Observatório 30 - Artes das Cenas - as cênicas no digital

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Revista

#30 Artes das Cenas – as cênicas no digital


Memória e Pesquisa / Itaú Cultural Revista Observatório Itaú Cultural - N. 30 (out./dez. 2021) – São Paulo : Itaú Cultural, 2021-. Trimestral ISSN 2447-7036 (versão on-line) 1. Artes da Cena. 2. Políticas culturais. 3. Gestão Cultural. 4. Arte e Tecnologia. 5. Teatro e Tecnologia. I. Itaú Cultural Bibliotecária Ana Luisa Constantino dos Santos CRB-8/10076

ISSN 2447-7036 DOI: https://www.doi.org/10.53343/100521.30 contato: observatorio@itaucultural.org.br


Sem título (2017) | imagem: Daniela Paoliello


Escavar o escuro (2015) | imagem: Daniela Paoliello


Expediente Conselho editorial Andréia Briene Carlos Gomes Felipe Sales Galiana Brasil Jader Rosa Luciana Modé

EQUIPE ITAÚ CULTURAL

Editora Luciana Modé

NÚCLEO OBSERVATÓRIO

NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO

Gerência Jader Rosa

Gerência Ana de Fátima Sousa

Coordenação Luciana Modé

Coordenação editorial Carlos Couto

Produção Andréia Briene

Curadoria de imagens André Seiti

Preparação de texto Letícia de Castro (terceirizada) Design digital Guilherme Ferreira Yoshiharu Arakaki Diagramação digital Iara Camargo (terceirizada) Produção editorial Luciana Araripe Captação Vocs (terceirizada) Tradução Carmen Carballal (terceirizada) Interpretação em Libras FFomin Acessibilidade e Libras (terceirizada) Ensaio artístico Daniela Paoliello Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão DWT Soluções Integradas (terceirizada)

Presidente Alfredo Setubal Diretor Eduardo Saron

NÚCLEO DE ARTES CÊNICAS Gerência Galiana Brasil Coordenação Carlos Gomes Produção Felipe Sales NÚCLEO DE AUDIOVISUAL E LITERATURA Gerência Claudiney Ferreira Coordenação Kety Fernandes Nassar

O Itaú Cultural integra a Fundação Itaú para Educação e Cultura. Saiba mais em fundacaoitau.org.br.

Produção audiovisual Amanda Lopes Edição Karina Fogaça

Produção editorial Luciana Araripe Design digital Guilherme Ferreira Yoshiharu Arakaki Publicação no site Duanne Ribeiro Fernanda Castello Branco NÚCLEO DE TECNOLOGIA Gerência Milton Dias de Freitas Jr. Especialista Kenzo Okamura


Escavar o escuro (2015) | imagem: Daniela Paoliello


Revista Observatório #30 Artes das cenas A 30ª edição da Revista Observatório Itaú Cultural aborda os impactos da tecnologia nos processos de criação e fruição das artes cênicas, as interações entre artistas e públicos mediadas por telas e dispositivos tecnológicos no cenário pandêmico e os principais desafios para todo o setor. Em sua primeira edição totalmente digital, além de artigos de pesquisadores da área, traz uma entrevista em vídeo com o crítico e historiador argentino Jorge Dubatti e episódios de podcast com convidados de diversas regiões do Brasil.

Sumário 8

Entrevista de Héctor Briones com Jorge Dubatti

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Relações entre teatro e tecnologia, por Mariana Lima Muniz

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Eletricidades respigadas, por Daniele Avila Small

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Podcast Observe

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omo criar campos de afecção por meio do suporte telemático? C Por ações ético-estético-políticas na ressensibilização dos corpos,

por Walmeri Ribeiro

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Conexões e continuidades, por Luciana Romagnolli

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Políticas para as Artes Cênicas Do que precisamos, afinal?, por Maria Carolina Vasconcelos Oliveira Por uma gestão para a diversidade, por Jan Moura O festival tá on: artes cênicas na internet, por Felipe de Assis

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cena das artes: dimensões econômicas das artes cênicas no A Brasil e a institucionalização dos incentivos públicos e privados,

por Larissa Couto da Silva

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rte e tecnologia: itinerários de reexistências e transformações A na arte do circo, por Daniel de Carvalho Lopes e Erminia Silva

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Ensaio artístico, por Daniela Paoliello


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1. Entrevista de Héctor Briones com Jorge Dubatti Esta entrevista realizada por Héctor Briones com o professor e teórico teatral argentino Jorge Dubatti faz parte da 30ª edição da Revista Observatório Itaú Cultural, dedicada às artes cênicas em tempos de pandemia. Discutida em diversos artigos da publicação, a relação entre tecnologia e cena gerada neste complexo contexto sociocultural é abordada a partir de dois conceitos-chave no pensamento teatral de Dubatti: o convívio e o tecnovívio. Um dos temas centrais da conversa é como as problemáticas de ordem local versus global afetam os modos de convívio na sociedade contemporânea, globalizada e tecnológica e impactam a arte teatral.

Acesse o conteúdo da entrevista pelo QR Code ou pelo link: https://www. itaucultural.org.br/ entrevista-hectorbriones-jorge-dubatti

A partir de uma concepção de teatro como acontecimento, Dubatti vem desenvolvendo uma filosofia do teatro que se desdobra também em ações culturais de alcance internacional. Um exemplo é a Escola de Espectadores, iniciada por ele na Argentina e hoje com mais de 60 unidades em diversos países (Chile, Costa Rica, República Dominicana, França e Polônia, entre outros). A crise sanitária deu uma nova repercussão ao seu trabalho, em especial às suas indagações sobre convívio e tecnovívio. É desse renovado alcance que trata esta entrevista, com agudas contribuições para pensar as atuais práticas tecnoviviais, que possibilitaram a continuidade da prática teatral mesmo na falta do convívio. Debate-se também a importância, no contexto da teoria teatral mundial, de forjar um pensar teatral (uma filosofia do teatro) a partir das nossas próprias territorialidades.

HÉCTOR BRIONES Artista e pesquisador teatral, é professor do Instituto de Cultura e Arte da Universidade Federal do Ceará (ICA/UFC). JORGE DUBATTI Crítico, historiador e professor universitário especializado em teatro e artes. É diretor-geral da Sala de Aula de Espectadores de Teatro da Universidade Nacional Autônoma do México (Unam); participa do projeto École du

Spectateur de Nouvelle-Aquitaine, na França, para a criação da primeira escola de espectadores digitais; e é co-coordenador da Escola Internacional de Espectadores da Ibero-América e do Caribe (Eiec), com sede institucional no Festival internacional de teatro de Manizales, na Colômbia. Autor de diversas publicações, em 2007 e 2017, recebeu o Prêmio Konex de Jornalismo-Comunicação (Diploma de Mérito) nas categorias Crítica Literária e


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Crítica de Espetáculos de Teatro-Dança-Cinema, respectivamente. Em 2015 e 2018, recebeu também o Prêmio Excelência Acadêmica da reitoria da Universidade de Buenos Aires. É presidente da Associação Argentina de Espectadores de Teatro e Artes Cênicas (Aetae) desde 2019 e foi secretário de Relações

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Internacionais da Associação Argentina de Pesquisa e Crítica Teatral (Aincrit) entre 2018 e 2020. Foi nomeado, em 2020, padrinho honorário da Biblioteca Teatral Verónica Bucci, da delegação de Santa Fé, pela Associação Argentina de Atores. Dirige o programa El tiempo y el teatro, da Rádio Nacional AM870.


Exílio (2015) | imagem: Daniela Paoliello


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2. Relações entre teatro e tecnologia MARIANA LIMA MUNIZ https://orcid.org/0000-0003-3807-5860

E no princípio... era a tecnologia. Parafraseando Gênesis, componho com restos1 o início desta linha histórica da relação entre teatro e tecnologia. Em razão do escopo do trabalho, tive que fazer escolhas e, ao fazê-las, ausências são inevitáveis. Minha intenção foi a de traçar uma perspectiva histórica a partir de acontecimentos conhecidos na tradição do teatro e, assim, colaborar para o entendimento da relação entre teatro e tecnologia na atualidade.

TÉCNICA E TECNOLOGIA Pode-se entender a tecnologia como o produto final de um estudo continuado, do aperfeiçoamento de uma técnica. Uma vez completo o estudo, a técnica adquire uma aplicabilidade. O instrumento ou dispositivo derivado é o que consideramos a tecnologia. Por exemplo, a feitura de um papiro por meio de fibras naturais é uma técnica desenvolvida no Egito Antigo. O papiro, como produto dessa técnica, é a tecnologia. Ou seja, você não precisa saber a técnica de feitura do papiro para beneficiar-se da sua tecnologia como dispositivo de registro escrito.

Todo desenvolvimento tecnológico modifica e é modificado pela cultura na qual se insere. Toda arte também modifica e é modificada pelo seu contexto histórico e tecnológico. Ao colocar o teatro em contraposição à tecnologia na atualidade, além de negar sua própria história, o relegamos ao lugar de animal exótico em Todo desenvolvimento tecnológico modifica um zoológico: um ser vivo retirado de e é modificado pela cultura na qual se insere. seu hábitat natural, “conservado” em Toda arte também modifica e é modificada um ambiente artificial para satisfazer a pelo seu contexto histórico e tecnológico curiosidade de visitantes esporádicos. O teatro é feito por pessoas, visto por pessoas; e essas pessoas viveram, vivem e viverão nos seus tempos. Por isso, o teatro foi, é e sempre será contemporâneo. TEATRO GREGO O teatro grego da Antiguidade (século V a.C.) é um exemplo de fusão entre a teatralidade e a tecnologia de ponta. A própria construção da semiarena grega é uma inovação técnica considerável. No espaço cênico (skéne e orquestra) havia uma série de plataformas giratórias, gruas e alçapões, entre outros dispositivos que se organizavam em íntima relação com as tragédias e as comédias daquele tempo. A partir de Eurípedes, por exemplo, a introdução de deuses ao final das tragédias como forma de desenlace se dá por meio de uma grua, chamada deus ex machina, que trazia o ator do alto da skéne para a orquestra. A grua também deu nome à solução dramatúrgica, demonstrando a simbiose entre cena e inovação tecnológica.


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Quem já teve a oportunidade de estar em um teatro greco-romano pôde observar como a voz se expande a partir do centro da arena em direção à plateia, o que mostra o conhecimento de acústica avançado dos gregos antigos. Às máscaras do teatro clássico grego foi acrescentado um cano na região da boca do ator que servia como uma espécie de megafone, ampliando ainda mais a projeção da voz. Essas mesmas máscaras, maiores que uma cabeça humana, possibilitavam maior visibilidade aos atores. Também havia coturnos com plataformas que os deixavam mais altos. Esses dispositivos tecnológicos davam a ilusão de que se tratava de humanos maiores que o normal, em sincronia com o proposto por Aristóteles em sua Poética: “a tragédia é imitação de homens melhores que nós, importa seguir o exemplo dos bons retratistas, os quais, ao produzir a forma peculiar dos modelos, respeitando embora a semelhança, os embelezam” (ARISTÓTELES, 2003, p. 124).

O teatro grego da Antiguidade (século V a.C.) é um exemplo de fusão entre a teatralidade e a tecnologia de ponta. A própria construção da semiarena grega é uma inovação técnica considerável

TEATRO DE SOMBRAS CHINÊS A história do teatro na China remonta a cinco milênios e atravessa impérios e dinastias. Dentre a riqueza de formas teatrais da China Antiga, destacamos o teatro de sombras iniciado no período do imperador Wu-ti (141-87 a.C.). Nele, a encenação se dá por meio da projeção da sombra de figuras que representam personagens e elementos da cena em uma tela de pano, tendo uma vela como foco de luz.

Conforme a história contada por Ssu-ma Ch’ien, um homem chamado Sha Wong [...] veio diante do imperador Wu-ti em 121 a.C. para exibir sua habilidade em comunicar-se com os fantasmas e espíritos dos mortos. [...] Com o auxílio de sua arte, Shao Wong fez com que as imagens dos mortos e do deus dos lares aparecessem à noite. O imperador a viu a uma certa distância, atrás de uma cortina (BERTHOLD, 2004, p. 55). A história recontada por Margot Berthold destaca as reações de adoração e medo provocadas pela tecnologia. Como um foco de luz que projeta uma imagem em uma tela, podemos pensar o teatro de sombras chinês como um pré-cinema. Uma experiência que, no século II a.C., já expandia a noção de presença para além da fisicalidade, criando uma presença virtual que, para o imperador Wu-ti, só poderia ser a dos mortos. BAIXA IDADE MÉDIA E RENASCIMENTO Durante a Baixa Idade Média (séculos XI a XV d.C.), o teatro ganhou o entorno das catedrais em carroças nas quais eram representadas passagens bíblicas. Em cada uma das laterais da igreja havia uma carroça na qual era apresentada a mesma cena uma e outra vez. Dessa forma, eram os espectadores que se deslocavam de carroça em carroça e fruíam da obra sem que houvesse um ponto certo de partida ou chegada, em uma ruptura com a recepção temporal linear da obra de tradição greco-romana.

No Renascimento, o teatro sai das igrejas. Na Espanha, por exemplo, surgem os “currais de comédia” (século XVII), espaço composto da junção dos pátios


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internos de três casas: uma no fundo e duas nas laterais. Junto à casa do fundo, montava-se um tablado de madeira, criando três níveis: o inferior (abaixo do tablado, com alçapões para a aparição de personagens), o médio (o tablado em si) e o superior (os balcões da casa). A existência dos três níveis de atuação possibilitava grande dinamismo às peças. O mesmo se observa no teatro The Globe, na Inglaterra elisabetana (séculos XVI e XVII). A partir de um cenário fixo, os autores construíam peças que exploravam o jogo de cena possibilitado pela estrutura de três níveis. Um exemplo é a famosa cena do balcão de Romeu e Julieta, de Shakespeare. FIAT LUX A grande mudança na forma de assistir e de fazer teatro propiciada por uma nova tecnologia foi a introdução da iluminação artificial na cena. Antes disso, o teatro era uma atividade vespertina, normalmente realizada a céu aberto e somente durante o verão.

Quando se introduziu a iluminação artificial, primeiramente a gás, no final do século XIX e, logo depois, a iluminação elétrica no século XX, houve uma mudança fundamental na forma como as pessoas se relacionavam com o teatro. O teatro transformou-se na principal atividade noturna da sociedade urbana europeia, A grande mudança na forma de assistir e de fazer aonde se vai para ver mas, principal- teatro propiciada por uma nova tecnologia foi a mente, para ser visto. O teatro passou, introdução da iluminação artificial na cena então, de uma atividade que envolvia diversos setores da sociedade, para ser o lazer predileto de uma elite. É claro que o teatro popular continuou presente, ocorrendo, muitas vezes, do lado de fora dos grandes edifícios teatrais. Para além da mudança comportamental e do lugar do teatro na sociedade do final do século XIX, a iluminação possibilitou um controle técnico da cena, coincidindo com a difusão da concepção de direção de cena. Segundo Berilo Nosella: Sendo a iluminação um dos componentes fundamentais para elaboracão visual da cena no que tange ao desenho de sua espacialidade e especialmente dependente dos recursos tecnológicos disponíveis em seu momento histórico, acreditamos que haja aí um elemento fundamental para compreendermos, em conjunto interligado, a prática da cena e suas renovações entre o início do século XIX e o do XX (NOSELLA, 2019, p. 11-12). CINEMA O cinema do final do século XIX e início do século XX pode se definir, tecnicamente, por um sequenciamento mecânico de fotografias que dá a ilusão de movimento ao projetar as imagens em uma tela por meio de uma fonte de luz que atravessa a película na qual estão impressas. Poderíamos afirmar que o cinema é uma remediação (BOLTER; GRUSIN, 2000) da fotografia, pois parte dessa mídia para criar uma outra.

Se os irmãos Lumière pensam o cinema como um registro da realidade, como no filme A saída dos operários da fábrica (1895), Thomas Edison direciona seu kine-


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toscópio para cenas circenses, em 1893. Já no século XX, Georges Méliès, que era diretor de teatro, introduziu o ilusionismo e a fantasia na arte cinematográfica usando truques próprios do teatro – como a maquiagem e a mudança de cenários – e inovando na edição, como no filme Viagem à Lua (1902). Assim, o cinema também pode ser entendido como uma remediação do teatro, pois alimentou-se da tradição teatral para desenvolver um dos seus ramos mais potentes até hoje: a ficção. Por outro lado, liberou o teatro da necessidade de representação do real. Nada pode superar o fotorrealismo cinematográfico, e as vanguardas históricas teatrais usaram essa liberdade para romper com o teatro realista e naturalista no início do século XX. A projeção de imagens é explorada também no teatro desde o surgimento do cinema. Começando por Erwin Piscator, no início do século XX, e chegando aos dias de hoje, podemos citar os diretores Robert Lepage e Christiane Jatahy como expoentes dessa relação intrínseca entre teatro e cinema. WEB 2.0 A web 2.0 modificou substancialmente a forma de produzir e consumir imagens, sons, textos e outros conteúdos digitais. Houve uma aproximação nunca antes vista entre quem produz e quem assiste aos conteúdos on-line. Várias redes sociais e plataformas proporcionaram a emergência de novos criadores, que, familiarizados com as possibilidades dessas mídias, inovaram e modificaram a forma de nos relacionarmos com as produções audiovisuais.

Desde os anos 2000, artistas de diversas áreas começaram a explorar a internet como meio de trabalho. Mais comum no campo das artes visuais, da performance e das poéticas híbridas, a internet também foi ocupada como espaço de criação artística pelo teatro. Muitas ações teatrais a exploraram como meio de expressão, incluindo-a em cena ou fazendo dela o espaço cênico. Por ser um território sem coordenação espacial, a internet produz um importante tensionamento no conceito de teatro como convívio entre artistas e público em uma mesma coordenada espaçotemporal (MUNIZ; DUBATTI, 2018). Apesar disso, a experimentação da virtualidade na cena teatral contemporânea se fez presente desde o início da internet. PANDEMIA DO NOVO CORONAVÍRUS Em decorrência da pandemia causada pelo novo coronavírus, em 2020 e 2021, houve a necessidade de fechamento dos teatros para a contenção do vírus. Com as pessoas confinadas em suas casas, artistas do teatro recorreram à internet como forma de continuar sua atividade criativa. Daí, o teatro pela ou na internet, que até então podia ser chamado de cena de exceção (MUNIZ; DUBATTI, 2018), tornou-se o teatro do possível.

Ao adentrar esse universo digital, o teatro teve que se redefinir. Sem a presença física na mesma coordenada espacial, teve que ampliar o seu conceito de presença com o fim de continuar vivo e necessário. Como toda mídia da internet é digital, os artistas de teatro tiveram que lidar com as tecnologias digitais para produzir suas


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poéticas. Inúmeras experimentações a experimentação da virtualidade na cena foram e estão sendo desenvolvidas no teatral contemporânea se fez presente desde campo do teatro na internet. o início da internet No pós-pandemia, que acontecerá em temporalidades diferentes nos diferentes países, a experimentação desenvolvida no meio digital durante esse tempo irá impactar o teatro vindouro. Esse impacto ainda não tem como ser definido. Pode se dar um rechaço de toda virtualidade, reafirmando-se a territorialidade da cena teatral. Também pode haver um hibridismo, trazendo o teatro para um território liminar entre o físico e o digital. E pode, ainda, haver grupos que continuem desenvolvendo seu trabalho exclusivamente pela internet. Essa miríade de possibilidades apenas reafirma a capacidade do teatro de se reinventar ao longo de sua história. CONSIDERAÇÕES FINAIS Desde a Pré-História, quando a técnica estava vinculada a questões do pensamento mágico, os dispositivos técnicos – a tecnologia – estavam situados no lugar da adoração e, ao mesmo tempo, do medo.

Na Grécia Antiga, técnica e arte compartilhavam o mesmo vocábulo, Ars, que “compreende as atividades práticas, desde a elaboração de leis e a habilidade para contar e medir [...] até as artes plásticas ou belas artes, estas últimas consideradas a mais alta expressão da tecnicidade humana” (LEMOS, 2015, p. 26). Já na modernidade, a técnica e a tecnologia tornam-se entidades separadas da cultura. A separação entre os fenômenos da natureza e o espírito, ideal iluminista, possibilitou um grande avanço da ciência, desvinculada da tutela religiosa. Ao mesmo tempo, criou uma ciência desatada da cultura (LATOUR, 2019). Estabeleceu-se um senso comum de que arte e ciência não se alimentam mutuamente. A partir dessa perspectiva, como entender que ciência e arte compartilham tantas afinidades, além de todo um vocabulário, tal como criatividade, invenção, inovação etc.? Na pós-modernidade, vivemos uma multiplicidade midiática e tecnológica talvez sem parâmetros históricos em relação à velocidade das inovações e ao uso constante de dispositivos que amplificam o alcance humano. Vivemos em uma cibercultura, na qual há uma “sinergia entre a vida social e os dispositivos eletrônicos e suas redes telemáticas. Os dispositivos mudam, as associações entre humanos e não humanos, que formam esse social, também” (LEMOS, 2015, p. 11). Para finalizar esta linha temporal, conto uma anedota que acredito sintetizar meu pensamento sobre as relações entre teatro e tecnologia. Certa vez, em uma palestra, fui indagada se não tinha receio de que as inteligências artificiais tomassem o lugar dos atores, ao que respondi: “Os atores sempre conviveram com inteligências artificiais. Não vejo uma diferença conceitual entre uma inteligência artificial do tipo humanoide e uma marionete. Talvez a única diferença seja o tamanho e a distância dos fios, físicos ou não, que as unem às mãos humanas de quem as manipula”.


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COMO CITAR ESTE ARTIGO MUNIZ, Mariana. Relações entre teatro e tecnologia. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.30.01 MARIANA MUNIZ é atriz, diretora e professora titular da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Contato: marianamuniz@ufmg.br. NOTAS 1. Em seu livro A invenção de si e do mundo (Autêntica, 2007), Virgínia Kastrup diz que a invenção é uma composição de restos.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ARISTÓTELES. Poética. 7. ed. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2003. BERTHOLD, M. História mundial do teatro. São Paulo: Editora Perspectiva, 2004. BOLTER, J. D.; GRUSIN, R. Remediation. Cambridge: MIT University Press, 2000. LATOUR, B. Jamais fomos modernos. São Paulo: Editora 34, 2019. LEMOS, A. Cibercultura. Porto Alegre: Editora Sulina, 2015. NOSELLA, B. A dramaturgia como fonte para uma história da iluminação cênica: Pirandello capocomico iluminador. Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 9, n. 4, e84817, 2019. MUNIZ, M. L.; DUBATTI, J. Cena de exceção: o teatro neotecnológico em Belo Horizonte (Brasil) e Buenos Aires (Argentina). Revista Brasileira de Estudos da Presença, Porto Alegre, v. 8, n. 2, p. 366-389, abr./ jun. 2018.


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Linha do tempo Relações entre teatro e tecnologia POR MARIANA LIMA MUNIZ

Teatro grego antigo

SÉCULO V A.C. – GRÉCIA ANTIGA Figura 1: Ilustração de estrutura do teatro grego antigo, na qual se vê a skéne (espaço da cena) ao fundo e a orquestra. Disponível em: https://www.todamateria.com.br/teatro-grego. Acesso em: 26 jul. 2021.

Os recursos técnicos e tecnológicos estavam presentes na cena teatral desde a sua origem no Ocidente, com o teatro grego antigo. O recurso do deus ex machina, por exemplo, representa uma forte ligação entre técnica, ritual e teatro.

Teatro de sombras chinês

SÉCULO II A.C. ATÉ A ATUALIDADE – CHINA Figura 2: Teatro de sombras chinês contemporâneo, no qual se pode observar a imagem projetada na tela por meio de uma fonte de luz. Disponível em: https://chinavistos.com.br/ashistorias-do-teatro-de-sombras. Acesso em: 26 jul. 2021.

A projeção de sombras em uma tela representando personagens e objetos é uma forma de teatro que se popularizou na China e se mantém até os dias atuais, influenciando também o teatro ocidental. É um exemplo de recurso técnico e tecnológico intimamente relacionado à estética teatral.


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Teatro renascentista

SÉCULO XVII – ESPANHA Figura 3: Ilustração de “curral de comédias” espanhol do século XVII, na qual se observam os três planos da cena. Disponível em: http://sevillamiatours.com/corral-comediasdona-elvira. Acesso em: 26 jul. 2021.

Estrutura cênica e recursos técnicos e de maquinário do “curral de comédias”, onde eram realizadas as apresentações durante todo o Século de Ouro espanhol. Mostra a relação entre a técnica e a cena no período do teatro renascentista.

Cinema

1902 – FRANÇA Figura 4: Fotograma do filme Viagem à Lua (1902), de Georges Méliès. Disponível em: https://www.planocritico.com/ critica-viagem-a-lua-1902. Acesso em: 26 jul. 2021.

Filme Viagem à Lua, de Georges Méliès. Início do cinema, com a introdução da ficção e de recursos de ilusionismo teatral misturados à concepção da edição como expediente narrativo e fantástico.

Teatro na pandemia 2020 – BRASIL

Figura 5: Cena do espetáculo Clã-destinos, do grupo Clowns de Shakespeare, apresentado virtualmente em 2020. Disponível em: https://www.saibamais.jor.br/clowns-desheakespeare-se-reinventa-e-mostra-o-mundo-do-avesso-emexperiencia-cenica-virtual. Acesso em: 26 jul. 2021.

Espetáculo Clã-destinos, do grupo de teatro Clowns de Shakespeare. Com a pandemia do novo coronavírus, grupos de teatro do Brasil e do mundo exploraram o universo digital como forma de resistência, dada a impossibilidade do encontro físico. Essa experimentação se mostrou extremamente instigante e inventiva.


Escavar o escuro (2015) | imagem: Daniela Paoliello


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3. Eletricidades respigadas DANIELE AVILA SMALL https://orcid.org/0000-0002-4479-3052

Nas linhas seguintes, experimento caminhar por uma trilha paralela em uma floresta que tenho visitado com frequência para refletir (no sentido de “pensar a partir de”, mas também de “espelhar”, de “dar a ver de algum modo”) sobre as referências em jogo em Estudos para cenas elétricas, curso on-line conduzido por Juliana Jardim1 na Escola Itaú Cultural. Entre maio e julho de 2021, tive a oportunidade de acompanhar suas 36 horas e 12 encontros semanais justamente para produzir este texto. A floresta a que me refiro é o universo da escrita ensaística, que está sendo aqui revisitado para que eu tente elaborar sobre a condição do espectador e da espectadora de teatro na plataforma Zoom; sobre as relações que se podem estabelecer entre quem se apresenta e quem assiste; e sobre as correntes elétricas que podem circular na convivialidade remota dos aplicativos de videoconferência on-line. Em um primeiro momento, estudei o ensaio como forma para a crítica de teatro na contemporaneidade. Isso se deu quando desenvolvi, em 2008 e 2009, a pesquisa que resultou no livro O crítico ignorante – uma negociação teórica meio complicada. Mais recentemente, tenho pensado sobre o ensaio nas artes da cena, considerando escritas dramatúrgicas ensaísticas; e, mais especificamente, tenho me detido sobre a linguagem da palestra-performance, que aparece na minha investigação de doutorado em artes cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), concluído em 2019. Desde o início da pandemia, venho pensando nessa linguagem com ainda mais interesse, diante da explosão de criações on-line. Essa última fase da pesquisa ganhou desdobramentos na segunda edição da Complexo Sul – plataforma de intercâmbio internacional,2 especialmente com a realização do laboratório criativo Museu, teatro e história, que explicitei na palestra on-line Palestra-performance, crítica de artista. São esses os itens que estão na sacola que levo comigo no percurso da escrita deste texto. Acho que foi por conta de algumas dessas questões e do meu declarado entusiasmo pelo teatro on-line, ou digital, que fui convidada a fazê-lo. Há quem ainda desconfie e implique com essa denominação, talvez alegando que é cedo para nomear um fenômeno tão recente. Acho importante lembrar que o teatro on-line não surgiu com a pandemia. Desde que existe internet banda larga nas casas das pessoas, houve experimentações diversas nesse sentido e é possível encontrar reflexões sobre o assunto em livros e artigos publicados na última década.3 É evidente que a crise sanitária em que (ainda) vivemos nos forçou a experimentar as relações de interação virtual em uma dimensão sem precedentes. As ferramentas caseiras proporcionadas pelo Zoom e por outros aplicativos, bem como as funcionalidades de transmissão ao vivo das redes sociais, contribuíram significativamente para essa abertura. Décadas de performances audiovisuais, videodança e experimentações entre o teatro e o vídeo poderiam ser suficientes para encorpar a discussão, mas parece que é parte da cultura do teatro ser excessivamente voltada para si mesma e fervorosamente apegada às mitologias que romantizam as


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práticas da cena. As situações de convívio são envolvidas em uma aura de exclusividade, como se a experiência do aqui e do agora fosse algo superior, como uma eletricidade automática, garantida e infalível na relação de fruição que se dá pela presença de corpos no mesmo espaço ao mesmo tempo.4 Entre as propostas do curso Estudos para cenas elétricas, em que a categoria teatro on-line, ou digital, não estava diretamente nomeada, houve um chamado para experimentar a cena no ambiente virtual sem ênfase na saudade do espaço cênico, procurando perceber o que há de análogo na relação entre cena e público tanto Entre as propostas do curso Estudos para cenas no presencial quanto no on-line. Para elétricas, em que a categoria teatro on-line, levar adiante essa proposta, Juliana ou digital, não estava diretamente nomeada, Jardim convidou três pessoas (Luiz Pi- houve um chamado para experimentar a cena mentel,5 Renato Sircilli6 e Tatiana Nas- no ambiente virtual sem ênfase na saudade do cimento7), que trouxeram suas próprias espaço cênico, procurando perceber o que há de proposições, e ela mesma pautou as análogo na relação entre cena e público tanto no muitas conversas e exercícios com al- presencial quanto no on-line guns elementos. Entre eles, destacam-se: a forma do ensaio segundo Michel de Montaigne; o cinema de Agnès Varda; e ideias de ação e de montagem para pensar o teatro e o cinema, respectivamente. Daqui, puxo dois fios que se entrelaçam – a forma do ensaio e o modo criativo de Varda – para compartilhar o que penso sobre a fruição estética no meio virtual, considerando a minha filiação ao teatro e toda a sua história, feita de imensas descontinuidades e inúmeras rupturas. INQUIRINDO E IGNORANDO É longo e complexo o debate sobre o ensaio, então vou precisar pular algumas etapas para colocar aqui apenas o que me parece essencial para esta breve caminhada. No século XVI, Michel de Montaigne publicou uma série de textos que ele nomeou, em francês, Essais, o que quer dizer “ensaios” ou “tentativas”. Tentativa é uma palavra que me faz visualizar a convivência entre a ousadia e a inconclusão, uma oscilação incessante entre sucesso e fracasso. Jean Starobinski destaca um fragmento de Montaigne na sua tentativa de definição dessa prática de escrita: “Vou inquirindo e ignorando”. Ele também fala em “pensar com as mãos”. Ensaiar é pensar com as mãos. O ensaio pode ser considerado uma forma da escrita que é, ao mesmo tempo, filosófica e literária (que conjuga criação e convicção, como diria Max Bense). György Lukács e Theodor Adorno vão se perguntar sobre a possibilidade de o ensaio ser uma forma artística. Entre o saber e o criar, entre a ciência e a arte, o ensaio é uma forma que está com os pés no chão e a cabeça nas nuvens, disse alguém, mas já não lembro quem.

Com Montaigne e Michel Foucault, podemos afirmar que o ensaio é uma escrita de si, uma forma de ocupar-se de si, de ensaiar-se a si mesmo no encontro com as coisas do mundo. E, se o ensaio é a forma literária mais livre que existe, o que ela faz com as categorias com que se relaciona? A escrita ensaística no teatro ou no cinema, por exemplo, pressupõe necessariamente a liberdade superlativa quanto às definições mais tradicionais das categorias teatro e cinema? Então eu poderia dizer que, nas artes, o “modo ensaiante” vai inquirindo e ignorando as premissas dadas, e com isso convida quem assiste a inquirir e ignorar também. O ensaio é


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uma forma autorreflexiva, que pensa a si mesma no processo da escrita, que se tateia enquanto se mostra. É também uma escrita que indispõe o que se conhece. Indispõe a filosofia, o cinema, o teatro. Em textos publicados no início dos anos 2000, Jorge Larrosa vai escrever sobre o ensaio não como uma forma, mas como uma operação. Entendo que operar é fazer uma intervenção, agenciando as ferramentas dadas de acordo com deescrita ensaística é evidente na linguagem da terminadas intenções. Vale a aproxipalestra-performance. Está ali a justaposição mação com a ideia de procedimento cientre refletir e atuar, pensar e fazer, estudar e rúrgico: uma ação que atua sobre uma sonhar. É pesquisar com as ferramentas da arte. condição e que tem até mesmo uma Posicionar-se enquanto (se) inventa. Colocar o dose de violência, mas uma violência corpo no meio do pensamento certeira. É preciso abrir para operar. Abrir a linguagem, por exemplo. Cortar a linguagem, retirar ou colocar elementos, provocar alterações. Uma das operações mais difíceis do ensaio, segundo Larrosa, é lidar com o eu em transformação. O ensaio é uma escrita na primeira pessoa em que o eu é uma posição discursiva e pensante, não necessariamente um tema. Por isso, entendo que a escrita ensaística é evidente na linguagem da palestra-performance. Está ali a justaposição entre refletir e atuar, pensar e fazer, estudar e sonhar. É pesquisar com as ferramentas da arte. Posicionar-se enquanto (se) inventa. Colocar o corpo no meio do pensamento. Às vezes, acho que eu deveria me referir a essa modalidade como ensaio-performance, porque a tônica desses “textos” não é acadêmica, não é a do tratado nem a do artigo científico, que geralmente informam a ideia de palestra ou conferência. CATADORA DE SI Outra das referências trazidas para o curso foi o filme Os catadores e eu, de Agnès Varda, cineasta francesa que só vim a conhecer melhor depois de sua morte, em 2019. Ela já tinha se tornado um farol para mim depois que vi e revi algumas vezes seu incomparável As praias de Agnès, que considero exemplar para se pensar a escrita ensaística (no cinema, mas também nas narrativas de si, de modo geral). A poética do filme é a de quem caminha por uma experiência, de quem vai tateando a reflexão e se deixando tatear pelos acontecimentos, pela memória – e por quem assiste.

Em Os catadores e eu, realizado no ano 2000, Varda encontra no seu objeto de investigação um espelhamento eloquente para o seu processo criativo. Ela filma e conversa com pessoas que catam, que respigam alimentos descartados no campo ou na cidade, e não apenas por necessidade, mas também por ser uma atitude ética em relação ao desperdício e à desigualdade. Acredito que o hábito de respigar reflete o modo como a cineasta se relaciona com as obras (e as coisas banais do cotidiano). A Varda artista cria como a Varda espectadora vê. Se ela escreve como quem ensaia é porque vê o mundo assim: tateando, inquirindo e ignorando, amealhando fragmentos e colocando a si mesma como medida, como lente. Para mim, fica visível como a operação do ensaio é um modo de se alimentar pelas beiradas, do que está ao alcance das mãos, reconhecendo valor no que parece des-


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cartável. Um modo de estar no mundo que não acredita em acúmulos, excessos, abundâncias. A escrita ensaística é uma escrita catadora. Eu estava pensando assim, andando em círculos nessas questões, achando minhas associações tão evidentes que não sabia como fazer delas um texto, quando resolvi assistir ao filme que Varda fez dois anos depois, em 2002, revisitando os catadores e as catadoras que conheceu. Ela vai catar uma conversa que tinha ficado para trás. Reencontra um catador que é estudioso da psicanálise e, na conversa entre os dois, ele diz que o trabalho desse campo é um trabalho de catar, de respigar, porque as chaves de acesso ao processo de análise não estão no discurso elaborado do analisado, nas palavras escolhidas por ele, e sim nas palavras que escapam. Quem analisa cata o que cai da fala, o que aparece de relance nas bordas. Nas cenas elétricas, é a eletricidade respigada que interessa. A energia da convivialidade remota é muitas vezes tomada como imprestável, ilegítima, desprezível, artificial; é apressadamente subestimada e deixada de lado, considerada traiçoeira e inútil a partir de falsas simetrias. A eletricidade respigada está na cumplicidade impensada, na experiência inaudita, no engajamento de as- A eletricidade respigada está na cumplicidade salto que liga a luz da ação, que aciona impensada, na experiência inaudita, no a imaginação crítica. Segundo aquele engajamento de assalto que liga a luz da ação, psicanalista, analista e analisado são que aciona a imaginação crítica pobres em saber. O analista não sabe a priori o que vai pinçar. O analisado não sabe o que vai deixar ver no seu dizer. E é nessa dupla disponibilidade que a coisa se dá. Acho que é como no teatro, seja presencial ou virtual, desta ou daquela modalidade, e também em outras situações de arte. A eletricidade acontece também (e, quem sabe, principalmente) no desencontro. Quando eu, por exemplo, me sinto endereçada pelo que os artistas nem se dão conta de que estão enunciando. No teatro, a atitude de quem já sabe e tem toda a certeza do que é ou de como se faz teatro só atrapalha. Talvez seja possível pensar que a corrente que nos move e nos conecta no Zoom não é aquela plantada para ser colhida de acordo com os protocolos das mais convencionais criações do teatro. No ambiente virtual, parece-me que está todo mundo pisando o mesmo chão do não saber. E quem está em paz com o não saber está com o sinal aberto para sintonizar. O não saber é uma festa para as eletricidades imprevistas. Mas isso não é nenhuma novidade, não é invenção das experiências on-line. As mais eletrizantes criações presenciais das artes da cena operam nessa mesma chave de relação com o seu público. Por isso, considero as peças on-line um modo de pesquisa de linguagem da cena e não um fenômeno alienígena. Não estamos assim tão distantes de tudo o que estava sendo experimentado até 2019. O ZOOM E “EU” O título original do filme de Varda é Les glaneurs et la glaneuse, literalmente, “os catadores e a catadora”. Em Portugal, a tradução optou por Os respigadores e a respigadora. No Brasil, o filme foi lançado com o título Os catadores e eu. Acho essa tradução uma felicidade porque, como já coloquei antes, a primeira pessoa do singular é determinante no escrever-caminhar do ensaio e esse filme é, para mim, uma espécie de ensaio no sentido de Montaigne. A catadora do título original co-


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loca-se na primeira pessoa, ensaia a si mesma, expõe-se na sua forma de ver e experimentar o mundo. Mostra sua pele, seus cabelos, as infiltrações nas paredes da sua casa, seus amores, seus modos de usar a câmera, seus encantamentos. Ela é um eu. E é justamente no colocar-se na primeira pessoa do singular que ela convoca o eu de quem assiste. Muitos dos exercícios de cenas elétricas do curso partiram da primeira pessoa do singular. Reunir numa sacola objetos que levaria consigo se tivesse que partir imediatamente e só pudesse carregar essa sacola. Apresentar esses itens aos demais. Mostrar um percurso bem curto dentro da sua própria casa: da mesa de trabalho, passando por sapatos pelo chão, até marcas nas paredes, enfim, a escrita do espaço que é a casa de cada um. Olhar uma cena usando um tubo de papel-toalha para escolher o seu próprio enfoque diante de uma multiplicidade de janelinhas abertas. Ler em voz alta. Arriscar uma digressão. O Zoom tem a ver com o eu: sou eu que estou aqui e esta é a minha casa. É uma plataforma de conferências: alguém se posiciona para outros, que olham e escutam.

As escritas de si, por outro lado, parecem acolher pactos mais arejados, deixando cair faíscas pelas beiradas, fazendo de quem assiste um espectador ao respigar

Em um dos primeiros textos que escrevi sobre teatro durante a pandemia,8 tateei um questionamento sobre o uso do Zoom para a construção de um drama (um cosmo fictício, com diálogos e relações intersubjetivas entre personagens fictícios), quando me parecia que a plataforma oferecia ferramentas tão interessantes para outras linguagens, como a palestra-performance e outras escritas de si. Talvez eu continue pensando isso porque a atitude de quem assiste a um drama já está resolvida. Os pactos do drama já estão dados e já foram muito facilmente transpostos para os meios audiovisuais. Mas cada eu que se posiciona convoca afetos diferentes em nós. Quando a operação do ensaio performa uma escrita de si intrinsecamente leal à ética de quem se apresenta, resulta que cada eu é uma poética. E cada poética convoca a sua própria reverberação. O drama também pode ser eletrizante no modo virtual, afinal, já sabemos como nos engajar a distância com as suas premissas. As escritas de si, por outro lado, parecem acolher pactos mais arejados, deixando cair faíscas pelas beiradas, fazendo de quem assiste um espectador ao respigar.

COMO CITAR ESTE ARTIGO SMALL, Daniele Avila. Eletricidades respigadas. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.30.02 DANIELE AVILA SMALL Crítica, pesquisadora e curadora de teatro. Doutora em artes cênicas pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio), é idealizadora

e editora da revista Questão de crítica. Atua em projetos de formação, teoria e crítica de teatro desde 2011, como as edições do Encontro questão de crítica, do Idiomas – fórum ibero-americano de crítica de teatro e da Complexo Sul – plataforma de intercâmbio internacional. Em 2017, dirigiu o documentário de ficção Há mais futuro que passado. Entre 2018 e 2020, foi curadora do Olhares críticos, eixo reflexivo da Mostra internacional


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de teatro de São Paulo (MITsp). Integrou também as equipes de curadoria do Festival internacional de teatro palco & rua de Belo Horizonte (FIT-BH 2018), no projeto Corpos-dialetos, da 6ª edição da mostra Janela de dramaturgia; e da seleção local do Festival internacional de artes cênicas da Bahia (Fiac Bahia). Em 2020, foi uma das curadoras da mostra temática da 14ª cineBH – mostra internacional de cinema de Belo Horizonte, dedicada ao teatro on-line. É presidente da seção brasileira da Associação Internacional de Críticos de Teatro (AICT-IATC) e colabora com o jornal on-line de notícias de teatro The theatre times. REFERÊNCIAS ADORNO, Theodor W. O ensaio como forma. In: ADORNO, Theodor W. Notas de literatura I. Tradução: Jorge de Almeida. Coleção Espírito Crítico. São Paulo: Editora 34, 2003. p. 15-45. BENSE, Max. O ensaio e sua prosa. Tradução: Samuel Titan Jr. Revista serrote. São Paulo: Instituto Moreira Salles, n. 16, p. 169-183, 2014. Disponível em: https://www. revistaserrote.com.br/2014/04/o-ensaio-e-sua-prosa/. Acesso em: 30 jul. 2021. LARROSA, Jorge. A operação ensaio: sobre o ensaiar e o ensaiar-se no pensamento, na escrita e na vida. Educação & realidade, Porto Alegre, v. 29, n. 1, 2004. Disponível em: https://seer.ufrgs. br/educacaoerealidade/article/ view/25417/14743. Acesso em: 30 jul. 2021. _____________. O ensaio e a escrita acadêmica. Educação & realidade, Porto Alegre, v. 28, n. 2, 2003. Disponível em: https://seer.ufrgs. br/educacaoerealidade/article/ view/25643/14981. Acesso em: 30

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jul. 2021. LUKÁCS, György. Sobre a essência e a forma do ensaio: uma carta a Leo Popper. Tradução: Mario Luiz Frungillo. Revista UFG, Goiânia, v. 9, n. 4, 2008. Disponível em: https:// www.revistas.ufg.br/revistaufg/ article/view/48186. Acesso em: 30 jul. 2021. SMALL, Daniele Avila. O crítico ignorante – uma negociação teórica meio complicada. Rio de Janeiro: 7Letras, 2015. STAROBINSKI, Jean. É possível definir o ensaio? Remate de males, Campinas, v. 31, n. 1-2, p. 13-24, 2012. Disponível em: https://periodicos. sbu.unicamp.br/ojs/index.php/remate/article/view/8636219. Acesso em: 30 jul. 2021. NOTAS 1. Juliana Jardim é atriz, professora, pesquisadora e diretora, dedicando-se principalmente à área prática de formação de artistas, performers e narradores, além de desenvolver trabalho ligado a gestos ensaísticos, corpo, escuta de si e coletiva, escuta e palavra, corpo/texto, comicidade e alianças com o tema da emancipação da pessoa. É formadora de distintas escolas de teatro, técnicas e universidades, de 1993 a 2021, e preparadora de atores, performers e palhaços. Atua como codiretora artística dos projetos Território Cultural (RJ) e Casa, no Escolas de Paz da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco, RJ), que realizam ocupação em comunidades e escolas, com espetáculos de teatro, música e circo e oficinas. 2. A edição reuniu palestras, conversas, espetáculos e laboratórios criativos


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dedicados à linguagem da palestra-performance. Parte da programação está disponível no canal do Complexo Duplo no YouTube: https://www.youtube. com/playlist?list=PL8Gnhj1Wp39fra-M9XyF8Tl1KFdL_nSE. Acesso em: 11 set. 2021. 3. Ver, por exemplo: DIXON, Steve. Digital performance: a history of new media in theater, dance, performance art, and installation. Cambridge; London: MIT Press, 2017. Ou ainda: FREY, Tales. Interseções entre teatro e cinema através da internet – crítica do espetáculo Cardápio de soluções indigestas, do Teatro para Alguém. Questão de crítica, Rio de Janeiro, v. 3, set. 2010. Disponível em: http://www.questaodecritica. com.br/2010/09/interseccoesentre-teatro-e-cinema-atraves-dainternet/. Acesso em: 30 jul. 2021. 4. Para uma discussão mais demorada sobre o assunto, recomendo a leitura de textos de Amelia Jones, como: JONES, Amelia. “Presence” in absentia: experiencing performance as documentation. Art journal, v. 56, n. 4, p. 11-18, 1997. Disponível em: https://www.academia. edu/3336410/Presence_ in_absentia_Experiencing_ Performance_as_Documentation. Acesso em: 30 jul. 2021. 5. Luiz Pimentel é ator, dramaturgo e pesquisador das relações entre teatro e política no Brasil. Participou do coletivo teatral [pH2]: Estado de Teatro e do projeto Ensaios ignorantes. Atualmente, concentra seus interesses na proposição de formas ficcionais criadas a partir do encontro com arquivos históricos, de modo a propor espaços de criação que friccionem

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a história como motor de deslocamento em relação às nossas experiências e expectativas diante do tempo presente. 6. Renato Sircilli é graduado em audiovisual pela Universidade de São Paulo (USP), com extensão acadêmica realizada no Institut Supérieur des Arts (Insas) e na Luca School of Arts, ambos na Bélgica. Dirigiu cinco curtas-metragens, entre eles O rosto da mulher endividada (2015), e um longa-metragem híbrido, Fôlego (2018). Também trabalha como montador em projetos de longas e curtas-metragens e séries ficcionais e documentais para televisão e streaming. 7. Tatiana Nascimento é poetisa negra brasileira, tradutora, slammer, cantora e compositora. Cofundadora da Padê Editorial, dedica-se à pesquisa e à publicação de livros de autoras negras e LBTQIs. É cofundadora também da Palavra preta – mostra nacional de negras autoras, que acontece anualmente no Brasil, e idealizadora e cofundadora do Slam das minas, primeira batalha de poesia oral exclusiva para mulheres e lésbicas no Brasil. Escreveu a peça Sinhá não dorme para as atrizes Roberta Valente e Glória Diniz. 8. Em junho de 2020, escrevi sobre a peça 12 pessoas com raiva, adaptação on-line muito bem-sucedida de um drama clássico do teleteatro, com direção de Juracy de Oliveira. Disponível em: http://www.questaodecritica.com. br/2020/06/12-pessoas-comraiva/. Acesso em: 30 jul. 2021.


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4. Podcast Observe OBSERVE – EPISÓDIO 1: DESAFIOS E OPORTUNIDADES DA PRODUÇÃO DIGITAL DAS CENAS NA REGIÃO NORTE DO BRASIL

OBSERVE – EPISÓDIO 2: EXPERIÊNCIAS E LEGADO DA PANDEMIA PARA GRUPOS DE TEATRO

A conversa reúne Francis Madison, representando o festival Potências das artes do Norte (PAN!), e a gestora cultural Karla Martins. Com mediação de Galiana Brasil, gerente do Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural, os convidados, que atuam no Norte do país, falam de produção teatral e do custo amazônico.

Neste episódio, os atores e dramaturgos Inês Peixoto, de Minas Gerais, e Giordano Castro, de Recife (PE), falam dos desafios enfrentados pelos grupos de que participam – respectivamente, o Galpão e o Magiluth. A mediação é da crítica, pesquisadora e diretora de teatro Daniele Avila Small.

https://www.itaucultural.org. br/observe-episodio-desafiosoportunidades-producao-digital

https://www.itaucultural.org.br/ secoes/podcasts/observe-episodioexperiencias-legado-pandemia-para


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OBSERVE – EPISÓDIO 3: DANÇA: REINVENÇÕES, DIFUSÃO E ACESSIBILIDADE

O podcast traz o Coletivo Independente Dependente de Artistas (Cida), do Rio Grande do Norte, na pessoa de René Loui, e o Galpão do Dirceu, do Piauí, representado por Layane Holanda do Canteiro – para falar de produção, de divulgação via internet e de dança e acessibilidade. Os convidados são mediados pela artista da dança Luciana Lara.

https://www.itaucultural.org.br/ secoes/podcasts/observe-dancareinvencoes-difusao-acessibilidade

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OBSERVE – EPISÓDIO 4: ENTRE O PRESENCIAL E O DIGITAL: DESAFIOS DOS FESTIVAIS DAS ARTES DA CENA

Uma conversa voltada para festivais de cênicas no universo digital, suas questões, impactos e futuros possíveis. O episódio reúne Pedro Freitas do coletivo FarOffa, de São Paulo, e Marcela Pultrini, do Festival de Circo de Taquaruçu, do Tocantins. Condução de Raphael Vianna, do Sesc Nacional (RJ).

https://www.itaucultural.org. br/secoes/podcasts/observeepisodio-entre-presencialdigital-desafios


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5. Como criar campos de afecção1 por meio do suporte telemático? Por ações ético-estético-políticas na ressensibilização dos corpos WALMERI RIBEIRO https://orcid.org/0000-0002-6274-5361

Em 1990, Roy Ascott, ao escrever sua contribuição para o painel Computers and art: issues of content, organizado pela College Art Association de Nova York, nomeia o texto com uma pergunta: “Existe amor no abraço telemático?”. Essa questão, que muito nos instigou na criação em arte telemática, talvez nunca tenha nos atravessado tanto quanto a partir de 2020, quando a vida passou a ser mediada e o que até então era apenas mais uma forma de experimentação artística tornou-se a única possibilidade No campo das artes, sobretudo das artes da cena, o conceito balizador de presença tornou-se, de criação, conexão e contato. então, um estímulo de investigação ético-estéticoAscott aponta a década de 1980 como o político, atravessando não apenas a criação e a período em que se presenciaram o decuradoria, mas também os modos de fruição senvolvimento e a convergência das tecnologias de computação e de telecomunicações, inserindo-se as mídias eletrônicas – vídeo, som, sensoriamento remoto e sistemas cibernéticos –, assim como a influência dessa possibilidade tecnológica sobre a sociedade e o comportamento individual. Para o autor, esse desenvolvimento parecia “questionar cada vez mais a verdadeira natureza do que é ser humano, ser criativo, pensar e perceber e, sem dúvida, nossa relação com o outro e com o planeta como um todo” (ASCOTT, 2009, p. 305). Quarenta anos depois, já com um grande avanço tecnológico, sobretudo nas redes de transmissão e armazenamento de dados, as questões apontadas por Ascott tornam-se não apenas emergentes diante da convergência de meios, mas também urgentes, frente à crise sanitária e humanitária que estamos vivendo. Em 2020, com a pandemia ocasionada pelo novo coronavírus (Sars-CoV-2), toda a sociedade se viu imersa no desafio de reinventar os modos de ser, estar, viver, conviver e estabelecer laços de afeto e de presença. No campo das artes, sobretudo das artes da cena, o conceito balizador de presença tornou-se, então, um estímulo de investigação ético-estético-político, atravessando não apenas a criação e a curadoria, mas também os modos de fruição. Da pergunta sobre a existência de amor no abraço telemático passamos para outra: “Como criar campos de afecção, de presença, de pensamento crítico e de amor por meio do suporte telemático?”. A urgência nos lançou, como artistas, a uma busca por novas experimentações e possibilidades para manter vivas as potências do corpo e do encontro nas artes da cena.


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ARTE TELEMÁTICA; ARTE E TELEMÁTICA; ARTE CRIADA COM/PARA O SUPORTE TELEMÁTICO Telemática é um termo utilizado para designar redes de comunicação mediadas por tecnologia computacional, ou seja, uma tecnologia que propõe a interação entre seres humanos (“sistemas naturais”) e máquinas (sistemas artificiais de inteligência e percepção). Compreendendo a transmissão e o armazenamento de dados, as possibilidades geradas pela telemática a partir da ruptura com o distanciamento geográfico físico nos dão amplo acesso a diferentes camadas culturais, geográficas, sociais e mesmo individuais.

A partir dessas tecnologias, desde a década de 1980, vários artistas se dedicaram a experimentações no campo da arte telemática e da arte mediada por sistema telemático. Segundo Mario Costa, “pareceu-se ser possível entender que a dimensão estética do futuro, no sentido próprio de ‘sensorialidade do porvir’, ter-se-ia substancialmente configurado a partir das redes de neotecnologias comunicacionais...” (COSTA, 1997, p. 312) – o que o autor chamou de “estética das redes” em 1983. Um dos aspectos favoráveis dessa “estética” seria a expansão ou a extensão do corpo humano a partir da combinação entre dispositivos robóticos e telemática.2 Roy Ascott apontou, também na década de 1980, várias perspectivas para a arte telemática, entre elas a capacidade de ações criativas, de uma experiência “vívida e intensa”, e a amplitude do conhecimento em função de uma “cultura telemática possibilitando investigando como gerar campos de afeto, uma visão global por meio de interação da relações de presença e possibilidades de rede com outras mentes, outras sensibi- construção de outros modos de engajamento lidades, outros sistemas de percepção e sensível e crítico, como sociedade, a partir do de pensamento planeta afora” (COSTA, uso do suporte telemático 1997, p. 311). Ao longo das décadas, vimos também o desenvolvimento de uma “estética digital” (GIANNETTI, 2006), com o avanço nas experimentações em arte interativa, ambientes imersivos, ambientes híbridos etc. Ou seja, houve uma intensificação das relações entre arte, ciência e tecnologia no campo da chamada mídia arte. No entanto, grande parte das experimentações artísticas desenvolvidas entre a década de 1980 e os anos 2000 trazia como questão ético-estética o aprimoramento de ferramentas, de tecnologias e de interfaces, assim como temas inerentes à criação em rede (sendo essa suporte e procedimento de criação). No campo das artes da cena, essas experimentações – muitas vezes nomeadas “dança e tecnologia”, “teatro e virtualidade” etc. – buscavam desenvolver ferramentas tecnológicas para composição com corpos virtuais, ampliando os aspectos sensoriais potencializados pelo aparato técnico. Também se dedicavam a questões inerentes à própria cena, como possibilidades de criação com corpos a distância; temporalidade e delay; corpo misto; e ampliação do sistema perceptivo e sensorial. Em 2010, a convite da artista e pesquisadora Ivani Santana, integrei um grupo de artistas pesquisadores no desenvolvimento de uma experiência nomeada Labo-


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ratorium Mapa D2. Composto de três grupos de pesquisa em artes3 e três núcleos de desenvolvimento em tecnologia computacional e de rede,4 o projeto integrava diferentes linguagens artísticas – dança, teatro, música, cinema, performance e arte interativa – na investigação e na exploração da aplicabilidade das tecnologias de informação e comunicação (TICs) no desenvolvimento de performances telemáticas envolvendo ambiente virtual e interatividade. Essa pesquisa-criação se desdobrou em workshops, mostras de processo e open labs, realizados no Teatro Universitário de Fortaleza e no Sesc Ipiranga, em São Paulo. Teve como trabalho final a instalação Frágil, apresentada no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM-Rio) durante o evento Desafios da arte em rede. Com ênfase em pesquisa, criação e experimentação no campo da arte com mediação tecnológica, sobretudo entre corpo, cena e telemática, o projeto tinha como objetivo investigar a própria telemática como procedimento de criação, ou seja, a rede como um meio que determina condições artísticas e estéticas específicas. Assim, ao mesmo tempo que colaborávamos para o desenvolvimento de plataformas e softwares específicos para a criação artística em telemática, pesquisávamos especificidades e potencialidades da criação cênica mediada por aparatos técnicos. Criar para e com a rede telemática é um outro modo de pensar corpo, composição, atuação, temporalidade e corporeidade, desdobrado da interação entre corpo e aparatos técnicos, como câmeras, sensores, próteses, telas etc. Contudo, do meu ponto de vista, o que estamos vivendo no campo da experimentação e da criação artística em rede em tempos pandêmicos alarga as questões que norteavam a pesquisa e o trabalho em arte e telemática antes de 2020. Não estamos mais falando em criações desenvolvidas com e para a rede, mas sim investigando como gerar campos de afeto, relações de presença e possibilidades de construção de outros modos de engajamento sensível e crítico, como sociedade, a partir do uso do suporte telemático. Por outro lado, é claro que todas as experimentações e desenvolvimentos tecnológicos, todo o conhecimento emergente das pesquisas sobre as relações entre arte, ciência e tecnologia são hoje fundamentais para impulsionar a criação em rede. Mas nossa questão atual permeia outros campos ético-estético-políticos a serem investigados. AÇÕES ÉTICO-ESTÉTICA-POLÍTICAS PARA (SOBRE)VIVER EM UM MUNDO EM RUÍNAS Como artistas do corpo, da cena e da presença, no momento que vimos impossibilitadas as relações presenciais diante de uma crise sanitária e humanitária, nos dedicamos a um campo de experimentações e emergências poéticas.

Rapidamente o mercado lançou plataformas e softwares para ser utilizados como espaços virtuais de reuniões, seminários, aulas, consultas médicas, encontro com família e amigos, criações e apresentações artísticas. Galerias, museus e centros culturais transformaram a rede em espaços de visitação. Os processos curatoriais se reinventaram, propondo espaços de encontro, diálogos, discussões coletivas, mostras e exposições expandidas.


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A vida se tornou uma tela. As crises sociais, políticas, econômicas e ambientais receberam olhares mais próximos. Afinal, não há como não ver quando se vive em frente às telas de computadores e celulares. Mas, atenção, ver não significa ser afetado. É preciso cuidado. A arte passou a ser, então, cada dia mais “útil” (BRUGUERA, 2017). Um respiro para muitos. Um espaço de experimentação, investigação e, sobretudo, ativismo para a maioria de nós, artistas. Tivemos, sim, que nos reinventar. Conhecer e aprender – para quem não trabalhava com mediação tecnológica – ou revisitar todo o conhecimento adquirido ao longo dos anos em arte e telemática, arte e tecnologia e mídia arte. Revisitamos teorias e práticas artísticas, mas o que vimos e continuamos a acompanhar foi sobretudo um lançar-se aos desafios da nossa época em busca de modos ético-estético-políticos de criação de campos de afecção. A arte se fez urgente, como o respirar. Muitos projetos pensados para o ambiente presencial tomaram, num primeiro momento, outras formas e se tornaram ações mediadas pela rede. Outros já nasceram pensados para uma fruição desse tipo. É o caso de Conexão Mulheres da Improvisação, com sete artistas pesquisadoras de diferentes universidades brasileiras e do exterior que se reuniram para investigar formas e dispositivos de engajamento, gerando campos de afecção e estado de presença a partir da arte com mediação telemática.

Afinal, não há como não ver quando se vive em frente às telas de computadores e celulares. Mas, atenção, ver não significa ser afetado. É preciso cuidado

Inicialmente, participamos de dois seminários, propondo “conferenciAções” que envolviam o público. Para essa conferência, ainda experimentando as plataformas, suas limitações e suas possibilidades, decidimos compartilhar com um público amplo o nosso próprio processo de composição e discussão: O convite que nós da conexão mulheres da improvisação fazemos a todas e todos presentes aqui conosco nesta manhã é um convite para o sentir, para o pensar, para o agir em tempos de URGÊNCIA (...) Para esta “ConferenciAção” nos colocamos em experiência, abertas a potencialidades emergentes dos nossos encontros e de novas temporalidades. Nos colocamos em meditação, em ação, em movimento, em performance, numa busca por uma potência de agir e pensar o sensível, o sutil, o poético. Pensar a força do gesto performativo na construção de rupturas e deslocamentos dos corpos e dos modos de ser e estar no mundo que habitamos, e pelo qual somos habitados (RIBEIRO, 2020, p. 109). No entanto, sabíamos que, para criar engajamento e possíveis campos de afecção, era necessário ir além, desenvolver experimentos artísticos que, por um lado, nos lançassem a uma experiência que colocasse em pauta as singularidades e o contexto que estamos vivendo, mas, por outro, nos instigassem a pensar ações coletivas possíveis para um mundo outro, que ainda virá.


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E, assim, desenvolvemos [IN] submersa, uma instalação performativa que propunha uma imersão por salas virtuais interconectadas, pelas quais os participantes se deslocariam de acordo com escolhas realizadas por uma das integrantes da Conexão Mulheres da Improvisação, seguindo uma ordem de fruição aleatória. Dessa forma, nenhum participante teria a mesma experiência, e tampouco poderia construir sua trajetória individualmente. Esse trabalho foi desenvolvido e mediado pela plataforma Zoom, explorando suas possibilidades e limitações técnicas e tecnológicas daquele momento. [IN] submersa também foi apresentada na Bienal internacional de dança do Ceará, em março de 2021, para 70 participantes. Pela especificidade da obra, não há registro arquivado. Essa foi e continua sendo uma experiência imersiva, para ser experienciada e ativada de forma coletiva por corpos individuais presentes virtualmente numa mesma sala ao mesmo tempo, mas podendo estar em geografias, temporalidades e contextos distintos. Dessa experiência compartilho a videoinstalação [Coexistir-Coexistence], que integrava uma das salas virtuais da bienal. Parto de [In] submersas para exemplificar poéticas emergentes em tempos pandêmicos. Poéticas do encontro, da conexão e da construção de imaginários coletivos, ainda que com corpos físicos habitando e habitados por contextos distintos. Em tempos de distanciamento social, como artistas da cena, fomos lançados ao desafio e à responsabilidade, ao campo da investigação de ações ético-estético-políticas que alimentem, estimulem e estabeleçam relações de presença, cultivando imaginários coletivos. A processualidade e a experiência tornaram-se o centro de nossas investigações e a rede passou a ser apenas o meio pelo qual investigamos, nos conectamos e convivemos. Se há algum tempo já vínhamos nos perguntando qual o papel do artista e da arte frente aos desafios, crises e catástrofes da atualidade, quando o mundo parou em 2020 não havia mais tempo para perguntar, era hora de agir. Num primeiro momento, o medo nos paralisou como sociedade, mas a certeza da importância da arte nesse contexto nos lançou ao movimento. Afinal, viver em um mundo em ruínas, ou melhor, sobreviver nas e às ruínas do antropoceno requer novas formas de agir, de pensar, de estar no mundo e de fazer mundos possíveis. É nesse momento que estamos, de reinvenção. No entanto, é importante ressaltar que, ao mesmo tempo que nós, artistas e pesquisadores, estamos investigando como criar relações de presença e campos de afecção, gerando “potências de afeto” e “potências de agir” (LATOUR, 2020) em busca de alimentar o pensamento crítico, a sensibilização e a desautomatização dos corpos, os pesquisadores e as empresas de tecnologia estão aprimorando as ferramentas – softwares e hardwares – e a infraestrutura de telecomunicação. E, enquanto o mundo segue em uma reatualização diária em busca de outras formas de viver, conviver e estabelecer laços de afeto e efeito de presença, um intenso pro-


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cesso extrativista, como sua política devastadora, continua tentando cegar todos os nossos órgãos sensoriais vitais, criando corpos insensíveis e nos acostumando à violência – esta, sim, potencialmente infinita (ARAOZ, 2020, p. 20).

COMO CITAR ESTE ARTIGO RIBEIRO, Walmeri. Como criar campos de afecção por meio do suporte telemático? Por ações ético-estético-políticas na ressensibilização dos corpos. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.30.03 WALMERI RIBEIRO é artista e pesquisadora. Professora da Universidade Federal Fluminense (UFF), coordena o Laboratório de Pesquisa em Performance, Mídia Arte e Questões Ambientais (BrisaLAB) da instituição. É também professora dos programas de pós-graduação em artes da UFF e da Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro (EBA/UFRJ). Com pós-doutorado pela Concordia University, do Canadá, desenvolve o projeto de pesquisa e criação artística Territórios Sensíveis desde 2014, com financiamento do Prince Claus Fund, do Goethe-Institut (2019-2021) e da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro (Faperj) (2019-2022). REFERÊNCIAS ARAOZ, Horacio Machado. Mineração, genealogia do desastre: o extrativismo na América Latina como origem da modernidade. São Paulo: Elefante, 2020.

ASCOTT, Roy. Existe amor no abraço telemático?. In: DOMINGUES, Diana (org.). Arte, ciência e tecnologia: passado, presente e desafios. São Paulo: Editora Unesp; Itaú Cultural, 2009. BRUGUERA, Tania. Talking to power / Hablándole al poder. San Francisco: Yerba Buena Center for the Arts, 2017. COSTA, Mario. Corpo e redes. In: DOMINGUES, Diana (org.). A arte no século XXI: a humanização das tecnologias. São Paulo: Editora Unesp, 1997. GIANNETTI, Claudia. Estética digital: sintopia da arte, a ciência e a tecnologia. Belo Horizonte: C/Arte, 2006. LATOUR, Bruno. Diante de gaia: oito conferências sobre a natureza no antropoceno. São Paulo: Ubu Editora, 2020. RIBEIRO, Walmeri. Mulheres da improvisação (MI): ações e reflexões sobre presença frente aos desafios contemporâneos. In: LAKKA, Vanilton; GUIMARÃES, Daniela; AQUINO, Dulce; QUEIROZ, Clécia; ALVIM, Valeska; AMÂNCIO, Alysson (org.). Quais danças estarão por vir? Trânsitos, poéticas e políticas do corpo. Salvador: Anda, 2020. SPINOZA, Benedictus de. Ética. Belo Horizonte: Autêntica, 2009.


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NOTAS 1. O conceito de campos de afecção está diretamente relacionado ao pensamento de Spinoza (2009) sobre a potência de agir a partir das afecções do corpo, compreendendo o afeto como ação. Ou seja, criar campos de afecção é estimular a potência de agir do corpo a partir da potência dos afetos, lançando-os à ação. 2. “[...] revelava-se em condições de conduzir o corpo, ou melhor, a corporeidade, a toda parte, e permitia introduzir a noção de corpo misto, ubiquitário e coletivo” (COSTA, 1997, p. 312).

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3. Laboratório de Poéticas Cênicas

e Audiovisuais da Universidade Federal do Ceará (LPCA/UFC), coordenado por Walmeri Ribeiro e Héctor Briones; Poéticas Tecnológicas, da Universidade Federal da Bahia (UFBA), coordenado por Ivani Santana; e Núcleo de Artes e Novos Organismos da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Nano/ UFRJ), coordenado por Guto Nóbrega e Malu Fragoso. 4. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio); Universidade Federal da Paraíba (UFPB); e Rede Nacional de Ensino e Pesquisa (RNP).


Das formas de produzir um arquipélago sem mar (2017) | imagem: Daniela Paoliello


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6. Conexões e continuidades LUCIANA ROMAGNOLLI https://orcid.org/0000-0002-4324-5505

Ao fim do terceiro semestre de emergência sanitária causada pela pandemia de covid-19, quando alguns teatros lentamente retomam a atividade presencial ainda sob a ameaça de novas variantes, é visível como o panorama da produção teatral brasileira e de outros países latinos se reconfigurou em resposta à necessidade de buscar novas vias de sobrevivência artística e econômica. Por um lado, o impedimento de ações presenciais e de aglomerações, somado ao refreamento das viagens, intensificou a exploração das ferramentas digitais, a ocupação das mídias sociais, a formação de redes virtuais e o investimento em linguagens transdisciplinares que já faziam parte dos interesses de artistas da cena, embora de modo mais contido até o início de 2020. Por outro, a questão ultrapassa a apropriação dos meios digitais e sua incorporação ao teatro (ou a incorporação do teatro aos meios digitais), uma vez que o isolamento social necessário à contenção do vírus impossibilitou os encontros presenciais não somente com o público, mas também entre os próprios artistas criadores. E o impacto econômico da pandemia – e do modo como vem sendo gerida pelo poder público – fez com que artistas encontrassem dificuldades sérias de manutenção e continuidade de seus trabalhos. Ramón Verdugo, diretor artístico do grupo mexicano Tijuana Hace Teatro, observa que a situação expôs problemas do estado do artista e do fazer cênico na atualidade, como “a falta de condições estáveis de segurança médica, a precariedade nos modos de produção e a falta de mecanismos de sustentabilidade das companhias a médio prazo, entre outros”. Após 13 meses de confinamento, seu grupo retornou às ações presenciais com a instalação cênica (Re)instalar(nos), no Teatro Las Tablas, em Tijuana, e estreou a peça A veces los perros sonríen, também presencialmente. Antes disso, entretanto, a pandemia impôs uma mudança de perspectiva econômica ao grupo. “Tivemos que pausar ou modificar a relação com algumas equipes criativas. Por sorte, algumas delas se mantiveram graças a uma gestão constante que nos permitiu obter apoios econômicos da Secretaria de Cultura do México, que, ainda que provessem só uma parte do orçamento total, nos possibilitaram manter alguns projetos de pé. Com isso, as dinâmicas de trabalho se reorganizaram, equipes foram reduzidas, buscamos a eficiência do tempo e repensamos os próximos projetos do grupo”, relata o diretor artístico. Os múltiplos caminhos encontrados para a sobrevivência financeira passaram, então, pelo reconhecimento das necessidades técnicas para a adaptação dos projetos artísticos e educativos ao meio virtual (na plataforma Taller THT), pelo fortalecimento da gestão de apoios financeiros, pela busca de projetos individuais e


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Os múltiplos caminhos encontrados para a sobrevivência financeira passaram, então, pelo reconhecimento das necessidades técnicas para a adaptação dos projetos artísticos e educativos ao meio virtual

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em grupo, pela colaboração com outros artistas e pela realização de festivais, além de participações em debates locais, nacionais e internacionais sobre os horizontes do trabalho teatral.

Solução semelhante foi encontrada pelo grupo argentino Timbre 4, que também mantém uma escola de teatro e passou suas ações para o ambiente virtual. O produtor Jonathan Zak conta que, entre fechamentos e aberturas dos teatros naquele país, os esforços voltaram-se, ainda, para a internacionalização, por meio de vínculos com embaixadas e centros culturais europeus e da participação em festivais virtuais, que permitiram a sobrevivência do grupo portenho. REDES Voltando ao México, no âmbito coletivo, Verdugo destaca o surgimento, em consequência da pandemia, de “plataformas de diálogo a partir de locais distintos, que culminaram na formação de associações para se pensar as condições teatrais no país”.

No Brasil, essa organização ainda está por ser feita, embora a precariedade dos modos de produção e a insegurança trabalhista sejam realidades anteriores à covid-19 para a maior parte dos profissionais do teatro. De acordo com relatos de artistas entrevistados para este artigo, com frequência, as soluções encontradas na pandemia acentuaram as vias que já vinham sendo percorridas: fortaleci- com frequência, as soluções encontradas na mento de redes nacionais para alguns; pandemia acentuaram as vias que já vinham conexões internacionais para poucos; sendo percorridas: fortalecimento de redes apoio de patrocinadores para outros; e nacionais para alguns; conexões internacionais editais públicos para muitos. para poucos; apoio de patrocinadores para outros; e editais públicos para muitos Quando os primeiros teatros foram fechados no país, Laís Machado e Diego Pinheiro, criadores da Àràká – Plataforma de Criação em Arte, de Salvador, haviam chegado há poucas semanas da Alemanha, onde apresentaram Quaseilhas. Diante do cancelamento de festivais e residências previstos para os meses seguintes, apoiaram-se no conhecimento de linguagens artísticas digitais e nos resultados de redes que já vinham lançando para fora do Brasil. Algo que, enfatizam, só se torna possível quando a língua estrangeira não é uma barreira. É por esse motivo que os dois pretendem criar estratégias para facilitar a internacionalização de artistas com esse tipo de dificuldade, considerando recortes de classe e de raça. A proposta da Àràká já previa a criação de redes para conexão de artistas afrodiaspóricos e africanos que atuem em uma zona transdisciplinar de experimentação. Por isso, as etapas de produção já contemplavam ações não presenciais ou semipresenciais, por meios on-line, para articular artistas de diferentes localidades (como Barbados e Estados Unidos) e como estratégia frente às dificuldades econômicas e de circulação no país. Esse saber-fazer contribuiu, portanto, para que a plataforma encontrasse caminhos na pandemia. “Com mais cansaço, mais medo e dificuldade”, segundo Ma-


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chado, seguiram misturando linguagens e experimentando na lógica de “fazer o que se pode com o que se tem”, aproveitando a abertura de iniciativas do Sudeste para produções do Nordeste, como consequência de os custos de deslocamento terem saído das planilhas orçamentárias nos projetos on-line. SAÚDE EMOCIONAL Para a sobrevivência financeira, houve momentos em que precisaram triplicar a quantidade de projetos diante das incertezas futuras. O comissionamento de um curta-metragem – Canção das filhas das águas – e de uma residência artística a distância (a alemã Savvy Contemporary), somado à Lei Aldir Blanc em 2021, garantiu as atividades por alguns meses e trouxe um respiro para que pudessem traçar planos futuros, além do imediatismo dos trabalhos breves.

Laís Machado e Diego Pinheiro enfatizam a importância dessa continuidade também na seara da saúde mental dos artistas, ponto que recebeu atenção dentro dos projetos. “Como você lida com o fato de não só estar distante [dos outros], mas no meio de uma pandemia também? Tentamos não agir como se nada estivesse acontecendo”, diz a performer, considerando os temores e as inseguranças criativas dos envolvidos. “Vivemos uma situação de exceção e isso não pode estar fora da equação”, reitera. Preocupação semelhante pautou as ações de Juracy de Oliveira na formação do Pandêmica Coletivo Temporário de Criação, interessado em “criar um lugar seguro de trabalho que ajudasse a encarar o que viria pelos próximos meses (ou anos)”, com artistas de várias partes do país. “Este momento, em que estamos imersos em telas e aparelhos, nos pede soluções que impulsionem a saúde coletiva. Tentamos sempre ir por esse caminho, buscando formas de artistas terem seus trabalhos remunerados e, com isso, conseguirem enfrentar os desafios. Nenhuma plataforma ou rede esteve acima do afeto que queríamos continuar trocando apesar do isolamento. Queríamos hackear a presença e, de alguma forma, ir vencendo um dia após outro, só por nos mantermos vivos e em rede”, explica o artista cearense radicado no Rio de Janeiro. O ponto de partida foi o processo de criação e circulação on-line do espetáculo 12 pessoas com raiva, quando aproveitaram a condição virtual imposta para ampliar as redes de criação artística nacionalmente. Oliveira começou a fazer pontes com outros artistas e agrupamentos e, no segundo semestre de 2020, o coletivo teve um fluxo grande de trabalhos, realizando mostras e festivais como o Orgulhe e o Festival às escuras, o que levou a uma distribuição das funções administrativas e criativas entre os envolvidos. “Hoje estamos trabalhando em um modo de gestão fluida que funciona a partir dos projetos que vão se apresentando. Continuamos circulando com as experiências do nosso repertório, recebemos grupos e artistas parceires que realizam apresentações em nossas plataformas e realizamos consultorias e operações técnicas sobre as plataformas de transmissão para trabalhos de todo o país”, relata. A cada fase da pandemia, portanto, os modos de obtenção de recursos sofreram mudanças. “Desde o início, já vínhamos traçando planos de formação de público. As experiências que estrearam até julho de 2020 conseguiram realizar uma arre-


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cadação interessante de bilheteria, talvez pela ‘novidade’. Já no segundo semestre, sentimos uma dificuldade de engajar o público e entendíamos a causa, afinal, também estávamos exaustos. Foi aí que começamos a receber convites para que ajudássemos projetos que precisavam se inserir nos meios virtuais. Com isso, vários integrantes se revezaram em consultorias e operações técnicas”, conta Oliveira. O uso das plataformas por outros grupos também foi importante para assegurar um “caixa fixo” e pagar as despesas com o site e as redes sociais. A lógica de rede prepondera ainda no trabalho da Selvática Ações Artísticas, sediada em Curitiba. Segundo Ricardo Nolasco, as transformações no modo de gestão causadas pela pandemia foram “tão intensas a ponto de muitas vezes não entendermos quais eram elas”. “Nesse período, experimentamos muitos formatos para dar continuidade a uma pesquisa artística que é também uma lógica de vida e de existência que envolve corpos e pensamentos dissidentes”, observa. Por isso, o coletivo não adere ao conceito de “novo normal”, incompatível com a investigação sobre “a anormalidade, o desvio e a possibilidade de encontrar outras existências possíveis dentro da máquina em que estamos inserides”, conforme descreve Nolasco sobre o trabalho da Selvática. No Paraná, o fechamento dos teatros ocorreu às vésperas da chegada de artistas para uma residência que culminaria na I mostra internacional de cabaret de Curitiba, uma coprodução entre Brasil, México e Argentina que seria apresentada no Festival de Curitiba. Para um coletivo cuja atuação estava baseada na Casa Selvática, ponto de encontro para aglomerações artísticas, e na festa como “agente conector e de criação de espaços de liberdade”, foi – e ainda tem sido – um grande desafio encontrar modos de se sustentar na pandemia. A casa, por exemplo, precisou ser alugada para outros fins. “Nossa primeira ação foi entrar ao vivo no Instagram no mesmo dia em que a mostra começaria, com um cabaré on-line composto de números das artistas que participariam dessa residência. Essas primeiras ações virtuais eram quase exclusivamente para nos manter em atividade artística e oferecer possibilidades de reflexão e entretenimento em um momento em que toda a população estava em casa e sem saber o que iria acontecer”, recorda Nolasco. “Isso mudou bastante até o presente momento, foram entrando outras questões em jogo, como pagar as contas e tentar transportar as investigações, por tempo indeterminado, efetivamente para o ambiente virtual”, avalia. Mais uma vez, a pandemia intensificou uma tendência pregressa: “Somos um coletivo grande, com muitas investigações e desejos. Neste momento, acabamos nos organizando em grupos menores relacionados direta e indiretamente à Selvática, como é o caso da pesquisa específica com o cabaré, da Magazine fancha – a revistona da mulher sapatão e de atividades de formação”, conta. Com a dificuldade de encontrar dispositivos digitais que abarcassem muitos artistas ao mesmo tempo, além das diferenças de acesso à internet e a equipamentos digitais entre os integrantes, foram testadas diversas plataformas e meios para a realização dos processos criativos e das apresentações: da live do Cabaré voltei (contemplada


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pelo Itaú Cultural) ao uso do WhatsApp em Aqui estamos futuro!, passando por pesquisas de cabaré, oficinas, residências, saraus, webdocumentário etc. “Tivemos alguns apoios pontuais para criação e venda de espetáculos de forma digital e, por último, no final de 2020, conseguimos recursos por meio da Lei Aldir Blanc, mas que serviram quase exclusivamente para pagamentos de dívidas e manutenção do espaço, seguindo ainda longe de uma situação confortável”, diz Nolasco. ESTRUTURA Por outros trilhos, a experimentação de O coletivo é exemplo de como os investimentos linguagens e meios também tem sido continuados na cultura fazem diferença o modo de operação do Grupo Galpão nesta pandemia – haja vista o lançamento do média-metragem Éramos em bando e da peça radiofônica Quer ver escuta. Antes disso, no susto, os mineiros realizaram lives, stories e programas de entrevista, até conseguirem se reorganizar para um primeiro espetáculo virtual, Histórias de confinamento. “A estrutura continuou a mesma, mas tudo feito a partir das casas, sem encontros presenciais. Isso causou uma alteração profunda no funcionamento do grupo”, observa Eduardo Moreira.

O coletivo é exemplo de como os investimentos continuados na cultura fazem diferença. “A sustentabilidade do Galpão se manteve graças à continuidade dos patrocínios. No ano passado, tivemos o da Cemig e, neste ano, além desse apoio, o patrocínio máster da Vale e de outras empresas. Isso nos possibilita manter a estrutura do grupo, o pagamento dos funcionários que sobraram e de um salário-base do elenco. Temos feito muita coisa e estamos encaminhando uma série de projetos que chamamos de Dramaturgias”, conta o artista. Mesmo com recursos, “os desafios são infinitos” na tentativa de sobrevivência em meio digital, conforme observa Moreira. “É extremamente dispersivo da atenção e da concentração. A falta de presença traz uma dificuldade enorme, naturalmente não agrega, separa as pessoas. Teatro virtual é o que temos para o momento, então, só nos resta reafirmar a nossa existência, continuar fazendo da forma mais intensa, com a maior qualidade possível, com essas ferramentas que nos sobraram, e seguir em frente.” Para ele, diante do “esvaziamento dessa possibilidade de um lugar do teatro, que está sendo contestado de uma maneira vil e repugnante pelo poder no Brasil, o que nos resta é continuar lutando e procurando firmar o nosso lugar de levantar o imaginário das pessoas, a capacidade de recriação do mundo a partir da arte, da poesia e do teatro, que é fundamental”. MEMÓRIA Cristiane Zuan Esteves, do grupo Opovoempé, resistiu a levar as intervenções e peças para o meio on-line por causa da complexidade desse ambiente: além da dificuldade de alcançar o público por conta das bolhas criadas pelos algoritmos, havia também a interferência das mediações digitais no trabalho. Por isso, ela buscou outra saída.

Frente aos compromissos firmados e à impossibilidade da realização de apresentações presenciais, o grupo paulista optou por projetos relacionados à preservação


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de sua história. Assim, um convite do Teatro da Universidade de São Paulo (Tusp) para a celebração da efeméride da chamada batalha da Maria Antônia gerou a criação de um site para expor o arquivo documental da pesquisa da peça-instalação Arqueologias do presente – a batalha da Maria Antônia (2013), uma vez que a diretora entendeu que não era possível refazer o trabalho on-line. O aniversário de 15 anos do Opovoempé motivou a realização de uma semana de comemoração, custeada pela Lei Aldir Blanc. “Mais uma vez, optamos por não fazer as peças, mas conversar com as pessoas que são e foram nossas parceiras nesse tempo”, diz Esteves. Até que os recursos da lei chegassem para cobrir despesas fixas, as integrantes do núcleo artístico precisaram bancar do bolso o local de armazenamento dos materiais dos trabalhos anteriores. Em paralelo a isso, cada uma seguiu seus projetos pessoais. O de Esteves foi a estreia da peça A história de Baker em versão on-line, com recursos do Prêmio Zé Renato de 2019, após tentativas de prorrogação na esperança de apresentá-la presencialmente, até que se encerrasse o prazo para o uso da verba. “Foi tudo feito a distância, sem ninguém estar junto em uma sala de ensaio ou na casa-cenário que usamos. Foram muitos ires e vires, grupos e grupos de WhatsApp para tratar de cada área técnica e criativa. Eu e Beto Matos, com muita mão na massa, mais do que acontece normalmente, montávamos a luz e mostrávamos para a iluminadora; inventávamos onde e como [filmar] na casa e mostrávamos para o cenógrafo; e eles davam feedbacks. Um tempo muito mais lento para as coisas ficarem prontas. Ainda bem que temos uma equipe incrível de transmissão com a Michelle Bezerra”, relembra a diretora e atriz. Esteves ainda quer fazer a peça ao vivo, com as cenas de relação com o público que não entraram na versão on-line. Enquanto isso, Opovoempé segue com custos cortados ao máximo e sem saber como será a sustentação econômica até o seu retorno às atividades presenciais – realidade comum a tantos outros artistas da cena brasileiros.

COMO CITAR ESTE ARTIGO ROMAGNOLLI, Luciana. Conexões e continuidades. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.30.04 LUCIANA ROMAGNOLLI Jornalista e pesquisadora de teatro. Doutora em teoria e prática do teatro pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), atuou como repórter nos jornais Gazeta do povo e O tempo. É

fundadora e editora do site Horizonte da cena, no qual também escreve, e coordenadora de crítica da mostra Janela de dramaturgia. Foi curadora do eixo Olhares críticos da Mostra internacional de teatro de São Paulo (MITsp) de 2017 a 2020 e do Festival internacional de teatro palco & rua de Belo Horizonte (FIT-BH) em 2018. É autora dos livros O mistério de haver olhos (Quintal Edições, 2021) e Hoje, não? (Editora Urutau, 2021). Contato: lucianaromagnolli@gmail.com.


Escavar o escuro (2015) | imagem: Daniela Paoliello


7. Políticas para as Artes Cênicas


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7.1 Do que precisamos, afinal? MARIA CAROLINA VASCONCELOS OLIVEIRA https://orcid.org/0000-0002-0393-1690

A pandemia de covid-19 reacendeu, em diversos países, discussões sobre as condições de trabalho na cultura e nas artes. Trouxe à tona uma questão que, em alguns momentos históricos, ganha o debate público, para logo depois ser invisibilizada por outras agendas: do que precisam os trabalhadores da cultura e das artes, afinal? Apenas de medidas contingenciais em situações de crise ou, sobretudo, de um olhar mais sistemático do Estado sobre as especificidades de seu fazer, na lógica dos direitos básicos e de uma política cultural mais orgânica? Não à toa, em países como Portugal e Espanha, a questão dos impactos da pandemia no setor cultural reavivou discussões sobre um estatuto específico para o trabalho artístico e cultural – cuja principal referência ainda segue sendo a lei de intermitência francesa. No Brasil, essa questão rearticulou o debate sobre o Sistema Nacional de Cultura (SNC), nossa tentativa mais recente de política cultural estrutural, que foi completamente desmantelada nos últimos anos. Uma pergunta que ouvimos bastante: se tivéssemos o SNC operando e políticas culturais mais estruturais, os efeitos da pandemia não teriam sido menores e a própria articulação de ações emergenciais mais simples? Não acho banal também o fato de a pandemia ter desencadeado um breve lapso de consciência acerca dos limites da ideologia liberal, segundo a qual tudo poderia ser resolvido na lógica do mercado ou por meio de investimentos para aumentar individualmente o capital dos trabalhadores, como também pressupõem algumas correntes da economia criativa. Infelizmente, sabemos que isso E constatamos que são os Estados com maior também tende a ser rapidamente escapacidade de investimento e os governos com quecido. A questão é que, neste momaior capacidade de planejamento os que mais mento, como em outros de crise aguda, conseguem atenuar os efeitos da crise fica bastante evidente que é o Estado quem precisa atuar para “salvar” as pessoas, as economias e as instituições. Não é o mercado que irá fazê-lo. E constatamos que são os Estados com maior capacidade de investimento e os governos com maior capacidade de planejamento os que mais conseguem atenuar os efeitos da crise. No país, infelizmente, estamos aprendendo pelo contraexemplo, testemunhando os efeitos nefastos de um governo completamente incapaz. Isso é válido para todos os setores, e não seria diferente com a cultura. A meu ver, é impossível dissociar qualquer reflexão específica sobre as artes dessa discussão mais ampla acerca do papel e da capacidade de planejamento do Estado. De qualquer maneira, aterrissando mais especificamente nas artes cênicas, sabemos que elas provavelmente estão entre os campos de produção social (não estritamente econômica) mais afetados pela pandemia. Em primeiro lugar, porque os setores artísticos, de forma geral, como se sabe, costumam ser


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especialmente sensíveis a contextos de contingência econômica, já que não são considerados atividades de primeira necessidade nem pelos Estados nem pelos “consumidores” finais. Depois, porque as artes cênicas, de forma específica, dependem mais de investimentos públicos – com exceção de algumas linguagens que conseguem se garantir no mercado, há um gap entre a capacidade de arrecadação em bilheterias e o custo das produções. E, por último, porque as artes cênicas historicamente tiveram seu significado construído sobre a ideia da presença, do encontro real entre espectadores e realizadores, além de envolverem muito trabalho coletivo mesmo em casos de cenas solo, o que torna o imperativo do isolamento um tanto mais impactante. Ilustro essa breve reflexão com alguns dados sobre as condições de vida e de trabalho das pessoas que atuam nesse setor, a fim de enfatizar a necessidade de um tratamento mais sistemático por parte do Estado, que vá além de programas emergenciais em momentos de crise. Para isso, utilizo microdados da pesquisa Impactos da covid-19 na economia criativa, desenvolvida pelo Observatório da Economia Criativa da Bahia, gentilmente cedidos pelos coordenadores Carlos Paiva e Daniele Canedo. A pesquisa coletou respostas de 1.910 indivíduos e organizações culturais do Brasil sobre as suas condições de trabalho e os impac- Além de defender a necessidade de tratamento tos da pandemia entre março e julho de mais sistemático e estrutural por parte do Estado 2020 – ou seja, antes mesmo do início para as artes cênicas e os seus profissionais, dos repasses da Lei Aldir Blanc. considero fundamental tomarmos consciência de que a possibilidade de "reinventar-se" Dentre os respondentes que se dedicam no contexto pandêmico – apropriar-se das às artes cênicas (aqueles que declara- ferramentas digitais, criar novos modelos de ram atuar primária ou secundariamen- trabalho e de produção, migrar para o mundo onte nos campos de teatro, dança, circo ou line – está longe de ser uma realidade para todos artes de rua), mais de 54% afirmaram os trabalhadores e trabalhadoras. que pelo menos 75% de sua renda eram provenientes das atividades culturais (como apresentações ou docência). Ou seja, trata-se de um contingente de pessoas que, de fato, depende de suas atividades técnicas ou artísticas para sobreviver. Um resultado já esperado, mas ainda assim admirável, foi que menos de 20% desses respondentes são servidores públicos ou empregados com carteira assinada, sendo 73% autônomos/freelancers. Além de variáveis relacionadas diretamente à renda, a pesquisa traz outras que podem servir para diferenciar grupos com melhores ou piores condições de vida e de trabalho. Por exemplo, mostra que menos de 50% dos entrevistados das artes cênicas contribuem para a previdência. Para se ter um parâmetro, em 2019, cerca de 63% dos trabalhadores brasileiros contribuíram para o INSS, segundo a Pesquisa nacional por amostra de domicílios (Pnad). Chama a atenção o fato de encontrarmos uma proporção menor de não contribuintes entre os homens (cerca de 37% não contribuem, contra 42% das mulheres) e os brancos (cerca de 38% não contribuem, contra 43% dos pretos e pardos). No mesmo sentido, apenas 25% dos trabalhadores das artes cênicas declararam possuir seguro de saúde, e, entre os que não possuem, novamente temos uma proporção menor de pessoas do gênero masculino e brancas. São 37% de brancos e 63% de pessoas de outras cores dentro desse grupo mais vulnerável. Ou


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seja, a proporção de pessoas não masculinas e não brancas é maior no grupo mais vulnerável. Em relação aos impactos da covid-19 e do isolamento, a Pnad mostra que 86% dos trabalhadores das artes cênicas declararam ter tido mais da metade de suas atividades de trabalho canceladas no mês de abril de 2020 – proporção que sobe para mais de 89% no mês de maio. Trata-se de um valor maior do que a média encontrada para todos os setores culturais, o que sugere que o impacto nas artes cênicas tenha sido ainda mais drástico. A pesquisa também indagou por quanto tempo os respondentes conseguiriam se manter no caso de uma suspensão total de suas fontes de receita e, entre os trabalhadores das artes cênicas, quase 75% responderam somente 1 mês ou entre 1 e 3 meses. Ou seja, menos de um quarto teria reservas para um período superior a 3 meses, o que também diz muito sobre a vida do trabalhador por projeto (freelancer) no setor. Entre aqueles que afirmaram ter capacidade de se manter somente por 3 meses, a proporção de pessoas do gênero feminino e não binárias é 25% maior que a do gênero masculino, e a proporção de pessoas não brancas é 15% maior que a de pessoas brancas. Além de defender a necessidade de tratamento mais sistemático e estrutural por parte do Estado para as artes cênicas e os seus profissionais, considero fundamental tomarmos consciência de que a possibilidade de “reinventar-se” no contexto pandêmico – apropriar-se das ferramentas digitais, criar novos modelos de trabalho e de produção, migrar para o mundo on-line – está longe de ser uma realidade para todos os trabalhadores e trabalhadoras. Ela é atravessada por muitos marcadores de desigualdade, e esse processo certamente irá desencadear cisões internas bastante profundas entre aqueles que conseguiram ou não “sobreviver” (inclusive simbolicamente) à pandemia. As possibilidades dessa reinvenção são muito mais limitadas para os mais pobres, que precisaram arrumar trabalho em outras áreas para garantir sua subsistência; assim como para mulheres mães (especialmente de famílias monoparentais), que enfrentaram longos períodos sem escola para os filhos. Na área do circo, em que trabalho, vimos muitos artistas de rua ou de famílias que prestavam serviços para circos itinerantes que nem mesmo conseguiram concorrer a recursos da Lei Aldir Blanc. É fundamental questionarmos a ideologia de que se trata apenas de “ser criativo”, “ter uma boa ideia” ou “ser bom naquilo que se faz”. Que a catástrofe da pandemia e a experiência inovadora dessa lei – marcada pela articulação entre os três níveis federativos e por um relativo engajamento da sociedade civil – possam se desdobrar em novas discussões e perspectivas para políticas mais sistemáticas de apoio às expressões culturais e artísticas e aos trabalhadores desses campos.


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COMO CITAR ESTE ARTIGO OLIVEIRA, Maria C. V. Do que precisamos, afinal? Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.30.05 MARIA CAROLINA VASCONCELOS OLIVEIRA Artista circense, docente e pesquisadora em cultura e artes. É pós-doutoranda pelo Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista (IA/Unesp) e integra o

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Instituto Cultura e Democracia e o Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). REFERÊNCIA CANEDO, Daniele Pereira; PAIVA NETO, Carlos Beyrodt (coord.). Pesquisa impactos da covid-19 na economia criativa. Salvador: Observatório da Economia Criativa; Santo Amaro: Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, 2020.


Que horas são no paraíso (2020) | imagem: Daniela Paoliello


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7.2 Por uma gestão para a diversidade JAN MOURA https://orcid.org/0000-0003-3587-0463

Mato Grosso tem sua economia baseada fortemente no agronegócio. Os interesses políticos, os cursos de formação superior e as políticas de incentivo comercial voltam-se basicamente para esse nicho, o que acarreta uma enorme discrepância no desenvolvimento de outras áreas, em especial as artísticas e culturais. Esse fato é comprovado pela quase inexistência de cursos superiores ou regulares para capacitação profissional no campo das artes até 2017. O desenvolvimento das artes cênicas se deu no estado fundamentalmente pela prática de resistência de mestres da cultura, assim como por iniciativas muito importantes que incluíram cursos livres e projetos de circulação oferecidos pelo Sesc Mato Grosso. Atualmente, a Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer de Mato Grosso tem trabalhado para promover mudanças que possam garantir um novo cenário para o teatro e para a cultura do estado. Começo citando uma das ações que vejo como mais importantes para o desenvolvimento do teatro mato-grossense, que é a criação e a manutenção da MT Escola de Teatro.

O desenvolvimento das artes cênicas se deu no estado fundamentalmente pela prática de resistência de mestres da cultura

Em 2017, em parceria com a Universidade do Estado de Mato Grosso (Unemat), a Secretaria de Estado de Cultura criou o curso superior tecnológico em teatro, que, ainda em seu quinto ano de existência, tem construído uma nova história para as artes cênicas locais. A principal missão do curso é proporcionar uma formação avançada por meio de um sistema pedagógico que valorize o potencial individual e coletivo de cada discente. Sobre as outras estratégias estaduais para o desenvolvimento das artes cênicas, cito o trabalho de ampliação e democratização do acesso aos recursos públicos para o fomento à cultura. Dentro da rede produtiva da cultura, temos manifestações que conseguem uma projeção financeira maior, especialmente as ligadas ao audiovisual de entretenimento e aos grandes shows musicais, que recebem investimento privado e são o que chamamos de indústria cultural, movimentando bilhões no mundo todo. E temos também manifestações que não conseguem alcançar esse patamar sem precisar abrir mão daquilo que as caracteriza. A produção ligada à memória da sociedade, às manifestações tradicionais provenientes de práticas sociais de populações originárias e a manifestações como a arte e o teatro contemporâneos deve ser incentivada, e não somente pela iniciativa privada, pois a ideia de lucro a todo custo nem sempre atende às necessidades de salvaguarda da diversidade cultural.


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Não adianta avançar economicamente e ser um estado campeão no agronegócio se o nosso povo é pobre de repertório cultural. Precisamos garantir o acesso à diversidade de manifestações e a uma educação emancipadora, assim como o direito de escolher o que consumir culturalmente. E isso é feito com fomento, com leis de incentivo à cultura. Entre as tônicas que nos guiam na atual gestão da Secretaria de Estado de Cultura, Esporte e Lazer de Mato Grosso está um princípio importante, o da diversidade e da cultura como direito. Acredito ser essa a grande mudança que estamos construindo nesse processo. Somente por meio da expressão da diversidade podemos construir uma gestão cultural democrática e potente, capaz de provocar a ampliação de horizontes. E, para dar conta da democratização do acesso, é preciso elaborar políticas públicas que reafirmem a cultura como um direito. Nossos editais têm trazido algumas es- Precisamos garantir o acesso à diversidade de tratégias para alcançar esses objetivos: manifestações e a uma educação emancipadora, a primeira é a garantia de quantidades assim como o direito de escolher o que consumir mínimas de projetos para alguns seg- culturalmente mentos culturais historicamente excluídos e invisibilizados. A segunda estratégia tem sido a adoção de critérios de seleção que, além de levar em conta a excelência da proposta, a qualificação da equipe e os seus efeitos multiplicadores, possam equilibrar algumas problemáticas de exclusão social que percebemos nos editais. Estabelecemos critérios sociais que têm como missão equilibrar a balança do acesso, democratizar o quanto for possível os recursos e ampliar para outras populações o direito, garantido na Constituição brasileira, de acesso à fruição e ao fazer cultural. Além disso, estamos desconstruindo algumas diferenças de acesso e fazendo uma espécie de reparação histórica, com a participação ampliada de povos tradicionais, da população LGBTQIA+ e de comunidades ribeirinhas e periféricas, assim como a equalização da participação de mulheres e de outros municípios que nunca tinham buscado recursos nos editais estaduais. Estamos desenvolvendo, assim, uma nova forma de pensar gestão pública para a cultura, que faça sentido para o novo momento que estamos vivendo e que possa ser resposta para os desafios da contemporaneidade e da busca por equilíbrio social e democrático.

COMO CITAR ESTE ARTIGO MOURA, Jan. Por uma gestão para a diversidade. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.30.06

JAN MOURA Mestre e doutor em estudos de cultura contemporânea pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e especialista em gestão cultural pelo Senac. É secretário adjunto de Estado de Cultura de Mato Grosso.


Escavar o escuro (2015) | imagem: Daniela Paoliello


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7.3 O festival tá on: artes cênicas na internet FELIPE DE ASSIS https://orcid.org/0000-0003-2366-0071

No ano de 2020, depois de 12 edições, adiamos pela primeira vez a realização do Festival internacional de artes cênicas da Bahia (Fiac Bahia), em virtude da pandemia de covid-19. Investimos tempo na preparação de uma edição on-line em 2021, dedicando-nos à pesquisa de eventos que migraram para ambientes virtuais e encarando os desafios relacionados a linguagem, participação do público e captação de recursos. Nesse contexto, a equipe do Fiac Bahia participou de festivais, rodadas de negócios e debates on-line. Em tais ocasiões, identificamos três tendências nas produções artísticas: compartilhamento na web de registros de espetáculos; conteúdos discutindo os efeitos da pandemia; e criação com recursos do meio eletrônico, como o uso de multiplataformas (ARAMBURO, 2021). Conforme temos argumentado, as práticas artísticas repercutem-se nos formatos dos festivais presenciais (ASSIS, 2015), o que também se confirma no ambiente on-line. Acompanhamos festivais que exploraram diferentes formatos, conteúdos e modos de produção. O britânico Gateshead international festival of theatre (Gift) realizou um encontro público para avaliação de sua edição on-line. O norte-americano Fusebox festival, por sua vez, investiu na comunicação com o público por meio de newsletter e de campanhas de financiamento por doações. No Brasil, deslocamos nossos olhares para o eixo Sul-Norte. O festival Porto Alegre em cena publicou a revista-festival-objeto Corpo futuro presente (2020). A peça gráfica deu suporte a experiências com texto, ilustrações e códigos QR, redimensionando os contornos e o espaço do evento, transportando o leitor-espectador para experiências híbridas. Na outra ponta, estreava o Potência das artes do Norte (PAN), festival on-line independente da região amazônica. Lançando mão de recursos de interatividade, o evento desenvolveu campanhas de promoção nas redes sociais e experimentou o financiamento direto com a venda de ingressos – muitas vezes adquiridos em número superior, como Em todas as experiências, constatamos o quanto forma de apoio ao evento. os festivais de artes cênicas estavam distantes do ambiente virtual. Assim como o Fiac Bahia, antes Os depoimentos dos organizadores re- da pandemia, esses eventos tendiam a tratar latam o alcance territorial proporciona- as redes como espaço de divulgação de suas do pela internet, a diminuição de custos atividades presenciais, subutilizando os recursos com logística, o uso de ferramentas de das plataformas acessibilidade e alternativas de geração de receita. Em todas as experiências, constatamos o quanto os festivais de artes cênicas estavam distantes do ambiente virtual. Assim como o Fiac Bahia, antes da pandemia, esses eventos tendiam a tratar as redes como espaço de divulgação de suas atividades presenciais, subutilizando os recursos das plataformas.


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No Fiac, nossa atividade se restringia ao Facebook e ao Instagram. Começamos, então, a explorar o funcionamento do YouTube e da Twitch, plataforma de streaming da Amazon. Chamou nossa atenção a naturalidade dos usuários da Twitch diante das câmeras, a interação em tempo real e a duração das transmissões, frequentemente sustentadas por 12 horas ininterruptas. Embora haja canais patrocinados por grandes corporações, predomina o micropatrocínio por meio de assinaturas mensais. A relação com o dinheiro é naturalizada e, invariavelmente, as transmissões têm molduras (overlays) adornadas com códigos QR com coordenadas para Pix. Elogios são feitos em forma de bits, moeda da plataforma.

Ao que parece, os eventos refletem a ausência de políticas culturais para além do fomento dos editais

Apesar de estimulados, constatamos que a comunidade de artes cênicas ainda não frequenta a Twitch. Sendo assim, em março de 2021, criamos no canal do Fiac Bahia no YouTube a série de entrevistas Fazedores de festivais. Em encontros semanais, conversamos com diretores e curadores de festivais de artes cênicas do Brasil e discutimos a relação entre obras, artistas e públicos, acessibilidade e formas de financiamento. A cada episódio trouxemos profissionais de diferentes contextos, como Soraya Portela, do Trisca festival (Teresina), Antônio Araújo e Guilherme Marques, ambos da Mostra internacional de teatro de São Paulo (MITsp). A escolha dos convidados considerou a diversidade geográfica e de experiências e posicionamentos a respeito da realização de eventos na web. Apesar dessa pluralidade, reconhecemos um modelo econômico similar entre os 14 eventos representados: nove festivais usaram leis de fomento, editais de cultura e apoios institucionais; um festival utilizou recursos próprios; três eventos optaram por não realizar edições on-line; e apenas o Festival internacional de teatro de rua de Porto Alegre experimentava uma campanha de financiamento coletivo. Ao que parece, os eventos refletem a ausência de políticas culturais para além do fomento dos editais. Vive-se hoje, no Brasil, um novo ciclo de “ausência, autoritarismo e instabilidade” (RUBIM, 2007). O Fiac Bahia não foge à regra. As edições de 2021 e 2022 estão asseguradas pelo Edital de Eventos Calendarizados da Secretaria de Cultura do Estado da Bahia (SecultBA). Contudo, o festival experimenta recursos de comunicação e conexão com o seu público na internet e investe em formas de participação. Em 2021, o Fiac Bahia veste sua overlay estampada de Pix e ousa nos formatos da programação e nas fontes de financiamento híbridas.


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COMO CITAR ESTE ARTIGO ASSIS, Felipe de. O festival tá on: artes cênicas na internet. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.30.07 FELIPE DE ASSIS Artista-curador, é mestre em artes cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Desde 2008 atua como coordenador-geral e curador do Festival internacional de artes cênicas da Bahia (FIAC Bahia). Contato: felipe@7oito.com.br.

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REFERÊNCIAS ARAMBURO, Diego, 2021. 1º encontro Reside dramaturgia Ibero-americana na pós-pandemia. 1 vídeo (1h57min). Publicado pelo canal Reside Festival. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=Mao5xwSbmWc&t=2244s>. Acesso em: 23 jul. 2021. ASSIS, Marcelo Felipe Moreira de. Por uma prática curatorial mediadora e colaborativa em artes cênicas. 2015. Dissertação (mestrado em artes cênicas) – Escola de Teatro, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2015. CORPO FUTURO PRESENTE. Porto Alegre: Secretaria Municipal de Cultura, Porto Alegre em Cena, 2020. FIAC BAHIA. Canal no YouTube. Disponível em: <https://www.youtube. com/fiacbahia>. Acesso em: 23 jul. 2021. RUBIM, Antonio Albino Canelas. Políticas culturais no Brasil: tristes tradições. Galáxia, São Paulo, n. 13, p. 101-113, 2007.


Exílio (2015) | imagem: Daniela Paoliello


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8. A cena das artes: dimensões econômicas das artes cênicas no Brasil e a institucionalização dos incentivos públicos e privados LARISSA COUTO DA SILVA https://orcid.org/0000-0002-6042-4329

As artes cênicas (ou artes performáticas) constituem um dos segmentos mais tradicionais da economia criativa e estão inclusas no núcleo das principais definições sobre o tema (DCMS, 2014; THROSBY, 2008; UNCTAD, 2010). No Brasil, esse segmento ainda possui resultados econômicos limitados, abarcando cerca de 0,4%1 da receita bruta auferida pelos setores criativos em 2018. Nesse sentido, suas potencialidades se vinculam à própria institucionalização dos setores criativos, que dependem de financiamento público e privado para promover impacto econômico. As artes cênicas, de maneira geral, estão fortemente relacionadas com os setores sem fins lucrativos, dependendo de subsídios e fontes externas de financiamento para a manutenção de suas atividades (BROOKS, 2006). No caso dos países em desenvolvimento, esses recursos costumam ser bastante limitados, havendo poucos mecanismos de incentivo disponíveis para subsidiar e financiar suas despesas. Essa questão se estende também sobre as relações de trabalho, com condições precárias que comprometem a estabilidade e os rendimentos dos trabalhadores das artes cênicas (UNCTAD, 2010). AS ESPECIFICIDADES DAS ARTES CÊNICAS E A IMPORTÂNCIA DOS INCENTIVOS PRIVADOS O setor de artes cênicas possui importantes especificidades que o diferenciam em relação aos outros setores criativos. Nele, o trabalho não é um insumo para a produção de bens finais, e sim o bem final em si mesmo (HEILBRUN, 2003). Essa característica possui importantes desdobramentos sobre o aumento de produtividade, o que foi sistematizado como “doença dos custos” a partir do trabalho de Baumol & Bowen (1966).

Nesse segmento, o progresso tecnológico costuma ter impacto nas atividades periféricas (melhorias no espaço físico, custos de administração etc.) e não no produto final (ou seja, o trabalho criativo). Dessa forma, a possibilidade de incrementos de produtividade2 é menor e a tendência, ao longo do tempo, é haver uma pressão sobre os custos, dado que os aumentos salariais não são acompanhados de aumentos na produtividade do trabalho e existe uma relutância em se reajustar o preço dos ingressos3 (NUNES, 2012). De acordo com o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, entre 2015 e 2018, a receita bruta e o lucro total do segmento Artes cênicas e artes visuais sofreram uma redução anual de 6%. Em contrapartida, a massa salarial dos trabalhadores desse


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segmento criativo4 obteve um crescimento anual de 2% no mesmo período. Concomitantemente a esse fenômeno de aumento relativo dos custos salariais, houve uma tendência de aumento da participação das fontes de financiamento público e privado na composição das receitas das artes cênicas ao longo das últimas duas décadas.5 Entre 2007 e 2018, as receitas próprias do setor de artes cênicas e artes visuais obtiveram um crescimento anual de 1,4%, enquanto os recursos federais para o segmento de artes cênicas, incluindo mecenato e o Fundo Nacional da Cultura (FNC), cresceram 3,5% ao ano. No mesmo período, a participação de Moda e Tecnologia da informação na receita bruta dos setores criativos foi, em média, de 31% e 34%, respectivamente. Esses dois segmentos, que absorvem mais o progresso técnico, incorporando maiores ganhos de produtividade, não estão inclusos nos mecanismos de incentivo federal à cultura. O perfil do financiamento público e privado recai sobre as atividades em que os incentivos ao investimento privado tendem a sofrer deterioração. Essa é uma característica de setores sem fins lucrativos, em que os recursos próprios são complementados com subsídios governamentais e doações privadas – e aqui as artes cênicas estão amplamente inseridas (BROOKS, 2006). No Brasil, desconsiderando-se os incentivos setoriais ao audiovisual,6 o segmento de artes cênicas é o que mais recebe recursos de incentivo à cultura.7 O Gráfico 1 analisa esse montante concedido ao segmento e sua participação no financiamento total do setor criativo. Tanto em termos absolutos quanto em relativos, houve uma tendência deGRÁFICO grande1 -expansão dos FEDERAL incentivos atividades cênicas ao longo da séFINANCIAMENTO PARA às O SEGMENTO DE ARTES CÊNICAS PARTICIPAÇÃO NO FINANCIAMENTO TOTAL PARA CULTURA (1995-2020) rie histórica.EEm 1995, o montante correspondia a A1,5 milhão de reais, enquanto em 2014 foi superior a 644 milhões de reais.8 Mesmo com a recente perda de investiGráfico 1: Financiamento federal para o segmento de artes cênicas e participação no financiamento total para a cultura (1995-2020) R$ 700.000.000

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Financiamento federal

Linha de tendência do financiamento federal

Fonte: Elaboração própria a partir do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. Valores monetários 100% corrigidos pelo IPCA de junho de 2020. 90% 80% 70%

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mentos, acelerada em 2020 também em função da pandemia de covid-19, o aumento dos incentivos federais para esse segmento é notável ao longo do período analisado. Enquanto em 1995 o setor abarcava apenas 4% do total de incentivos, em 2020 a participação somava 27% (depois de ter atingido 38% em 2017). Analisando mais detidamente o perfil dos incentivos federais às artes cênicas, denotam-se dois componentes essenciais: a concentração geográfica e o papel fundamental do financiamento privado. Em relação ao primeiro aspecto, em 2000, cerca de 81% da captação dos incentivos eram destinados à Região Sudeste do país, enquanto em 2020 essa relação caiu para 70%. Todavia, a perda de participação do Sudeste foi motivada pelo aumento da participação da Região Sul, que passou de 11% FINANCIAMENTO FEDERAL PARA O SEGMENTO DEno ARTES CÊNICAS para 20%. AsGRÁFICO regiões1 -onde os recursos eram mais escassos começo do século perE PARTICIPAÇÃO NO FINANCIAMENTO TOTAL PARA A CULTURA (1995-2020) maneceram com pouca participação no cenário nacional após duas décadas.9 O FNC, mecanismo público de financiamento por meio de editais, é responsável por apenas 2% dos incentivos destinados ao segmento ao longo do período de análise. O restante dos recursos provém do mecenato, por meio da Lei de Incentivo à Cultura, popularmente conhecida como Lei Rouanet, que se baseia na renúncia fiscal do R$ 700.000.000 40% governo. Isso significa que as pessoas físicas e jurídicas (estatais ou privadas) que fizerem doações e patrocinarem projetos culturais por meio desse mecanismo po35% R$ 600.000.000 dem deduzir parte do valor de seu imposto devido.10 Vale ressaltar que as empresas 30% R$ 500.000.000 jurídicas privadas foram responsáveis por 79% da captação de recursos desde 1993, 25% enquanto estatais tiveram participação de 19% e pessoas físicas de apenas 2% nesse R$ 400.000.000 mesmo período. Dessa forma, destaca-se o importante papel da Lei Rouanet na ins20% R$ 300.000.000 titucionalização dos incentivos às artes cênicas e a importância desses mecanismos 15% para a manutenção dessas atividades culturais. R$ 200.000.000

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Cabe, então, ressaltar a dimensão dos mecanismos de incentivo para as artes cê5% nicas. Enquanto os incentivos públicos e privados11 para atividades da música e do R$ 0% 12 audiovisual equivalem a 2% da receita bruta desses segmentos, nas artes cêni13 cas, eles são responsáveis por 24%. Esse é um contraste importante entre seto2020

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Gráfico 2: Composição do mecenato no setor de artes cênicas (1995-2020) 100% 90% 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10%

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Fonte: Elaboração própria a partir do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural.

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res de baixa e alta incorporação de progresso técnico. Música e audiovisual, com maior incorporação tecnológica e maior participação na receita bruta dos setores criativos (responsáveis por cerca de 12% em 2018), têm menos dependência de incentivos federais. A CARACTERIZAÇÃO DO MERCADO DE TRABALHO NAS ARTES CÊNICAS As especificidades setoriais do segmento cênico também carregam importantes implicações sobre as características do mercado de trabalho nessas atividades. Baumol & Bowen (1966), ainda na discussão sobre a “doença dos custos”, indicam que os rendimentos salariais nesse segmento (de baixa produtividade) podem crescer ao longo do tempo, porém a uma taxa menor do que os rendimentos nos setores de alta produtividade (NUNES, 2012).

De fato, analisando o rendimento salarial médio no segmento Artes cênicas e artes visuais, houve uma redução anual de 2,2% entre 2012 e 2021. Em contrapartida, no segmento Tecnologia da informação, intensivo em progresso técnico, ocorreu um crescimento de 1,7% ao ano no mesmo período. Além disso, o rendimento mensal neste último segmento é maior: 4.979 reais no primeiro trimestre de 2021, contra 2.333 reais nas artes cênicas.14 Todavia, houve notável melhoria das condições de trabalho no segmento cênico nos últimos anos no Brasil. Apesar das dificuldades históricas, conforme explicitado no Relatório de economia criativa 2010 da Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento (Unctad), houve um crescimento da formalidade no mercado de trabalho dessas atividades. Em 2015, apenas 36% dos trabalhadores do setor de Artes cênicas e artes visuais tinham relações formais de trabalho. Em 2020, esse número alcançou 44%.15 Em relação à composição do mercado de trabalho nos setores criativos no Brasil,16 destaca-se a relativa importância do segmento Artes cênicas e artes visuais. Mesmo abarcando apenas 0,4% da receita bruta criativa em 2018, concentrou 6% das ocupações dos trabalhadores dos setores criativos no mesmo ano. De maneira contrária, as atividades de tecnologia da informação, que tiveram 43% da receita bruta em 2018, foram responsáveis por apenas 16% das ocupações. Em comparação com países desenvolvidos, como o Reino Unido, a economia criativa brasileira concentra, ainda, um grande nível de ocupações em atividades menos intensivas em tecnologia (CAUZZI, 2019). CONSIDERAÇÕES FINAIS O segmento de artes cênicas possui diversas particularidades que diferenciam sua dinâmica econômica daquela de outros setores da economia – inclusive os criativos. A institucionalização da cultura por meio do estabelecimento de diretrizes e da adequação de mecanismos de incentivo parece estar relacionada com a expansão das potencialidades dessas atividades. As políticas de valorização e difusão cultural, além de direitos garantidos pela Constituição Federal de 1988, são centrais para o desenvolvimento do segmento de artes cênicas. Assim, a análise dos incentivos federais e da caracterização desse mercado de trabalho permitiu contemplar os avanços que o setor conduziu nos últimos anos na economia brasileira – e suas principais restrições.


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COMO CITAR ESTE ARTIGO SILVA, Larissa Couto da. A cena das artes: dimensões econômicas das artes cênicas no Brasil e a institucionalização dos incentivos públicos e privados. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.30.08 LARISSA COUTO DA SILVA Mestranda em economia do desenvolvimento na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e assistente de pesquisa no Núcleo de Estudos em Economia Criativa e da Cultura (Neccult) da mesma instituição. REFERÊNCIAS BAUMOL, W. J.; BOWEN, W. G. Performing arts: the economic dilemma. 3. ed. Boston: Princeton & Oxford MIT Press, 1966. BROOKS, A. C. Nonprofit firms in the performing arts. In: GINSBURGH, V. A.; THROSBY, D. (ed.). Handbook of the economics of art and culture. North Holland: Elsevier, 2006. p. 473-506. CAUZZI, C. L. Determinando os setores criativos brasileiros: aplicação do modelo de intensidade criativa. 2019. 158 f. Dissertação (mestrado em economia) – Faculdade de Ciências Econômicas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2019. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/ handle/10183/197195. Acesso em: 21 jul. 2021. CUNHA, André Moreira et al. (org.). Artes cênicas: estudos setoriais. Porto Alegre: Editora da UFRGS, 2020. DEPARTMENT FOR CULTURE, MEDIA & SPORT (DCMS). Creative industries economic estimates january 2014: statistical release. Londres: DCMS, 2014. Disponível em: ht-

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tps://www.gov.uk/government/ uploads/system/uploads/attachment_data/file/271008/Creative_Industries_Economic_Estimates_-_January_2014.pdf. Acesso em: 21 jul. 2021. HEILBRUN, J. Baumol’s cost disease. In: TOWSE, R. (ed.). A handbook of cultural economics. Cheltenham: Edward Elgar Publishing, 2003. p. 91-101. NUNES, B. F. A inovação na economia da cultura: analisando o papel da inovação na atividade teatral. 2012. Dissertação (mestrado em economia) – Instituto de Economia, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012. Disponível em: https://www.ie.ufrj. br/images/IE/PPGE/disserta%C3%A7%C3%B5es/2012/BERNARDO%20FURTADO%20NUNES.pdf. Acesso em: 6 set. 2021. OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL. Painel de Dados. Disponível em: https://www.itaucultural.org.br/ observatorio/paineldedados/pesquisa. Acesso em: 21 jul. 2021. THROSBY, D. The concentric circles model of the cultural industries. Cultural trends, v. 17, n. 3, p. 147164, 2008. UNITED NATIONS CONFERENCE ON TRADE AND DEVELOPMENT (Unctad). Creative economy report 2010. New York: Unctad, 2010. Disponível em: https://unctad.org/en/ Docs/ditctab20103_en.pdf. Acesso em: 21 jul. 2021. NOTAS 1. Informação retirada do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, referente ao segmento Artes cênicas e artes visuais. 2. Os incrementos de produtividade são dados com a diminuição dos insumos necessários para a produção de determinado bem.


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3. Baumol & Bowen (1966) explicitam

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três fatores para a restrição do reajuste do preço dos ingressos: relutância individual das organizações por motivações morais; posição dos produtos de artes cênicas na cesta de consumo dos indivíduos; e forças competitivas (NUNES, 2012). Incluindo trabalhadores criativos e não criativos empregados no segmento Artes cênicas e artes visuais. Informações retiradas do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. Recursos próprios da Lei do Audiovisual e do Fundo Setorial do Audiovisual (FSA). Informações retiradas do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural para a série histórica entre 1993 e 2020. Valores corrigidos pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) de jun. 2020. A Região Norte alterou sua participação de 0,2% para 1,8%; a Região Nordeste foi de 3,8% para 4,4%; e a Região Centro-Oeste diminuiu sua participação de 4,6% para 3,1%.

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10. Observado o limite de 6% para

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pessoas físicas e de 4% para pessoas jurídicas. 11. Incluindo FNC, mecenato, FSA e Lei do Audiovisual. 12. Para o cálculo da receita bruta, o Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural considera o segmento Cinema, música, fotografia, rádio e TV. Para fins de equivalência com os dados de financiamento federal, foram considerados os valores de incentivos para música e audiovisual. 13. Essa pode ser uma estimativa subestimada. Para o cálculo da receita bruta, agregam-se atividades de artes cênicas e de artes visuais em um mesmo segmento. Caso se considerem também os incentivos federais destinados às artes visuais, esses equivalem a 35% da receita bruta desse segmento, em média. 14. Informações retiradas do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. Valores corrigidos pelo IPCA de jun. 2020. 15. Informações retiradas do Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. 16. Idem.


Exílio (2015) | imagem: Daniela Paoliello


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9. Arte e tecnologia: itinerários de reexistências e transformações na arte do circo DANIEL DE CARVALHO LOPES https://orcid.org/0000-0002-2137-2060 ERMINIA SILVA https://orcid.org/0000-0003-3661-1623

Em 1909, o Circo Spinelli tinha como diretor artístico o multiartista Benjamim de Oliveira. Umas das grandes atrações tecnológicas do momento eram as projeções elétricas exibidas na montagem da opereta A viúva alegre no palco/picadeiro do circo. Ao longo da história, as artes em geral sempre se muniram das mais variadas produções tecnológicas, e a arte circense, em especial, incorporou e foi protagonista de todas elas: dos carros puxados por animais aos mais grandiosos navios; das projeções elétricas do cinematógrafo às composições holográficas; do rádio à televisão; da indústria do disco ao cinema; dos toldos de algodão às estruturas hidráulicas e comandadas por controle remoto.1 No entanto, a covid-19 colocou a população mundial em choque com o seu aterrorizante ineditismo, expôs nossa fragilidade para enfrentá-la e tem disparado outros processos de sociabilização atravessados pelo mundo virtual. É instigante pensar no quanto era inimaginável que estaríamos vivendo uma relação com as ofertas tecnológicas (como as digitais) que colocaria os artistas circenses diante de novos experimentos, considerando que durante mais de 200 anos experienciaram outros eventos pandêmicos. A gripe espanhola, ocorrida mais de cem anos atrás, não trouxe o mesmo desafio que o atual contexto tecnológico tem colocado para os artistas: a possibilidade de criar respostas artísticas diante da imposição do distanciamento social, que tem implicado a efetiva construção virtual do modo de produção das vidas, das artes e das reexistências. Hoje, experimentamos uma vida em grande parte mediada pelas mais variadas e complexas plataformas digitais de comunicação. Entretanto, o segmento artístico circense, historicamente desprivilegiado sob o ponto de vista das políticas públicas, é um dos mais impactados negativamente na atual conjuntura política do nosso país, o que resulta em construções de vidas precarizadas. Paradoxalmente, apesar desse desprestígio, foram os circenses que, durante mais de dois séculos, nas suas mais diferentes origens e produções, promoveram prazeres, magias e experiências culturais inéditas. Sob outro olhar, diante da íntima relação entre o desenvolvimento tecnológico e a construção das várias linguagens artísticas em suas contemporaneidades,


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uma pergunta nos parece relevante em meio a várias possíveis: nessa relação entre tecnologia e linguagem circense, qual é mais valorizada na sociedade atual? Uma possível resposta é que, por mais que consideremos a importância do fazer artístico como produção de vidas e de reexistências, ao longo da história e principalmente no atual momento de crise sanitária, o que se observa é uma priorização da relação entre tecnologia (na sua dimensão instrumental) e arte segundo lógicas que elegem a natureza mercadológica desse encontro. Antes de tudo, para adquirir valor, é preciso ser mercadoria – e isso inclui Entretanto, o segmento artístico circense, os corpos artísticos. historicamente desprivilegiado sob o ponto de vista das políticas públicas, é um dos mais Temos vivido um dos efeitos mais ne- impactados negativamente na atual conjuntura gativos dessa relação, a exclusão de política do nosso país, o que resulta em quem não consegue se colocar nes- construções de vidas precarizadas se processo de valorar a própria vida como mercadoria. Nessa dimensão, alguns grupos artísticos são mais vulnerabilizados que outros, como é a situação da maioria dos circenses, em particular dos pequenos circos itinerantes com ou sem lona e dos artistas que vivem da sua atividade no espaço da rua. Por tudo isso, discorrer sobre tecnologia e/ou sobre arte não é tarefa simples. E fica ainda mais complexa quando entendemos que a questão da tecnologia não se refere única e exclusivamente a um instrumento que seja útil para fazer certas coisas, como um celular ou computador, mas antes de tudo a saberes, se nos abrirmos para imaginar que eles são também tecnológicos e que possuem uma materialidade distinta dos instrumentos. Isto é, o saber antecede o instrumento que é a expressão de sua potência de criá-lo. Assim, queremos ampliar a percepção de que tecnologia é também um campo de saberes aplicáveis em sua dimensão de produção de instrumentos e de relações, e, nesse sentido amplo, é possuidora, antes de tudo, de uma importante dimensão imaterial.2 Essa outra percepção sobre as tecnologias vai bem além da luz elétrica, pois permite uma abertura para compreendermos a própria expressão do corpo em sua rica dimensão sensível, em suas expressões estéticas e comunicativas, inclusive como alta tecnologia humana – como nos ensina a Palhaça Rubra.3 Diante do amplo e complexo espectro das artes e das tecnologias, percebemos o quanto elas permanecem em forte simbiose: a tecnologia presente na composição dos fazeres artísticos; o fazer artístico constituindo o tecnológico; e, em meio à pandemia, a tecnologia da informação veiculando e servindo de palco ou interface para a transmissão das diversas expressões e produções artísticas. Vale uma consideração importante: muitas formações artísticas e festivais de dança, circo, música e teatro estão em alta no momento, mobilizando muita gente de Norte a Sul do país por meio de plataformas virtuais, e, em decorrência disso, novos públicos estão surgindo e acessando esses trabalhos artísticos. Portanto, é de extrema importância refletir sobre o significado e as consequências desta realidade para essas produções. Será que estamos vivendo um “efeito” pandêmico transformador? As tecnologias têm se tornado aliadas na ampliação e na valorização das artes na sociedade? Se já temos as artes mobilizadas fortemente tanto


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por meio das plataformas digitais quanto pelo desafio de criar novas linguagens para esse contexto, isso tem sido reconhecido como positivo ou como nefasto para o fazer artístico e sua expressão e inovação? Esses enigmáticos questionamentos se tornaram fundamentais neste momento e seus desdobramentos serão vistos com o avançar do tempo, de modo que obviamente não daremos conta de todos eles neste texto. No entanto, nessa expressiva simbiose entre arte e tecnologia que presenciamos nas circunstâncias atuais e que, com grande certeza, balizará esses dois campos no futuro, duas questões básicas se impõem. Será que todas as pessoas produtoras de artes que não possuem acesso direto ou facilitado às tecnologias da informação e, obviamente, necessitam sobreviver de seu ofício no presente momento terão chances de reexistir? E, se arte e tecnologia são elementos Diante do amplo e complexo espectro das artes fundamentais na história de diversas e das tecnologias, percebemos o quanto elas civilizações – e, principalmente, na permanecem em forte simbiose: a tecnologia atual crise sanitária mundial –, por presente na composição dos fazeres artísticos; o que há um efetivo abandono da arte e fazer artístico constituindo o tecnológico; e, em do artista na nossa sociedade? meio à pandemia, a tecnologia da informação veiculando e servindo de palco ou interface Tratando de forma mais direta esses para a transmissão das diversas expressões e dois pontos interrogativos por meio de produções artísticas. um olhar para a arte circense no país, partilhamos a seguinte consideração: mesmo diante das inúmeras produções circenses – sejam artísticas, sejam formativas – de extrema importância e relevância para a sociedade, imperam o descaso e o abandono por parte do poder público em relação a essas atividades e seus milhares e diversos artistas. Muitos artistas e formadores circenses ainda sofrem com a falta de acesso a recursos tecnológicos primordiais para realizar o seu trabalho nos rincões deste país. Assim, como resultante dessas forças, temos evidentemente uma dupla corrente contrária que impõe à arte circense um esforço de Hércules e um salto acrobático ainda mais extraordinário para manter-se viva na atualidade. Na pulsante simbiose entre tecnologia e arte que vivemos e de que necessitamos ainda há muito o que fazer, especialmente na busca por um acesso democrático aos seus vários instrumentos e, ao mesmo tempo, por garantias que permitam o desenvolvimento tecnológico na sua imaterialidade, como em saberes e processos relacionais produzidos por parte dos muitos coletivos que constituem, em sua diversidade, o mundo circense. Garantias que exigem a construção de propostas positivas por parte do poder público, considerando-se o circo um patrimônio imaterial da cultura brasileira e um lugar de criação e invenção de novos modos de se fazer arte. Isso demanda políticas e financiamentos que reconheçam e facilitem esse potencial. É preciso ver as produções circenses em toda a sua diversidade e, para isso, compreendê-las a partir dos seus diferentes segmentos, formas de fazer artístico e demandas em função dos modelos de trabalho e de organização. O circo, como um todo, precisa de projetos políticos e programas consistentes, e não apenas de editais, excludentes por natureza.


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Dessa forma, devemos ampliar a luta por garantias que sejam aliadas nucleares da potência constitutiva do fazer artístico como campo inovador de modos de existir, animador da produção de mais vidas nas vidas vividas e, como tal, campo de experiências sociais que podem gerar modos de reexistência mais interessantes e que impeçam a aniquilação indiscriminada de grupos e coletivos sociais. Isso toca de perto a arte circense, sem dúvida. Apesar de tudo, nessa simbiose, ainda bem que podemos conhecer e ver o multiartista circense Benjamim de Oliveira por meio de uma exposição virtual sobre sua vida e obra no projeto Ocupação Itaú Cultural. Quem diria, Benjamim, que depois de mais de cem anos de suas inovadoras projeções elétricas na opera A viúva alegre poderíamos conhecer suas artes, seus fazeres e seus saberes por meio da tela de celulares e computadores? Hoje podemos, de modo virtual, sentir sua força criadora e sua tecnologia humana adquirirem mais visibilidade perante a sociedade brasileira. Enfim, como bem cantou Belchior: “Deixemos de coisa, cuidemos da vida, pois senão chega a morte ou coisa parecida e nos arrasta, moço, sem ter visto a vida”.4

COMO CITAR ESTE ARTIGO LOPES, Daniel de Carvalho; SILVA, Erminia. Arte e tecnologia: itinerários de reexistências e transformações na arte do circo. Revista Observatório Itaú Cultural, São Paulo, n. 30, 2021. DOI: https://www.doi. org/10.53343/100521.30.09 ERMINIA SILVA Quarta geração circense no Brasil, filha de Barry Charles Silva. Doutora em história social da cultura pelo Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas (IFCH/Unicamp) e cocoordenadora do site Circonteúdo – o Portal da Diversidade Circense; do Circus – Grupo de Pesquisa em Circo, da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp; e do Grupo Psircos. É professora do Instituto Cultural Escola Livre de Palhaço (Eslipa) desde 2012 e autora de diversas publicações que estão disponíveis on-line em: www. circonteudo.com.

DANIEL DE CARVALHO LOPES Graduado em educação física pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), mestre em artes pela Universidade Estadual Paulista (Unesp) e doutor em educação pela Universidade de São Paulo (USP). É integrante, desde 2006, do Circus – Grupo de Pesquisa em Circo, da Faculdade de Educação Física (FEF) da Unicamp, e co-coordenador do site Circonteúdo – o Portal da Diversidade Circense. NOTAS

1. A respeito das incorporações

diversas realizadas pelos circenses, ver: SILVA (2007), LOPES (2015) e LOPES & SILVA (no prelo). 2. Ver: MERHY, 2016. 3. Lu Lopes, atriz, roteirista, musicista, improvisadora, palhaça e escritora conhecida artisticamente como Palhaça Rubra, afirma: “Dentro do nosso corpo, temos disponíveis gratuitamente tecnologias que geram autonomia criativa. São as


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tecnologias humanas. A ativação dos pilares complementares criativos no nosso organismo gera alta tecnologia humana”. Informação verbal fornecida pela artista em 15 jul. 2021. 4. Versos da música “Na hora do almoço”, do cantor e compositor Belchior, gravada no disco intitulado A palo seco, de 1974. REFERÊNCIAS LOPES, Daniel de Carvalho. A contemporaneidade da produção do Circo Chiarini no Brasil de 1869 a 1872. 2015. Dissertação (mestrado em artes cênicas) – Instituto de Artes, Universidade Estadual Paulista, São Paulo, 2015.

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LOPES, Daniel de Carvalho; SILVA, Erminia. Um Brasil de circos: a produção da linguagem circense no Brasil do século XIX aos anos de 1930. Campinas: Prêmio Funarte de Estímulo ao Circo 2019. No prelo. MERHY, Emerson Elias. En busca del tiempo perdido: la micropolítica del trabajo vivo en acto en salud. In: FRANCO, Túlio Batista; MERHY, Emerson Elias. Trabajo, producción del cuidado y subjetividad en salud. Buenos Aires: Lugar Editorial, 2016. SILVA, Erminia. Circo-teatro: Benjamim de Oliveira e a teatralidade circense no Brasil. São Paulo: Altana; Rio de Janeiro: Funarte, 2007.


Exílio (2015) | imagem: Daniela Paoliello


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10. Ensaio artístico DANIELA PAOLIELLO

Esta seleção é composta de imagens de Exílio, escavar o escuro, Que horas são no paraíso? e Das formas de produzir um arquipélago sem mar, trabalhos que atravessam quase dez anos de produção. Fazem parte de um conjunto de obras dedicadas a discutir a perda de si a partir das relações entre corpo e natureza, desenvolvidas majoritariamente por meio da autoperformance para a câmera. Pautados pela colocação do corpo em contato direto com o espaço a fim de produzir estímulos, esses Acesse o conteúdo do ensaio pelo trabalhos buscam relações miméticas com a natureza. O pro- QR Code ou pelo cesso criativo em questão funda-se em experiências de abalo do link: https://www. eu, de perda de si e de exposição do corpo às forças do mundo. itaucultural.org.br/ secoes/observatorioA relação entre corpo e espaço é central e é a partir de um mé- itau-cultural/revistatodo imersivo e experimental que as imagens são produzidas, observatorio/ensaioart%C3%ADstico tensionando-se limites e sacrificando-se na forma a unidade da forma. Esse método vem de um reincidente desejo: deslocar, desenraizar, desestabilizar. Criar uma poética de si, perturbar as estruturas do corpo, reinventar-se a partir da exploração de novos territórios afetivos e espaciais, criar pela perda. Um processo que se revela como um movimento que implica formular práticas do abalo de si, um corpo em vertigem que aceita perder(-se) para ganhar a possibilidade da invenção.1

DANIELA PAOLIELLO Artista visual residente em Belo Horizonte (MG). Graduada em ciências sociais pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e doutora em artes pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), é autora dos fotolivros Exílio e Que horas são no paraíso?. Foi ganhadora do XIII Prêmio Funarte Marc Ferrez de Fotografia e faz parte da coleção do Museu de Arte do Rio (MAR). Nos últimos anos desenvolve sua pesquisa por meio da autoperformance feita exclusivamente para a câmera (fotografia e vídeo) e da produção de uma autoficção.

NOTAS 1. FARIA, Priscilla Menezes de. Outra para si: a carne e o duplo. In: PAOLIELLO, Daniela. Exílio. Rio de Janeiro: Funarte, 2015.


Exílio (2015) | imagem: Daniela Paoliello



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