Observatório 28 - Cultura, artes e pandemia

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CULTURA PÓS-CORONAVÍRUS

ed.

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CULTURA, ARTES E PANDEMIA CENÁRIOS E TENDÊNCIAS APÓS A CRISE DO NOVO CORONAVÍRUS Pandemia: o “advento” de um outro mundo Comunicação, imagem e outros imaginários sociotécnicos Na cultura, o novo normal não pode olhar para trás

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A edição 28 da Revista Observatório traz artigos reflexivos e setoriais de artistas e pesquisadores que analisam e propõem possíveis cenários e tendências no campo das artes e da cultura para o mundo pós-pandemia.


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Memória e Pesquisa / Itaú Cultural Revista Observatório Itaú Cultural - N. 28 (dez. 2020/jun. 2021) – São Paulo : Itaú Cultural, 2007-. Semestral

ISSN 1981-125X (versão impressa) ISSN 2447-7036 (versão on-line)

1. Arte e Cultura. 2. Pandemia. 3. Gestão Cultural. 4. Políticas culturais. 5. Covid-19. I. Itaú Cultural Bibliotecário Jonathan de Brito Faria CRB-8/8697


expediente REVISTA OBSERVATÓRIO

Produção gráfica Lilia Góes

NÚCLEO OBSERVATÓRIO

Conselho editorial Andréia Briene Camila Nader Claudiney Ferreira Ediana Borges Edson Natale Gabriela Magagnin Guilherme Silva Kety Fernandes Luciana Modé Luciana Soares Marcel Fracassi Marcos Cuzziol Rafael Dantas Sofia Fan Tatiana Prado

Ensaio artístico Gabriela Gomes Keila Serruya Luís Evo Magali Moraes Maurício Pokemon Thaís de Campos

Gerência Marcos Cuzziol

Edição Luciana Modé Marcel Fracassi Preparação de texto Ana Tereza Clemente Projeto gráfico Marina Chevrand/ Serifaria Design Iara Pierro de Camargo

Ilustração André Toma Supervisão de revisão Polyana Lima

Coordenação Luciana Modé Produção Marcel Fracassi NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO

Revisão Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas)

Gerência Ana de Fátima Sousa

EQUIPE ITAÚ CULTURAL

Curadoria de imagens André Seiti

Presidente Alfredo Setubal

Produção editorial Luciana Araripe

Diretor Eduardo Saron

Coordenação editorial Carlos Couto


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aos leitores “Solitário. Mas não no sentido de estar sozinho. Solitário no sentido de recolhimento. No sentido de não ter de ver a si mesmo, de não ter de ver a si mesmo sendo visto por outra pessoa.” Paul Auster

O inimigo invisível estava em uma distante cidade da China e os cidadãos brasileiros viam com espanto as notícias que de lá chegavam no final do ano passado. O quanto deveriam se preocupar, já que se encontravam a milhares de quilômetros de Wuhan? Parecia intangível. No mundo globalizado, porém, há muito, e sempre, com o que se preocupar. No mundo da ciência também, porque rotas de viagens internacionais – a trabalho ou por lazer – colocaram o mundo em perigo. Foi assim que a epidemia do novo coronavírus, até então localizada, se tornou pandemia. E o Brasil não passaria incólume por ela – basta consultar o número de infectados e mortos. Nesta edição da Revista Observatório, preparada em home office, tratamos de como a arte e a cultura, fortemente impactadas pela covid-19, podem sobreviver por meses sem o que lhes é mais caro: o público. No campo da música e do teatro, uma novidade surgiu e, aparentemente, vai se perpetuar: a live – palavra que se incrustou no vocabulário pandêmico. É ela que permite que músicos toquem de suas casas e o editor de imagens, solitário, transforme esse momento em

alguns minutos de bom entretenimento. O ator passou a fazer monólogo com o que tinha à disposição como “palco”: sua própria casa. É o ideal? Pode não ser, mas é como se apresenta a nova rotina. Carlos Augusto Calil, um dos autores convidados desta edição, diz que, diante das incertezas do “que nos escapa à compreensão e ao controle, almejamos alcançar uma rotina confortável”. E, ao depararmos com doenças, queremos acreditar que sejam “suportáveis por corresponderem a uma suspensão do cotidiano com a promessa intrínseca de um rápido retorno à ‘normalidade’”. É justamente em estado de suspensão que estão vivendo todos os profissionais que trabalham na área cultural, com seus projetos bloqueados. Em um dos textos mais contundentes deste número, Teixeira Coelho questiona qual vida cultural inteligente virá depois do vírus: “Como, se os artistas não têm salário fixo, nem seguro-saúde, nem casa, nem respeito?”. Em tom pessimista, faz um exercício de futurologia ao perguntar: “Existirá um a.v. e um d.v. como houve um a.C. e um d.C.? E o que de fato mudou depois de cada ‘d.qualquer coisa’?”. Até agora, o d.v. é uma incógnita.


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Nesta edição, cujo tema é Cultura, Artes e Pandemia – Cenários e Tendências Após a Crise do Novo Coronavírus, discutimos na esfera das artes o agora, a pandemia em pleno curso, e o depois, o que nos reserva o “d.v.”. De uma complexidade crescente diante de um micro-organismo, a cultura está se ressentindo do fechamento de todos os espaços que fazem viva uma cidade. Mas nem tudo tem o sinal invertido, negativo: com o cancelamento de grandes shows, surgiram festivais on-line, como One World: Together at Home, com curadoria de Lady Gaga em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS), que alcançou um público de mais de 20 milhões de pessoas. Sua proposta era não somente amenizar o isolamento, mas também arrecadar fundos para o combate à pandemia. Daniela Ribas Ghezzi escreve justamente sobre o importante papel que a comunidade musical tem tido nestes tempos de recolhimento, como diz o autor norteamericano Paul Auster. Para além de combater o desânimo de quem está do lado de cá do celular ou do computador, músicos de todo o mundo têm produzido dezenas de festivais virtuais para continuar com sua arte, marcar seu território autoral e oferecer sua matéria-prima: a voz. Muitos foram os artistas que repensaram e reinventaram seus processos criativos fazendo uso contínuo do que está à mão neste momento, a internet. E, como diz Daniela, criaram “canais de discussão, de divulgação de boas práticas de isolamento e assepsia, de sistematização de boas práticas em política cultural e para a recuperação do setor, de levantamento de fundos para necessitados”. Nos 20 textos que compõem este número, seus autores contemplam um conjunto de

sugestões que podem dar algum alento à arte e a quem dela vive. Isabela Souza e Rebeca Brandão, a partir de suas experiências em gestão de projetos, fazem uma reflexão sobre como a cultura é vista por quem está no poder e quais são os fatores determinantes para elaborar as políticas públicas. Por ter nascido e crescido na Maré e por trabalhar no Observatório de Favelas, Isabela acredita que, para avançarmos como sociedade com menor nível de desigualdade, será preciso valorizar “a urgência de mulheres, de pessoas negras e de origem popular em espaços decisórios e deliberativos de governos e instituições”. Somente desse modo as políticas públicas poderiam ser reinventadas atendendo a demandas sociais. Rebeca amplia o debate ao dizer que não se pode “repetir velhas práticas excludentes, que colaboram diretamente para a manutenção de uma estrutura social racista, sexista e classista”. O impacto da covid-19, doença que fez a maioria das pessoas se isolar e não ter interação social, atingiu duramente museus e centros culturais, com portas fechadas desde o início da pandemia. Exposições são pensadas, desenhadas e programadas para atrair o que há de essencial para a sua sobrevivência: as pessoas. Como boa parte delas está em casa, não se sabe ao certo qual será o destino das mostras. Lucimara Letelier, fundadora do Museu Vivo, comenta em seu texto que, se o público está impedido de ir até um centro para ver arte, “o lugar de relevância mora mais no diálogo que sustenta a conexão ativa com o público [...] do que em seu espaço expositivo como elo principal de interação. Torna-se mais importante o que o museu tem a dizer do que o que tem a mostrar”. É uma abordagem diferente para os museus, que precisaram, ainda que involuntariamente,


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abrir mão da visitação tradicional. “O convite é novo aos museus: para se tornarem relevantes pelos conteúdos que possam trazer luz a futuros imprevisíveis, pelas lutas que travam ao lado de seus públicos, pelos caminhos que abrem para contextualizar debates públicos áridos, pelos apontamentos que ajudam na compreensão de impasses sociais (e políticos) ou pela prestação de serviços comunitários e sociais úteis à população.” Autores deste número alinhavam ideias que podem ser colocadas em prática no pós-pandemia. Arriscam dizer como será o mundo sem aquela realidade a que todos estavam acostumados, sem a convivência diária, sem a troca de aprendizagem e o ensino face to face. O que já se sabe é que o lúdico e o entretenimento não vão ter um fim. Talvez sejam necessárias outras linguagens artísticas sem que se perca a criatividade. A artista visual Rejane Cantoni conversou com a cientista Sabrina Maniscalco, da Universidade de Turku, na Finlândia, sobre como a tecnologia poderá levar o mundo a uma drástica mudança de comportamento. Para isso, será necessário o acesso aos meios de aprendizagem e às possibilidades de comunicação tecnológica sem que haja limitações financeiras. A cientista relata que “tornar a tecnologia acessível a todos é uma tarefa possível. O mais importante é respeitar os diferentes tipos de inteligência. [...] Todos os tipos, inclusive os que aprendem coisas de maneiras diferentes, que se utilizam de ferramentas diferentes [...] que utilizam o cérebro de maneiras diferentes, que utilizam métodos divertidos de aprender. E essa é uma aventura envolvente”. Para a filósofa Maria Clara Dias, outra profissional entrevistada pela artista, pensar

o futuro pós-pandêmico pode trazer esperanças: “Precisamos criar fóruns de debate. Fóruns inclusivos que permitam que todos os indivíduos, inclusive os que não têm poder de discurso, participem e apresentem suas demandas. E a arte, mais uma vez, pode ser uma ótima ferramenta. Antonin Artaud, por exemplo, quando entrava em cena e se contorcia, não precisava de palavras. Sua expressão corporal e seu rosto de agonia demonstravam todas as opressões que ele enfrentava. [...] E, ao perceber quais são as demandas reais, precisamos nos comprometer política, individual e coletivamente com a satisfação dessas demandas”. O número 28 da Revista Observatório propõe, por meio da visão plural de seus autores, pensar em como viver neste mundo agora – não o desejável, mas o possível – e em como será daqui para a frente. Ao desnudar todas as intempéries destes tempos de pandemia, sejam elas emocionais ou físicas, os autores trazem, com suas vozes legítimas, compreensão e empatia à realidade e ainda jogam luz sobre as desigualdades sociais – um dos marcos mais dilacerantes desta crise provocada pelo novo coronavírus. Que não se perca a esperança de que a ciência possa se sobrepor ao ceticismo. Como diz o poeta paraibano Ariano Suassuna, “não sou nem otimista nem pessimista. Os otimistas são ingênuos, e os pessimistas amargos. Sou um realista esperançoso. Sou um homem da esperança. Sei que é para um futuro muito longínquo. Sonho com o dia em que o sol de Deus vai espalhar justiça pelo mundo”. Texto escrito pela preparadora da revista sob coordenação da equipe do Observatório

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Arte como Respiro séries fotográficas Com o objetivo de movimentar a economia criativa de maneira rápida e eficaz em tempos de pandemia mundial do coronavírus, o Itaú Cultural (IC) lançou, entre abril e junho de 2020, a série de editais Arte como Respiro: Múltiplos Editais de Emergência. Na categoria Produção Artes Visuais, que recebeu trabalhos dos mais diversos segmentos de produção artística (pintura, vídeo, fotografia, gravura, performance etc.), lançamos algumas perguntas para refletir e trazer comentários sobre processos – e possibilitar diferentes perspectivas. “Na limitação do confinamento, como os artistas continuam suas produções? O que estão produzindo neste momento histórico? Como o isolamento social afeta o processo e/ou o resultado para a produção da obra?” A proposta não pedia – mas trazia esta opção – que o artista produzisse algo específico sobre o tema do isolamento; a questão se colocava mais aberta para o compartilhamento de impressões sobre as dinâmicas, dificuldades e/ou possibilidades da produção nesse cenário, no qual a interação se tornou mais limitada. O trabalho inscrito tinha de estar finalizado e poderia

ter sido realizado tanto antes quanto durante o isolamento. Para a categoria Série Fotográfica, a proposta foi pedir uma pequena seleção (série de nove imagens) que dialogasse com o momento de isolamento social, o que permitia apresentar imagens de um momento pessoal, narrativas ficcionais, registro documental, entre outras tantas possibilidades. A fotografia tem a tradição de compartilhar narrativas, de fazer o registro de fatos e momentos históricos. Percebemos que muitos fotógrafos seguiram produzindo imagens muito interessantes para refletir sobre este cenário. A seleção de nove imagens para o conjunto inscrito pedia um exercício de edição por parte do fotógrafo, e com isso cada foto traz sua própria mensagem e também dialoga com as demais imagens da série. Para esta edição da Revista Observatório, escolhemos seis artistas que foram contemplados no edital, cujos trabalhos dialogam com a proposta da publicação.

Sofia Fan gerente de Artes Visuais do Itaú Cultural


9. Aos leitores

Observatório Itaú Cultural

13. Arte como Respiro

Sofia Fan

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Tendências de uma nova sociedade

21. Pandemia: o “advento”

de um outro mundo Michel Maffesoli

28. Sair da covid-19: a urgência

de uma renda do cuidado Giacomo D’Alisa e Layza da Rocha Soares

2.

Tecnologias, comunicação e cidades

37. Por outros imaginários

sociotécnicos no novo normal Tarcízio Silva

52. Pandemia e protestos na instância da imagem ao vivo Eugênio Bucci

66. Você tem fome de quê? Sobre a política cultural necessária para e a partir de favelas e periferias Isabela Souza e Rebeca Brandão 78. Artes, ciências e tecnologias num mundo pós-pandemia Rejane Cantoni entrevista Sabrina Maniscalco e Maria Clara Dias

3.

A cultura, as artes e a reinvenção do imaginário

3.1. Os setores culturais

e seus públicos

98. O futuro dos museus

pós-pandemia: sobrevivência ou reinvenção? Lucimara Anselmo Santos Letelier

124. Mercado musical na pandemia: primeiros impactos e perspectivas para o setor ao vivo Daniela Ribas Ghezzi


sumário 137. Impactos gerados pela covid-19

187. Fazer cultura em meio

aceleram mudanças que estavam em curso no setor audiovisual Ana Paula Sousa

às guerras culturais Pablo Ortellado

144. Revolução digital Leticia de Castro

que roda Teixeira Coelho

149. Públicos promíscuos

208. Interativismo e o papel

Néstor García Canclini

3.2. A cultura e suas políticas – que rumos seguir

169. Na cultura, o novo normal

não pode olhar para trás Carlos Augusto Calil

174. Cultura e novos caminhos

para o desenvolvimento econômico no novo normal Leandro Valiati

180. Qual o papel dos

laboratórios culturais na sociedade pós-pandemia? George Yúdice

202. No ponto morto de um mundo

das artes e da cultura na ampliação do imaginário Jonaya de Castro

214. O corpo que dança e canta Sandra Benites Guarani Nhandewa 220. O curador como sismógrafo do sofrimento: a gestão cultural entre expressão, representação e acontecimento Christian Ingo Lenz Dunker

3.3. Planejar o futuro… um ensaio 228. Deixa eu te ver, peixe Carol Rodrigues

Os textos/entrevistas desta revista não necessariamente refletem a opinião do Itaú Cultural.


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Magali Moraes Mulher preta, fotógrafa e soteropolitana, fotografou nomes da música como a banda norte-americana Maroon 5. É fotógrafa do grupo Olodum e professora do curso de fotografia no Teatroescola destinado a jovens negros, além de idealizadora do projeto fotográfico Cara Preta. Em 2020, recebeu o Troféu Ujamaa.


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Em meio a uma pandemia, todos nós nos voltamos para o interior de nossas casas. Isolados na perspectiva interna, passamos a ver o mundo emoldurado por nossas janelas. Externamente, o mundo em dialética, ele passa a nos observar através dessas mesmas janelas. A série Mundo Emoldurado retrata a observação desse novo mundo restrito e a mudança de perspectiva do outro. Passamos a enxergar o outro como silhuetas em janelas, carregadas de história, solidão e vida.

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TENDÊNCIAS DE UMA NOVA SOCIEDADE

21. PANDEMIA: O “ADVENTO” DE UM OUTRO MUNDO Michel Maffesoli

28. SAIR DA COVID-19: A URGÊNCIA DE UMA RENDA DO CUIDADO Giacomo D’Alisa e Layza da Rocha Soares


Michel Maffesoli

TENDÊNCIAS DE UMA NOVA SOCIEDADE

PANDEMIA: O “ADVENTO” DE UM OUTRO MUNDO Michel Maffesoli

E o que seria esse tal “advento”? Não seria o tempo de espera do surgimento de um mundo diferente? Não seria o tempo de um renascimento, de uma vida nova para a cultura, que redescobre o sentido do invisível, do sagrado?

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prendemos com as ciências humanas a diferença essencial entre o drama e a tragédia. O drama é o teatro popular aburguesado, com o marido, a esposa e a amante. Pode gerar sentimentos de tristeza, mas sempre tem uma solução. O trágico, ao contrário, é aporia, a ausência de uma solução: o fim de um amor, a inevitabilidade da morte, a finitude humana. É esse trágico sentimento existencial que experimentamos com a crise do novo coronavírus, principalmente depois que foi declarado o estado de guerra e que o confinamento foi instaurado em quase todos os países, em alguns de maneira mais centralizada que em outros, em alguns de modo mais autoritário, em outros na base dos incentivos. A crise da saúde marca o fim de uma era, o fim da modernidade. Mas já neste período se esboçam os valores que marcam a pós-modernidade. O mundo do depois já está aqui.

Crise da saúde, crise da civilização O que deve ser observado é que as diferentes decisões mais ou menos racionais – às vezes um pouco politiqueiras e geralmente desordenadas – dos diferentes Estados não são mais percebidas como a solução possível de uma crise unicamente da saúde, mas como o fim de uma era. Os grandes paradigmas do progressismo moderno, o materialismo, o economicismo, a negação da morte, a crença em um prolongamento sem fim da vida e o individualismo estão saturados e a crise da saúde é, também, uma crise da civilização. O caráter pandêmico, ou seja, o de uma epidemia que se espalhou em muito pouco tempo por todo o mundo, é a característica essencial desse patógeno, e é a partir desse ponto que ele é paradigma e testemunha de uma mudança de época, a transição da modernidade para a pós-modernidade. O que é característico

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dessa crise é uma espécie de pânico das elites, a desesperança dos cientistas com as terapias existentes, a incapacidade de agir racionalmente, de detectar, tratar, colocar as pessoas atingidas em quarentena e, finalmente, usar uma medida inédita em escala mundial, ou mesmo em um país inteiro: o confinamento de todos, exceto o de pessoas cujo trabalho físico seja essencial para cuidar do país e alimentá-lo. Contenção é, de certa forma, uma resposta pós-moderna à situação de pandemia causada pelo consumo excessivo, pela exploração da natureza e pela extrema globalização: o retorno ao essencial, ao consumo local, ao comércio local, à proximidade entre as pessoas. O confinamento, medida emblemática dessa crise, traduz a impotência da ciência médica e farmacológica em relação a esse novo vírus – contra o qual nem vacina, nem medicamentos, nem as simples medidas de higiene demonstraram eficácia – e a desestruturação de todo um sistema social construído sobre o economicismo, o globalismo e o produtivismo. O confinamento não é um retiro individualista, cada um tentando se proteger contra o contágio, mas uma estratégia coletiva com o objetivo de proteger a comunidade local e nacional contra uma intensidade de contaminação tão grande e tão rápida. De qualquer modo, foi ao estabelecer esse objetivo altruísta que o confinamento pôde ser respeitado. Havia, pelo menos no começo do exercício, uma certa alegria popular. Daquela que se vê no início de todas as guerras, quando os soldados enfeitam seus fuzis com flores.1 É claro que as tristes notícias

sobre as próximas mortes abalarão esse consenso otimista. O fato é que o confinamento não é vivenciado no modo individualista de autopreservação, mas sim deu origem a muitos rituais que visam restaurar um ser inteiro: as trocas nas redes sociais; os vários blogs de confinados; as manifestações nas “janelas”, às vezes musicais, às vezes políticas, como no Brasil, onde são as manifestações contra o presidente que levam as pessoas às janelas; gestos de voluntariado (cuidando dos filhos dos trabalhadores da saúde, ajudando esses profissionais nos estabelecimentos médico-sociais ou simplesmente fazendo compras para vizinhos ou telefonando regularmente para pessoas solteiras). Gestos que mostram que, paradoxalmente, o confinamento leva a uma abertura. É essa energia altruísta que permite que as várias medidas para conter a propagação do vírus sejam respeitadas. E não uma superpolitização ou uma ampliação do rigor administrativo que rapidamente se desgastaria e provocaria reações de desobediência ou rejeição. A questão é de respeito no longo prazo por essa restrição, apesar de seus efeitos sobre a economia e da perspectiva amplamente divulgada de um colapso generalizado do sistema monetário e até da estrutura produtiva em nível global. É por isso que as primeiras violações do confinamento generalizado foram feitas pelas próprias autoridades, aterrorizadas pela crise política e econômica que ele pode gerar. As autoridades políticas de alguns países, como o Brasil, a Grã-Bretanha e, é claro, países do Oriente Médio,


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simplesmente negaram o caráter pandêmi- triagem, permitindo rejeitar o que deve ir, co, considerando sacrificar descaradamente mantendo-se o que merece. os operários e outros proletários que maneAssim, o próximo mundo já está aí. Ele jam o aparato de produção. Os representan- se exprime, silenciosamente, na difusa destes do patronato também trabalharam pelo confiança diante das mentiras oficiais. Prefim, o mais rápido possível, desse parêntese missas de revoltas populares, do massacre “a-econômico”. Esse tipo de atitude nega- político que certamente acontecerá quando cionista provocou vários casos de revolta a situação da saúde se acalmar. É quando as daqueles que se consideram tratados como contas chegarão à classe política, às elites escravos modernos: entregadores, operá- tecnocráticas e pseudocientíficas, a todos rios, caixas de supermercado etc. aqueles que têm o poder de dizer e fazer e que De qualquer forma, esse curioso período estão mais preocupados em defender seus de confinamento é um dos sinais que anun- interesses, em legitimar sua imprevidência ciam que, mais ou menos no e despreparo, trabalhando pecurto prazo, chegaremos ao O confinamento seria los interesses financeiros em fim deste mundo: o do merca- como uma espécie vez de organizar uma resposdo de ações e dos investido- de advento. Não a ta, com a honestidade e o emres, o do consumo frenético, o expectativa da resolução pirismo necessários. Mas, em do crescimento ad nauseam, da crise, a restauração da vez de perguntar “por quem o da exploração da natureza; ordem econômica e social os sinos tocam?”, é melhor deste mundo de materialis- moderna, mas a esperança estar atento às razões pelas mo industrial e financeiro. de um renascimento quais eles tocam. O confinamento seria, Haverá o aguardado julassim, como uma espécie de advento. Não a gamento da globalização sem limites. Globaliexpectativa da resolução da crise, a restau- zação sendo, não esqueçamos, a consequência ração da ordem econômica e social moderna, lógica do economicismo dominante, de um mas a esperança de um renascimento. materialismo sem horizonte. Tudo isso culLembremo-nos das grandes epidemias, minou em uma sociedade de consumo sem a peste de 165,2 que acompanhou o fim do Im- limites, tornando cada um escravo dos objetos pério Romano, a do século XIV,3 que marcou que pensa possuir. o fim da Idade Média: crise de saúde, crise da Más notícias para os pseudocientistas civilização. que são os economicistas. Suas previsões, verdadeira astrologia do mundo moderno, Saturação dos valores não serão mais a base da ação política que da modernidade deve governar a vida social. Em seu sentido etimológico, a crise – não deO que a peneira manterá é a política que vemos esquecer – significa tanto julgamento retorna ao seu significado original, à pólis, à quanto peneira. O julgamento daquilo que, cidade. Pode-se pensar, de fato, que é a protendo tido seu momento, está cessando. E ximidade entre as pessoas que prevalecerá.

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Propus, como definição de pós-moderO localismo dá um novo significado às palavras usadas atualmente, sem que se preste nidade, a “sinergia do arcaico com o desenatenção em seu significado verdadeiro e pro- volvimento tecnológico”, ou seja, as tribos ou fundo: território, terroir,4 ou mesmo o país comunidades e a internet. como “lou pais”.5 O que compartilhamos com É isso que, além do julgamento contra os vizinhos. Em resumo, para colocá-lo em o progressismo, a crise como peneira vai termos metafóricos, a McDonaldização do preservar. Arcaico (arché) significa aquilo mundo pode continuar por algum tempo, que é primeiro, fundamental. Dessa maneira, mas é o retorno do cassoulet, ou da feijoada, graças à tecnologia, há um retorno a esses que merece atenção. valores primordiais que são generosidade, Lembremos: o que fez solidariedade, ajuda mútua, a grandeza de Roma foi a O que a peneira manterá compartilhamento, volunconsciência da importância é a política que retorna tariado e outras formas da do limite simbolizado pelo ao seu significado dimensão espiritual de estardeus Término, protegendo a original, à pólis, à cidade. mos todos juntos. vitalidade da cidade. Foi ao A McDonaldização do E são muitos os exemplos se esquecer disso que veio a mundo pode continuar cotidianos que ilustram a desdecadência romana. por algum tempo, mas é valorização do quantitativo e a Julgamento contra o pro- o retorno do cassoulet, valorização do qualitativo. gresso, cujos benefícios foram ou da feijoada, que As pistas disso, as previstos de maneira ingênua, merece atenção missas das revoltas populares, mas cujos aspectos destrutisão, com a ajuda da internet, vos agora não têm como ser mais óbvios. A as “aparições” nas sacadas. Na França, fodevastação ecológica prova isso. ram os aplausos e os concertos de panelas É interessante notar que são os propo- para homenagear os trabalhadores da saúde nentes da globalização e do economicismo pública, que poucos meses antes haviam sido que ainda proclamam (ou pelo menos pro- humilhados e espancados pelas autoridades. clamavam, até recentemente) os benefícios Na Itália, cantam juntos para lembrar que, e a necessidade de um progressismo que ga- apesar da morte, a vida coletiva continua. No rante a felicidade futura. Os “lendemains qui Brasil, vaiam um presidente mais preocupachantent”,6 de sinistra memória! do com os interesses dos poderosos do que A flecha do tempo progressista, vetor com a saúde do povo. Existem muitos exemda sociedade perfeita por vir, parece cada plos nesse sentido, anunciando o surgimento vez mais ultrapassada. É, em termos de do próximo mundo. imagem, a espiral que a sucede. O que as A crise como um julgamento do cienmentes iluminadas chamam de filosofia tificismo que erigiu em dogma. Na França, progressiva. Progressividade aprimorando o debate entre os defensores de um metoum presente baseado no passado e garanti- dologismo exacerbado e os proponentes de dor do futuro. uma medicina empírica, mais ocupada com o


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tratamento que com testes clínicos randomi- o que o sociólogo italiano Vilfredo Pareto7 zados e outras medidas estatísticas, ilustrou chamou de “circulação das elites”. Quando a a falência desse cientificismo. Certamente as decadência de uma era é bem evidente, essa decisões políticas foram baseadas nas opi- “circulação se torna inevitável”. Os defensoniões de um conselho científico, mas, por um res da globalização, do economicismo domilado, esse conselho nem sempre se atreveu nante e do progressismo estão preocupados. a se opor ao poder e, por outro, nunca soube E, em particular, essa “casta internacionaadmitir que a ciência, nesse caso, não poderia lizada”, essa elite ocupando as posições de fornecer nenhuma certeza. Porque a ciência, “chefes”, altos funcionários, políticos, até com sua crença modernista jornalistas ou cientistas, tona própria onipotência, não Propus, como definição dos reunidos em um “clube” é capaz de admitir a relativi- de pós-modernidade, dos mais deletérios. Elite dade da verdade, ou seja, que a “sinergia do arcaico totalmente desconectada com o desenvolvimento não existe uma verdade única, do “povo”, mesmo quando mas uma constelação aleteo- tecnológico”, ou seja, afirma falar em nome dele. lógica. Nesse caso, não foram as tribos ou comunidades É, sem dúvida, a saturatanto os testes randomizados e a internet ção desse húbris economicisde laboratórios especialmenta, cientificista, racionalista, te interessados ​​em maximizar seus lucros globalista, revelado pelo novo coronavírus. que foram eficazes, mas a multidão de gestos O confinamento poderá terminar com uma terapêuticos compartilhados e discutidos, explosão ou uma implosão, mas, de qualquer usando redes sociais, entre os médicos. Um forma, marcará o surgimento de novos valomedicamento empírico, colaborativo e com- res, mais locais, mais respeitosos da tradição, passivo com os pacientes acima de tudo. e de uma nova ordem desembaraçada da tenA crise como um julgamento de uma tação de dominar o mundo. elite em perdição, que sobrevive apenas pela e graças à mentira. Foi referindo-se a O próximo mundo já está aqui essa mentira que Platão nos alertou contra O retorno da vida social de “estar com ala teatrocracia. guém” nos lembra de que as leis são sábias Uma teatrocracia na qual vários líderes quando não revogam as da natureza. Leis políticos, vibrantes como o presidente fran- naturais do ideal comunitário, leis que rescês, estão sempre a trocar de papéis e dis- peitam a casa comum. Todas as coisas se cofarces. Outros, como o presidente brasileiro, nectam a um determinado lugar, lembrando escondem sob a pose de manifestante popu- o dinamismo das raízes. lista o desejo de preservar acima de tudo os Mas, como costumo dizer, o fim de um lucros das grandes empresas. E poderíamos mundo não é o fim do mundo. Aprendemos, fornecer outros exemplos. juntos, a prever o fim do mito do progresso. Neste mundo em gestação, nesta pe- Hospitais, médicos, políticos e administradoneira da crise, o que promete acontecer é res não podem impedir que sejamos mortais

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e que a natureza se lembre de nós. Se o novo modo, acho que os vários sinais que analisei coronavírus não é um produto da tecnologia, anteriormente fazem parte da relação com o sua disseminação está diretamente ligada ao sagrado da pós-modernidade: não mais uma globalismo, aos ditames do produtivismo e da transcendência que apenas se vê, mas o que economia financeira. Diante disso, o confina- eu chamaria, com muita tranquilidade, de mento restaura o sentido do local, das raízes transcendência imanente. aqui e agora, do ideal de uma comunidade Não é mais uma religião com dogmas rígimais forte do que os interesses individuais. dos e predefinida por um poder que vem do alto, Nisso, é de fato o “advenmas uma atmosfera religiosa O fim de um mundo to” de um renascimento, de e cultural, uma religiosidauma cultura que redescobre o não é o fim do mundo. de, um sagrado que permeia sentido do invisível, do sagra- Aprendemos, juntos, a toda a vida social, toda a vida do. O advento é esse período prever o fim do mito do cotidiana. Uma atmosfera progresso. Hospitais, de espera, não de um evento, que pode ser resumida com mas de um aparecimento, do médicos, políticos e a expressão do filósofo espasurgimento de um novo mun- administradores não nhol Ortega y Gasset: “impedo. Tomo novamente a metá- podem impedir que rativo atmosférico”. sejamos mortais e que a fora cristã da Nova Aliança, É nesse sentido que inaugurada pelo nascimento natureza se lembre de nós falo do advento. O advento (Natal) de Cristo. Isso não é não é um período histórico, apenas interessante historicamente (even- mas um período ritual que se repete a cada to), mas antropologicamente. Inaugura ano e que determina um clima, o do sagrado uma nova forma de relacionamento com o diário e comunitário. Em suma, pensar o visagrado, o espiritual, o cultural. Do mesmo sível a partir do invisível!


TENDÊNCIAS DE UMA NOVA SOCIEDADE

Michel Maffesoli

Michel Maffesoli Professor emérito da Sorbonne e membro do Instituto Universitário da França.

Notas 1

“La fleur au fusil”, no original. A expressão francesa surgiu no contexto da Primeira Guerra Mundial e, hoje, descreve uma animação despreocupada, ingênua e incauta.

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Também conhecida como peste dos antoninos, a doença matou cerca de 5 milhões de pessoas e devastou o exército romano, tendo início no ano 165 e persistindo, com maior ou menor força, até o ano 180.

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A peste negra foi a mais terrível pandemia na história da humanidade. As estimativas de mortos vão de 75 milhões a 200 milhões de pessoas. Calcula-se que a Europa tenha perdido até 60% de sua população.

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O termo francês “terroir” significa espaço geográfico em que se cultivam videiras, considerado como homogêneo quanto aos recursos naturais que influenciam a viticultura, principalmente o clima, o solo e a topografia.

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Um modo antigo, do francês provençal, de dizer “le pays”, ou seja, o país. Tem conotação carinhosa. É semelhante a dizer, em português, que determinada pessoa ou produto (uma cachaça ou um doce, por exemplo) é “da terra”, “da terrinha”.

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Em português, “amanhãs que cantam”, trecho de “Jeunesse”, famosa canção francesa de 1937, de autoria do compositor Arthur Honegger e do escritor comunista Paul Vaillant-Couturier.

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Vilfredo Pareto (1848-1923), sociólogo, economista e cientista político italiano.

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SAIR DA COVID-19: A URGÊNCIA DE UMA RENDA DO CUIDADO Giacomo D’Alisa e Layza da Rocha Soares

Este artigo é resultado de uma reflexão sobre os tempos de cuidado durante a expansão da covid-19 na Europa. Trata-se de uma experiência preliminar, que pode ser muito útil para pensar em algumas experiências no Brasil. A necessidade de distanciamento físico e de ficar em casa ocasionada pela expansão da pandemia do novo coronavírus tornou, de certo modo, mais notável a existência de atividades de cuidado e de reprodução, essenciais para garantir o bem-estar das pessoas – como preparar refeições, limpar a casa, cuidar de crianças, idosos e doentes, garantir maior estabilidade emocional. Nesse contexto, o presente artigo propõe uma reflexão sobre essas atividades e, principalmente, destaca a urgência de se criar uma renda do cuidado1 que reconheça a importância de colocar a vida como questão central para sair das múltiplas crises nas quais o mundo ocidentalizado se encontra.

Q

uando o novo coronavírus se reproduziu exponencialmente na Europa, o slogan “Eu fico em casa” começou a se espalhar. Essa expressão foi usada pela primeira vez pelo governo italiano,2 em relação a medidas de contenção e manejo da emergência epidemiológica da covid-19 em todo o território nacional. Logo depois, influenciadores da cultura popular italiana aderiram à campanha “Eu fico em casa”,3 que tinha por objetivo reduzir aglomerações. Tornou-se rapidamente senso comum o dever de se isolar e cuidar de si mesmo para não infectar os mais vulneráveis, situação que poderia levar ao colapso de hospitais e unidades de

terapia intensiva. O slogan se espalhou por toda a Europa e além. Por compreendermos a importância dessa consequência social produzida pelo novo coronavírus – a obrigação de ficar em casa –, que afeta desproporcionalmente grupos de pessoas específicos,4 mas não irrelevantes, propomos neste artigo a centralização do potencial transformador do senso comum generalizado na pandemia, segundo o qual ficar em casa é a melhor coisa a ser feita até então. Em abril de 2020 existiam pelo menos 4,5 bilhões de pessoas, em 110 países, confinadas em suas casas.5 A hipótese que norteia este artigo é de que o cuidar de si mesmo e da própria


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comunidade e a vulnerabilidade interdepen- bem-estar e o ambiente socioambiental em dente que nos caracteriza assumiram um que vivemos. Todas as organizações sociais papel importante desde o início da pandemia dedicam uma quantidade enorme de tempo de covid-19. Uma centralidade que oferece a para apoiar e cuidar das relações humanas possibilidade de abandonar a ideia de que o e dos recursos naturais – água potável, ar, crescimento econômico serve para resolver comida, madeira etc. –, que servem para a todos os problemas da humanidade,6 e de colo- própria reprodução. Esse fluxo invisível de car o cuidado como fundamental na discussão horas de trabalho não remuneradas (D’ALIsobre qual vida vale o custo de ser sustentada, SA; CATTANEO, 2012) também é grande nas durante e depois do que estamos vivendo. sociedades industriais e digitais. Pode-se aproveitar a oportunidade A falta de dignidade atribuída ao tratransformadora desse contexto e da inten- balho de cuidado também é explicada pelo sificação de campanhas e projetos de renda fato de que são principalmente as mulhebásica para superar a crise epidemiológica res (no Brasil, especialmente as negras)8 em diferentes países7 e proquem organiza, estrutura e por a criação de uma renda A intenção não é retornar realiza essas atividades que do cuidado por longo prazo. à normalidade, mas subsidiam invisivelmensim tornar visíveis e A intenção não é retornar à te a economia de mercado normalidade, mas sim tornar redistribuir de forma (PICCHIO, 2012). Isso é visíveis e redistribuir de for- mais justa as atividades confirmado por pesquisas ma mais justa as atividades de cuidado e reprodução detalhadas sobre o uso do de cuidado e reprodução den- dentro de cada país tempo (JAMES, 2012). Não tro de cada país. é de surpreender, portanto, Uma proposta de renda do cuidado para que foram as feministas negras (FEDERIo Brasil reconhecerá o imenso trabalho que CI, 2013) e, posteriormente, o pensamento as mulheres, especialmente as negras, rea- feminista radical (SALLEH, 2017; GREGOlizam para sustentar o bem-estar e a saúde RATTI; RAPHAEL, 2020) que revelaram das pessoas, transformando profundamente a importância dos tempos de cuidado e da a sociedade. A visibilidade da imensa quanti- reprodução da vida, e que tornaram possídade de cuidados realizados, principalmente vel a discussão sobre quanto vale a vida e a por mulheres, tão importantes na Espanha alegria de ser mantida. A análise foi enrie na Itália, se faz ainda mais necessária no quecida e ampliada pela abordagem ecofeBrasil, para transformar o padrão colonial, minista (FRASER, 2020).9 patriarcal, racial e de classe do país. Além de sua importância, a pandemia aumentou o tempo das atividades de cuiOs tempos de cuidado antes, dado e reprodução. Pense nas filas criadas durante e depois da covid-19 nos supermercados ou nas farmácias e no As atividades de cuidado são o conjunto respeito necessário para se manter uma disde ações diárias realizadas para garantir o tância de segurança; na limpeza repetida de

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nossas mãos; na lavagem mais frequente das Paulo, onde foi registrado um recorde: de roupas que usamos; nos processos de higie- 15,9 mil pessoas em 2015 para 24,3 mil em nização de tudo que pode estar em contato 2019 (FRASER, 2017). com o vírus nas saídas raras para a compra Nesse sentido, ficar em casa por conta de alimentos e medicamentos (telefones, da pandemia tem, portanto, um resultado chaves, óculos etc.). Pense em como isso duplo: mostra a importância de cuidar de pode afetar aqueles que precisam associar um sistema social que coloca a vida no ceno período de ficar em casa com o home office, tro e indica que colocar a vida no centro, em assim como os trabalhadores da saúde e de um sistema de mercado que normalmente não a considera, é insusoutras áreas produtivas que permanecem ativos Quando se vive em pequenos tentável para muitos. A durante o isolamento so- espaços com muitas pessoas, crise do cuidado (FEDERICI, 2019) – denunciacial. A condição “forçada” com dificuldades de acesso da nos últimos anos pelo também aumenta, entre a água potável, saneamento feminismo radical –, ou a outras coisas, o número básico, materiais de limpeza crise da reprodução,13 é o de atos de violência contra e boa alimentação, os resultado de uma pressão mulheres e crianças. riscos de contaminação e as que a expansão da ecoAlém disso, em re- adversidades do isolamento nomia capitalista exerce giões mais vulneráveis, são extremamente maiores sobre as atividades que como muitas favelas no Brasil, ficar em casa pode ser ainda mais permitem o sustento da pessoa e dão senpenoso. Quando se vive em pequenos espa- tido à vida.14 Tudo isso em uma economia ços com muitas pessoas, com dificuldades em constante necessidade de expandir de acesso a água potável, saneamento bá- os tempos de produção em conflito com sico, materiais de limpeza (como sabão ou o tempo de cuidados e reprodução, como álcool em gel) e boa alimentação, os riscos evidenciado pelo contexto da pandemia. de contaminação e as adversidades do isolamento são extremamente maiores. Nes- Renda do cuidado a uma sociedade sas condições, as saídas imprescindíveis que vai além das pandemias para o trabalho – muitas vezes informal10 Falar de uma renda básica de assistência – podem expor ainda mais o trabalhador, que vai além das pandemias pode levar a bem como a comunidade para a qual ele mal-entendidos. Um exemplo é o auxílio retorna. As operações policiais nas fave- emergencial aprovado pelo governo federal las, além de afetar a população em isola- brasileiro, que é temporário, não corresponmento, impossibilitam que organizações de a uma renda básica universal, acabou por assistenciais concedam suporte a essas causar aglomerações de muitos trabalhacomunidades.11 Sem falar no número cres- dores (seja para cadastro, seja para rececente da população em situação de rua,12 ber o auxílio) e restringiu o acesso de uma como na cidade mais rica do Brasil, São grande parcela da população por conta da


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necessidade de um aplicativo para a reali- pela pandemia. Seu objetivo é reconhecer a zação do cadastro, entre outros problemas. centralidade dos trabalhos reprodutivos e Neste artigo, mostramos que renda bá- assistenciais – atos de cuidado –, que consica corresponde a uma alocação monetária tribuem substancialmente para o bem-esincondicional (para todos os residentes de tar das pessoas em todas as comunidades uma determinada nação), cujo uso depende políticas, e remunerar as pessoas que, queinteiramente da escolha de quem a recebe, rendo ou não, realizam esse esforço matevisando garantir as condições materiais mí- rial e psicológico diariamente. nimas para uma vida decente.15 Essa abordagem feminista está na Nos últimos anos, as discussões sobre luta dos movimentos por salários pelo traa necessidade ou não de uma renda básica balho doméstico (Wages for Housework se multiplicaram. Existem aqueles que a de- Movement) e pela greve global das mulheres fendem porque acreditam que o mercado não (8M).16 Diferentemente das outras abordagarante um salário digno para a maioria da gens (liberais, republicanas ou social-demopopulação e/ou que o desenvolvimento da cratas), essa não pede uma renda com base automação e o uso produtivo da inteligên- no direito abstrato de levar uma vida digna cia artificial podem marcar de ser vivida. Embora não o fim do período do trabalho A renda do cuidado – negue a legitimidade desse assalariado em massa. direito, reivindica uma rendemanda de diferentes Uma renda básica vem movimentos feministas do da do cuidado para o que é sendo defendida por dife- mundo – é uma resposta feito todos os dias. Signifirentes vias políticas, como subversiva à atual crise ca requerer o montante do liberais, republicanas e so- do sistema econômico, valor social que é invisícial-democratas (JAMES, agravada pela pandemia vel, em geral, para que seja 2012). Embora claramente apropriado devidamente por distintas, essas abordagens compartilham aqueles que a produzem. um ponto fundamental: o propósito da renO momento atual é mais que propício da tem como base um direito abstrato. A para aprimorarmos nossas capacidades de renda básica universal garante o direito de cooperação e exigirmos, por meio da renda desfrutar de uma vida decente, o direito de do cuidado de longo prazo, uma recuperação viver a ideia de liberdade e de ter sentido da riqueza social por aqueles a quem perna vida – é acessível a todos, não apenas tence. Para alcançar esse objetivo, devemos aos pobres. No entanto, a renda do cuida- lutar para que 99% da população não perdo – demanda de diferentes movimentos ca suas casas e seus empregos ao final da feministas do mundo – se baseia na ne- pandemia; devemos reivindicar que todos cessidade concreta da vida. Uma renda é possam pagar por comida, aluguel, escola, solicitada pelo trabalho realizado. A ren- eletricidade e gás. Seria um grande processo da do cuidado é uma resposta subversiva à de redistribuição no qual quem precisa leva atual crise do sistema econômico, agravada e quem pode coloca.

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Giacomo D’Alisa Economista ecológico e ecólogo político. É pesquisador no Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra, em Portugal, tendo sido premiado com a bolsa de estudos da FCT Pós-Doc para um projeto de pesquisa na área dos commons. É também membro do Escritório de Ecologia e Sociedade da CES e membro-fundador da associação Research & Degrowth, de Barcelona, na Espanha.

Layza da Rocha Soares Doutoranda em economia pela Universidade Federal Fluminense (UFF), mestra em economia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), diretora regional da Sociedade Brasileira de Economia Ecológica e pesquisadora do Núcleo de Estudos em Economia e Sociedade Brasileira (NEB) da UFF e do Grupo de Pesquisa em Financeirização e Desenvolvimento (Finde) da mesma instituição. Tem experiência nas áreas de economia do meio ambiente e desenvolvimento econômico.

Referências BRASIL. Os desafios do passado no trabalho doméstico do século XXI: reflexões para o caso brasileiro a partir dos dados da Pnad Contínua. Texto para discussão. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), nov. 2019. D’ALISA G.; CATTANEO, C. Household work and energy consumption: a degrowth perspective. Catalonia’s case study. Journal of Cleaner Production, v. 38, 2012, p. 71-79. FEDERICI, S. Revolución en punto cero. Trabajo doméstico, reproducción y luchas feministas. Madrid: Traficantes de Sueños, 2013. ______. Social reproduction theory. History, issues and present challenges. Radical Philosophy, n. 2.04, 2019. Disponível em: <https://www.radicalphilosophy.com/ article/social-reproduction-theory-2>. Acesso em: 30 mar. 2020. FRASER, E. Impact of covid-19 pandemic on violence against women and girls. Vawg Helpdesk Research Report, n. 284, mar. 2020. Disponível em: <http://www. sddirect.org.uk/media/1881/vawg-helpdesk-284-covid-19-and-vawg.pdf>. Acesso em: 22 jul. 2020. FRASER, N. Crisis of care? On the social-reproductive contradictions of capitalism. In: BHATTACHARYA, T. (Ed.). Social reproduction theory. Remapping class, recentering oppression. London: Pluto Press, 2017.


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GREGORATTI, C.; RAPHAEL, R. The historical roots of a feminist “degrowth”. Maria Mies’s and Marilyn Waring’s critique of growth. In: CHERTKOVSKAYA, E.; PAULSSON, A.; BARCA, S. Towards a political economy of degrowth. Lanham, MD: Rowman & Littlefield, 2020. JAMES, S. Sex, race and class. The perspective of winning: a selection of writings 1952–2011. Oakland: PM Press, 2012. JOCHIMSEN, M.; KNOBLOCH, U. Making the hidden visible: the importance of caring activities and their principles for an economy. Ecological Economics, v. 20, n. 2, 1997, p. 107-112. LAVINAS, L. Usando a emergência para consolidar nossos programas de renda. Disponível em: <https://epoca.globo.com/artigo-usando-emergencia-paraconsolidar-nossos-programas-de-renda-24330377>. Acesso em: 26 mar. 2020. PICCHIO, A. Decrescita, rendere visibili i costi per le donne. Jornal da Università degli Studi di Padova, 2012. RAVENTÓS, D.; BRAÑA, F. J.; ARCARONS, J.; TORRENS, L. Es el fin de un mundo: necesitamos una renta básica de cuarentena. Red Renta Básica. Disponível em: <http://www.redrentabasica.org/rb/es-el-fin-de-un-mundo-necesitamos-unarenta-basica-de-cuarentena/>. Acesso em: 1 jun. 2020. SALLEH, A. Ecofeminism as politics. Nature, Marx and the postmodern. London: Zed Books, 2017. SOARES, L. R. O neoliberalismo e sua impossibilidade de solucionar os problemas ambientais. Revista Fim do Mundo, n. 2, maio 2020, p. 53-74.

Notas 1

Renda do cuidado é uma expressão utilizada por Giacomo D’Alisa em suas reflexões durante o lockdown na Espanha. Para mais detalhes, ver: <https:// decrescimento.pt/dias-do-decrescimento-giacomo-dalisa/>. Acesso em: 22 jul. 2020.

2

Decreto #IoRestoaCasa, do governo italiano. Disponível em: <http://www. governo.it/it/faq-iorestoacasa>. Acesso em: 1 jun. 2020.

3

Campanha #IoRestoaCasa. Disponível em: <https://www.corriere.it/ tecnologia/20_marzo_09/coronavirus-parte-campagna-social-iorestoacasal-appello-fermare-contagio-9799162e-61dd-11ea-9897-5c6f48cf812d.shtml>. Acesso em: 28 abr. 2020.

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Diferentes grupos da sociedade, como população em situação de rua, em campos de refugiados, com risco de despejo, trabalhadores de atividades essenciais e/ou industriais, idosos que precisam de cuidados, crianças e mulheres em espaço de violência.

5

Raidió Teilifís Éireann, Ireland’s National Public Service Broadcaster. Disponível em: <https://www.rte.ie/news/2020/0417/1132210-latest-globaldevelopments/>. Acesso em: 1 jun. 2020.

6

Nos últimos 40 anos, o crescimento econômico mundial sem precedentes foi alcançado com aumento da vulnerabilidade social e da poluição ambiental (SOARES, 2020).

7

No Brasil (<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2019-2022/2020/ decreto/d10316.htm>), Lavinas (2020); na Itália (<https://www.ilfattoquotidiano. it/2020/03/30/coronavirus-la-proposta-un-reddito-di-emergenza-conmeno-paletti-e-per-gli-autonomi-un-aiuto-variabile-in-base-alla-condizioneeconomica/5754244/>); na Espanha (<http://www.redrentabasica.org/rb/>). Petição de renda básica na Europa (<https://you.wemove.eu/campaigns/ politico-emergency-basic-income-for-the-eu-now?utm_campaign=UBI&utm_ medium=politicoad&utm_source=politico&msg_pos=1>). Ver também: RAVENTÓS; BRAÑA; ARCARONS; TORRENS, 2020.

8

O que está implícito é o valor patriarcal da sociedade que subestima o trabalho realizado pelas mulheres. No Brasil, por exemplo, em 2018, 92% do trabalho doméstico (diaristas, babás, jardineiras, cuidadoras) foi realizado por mulheres, das quais 68% são negras. Essa evidência corresponde ainda ao trabalho formal remunerado, que não alcança 30% de todo o serviço doméstico feito por trabalhadoras no país (BRASIL, 2019).

9

A abordagem ecofeminista sublinha que o trabalho realizado para garantir os serviços ecossistêmicos é um importante trabalho não remunerado, que no Brasil é feito principalmente por povos indígenas. Dentro dessa perspectiva, observou-se a relevância do papel das mulheres na produção alimentar em economias de subsistências de várias partes do mundo. Elas trabalham desde na produção e colheita até na preservação e preparação dos alimentos.

10

Em 2019, no Brasil, segundo dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio Contínua (Pnad Contínua), a taxa de informalidade no mercado de trabalho atingiu um recorde desde o início da série, em 2012. Disponível em: <https://agenciabrasil.ebc.com.br/economia/noticia/2019-10/informalidade-nomercado-de-trabalho-e-recorde-aponta-ibge>. Acesso em: 2 jun. 2020.


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11

“Operações policiais no Rio superam 2019 e impedem ações solidárias em favelas.” Disponível em: <https://www.brasildefato.com.br/2020/05/21/ quarentena-operacoes-da-pm-superam-2019-e-impedem-acoes-solidarias-emfavelas-do-rj>. Acesso em: 2 jun. 2020.

12

Censo da População em Situação de Rua 2019. Disponível em: <http://www. capital.sp.gov.br/noticia/prefeitura-de-sao-paulo-divulga-censo-da-populacaoem-situacao-de-rua-2019>. Acesso em: 9 mar. 2020.

13

A crise do cuidado pode ser explicada pelo fato de que a maioria das mulheres que têm um emprego ainda precisa fazer o trabalho de cuidado e reprodução, quase dobrando seus esforços. A crise ocorre quando essas trabalhadoras não têm renda suficiente para contratar os serviços domésticos e de cuidados de que necessitam. Nesse caso, podem contratar diaristas (frequentemente mulheres negras e mal remuneradas), que, ao chegarem a suas próprias casas, ainda terão que dar conta do trabalho doméstico e de outros cuidados. Assim, a cadeia de cuidado torna a vida de muitas mulheres insuportável.

14

Citizen’s Basic Income. Disponível em: <https://citizensincome.org/>. Acesso em: 1 jun. 2020.

15

Red Renta Básica. Disponível em: <http://www.redrentabasica.org/rb/>. Acesso em: 1 jun. 2020.

16

Global Women’s Strike. Disponível em: <https://globalwomenstrike.net/>. Acesso em: 1 jun. 2020.

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POR OUTROS IMAGINÁRIOS SOCIOTÉCNICOS NO NOVO NORMAL Tarcízio Silva

52. PANDEMIA E PROTESTOS NA

INSTÂNCIA DA IMAGEM AO VIVO Eugênio Bucci

66.

VOCÊ TEM FOME DE QUÊ? SOBRE A POLÍTICA CULTURAL NECESSÁRIA PARA E A PARTIR DE FAVELAS E PERIFERIAS Isabela Souza e Rebeca Brandão

78. ARTES, CIÊNCIAS E

TECNOLOGIAS NUM MUNDO PÓS-PANDEMIA Rejane Cantoni entrevista Sabrina Maniscalco e Maria Clara Dias


TECNOLOGIAS, COMUNICAÇÃO E CIDADES

Tarcízio Silva

POR OUTROS IMAGINÁRIOS SOCIOTÉCNICOS NO NOVO NORMAL Tarcízio Silva

Para refletir sobre a relação entre tecnologias e desigualdades no mundo em aparente suspensão pela pandemia, este artigo evoca a ideia de imaginários sociotécnicos como essenciais a uma mobilização para futuros mais justos. Contribuições de epistemologias feministas, afrofuturistas e de povos originários sobre tecnologia trazem elementos que apontam para uma refundação de como contamos a história e as estórias a respeito da existência humana no planeta.

A

s tecnologias de todos os tipos são moldadas por contextos históricos, sociais e ideológicos. Não existem tecnologias neutras implementadas em vácuos sociais assépticos: a própria ausência ou presença de um artefato abre ou restringe possibilidades e usos. As tecnologias hegemônicas implementadas em um mundo absurdamente desigual, fruto da interseção de supremacia branca, patriarcado e colonialismo, tendem a ser suas reprodutoras. A crise de um mundo em aparente suspensão na pandemia nos faz perguntar: há um futuro melhor pós-pandemia com os aprendizados que podemos acumular? Um trabalho duro e em prol da transformação social é uma questão tanto de economia, política e ativismo quanto de construção de imaginários. Aquelas são questões que vão muito além do que pensamos ser o escopo da materialidade da tecnologia ou da ciência. São questões que tratam do que somos

capazes de imaginar sobre o possível, o impossível e o desejável. Provavelmente devemos deixar de lado a ideia de uma lança cortante em direção a um futuro único e com mais e mais progresso por meio do domínio e da subjugação da natureza. Essa ficção ideológica subjaz às sociedades industriais e pós-industriais do capitalismo ocidental. Ela moldou como a ciência e como a arte pensam o próprio passado: um dos cortes mais memoráveis do cinema faz o espectador ligar a descoberta primitiva do uso de um osso como porrete – a suposta gênese da tecnologia – à nave espacial desbravadora do universo, suposto zênite tecnológico da humanidade. Mas há outras narrativas e abordagens sobre a gênese da tecnologia. A partir dos estudos da antropóloga norte-americana Elizabeth Fisher, a escritora de ficção científica Ursula K. Le Guin, também norte-americana, nos ensina que uma tecnologia

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essencial para a construção da sociedade foi subestimada nos modos hegemônicos de contar a história da humanidade e as estórias dos humanos. Le Guin lembra que, “antes da ferramenta que projeta energia, fizemos a ferramenta que traz energia para casa” (LE GUIN, 2017, pos. 2985). E o que seria essa ferramenta criada pela humanidade senão a prosaica sacola? O recipiente, o contêiner e demais objetos para guardar e compartilhar marcaram um momento em que os seres humanos desenvolveram uma relação mais criativa com o tempo e com eles mesmos. As jornadas dos heróis individualistas, porém, não tiveram historicamente espaço para a centralidade desses artefatos. Se a contação de histórias – o storytelling, nos discursos anglicistas – é linear, com um fio narrativo que emula lanças ou flechas, só temos espaços para a história única, o que é um perigo, como nos alerta a escritora nigeriana Chimamanda Adichie (2019), porque não há espaços para olhares feministas, africanos, indígenas, afrodiaspóricos ou decoloniais da tecnologia. Jurema Werneck, médica e ativista do movimento de mulheres negras, concorda ao lembrar que a criação de satélites deslumbra, mas as tecnologias de armazenamento, compartilhamento e transporte de alimentos e bens são invenções de mulheres na África e foram passos essenciais para a construção da humanidade (WERNECK, 2019). Enviar carros para a órbita, porém, ganha mais capas de jornais do que experiências inovadoras de segurança alimentar ou de autogestão de comunidades periféricas.

Precisamos falar do que conseguimos imaginar como soluções para o presente e o futuro sobre a relação entre tecnologia e sociedade. Evoco aqui a ideia de imaginários sociotécnicos, que são visões de futuros desejáveis mantidas coletivamente, estabilizadas institucionalmente e publicamente performadas, incentivadas por compreensões compartilhadas de formas de ordem e vida social alcançáveis por apoiadoras de avanços na ciência e tecnologia (JASANOFF, 2015, p. 19).

Quais são os imaginários sociotécnicos hegemônicos na sociedade brasileira? E, para além disso, quais são os imaginários sociotécnicos “importados” das tecnologias e das ideologias de outros países e culturas que vemos como referência tanto para as nossas tecnologias materiais quanto para as nossas epistemologias na produção de artefatos? O poeta e pesquisador norte-americano Amiri Baraka faz uma contundente crítica às tecnologias ocidentais em seus projetos de moldar o mundo às suas próprias reproduções. Não são neutras, pois poderiam ter seguido outros caminhos, outros modos de interação com o humano. Se olharmos para as formas das coisas e também para as dinâmicas sociais e culturais da tecnologia para além de tais formas, poderemos nos libertar de seu falso determinismo. Baraka nos lembra de que a pólvora nasceu para fins medicinais, se transformou em beleza nos fogos de artifício na China, mas se globalizou como ferramenta da violência. Ele nos pede, então, que questionemos: “o que as máquinas produzirão? O que alcançarão? Qual será sua moralidade?” (BARAKA, 1971, p. 158).


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Infelizmente, os dados históricos e as abordagens feministas e afrofuturistas somovimentações mostram que Brasil e Esta- bre a tecnologia em prol de projetos iguados Unidos se irmanam no que a socióloga litários, diametralmente contra a lógica indiana Ruha Benjamin chamou de “imagi- individualista da cultura de startup, na qual nação carcerária da tecnologia”. Para Ben- o “winner takes all” nada tem de meritojamin, precisamos treinar nosso olhar para cracia, é apenas reprodução da capacidade entender o desenvolvimento tecnocientífico de dumping dos mercados financeiros em para além da superfície material, observar projetos de automatização de desigualdades e mapear “quem e o que é fixado no mesmo para concentração de capital por meio de lugar – classificado, encurralado e/ou coagi- aplicativos e plataformas. do, para permitir a inovação” (BENJAMIN, Imaginários tratam tanto das lentes 2020, p. 20). As tecnologias de rastreamento usadas para interpretar fenômenos e ações e controle dos cidadãos nos espaços público presentes — considerando interpretações e privado já estavam em crescimento, como do passado — quanto da definição de homostram dados sobre o reconhecimento rizontes de possibilidades. Tecnologia vai facial para policiamento e a muito além de dispoprofusão de erros técnicos, Imaginários tratam tanto das sitivos digitais. Falar morais e legais (NUNES, lentes usadas para interpretar de imaginários é falar 2019), mas a pandemia é fenômenos e ações presentes também de inspirações usada como oportunidade – considerando interpretações e retroalimentações espara avançar a normaliza- do passado – quanto da téticas, afetivas e sociais ção dessa e de outras tec- definição de horizontes como o afrofuturismo, nologias que promovem a de possibilidades visto “como um mecarestrição e o autoritarismo. nismo para focar disTecnologias do social como plata- curso substanciador em táticas de produção formas de compartilhamento, do valor do como design especulativo que estende as comum no Creative Commons, do associati- fronteiras das soluções plausíveis através vismo digital, do movimento wiki e afins re- do engajamento” (WINCHESTER III, 2019, sistem para além do que ganha visibilidade p. 56). E é efetivo para quem produz, usa, nos oligopólios da tecnologia digital do Vale inventa e se reapropria das tecnologias. do Silício. O desencanto com a globalização Uma proposição de afrofuturismo litem muito a ver com essa distinção. Se os gada a desenhos e produção liberatórios, a entusiastas da internet, das línguas e do design centrado no humano, a inclusividade transporte globalizados sonharam com os e a frameworks antiopressivos por padrão e benefícios das trocas em redes massivas, intenção, além da ideação de artefatos pelas não levaram em conta a dinâmica de cone- comunidades (WINCHESTER III, 2019), xão preferencial que seguiu a tendência do aproxima as iniciativas dos aprendizados capital (financeiro e social) para acumula- paradoxais das periferias locais e mundiais. ção e desigualdade. O coletivismo irmana De comunidades periféricas brasileiras como

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Paraisópolis, que já usava tecnologias afeti- desemboca nos oligopólios da tecnologia vas, digitais (como vaquinhas on-line e ma- digital por meio do capital financeiro. O lípeamentos alternativos do espaço urbano) e der indígena e ambientalista Ailton Krenak, políticas em seus “presidentes de rua”, res- ao falar do fetiche ocidental sobre a ideia de ponsáveis por cuidar de grupos de famílias de fim do mundo, diz que se preocupa com os modo distribuído, a aplicativos como o Mar- brancos, uma vez que aprendeu “diferenket Garden, que conecta pequenos feirantes tes manobras que os nossos antepassados e agricultores a consumidores no interior de fizeram e me alimentei delas, da criativiUganda, as rápidas e criativas inovações com dade e da poesia que inspirou a resistênimpacto na proteção de vidas não serão vistas cia” (KRENAK, 2019, pos. 135). Durante por meio dos valores high-tech ou da disrup- e pós-pandemia, nossos futuros possíveis mais igualitários estão penção dos grandes eventos de dentes fundamentalmente tecnologia. Estarão mais pró- As rápidas e criativas em alianças globais que reximas das estórias que nos di- inovações com impacto conheçam e se inspirem no zem “o que as pessoas fazem na proteção de vidas não fato de que “as comunidades e sentem, como as pessoas se serão vistas por meio dos mais vulneráveis, de novo e relacionam com tudo o mais valores high-tech ou da de novo, por gerações, ao neste amplo e vasto recipien- disrupção dos grandes longo de centenas de anos, te, esta barriga do universo, eventos de tecnologia criaram beleza e resiliência este útero das coisas que foram, esta estória contínua” (LE GUIN, 2017, na vida repetidamente” (NELSON, 2020). Finalizo a redação deste texto no dia pos. 3043) do comum, das pessoas comuns. Se rejeitarmos a centralidade do herói único, em que mais um foguete de parceria púdo conflito e da competição nas estórias que blico-privada dos Estados Unidos decola, contamos sobre as tecnologias e o futuro, po- alimentando a fantasia de colonização de demos pensar em um novo normal que dê o outros planetas de um bilionário que dedevido valor à solidariedade que reinventou fendeu o fim do isolamento social, quando mais de 300 mil pessoas já estavam mortas tecnologias e redes durante a pandemia. Fins do mundo já existiram em de- pela covid-19, para que suas fábricas de carro masia para diferentes povos, como nos voltassem a funcionar. Não é a imaginação mostram as experiências da Porta do Não dos bilionários que permitirá a inovação Retorno (monumento erguido na República em prol da diminuição das desigualdades. E do Benim) e o sequestro genocida através não é o imaginário sociotécnico cartesiano, do Atlântico e nas Américas, que construí- eurocêntrico, colonial e capitalista que nos ram a base cumulativa de valor que hoje salvará como humanos.


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Tarcízio Silva

Tarcízio Silva Curador de conhecimento na organização Desvelar e pesquisador da tríade ciência-tecnologia-sociedade. Mestre em comunicação pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), é doutorando em ciências humanas e sociais na Universidade Federal do ABC (Ufabc) e editor de livros como Comunidades, Algoritmos e Ativismos Digitais: Olhares Afrodiaspóricos (LiteraRUA, 2020).

Referências ADICHIE, Chimamanda N. O perigo de uma história única. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. BARAKA, Imamu Amiri. Technology & ethos. Raise, race, rays, raze: essays since 1965. New York: Random House, 1971, p. 155-158. BENJAMIN, Ruha. Retomando nosso fôlego: estudos de ciência e tecnologia, teoria racial crítica e a imaginação carcerária. In: SILVA, Tarcízio. Comunidades, algoritmos e ativismos digitais: olhares afrodiaspóricos. São Paulo: LiteraRUA, 2020. JASANOFF, Sheila. Future imperfect: science, technology, and the imaginations of modernity. In: JASANOFF, Sheila; KIM, Sang-Hyun (Orgs.). Dreamscapes of modernity: sociotechnical imaginaries and the fabrication of power. Chicago: University of Chicago Press, 2015. KRENAK, Ailton. Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. LE GUIN, Ursula K. Dancing at the edge of the world: thoughts on words, women, places. Open Road + Grove/Atlantic, 2017. NELSON, Alondra. Coronavirus crisis and afrofuturism: a way to envision what’s possible despite injustice and hardship. Entrevista concedida a Tonya Mosley em 4 de maio de 2020. Disponível em: <https://www.wbur.org/ hereandnow/2020/05/01/afrofuturism-coronavirus>. Acesso em: 9 jul. 2020. NUNES, Pablo. Levantamento revela que 90,5% dos presos por monitoramento facial no Brasil são negros. The Intercept Brasil, 21 nov. 2019. Disponível em: <https:// theintercept.com/2019/11/21/presos-monitoramento-facial-brasil-negros/>. Acesso em: 9 jul. 2020. WERNECK, Jurema. Entrevista ao Olabi – Encontro Mulheres Negras Pautando o Futuro, 2019. Disponível em: <https://www.facebook.com/olabimakerspace/ videos/1972206733088143/>. Acesso em: 9 jul. 2020. WINCHESTER III, Woodrow W. Engaging the black ethos: afrofuturism as a design lens for inclusive technological innovation. Journal of Futures Studies, v. 24, n. 2, 2019.

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Gabriela Gomes Nascida e criada em Salvador (BA), desenvolve em sua estética fotográfica a capacidade de entender o ser humano e as questões que o atravessam. Com base em sua formação em arquitetura e urbanismo, encontrou na arte da fotografia sua linha nas artes visuais. Atualmente trabalha em um projeto autoral que visa questionar a relação do ser humano com a natureza. Com esse trabalho, foi premiada pelo Itaú Cultural na convocatória Arte como Respiro. Já expôs no Museu de Arte da Bahia (MAB) e tem uma obra no acervo de artes visuais desse museu.


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Isolado dentro de si, o homem recebe o convite feito por um novo vírus para enxergar uma oportunidade de transformação de seu ser. Estamos vivendo uma ocasião de crescimento, um resgate da nossa ancestralidade. A ideia da série é mostrar o retorno do homem ao sábio lugar de onde veio. É relembrar que a conexão entre homem e natureza pode estar presente no século XXI, no meio de tantas modernidades. Estamos sendo convidados a perceber que o homem continua a ser homem, a ter seu simples cotidiano, e poderá conectar sua mente e seu corpo à natureza, vivendo em harmonia e respeito com o meio. Retorne! A natureza está dentro de nós, somos sapiens, apenas um dos milhares de espécies que dividem o mesmo meio ambiente.


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PANDEMIA E PROTESTOS NA INSTÂNCIA DA IMAGEM AO VIVO Eugênio Bucci

A partir da constatação de que o vídeo gravado em um celular registrando a cena do assassinato por sufocamento do cidadão negro George Floyd, nos Estados Unidos, por um policial branco, imprimiu força às mobilizações antirracistas que se seguiram ao crime, o presente artigo empreende um longo percurso analítico sobre o estatuto da imagem no jornalismo dos nossos dias. Ao longo desse percurso, os conceitos de instância da imagem ao vivo e de indústria do imaginário (desenvolvido pelo autor em trabalhos anteriores) são invocados para apoiar a demonstração de que o jornalismo de qualidade, ao fiscalizar o poder, articula um discurso que tem na palavra sua âncora dominante, dentro do qual a imagem cumpre uma função acessória – mas indispensável. Nessa medida, o jornalismo pode ser pensado como uma ilha de simbólico (de razão, de registro factual e de interpelação crítica do poder) no meio do vasto oceano do imaginário. No discurso jornalístico, a imagem ganha impacto à medida que dá concretude às histórias que só as palavras podem narrar. O presente artigo mostra também que o jornalismo aprende com as imagens e se recicla por meio delas. Um exemplo disso pode ser visto na forma como o Jornal Nacional cobriu as passeatas antirracistas nos Estados Unidos em 2020: os repórteres do maior noticiário de televisão no Brasil puseram em prática um estilo de reportagem que lhes foi ensinado pelos militantes do grupo de jornalismo alternativo chamado Mídia Ninja, que dominaram, no Brasil, a cobertura das célebres Jornadas de Junho de 2013. A imagem fala, ensina a falar e mobiliza – desde que governada pela razão das palavras da imprensa que critica o poder.

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o dia 25 de maio de 2020, um trabalhador negro, George Floyd, foi assassinado por um policial branco em Minneapolis, no estado de Minnesota, nos Estados Unidos. Conforme se comprovaria dias depois, após uma breve disputa entre o laudo pericial da polícia e um outro, independente, Floyd morreu por asfixia. Foi imobilizado pelo seu carrasco, Derek Chauvin, que o deitou de bruços, algemado, com o rosto

espremido no asfalto, e pressionou o joelho contra seu pescoço. Naquele joelho, Chauvin depositou o peso de seu corpo. “I can’t breathe” (“Eu não consigo respirar”), sussurrava o homem aprisionado. Sem conseguir tomar fôlego, não conseguia gritar. Não conseguiu ser ouvido. O policial assassino ficou ali, quase imóvel, com o joelho da lei sufocando o homem por quase nove minutos. Floyd morreria logo depois, a caminho do hospital.


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Após o crime, protestos explodiram em Houve outras rebeliões depois disso, diversas cidades dos Estados Unidos, e, pou- como aquela de 1992 que se alastrou após o co depois, na Europa e em outros lugares. As espancamento de Rodney King por quatro aglomerações de indignação afrontavam as policiais brancos.2 Mas agora, em maio e junormas da quarentena que tinham sido de- nho de 2020, quase 60 anos depois do proterminadas pelas autoridades sanitárias para nunciamento histórico de Martin Luther prevenir o avanço da pandemia da covid-19. King, a fúria voltou às ruas com plena carga. A frase “I can’t breathe” virou um grito de Finalmente voltou. Precisava voltar. Agora, guerra, uma bandeira, uma palavra de ordem em 2020, os Estados Unidos ainda têm as contra o racismo estrutural. “Get your knee portas fechadas para o sonho do líder negro off our necks” (“Tire o seu joelho de nosso fuzilado em 1968, ainda não se livraram do pescoço”), discursou o reverendo Al Sharp- pesadelo ancestral do preconceito. ton durante a cerimônia Isso posto, vale uma de homenagem a George As jornadas antirracistas pergunta: as jornadas anFloyd, em Minneapolis, no que eclodiram no final de tirracistas que eclodiram dia 6 de junho. Àquela altu- maio tiveram a força que no final de maio tiveram ra, os Estados Unidos fer- tiveram porque houve um a força que tiveram porvilhavam. Já se passavam assassinato covarde de um que houve um assassina11 dias do assassinato e o negro (desarmado, algemado, to covarde de um negro país vivia a maior rebelião deitado no asfalto) por um (desarmado, algemado, racial desde os anos 1960. policial branco ou porque deitado no asfalto) por um Naquela década, hou- esse assassinato covarde foi policial branco ou porque ve pelo menos dois marcos registrado por um celular num esse assassinato covarde históricos na luta dos ne- vídeo que correu o mundo foi registrado por um celugros norte-americanos por inteiro na velocidade da luz? lar num vídeo que correu igualdade e justiça. No dia o mundo inteiro na velo28 de agosto de 1963, 250 mil pessoas se con- cidade da luz? O que pesou mais, o crime ou centraram em Washington para repudiar as a imagem do crime? Se o fato, o indiscutível políticas segregacionistas. Foi quando o líder fato, tivesse sido narrado apenas em palavras Martin Luther King proferiu o seu discurso jornalísticas, a reação alcançaria a mesma inclássico: “Eu tenho um sonho”. Quase cinco tensidade? anos depois, em 4 de abril de 1968, Luther Floyd não foi o primeiro a morrer asKing foi assassinado num hotel em Memphis, sim. Em Minneapolis, ele foi o 11o na lista com um tiro que o acertou na mesma parte do dos negros mortos por policiais desde 2010, corpo pela qual George Floyd perdeu a vida: o conforme teve o cuidado de anotar a jornapescoço. Tinha 39 anos e um Nobel da Paz no lista Dorrit Harazim em O Globo.3 O que o currículo. Sua morte acendeu a fúria popular, diferencia dos outros? Mais ainda: o que o que deixou um rastro de 43 mortes, 3,5 mil fe- diferencia de tantos outros cidadãos negros ridos e quase 30 mil prisões.1 assassinados pela polícia em tantas outras

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cidades do mesmo país? O mundo experi- longe os conceitos da teoria psicanalítica, o mentaria a mesma revolta se não pudesse que se costuma dizer é que os processos de ter visto em close o crime horrendo? significação do imaginário (o universo das A interrogação não é trivial, mas tam- figurações) ocuparam franjas do simbólico bém não é nova. Já nos anos 1960 muita gen- (o continente das letras). Não que a ordem do te afirmava que as lutas civis nos Estados imaginário se materialize apenas com figuUnidos contra a Guerra do Vietnã ganharam ras, retratos e telas animadas, não é bem isso. força depois que imagens, em fotografias e O imaginário tem o seu centro definido pela na televisão, escancararam os horrores per- prevalência da imagem – e, de modo hegemôpetrados pelas tropas norte-americanas no nico em nosso tempo, da imagem eletrônica e Sudeste Asiático. Na opinião de muitos, digital –, mas essa mesma ordem do imagináforam as imagens, mais que as palavras, rio se faz povoar por todo tipo de linguagem, que caíram feito Napalm na de palavras inclusive. Denopinião pública dos Estados As palavras são legendas tro dessa ordem, as palavras Unidos. Agora, em 2020, es- acessórias, ou, quando apressam os efeitos das imatamos vivendo um impacto muito, trabalham no nível gens como catalisadoras da análogo. O fato choca por das imagens, descrevendo- comunicação. Aí, as palavras si mesmo, mas o que o tor- -as mais ou menos como são legendas acessórias, ou, na perceptível, aquilatável faziam os narradores quando muito, trabalham e acessível é o seu registro esportivos que transmitiam no nível das imagens, desnum vídeo de celular. jogos de futebol pelo rádio crevendo-as mais ou menos Somos a civilização da como faziam os narradores imagem. No dizer menos apressado do filó- esportivos que transmitiam jogos de futesofo francês Régis Debray, somos “a primeira bol pelo rádio. (Ainda transmitem assim, é civilização que pode julgar-se autorizada por verdade, mas falam sua prosódia imaginária, seus aparelhos a acreditar em seus olhos”.4 frenética, instalados numa cabine cujo endeIsso significa que a representação imagéti- reço fica no passado.) ca roubou territórios das palavras, ou seja, Na segunda metade do século XX, a as imagens cumprem expedientes de repre- indústria do entretenimento sofreu uma sentação que antes pertenciam apenas às mutação que potencializou as operações de palavras. Ao longo do século XX e, de forma significação próprias do imaginário – opeintensiva, na segunda metade do século XX, rações que mobilizam imagens e também com a televisão e a internet, o modo de repre- palavras, como acontece nas justaposições sentação próprio da imagem avançou sobre de figuras, nas associações, nas colagens, nas o modo de representação próprio do texto. identificações inconscientes, nas metáforas Esse deslocamento da indústria do ima- imediatas, nas justaposições de fotogramas. ginário acarretou a hipertrofia das imagens A mutação foi tão intensa e de amplitudes tão e o encolhimento da letra. No jargão dos extensas que devemos chamar essa indúsestudos da comunicação que orbitam de tria, hoje, de indústria do imaginário.


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Já as operações características do simbólico, em que pesam o pensamento, a razão, as abstrações e, sobretudo, a lei, essas perderam peso. A nova conformação da comunicação social fez refluir o ordenamento dos significantes atuantes no simbólico, com todos os seus vetos, seus interditos, os comandos negativos, com todas as proibições da lei. Ao mesmo tempo, fez expandir uma gramática imagética em favor de um prazer fácil e comercializável. A pornografia industrializada é um sintoma dessa mutação, embora seja moralmente condenada por tantos como uma causa do adoecimento da civilização. A explicitude imaginária se instaura como uma pornocomunicação generalizante. Quando algumas vozes conservadoras reclamam da lassidão nos costumes, estão reclamando dessa mutação, embora não a localizem. E falam no vazio, pois, a despeito das lamúrias moralistas, o efeito já não pode ser resolvido no campo da moral. Eis então que, na ordem do imaginário, tal como ela se conforma nos nossos dias, a palavra tende a prestar vassalagem à dominação exercida pelas imagens. A palavra funciona como linha auxiliar. Na melhor das hipóteses, sublinha os imperativos da imagem. Podemos notar a mutação com mais nitidez na publicidade e no entretenimento, ambos altares de cintilações libidinais e libidinosas. Você não venderia uma camisa ou um frasco de desodorante se não dispusesse de (1) imagens sensuais para fisgar o desejo do consumidor e (2) uma cola de identificação para juntar essa imagem à mercadoria que pretende vender. Sem imagens, sem sedução, o entretenimento e a publicidade não renderiam um níquel. A propaganda política,

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a propaganda religiosa e as declarações humanitárias dos astros da cultura pop trafegam por aí, sempre por aí. São operações imaginárias. Em larga medida, também os protestos de rua contra o racismo trafegam como operações imaginárias e, nessa condição, atraem as câmeras de televisão, mas neles subsiste um núcleo de insubordinação político que se volta contra a ordem, que subverte um imaginário organizado industrialmente apenas para apaziguar e entorpecer. Aí o improvável leitor vai se perguntar: mas então o imaginário hoje domina a totalidade das possibilidades da linguagem e da representação? Em certo sentido é isso mesmo. Lembremo-nos do escritor francês Guy Debord e sua “sociedade do espetáculo”. Para ele, as imagens fazem hoje a mediação de todas as relações sociais. “Tudo o que era vivido diretamente tornou-se uma representação.”5 Mesmo assim, dentro do espetáculo de Debord, que tem em seu reator nuclear central a indústria do imaginário, existem exceções – não podemos nos esquecer das exceções. O mundo jurídico é o melhor exemplo. Nele, o peso da imagem é secundário; quem manda é a palavra. No mundo jurídico, em lugar da colagem de um ícone (um amuleto, uma figura, um nome, um logotipo, uma marca) a um sentido presente, envolvendo estímulo sensual, quem dirige a representação é o signo abstrato, “a razão sem paixão”, como percebeu Aristóteles. Tem que ser assim. Você não conseguiria condenar um assassino à prisão se não houvesse (1) a lei escrita em palavras descrevendo, de modo impessoal e preciso, o tipo penal do homicídio e (2) o exame criterioso dos fatos demonstrando que o ato do réu se enquadra no

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parâmetro estabelecido pelo tipo penal, consubstanciando, portanto, a prática do crime. Sem palavras e, mais ainda, sem a autoridade das palavras, a lei não para em pé e não se aplica. Eis por que a Justiça duvida das imagens. A deusa Têmis tem os olhos vendados. Se há imposturas no direito? É claro que sim. Mas são as imposturas do simbólico, mais que do imaginário (ainda que reluzam flertes do imaginário no interior do mundo jurídico, flertes do naipe da TV Justiça). Além do universo do direito, a segunda exceção às regras gerais do imaginário é o jornalismo. Dizer isso, no entanto, exige de nós um longo rol de ressalvas. Citemos somente duas delas, para ilustrar as demais: o sensacionalismo e o “celebridadismo” não podem ser considerados jornalismo para efeitos do raciocínio desenvolvido aqui. O motivo é elementar: o sensacionalismo, assim como aquele dito jornalismo com foco na (doce) vida das celebridades, funciona como um escravo deslumbrado do império das imagens, impulsionado pelo objetivo mercantil de explorar sensações. O sensacionalismo e o “celebridadismo” são inteiramente regidos pelas operações de significação e de identificação características do imaginário. Quando afirmamos que o jornalismo se distingue da regra geral do império das imagens, devemos nos referir a um jornalismo adstrito ao papel de informar a sociedade com vista a fiscalizar o poder, atividade crítica que requer método racional e sobriedade de estilo. Apenas excepcionalmente esse jornalismo dirigido para e pelas palavras se rende às imagens, uma vez que, para fiscalizar e conseguir denunciar os abusos do poder, engendra um discurso que dialoga

permanentemente com o plano dos direitos e com as categorias jurídicas, inclusive aquelas que vertebram todo o corpo da administração pública. Esse jornalismo, embora muitas vezes ancorado em empresas pertencentes à indústria do imaginário, finca raízes, como discurso, no domínio do simbólico, pois dialoga com a lei, com os interditos do simbólico, e ativa a função simbólica da linguagem, aquela que se ocupa dos ordenamentos (não apenas os jurídicos) e das abstrações que abrem passagem para o pensamento. Podemos dizer que ele se situa como ilha no interior da indústria do imaginário. Por isso é uma exceção. Uns falam que o jornalismo encarregado de fiscalizar o poder seria uma “narrativa”. O termo traz certos embaraços, mas pode ser aceito. Nessa abordagem, o jornalismo seria uma “narrativa” própria. De toda forma, para o que nos interessa aqui, o jornalismo seria um discurso autônomo que concentra em si um modo especializado (método e procedimentos) de narrar e valorar (eticamente) os fatos e seus desdobramentos. Trata-se de um subcampo específico, uma região excepcional em cujo território a imagem é que presta seu serviço à palavra, não o contrário. O ofício cotidiano dos jornalistas se dedica a observar, apurar, relatar e comentar os fatos e os acontecimentos. Como essa atividade, desempenhada pelas redações independentes, consiste em registrar os primeiros rascunhos da verdade factual com vista a exercer a fiscalização diuturna do poder, a imagem só pode atuar como extensão das palavras.6 Não se pode negligenciar o fato de que o jornalismo só se organiza a partir de estruturas lógicas tecidas por palavras, pelo


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texto, pelas definições abstratas e por uma ou, ainda, como registro veraz de um aconsintaxe complexa, que não cabe na imagem tecimento irrefutável. O jornalismo não cria (ao menos não inteiramente). Tudo o que o esses elementos (essa matéria-prima), vai jornalismo consegue mostrar – e tem o dever captá-los nos estilhaços do real, vai cavar de mostrar muita coisa – é necessariamente atrás deles no desconhecido, vai garimpá-los um prolongamento de tudo sobre o que ele nas falas das testemunhas que veem, ouvem, tem a missão de falar. No método jornalístico tocam e sentem o que se passa neste mundo. – e não se iludam os sectários, esse método As falas das testemunhas, aquilo que elas têm existe –, a imagem precisa ter sentido tex- a contar, podem chegar ao discurso jornalístual, não meramente estético, catártico ou tico em enunciados verbais ou em documenmimético. No método do jornalismo, a ima- tos como cartas ou memorandos, assim como gem, quando aparece, é uma palavra falando em posts, e-mails, fotos e vídeos amadores, por meio de figuras. domésticos. No caso do assassinato de GeorVoltemos agora à vige Floyd, o depoimento da são que pudemos ter de Foi pelo idioma do testemunha foi enunciado George Floyd com o pesco- jornalismo, essa ilha do por ela, testemunha, num ço comprimido por aquele simbólico cercada de vídeo de celular, mas o que joelho fardado. Sabemos imaginário por todos os ratifica seu valor documenque o vídeo não foi grava- lados, que aquele vídeo tal é o discurso jornalístico do por um jornalista. Quem [de George Floyd] entrou difuso. O vídeo não era uma o gravou num celular foi em circulação, com uma fraude informativa, não era Darnella Frazier, uma ado- autoridade de verdade fake, não era montagem: era lescente negra de 17 anos, factual que lhe foi conferida autêntico. Quem diz isso é que não é repórter profis- pelo discurso jornalístico o discurso jornalístico em sional. 7 A partir daí, po- ao reconhecer-lhe valor uma operação significante rém, a cena ingressou nos testemunhal fidedigno própria do simbólico. circuitos das redes sociais O a ssa ss i n ato d e que integram a indústria do imaginário, e, George Floyd teve lugar na instância da desde logo, esse ingresso se deu numa chave imagem ao vivo. O crime foi praticado na excepcional. Foi pelo idioma do jornalismo, instância da imagem ao vivo, embora o moessa ilha do simbólico cercada de imaginá- mento da morte, aquele instante em que rio por todos os lados, que aquele vídeo en- toda representação é interrompida pelo trou em circulação, com uma autoridade de real, tenha acontecido numa ambulância verdade factual que lhe foi conferida pelo ou algo assim, longe dos olhos e das câdiscurso jornalístico ao reconhecer-lhe va- meras. Floyd foi assassinado na instância lor testemunhal fidedigno. da imagem ao vivo e nessa instância ficou Portanto, o vídeo já nasceu com o quali- sendo assassinado em gerúndio ao longo de ficativo de matéria-prima do discurso jorna- semanas. A imagem ao vivo é um flash, um lístico íntegro, como indício de fato verídico flagrante, uma cena que se acende e se apaga

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num intervalo limitado, mas a instância da flagrante em que se mostrou, em sua monsimagem ao vivo é contínua, não se apaga truosidade, a engrenagem fria e burocrática nunca, como se pressente nas campanhas do racismo estrutural que ainda segrega os publicitárias dos canais jornalísticos que negros nos Estados Unidos e em tantos ounão sabem bem o que propagandeiam, mas tros lugares. Ela é forte por ser uma imagem, propagandeiam. A instância da imagem ao mas é mais forte ainda por ser uma imagem vivo, em que piscam e tremulam os bilhões que dá sentido e significação a uma história de cenas instantâneas e simultâneas, é o vivida por seres humanos. Essa história só plano de existência das representações ima- pode ser narrada, estruturada, por palavras. ginárias possíveis no nosso tempo.8 Só é acessível em sua integralidade com Aí, na instância da imagem ao vivo, as a razão, apenas com a razão. Nesse caso, a imagens imperam e se autonomizam em imagem (do assassinato) ajuda o sujeito a relação às palavras, porcompreender uma históque se autonomizam em A visão em close de Floyd ria que não é acessível aos relação à própria razão. sendo assassinado imprimiu olhos, pois existe além do Mas no jornalismo não. uma energia insubstituível alcance dos olhos, mas é No jornalismo, a imagem aos protestos antirracistas acessível à razão. é parte de uma história menos por ser imagem e mais Quem vem relatanque vem sendo contada por ser uma comprovação do tudo isso – e relatancom palavras. do a quente, no calor da testemunhal de um flagrante Neste ponto, pode- em que se mostrou, em sua hora – é o jornalismo, mos nos aproximar da monstruosidade, a engrenagem esse trabalho incessante resposta à pergunta que fria e burocrática do racismo e cotidiano dos destacadeu início a este artigo: as estrutural que ainda segrega os mentos sociais que regisjornadas antirracistas que negros nos Estados Unidos tram fatos para denunciar eclodiram no final de maio abusos do poder. Nisso de 2020 tiveram a força que tiveram porque repousa o cerne da missão da imprensa na houve um assassinato covarde de um negro democracia. Para essa imprensa, que guar(desarmado, algemado, deitado no asfalto) da compromisso irredutível com o projeto por um policial branco ou porque esse assas- democrático, uma imagem não vale mais sinato covarde foi registrado por um celular do que mil palavras. Não vale mais do que num vídeo que correu o mundo inteiro na uma palavra sequer. Nunca valeu. A imavelocidade da luz? gem só desliza como desliza no idioma do A resposta é: a força das manifesta- jornalismo – mesmo na televisão, mesmo ções decorreu da imagem. A visão em close nas infografias mais exuberantes – porque de Floyd sendo assassinado imprimiu uma aí cumpre a função de dar mais alcance à energia insubstituível aos protestos antir- palavra e à razão. Nessa perspectiva, a imaracistas menos por ser imagem e mais por gem opera como signo informativo, não ser uma comprovação testemunhal de um como arte. Jamais como arte.


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Você pode até dizer que o vídeo do assasCertas palavras reluzem como imagens sinato de Floyd rasga por um instante o véu poderosas. “I can’t breathe”, por exemplo. Por das aparências, rasga o embuste do poder ra- que ficou tão forte essa expressão? Em boa cista, mas, mesmo aí, aquela imagem não faz parte, a resposta se apresenta espontânea isso como fazem as obras de arte que descor- (as palavras se erguem espontaneamente): tinam o distante “por mais próximo que ele ficou tão forte porque, nessa expressão, teesteja”. A imagem no jornalismo, por mais que mos uma imagem, ou uma metáfora, dos tangencie a esfera da arte, não é arte, assim nossos dias de aflição e agonia. Frei Betto, como a prosa no jornalismo, por mais que se no artigo Não Posso Respirar neste Brasil transmute ocasionalmente em literatura, não (Des)governado, na Folha de S.Paulo, viu no é literatura. O vídeo que documentou o assas- apelo de George Floyd a descrição do sufoco sinato desvela, por trás do dos brasileiros sob a sanha fato tangível do homicídio Muita gente não consegue autoritária de Jair Bolso(aquele que se inscreve na mais respirar com o joelho naro.10 Ele tem razão. realidade sensível), o fato do capital lhe pesando no Não é só no Brasil. oculto, acessível apenas à pescoço. Outras gentes Muita gente não consegue razão (não aos sentidos), o perdem o ar sob o joelho mais respirar com o joefato invisível e pouco tangí- de tiranias. Há também os lho do capital lhe pesando vel do racismo estrutural. O asfixiados de infelicidade, no pescoço. Outras gentes vídeo ajuda o jornalismo a de desamparo, de desamor. perdem o ar sob o joelho mostrar que o assassinato Há o sufoco da fome. Há o de tiranias. Há também os de George Floyd não é um estrangulamento existencial asfixiados de infelicidade, descuido individual de um de desamparo, de desamor. agente da lei, mas um sistema em andamento. Há o sufoco da fome. Há o estrangulamento É nesse sentido que o vídeo se prestou como existencial. E, além disso, são cada vez mais matéria-prima para o jornalismo revelar o numerosos os seres humanos que não conseabuso do poder e, mais ainda, revelar o poder guem respirar mesmo e que morrem de síncomo forma de abuso. drome respiratória aguda grave. A imagem Na linguagem, as palavras vivem de falada por Floyd tem também esse sentido. sintetizar, elas mesmas, imagens. Escrever Os pacientes da covid-19 morrem porque – gosto de lembrar Humberto Werneck, ci- não conseguem respirar. Foi o que notou tando João Cabral de Melo Neto, que adapta- dia desses, num comentário de WhatsApp, va Paul Éluard – é “dar a ver com palavras”.9 um dos mais sensíveis observadores da cena Aí estão as figuras de linguagem, as metáfo- urbana, Angelo Bucci. Arquiteto, professor ras, as operações sígnicas que, urdidas com da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo palavras, conferem validade aos sentidos da Universidade de São Paulo (FAU/USP) que governam nossos atos, nossos quereres, e do Massachusetts Institute of Technology nossos percursos de desejo, nossa ira, nossa (MIT), nos Estados Unidos, é ainda irmão. ação política. Ele escreveu assim:

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Eugênio, não lhe parece incrível que, enquanto centenas de milhares de pessoas estão doentes de um vírus que não nos deixa respirar, outras dezenas de milhares estão nas ruas com cartazes dizendo “I can’t breathe”?

Angelo pensa a cidade como campos de obras arquitetônicas em permanente confronto ou diálogo. A seu modo, flagra o mal-estar sufocante inscrito nas artérias urbanas. Aqui no Brasil, nós vimos as passeatas norte-americanas pela televisão – e pela internet, claro, que é também televisão sem ondas eletromagnéticas. Com destaque, tomamos contato com os protestos nos Estados Unidos pelo jornalismo do Jornal Nacional, da Rede Globo. E é aí que a Mídia Ninja entra na história. Refresquemos a memória, por mais fresca que ela esteja. A Mídia Ninja era um “coletivo” de jornalistas criado por Bruno Torturra, com uma página no Facebook em março de 2013. Os dias de glória vieram três meses depois, nas passeatas brasileiras das Jornadas de Junho de 2013. A cobertura era ao vivo, pelas redes sociais. Os “ninjas”, como eram chamados, levavam seus equipamentos em mochilas e, às vezes, em carrinhos de supermercado. Mostravam tudo – e tudo do lado de dentro. Os ninjas eram personagens de forte apelo turístico nas gigantescas manifestações. A palavra “ninja” – interessante constatar isso agora – também funcionava como imagem. No plano das letras, do escrito, do texto, “ninja” seria apenas o acrônimo resultante das iniciais do nome oficial do grupo, que é um nome-manifesto: “Narrativas Independentes, Jornalismo e Ação”. Além

do texto, abria-se um feixe meio caleidoscópico de sentidos possíveis. A logomarca da Mídia Ninja era dúbia: um rosto mascarado em alto contraste, com olhos amendoados, meio femininos, que encaravam o espectador em suave ameaça. A figura tinha toques de delicadeza e violência, de candura e lutas marciais. Fora isso, a palavra “ninja” soava também meio travessa, parecia uma paródia do título dos filmes cômicos infantojuvenis da série Tartarugas Ninja, embora seus integrantes falassem sério. Naqueles tempos, a máscara da figura símbolo da Mídia Ninja evocava o movimento black bloc. Olhando para a mesma máscara agora, em 2020, pensamos na indumentária da pandemia. Em 2013, os “ninjas” entravam em ação como atores numa intervenção estética, numa instalação-relâmpago, como uma trupe de jornalismo performático e participante. Cobriam as passeatas e tomavam parte nelas. Eram declaradamente a favor das manifestações. Por isso, menos por serem jornalistas e mais por serem parte dos protestos, tinham passagem livre em todas as frentes. As massas exaltadas os acolhiam e os saudavam. Os “ninjas” estavam lá para noticiar e para apoiar. Levemos em conta que o ambiente das passeatas não era amistoso. As mesmas concentrações humanas que abraçavam os “ninjas” tratavam com hostilidade outros repórteres – os da Rede Globo em especial. Para qualquer jornalista que não fosse um “ninja”, entrar com uma câmera dentro daqueles rios humanos implicava riscos. O Jornal Nacional tinha limitações concretas para registrar o movimento, só conseguia captar imagens do alto, com equipamentos


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instalados em helicópteros. Outras emissoras enfrentavam as mesmas dificuldades. O resultado é que só quem tinha boas cenas do que estava acontecendo nas ruas, com imagens gravadas de perto, era a Mídia Ninja, que acabou açambarcando a função de filmar as passeatas pelo lado de dentro. Cabia às emissoras de TV apenas reproduzir as imagens geradas pelos ninjas. Em julho de 2013 (junho era o mês que não terminava de jeito nenhum), o material captado pelo “coletivo” alternativo brilhava sem rivais nas edições mais nervosas do Jornal Nacional. Sobrevinha disso um atrito de signagens, um ruído, uma dissintonia plástica. O andamento das cenas ninjas, com solavancos, correrias e agitações rueiras, contrastava ruidosamente com o padrão do Jornal Nacional. Havia naquelas tomadas algo de cine-olho, um quê de uma-câmera-na-mão-e-uma-bomba-de-gás-lacrimogêneo-na-cabeça, que irrompia como fratura no plano calmo da linguagem do noticiário. Mesmo assim, apesar da aspereza, o efeito discursivo favorecia a credibilidade do programa global, que saía ainda mais atraente e confiável. Ali estavam flagrantes verdadeiros, informativos e, mais ainda, objetivos, por mais que os ninjas fossem um grupo mais ou menos engajado e, portanto, comprometido com o fato que cobriam. Agora, sete anos depois, em maio e junho de 2020, os registros das passeatas norte-americanas, em Nova York, em Washington, em Minneapolis e outras cidades, reabilitaram a mesma estética. O telespectador, mesmo que nem pense nisso (e não pensa mesmo), deixa-se envolver pela sensação de que os ninjas voltaram a trabalhar para a Globo.

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É bem verdade que, agora, o frenesi de arruaça fica diluído em um fluxo mais ordenado, menos anárquico, até porque as marchas foram mais lentas na América do Norte, mas, como acontecia em 2013, as imagens dos protestos de 2020 exibidas no Jornal Nacional são captadas por câmeras que passeiam lado a lado com os manifestantes. Pode ser que algumas sejam gravadas em telefones celulares. Os repórteres da Globo se vestem em trajes que lembram os dos ninjas. Quase todos carregam mochilas e se misturam às jornadas seguindo o dress code dos demais. Incrível o que aconteceu: em ruas estadunidenses, os repórteres da Globo são ninjas, assim como foi ninja a adolescente negra que registrou no celular o assassinato de George Floyd. Nos protestos brasileiros de 2013 (que se estenderiam até 2016, até a queda de Dilma Rousseff ), a Globo não tinha como entrar nas paradas. A turba a repelia. Aos olhos dos que iam às ruas, a Vênus Platinada era uma grife do establishment nacional, assim como o McDonald’s era um símbolo do imperialismo e as vitrines dos bancos eram a face do neoliberalismo financista. A Globo não tinha salvo-conduto para perambular entre os black blocs e os ninjas. Só lhe restava, então, terceirizar – para os ninjas – parte da cobertura. Agora, nos Estados Unidos de 2020, não é mais assim. Lá, a Globo não representa nada de tão odiado pelas pessoas que gritam “I can’t breathe”. Lá, os símbolos do sistema racista são outros. A CNN teve a sua sede em Atlanta, no estado da Georgia, depredada pela massa no dia 29 de maio.11 O logotipo da rede jornalística, moldado em letras monumentais, com cerca de 5 metros

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de altura, fincadas na porta monumental do edifício, foi todo pichado. Sinais de repulsa como esse se espalharam em várias partes do país. Mas, lá, a Globo passou ilesa e cobriu os levantes populares pelo lado de dentro, de perto, muito de perto. Mais do que de perto, cobriu bem. A Globo trouxe uma detalhada fotografia e uma aguda radiografia da convulsão que se alastrou nos Estados Unidos. Os repórteres da Globo, feito ninjas, se moviam no interior das jornadas com familiaridade, com empatia e com desenvoltura. Eles também eram claramente contra o racismo. Realmente incrível. Aqueles repórteres tinham um lado claro. Essa “ninjificação” da cobertura da Globo significa que a emissora aprendeu com a experiência de 2013. Aprendeu com a imagem e com o texto que a mobiliza. Não entender a dimensão da qualidade jornalística que resultou disso tudo é não entender quase nada do que se passa nos Estados Unidos e no Brasil. Sem um mínimo de registro da verdade factual, em narrativas acessíveis e compartilháveis, não há como enfrentar coletivamente o racismo e o fascismo – nos Estados Unidos e no Brasil. O apontamento vigilante dos fatos, com nitidez e concisão, presente hoje no Jornal Nacional, ajuda os brasileiros a conhecer e compreender a barbárie (na forma de violência praticada pelo Estado contra os vulneráveis) que ruge contra as instituições democráticas. Não descuidemos de olhar o que aí está para ser olhado. Não percamos de vista a pluralidade dos discursos que, dentro do campo democrático, cimenta a força difusa que nos permitirá vencer o arbítrio – agora ou mais adiante. O jornalismo

joga um papel central nesse processo e o Jornal Nacional, em suas noites de Mídia Ninja rediviva, joga um papel central no jornalismo brasileiro hoje. Um bom papel. O jornalista Antonio Martins, no site Vermelho, no dia 23 de maio, teve olhos para isso. Ele verificou que a cobertura do Jornal Nacional, mostrando fatos, desmontou as desculpas abrutalhadas com que o presidente da República tentava negar suas intenções e seus atos de intervenção indevida na Polícia Federal. Além de olhos para ver, ele teve a honestidade intelectual de reconhecer o mérito do jornalismo da Globo: Faz brutal diferença uma Rede Globo que, ao invés de passar o pano para os ataques do ex-capitão à democracia, dedica-se a desconstruir, com bom jornalismo, seus argumentos. Os noticiários da emissora demonstram [na edição de ontem] como é inconsistente a alegação de que Bolsonaro não quis intervir na PF para proteger seus filhos e “amigos”, procurando apenas garantir sua segurança pessoal. O trabalho foi feito com profundidade e didatismo. Repercutirá ao longo dos dias, mesmo entre os bolsonaristas – que, ao contrário do que às vezes julgamos em nossas visões persecutórias, são pessoas deste mundo, imersas e sujeitas às pressões e contrapressões do diálogo social.12

Antonio Martins lança um alerta contra o preconceito, a estreiteza de espírito e o sectarismo seco. É preciso ver, é preciso largueza de horizontes, ou teremos as nossas mesquinharias pisoteadas pelo que há de pior e que vem de fora do campo democrático.


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Olhemos as imagens. Escutemos as imagens. Para além delas, aprendamos com as palavras humanistas que orientam as imagens jornalísticas. George Floyd não morreu no asfalto. Ele morreu na instância da imagem ao vivo, estrangulado em câmera lenta pelo joelho de um assassino que manteve no bolso a mão esquerda, o tempo todo. O assassino, com aquela postura, era ao mesmo tempo um indivíduo sem compaixão e a materialização de um sistema sem espírito. Agora, as jornadas que protestam contra a morte de George Floyd convergem para

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a mesma instância da imagem ao vivo. Os fatos gritam por imagens e as imagens, mediadas pela razão e pela palavra, na contramão do espetáculo, guardam mensagens oblíquas e esquivas. Fiquemos atentos. Para derrotar o fascismo e o racismo, teremos de ter olhos para elas e coragem para entendê-las, assim como teremos de ter capacidade de dialogar com aqueles que, apesar de suas estranhezas e contradições internas, pertencem ao campo democrático e não querem que as tiranias estabeleçam a matriz de convivência no futuro.

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Eugênio Bucci Jornalista, professor titular da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP) e autor, entre outros livros, de A Forma Bruta dos Protestos (Companhia das Letras, 2016) e Existe Democracia sem Verdade Factual? (Editora Estação das Letras e Cores, 2019).

Notas 1

AHRENS, Jan Martínez. A chuva que matou Martin Luther King continua caindo sobre os EUA. El País, 4 abr. 2018. Disponível em: <https://brasil.elpais. com/brasil/2018/04/03/internacional/1522748570_422069.html>. Acesso em: 7 jun. 2020.

2

Ver: <https://oglobo.globo.com/mundo/violencia-contra-george-floyd-faz-losangeles-reviver-caso-rodney-king-espancado-pela-policia-24460116>; <https:// www.bbc.com/portuguese/internacional-53018054>. Acesso em: 15 jun. 2020.

3

HARAZIM, Dorrit. A era da inocência acabou? O Globo, 7 jun. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/opiniao/a-era-da-inocencia-acabou-24466043>. Acesso em: 7 jun. 2020.

4

DEBRAY, Régis. Vida e morte da imagem. Petrópolis: Vozes, 1993, p. 358.

5

DEBORD, Guy. A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro: Contraponto, 1997, p. 13.

6

A expressão verdade factual é aqui empregada no sentido que lhe dá Hannah Arendt. Ver: BUCCI, Eugênio. Existe democracia sem verdade factual? São Paulo: Editora Estação das Letras e Cores, 2019.

7

Ver: <https://www.insider.com/teenager-filmed-george-floyd-video-says-shesbeing-harassed-2020-5>; <https://www.terra.com.br/diversao/tv/blog-sala-detv/garota-que-gravou-video-de-violencia-paga-o-preco-da-fama,6c995137f488 19e26a9c5d7e8c5cd5d4j9ds6bqn.html>. Acesso em: 10 jun. 2020.

8

Mais sobre o conceito de instância da imagem ao vivo em: BUCCI, Eugênio. Em torno da instância da imagem ao vivo. Matrizes, v. 3, n. 1, p. 65-79, 2009.


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WERNECK, Humberto. O papa do papo. O Estado de S. Paulo, 21 nov. 2017. Disponível em: <https://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,um-papa-dopapo,70002091200>. Acesso em: 8 jun. 2020.

10

FREI BETTO. Não consigo respirar neste país (des)governado. Folha de S.Paulo, 6 jun. 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2020/06/naoconsigo-respirar-neste-brasil-desgovernado.shtml>. Acesso em: 7 jun. 2020.

11

Ver: <https://www.1news.com.br/noticia/604999/noticias/sede-da-cnn-edepredada-por-manifestantes-e-tudo-e-mostrado-ao-vivo-nao-sobrou-quasenada-03062020>; <https://www.terra.com.br/diversao/tv/blog-sala-de-tv/ cnn-exibe-ao-vivo-depredacao-de-sua-sede-em-protesto-racial,a3b0f55ec17da 9312960875322b64589rer47opm.html>. Acesso em: 7 jun. 2020.

12

MARTINS, Antonio. Bolsonaro, o invencível? Vermelho, 23 maio 2020. Disponível em: <https://vermelho.org.br/2020/05/23/bolsonaro-o-invencivel/>. Acesso em: 4 jun. 2020.

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VOCÊ TEM FOME DE QUÊ?

SOBRE A POLÍTICA CULTURAL NECESSÁRIA PARA E A PARTIR DE FAVELAS E PERIFERIAS Isabela Souza e Rebeca Brandão

O presente artigo reflete sobre o papel das práticas culturais e artísticas de sujeitas(os) de favelas e periferias na afirmação de direitos fundamentais e oferece pistas para o difícil exercício de pensar e intervir no futuro pós-pandemia. Ele foi construído a partir do diálogo com seis sujeitas(os) oriundas(os) de territórios que historicamente nos ensinam sobre estratégias de organização coletiva, proposição e inventividade, inclusive no que diz respeito a políticas culturais.

E

ste artigo atende ao convite do Itaú Cultural para que o Observatório de Favelas,1 a partir de seus múltiplos campos de atuação, refletisse sobre o papel das práticas culturais e artísticas de sujeitas(os) de favelas e periferias na afirmação de direitos fundamentais e oferecesse pistas para o difícil exercício de pensar e intervir no futuro pós-pandemia. Aceitamos o desafio sem subestimar a complexidade inerente a imaginar e propor o enfrentamento dos impactos da covid-19 em um país desigual e fragilizado por uma limitada concepção de democracia e de igualdade de acesso aos direitos fundamentais, uma vez que estes, apesar de garantidos pelo artigo 5o da Constituição Federal de 1988, estão longe de ser uma realidade para os 211 milhões de habitantes do Brasil. A pandemia da covid-19 tem consequências e coloca desafios específicos no que

concerne a populações moradoras de favelas e periferias. Não estar no centro econômico das grandes cidades e regiões brasileiras e ter histórias marcadas pelos abismos que as violências estruturais da nossa sociedade impõem são fatores determinantes para as condições de enfrentamento do vírus invisível que aprofunda nossas desigualdades. Faz-se necessário reconhecer, no entanto, que, a despeito das lacunas da presença do Estado, sujeitas(os) e territórios periféricos historicamente têm se organizado para seguir existindo, mesmo diante de políticas genocidas e irresponsáveis e de representações hegemônicas degradantes e estigmatizantes. São essas práticas de articulação, enfrentamento e ruptura, e também as(os) sujeitas(os) que as inventam e as compartilham, que nos interessam neste artigo. Construímos uma narrativa sobre como chegamos aqui e para onde podemos ir tendo


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como referência interlocutoras(es) generosas(os) que aceitaram seguir um percurso compartilhado. 2 São pessoas de origem popular com a escolha radical de atuar no mundo a partir da cultura e do território, tratando-os como mediações para reivindicação, visibilização e incidência política. Os caminhos para refletir sobre a relação entre cultura e território nos levam a considerar a dupla dimensão dos sentidos de identidade, conforme apontam Barbosa e Dias: O território guarda os investimentos mais recônditos e, ao mesmo tempo, contribui para exteriorizar os significados de uma dada cultura. No território, estão as cristalizações de símbolos, memórias e valores que encarnam o sentido da cultura. É por meio da apropriação do território que se geram usos e estilos, combinando maneiras de fazer e invenções do saber inscritas em posições, disposições e recepções culturais socialmente construídas. É no território que a cultura ganha sua dimensão simbólica e material, abrindo as possibilidades de sua apropriação como conceito e sua visibilidade como prática social (BARBOSA; DIAS, 2013, p. 18).

Não raras vezes, as histórias se confundiram e cruzaram nossas vivências particulares, porque todas essas pessoas (incluindo nós mesmas) iniciaram suas formações e/ou mobilizaram de modo mais contundente seus saberes e fazeres no contexto de programas, movimentos e instituições que são parte de um projeto recente de país (entre 2003 e 2016), no qual as artes e as culturas

Isabela Souza e Rebeca Brandão

populares e periféricas vivenciaram volumes inéditos de investimentos e foram tratadas como uma das centralidades para o desenvolvimento integral da sociedade. Em seu discurso de posse, o ministro da Cultura Gilberto Gil enunciou elementos que apontavam para a consciente valorização e o reposicionamento material e simbólico do lugar da criação e da produção cultural no contexto da relação com outros direitos: Ao investir nas condições de criação e produção, estaremos tomando uma iniciativa de consequências imprevisíveis, mas certamente brilhantes e profundas, já que a criatividade popular brasileira, dos primeiros tempos coloniais aos dias de hoje, foi sempre muito além do que permitiam as condições educacionais, sociais e econômicas de nossa existência (RUBI, 2003, p. 2).

Diante do exposto, nossa busca será pelo diálogo com o que há no além das condições de existência, a partir da conversa com pessoas oriundas de territórios que historicamente nos ensinam sobre estratégias de organização coletiva, proposição e inventividade, inclusive na proposta de políticas culturais. Nesse sentido, o texto estará dividido em três eixos de composição. Primeiro, contextualizamos brevemente o processo histórico que marca a constituição de favelas e periferias urbanas; em seguida, estabelecemos uma costura entre as jornadas pessoais de nossas(os) interlocutoras(es) e o processo de inventividade comunitária característico das formas de organização de favelas e periferias nas lutas pela garantia de direitos fundamentais; e, por fim,

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examinamos mobilizações comunitárias que oferecem referências para a elaboração de políticas e práticas culturais necessárias ao que se deve constituir como projeto de sociedade democrática. Processos históricos e apontamentos conceituais A primeira vez que a palavra “favela” foi usada data do início do século XX, para designar habitações populares no Morro da Providência (NUNES, 1976), originalmente denominado Morro da Favella, no Rio de Janeiro. Todavia, Almeida (2017, p. 4) salienta que: Como materialidade, portanto, as aglomerações de casebres rústicos nos morros da cidade já existiam muito antes de a palavra “favela” surgir para reuni-las sob uma mesma classificação.

Para o autor, mesmo antes de o Morro da Providência surgir na paisagem carioca, já havia experiências de moradas criadas por pessoas que se insurgiram contra a escravidão e reivindicaram suas liberdades de viver na cidade. O que o início do século passado trouxe foi uma política institucional que materializava formas de lidar com esses territórios e suas(eus) moradoras(es), nada muito inovador em se tratando de violências que vêm sendo reiteradas por modelos hierárquicos que pautam como nos organizamos como sociedade desde o período colonial. De lá para este fatídico 2020, no contexto da produção das cidades brasileiras, se repete o enredo de demolições, desmontes e remoções, aliado aos precários movimentos de assistência e

garantia de direitos fundamentais, caracterizando políticas autoritárias e excludentes que geram a segregação do espaço urbano. Na contramão da discriminação dos territórios e das pessoas nele residentes, vemos amplas defesas para que se consolidem narrativas e políticas públicas reparadoras de desigualdades históricas, que, enfim, reconheçam as favelas como registros orgânicos no espaço da cidade. Registros que consolidam estratégias comunitárias, de uma população econômica e socialmente vulnerável em sua limitada garantia de direitos constitucionalmente reconhecidos. (Re)existindo ao Estado desigual seguem esforços de lembrar, cobrar e propor políticas públicas de habitação, saneamento, saúde e transportes de qualidade, ações que geram trabalho, renda e investimentos em educação e cultura (BARBOSA, 2009). Apesar de um amplo esforço de negação e de reiteradas violências no contexto de hierarquias poderosas e fundadoras de arbitrariedades dissimuladas de superioridade (BARBOSA; DIAS, 2013), diante de territórios e da maioria da população brasileira, observa-se a pluralidade de práticas e estéticas herdadas de povos indígenas e de experiências comunitárias de favelas e periferias que nos identificam enquanto país e consolidam a corporeidade de nossa cultura – “que exprime toda riqueza possível de desvendamento do que somos, onde estamos e como vivemos” (BARBOSA; DIAS, 2013, p. 17). Partindo do processo histórico narrado e de premissas conceituais brevemente apresentadas, buscaremos entender como nossas(os) interlocutoras(es) estruturaram suas ações concretas a partir de práticas, produtos


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e imaginários culturais nos tempos de agora e também em seus percursos, e como inspiram novas possibilidades do devir.

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sujeito coletivo de pertencimento apresentado por Simão. No conjunto de Favelas da Maré (RJ), buscando o equilíbrio entre a formulação de estratégias que respondam às políticas de longo prazo e o cotidiano de A gente não quer só comida: ações de base, está Pâmela Carvalho. Nascida sujeitas(os) e territórios engajados e criada no Morro do Juramento, Pâmela é na luta por direitos fundamentais Se, por um lado, as reincidentes negligências gestora e produtora cultural, arte-educadora, governamentais colaboram para que favelas e historiadora e mestra em educação pela Uniperiferias sigam sem acesso a um conjunto de versidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ); serviços básicos (SIMÃO, 2020), por outro, é mora na Maré desde 2015 e atualmente coora partir dessas lacunas que organizações e co- dena o eixo Arte, Cultura, Memórias e Idenletivos têm assumido papéis tidades da Redes da Maré.3 de centralidade na disputa por “A primeira coisa que Ela, assim como todireitos fundamentais para a gente fez foi ir para das(os) as(os) interlocutoesses territórios: o campo”, diz Pâmela ras(es) nesta jornada, integra Carvalho. Isso quer dizer um movimento comprometiO movimento associativo que o que importa são as do com territórios de urgênprotagonizou muitas lutas, demandas imediatas, o cias e muitas potências. São que hoje estão no escopo contato com o território e pessoas que, apesar de trade atuação de organiza- com as pessoas, e depois balhadoras da cultura, estão ções da sociedade civil e o olhar para a cultura e a desde o começo da pandemia coletivos originários nas mobilização de respostas mobilizadas para a construpróprias periferias. E aqui a partir dela ção de ações de solidariedareside, para nós, outro elede, operando iniciativas de mento altamente potente a ser destacado. apoio direto à população e propondo novos Nas favelas temos um sujeito coletivo que, horizontes para suas comunidades. gradualmente, foi se tornando fundamen“A primeira coisa que a gente fez foi ir tal para travar novos horizontes para esses para o campo”, diz Pâmela, um pouco antes territórios. Existe um urbanismo militante de começar a elencar outras articulações em coletivos culturais, ONGs, movimentos para dar respostas mais efetivas a partir das de mulheres, de jovens, de lideranças co- ações que coordena. Isso quer dizer que o munitárias que se tornaram importantes que importa são as demandas imediatas, o interlocutores para qualquer ação positiva contato com o território e com as pessoas, e em seus territórios (SIMÃO, 2020, p. 11). depois o olhar para a cultura e a mobilização de respostas a partir dela. No caso de Pâmela As pessoas com as quais conversamos são e seus movimentos de trazer a cultura para o protagonistas de lutas originadas da atua- centro das ações, destaca-se a coordenação de ção de organizações comunitárias e são esse um edital de acesso a recursos para artistas,

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produtoras(es) culturais e comunicadoras(es) populares moradoras(es) da Maré – reconhecendo que o trabalho artístico mantém famílias, agora desamparadas por causa do cancelamento de agendas, e respondendo a uma demanda histórica de valorização de saberes e práticas artísticas periféricos. A rápida assimilação das demandas comunitárias por agentes mobilizadoras(es) da cultura em territórios periféricos e favelados não é um fenômeno novo. Diante dessa constatação e do contexto atual, Márcio Black, cientista social e mestre em ciência política pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), doutor em ciência da cultura pela Universidade de São Paulo (USP) e grande ativador cultural e militante da ocupação do espaço público paulistano, destaca que momentos de fragilidade acabam sobrecarregando figuras ativas e representativas no território: “O cara, além de agente cultural e produtor, é também liderança comunitária. A preocupação, agora, é como ele faz para fortalecer a comunidade e não levantar sarau”, diz ele. Dialogando com Black, lembramos que essas pessoas são comprometidas com pautas amplas e mobilizam debates e articulações que estão relacionados a diversos direitos fundamentais, tendo a arte e a cultura como fio condutor e ferramenta na formulação de táticas de atuação no território. Essas correspondências entre agentes comunitárias(os) e práticas culturais e entre agentes culturais e práticas comunitárias acontecem porque, muitas vezes, são as práticas artísticas e suas(eus) sujeitas(os) dinamizadoras(es) as(os) responsáveis por consolidar uma identidade territorial capaz

de exigir e garantir direitos fundamentais. Além disso, essas pessoas circulam muito dentro de seus territórios e isso lhes dá possibilidades de ser conhecidas por muitas(os) outras(os) moradoras(es) e de conhecer de perto demandas coletivas. Black atua no investimento social privado como coordenador do Programa de Democracia e Cidadania Ativa da Fundação Tide Setubal, e vem contribuindo em um conjunto de iniciativas que colocam as periferias como prioridade. Para Black, é preciso que sejam mobilizados cada vez mais fomento e formação, e a tríade investimento social privado, empresas e poder público precisa assumir suas responsabilidades, porque “a ‘responsa’ de quem está no território já está visível. Isso já está dado. Nunca cheguei a um território e não vi um baita trabalho. Há compromisso com os moradores, há cuidado com os espaços. [...] Quem vem do investimento social privado e dos fomentos tem a responsabilidade de chegar junto com essas galeras”. Ele diz que a escola o aproximou da cultura e ampliou sua circulação na cidade, e esse é um ponto muito comum na fala de outras(os) interlocutoras(es). Érika Lemos Pereira da Silva destaca a contribuição da escola em sua “expansão de mundo”. Nas palavras dela, “a escola mobilizou meu trânsito para fora de Campo Grande”, populoso bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde Érika cresceu num conjunto habitacional. “Foi faltando aula e usando o bilhete para conhecer a cidade que eu conheci o CCBB”, diz ela, que entrou pela primeira vez no Centro Cultural Banco do Brasil para ir ao banheiro. Anos depois, durante sua graduação em história da arte, na UFRJ, Érika voltou


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muitas vezes ao CCBB, atuando como estagiária. Além da escola, Érika reiterou o papel da família matriarcal de professoras e do pai pesquisador orgânico da música negra norte-americana na centralidade que a educação e a arte ganharam em suas escolhas, tendo passado pelas equipes educativas do Museu Bispo do Rosário4 e do Museu da Chácara do Céu5 e sendo atualmente educadora no Galpão Bela Maré.6 A pandemia trouxe a Érika o desafio de se reinventar a partir da virtualidade, e para ela foram reconfiguradas questões que não estavam claramente colocadas. Em sua fala há uma marcação política muito forte sobre o lugar de vulnerabilidade em que foram colocadas(os) trabalhadoras(es) da cultura e especialmente educadoras(es) museais, grupo de profissionais que viveu demissões em massa já nas primeiras semanas de fechamento de muitos espaços culturais do Brasil. Ela mesma traz, ao mesmo tempo, o diagnóstico de que o consumo de bens culturais aumentou: “As pessoas valorizam os produtos, mas não seus criadores”. Érika nos alerta sobre a não valorização dos criadores artísticos e culturais, especialmente dos periféricos, que se aprofunda no momento atual, significando a desconsideração de seus territórios de origem. Essa é uma manifestação concreta de como preconceitos de raça e territorialidade se consolidam em políticas culturais pouco democráticas e não comprometidas com movimentos concretos de reparação de violências históricas, sobretudo cometidas em territórios cuja maioria da população tem ascendência preta e parda e ancestralidade vinculada aos povos indígenas e africanos escravizados.

Isabela Souza e Rebeca Brandão

Em sua fala, além de mobilizar chaves de reflexão no contexto do racismo territorial do Brasil, Érika é enfática ao apontar para certa “hipocrisia das instituições culturais”, que, apesar do grande número de demissões de equipes educativas, seguem com programações on-line. A jovem educadora nos deixa com a pergunta: “Como pensar o agora a partir de espaços culturais sem as figuras centrais das(os) educadoras(es)?”. E por aqui consideramos que esse é um incômodo muito necessário, especialmente para gestoras(es) culturais e formuladoras(es) de políticas necessárias para uma agenda ampla de direitos. No coração da Pituba, um dos bairros mais ricos de Salvador (BA), está Nell Araújo, outro valioso interlocutor. Ele nos lembra o quanto cultura e educação são direitos complementares e o quanto práticas culturais podem mobilizar políticas de reparação ao racismo estrutural que marca como nossa sociedade se organiza. Da Gamboa a Pituba, Nell vem sendo agente na consolidação de um coração pulsante de brechas disruptivas na sociedade. “O que define o que eu sou hoje é o meu ponto de partida, meu território – a Gamboa.” Ele abre e fecha o Teatro Jorge Amado, onde anos antes trabalhou como estagiário. No Teatro Jorge Amado funciona, desde 2017, o Teatro Escola,7 um investimento na construção de uma escola de artes para jovens moradoras(es) de favelas e periferias de Salvador que desfaz a dimensão eurocêntrica da formação cultural e apresenta outras referências identitárias na história da arte ocidental. “O sistema nos faz acreditar que não temos perspectivas [...] A referência traz a perspectiva do horizonte”, diz ele, que vem

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consolidando, a partir da proposta artístico-pedagógica do Teatro Escola, respostas possíveis para que lidemos com as relações de raça, gênero e classe que estruturam os espaços de aprendizagens e as versões hegemônicas de nossa história. Em se tratando de táticas, nosso interlocutor compartilhou que estar na Pituba é uma estratégia política – além de avaliar que, se começasse na Gamboa, não teria os apoios de que precisava para estruturar o atual trabalho. Nell considera que o deslocamento de jovens periféricos para estudar (e não trabalhar, servir ou atender a demandas gerais da cidade) “descentraliza o percurso que o negro sempre faz”. Esses pontos materializam duas formas objetivas com que o racismo nos impede de vivenciar avanços no campo do acesso a direitos. Nell avalia que as condições sociais, urbanas e históricas de seu território de origem são limitadoras para o acesso a recursos capazes de estruturar seu trabalho formativo na área das artes, e, além disso, lê a cidade a partir dos fluxos de deslocamento de pessoas negras. O jovem gestor cultural subverte a cidade que não foi planejada para ele e pessoas como ele, e demonstra estar comprometido a alterar as lógicas usuais das políticas culturais e da produção e gestão de espaços culturais com a ampliação do direito à cidade para os seus: “O que eu quero é uma qualidade de vida digna para os meus. Quero um sistema mais digno e igualitário para todos nós, construindo coisas positivas”. Por falar em jovens que fazem deslocamentos e desafiam as formas como as cidades em geral são planejadas, nasceu e vive em Duque de Caxias, na Baixada Fluminense (RJ), a estudante de ciência da computação

(PUC/RJ) Nina da Hora. Nina compila, desde a adolescência, um diário com figuras históricas e personalidades negras. Com apoio da tecnologia, a coleção se transformou em um projeto de apoio pedagógico a professores da rede pública de ensino, e hoje ela trabalha no desenvolvimento do aplicativo Ogunhê e comanda o podcast homônimo. Nina, assim como Nell e Érika, relata a importância da família matriarcal e da escola para a sua formação, o seu compromisso público e as suas escolhas: “O que elas tiveram que fazer para que eu tivesse os acessos que tenho? Minha mãe e minhas tias tiveram que estudar à noite para conseguir trabalhar, e eu cuidava dos meus irmãos para a minha mãe estudar no sábado”. A frase de Nina ecoa desafios vivenciados por famílias periféricas para ter condições dignas de educação e trabalho. Com a conflagração da pandemia, Nina abriu mão de algumas disciplinas na faculdade e se justifica: “A faculdade continua dando aula, mas de forma muito desigual. Preferi tirar algumas matérias”. Ela segue colaborando com o Perifa:8 “Enquanto os meninos estão distribuindo cestas, eu fico aqui organizando tudo e buscando entender se todo mundo está bem”. Ela se divide entre apoios na gestão de dados de outras iniciativas e as agora rotineiras lives. Esses dois pontos da fala da jovem trazem elementos centrais para analisar o compromisso de agentes culturais com seus territórios e suas comunidades e também os desafios impostos a estudantes de origem popular em se tratando de acompanhar processos educativos de forma on-line. No caso de Nina, a universidade particular optou pelo


TECNOLOGIAS, COMUNICAÇÃO E CIDADES

Isabela Souza e Rebeca Brandão

ensino remoto, mas há muitos estudantes de a invisibilidade transbordam no momento escolas e universidades públicas que seguem presente: “Na aldeia não tem oxigênio, não sem acesso ao direito fundamental à educa- tem médicos. A gente daqui está lutando para ção. Estudantes e professoras(es) de origem que o vírus não chegue”. popular são prejudicados em se tratando de Interessante entender que, enquanto em periferias urbanas as demandas maioum país cujo acesso à internet ainda não é democrático, e, nessas circunstâncias, temos res têm sido para transferência de renda, visto muitas iniciativas comunitárias que atenção à saúde e cestas básicas de alimenbuscam mitigar os danos9 e insistir em ações tos e produtos de limpeza, no contexto do propositivas diante dos desafios materiais, Xingu a maior preocupação é a chegada do mentais e emocionais para que alunas(os) e vírus à aldeia e a infraestrutura básica para educadoras(es) periféricas(os) sigam mini- o enfrentamento – como a de transporte para pessoas com sintomas ou confirmamamente suas rotinas. ção do novo coronavírus No Território Indígena para hospitais distantes, do Xingu (MT), Takumã, do “Na aldeia não tem povo Kuikuro, utiliza arte e oxigênio, não tem médicos. assim como leitos para acolher os casos graves. A tecnologia como recursos A gente está lutando para que o vírus não chegue. própria comunidade está se para a reivindicação da memória e da identidade de sua Aqui é pesca, roça, tapioca... mobilizando, tanto que Takumã conta da construção cultura. Por intermédio do A gente não precisa de de um lugar para isolar os cinema, desde a década de cestas básicas, café”, diz casos confirmados: “Aqui 1990, Takumã vem militando Takumã, do povo Kuikuro, é pesca, roça, tapioca... A para que, a partir do audiovi- que mora no Território gente não precisa de cestas sual, sejam pautados direitos Indígena do Xingu básicas, café...”. usurpados e historicamente Takumã e também Nina, Nell, Érika, negados à população originária do Brasil. “O audiovisual é uma arma e podemos fazer Black e Pâmela seguem comprometidos tudo por meio disso... políticas internas e ex- com as lutas comunitárias de seus terternas. E podemos criar uma rede por meio ritórios por uma agenda de direitos que disso. É uma ferramenta muito importante contemple suas necessidades materiais e subjetivas, e nos apresentam, de forma na comunidade”, diz. Ele considera que, em um passado re- muito generosa, alguns caminhos possíveis cente, houve um investimento em políticas para mobilizarmos uma sociedade mais depúblicas e projetos que contemplavam algu- mocrática e menos desigual. Alguns desses mas das necessidades das populações indí- caminhos são fundamentais, e é neles que genas, mas que, mesmo antes da pandemia, nos concentraremos na parte final deste já estavam em curso bloqueios e desconti- ensaio, na busca por sistematizar pistas nuidades de programas de apoio, e não só em para o que estamos chamando de “política relação à cultura. O sentimento de solidão e cultural necessária”.

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Conclusões Braga e Teixeira abordam as contradições inerentes a ações governamentais, em geral incompletas e descontinuadas, comparadas às protagonizadas por pessoas moradoras, e as demandas efetivas dessas pessoas: Emerge a necessidade de construir novas formas de formular e executar políticas públicas de direitos, envolvendo sujeitos/ territórios em uma perspectiva capaz de reconhecer suas potencialidades e reposicionar o papel dos seus moradores enquanto protagonistas das transformações urbanas exigidas para superar as desigualdades sociais (BRAGA; TEIXEIRA, 2020, p. 17).

Diante da constatação acima, e depois de ouvir tantas pessoas incansáveis na luta por direitos plenos tendo a cultura como mediação, fica a certeza de que a política cultural necessária deve vir estruturada por muitos outros direitos fundamentais e articulada pelo compartilhamento de responsabilidades. E, nesse sentido, não se pode mais conceber que as pessoas residentes em periferias, urbanas e rurais, não sejam agentes centrais dessa mudança. No que diz respeito à parte que cabe a todas(os) nós, a política cultural necessária já está vindo em contraposição a lógicas racionais verticalizadas e que desconsideram a participação sociopolítica de sujeitas(os) moradoras(os) de favelas e periferias, urbanas e rurais, do Brasil. Em vista da crise econômica que já estamos vivendo, e do período de recessão que nos espera, para estruturar uma política cultural comprometida com a democracia, precisamos rever a forma como a cultura

é tratada por governantes e materializada em políticas públicas. Para avançarmos, nossas(os) interlocutoras(es) valorizam a urgência de mulheres, de pessoas negras e de origem popular em espaços decisórios e deliberativos de governos e instituições com poderes para eleger caminhos, sendo esse um fator decisivo para que políticas sejam reinventadas à luz de demandas sociais. E sem, com isso, repetir velhas práticas excludentes, que colaboram diretamente para a manutenção de uma estrutura social racista, sexista e classista. Listam também outros direitos fundamentais, como mobilidade urbana, educação pública, espaço público, renda e saneamento básico. Em suma, um conjunto inquestionável de direitos que atendem/resguardam os espaços urbanizados e que, por uma série de fatores já expostos, ainda não se configuram em políticas públicas/urbanas que incorporem favelas e periferias. Trazendo nossa própria experiência institucional e pessoal para o diálogo, a equipe de Arte e Território do Observatório de Favelas, além de estar mobilizada para a produção da campanha de comunicação “Como se proteger do coronavírus” e dedicada aos territórios periféricos, está ativa na criação e na difusão de conteúdos on-line,10 articulando ações de solidariedade para trabalhadores da cultura. Esses movimentos, somados a outros desenvolvidos pela nossa instituição, compreendem uma ampla estratégia, articulada e comprometida com a nossa missão de reduzir as desigualdades e fortalecer a democracia, afirmando favelas e periferias como territórios de potências e direitos.


TECNOLOGIAS, COMUNICAÇÃO E CIDADES

Acreditamos que se faz urgente reafirmar um conjunto de ações integradas, que levem em consideração a importância da atuação de sujeitas(os) e organizações, comprometidas com transformação estruturante da sociedade, tendo a cultura e o território como ponto de partida de medidas sociais que beneficiem política, econômica e socialmente as pessoas que vivem em favelas e periferias. Parte significativa das soluções, inclusive diante da violenta e cada vez maior disseminação do novo coronavírus em favelas, periferias e bairros mais pobres de nossas cidades, além de em aldeias indígenas e comunidades rurais, apontando não apenas para as desigualdades sociais do espaço, mas também para a brutal ameaça ao direito à vida (BARBOSA; TEIXEIRA; BRAGA, 2020), está sendo inventada nas ações comunitárias e solidárias de comunicação, proteção e atendimento. Tais ações, nas quais incluímos o trabalho das pessoas com as quais dialogamos aqui, conforme elas mesmas sugerem, deveriam ser tratadas como “referências significativas para diagnósticos situacionais, planejamento e acompanhamento das atividades em cada território” (BARBOSA; TEIXEIRA; BRAGA, 2020, p. 10). No exercício de propor uma sociedade de direitos, precisamos refletir sobre em que medida as formas espaciais a partir das quais nos organizamos têm incorporado inventivos arranjos e práticas das periferias e dos povos tradicionais. O que sugerimos, diante de nosso breve percurso – na vida e neste ensaio –, é que seja coletiva e radicalmente encarado o desafio de nos deixarmos guiar pelas pessoas que

Isabela Souza e Rebeca Brandão

até agora seguiram reinventando caminhos mesmo diante de políticas “por demais vulnerabilizadas de seus corpos e territórios” (BARBOSA, 2020, p. 2).

Isabela Souza Doutoranda em geografia pela Universidade Federal Fluminense (UFF) e mestra em planejamento urbano e regional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com MBA em gestão de projetos pelo IBMEC/RJ e bacharelado em turismo pela Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio). Nasceu e cresceu na Maré e, desde 2011, trabalha no Observatório de Favelas, do qual atualmente é diretora. Interessa-se pelos debates acerca da cidade, das pessoas que nela vivem e da arte e da cultura como caminhos para a construção de uma sociedade menos desigual.

Rebeca Brandão Produtora e gestora cultural, pesquisadora e curiosa da cultura independente. Criada na Baixada Fluminense, realizou diversas ações em espaços públicos, como o Sarau do Escritório, o Leão Etíope do Méier e o Festival O Passeio É Público. Atualmente, coordena a Arena Carioca Carlos Roberto de Oliveira – Dicró, onde tem desenvolvido projetos de participação ampliada, visando construir um modelo de gestão compartilhada para equipamentos culturais fora do eixo Centro-Zona Sul.

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Referências ALMEIDA, Rafael Gonçalves. A emergência da favela como objeto da prática médica. Terra Brasilis, 8 | 2017. Disponível em: <http://journals.openedition.org/ terrabrasilis/2082>. Acesso em: 5 ago. 2020. BARBOSA, Jorge Luiz. Cidade e território: desafios da reinvenção política do espaço público. Observatório de Favelas, 11 fev. 2010. Disponível em: <http:// observatoriodefavelas.org.br/wp-content/uploads/2013/06/Cidade-eTerrito%CC%81rio_Por-Jorge-Luiz-Barbosa.pdf>. Acesso em: 7 jun. 2020. _______. Remover ou conter as favelas? Eis uma falsa questão. Observatório de Favelas, 8 maio 2009. Disponível em: <http://observatoriodefavelas.org.br/ wp-content/uploads/2013/06/Remover-ou-conter-as-Favelas_Por-Jorge-LuizBarbosa.pdf>. Acesso em: 7 jun. 2020. BARBOSA, Jorge Luiz; DIAS, Caio Gonçalves. Solos culturais. Rio de Janeiro: Observatório de Favelas, 2013. BARBOSA, Jorge Luiz; TEIXEIRA, Lino; BRAGA, Aruan. Cartografia social da covid-19 na cidade do Rio de Janeiro. In: OBSERVATÓRIO DE FAVELAS. Mapa social do corona. 1. ed. Rio de Janeiro, 2020, p. 2-10. Disponível em: <http://of.org.br/wp-content/ uploads/2020/06/Mapa-Social-do-Corona-01.pdf>. Acesso em: 7 jun. 2020. BRAGA, Aruan; TEIXEIRA, Lino. Território inventivo: disseminação e diálogos. Rio de Janeiro: Observatório de Favelas do Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: <http:// of.org.br/wp-content/uploads/2020/05/E-book_Territorio_Inventivo.pdf>. Acesso em: 7 jun. 2020. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, DF: Senado Federal, 1988. BURGOS, Marcelo Baumann. Cidade, territórios e cidadania. Dados – Revista de Ciências Sociais, v. 48, n. 1, 2005, p. 289-322. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Números do Censo 2020. Disponível em: <https://bit.ly/3fo6SSU>. Acesso em: 1 jun. 2020. NEDER, Gizlene. Cidade, identidade e exclusão social. Tempo, Rio de Janeiro, v. 2, n. 3, 1997, p. 106-134. REPOSITÓRIO RUI BARBOSA DE INFORMAÇÕES CULTURAIS (RUBI). Discurso de posse do ministro da Cultura Gilberto Gil. Ministério da Cultura (MinC), janeiro de 2003. Disponível em: <http://rubi.casaruibarbosa.gov.br/ handle/20.500.11997/6330>. Acesso em: 1 jun. 2020. SANTOS, Milton. A natureza do espaço. São Paulo: Edusp, 2002. SILVA, Isabela Souza da. Lazer e favela: uma análise sobre o cotidiano no morro Dona Marta/RJ. Monografia do curso de bacharel em turismo pela Unirio, Rio de Janeiro, 2011. SIMÃO, Mário Pires. Como as favelas nos ajudam a pensar a cidade após a pandemia do coronavírus? Revista Tamoios, v. 16, n. 1, Rio de Janeiro, 2020. Disponível em: <https://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/tamoios/article/ view/50437/33472>. Acesso em: 11 nov. 2020. ZALUAR, A.; ALVITO, M. (Org.). Um século de favela. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 1998.


TECNOLOGIAS, COMUNICAÇÃO E CIDADES

Isabela Souza e Rebeca Brandão

Notas 1

Fundado em 2001, o Observatório de Favelas é uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) sediada no Conjunto de Favelas da Maré. Dedica-se à produção de conhecimento e de metodologias visando incidir em políticas públicas sobre as favelas e promover o direito à cidade a partir de cinco eixos centrais de trabalho: educação, políticas urbanas, direito a vida e segurança pública, arte e território e comunicação. Veja mais em: <www. observatoriodefavelas.org.br/>. Acesso em: 7 jun. 2020.

2

A título de apresentação das pessoas que convidamos para o diálogo, é importante compartilharmos que cinco das seis têm suas origens e seus territórios de ação em periferias urbanas, sendo a outra um líder indígena. Essa escolha é uma tentativa de ampliar o olhar sobre o tema, considerando algumas especificidades de populações originárias do Brasil, que seguem lutando pela manutenção de suas terras e vidas. Assim, dialogamos com Nina da Hora, 25 anos, nascida e criada em Duque de Caxias (RJ); Márcio Black, 42 anos, nascido e criado em Jardim de Abril, em Osasco (SP); Takumã Kuikuro, líder do território Kuikuro, no Alto Xingu (MT); Érika Lemos Pereira da Silva, 28 anos, nascida e criada em Campo Grande (RJ); Nell Araújo, 32 anos, nascido e criado na Gamboa, em Salvador (BA); e Pâmela Carvalho, 27 anos, nascida e criada no Juramento e moradora da Maré (RJ).

3

Ver: <http://redesdamare.org.br/>. Acesso em: 7 jun. 2020.

4

Ver: <http://museubispodorosario.com/>. Acesso em: 7 jun. 2020.

5

Ver: <http://museuscastromaya.com.br/>. Acesso em: 7 jun. 2020.

6

Ver: <www.instagram.com/galpaobelamare/>. Acesso em: 7 jun. 2020.

7

Ver: <www.teatroescola.org>. Acesso em: 7 jun. 2020.

8

Ver: <https://www1.folha.uol.com.br/colunas/perifaconnection/>. Acesso em: 7 jun. 2020.

9

Alguns exemplos são as campanhas de financiamento de pacotes de dados para que jovens se preparem para o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e sigam com chances de ingressar no ensino superior público; e o esforço de professoras(es) que têm se disponibilizado a trabalhar por ferramentas como o WhatsApp e a gravar vídeos e áudios para alunos de limitado acesso à internet.

10

Ver: <www.instagram.com/arenadicro>, <www.instagram.com/galpaobelamare> e <www.instagram.com/imagensdopovooficial>. Acesso em: 7 jun. 2020.

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Rejane Cantoni | ilustração: André Toma


Rejane Cantoni entrevista Sabrina Maniscalco e Maria Clara Dias

ARTES, CIÊNCIAS E TECNOLOGIAS NUM MUNDO PÓS-PANDEMIA Rejane Cantoni entrevista Sabrina Maniscalco e Maria Clara Dias

E

sta é uma história muito complexa e desafiadora. Todo o conhecimento humano concentrado, esforços universais, e uma ou duas pessoas infectadas na metrópole de Wuhan, na China, desencadeiam uma pandemia no planeta. O vírus, a pandemia e o estado de quarentena desestabilizam o sistema. Emergem sinais de mau funcionamento. O vírus potencializa fragilidades dos regimes econômicos, políticos, sociais. Torna visíveis erros, atrasos, má conduta, falhas dos sistemas de saúde, de transporte, de educação... Do dia para a noite, reinventamos a nossa existência. Agora somos um. Estamos conectados. Não estamos salvos se todos não estiverem salvos. Passamos a especular sobre muitas coisas. Como o lockdown entrará para a história da humanidade? Que tipo de sociedade está emergindo? Como será a primeira sociedade a operar a distância? Quais são os futuros possíveis? Vários futuros? Quem serão os arquitetos? Como a ciência está na moda, entrevistamos duas cientistas para pensar futuros possíveis num mundo pós-pandemia, e que, questionando os limites da ciência, da arte e da tecnologia, revolucionam seus campos de pesquisa.

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Sabrina Maniscalco | ilustração: André Toma


Rejane Cantoni entrevista Sabrina Maniscalco e Maria Clara Dias

Um futuro + quântico para todos Para a cientista Sabrina Maniscalco, da Universidade de Turku, na Finlândia, pensar o futuro pós-pandêmico é assustador, mas muito importante. Ela prevê dois cenários prováveis: “É possível imaginar que os humanos retomarão rapidamente seus velhos hábitos; é possível imaginar que a pandemia mudará o mundo”. A líder do grupo de pesquisa em física teórica da Turku Quantum Technology (TQT) torce para que o momento seja de oportunidades. Para que ocorram mudanças na ordem das coisas, para que o mundo seja diferente do que é. E ela tem muitas ideias sobre como fazer isso. Uma delas se refere ao ensino a distância, e, especialmente, ao ensino on-line. Em 2019, com o objetivo de explorar e explicar tecnologias quânticas a qualquer pessoa, Sabrina e seu time iniciaram o projeto multidisciplinar de pesquisa e arte QPlay e a versão QPlay Learn, uma plataforma on-line composta de diferentes mídias. Eis a nossa conversa.

REVISTA OBSERVATÓRIO: QPLAY E QPLAY LEARN OBJETIVAM ENSINAR, DE FORMA LÚDICA, FÍSICA E TECNOLOGIAS QUÂNTICAS A TRÊS GRUPOS DE USUÁRIOS: ESTUDANTES DO ENSINO MÉDIO, UNIVERSITÁRIOS E EMPRESÁRIOS DE INDÚSTRIAS QUÂNTICAS EMERGENTES. O INÉDITO DO PROJETO E DA PLATAFORMA É O MÉTODO?

Sabrina Maniscalco: Queremos mudar a maneira de ensinar física quântica. No lugar de introduzir a física por meio de linguagem matemática, vamos introduzi-la por meio de jogos. A linguagem abstrata da matemática é uma incógnita para muitas pessoas. Além de tempo de aprendizado, um fator importante é a forma como nós raciocinamos. Não raciocinamos todos da mesma maneira, não entendemos a lógica matemática da mesma forma. Isso, no entanto, não significa que não seja possível ensinar conceitos matemáticos abstratos a todos. Significa que, para tornar a tecnologia da física quântica conhecida e acessível a todos, on-line, temos que considerar diferentes necessidades e objetivos de uso.

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RO: NA VERSÃO QPLAY LEARN, OS ALUNOS INI-

RO: VOCÊ DEFENDE QUE O ENSINO A DISTÂN-

CIAM PELO JOGO. UMA EQUIPE COMPOSTA

CIA NÃO SUBSTITUIRÁ O APRENDIZADO POR

DE FÍSICOS, ARTISTAS E PROGRAMADORES

MEIO DE INTERAÇÕES PRESENCIAIS, MAS

DE JOGOS DESENHOU METODOLOGIAS COM

RECONHECE QUE AS FERRAMENTAS ON-LI-

GRAUS DISTINTOS DE COMPLEXIDADE E AS

NE OFERECEM ALGUMAS VANTAGENS. FALE

IMPLEMENTOU EM JOGOS DE CARTAS E VI-

MAIS SOBRE ISSO.

DEOGAMES. A IDEIA É LÓGICA. PARA ALUNOS DO ENSINO MÉDIO, UM GRAU DE COMPLEXIDADE. MAIOR ABSTRAÇÃO E COMPLEXIDADE PARA ESTUDANTES UNIVERSITÁRIOS. E AINDA OUTRO GRAU DE COMPLEXIDADE PARA TREINAR FUNCIONÁRIOS DA INDÚSTRIA QUÂNTICA. NA TAREFA DE TORNAR INTUITIVOS CONCEITOS ABSTRATOS DA FÍSICA QUÂNTICA, FÍSICOS E ARTISTAS TRABALHAM JUNTOS. A LINGUAGEM MATEMÁTICA FORNECE A BASE FORMAL. A LINGUAGEM VISUAL POSSIBILITA REPRESENTAR E COMUNICAR DE FORMA INTUITIVA CONCEITOS MUITO COMPLEXOS. ESSA NÃO É UMA TAREFA SIMPLES, MAS É MUITO EMOCIONANTE, NÃO?

SM: Estamos trabalhando com pessoas incríveis. O designer gráfico e físico quântico Daniel Cavalcanti é um exemplo de cooperação. Brasileiro com residência em Barcelona, Daniel compõe uma equipe que trabalha no desenvolvimento de parte do mundo fantástico que constitui o QPlay Learn. Estamos dedicados ao desenvolvimento desse projeto durante a pandemia, certos de que será útil.

SM: Ferramentas on-line podem estar em todos os lugares e ser utilizadas por educadores presenciais em qualquer lugar do planeta. Não sabemos por quanto tempo teremos que manter esse estado de isolamento e se outras pandemias ocorrerão. Para enfrentar momentos como este, não há melhor alternativa. Temos que estar prontos para mudar a educação para formas de ensino a distância. No futuro, na melhor das hipóteses, podemos imaginar que as ferramentas de aprendizagem serão híbridas, incluindo as modalidades presencial e a distância.


Rejane Cantoni entrevista Sabrina Maniscalco e Maria Clara Dias

RO: COMO O QPLAY SERÁ DISTRIBUÍDO? A PLA-

RO: DE QUE FORMA ESTARÃO DISPONIBILI-

TAFORMA ESTARÁ DISPONÍVEL PARA TODOS,

ZADOS ESSES MÓDULOS? DE MODO PRESEN-

EM QUALQUER LUGAR DO PLANETA?

CIAL, ON-LINE OU HÍBRIDO?

SM: O QPlay Learn tem três módulos. Eles não utilizam apenas matemática e textos; são cursos divertidos, que possibilitam aprender por meio de experiências audiovisuais desenvolvidas por físicos e artistas. E, obviamente, para criar, expandir e manter o projeto, precisamos de financiamento. No primeiro módulo, os alunos aprendem as regras do jogo sem saber que, ao operá-las, estão de fato aprendendo conceitos complexos de física quântica. No segundo módulo, os alunos são introduzidos na lógica operacional do jogo, em conceitos abstratos, nas leis de física quântica e, para aqueles que desejarem, no modelo matemático. O terceiro módulo está desenhado para treinar funcionários e/ou CEOs de empresas como a Amazon e outras emergentes na indústria quântica. Os três módulos têm distintos graus de disponibilidade. O primeiro será gratuito e disponível para todos. O segundo e o terceiro propõem programas para diferentes públicos e destinos – de universidades a empresas. Nesses módulos, o acesso ao conteúdo ocorre por meio de inscrições e assinaturas pagas.

SM: Com frequência, organizamos hackathons de jogos. A versão presencial desses workshops ocorre em um lugar definido, durante três dias. No início, o objetivo desses encontros foi desenvolver uma linguagem visual específica para a física e as tecnologias quânticas. Essa estratégia evoluiu. Agora organizamos workshops sobre física quântica e artes para artistas. O evento é incrível, e uma versão on-line parece ser possível. Os temas propostos podem abranger ideias como simuladores quânticos ou internet quântica, e são debatidos por equipes compostas de físicos quânticos e artistas, em sessões de brainstorming coletivo. O objetivo é gerar, em curto prazo, expressões e conceitos visuais que poderão ser desenvolvidos e incorporados ao QPlay Learn. No momento, estamos desenhando e desenvolvendo a identidade visual, a plataforma on-line e o primeiro curso, e contratando um coordenador para gerenciar tudo isso. À medida que o QPlay Learn se desenvolve e se torna uma empresa, teremos meios de contratar artistas. Essa ideia nos motiva. É um trabalho para artistas, estamos comprando arte.

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RO: QUAL O FUTURO DA PESQUISA? QUAL O FUTURO DOS LABORATÓRIOS?

Nem tudo é sombra: no caos pode haver sorte

SM: A pesquisa aplicada já recebe mais financiamento que a pesquisa fundamental. RO: A PANDEMIA TRAZ MUDANÇAS. O DESAFIO Com a pandemia na Europa, especificamenDE PENSAR SOLUÇÕES PARA O PROBLEMA ENte na Finlândia, verifica-se um aumento de SINA, POR EXEMPLO, QUE ELE NÃO PODE SER financiamento para estudos sobre covid-19 ENFRENTADO POR UMA DISCIPLINA OU ÁREA e para outros relacionados. Espero que não DE CONHECIMENTO. ENSINA QUE A TAREFA É seja o caso, mas, sim, existe o risco de outros MUITO COMPLEXA. PRECISAMOS TRATÁ-LA campos científicos sofrerem COM BASE EM MÚLTIPLOS redução de financiamento. Descobertas decorrem de PONTOS DE VISTA, TRATÁ-LA COLETIVAMENTE, E ESSA MUespeculações mentais que RO: É UMA PENA! É SABIDO podem eventualmente DANÇA DE PERSPECTIVA, POR QUE GRANDES SALTOS NA mudar nosso entendimento SI SÓ, JÁ É POSITIVA. CIÊNCIA SE DEVEM À PES- do mundo. Ocorrem porque SM: Há esperanças signiQUISA FUNDAMENTAL. ficativas, novas, e brilhantes algumas pessoas estão SM: Sim, é uma pena. A ansiosas para conhecer as mudanças surgindo. Cabe a nós observar o que elas pesquisa fundamental está leis do universo. É dessa propõem. Encontrar uma destinada à descoberta de forma que atingimos maneira viável de viver coisas sem implicação ou mudanças radicais requer que trabalhemos impacto econômico específico. Descobertas decorrem de especulações juntos. A medicina, a física, a economia ou mentais que podem eventualmente mudar as ciências sociais, isoladamente, não dão nosso entendimento do mundo. Ocorrem conta da complexidade de tal tarefa. A ação porque algumas pessoas estão ansiosas de um único indivíduo não resolverá o propara conhecer as leis do universo. É dessa blema. A colaboração entre indivíduos e as forma que atingimos mudanças radicais. relações entre muitas disciplinas diferentes, Então, sim, existem motivos para nos preo- incluindo a arte, sim. Nós realmente precicuparmos com o futuro da pesquisa funda- samos trabalhar juntos para encontrar uma mental, mas ainda é cedo. solução e mudar.


Rejane Cantoni entrevista Sabrina Maniscalco e Maria Clara Dias

RO: E NÃO HÁ NADA COMO A PANDEMIA PARA

RO: HÁ PROMESSAS DE QUE A TECNOLOGIA

DESTACAR QUE VIVEMOS EM UM MUNDO IN-

NOS LEVARÁ A UMA DRAMÁTICA MUDANÇA.

TIMAMENTE CONECTADO, INTER-RELACIO-

É MUITO IMPORTANTE, PORTANTO, ASSEGU-

NADO. SE EU NÃO ESTOU BEM, VOCÊ NÃO VAI

RAR O ACESSO ÀS FERRAMENTAS, AOS MEIOS

FICAR BEM...

PARA APRENDER, ÀS POSSIBILIDADES DE IN-

SM: Geograficamente, não há mais distâncias. O mundo inteiro foi afetado. O vírus pode se espalhar por toda parte. Com esse impacto, emergem situações muito preocupantes. Há muita coisa acontecendo no mundo agora. As pessoas parecem ter se tornado mais conscientes. Mudanças são necessárias, mas transições não são necessariamente suaves. Por essa razão, é importante educar as pessoas. A tecnologia nos dá os meios para fazer essa transição de forma conveniente e possível para todos, mas as pessoas precisam estar cientes da tecnologia, precisam entender como ela funciona. E esse entendimento nos torna conscientes de seus recursos e limitações – neste caso, conhecimento se traduz em poder e independência.

TERAÇÃO E COMUNICAÇÃO TECNOLÓGICA.

SM: Para melhor, espero. Tornar a tecnologia acessível a todos é uma tarefa possível. O mais importante é respeitar os diferentes tipos de inteligência. Privilegiar igualmente raciocínios matemáticos, lógicos, artísticos, sinestésicos. Todos os tipos de inteligência, inclusive os que aprendem coisas de maneiras diferentes, que se utilizam de ferramentas diferentes, que utilizam o cérebro de maneiras diferentes e, é claro, devo dizer, os que utilizam métodos divertidos de aprender. E essa é uma aventura envolvente.

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Brincando, sonhando, aprendendo

RO: IMAGINE QUE SOMOS MARCIANOS. IMAGINE QUE NÃO EXISTAM FLORESTAS EM MARTE.

RO: SE CONSIDERARMOS QUE 95% DO UNI-

NÓS, MARCIANOS, NÃO TEMOS IDEIA DO QUE

VERSO É INVISÍVEL AO APARATO PERCEPTIVO

SEJA “FLORESTA”. ENTÃO RECEBEMOS UM

HUMANO, DESENVOLVER MECANISMOS DE

LIVRO DE UM CIENTISTA TERRÁQUEO QUE

EXPANSÃO DOS SENTIDOS HUMANOS É TARE-

DESCREVE O QUE É UMA FLORESTA. A CIÊN-

FA FUNDAMENTAL. SABEMOS QUE A ARTE, A

CIA NA TERRA TEM FERRAMENTAS MUITO

CIÊNCIA E A TECNOLOGIA JÁ FAZEM ISSO. A

PRECISAS PARA DESCREVER O QUE É UMA

METODOLOGIA ENVOLVE PROCEDIMENTOS

FLORESTA, DO QUE É COMPOSTA E COMO SE

QUE VÃO DE SONHAR, TER INSIGHTS E ES-

RELACIONAM SEUS COMPONENTES. INCLUSI-

PECULAR A DESENVOLVER, IMPLEMENTAR

VE, OPERA MODELOS COM USO DE LINGUAGEM

E TESTAR IDEIAS EM NOVAS LINGUAGENS E

MATEMÁTICA, QUE É UMA LINGUAGEM UNI-

FERRAMENTAS. A IDEIA É ÓBVIA E IRREVER-

VERSAL. PODEMOS ASSUMIR, PORTANTO, QUE,

SÍVEL, MAS APRESENTA UM ENORME DESA-

AO TERMINARMOS A LEITURA, TEREMOS UMA

FIO. ESSAS TECNOLOGIAS E LINGUAGENS

IDEIA PRECISA DO QUE SEJA UMA FLORESTA.

PRECISAM SER OPERADAS POR TODOS.

AGORA IMAGINE RECEBER O MESMO CONVITE

SM: A nova geração opera inúmeras ferramentas e linguagens para se comunicar. Professores e palestrantes, no entanto, ainda utilizam ferramentas antigas para ensinar, que não exploram todas as possibilidades de comunicação disponíveis. A educação formal muitas vezes esquece de brincar. Para comunicar ideias, não há apenas palavras escritas, caneta, papel e/ou arquivos de texto em formato PDF. Uma enorme variedade de ferramentas audiovisuais está disponível em qualquer lugar, para todos, via internet. Essa mudança revoluciona a forma de aprender e ensinar. Alguns cursos disponíveis em plataformas on-line já utilizam recursos visuais extraordinários, mas tudo ainda muito distante do que realmente poderemos fazer.

DE UM ARTISTA QUE CONSTRÓI INSTALAÇÕES IMERSIVAS E INTERATIVAS. NESTE CASO, ELE CONVIDARÁ VOCÊ A UTILIZAR OS SENTIDOS PARA EXPERIMENTAR A FLORESTA.

SM: Exatamente. Essa questão é fundamental. O QPlay Learn é composto de várias partes; uma delas é um ambiente de realidade virtual. A ideia é possibilitar que as pessoas experimentem efeitos quânticos primeiro e, depois, entendam o fenômeno da perspectiva da física, para por fim entenderem o modelo matemático que descreve o fenômeno. Obviamente, tal tarefa não pode ser feita somente por físicos. Nós precisamos trabalhar com equipes multidisciplinares, com artistas multimídia, o que nos leva a novos caminhos.


Rejane Cantoni entrevista Sabrina Maniscalco e Maria Clara Dias

RO: NO PRESENTE, NÃO EXISTEM MUITAS FORMAS DE INTRODUZIR CONHECIMENTO EM CÉREBROS HUMANOS. TEMOS QUE TREINAR PESSOAS, E O TEMPO QUE ISSO LEVA PODE SER UM PROBLEMA.

SM: Temos que criar ferramentas para reduzir esse tempo. E poderemos fazê-lo usando ferramentas que conectam artes, ciência e tecnologia, isso é certo. É por isso que precisamos de cérebros híbridos, cursos híbridos, educação híbrida. Essa é uma chave importante para o futuro da humanidade.

Bioética + transumanismo: arte, ciência e tecnologia a serviço da sociedade Para a filósofa Maria Clara Dias, da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pensar o futuro pós-pandêmico pode trazer esperanças. A professora titular da pós-graduação em bioética, ética aplicada e saúde coletiva argumenta que a pandemia nos obriga a refletir sobre critérios relacionados ao acesso a bens de saúde, sobre formas de salvar pessoas, sobre quem e o que nos permitem estar seguros, sobre natureza, sobre educação. Como consequência, ela prevê cenários extraordinários. Aposta no acesso democrático à educação e na integração de saberes. Rejeita a ideia de uma educação para nerds, construída dentro dos limites de uma torre universitária, e desafia cientistas, tecnólogos e governos a desenhar e testar métodos pedagógicos lúdicos, artísticos.

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Maria Clara Dias | ilustração: André Toma


Rejane Cantoni entrevista Sabrina Maniscalco e Maria Clara Dias

REVISTA OBSERVATÓRIO: CENÁRIO 1 – APOS-

RO: CENÁRIO 2 – INVESTIR EM PROCESSOS CO-

TAR NA INTEGRAÇÃO DE SABERES.

LETIVOS, MÚLTIPLOS, VIVER MUITAS VIDAS.

Maria Clara Dias: Os processos educaMCD: Eu costumo dizer que aprendi muito cionais atuais precisam de revisão. Quando mais lendo Guerra e Paz1 e Um Defeito de Cor2 eu era criança, artes visuais, dança, música do que aprendi com Kant. Por quê? Porque e outras disciplinas criativas compunham o por meio da literatura podemos viver inúmecurrículo escolar. Isso mudou. As discipli- ras vidas. Podemos desenvolver percepções nas criativas foram subtraídas do currículo. de mundos que não vivemos. Podemos passar O modelo educacional atual a valorizar coisas que antes focaliza o desempenho do A arte tem muito mais não significavam nada para raciocínio matemático e o a ensinar do que o o nosso universo. O desenaprendizado de habilidades raciocínio matemático. volvimento da sensibilidade linguísticas – prioriza desen- Indivíduos que não se em relação aos outros, a consvolver crianças e adolescen- adequam ao currículo trução de um mundo comum, tes altamente competitivos. atual estariam mais bem coletivo, que possibilite efetiO problema é que esse inseridos na sociedade vamente compartilhar valomodelo deixa à margem um por meio da arte res é o que mais importa para número significativo de india sociedade. E é por meio da víduos. No caso específico do Brasil, que tem arte que desenvolvemos essa sensibilidade. grande potencial artístico, a arte tem muito Nada contribui mais para o desenvolvimento mais a ensinar do que o raciocínio matemá- da sensibilidade em relação aos outros, nada tico. Indivíduos que não se adequam ao cur- nos aproxima mais do que a arte. rículo atual estariam mais bem inseridos na sociedade por meio da arte. E note que apostar na integração de saberes como forma de garantir acesso democrático à educação pode ser uma ideia simples de se implementar.

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RO: UTILIZAR METODOLOGIAS QUE OPEREM LINGUAGENS HÍBRIDAS PODE SURPREENDER...

MCD: Com a pandemia, as crianças estão dentro de casa. Como deveres de férias, poderiam voltar a ler livros que foram descartados e viver mundos diferentes. Concentrar-se em qualificar indivíduos para frequentar as melhores universidades não é uma boa estratégia. A rigor, isso funcionaria se um número significativo de indivíduos cooperasse entre si, o que não é o caso. Os resultados da adoção desse modelo já permitem perceber que a sociedade é mais que um número de indivíduos conquistando sucesso profissional em distintas áreas de atuação.

RO: CENÁRIO 3 – QUE TIPO DE SOCIEDADE ESTÁ EMERGINDO?

MCD: Estamos isolados e, nessa condição, acessar alguém na Noruega, na África ou um vizinho amigo requer estabelecer canais de comunicação similares, e essa proximidade pode construir uma sociedade diferente. Antes da pandemia, andávamos livremente pelas ruas, íamos a todos os lugares, mas de fato vivíamos em uma bolha habitada por pessoas da mesma classe social, do mesmo gênero, e administrada por um grupo reduzido. Agora, percebemos que essa perspectiva atingiu seu limite. Eventos em todo o mundo demonstram que a bolha é muito pequena; precisamos de alternativas mais amplas.

Durante a pandemia, de quem dependemos? Dependemos daqueles que fazem as entregas e de outras pessoas que até então eram invisíveis para nós. Todos os indivíduos que compõem a sociedade são fundamentais. É importante eliminar a arrogância de pensar que apenas certos ambientes políticos ou acadêmicos têm algo a dizer sobre as coisas. O fato de termos recebido distintos graus de educação não nos atribui um lugar hierárquico, moral ou politicamente distinto, superior ou inferior. É hora de investir mais em cooperação e menos em competitividade. É hora de sair da bolha, ampliar o diálogo, abrir a percepção e ouvir.

RO: QUAIS SÃO OS DESAFIOS ÉTICOS?

MCD: A pandemia e o estado de quarentena poderão levar as pessoas a avaliar as fragilidades dos regimes anteriores, a revisar, criar e se envolver na luta por novos valores. É possível que se inicie uma nova era. Um período mais positivo. Alguns abandonarão seus lugares de excelência, seus privilégios. Outros, que antes foram tornados invisíveis, serão ouvidos.


Rejane Cantoni entrevista Sabrina Maniscalco e Maria Clara Dias

RO: CENÁRIO 4 – APRIMORAMENTO HUMANO,

RO: A TECNOLOGIA, NESSE CASO, AUMENTA-

UMA IDEIA REALMENTE NOVA DE COMO PO-

RÁ OU DIMINUIRÁ A DESIGUALDADE?

DERÁ SER O FUTURO. COMO OFERECER ACESSO TECNOLÓGICO A TODA A SOCIEDADE? A TECNOLOGIA AUMENTARÁ OU DIMINUIRÁ A DESIGUALDADE? QUAIS SÃO AS CONSEQUÊNCIAS CASO SE FAÇA ISSO DE MANEIRA IRRESPONSÁVEL? QUAIS SÃO OS DESAFIOS DA CONDIÇÃO HUMANA DIANTE DOS AVANÇOS TECNOLÓGICOS? COMO AS INTERAÇÕES COM DISPOSITIVOS E SOFTWARES INTELIGENTES PODEM BENEFICIAR O CÉREBRO HUMANO?

MCD: Há anos discuto o que ficou conhecido como “aprimoramento humano”. Minha percepção é de que somos seres que visam ao aprimoramento. Nós sempre incorporamos novos elementos. Fizemos o fogo e muitas outras coisas que servem para potencializar nossas próprias funcionalidades e capacidades. Um problema é que certos elementos não são tão fáceis de incorporar. Algumas tecnologias contemporâneas, por exemplo, utilizam recursos raros e caros, o que pode limitar seu uso a um grupo pequeno de pessoas.

MCD: Durante a pandemia, estudamos possibilidades de implantar ferramentas de ensino a distância em uma universidade pública, mas constatamos que parte dos alunos do curso de filosofia não tem telefone celular. É claro que não podemos adotar alternativas que deixem pessoas de lado, ou novamente ampliaremos nossos privilégios e a desigualdade. Esse é o ponto central desta discussão. As tecnologias precisam contribuir para reduzir a desigualdade. Nós precisamos investir e desenvolver ferramentas que atendam às questões que a pandemia tornou evidentes.

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RO: COMO OFERECER ACESSO A TODA A SO-

RO: QUAIS SÃO AS CONSEQUÊNCIAS DE FAZER

CIEDADE? QUAIS OS DESAFIOS ÉTICOS?

ISSO DE MANEIRA IRRESPONSÁVEL?

MCD: É preciso que os governos assumam o compromisso de desenvolver tecnologias inclusivas, e não exclusivas. A principal preocupação com a biotecnologia, por exemplo, se refere a quem deterá o controle. Parece evidente a necessidade de que o desenvolvimento de tal tecnologia seja feito em amplo diálogo com a sociedade. É uma questão ética. Para atingir um perfil social menos desigual, os governos e a estrutura básica da sociedade talvez tenham que assumir o controle de um conjunto de princípios que nos aproximarão do cumprimento de valores de igualdade. Costumo dizer que a moralidade é uma invenção do ser humano, um modo de ser no mundo mais compatível com outros indivíduos, inclusive outros seres humanos. Antes da pandemia, esse modo de ser visava ao fortalecimento de indivíduos específicos, apontava na direção de um modelo excludente e intolerante. Com a pandemia, esse quadro pode mudar. A crise revela que é necessário pensar modelos mais inclusivos. É hora de parar e pensar no modelo que queremos. É hora de refletir sobre o que significa tornar o básico acessível a todos, globalmente.

MCD: O básico não pode ser privilégio de poucos. Globalização não pode ser algo que existe para facilitar que uma pequena elite viaje ou acesse mercadorias em qualquer lugar do planeta. O vírus é um exemplo de que a globalização compartilha responsabilidades. Ficou fácil perceber que nossas ações têm efeitos globais. O que fazemos aqui no Brasil ou o que um alemão faz na Alemanha pode prejudicar todos os indivíduos que vivem neste planeta. E o que acontece quando consumimos algo de maneira exacerbada? Será que não estamos retirando algo essencial de alguém que está do outro lado do mundo? Nossas ações têm efeitos globais. Afetam nossas vidas, nossos parentes, nossos amigos. Uma despesa excessiva produz escassez em outro lugar. Acabamos de ver isso acontecer. Acreditando na eficiência de certos medicamentos no combate ao vírus, muitas pessoas compraram medicamentos de que não precisavam, e isso comprometeu a saúde de quem realmente necessitava deles.


Rejane Cantoni entrevista Sabrina Maniscalco e Maria Clara Dias

RO: COMO MINIMIZAR ESSES EFEITOS?

MCD: Precisamos criar fóruns de debate. Fóruns inclusivos que permitam que todos os indivíduos, inclusive os que não têm poder de discurso, participem e apresentem suas demandas. E a arte, mais uma vez, pode ser uma ótima ferramenta. Antonin Artaud, por exemplo, quando entrava em cena e se contorcia, não precisava de palavras. Sua expressão corporal e seu rosto de agonia demonstravam todas as opressões que ele enfrentava. Outro exemplo são os filmes iranianos a que assisti durante a quarentena. Neles, chamam atenção os excessos de ruídos e de silêncios. O silêncio excessivo de crianças que não conseguem fazer adultos perceberem suas demandas é muito expressivo, diz mais que todas as palavras. Eu penso que o fórum deve ser capaz de expressar todos os silêncios e opressões. E, ao perceber quais são as demandas reais, precisamos nos comprometer política, individual e coletivamente com a satisfação dessas demandas.

RO: CENÁRIO 5 – SOBRE OS DESAFIOS DA CONDIÇÃO HUMANA DIANTE DOS AVANÇOS TECNOLÓGICOS, É INTERESSANTE CONSIDERAR A PERSPECTIVA DO VISIONÁRIO ELON MUSK. EM VÍDEO NO YOUTUBE,3 MUSK DECLARA ESTAR PREOCUPADO COM A EXTINÇÃO DA HUMANIDADE. ELE ALERTA QUE, SE A SOCIEDADE CONSIDERAR O EMPREENDIMENTO DE ESFORÇOS COLETIVOS PARA CRIAR SUPERINTELIGÊNCIAS ARTIFICIAIS, TEMOS QUE ESTAR SEGUROS DE FAZER ISSO COM RESPONSABILIDADE. ARGUMENTA QUE A VELOCIDADE DE DESENVOLVIMENTO DA INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL (IA) É TÃO DRAMÁTICA QUE PRECISAMOS, DE ALGUMA FORMA, GARANTIR QUE O DESENVOLVIMENTO DESSA TECNOLOGIA OCORRA DE FORMA SEGURA, EM SIMBIOSE COM A HUMANIDADE, OU CORREMOS O RISCO DE EXTINÇÃO.

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MUSK TOMA POR BASE OS EXPERIMENTOS DO GOOGLE NOS QUAIS UMA IA RECEBE AS REGRAS DE UM JOGO DA ATARI, COMEÇA A JOGÁ-LO PELA MANHÃ E À NOITE VENCE QUALQUER ADVERSÁRIO HUMANO. O MESMO DESEMPENHO JÁ É VÁLIDO PARA O PÔQUER E OUTROS JOGOS COMPLEXOS. ELE DEFENDE QUE PRECISAMOS DESENVOLVER INTERFACES, COMO AS DO FILME MATRIX,4 PARA EXPANDIR NOSSA CAPACIDADE DE RECEBER E PROCESSAR INFORMAÇÕES, PORQUE JÁ NÃO TEMOS TEMPO DE FAZER ISSO ACONTECER DE MANEIRA NATURAL. SE GARANTIRMOS QUE NOSSA EVOLUÇÃO FAÇA PARTE DO PROCESSO EVOLUTIVO DA IA, GARANTIMOS NOSSA SOBREVIVÊNCIA COMO ESPÉCIE. ESSE É O CONSELHO-CHAVE DE ALGUÉM QUE DEDICA GRANDE PARTE DE TUDO O QUE TEM AO DESENVOLVIMENTO E À IMPLEMENTAÇÃO DE INTERFACES DE PONTA.

MCD: Cabe a nós decidir o tipo de sociedade em que queremos viver. Máquinas atuais desempenham tarefas de forma eficiente e rápida, mas podemos optar por manter os empregos, os salários e outros benefícios de trabalho para os humanos. Precisamos ser criativos e usar as máquinas no que elas têm de interessante. Podemos começar por definir quais tarefas elas podem executar para nós. Dizem que a filosofia nasceu na ociosidade. Se levarmos isso a sério, o futuro da humanidade pode

ter mais filósofos; às máquinas deixaremos os cálculos matemáticos, já que fazem isso muito melhor do que nós. Brincar é outra possibilidade que os humanos deixaram de lado e que agora podemos resgatar. Por que os humanos brincam apenas na infância? Por que brincar não faz parte de nossa vida cotidiana? Talvez seja fundamental para a saúde mental, mas abandonamos o gesto de brincar porque não temos mais esse tempo. Criar é mais uma possibilidade que os humanos deixaram de lado, mas isso também se refere ao sistema educacional. Ensinar cálculos matemáticos a uma criança já não é mais importante. Esse é o lugar da máquina. A máquina o fará melhor. Estimular a criatividade da criança é importante. O raciocínio criativo possibilitará que ela estabeleça relacionamentos sociais mais profundos, que ocupe espaços que as máquinas não ocupam, possibilitará que ela programe a máquina. Viveremos em uma sociedade diferente? Sim, e no passado também vivemos em sociedades diferentes.


Rejane Cantoni entrevista Sabrina Maniscalco e Maria Clara Dias

Futuros possíveis As duas conversas revelam que, seja na Finlândia, seja no Brasil, as cientistas estão unidas em um ponto: refletir sobre como a educação foi definida e debatida até o momento e convidar as pessoas a mudarem as prioridades. Sabrina e Maria Clara querem que o Estado desempenhe um papel importante. Ambas entendem o quão visceralmente dependentes os oprimidos de qualquer sistema estão da inclusão nas regras do jogo. É o momento de moldar o futuro dos próximos séculos. Por sorte, por meio da arte, um número crescente de humanos estará ouvindo.

Rejane Cantoni Rejane Cantoni é artista e pesquisadora de sistemas de informação, tendo exposto em inúmeras instituições de arte em todo o mundo. Em parceria com Leonardo Crescenti, participou de Ars Electronica (Linz, Berlim e Cidade do México), The Creators Project (Nova York e São Paulo), festivais Glow e STRP (Eindhoven), Festival de Arte Contemporânea de Copenhague, File – Festival Internacional de Linguagem Eletrônica (São Paulo e outras seis capitais), Mois Multi (Quebec), Trienal Internacional de New Media Art 2014 (Pequim), Ruhrtriennale 2014 (Duisburgo) e Wavelength (Shenzhen, Xangai e Pequim). Possui pós-doutorado em artes pela Universidade de São Paulo (USP), é doutora e mestra em comunicação e semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP) e mestra pelo programa de estudos superiores das tecnologias da informação da Universidade de Genebra, na Suíça.

Notas 1

TOLSTÓI, Liev. Guerra e paz. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

2

GONÇALVES, Ana Maria. Um defeito de cor. Rio de Janeiro: Record, 2006.

3

Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=H15uuDMqDK0>. Acesso em: 3 jun. 2020.

4

Matrix (1999), dirigido por Lana e Lilly Wachowski.

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3.

A CULTURA, AS ARTES E A REINVENÇÃO DO IMAGINÁRIO


OS SETORES CULTURAIS E SEUS PÚBLICOS

3.1

OS SETORES CULTURAIS E SEUS PÚBLICOS

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O FUTURO DOS MUSEUS PÓS-PANDEMIA: SOBREVIVÊNCIA OU REINVENÇÃO? Lucimara Anselmo Santos Letelier

124.

MERCADO MUSICAL NA PANDEMIA: PRIMEIROS IMPACTOS E PERSPECTIVAS PARA O SETOR AO VIVO Daniela Ribas Ghezzi

137.

IMPACTOS GERADOS PELA COVID-19 ACELERAM MUDANÇAS QUE ESTAVAM EM CURSO NO SETOR AUDIOVISUAL Ana Paula Sousa

144. REVOLUÇÃO DIGITAL Leticia de Castro

149. PÚBLICOS PROMÍSCUOS Néstor García Canclini

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O FUTURO DOS MUSEUS PÓS-PANDEMIA:

SOBREVIVÊNCIA OU REINVENÇÃO? Lucimara Anselmo Santos Letelier

Com o fechamento dos museus por causa da pandemia, são inúmeros os impactos sobre sua sustentabilidade econômica e sua capacidade de presença para além dos espaços físicos e da articulação pública. Profissionais e instituições voltaram-se, em um primeiro momento, para a urgência da presença digital e das medidas de contenção. E, depois, para os protocolos de reabertura. Concentrando-se em sobreviver e na “volta à normalidade”, mantiveram seus esforços entre estes dois polos: o começo e o fim da crise. E, talvez, não se permitiram aprofundar o que existe durante a crise: um convite à reinvenção. A construção de uma nova relevância dos museus, que reconhece e decide agir em um mundo em transformação.

O impacto da pandemia sobre os museus é mensurável. E qual o impacto dos museus sobre a pandemia?

N

o momento em que você estiver lendo este artigo, os museus estarão reabertos no Brasil, segundo as previsões. Alguns dos efeitos podem ser medidos. Outros só saberemos nos próximos anos, quando algumas hipóteses de impacto simbólico e tangível se concretizarão. Com a pandemia, 90% dos museus (85 mil) ao redor do mundo fecharam seus espaços e 13% não seriam reabertos. Em países africanos, apenas 5% dos museus puderam desenvolver conteúdos on-line.1 Para os museus norte-americanos, a perda econômica foi de 33 milhões de dólares por dia.2 E os museus de locais turísticos da Europa perderam cerca de 80% de suas receitas.3

No Brasil, foram reportadas inúmeras demissões4 em museus e centros culturais. Em Nova York, o Museum of Modern Art (MoMA) demitiu 76 membros da equipe do educativo e de atendimento ao público, e o Metropolitan Museum of Art (MET) anunciou redução de 26% nos gastos com equipe a partir de um déficit potencial de 150 milhões de dólares.5 Os desafios de viabilidade financeira dos museus, somados às dificuldades de adaptação ao digital e à ausência de infraestrutura para maior resiliência em tempos turbulentos, tiveram particularidades em cada contexto nacional e local na crise da covid-19, mas afetaram museus no mundo todo.


OS SETORES CULTURAIS E SEUS PÚBLICOS

Museus mais sustentados por recursos de pessoas físicas e empresas ficaram suscetíveis às flutuações do consumo que impactam a filantropia, assim como aqueles dependentes de investimentos do turismo, cuja queda reduziu bilheteria, vendas e fontes relacionadas ao visitante. Países com ausência de políticas públicas sólidas no setor falharam em atender às necessidades de resiliência para momentos como este. O cenário afetou particularmente museus brasileiros e de países em desenvolvimento, pela ausência de fatores que auxiliariam na superação do quadro, como: • marcos regulatórios que permitiriam flexibilizar burocracias para doações de pessoas físicas e empresariais; • capacitação em cultura digital e gestão remota de dados, conteúdos e recursos humanos; • consolidação de fundos de endowment; • manutenção de patrocínios incentivados mesmo diante das imprevisibilidades que alteraram escopos de projetos/instituições; • criação de fundos emergenciais para apoio na fase mais crítica. Para além do aspecto financeiro, a pandemia trouxe novos desafios aos museus quanto à necessidade de adaptação de sua habitual operação para atender aos protocolos de reabertura.6 Essa adequação de processos internos implica aos museus a modificação de suas práticas de atendimento ao público por prazo indeterminado. São medidas que produziram mudanças na recepção de visitantes e escritórios administrativos, além de

Lucimara Anselmo Santos Letelier

em normas de limpeza, saúde, segurança e conservação, que oneram os custos operacionais de cada instituição, sem apoio financeiro ou de capacitação por parte dos governos brasileiros, diferentemente de outros países. Na opinião de András Szántó,7 sociólogo e consultor que sugeriu várias medidas de adaptação,8 os museus podem oferecer às pessoas que experimentaram semanas de isolamento um lugar seguro para ir, uma descompressão de seus espaços reduzidos. Sua abertura sinalizaria o início de um retorno à normalidade. [...] Abrir é factível, o que não quer dizer que será confortável.

Além do álcool em gel e de outras medidas, o que muda na vida dos museus quando reabrirem e quando as pessoas encontrarem lá fora um mundo que não é o mesmo? Como essas alterações impactam a experiência de visitação? Como refletem a mudança de toda uma cultura de convivência, contemplação e interação social? O que muda? O que permanece? O que não é previsível? O colecionar da pandemia e a pluralidade de vozes A pandemia trouxe um impacto mais abrangente para a sociedade e menos tangível do que os efeitos físicos e econômicos. Um impacto sobre o imaginário e as percepções humanas quanto ao campo simbólico da existência e da interação social. Algo que extrapola o universo dos museus, mas que os inclui como guardiões e narradores futuros das memórias sociais e emocionais de cada tempo histórico.

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Observamos o movimento dos museus Internacional de Museus (Icom) evocou na ao colecionar histórias, objetos, fotografias nova definição de museus, votada em juda crise pandêmica com a responsabilida- lho de 2019 e que segue até junho de 2020 de de representar simbolicamente um pe- aguardando aprovação pela comunidade ríodo imprevisível e acelerador de tantas museal. A nova definição entende museus mudanças. Um exemplo foi o Museum of como “espaços democratizantes, inclusithe City of New York, que ganhou ampla vos e polifônicos, orientados para o diáloadesão pública com uma chamada aberta go crítico sobre os passados e os futuros”. para que pessoas enviassem histórias de Acredito que o ponto ainda mais crítico da experiências e desafios na pandemia, cuja renovação e da viabilidade desse conceito hashtag é #CovidStoriesNYC. de museus é que eles tenham “como objetivo Martha S. Jones, da Universidade Johns contribuir para a dignidade humana e para Hopkins,9 relata e comenta, em maio de 2020, a justiça social, a igualdade global e o bemao jornal O Estado de S. Paulo, o -estar planetário”. Pergunto: compromisso dos museus com O que os museus o que os museus fizeram, ou a multiplicidade de vozes: farão, a partir dos aprendifizeram, ou farão, a partir dos aprendizados zados da pandemia? O que Os museus são lugares onde da pandemia? O que realizaram diante do caos nos reunimos para dar sentido realizaram diante do social e da saúde nos territóà nossa experiência humana caos social e da saúde rios e nas comunidades com compartilhada. Ainda assim, nas comunidades com as quais atuam? Os museus o fardo, a dor e o pesar dessa as quais atuam? já localizaram qual será sua pandemia não são vivenciados maior contribuição para o de maneira igual nas muitas comunidades planeta na sociedade na pós-pandemia? diferentes do país. A covid-19 expôs o precon- Além de colecionar o tempo presente que ceito racial contra os norte-americanos de nos permitirá rever as contemplações de origem asiática. A doença tem afetado des- um futuro incerto, como as demais temáproporcionalmente negros e latinos. ticas que emergem com a pandemia foram ou serão incluídas nas narrativas e nos proDavid Kennedy, da Universidade Stanford, gramas museais? atento ao cuidado que museus deverão ter A pandemia acelera a conscientização com acervos neste período, declara: “Um da interdependência entre povos, nações e museu bem-sucedido deve trazer contexto fatos, criando uma lente de aumento para a e possibilitar que os futuros visitantes com- percepção pública de que a globalização e a preendam o teor e o temperamento da épo- massificação das trocas digitais exponenca, incluindo suas desigualdades raciais e de ciam a compreensão do coletivo, do espaço todo o tipo”. comum (do Commons)10 e do impacto poA pluralidade de vozes e perspectivas sitivo ou negativo das nossas ações indivié uma expressão prática do que o Conselho duais sobre o todo.


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O confinamento, o isolamento social e as medidas sanitárias aprofundaram a percepção da relação entre saúde planetária e saúde humana. As diferenças políticas e sociais expuseram o abismo da desigualdade social em países como o Brasil, onde o enfrentamento da covid-19 deflagra desafios estruturais pujantes. A economia paralisada e os grandes centros urbanos imobilizados estancaram a circulação de capital de um modelo econômico pautado pelo consumo e pela especulação. A urgente necessidade de adesão ao mundo digital invadiu os setores e as instituições mais resistentes à implantação de ferramentas e formas de diálogo por meio da tecnologia – um caminho sem volta. Vários desses fatores, e outros mapeados pelos pensadores desta Revista Observatório, denotam a transformação de antigos paradigmas sociais, econômicos e culturais e convocam instituições de qualquer propósito a reconfigurar suas atuações a partir de um mundo novo. Museus não podem se esquivar desse contexto que dita a realidade vigente. Observar, reconhecer e atuar sobre novos valores que emergem na pós-pandemia deve ser um compromisso social para os museus que querem ser relevantes. Os ares da mudança para os museus ventilavam muito antes da pandemia, apontando direções de futuro. Resta saber: os museus querem evoluir com a mudança ou preferem voltar ao “normal”? O papel social e o digital integrados Crise pode ser também definida como “anormalidade”. Condição que leva à predisposição para a mudança, ainda que involuntária.

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A zona de desconforto impulsiona a reinvenção. Resistir a ela pode levar a um condicionamento de se criar “remendos” para cobrir rachaduras profundas, que logo serão reabertas, e expor instituições a uma vulnerabilidade ainda maior do que já se encontravam antes. Agir, a partir delas, e decidir ter um papel ativo e consciente pode torná-lo condutor de sua própria mudança, modelando novas possibilidades que inspirem todo um setor. Coleções, objetos, edifícios e, junto com eles, as “vacas sagradas” sobre as quais fala Dan Spock em seu artigo Museums: Essential or Non-essential? talvez tenham sido fatores limitantes ao avanço em direção à profunda e urgente mudança que a sociedade espera que os museus façam. Segundo Spock, “é provavelmente melhor que nós possamos decidir que ‘vacas’ serão abatidas antes que outros façam isso por nós. Porque serão abatidas”. O apego a lugares conhecidos pelos museus dificulta que eles próprios se integrem à nova utilidade pública e à essencialidade convocadas pelo contexto da crise. Como esperar que o público reconheça nos museus algo que seus próprios profissionais não conseguem expressar ou exercer? Nas últimas décadas, cresceu ainda mais a provocação para que museus se reconfigurassem por uma nova relevância, mais contemporânea e útil à sociedade. Uma nova função, que nasce do repactuar de valores e do reconhecimento dos limites planetários e das rupturas sociais, e que ganha força com a pandemia. O momento atual resgata da história da museologia o pensamento de Hugues de Varine, que formula o conceito do “museu integral”, do “museu vivo”, em 1972, na

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conhecida mesa-redonda de Santiago, no Chile.11 Sua busca seria a de um papel social comprometido ao servir à sociedade na forma mais íntegra, em um “movimento para alinhar o museu com os novos rumos do mundo”, sobre o que Bruno Brulon, presidente do Comitê Internacional de Museologia do Conselho Internacional de Museus (Icofom), reflete em Museus Pandêmicos: Apontamentos a Partir de uma Museologia do Luto:12

precisam ocupar como agentes sociais, mas os contextualiza e potencializa para servir ao tempo presente. Múltiplas redes de profissionais, instituições e programas no setor museal internacional e brasileiro vêm criando fontes referenciais com formação, articulação, seminários e posicionamentos coletivos para os museus aderirem a essa proposição, como We Are Museums, Museum Detox, Mass Action, HiperMuseus, OF/BY/FOR ALL, MuseumNext, Museu Vivo, Coalition of MuNaquele contexto de crise das instituições, seums for Climate Justice, Museomix e The [...] a ideia de que os museus podiam contri- Happy Museum Project, ao lado de eventos buir para a vida, além de útil, parecia ino- recentes, como 10o Encontro Paulista de Muvadora no momento em que se formulava seus,13 Icom e Museus para Todos (Unirio). uma nova museologia, Uma atuação transversal e O incômodo do fechamento pautada na noção de regenerativa sem separação “museu integral” que retira os museus da zona entre museus e causas soiria fundamentar a de comodidade de suas cioambientais e econômicas. existência, entre outros atividades habituais e traz É uma discussão proa vivência do luto de algo modelos, do “ecomufunda e que ganha novo imseu” – passível de ser que não poderão mais seguir pulso na pandemia, quando definido como “o mu- sendo quando reabrirem no os museus fechados e vazios seu onde habita a vida”. “novo normal” veem a visita presencial deixar de ser o lugar seguro da Nada mais atual do que revelar que os mu- conexão com seus públicos. E abre-se a seus podem trazer vida quando a morte possibilidade de uma relevância ainda por está tão presente no cotidiano. A popula- ser modelada. ção global amanheceu seus dias, por meses, Um convite a repensar o fazer museorefazendo a contagem de mortos pelo novo lógico. O incômodo do fechamento retira os coronavírus. Só isso já seria suficiente para museus da zona de comodidade de suas atiincentivar os museus a buscar uma nova for- vidades habituais, os distancia para que se ma de utilidade pública, que valoriza a vida, tornem observadores de si mesmos, e traz para realinhar suas prioridades institucio- a vivência do luto de algo que não poderão nais a partir dessa escolha. mais seguir sendo quando reabrirem no Na prática, o cuidado com coleções, “novo normal”. objetos e patrimônios arquitetônicos não “Precisamos de tempo para lamentar antagoniza com a função que os museus essa perda de normalidade. Sério, dedique


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um tempo para reconhecer e honrar o que A atuação digital dos museus, em resfoi perdido. Esse é o primeiro estágio”, diz posta imediata às suas portas involuntaAndrea Jones, consultora norte-america- riamente fechadas, ocupou um espaço de na que sugere três fases de transformação difusão de conteúdos inócuos ao drama dos museus: finalização das identidades e da pandemia. Tours virtuais, dissertação atividades pré-pandemia; experimentação de curadores sobre técnicas de pintura do de ações com “menos preparação, mais pre- período neoclássico ou webinars sobre a sença”; e novos começos com programas ori- conservação de mobiliário ou cerâmica de ginais pós-pandemia. Ela também pergunta: séculos passados não dialogam com o buraco “Como podemos permanecer relevantes se as existencial e a busca por conforto emocional, pessoas não podem nos visitar?”.14 saúde mental, afeto, referência contextual e Talvez os museus ainda não tenham conexão coletiva. É como aparecer com um reconhecido que a visita pressupõe um lu- caminhão de quadros para o que restou de gar passivo, receptivo – e não ativo –, das paredes de edifícios em ruínas depois de um instituições em relação às pessoas. Quando terremoto. O que os museus puderam ofeo público não vem até o museu, o lugar de re- recer durante a pandemia não necessarialevância mora mais no diálogo mente se encaixou com o que que sustenta a conexão ativa O digital não tem volta. as pessoas precisavam receber. com o público, mesmo a dis- É hora de saber o que Reconheço que um passo tância, do que em seu espaço fazer com o legado importante foi dado, sobretuexpositivo como elo principal positivo da cultura do em países em desenvolvide interação. Torna-se mais digital que chegou aos mento, no sentido de elevar o importante o que o museu museus pela pandemia conhecimento e o manejo dos tem a dizer do que o que tem meios digitais por profissioa mostrar. nais de museus. Mas, friso, são meios. Não O convite é novo aos museus: para se fins. Talvez tenhamos alcançado o estágio tornarem relevantes pelos conteúdos que básico de compreensão de que a comunipossam trazer luz a futuros imprevisíveis, cação via canais digitais, por redes sociais pelas lutas que travam ao lado de seus pú- (Instagram, LinkedIn, Facebook, YouTube, blicos, pelos caminhos que abrem para con- Vimeo, WhatsApp, Twitter e até TikTok),15 textualizar debates públicos áridos, pelos website, internet das coisas, não é opcional apontamentos que ajudam na compreensão para instituições que querem se manter rede impasses sociais (e políticos) ou pela levantes, perenes e em plena execução de prestação de serviços comunitários e sociais sua missão em médio e longo prazos. Será úteis à população, o que se sobrepõe hoje ao preciso aprofundar como utilizar esses cavalor da visitação tradicional. E é a isso que nais, com qual finalidade, e para/com quem. se refere a não neutralidade museológica. E ainda desvendar o lugar dos museus como E não apenas à manifestação por meio de influenciadores digitais e mobilizadores de postagens on-line em temáticas emergentes. redes de ação.

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O digital não tem volta. É hora de saber o que fazer com o legado positivo da cultura digital que chegou aos museus pela pandemia. E conduzi-lo a uma relevância digital museológica, em que o papel de agente social junto com as ferramentas digitais reconfigura o impacto e a função dos museus no futuro. Quais novos lugares de futuro os museus são convidados a experimentar durante a pandemia e a perdurar depois que ela passar? O que fica no pós-pandemia: aceitar e enxergar para além do luto Durante a pandemia, abriu-se um tempo à integração e adaptação das mensagens museológicas aos canais de interação ao vivo e instantâneos, o que, ao mesmo tempo, as conectou ao cotidiano das pessoas. Na ausência de um espaço físico lotado para uma visitação com padrões de comportamento esperados tanto pelo museu que oferece quanto pelo visitante que adere, gerou-se no imaginário das pessoas um novo lócus para os museus na vida cotidiana. Um espaço novo a partir do imprevisível. A possibilidade de recriar a relação entre museus e pessoas. Um respiro e um eco de redesenho que começaram a ser ouvidos dentro dos cubos brancos vazios, brotando da ausência do que foi cimentado nessa relação durante muitos anos. As vozes ecoadas do silêncio dentro dos museus falam em compartilhamento de saberes e recursos e em redes a serviço de uma mais ampla, e com melhor qualidade, integração social. Falam de acolhimento, escuta e relevância cotidiana. Trazem a expectativa de um museu que vai aonde as pessoas vão, que acompanha os temas, os lugares e

as formas de troca tal qual elas são no mundo atual. E que cuida, nutre, acompanha e cura. E não só pesquisa, estuda, coleciona e expõe. Uma concepção de museu que faz parte da prática da museologia social no Brasil. E, a partir dela, me relembro de Alemberg Quindins, criador da Fundação Casa Grande – Memorial do Homem Kariri, que diz: “O começo de tudo é a ausência”. Chegou o tempo em que os museus podem ser vistos como algo que se faz relevante pela presença contínua, constante e qualificada nas discussões da vida das pessoas, e não como um lugar onde isso acontece somente quando se está dentro dele. Precisa ser algo que se dá a todo o tempo. E em qualquer lugar. Os museus entraram nas casas das pessoas. E as pessoas entraram nos museus sem sair de casa. A mudança na noção de temporalidade e espacialidade é um dos grandes efeitos da pandemia, e que inspira o redesenho das experiências em museus. Ficou evidente na pandemia a ampla influência digital sobre os campos de disputa ideológica. O manejo exclusivo dessas ferramentas para o consumo ou a política vem impactando negativamente a sociedade, por meio de fake news, bots e algoritmos manipulados. Atualizados digitalmente, museus estarão a serviço do patrimônio. Hoje, a voz viva do patrimônio imaterial pelas redes é tão importante quanto o patrimônio material preservado nos acervos. A pandemia, ainda que desafiadora, provoca o desenvolvimento de novas competências e saberes, que, integrados à atuação presencial e relacional dos museus, trazem


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maior amplitude e capacidade de mobilização, as quais não poderiam alcançar somente com as atividades presenciais de conservação, pesquisa, restauro e exposições. A relevância futura dos museus nasce da conjugação entre tudo o que se produziu, conservou e coletou até aqui para que se projetem para além de seus muros e produzam ações coletivas. Não há perda de integralidade museológica por sua adesão ao mundo digital. Ao contrário, haverá soma e não subtração. Uma referência interessante de observar são organizações e empreendedores sociais que converteram tecnologia em bem comum (cultura digital em mudança social). Criaram “alfabetização digital” como forma de difundir valores, redes e compromissos sociais na sociedade contemporânea.16 Além das mídias sociais, museus podem ser veículos propagadores do bem comum por meio de realidade aumentada, inteligência artificial, wearables e até de incubação de startups e laboratórios de inovação. Campos novos que ainda geram estranhamento à maioria dos museus. Mas os que já tinham aderido a essas inovações puderam manter elos de comunicação ativa e próxima com os públicos mais distantes na pandemia. Houve maior mobilização dos museus por adequação imediata aos protocolos de reabertura do que pelos aprendizados da tecnologia digital como uma linguagem permanente e essencial a seus trabalhos. Diante do rompimento com um mundo já mapeado, muitos museus estão em luto. Sabem que existe algo morrendo em seu modus operandi tradicional. E são convidados ao desconhecido, o que é muito desafiador

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em uma área de conhecimento tão enraizada. Com o luto vem também a negação. E o agarrar-se ao conhecido. Nos museus há mais energia dedicada ao rápido restabelecimento do “normal” do que à transformação que nasce com a pandemia. Ainda assim, o luto tem seu tempo e não poderá cegar os museus da mudança que pode trazer vida nova, para eles e para as pessoas com as quais se relacionam. A covid-19 convida os museus a ser agentes e não objetos do processo de mudança que eclode com a pandemia. Mas como fazer isso na prática? Recomendações para o pós-pandemia: diagnóstico da doença e cura O cenário trazido pela covid-19 gerou desafios estruturais que alavancam a urgência da reformulação do papel dos museus, das estratégias e dos modelos de interação com os públicos no presente e no futuro. Para avançarmos os próximos passos que definem ferramentas para lidar com esses desafios, é preciso diagnosticar genuinamente a doença do setor e da sociedade e cuidar da cura de forma sistêmica,17 contínua e permanente. Ao aceitar a reconfiguração, e a urgência de sua própria transformação setorial, o museu opta por não ser apenas impactado pela pandemia e passa a ser agente. Um lugar ativo que se reformula, que se reconstitui para colaborar a partir de seu novo papel social, convocado não apenas para pensar, refletir ou contemplar contextos sociais, mas para agir e se comprometer com eles. Durante a pandemia, com o risco iminente de contágio, muitos de nós sentimos medo de ser tocados e involuntariamente

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acometidos pela covid-19, o que nos faz proReabertos no pós-pandemia, museus teger nossas vidas. têm uma escolha a fazer: morto ou vivo? O O contexto me fez recordar da brin- que você, gestor de museus e cultura, escocadeira de criança “morto-vivo”, quando lhe? Muitos museus podem estar mortos com alguém emite um comando de “pular para ou sem pandemia, pela não integração à urvivo” e de “agachar para morto”. No contex- gência contemporânea. Talvez esse chamado to das instituições, observando a reação de seja mais claro agora. A utilidade e a essencada museu, podemos reconhecer os que se cialidade da função museológica não residem mantiveram vivos e ativos, ainda que visí- mais nos campos de atuação consolidados no veis apenas no ambiente digital, e os que se mundo pré-pandemia, porque esse mundo mantiveram encolhidos, entendendo que não existe mais. Junto com a vacina e novas respostas, “pular para a vida” seria apenas no momento da reabertura presencial. Exemplos como buscamos a cura para um mal que nos acomete a todos globalmente. A Vizinhança contra o Coronavida já estava em risco mesmo vírus, ação em rede realizada Reabertos no póspela Casa do Povo em conjun- -pandemia, museus têm antes da pandemia. Para além da covid-19, vivemos a doença to com o Museu da Língua uma escolha a fazer: de um tempo de separação, Portuguesa, o Museu de Arte morto ou vivo? Muitos de desigualdades, de modelos Sacra, o Museu da Energia museus podem estar econômicos excludentes e de e outras organizações; 18 ou mortos com ou sem um planeta com recursos nacomo o Ação Solidária do Clu- pandemia, pela não turais no limite. A crise coloca be de Colecionadores do Mu- integração à urgência uma lente de aumento no deseu de Arte Moderna do Rio contemporânea sequilíbrio planetário. E insde Janeiro (MAM/Rio), que beneficiou organizações de arte e cultura tituições “oficiais”, como museus, escolas, em comunidades vulneráveis; intervenções universidades, igrejas e entidades governasociais como Galpão Bela Maré e Lanchone- mentais, seguem limitando ou optando por te Lanchonete;19 a manifestação do Natural expandir a consciência dessa realidade. Nosso ponto de partida para a cura é o reHistory Museum, de Londres, que declarou, conhecimento da doença que queremos tratar. durante as semanas em que o movimento A doença dos museus não é a covid-19. É antirracismo eclodiu, que precisa rever suas coleções enraizadas no racismo; ou do Insti- preciso coragem para diagnosticar e atitude tuto Tomie Ohtake, que prontamente criou para curar. A palavra “curador”, além do papel, nos o programa digital #juntosdistantes, com reflexões de múltiplas personalidades sobre museus, de quem concebe as exposições e o impacto da pandemia na arte, na cultura programações, significa “aquele que tem uma e na sociedade; e ainda muitos outros de- administração a seu cuidado, como tutor, ou monstram quais museus estão vivos duran- a pessoa que cuida, encarregado de zelar”,20 o que nos recorda da responsabilidade dos te o cenário em que vivemos.


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museus quanto ao patrimônio, que hoje vive (ou quer viver) para além dos limites de seus muros. Uma noção ampliada de patrimônio. A vida como patrimônio. Não há vida possível sem que reconheçamos que seriam necessários mais de três planetas para fornecer recursos naturais que sustentem os estilos de vida atuais; que precisamos reduzir emissões de gases de efeito estufa para manter o nível de temperatura abaixo do limite seguro de 1,5 grau Celsius para seguir respirando; que 80% da riqueza do mundo estão nas mãos de 8% da população; e que precisaremos alimentar 9,6 bilhões de pessoas (em 2050), e que, ainda assim, cerca de 1,3 bilhão de toneladas, no valor de 1 trilhão de dólares, apodrece ou é desperdiçada enquanto não implementam medidas de economia circular. Hoje, as cidades ocupam 3% da massa terrestre, mas concentram 80% da energia e 75% das emissões de carbono com o êxodo do campo para as cidades, comprometendo a coesão comunitária e o patrimônio.21

O que isso tem a ver com museus? Tudo, pelo severo comprometimento do patrimônio ambiental e sociocultural que precisamos cuidar e curar. Essa é a doença que o novo coronavírus quis nos mostrar. A pandemia paralisou pessoas e instituições, sobretudo nos grandes centros urbanos, para evidenciar a doença que acomete o planeta. E nos guiar para a mudança a partir de uma nova relação com o tempo e o espaço. O curador, pelo dicionário, também é quem cura ou ajuda na recuperação do

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doente. Mas quem está doente? E a quem os museus querem se dedicar a cuidar e curar? As pessoas? Os sistemas sociais? O planeta? Os próprios museus? Os museus que optarem por estar vivos serão museus regenerativos, restauradores, curadores dos territórios geográficos, temáticos, afetivos e tipológicos aos quais estão integrados. E que não mais ignoram que tudo o que acontece fora do museu é parte da vida dele. Grande parte do que vive fora do museu não pode mais ser sustentado, precisa ser regenerado para garantir a própria vida, humana e planetária. Os limites de sustentabilidade já foram ultrapassados, e vários praticantes de design regenerativo convidam instituições a se redesenhar também como agentes regenerativos, incluindo museus. Por meio de pesquisas e projetos recentes, pelo Museu Vivo, pelo HiperMuseus e por outras iniciativas, vejo alguns padrões que começaram a se integrar a práticas regenerativas: optar por construir hortas orgânicas comunitárias em seus jardins; rever suas coleções médicas junto com lideranças LGBTs, lidando com o que era tratado como “doença” nas narrativas museológicas; optar por repatriação de objetos remanescentes de povos originários com fóruns compartilhados com tribos indígenas; revisitar seus quadros de funcionários para criar novos cargos, como uma gerência de decolonização. Seja qual for sua escolha, a pandemia convida os museus a optar pela regeneração, dentro das particularidades de cada organização. Sendo assim, compartilho práticas e recomendações aos museus em sua reinvenção pós-pandemia:

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• maior proximidade com outros setores e causas (sociais, ambientais, cultura maker, inovação de impacto positivo, economia colaborativa); • identificação da potência de reversão de quadros locais em cidades e bairros e de situações específicas de cada localidade; • entendimento da regeneração integrada aos museus: fundamentação de um design regenerativo das práticas museológicas, a exemplo do que já está ocorrendo nos campos da educação, da economia e da justiça;22 • integração da relevância da cultura, da história, das artes e das ciências com a saúde, o social, o ambiental e o econômico; • identificação de novas formas de financiamento acopladas a esse novo posicionamento de relevância museológica na contemporaneidade; • integração físico-digital: o presencial lado a lado com o digital, sem criar antagonismo e separação entre essas duas vertentes, muitas vezes por desconhecimento do digital; • criatividade nos protocolos para se recriar a partir das novas medidas sanitárias integradas aos espaços e às programações; recomendável não voltar ao “normal antes da pandemia”, mas criar novas estruturas que reconheçam saúde, convivência e valores sociais em plena mutação; • engajamento cívico-digital em temas nos quais os museus atuam por meio de suas coleções,23 para gerar mudanças em causas ambientais

• •

e sociais a partir de voluntariado, doações, redes de articulação, assinaturas coletivas, cocriação de ações conjuntas; preparação para ser protagonistas da mudança com pesquisa e experimentação, e também para a inovação; elaboração de políticas públicas e editais que estimulem o treinamento de agentes de mudança em museus, com novas habilidades dos funcionários; mapeamento de como os patrocinadores empresariais vão mudar no pós-pandemia: reformulação de propostas às empresas que buscam “veículos de mudança” nos territórios e com o público, e não apenas exposições para patrocinar. Empresas poderão ter seus investimentos voltados para saúde, educação e equidade social, e esses temas podem ser integrados à ação do museu;24 ampliação da participação da sociedade civil em projetos de mudança expande fontes de financiamento por pessoas físicas engajadas via crowdfunding, matchfunding, patronos ou endowment; integração aos 17 Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), que fazem parte da Agenda 2030 da ONU. Pesquisas, diálogos e ações dentro de seus territórios temáticos que respondem a questões de pobreza, gênero, desigualdade, vida marinha, consumo sustentável, crise climática, cultura de paz, justiça social, educação de qualidade e saúde planetária;25


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• por fim, o lugar aonde só os museus conseguem chegar: intensificação das trocas presenciais com a convivência, para compartilhar afeto, amor, conhecimento e experiências vivenciais.

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Lucimara Anselmo Santos Letelier Fundadora do Museu Vivo, consultoria em rede de inovação e sustentabilidade econômica para museus e instituições culturais. Como diretora-adjunta de artes do British Council, coordenou o Transforming People to Transform Museums, além

Aos mais céticos com o convite aos “museus curadores” recomendo rever as experiências do lugar de cura e reinvenção em memoriais de Holocausto, escravidão e outros, como o Memorial do Genocídio de Kigali, em Ruanda. Ressignificaram suas narrativas para além da memória da dor e ativaram seus públicos à consciência e à ação por novas realidades futuras, com inovação social e digital.26 Uma escolha que regenera, restaura e experimenta trazer um novo significado à existência. O período de perdas humanas com a covid-19 é árduo, complexo e intenso. São vidas que podem ser honradas pelo compromisso dos museus de se manter (ou de se tornar) ainda mais vivos. Pela escolha de não se deixar morrer e optar por ressignificar a vida. Que o tempo da pandemia não seja marcado pela memória do encerramento de vidas de pessoas e museus, mas um lugar de renascimento de ambos.

de já ter trabalhado com vários museus ao redor do mundo, como Guggenheim, Boston Children’s Museum, Museu da Imigração, Museu da Caixa Cultural, Fundação Bienal de São Paulo, Museu do Amanhã, Museu de Arte do Rio (MAR) e Museu da Língua Portuguesa. Coidealizou e é curadora do HiperMuseus, programa de inovação digital e social em museus. Assumiu, em março de 2020, a diretoria-adjunta institucional do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio).

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Notas 1

UNESCO. Relatório sobre impacto da covid-19 sobre os museus, 18 maio 2020. Disponível em: <https://en.unesco.org/news/covid-19-unesco-and-icomconcerned-about-situation-faced-worlds-museums>. Acesso em: 15 jun. 2020.

2

Ver: MCGIVERN, H.; KENNEY, N. There is no fast track back to normal: museums confront economic fallout of the pandemic. The Art Newspaper, 24 abr. 2020. Dados da American Alliance of Museums (AAM). Disponível em: <https://www. theartnewspaper.com/analysis/there-is-no-fast-track-back-to-normal-museumsconfront-economic-fallout-of-the-pandemic>. Acesso em: 15 jun. 2020.

3

NEMO (Network of European Museum Organizations); Survey on the impact of the covid-19 situation on museums in Europe. Nemo, 6 abr. 2020. Disponível em: <https://www.ne-mo.org/fileadmin/Dateien/public/NEMO_documents/NEMO_ COVID19_Report_12.05.2020.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2020.

4

FIORATTI, G; PAMPLONA, N. Semana termina com centenas de demissões em redes de museus e teatro. Folha de S.Paulo, 23 maio 2020. Disponível em: <https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2020/05/semana-termina-comcentenas-de-demissoes-em-redes-de-museus-e-teatro.shtml>. Acesso em: 15 jun. 2020.

5

Ver: LISCIA, Valentina Di. MoMA terminates all museum educator contracts. Hyperallergic, 3 abr. 2020. Disponível em: <https://hyperallergic.com/551571/ moma-educator-contracts/>. Ver também: O GLOBO; NEW YORK TIMES. Met Museum anuncia dezenas de demissões e perdas de até 150 milhões de dólares. O Globo, 23 abr. 2020. Disponível em: <https://oglobo.globo.com/cultura/ met-museum-anuncia-dezenas-de-demissoes-perdas-de-ate-150-milhoes-dedolares-1-24389131>. Acesso em: 15 jun. 2020.

6

Protocolo com recomendações para a reabertura dos museus. Icom Brasil (International Council of Museums), 14 maio 2020. As medidas envolvem, segundo a recomendação do Icom Brasil e a maioria dos protocolos de preparação para a chegada do público: readequação do fluxo de visitantes; fortalecimento das medidas de saúde; proteção e treinamento do pessoal de recepção e segurança; intensificação das medidas de limpeza e conservação; adaptação sustentável dos escritórios administrativos. Disponível em: <https:// www.icom.org.br/?p=1920&fbclid=IwAR2ya6-7S99W-M4x3f1maVMqNs84iYo_ rHw0n6Zo5Pzry4d87G25qQSPK3g>. Acesso em: 15 jun. 2020.

7

SZÁNTÓ, András. Museologia pós-pandemia. Revista seLecT, 21 abr. 2020, com tradução de Paula Alzugaray. Disponível em: <https://www.select.art. br/museologia-pos-pandemia/>. Acesso em: 15 jun. 2020. A medidas citadas pelo autor são: criar sistema de entrada programada que limita o número


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de visitantes; tomar precauções especiais para proteger os mais vulneráveis; apoiar-se na equipe mais jovem, especialmente nas funções voltadas para o público, desde que munida dos equipamentos de proteção necessários; tornar as máscaras faciais obrigatórias e disponíveis; cumprir o protocolo de distanciamento físico; dispor de álcool/desinfetante para as mãos em todos os lugares, se os especialistas em saúde pública o sugerirem; instalar algum tipo de estação de desinfecção de corpo inteiro nos pontos de entrada. 8

TORRES, C. Nuno. A fisicalidade e a quintessência dos museus. O Jornal Econômico, 26 maio 2020. Disponível em: <https://jornaleconomico.sapo.pt/ noticias/a-fisicalidade-e-a-quintessencia-dos-museus-592874>. Acesso em: 15 jun. 2020.

9

POPESCU, Adam. Museus começam a decidir como a pandemia será lembrada. O Estado de S. Paulo, 30 maio 2020. Disponível em: <https://alias.estadao. com.br/noticias/geral,museus-comecam-a-decidir-como-a-pandemia-seralembrada,70003319326>. Acesso em: 15 jun. 2020.

10

AMADEU, Sergio. O conceito de commons na cibercultura. Revista Líbero (Faculdade Cásper Líbero), disseminado pelo Instituto ProComum. Disponível em: <https://www.procomum.org/wp-content/uploads/2018/01/5397-14252-1PB.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2020.

11

DE VARINE, Hugues. História da museologia. Disponível em: <https:// historiadamuseologia.blog/hugues-de-varine/>. Acesso em: 15 jun. 2020. Mesa redonda sobre la importancia y el desarrollo de los museos en el mundo contemporáneo, v. 1, IberMuseus. Disponível em: <http://www.ibermuseus.org/ wp-content/uploads/2014/09/Publicacion_Mesa_Redonda_VOL_I.pdf>. Acesso em: 15 jun. 2020.

12

BRULON, Bruno. Museus pandêmicos: apontamentos a partir de uma museologia do luto. Revista Museu, 18 maio 2020. Disponível em: <http://revistamuseu. com.br/site/br/artigos/18-de-maio/18-maio-2020/8487-museus-pandemicosapontamentos-a-partir-de-uma-museologia-do-luto.html>. Acesso em: 15 jun. 2020.

13

Encontro Paulista de Museus, 10. ed. Disponível em: <http://www.forumpermanente. org/event_pres/encontros/encontros-paulista-de-museus/x-encontro-paulistade-museus/programacao>. Acesso em: 15 jun. 2020. We Are Museums. Disponível em: <https://www.wearemuseums.com>. Acesso em: 15 jun. 2020. Museum Detox. Disponível em: <https://www.museumdetox.org/>. Acesso em: 15 jun. 2020. Mass Action. Disponível em: <https://www.museumaction.org/>. Acesso em: 15 jun. 2020. HiperMuseus. Disponível em: <https://www.hipermuseus.com/>. Acesso em: 15 jun. 2020. Of By For All. Disponível em: <https://www.ofbyforall.org/>. Acesso em: 15 jun. 2020. Museum Next. Disponível em: <https://www.museumnext.com/>. Acesso em: 15 jun. 2020. Museu Vivo. Disponível em: <https://www.museuvivo.

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com/>. Acesso em: 15 jun. 2020. Coalition of Museums for Climate Justice. Disponível em: <https://coalitionofmuseumsforclimatejustice.wordpress.com/>. Acesso em: 15 jun. 2020. Museo Mix. Disponível em: <https://www.museomix.org/ en/>. Acesso em: 15 jun. 2020. Happy Museum Project. Disponível em: <https:// happymuseumproject.org/>. Acesso em: 15 jun. 2020. 14

JONES, Andrea. Museus durante o “apocalipse”: como desenvolver empatia e se conectar com seus públicos. Medium, 14 maio 2020, tradução de Beth Ponte. Disponível em: <https://medium.com/@pontebeth/museus-duranteo-apocalipse-como-desenvolver-empatia-e-se-conectar-com-seu-público8121026917e3>. Acesso em: 15 jun. 2020.

15

AMORIM, Ana. Seu museu tem um TikTok? Medium, 4 jun. 2020. Disponível em: <https://medium.com/@amorimana/seu-museu-tem-um-tiktok-fd67fda21478>. Acesso em: 15 jun. 2020.

16

Relatório disponível em: <https://goodtechlab.io/reports>. Acesso em: 15 jun. 2020.

17

Para referências sobre abordagem sistêmica na gestão de museus, ver: JUNG, Yuha; LOVE, Ann. R. Systems thinking in museums: theory and practice. Rowman & Littlefield Publishers, 2017. Disponível em: <https://rowman.com/ ISBN/9781442279254/Systems-Thinking-in-Museums-Theory-and-Practice>. Acesso em: 15 jun. 2020.

18

Casa do Povo; Vizinhança contra o Coronavírus. Ver: <http://casadopovo.org.br/ en/frentes-de-acao/>. Acesso em: 15 jun. 2020.

19

GROSSMAN, Miguel. MAM Rio lança novo Clube dos Colecionadores em ação solidária. Revista Arte!brasileiros, 15 maio 2020. Disponível em: <https:// artebrasileiros.com.br/arte/instituicao/clube-dos-colecionadores-mam-rio/>. Acesso em: 15 jun. 2020.

20 Ver: <http://eavparquelage.rj.gov.br/curador-e-curadoria>. Acesso em: 15 jun.

2020. 21

Dados levantados pela Gaia Education – Programa de Ação Global da Unesco de Educação para o Desenvolvimento Sustentável e Design Regenerativo, para formação de líderes de transformação para mediação da implantação dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) de forma transversal pelos países. Ver: <https://www.gaiaeducation.org/>. Acesso em: 15 jun. 2020.


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22 WAHL, Daniel. Design de culturas regenerativas. Rio de Janeiro: Bambual Editora,

2020. Regenesis: <https://regenesisgroup.com/>. Acesso em: 15 jun. 2020. Museums as bioregional learning centres in a glocal world (a precedence). Medium, 25 abr. 2020. Disponível em: <https://medium.com/@designforsustainability/ museums-as-bioregional-learning-centres-in-a-glocal-world-a-precedence981842e21e53>. Acesso em: 15 jun. 2020. 23 Season for Change, programa no Reino Unido de eventos artísticos e culturais

que celebram o meio ambiente e inspiram ações urgentes em relação à crise climática). Ver: <https://www.seasonforchange.org.uk/hold-an-event/>. Acesso em: 15 jun. 2020. 24 DUARTE, Fernando. Ativismo de marca e protestos contra o racismo: como

saber se as empresas praticam o que dizem. UOL, 12 jun. 2020. Disponível em: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/bbc/2020/06/12/ ativismo-de-marca-e-protestos-contra-o-racismo-como-saber-se-asempresas-praticam-o-que-dizem.htm>. Ver também: <https://sistemab.org/ conheca-o-sistema-b-um-movimento-de-empresas-onde-o-lucro-anda-juntocom-os-beneficios-sociais-brasil/>. Acesso em: 15 jun. 2020. 25

VISSER, Jasper. A how-to guide for museums and the sustainable development goals. The Museum of the Future, 30 ago. 2019. Disponível em: <https:// themuseumofthefuture.com/2019/08/30/a-how-to-guide-for-museumsand-the-sustainable-development-goals/>. Acesso em: 15 jun. 2020. MCGHIE, Henry. Museums and the sustainable development goals. Curating Tomorrow, 21 ago. 2019. Disponível: <https://curatingtomorrow236646048.wordpress. com/2019/08/21/how-can-museums-support-the-sustainable-developmentgoals/>. Acesso em: 15 jun. 2020.

26 Ux for Good e Kigali Memorial. Ver: <http://www.inzovu.co/>; <https://www.kgm.

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Keila Serruya Sankofa Nascida em Manaus (AM), é especialista em gestão de produção cultural pela Universidade do Estado do Amazonas (UEA). Suas narrativas são voltadas para as questões ligadas a sua ancestralidade negra e a gênero. Compreende a rua como espaço de diálogo com a cidade, produzindo instalações audiovisuais que exibem filmes e videoarte. Usa a fotografia e o audiovisual como ferramentas para propor autoestima e questionar apagamentos de pessoas negras. É gestora do Grupo Picolé da Massa, diretora artística do projeto Direito à Memória e membro da Associação dxs Profissionais do Audiovisual Negro (Apan) e do Coletivo Tupiniqueen.


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O que mais me atravessa neste momento é o pensamento da filósofa Marimba Ani, que diz: “Sua cultura é seu sistema imunológico”. Eu completo com certa audácia: doente eu não fico. Solicito um espaço para entender-me como indivíduo, fruto efeito e produtor de história. Quero externar apenas aquilo que faz parte de mim, trazendo outras verdades sobre meu caminhar de mulher negra amazônica. Nesse meu solitário coletivo tempo, em que há portas fechadas e a companhia de uma criança e dois gatos, alcancei o entendimento de que só tenho o que preciso. Sendo eu terra, planta-cura-limpeza, cuia e cheiro bom de raiz de patchuli. O que está ao seu redor é aquilo que o constitui, que faz parte do seu ser; encontrar-se e conhecer-se virtuosamente é essencial para o novo mundo.


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MERCADO MUSICAL NA PANDEMIA: PRIMEIROS IMPACTOS E PERSPECTIVAS PARA O SETOR AO VIVO Daniela Ribas Ghezzi

O texto apresenta as linhas gerais da pesquisa Covid-19: Impactos no Mercado da Música no Brasil, realizada pelo Data SIM, um dos primeiros estudos setoriais a ser lançados durante a pandemia do novo coronavírus. A pesquisa apresentou números sobre eventos cancelados, público envolvido, mercado de trabalho e impacto econômico. Aqui, fazemos apontamentos sobre alguns dos desafios que a música ao vivo precisa enfrentar para lidar com a crise. E abordamos, especialmente, clubes noturnos e festivais.

Primeiros impactos

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iante da excepcionalidade do contexto que se anunciava no início de março de 2020, de iminente pandemia, o Data SIM encampou a ideia, que surgiu no âmbito do Conselho Consultivo da SIM São Paulo,1 de realizar uma pesquisa rápida sobre os impactos da covid-19 no setor de música ao vivo no Brasil. Era necessário ter um primeiro parâmetro sobre o impacto econômico que os cancelamentos e adiamentos de shows trariam ao setor. Não é tarefa simples mensurar um segmento criativo como a música. Pelo menos duas de suas características incidem diretamente nas iniciativas de pesquisa sobre o assunto: 1) é uma área que tem passado por constantes transformações de ordem tecnológica, que trazem tanto redefinições estruturais da economia política do setor

quanto reconfigurações dos hábitos de consumo de seus produtos (BARBOSA; GHEZZI; ZIVIANI, 2019);2 2) o produto musical ao vivo implica, ao menos no Brasil, uma alta informalidade de sua cadeia produtiva. Essas duas características impõem limites às pesquisas na área, o que não impede, contudo, a formulação de hipóteses e a tentativa de fornecer parâmetros para a reflexão e para o desenvolvimento de estratégias de mercado. Consideradas tais dificuldades, o Data SIM lançou a pesquisa Covid-19: Impactos no Mercado da Música no Brasil (DATA SIM, 2020).3 O survey on-line coletou respostas entre 17 e 23 de março de 2020, antes mesmo de o estado de São Paulo anunciar as medidas de isolamento social obrigatório, no dia 20 daquele mês. O conceito por trás da pesquisa era fornecer rapidamente os primeiros


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parâmetros para que o setor pensasse em medidas de mitigação da crise, e não um censo setorial. A opção metodológica que subsidiou esse conceito foi a de escutar empresas do setor, e não artistas e outros profissionais sem pessoa jurídica constituída. O questionário teve um alcance de 1.399 empresas de todo o Brasil. A amostra não foi censitária, o que significa dizer que não ponderamos o universo da pesquisa de acordo com a densidade populacional dos estados, com número de empresas criativas por estado, ou de acordo com os índices de intensidade criativa4 dos estados.5 O único procedimento de filtragem feito em relação à amostra foi o de considerar apenas as respostas válidas que cumpriam simultaneamente três requisitos eliminatórios: 1) ter CNPJ válido; 2) atuar em qualquer área do segmento musical; 3) responder ao questionário até a última das 17 questões. Foram consideradas as respostas de 536 empresas do setor. Todos os resultados a seguir referem-se a essa amostra, sendo, portanto, um estudo de caso de um universo bem maior. As 536 empresas, de 21 estados, ouvidas na pesquisa são produtoras de festivais, agências de booking e casas de show, além de fornecedores e parceiros, que vão do aluguel de equipamentos à logística de transporte e hospedagem. Cerca de metade dessas empresas (285 delas) é MEI (Microempreendedor Individual). Houve mais de 8 mil eventos cancelados entre essas 536 empresas, impactando 20 mil profissionais e um público de 8 milhões de pessoas – o prejuízo estimado é de 483 milhões de reais. Essa foi a primeira referência para que o mercado musical pudesse estimar as perdas e pensar em medidas

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para a recuperação do setor. Com base na interpretação que os números permitem levantar, apontamos alguns desafios que o setor vem enfrentando no contexto da pandemia do novo coronavírus. Desafios e perspectivas para o setor da música ao vivo Se considerássemos apenas os resultados das 285 MEIs ouvidas na pesquisa e projetássemos os resultados parciais para as 62 mil MEIs de música ao vivo6 em todo o território nacional,7 os resultados seriam bem mais expressivos: a projeção do prejuízo de MEIs de música ao vivo no país seria de 3 bilhões de reais, impactando cerca de 1 milhão de profissionais, sem contar empresas de maior porte. Independentemente do porte, 355 das 536 empresas que responderam à pesquisa afirmaram realizar atividades como organização de eventos (57% de todas as menções) e palco (24% das respostas). Essas duas atividades são essenciais para a música ao vivo que acontece em festivais. Seja qual for o porte das empresas, o recorte de música ao vivo é útil para pensarmos em impactos em dois segmentos específicos: o de clubes noturnos e o de festivais, talvez os mais impactados do setor musical. Em 2018, o Data SIM realizou uma pesquisa sobre os espaços para música ao vivo na cidade de São Paulo (especificamente clubes e casas noturnas). A pesquisa mapeou 300 espaços e coletou respostas de 86 deles (DATA SIM, 2018). Os resultados desses 86 espaços mostram que 65% deles eram de pequeno porte e 72% dependiam da bilheteria para a remuneração de artistas e suas equipes. A

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receita anual projetada para os 86 espaços crescimento da música ao vivo no mundo: foi de quase 200 milhões de reais, e a maioria sem considerar a pandemia, dados aponnunca fez uso de leis de incentivo fiscal ou tam que, em 2023, as vendas de ingressos editais. Se projetássemos os resultados para de música ao vivo excederiam 25 bilhões de os 300 espaços mapeados, e mantendo-se a dólares no mundo todo, um aumento de 14% proporção entre os diferentes portes dos es- em relação a 2019 (KANTAR, 2019).10 As paços, eles seriam responsáveis por 10.200 restrições impostas pela pandemia devem atrações/eventos mensais e pela geração de alterar bastante tais previsões. 7.500 postos de trabalho direto e indireto. Em A falta de liquidez num contexto de cri2018, com um panorama da economia mun- se aguda afeta eventos de clubes e produtores dial bastante diferente do atual, 52% dos espa- e também empreendimentos ligados a fesços ouvidos já consideravam o tivais, conforme apontado cenário econômico um grande No cenário pós-pandemia, no relatório da pesquisa do problema, e 11% responderam os gigantes da área de Data SIM sobre os impacque investimentos em tecno- promoção de eventos, tos da covid-19. O risco de logia poderiam ser usados em que têm maior poder de um movimento de concentransmissões on-line.8 Esses negociação com agências e tração de capitais é alto. dados mostram a importância empresas de representação No cenário pós-pandemia, cultural9 e econômica do setor artística, poderão os gigantes da área de propara a cidade e para a cadeia sufocar os promotores moção de eventos, que têm criativa como um todo. E de- independentes, com mais maior poder de negociação monstram também a depen- dificuldade na manutenção com agências e empresas dência da bilheteria e a falta de sua estrutura de representação artística, de liquidez e capacidade de poderão sufocar os promoinvestimento do setor, o que o torna bastante tores independentes, com mais dificuldade vulnerável neste momento de pandemia. na manutenção de sua estrutura. De acordo Os eventos ao vivo tiveram, nos últi- com relatório da Associação de Festivais mos anos, um crescimento constante em Independentes do Reino Unido (AIF), em número, público e rentabilidade, e se torna- 2018 a Live Nation,11 líder de mercado, já ram uma das principais fontes de renda da controlava mais de um quarto de todos os indústria musical. É o que diz uma pesquisa festivais britânicos com mais de 5 mil pesda PwC Brasil, que apontou que o Brasil é o soas (SILVA, 2018), tendência que deve se segundo maior mercado de música ao vivo manter no pós-pandemia. Haverá uma tenda América Latina (ficando atrás apenas dência de aquisições e concentração produdo México), com crescimento de 5,2% ao tiva que já vinha acontecendo e que pode se ano (BRÊDA, 2020). Outra pesquisa, en- intensificar num contexto de pouca liquidez. comendada antes da pandemia pelo Face- É preciso que haja cuidado e preocupação book – que abriga milhares de eventos em com os promotores independentes de menor sua plataforma –, confirma a tendência de porte, que, juntos, abrigam grandes números


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de empregos e ocupações e são os responsáveis pela renovação artística das cenas locais que alimentam a grande indústria. Essa tendência de concentração não apenas afeta os pequenos festivais, mas se alastra para os grandes, como o Rock in Rio. A Live Nation adquiriu, em 2018, a participação majoritária do festival (NOGUEIRA, 2018), que em 2017 teve a maior bilheteria na América do Sul (cerca de 700 mil pessoas) e a segunda maior no mundo. Essa aquisição foi mais um passo dado na expansão pela América do Sul da líder mundial no mercado da música ao vivo, tendência de concentração que deve encontrar menos barreiras num mercado que já tinha pouca liquidez e que, com a pandemia, tende a se retrair ainda mais. O próprio Rock in Rio tem se movimentado na mesma direção no mercado nacional, comprando em 2019, por meio da holding Dream Partners, participação em quatro empresas organizadoras de eventos ao vivo, entre elas a Brazil Music Conference (BRMC), conferência de conteúdo e negócios da indústria de música (VILLAS BÔAS, 2019). A maioria dos festivais pelo mundo anunciou cancelamentos ou adiamentos. Um dos primeiros foi o megafestival South by Southwest (SXSW), em Austin (Estados Unidos), marcado para a metade de março de 2020. Seguindo o fluxo, os eventos europeus também anunciaram cancelamentos e adiamentos, tornando o verão europeu de 2020 um período praticamente perdido do ponto de vista do negócio da música ao vivo. O Lollapalooza, que teria edições em sete países diferentes em 2020 (Estados Unidos, Suécia, França, Alemanha, Brasil, Argentina

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e Chile), também teve alterações em datas e cancelamentos: os europeus foram adiados para 2021, o norte-americano converteu-se em evento on-line e gratuito, transmitido em seu canal do YouTube, e as edições programadas para a América do Sul foram confirmadas para novembro/dezembro de 2020. Rock in Rio e Lollapalooza Brasil são dois grandes players no mercado brasileiro e movimentam um mercado milionário. Segundo dados da Prefeitura de São Paulo, o gasto de turistas na cidade por conta do Lollapalooza foi de 152 milhões de reais na edição de 2018. Em 2017, o impacto econômico havia sido de 93 milhões de reais, o que significa um aumento de 61%. Foram 100 mil pessoas presentes em cada um dos dias de festival. Ainda segundo dados da prefeitura, o evento causou um aumento de 36% na ocupação média da rede hoteleira nas regiões da Paulista, Pinheiros, Centro e Itaim no fim de semana de sua realização em 2018 (G1, 2018). Além do impacto direto na economia, os patrocínios e as marcas associadas ao evento devem ser considerados. Em 2019, o Lolla bateu recorde de patrocínios e apoios, logo depois de ter atingido em 2018 seu maior número de patrocinadores ao longo de sete edições no país (MONTEIRO, 2019). Outro dado importante para o mercado nacional é o número de bandas brasileiras: na edição de 2019 do Lolla, 32 das 72 atrações eram brasileiras, o que gera empregos diretos e indiretos, além de receitas robustas em execução pública de direitos autorais distribuídos pelo Ecad. A edição 2020, que aconteceria em abril, foi adiada para dezembro do mesmo ano, no Autódromo de Interlagos,

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em São Paulo, mas nenhuma informação sobre estratégia especial foi anunciada. A Time For Fun (T4F), organizadora oficial do Lollapalooza no Brasil, disse apenas que os headliners estão confirmados para as novas datas. As ações da T4F caíram 6,2% na semana do anúncio do adiamento, enquanto o Ibovespa disparou 13,9% (SUTTO, 2020). Por causa dos cancelamentos e das proibições impostas ao mercado de eventos, diversos festivais on-line surgiram no período. Um dos maiores foi o One World: Together at Home, com curadoria de Lady Gaga em parceria com a Organização Mundial da Saúde (OMS), que teve público de mais de 20 milhões de pessoas e se propôs a arrecadar fundos para o combate à pandemia. No Brasil tiveram destaque o Festival Música em Casa (Universal Music), o #tamojunto (O Globo) e o Festival Fico em Casa BR (independente, inspirado em iniciativa portuguesa), para citar apenas alguns. Uma iniciativa um pouco diferente, por reunir diversos festivais já existentes em um único evento, foi o festival Devassa Tropical ao Vivo, iniciativa ligada ao patrocínio da cervejaria. Entre o fim de abril e o início de maio de 2020, juntou oito festivais independentes em 34 atrações, distribuídas em quatro dias e transmitidas ao vivo pelo canal do YouTube da marca,12 sem possibilidade de visualização posterior. A iniciativa reuniu festivais representativos, entre eles Bananada (GO), DoSol (RN), Se Rasgum (PA) e Radioca (BA), que tiveram de cancelar suas edições presenciais em razão da pandemia. A iniciativa também angariou doações em apoio aos profissionais da música brasileira. Sem patrocínios e contratos com marcas, as lives – um paliativo para eventos

presenciais – expõem um problema antigo que ganha força num momento de crise: a remuneração de artistas e demais profissionais. Conforme apontou a pesquisa Data SIM sobre a covid-19, cancelamentos (77,4%) e adiamentos (81,2%) geraram a paralisação total e por tempo indefinido das atividades com presença de público, implicando uma reação imediata do setor com significativo aumento de número de horas na transmissão de conteúdo on-line. A monetização desses conteúdos é crucial, mas ainda é um ponto crítico do sistema da música. Se o Brasil foi um fenômeno mundial na explosão do número de lives (MANDL, 2020), fazendo com que elas tenham se transformado numa espécie de “nova esfera pública” (ROCHA, 2020), também mostrou que a carência de acordos atualizados entre plataformas e entidades de gestão e arrecadação de direitos autorais fez com que o repertório transmitido nas lives não seja corretamente notificado, identificado e reportado. Assim, a remuneração de tais conteúdos, quando identificados, se dilui entre outras formas de arrecadação nessas plataformas, sendo necessários novos e atualizados acordos globais para a adequação às novas demandas impostas pela pandemia. As entidades gestoras e arrecadadoras de direitos afirmam que já estão se movimentando nesse sentido. Ajuda ao setor e associativismo Ajudas governamentais foram anunciadas para o setor de música ao vivo e entretenimento ao redor do mundo, algo que não se repetiu no Brasil, a despeito da mesma tendência de cancelamentos e falências.


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Alguns países têm anunciado tais me- Tecnologia e inovação didas de recuperação por meio de entidades Na área de tecnologia e novos modelos de nenacionais representativas dos diversos seto- gócio para as transmissões on-line ao vivo – res do sistema da música. No Brasil, a pes- que devem permanecer como formato para quisa Data SIM sobre o impacto da covid-19 além do período de pandemia – começam a demonstrou um baixo associativismo do se- aparecer plataformas que oferecem a possitor (77% não têm representação de classe), bilidade de remuneração a partir da venda do problema antigo com consequências num acesso aos conteúdos, com programas de asmomento de crise. A falta de uma entidade sinaturas e outros formatos ainda em busca de âmbito nacional que dialogue com todos de afirmação no mercado musical. No meros segmentos produtivos, somada à fragi- cado doméstico, startups brasileiras como o lidade institucional das Sound Club Live competem próprias instâncias gover- Grandes mudanças na diretamente com platafornamentais, tem impedido indústria da música mas como o Twitch, da gique ações sistêmicas e efe- ocorrem como respostas às gante Amazon (INGHAM, tivas sejam encaminhadas crises, como a chegada da 2020). As gravadoras tamcom a urgência necessária. internet e o surgimento das bém estão entrando nesNesse sentido, vale notar plataformas de streaming. se mercado, e a Sony, por uma recente iniciativa do Contudo, é preciso que haja exemplo, está investindo setor de festivais, anuncia- investimento para que a numa plataforma proprieda em 25 de maio de 2020 inovação possa despontar e tária com conteúdos exclu(MARIA, 2020). Mais de gerar ativos para a economia sivos (PROPMARK, 2020). cem promotores de festiNão bastasse o mercado vais assinaram um manifesto em favor do altamente concentrado que torna a comfortalecimento do setor e em respeito à vida petição muito acirrada, startups nacionais dos profissionais envolvidos. Num primeiro encontram barreiras no próprio país de orimomento, de reorganização do setor, os re- gem, que não investe em ciência, tecnologia presentantes desses festivais formalizaram e inovação de maneira consistente. Conforapoio à Lei de Emergência Cultural, batizada me apontado na pesquisa Data SIM sobre o de Lei Aldir Blanc (em alusão ao compositor impacto da covid-19, grandes mudanças na morto em decorrência do novo coronavírus), indústria da música ocorrem como resposaprovada no fim de maio na Câmara dos De- tas às crises, como a chegada da internet e o putados e em vigor desde 30 de junho (BRA- surgimento das plataformas de streaming. SIL, 2020). Em seguida, o grupo somou-se a Contudo, é preciso que haja investimento outros agrupamentos sociais e culturais em para que a inovação possa despontar e gerar torno da organização da Conferência Popu- ativos para a economia. lar de Cultura, cujo lançamento ocorreu em Ainda na área de tecnologia e inovação, 5 de agosto. A conferência foi realizada entre foi notável o “show virtual” do rapper Tra17 e 20 de setembro. vis Scott num jogo de videogame on-line,

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assistido ao vivo por 28 milhões de usuários. Esse tipo de experiência, disponível por enquanto apenas para artistas consagrados e graças à alta capacidade de investimento de alguns players do mercado, abre novas possibilidades para o mercado de eventos e shows ao vivo. Mas pressupõe um grande ponto de interrogação sobre os direitos de execução pública, já que ainda não há acordos entre o Ecad (e outras sociedades de gestão coletiva globais) e as grandes plataformas de videogames on-line (SILVA, 2020; HOGAN, 2020). Mais uma vez é preciso dizer que são necessários novos e atualizados acordos globais para a adequação às novas demandas impostas pela pandemia. Ganhou algum destaque também um traje especial – e um tanto distópico – chamado Micrashell (CORCORAN, 2020). É uma roupa futurista de proteção que as pessoas podem usar em festivais e clubes de música para impedir a propagação do novo coronavírus. Num polo oposto e vintage, há um movimento de retorno dos drive-ins para eventos ao vivo, para driblar a aglomeração de pessoas (MATOS, 2020). No fim de maio de 2020, três gigantes – Amazon, Facebook e Instagram – lançaram novas funcionalidades interativas relacionadas à indústria da música para melhor se adequar às demandas do pós-pandemia (HISSONG, 2020). O terreno ainda é movediço, e muitas acomodações deverão acontecer do ponto de vista tanto da tecnologia quanto dos modelos de negócio a ela associados. Considerações finais Uma pesquisa recente feita pela tiqueteira Festicket (MOORE, 2020) ouviu 110 mil

festivalgoers, ou frequentadores de festivais, do Reino Unido e da Europa e apontou que 82% deles se sentiriam confortáveis em participar de eventos de música ao vivo dentro de um a seis meses após o fim do isolamento social obrigatório, e 31% deles ficariam felizes em participar de um evento de música ao vivo imediatamente após o encerramento do bloqueio. Apenas 11% dos entrevistados disseram que só se sentiriam confortáveis em participar de eventos de música ao vivo novamente após o desenvolvimento da vacina contra o novo coronavírus. Outra pesquisa, realizada aqui no Brasil pela Ticket360, com 2.258 consumidores entre 8 e 19 de maio de 2020, mostra que quase 75% deles preferem experiências ao vivo, quase 83% dizem querer ir a eventos mesmo sem o fim da pandemia, mas 62,5% não pagariam para ver uma live streaming. Uma pesquisa realizada pela renomada Nielsen, ligada à Billboard, e pela MRC Data (PEOPLES, 2020) confirma a tendência apontada pelas pesquisas das tiqueteiras: os consumidores continuam a gostar de shows virtuais. Embora a sobrevida desses shows não seja clara, sua onipresença entre março e maio de 2020 (cerca de 20% dos consumidores assistiram a um show virtual) ajudou a aumentar a visibilidade dos artistas durante a pandemia, além de melhorar a impressão dos fãs sobre eles e aguçar o apetite por um show ao vivo. A pesquisa apontou que, à medida que a tecnologia de transmissão ao vivo continua a melhorar, os consumidores ficam mais satisfeitos com suas experiências. Contudo, o potencial financeiro das lives não é claro: 29% da população em geral e apenas


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17% dos adolescentes disseram que estão por datas e locais não se transforme em um dispostos a pagar por uma experiência de problema a mais para o setor. show on-line. Conforme apontamos no report da Enquanto a vacina não chega e novos pesquisa Data SIM, a comunidade musical tem tido papel importante protocolos sanitários para Quando as medidas em “levantar os espíritos”, eventos ao vivo não são produzindo dezenas de desenvolvidos e adotados, de isolamento social festivais virtuais, criando casas noturnas e festivais forem flexibilizadas, vão se virando como podem certamente haverá uma canais de discussão, de di“superpopulação” de (FEIJÓ, 2020). Quando as vulgação de boas práticas medidas de isolamento so- eventos, com a sobreposição de isolamento e assepsia, cial forem flexibilizadas, dos festivais adiados de sistematização de boas certamente haverá uma “su- em 2020 aos que já práticas em política culaconteceriam normalmente perpopulação” de eventos, tural e para a recuperação com a sobreposição dos fes- em 2020 e 2021 do setor, de levantamento tivais adiados em 2020 aos de fundos para necessitaque já aconteceriam normalmente em 2020 dos. Esse é um valor agregado difícil de ser e 2021. Talvez a colaboração entre festivais mensurado, mas de importância vital num seja uma necessidade para que a competição momento de crise e confinamento.

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Daniela Ribas Ghezzi Doutora em sociologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e especialista em gestão e políticas culturais pelo Itaú Cultural com a Universidade de Girona, na Espanha. É diretora de pesquisa do Data SIM, núcleo de pesquisa da Semana Internacional de Música de São Paulo (SIM São Paulo). É diretora da Sonar Cultural Consultoria e Pesquisa em Gestão Cultural. Foi consultora da Unesco e do Mercosul Cultural em projetos na área de música. Desenvolveu pesquisa com o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea) no projeto Políticas Públicas, Economia Criativa e da Cultura.

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Daniela Ribas Ghezzi

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Notas 1

Em 2019, o Conselho Consultivo era formado por 37 profissionais de diferentes segmentos da música. Ver: <https://simsaopaulo.com.br/_temp/conheca-oconselho-consultivo-da-sim-sao-paulo-2019/>. Acesso em: 1 ago. 2020.

2

Ver: <https://tratore.wordpress.com/2020/05/20/durante-o-distanciamentosocial-todo-dia-e-domingo-no-streaming-de-musica/> e <https://newsroom. spotify.com/2020-03-30/how-social-distancing-has-shifted-spotifystreaming/>. Acesso em: 30 maio 2020.


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Daniela Ribas Ghezzi

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Equipe da pesquisa Covid-19: Impactos no Mercado da Música no Brasil: Daniela Ribas (diretora de pesquisa); Fabiana Batistela (diretora-executiva); Katia Abreu (coordenadora de comunicação); Pena Schmidt (consultor especial e analista de dados); Renata Gomes (pesquisadora e analista de dados).

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Ver o conceito de intensidade criativa utilizado no Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural, que mede o porcentual de trabalhadores criativos sobre o total de trabalhadores empregados em cada setor considerado, a partir de tabulações estatísticas especiais sobre a base de dados da Pnad Contínua, do IBGE: <https://www.itaucultural.org.br/observatorio/paineldedados/pesquisa/ intensidade-criativa-dos-setores-criativos#>. Acesso em: 30 maio 2020.

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Vale dizer que os estados com maior representatividade na pesquisa foram: SP (45,52% das respostas válidas); RJ (11,75%); MG (9,70%); RS (5,41%); DF (5,22%). A amostra não era censitária, e esses números, portanto, não refletem a densidade de empreendimentos criativos da música nesses estados. Nesse sentido, seria interessante comparar tais resultados com o panorama fornecido pelo Painel de Dados do Observatório Itaú Cultural. O dado mais recente, de 2017, na Base de Dados Rais — Relação Anual de Informações Sociais, aponta que havia 147.318 empresas criativas no Brasil (independentemente do setor). Para a comparação no setor da música especificamente, devem ser levadas em conta algumas variáveis, a título de aperfeiçoamento do painel: maior desagregação das atividades econômicas (música gravada é contabilizada juntamente com cinema, fotografia, rádio e TV; e música ao vivo conjuntamente com espetáculos de artes cênicas e gestão desses espaços); inclusão de contagem de MEIs; totais referentes a todos os portes de empresas por atividade econômica considerada. Ver: <https://www.itaucultural.org.br/observatorio/paineldedados/pesquisa/ total-de-empresas-criativas#>. Acesso em: 2 jun. 2020.

6

Estamos chamando de MEIs da música ao vivo aqueles cuja atividade econômica principal é produção musical (Cnae 9001-9/02, somando 42.736 MEIs) ou atividades de sonorização e iluminação (Cnae 9001-9/06, somando 19.381 MEIs). Fonte: <http://www22.receita.fazenda.gov.br/inscricaomei/private/pages/ relatorios/opcoesRelatorio.jsf>. Acesso em: 30 mar. 2020.

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Há 85.137 MEIs da música no Brasil, de um total de 10 milhões de MEIs em todas as atividades econômicas no país. Os MEIs da música consideram dez atividades econômicas: Cnaes 1830-0/01; 3220-5/00; 4756-3/00; 4762-8/00; 5920-1/00; 8592-9/03; 9001-9/02; 9001-9/06; 9003-5/00; 9329-8/01. Fonte: Programa de Economia da Música. Disponível em: <https://portalseer.ufba.br/index.php/ pculturais/article/download/17637/14242>. Acesso em: 30 maio 2020.

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Para outra referência de pesquisa sobre música ao vivo em clubes, ver: LIVE DMA (2020).

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Segundo a pesquisa, apenas 6% dos espaços têm o lucro como objetivo principal, ao passo que 94% promovem artistas não consagrados que não mobilizam grandes públicos, mesmo que isso implique um resultado financeiro pouco satisfatório (DATA SIM, 2018).

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Pesquisa on-line encomendada pelo Facebook com 505 entrevistados com mais de 18 anos, no Brasil, entre julho e novembro de 2019. Segundo pesquisa Data SIM sobre espaços para música ao vivo, em 2018, 58% das casas noturnas acreditavam que publicações no Facebook (33% gratuitas e 25% pagas) eram as ferramentas mais eficientes para a divulgação dos eventos. Ver: DATA SIM (2018).

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A Live Nation é a maior empresa de entretenimento ao vivo do mundo. Realiza turnês internacionais de artistas das gravadoras majors, atuando em mais de 40 países. Tem sua própria divisão de vendas e distribuição de ingressos, a Ticketmaster. No Brasil, atua em parceria com intermediários nacionais, como a Time For Fun (T4F).

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Canal do festival Devassa Tropical Ao Vivo no YouTube: <https://www.youtube. com/channel/UCCR7B2j0kyxOY-STbUb09Cw/featured>. Acesso em: 1 ago. 2020.


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Ana Paula Sousa

IMPACTOS GERADOS PELA COVID-19 ACELERAM MUDANÇAS QUE ESTAVAM EM CURSO NO SETOR AUDIOVISUAL Ana Paula Sousa

A partir do fechamento das salas de cinema no Ocidente, em março, o setor audiovisual viu toda a sua engrenagem ser paralisada, e, ao mesmo tempo, passou a buscar saídas para a sua sobrevivência. De pré-estreias on-line a novos modelos de distribuição, a indústria do cinema, uma das mais atingidas pelas novas regras sanitárias, viu o futuro, representado pelo streaming, chegar mais rapidamente do que se previa antes da pandemia. O impacto, ainda que mais visível na área da exibição, estendeu-se para toda a cadeia, com histórias e sets interrompidos.

A

semana em que a Organização Mundial da Saúde (OMS) declarou a pandemia de covid-19, em março de 2020, fixou-se na memória da cineasta Sandra Kogut como uma sequência de eventos improváveis. No domingo, 8 de março, ela chegou de uma viagem de dez dias pela França, onde estivera para o lançamento de Três Verões, estrelado por Regina Casé. Sandra havia percorrido várias cidades, dado entrevistas, participado de jantares e sentido o gostinho de ver, pelas ruas de Paris, a campanha de seu quarto longa-metragem. Na segunda-feira, dia 9, ela acordou cedo para pegar uma ponte-aérea Rio-São Paulo e participar do Press Day, o momento mais importante dentro da estratégia de lançamento de um filme. No Hotel Belas

Artes, na região da Avenida Paulista, a cineasta conversou com mais de 70 jornalistas. Na terça-feira, dia 10, o filme estreou na França. Na quarta-feira, a OMS decretou a pandemia. Na quinta-feira, dia 12, Sandra foi a Brasília acompanhar uma pré-estreia e encontrou uma cidade que começava a se recolher. Sexta-feira, dia 13, atônitos e cheios de dúvidas, ela e os distribuidores do filme decidiram cancelar a estreia brasileira, marcada para a semana seguinte. O lançamento, planejado por meses, era a linha de chegada de um percurso iniciado em agosto de 2019, quando o filme foi exibido no Festival de Toronto. No sábado, dia 14, o governo francês determinou que, à meia-noite, todos os locais públicos não essenciais seriam fechados. No Le Monde desse dia, entre as notícias sobre o

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novo coronavírus, repousava, num canto de simbólica e mercadológica (CRETON, 1997; página, um anúncio de Trois Étés (Três Ve- ROSENFELD, 2003). No curso da covid-19, rões, em francês), que sairia de cartaz quatro essas duas formas de existência foram codias depois de ter estreado. Corta. locadas num lugar inédito: nunca a demanTrês meses se passaram e, em 22 de da por produções foi tão grande e nunca a junho, Três Verões reestreou nos cinemas existência material dos filmes esteve tão franceses. “Viva o verão! O sorriso de Madá comprometida. [personagem de Regina Casé] voltou”, Não foram apenas as salas de cinema anunciava o cartaz. Nesse mesmo dia, o que fecharam. Os sets de filmagem pararam filme teve uma pré-estreia on-line no Es- e os festivais foram adiados ou cancelados. O paço Itaú Play, plataforma criada durante streaming, enquanto isso, tornou-se o refúgio a pandemia pela rede Espaço Itaú de Cine- de lazer de uma população que, do dia para a ma. Em setembro, com a noite, se viu impedida de incerteza sobre a reaber- “Sinto que participei de um sair de casa. Um estudo da tura das salas no Brasil, o momento histórico, tanto no Nielsen mostrou que, em filme foi exibido num cine fechamento das salas quanto março de 2020, os nortedrive-in e lançado em pla- na reabertura. Acho que -americanos aumentaram taformas de streaming. vivemos o fim de um ciclo em 85% o consumo de “Foi brutal aquela se- e o começo de outro”, diz a streaming na TV em relação mana de março. Ao mesmo cineasta Sandra Kogut ao mesmo período do ano tempo, tudo o que estava anterior (NIELSEN, 2020). acontecendo no mundo era tão enorme que Nesse mesmo mês, os maiores grupos nem me senti particularmente afetada”, diz de exibição do mundo fizeram demissões, Sandra. “Sinto que participei de um momento cortaram salários e pediram socorro aos histórico, tanto no fechamento das salas quan- governos. De cara, a rede AMC, uma das to na reabertura. Acho que vivemos o fim de um maiores dos Estados Unidos, demitiu 26 mil ciclo e o começo de outro.” pessoas, e a Cinemark, 17 mil. Os cinemas, Colocado, por uma coincidência cronoló- um negócio de capital intensivo, e que tem no gica, no centro da crise sanitária, Três Verões coletivo sua razão de ser, viram-se sob uma acaba por ser ilustrativo daquilo que se passou grande ameaça: a garantia de exclusividade, com o universo audiovisual. Além disso, o des- que é o que leva as pessoas às salas, de repentino do filme nos ajuda a refletir sobre o futuro te esvaneceu-se. das salas e do mercado de distribuição. O confinamento repentino concretizou, sem conversa e sem aviso, aquilo que os exiExibição: nada será como antes bidores mais temiam: uma mudança no hisO cinema, desde os irmãos Lumière, é fei- tórico acordo da “janela”. A janela é o tempo to para ser visto. A existência de um filme de espera entre o lançamento nos cinemas e a se completa quando ele cria uma deman- chegada dos títulos ao streaming, à televisão da, cumprindo assim uma dupla exigência, fechada, à televisão aberta etc. A mudança


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nas janelas acompanha a própria evolução do dólares. O primeiro Trolls havia rendido, nas mercado cinematográfico. Esse tempo, para duas primeiras semanas nos cinemas, 98 se ter uma ideia, já foi de 24 meses entre o milhões de dólares. cinema e a TV aberta. Mas, como nos mostra não só Três Verões, Até a pandemia, um filme lançado no a corrida pelo streaming está longe de ser uma mercado exibidor brasileiro só podia chegar regra. Na França, vários dos títulos que ficaram ao streaming três meses depois de ter es- pouco tempo em cartaz por conta da pandemia treado nos cinemas – o período tem peque- reestrearam na reabertura das salas, em junho. nas variações nos diferentes países. Com a Grandes franquias adiaram suas estreias para covid-19, esse velho acordo, constituinte da o segundo semestre ou para 2021. indústria de cinema, ficou em suspenso. Trata-se, nesses casos, de uma aposta Em meio aos anúnnaquilo que está no coracios de lockdown e medi- Até a pandemia, um filme ção da indústria do cinedas de distanciamento lançado no mercado exibidor ma: o valor da experiência social, muitos distribui- brasileiro só podia chegar ao coletiva. Valor subjetivo e dores correram para o streaming três meses depois de monetário, já que um filme streaming na tentativa de ter estreado nos cinemas. Com de grande orçamento ainda ver de volta parte da ver- a covid-19, esse velho acordo, precisa do cinema para dar ba que já haviam inves- constituinte da indústria de lucro. É o cinema, afinal, tido para o lançamento cinema, ficou em suspenso que historicamente puxa o nos cinemas – o P&A, do sucesso nas demais janelas. inglês prints and advertising. No caso dos No streaming, essa conta ainda não fecha. blockbusters, que têm o mundo como mer“A sala não é démodé, nem penso que virá cado, o P&A chega a empatar com o custo a ser. O ser humano é gregário, ele quer o ende produção (FOLLOWS, 2017). contro. Para imaginar o fim da sala, tenho que O filme de ação Blood­shot, da Sony imaginar outro ser humano – que, claro, até Pictures, e o drama O Caminho de Volta, pode vir a ser construído”, diz Adhemar Oliveida Warner Bros., por exemplo, chegaram ra, da rede Espaço Itaú de Cinema. Um bom ao streaming 11 dias depois da estreia nos indicativo da falta que as pessoas sentiram dos cinemas. Houve ainda os que resolveram cinemas foi a boa recepção ao cinema drive-in, pular o cinema e estrear diretamente no tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos. VoD – do inglês video on demand – premium. “Mas algo mudou. Fomos jogados num Esse é um modelo de aluguel on-line, dife- mar revolto e não sabemos como vamos sair rente da Netflix, baseado em assinatura.1 O dele. Na pandemia, todos entramos em confilme que se tornou símbolo do potencial tato com novas possibilidades e entendemos, do VoD premium foi a animação Trolls 2 – com mais clareza, que os modelos de distriWorld Tour. O filme chegou ao streaming em buição são infinitos. A pandemia me colocou abril, ao custo de 19,99 dólares por dois dias, a necessidade de fazer o que eu não fazia ane, em três semanas, faturou 100 milhões de tes”, completa.

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Durante o período de distanciamento da Chuva. “Não sei mais como vou lançá-lo. social, Oliveira realizou o primeiro festival de Mas sei que temos de abrir mão de pensar no pré-estreias on-line do Brasil – do qual Três que tínhamos para pensar no que vamos ter.” Verões participou. Todos esses filmes contiMora nessa dúvida descrita por Daniel nuaram, contudo, sendo filmes de cinema. Filho o grande desafio dos distribuidores, “Preservei o lançamento no cinema, mas usei que ocupam, na cadeia cinematográfica, a ferramenta do streaming para gerar receita o lugar do meio: a distribuição é o elo que liga a produção à exibição. O papel do dise manter os filmes em evidência”, diz. Se, num primeiro momento da pan- tribuidor é, em poucas palavras, definir, demia, o streaming soou como uma grande sempre ao lado do produtor, como se dará o lançamento de um título. ameaça ao circuito exibidor, Durante muitos anos, sua conforme os meses pas- Nesse novo cenário, os saram, a ideia de comple- filmes independentes, que função era pensar na melhor maneira de colocar mentariedade foi ganhando já ficavam espremidos no um filme nos cinemas – corpo. Assim como a certeza circuito dominado pelos escolher o circuito, definir de que as coisas não voltarão blockbusters, devem ter o tamanho do lançamenainda mais dificuldades. a ser como antes. to, pensar na campanha. Cabe lembrar que cerca A pandemia tornou mais de 20 megaproduções Novas formas de ver complexo seu papel. “A história é feita de revo- anuais – muitas delas Foi a Paname, distribuiluções. E o audiovisual está franquias – é que fazem dora francesa de Três Verões, vivendo mais uma delas. A a roda da indústria girar e não Sandra Kogut, que decada passagem, vêm novos desafios e, às vezes, até pequenos retroces- cidiu fazer o relançamento nos cinemas do sos”, reflete Daniel Filho, diretor e produtor país. E foi a Vitrine Filmes, distribuidora que trabalhou na TV Globo durante décadas de Bacurau na Espanha, que optou por não e que responde por alguns dos maiores su- esperar a reabertura das salas no país e colocar o filme de Kleber Mendonça Filho dicessos do cinema brasileiro. “O cinema mudo tinha alcançado uma retamente no streaming. Por mais que as escolhas de cada distriqualidade de imagem enorme quando chegou o cinema sonoro e trouxe novos desafios; o mes- buidor sejam distintas, algo os une: a convicção mo podemos dizer do rádio quando chegou a de que, com a pandemia, tende a diminuir ainda televisão; ou do cinema preto e branco quando mais o espaço para filmes independentes nas veio o colorido. O streaming e agora a pandemia salas. Estima-se, primeiro, que nem todos os nos colocaram mais uma vez diante de novas espaços sobrevivam ao período de turbulência formas de narrar, de produzir e, consequente- sanitária, social e econômica. E, de toda formente, de lançar filmes”, diz o produtor, que, ma, enquanto o vírus não estiver sob controle, quando as salas fecharam, estava prestes a lan- a lotação das salas não poderá, por motivos de çar seu mais novo longa-metragem, O Silêncio segurança de saúde, ser a de antes.


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Nesse novo cenário, os filmes independentes, que já ficavam espremidos no circuito dominado pelos blockbusters, devem ter ainda mais dificuldades. Cabe lembrar que cerca de 20 megaproduções anuais – muitas delas franquias – é que fazem a roda da indústria girar (EPSTEIN, 2008).2 Isso não significa, obviamente, que os filmes menores deixarão de existir ou de ser vistos, mas seu espaço tende a ser, cada vez mais, o dos festivais internacionais de cinema e das salas especiais. Para os cinemas nacionais, políticas públicas, que incluem tanto apoios financeiros quanto princípios regulatórios que tomam por base a ideia de diversidade cultural (GUERRIERE; IAPADRE; KOOPMANN, 2005), também serão fundamentais. “Sempre foi difícil uma sala comercial se pagar com a bilheteria de filmes que não sejam os blockbusters. Com a interrupção do negócio por causa da pandemia, algumas delas devem ter ainda maiores dificuldades”, diz Silvia Cruz, dona da Vitrine Filmes, distribuidora de boa parte da produção autoral brasileira. Não por acaso, a Vitrine, que completou dez anos em 2020 e abriu um braço na Espanha, está desenhando um futuro baseado em outro modelo de negócios: “Acredito que uma tendência são as salas localizadas em centros culturais, em museus, em espaços que têm outras possibilidades para se manter que não apenas a bilheteria. No Brasil, ainda são poucos os lugares assim. Mas, na Europa, eles são comuns. Esses espaços pagam para o distribuidor um valor fixo, ou seja, não vinculado à renda do filme. A exibição nesses espaços comporta debates e filmes longos, que não cabem no circuito comercial”.

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Outra tendência enxergada tanto por Silvia quanto por Adhemar Oliveira é a da verticalização do setor. Distribuidoras e agentes de venda internacionais, como The Match Factory, já estão se tornando produtores; a Disney tem seu próprio canal de streaming, o Disney+; e sabe-se que Netflix e Amazon são potenciais compradores de salas de cinema. Há quem enxergue nesse contexto uma ameaça à distribuição independente, uma vez que, em tese, um produtor pode negociar o seu filme diretamente com o streaming. Silvia não vê assim. A distribuição, na sua opinião, se tornará cada vez mais especializada, aproximando-se, inclusive, da ideia de curadoria. “O movimento dos distribuidores que se tornam produtores deve se intensificar. Assim, as empresas fortalecem seus selos e ampliam as possibilidades de negócios, podendo trabalhar, por exemplo, com determinados pacotes de filmes”, diz a dona da Vitrine. “A distribuição, na minha visão, não vai encolher. Aqueles que continuarem no mercado vão expandir suas formas de atuação.” O set e as histórias pós-covid Antes disso tudo é preciso que a indústria audiovisual retome a produção. A engrenagem que alimentava as salas de exibição, os festivais e o próprio streaming também foi abruptamente interrompida. Por mais que todos os países tenham criado novos protocolos para filmagens e alguns sets tenham sido retomados ainda no fim do primeiro semestre, a realidade dos sets mudou radicalmente. E o hiato na oferta de novos produtos foi inevitável.

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Um set é, afinal de contas, uma aglome- ou, de outra forma, o filme não estará refleração. Realizar uma produção é levantar ci- tindo o nosso modo de viver.” fras na casa dos milhões de dólares em meio Sandra Kogut diz que, ao tentar trabaa uma crise econômica violenlhar nos novos projetos nos ta; é negociar novas cláusulas Em termos criativos, os quais está envolvida, foi vencom empresas de seguro que desafios não são menores do a pandemia, de maneira refutam, por exemplo, segurar – principalmente fora orgânica, incorporar-se ao atores idosos; é criar relações do universo dos filmes processo criativo. “Estranhatemporárias de trabalho com de super-heróis e de mente, vivemos um momento novos deveres e direitos. Os animação – e têm deixado no qual todos foram condenariscos envolvidos são tantos roteiristas e diretores de dos a virar cineastas”, diz ela, que o maior produtor brasi- cabelos em pé referindo-se à necessidade leiro, Rodrigo Teixeira, que já que todos tivemos de fazer emplacou filmes no Oscar e em Cannes, pre- vídeos, nem que fosse para atender às deferiu, desde o início da pandemia, trabalhar mandas da escola dos filhos ou à necessidade com a perspectiva de retorno apenas em 2021. de contato com familiares. “E os cineastas “Uma coisa que eu me pergunto é como se viram impedidos de filmar como sempre vamos tocar uma produção com essa quan- filmaram. O que nos resta diante disso? Intidade absurda de restrições e protocolos”, ventar novas formas de fazer”, completa. diz Rodrigo. “Eu acho que, num primeiro momento, corremos o risco de ficar tão absorvidos por isso tudo que acabaremos colocando menos energia e foco no produto final, no resultado do filme. Então, eu, pessoalmente, preferi planejar o retorno ao set com um horizonte maior de tempo.” Em termos criativos, os desafios não são Ana Paula Sousa menores – principalmente fora do universo Jornalista, doutora em sociologia pela Univerdos filmes de super-heróis e de animação – e sidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestra têm deixado roteiristas e diretores de cabe- em artes pelo King’s College, de Londres. Ao longo los em pé. “O filme que estou escrevendo é de 20 anos de carreira em redações, foi redatoraum filme contemporâneo? Ou é um filme de -chefe da Harper’s Bazaar, repórter da Ilustrada, da época? Vou ter que explicar que esse é um fil- Folha de S.Paulo, editora de cultura da CartaCapital me da era pré-covid?”, pergunta-se o diretor e colunista da Band News FM e do Segundo CaPeter Webber, de Moça com Brinco de Pérola derno, do jornal O Globo. Hoje, divide-se entre o (2003), numa entrevista (WEBBER, 2020). jornalismo e a área cultural. Escreve para veículos “Se quero fazer um filme que se passa nos como Valor Econômico, Folha de S.Paulo e O Globo, dias atuais, eu talvez tenha que ter toda essa coordena o Fórum Mostra Internacional de Cinema parafernália [máscaras, luvas, termômetros], de São Paulo e realiza trabalhos de curadoria.


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Ana Paula Sousa

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Notas 1

O serviço de video on demand (VoD) se divide em três modelos principais: (1) o modelo de acesso gratuito (AVoD, de advertising VoD), no qual a receita é obtida por meio de publicidade, como acontece com o YouTube; (2) o modelo de assinatura (SVoD, de subscription VoD), caso da Netflix e do Amazon Prime Video; e (3) o modelo de aluguel ou venda (TVoD, de transactional VoD), como fazem o iTunes e o Google Play.

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O mercado mundial de cinema, salvo exceções, está formatado para receber o produto norte-americano, que, cada vez mais, tem no filme um vetor para outros negócios, que vão de licenciamento de produtos a parques temáticos.

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REVOLUÇÃO DIGITAL Leticia de Castro

Como museus e centros culturais se adaptaram ao período de quarentena e quais práticas surgidas nesse momento devem ser incorporadas às suas estratégias de comunicação? Partindo desse questionamento, o artigo apresenta iniciativas de seis instituições brasileiras (Sesc, Itaú Cultural, Cais do Sertão, Instituto Moreira Salles, Pinacoteca do Estado de São Paulo e Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura) e duas europeias (Museu do Prado, em Madri, na Espanha; e Yorkshire Museum, em York, na Inglaterra) que mostram a importância cada vez maior de ações digitais para engajar e atrair o público não apenas para os equipamentos físicos, mas também para o conteúdo que eles são capazes de gerar.

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entro de uma barraca de acampamento, em meio a uma ventania, um garoto joga um game eletrônico. Por 11 minutos, observamos pela lente do artista mineiro Marcellvs L., posicionada em frente à abertura da tenda, o menino concentrado, impassível, diante de um celular, o barulho do vento misturado aos ruídos do jogo. A tenda balança, parece até que vai voar, mas o garoto pouco se move. Criada em 2011, a videoinstalação 9493 aborda a sensação de isolamento e explora a indiferença do homem em relação à natureza, bem como a da natureza em relação ao homem. Uma ideia que ganha nova leitura e relevância em tempos de pandemia, fenômeno marcado pelo avanço da ação humana predatória sobre o meio ambiente. O trabalho integrou a mostra Distância,1 exposição on-line da Pinacoteca do Estado de São Paulo exibida no site da instituição durante o período de quarentena provocado

pela epidemia do novo coronavírus. Iniciada em 12 de maio, a mostra reuniu trabalhos em vídeo de Cao Guimarães, Sara Ramo, Letícia Parente e Dalton Paula, além de Marcellvs L., todos integrantes do acervo do museu. São obras criadas em outros contextos, mas que dialogam diretamente com as questões suscitadas pela pandemia: o isolamento, a distância, a espera, a indiferença. A exposição foi uma das principais ações da Pinacoteca durante o período de isolamento social. Assim como museus e centros culturais de todo o mundo, a instituição paulistana fechou as portas em meados de março, quando o governo decretou a quarentena, e se viu obrigada a migrar para o ambiente on-line. “Imediatamente, no mesmo dia, lançamos a hashtag #pinadecasa, que compreende cinco plataformas de programação, todas acessíveis pelos canais digitais do museu”, diz Paulo Vicelli, diretor de relações institucionais da Pinacoteca do Estado de


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São Paulo. Além da exposição virtual Distância, as ações incluíram um tour virtual, que já estava disponível no site oficial, mas que ganhou novo destaque durante o isolamento social, o hotsite Museu para Todos,2 com conteúdo voltado para arte-educação, e lives semanais sobre temas relacionados ao universo da Pina, além de posts diários nas redes sociais da instituição. Antes usados como ferramentas de comunicação e marketing, redes sociais, como Instagram, Facebook e Twitter, e outros canais digitais, como YouTube e sites oficiais, tornaram-se, do dia para a noite, suportes para a programação e os únicos meios possíveis de interação entre instituições e o público. “Nós nos deparamos com um novo campo de atuação, com novas especificidades e possivelmente novos públicos. O que antes era ferramenta de divulgação se transformou no principal espaço de ação”, observa Natasha Faria, superintendente do Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura (CDMAC), em Fortaleza (CE). Um dos maiores equipamentos culturais do Brasil, com 14,5 mil metros quadrados de área e uma estrutura que inclui biblioteca, planetário, dois museus e salas de teatro e de cinema, o CDMAC já tinha divulgado toda a sua programação de março e as atividades de abril estavam fechadas para divulgação quando o governo do Ceará, que gere o equipamento, decretou a quarentena. O jeito foi adaptar programas e projetos para o ambiente digital. “Deixamos de difundir os serviços da programação física dos espaços do centro de arte e cultura para ofertar, nas próprias redes sociais da instituição, programações on-line, além de dicas de atividades culturais

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dadas por profissionais da cultura, muitas delas que podiam ser acessadas de casa, pela internet”, diz Natasha. Projetos de formação, pesquisa e fortalecimento do acervo continuaram nas redes sociais, em lives e séries de posts, e o resultado foi um crescimento do alcance dessas ações. “O público participante se manteve o mesmo, em número, das ações presenciais anteriores, porém, a partir da possibilidade de manter a ação registrada e de seu compartilhamento posterior, podemos ter um alcance ainda maior”, diz. O aumento do alcance das ações on-line foi observado por diferentes instituições. O Sesc São Paulo, por exemplo, criou o Sesc Digital,3 uma plataforma para reunir seu acervo audiovisual gravado em mais de 70 anos de existência, com shows e espetáculos, além de cursos livres a distância e de toda a sua programação criada para o ambiente virtual. No final de maio, quatro cursos a distância tinham atraído público de 10 mil pessoas. Já o projeto Música Sesc ao Vivo ganhou perfil próprio no Instagram e trazia diariamente apresentações de artistas diretamente de suas casas, sempre às 19 horas. Em pouco mais de um mês, as lives somaram audiência de quase 1,8 milhão de espectadores. “As pessoas estão assimilando intensivamente novos formatos de consumo de conteúdo, ao mesmo tempo que se mostram ávidas por momentos que possam reconectá-las com a vida anterior à pandemia”, avalia Ivan Giannini, superintendente de comunicação do Sesc São Paulo. Com uma presença on-line já bastante consolidada, o Itaú Cultural, em São Paulo, notou um crescimento de 40% no número de seus seguidores no Instagram, enquanto

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o site da instituição4 dobrou a audiência lançada em meados de abril para mitigar os nos dois primeiros meses da quarentena. O efeitos econômicos do isolamento na cadeia isolamento social fez a instituição adaptar produtiva da arte. Em seis categorias (Artes algumas ações que já estavam programadas Visuais, Artes Cênicas, Música, Poesia Surda, para acontecer no períoLiteratura e Audiovisual), do. Um curso de história Um dos responsáveis pelo mais de 700 artistas foram da arte que aconteceria no aumento da visitação ao selecionados para criar YouTube, mas em platafor- site foi o grande edital obras inéditas que refletisma fechada, acabou ficando emergencial Arte como sem sobre a experiência da aberto em razão do enorme Respiro, uma iniciativa quarentena. Os trabalhos volume de inscrições rece- lançada em meados de foram exibidos em uma bidas (quatro vezes o nú- abril para mitigar os efeitos mostra on-line, no site da mero de vagas). Em apenas econômicos do isolamento na organização, em julho. três semanas, a primeira cadeia produtiva da arte Nessa mesma linha, aula teve 21 mil acessos. o Instituto Moreira Salles Um dos responsáveis pelo aumento da (IMS), que tem espaços expositivos em São visitação ao site foi o grande edital emer- Paulo e no Rio de Janeiro, lançou em abril o gencial Arte como Respiro, uma iniciativa Programa Convida, que teve a participação de

Batalha de curadores na internet Um coque de cabelo feminino do Império Romano, ainda com os grampos, conservado desde a Antiguidade; uma escultura de sereia formada por um corpo de pássaro e mandíbula de peixe; uma “máscara da peste” original, acessório usado por médicos durante a peste negra nos séculos XVII e XVIII. Qual desses itens pode ser considerado o mais assustador objeto de acervo de um museu? A gincana lançada no Twitter pelo Yorkshire Museum em meados de abril, com a hashtag #creepiestobject, conseguiu a façanha de não apenas atrair uma legião de novos seguidores para o perfil do museu, que duplicou seu alcance durante a quarentena, como também engajar instituições do mundo inteiro para mostrar peças esquecidas de seus acervos. A ação fazia parte da “batalha de curadores” (#curatorbattle), uma campanha criada

pela instituição no Twitter que desafiava a cada semana curadores do mundo inteiro a expor na rede social um objeto de seu acervo a partir de determinado tema. Mais bem-sucedido da temporada, o tweet #creepiestobject teve mais de 2,5 milhões de visualizações e engajou as mais diversas instituições: do Museu Nacional da Escócia, detentor da sereia, ao Museu Histórico Alemão, com sua máscara da peste, passando por instituições do Canadá, dos Estados Unidos e do Reino Unido. “O sucesso das nossas ações com engajamento de milhões de pessoas justifica investirmos mais tempo e recursos no conteúdo on-line para contar nossas histórias e mostrar nossas coleções para novos públicos. O espaço digital nunca vai substituir a magia de visitar um museu e ver as peças ao vivo, mas o lockdown reforçou nossa crença de que, se investirmos


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60 artistas e coletivos convidados de acordo com critérios de raça, gênero, regionalidade e contexto social e cultural, para representar a diversidade brasileira. As obras, inéditas e comissionadas, foram publicadas diariamente no site IMS Quarentena,5 projeto criado no início de abril para concentrar as ações do instituto durante a pandemia. Integrando equipes de programação e curadoria, o site reuniu textos inéditos e outros já publicados nas revistas ZUM e serrote – editadas pelo IMS – que se relacionavam às discussões do momento, além de dicas de leitura e conteúdos do acervo do instituto, como visitas virtuais a exposições.

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Dificuldades Para que tantas ações fossem criadas e implementadas com sucesso em tão pouco

tempo, uma série de desafios teve de ser superada. O primeiro desafio, comum à grande maioria das instituições e empresas do planeta durante esse período, foi o trabalho remoto. Para além da dificuldade de fazer circular informação e de comunicação entre equipes numerosas, havia desafios tecnológicos e estruturais, como o acesso a computadores e internet. Intensificar o intercâmbio entre as equipes foi uma das formas de agilizar o trabalho e driblar as dificuldades. Como observa Ivan Giannini, do Sesc São Paulo, o momento demandou também reinvenções técnicas e curatoriais: “Apresentações musicais ou monólogos teatrais operados remotamente e, em parte, pelos próprios artistas são algo sensivelmente diferente do que estamos acostumados em

tempo e energia para criar e fazer a curadoria de conteúdo, o meio digital é a plataforma ideal para apresentar museus e suas coleções a novos públicos de forma criativa e inovadora”, observa Lee Clark, gerente de comunicação do Yorkshire Museum. O Museu do Prado, um dos mais tradicionais da Espanha, também apostou em ações inventivas durante a quarentena. Exemplo disso é a série de vídeos no YouTube que unem música e pintura feitos em parceria com a cantora Sheila Blanco. Em Goya y Beethoven,6 Sheila faz uma interpretação musical de obras do artista espanhol, apresentando sua história com a melodia de “Sonata ao luar”, do compositor alemão. A cantora também aproveitou o início da primavera para apresentar a coleção do museu sob a melodia de “As quatro estações”, de Vivaldi.7 “Desde o começo ficou claro para nós que, em

um momento crítico como este, o Prado não poderia desaparecer; ao contrário, deveria estar mais presente do que nunca e tentar chegar aos cidadãos que buscam refúgio, referência e cultura. As atividades na internet e nas redes sociais foram as portas que permaneceram abertas durante as semanas [de quarentena]”, afirma Carlos Chaguaceda, chefe de comunicação do museu espanhol. Após essa espécie de treinamento de guerra durante a pandemia, a intensificação da presença digital, com ações originais e criativas, já começa a fazer parte da rotina das equipes de comunicação e curadoria de museus no mundo inteiro. “É fundamental entender quem é esse público digital, descobrir o que ele quer, o que o mobiliza, assim como fazemos quando pesquisamos novas exposições para espaços físicos”, conclui Lee Clark.

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nossas estruturas convencionais, que incluem palcos e equipes de iluminação e som, entre diversos outros profissionais envolvidos”. Nesse ponto, o ambiente digital, além de um desafio, representa uma vantagem: os resultados das ações podem ser avaliados com muito mais rapidez, permitindo mudanças de curso e adaptações de estratégias. “Aprendemos e nos adaptamos a essa realidade, sem deixar de abraçar novas experiências e linguagens a cada dia”, completa o superintendente. O destaque que as ações digitais ganharam não se encerra com o fim da quarentena. Com o vírus ainda circulando pelo mundo, todos os segmentos da economia estão incorporando muitos dos hábitos e das descobertas da pandemia em seu dia a dia. No setor cultural não seria diferente. O home office, por exemplo, é uma realidade que veio para ficar, assim como a necessidade de manter um diálogo mais forte entre a programação presencial e a digital. “A fruição presencial de mostras e exposições não será mais tão numerosa quanto no passado. Talvez o maior número venha das plataformas digitais. Por isso, a programação deverá ter desdobramentos digitais e, eventualmente, até ações que ocorram exclusivamente on-line”, observa Ana de Fátima Sousa, gerente de comunicação do Itaú Cultural. Para Maria Rosa Maia, gerente do Cais do Sertão, museu de Recife (PE), a importância que a comunicação digital ganhou durante a pandemia foi tão grande que vai mudar a relação do público com os museus: “Haverá novas formas de acesso às obras e, com isso, serão criadas mediações diferentes entre o público e os acervos das instituições”.

Leticia de Castro Jornalista e sócia da editora Veneta.

Notas 1

Disponível em: <http://pinacoteca.org. br/distancia-uma-selecao-de-videos-dapinacoteca/>. Acesso em: 15 jun. 2020.

2

Ver: <http://museu.pinacoteca.org.br/>. Acesso em: 15 jun. 2020.

3

Ver: <https://sesc.digital/home>. Acesso em: 15 jun. 2020.

4

Ver: <https://www.itaucultural.org.br/>. Acesso em: 15 jun. 2020.

5

Disponível em: <https://ims.com.br/ quarentena/>. Acesso em: 15 jun. 2020.

6

Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=aGTmDQ4lkyM>. Acesso em: 15 jun. 2020.

7

Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=D26Xz9TuqAg>. Acesso em: 15 jun. 2020.


Néstor García Canclini

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PÚBLICOS PROMÍSCUOS Néstor García Canclini

Definições possíveis para os públicos em 2020: os que são proibidos de entrar, os que escutam e veem em outro lugar, os que não conseguem receber os pagamentos relativos a viagens e atividades suspensas, os que são pesquisados e organizados em estatísticas. Isso se assemelha ao tratamento dispensado a muitos artistas.

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ara falar sobre os públicos – e sobre os criadores –, é preciso ocupar-se da oscilação das empresas, de como os formatos e os suportes da comunicação cultural rivalizam. Mas já não se trata apenas de uma crise da indústria editorial diante da internet. Nem das salas de cinema em relação à Netflix. Nem dos shows e dos discos diante do streaming. A pandemia acelerou a reconfiguração dos vínculos entre criadores, distribuidores e públicos, iniciada décadas antes. Não só pela substituição (parcial) do livro por PDFs ou e-books, nem dos DVDs por downloads gratuitos. É mais intrincado: precisamos identificar o que está apenas começando diante de uma queda de 10% a 15% das economias centrais, de baixas ainda incalculáveis do consumo, de uma total desarticulação social e dos Estados, enquanto máfias “governam” territórios enormes e a vida pública é militarizada. Reabrir para quem? Livrarias que há anos se questionavam por quanto tempo aguentariam a queda nas vendas estão fechadas por causa da pandemia,

e as editoras imobilizadas. Portanto, nós, autores, nos perguntamos se devemos nos autoeditar, recorrer à Amazon ou procurar formatos digitais para ir ao encontro dos leitores. Os cineastas que filmaram juntando dólares de fundações, euros do Ibermedia,1 contribuições de institutos nacionais de cinema e empréstimos estão tão desorientados quanto os distribuidores que programaram filmes para espectadores de várias idades em shopping centers, alguns para o verão, outros para a Semana Santa. Se já estava difícil encontrar um lugar entre a Netflix e a pirataria, agora pede-se aos distribuidores que deixem poltronas vazias quando as salas de cinema reabrirem. E os museus que há dois anos já estavam comprometidos com artistas mainstream justamente para que eles entrassem em cartaz nestes meses, quando há mais turistas no Tate, no MoMA, em Joanesburgo, Xangai ou São Paulo? Pior ainda é o caso das bienais que imaginaram inovações conceituais e mais visitantes do que nunca: alguns artistas enviaram suas esculturas ou seus quadros com antecedência, mas aqueles que fariam uma

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performance ou uma instalação não pude- antigos ponchos Mapuche com os álbuns de ram viajar. Cerca de 20 bienais já foram adia- família, “as feridas sociais e coletivas” da das, como a de Dakar e a de Liverpool; a de ditadura e a onda de protestos no Chile de Sydney abriu em março e teve que fechar dez 2019. O que as etnografias virtuais dos púdias depois; o Front International, em Cle- blicos devem fazer para captar as costuras e veland, planejado para 2021, foi adiado para o que está irremediavelmente quebrado nos 2022, e outros eventos programados para o olhares divergentes que surgem? ano que vem terão apenas uma versão virtual. A quebra deste período não se limita Os curadores, como a argentina Andrea às falências de editoras e de teatros alugaGiunta, responsável pela 12a Bienal do Mer- dos ou centros culturais independentes, cosul, “inaugurada” on-line em 16 de abril à perda de renda de artistas e de gestores deste 2020 desativado, têm que se reinven- culturais já sem contratos. Até quando tar: subir vídeos com depoimentos gravados se pode pedir que eles – ou acadêmicos pelo celular sobre experiências de artistas que participam de reuniões pelo Zoom 2 em isolamento, além de elaborar programas – trabalhem de graça? A discussão sobre educativos para escolas – já os protocolos de saúde que tradicionais no evento sedia- O que as etnografias atores e espectadores devem do em Porto Alegre. Ainda que virtuais dos públicos cumprir é a primeira coisa nunca tenha sido uma “bienal devem fazer para captar que emerge de uma reforAirbnb”, visitada como parte as costuras e o que mulação das interações ende um tour, diz Giunta, ela está irremediavelmente tre corpos, textos e relatos, e sua equipe tiveram que se quebrado nos olhares entre instituições sediadas perguntar como fazer para que divergentes que surgem? em edifícios e espaços com os núcleos temáticos – femicirculação restrita. nismos, criatividade afro-latino-americana Por que duvidar que o teatro vá se refa– irrompessem em uma plataforma virtual. zer sem que os corpos dos atores se toquem O desejo dos artistas de participar não e havendo lugares vazios entre um espectadiminuiu, e, nas semanas em que a Bienal se- dor e outro? Não podemos esquecer quantas gue fisicamente fechada, abriram-se debates vezes outras relações foram ensaiadas dese cruzamentos imprevistos em seu desenho de Seis Personagens à Procura de um Autor original. O que a pandemia impediu se poten- (1921), de Luigi Pirandello; com Tadeusz cializa nos encontros virtuais, outro tipo de Kantor e os atores-fantoches de A Classe visitas guiadas e repensadas para “explorar o Morta; com o que Bertolt Brecht chamou ‘enquanto isso’ sem saber se ‘o que virá’ será precisamente de distanciamento; com Beco momento que imaginávamos”, diz a cura- kett e o Godot que nunca chega; com as exdora. Reaprendeu-se a estudar qualitativa- periências de criação dramática coletiva de mente os espectadores dos museus, porque Enrique Buenaventura em Cali; com o Gruos ecos virtuais têm gerado entrelaçamen- po Octubre, encabeçado por Norman Briski, tos mais densos que o previsto ao reunir os cujas obras integram moradores de bairros


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operários e de favelas em Buenos Aires. En- 2017; DOMÍNGUEZ; ROSAS MANTECÓN, tre as inovações das décadas de 1960 a 1980, no prelo). destacaram-se as de Augusto Boal no Brasil, Nas disputas entre cultura escrita, na Argentina e no Peru: improvisações para midiática e digital, a pandemia tornou as reinterpretar as notícias, o Teatro Invisível tendências dos anos anteriores ainda mais que desenvolveu representando cenas im- incertas e menos universalizantes. Em deterprovisadas fora do teatro, em um restaurante, minadas áreas e níveis educacionais, leem-se mercado ou trem, diante de pessoas que não mais jornais on-line, e-mails e livros durante estavam lá para ser espectadoras. a quarentena. A televisão recupera audiênO cinema transformou tantas vezes cia. Os serviços de telefonia fixa, em declínio sua relação com o público: das tendas aos desde o final do século passado, aumentaram palácios com milhares de assentos (cedi- até 40% nas grandes cidades do México e em dos com resignação décadas atrás a templos outros países – combinados à internet para evangélicos e estacionaexecutar trabalhos e outras mentos); salas substituí- O cinema transformou sua tarefas em casa, como edudas desde os anos 1980 por relação com o público: cação a distância e troca aparelhos de videocassete, das tendas aos palácios de informações e produtos com milhares de assentos; depois por complexos mulcom os vizinhos. tissalas; os DVDs vendi- salas substituídas desde os Diferentemente do dos em rede de locadoras anos 1980 por aparelhos imaginário que, na priou em bancas piratas; as de videocassete, depois meira década do século por complexos multissalas; telas de celular que abreXX, atribuiu aos disposiviam as viagens de metrô. DVDs vendidos em rede de tivos e hábitos digitais o De Jean-Luc Godard a Ha- locadoras ou em bancas poder de substituir formas run Farocki e uma extensa piratas; telas de celular que anteriores de comunicação lista de latino-americanos abreviam as viagens de metrô cultural, a combinação de (seria injusto citar quatro suportes durante os meses ou cinco), cada morte do cinema teve seus de pandemia confirma dados de estudos reviúvos e suas ressurreições. No México, os centes: tanto a cultura escrita quanto a preespectadores diminuíram pela metade entre sencial são complementares ao que se faz 1976 e 1994. As multissalas e outras mudan- on-line. Escutam-se cada vez mais músicas ças no modelo de exibição quintuplicaram por streaming, mas os festivais proliferam, a frequência nos últimos 25 anos, e o país tanto os de multidões quanto os de gostos agora ocupa o quarto lugar no mundo em mais exigentes. Os jovens, e também muiinfraestrutura e número de espectadores. tos adultos, não separam rigorosamente o O público diminui em países centrais – Ale- tempo on-line do tempo sem conectividade manha, França, Itália – e aumenta em mui- nem o de estudo daquele que dedicam ao entos “periféricos” – China, Coreia, Polônia, tretenimento. Reconhecem a diferença, mas Rússia e Turquia (ROSAS MANTECÓN, passam de modo fluido da leitura em papel

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ao celular, da busca de informações às conversas lúdicas. “O computador é o objeto que me distrai e me torna produtivo ao mesmo tempo”, escreveu um aluno no seu diário de leitura solicitado para uma pesquisa (WINOCUR, 2015). Pós-pandemia (se houver), segundo os países As mudanças nas experiências dos artistas e dos públicos citados foram geradas durante anos. Com frequência, durante guerras e exílios. Nunca as mutações socioculturais impostas pela atual pandemia aconteceram com essa velocidade. Tomemos o exemplo das relações entre os visitantes dos museus e o turismo. Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, o Louvre levou três anos para recuperar os milhões de pessoas que o visitavam todos os anos – dos quais 75% não são franceses, já que a maioria é dos Estados Unidos, da China, da Coreia do Sul e do Brasil. O presidente da instituição, Jean-Luc Martinez – que havia precisado fechar as portas do museu no verão de 2019, quando a marca dos 10 milhões de visitantes fora ultrapassada –, reagiu à suspensão obrigatória de 2020, cuja perda é de 40 milhões de euros: “Não há uma solução milagrosa. Será preciso estender o horário de funcionamento e mais salas terão que ser abertas” (VICENTE, 2020). Se o presidente do Louvre olhasse com atenção as notícias sobre a falência de companhias aéreas e as desesperadas ofertas de viagens baratíssimas e desaconselháveis que todos os dias inundam seu e-mail, teria uma previsão mais realista dos visitantes estrangeiros aos museus, pelo menos enquanto não

houver vacina. A queda econômica estimada pela Organização Mundial do Comércio (OMC) para os países europeus, que será de 9% a 14% até o final do ano (se não houver uma nova onda de contaminação), afetará ainda mais o consumo cultural. As previsões são piores na América Latina, onde 95% dos museus ainda estavam com seus prédios fechados em meados de junho de 2020, segundo dados do Conselho Internacional de Museus (Icom). Enquanto a Alemanha investia 1 bilhão de euros para apoiar cinemas, museus, teatros e festivais, montante usado para pagar salários de funcionários e custear medidas de higiene, a Espanha aprovou um pacote de 76,4 milhões de euros, a maior parte desse valor destinada às artes cênicas e à música, à proteção dos desempregados e a deduções fiscais a patrocinadores. Não há números próximos a esses para artistas e instituições latino-americanas. “Uma estimativa destaca que os auxílios fiscais giram em torno de 10% do PIB nos Estados Unidos, 14,5% na Alemanha e quase 20% no Japão. No entanto, variam apenas de 0,7% a 3,5% na Argentina, no Brasil e no México”, afirma o economista argentino Claudio Katz (FRIERA, 2020). Surgiram alguns editais de apoio para artistas e pequenas e médias empresas culturais na Argentina e em outros poucos países. Na deteriorada Cooperação Ibero-americana, encontramos uma pesquisa da Organização de Estados Ibero-americanos (OEI) que atualiza o que acontece em 2020 com mercados culturais nacionais, turismo, direitos de propriedade intelectual e os coletivos, impactos de acordos comerciais, vulnerabilidades culturais, o papel da cultura


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na geração da cidadania, mudanças nas polí- Los Angeles (Lacma)] sobre estátuas e raticas transversais (de gênero, as que contem- cismo e nas da artista visual Rosana Paulino, plam os jovens e as relações intergeracionais, que revisam o conceito de cultura brasileira; as transformações digitais dos saberes). O nos muitos artistas que, na Argentina, na Coque se vê é uma renovação das perguntas, e é lômbia e no México, fazem obras sem poder ir preciso estar atento às recomendações e aos a seus ateliês ou dar aulas para se sustentar. Os cortes, os fechamentos e as polítiresultados prometidos para o fim deste ano. Que participação pode ser esperada de cas erráticas são maus-tratos a obras artísgovernos como o da Bolívia, que eliminou ticas, ao patrimônio, aos trabalhadores e, seu Ministério da Cultura, e de muitos ou- é claro, aos públicos. Quero finalizar retotros, incluindo o do Brasil, que censuram mando o que se ensaia repensar e refazer atividades culturais, agridem artistas, po- justamente a partir da perspectiva dos públicos. Editores e emprepulações indígenas e afroQue participação pode ser sários teatrais ou musicais -americanas, demitem propõem criar “cupons funcionários e suspendem esperada de governos como culturais”, com os quais compras de livros para bi- o da Bolívia, que eliminou a população pode adquibliotecas públicas? Entre seu Ministério da Cultura, e de muitos outros, incluindo rir livros e ingressos para os cortes mais surpreenshows ou fazer legalmendentes, destacam-se os do o do Brasil, que censuram governo de Andrés Manuel atividades culturais e agridem te downloads de músicas López Obrador, do México, artistas, populações indígenas e filmes (GRANADOS, 2020). E não apenas para com a eliminação do Fon- e afro-americanas? financiar empresas culca (fundo de apoio mensal a artistas selecionados por um júri formado turais e grupos artísticos, mas para oferetambém por artistas) e a redução de 75% do cer aos leitores-espectadores-internautas orçamento operacional do Instituto Nacional oportunidades plurais de escolha. Isso rede Antropologia e História, a maior institui- quer, mais do que nunca, pesquisas sobre ção do continente com a missão de pesquisar, como os públicos-usuários se comportam, gerir, manter e disseminar o patrimônio ar- seus desejos e seus modos de imaginar, de queológico e histórico. É com esse orçamento se informar e de fazer assinaturas. Os benefícios crescentes obtidos por que se paga parte dos salários, água, luz, teempresas de comunicação durante a panlefone e internet. Vemos que o espaço cultural é rearticu- demia são alcançados, em grande parte, lado principalmente em conversas entre pes- pela transação entre o roubo de nossos quisadores e gestores culturais pelo Zoom, dados quando usamos Netflix, Facebook e na criação de plataformas on-line de acesso outras plataformas de grande porte, e o que gratuito com filmes nacionais, em postagens nos vendem em troca: diferentemente do reflexivas de artistas ou nas de Ilona Katzew marketing cultural e das pesquisas públicas [curadora do Museu de Arte do Condado de do final do século passado, essa massa de

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informações e seu tratamento algorítmico surgiram. Vale a pena considerar que o inesconferem às plataformas privilégios para perado está, como sempre, na inovação das capturar subgrupos de públicos, assim como obras, e agora nas peripécias sanitárias, mas sua promiscuidade ou versatilidade, au- também na experimentação criativa dos púmentando a dependência do nosso consumo blicos e em suas pesquisas, nem sempre obede ofertas transnacionais. Na Espanha, por dientes aos controles algorítmicos. exemplo, estuda-se taxar 3% da renda das Prestar atenção nas preferências erempresas de tecnologia que faturem mais rantes dos públicos-usuários é indispensáde 750 milhões de euros anualmente e que vel para que as instituições se emancipem e recebam mais de 3 milhões no país. Ainda existam enquanto instituições culturais. Saque isso seja visto como protecionismo a bemos de algumas coisas. É possível ser um empresas nacionais e seus trabalhadores, cinema e também um teatro onde se dança. caso esses fundos sejam destinados a im- Uma parede na qual são projetados filmes pulsionar a diversidade, de décadas atrás nunca lanacabariam facilitando o O inesperado está, como çados, sem poltronas, com acesso dos públicos a re- sempre, na inovação esteiras que são retiradas pertórios artísticos e cul- das obras e, agora, nas de uma pilha e espalhadas turais mais variados (não peripécias sanitárias, mas na grama para que se possa apenas nacionais). também na experimentação sentar ou deitar encostado Manuel Borja-Villel, criativa dos públicos e em no companheiro ou em aldiretor do Museu Reina suas pesquisas, nem sempre guém do grupo de amigos, Sofia, na Espanha, supõe obedientes aos controles como faz a Cineteca Nacioque o choque deste mo- algorítmicos nal da Cidade do México no mento levará a uma avamuro externo de sua décima liação dos vínculos entre instituições e sala, nos meses sem chuva. Que lugar mepúblicos mais pelo viés dos processos ge- lhor para ver aquele filme sobre Vinicius de rados do que pelos resultados contábeis. Moraes, compositor e cantor, embaixador Muitos falam que museus, teatros e indús- que sabia mal as línguas estrangeiras, mas trias globalizadas, como o cinema e a músi- um sedutor que se casou nove vezes? Uma ca, poderão estender o que descobriram nos livraria, como a El Ateneo, em Buenos Aires, últimos meses para se inserir na comuni- que incita a leitura porque preserva a cenodade, fomentando-a de acordo com as pre- grafia barroca do teatro que foi no passado, ferências locais, e não apenas estar à caça com poltronas estofadas ao estilo do século de visibilidade internacional (EXIT, 2020). XVIII – quase no nível da plateia, cheia de As discussões estão excessivamente livros, o palco é um bar em cujas mesas se centradas em quando será possível abrir mu- conversa sobre literatura e tudo mais. Há seus, cinemas e teatros, e se será necessário computadores nos quais é possível consulvoltar a fechá-los, como ocorreu em vários tar se determinado livro está disponível; e países quando novas ondas de contaminação tipos solitários acomodam-se nas poltronas,


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imersos em algum título já encontrado ou navegando em aplicativos na tela do celular. Há um século, pelo menos, tornou-se incerto o modo como instituições como Cabaret Voltaire (ponto de encontro de escritores, músicos e artistas plásticos em Zurique) ou Shakespeare and Company (livraria francesa) deviam ser chamadas de forma que não pareça que as frequentamos como se estivéssemos indo à escola, sentando-nos sempre com o mesmo colega de mesa, com os celulares desligados, vestindo máscaras, lavando as mãos antes e depois. Custa entender que o grande assunto em muitas reuniões pelo Zoom com proprietários, diretores de museus e empresários do cinema ou de casas noturnas seja a higienização, em vez do exercício de imaginar novos caminhos para irradiar informações, promover conversas entre usuários, autores de livros e artistas, e viabilizar plataformas para novas comunidades culturais. Sinalizar a distância no chão, evitar aglomerações na entrada e na saída, de modo a garantir a diversão e o acesso mais amplo possível, são ações que também fazem parte da cultura, são o sistema de símbolos que faz a convivência ser possível. Mas a vida cultural é legítima se, além de favorecer a criação de instituições e de políticas, for também um espaço em que os cidadãos se escutam, em que os públicos podem dizer por que vão, por que nunca quiseram ir ou por que preferem ver em telas.

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Néstor García Canclini Doutor em filosofia pela Universidade Nacional de La Plata, na Argentina, e pela Universidade Paris Nanterre, na França. É professor titular da Universidade Autônoma Metropolitana e pesquisador emérito do Sistema Nacional de Pesquisadores (SNI), ambos no México.

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Notas 1

Programa de incentivo ao audiovisual produzido em países ibero-americanos. [N.T.]

2

Plataforma unificada de comunicações voltadas para o vídeo.

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Luís Evo Documentarista, amante de rodas de samba. Em 2013, fundou a produtora Primata Filmes, cuja atuação é focada na produção de peças audiovisuais, além de documentários e séries para a web. Idealizador do Festival Reinventado de Vídeos Autorais (Ferva), em que prioriza obras audiovisuais de produtores independentes e busca promover novas maneiras de debater e exibir filmes, reinventando os tradicionais formatos de festivais em tempos de mudanças impostas pela pandemia de covid-19. Atualmente, está em processo de finalização de seu terceiro documentário, Maio, filmado com o pesquisador João Paulo Araújo, na Ilha do Maio, em Cabo Verde, no qual tentam mostrar as dinâmicas sociais em torno da pesca artesanal no arquipélago.


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O voo das maritacas na calada do dia revela os trajetos diários dessas espécies de ave da família dos psitacídeos. Conhecidas por ser barulhentas, elas têm, no sentido figurado, o significado de pessoas que falam demais. Por ironia do destino, essas criaturas encontraram uma Belo Horizonte (MG) silenciada e vazia. Na algazarra que fazem ao procurar alimento para dar aos filhotes, elas não veem mais as pessoas nas ruas e já não se assustam mais com o trânsito caótico de uma capital. Agora, passeiam no alto e avistam uma cidade erma em um silêncio quase assustador. Esta série fotográfica tenta mostrar que, mesmo onde parece não haver vida em meio a uma pandemia, existem respiros pelas janelas. Existem maritacas voando. (Fotos: abril de 2020.)


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3.2 169. NA CULTURA, O NOVO

NORMAL NÃO PODE OLHAR PARA TRÁS Carlos Augusto Calil

174. CULTURA E

NOVOS CAMINHOS PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO NOVO NORMAL Leandro Valiati

180. QUAL O PAPEL DOS

LABORATÓRIOS CULTURAIS NA SOCIEDADE PÓS-PANDEMIA? George Yúdice

187. FAZER CULTURA EM MEIO ÀS GUERRAS CULTURAIS Pablo Ortellado

A CULTURA E SUAS POLÍTICAS – QUE RUMOS SEGUIR

202.

NO PONTO MORTO DE UM MUNDO QUE RODA Teixeira Coelho

208. INTERATIVISMO E O

PAPEL DAS ARTES E DA CULTURA NA AMPLIAÇÃO DO IMAGINÁRIO Jonaya de Castro

214.

O CORPO QUE DANÇA E CANTA Sandra Benites Guarani Nhandewa

220.

O CURADOR COMO SISMÓGRAFO DO SOFRIMENTO: A GESTÃO CULTURAL ENTRE EXPRESSÃO, REPRESENTAÇÃO E ACONTECIMENTO Christian Ingo Lenz Dunker


A CULTURA E SUAS POLÍTICAS

Carlos Augusto Calil

NA CULTURA, O NOVO NORMAL NÃO PODE OLHAR PARA TRÁS E a mulher de Ló olhou para trás e ficou convertida numa estátua de sal. Gênesis 19:26 Carlos Augusto Calil

A pandemia atingiu o campo da cultura e das artes em plena recessão política e econômica, ocasionada pela disruptura promovida pelo governo federal. O isolamento compulsório impossibilitou a realização de espetáculos, exibições, shows, bem como a abertura de museus, bibliotecas e centros culturais. Os artistas e as instituições viram-se impedidos de atuar. Diante desse trauma, o imperativo é sobreviver. O retorno à “normalidade”, cumpridos os protocolos do convívio social seguro, no entanto, não poderá buscar referência no passado, que já não correspondia às necessidades nem oferecia perspectivas de um futuro propício.

O

jornalismo hoje está pautado pela questão de como será o novo normal assim que superada a atual pandemia. No estágio atual da doença, em que ainda não surgiu uma vacina, uma proteção universal, só nos resta especular. Nesse exercício de futuro, combinamos argumentos e fantasias que remetem a experiências vividas e projeção de desejos. Nada mais natural que buscar a previsibilidade do “normal”. Mas que normal é esse a cujo estado almejamos retornar? O momento está determinado por um trauma, cujos contornos sociais podem ser emprestados da psicanálise. Para o psicanalista inglês Winnicott (1896-1971), um trauma é aquilo contra o que um indivíduo não possui defesa organizada, de maneira que um estado de confusão sobrevém,

seguido talvez de uma reorganização de defesas, defesas de um tipo mais primitivo que as que eram suficientemente boas antes da ocorrência do trauma.1

Advertência precisa: transposto o trauma, a regressão é inevitável. A tendência humana à estabilidade é instintiva. Ameaçadas pelo ambiente hostil moldado pela natureza indiferente ou pela agitação inerente à vida social e política, as pessoas buscam refúgio nas rotinas e nos protocolos que assegurem um mínimo de previsibilidade ao cotidiano. Mas essa segurança é ilusória. Apelando novamente a Winnicott, a necessidade primária do ser vivo é “a de ser e continuar sendo”. O cinema fornece exemplos valiosos desse estado de coisas. Yasujiro Ozu, um dos

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grandes do cinema japonês, é acusado injus- celebração da vida no Carnaval de 1919 no tamente de ter feito sempre o mesmo filme. Rio de Janeiro, após a devastação ocasionaDe fato, em muitos deles encontramos uma da pela gripe espanhola; assim deverá ser o situação familiar estabilizada em sua rotina novo normal que sucederá a pandemia da que é perturbada por uma necessidade so- covid-19. Com a Aids, a mais recente lembrança cial ou por um evento natural. O equilíbrio se dissolve, as emoções represadas pela rígi- de ameaça coletiva à vida, que remonta aos da formalidade oriental afloram, os conflitos anos 1980, a resposta foi distinta. Como deirrompem e sua solução dramática ensejará fesa e negação social, atribuiu-se a doença o retorno à rotina, em um novo normal. Os aos excessos cometidos por um segmento títulos desses filmes são de inspiração zen, de vanguarda nos costumes, que era punina contemplação serena dos fenômenos do dessa forma pela suposta libertinagem. Isolou-se o grupo e o estignaturais: Fim de Verão, Coma social foi lançado. No meço de Primavera, O Gosto No campo cultural e início a doença ceifou indo Chá Verde sobre o Arroz. artístico, a pandemia distintamente, até que um Espécie de testamento, seu não age sozinha. Veio coquetel de drogas mostrou último filme, Sanma no Aji acompanhada da marca eficiência na administração (1962), traduzido em inglês cruel do ressentimento da moléstia e passamos a para An Autumn Afternoon político, encarnada no conviver com ela. As con[Uma Tarde de Outono] e governo Bolsonaro. Ele sequências foram um freio exibido em Portugal sob o optou por uma “lenta e título O Gosto do Saké, ga- gradual” asfixia, conferindo às liberdades eróticas, uma nhou no Brasil a sua me- ao trauma um componente repressão dos instintos. Desmedida ou contenção, lhor tradução metafórica: adicional de sadismo eis as respostas conhecidas A Rotina Tem Seu Encanto, à suspensão da normalidade. rótulo que vale para toda a obra. No campo cultural e artístico, a pandeDiante da incerteza do curso da vida, que escapa à nossa compreensão e ao nosso mia não age sozinha. Veio acompanhada da controle, almejamos alcançar uma rotina marca cruel do ressentimento político, enconfortável, interrompida por fenômenos carnada no governo Bolsonaro. Diferentecomo doenças e manifestações naturais. mente do presidente Collor, que no primeiro Apesar de atingirem muitas vezes intensi- ato de seu governo extinguiu os órgãos fededade aguda, esses fenômenos são suportá- rais de cultura com uma sanha implacável, veis por corresponderem a uma suspensão Bolsonaro optou por uma “lenta e gradual” do cotidiano com a promessa intrínseca asfixia, conferindo ao trauma um componende um rápido retorno à “normalidade”. A te adicional de sadismo. Os artistas e as instituições estão, asmemória do trauma é logo sublimada; sua superação é celebrada com a desmedida sim, impedidos de atuar pelas restrições que compensa a privação. Assim foi a feroz sanitárias decorrentes da pandemia e pela


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omissão das fontes governamentais de financiamento. A combinação, embora não premeditada, tem efeito fulminante. A lenta reação segue duas direções: como superar as restrições impostas pela pandemia, reinventando modalidades de comunicação, e como criar alternativas de suporte material às atividades artísticas. Instituições privadas ou semiprivadas, como Sesc, Itaú Cultural e Instituto Moreira Salles, foram chamadas a acelerar o rumo de suas iniciativas como forma de compensação da demanda desassistida. Instâncias do poder público regionais foram igualmente convocadas a agir tempestivamente, atropelando burocracias defensivas. Em 1990, quando Collor decretou o grau zero da cultura, Marilena Chauí, então secretária municipal de Cultura de São Paulo, e Fernando Morais, seu equivalente no Estado, atuaram no sentido de polarizar e contrapor com política cultural local a antipolítica federal. No final do mês de junho foi sancionada a Lei de Emergência Cultural (batizada de Lei Aldir Blanc, em homenagem ao compositor, que morreu em decorrência da covid-19), que destinará recursos do Fundo Nacional de Cultura a estados e municípios como socorro aos profissionais do setor cultural, impedidos de exercer suas atividades em razão da pandemia. Em consequência de omissão deliberada ou de pressão política, está se desenhando no país uma federação de fato, ganho que representará uma nova configuração estruturante. No campo cultural havia excessiva concentração de recursos e políticas no então Ministério da Cultura, que frequentemente agia como concorrente de secretarias

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de estados e municípios em detrimento de coordenação estratégica e fomento, impondo sistemas nacionais de submissão política. O trauma de Collor ensejou uma pressão da sociedade pelo retorno dos mecanismos de renúncia fiscal, criados sem o rigor necessário pelo governo Sarney. Sérgio Rouanet, secretário de Cultura de Collor, concebeu o retorno dos incentivos como uma parceria público-privada, evitando a liberalidade excessiva da legislação anterior. A Lei Rouanet surgiu valorizando o interesse público do bem cultural, mas foi desfigurada no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando quase todas as atividades foram beneficiadas com renúncia a 100%. Isso significou dispensar o esforço da sociedade no exercício da parceria e estimulou a dependência exclusiva de recursos públicos. O mal maior da política de cultura é anterior à pandemia e à mesquinharia do governo Bolsonaro. Um dos pressupostos da lei de incentivo era o alento ao mercado cultural. Com investimento público constante e sob a eficiente administração privada, o mercado naturalmente se estabeleceria, liberando o governo para se ocupar das experiências artísticas não comerciais e das instituições públicas, privadas ou governamentais carentes de fundos. Nem o tal mercado se estabeleceu nem as instituições foram socorridas pelo governo. Com o incentivo a 100%, as atividades comerciais seguiram o lema muito praticado entre nós: privatizaram-se os lucros e socializaram-se os prejuízos. Raras vozes discordantes desafinaram o coro dos contentes: Cacá Rosset, Fernanda Montenegro e Antonio Fagundes denunciaram a armadilha do incentivo fiscal que

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tolhia a liberdade do artista e o confinava momento em que escrevo ( junho de 2020), numa janela muito estreita de acesso ao pú- o governo não sabe se mantém um contrato blico. Fagundes foi além: criou uma compa- provisório com a OS abandonada pelo MEC nhia teatral própria sem benefícios fiscais ou se reestatiza a Cinemateca. Enquanto e provou que é possível – e desejável – des- isso, os seus funcionários seguem sem savencilhar-se da tutela do Estado na cultura. lários e os serviços básicos sem cobertura Com os recursos públicos privatizados contratual, com ameaça concreta de danos via leis de incentivo, os investimentos diretos irreparáveis ao acervo único. nos órgãos públicos minguaram. Orçamentos Nada mais eloquente da falência do sismodestos, aquém do mínimo necessário, e a tema cultural brasileiro que o incêndio do prática perversa do contingenciamento ho- Museu Nacional. Ele não foi fruto de um acirizontal tornaram os órgãos públicos – mu- dente infausto, foi consequência de omissão seus, bibliotecas, centros culturais – párias e indiferença generalizadas durante decêem um sistema que os expele para a adminis- nios. No rescaldo das cinzas, as autoridades tração terceirizada. Essa acusavam-se. Ninguém era terceirização apresenta Nada mais eloquente da responsável, pois decerto vantagens sobretudo ao falência do sistema cultural somos todos responsáveis. contornar a rigidez do brasileiro que o incêndio do Uma chave para a comregime público, mas ele- Museu Nacional. Ele não foi preensão da indiferença que va o risco das instituições fruto de um acidente infausto, atinge a memória cultural ao torná-las dependentes foi consequência de omissão está na reflexão de Paulo de contratos nem sempre e indiferença generalizadas Emílio Sales Gomes (1916cumpridos pelas partes. durante decênios 1977), crítico e professor de O caso da Cinemacinema, principal articulateca Brasileira é exemplar nesse sentido. dor da criação da Cinemateca Brasileira: Incorporada ao governo federal em 1984, nunca foi beneficiada com concurso para a O Brasil se interessa pouco pelo próprio passado. Essa atitude saudável exprime renovação do pessoal. Seus funcionários se a vontade de escapar a uma maldição de aposentaram e a instituição foi administrada por projetos, improvisadamente, o que a atraso e miséria. O descaso pelo que existiu fragilizou sobremaneira. Sem opção, o então explica não só o abandono em que se enconMinistério da Cultura a repassou, em 2018, tram os arquivos nacionais, mas até a impara uma organização social (OS) do MEC possibilidade de se criar uma cinemateca.2 especializada em TV educativa. E se esqueceu dela, não transferiu recursos para sua A indiferença pública é, de longe, a maior manutenção, confiando no cobertor generoso responsável pela ausência de sustentabilido MEC. O órgão rompeu unilateralmente o dade das instituições culturais no Brasil. Ela contrato com a OS e a Cinemateca Brasileira, sugere que a ruptura promovida por Collor de um dia para o outro, ficou ao relento. No e Bolsonaro no campo cultural só se tornou


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possível por causa da elitização da experiência cultural, decorrente da falha na formação educacional. Cultura institucional, no Brasil, é cultura de classe. Bolsonaro vai mais longe: estigmatiza a inteligência, despreza o conhecimento e a ciência; para o populista, esses não são valores populares. Independentemente da pandemia ou da crise política, nosso tempo é o do desfrute individual atrelado aos celulares. Se, por um lado, é formidável constatar o acesso de milhões a um microcomputador que os conecta ao mundo, por outro, isso não os torna cidadãos planetários. Ao acentuar o individualismo, o apelo ao compartilhamento da experiência social fica ainda mais atraente. Em São Paulo, a conquista das ruas na Virada Cultural e no Carnaval foi a resposta ao confinamento virtual. Se o confinamento real, decorrente da pandemia, represa a sociabilidade, sua superação irá lançar as pessoas novamente ao espaço público, com muita gana de tocar, olhar, abraçar, participar da experiência coletiva em bares, restaurantes, cinemas, teatros e parques, segundo protocolos estritos. Em breve, a pandemia será lembrança de um tempo de solidão e medo. À medida que se naturalizam os novos hábitos, o novo normal irá gradativamente se assemelhar ao velho normal. Mas, na cultura, o velho normal não é porto seguro. Artistas e instituições terão de se reinventar com relativa autonomia.

Carlos Augusto Calil Professor do Curso Superior do Audiovisual da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), foi diretor e presidente da Embrafilme (1979-1986), diretor da Cinemateca Brasileira (1987-1992), diretor do Centro Cultural São Paulo (2001-2005) e secretário municipal de Cultura de São Paulo (2005-2012). Realizador de documentários em filme e vídeo e autor de mais de 130 artigos, resenhas e ensaios, é também editor-organizador de mais de 30 publicações sobre cinema, iconografia, teatro, história e literatura.

Notas 1

FULGENCIO, Leopoldo. A noção de trauma em Freud e Winnicott. Natureza Humana, São Paulo, v. 6, n. 2, p. 255-270, dez. 2004. Disponível em: <http://pepsic.bvsalud.org/ scielo.php?script=sci_arttext&pid=S151724302004000200003&lng=pt&nrm=iso>. Acesso em: 20 jun. 2020.

2

SALES GOMES, Paulo Emílio. Uma situação colonial? São Paulo: Companhia das Letras, 2016, p. 176-185.

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CULTURA E NOVOS CAMINHOS PARA O DESENVOLVIMENTO ECONÔMICO NO NOVO NORMAL Leandro Valiati

Este artigo tem por objetivo traçar um paralelo entre os momentos históricos e emergenciais das políticas públicas das indústrias criativas na eclosão do capitalismo pós-industrial e as possibilidades da política pública brasileira para a cultura pós-pandemia da covid-19. Nesse sentido, a partir da demarcação dos conceitos de crescimento e desenvolvimento econômico, são analisados alguns elementos importantes na preservação, na distribuição e na produção de arte e também algumas noções centrais de um novo paradigma socioeconômico emergente no novo normal.

O

escritor britânico John Ruskin, em suas duas palestras sobre economia política da arte em 1857, na efervescência industrial de Manchester, afirmou: “Na descrição do economista perfeito [...] há uma divisão equilibrada de seus cuidados entre dois grandes objetos de utilidade e esplendor: na mão direita, comida e linho, para a vida e roupas; na mão esquerda, púrpura e bordado para a honra e beleza”. É possível traçar um paralelo entre a utilidade da comida e a flexibilidade e a magnificência da púrpura e do bordado como os próprios conceitos de crescimento e desenvolvimento na economia – ambos, ao mesmo tempo, fenômenos inter-relacionados e diferentes. Por um lado, o crescimento da economia significa o aumento da produtividade geral,

o que leva à tendência de uma sociedade produzir bens e serviços melhores e com menores custos a partir de seus próprios recursos. A medida perfeita desse fenômeno é o Produto Interno Bruto (PIB). Por outro lado, o desenvolvimento ou o crescimento inclusivo se conecta a elementos amplos, como distribuição e melhoria socioeconômica estrutural. Às vezes, um depende do outro. Outras vezes, um pode ser uma barreira para o outro. Quase sempre, depende de uma política econômica coerente que equilibre as necessidades de acumulação e distribuição, adotando o reconhecimento de mudanças históricas no sistema capitalista em direção à inovação de um sistema produtivo. O momento histórico que o mundo vive em 2020 é desafiador para o campo


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econômico em sua totalidade. Bloqueios A interpretação dessas novas formas inéditos ao produto econômico motivados de organização foi tratada não apenas no pela pandemia se somam a uma necessidade campo da economia (LIPIETZ, 1991; PIOimanente de buscar novos paradigmas para o RE; SABEL, 1984), mas também no da soconceito econômico de desenvolvimento no ciologia. Os sociólogos Domenico De Masi que vem sendo tratado como “novo normal”. (2001), italiano que se tornou bastante Na formatação do modelo econômico conhecido pelo conceito de ócio criativo, e global nesse contexto é possível encontrar Daniel Bell (1973), norte-americano, apreum espaço privilegiado para as artes e a cul- sentaram as características do trabalho em tura, especialmente a partir de sua conexão uma sociedade pós-industrial. De Masi descom o ambiente tecnologicamente inovador taca as descobertas de novas tecnologias em das indústrias criativas e sua ciência, telecomunicações relação com os novos mode- Bloqueios inéditos ao e transporte que levaram a los de produção e consumo produto econômico uma nova maneira de penque emergem. Podemos motivados pela pandemia sar e ao questionamento da pensar em raízes históricas em 2020 se somam à lógica da produção em série. desse fenômeno, que agora necessidade de buscar Segundo os pesquisadores se avolumam. No contexto novos paradigmas para canadenses Lacroix e Tremda crise do regime fordis- o conceito econômico de blay, essa crise estrutural leta de produção em massa, desenvolvimento no que vou ao progresso do setor de vários autores começaram vem sendo tratado como serviços, exigindo uma força a teorizar sobre mudanças “novo normal” de trabalho mais especialinos padrões de produção e zada. A formação de valor trabalho na indústria e no setor de serviços nesse contexto passou a ser muito ligada (parte relevante do setor cultural). Segundo ao trabalho intelectual (científico, artístio político e economista francês Alain Lipietz co, administrativo), bem como aos produtos (1991), a crise no modelo fordista surgiu da e serviços consumidos (como informação, queda nos ganhos de produtividade indus- cultura e conhecimento). Assim, a cultura trial a partir de meados da década de 1960 não é mais um instrumento de reprodução nos países capitalistas desenvolvidos. Nesse sociocultural, mas uma ferramenta de procontexto, merecem destaque as contribui- dução de conhecimento e imaginação, coções complementares do economista hún- mercializável em larga escala e que tem o garo Nicholas Kaldor (1966) e do britânico advento da digitalização como um grande Anthony Thirlwall (1979; 2005). O primeiro aliado (LACROIX; TREMBLAY, 1997). autor trata o crescimento econômico como A arte e o valor cultural, nesse sentido, um fenômeno específico do setor industrial teriam potencial para estar no centro de um tecnológico, pois há retornos crescentes e novo paradigma de desenvolvimento econôeconomias de escala na indústria, enquanto mico e humano, no qual fatores como idenna agricultura há retornos decrescentes. tidade, valor cultural, liberdade de escolha,

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alteridade, empatia e democracia são proe- elementos centrais do motor do capitalismo minentes. Ainda em perspectiva histórica, no âmbito do consumo e entendemos que Stuart Cunningham (2002), professor da ciência e cultura são fatores que entregam Universidade de Tecnologia de Queensland, saúde mental e física, bem-estar, liberdade na Austrália, afirmou que o tema das indús- e, portanto, desenvolvimento. trias criativas era recente na academia e nas Mas quais as bases para entender a culpolíticas públicas, e que poderia captar a di- tura como elemento central de um programa nâmica da nova economia mais plenamente de desenvolvimento econômico? que os setores de artes, mídia e cultura. SeAo analisar o papel das artes no degundo os professores Mark Banks [Universi- senvolvimento de áreas locais sujeitas a dade de Leicester, no Reino Unido] e Justin múltiplos fatores de estresse, a abordagem O’Connor [University of South Australia] produtivista do PIB falha em capturar os (2009), o surgimento do discurso sobre in- benefícios gerados para as comunidades dústrias criativas, ocorrido na marginalizadas de recursos década de 1990, foi um indica- A abordagem nas áreas urbanas centrais. tivo do impulso na exploração produtivista do PIB A pesquisadora inglesa Kate da produção cultural de uma falha em capturar os Oakley, diretora da School of nova maneira na agenda eco- benefícios gerados Culture & Creative Arts da nômica. Nesse sentido, o esto- para as comunidades Universidade de Glasgow, no que cultural de uma sociedade marginalizadas de Reino Unido, sugeriu que pode é elemento ativo do desenvolvi- recursos nas áreas ser a presença (ou a ausência) mento econômico, dependendo urbanas centrais de ativos artísticos de baixo de uma forte conexão entre as perfil o que diferencia bairros políticas das indústrias criativas e os valores que, de outra forma, têm condições econôculturais presentes em uma sociedade. micas semelhantes quando comparados a Mas, voltando a 2020, um fenômeno uma ampla gama de indicadores sociais. semelhante se instala. Por conta de uma Ela defende que “o dividendo artístico” improvável pandemia global, estaríamos (MARKUSEN, 2003; HENLEY, 2016) que em um novo choque tecnológico que se as- flui de iniciativas culturais com base na cosemelha ao fenômeno pós-fordista que cul- munidade provavelmente está associado a minou na política pública para indústrias um desenvolvimento local mais equilibrado criativas do final dos anos 1990? Acredito que o da narrativa de regeneração impulsioque há paralelismos. Há também ruptura. nada pelo crescimento. Por outro lado, as Vivemos algo mais intenso, na medida em indústrias de artes comerciais (de cinema, que experimentamos, nesses poucos meses música e design) surgem como associadas de quarentena, uma agudização extrema do à gentrificação em áreas urbanas em rápida uso de tecnologias de informação e comu- mudança, enquanto aquelas que equilibram nicação para o consumo e práticas cultu- ações com e sem fins lucrativos (empresas rais. Mais do que isso, passamos a repensar de artes visuais e performáticas, museus,


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escolas de arte) estão associadas a bair- há crise, desarticulação e reorganização. ros estáveis ​​e de crescimento equilibrado Seria este, então, o momento de as artes e (GRODACH et al., 2014). a cultura ocuparem uma posição central O economista australiano David nas estratégias de desenvolvimento do Throsby (2005) introduziu o conceito “pós-novo normal”? A receita para isso de “interconectividade”, pois os sistemas parece bastante visível: políticas públicas econômico, social, cultural e ambiental compensatórias e indutoras. A maior parte dos países ricos tem adonão devem ser vistos isoladamente. A interdependência da cultura afeta todas as tado políticas públicas compensatórias para dimensões da sustentabilidade. Existem a cultura. No Reino Unido, por exemplo, o muitos elementos de valor derivados de ati- Arts Council lançou um fundo emergencial vidades culturais, especialmente em áreas de 160 milhões de libras para indivíduos e vulneráveis, como pertencimento, agência, organizações do setor cultural durante a crise, oferecendo ainda um capacidade individual reflecrédito suplementar de 90 xiva, expansão do capital O caso brasileiro é milhões de libras a instituisocial, compromisso social, emblemático sobre as ções que já recebem recursos democracia cultural, capa- medidas insuficientes de apoio à cultura, públicos do governo, conhecicidade de ampliar o acesso das como National Portfolio ao mercado de trabalho, principalmente pela Organisations. Já na França, habilidades criativas, aces- desproporção entre esse so e mobilidade territorial, apoio e a riqueza cultural entre outras medidas para espaço de convivência e brasileira, assim como seu apoiar instituições públicas e privadas, o governo ampliou percepção da realidade so- potencial de mercado para um ano o pagamento que cial. Esses são exemplos de impacto e externalidades, elementos rele- é regularmente feito a artistas em períodos de não trabalho. vantes para o escopo do desenvolvimento. O caso brasileiro é emblemático sobre O mundo pós-pandemia em 2020 tem um desafio: entender de que forma a mu- as medidas insuficientes de apoio à cultudança conjuntural trazida pela pandemia ra, principalmente pela desproporção entre se estabelecerá como mudança estrutural esse apoio e a riqueza cultural brasileira, na vida social e econômica naquilo que vem assim como seu potencial de mercado. Sosendo chamado de “novo normal”. Certa- ma-se a isso um processo histórico de framente os players ganhadores do sistema gilização do setor cultural nos últimos anos, “pré-novo normal” resistirão a qualquer desde o segundo governo da presidente Dilmudança e tentarão voltar a um mundo ma Rousseff (2014-2016), que promoveu que talvez não mais exista, ou ainda re- um inédito corte de recursos para a área. produzir o antigo mundo em novas bases No governo seguinte, de Michel Temer, de produção e consumo. Esse é um clássico houve um desprestígio e uma fragilização (e cíclico) momento do capitalismo em que institucional do aparato da política pública

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como um todo. Com a ascensão do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, soma-se a essa receita um ataque ideológico e um desprestígio do setor cultural. E, completando a tempestade perfeita, uma pandemia inviabilizadora de elementos fundamentais das atividades culturais: performances ao vivo e interação social. A reação do governo federal brasileiro foi a pura e simples exclusão dos artistas das medidas de apoio público para garantia de renda durante a pandemia. Diante dessa situação, houve a necessidade de mobilização dos canais de políticas públicas já conhecidos, o que foi feito durante a pandemia com a aprovação da Lei de Emergência Cultural (Lei Aldir Blanc, no 1.075/2020) , garantindo renda mínima a artistas e organizações culturais. Essa lei foi aprovada a partir de uma incomum associação entre artistas, grupos culturais organizados, instituições do Terceiro Setor e o Parlamento nacional. Claramente percebe-se que, em um contexto de carência de políticas, a mobilização da Lei de Emergência Cultural funda no Brasil um exemplo de política pública que pode encontrar lugar no campo da política indutora (e que pode ser um exemplo positivo para outros países vindo de um contexto de austeridade financeira e grande disputa orçamentária). Garantir a sobrevivência do setor cultural é fundamental, mas apontar para o seu reposicionamento no novo normal é transformar estruturalmente os parâmetros do desenvolvimento econômico. Considerando a consolidação de novos mercados gerados a partir do streaming e das Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), notam-se

reais possibilidades para a disseminação de bens e serviços artísticos locais (e os valores culturais por eles transportados) em escala mundial. Além disso, uma reformulação do sistema de consumo que enfoque experiências abre espaço importante para a diversidade cultural. Trata-se de um momento histórico para que políticas públicas destinadas a diversidade, inclusão digital e expansão da oferta de cultura tradicional local sejam catalisadoras de uma retomada econômica global.

Leandro Valiati Economista, com PhD em desenvolvimento econômico e pós-PhD em indústrias criativas (LabEx ICCA, Universidade Paris 13). É professor e pesquisador nas áreas de indústrias criativas e economia da cultura em diversas universidades, como a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), a Universidade Queen Mary de Londres, a Universidade Paris 13 e a Universidade de Valência, na Espanha.


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QUAL O PAPEL DOS LABORATÓRIOS CULTURAIS NA SOCIEDADE PÓS-PANDEMIA?1 George Yúdice

Para defender a área de arte e cultura, especialmente em tempos de crise, quando seus orçamentos são cortados, não bastam as declarações do próprio setor; é preciso o envolvimento da população em geral. As instituições são refratárias à mudança, pois reproduzem o status quo. Daí a necessidade de uma nova institucionalidade, porosa à participação dos cidadãos que a possuam e defendam. Esse argumento é ilustrado pelo modus operandi de três laboratórios culturais cidadãos, que enfatizam a experimentação em todo aspecto da vida com ampla colaboração de quem se interessa por esses temas.

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atual pandemia revelou a precariedade e a desigualdade do setor de artes e cultura. É claro que trabalhadores culturais em orquestras sinfônicas, companhias nacionais de teatro ou emissoras de televisão têm alguma capacidade de fazer lobby perante governos e executivos de empresas. Mas, para a maioria, a condição de trabalho é instável e informal, ainda mais para aqueles que trabalham na cultura comunitária viva, que serve aos grupos mais pobres e marginalizados de nossas sociedades. Participei de mais de 20 webinars com especialistas em gestão e política cultural e as reações à situação descrita anteriormente poderiam ser resumidas da seguinte forma: a) governos devem investir em instituições culturais para que elas não sucumbam; b) instituições e artistas devem se preparar para o próximo

“novo normal” (por exemplo, espetáculos com público limitado e distanciamento social); c) artistas e trabalhadores culturais devem ser incluídos nos fundos de assistência à sociedade em geral, o que requer um cadastro do setor, não disponível em todos os países; d) “a arte e a cultura são essenciais à vida”, repete-se ad nauseam, e a sociedade deve reconhecer a importância do setor (não se especifica como a sociedade estará convencida dessa importância); e) alguns (poucos) comentaristas reconhecem a desigualdade do setor e acreditam que deve haver uma ampla reforma das instituições e do que é considerado cultura. Eu me incluo entre os últimos comentaristas, que especificam várias nuances. Em primeiro lugar, já havia um movimento, embora minoritário, apoiado por instituições como a Unesco e a Secretaria-Geral Ibero-


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-Americana (Segib), que defende a importân- culturais e criativas, e mais com a inovação cia da transversalização da cultura, reconhe- cultural dos cidadãos. Essa inovação já está cendo seu impacto em setores como educação, sendo praticada em um leque heterogêneo de saúde e turismo. Além disso, essa transversali- iniciativas, algumas das quais não devendo dade é entendida como a chave para que o se- nem mesmo ser chamadas de culturais, muitor cultural seja considerado importante para to menos de artísticas, embora tanto a cultua realização dos Objetivos de Desenvolvimento ra quanto as artes desempenhem um papel Sustentável (ODS), incluídos na Agenda 2030, nelas. Estou me referindo ao que poderíamos estabelecida pela Organização das Nações Uni- chamar de laboratórios culturais cidadãos. Cada termo fornece características do das (ONU, 2015). Entretanto, os esforços para a inclusão da cultura falharam em razão do medo que é feito nessas iniciativas. “Laboratório” refere-se à experimentação; dos Estados de reconhecer o lu“cultural”, ao simbólico em gar da cultura nos conflitos so- “Laboratório” referetodas as suas dimensões, esciais; da dificuldade em aceitar -se à experimentação; pecialmente como se vive; plenamente a importância da “cultural”, ao “cidadão”, à participação da diversidade cultural; de uma simbólico em todas população em geral, não exmentalidade tradicional que vê as suas dimensões, clusivamente de artistas ou a cultura como algo suntuoso; especialmente como profissionais. A sinergia entre de se ignorar as necessidades se vive; “cidadão”, o que está implícito em cada culturais; e da baixa influência à participação da um desses conceitos-chave da Unesco, entre outros fatores população em geral abre a possibilidade de que (MARTINELL, 2020, p. 10-15). novas formas de institucionalidade sejam A questão também deveria ser: inventadas e permaneçam suficientemente Qual papel queremos que as artes e a cultu- porosas para se ajustarem às contingências. Por que as instituições precisam ser ra desempenhem na sociedade? E não que papel queremos que eles desempenhem no reinventadas? Elas tornam possível o funsetor de artes e cultura. Temos que começar cionamento de uma sociedade e também a a pensar em novas práticas, modelos, usos, reprodução do status quo, e esse é o probleformatos, expressões, objetivos da prática ma: elas são inerciais à transformação, tão necessária em tempos de crise (TURNER, cultural (IGLESIA in GONZÁLEZ, 2020). 1997). Elas tendem também a se tornar auPrecisamos reinventar o setor e chegar ao tônomas, estabelecendo suas próprias regras internas do jogo (BOURDIEU, 1982), o que público em geral, mas como? Minha resposta é apenas parcial. Tem torna difícil a transversalidade e a transetomenos a ver com o modo como esse mundo rialidade necessárias para superar as crises. Minha perspectiva sobre a conveniência de grandes museus é geralmente orientado para o turismo e as chamadas cidades cria- de uma nova institucionalidade para enfrentivas (para as classes médias), ou indústrias tar a crise gerada pela pandemia se baseia em

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três iniciativas que não seguem as regras de tirar proveito da diversidade de saberes, um um museu ou centro cultural – são mais ágeis, processo fundamental para abordar uma ame isso lhes permite responder a contingências. pla gama de questões e descobrir formas de Refiro-me ao Medialab-Prado (MLP), em Ma- fazer as coisas em conjunto. Outro aspecto dri,2 à Casa Gallina, no México,3 e à Agência comum é a criação de confiança e laços de de Redes para Juventude, no Rio de Janeiro.4 afeto por meio de um profundo conhecimenCada iniciativa tem uma genealogia e uma for- to do território, do bairro e do trabalho de mema de financiamento diferentes: o MLP nas- diadores que ajudam a estabelecer relações ceu da efervescência da interação de artistas, horizontais com pessoas e comunidades ao ativistas e hackers no final dos anos 1990 e é seu redor. São usuários que se apropriam de financiado pela prefeitura de Madri; a Casa espaços e processos e não se limitam a ser Gallina deriva de um prograespectadores do que é visto ma de arte in loco e causa uma São iniciativas cujo e ouvido, mas participantes. reviravolta na colaboração modus operandi permite Seu comportamento é próxientre vizinhos de um bairro a interação horizontal mo ao dos hackers, que interoperário, com financiamento entre cidadãos comuns vêm na cultura da expertise e de filantropos convencidos a e profissionais, a fim disponibilizam recursos para estender seu interesse pela de tirar proveito da o comum. A ética hacker quearte à cidadania em geral; a diversidade de saberes bra o quadro performativo da Agência de Redes para Juveninstitucionalidade. tude evolui de um projeto de inovação cultural As três iniciativas cessaram as ativide jovens das favelas para uma intervenção dades presenciais durante o confinamento na vida social e política de seu território, sen- e programaram as virtuais para combater a do financiada irregularmente por programas covid-19 e se preparar para o pós-pandemia. governamentais (fechados há alguns anos) O MLP lançou a Experimenta Educación e, mais recentemente, pela cooperação in- para mediar as relações entre educadores ternacional. As fontes de financiamento dão e famílias, detectando necessidades e inuma ideia do que é possível fazer em diferen- centivando a experimentação e a colabotes contextos, tendo em vista que os gestores ração.5 Também colabora com campanhas dessas iniciativas precisam se movimentar de inovação para enfrentar a crise, como a muito para obter recursos, uma vez que não hackathon #VenceAlVirus.6 E, para o que se são instituições estabelecidas, como museus, espera depois que tiver fim o confinamento, bibliotecas ou teatros nacionais, com finan- o MLP colabora com o #ReactivaMadrid7 e ciamento relativamente estável e que, por isso, os Desafíos Comunes (para el Día Después), defenderiam seus orçamentos diante do sur- chamadas para as quais buscam gimento desse novo tipo de iniciativa. Trata-se de iniciativas cujo modus openovos recursos digitais, distribuídos e colarandi permite a interação horizontal entre borativos em nível local e global, resultado cidadãos comuns e profissionais, a fim de da incrível mobilização da sociedade civil,


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jovens a desenvolver redes, explorando as conexões entre o território local e a cidade. No início havia dinheiro para inovar em proA trajetória da Casa Gallina, com suas centenas jetos com o acompanhamento de mentores de projetos colaborativos no bairro de Santa e mediadores, e logo a agência se concenMaría la Ribera, na Cidade do México, resultou trou em um grande projeto – Todo Jovem em uma densa rede de relacionamento entre É Rio – para transformar a cidade cultural, um grande número de vizinhos. Agora, eles social e até mesmo politicamente.13 continuam a atender virtualmente os diversos Com o surgimento do novo coronaprojetos lançados durante a pandemia, como o vírus, a agência vem trabalhando com os de resiliência na comunidade, que implementa jovens do programa Geração que Move, programas de atividades para crianças e fami- com o intuito de prestar serviços em 50 liares, de modo que possam ser comunidades – distribuir feitas em casa, e promove redes A iniciativa ajuda os cestas básicas, kits de hi9 de apoio mútuo entre vizinhos. jovens a se tornar giene e livros – que não os Foram desenvolvidos também protagonistas de recebem da prefeitura. 14 O conteúdos com vizinhos, como suas vidas, a realizar programa O Fio da Periferia o Alimentación Sana sin Salir seu potencial e a é um testemunho da criação de Casa [Alimentação Sã sem transformar o cotidiano de artistas, ativistas e coSair de Casa]10 e discussões e os territórios em que municadores da periferia e como Nuestro Ecosistema: la vivem, fazendo uso de de quais são suas formas de Ciudad. Repensar la Naturaleza práticas estéticas que ação para servir de guias e en la Cuarentena [Nosso Ecos- lhes permitem inventar e enfrentar a pandemia.15 sistema: a Cidade – Repensar a ser criadores, não apenas Há muitas outras iniNatureza na Quarentena].11 A consumidores ciativas com a intenção de ampla rede de alianças possibienfrentar a covid-19 e deselitou a ampliação do projeto, que aproveitou o nhar planos pós-pandêmicos que poderiam programa Experimenta Distrito.12 ser mencionadas, como os laboratórios de A Agência de Redes para Juventude é inovação cidadã articulados pela Segib;16 o um pouco diferente das duas primeiras ini- data_labe na favela da Maré, no Rio de Jaciativas, pois não tem um espaço central – neiro;17 a Ação Educativa, em São Paulo;18 e acontece em vários espaços nas favelas do o #CultureLabs, da Europa.19 Rio de Janeiro. A iniciativa ajuda os jovens O importante é que essas iniciativas ena se tornar protagonistas de suas vidas, a volvam seus usuários em densas redes colarealizar seu potencial e a transformar o coti- borativas, tanto presenciais quanto digitais, diano e os territórios em que vivem, fazendo para que eles estejam dispostos a defendê-las uso de práticas estéticas que lhes permitem bem mais ativa e apaixonadamente do que se inventar e ser criadores, não apenas con- vê com relação às instituições convencionais sumidores. O projeto também incentiva os de arte e cultura. da solidariedade cidadã ou da aceleração dos processos de inovação no setor público.8

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George Yúdice Professor titular do Programa de Estudos Latino-Americanos e do Departamento de Línguas e Culturas Modernas da Universidade de Miami. É autor, entre outros títulos, de Política Cultural (Gedisa, 2004); A Conveniência da Cultura: Usos da Cultura em uma Era Global (Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2005); Nuevas Tecnologías, Música y Experiencia (Gedisa, 2007); e Culturas Emergentes en el Mundo Hispano de Estados Unidos (Fundación Alternativas, 2009). É editor do número 20 da Revista Observatório, Políticas Culturais para a Diversidade: Lacunas Inquietantes (2016), do Itaú Cultural. Está no comitê editorial da Revista Z Cultural (PACC/UFRJ), do The International Journal of Cultural Policy (Warwick, Reino Unido) e da Heterotopías (Córdoba, Argentina).

Referências BOURDIEU, Pierre. Estrutura, habitus e prática. In: A economia das trocas simbólicas. Trad. Sérgio Miceli. 5. ed. São Paulo: Perspectiva, 1982, p. 339-361. GONZÁLEZ, Carlos. Tenemos que centrar muy bien el tiro sobre cuál es el rol que queremos que la cultura juegue en el futuro de la sociedad. Entrevista com Roberto Gómez de la Iglesia. Noticias de Álava, 3 maio 2020. Disponível em: <https://www.noticiasdealava.eus/cultura/2020/05/03/centrar-tiro-rolqueremos-cultura/1025248.html>. Acesso em: 3 maio 2020. LAFUENTE, Antonio. Antonio Lafuente habla sobre laboratorios ciudadanos. Exploratorio. Parque Explora. Disponível em: <https://www.youtube.com/ watch?v=nX1_SvuIw2U>. Acesso em: 1 jun. 2020. MARTINELL, Alfons (Coord.) et al. Cultura y desarrollo sostenible. Aportaciones al debate sobre la dimensión cultural de la Agenda 2030. Madri: Reds, 2020. Disponível em: <https://reds-sdsn.es/wp-content/uploads/2020/04/REDS_ Cultura-y-desarrollo-sostenible-2020.pdf>. Acesso em: 1 jun. 2020. ONU. Transformar nuestro mundo: la Agenda 2030 para el desarrollo sostenible. Documento oficial das Nações Unidas. Resolução A/RES/70/1, 2015. Disponível em: <http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/70/L.1&Lang=S>. Acesso em: 1 jun. 2020. TURNER, Jonathan. The institutional order. New York: Longman, 1997. YÚDICE, George. Towards a new institutional paradigm. Atlántica – Journal of Art and Thought, n. 59, 2018. Disponível em: <http://www.revistaatlantica.com/en/ contribution/towards-new-institutional-paradigm/>. Acesso em: 2 jun. 2020.


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Notas 1

Para uma elaboração de dois dos laboratórios culturais aqui mencionados, ver YÚDICE, 2018.

2

Ver: <https://www.medialab-prado.es>. Acesso em: 21 jul. 2020.

3

Ver: <https://casagallina.org.mx>. Acesso em: 21 jul. 2020.

4

Ver: <http://agenciarj.org>. Acesso em: 21 jul. 2020.

5

Ver: <https://www.medialab-prado.es/noticias/experimenta-educacion-entiempos-de-covid-19>. Acesso em: 21 jul. 2020.

6

Ver: <https://www.medialab-prado.es/actividades/presentacion-de-proyectosseleccionados-en-el-hackathon-vencealvirus>. Acesso em: 21 jul. 2020.

7

Ver: <https://www.medialab-prado.es/noticias/reactiva-madrid-proyectosseleccionados>. Acesso em: 21 jul. 2020.

8

Ver: <https://www.medialab-prado.es/noticias/desafios-comunes-festival-deinnovacion-abierta-frena-la-curva>. Acesso em: 21 jul. 2020.

9

Ver: <https://casagallina.org.mx/estrategia/resiliencia-en-comunidad-herramientasy-redes-durante-el-distanciamiento-fisico/21>. Acesso em: 21 jul. 2020.

10

Ver: <https://m.facebook.com/1253981211449325/ albums/1570241479823295/?ref=104&__tn__=%2Cg>. Acesso em: 21 jul. 2020.

11

Ver: <https://www.facebook.com/watchparty/182783332970487/>. Acesso em: 21 jul. 2020.

12

O Medialab-Prado, localizado no centro de Madri, desenvolveu o programa Experimenta Distrito com o objetivo de levar aos bairros o modus operandi de usuários com perfis sociais e profissionais diferentes, para que eles próprios determinem e descubram modos de fazer juntos. É uma forma de estender o protagonismo cidadão e vicinal a toda a cidade. Ver: <https://www.medialabprado.es/programas/experimenta-distrito>. Acesso em: 21 jul. 2020.

13

Ver: <http://agenciarj.org/todojovemerio/>. Acesso em: 21 jul. 2020.

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14

Ver: <http://agenciarj.org/geracao-que-move-em-acao/>. Acesso em: 21 jul. 2020.

15

Ver: <http://agenciarj.org/o-fio-da-periferia/>. Acesso em: 21 jul. 2020.

16

Ver: <https://www.innovacionciudadana.org/>. Acesso em: 21 jul. 2020.

17

Ver: <http://datalabe.org/>. Acesso em: 21 jul. 2020.

18

Ver: <http://www.acaoeducativa.org.br/>. Acesso em: 21 jul. 2020.

19

Ver: <https://culture-labs.eu/>. Acesso em: 21 jul. 2020.


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Pablo Ortellado

FAZER CULTURA EM MEIO ÀS GUERRAS CULTURAIS Pablo Ortellado

Vivemos um grande desafio: como fazer cultura em meio a um conflito aberto que opõe nossos valores progressistas aos valores conservadores? Se olharmos com atenção para a gênese e para a estrutura desse antagonismo pelo qual a sociedade brasileira foi tragada, talvez possamos entrever uma estratégia contraintuitiva de evasão, uma estratégia da recusa em travar a batalha nos termos que nos foram impostos.

Guerras culturais” é um termo em- do debate político. O autor acreditava que a prestado do alemão kulturkampf, que emergente centralidade desses temas fazia originalmente descrevia as disputas parte de um mesmo processo que unia conpolíticas, no final do século XIX, entre a servadores religiosos de todas as designações Prússia – depois Império Alemão – de um (HUNTER; WOLFE, 2006) contra o avanço lado e a Igreja Católica de de valores progressistas laioutro. Por analogia, o so- Quando as mudanças nas cos, num choque político de ciólogo norte-americano relações interpessoais visões morais de mundo. James Hunter, em livro propostas pelos novos Ainda nos Estados Unimuito influente publicado movimentos sociais dos, o historiador Andrew em 1991, utilizou o termo passaram a ser incorporadas Hartman (2015) traçou a gêpara designar os emer- por instituições que nese das guerras culturais na gentes conflitos entre transmitem valores, os reação conservadora às muconservadores religiosos conservadores temeram danças dos costumes trazidas e progressistas laicos nos converter-se em minoria pelos quatro cavaleiros do Estados Unidos do início e formaram uma coalizão apocalipse: a contracultura, dos anos 1990. conservadora para se engajar o movimento negro, o moviO livro de Hunter par- em uma “guerra cultural” mento feminista e o movitia da constatação de que mento gay (hoje LGBTQ+). conflitos de natureza moral e que tradicioQuando as mudanças nas relações nalmente eram considerados secundários e interpessoais propostas pelos novos moviperiféricos, como o casamento gay, o aborto mentos sociais passaram a ser incorporadas e o ensino de temas que contrariavam valo- por instituições que transmitem valores, res religiosos, estavam ganhando o centro como escolas, universidades, veículos de

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comunicação e instituições artísticas, os tinham notado nos Estados Unidos. Essa conservadores temeram converter-se em campanha, depois, encontrou acolhida em minoria. Para evitar esse destino, venceram outra, a da Escola sem Partido, que originalressentimentos históricos que impediam a mente havia sido montada por um promotor cooperação inter-religiosa e formaram uma para combater doutrinação política em sala coalizão conservadora judaico-cristã para de aula (NAGIB, 2013). A partir desse mose engajar em uma “guerra cultural” (dife- mento, o combate à ideologia de gênero saiu rentemente da tradição acadêmica, que se dos salões paroquiais e ganhou a esfera públirefere às guerras culturais no plural, os con- ca. Logo depois de se expandir para o âmbito servadores adotam a expressão no singular). da educação, as guerras culturais atingiram No Brasil e na América Latina, a gê- também o meio artístico, com campanhas nese imediata das guerras culturais deve organizadas contra apresentações artístiser buscada na campanha contra a ideo- cas que seriam impróprias para crianças logia de gênero. Ideologia (La Bête, no MAM) ou que ou teoria de gênero é um O ato decisivo para que desrespeitariam símbolos termo forjado na teologia as guerras culturais se religiosos (Queermuseu, católica (CONFERÊNCIA consolidassem no Brasil foi no Santander Cultural, e O EPISCOPAL, 1998) para a campanha eleitoral de Jair Evangelho Segundo Jesus, se referir a uma suposta Bolsonaro, que conseguiu Rainha do Céu, no Festival tentativa do feminismo e articular dois movimentos da de Inverno de Garanhuns). do movimento LGBTQ+ sociedade brasileira numa Mas o ato decisivo de converter as divisões mesma roupagem antielitista, para que as guerras culbiológicas que separam ou, como se diz em ciência turais se consolidassem os sexos em uma constru- política, populista no Brasil foi a campanha ção social, segundo a qual eleitoral de Jair Bolsonaas identidades, os papéis e as orientações ro, que conseguiu articular dois movimensexuais seriam plásticas e socialmente de- tos da sociedade brasileira numa mesma terminadas. Segundo essa leitura, os movi- roupagem antielitista, ou, como se diz em mentos sociais estariam empenhados em ciência política, populista (MUDDE, 2007; impor esse entendimento à sociedade por MUDDE; KALTWASSER, 2017). O primeiro meio de práticas educacionais e sociais, o desses movimentos foi o anticorrupção, que que levaria à destruição da família tradi- a campanha eleitoral conseguiu fazer micional e, no limite, ao fim da raça humana. grar de uma disposição antipetista, na qual Embora tenha nascido no catolicismo, a o Partido dos Trabalhadores era entendido campanha contra a ideologia de gênero logo como o mais corrupto, para uma disposição foi adotada por denominações protestantes, antipartidos, na qual a corrupção passou a o que permitiu a formação de uma coalizão ser atribuída às elites políticas tradicionais conservadora inter-religiosa em moldes como um todo. O segundo movimento foi parecidos com os que Hunter e Hartman o conservadorismo moral que se opunha à


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ideologia de gênero, à doutrinação nas esco- população e são muito mais brancos (61%, las e aos excessos dos artistas. Isso também ante uma média de 36%), muito mais escoganhou uma roupagem antielitista quando a larizados (78% com curso superior) e muito campanha eleitoral descreveu como a tenta- mais ricos (68% com renda familiar acima tiva de professores, artistas, comunicadores de 5 salários mínimos) do que os outros e outras elites culturais imporem valores dois grupos mais conservadores. Enquanto progressistas a um povo majoritariamente a maior parte dos membros dos outros dois conservador (MONITOR, 2018). grupos pontua no meio da escala conservaÉ importante ressaltar essa roupagem dor-progressista (-4 e +6), os progressistas se antielitista, porque não foi apenas o meio concentram em +20, muito próximos do prode expressão do conservadorismo; ela o gressismo mais extremo (MONITOR, 2019). estruturou, ao reforçar o antagonismo conA campanha populista conservadora servadorismo-progressismo com um anta- apresenta o progressismo como uma elite gonismo povo-elite. E ela o arrogante, com valores próreforçou porque encontrou A campanha populista prios, separada da massa do algum respaldo na realida- conservadora apresenta povo conservador. E, embora de. O progressismo está, de o progressismo como o discurso conservador seja fato, concentrado em setores uma elite arrogante, exagerado e distorcido, em da sociedade que são muito com valores próprios, alguma medida, encontra mais escolarizados, mais ri- separada da massa do apoio nos fatos. É preciso recos e mais brancos do que o povo conservador conhecer essa situação para restante da população – em poder escapar da armadilha outras palavras, em um setor que pode ser que o populismo impôs a um setor cultural caracterizado como elite. predominantemente progressista. Para medir isso, aplicamos um questioComo os nomes indicam, o progressisnário com 44 afirmações sobre temas morais mo quer a mudança e o conservadorismo a uma amostra representativa da população a preservação do status quo. Não é de surda cidade de São Paulo. Essas afirmações preender, portanto, que o progressismo seja eram representativas das guerras culturais uma espécie de vanguarda minoritária que brasileiras e versavam sobre questões raciais, induz a transformação da maioria. E, nesse papel da mulher, homofobia e drogas. Com caso, não se trata de uma minoria qualquer, base no questionário foi criada uma escala de mas de uma minoria privilegiada que pode 44 pontos, na qual em -22 estaria o conserva- e está sendo caracterizada como uma elite. dorismo extremo e em +22, o progressismo Nossa reação imediata à ameaça do conextremo. Aplicando uma técnica estatística servadorismo é, de maneira automática e conhecida como PCA, reunimos os entre- irrefletida, afirmar e ressaltar a identidade vistados em três grupos com respostas se- contrária, como progressista, como demomelhantes. O resultado foi surpreendente. crata ou como antifascista. Só que, ao assuOs progressistas compõem apenas 21% da mir uma identidade desse tipo, aceitamos

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entrar numa dinâmica relacional polarizada considerações e cuidados. Mas, como o proem que um forte adversário nos rotula como gressismo é razoavelmente insulado num antagonistas do povo. determinado meio social, essa dinâmica na Podemos nos opor ao projeto conser- qual nos tornamos cada vez mais conscienvador sem bradar a identidade contrária tes e cuidadosos vai criando padrões eleque nos captura no antagonismo populis- vados que são exclusivos para esse meio, e ta. Podemos, pelo conteúdo, pelos valores, que ficam cada vez mais destacados do resnos opor, inclusive firmemente, ao projeto tante da população. Enquanto no coração conservador adotando identidades políticas do progressismo se discute com naturaliambíguas ou identidade política alguma. Em dade linguagem inclusiva, microagressões nossos espetáculos e proe ghosting, fora desse meio dutos culturais, os punhos Se quisermos escapar isso é percebido como uma erguidos, as bandeiras e as do desafio que o espécie de exagero, caricaposturas do tipo “somos, conservadorismo populista to e ridículo. sim, aquilo que vocês per- nos impôs, precisamos Amplos segmentos seguem”, embora intui- reconhecer nosso do meio cultural estão tivamente pareçam uma insulamento em um meio presos em uma dinâmica confrontação efetiva, uma social privilegiado, adotar endógena que reafirma contrarreação firme, ape- uma linguagem que nos identidades políticas fornas nos capturam numa re- reconecte com o meio social tes e discute questões que lação assimétrica que nos externo e abandonar os só fazem sentido para nós. separa da população. Embora pareça resistêntraços de identidade que nos Além disso, preci- capturam na dinâmica de uma cia efetiva, é jogar o jogo samos adequar a lingua- polarização assimétrica do isolamento e de nossa gem de nossas produções rotulação como elitistas. para que possam ir além de nosso próprio Se quisermos escapar do desafio que o conmeio social, escapando de uma dinâmica servadorismo populista nos impôs, preciendógena, na qual falamos cada vez mais samos reconhecer nosso insulamento em para nós mesmos. Uma das característi- um meio social privilegiado, adotar uma cas mais salientes do progressismo é que linguagem que nos reconecte com o meio a sensibilidade para as diferentes formas social externo – que será necessariamente de opressão racial, de gênero, de identidade mais conservador – e abandonar os traços e de orientação sexual incorpora cada vez de identidade que nos capturam na dinâmais questões, numa espiral crescente de mica de uma polarização assimétrica.


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Pablo Ortellado Com graduação e doutorado em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP), é professor do curso de gestão de políticas públicas e da pós-graduação em estudos culturais na Escola de Artes, Ciências e Humanidades (Each) da mesma universidade e também coordenador do projeto Monitor do Debate Político no Meio Digital (<https:// www.facebook.com/monitordodebatepolitico/>).

Referências CONFERÊNCIA EPISCOPAL PERUANA. La ideología de género: sus peligros y alcances. Lima, 1998. HARTMAN, A. A war for the soul of America: a history of the culture wars. Chicago: University of Chicago Press, 2015. HUNTER, J. D. Culture wars: the struggle to define America. Nova York: Basic Books, 1991. HUNTER, J. D.; WOLFE, A. Is there a culture war? A dialogue on values and American public life. Washington: Brookings, 2006. MONITOR do Debate Político no Meio Digital. A campanha de Bolsonaro no Facebook: antissistêmica e conservadora, pouco liberal e nada nacionalista. São Paulo, 2018. ______. Como as guerras culturais afetam a opinião da população? São Paulo, 2019. MUDDE, C. Populist radical right parties in Europe. Cambridge: Cambridge University Press, 2007. MUDDE, C.; KALTWASSER, C. R. Populism: a very short introduction. Oxford: Oxford University Press, 2017. NAGIB, M. Professor não tem direito de “fazer a cabeça” de aluno. Consultor Jurídico, 3 out. 2013.

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Maurício Pokemon Skatista e artista visual, é artista residente do Campo Arte Contemporânea e coordena o Estúdio Debaixo, núcleo de artes visuais do Campo. Seu trabalho transita entre a convivência na comunidade Boa Esperança, em Teresina (PI), e o corpo performático na imagem, ampliando a discussão sobre representatividade. Em 2017, pelo projeto Sesc Amazônia das Artes, expandiu para dez estados o trabalho que desenvolve com comunidades ribeirinhas de Teresina desde 2015, o Existência. Seu projeto verdeVEZ foi selecionado no Rumos Itaú Cultural 2017-2018. A obra Inventário Verde da Boa Esperança ficou em cartaz no Itaú Cultural, como parte da Mostra Rumos – o Tempo das Coisas.


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Confinado em Teresina, tenho me permitido o silêncio e um reolhar para os trabalhos que criei nos últimos anos. Aqui, o tempo corre junto com a saudade. Penso em meus avós diariamente. São 85 anos no interior do Piauí, vivendo na roça, vivendo dos legumes, das frutas e da mandioca que plantam. O fato de eles pertencerem a um grupo de risco nesta pandemia me traz preocupação e uma vontade crescente de lhes mostrar algo que nunca viram... o mar. A partir da digitalização de negativos queimados com aproximação em zoom (um trabalho de agora sobre materiais de outro tempo), esta série traz cartões-postais de “mares imaginários” para meus avós, através dos quais viajaremos juntos enquanto não pudermos estar pessoalmente lá onde o mar está.


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NO PONTO MORTO DE UM MUNDO QUE RODA Teixeira Coelho

Vida cultural inteligente depois do vírus? Como, se os artistas não têm salário fixo, nem seguro-saúde, nem casa, nem respeito? O vírus deixou claro: economia e cultura vivem da mão para a boca. Tem Chagall garantindo promissória – e não vai adiantar. Mas... não haveria cultura demais? E o algoritmo, não vem salvar o dia? Está vindo é para eliminar jornalistas, juízes togados, professores, operários, artistas; com ele emerge um significado da inteligência artificial. A solução para a cultura d.v. (depois do vírus) parece ser a do século XIX: a Santa Casa de Misericórdia.

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írus, epidemia, pandemia, antes, depois, nada mais será como antes, nada mais será como depois, o pré-vírus, o pós-vírus Existirá um a.v. e um d.v. como houve um a.C. e um d.C.? E o que de fato mudou depois de cada “d.qualquer coisa”? Caso extremo a partir do qual puxar um longo fio da meada: o Metropolitan Opera, maior organização de performing arts dos Estados Unidos, com casa no Lincoln Center, em Nova York, anunciou em 2 de junho o cancelamento do restante da temporada 2020 até a noite de réveillon. O último espetáculo foi em 11 de março, às portas do confinamento. O resto foi para o espaço e entrou em órbita com a Crew Dragon, do Elon Musk. Mas a Crew Dragon voltará. E o Met? São muitos e violentos os golpes culturais do vírus, mas este é tomado como muito emblemático: todos estão de olho para tirar a temperatura do Met, prever o que acontecerá

com o restante da cena dos espetáculos ao vivo – febre, diarreia, UTI, recuperação, falência múltipla de órgãos? Não será preciso esperar muito, a cena está posta e em cena está uma tragédia. Tragédia: o que não tem conserto nem volta. Não há drama algum, é tragédia. O Met Museu, do outro lado do Central Park, tem orçamento várias vezes maior que o Met Opera – e assets que a ópera não tem: seus Rodin, Jasper Johns, Matisse são imunes ao vírus, não pedem seguro-desemprego nem seguro-saúde, têm casa. No Met Opera, músicos de uma das melhores sinfônicas do mundo estão sem salário desde março; os cantores do coro, vitais para os magníficos réquiens sempre em cartaz, idem. Anos de trabalho jogados fora, que não se recuperam em meses nem em anos. Declarado “em suspensão do emprego”, esse pessoal receberá do governo 600 dólares por semana até o final de julho. Mas e daí


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até 31 de dezembro? E depois? Seiscentos voa pelo palco, na descrição do próprio Fandólares por semana parece a sorte grande no tasma. Ganância pura do produtor? O Wall Brasil: 2,4 mil dólares por mês, equivalentes Street da cultura ataca outra vez? Andrew a 13,4 mil reais. Lá, esse valor não paga nem Lloyd Webber, compositor e empresário, aluguel, vários músicos já perderam suas dono da franquia, tem sete teatros em Loncasas. É a maior crise do Met em 137 anos dres: não tem bolso para suspender a tempode vida. São 300 milhões de dólares de or- rada e pensar na vida dos outros? “Suspender çamento ao ano, endowment de 270 milhões por quê?”, ele pergunta. “Seul é o lugar mais seguro do mundo hoje.” Ou será apenas que de dólares. Os deslumbrantes murais de Marc the show must go on? “Navegar é preciso, viver não é preciso.” Chagall no foyer foram dados em garantia de uma promissória. Isso para ficar nos ter- Pode ser – e, se for, dá para entender. “O púmos grosseiros das unidades de medida da blico vem de máscara, toda precaução é tomada.” Qual o futuro do teatro? cultura, que nada medem com Os reis estão nus. As rainhas valor cultural, embora determi- Filantropia é vital também. A pandemia deixou nem a vida da cultura. E abrir a para a cultura. casa só com 500 dos 3,8 mil lu- Deveria ser obrigação, claro que o mundo (fora os potentados) vive, economicamengares possíveis, para o vírus não mas não passa de te, da mão para a boca: o fluxo é entrar junto, é insustentável. E dádiva. Os primeiros contínuo e tem de ser contínuo, não dá para impor “distancia- centros de cultura porque se parar tudo vem abaimento social” aos músicos no no século XIX eram, xo. Navios-tanque navegando fosso da orquestra. Que fazer? juridicamente, casas sem parar, aviões sempre no ar, Apresentar “O anel do nibelun- de caridade: quão go” em versão para quarteto de apropriado, profético! trens correndo a minutos de distância, bombas atômicas sempre cordas? Olhaí, interessante. E voando. A maioria das pessoas, sem seguromúsicos que não podem ensaiar porque nem mais casa têm? E se têm, mas não podem en- -desemprego, sem seguro-saúde, sem seguro saiar porque estão com a família no cangote? de vida, sem vida, também vive da mão para Instituições podem desaparecer, fechar por a boca. A economia vive do fluxo contínuo, a um tempo, depois reabrir, passar aspirador cultura como fato de economia também vive e pronto; mas técnica e qualidade se perdem. da mão para a boca. Salas de teatro e concerto vivem do fluxo de bilheteria mesmo que este Qual o futuro do Met? Do outro lado do mundo, em Seul, O não cubra nem 30% das despesas – e, ainda Fantasma da Ópera não parou, é o único es- que não cobrisse nada, os espectadores têm de petáculo ao vivo no mundo aberto ao público estar ali ou não dá liga: quem joga só para a TV (fechou por 14 dias quando um dos membros é o futebol. Filantropia, desgraçadamente, é caiu doente; já reabriu). Todo o público com vital para a cultura. Deveria ser obrigação, mas máscaras obrigatórias; os atores, não. A cena não passa de dádiva. Os primeiros centros de do beijo é mantida, lábios se tocam, saliva cultura no século XIX eram, juridicamente,

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casas de caridade: quão apropriado, proféti- nada perto de hoje; mas, de algum modo, tudo co! Quem vai pôr a mão no bolso primeiro? isso me diz respeito, diz respeito a todos. EnNos Estados Unidos não há vergonha em tão, como fica? ganhar muito dinheiro, vergonha é morrer “Depois da pandemia, nada mais será com muito dinheiro – então, eles dão. Muito. como antes.” “Só o de sempre”, corrigiu o Às vezes, tudo. Os faraós carregavam tudo maior filósofo vivo da Espanha, o cartunista com eles, até os escravos. Hoje, acham me- El Roto, em vinheta na qual se vê a esfinge do lhor tirar os anéis antes de entrar no caixão Cairo com máscara cirúrgica, tapando boca e ou na fornalha. Lá. E aqui, nesta longitude nariz para não sentir o bafo fétido dos séculos do mundo? E no restante do mundo? Mes- (o atual é bem podre, e olha que o do sécumo com todos os mecenas juntos, vai dar lo XX foi para valer). Nada mais será como para o gasto? antes – só o de sempre continuará como No entanto, parece haantes. Quantos são esses “de ver cultura demais no mundo, Parece haver cultura sempre”? Uns 99% do todo. obras de arte demais, exposi- demais no mundo, Hummm... ções sobrando, feiras de arte obras de arte demais... E Mas, se o teatro e as losaindo pelo ladrão (sem alu- escritores, e filmes que jas de disco fecharem (ah, as sões), bienais em cada esqui- nem mais tentam entrar de disco já fecharam faz temna. E concertos eruditos e nas salas de exibição, po) e também os museus, as populares; e músicos e com- vão diretamente para as livrarias (estão fechando) e positores; e escritores; e filmes “netflixes”. Para quê? os cinemas (estão no mesmo que nem mais tentam entrar caminho, só sobram estas nas salas de exibição, vão diretamente para salas “escuras” para comer pipoca de boca as “netflixes”. Para quê? Carradas de lixo aberta com o celular ligado na mão), como nos streamings, nos canais a cabo. O mundo fica? Tudo isso são as materialidades da culsufoca sob montanhas de lixo cultural. Os tura, em que o imaterial – o espírito, se for “planos de alento cultural contra o vírus” permitido usar a palavra – pode de vez em devem beneficiar a quem? Quem diz que quando aterrissar. Se forem fechando, como sou escritor ou músico e posso receber um fica? A cultura não poderá mais se objetivar. “pixulé” do governo? Eu mesmo? A ideia de Objetificar-se: vai virar virtualidade? valor e qualidade é agora acusada de arcaica Mas o público, pelo menos, esse será o ou reacionária: não se tria mais, ninguém de sempre. Quem sabe. Uma sala de concermais pode avaliar o princípio do “autorizar- tos de música erudita parece um desenho as-se a si próprio” de Lacan – chega de exame sinado pelo Dr. Oetker: só tem cabeça branca. da Ordem dos Psicanalistas! Hoje vale para Os cabeças brancas são alvos prediletos do tudo e todos, e tudo tem direito a ser criado e vírus, carne mole, quase sem músculo, peito mostrado. “A maior parte disso tudo não me aberto, sorriso nos lábios, inocência ingênua diz nada”, escreveu o sociólogo alemão Georg e distraída pairando acima do tempo: voltaSimmel1 numa época em que o problema era rão às salas? Quando? A tempo? E quantos?


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Nietzsche disse: “A arte existe para que a rea- pensa com a própria cabeça, a justiça (para lidade não nos destrua”. Quer dizer: arte não quê?) e, acima de tudo, os custos. Tecnologia é matadouro. Anote isso. existe para diminuir custos, físicos e econô“Depois do vírus, tudo ficará depurado, micos. Ponto. E a tecnologia computacional é só o bom vai sobrar.” Não. Depois do vírus, o paroxismo maquinal. O bem, o bom e o justo tudo se cristaliza ao redor do ruim e do pior. só vencem nos filmes de Hollywood – mesLei universal e eterna da economia política: mo assim, até os anos 1960 e basta, enough is a moeda fraca expulsa a forte do mercado. enough. Nem mesmo isto: até Sansão, na pele (Exige um instante de reflexão.) de Victor Mature, protoavatar de Sylvester A educação a distância expulsa a edu- Stallone, morre no final. Espártaco também. cação da sala e vira o que a educação vem O Ministério de Educação e Pesquisa da Alevirando: treinamento. A inmanha, coisa séria e não apeternet da aula-internet-pra- A Microsoft avisou nas para brasileiro ver, apoia -constar é a grande baixa do seus jornalistas: “Não um programa de interação vírus: e todo mundo faz que precisamos mais de vocês, humano-tecnologia: promonão percebe. O vírus matou a temos o algoritmo aqui, ver inovação em tecnologias carne (a escola real) e a des- ó!”. Está despedindo de realidade mista, realidade carnada (sabem qual é, não?). centenas de jornalistas – virtual e realidade aumentaDe seu lado, ou do mesmo para que esses bípedes da de modo a quebrar o cartel lado, o algoritmo expulsa do inconvenientes? Um do som e da imagem para dar tribunal o juiz – e, junto com significado de inteligência lugar também ao olfato, ao ele, vão o professor e o jor- artificial vem à tona paladar e ao peso. Já pensou nalista. Na primeira semana ver uma cópia remasterizada de junho de 2020 a Microsoft avisou seus de Kanal (1957), obra-prima do cinema pojornalistas: “Não precisamos mais de vocês, lonês, mostrando a resistência antinazista temos o algoritmo aqui, ó!”. A Microsoft, do escondendo-se nos esgotos para escapar da segundo mais rico do mundo e mais amado repressão? Ou assistir a O Farol (2019), hisrico do mundo, Bill Gates, o filantropo (como tória de dois homens cuidando de um farol foi Voltaire deixar escapar esse tema?), está numa ilha deserta e numa casa sem banheiro despedindo agora centenas de jornalistas durante meses, num filme com cheiro, gosto e e editores do Microsoft News e do MSN. A peso? O excelente Willem Dafoe terá morrido empresa tem a inteligência artificial, para até lá? No problem, com o deepfake coloca-se que esses bípedes inconvenientes? Um sig- seu rosto digitalizado em algum corpo à mão nificado de inteligência artificial vem à tona. (mais barato que o original), e esse rosto dirá Quer dizer, o algoritmo diz que expulsa o o que o roteirista quiser com os modos labiais professor, o jornalista, o juiz togado, o operá- de Dafoe e suas tantas rugas marcadas morio – enfim alguma coisa democrática neste vendo-se em consonância, ao mesmo tempo mundo, que bom! Mas detalhe: o que o algo- que seus herdeiros levam algum a mais. Um ritmo expulsa mesmo é o incômodo, o que belo Dafoe safra 2025.

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O vírus pegou firme no coração, no estô- momento: “cultura é boa por natureza”, “tudo mago e no cérebro da vida e do mundo. Quer vai passar”, “assim não dá para continuar”, “a dizer, pegou na cultura – também conhecida inovação é a salvação” – e “gestão da inovapelo nome de economia, saúde, mobilidade, ção” então... Há um bordão mais forte do que educação, política, indústria, racismo, cinis- esses, porém: O vírus somos nós / O vírus, mo, prepotência O vírus já estava aqui, já vi- nossa voz! nha pegando e vai continuar pegando. Em A A vida e o mundo sempre exigiram deMáquina Parou, de E. M. Forster,2 o mundo mais da cultura e da arte, nunca deram nada e a vida vêm abaixo. E nem vírus havia por lá. em troca. Migalhas. Por que seria diferente Nem ditadores inquestionados como Hitler, depois do d.v.? como Stalin, como Mao Tsé-Tung, como..., A esta altura, um espectador levantacomo..., como... Lá, o ditador de plantão -se na plateia, quer falar: “E nós, que não so(sempre há um de plantão, o plantão foi fei- mos artistas, mas apenas turistas acidentais to para isso) é o sistema, da arte e da vida? Nós, os 99%, os quer dizer, o software com A vida e o mundo sempre homens comuns, os here comes seu hardware. Mas o vírus exigiram demais da everybody da vida e do mundo, eram elas mesmas, as pes- cultura e da arte, nunca os homens sem qualidade da soas – com sua complacên- deram nada em troca. vida e do mundo, a massa, os cia, sua indigência mental Migalhas. Por que seria essenciais não essenciais, o que e emocional, seus corpos diferente depois do d.v.? a vida e o mundo nos dão agora? abolidos, seus conformisQual é o nosso d.v.?”. Um outro mos (são sempre mais de um, como no filme ergueu um cartaz: “A VACINA VEM AÍ / quase homônimo de Bertolucci),3 dando-se TUDO SERÁ DIFERENTE / TUDO SERÁ sem parar palestras umas às outras pela in- COMO ANTES!”. ternet com toda a sua ignorância novinha em Olhei de volta para eles e depois olhei folha, o tempo todo impedindo a entrada de em volta. “Burnt Norton”4 voltou à cabeça: qualquer pensamento original ou próprio na “Não fosse pelo ponto morto do mundo que cabeça. Repetir e repetir sempre tudo que já gira / Não haveria dança, e só a dança exisfoi dito e pensado, entoando os bordões do te...”. Pois.


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Teixeira Coelho Coordena um grupo de estudos sobre humanidades computacionais no Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (IEA/USP). Seus livros mais recentes são eCultura: a utopia final (ensaio em e-book sobre a cultura eletrônica e as humanidades) e Puro gesto (Iluminuras, 2019).

Notas 1

A Tragédia da Cultura, de Georg Simmel, a ser lançado pela coleção Os Livros do Observatório (data a ser definida).

2

Disponível em: <https://issuu.com/itaucultural/docs/a_m_quina_parou>. Acesso em: 21 jul. 2020.

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O Conformista (1970), de Bernardo Bertolucci.

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Poema da obra Quatro Quartetos, de T. S. Eliot.

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INTERATIVISMO E O PAPEL DAS ARTES E DA CULTURA NA AMPLIAÇÃO DO IMAGINÁRIO Jonaya de Castro

A transição do imaginário passa pelo interativismo, um conceito que vai além das possibilidades de interação de curtidas, comentários e compartilhamentos nas redes sociais. Interativismo como interação entre artistas e ativistas por meio da cultura, compartilhando espaços, tempos e audiências com o objetivo de expandir o imaginário de seus públicos. A maior live do planeta com o ministro menos escutado, conversas para adiar o fim do mundo e aula de política com funk são os casos estudados de interativismo durante a pandemia no Brasil.

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nquanto artistas e ativistas de à crise climática mundial. Neste momento diversas causas lutam pela vida histórico, nosso imaginário está em dispue pela democracia no planeta, a ta. Enquanto este artigo está sendo escrito, América Latina, território já morreram no Brasil mais 30 afogado de desigualdades es- O ativismo seria mil pessoas na pandemia do tabelecidas há mais de 500 a mudança, o novo coronavírus. Em dez dias, empírico, a alteração anos, agora acelera seu genoo número de mortos foi atualizacídio pela crise climática e pela do comportamento do três vezes. Quando este texto covid-19. Qual o papel da arte e não apenas a for publicado, quantos mortos e da cultura na transição des- reflexão teórica teremos? São mortos ou são se mundo “anormal” para um sobre a temática assassinatos pela negligência mundo “fantástico”? do Estado? Somos o segundo São a arte e a cultura que mantêm o re- país do mundo no número de mortos pela gistro das memórias. Genocídios indígenas, covid-19, ficando atrás apenas dos Estados navios negreiros, calabouços da ditadura Unidos. Temos em comum dois presidentes militar e, agora, resistências à pandemia e obscurantistas que negam a ciência.


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A transição do imaginário passa pelo interativismo.1 Vou assumir aqui um conceito que vai além das possibilidades de interação de curtidas, comentários e compartilhamentos nas redes sociais. Trato do interativismo como interação entre artistas e ativistas por meio da cultura, compartilhando espaços, tempos e audiências com o objetivo de expandir o imaginário de seus públicos. São necessárias algumas ressalvas sobre o que é ativismo? Ativismo significa defender algo… uma argumentação que privilegie a prática efetiva de transformação da realidade em detrimento da atividade exclusivamente especulativa.2

Então, o ativismo seria a mudança, o empírico, a alteração do comportamento e não apenas a reflexão teórica sobre a temática. Sendo uma das ações da cultura a alteração da consciência, o convite para a reflexão, a interação com os ativistas se torna o ativismo em si mesmo. 8 de abril de 2020 A maior live do planeta com o ministro menos escutado O comportamento mais solicitado pela Organização Mundial da Saúde (OMS) durante a quarentena é o isolamento físico. Com as pessoas em casa, as lives dos artistas se tornaram um fenômeno em um período de pandemia e distanciamento social em todo o mundo. No Brasil, contrariamente a todos os outros países, o presidente da República, Jair Bolsonaro, estimulava as pessoas a saírem às ruas e tratou a pandemia como sendo apenas

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uma “gripezinha”. Enquanto a disputa de narrativa entre o presidente inconsequente e a OMS se dava em jornais impressos e televisionados e em fake news sendo distribuídas por grupos de WhatsApp, os shows ao vivo e on-line se popularizaram, e o país conquistou o ranking mundial de picos de audiência em lives no YouTube. A líder foi Marília Mendonça, que chegou a ter 3,3 milhões de espectadores simultâneos. O primeiro caso de interativismo que vamos observar acontece entre uma artista pop, Marília Mendonça, e o ex-ministro da Saúde do Brasil Luiz Henrique Mandetta. Marília Mendonça, artista da cultura sertaneja, popularmente conhecida como da categoria musical afetiva “sofrência”, convidou o ex-ministro Mandetta para uma participação em vídeo (gravado anteriormente) em sua live, que foi transmitida diretamente da sala da casa da artista. Em sua participação, Mandetta diz: “Você gosta do contato com sua plateia e deve estar sentindo muita falta dela, mas saiba que nós, como fãs de seu trabalho, ficamos mais fãs aqui no Ministério da Saúde por você fazer [esta live] e não aglomerar pessoas”. Na fala do ex-ministro foram divulgados números de mortes e de infectados pelo novo coronavírus e as próximas ações do governo. Mandetta deixou o cargo dias depois. Hoje, a live conta com mais de 54 milhões de visualizações.3 8 de abril de 2020 Ideias para adiar o fim do mundo “Tomara que não voltemos à normalidade, pois se voltarmos é porque não valeu nada a morte de milhares de pessoas no mundo inteiro.” Ailton Krenak, recolhido

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em sua aldeia no Rio Doce, participou de 5 de maio de 2020 mais de 15 lives desde o início da pande- A aula de política com funk mia no Brasil, em meados de março. Os Quando eu busco “Anitta live” no Google, canais são variados: universidades, Insta- a próxima palavra sugerida é “política”. A gram de artistas e intelectuais, festivais e cantora pop mais famosa do Brasil, Larissa canais de jornalismo – a live no canal do de Macedo Machado, mais conhecida pelo The Intercept Brasil, em 8 de abril, teve nome artístico Anitta, convidou a amiga Ga45 mil visualizações.4 Krenak, escritor e briela Prioli, jornalista, para uma conversa liderança indígena, já é bastante conhe- sobre política. O vídeo começa com Gabriela cido por seu livro Ideias para Adiar o Fim dizendo: “Olá, eu ainda fico com vergonha de do Mundo (Companhia das Letras, 2019). ter tanta gente”. Anitta tem 47,2 milhões de Neste ano, lançou O Amanhã Não Está à seguidores em seu perfil do Instagram e sua Venda,5 disponível gratuitaprimeira live de política, com mente na internet, no qual “A minha sugestão é duração de aproximadamentraz reflexões sobre a pan- muito difícil de colocar te uma hora, teve mais de 4 demia mundial da covid-19 em prática. Teríamos de milhões de visualizações. e declara a emergência de o parar todas as atividades No canal de Gabriela coletivo humano repensar humanas que incidem Prioli no YouTube são mais sua relação com a natureza. sobre o corpo do rio, de 500 mil visualizações da Um trecho específico a cem quilômetros aula,6 e outras milhares nos convida a uma transição do nas margens direita e diversos canais em que o vínosso imaginário: esquerda, até que ele deo continua sendo postado. voltasse a ter vida” A cantora pop cria um espaQuando engenheiros me ço de imaginação política disseram que iriam usar a tecnologia para até então improvável em seus canais. “Eu recuperar o rio Doce, perguntaram a minha estou pensando há muito tempo em propor opinião. Eu respondi: “A minha sugestão é um novo tipo de professor. É um professor muito difícil de colocar em prática. Pois te- que não ensina nada, não é professor de ríamos de parar todas as atividades huma- matemática, de história, de geografia. É um nas que incidem sobre o corpo do rio, a cem professor de espantos. O objetivo da educaquilômetros nas margens direita e esquer- ção não é ensinar coisas, porque as coisas já da, até que ele voltasse a ter vida”. Então um estão na internet, estão nos livros e estão deles me disse: “Mas isso é impossível”. O por todos os lugares”, diz o educador Rubem mundo não pode parar. E o mundo parou. Alves. “O professor deve ensinar a pensar, criar na criança essa curiosidade.” Anitta se São incontáveis as lives e os vídeos dos torna ao mesmo tempo aluna e professora, quais Krenak é convidado a participar, e suas compartilhando seu espaço de influencer palavras estão sendo distribuídas como pó- para uma das causas mais urgentes do Bralen interativista. sil, a democracia. Além disso, juntas, ela e


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Gabriela Prioli valorizam e inspiram mulheres a ocuparem a política, num cenário em que se tem apenas 77 deputadas federais mulheres entre as 513 cadeiras legislativas no Congresso Nacional. 30 de maio de 2020 Vinte anos de samba em 60 lives Teresa Cristina, desde o início da quarentena, começou a fazer lives diárias no Instagram. São aproximadamente três horas por dia, todos os dias. Sambista, mulher, negra, moradora do Rio de Janeiro, agora ela é também “a rainha das lives no Insta”.7 Começando com 300 visualizações, chegou a ter 7,5 mil pessoas assistindo simultaneamente. Foi nesse cenário que Teresa conseguiu o primeiro patrocínio da carreira de mais de 20 anos. Na plateia das lives, aparecem às vezes personalidades que são convidadas a entrar ao vivo: Caetano, Gal, Preta Gil e Anitta já deram uma palhinha. Mas Teresa Cristina não canta sozinha. No dia 30 de maio, convidou a poeta e rapper mineira Laura Conceição,8 que declamou sua poesia “Tropicália” e ampliou, assim, a audiência: “Não bastasse essa luta O sangue e a labuta E toda nossa conquista O passado não serve mais Quem não sente não vê, Elis Foram eles, foram eles O bêbado e o economista Gente, é que tá tudo interligado, entende? O seu mau humor e o seu mapa astral O mundo da carne e o espiritual Isso aqui é o Sense8 da vida real

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O comentário machista do chefe O golpe de Estado em Dilma Rousseff E aquele assédio na internet A barata na vagina das mulheres no DOI-Codi A indústria que é barata, Que machuca, dói e fode A fumaça do cigarro da arrogância do empresário A arrogância da fumaça que dá vida ao embrionário Sua arrogância que te fez querer uma TV e uma Ferrari A ignorância que te faz querer chamar de feminazi As mulheres que só querem igualdade de direitos Damos vida pela buceta e o alimento pelo peito Damos vida a todo mundo e não merecemos respeito?”

3 de junho de 2020 O ator e a filósofa Djamila Ribeiro,9 filósofa e ativista, é convidada pelo ator e humorista Paulo Gustavo10 a ocupar sua conta no Instagram e interagir com a audiência. “Bom dia! Ainda processando o que foi ontem, gostaria de compartilhar com vocês essa notícia histórica: o querido Paulo Gustavo, entendendo lugar de fala como uma postura ética, numa atitude, arrisco dizer, inédita neste país, convidou-me para ocupar sua página, com mais de 13 milhões de seguidores, pelo mês de junho. Lá, compartilharei com vocês vídeos sobre relações raciais, dialogando com quem vem se conscientizando, bem como trazendo para reflexão parte de um público que ainda

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não é acostumado com o tema. Nos vídeos, apresentarei autoras e autores que vêm falando sobre esses temas, bem como iniciativas importantes. Só tenho a agradecer a Paulo Gustavo por esse posicionamento consciente. Lugar de fala é isso: como eu, do meu lugar social, posso impactar para a equidade do grupo em condições sociais desfavorecidas? A ação de Paulo Gustavo nos convoca a novas possibilidades. Espero vocês lá! ”, escreveu Djamila. Nos comentários, Teresa Cristina comemora: “Que atitude linda!!!!!!! ”. Assim, o interativismo é uma proposta de diversas combinações possíveis entre o

fazer artístico e cultural e as pautas urgentes, que, por meio do uso da criatividade, amplia a consciência e a discussão dessas pautas. A transição do “anormal” contemporâneo para esse mundo “fantástico” obviamente não vai acontecer de um dia para o outro. Aliás, poderemos sair da pandemia em situações muito piores. A crise climática mundial é a pauta que mais exigirá esforços criativos e de imaginação política para superarmos todos os obstáculos que existem. Mas há uma potência de transformação na confluência de ativismos com a cultura, ou seja, no interativismo, que desperta a esperança na transição do imaginário.


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Jonaya de Castro Artista, gestora cultural e organizadora de laboratórios interativistas. Remixou várias ideias, notícias, comentários e lives para a construção deste artigo.

Notas 1

Ver: <http://labexperimental.org/interativismo>. Acesso em: 14 jun. 2020.

2

Retirado de: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Ativismo>. Acesso em: 14 jun. 2020.

3

Assista em: <https://www.youtube.com/watch?v=s-aScZtOfbM>. Acesso em: 14 jun. 2020.

4

Assista em: <https://www.youtube.com/watch?v=6XoRg3nj1Ws>. Acesso em: 14 jun. 2020.

5

Disponível em: <https://jornalistaslivres.org/ailton-krenak-o-amanha-nao-estaa-venda/>. Acesso em: 14 jun. 2020.

6

Assista em: <https://youtu.be/izJj4fkajPs>. Acesso em: 14 jun. 2020.

7

Ver: <https://www.instagram.com/teresacristinaoficial/>. Acesso em: 14 jun. 2020.

8

Ver: <https://www.instagram.com/lauraconceicao10/>. Acesso em: 14 jun. 2020.

9

Ver: <https://www.instagram.com/djamilaribeiro1/>. Acesso em: 14 jun. 2020.

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Ver: <https://www.instagram.com/paulogustavo31/>. Acesso em: 14 jun. 2020.

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O CORPO QUE DANÇA E CANTA Sandra Benites Guarani Nhandewa

A produção do conhecimento por meio do corpo serve como palco ao saber dos ancestrais. O centro das atenções são movimentos – gestos, tom da voz e expressão – repassados de geração para geração por meio da oralidade. O que vai moldando os corpos são os movimentos da dança – djeroky – e do canto – porahei ou mborai. Há a dança dos guerreiros – ywyra’idja – e a dança das mulheres, com todas de mãos dadas – djeroky syryry.

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este pequeno texto pretendo abor- ponto de vista da origem do mundo, e cada dar a tradução da palavra arandu etnia tem seu jeito próprio de produzir sa– o saber que se refere ao conheci- ber. Mas, de certa forma, todos os indígenas mento indígena de modo geral, mas tenta- têm pensamentos semelhantes quando se rei focar o saber Guarani. Assim, pretendo trata de território, os corpos que se molpontuar a discussão sobre o corpo que can- dam estão associados aos valores morais e ta e o corpo que dança, que à ética. O saber arandu está está relacionada a um corpo Não deveria revelar esse ligado diretamente a todas rari, corpo saudável, corpo tipo de conhecimento, as fases da vida e também kyre’yn. Para os indígenas, deveria mantê-lo em aos elementos da natureza – essa discussão fundamen- segredo, mas a necessidade essas fases se desenvolvem ta o corpo ideal. Santos do compartilhamento por meio do uso do corpo e indígenas. A existência e a tem por objetivo ir ao têm como referência os esresistência das populações encontro do outro, para píritos da natureza. indígenas permaneceram que ele possa se tornar Por minha experiência fortes mesmo sendo aba- nosso parceiro e ponte para como palestrante e pesquifadas pela sociedade brasi- viabilizar o diálogo sadora, posso partilhar a leira. Os saberes indígenas minha versão e perceber, silenciados não têm como contribuir para com essa escrita de narrativa, que existe outras sociedades. Por isso, pretendo ex- um saber dos Guarani de que as pessoas têm plicar a relevância do nosso saber para que total desconhecimento. Aqui, portanto, elas possa ser compartilhado. terão oportunidade de acessar o nosso modo De modo geral, todos os indígenas têm de pensar. A frase “o corpo que dança e o conhecimento que contribui para que a so- corpo que canta” será explicada por partes, ciedade seja mais justa e democrática. Cada na tentativa de traduzir a importância da grupo produz conhecimento a partir de seu sabedoria oral.


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Desse modo, os processos de ensino e de aprendizagem específicos, ligados ao corpo, são compreendidos como fases da vida. Cada Guarani tem seu processo íntimo de produzir o arandu. Um dos primeiros ritos de passagem seria – traduzido para o português – o da puberdade, período que entendemos como momento de transição, em que devemos dar mais atenção a cada pessoa Guarani. Eu não deveria revelar esse tipo de conhecimento, deveria mantê-lo em segredo, mas a necessidade do compartilhamento tem por objetivo ir ao encontro do outro, para que ele possa se tornar nosso parceiro e ponte para viabilizar o diálogo. Inicio a minha escrita a partir da minha visão de mundo como mulher Guarani. Por ser pesquisadora, pude perceber que a produção de conhecimento requer situar seu corpo em atividades específicas, em situações diferentes, e essa orientação vem como norteadora de nossa ancestralidade. A produção do conhecimento por meio do corpo serve como palco ao saber dos ancestrais, porque, neste momento, o centro das atenções são movimentos, gestos, tom da voz e expressão – controlados o tempo todo. Esses movimentos são repassados de geração para geração por meio da oralidade, como djeroky (dança) e porahei ou mborai (canto). O que vai moldando os corpos são os movimentos da dança e do canto. Existem diferentes formas de cantar e dançar, como ywyra’idja (dança dos guerreiros) e djeroky syryry, ou dança do tangará (dança das mulheres, com todas de mãos dadas). A dança que faz movimento mongu’e é praticada não apenas para que o Guarani se movimente ou tenha um corpo leve, mas

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para que aprenda a ter um corpo rari, arisco. É um movimento bruto para saber se esquivar das coisas que forem encontradas no caminho futuramente. Segundo o saber do povo Guarani, devemos preparar o corpo para se esquivar ouvindo, sentindo, cheirando as coisas que estão em nosso entorno. Saber enxergar longe, saber escutar longe requer muito treinamento. E esses treinos são praticados durante os ritos de passagem e por meio da dança e do canto. Esquivar-se também significa aprender a pisar leve e a ser corajoso quando se deparar com algo que não é bom. Saber sair de qualquer situação. Existem diferenças entre as danças dos homens e as das mulheres, porque há danças de que as mulheres não participam, embora estejam sempre junto com os homens, cantando e se movimentando. Um exemplo é a ywyra’idja (dança dos guerreiros), na qual os homens fazem os movimentos com muita tensão. Essa dança dá a ideia de judiar do corpo, para que o homem tenha um corpo tolerante, para que aprenda a falar em tom de voz baixo. A ideia de pisar leve tem a ver com a prática das atividades do dia a dia. Os mais velhos acreditam que o que leva a ter controle sobre o corpo e as emoções está associado ao sangue. Nós, Guarani, entendemos que o sangue quente dos homens pode causar dificuldade de ter equilíbrio no momento de um abalo emocional. Por isso, se não tiver controle sobre o seu sangue quente, pode ser perigoso para outra pessoa. A dança ywyra’idja (dança dos guerreiros), então, serve para produzir esse corpo, além de estar ligada à questão do sagrado, às questões políticas internas e às questões estéticas.

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O tempo todo o movimento do corpo está relacionado com a coletividade. O movimento de que falo é um processo que vem da sabedoria ancestral do coletivo, é um processo de ensino com apoio das comunidades, como plantar, caçar, pescar, fazer casas. Por isso é preciso seguir o saber apontado pelas pessoas mais velhas das comunidades, porque são elas que apontam o caminho. A esses sábios damos o nome de arquivos vivos, pois guardam a nossa sabedoria.

cachoeiras e as pedras. Quando há desmatamento, quando é produzida outra coisa no lugar desses elementos, significa desrespeitar todos os idjara. Não faria mais sentido para a vida indígena se um dia não houver mais esses elementos em volta. Diria que impactar a natureza também é impactar a vida e o conhecimento das populações indígenas. Geralmente, os homens têm mais contato com esse tipo de atividade e com a natureza durante o período de produzir o saber. Já as meninas têm movimento oposAprende-se fazendo através to, ficam mais no silêncio e em lugar calmo, da sabedoria oral e devem permanecer no resguardo. Devem Essas narrativas explicam a origem do nhan- ficar em um lugar específico, onde haja sidereko, o nosso modo de ser, de viver e de ver lêncio, para não perturbar a cabeça, para o mundo. Os conselhos que seguique o sangue não suba à cabeça mos são transmitidos na opy (casa Impactar a – é superimportante manter o de reza), no espaço de reunião, no natureza também corpo em um espaço tranquilo, espaço familiar, nas escolas du- é impactar a vida principalmente em cada ciclo rante o trabalho em equipe. Os e o conhecimento menstrual. Assim, ela deve setamõi kuery e djaryi kuery, nossas das populações guir o mesmo ritmo de resguaravós e nossos avôs, sempre convi- indígenas do toda vez que menstrua, não mexer em coisa quente, não se dam os rapazes e as meninas mais jovens para as atividades em equipe, para estressar nem comer qualquer alimento ouvir e praticar seus saberes. Há atividades salgado, doce ou muito gorduroso. específicas para meninos e meninas, depenNa primeira menstruação a menina fica dendo do ciclo de vida. Os meninos devem reclusa durante três meses, porque, segundo aprender a construir casas, a plantar na fase as mulheres mais velhas, quando não se rescerta da Lua, a retirar madeiras. peita o ciclo menstrual pode haver queda de Aprender a conversar com o espírito da cabelo, perda de memória muito cedo, fraginatureza significa pedir para o idjara, para o lidade emocional, raiva e estresse. espírito da árvore, quando for retirá-la. Para Durante o resguardo, a menina sempre nós, Guarani, todas as coisas, humanas ou faz coisas mais leves, como tecer akã regua, não, têm espírito idjara. É por isso que há uma espécie de cocar para uso em momencanto e dança para pedir para o idjara da to de ritual. Ele é feito de sementes capi’i’á, caça quando vai caçar, pedir para o idjara conhecidas como contas de lágrimas. São sedos peixes quando vai pescar. As nascentes mentes que já foram retiradas dos pés. Tecer de água também têm idjara, assim como as adjaka, cesto com grafismo, também é tarefa


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das meninas, mas o trabalho de ir buscar as É uma forma de superar qualquer abalo sementes ou colhê-las em seu habitat com- emocional e ter controle da situação que houpete aos meninos. ver diante dele. O universo indígena é muito No período de reclusão da primeira complexo, mas estou relatando uma parte menstruação, as meninas usam pintura de que tenho domínio. Acredito que a minha para marcar o corpo – entendemos que isso contribuição serve como um encontro, uma serve como uma proteção de todos os senti- conversa, com as instituições culturais. Esdos, como uma proteção simbólica de todos tou falando do corpo que dança e do corpo que os âmbitos dos seres humanos ou não. Elas canta Guarani, estou falando como é um corpo não podem ter perturbação, coisas que po- saudável para um indígena. Como são impordem causar dor de cabeça ou aborrecimentos tantes os elementos da natureza. Existem diversas maneiras de fortalecer e de conhecer durante esse período. Por essa razão, não é bom que haja muitas seu lugar de fala, mas isso requer escuta do pessoas ao redor das meninas. As avós sempre outro lado, como já mencionei anteriormente. Todos os indígenas falam da impornos aconselham, pois esse é o momento de cuidar da nossa cabeça, do nosso corpo, para evitar tância de preservar a memória ancestral que está relacionada com os sepegar doença quando não poA minha contribuição res da terra – humanos e não deríamos ficar expostas a sol, serve como um encontro, humanos. Sem essa memófrio e vento. ria ancestral não podemos Embora as meninas uma conversa, com as tenham outro ritmo de vida, instituições culturais. Estou produzir nosso conhecimento, como peças sagraparticipam das cerimônias falando do corpo que de festa ou quando as crian- dança e do corpo que canta das, máscaras, cerâmicas, pintura corporal, cestaria, ças Guarani vão receber seu Guarani, estou falando plumagem, que é compartinome, porque são encontros como é um corpo saudável lhado coletivamente. para um indígena grandes, importantes. Não há, porém, como Como disse antes, o saber é uma articulação interna da comunidade não centrar meu pensamento no eixo prinque produz conhecimento de diversas ma- cipal da questão territorial, porque a quesneiras de organização, por meio da interação tão cultural é conceito indissociável da terra. com seu contexto territorial e com o intuito Ywy rupa é um elemento essencial à prática de preservar a espiritualidade e o espírito da dos modos de vida para que as culturas esnatureza. Pensando nisso, não pude deixar de tejam profundamente integradas e impregrelacionar o corpo indígena com a terra. Os nadas de natureza, florestas, águas, plantas, indígenas praticam dança e canto em qual- animais, alimentos, dos espíritos que a poquer situação, como, por exemplo, para pedir voam, dos espíritos protetores que se inteaos guardiões dos animais e das florestas no gram aos rituais, às formas específicas de ser momento sagrado, no momento de festa ou dos diversos povos, e que colaboram essencialmente na definição de suas identidades. até mesmo no momento de conflito.

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Terra não é entendida por nós, indíge- de vida indígena contemporâneos e do papel nas de modo geral, como uma propriedade que podem ter na discussão de saídas para a com um conjunto de recursos materiais a se- crise profunda da sociedade ocidental, que rem explorados. Ao contrário, pedimos aos coloca em questão o próprio equilíbrio da idjara kuery porque temos muito medo de vida no ywy rupa, no planeta Terra, de que é brincar com os espíritos da natureza. A terra exemplo o momento que estamos vivendo, a tem um sentido para a nossa sobrevivência. pandemia da covid-19. A identidade e a terra estão diretaDesde a colonização, os movimentos mente conectadas e articuladas, para que indígenas contemporâneos são organizados se construam conjuntamente. Essa é uma com a intenção de buscar parceria por meio questão crucial para entendermos como o de suas lideranças, que se apresentam de movimento indígena se articula hoje, qual diversas maneiras. São professores, artistas é o papel dos agentes artistas indígenas que e intelectuais, além daqueles que estão em sempre procuram expressuas aldeias e que lideram sar seu conhecimento por A cultura se alimenta das suas comunidades. Por isso, meio da imagem que pin- línguas maternas, dos reivindicam que os processos tam, do canto que cantam processos de educação, e os espaços que se referem e dos corpos que dançam, dos rituais, dos mitos de às suas realidades sejam, porque a diferença não se origem, que sempre se no mínimo, construídos a dá apenas na forma de fa- referem, de alguma forma, partir de olhares indígenas. zer arte. Como as pinturas, aos territórios “destinados” Essa atitude representa cona performance ocorre, so- pelas crenças e pelos deuses ceitualmente a tentativa de bretudo, em função dos va- de cada povo indígena ruptura com a perspectiva lores e das visões de mundo colonialista – sobretudo o peculiares aos povos indígenas. apagamento das populações indígenas braA cultura se alimenta das línguas mater- sileiras. Deve ser a projeção de princípios nas, dos processos de educação, dos rituais, descolonizadores, que precisam ser consdos mitos de origem, que sempre se referem, truídos a partir das concepções de mundo de alguma forma, aos territórios “destinados” e das práticas próprias dos povos indígenas. pelas crenças e pelos deuses de cada povo inEntendemos que esses princípios têm dígena. Nesse sentido, o reconhecimento e marcado os projetos desenvolvidos e reprea prática desse discurso se contrapõem ao sentam, na prática, uma postura de inovadiscurso dominante, que questiona por que ção e reconhecimento da necessidade de há “tanta terra para tão poucos índios”. A pro- construção de diálogos com pressupostos posição de um projeto centrado no tema do descolonizadores. Por isso, é relevante que papel do território abre muitas possibilida- as instituições divulguem ou usem como des de criação de dinâmicas e atividades que, exemplos as vozes indígenas como protano conjunto, poderão apresentar um palco gonistas. As exposições nos espaços cultuda originalidade e da diversidade dos modos rais devem servir como mecanismo para dar


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visibilidade e tornar viável que os indígenas sejam instrumentos de fortalecimento do processo de concepção e realização de qualquer evento de que participem. Devem desde ter ativistas indígenas na curadoria – que representarão o ponto de vista indígena, incluindo seu olhar do feminino – até convidá-los para conversar sobre a concepção da exposição. A participação de artistas indígenas permitirá que nossos conceitos, nossos elementos simbólicos, materiais e imateriais, definam o formato e a dinâmica da exposição, das divulgações, dos debates e das reflexões sobre questões indígenas. Entrevistas e registros audiovisuais e fotográficos de aspectos relevantes da cultura material e imaterial das etnias podem ser selecionados por eles mesmos, de modo a querer revelar nossos conceitos para a sociedade. Haverá peças representativas da cultura material da comunidade e também identificação de lideranças, cuja presença em rodas de conversa e encontros é extremamente importante. É muito relevante a escuta do que temos a dizer a partir do recorte proposto também. Esta indígena destaca as mulheres à condição de guias espirituais/pajés, alterando tradições e ressignificando o papel dos indígenas nos contextos comunitários.

Sandra Benites Guarani Nhandewa

Sandra Benites Guarani Nhandewa Professora de filosofia e história formada no curso Licenciatura Intercultural Indígena do Sul da Mata Atlântica pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Atuou como professora de crianças Guarani por oito anos em Três Palmeiras, no município de Aracruz (ES). Curadora-adjunta do Museu de Arte de São Paulo (Masp), é mestra em antropologia social pelo Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e doutoranda na mesma instituição.

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O CURADOR COMO SISMÓGRAFO DO SOFRIMENTO: A GESTÃO CULTURAL ENTRE EXPRESSÃO, REPRESENTAÇÃO E ACONTECIMENTO Christian Ingo Lenz Dunker

Propõe-se que a noção de curadoria pode acrescentar ao seu campo semântico e prático o conceito de cura, tal qual se apresenta na psicanálise. O curador pode ser concebido, nessa acepção, como uma função de escuta, enquadre e designação do sofrimento psíquico. Reúnem-se aqui as dimensões expressiva, representativa e acontecimental da arte, não apenas em seu aspecto de produção, mas também no de recepção. O artigo expõe tal tese por meio de experimento mental com base na construção conjectural de uma máquina de registro do sofrimento humano. A partir disso, aplica-se a hipótese à experiência da pandemia de covid-19 em 2020 e como ela poderia ser captada por seus sismógrafos sociais do sofrimento.

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erremotos são a expressão de pequenos movimentos nas profundidades da terra. Eles podem produzir efeitos massivos a centenas de quilômetros de onde foram efetivamente causados. Isso ocorre porque, entre a superfície e seu ponto gerador subterrâneo, existem inúmeras camadas de mediação e deformação. Lembremos: celacanto gera maremoto. Se maremotos podem ser produzidos por esses peixes pré-históricos, com seus pequenos movimentos subterrâneos, quem poderia captar tais pequenos movimentos? E de que modo eles seriam apreendidos? Se tivéssemos que inventar uma máquina imaginária para captar o impacto de experiências de sofrimento, como seria esse instrumento?

Um aparato tal deveria ser capaz de circunscrever a relatividade imanente da experiência de sofrimento. Teóricos sociais afirmarão que o sofrimento coercitivo para uma cultura será intolerável em outra. Sintomas raros, reservados a certos indivíduos excepcionais, tornam-se normalopáticos no curso da história. Há formas de sofrimento que são compulsórias e universais, como a dor e a morte, ao passo que há outras maneiras de sofrer que são contingentes, meramente possíveis para uns e impossíveis para outros. Há ainda sofrimentos inéditos, como a pandemia de 2020. Diferentemente dos terremotos, que nos fazem fugir para as ruas, ou dos maremotos, que nos obrigam a procurar terra firme, o novo coronavírus nos tornou refugiados em nossas próprias moradas. Perda, medo e


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angústia concorreram para criar uma nova outro registro de experiência. O sofrimento partilha entre público e privado, outra con- não se reduz a afetos de desprazer, vividos formação de intimidade e uma experiência na captação singular da vida de um sujeito, de sofrimento sem precedente. nem à sua expressão na gramática mais ou Uma característica ontológica do sofri- menos restrita e particular das emoções. mento, que o distingue da dor e do desprazer, é Afetos, emoções e sentimentos são como que ele se transforma segundo o modo de sua causas, motivos e razões, apresentam-se corexpressão e representação. O sofrimento que rentemente como sinônimos, mas se diferem se exprime coletivamente é diferente daquele como um celacanto de um maremoto. que se silencia em solidão. O sofrimento que Há, portanto, uma partilha social do sose representa, para si mesmo e para os outros, frimento em direção análoga advogada pelo transforma-se em seu próprio processo de filósofo francês Rancière2 sobre a existência apresentação. Formas universais de sofrimen- de um inconsciente estético, com base na parto, derivadas, para Freud, da imperfeição es- tilha do sensível. Um certo modo de produção trutural de nossas leis ou da finitude de nossos do comum que associa política e estética, ao corpos, serão experimentadas qual propomos acrescentar de maneira distinta por pessoas Perda, medo e angústia o sofrimento como categoria distintas, fazendo com que o in- concorreram para criar intermediária. Na geografia tolerável para um seja a natureza uma nova partilha clássica, tal partilha pode da vida para outro. Ainda assim, entre público e privado, envolver signos mudos (pamodalidades de sofrimentos outra conformação lavras), simulacros de cena subordinam-se ao modo como de intimidade e uma (teatro) e movimentos auo sujeito relaciona-se com o seu experiência de sofrimento tênticos (mundo). Esse camdesejo, consequentemente com sem precedente po heterogêneo, formado por seus sintomas, com sua angústia palavras, teatro e mundo, não ou com suas estratégias de inibição.1 se encontra exatamente assim em Rancière, A segunda grande dificuldade para a mas assim adapto para se aproximar de uma construção de nossa máquina de captação distinção menos conhecida, proposta por Lado sofrimento é o fato de que ela deveria can em sua abordagem desse afeto matricial apresentar seus resultados em algum tipo de do sofrimento que é a angústia: registro. Isso tornaria comensurável a ampla relatividade de nossas formas de sofrimento. Todas as coisas do mundo vêm a colocarPoderíamos deduzir escalas de sofrimento -se em cena segundo leis do significante, a partir de formas de prazer, mas isso acarleis que de modo algum podemos tomar de retaria reduzir o sofrimento ao desprazer imediato como homogêneas às do mundo. ou à dor, deixando de lado, por exemplo, [...] Portanto, primeiro tempo, o mundo. experiências de desrespeito e humilhação, Segundo tempo, o palco em que fazemos indiferença ou segregação, que, ainda que a montagem deste mundo. O palco é a disejam desprazerosas, parecem remeter a mensão da história.3

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O terceiro momento corresponde aos restos do mundo, que aparecem no palco. O momento da angústia marcado pelo conflito de juízos, entre a verdade e o real. O fulcro do sofrimento moderno parece ordenado pela confusão entre familiar e estranho, próximo e distante. Nele, o que deveria permanecer oculto é subitamente revelado, conforme o paradigma do novo. Há sofrimentos que emergem pela indeterminação dessas fronteiras, e há outros que emergem da excessiva determinação de seus litorais. Nos dois casos, o sofrimento tem estrutura de ficção, pois demanda reconhecimento de uma verdade que não pode ser dita por inteiro. O palco corresponde, basicamente, a essa função de enquadre do sofrimento. Nele, temos o lugar de onde se vê, o ponto de vista de onde a imagem se forma para um determinado sujeito, e também o ponto de indeterminação de um objeto. Ora, a tese de Lacan é de que, nesse plano de enquadre, nesse palco do mundo, emerge um objeto cuja característica maior é de não ser perfeitamente representável. Sua emergência equivale ao que Freud descreveu por meio da expressão unheimlich,4 ou seja, o familiar-estranho que é localizável no interior de uma ficção. O palco corresponde às condições de produção do objeto: o real da luz, os significantes simbólicos que o organizam e a sua distância imaginária para o espectador. Tais condições precisam encontrar uma unidade, como três anéis entrelaçados em forma de nó borromeano, eventualmente com um quarto, localizável como rastro de sublimação, atividade do sinthoma ou obra. Contudo, é face expressiva do sofrimento e não diz muito sobre o plano

representativo, ou do que Lacan chamou de estrutura significante, heterogênea ao mundo. Nossa máquina conjectural deveria ser capaz de detectar alterações nos modos pelos quais o sofrimento ganha representação e reconhecimento, virtualmente por uma rede de instituições e discursos. Nossa máquina deve ser capaz de enquadrar situações de sofrimento, preservando a descontinuidade entre palco e mundo e também entre produção e recepção. Nossa máquina deve comportar-se tanto como um aparelho fotográfico, uma câmera clara ou escura, capaz de captar a lógica de produção de um objeto, quanto como um sistema de valorização diferencial e de comparação histórica desse objeto no contexto de um complexo de trocas simbólicas maior do que ele mesmo. Além do mundo e do palco, nossa máquina deve ser capaz de detectar a emergência dos restos. Esse acontecimento ou evento é algo definido por sua estrutura temporal de corte e transformação. A psicanálise explorou alguns exemplos recorrentes de como certos acontecimentos podem gerar transformações ou sintomas cuja estrutura é a descontinuidade. O trauma é uma forma típica de nos referirmos à emergência de um acontecimento que ultrapassa nossa capacidade de tramitação simbólica e de imaginarização psíquica. O luto é um outro exemplo de como mobilizamos um trabalho para nos transformar diante de uma descontinuidade que acontece no mundo. O sonho também é outro desses processos pelos quais elaboramos a descontinuidade entre sono e vigília. Finalmente, as experiências de repetição compõem um quarto agrupamento de exemplos em torno de como o acontecimento em


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psicanálise pode dar ensejo a uma espécie de porque cuidam de objetos-acontecimento tramitação do sofrimento. Em todos os casos, em uma linguagem que ainda não nos é ina psicanálise supõe que o sofrimento expres- teiramente acessível ou legível, porque ainda so e representado no sintoma é também uma não existe um mundo para ela. Cientistas como John Milne (1850demanda de reconhecimento. Como toda de-1913), James Alfred Ewing (1855-1935) e manda, ela é inconsciente. Percebemos, agora, que a máquina Luigi Palmieri (1807-1896) desenvolveram de captação, representação e registro do diferentes tipos de sismógrafos para detectar o movimento do solo sofrimento, com base com base na inércia de no enquadramento A máquina de captação, uma massa suspensa histórico e temporal representação e registro do por uma mola. Durande suas descontinuida- sofrimento, com base no des, capaz de designar enquadramento histórico e temporal te um terremoto será possível obter a freacontecimentos trans- de suas descontinuidades, capaz quência e a ressonância formativos, já existe. É de designar acontecimentos o sistema das artes, as transformativos, já existe. É o sistema do sistema massa-mola, gerando uma curva instituições culturais, das artes, as instituições culturais, a gráfica capaz de indicar a gestão de museus. gestão de museus. Seus operadores o foco (hipocentro), sua Seus operadores são são curadores, ou seja, práticos da curadores, ou seja, cura, que cuidam do sofrimento que chegada à superfície terrestre e a intensidapráticos da cura, que nos é comum de do impacto. Assim cuidam do sofrimento que nos é comum. Eles se distinguem entre também o curador percebe uma movimenos analistas simbólicos, gestores, mediado- tação indireta e indeterminada, cujo efeito res, críticos ou simplesmente intelectuais, é deslocado em relação à sua causa. O sofrimento que o curador percebe na acepção de Bourdieu: não é o da expressão da subjetividade do Quando falamos enquanto intelectuais, isto artista, ainda que muitos encontrem na é, com a ambição do universal, é, a cada ins- angústia, na dor e no desprazer sua matante, o inconsciente histórico inscrito na téria-prima, mas a partilha social desses experiência de um campo intelectual sin- afetos, o que pode vir a ocorrer muito longe de seu hipocentro real. O curador enquagular que fala em nossa boca.5 dra esse sofrimento, observando regras Curadores concorrem para fixar ou escolher, de compressão e refração significantes reconhecer ou diluir, determinar ou inde- que o tornam não apenas expressivo, mas terminar experiências éticas de sofrimento. representativo no quadro de uma série Sua função não é apenas guardar segredos histórica, ao modo dos sismogramas. Ele e heranças de nossa experiência comum e não está interessado em promover identipregressa, elegendo objetos representativos, ficações, sejam elas heroicas, projetivas ou

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reverenciais com a obra de arte, mas sim A cura não é o restabelecimento de um em organizá-la segundo certo saber, ou estado anterior dito normal. Depois de uma melhor, segundo um saber para um sujeito epidemia ou de uma pandemia, como a que suposto em seu potencial destinatário. Por acompanhamos entre 2019 e 2020, não se isso, seguimos aqui a hipótese de Patrícia trata de descobrir como encontrar um novo Rousseaux [psicóloga, criadora da revista normal, mas de cuidar para que o sofrimenARTE!Brasileiros] de que pode haver uma to coletivo não deixe de ser absolutamente transferência do público para a obra, de- singular, dando a cada um dos que se foram sencadeando nele, de forma contingente, o seu lugar no palco do mundo. O isolamento um esforço de associação, interpelação e acelera a experiência minimalista da vida, questionamento da verdade do sofrimento assim como a cultura da escassez e da indeterminação recupera as estratégias de que ali se transfere. A cura aprecia o impacto desse acon- enfrentamento estético do traumático. A tecimento tendo em vista seu potencial de relatividade valorizada pelas tendências pós-modernistas cede esdestruição e construção, ou seja, cuida para que Depois de uma epidemia ou paço para a universalidade coercitiva da finitude e da outros saberes se utilizem de uma pandemia, como a que acompanhamos entre morte, acentuando os efeitos de suas descobertas, mesmo que essas implicações 2019 e 2020, não se trata de da cultura xenófoba impulsionada desde os tempos da e apropriações sejam-lhe descobrir como encontrar guerra ao terror. indiferentes do ponto de um novo normal, mas de cuidar para que o sofrimento Um tremor de terra vista de seu ofício. Ela pode ter seu epicentro muito cuida, portanto, para que coletivo não deixe de ser longe de seu lugar de maior as erupções do mundo absolutamente singular, encontrem seu palco, não dando a cada um dos que se impacto e devastação. Assim também o caminho que vai sem angústia. Ela trata o foram o seu lugar no palco do acirramento do neolibereal pelo simbólico, não do mundo ralismo, com seus efeitos sem o imaginário. Ela concorre para que o luto sobre o trauma possa conjugados de precarização e austeridade, de ser realizado, não sem o sonho. Ela recolhe necropolítica e empresariamento da vida, até os resíduos de formas de vida, as cartas não a interpretação hiper-realista ou negacionisentregues de uma época e ajuda a encontrar ta da pandemia demanda uma reconstrução seus destinatários, não esquecendo dos des- estética. O hiper-realismo dos noticiários, tinatários futuros de uma linguagem ainda com suas imagens de caixões e estatísticas desconhecida. Tal como psicanalistas, com de vítimas, contrasta aqui com a experiênquem partilha o campo mais geral das prá- cia local e etnográfica das vidas invisíveis e ticas de cura, o curador estético concorre dos corpos singulares. Isso expõe o humapara uma experiência ética que concerne à no, cada vez mais, ao tipo de angústia em estrutura de unheimlich, ou seja, não apenas relação entre a verdade e o real.


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uma anomia decorrente da desagregação de nossas hierarquias simbólicas totemistas, mas a experiência de indeterminação do estrangeiro dentro de nós e de nós em estado de estrangeiridade. Podemos representar essa experiência por meio de um símbolo como a máscara, à qual se aderem mensagens, tal qual o muro que nos separa e que, com suas frestas, nos une. A máscara introduz uma nova ética interseccional, potencialmente generalizável para as formas de sofrimento: é usada não para que cada indivíduo se proteja do vírus alienígena, mas para reduzir nosso poder de transmissão do mal, que ainda não reconhecemos em nós mesmos. O impacto do sofrimento causado pela covid-19 é diferente conforme a arquitetura de proteção de cada forma de vida. O novo coronavírus é potencialmente tão democrático ou tão não democrático quanto outra forma qualquer de vida natural. Mas os dispositivos de proteção contra ele atingem com maior impacto destrutivo as formas de vida vulneráveis. Essa nova incidência da difração, da “diferencia” e da deformação demanda trabalho de interpretação. A pandemia atinge também os elementos historicamente mais simples dos dispositivos de curadoria: andar, entre outros tantos,

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na rua ou nos museus, acompanhando as janelas do mundo. Aglomerar-se diante do espécime raro, vagar por entre as passagens. Tudo isso será doravante filtrado pela lógica neossurrealista dos vasos comunicantes, da pureza e do contato, da confiança e da conexão perigosa, do cerco e do risco de contaminação. Atribui-se a verdadeira invenção do sismógrafo ao sábio chinês Chang-Heng, no século II da nossa era. Ele construiu um vaso gigante, de aproximadamente 2 metros de altura, em torno do qual havia oito cabeças de dragão, cada qual apoiando uma bola. Sob a cabeça dos dragões pendia a boca aberta de oito sapos, dispostos a coletar a bola que cairia em angulação perfeita. Quando uma bola caía da cabeça de um dragão, as outras bocas de sapo fechavam-se de tal maneira a indicar, por anterioridade, a origem do epicentro do terremoto. Assim também nossos curadores, sejam eles gestores culturais ou práticos da cura pela palavra, lidam com efeitos estruturais, produzindo com as formas mais agudas de sofrimento e angústia. Criam novas gramáticas de reconhecimento, outras modalidades de transitivar afetos para sentimentos em diversas narrativas sobre o terremoto pandêmico.

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Christian Ingo Lenz Dunker Psicanalista, professor titular de psicanálise e psicopatologia no Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IP/USP), coordenador do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise da USP e analista membro da Escola dos Fóruns do Campo Lacaniano. Duas vezes agraciado com o Prêmio Jabuti, é articulista da Boitempo e do UOL Tilt, youtuber e autor de mais de cem artigos científicos e de dez livros, entre eles O palhaço e o psicanalista (Planeta, 2018), Reinvenção da intimidade (Ubu, 2017), Mal-estar, sofrimento e sintoma (Boitempo, 2015) e Estrutura e constituição da clínica psicanalítica (Annablume, 2012).

Notas 1

DUNKER, C. I. L. Mal-estar, sofrimento e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015.

2

RANCIÈRE, J. A partilha do sensível. São Paulo: Editora 34, 2000.

3

LACAN, J. O seminário, livro 10: a angústia. Rio de Janeiro: Zahar, 2005, p. 43.

4

FREUD, S. O infamiliar (Das Unheimliche). Obras incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

5

BOURDIEU, P. As regras da arte. São Paulo: Companhia das Letras, 1996, p. 374.


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PLANEJAR O FUTURO… UM ENSAIO

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DEIXA EU TE VER, PEIXE A escritora Carol Rodrigues trata neste conto, um texto absolutamente literário para dar um alento em tempos de pandemia, de uma provável pescaria. Faz um paralelo entre o jeito de colocar a minhoca como isca e o de calçar uma meia, lembrando o estilo Guimarães Rosa de falar: “Fura ela aqui logo embaixo da cabeça e vai enfiando devagar e com cuidado o anzol por dentro do corpo como se colocasse uma meia no seu pé”.

Planejar o futuro é como ir pescar numa ravina seca. Gyalsé Rinpoche

1. Planejar o futuro é pescar numa ravina seca e o ravinamento é uma forma espetacular de erosão ocasionado por elevadas concentrações de escorrência e/ou desmatamento. O sulco aumenta pelo arrojo de grandes massas de solo, formando cavidades que podem atingir uma área superior a vinte hectares e mais de cinco metros de profundidade. A formação de ravinas está quase sempre associada a paisagens instáveis. É aqui o Dedo largo e tão vermelho que armazena sangue pro inverno afunda o mapa no miolo do cerrado, onde arbusto torra, onde sangra o nariz, pra ninguém depois dizer. Mas quem é que vai aí o Dedo amplo palpita no tampo.

2. Melina tem sardas e acorda com fome de carne. Torce na mão fina o bico friorento do peito e entra no roupão que amarra na cintura enquanto anda. No corredor um quadro torto não diz nada pra ninguém e tem outro que diz: soy tropical. A luz da cozinha tem som de cigarra. Um cacto é um homem fingindo que se rende. Debaixo do alumínio tem pernil espatifado. Recolhe uns fiapos nos dedos em gota. A língua é uma cereja. Mastiga muito tempo a cartilagem não se rende. Empurra com coca aos pulmões. Abre o roupão bate no peito, eu nunca pesquei, arrota, eu nunca nem acampei, não vomita, Vasco entra. Vasco entra com o cós da calça mole de xadrez


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bem abaixo dos furinhos na lombar. Pega da geladeira um mamão imenso que ele joga pro ar e apanha na mão longa, pica com linhaça e dá na boca de Melina; ela não quer; ele faz ela querer e num só braço Vasco senta Melina na pia, eu não vou te dizer pra ficar calma porque eu também não sei pescar mas nenhum índio quis a recompensa, ribeirinho, ninguém; um fiapo de cabelo atrás da orelha: escolheram a gente, a gente vai. 3. O Dedo pega uma minhoca e diz na voz de filete intermitente você pega a minhoca, fura ela aqui logo embaixo da cabeça e vai enfiando devagar e com cuidado o anzol por dentro do corpo como se colocasse uma meia no seu pé. Deixa a cabeça fazer a curva e o rabinho balançando que é nele – e se demora nele – que o peixe vai. Lança pro mais fundo que der na Ravina aí espera. O Dedão empurra pela mesa um tupperware de tampa azul. Melina pensa em que momento vão comer essas minhocas e sem coca pra descer. O Dedão mostra agora um triturador de legumes só que esse fura pedra, é leve, olha, em um segundo faz um furo na mesa, a mesa não é de pedra, mas é como se fosse, e não vindo peixe vocês têm que entrar pro chão. Furem o ponto mais baixo e vão descendo abrindo em diagonal até chegar na água. Mas isso não piora a erosão pergunta Vasco em prova oral e como se não houvesse tempo o Dedo diz não há mais tempo. E agora o Dedo se levanta na palma esticada e é muito provável que existam até cinco rios aqui debaixo então vocês Vasco Melina, vocês vão achar o peixe. O Dedo vasto volta à mesa e batuca, tem que trazer o peixe com o anzol na boca e agora

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baixa bem a voz e gagueja um pouco pra dizer que se não der pra trazer peixe qualquer tipo de molusco, caramujo, o que for, mas tem que ser úmido, no mínimo. 4. Ravina é bem menor que voçoroca o copiloto do helicóptero grita girando o pescoço pra Melina que achou que ia ter aquele fone pra dar pra conversar e não dá; o vento que entra esmaga a cara dela nela mesma e na janela é boi boi boi e sol. A coisa pousa num planinho ressecado e o piloto aponta ao norte e diz vai vai vai e ele e ela vão e o latão arremete estapeando terra na cara dele e na dela e ele e ela correm como viram nos filmes, os troncos curvados, os macacões de lona, os anzóis nas mãos como fuzis. Já vislumbram logo ali a Ravina é um rio sem o rio e cada rachadura é um trago num cachimbo de sal. Melina senta na beira, Vasco ajoelha e tira a tampa azul e as minhocas não estão aflitas mas onde é a boca e onde é o cu. Melina vem perto e faz papai mandou eu escolher este daqui mas como eu sou teimosa eu escolhi este daqui e assim define a boca e fura o que seria o pescoço e passa pra dentro do corpo o anzol meio empenado. São onze horas da manhã e a Ravina é muito seca, tem que economizar a saliva, não vieram com água, o Dedo disse que era muito boa essa motivação. Duas minhocas agora balançam no vão de poeira como dois enforcados no velho oeste, abandonados até pelo vento sob o céu de azul royal. Melina encosta o anzol numa pedra e abre o macacão pro sol. Vasco olha as pintas entre os peitos e o pingente ambarino e até quando a gente espera; pisca pra escuridão.

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3. Uma esfera de luz branca ilumina difusa os macacões industriais marrons e cheios de botões. Arrastando tudo pelos cotovelos Melina segura na boca a alça do globo que revela a fundura da gruta: não muita. O braço se infiltra entre ela e a terra ao bolso da coxa e alcança o triturador e os dedos aprendem a desviar da lâmina finíssima. A terra espatifada vem pros olhos que agora se fecham com a boca e o nariz. E como embaixo d’água vai vendo o quanto aguenta pra furar mais e melhor. Está na marca do minuto o que parece muito bom. Devolve o triturador ao bolsão e vem nadando pela terra amolecida. Ao que se arrasta Vasco vem atrás rebocando nas mãos as paredes e o teto do que chama de túnel. Gasta saliva pra dizer a sua bunda fica linda nesse macacão e depois ri da palavra macacão. Melina também ri enquanto aperta a alça da esfera entre os dentes e o estômago já sente o suquinho de metal. 2. Com o teto na testa e sentada numa pedra Melina tenta tirar a própria bota. Faz força com as duas mãos e para, tira cabelo da cara, recomeça, Vasco pega o pé e diz inspira e segura três, agora solta o ar de uma vez e a bota sai nas mãos em dois passos quicados para trás. Deixa a bota no canto e se ajoelha e tira a meia rota de Melina com os dedos em pinça, a unha do dedão pendida enrosca no tecido, tem esmalte vermelho, como chama? Cupidez e nisso Vasco puxa duma vez a unha e os fiapos ancorados na carne. Melina tem sede e não olha pro seu pé mas a boca de Vasco parece arredondada por um lápis aquarela que se lamber a

pontinha a cor sai encarnada, a minha não tem essa marcação, mão na boca, o lábio duro em voçoroca. A gente tem que furar mais a boca contornada diz, eu não aguento mais a boca sem desenho diz eu tô sem unha, você tem ainda dezenove unhas, por que não chamaram os mineiros, nenhum mineiro quis a recompensa a gente tem que chegar na água pra atrair o peixe mas a gente cavou tanto que vai chegar no fogo lá no magma terrestre. Melina encosta a cabeça onde a cabeça encontra onde encostar. Vasco aproxima a esfera branca, a mão no pé sem meia. A vida é muito estranha embaixo duma unha. A carne à própria sorte com seu sangue. Um organismo primitivo, careca, invertebrado coração de minhoca. A esfera branca vem mais perto e também as pupilas abertas de Vasco, já são muitas as horas na escuridão. E como se não houvesse a razão entre pessoa e mundo ele dá o comando de si à própria língua e a língua chama saliva da garganta que por sua vez pede de volta o que já chegou aos rins e carregada como nuvem cinza-chumbo a língua vai de encontro à carne viva. E quando vê que foi, vai de uma vez, boca toda na ferida, a cabeça de Melina desencosta e ela pode quase ver os elétrons correndo como soldados dos ombros aos dedos das suas mãos. A língua sentindo a cabecinha de algo que não pensa, as ondulações no sanguinho, aí Melina puxa Vasco pela gola e mostra um lanho no pescoço de quando escorregou furando o segundo pavimento, buscando os rios que ainda não viram, Vasco se arrasta até o novo mapa que contorna logo no pincel, e sobe a própria manga e a ferida aqui é extensa, caiu nesse braço quando desmoronou o que


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ele achava que era o chão, Melina reúne do ventre a saliva e na língua muito vermelha umedece o lanho fundo. Aí é sua vez de mostrar a barriga esfolada de arrastar nas galerias. A língua menos vermelha se demora em cada canto de pele perdida, onde a terra misturou, onde o gosto de ferro amplifica e quer mais e olha pros botões do macacão e jura que arranca nos dentes um a um. Já Melina abre os de Vasco no dedo arredondando em sua língua cada esfera, chupando como bala, festim. Os elétrons atiçados pelo ferro se desmilitarizam e agora correm livres. Tão livres que percorrem a terra nas paredes e no teto e desmoronam o contorno da escuridão. 1. Entre as pedras os corpos muito moles. Melina gira o pescoço tão frouxo e lá na outra quina cavada numa sombra alguma coisa responde à luz redonda. Ela se arrasta e agora a esfera mostra o caramujo, quer dizer, uma casa de caramujo com um caramujo dentro talvez morto ou talvez vivo. Será que serve. Vasco? Vasco dorme um fio de baba escorre, acorda e olha a coisa talvez morta na palma. Não tinha que tá vivo? Úmido, era o mínimo. A gente pode falar que eu caí que eu tropecei esmaguei ele sem querer na bota, é acidente, o caramujo pode tá morto, mas podia tá vivo, foi achado aqui no meio do mundo, tá inteiro ainda, não tá decompondo, e a umidade, a umidade é só dar uma cuspida logo antes de entregar pro Dedo grande. A gente tem que comemorar, mas como. Daqui a pouco, daqui a pouco.

CAROL RODRIGUES

Carol Rodrigues Autora dos livros Sem Vista para o Mar (Edith, 2014), ilhós (e-galáxia, 2017) e O Melindre nos Dentes da Besta (7letras, 2019). Trabalha com curadoria literária na Biblioteca Mário de Andrade e com oficinas de criação. Vive em São Paulo.

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Thaís de Campos Nascida em Recife (PE) e vivendo em Fortaleza (CE) desde 2000, é formada em design de moda e em audiovisual, atua como diretora de arte e figurinista em projetos de cinema no Brasil. Faz performances audiovisuais pesquisando articulações entre imagens e sons e trabalha com diferentes suportes de projeção e de captação, materiais que coleta por onde anda. Atualmente, realiza a performance audiovisual Um Salto Adiante, em que mescla vídeos e projeções de slides confeccionados com materiais naturais em decomposição, e desenvolve a montagem de sua próxima performance, Grande Mistério, na qual emprega materiais coletados em diferentes biomas do Ceará.


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Esta série surge de uma coleta diária que venho fazendo em meu jardim: moro em uma cobertura com terraço para o céu, plantas, pássaros, insetos. Olhar para isso tem sido um alento e, em meio a tanta vida, olho também para a morte, para a matéria que se decompõe expondo suas entranhas, seus esqueletos, desenhos de sua geometria sagrada, a mesma que nos compõe. Dessa coleta surgiram estes slides, preparados artesanalmente com microfragmentos de elementos em decomposição, que revelam detalhes da natureza em transformação: desenhos, tramas fractais de como a energia no universo se organiza seguindo padrões geométricos e de como podem provocar nossa sensibilidade para encontrar dentro de nós pontos de ressonância.


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COLEÇÃO OS LIVROS DO OBSERVATÓRIO eCultura – Utopia Final Teixeira Coelho

A Economia Artisticamente Criativa Xavier Greffe

A Singularidade Está Próxima Raymond Kurzweil

O Lugar do Público Jacqueline Eidelman, Mélanie Roustan e Bernardette Goldstein

A Máquina Parou E. M. Forster

Identidade e Violência: a Ilusão do Destino Amartya Sen

Com o Cérebro na Mão Teixeira Coelho


CULTURA PÓS-CORONAVÍRUS

As Metrópoles Regionais e a Cultura: o Caso Francês, 1945-2000 Françoise Taliano-des Garets

Cultura e Estado. A Política Cultural na França, 1955-2005 Teixeira Coelho

Afirmar os Direitos Culturais – Comentário à Declaração de Friburgo Patrice Meyer-Bisch e Mylène Bidault

Cultura e Educação Teixeira Coelho (Org.)

Arte e Mercado Xavier Greffe

Saturação Michel Maffesoli

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O Medo ao Pequeno Número Arjun Appadurai

Leitores, Espectadores e Internautas Néstor García Canclini

A Cultura e Seu Contrário Teixeira Coelho

A República dos Bons Sentimentos Michel Maffesoli

A Cultura pela Cidade Teixeira Coelho (org.)

Cultura e Economia Paul Tolila


CULTURA PÓS-CORONAVÍRUS

SÉRIE RUMOS PESQUISA Os Cardeais da Cultura Nacional: o Conselho Federal de Cultura na Ditadura Civil-Militar − 1967-1975 Tatyana de Amaral Maia

Por uma Cultura Pública: Organizações Sociais, Oscips e a Gestão Pública Não Estatal na Área da Cultura Elizabeth Ponte

Discursos, Políticas e Ações: Processos de Industrialização do Campo Cinematográfico Brasileiro Lia Bahia

A Proteção Jurídica de Expressões Culturais de Povos Indígenas na Indústria Cultural Victor Lúcio Pimenta de Faria

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AS REVISTAS

Revista Observatório Itaú Cultural No 27 – Cultura e Desenvolvimento

Revista Observatório Itaú Cultural No 23 – Economia da Cultura: Estatísticas e Indicadores para o Desenvolvimento

Revista Observatório Itaú Cultural No 26 – Gestão de Pessoas em Organizações Culturais

Revista Observatório Itaú Cultural No 22 – Memórias, Resistências e Políticas Culturais na América Latina

Revista Observatório Itaú Cultural No 25 – Sertões: Imaginários, Memórias e Políticas

Revista Observatório Itaú Cultural No 21 – Política, Transformações Econômicas e Identidades Culturais

Revista Observatório Itaú Cultural No 24 – Arte, Cultura e Educação na América Latina

Revista Observatório Itaú Cultural No 20 – Políticas Culturais para a Diversidade: Lacunas Inquietantes


CULTURA PÓS-CORONAVÍRUS

Revista Observatório Itaú Cultural No 19 – Tecnologia e Cultura: uma Sociedade em Redes

Revista Observatório Itaú Cultural No 15 – Cultura e Formação

Revista Observatório Itaú Cultural No 18 – Perspectivas sobre Política e Gestão Cultural na América Latina

Revista Observatório Itaú Cultural No 14 – A Festa em Múltiplas Dimensões

Revista Observatório Itaú Cultural No 17 – Livro e Leitura: das Políticas Públicas ao Mercado Editorial

Revista Observatório Itaú Cultural No 13 – A Arte como Objeto de Políticas Públicas

Revista Observatório Itaú Cultural No 16 – Direito, Tecnologia e Sociedade: uma Conversa Indisciplinar

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Revista Observatório Itaú Cultural No 12 – Os Públicos da Cultura: Desafios Contemporâneos

Revista Observatório Itaú Cultural No 9 – Novos Desafios da Cultura Digital

Revista Observatório Itaú Cultural No 11 – Direitos Culturais: um Novo Papel

Revista Observatório Itaú Cultural No 8 – Diversidade Cultural: Contextos e Sentidos

Revista Observatório Itaú Cultural No 10 – Cinema e Audiovisual em Perspectiva: Pensando Políticas Públicas e Mercado

Revista Observatório Itaú Cultural No 7 – Lei Rouanet. Contribuições para um Debate sobre o Incentivo Fiscal para a Cultura


CULTURA PÓS-CORONAVÍRUS

Revista Observatório Itaú Cultural No 6 – Os Profissionais da Cultura: Formação para o Setor Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural No 3 – Valores para uma Política Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural No 5 – Como a Cultura Pode Mudar a Cidade

Revista Observatório Itaú Cultural No 2 – Mapeamento de Pesquisas sobre o Setor Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural No 4 – Reflexões sobre Indicadores Culturais

Revista Observatório Itaú Cultural No 1 – Indicadores e Políticas Públicas para a Cultura

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Realização

/itaucultural itaucultural.org.br fone 11 2168 1777 fax 11 2168 1775 atendimento@itaucultural.org.br avenida paulista 149 são paulo sp 01311 000 [estação brigadeiro do metrô]


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