.

8. Competição entre dois ou mais rappers por meio de rimas improvisadas.

LEONARDO MOREL é mestre em políticas públicas pelo Instituto de Economia da Universidade Federal do Rio de Janeiro (PPED/IE/UFRJ). Pesquisador adjunto do Laboratório de Economia Criativa da Escola Superior de Propaganda e Marketing do Rio de Janeiro (ESPM/RJ), coordena o estudo Análise de mercado da música no Brasil, da Associação Brasileira da Música Independente (ABMI), e é analista do mercado latino-americano de música e vídeo na empresa inglesa de consultoria MIDiA Research e A&R manager na distribuidora digital de música Tratore. Escreveu os livros Música e tecnologia (Azougue, 2010) e Monobloco: uma biografia (Azougue 2015).

7. Subgênero do hip-hop que trata de questões sociais.

10. Aplicativo que permite a criação de vídeos de curta duração.

9. Competições de versos que navegam entre a poesia e o rap e fortalecem a cultura das periferias.

24. Selo musical é um tipo de marca utilizada no lançamento de fonogramas em mídias físicas e digitais, no âmbito da indústria fonográfica. O termo também é usado como sinônimo de gravadora, em razão de os fonogramas serem vendidos com selos que identificavam a gravadora que os havia produzido.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL GRIME SHOW YouTube. Dis ponível em: CROWLEYBUZO17TO4WSEK6hGgcom/channel/UCPuIr0zPwjWchttps://www.youtube..Acessoem:fev.2022.,Alessandro.Hip-hop:dentrodomovimento.RiodeJaneiro:Aeroplano,2010. Crowley charts: top 100 Brasil. Disponível em: charts.crowley.com.br/https://.Acesso em: 16 fev. DARLINGTON2022.,Shasta. Why Brazil’s music industry is booming again. Billboard, 18 abr. 2019. Disponível em: Acessoindustry-top-markets-streaming/billboard.com/pro/brazil-music-markets-streaming/pro/brazil-music-industry-top-https://www.billboard.com/"https://www.em:21maio2022. DE SÁ, Simone Pereira. Funk carioca: música eletrônica popular brasilei ra?! E-Compós, Brasília, v. 10, p. 3, ESSINGER2007.,Silvio. Batidão: uma histó ria do funk. Rio de Janeiro: Re cord, ESSINGER2005.,Silvio. “Malvadão 3” fala de viagem de avião, mas foi gravada por Xamã durante passeio de carro pelo deserto: conheça a história do hit do momento. O globo, 11 fev. 2022. Música. Disponível em: em:do-momento-25388927deserto-conheca-historia-do-hit-durante-passeio-de-carro-pelo-aviao-mas-foi-gravada-por-xama-malvadao-3-fala-de-viagem-de-oglobo.globo.com/cultura/musica/https://.Acesso16fev.2022.

17. Listagem ou classificação é um processo de posicionamento de itens de estatísticas individuais, de grupos ou comerciais, na escala ordinal de números, em relação a outros.

15. Forma abreviada de mestre de cerimônias, pessoa responsável por deixar os convidados entretidos num evento. Costuma ser usada antes do nome de um cantor de funk

21. Disponível em: Acessobr/20220128-20220203?hl=ptyoutube.com/charts/TopSongs/https://charts.em:21maio2022.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 48 14. Música que, por ser muito simples e fácil de memorizar, pode ser cantada por qualquer pessoa.

16. Subgênero do freestyle surgido no início dos anos 1990, com letras centradas em temáticas românticas e sem apelo sexual.

18. Subgênero do rap/hip-hop surgido na década de 2000 com DJ Paul, no sul dos Estados Unidos.

19. Disponível em: Acessoweekly/2022-01-21--2022-01-28spotifycharts.com/regional/br/https://em:21maio2022.

20. Disponível em: Acessoweekly/2021-01-22--2021-01-29spotifycharts.com/regional/br/https://.em:21maio2022.

22. Andamento é o termo que designa velocidade, sob o pulso constante, que é o elemento primordial para a consolidação da escrita musical no plano das durações.

23. Palavra da língua inglesa que significa bater, pulsar, vencer. É o ritmo cadenciado, a batida usada nas batalhas dos rappers

HERSCHMANN, Micael. O funk e o hip-hop invadem a cena. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2000. LOUREIRO, Bráulio Roberto de Cas tro. Arte, cultura e política na história do rap nacional. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 63, 2016. MOREL, Leonardo (coord.). Análise de mercado da música no Brasil. São Paulo: Associação Brasileira da Música Independente, 2020. MOREL, Leonardo. Impactos das inovações em serviços no merca do brasileiro de música: o caso da tecnologia streaming. 2017. Dis sertação (Mestrado em Políticas Públicas, Estratégias e Desenvol vimento) – Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017. NARDINI, Alessandra. O movimento hip-hop no Taquaril: expressões culturais e práticas políticas na Zona Leste de Belo Horizonte. 2018. Dissertação (Mestrado em Estudos Culturais Contemporâne os) – Faculdade de Ciências Huma nas, Sociais e da Saúde, Universi dade Fumec, Belo Horizonte, 2018. SANTOS, Vitor Gonzaga dos. Sinto nizando o rap nas rádios de BH 2020. Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Relações Públicas) – Centro Universitário UNA, Belo Horizonte, 2020. SPOTIFY Spotify charts. Disponível em: TEPERMANcom/https://www.spotifycharts..Acessoem:16fev.2022.,Ricardo. Se liga no som: as transformações

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 49 FELIPE, Pablo. TikTok revoluciona a indústria da música no Brasil e impacta o rap. Rap forte, 20 fev. 2021. Disponível em: GUEDES16impacta-o-rap/a-industria-da-musica-no-brasil-e-rapforte.com/tiktok-revoluciona-https://.Acessoem:fev.2022.,Mauricio.“

do rap no Brasil. São Paulo: Claro Enigma, 2015. WINNIN. O impacto do TikTok no consumo de música online Winnin, fev. 2021.Disponível em: YOUTUBEAcesso5ffd-49d5-a64d-53a4bd3a7c76online?submissionGuid=cb95132c-tiktok-no-consumo-de-musica-reports-thank-you/o-impacto-do-https://www.winnin.com/.em:16fev.2022. YouTube music charts, jan.-fev. 2022. Disponível 1620220203?hl=ptcharts/TopSongs/br/20220128-https://charts.youtube.com/em:.Acessoem:fev.2022.

A música que toca é nós que manda”: um estudo do “proibidão”. 2007. Dissertação (Mestrado em Psicologia) – Ponti fícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2007.

Street dance | imagem: Mauricio Negro

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No livro Do samba ao funk do Jorjão, ele faz uma crítica à influência do processo escravagista na consolidação do samba:

RENATA PRADO DE ALMEIDA RESUMO: Este artigo busca evidenciar o histórico da perseguição política que a população negra enfrenta para exercer suas práticas culturais, e como o racismo impacta o desenvolvimento artístico da juventude negra e periférica. Realiza-se uma refle xão sobre a criação de políticas públicas direcionadas ao movimento funk, enten dendo como projetos de lei podem ser uma contribuição positiva para o desenvol vimento do estilo ao garantir o direito dos jovens de ocupar a cidade.

Diversa, versátil, criativa e envolvente, a pluralidade de práticas da periferia brasi leira é o fomento orgânico da arte urbana. Nesse contexto, o funk é uma manifesta ção artística com referências históricas, um fenômeno que excedeu as fronteiras cariocas de seu nascimento e também as brasileiras. O comportamento social da juventude do funk é ousado: no visual, cabelos coloridos, algumas roupas curtas e outras largas; no conteúdo, letras de músicas que retratam a realidade da periferia e das favelas, incluindo temas como o sexo e a denúncia dos problemas políticos que a sociedade enfrenta, entre outros códigos que evidenciam a paixão pelo esti lo. Se analisarmos o histórico das mobilizações culturais de jovens negros, encon tramos diferentes práticas com características semelhantes ao movimento funk, do surgimento do samba à cultura hip-hop. E o que essas práticas têm em comum? A raiz africana, herança da comunidade negra em diáspora. Este artigo discorre sobre três expressões que se popularizaram massivamente no Brasil e no mundo: o samba, o hip-hop e o funk.

Quando se fala em cultura nacional, o samba aparece como incomparável repre sentação do país, com uma projeção mundial que deixa evidente sua relevância para a arte no Brasil. Esse destaque, no entanto, não se reflete no prestígio dos seus criadores, que tiveram e têm de resistir para garantir sua existência. A persegui ção que a comunidade negra enfrentou e continua enfrentando resulta da políti ca colonizadora que caracterizou a atuação de portugueses em terras brasileiras. Considerando-se que essa colonização foi a força por trás da escravidão, a popula ção negra carrega um histórico de racismo que se reflete em todas as estruturas da sociedade, inclusive em seu alicerce cultural. O racismo sempre marcou o samba e segue aparecendo em sua trajetória, pois seu reconhecimento atual como saber legítimo não apaga a constante perseguição aos sambistas. Importante pesquisador desse universo, o escritor Spirito Santo fala sobre sua ri queza e diversidade musical, conectadas às raízes sonoras do continente africano.

A importância da implementação de políticas públicas direcionadas à cultura funk

O samba é negro africano – e não há mito ou mistério escapista que possa negar isto – muito mais porque os africanos que para cá vieram foram mantidos apartados do resto da sociedade por muito tempo, por conta da escravidão e posteriormente pelo racismo renitente que se mantém ativo ainda entre nós até hoje (SANTO, 2016, p. 42).

elementos

Com base na reflexão de Tella, podemos considerar o hip-hop como um movimen to cultural capaz de garantir a manutenção da ancestralidade negra por meio da arte, disseminando a história e o legado da comunidade afro a partir de manifesta ções artísticas contemporâneas. Assim como aconteceu com o samba, a juventude do rap também foi perseguida por esse ser um ritmo protagonizado por jovens ne gros periféricos, com posicionamentos insurgentes em relação à política colonial imposta pela branquitude. Inocência de nossa parte achar que o processo de consolidação do hip-hop seria diferente daquele do samba? Talvez, sim. Apesar disso, essa cultura resiste nas periferias e luta para manter seu compromisso de fortalecer a negritude e a auto estima dessa juventude. Para muitos, a arte não é somente apreciação, pois milha res de jovens, em diversas periferias do país, por meio de sua criação, geram renda para toda a comunidade – por vezes, excluída do mercado formal de trabalho. E, além de ser uma possibilidade profissional, a arte da periferia potencializa o senso crítico, fomenta a formação social e política e garante a liberdade de expressão de uma juventude historicamente reprimida.

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Em seus escritos, o autor destaca o preconceito racial que a comunidade negra e africana sofreu (e sofre) e como isso impossibilitou que essas pessoas exercessem a sua cultura – no caso, a batucada do samba. Esse processo de criminalização da criação de jovens negros periféricos se repetiu na década de 1980 com o hip-hop, gênero nascido nos Estados Unidos e que, anos depois, chegou a São Paulo para se espalhar por todo o Brasil. Entre o final dos anos 1980 e o início dos anos 1990, período do boom da cultura hip -hop no país, a selva de pedra paulistana tornou-se conhecida como o berço do estilo, com o Largo São Bento, na região central, como ponto de encontro da juventude ne gra. Formado por quatro elementos – rap (música), breaking (dança), grafite (artes vi suais) e DJ (bailes) –, o hip-hop dialoga com o senso artístico dos jovens, que por esses eixos expressam seus pensamentos, seus anseios e sua visão de mundo, encontrando semelhanças entre essa cultura negra que nasceu nas periferias de Nova York e a que se estabeleceu nas brasileiras. A pedagoga Elaine Nunes de Andrade organizou uma coletânea de artigos de vários autores que resultou no livro Rap e educação, rap é edu cação, cuja temática trata de hip-hop, educação e aspectos socioculturais, destacando seu impacto nas esferas sociais. Um dos autores, o antropólogo Marco Aurélio Paz Tella faz uma reflexão interessante sobre esse estilo como ferramenta de transforma ção social da população negra no texto “Rap, memória e identidade”. Para ele: O rap torna-se um canal de produção de novos elementos e símbolos culturais da população negra, os quais, muitas vezes, são conflitantes com os aceitos pela sociedade branca, constituindo-se num instrumento de contestação e questionamento da realidade social (TELLA, 1999, p. 58).

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Ainda sobre arte negra e periférica, é fundamental tratarmos do movimento funk, que nasceu nas favelas cariocas e que é a representação da música eletrônica bra sileira com maior difusão aqui e no mundo. Um dos gêneros mais ouvidos no país, o funk ainda sofre com o processo de criminalização por parte do Estado, que reprime com violência os bailes de favela mesmo 30 anos após o surgimento dessa cena. Partindo de um olhar artístico e cultural, esse estilo tem uma trajetória espeta cular no Brasil, pois estamos falando de uma juventude criativa e rebelde, que usa a arte para expor problemas e comportamentos questionáveis (ou não) da sociedade. A autenticidade e o descarte do moralismo estão muito presentes no comportamento e na arte produzidos por artistas do funk, jovens negros his toricamente reprimidos que hoje têm a consciência de que se trata de uma produção legítima. A mistura da ancestralidade africana com a cultura urbana contemporânea resulta na existência de artistas como a MC Tha, cria de Cidade Tiradentes –bairro na Zona Leste de São Paulo reconhecido como o berço do funk na capital –, que mescla em sua obra elementos da religiosidade de matriz africana com as batidas do estilo. Em um recorte de gênero, artistas como Ludmilla, Anitta, MC Dricka, MC Carol e MC Danny, entre tantas outras, estão mostrando à indústria fonográfica que as funkeiras realizam projetos irretocáveis, reconhecidos como “cases de sucesso” de acordo com o seu alcance nas plataformas musicais.

Sobre os bailes funk, o fluxo de rua é espaço cultural, pois a juventude periférica tem plena consciência de seu direito à cidade e de que ocupar as ruas de seus bair ros – como os jovens da Vila Madalena o fazem no Carnaval, por exemplo – é um ato de Quandoresistência.ofluxodo

funk se apropria dos becos e das vielas da favela de Paraisópolis, por exemplo, mostra ao poder público e à sociedade civil que o movimento resiste, a despeito da violência que, em dezembro de 2019, provocou a morte de nove pes soas no baile da DZ7 durante a chamada “operação pancadão” da Polícia Militar de São Paulo. Os espaços sociais dominados pela massa funkeira sofrem com a perseguição do Estado, comandada por órgãos de segurança pública estatal que deveriam prote ger a população, mas que fazem o oposto quando se trata dessa cena.

Estamos falando das práticas das polícias militares e da violação de direitos hu manos da juventude negra que o governo permite que ocorra nas periferias. Além do racismo estrutural, esse enfrentamento histórico entre o movimento funk e a polícia reflete a ausência de políticas públicas, o que resulta numa atuação osten sivamente violenta, pois não há um diálogo participativo entre os criadores do es tilo e os responsáveis pela garantia do direito à cidade para todos, inclusive para a massa funkeira. Inocência de nossa parte achar que o processo de consolidação do hip-hop seria diferente daquele do samba? Talvez, sim. Apesar disso, essa cultura resiste nas periferias e luta para manter seu compromisso de fortalecer a negritude e a autoestima dessa juventude

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 54 Na tentativa de conceber e promover sua arte e sua cultura, jovens negros enfren tam ações truculentas das polícias, atividades genocidas que violam não só seu direito de ocupar a metrópole como também o Estatuto da Juventude. Esse docu mento federal garante a toda essa população – o que inclui os funkeiros – o direito de exercer suas práticas culturais, pois, como destaca o artigo 22º da seção VI, “na consecução dos direitos culturais da juventude, compete ao poder público: III –incentivar os movimentos de jovens a desenvolver atividades artístico-culturais e ações voltadas à preservação do patrimônio histórico” (BRASIL, 2013). Por isso, é compreensível e urgente a criação de políticas públicas efetivas para o funk com intuito de promover a cultura negra, além de garantir a inclusão do movimento como projeto político cultural nas esferas governamentais. COMO CITAR ALMEIDA, Renata Prado de. A importância da implementação de políticas públicas direcionadas à cultura funk. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 32, 2022. DOI: org/10.53343/100521.32/5https://www.doi.

RENATA PRADO DE ALMEIDA é graduanda do curso de pedagogia da Escola de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade Federal de São Paulo (EFLCH/Unifesp) e pesquisadora do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) na área de educação. Idealizadora e articuladora política da Frente Nacional de Mulheres no Funk, integra também a organização política Coalizão Negra por Direitos. Foi homenageada pelo 15º Prêmio Zumbi dos Palmares, da Assembleia Legislativa de São Paulo; premiada pela primeira sessão solene em homenagem ao dia 25 de julho (Dia internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Tereza de Benguela); e pela Câmara Municipal de São Paulo, por seu trabalho de base na militância; além de ter sido indicada ao 11º Prêmio Governo do Estado de São Paulo para as Artes na Categoria Cultura Urbana.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ANDRADE, Elaine Nunes de (org.). Rap e educação, rap é educação São Paulo: Editora Summus, 1999. BRASIL. Lei nº 12.852, de 5 de agosto de 2013. Institui o Estatuto da Juventude e dispõe sobre os direitos dos jovens, os princípios e diretrizes das políticas públicas de juventude e o Sistema Nacional de Juventude – Sinajuve. Diário oficial da União: seção 1, Brasília, DF, ago. 2013. SANTO, Spirito. Do samba ao funk do Jorjão. Rio de Janeiro: Escola Sesc de Ensino Médio, 2016. (Coleção Incubadora Cultural). TELLA, Marco. Rap, memória e identidade. In: ANDRADE, Elaine Nunes de (org.). Rap e educação, rap é educação. São Paulo: Editora Summus, 1999.

Layla | imagem: Mauricio Negro

CUXE CANDACE LAUREN (ANDIARA RAMOS PEREIRA) RESUMO: Neste ensaio, a Casa de Candaces apresenta a cultura ballroom – passando das mo vimentações iniciais da comunidade nos Estados Unidos à consolidação da cena no Brasil – e a sua proposta de atuação. A partir das falas de integrantes da Casa de Candaces, abordamos como é possível explorar as potencialidades de nossas corpas na comunidade, os desafios que cada ume experimenta e os conflitos, apon tando caminhos possíveis para o nosso fortalecimento, sob a perspectiva do fazer cultural ancestral da diáspora negra que vivenciamos.

Os encontros organizados pelas queens se popularizaram como balls, abreviação do termo ballroom. As balls são eventos que reúnem grupos de pessoas organizadas em casas para competir em categorias de performatividades de gênero e identida de sexual, performances de moda, atributos físicos e vogue. Inspirada nas poses de

PRINCESS CUSSY CANDACE ZION (BRUNA SANTOS) AUDRE CANDACE (AUDRE VERNECK) JOHARI CANDACE (TERRA TERRA) JORDANA CANDACE (JORDANA SANDRIN)

LEGENDARY MOTHER ZAILA CANDACE ZION (ZAILA BARBOSA)

PRINCE YAGUARETE CANDACE NINJA (PURI SANTOS)

ONDE TUDO COMEÇOU Há poucos documentos históricos sobre a ballroom, cuja história é contada por quem a viveu e transmitida de geração em geração. De acordo com Tommie LaBei ja (apud REGNAULT, 2011, p. 114), queens pretas que participavam de concursos de beleza, como Crystal e Peppa LaBeija,1 deram início à cena ballroom estaduni dense nos anos 1970, em Nova York. Elas se engajavam em atividades criativas que as forçavam a se embranquecer para participar dessas competições de maio ria branca, sem espaço para expressarem a sua própria negritude. O racismo e o mundo branco provocaram a tensão que as levou a criar seus próprios mundos, organizando eventos nos quais as queens negras se sentiam confortáveis em com petir entre si. Ainda eram concursos de beleza, com poucos prêmios, mas a coisa cresceu e mais e mais queens passaram a frequentar. Quando as butch queens2 ou viram falar dessas mulheres lindas, começaram a assistir à performance da Peppa, com suas plumas e seu esplendor, criando um burburinho que se espalhou pelas ruas dos guetos nova-iorquinos. Peppa, então, criou categorias para incluir essas butch queens nos concursos – também porque elas traziam mais dinheiro para os eventos –, e foi assim que a cena ballroom começou, com a House of LaBeija como a primeira casa, segundo depoimento de Tommie LaBeija.

BALLS E A CULTURA DE CASAS

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 56 Não queira! Ah, ah, Candaces! Notas da Casa de Candaces sobre a ballroom

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 57 revistas de moda, nos hieróglifos egípcios, nas marchas militares, nas artes mar ciais e no breakdancing, trazendo linhas, simetria e precisão, a dança vogue ganhou destaque nessas balls – também chamadas de bailes. As demais categorias dispu tadas se dividem entre apresentações de dança, moda, estética e realidade, separa das também de acordo com o sistema de gêneros próprio da ballroom – como cate gorias só para femme queens, 3 butch queens, transmen, 4 drag performance e women performance – ou por características físicas, como corpas pretas ou corpas gordas, além de também poderem ser open to all (OTA), abertas a todes. A primeira ball ocorreu em 1972, em Nova York, puxada pela House of LaBeija, na época liderada por Mother Crystal LaBeija. As casas (ou houses) são estruturas simbólicas, e não casas físicas. São coletivos de pessoas com laços de afeto e parentesco platônico, compondo uma hierarquia se melhante à de uma família. Mães, pais, filhas, filhos e filhes formam sua base. Nas casas, temos espaço para dar vida ao nosso imaginário, existindo integralmente e sendo quem somos. Organizades dessa maneira, podemos resistir aos lugares so ciais de marginalidade e abjeção nos quais a cisgeneridade branca nos coloca. As casas são o coração da ballroom, pois seus membros criam relações sensíveis entre si, que são também potência coletiva propulsora da organização das balls, da arre cadação de dinheiro para os prêmios, das batalhas contra outras casas e do registro da cena em produção textual e em filmes, entre outras atividades. Nas palavras de Cuxe Candace: Essa estrutura de parentesco critica e revisa radicalmente as noções brancas de casa, família e comunidade. As Casas são como santuários diaspóricos para aquelas pessoas que foram rejeitadas por suas famílias de sangue, pelas religiões e por instituições comunitárias, oferecendo um lugar de acolhida e suporte para que se possa viver coletivamente em meio a cultura queer negra. [...] [Mães e pais] fornecem cuidado e amor para as crianças das Casas, que se tornam irmãs e irmãos entre si. É uma função que exige comprometimento e compartilhamento de saberes. E o poder que se tem é adquirido através de anos de trabalho pela cena e aquisição de experiência (PEREIRA, 2020, p. 78).

Partindo de uma hierarquia baseada em um trabalho de compartilhamento de sa beres e de técnicas, a cultura de casas é um modo de organização típico da diáspo ra africana, que traz aspectos de cuidado e apoio mútuo, festividade, celebração da ancestralidade e criação de um presente que transcende a realidade precária à qual os corpos negros são submetidos no mundo branco.

BALLROOM BR O movimento de balls começou a ocorrer no Brasil em meados de 2010. As práticas e iniciativas relacionadas ao estudo da cultura ballroom vinham sendo desenhadas por artistas de danças urbanas e pioneires da cena kiki5 no país, como Diego Cazul e Kona Hands Up Zion. Nessa época, foram fundadas as primeiras casas da cena kiki, como a Pioneer Kiki House of Hands Up, no Distrito Federal, e a Pioneer Kiki House of Cazul, no Rio de Janeiro. Em 2015, foi realizada a primeira ball interna cional mainstream, a BH Vogue Fever, organizada pelas pioneiras Maria Barracu da Amazon, Paula Barracuda e Raquel Barracuda, integrantes do Trio Lipstick e mothers da kiki House of Barracuda, em Belo Horizonte.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 58 No ano de 2020, a comunidade ballroom do Norte e do Nordeste se organizou e produziu um manifesto crítico à invisibilização da cena nessas regiões. A estrutu ração da ballroom None (Norte/Nordeste, @noneballroom) se mostra como fun damento da cultura no país, pelos estudos sobre a estética, a memória da comuni dade e a intervenção política que contesta as desigualdades regionais de acessos e recursos, evidenciando o legado de figuras como a Pioneer Mother Edson Vogue, pioneira nos estudos de ballroom e vogue no Recife. Em diversas ocasiões, percebe-se que nossa cultura ballroom não é simplesmente uma cópia do modelo estadunidense. Ela traz uma interpretação que dialoga com nosso contexto, relacionada às demandas que atravessam nossas corpas cotidia namente e às histórias que nos constituem. Ocorreu, por exemplo, a consolidação de categorias de competição como Samba no Pé e Joga a Raba nos bailes das cenas kiki e mainstream realizados no país. Mais recentemente, na cena kiki, foi cria da também a categoria Capoeira Vogue. O forte questionamento à normatividade cisheterobranca de nosso território também impulsiona a cena, possibilitando que diferentes corporalidades celebrem suas existências nos bailes, com o pro tagonismo e as categorias para corpes não bináries e para pessoas trans que não possuem uma passabilidade cisgênero.

CASA DE CANDACES

A Casa de Candaces foi fundada em junho de 2019, na Pajuball, um baile da cena mainstream realizado pelo Coletivo Amem6 durante a Semana do orgu lho TLGBQIAP+ em São Paulo. Essa casa nasceu da iniciativa da Mother Zai la Candace, que propôs uma coletividade composta de pessoas trans e tra vestis. O nome Candaces faz referência às rainhas mães do Reino de Cuxe, ao sul do Egito e ao norte do Sudão, região também conhecida como Núbia. Atualmente, integram a Casa de Candaces Legendary Mother Zaila Candace; Prince Yaguarete Candace; Princess Cussy Candace; Audre Candace; Johari Candace; Jordana Candace; e Cuxe Candace. A casa se organiza a partir da hie rarquia que fundamenta a ballroom, com mãe, príncipe, princesa e filhes, em respeito à história e à experiência na comunidade. Entretanto, há fluidez na ma neira como se relaciona com as potencialidades coletivas – a hierarquia não se propõe a ser fixa e os papéis extrapolam um sentido fechado, possibilitando que, a partir de seu lugar, cada integrante enriqueça as movimentações e tome fren tes de atuação. A Casa de Candaces se propõe a estar na cena kiki a partir do protagonismo de corpas transracializades, o que acontece de maneira orgânica e em diálogo com a comunidade cis da ballroom. O pertencimento à nossa casa parte da necessidade de construir um reconhecimento de que a ballroom é um movimento feito de muitas contribuições e do enaltecimento das vidas de pes soas transvestigeneres. AS VOZES DE CANDACES Considerando o levantamento feito anteriormente, membres da Casa de Canda ces aprofundaram algumas percepções e vivências relacionadas à ballroom bra sileira, falando sobre o que é esse movimento, sobre como é possível explorar as potencialidades das nossas corpas na comunidade, sobre as nossas histórias na Casa de Candaces e o seu significado, sobre os desafios que cada ume vive e sobre os conflitos na comunidade e suas possíveis soluções.

A fala da Legendary Mother Zaila Candace, em sua formulação sobre a comunidade ballroom, traz sua dimensão ancestral e seu potencial de criação de novos mundos: Ballroom pra mim é uma possibilidade de construir uma nova narrativa e protagonismo a partir de pessoas pretas, dando uma largada, [...] um lugar de movimento, pertencente a corpas transvestigeneres principalmente travestis pretas. Uma possibilidade de existir em sociedade e coletivo, enquanto um resgate de um novo lugar, onde a gente idealiza novas coletivas e famílias e, assim, podemos existir no espaço que a gente idealiza no nosso imaginário e constrói na realidade, passando de geração a geração, trazendo as necessidades de cada momento que vive, país, contexto da cena (Legendary Mother Zaila Candace, arquivo privado da Casa de Candaces).

A importância do acolhimento é uma questão que atravessa as falas da Casa de Candaces, justamente porque a vivência na comunidade permite a cada pessoa uma experimentação de si, de sua autoestima e de potências de vida, como trazem as falas da Jordana Candace e do Prince Yaguarete Candace: Ballroom pra mim é sobre acolhimento. Sobre você poder ser quem você é e quem você quiser ser também! É sobre você poder recriar famílias, ter afeto, criar conexões com pessoas, se arriscar, quebrar seus medos e também poder se ver viva(o/e) fazendo o que gosta, com quem você gosta! [...] E não é só sobre acolhimento, mas também gera em mim acessos que nem eu esperava acessar… Como poder caminhar/desfilar em uma passarela para muitas pessoas, quebrando minha timidez, me ajudando a ser quem eu sou de verdade, mostrando a Jordana e a potência travesti que sou e que posso ser em todos os lugares! Venho me redescobrindo/reconhecendo em muitos fatores depois que entrei na casa (Jordana Candace, arquivo privado da Casa de Candaces). Eu acho que, dentro da cultura, o que mais incentiva minhas potencialidades é o vogue femme. Gosto muito e acho que atravessa muito a minha vida. Fala sobre a minha autoconfiança também, sobre a minha autoestima. E importa sempre movimentar, eu penso que tudo o que me bota em movimento me transmuta, me leva pra outros lugares assim. E o vogue femme me faz sempre querer mais, e isso me alimenta, me dá vontade de viver. [...] Penso que a ballroom fala muito sobre esse. Sobre autoestima, sobre se amar, sobre se sentir bem (Prince Yaguarete Candace, arquivo privado da Casa de Candaces). Se o acolhimento é fundamental para que a comunidade ballroom se estabeleça e se multiplique, por outro lado, também tem limites. Prince Yaguarete Candace aborda o acolhimento de corpos transmasculinos e não bináries como um desafio a ser enfrentado pela comunidade: Muitas das vezes, as pessoas glamourizam e romantizam muito e não conseguem se aproximar ou também a comunidade não consegue acolher. [...]

Sempre quando tem categorias pra corpas transmasculinas, ainda colocam a gente muito em alguns quadrados, ainda estereotipa muito os nossos corpos [...] e não faz a gente experimentar as nossas performatividades,

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REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 60 as nossas corporalidades. Eu acho que pra mim, essa é uma das maiores problemáticas… como a gente provoca a corporalidade e experimenta as corporalidades dos corpos transmasculinos e não-binários dentro da cultura (Prince Yaguarete Candace, arquivo privado da Casa de Candaces).

Tal como Prince Yaguarete Candace, Princess Cussy Candace traz questionamen tos à cultura da ballroom, sobretudo quanto às diferenças entre os espaços artís ticos dos quais participa e a relação com a ballroom. Ela também faz uma reflexão sobre as possibilidades do corpo trans negro e gordo na cena: A ballroom pra mim é o espaço onde eu me sinto livre para falar e ser quem eu sou. Venho de uma vivência na cena drag de São Paulo e muitas das coisas que eu performo ou me posiciono dentro da ballroom, se fosse na cena drag, não seria bem visto, mas a ballroom me acolhe. Eu sou uma corpo gordo travesti [...], eu ainda sinto falta de outros corpos iguais a mim, por isso, todas as vezes que eu puder enaltecer minha corpo e das minhas (mesmo sendo poucas) eu irei fazer, caminhar em sex siren e body pra mim além de destruir mais uma vez esse padrão magro que até na ballroom existe, é uma celebração do meu corpo, de como o meu corpo é tão potente e lindo como vários outros (Princess Cussy Candace, arquivo privado da Casa de Candaces).

Também a fala da Mother Zaila mostra que estar presente na cena e caminhar nas categorias nem sempre significa qualidade e acerto; trata-se também de errar, de sair da zona de conforto e experimentar o corpo em risco, sujeito a atravessamen tos múltiplos: O meu corpo investiga [as potencialidades na ballroom] a partir do lugar que me coloco, enquanto mother e quando me coloco pra caminhar. Me permitir entender como consigo lidar com os atravessamentos, qualidades, erros, entender esse lugar não só como cura e acolhimento, mas de deixar o corpo sujeito a se atravessar (Mother Zaila Candace, arquivo privado da Casa de Candaces). Ela sinaliza, ainda, que não há soluções definitivas para os conflitos e que a comu nidade nem sempre dá conta do acolhimento, cabendo olhar com responsabilida de para a questão do autocuidado e da rede de apoio de que nossas corpas precisam para se sustentar: Eu acredito que o importante é que estamos em construção e então não existe uma parada resolutiva de como lidar com isso, estamos discutindo ainda. O que eu trago aqui é realmente não romantizar e esperar que a ballroom vai salvar todo mundo, que vai acolher todo mundo a todo momento. Claro que estamos trabalhando para isso, mas ainda não temos isso enquanto estrutura já estabelecida, estamos preparando alicerce e, assim, já levantando algumas coisas, mas é muito alicerce ainda que está sendo preparado. Então, acredito que existem as demandas da cena e é só a gente olhar para isso com mais atenção e responsabilidade, que eu acredito que a gente vai enxergar o caminho a ser seguido. Acredito que tem toda uma preparação de corpo transvestigeneres que precisa ser feita, todo um empoderamento, toda uma segurança, autonomia, saúde que essas corpas precisam receber. Não dá

Retornando sempre à ancestralidade, em meio aos nossos erros, acertos e contra dições, finalizamos com a visão da Legendary Mother Zaila Candace, que sinteti za a importância do protagonismo de nossas corpas e da prosperidade das nossas movimentações: Eu tinha necessidade de criar esse movimento, coletiva, kiki house, a partir de uma necessidade que eu sempre identifiquei de ter esse protagonismo a partir do lugar onde a gente consegue entender que somos potentes, somos um todo e podemos, sim, podemos fazer o recorte de pessoas trans acontecer. O maior movimento que eu poderia fazer pela cena é ter idealizado e aberto essa kiki house que é tão potente, rica, linda, especial na minha vida. Representa um resgate, eu me ver em meus filhos… a soma, o apoio, toda uma estrutura que esperava que a gente caísse e falhasse. E a gente caiu, venceu e falhou. E ainda estamos juntes, seguindo fortes nessa missão (Mother Zaila Candace, arquivo privado da Casa de Candaces). COMO CITAR Casa de Candaces. Não queira! Ah, ah, Candaces! Notas da Casa de Candaces sobre a ballroom. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 32, 2022. DOI: org/10.53343/100521.32/6https://www.doi.

LEGENDARY MOTHER ZAILA CANDACE é artista independente, performer, professora e coreógrafa de danças urbanas. Nascida em 30 de julho de 1996, iniciou seus estudos sobre danças urbanas com o teatro musical, em 2008. No mesmo ano, começou a participar de festivais e de competições de dança no Brasil e no exterior. Atualmente, trabalha com performances que têm como base a quebra de padrões em âmbitos como a estética, o gênero e a sexualidade. Faz parte da House Of Zion, grupo de performers que desenvolve a dança voguing por meio de intervenções e encontros com a comunidade ballroom em São Paulo e em outros estados brasileiros.

PRINCE YAGUARETE CANDACE nasceu em Barra Mansa, no interior do Rio de Janeiro, e começou sua busca artística com a arte de rua, período em que conheceu e construiu seu palhaço. Logo, passou a estudar as artes cênicas, produzindo e encenando

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 61 pra falar de cultura de baile se a comunidade não está alinhada e pra frente dentro dessas questões, então, é voltar pra trás, pensar no autocuidado e na rede de apoio para essas pessoas, acho que isso é o mínimo que a gente pode fazer (Mother Zaila Candace, arquivo privado da Casa de Candaces). Essa questão do acolhimento, assim, aparece como um desejo, um objetivo a ser perseguido na comunidade e, ao mesmo tempo, um reconhecimento de que ainda não chegamos lá. Porém caminhamos para isso, entendendo que muito é preciso ser feito para que as corpas trans racializades encontrem um lugar de segurança não apenas na ballroom, mas também num mundo que nos nega acessos à segu rança e à saúde, além de autonomia e autodeterminação. A ballroom trabalha para podermos ser integralmente.

JOHARI CANDACE é advogada, antropóloga e performer independente natural de Barroso, em Minas Gerais. Possui mestrado em antropologia com pesquisa sobre performances na diáspora afro-atlântica, dialogando com o trabalho da Cia. Os Crespos, grupo de teatro negro fundamental. É doutoranda em antropologia social. Entre 2017 e 2019, trabalhou com moda/performance junto ao Atelie Transmoras, vivenciando o potencial das corpas T em movimento coletivo e buscando fomentar essas redes. Em 2017, conheceu a ballroom em atividades do Coletivo Amem. Caminha na categoria Face e começou a estudar vogue femme, new way e dança afro-brasileira. É formada em Vinyasa Yoga 200h pelo método Liquid Asana.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 62 espetáculos independentes. Aos 18 anos, mudou-se para a capital do estado e especializou-se em teatro físico, circo e performance. Em 2016, participou do BH vogue fever, começando sua busca com a cultura da ballroom. Viajou por Uruguai, Argentina e Paraguai, compartilhando vivências com artistas locais. Ao chegar à tríplice fronteira com o Brasil, na cidade de Foz do Iguaçu, fundou a coletiva Aranha Verde junte a outros artistes LGBTQIAP+ sulamericanes, desenvolvendo oficinas, performances, eventos, rodas de conversa e atividades culturais em geral. Atualmente, vive em São Paulo, onde segue transitando entre as possibilidades do seu corpo e do seu gênero e as suas multilinguagens.

JORDANA CANDACE (Jordana Helena Sandrin) tem 20 anos e reside do Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo. É multiartista, atriz, dançarina, modelo e estudante de moda, área em que desenvolve pesquisa e produção de peças autorais. Conheceu o mundo da arte por meio do teatro e da dança aos 11 anos e, ao longo desse período, foi se conectando mais à moda, fazendo

AUDRE CANDACE travesti é caro, bb! Desde 2017, ao lado da coletiva multiartística e kiki Casixtranha, em Araraquara, no interior de São Paulo, articula performances, residências artísticas e a festa Tr4v4d4, que reúne artistas trans e negros na conexão 016-mundo. Coproduziu e protagonizou o documentário Morada das ixtranhas, lançado em 2019. Em São Paulo, desenvolve seu trabalho como artistrans independente em festas da cena eletrônica, estabelecendo também parcerias com outres transvestigeneres nas áreas de produção, música, cinema, fotografia e moda.

PRINCESS CUSSY CANDACE (BRUNA SANTOS) também é conhecida como Brunessa Loppez, Cussy Candace e Sexy Star Zion. É modelo e artista travesti do Capão Redondo, na Zona Sul de São Paulo, que atua como drag queen desde 2012. Importante performer da noite paulistana, é especializada em Bate Cabelo, Dublagem (LipSync) e coreografias, além de famosa pela impecável atuação como cover da cantora Lizzo. É também agente de prevenção de IST/aids no Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) de Santo Amaro, navegadora de pares do projeto Manas por manas e integrante do Loyal, coletivo de moda periférica do Capão Redondo, no qual atua como modelo, performer e articuladora. Presente na comunidade ballroom desde 2018, caminha nas categorias Body e Sex Siren e já soma diversos grand prizes.

6. O Coletivo Amem foi fundado no ano de 2016, a partir da articulação entre pessoas que tinham o desejo de organizar espaços de artistasplataformaconstituindo-sepromoverdiferentesgênerosondenegro,confortáveissocializaçãoparaumpúblicoLGBTQIAP+efeminino,amúsicanegradediversoseépocasedançasdeestilospudessemumacelebração,tambémnumadedivulgaçãoparaconvidadas.

CUXE CANDACE também conhecida como Pousé Lauren, caminha nas categorias de Realness e Old Way Performance desde 2019, quando entrou no chapter Los Angeles da Legendary House of Lauren International. Em 2022, ingressou na Casa de Candaces, passando a integrar a cena kiki brasileira. Paralelamente, desenvolve tese de doutorado sobre suas vivências na ballroom pelo Programa de Pós-Graduação em Memória Social da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 63 trabalhos como modelo e produzindo peças. Iniciou sua movimentação na ballroom na categoria Runway.

5. A ballroom se divide em duas cenas, a mainstream e a kiki. A mainstream é a mais antiga, composta de houses internacionais que possuem uma construção mais rígida e tradicional do movimento, e é marcada por uma maturidade maior. A kiki é a menor e mais fluida da ballroom, e compõe a cena local e regional de bailes, primeira forma de organização das houses no Brasil.

3. No sistema de gêneros da ballroom, classificação atribuída a travesti, mulher trans ou mulher em transição, que esteja ou não em processo de hormonização e/ ou feitura de cirurgias.

Crystal foi uma das precursoras da comunidade ballroom e a primeira mother da Royal House of LaBeija. Peppa ou Pepper LaBeija, uma pessoa trans negra, foi mother da House of LaBeija, por mais de 20 anos, e continuou o legado da house pioneira da ballroom por meio de seus mais de 250 prêmios ou grand prizes nas categorias, além de ter contribuído para a cena com cursos e vivências. Ela ficou conhecida por sua atuação no documentário Paris is burning (1990), enquanto ainda era mother da house Tommie LaBeija foi pai da Royal House of LaBeija durante muitos anos. Ele é grandfather e historiador da Casa.

NOTAS 1. Crystal LaBeija foi uma mulher trans negra e drag queen. Ela compunha o circuito de concursos de beleza drag de Manhattan, em Nova York, sobretudo na década de 1970, quando foi uma das poucas negras a ganhar os títulos de Queen of the Ball e Miss Manhattan. Participou do documentário The queen (1968), que registra sua indignação em relação ao racismo nos concursos de que participou.

2. No sistema de gêneros da ballroom, classificação atribuída ao homem cis que se identifica como gay ou bissexual e pode ser masculino ou afeminado.

4. No sistema de gêneros da ballroom, classificação atribuída a homem trans ou em transição, que esteja ou não em processo de hormonização e/ou feitura de cirurgias.

Voguing and the house ballroom scene of New York City, 1989-92. London: Soul and Jazz Books, 2011. ZION, Fenix. A categoria de desfile runway figura feminina na comuni dade afro-latina e LGBT americana ballroom: uma passarela contra cultural. Cadernos cênicos: revista de teatro e outras artes, v. 2, n. 2, p. 26, 2020.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 64 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BAILEY, M. The labor of diaspora: ballroom culture and the making of a black queer community. 2005. Dissertação (Doutorado em Afri can American Studies and the Designated Emphasis & Women, Gender, and Sexuality) – University of California, Berkeley, 2005. CASA DE CANDACES. Ballroom, transcestralidade em movimento O Menelick 2º ato, São Paulo, 2020.

O Menelick 2º ato, São Paulo, abr. 2020.

PERANDA, C. The doing of vogue: lgbt black & latina/o ballroom subcultu re, voguing’s embodied fierceness, and the making of a quare world on stage. 2010. Dissertação (Gra duação em Comparative Studies in Race and Ethnicity) – Stanford University, California, 2010.

Disponível em: CASA25to/casa-de-candaces/convida/revista-o-menelick-2o-ahttps://ims.com.br/.Acessoem:maio2022.DECANDACES;MUTATIS,Udney.CasadeCandaces–Marsha!EntranoCCSP.

PEREIRA, A. Entre memórias de infân cia e crianças legendárias: gênero, raça e sexualidade dos primeiros anos à cena de ballroom & vogue estadunidense. Rebeh – revista brasileira de estudos da homocul tura, v. 3, n. 9, 2020. Disponível” Disponível em: REGNAULTem:rebeh/article/view/10468cientificos.ufmt.br/ojs/index.php/https://periodicos.Acesso25maio2022.,C.

YouTube, 2020. Disponível em: LUZAcessotube.com/watch?v=7rnpJwrcdo0https://www.you.em:5mar.2021.,Carmen.Técnicasdevidaemorte:brevesnotasparadançar.

Canoa | imagem: Mauricio Negro

ALICE PATAXÓ

O papel da juventude na comunicação e na luta indígena por direitos ambientais e culturais

A luta nunca cessou e a juventude sempre esteve nela. Ainda crianças, vivemos a dura realidade da busca pelo direito à resistência, a cuidar da terra; um novo momento nos chama, e a juventude indígena se levanta.

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A juventude indígena que tem descolonizado as redes e se conectado com o mun do conta uma história diferente da que o Brasil contou, dando força às suas co munidades e educando novos grupos indigenistas, uma comunicação necessária em um país que oculta a realidade da vida de quem mora na mata. Nos últimos anos, vieram à tona escândalos ligados aos povos esquecidos e violentados por um sistema que consome suas terras indevidamente. A pandemia intensificou ainda mais as brigas territoriais. En quanto os povos tentavam se isolar e evitar o vírus da covid-19, o Estado se reunia para derrubar direitos já garan tidos, reinventando e implementando leis inconstitucionais – muitas delas derrubadas pela comunicação e pela mo bilização desses povos em tempo recorde. As dores foram muitas, mais de 68 mil indígenas foram infectados e 1.287 foram a óbito, segundo dados de março de 2022 da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib). Diante desse cenário e da necessidade do distanciamento, a tecnologia se tornou porta-voz dessa luta.

Os jovens conectados que falavam da lua de seus povos ganharam notoriedade em todo o país, e com eles surgiram novas iniciativas: conselhos de juventude, congressos e associações em vários territórios, que recebiam doações para ga rantir a alimentação das famílias cujas atividades de sustento haviam sido sus pensas pela pandemia. A tecnologia, que já era grande aliada, se tornou ainda mais importante nesse processo, e as redes sociais começaram a ser pintadas de jenipapo e urucum e a reunir cada vez mais cocares nas telas.

Nesses espaços, ecoam agora os pensamentos, os debates e as ideias desses povos de um mundo melhor, mais justo e mais limpo. Grande parte dessa comunicação Parafraseando o saber pataxó: se não forem os jovens a lutar e a aprender, quem no futuro ocupará o lugar dos grandes líderes de hoje?

A presença indígena nas lutas ambientais e por direitos humanos no Brasil sempre foi uma realidade. Nossas lideranças sempre estiveram à frente na garantia da resis tência dos povos, e, com o passar dos anos, é cada vez mais comum enxergarmos tam bém a juventude nesse papel. Parafraseando o saber pataxó: se não forem os jovens a lutar e a aprender, quem no futuro ocupará o lugar dos grandes líderes de hoje?. Nessa união e nesse ativismo, há muito mais da sabedoria dos povos do que se imagina. A coletividade é força e esperança, ferramentas importantes na luta de um ativista.

O ativismo indígena abraçou a comunicação com força e vontade tremendas de mudar o mundo, e assim passamos a ver, cada vez mais, os nossos jovens fazen do denúncias e participando de debates importantes sobre o clima. Em 2021, o mundo assistiu à maior presença indígena brasileira da história na 26ª confe rência das Nações Unidas sobre mudança do clima (COP26). Realizado em Glas gow, na Escócia, o evento trouxe discussões e propostas para mudar a realidade do planeta. Os povos indígenas, em sua maioria representados ali pelos jovens, foram em busca do comprometimento com as florestas do nosso país e com a defesa dos biomas. Txai Suruí, a primeira indígena a participar da abertura de uma COP, foi uma des sas vozes. Trazendo questões importantes em seu discurso, ela deixou claros os objetivos de quem viajou de tão longe em busca de respostas e soluções para frear o aquecimento da Terra e garantir a existência e a resistência desses povos, com suas línguas e culturas vivas. Os povos indígenas estão na linha de frente da emergência climática, por isso devemos estar no centro das decisões que acontecem aqui. Nós temos ideias para adiar o fim do mundo. Vamos frear as emissões de promessas mentirosas e irresponsáveis; vamos acabar com a poluição das palavras vazias e vamos lutar por um futuro e um presente habitáveis. É necessário sempre acreditar que o sonho é possível. Que a nossa utopia seja um futuro na Terra. (Txai Suruí)2 São vozes agora gravadas, registradas em versos e textos com traduções disponí veis, na intenção de que qualquer pessoa possa acessar o conhecimento e a luta desses povos, encontrando nos jornais e nas redes ou ouvindo de terceiros. Hoje, aquela história escrita que sufoca a verdade e silencia a dor dos que sofreram no passado encontra, nas artes, nas telas e nas letras, uma realidade por séculos escondida, queimada e esquecida. A comunicação tem um papel único ao levar informação, resolver conflitos e compartilhar sabedorias, e não é diferente den tro dos movimentos sociais. No movimento indígena, as muitas línguas maternas deste país não nos distanciam, mas nos aproximam, uma vez que pequenas barrei ras de idioma não são o que desestrutura uma luta. O Brasil tem atualmente mais de 150 línguas indígenas, de diferentes povos e troncos linguísticos, e, ainda assim, existe uma luta forte e unificada. A comunicação não é exclusividade de quem veio de fora e pisou nesta terra; a imposição de uma língua estranha, sim. Seja na sua língua materna ou no português, agora, a comunicação desses povos também con ta com a tecnologia das redes sociais e dos aplicativos diversos.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 67 se dirige ao futuro, como um registro do que se tem feito para mudar o cenário de destruição atual e para reduzir o processo de aquecimento global de que tanto nos alertam os cientistas. Uma luta que, como já se deixou claro, é de toda a socieda de, de todos os cantos do mundo, mas que conta com o apoio e as ideias indígenas para “adiar o fim do mundo”.1 A luta política pelos direitos ambientais também é do interesse de quem vive na cidade. A floresta e os seus guardiões agem contra o desmatamento e o garimpo, mas as cidades estão lidando com as enchentes e com o avanço do nível do mar, uma tragédia anunciada há muito tempo.

1. Ideias para adiar o fim do mundo é um livro de Ailton Krenak, publicado primeiramente em 2019. 2. Trecho do discurso de Txai Suruí na abertura da COP26 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS APIB Emergência indígena. [S. l.]: Articulação dos Povos Indígenas do Brasil, 2020. Disponível KRENAK9apiboficial.org/https://emergenciaindigena.em:.Acessoem:abr.2022.,Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. 1. ed. São Paulo: Companhia das Acessodiscursar-na-abertura-da-COP26indigena-brasileira-acaba-de-org.br/?80429/Txai-Surui-jovem-https://www.wwf.em:9abr.2022.

COMO CITAR PATAXÓ, Alice. O papel da juventude na comunicação e na luta indígena por direitos ambientais e culturais. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 32, 2022. DOI: org/10.53343/100521.32/7https://www.doi.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 68 Mas vale lembrar: isso não os torna menos indígenas. A juventude que se reinven tou na militância aderiu à tecnologia usando-a a seu favor, em uma luta mais anti ga que seus próprios pais: aquela pela vida, pelo direito de viver e de ser quem são; uma busca incessante para que, no futuro do mundo, as novas gerações contem plem a beleza da floresta e possam se sentir parte do todo sem mudar de jeito, de corpo, de pintura ou de cocar.

Letras, 2019. MELO, Liana. Indígena não fala só tupi. Projeto #colabora, 22 fev. 2022. Disponível em: AMPLIFICANDOem:indigena-nao-fala-so-tupi/projetocolabora.com.br/ods16/https://.Acesso9abr.2022.asvozesindígenasemtemposdepandemia. The nature conservancy, 19 abr. 2021. Disponível em: TXAIindigenas/noticias/amplificando-as-vozes-org.br/conecte-se/comunicacao/https://www.tnc..Acessoem:9abr.2022.Suruí,jovemindígenabrasileira,acabadediscursarnaaberturada COP26 WWF, 1 nov. 2021. Disponível em:

ALICE PATAXÓ é ativista e comunicadora indígena do povo Pataxó no extremo sul da Bahia. Atualmente, cursa o bacharelado interdisciplinar em humanidades da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB). É embaixadora da WWF-Brasil e uma das jovens indígenas no papel de levar informação às redes sociais. NOTAS

O pensador | imagem: Mauricio Negro

Representação representatividade:e a obra de arte de autoria negra em circulação

Protagonista de mostras emblemáticas realizadas em importantes organiza ções culturais e galerias do Brasil atualmente, a obra de arte de autoria negra tem sido examinada no limiar das fronteiras entre o mercado e as instituições artísticas. Este artigo apresenta estudos de caso e dados colhidos por mape amentos recentes que apontam as lacunas de um sistema ainda desigual, na busca por analisar e compreender os atuais cenários de produção e circulação de artistas negros(as). Em 2020, um estudo publicado no site Projeto Afro1 escancarou a disparidade de raça e de gênero na representação de artistas negros, indígenas e brancos pelas galerias de arte do circuito paulistano. O autor foi o pesquisador e também artista Alan Ariê, e a pesquisa, desenvolvida durante o ano de 2019, apontou dados quan titativos e qualitativos sobre artistas de 24 galerias de arte da cidade de São Paulo.

DERI ANDRADE RESUMO:

Entre as diferenças indicadas, notou-se que, dos 619 nomes levantados, apenas 46 eram pessoas não brancas. Se pensarmos que a capital paulista concentra o maior número de espaços de arte no Sudeste, entre museus, institutos, centros culturais independentes e galerias, vemos como esses números são alarmantes.

Entretanto, o cenário tem mostrado esforços para mudanças efetivas. No interva lo dos últimos anos, notamos uma exponencial discussão sobre o racismo e suas conjunturas. Estimulado seja por agentes mobilizadores nas plataformas digitais – impulsionados principalmente pelos debates gerados por assassinatos de pes soas negras, para além do cenário estadunidense –, seja pelo histórico de luta dos movimentos negros ao longo de décadas,2 o mercado das artes visuais e as institui ções têm pensado em pautas que se complementam e se fundem, uma vez que os temas raciais acabaram se tornando um interesse em comum.

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Tal efeito é sentido nas agendas de grandes instituições culturais no país. Em ar tigo publicado na revista O Menelick 2º ato em 2020, o antropólogo e crítico de arte Alexandre Araujo Bispo realizou um importante levantamento sobre a “abun dância”, segundo ele, da circulação dos trabalhos de autoria negra nesses espaços.

Tomando como ponto de partida a atuação de Emanoel Araujo, artista, curador e diretor-fundador do Museu Afro Brasil, em São Paulo, e seus esforços anteriores, o autor traça um percurso entre os anos de 2016 e 2019, quando se fizeram no tar trabalhos e nomes de artistas até então desconhecidos do grande público nas programações dessas instituições. Ao lado de referências como Rosana Paulino, Paulo Nazareth e Flávio Cerqueira, foi possível conhecer a fartura dessa produção contemporânea naquele triênio.

Citemos três mostras realizadas em São Paulo como exemplo. Aberta em 2015 e em cartaz no prédio da Pina Estação até 2016, Territórios: artistas afrodescenden tes no acervo da Pinacoteca abarcou um vasto período da produção de artistas ne gros – ou afrodescendentes, como se preferiu marcar em seu título. Com curadoria do então diretor da instituição, Tadeu Chiarelli, a mostra dividiu em núcleos essa complexa e diversa produção artística, do século XVIII até a contemporaneidade. De acordo com o catálogo, foram apresentadas ao público mais de 106 obras do acervo da Pinacoteca, entre pinturas, gravuras, desenhos, esculturas e instalações.

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Assim como Alexandre Araujo Bispo, que recorre aos mesmos conceitos para discutir essa produção nos espaços institucionais, Oliveira ratifica a ideia de validação empre gada pelo calendário artístico citado anteriormente, uma vez que os dados levantados Sobretudo nos últimos dez anos, mostras e eventos liderados por agentes negros ou com a sua participação alcançaram outro lugar de destaque na esfera cultural

Com o projeto, Chiarelli homenageou Emanoel Araujo, diretor da instituição de 1992 a 2002 e responsável pelo alto ingresso de obras de artistas negros na coleção nesse período. No mesmo ano de 2016, diante dos acirrados debates gerados pela repercussão da prática de blackface em um espetáculo apresentado no seu teatro, o Itaú Cultu ral organizou uma série de encontros reunindo artistas e pensadores de diversas áreas no âmbito cultural. Ao longo de meses, músicos, artistas plásticos, atores e escritores, dentre outros, trocaram com o público seus anseios e apresentaram trabalhos que ratificaram, mais uma vez, a importante contribuição negra para as artes e a cultura no país. Como fruto dessas conversas, ocorreu a mostra Diálogos ausentes, 3 com curadoria de Diane Lima, também responsável pela realização de mesas-redondas, e Rosana Paulino. Outra exposição que merece destaque é Histórias afro-atlânticas, realizada pelo Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (Masp) e pelo Instituto Tomie Ohtake em 2018. Com os 130 anos da Abolição da Escravidão no Brasil como pano de fundo, a mostra teve curadoria assinada por Adriano Pedrosa, Ayrson Herácli to, Hélio Menezes, Lilia Moritz Schwarcz e Tomás Toledo. Reconhecida interna cionalmente, Histórias afro-atlânticas integrou a série Histórias, na qual o Masp tem ancorada sua programação, tomando o conceito de descolonização como base para criar uma complexa teia de desdobramentos. Foi exposta ao público uma se leção de 450 trabalhos de 214 artistas, datados do século XVI ao XXI, conforme indicado no texto de apresentação. Essa produção artística foi organizada em oito núcleos, com “Mapas e margens”, “Cotidianos”, “Ritos e ritmos”, “Retratos”, “Mo dernismos afro-atlânticos” e “Rotas e transes: Áfricas, Jamaica e Bahia” no Masp; e “Emancipações” e “Resistências e ativismos” no Instituto Tomie Ohtake. Atual mente, a mostra faz uma itinerância por museus dos Estados Unidos. Para a pesquisadora e curadora Alecsan dra Matias de Oliveira, parte desse mo vimento pode ser atribuído às ideias que atestam os anos de 2010 como centrais nas discussões do “pluralismo estético”, das “relações entre modelos estéticos e etnográficos” e da “descolonização dos acer vos”. Segundo ela, essas mostras “trazem à tona a discussão sobre o etnográfico, sobre a ‘estética do outro’ e sobre os mecanismos de circulação e legitimação que são evoca dos, quando se trata de uma arte deslocada do eixo eurocêntrico” (OLIVEIRA, 2018).

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 72 pela pesquisa que abre este texto são parte integrante de uma cadeia de efeitos que gera e é gerada por esse circuito.

Diante do exposto, a produção de autoria negra no Brasil parece ter encontrado um ambiente para a sua aceitação. Sobretudo nos últimos dez anos, mostras e eventos liderados por agentes negros ou com a sua participação alcançaram outro lugar de destaque na esfera cultural. Em seus estudos, o antropólogo e curador Hélio Me nezes (2018) constata tal fato ao analisar o conceito de arte afro-brasileira diante dessas transformações, uma vez que as relações raciais são discutidas no Brasil concomitantemente a essa conceituação. Ele percorre anos de debates acadêmi cos sobre o seu uso, examinando a criação de instituições como o Museu Afro-Bra sileiro, em Salvador, e o já citado Museu Afro Brasil, em São Paulo, locais de salva guarda do patrimônio histórico, artístico e cultural do povo negro. Ao contrário desses museus, dedicados ao tema desde a sua fundação, outras institui ções têm sedimentado caminhos na busca pelo preenchimento de lacunas impostas por anos de uma história da arte no Brasil que escamoteou a produção de autores ne gros. Assim como em relação à exibição e/ou à aquisição de obras de arte de autores negros e não brancos, os museus caminham a passos lentos quando o assunto é repre sentatividade em seu quadro de funcionários e colaboradores nos setores de curado ria, coordenação e direção. Em um mapeamento também publicado na plataforma do Projeto afro, a pesquisadora, educadora e curadora Luciara Ribeiro indaga: “Quem são as curadoras e curadores negras, negros e indígenas brasileiros?” (RIBEIRO, 2020). Em suas análises, ela buscou compreender primeiramente quem são esses cura dores “e, posteriormente, como tais atuações colaboram com o campo curato rial nacional” (RIBEIRO, 2020). A pesquisa começou em setembro de 2019 e, até aquela publicação, reunia cerca de 76 nomes de curadores(as) negros(as) e 20 de indígenas, de acordo com a autora. O mapeamento foi integrado à Rede de Pesqui sa e Formação em Curadoria de Exposição, que conta com o Laboratório de Cura doria de Exposições Bisi Silva; a Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Minas Gerais (EBA/UFMG); o Núcleo de Pesquisa do Museu de Arte Moderna Aloísio Magalhães (Mamam); o Laboratório de Arte-Educação, Curadorias e His tórias das Exposições da Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (Unilab); o caderno Vida & arte do jornal O povo; e a Escola de De sign da Universidade do Estado de Minas Gerais (UEMG). À época, de acordo com os dados obtidos, “apenas 20% dos curadores indígenas e negres atuavam em alguma instituição, enquanto 80% não têm outra saída que não seja apostar na carreira independente/autônoma” (RIBEIRO, 2020). Assim como no mapeamento sobre representações em galerias de arte, o estudo citado expôs as feridas de um sistema complexo e paradoxal. Isso porque, ainda que essas institui ções abram suas portas para os trabalhos de artistas negros, não fazem o mesmo para profissionais negros capacitados. Destaquemos duas instituições, porém, que insistem no oposto. Comandada pela artista, galerista e curadora Igi Lola Ayedun, a Hoa é a primeira galeria de arte do país dirigida por negros e dedicada a destacar artistas negros e indígenas. Sua sede, em São Paulo, e seu espaço em Londres concentram um calendário de apresenta ções dos artistas representados, com participações em importantes feiras de arte

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 73 dentro e fora do território nacional, ao mesmo tempo que organizam uma primeira residência artística de mentoria e acompanhamento. Por sua vez, a Diáspora Ga leria, dirigida por Alex Tso, apoia-se nos mesmos princípios ao propor que tanto a sua equipe de gestão quanto o seu grupo de artistas e parceiros sejam compostos integralmente de pessoas racializadas. Sua sede ocupa parte da Casa Pretahub, em São Paulo, fundada pela empreendedora Adriana Barbosa, idealizadora do Festival feira preta, que há 18 anos destaca criadores afro-brasileiros.

Segundo o relatório publicado anual mente pelo Artprice,4 respeitado portal que analisa o mercado de arte global, em 2021, observou-se uma “notável ascen são de artistas não brancos [...] trans formando a paisagem dos principais museus, feiras de arte e coleções parti culares, assim como todo o mercado de arte” (tradução nossa). Há alguns anos, é evi dente o destaque que as artes afro-americana, afro-britânica e do continente africa no têm recebido nesse circuito global, o que o portal chama de “Black Renaissance” [Renascimento negro]. Entre os dez artistas contemporâneos nascidos em África com maior volume de vendas em leilões no biênio 2020-2021, Amoako Boafo (Gana, 1984) está na primeira colocação, com um faturamento superior a 1 milhão de dóla res. O artista se dedica à pintura e é representado pela Mariane Ibrahim Gallery, que tem sede em Chicago, nos Estados Unidos, e também está presente em Paris.

O engajamento de artistas, curadores, pesquisadores, pensadores e influenciado res negros de toda a cadeia nacional é sinônimo de um movimento que advém de anos anteriores e da esfera global. Como abordam os curadores nigerianos Okwui Enwezor e Chika Okeke-Agulu em referência à arte contemporânea africana, par te desse fluxo se dá em detrimento de um sistema que influencia e deixa influen ciar o campo. Eles citam a entrada dessas obras em exibições, publicações e cole ções privadas e públicas, assim como a mudança de paradigmas e pensamento nas pesquisas em artes, como vetores de um discurso imbricado nas relações de África e suas forças econômicas, políticas e culturais que contextualizam essa multipli cidade do continente (ENWEZOR; OKEKE-AGULU, 2009, p. 10).

No cenário brasileiro, o artista Gustavo Nazareno (Três Pontas, MG, 1994) ganhou destaque na edição de 2021 de uma das maiores feiras de arte da América Latina, a SP-arte, que tem ocorrido de maneira híbrida durante a pandemia de covid-19.

Na ocasião, ele foi nomeado ao EFG Latin America Art Award, prêmio de aquisi ção organizado pela revista ArtNexus e pelo EFG Bank. Nazareno tem se dedicado à pintura e ao desenho, com destaque para a figuração, pesquisando também so bre a mitologia dos orixás e sobre a força do panteão iorubano dessas entidades na diáspora africana. Como ele, que encontra na pintura a deposição de um gesto confortável, outros artistas negros descobrem na prática uma forma de articular as narrativas de suas poéticas. Assim, se a pintura, por um lado, parece ter caído no gosto da especulação do mercado de arte, por outro, é por meio dela que artistas negros(as) que passam a ser seus próprios autores, longe dos lugares de represen tação do olhar do artista branco no qual, por décadas, se viram colocados como pessoas negras. Assim como em relação à exibição e/ou à aquisição de obras de arte de autores negros e não brancos, os museus caminham a passos lentos quando o assunto é representatividade em seu quadro de funcionários e colaboradores nos setores de curadoria, coordenação e direção

1. Plataforma de pesquisa, mapeamento e difusão de artistas negros(as/es) idealizada pelo autor deste artigo. Disponível em: www.projetoafro.com. Acesso em: 9 abr. 2022.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARIÊ, Alan. Negrestudo: mapeamento de artistas representades pelas galerias de arte de São Paulo. Projeto Afro, 2020. Disponível

2. É exemplo das conquistas desses movimentos a implementação da Lei nº 10.639, de 2003, que inclui a obrigatoriedade do estudo da história e da cultura afro-brasileira nos ensinos Fundamental e Médio; e da Lei nº 12.711, de 2012, que estabeleceu cotas para vagas em universidades e institutos federais.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 74 COMO CITAR ANDRADE, Deri. Representação e representatividade: a obra de arte de autoria negra em circulação. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 32, 2022. DOI: org/10.53343/100521.32/8https://www.doi.

DERI ANDRADE é alagoano e vive entre São Paulo e Belo Horizonte, onde atua como pesquisador, curador e jornalista. É bacharel em comunicação social, com habilitação em jornalismo, pelo Centro Universitário Tiradentes (Unit); pós-graduado em cultura, educação e relações étnico-raciais pelo Centro de Estudos LatinoAmericanos sobre Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo (Celacc/USP); e mestrando em estética e história da arte pelo Programa de Pós-Graduação Interunidades em Estética e História da Arte da USP. Como resultado de um mapeamento de artistas negros no âmbito nacional, desenvolveu a plataforma Projeto Afro. Tem passagens por instituições culturais como o Museu de Arte Moderna de São Paulo (MAM), a Unibes Cultural e o Instituto Brincante. Atualmente, integra a Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA) e é curador-assistente no instituto Inhotim. Pesquisa a correlação entre conteúdo e forma nas poéticas de artistas negros(as/es). NOTAS

4. Disponível em: 18report-2021the-contemporary-art-market-artprice.com/artprice-reports/https://www..Acessoem:maio2022.

3. Ver: AcessoodyLQQGpOkhVTmdTcFK2J76M5iJaMt4&list=PLaV4cVMp_com/watch?v=bOS-https://www.youtube..em:17maio2022.

BISPOAcessogalerias-de-arte-de-sao-paulo/artistas-representades-pelas-artigo/negrestudo-mapeamento-https://projetoafro.com/editorial/em:.em:2fev.2022.,AlexandreAraujo.“Abundância”evulnerabilidade:fomento,criaçãoecirculaçãodasartesnegrasentre2016e2019.

O Menelick 2º ato, São Paulo, 2020. Disponível

CHIARELLI16entre-2016-e-2019e-circulacao-das-artes-negras-vulnerabilidade-fomento-criacao-artes-plasticas/abundancia-e-http://www.omenelick2ato.com/em:.Acessoem:jan.2022.,Tadeu(org.).

Territórios: artistas afrodescendentes no acervo da Pinacoteca. São Pau lo: Pinacoteca do Estado de São Paulo, ENWEZOR2016.,Okwui; OKEKE-AGULU, Chika. Contemporary African art since 1980. Bolonha: Damiani, 2009.

2indigenas-brasileiros/as-curadoras-negras-negros-e-curadorias-em-disputa-quem-sao-projetoafro.com/editorial/artigo/https://.Acessoem:fev.2022.

RIBEIRO, Luciara. Curadorias em disputa: quem são as curadoras e curadores negras, negros e indígenas brasileiros? Projeto Afro, 2020. Disponível em:

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 75 MENEZES NETO, Hélio Santos. Entre o visível e o oculto: a construção do conceito de arte afro-brasileira 2018. 234 f. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Facul dade de Filosofia, Letras e Ciên cias Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. OLIVEIRA, Alecsandra Matias de. A “onda negra”: arte visual afro-brasileira, legitimação e circulação. Jornal da USP, São Paulo, 5 out. 2018. Disponível em:

16circulacao/afro-brasileira-legitimacao-e-artigos/a-onda-negra-arte-visual-https://jornal.usp.br/.Acessoem:jan.2022.

Conteúdos | imagem: Mauricio Negro

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AZA NJERI RESUMO Breve panorama crítico acerca do modelo civilizatório ocidental e do papel da in dústria cultural na construção semiótica da imagem do eu e do outro. Reflete-se sobre de que modo sociedades ocidentalizadas como a brasileira e sua indústria cultural performam o modelo ocidental colonizado e quais as estratégias para uma possível pluriversalização dessa indústria.

Reflexões artístico-filosóficas sobre a indústria cultural

O modelo civilizatório que o Brasil performa é o ocidental. Nossa sociedade faz escolhas pautadas nas lógicas construídas pelo berço anglo-europeu, mesmo que sejamos majoritariamente amefricanos1 (GONZALEZ, 1988). Espelhamo-nos nos alicerces civilizatórios construídos pelas sociedades anglo-europeias, cujas bases estão fincadas no expansionismo, no colonialismo e no capitalismo. Basicamente são três pilares que solidificam o Ocidente: o pilar judaico-cristão, responsável por construções de moral, ética, singularidade da verdade e exclusividade de Deus; o pilar greco-romano, responsável por nossas compreensões de sociedade, demo cracia, educação e imperialismo, entre outras; e o pilar iluminista, que elege a ra zão como critério único de humanidade, excluindo as outras partes fundantes do ser, além de pautar o cientificismo, o evolucionismo e o racismo. Este modelo de ser e estar que o Ocidente propaga e impõe tem caráter univer salista, partindo da experiência da centralidade cis-hétero-patriarcal anglo-eu ropeia (ou de suas cópias mal diagramadas mundo afora) para definir verdades universais sobre si e sobre o outro. Algo de que já nos alertaram intelectuais como a nigeriana Chimamanda Adichie, ao chamar a atenção para o “perigo da história única” (ADICHIE, 2018), e o peruano Aníbal Quijano, ao apresentar sua categoria “Senhor do Ocidente” (QUIJANO, 2005), que diz respeito ao arquétipo do agen te para o qual as estruturas de poder ocidentais trabalham. Figura central nesta dinâmica civilizatória para a qual convergem e da qual partem compreensões éti cas, estéticas e de poder. É a experiência desse agente que baliza a humanidade de todes no mundo ocidental e ocidentalizado, determinando a dicotomia do eu (o “Senhor do Ocidente”, sua senhora e suas cópias) e do outro. Busco, então, a pedagogia da arte (NJERI, 2020a) para exemplificar a cate goria do “Senhor do Ocidente” com o personagem Jordan Belfort, interpre tado pelo ator Leonardo DiCaprio no filme O lobo de Wall Street , de Martin Scorsese (2013). Um homem loiro, alto, de olhos claros – hegemonicamen te e esteticamente “bonito” –, rico, irresponsável, inconsequente, de índole duvidosa, alienado, sem empatia com as mulheres ou com o outro, morador do eixo Norte do globo, com poder político e econômico, e que, do alto de seu privilégio, define a dinâmica ocidental. São dois fatores principais que colo cam o personagem nesse lugar de centro: a sua relação inconsequente com as

2. em 2021, fomos a 13ª economia do mundo, com base no Produto Interno Bruto (PIB);

O personagem seria, a meu ver, uma exemplificação audiovisual desse “Senhor do Ocidente”, regulador da dinâmica ocidental de roubo, morte, destruição e assimi lação; responsável ancestralmente pelo genocídio de 90 milhões de pessoas ori ginárias da América (PLUMELLE-URIBE, 2018); destruidor do meio ambiente; agente do sistema supremacista com diferentes níveis de brancura, cuja estrutura se baseia no racismo contra todos os povos não brancos e tem como alicerce o ca pital monetário e cultural. Esse modelo filosófico-cultural ocidental tem uma forma expansionista e do minadora de performar seu lugar no mundo, atrelando ao eu (“Senhor do Oci dente”) a verdade exclusiva de ética e estética. Nesse sentido, cabe à outridade negociar sua pertença como estratégia de sobrevivência à realidade desumani zadora desse sistema. Saliento, ainda, que o duplo eu versus outro está baseado na autoimagem que o Ocidente criou de si – civilizado, aventureiro, salvador – e do outro – primitivo, bestial e infantil –, reforçada continuamente pela in dústria cultural. A imagem europeia dos outros é um conjunto de todas as coisas que representam a falta de valor; isto é, características humanas “negativas”, dentro dos ditames da ideologia europeia. É o oposto desta imagem negativa que eles alimentam, que sua cultura se esforça para produzir. A autoimagem europeia é “positiva” em termos de comportamento normativo europeu. Ela faz bem o seu trabalho. Uma concepção negativa do “outro” é a base sobre a qual os europeus constroem sua imagem de outros povos, ou seja, o construto conceitual é fornecido pela natureza de sua cultura, e os europeus criam imagens vívidas para preenchê-lo (ANI, 2021, p. 270). Assim, cabe localizar o Brasil na escala de pertença ocidental e observar o compor tamento de nossa indústria cultural. Afinal, nós fazemos parte do eu ou do outro? Ao olhamos para as nossas narrativas canônicas e para as nossas escolhas éticas e estéticas, diríamos, numa cegueira ávida por pertença civilizatória, que estamos próximos ao eu. Mas será? Convido-lhes a pensarem comigo uma Escala Vertical de Humanidade (NJERI, 2020a), em cujo topo está o “Senhor do Ocidente” (e sua se nhora) e as suas sociedades anglo-europeias. E, ao longo da escala, estão a outrida de e as sociedades ocidentalizadas que almejam chegar ao topo civilizado. As carac terísticas formadoras dessas sociedades, entretanto, as aproximam ou as afastam dinamicamente desse topo. Vejamos o nosso caso nesta brevíssima localização:

1. estamos fora do eixo anglo-europeu geograficamente e geopoliticamente;

3. falamos português por termos sido colonizados por Portugal, e nossos pares na lusofonia também não estão no topo da escala ocidental;

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 78 drogas, não havendo punição quanto a isso; e o fato de, apesar de ter sido um dos responsáveis pela quebra da economia americana em 2008, conseguir um emprego no governo.

4. nossa agenda socioeducacional e nossa autoimagem têm como princípios balizadores os três pilares ocidentais e a humanidade anglo-europeia;

6. produzimos cópias mal diagramadas do “Senhor do Ocidente”, que ocupam os maiores cargos de liderança da nação e que nos fazem passar vergonha diante desses senhores reais em encontros internacionais. Com essa paisagem, devemos nos perguntar quem somos e questionar nossas ver dades hegemônicas. Qual é a agenda da arte brasileira? O que é o belo para nós? O que acreditamos ser cultura brasileira? Qual o papel da indústria cultural na formação do nosso olhar colonizado? Essa indústria pode ser agente de mudança semiótica e de status quo? Indústria cultural é uma categoria cunhada pelo filósofo alemão Theodor Adorno (2002) que diz respeito à indústria de entretenimento produtora de bens cultu rais de massa padronizados, fáceis, por vezes alienadores e apassivadores, feitos em ritmo industrial. São obras que, segundo ele, em sua maioria, estão descoladas do labor estético da arte, cultivam falsas necessidades psicológicas satisfeitas por algum produto capitalista e, sobretudo, criam representações populares dos dife rentes aspectos do imaginário social. Buscando atualizar a categoria, a indústria cultural contemporânea diz res peito não apenas a literatura, teatro, rádio, revista, cinema e televisão, mas inclui também as grandes redes de streaming , com suas séries, seus filmes e seus programas de variedades, além do YouTube e das redes sociais que trabalham com imagem, como o Instagram e o TikTok. Cada qual com suas especificidades, todos contribuíram ou contribuem para a massificação e a fetichização de produtos culturais, para a mercantilização da cultura e, mais do que nunca, para a simplificação do pensamento complexo filosófico-artís tico-cultural, para que esses produtos caibam na ultraconectividade e na ra pidez destes tempos nada líquidos. Todavia acredito que alguns pontos são nevrálgicos nessa discussão, como o atra vessamento do racismo nas representações populares fomentadas por essa indús tria, o seu olhar paradigmático de construção das personagens e, sobretudo, as es tratégias contra-hegemônicas de que a outridade tem lançado mão numa disputa de narrativas dentro dessa mesma indústria cultural. O que quero dizer é que a rede de entretenimento, por ser majoritariamente cons truída e controlada por pessoas brancas – localizadas, na Escala de Humanidade Ocidental, em proximidade com o “Senhor do Ocidente” –, costuma reproduzir representações arquetípicas limitantes e estanques de personagens não brancas. Essas, por sinal, ainda são herdeiras de um continuum histórico de dominação e violência sobre os corpos por esse mundo.

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5. segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), cerca de 54% da população brasileira é afrodescendente, o que nos coloca como a maior diáspora africana do mundo;

A perspectiva única (branca e eurocêntrica) de construção de personagens não hegemônicos nos produtos de entretenimento costuma ser permeada pelas amar ras do racismo estrutural, recreativo e estruturante de sociedades como a nossa. Além disso, há uma “tradição” racista de representar os negros como escravos,

Há, ainda, a agenda universalista ocidental, que costuma ser aplicada pelos norte -americanos em todo o continente. Um exemplo é o clipe This is America (2018), do rapper Childish Gambino, que universaliza a desumanização e a violência so frida pelos negros nos Estados Unidos – isso sem falar da exclusividade da noção de América. Não à toa, outro rapper, agora porto-riquenho, Residente, responde ao primeiro com um novo clipe, This is not America (RESIDENTE; IBEYI, 2022).

Cheio de referências de luta da Améfrica Ladina (GONZALEZ, 1988), esse mostra criticamente um continente pluriversal (NJERI, 2020), com histórico de forças culturais diante da desumanização radical imposta pelos “Senhores do Ocidente”. Afirmando que “América no es solo USA, papá / Esto es desde Tierra del Fuego hasta Canadá”, Residente dialoga: “Gambino, mi hermano, esto sí es América”.2

Nas produções atuais das redes de stre aming, apesar de algum aparente esfor ço para trazer narrativas diversas, ainda nos esbarramos com obras celebradas, como Não olhe para cima (2021), de Adam McKay, em que há um único per sonagem negro relevante para a trama: o cientista Dr. Teddy Oglethorpe, interpretado por Rob Morgan. Teddy é bem-sucedi do e não performa subalternidade, porém, diante do apocalipse e da morte iminente, ele está sozinho. Na cena final, está sentado na mesa de jantar com todos os demais personagens, sendo o único sem companhia, sem esposa, marido ou amigue, e sem ligações de despedida. Mas não é o fim do mundo? Surge, portanto, a necessidade de se questionar lúcida e criticamente: qual a qua lidade da representação das pessoas negras na indústria cultural? Em uma tentativa de disputa de narrativa, vemos os esforços de pessoas negras gal gando espaços de poder em diversas áreas dessa indústria, ao mesmo tempo que as grandes empresas estão percebendo que as demandas identitárias e raciais geram lucro. A perspectiva do “se não vejo, não compro” traz o tom para novas configura ções na indústria cultural (inter)nacional. Entretanto vale a atenção para a agenda da diversidade, que continua partindo da centralidade do “Senhor do Ocidente”, já que se considera diverso tudo que é diferente dele; e para o fenômeno do tokenis mo (HOOG; VAUGHAN, 2010), o esforço superficial de inclusão de minorias apenas com um papel simbólico de cumprir a cota, sem nenhuma ação efetiva no coletivo.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 80 bandidos, desvalidos e sofredores, utilizada pela Europa e pelas suas elites colo niais não apenas como marca alienante e subalternizadora do negro, mas como contraponto da civilidade e da superioridade brancas, voltando mais uma vez ao grave problema de autoimagem desse grupo e de suas cópias. Quando enfocamos as construções arquetípicas produzidas nesse cenário, temos a reprodução da Eu ropa e dos Estados Unidos como os civilizados, o berço da cultura, a modernidade, a evolução, enquanto a África e a América Latina aparecem como primitivas, míti cas, ingênuas, malignas, ignorantes e infantilizadas.

Assim, percebemos que a inserção de um pluriverso de olhares e de agendas na indústria cultural traz resultados positivos e lúcidos na representação não só de Em uma tentativa de disputa de narrativa, vemos os esforços de pessoas negras galgando espaços de poder em diversas áreas dessa indústria, ao mesmo tempo que as grandes empresas estão percebendo que as demandas identitárias e raciais geram lucro

Destaco, ainda, os desfiles das escolas de samba de 2022 do Rio de Janeiro, que foram recheados de afrorreferências, como o da Beija-Flor, que trouxe o enredo Empretecer o pensamento é ouvir a voz da Beija-Flor. Pedagógico, vimos na avenida uma aula sobre as contribuições negras na história do mundo. Esses são exemplos de experiências artivistas (CARNEIRO, 2018) que praticam o “Espólio de Maa fa” (NJERI, 2020), ou seja, que se utilizam de fôlegos éticos e estéticos africanos como ferramentas de resistência, permanência e continuidade nas diásporas.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 81 pessoas negras, mas de toda uma outridade. Essas olham para suas experiências culturais e extraem, com criatividade e labor estético, obras cuja centralidade e agência são próprias. Dois exemplos conhecidos são os premiados filmes Corra! (2017), de Jordan Peele, e Moonlight: sob a luz do luar (2016), de Barry Jenkins, que, além de trazerem temas que oxigenaram a indústria, estabeleceram novos parâ metros e paradigmas para a arte cinematográfica.

Outro caso interessante vindo do centro da indústria cultural ocidental é o ál bum visual Black is king (2020), de Beyoncé, mulher negra, multiartista, empre sária, fruto e ícone da indústria cultural contemporânea. O seu filme, chance lado pela marca Walt Disney, num mergulho nas estéticas e filosofias africanas, vai à saga de O rei Leão para tratar do descarrilamento dos homens negros na afrodiáspora dos Estados Unidos. Dessa forma, o brilho, as luzes e as estampas de animais da savana não são glamorizados para refletir a “peruagem” ocidental, mas sim para potencializar a máxima de que somos um povo rico, fértil, criativo, forte e resistente. África é ouro. Somos herdeiros dos impérios de Gana e Mali. Não à toa, Mansa Musa – o homem mais rico da história da humanidade – é per sonagem de um verso de “Mood 4 eva” cantado pelo rapper Jay-Z: “ Mansa Musa reincarnated, we on our levels”.3 Beyoncé não é a primeira artista renomada da Améfrica a beber nas estéticas africanas. Nina Simone, Miles Davis e o movimento Harlem Renaissance, no início do século XX, também se banharam nessas águas. Aqui no Brasil temos nomes como Jorge Ben Jor e Gilberto Gil, que trabalharam essa estética ci vilizatória anteriormente. Afinal, o Hermes Trismegisto cantado por Ben em música homônima é Imhotep, o primeiro grande intelectual da história, nasci do em Kemet, no Egito. E, sobre o imortal Gilberto Gil, basta uma vislumbrada na sua discografia para perceber Áfri ca, seja na estética de suas capas, nos ritmos ou no pretuguês (GONZALEZ, 2018) das Contemporaneamente,letras.

o clipe A coisa tá preta (2020), da MC Rebecca, tem Elza Soares encarnando Maat, a deusa kemética da justiça e do equilíbrio; a mesma que a cantora Rihanna tem tatuada abaixo dos seios. Na cena teatral, temos o premia do Festival segunda black, que aplica o “nós por nós”, olhando para as performan ces negras com respeito e construção crítica. Isso sem falar no sucesso do projeto O pequeno príncipe preto (2020), de Rodrigo França, que, questionando o cânone, traça uma nova perspectiva para a clássica história e é sucesso tanto nos formatos de teatro infantil quanto nos seus múltiplos desdobramentos em produtos.

Assim, percebemos que a inserção de um pluriverso de olhares e de agendas na indústria cultural traz resultados positivos e lúcidos na representação não só de pessoas negras, mas de toda uma outridade

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ADORNO, Theodor. A indústria cultural e a sociedade. Tradução: Julia Eli sabeth Levy et al. São Paulo: Paz e Terra, 2002.

ANI, Marimba. Imagens dos outros. Coleção pensamento preto: epis temologias do renascimento africano, v. 5. São Paulo: Diáspora Africana, 2021.

3. Nota da redação: “Mansa Musa reencarnado, estamos no mesmo nível”, em tradução livre.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 82 Com isso, podemos perceber que a indústria cultural se potencializa quando plu riversaliza as experiências criativas de suas produções e, utilizando a pedagogia da arte, partilha semióticas que podem ser limitantes ou libertadoras. Assim, tam bém é uma questão de escolha.

COMO CITAR NJERI, Aza. Reflexões artísticofilosóficas sobre a indústria cultural. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 32, 2022. DOI: www.doi.org/10.53343/100521.32/9https://

1. Améfrica Ladina e amefricanos são categorias político-culturais cunhadas pela intelectual Lélia Gonzalez no artigo Categoria político-cultural da Améfrica Ladina (1988), e que dizem respeito à confluência de valores e práticas éticos e estéticos oriundos dos pluripovos originários do continente e dos milhares de povos africanos desembarcados à força nesta terra. Tais valores são a base das nossas formas de ser e estar e são ferramentas de resistência, permanência e continuidade.

AZA NJERI é escritora, professora, roteirista, multiartista, crítica teatral e literária, mãe, podcaster e youtuber. Possui doutorado em literaturas africanas e pós-doutorado em filosofia africana. É pesquisadora de África e afrodiáspora e professora de literaturas no Departamento de Letras da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUCRio), e de filosofias africanas no Instituto de Pesquisa Pretos Novos, no Rio de Janeiro. Atua também como coordenadora do Núcleo de Estudos Geracionais sobre Raça, Arte, Religião e História do Laboratório de História das Experiências Religiosas da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LHER/UFRJ) e do Núcleo de Filosofia Política Africana do Laboratório Geru Maa, da Universidade Federal Fluminense (UFF).

2. Nota da redação: “América não é apenas os EUA, papai / Vai desde a Terra do Fogo até o Canadá”; “Gambino, meu irmão, isso sim é América”, em tradução livre.

NOTAS

O LOBO de Wall Street.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 83 BEYONCÉ; JAY-Z; GAMBINO, Childish. Mood 4 eva. YouTube, 2020. Dis ponível em: CARNEIROBLACKAcessocom/watch?v=voQAarOdMmYhttps://www.youtube.em:27abr.2022.isking.Direção:BeyoncéKnowles-Carter.Califórnia:WaltDisneyPictures,2020.85min.,Sueli. Escritos de uma vida Belo Horizonte: Letramento, 2018. CORRA! Direção: Jordan Peele. Pro dução: Jordan Peele. Califórnia: Universal Pictures, 2017. 103 min. FRANÇA, Rodrigo. O pequeno prín cipe preto. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2020. GAMBINO, Childish. This is America. YouTube, 2018. Disponível GONZALEZem:watch?v=VYOjWnS4cMYhttps://www.youtube.com/em:.Acesso27abr.2022..Lélia.Acategoriapolítico-culturaldeamefricanidade. Tempo brasileiro, Rio de Janeiro, n. 92/93, p. 69-82, 1988. GONZALEZ. Lélia. Primavera para as rosas negras. São Paulo: Diáspora Africana, 2018. HOOG, Michael A.; VAUGHAN, Graham M. Psicologia social. Bogo tá: Ed. Médica Panamericana, 2010. MC REBECCA; SOARES, Elza. A coisa tá preta. YouTube, 2020. Disponí vel em: MOONLIGHT31watch?v=aiKdLiic0wUhttps://www.youtube.com/.Acessoem:maio2022.:sobaluzdoluar.Direção:BarryJenkins.Produção:AdeleRomanski,DedeGardnereJeremyKleiner.NovaYork:A24,2016.110min. NÃO olhe para cima. Direção: Adam McKay. Produção: Adam McKay, Kevin J. Messick e Scott Stuber. Califórnia: Netflix, 2021. 138 min. NGOZI, Chimamanda Adichie. O peri go da história única. São Paulo: Cia. das Letras, 2018. NJERI, Aza. Reflexões artísticofilosóficas sobre a humanidade negra. Revista Ítaca – especial filosofia africana, Rio de Janeiro, n. 36, p. 164-226, 2020a. Disponível em: NJERIAcessophp/Itaca/article/view/31895https://revistas.ufrj.br/index.em:31maio2022.,Aza. Black is king: uma análise afrorreferenciada do novo álbum visual da Beyoncé. Rio encena, Rio de Janeiro, 5 jul. 2020. Disponível em: maiovisual-de-beyonce/afrorreferenciada-do-novo-album-com/black-is-king-uma-analise-https://rioencena..Acessoem:312022.

Direção: Martin Scorsese. Produção: Mar tin Scorsese. Califórnia: Universal Pictures; São Paulo: Paris Filmes, 2013. 180 PLUMELLE-URIBEmin., Rosa Amélia. Da barbárie colonial à política na zista. Coleção pensamento preto: epistemologias do renascimento africano, v. 1. São Paulo: Diáspora Africana, 2018. QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências so ciais. Perspectivas. Buenos Aires: Clacso, RESIDENTE2005.;IBEYI. This is not America. YouTube, 2022. Disponível em: watch?v=GK87AKIPyZYwww.youtube.com/https://. Acesso em: 31 maio. 2022.

Pavão | imagem: Mauricio Negro

INTRODUÇÃO

Em prol da igualdade racial: as políticas públicas e a importância do incentivo à cultura negra brasileira (linha do tempo)

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 85

É importante ressaltar que os fatos e as datas destacados aqui pretendem oferecer um panorama do tema, não esgotando os seus pormenores.

139). Essa dimensão identitária é importante pois, conforme a autora, a ausên cia do debate sobre a diversidade racial no Brasil teve como intuito “encobrir um elemento básico e estruturante da nossa sociedade que é o racismo, o maior tabu da sociedade brasileira, em relação ao qual há uma verdadeira conspira ção de silêncio” (CARNEIRO, 2019, p. 138).

GUILHERME MIRANDA SILVA RESUMO: A presente linha do tempo pretende apresentar o histórico das políticas públicas de reparação da desigualdade racial no Brasil, buscando evidenciar a contribui ção da militância dos movimentos negros para que essas mudanças pudessem ser implementadas. A despeito de o racismo e a desigualdade racial serem marcas da história do país, as primeiras medidas oficiais de combate à discriminação datam apenas de meados do século XX, e as primeiras ações afirmativas em prol da igual dade racial se deram somente na primeira década dos anos 2000.

A força cultural da herança africana e das experiências afrodiaspóricas está na base das principais formas de resistência do povo negro ao longo do perío do escravocrata e mesmo após a abolição. A articulação do movimento negro contemporâneo, entre as diversas razões, é fruto dessa realidade. Como argu menta Sueli Carneiro, “no campo da cultura, são inúmeras as experiências de politização das expressões culturais negras, no sentido do fortalecimento da identidade étnica e racial da população negra, tais como as oriundas dos terrei ros de candomblé, das bandas de rap ou dos blocos afro” (CARNEIRO, 2019, p.

Como é possível observar na história recente do movimento negro, sobretudo a partir da década de 1980, a luta pela igualdade racial reivindica políticas insti tucionais de reconhecimento da diferença, contra o mito da democracia racial; e ações afirmativas que combatam as desigualdades resultantes do trauma da es cravidão no país, da falsa abolição1 no final do século XIX e de um século XX pro fundamente marcado pela segregação racial e pelo genocídio de negras e negros brasileiros. Afinal, como bem observa Hédio Silva Jr., em uma sociedade como a brasileira, desfigurada por séculos de discriminação ge neralizada, não é suficiente que o Estado se abstenha de praticar a discriminação

Dessa forma, a presente linha do tempo tem como objetivo traçar um breve histó rico das iniciativas de promoção da igualdade racial no país. Linha do tempo [1950-1976] DISCUSSÃO SOBRE RAÇA: PROIBIDA A primeira iniciativa do Estado brasileiro para o combate à discriminação racial foi a Lei Afonso Arinos (Lei nº 1.390), de 3 de julho de 1951, que tornou contra venção penal a prática de atos resultantes de preconceito de raça ou cor. Curiosa mente, a motivação da sanção foi um caso de racismo sofrido pela bailarina negra estadunidense Katherine Dunham, impedida de se hospedar em um hotel na ci dade de São Paulo em razão da sua cor. No entanto, como observou Abdias Nas cimento, essa lei “não foi cumprida nem executada. Ela tem um valor meramente simbólico” (NASCIMENTO, 2017, p. 97). Para o autor, o fato de o governo da época ter ignorado a pauta racial até então “tem justificativa numa alegação de ‘justiça social’: todos são brasileiros, seja o indivíduo negro, branco, mulato, índio ou asi ático” (NASCIMENTO, 2017, p. 94). Ou seja, na lógica defendida à época, não havia desigualdade de cor ou de raça, o que representava uma proibição das discussões sobre racismo no país. Outra resolução importante, assinada pelo governador da Bahia algumas décadas depois, foi o Decreto nº 25.095, de 15 de janeiro de 1976, que acabou com a obriga ção das comunidades afro-religiosas de requerer permissão à delegacia para re alizar suas atividades. Isso porque, embora o Estado tenha se separado da Igreja Católica na Constituição de 1891, as religiões de matriz africana eram alvo de per seguição. Como aponta a pesquisadora Nailah Veleci, o Código penal da época cri minalizava mendicância, vadiagem, capoeiragem, curandeirismo e espiritismos. Segundo ela, “a proibição da capoeira consistia na criminalização da cultura negra e os dois últimos crimes serviram para a repressão policial das casas afro-religio sas” (VELECI, 2017, p. 38). Tal decreto foi a base para que a Constituição de 1988 assegurasse o direito à liberdade religiosa em todo o país. [1977-1989] PELO FIM DO MITO DA DEMOCRACIA RACIAL

Na década de 1970, surgiram diversas organizações e coletivos com o intuito de levar adiante o combate à desigualdade e à discriminação racial no país, como o movimento negro contemporâneo. Em 1971, por exemplo, ocorreu a fundação do Grupo Palmares, em Porto Alegre, que publicaria um manifesto evocando a me mória de Zumbi dos Palmares para iniciar o debate em torno da celebração do Dia da Consciência Negra em 20 de novembro, e não em 13 de maio.2 Em Salvador, por sua vez, houve a criação do bloco carnavalesco Ilê Aiyê, em 1974, voltado para as Na lógica defendida à época, não havia desigualdade de cor ou de raça, o que representava uma proibição das discussões sobre racismo no país.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 86 em suas leis. Incumbe ao Estado esforçar-se para favorecer a criação de condições que permitam a todos beneficiarem-se da igualdade de oportunidades e eliminar qualquer fonte de discriminação direta ou indireta (SILVA JR., 2010, p. 25).

A Marcha Zumbi dos Palmares contra o racismo, pela cidadania e a vida, realizada em 20 de novembro de 1995, em Brasília, foi um dos marcos mais importantes para o surgimento de políticas públicas contra a desigualdade racial no país. Ao final do evento, que reuniu cerca de 30 mil pessoas, os coordenadores entregaram um documento para o então presidente da república, Fernando Henrique Cardoso, pe dindo medidas mais eficazes e a criação de políticas públicas para promover o res peito à diferença e a igualdade de oportunidades, com ênfase na ideia de que “não basta repetirmos a mera abstenção da prática discriminatória” (SILVA JR., 2010, p. 20). Para Hédio Silva Jr., a iniciativa “não apenas representou um momento pro missor de ação unificada do conjunto da militância, como também marcou a elei ção da proposta de políticas de promoção da igualdade como um tema de consenso no discurso da liderança negra” (SILVA JR., 2010, p. 21).

“Diferentemente de momentos anteriores, a oposição ao chamado ‘mito da democracia racial’ e a construção de identidades político-culturais negras foram o fundamento a partir do qual se articularam as primeiras organizações” (PEREIRA, 2013, p. 131)

ZUMBI SOMOS NÓS: A IMPORTÂNCIA DA MOBILIZAÇÃO DO MOVIMENTO NEGRO

Com a constituinte, a década de 1980 trouxe importantes mudanças na le gislação e na forma como a sociedade brasileira passou a lidar com o racis mo. A Lei nº 7.716, de 5 de janeiro de 1989, também conhecida como Lei Caó – em referência ao advogado, jornalis ta e político baiano Carlos Alberto de Oliveira –, converteu em crime passível de pena de reclusão a prática de discriminação de raça ou cor, que até então era considerada contravenção penal. Outra importante conquista foi o artigo 68º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias de 1988, que reconhecia aos remanescentes das comunidades dos quilombos a propriedade definitiva das terras que ocupavam. Por fim, cita-se também a criação da Fundação Cultural Palmares (FCP), em 1988, vinculada ao Ministério da Cultura (MinC) e com a finalidade de promover a pre servação dos valores culturais, sociais e econômicos decorrentes da influência negra na formação da sociedade brasileira. O órgão conviveu, no entanto, com a constante possibilidade de sua extinção, dada a escassez de recursos e a dissolução do MinC logo no início do governo Collor, em 1990 (XAVIER, 2018). [1990-1999]

A partir de então, o governo brasileiro instituiu o Grupo de Trabalho Interminis terial para Valorização da População Negra. Liderado pelo Ministério da Justiça e coordenado por Hélio Santos, o grupo reunia representantes de oito ministérios e oito pessoas ligadas ao movimento negro, que tinham a função de elaborar políti cas públicas voltadas para a questão racial.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 87 temáticas africanas e composto unicamente de pessoas negras. Em 1978, foi fun dado também o Movimento Negro Unificado (MNU), em São Paulo. Segundo o historiador Amilcar Pereira, “diferentemente de momentos anteriores, a oposição ao chamado ‘mito da democracia racial’ e a construção de identidades político -culturais negras foram o fundamento a partir do qual se articularam as primeiras organizações” (PEREIRA, 2013, p. 131).

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 88 No âmbito internacional, a Organização das Nações Unidas (ONU) e a Organi zação das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) pro moveram diversas conferências para debater pautas relacionadas aos direitos humanos. Como observa o Centro de Documentação e Memória Institucional do Geledés, “ao longo da década de 1990 muito se avançou na capacidade de a socie dade civil dialogar com os governos que representavam os Estados nacionais na ONU e assim influenciar suas delibera ções” (GELEDÉS, 2021, p. 13). Dessa forma, foi na década de 1990 que a desigualdade racial se tornou pauta e passou a integrar, mesmo que no dis curso, as agendas e os planos do governo federal. No entanto, como bem se obser va: “Fica claro então que a mudança da postura do governo brasileiro [...] se dá na exata pressão exercida pelo movimento negro brasileiro por mudanças através da Marcha Zumbi em 1995. Não foi uma transição de posição governamental por con cessão” (GELEDÉS, 2021, p. 22). [2000-2010]

O RECONHECIMENTO: PRIMEIROS PASSOS EM POLÍTICAS PÚBLICAS Apesar da movimentação em prol do debate sobre a questão racial, as políticas pú blicas tomaram corpo apenas no início do século XXI. A participação brasileira na Conferência mundial contra racismo, discriminação racial, xenofobia e intolerân cia correlata, realizada em 2021 na cidade de Durban, na África do Sul, teve um papel muito importante para que o país assumisse novos compromissos quanto à elaboração de leis destinadas à promoção da igualdade racial. Esse comprometi mento só foi possível graças à mobilização de organizações do movimento negro, que promoveram vários encontros para definir agendas em comum e, assim, pres sionar os representantes do governo brasileiro a assinar o documento final. Foram destaques nesse processo as ONGs Criola (Rio de Janeiro) e Maria Mulher (Porto Alegre) e o Geledés – Instituto da Mulher Negra (São Paulo), entre outros. Em 2003, o recém-empossado presidente Luiz Inácio Lula da Silva adotou duas importantes medidas logo no início do governo: a promulgação da Lei nº 10.639, de 9 de janeiro, que tornou obrigatório o ensino da história e da cultura africana e afro-brasileira nas instituições de ensino do país; e a criação da Secretaria de Po líticas de Promoção da Igualdade Racial (Seppir), órgão com status de ministério que assessorava a presidência nos debates sobre a questão racial e na articulação com outros ministérios para a implementação das políticas. Em sua gestão à frente do MinC, Gilberto Gil também contribuiu para que fossem incorporados à agenda do governo o debate sobre a diversidade e a retomada da ideia de cultura trazida pela Constituição de 1988. Dessa forma, programas como o Cultura Afro-Brasileira, presente nas ações do governo federal desde 2000, por meio da atuação da FCP e da Seppir, ampliaram o orçamento destinado às ações de valorização da identidade e da cultura negra, realizando também editais de fomento e outras medidas para a proteção dos patrimônios culturais quilombo las e de comunidades tradicionais. A FCP também ofereceu assessoria jurídica e “Fica claro então que a mudança da postura do governo brasileiro [...] se dá na exata pressão exercida pelo movimento negro brasileiro por mudanças através da Marcha Zumbi em 1995. Não foi uma transição de posição governamental por concessão” (GELEDÉS, 2021, p. 22)

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 89 apoiou a titulação e o registro de terras quilombolas, em atuação conjunta com ou tros ministérios, como o da Justiça. No fim da década, a sanção do Estatuto da Igualdade Racial (Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010) marcou um importante avanço na discussão sobre o combate à desigualdade, uma vez que consagrou e definiu legalmente conceitos como po pulação negra, discriminação e desigualdade racial, estabelecendo diretrizes po lítico-jurídicas para “a inclusão das vítimas de desigualdade étnico-racial, a valo rização da igualdade étnica e o fortalecimento da identidade nacional brasileira” (BRASIL, 2010). O documento também trazia uma seção dedicada à cultura (se ção III, artigos 17 a 20), na qual assumia o compromisso do reconhecimento das manifestações coletivas da população negra e de matriz africana, incentivando a celebração de datas comemorativas e atuando para a preservação de bens de natu reza material e imaterial dos quilombos e das comunidades tradicionais. [2011-2018] PAUTA RACIAL EM XEQUE: O PERIGO DA DESCONTINUIDADE Embora a década anterior tenha avançado em tópicos e pautas importantes do movimento negro e ampliado o diálogo entre sociedade civil e governos, as ações não foram suficientes para diminuir a desigualdade racial, a violência ou a discre pância entre a renda mensal de brancos e negros.3 Para além disso, a falta de con tinuidade e a instabilidade no financiamento das ações foram marcas das políticas públicas entre os anos de 2000 a 2010 (SILVA, 2021). Apesar disso, a primeira metade da década de 2010 contou com a sanção de uma lei importante: a Lei nº 12.711, de 29 de agosto de 2012, que tornou obrigatório que universidades, institutos e centros federais reservem metade das vagas oferecidas anualmente em seus processos seletivos para estudantes vindos de escolas públi cas, de baixa renda, negros, pardos ou indígenas. Embora as cotas raciais já esti vessem sendo adotadas desde 2003, nos vestibulares da Universidade do Estado da Bahia (Uneb) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj), a lei foi importante para consolidar essas ações afirmativas em todo o país. No segundo mandato da presidenta Dilma Rousseff, em um cenário de forte recessão econômica gerado pela crise internacional de 2008, as políticas pú blicas passaram a ocupar um lugar se cundário no debate, uma vez que, como aponta André Silva, “estas consequên cias econômicas foram condicionantes para acirrar as narrativas contra promoção de políticas públicas para igualdade racial, pois agrega-se a situação de crise a ideia de que tais políticas seriam gastos desnecessários” (SILVA, 2021, p. 86). Após o impeachment de Dilma, com a ges tão de Michel Temer, a sanção da Emenda Constitucional nº 95, que estabeleceu o teto de gastos, fez com que “o cenário desse período a partir de 2016 já possa ser compreendido como desfinanciamento e descontinuidade estrutural das políti cas sociais, inclusas as políticas de igualdade racial” (SILVA, 2021, p. 10). Além disso, outras medidas foram tomadas, como a extinção da Seppir e a criação do Embora a década anterior tenha avançado em tópicos e pautas importantes do movimento negro e ampliado o diálogo entre sociedade civil e governos, as ações não foram suficientes para diminuir a desigualdade racial, a violência ou a discrepância entre a renda mensal de brancos e negros

O histórico da mobilização dos movimentos negros para exigir medidas do Estado brasileiro em relação ao problema da desigualdade racial mostra a importância de as ações voltadas para o tema estarem sempre presentes nos discursos, nos pla nos de governo e na legislação. De todo modo, sugiro pensar essa trajetória como uma correnteza,4 afinal, se hoje tenho a oportunidade de cursar uma pós-gradua ção como aluno proveniente de vagas para ações afirmativas, especificamente da reserva para negros, gostaria também de continuar na trilha dos meus ancestrais, na luta constante contra o racismo e pela igualdade racial.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 90 Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Hu manos, que na gestão seguinte passa a ser Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste artigo, procurou-se pensar o impacto das medidas citadas no reconheci mento da diversidade racial no país e a importância da implementação de políticas que, como aponta Kabengele Munanga, “visem ao respeito e ao reconhecimento da diferença, centradas na formação de uma nova cidadania por meio de uma pedago gia multicultural”. Segundo ele, Sem o reconhecimento da diversidade das culturas, a ideia de recomposição do mundo [em que pese o fim das práticas racistas e de todos os tipos de intolerância] arrisca cair na armadilha de um novo universalismo. Mas, sem essa busca de recomposição, a diversidade cultural só pode levar à guerra das culturas. No plano jurídico, o reconhecimento das identidades particulares no contexto nacional se configura como uma questão de justiça social e de direitos coletivos e é considerado com um dos aspectos das políticas de ações afirmativas (MUNANGA, 2015, p. 21).

NOTAS

2. Enquanto 20 de novembro marca o dia em que o líder do Quilombo dos Palmares foi morto pelas tropas portuguesas no ano de 1695, 13 de maio registra a sanção da Lei Áurea, assinada em 1888. A primeira data celebra historicamente a figura de Zumbi dos Palmares como representante da resistência à escravidão; e a segunda, em contraposição, valorizaria a iniciativa da Princesa Isabel.

3. Ver: IPEA. Retrato das desigualdades de gênero e raça. Brasília, DF: Ipea, 2015. Disponível em: sérieAcessocontent&view=article&id=29526br/portal/index.php?option=com_https://ipea.gov.em:9jun.2022.Veraindaahistóricado Atlas da violência, publicado também pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). Disponível em: em:ipea.gov.br/atlasviolencia/https://www..Acesso9jun.2022.

1. Falsa abolição é um conceito utilizado por estudiosos e militantes do movimento negro para ressaltar a insuficiência da Lei Áurea, oficializada em 1888 pela Princesa Isabel. Essa lei, que não foi fruto da benevolência da monarquia brasileira, apesar de ter posto um fim formal à escravidão no país, não ofereceu às negras e aos negros condições para que pudessem, de fato, sair da condição servil à qual haviam sido submetidos por três séculos.

4. Referência à canção “Correnteza – interlúdio pt. 2” (2021), de Thiago Elniño, em que se diz: “Pra que você chegasse até aqui / Muita água já rolou / Apesar das barreiras / Muita gente teve que ser correnteza / Pra que você chegasse até aqui / Seus ancestrais foram correnteza / E, se em algum momento você não tiver forças / Pra ser correnteza / Lembre-se que um dia será um ancestral / E que a água sempre encontra um caminho”. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BRASIL Lei nº 12.288, de 20 de julho de 2010. Institui o Estatuto da Igualdade Racial. Brasília, DF: Presidência da República, 2010. Disponível em: BRASILhtmAto2007-2010/2010/Lei/L12288.www.planalto.gov.br/ccivil_03/_http://.Acessoem:30maio2022. Balanço de governo: 20032010. Brasília, DF: Presidência da República, 2010. Disponível 10presidencia.gov.br/http://www.balancodegoverno.em:.Acessoem:maio2022.

GUILHERME MIRANDA SILVA é historiador formado pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestrando em antropologia social pela Universidade de São Paulo (USP), com pesquisa sobre os impactos de políticas públicas de incentivo na produção artística negra no estado de São Paulo. Atuou como educador popular na área de história da África e, atualmente, é produtor e pesquisador no Observatório Itaú Cultural, dedicando-se à pesquisa e à formação nas áreas de política e produção cultural e de economia criativa e da cultura.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 92 COMO CITAR SILVA, Guilherme Miranda. Em prol da igualdade racial: as políticas públicas e a importância do incentivo à cultura negra brasileira. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 32, 2022. DOI: org/10.53343/100521.32/10https://www.doi.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 93 CARNEIRO, Sueli. Escritos de uma vida. São Paulo: Pólen, 2019. DOMINGUES, Petrônio. Negro no Bra sil: histórias das lutas antirracistas. In: PEDROSA, Adriano; CARNEIRO, Amanda; MESQUITA, André (org.). Histórias afro-atlânticas: antologia. v. 2. São Paulo: Masp; Instituto Tomie Ohtake, 2018.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um racismo mascarado. 2. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017. PEREIRA, Amílcar. O mundo negro: relações raciais e a constituição do movimento negro contemporâneo no Brasil. Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2013. SILVA, André Oliveira da. Desfinan ciamento da política de igualdade racial: um estudo de programas e ações orçamentárias dos anos 1996-2019. 2021. Dissertação (Mes trado em Política Social) –Universi dade de Brasília, Brasília, 2021.

SILVA JR., Hédio. Conceito e demar cação histórica. In: SILVA JR., Hédio; SILVA BENTO, Maria Apa recida da; SILVA, Mário Rogério et al. (org.). Políticas públicas de promoção da igualdade racial São Paulo: Ceert, 2010. VELECI, Nailah Neves. Cadê Oxum no espelho constitucional? Os obs táculos sócio-políticos-culturais para o combate às violações dos direitos dos povos e comunida des tradicionais de terreiro. 2017. Dissertação (Mestrado em Direitos Humanos e Cidadania) – Universi dade de Brasília, Brasília, 2017.

EGHRARI, Iradj. Brasil e Durban: 20 anos depois São Paulo: Geledés, GONZALEZ2021., Lélia. A categoria políti co-cultural de amefricanidade. In: GONZALEZ. Lélia. Primavera para as rosas negras. São Paulo: Diáspo ra Africana, 2018. MUNANGA, Kabengele. Por que ensinar a história da África e do negro no Brasil de hoje? Revista do Instituto de Estudos Brasileiros, São Paulo, n. 62, p. 20-31, dez. 2015.

XAVIER, Fabiana Guimarães. Políticas públicas para a cultura negra: a Fundação Cultural Palmares. 2018. Dissertação (Mestrado em Cultura e Sociedade) – Universidade Fede ral da Bahia, Salvador, 2018.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 94

Entrevistas: A importância de políticas inclusivas para a arte e a cultura ERICA MALUNGUINHO, HILTON COBRA, NANÁ SODRÉ E NELL ARAÚJO Em entrevista à Revista Observatório Itaú Cultural, quatro especialistas fa lam sobre políticas inclusivas e a sua importância para a promoção da igual dade racial, trazendo diferentes pers pectivas. Confira!

A PARTICIPAÇÃO DEMOCRÁTICA E A ALTERNÂNCIA DE PODER ERICA MALUNGUINHO é educadora, artista plástica e política brasileira. Em 2018, foi eleita deputada estadual por São Paulo, sendo a primeira mulher trans na Assembleia Legislativa do estado. É mestra em estética e história da arte pela Universidade de São Paulo (USP) e criadora do Aparelha Luzia, espaço que fomenta produções artísticas e intelectuais na capital paulista.

A IMPORTÂNCIA DO INCENTIVO PÚBLICO À CULTURA E À PERFORMANCE NEGRA HILTON COBRA é ator, iluminador, gestor e membro fundador da Companhia dos Comuns, criada em 2001 com o objetivo de dar maior visibilidade às culturas negras e ampliar a presença de artistas negros no teatro brasileiro contemporâneo. Foi presidente da Fundação Cultural Palmares (20132014) e cocoordenador do Fórum nacional de performance negra (2005, 2006, 2009 e 2015). Acesse o conteúdo pelo QR Code ou pelo link: diversidade-culturalpolitica-inclusiva-revista-observatorio/itau-cultural/secoes/observatorio-itaucultural.org.br/https://www.

REVISTA OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL #32 PERSPECTIVAS DAS ANCESTRALIDADES 95 A CULTURA E A EDUCAÇÃO COMO ELEMENTOS TRANSFORMADORES NELL ARAÚJO é produtor cultural e gestor artístico. Possui formação em relações públicas com habilitação em marketing pela Universidade Católica do Salvador (Ucsal), tendo estudado inglês e cultura em Vancouver, no Canadá. É especialista em gestão cultural pela parceria entre o Itaú Cultural (IC) e o Instituto Singularidades e pós-graduando em urbanismo social no Instituto de Ensino e Pesquisa (Insper/SP). Em 2016, assumiu a gestão do Teatro Jorge Amado, desenvolvendo ações na cena soteropolitana para a democratização do espaço teatral, como o ExpoJorge, o Circuito Jorge Amado de música e o Teatroescola. VISIBILIDADE PARA ARTISTAS E PÚBLICOS NEGROS NANÁ SODRÉ é atriz, designer de iluminação e sócia-fundadora de O Poste Soluções Luminosas, grupo de teatro que se dedica ao trabalho de pesquisa voltado para o resgate antropológico das matrizes africanas, tendo o teatro físico como norte de suas ações. É licenciada em educação artística e artes cênicas pela Universidade Federal de Pernambuco (Ufpe), onde também atuou como docente nas disciplinas iluminação cênica e história do teatro.

Janaína | imagem: Mauricio Negro

MAURICIO NEGRO é artista multidisciplinar, ilustrador, escritor, designer e pesquisador. Bacharel em comunicação social pela Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM) e pós-graduado em gestão cultural pelo Senac/ SP, foi membro do conselho diretor da Sociedade dos Ilustradores do Brasil (SIB). Dedica-se a projetos individuais e coletivos, tradicionais e contemporâneos, frequentemente relacionados à Brasil.socioambientaldiversidadeeculturaldoComoautor,organizador ou ilustrador, tem livros publicados no país e no exterior, pelos quais recebeu prêmios e menções como o Sustainable Development Goals (SDG Book Club), da Organização das Nações Unidas (ONU); a seleção White Ravens (Alemanha); o Merit Award/Hiii Illustration (China); o Noma Encouragement Prize (Japão); a seleção CJ Picture Book Festival (Coreia do Sul); o Prêmio Jabuti; a seleção Conaculta (México); o Selo Cátedra 10, da Cátedra Unesco de Leitura PUC Rio; o Prêmio FNLIJ; o Prêmio Ages Infantil; e o Prêmio Editorial XX Sidi. Sua produção está disponível no portal https://beacons. page/negro

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Ensaio artístico POR MAURICIO NEGRO As ilustrações selecionadas para esta edição da revista a convite do Observatório Itaú Cultural foram elaboradas em diferentes contextos e momentos dos meus 35 anos de ativi dade. Há obras feitas de modo analógico, tradicional e arte sanal; outras foram finalizadas digitalmente. Há monotipia e pirogravura; e também colagem, pintura, material reciclado e técnica mista. O desafio foi buscar associar cada uma das imagens deste breve portfólio ao frescor de um artigo, uma entrevista ou um podcast da revista. Podem-se acompanhar, a seu modo e a seu tempo, as conexões menos ou mais eviden tes, as camadas de sentido que as imagens originais tinham, e as flechas ou curvas poéticas flertando agora com o papo reto ou sinuoso das reflexões e das perspectivas desses comentá rios e dessas gravações.

Acesse o conteúdo do ensaio pelo QR Code ou pelo link: mauricio-negroensaio-artistico-revista-observatorio/itau-cultural/secoes/observatorio-itaucultural.org.br/https://www.

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