Observatório 26 - Gestão de pessoas em organizações culturais

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ed.

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GESTÃO DE PESSOAS EM ORGANIZAÇÕES CULTURAIS Profissionalização do RH na cultura: um caminho sem volta

Ferramentas e conceitos: para além do personalismo e da informalidade

Mundo do trabalho:

um ambiente de criação. Um espaço a ser humanizado


Com a profissionalização e internacionalização do setor cultural brasileiro, o aprimoramento da gestão de pessoas nas organizações culturais passa a ser um caminho sem volta. A edição 26 vda Revista Observatório mergulhou nesse tema ainda pouco estudado, indo a campo para ouvir profissionais de Gestão de Pessoas e lideranças de importantes instituições culturais, comparando-os com outras realidades internacionais. A Revista traz uma reflexão sobre o futuro do mercado de trabalho, onde a criatividade será uma habilidade necessária para praticamente todos os profissionais, e sobre o papel da liderança na gestão colaborativa focada em fomentar indivíduos para uma autonomia crítica que expande a inteligência e a criatividade.


Colaboradores do Sesi/SP: Eduardo Carneiro da Silva, supervisor de Programas Culturais; Nilson dos Santos, encarregado/maquinista, Juliano Vinicius Moda, analista de Atividades Culturais; DĂŠbora Viana, gerente-executiva de Cultura e Daniele Carolina Lima Uchikawa, analista de Atividades Culturais


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AOS LEITORES

Cibele Camachi, Sesc/SP, técnica do Núcleo Socioeducativo


Memória e Pesquisa / Itaú Cultural Revista Observatório Itaú Cultural - N. 26 (dez. 2019 / jun. 2020) – São Paulo : Itaú Cultural, 2007-. Semestral

ISSN 1981-125X (versão impressa) ISSN 2447-7036 (versão on-line)

1. Política cultural. 2. Gestão de pessoa. 3. Mercado cultural. 4. Profissional da cultura. Gestão cultural. 6. Inovação. I. Itaú Cultural Bibliotecário Jonathan de Brito Faria CRB-8/8697


expediente REVISTA OBSERVATÓRIO Conselho editorial Andréia Briene Érica Buganza Jochen Volz Luciana Modé Renata Tubini Ricardo Augusto Alves de Carvalho Rosa Maria Fischer Sanyo Drummond Pires

Ilustração André Toma

Edição Ricardo Augusto Alves de Carvalho e Sanyo Drummond

Tradução Carmen Carballal e Marisa Shirasuna

Preparação de textos Ana Luiza Aguiar Projeto gráfico Marina Chevrand/ Serifaria Design Girafa Não Fala Produção gráfica Lilia Góes

Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas)

EQUIPE ITAÚ CULTURAL Presidente Milú Villela Diretor Eduardo Saron Superintendente administrativo Sérgio Miyazaki

NÚCLEO DE INOVAÇÃO/ OBSERVATÓRIO Gerência Marcos Cuzziol Coordenação Luciana Modé Produção Andréia Briene NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Ana de Fátima Sousa Coordenação editorial Carlos Costa Curadoria de imagens André Seiti Produção editorial Luciana Araripe

Ensaio artístico Rafael Roncato

Agradecemos às instituições culturais Casa das Rosas, Japan House SP, Museu de Arte de São Paulo (Masp), Sesc/SP e Sesi/SP e aos seus colaboradores que aceitaram participar do ensaio fotográfico desta edição.


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OS SUJEITOS DA CULTURA O público externo é quase sempre o foco principal do olhar das instituições culturais. Mas antes que uma obra chegue a eles ela passa pelo público interno, que nem sempre é observado com a mesma atenção.

O centro do mundo da cultura é o sujeito. E a capacidade do sujeito de se transformar e de transformar seu entorno nos inspira e nos movimenta. Nas ações artísticas e culturais, a participação e a fruição do público sempre compuseram nossos planejamentos, nossa criação e nossa razão de existir. No entanto, ainda precisamos apurar o olhar para os sujeitos que integram as nossas instituições. Contraditoriamente, não levamos em consideração que, para desenvolver projetos perenes, nossas equipes precisam vivenciar e experimentar a mesma compreensão e sensibilidade que temos para com nosso público. O pressuposto para ter uma ação efetiva de gestão de pessoas é entender que o olhar para os colaboradores não pode ser algo pontual ou que ocorra apenas em um contexto de pesquisas de clima organizacional ou em situação de crise. Esse exercício tem de ser constante. E, nesse sentido, as lideranças, os processos e a área voltada para as pessoas devem estar sempre atuando para acolhê-las e para o permanente desenvolvimento das equipes. Obviamente, trago vivências de uma instituição consolidada, mas esses princípios

valem para qualquer espaço organizado de atuação cultural – até mesmo os voluntários –, equalizando-se a modelagem e a governança do conjunto de ações de acordo com suas necessidades e dimensões. As lideranças de instituições, grupos e/ou coletivos precisam de uma motivação permanente e cuidadosa para agir, liderando pelo exemplo. O princípio basilar para uma atuação coerente é ter líderes que apontem caminhos por meio de aprendizados mútuos, inspirando as equipes, fazendo com que o discurso e a prática sejam um só. Para pensar essa prática responsável, é essencial estimular e formar as pessoas. E isso vai além do treinamento. É também fomentar o conhecimento especializado e oferecer ferramentas de desenvolvimento comportamental. É garantir espaços abertos ao diálogo, promovendo aprendizados que enfoquem a autonomia dos indivíduos e a possibilidade de o sujeito aprender a aprender. A comunicação é outro aspecto fundamental para construir um ambiente sinérgico que harmonize valores individuais e coletivos. Quando nos comunicamos com


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clareza, conseguimos transformar e engajar a atitude das pessoas, desenvolvendo ambientes colaborativos que potencializam ideias, ações e projetos em torno de um objetivo comum. Os trabalhadores da cultura são notoriamente conhecidos por serem movidos pela paixão e pelo exercício crítico da cidadania. Dessa forma, os valores dos líderes e aqueles defendidos expressamente pelas organizações importam ainda mais e precisam estar em acordo com o mundo em que vivemos. É por isso que faz toda a diferença a atenção ao outro, com quem dividimos o cotidiano intenso de trabalhos e que também compartilha suas afetividades criativas. Em tempos de tantos impactos tecnológicos, o campo da cultura também precisa estar atento às possibilidades que o mundo pós-digital traz, incorporando da melhor forma esses conceitos a seu fazer. Aqui, vale destacar que se aprofundam as discussões sobre mecânica quântica – não apenas nas novas formas de computação –, que podem colaborar muito para (re)pensarmos as relações humanas e as formas de trabalho. Nesse sentido, saímos de uma conceituação binária – certo/errado, razão/sensibilidade, extroversão/introspecção – para uma sobreposição de estados. Esta sociedade contemporânea pós-digital ou quântica, mais do nunca, necessita de posturas éticas e transparentes, sobretudo em quatro aspectos: integridade, imparcialidade (evitando-se favoritismos), respeito à diversidade e promoção de um ambiente de vida saudável. Aliás, este último merece ainda mais atenção quando pensamos nos corpos estáveis.

Evidentemente, nossas organizações precisam discutir cada vez mais ações de reconhecimento potentes que fortaleçam princípios de equidade e fomentem a necessidade evolutiva do ser. Nesse sentido, a primeira deve ser entendida como a garantia de oportunidades e leituras equalizadas, tendo em vista a pluralidade das pessoas, e a segunda como provocação constante da adaptabilidade das equipes ao meio ambiente com o foco na sustentabilidade da organização. A gestão de pessoas é um processo de construção que demanda muito compromisso, muita vontade e muita energia, diariamente. Obviamente, não há um único modo de atuar. Para mim, a confiança vem do sentimento de que o desafio de fazer dar certo é instigante. Talvez, a única certeza que temos é a de que aprenderemos com erros e acertos, com o olhar para as subjetividades e para o bem coletivo sempre conectado ao propósito da instituição. Esta publicação especial da Revista Observatório Itaú Cultural não pretende esgotar a discussão, que ainda é embrionária e escassa no mundo da cultura. As páginas a seguir podem trazer mais perguntas do que respostas. E isso é muito bom, pois pode mostrar diferentes pontos de partida, erguer pontes e desenhar rotas. É uma abertura de caminhos possíveis. É um movimento, um passo inicial, que nos faz pensar ou que nos tira do mesmo lugar. Avancemos! Eduardo Saron

Itaú Cultural


Edson Fernandes Machado, Sesc/SP, supervisor de Audiovisual


aos leitores “Num dia frio de inverno, um grupo de porcos-espinhos se aconchegou bastante, para se esquentarem mutuamente e não morrerem de frio. Contudo, logo sentiram os espinhos uns dos outros, o que os fez novamente se afastarem. E, quando a necessidade de aquecimento os aproximava de novo, repetia-se o segundo mal, de modo que eram impelidos de um sofrimento para o outro, até acharem uma distância média que lhes permitisse suportar o fato da melhor maneira.” (Freud, 1921)

O convite para editar a Revista Observatório Itaú Cultural número 26 nos encontrou na fase final de uma pesquisa1 sobre a preponderância, a incidência e os cruzamentos dos capitais econômicos, sociais, simbólicos e culturais entre participantes de dois MBAs, um brasileiro e um francês. O declínio das dimensões cultural e simbólica, que a psicanálise já advertia, ressona nos achados do campo socioantropológico em termos de estudos culturais. Em outras palavras, parece haver desde sempre uma oposição, ou ao menos uma inegável falta de atração, sobretudo no Brasil, na articulação entre as esferas da gestão e da cultura.

Este “estado da arte” nos adverte sobre a urgente – e bastante atrasada – necessidade de formulação de dispositivos teórico-críticos para a formação e o desenvolvimento dessa articulação entre gestão e cultura no Brasil. Nesse sentido, o radar do Observatório Itaú Cultural parece se preocupar em evidenciar a razão da escolha temática para esta edição: o que cogitam e como agem os gestores culturais em nosso país? A escolha dos autores e das temáticas foi resultado de uma curadoria conjunta entre o editor e a equipe do Observatório. Dessa forma, foram emitidos convites-desafios para expoentes acadêmicos e agentes


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culturais, com especial atenção ao que se mostra o papel que a formalização dos proreferia à gestão de pessoas. cessos de gestão de pessoas e a estruturação O artigo que abre a revista, de Ana Letí- das ações de recursos humanos tiveram em cia Fialho e Ilana Seltzer Goldstein, com da- relação à conquista de direitos e de qualidos e tendências das organizações culturais dade de trabalho para os profissionais do e de seus profissionais no Brasil, apresenta setor cultural. um panorama das principais pesquisas de Em A Gestão Cultural no México: Tenmapeamento da produção e gestão cultural sões e Compromissos, Eduardo Nivón Bolán, no país. Segundo as autoras, o processo de por sua vez, nos mostra a importância do profissionalização da gestão cultural levou processo de formação superior na capaciao surgimento de cursos de graduação e tação de gestores e agentes culturais para o pós-graduação voltados para a capacitação desenvolvimento da profissionalização da formal na área. Então, fez-se necessária a área no México. Ele nos conta como a luta elaboração de análises das ações pela sustentação de um pluralisde gestão cultural mais pauta- Parece haver mo cultural, principalmente na da em linguagens acadêmicas, desde sempre uma expressão de grupos indígenas tanto por parte da universidade oposição, ou ao e comunidades locais, e a cresquanto por parte da sociedade menos uma inegável cente mercantilização da cultucivil e do poder público. No en- falta de atração na ra geram tensões naquele país. tanto, apesar desses avanços, articulação entre Pedro Capanema Lundainda existe grande lacuna nos as esferas da gestão gren e Gabriel Ferreira Rodriestudos sobre gestão cultural no e da cultura gues, em artigo intitulado O país. A principal delas é a falta Trabalho e a Cultura: as Formas de dados que abranjam todo o território de Contratação do Profissional Artista e as nacional, ou que tenham por base dados e Disposições Legais Aplicáveis, analisam a medidas que possam ser comparados a es- vulnerabilidade da situação de trabalho do tudos continuados que permitam um recorte artista e dos profissionais do ramo cultural temporal mais amplo. A partir da constata- a partir da perspectiva legal. Como uma tenção dessas limitações, as autoras fazem uma tativa de contornar o problema, os autores revisão dos principais estudos, tendo como discorrem sobre três tipos de contratação, foco as organizações culturais privadas. detalhando os problemas e riscos que enJá Profissionalização do RH nas Insti- volvem cada um deles. Ao final, apresentam tuições Culturais: um Caminho sem Volta, ainda um guia prático que elenca os presde Ana Paula Sousa, constrói um quadro do supostos jurídicos e a legislação pertinente desenvolvimento da profissionalização das para a contratação de pessoal, bem como as ações e dos setores da área em instituições ações necessárias para evitar riscos jurídiculturais no Brasil. Partindo de um contexto cos trabalhistas e contratuais. no qual ações personalistas e instabilidades Em seguida, o artigo de Mônica Bose, na situação de trabalho vigoravam, a autora Aspectos Essenciais em Gestão de Pessoas:


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uma Contribuição para Organizações do Setor Cultural, explora as condições do trabalho e as conformações institucionais específicas do ramo cultural, assim como a necessidade de se repensar a gestão de pessoas para tal contexto. Abordando aspectos diversos, a autora indica modificações dos pressupostos teóricos e das práticas gerenciais que precisam ser realizadas para adequação das ações de gestão de pessoas às organizações do setor cultural. Cultura e Construção do Sujeito, de Sigmar Malvezzi, propõe uma reflexão sobre o papel da cultura na sociedade e em sua gestão. Partindo da importância da cultura na busca de sentido para a existência humana, o autor chama a atenção para como as novas conformações sociais aumentam o risco de empobrecimento cultural dos sujeitos, expostos a referências meramente pragmáticas do pensamento técnico. Nesse sentido, a cultura emerge como mercadoria, apropriada dentro dessa mesma lógica de produção técnica. Descrevendo como a cultura opera processos de subjetivação e de construção que o sujeito faz de si mesmo, o autor articula elementos ligados ao trabalho, à gestão e à cidadania, sempre dentro de uma perspectiva crítica e orientada para a descrição e a consecução de processos emancipatórios. Uma entrevista com Andreas Auerbach, por sua vez, rendeu o texto Os Desafios do Mundo do Trabalho. Nele são abordadas as novas configurações produtivas e um futuro provável marcado pela superação da rigidez de estruturas e relações de produção, o que não indica necessariamente situações positivas. Focada nos desafios que podem surgir, a entrevista apresenta um panorama

de como repensar as instituições criativas diante deles. Sua base é uma discussão sobre como construir as novas habilidades necessárias tanto nas organizações quanto nas novas gerações, herdeiras desse futuro. O artigo seguinte da revista é de nossa autoria e apresenta o resultado de pesquisa sobre o perfil dos gestores (de pessoas, processos e instituições) culturais realizada com as lideranças do setor no triângulo RJ/ SP/MG. Buscou-se indicar as especificidades na e da gestão de empreendimentos culturais nessa região. O campo escolhido envolveu ramos diversificados das atividades culturais, em instituições de diferentes níveis de movimentação de recursos financeiros e humanos. A partir de entrevistas, foi possível identificar elementos relacionados a modos de preparação nas trajetórias para assumir o lugar ou a função de gestor nessas instituições. Articuladas com essas trajetórias, situaram-se a estruturação das práticas específicas da gestão de empreendimentos culturais e a sustentação da atividade artística e criativa diante das demandas de racionalização do processo gerencial. Em Tempo de Imaginar, observamos o resultado de uma entrevista da curadora Tanja Baudoin com a artista Priscila Fernandes, autora da instalação Gozolândia e Outros Futuros, produzida para a 32ª Bienal de São Paulo. Temas como tempo livre, lazer, ócio, abstração e modernismo são apresentados na obra a partir de cenas de pessoas no Parque Ibirapuera. Questões sempre presentes no nosso contemporâneo e que ainda não conseguimos ultrapassar, como a dicotomia entre o mundo da vida e o mundo do trabalho, pressões reais de desempenho, uso


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do tempo livre, assim como a própria arte, são exploradas pela artista. Interessantes provocações vão sendo feitas pela curadora à artista, o que resulta em um discurso sobre o prazer, e nosso cerceamento para obtê-lo, numa entrevista saborosa. Finaliza esta edição da revista Cultura da Gestão de Pessoas na Perspectiva da Biologia Cultural, entrevista com Humberto Maturana e Sebastián Gaggero realizada por Káritas Ribas. Nela, o conceito inventado por Maturana – um dos maiores epistemólogos contemporâneos e um dos criadores da biologia cultural e da autopoiesis – ganha relevância no exercício de um gestor de pessoas que insiste no humanizar da gestão. Maturana afirma que não se pode compreender o comportamento humano sem assumir plenamente o aspecto cultural em cada um de nós. Criticando o modus competitivo da gestão e advogando um relacionar cooperativo, os entrevistados

apresentam a cultura como elo evolutivo do biológico ao humano. Eles defendem que o gestor deve ter um entendimento profundo do tipo de seres que nós, humanos, somos, enxergando no outro sua legitimidade e disposição para colaborar. A entrevista nos dá uma lição de humanismo no terreno muitas vezes árido da gestão, apontando o amar como uma habilidade implícita que o gestor deve deixar emergir. Ao mergulhar nos textos, o leitor perceberá complementaridades, diálogos e, em alguns casos, tensões. Porém, antes de tudo, encontrará um quadro amplo da gestão cultural já realizada, pensada e comparada, e daquela ainda a ser elaborada. Desejamos que seja uma leitura instigante, prazenteira e proveitosa.

Ricardo Augusto Alves de Carvalho Sanyo Drummond Pires

Nota 1

O referencial da pesquisa havia sido as teorias de capitais do sociólogo francês Pierre Bourdieu, em seu célebre questionário.


6. Os sujeitos da cultura Eduardo Saron

11. Aos leitores Ricardo Augusto Alves de Carvalho e Sanyo Drummond Pires

1.

PANORAMA DAS ORGANIZAÇÕES CULTURAIS E DOS PROFISSIONAIS DO SETOR

24. Dados e tendências das organizações culturais e de seus profissionais no Brasil Ana Letícia Fialho e Ilana Seltzer Goldstein

2.

O APRIMORAMENTO DA GESTÃO DE PESSOAS NAS INSTITUIÇÕES CULTURAIS

56. Profissionalização do RH nas instituições culturais: um caminho sem volta Ana Paula Sousa

71. A gestão cultural no México: tensões e compromissos Eduardo Nivón Bolán

3.

CONCEITOS E FERRAMENTAS DE GESTÃO DE PESSOAS: PERSPECTIVAS E DESAFIOS

88. O trabalho e a cultura: as formas de contratação do profissional artista e as disposições legais aplicáveis Pedro Capanema Lundgren e Gabriel Ferreira Rodrigues

Os textos/entrevistas desta revista não necessariamente refletem a opinião do Itaú Cultural.


sumário 96. Guia prático para gestão de pessoas na cultura Pedro Capanema Lundgren e Gabriel Ferreira Rodrigues 100. Aspectos essenciais em gestão de pessoas: uma contribuição para organizações do setor cultural Mônica Bose 112. Cultura e construção do sujeito

Sigmar Malvezzi

125. Os desafios do mundo do trabalho: entrevista com Andreas Auerbach Ana Paula Sousa

4.

LIDERANÇA E SUCESSÃO NAS INSTITUIÇÕES CULTURAIS

142. Perfil das lideranças em gestão cultural: um recorte no “eixo da produção” brasileiro Ricardo Augusto Alves de Carvalho e Sanyo Drummond Pires

5.

MUNDO DO TRABALHO: UM ESPAÇO A SER HUMANIZADO. UM AMBIENTE DE CRIAÇÃO E NÃO APENAS REPRODUÇÃO

164. Tempo de imaginar: entrevista com Priscila Fernandes Tanja Baudoin

172. Cultura da gestão de pessoas na perspectiva da biologia cultural: entrevista com Humberto Maturana e Sebastián Gaggero Káritas Ribas

6.

7.

ENSAIO FOTOGRÁFICO Rafael Roncato [conteúdo on-line]

RELATORIA DO SEMINÁRIO Seminário ocorrido em 14/11/2019 [conteúdo on-line]


Horrana de Kássia Santoz, Masp, assistente de Mediação e Programas Públicos

O ensaio fotográfico desta edição da Revista Observatório foi desenvolvido por Rafael Roncato, fotógrafo e artista visual que vive e trabalha em São Paulo. Roncato é graduado em jornalismo multimídia, especificamente em fotografia, e pós-graduado em cinema, vídeo e fotografia. Atualmente pesquisa e trabalha com produção editorial e vídeo, e é diretor de fotografia do programa Fluxo de Consciência, apresentado pelo escritor Ronaldo Bressane.


Felipe Mancebo, Sesc/SP, gerente da unidade Avenida Paulista

“Um dos sentimentos mais comuns e belos que notei ao produzir os retratos foi o amor dessas pessoas pela cultura. Com essa percepção, tentei evidenciar que uma mostra, um evento, uma palestra, ou quaisquer outras funções que uma instituição cultural possa oferecer não acontecem do dia para a noite, muito menos sem pessoas que sejam realmente apaixonadas pelo que fazem. Elas são a mão que faz a roda girar e que passa despercebida aos olhos do público. Pessoas que trabalham arduamente nos bastidores para o usufruto do outro, independentemente das dificuldades encontradas nesse campo.” Rafael Roncato


Milton Carvalho, Masp, orientador de pĂşblico



1.

PANORAMA DAS ORGANIZAÇÕES CULTURAIS E DOS PROFISSIONAIS DO SETOR

24 .

DADOS E TENDÊNCIAS DAS ORGANIZAÇÕES CULTURAIS E DE SEUS PROFISSIONAIS NO BRASIL Ana Letícia Fialho e Ilana Seltzer Goldstein


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Elicéia Amarante, Japan House SP, gerente financeira


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DADOS E TENDÊNCIAS DAS ORGANIZAÇÕES CULTURAIS E DE SEUS PROFISSIONAIS NO BRASIL Ana Letícia Fialho e Ilana Seltzer Goldstein [artigo produzido em janeiro de 2019]

A partir da leitura de pesquisas recentes, o presente artigo procura oferecer uma abordagem panorâmica do cenário cultural brasileiro, sobretudo nas últimas duas décadas, esboçando um pano de fundo sobre o que se pode refletir sobre a atuação das organizações culturais e sobre seu papel central no futuro próximo. Em relação à gestão de pessoas, especificamente, não existem ainda levantamentos suficientes para se tecer um panorama do setor, mas são apresentados alguns dados e tendências. Alguns dos pontos destacados no texto são o crescimento do mercado de trabalho no setor cultural nas duas primeiras décadas do século XXI; o alto nível de escolaridade de seus profissionais, comparativamente a outros segmentos da economia; e, apesar disso, um quadro geral que ainda revela instabilidade e relativa precariedade. A criação de novas possibilidades de investimento poderá trazer maior estabilidade ao setor – e a seus profissionais. A recém-aprovada lei que regulamenta os fundos patrimoniais, por exemplo, permitirá o financiamento contínuo das organizações, impactando nas condições de trabalho. Por fim, enfatiza-se a importância de as organizações privadas e do terceiro setor se alinharem, não apenas para desenvolverem conjuntamente ferramentas e estratégias que aprimorem a gestão de pessoas e a governança, mas também porque seria importante assumirem um protagonismo ainda maior, num cenário político de redução do papel do Estado e de provável enfraquecimento, na arena pública, de bordões que vinham pautando as políticas culturais, como diversidade, acessibilidade e inclusão.

O desafio de traçar um panorama das organizações culturais no Brasil

A

configuração do campo cultural no Brasil se deu historicamente pela convergência da atuação pública e privada, constituindo um modelo híbrido1 que sempre dependeu, em maior ou menor medida, da participação da sociedade civil e do investimento privado, ao menos se considerarmos as instituições culturais mais longevas e as mais relevantes.

A partir do final da década de 1990, o campo cultural se expandiu, diversificou e profissionalizou, movimento fortemente impulsionado pela promulgação da Lei Rouanet, em 1991: multiplicaram-se equipamentos e organizações culturais, ampliaram-se os públicos da cultura, surgiram e se consolidaram entidades e organizações setoriais, elevou-se o número de profissionais que atuam no setor, foram criados cursos de graduação e pós-graduação em áreas relacionadas à produção e gestão cultural, e


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proliferaram publicações e pesquisas dedicadas ao tema.2 A importância e a profissionalização conquistadas pelo setor cultural refletem-se no florescimento de estudos e pesquisas sobre arte, cultura, economia criativa, políticas culturais e temas afins, com os mais diversos recortes, enfoques e metodologias, realizados pelo poder público, pela sociedade civil, pelas universidades e muitas vezes por dois ou três deles em parceria. Ainda assim, o dinamismo e o desenvolvimento do campo cultural brasileiro não podem ser aferidos de forma satisfatória, pois não existem dados nacionais oficiais consolidados sobre o setor cultural.3 O que há são dados dispersos, pesquisas parciais e com frequência descontinuadas que utilizam fontes e metodologias distintas – o que frustra qualquer pretensão de oferecer um retrato abrangente e fidedigno do campo cultural brasileiro. Dispomos de dados heterogêneos, algumas vezes díspares, que nos obrigam a alertar o leitor de que ele não encontrará aqui um verdadeiro “panorama” do setor, no sentido de dimensionar o seu universo e compreender plenamente suas características, dinâmicas e gargalos. Nosso objetivo, nas próximas páginas, é apenas apresentar alguns estudos e pesquisas recentes que revelam facetas interessantes do campo cultural brasileiro e, a partir daí, levantar reflexões considerando o momento presente do país. O foco recairá especialmente sobre a participação da iniciativa privada no campo cultural e o universo das organizações culturais que não fazem parte da administração pública direta, mas têm finalidade pública,

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atendendo a interesses da sociedade civil, pois acreditamos que essa esfera do campo cultural deverá assumir um protagonismo ainda maior do que tem hoje. Optamos aqui por uma abordagem cronológica, a partir de dados trazidos por pesquisas de referência, a fim de oferecer uma visão da evolução do setor até a apresentação do cenário atual e de seus desafios futuros. Num contexto de mudanças demasiado recente para avaliarmos o seu impacto, parece-nos oportuno revisitar os dados disponíveis, reconhecer conquistas, apontar lacunas e refletir acerca das prioridades e dos desafios a serem enfrentados pelas organizações e pelos profissionais da cultura. Entre eles, destacamos a busca de maior autonomia das organizações culturais em relação ao investimento direto do Estado e às leis de incentivo, bem como a busca de melhores modelos de governança e gestão, visando à superação da lógica de eventos em prol de uma visão de sustentabilidade em médio e longo prazos. As pesquisas e suas contribuições4 Uma iniciativa pioneira no mapeamento da participação de empresas no campo social teve origem no final dos anos 1990, no Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (Ipea), e foi consolidada em uma publicação de 2006: A Iniciativa Privada e o Espírito Público. O universo pesquisado abrangeu empresas em atividade no Brasil no período de 1999 a 2005, com um ou mais empregados, utilizando os dados oficiais da Relação Anual de Informações Sociais (Rais).5 Pretendia-se levantar a proporção de empresas brasileiras que investiam em ações sociais, que tipos de ações eram realizados e quem eram os beneficiados, quais

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as características da atuação e as diferenças de perfil das empresas, o montante de gastos realizados, a proporção de empresas que atuavam em parceria e com quem eram firmadas tais parcerias, bem como os resultados alcançados e esperados. Entre outras coisas, aprendemos com essa pesquisa que, entre o final dos anos 1990 e 2004, houve um aumento generalizado no número de empresas que declararam realizar algum tipo de ação social, por região, por atividade econômica e por porte, passando de 59%, em 2000, para 69% em 2004. Naquele período, eram as empresas de grande porte que mais participavam de ações sociais (94%), mas as de pequeno e médio porte tiveram aumento significativo, passando de 54% para 66% e de 67% para 86%, quando se comparam os anos de 2000 e 2004. Os recursos investidos nesses dois anos, respectivamente, foram calculados em 0,43% e 0,27% do PIB do país. Outro dado que merece destaque é o uso modesto de incentivos fiscais. Apenas 6% das empresas, em 2000, e 2%, em 2004, lançaram mão desse tipo de mecanismo, sendo que as grandes empresas utilizaram-no muito mais do que as pequenas. Conforme analisam os próprios autores: “[...] O montante deste investimento social privado é pouco influenciado pelas políticas de benefício tributário [...]. O envolvimento social do setor privado ocorre independentemente do Estado: trata-se de uma forma de intervenção das próprias empresas que não reconhecem influências do governo na sua forma de atuação. [...] Enquanto entre as empresas menores (até dez empregados) o uso desses benefícios atingia 0,7% das empresas, entre aquelas com mais de 500 empregados a proporção era muito maior: 17% delas

beneficiaram-se de políticas de benefícios fiscais para atuar em 2004” (Ipea, 2006, p. 18). O porcentual de empresas que investia em cultura permaneceu bastante semelhante em 2000 e 2004: 14% e 13%. A área cultural, como se nota no gráfico a seguir, ficou atrás de muitas outras, como alimentação, lazer e recreação, desenvolvimento comunitário e mobilidade; à frente, entretanto, de segurança e ambiente. A mesma pesquisa apontou ainda que uma parcela significativa de empresas atuava de forma eventual. Nota-se paralelamente o crescimento do porcentual de empresas atuando em resposta a demandas comunitárias ou do governo, de 33%, em 2000, para 47%, em 2004. Interessante observar também que o porcentual de parcerias não era alto. Somente 43% das empresas declararam realizar parcerias em suas ações. As parcerias se davam, em grande parte, com organizações sem fins lucrativos, e também diretamente com comunidades, outras empresas e órgãos governamentais. Dois aspectos detectados por esse estudo pioneiro se mantêm atuais: a baixa utilização das leis de incentivo fiscal por parte das empresas que realizam investimento social privado e a potência das parcerias entre os setores público e privado. Percebe-se que as empresas, já nesses momentos iniciais, estavam dispostas a investir, inclusive recursos próprios, em causas que lhes pareciam benéficas para a sociedade e/ ou para a sua imagem. Cabe aos órgãos públicos facilitar, estimular e valorizar tais empresas – até porque os recursos do Estado dificilmente serão suficientes para cobrir os custos de tantas áreas e demandas –, independentemente de questões ideológicas, e à iniciativa privada a negociação de um ambiente normativo e legal favorável a sua atuação e seu investimento.


GESTÃO DE PESSOAS EM ORGANIZAÇÕES CULTURAIS

ANA LETÍCIA FIALHO E ILANA GOLDSTEIN

INFOGRÁFICO 1: A INICIATIVA PRIVADA E O ESPÍRITO PÚBLICO (IPEA, 2006) 41%

Alimentação e abastecimento

52% 54%

Assistência social

41% 17%

Saúde

24% 19% 23%

Educação/Alfabetização 7%

Lazer e recreação

19% 19% 18%

Desenvolvimento comunitário e mobilização social

17% 15%

Esporte Qualificação profissional

2%

14% 14% 13%

Cultura Segurança Meio ambiente

2000

13% 7% 7%

9%

2004

Fonte: Ação Social das Empresas no Brasil (Ipea/Disoc), 2006.

O universo das fundações e associações Dois outros estudos que comentaremos são: As Fundações Privadas e Associações Privadas sem Fins Lucrativos no Brasil 2010, iniciativa conjunta do IBGE e do Ipea, em parceria com a Associação Brasileira de Organizações Não Governamentais (Abong) e o Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife), com colaboração

da Secretaria-Geral da Presidência da República; e sua versão atualizada e ampliada, Perfil das Organizações da Sociedade Civil no Brasil, publicada em 2018 pelo Ipea, e que contou com a colaboração de um grupo de especialistas do meio acadêmico e do próprio setor. Essas pesquisas fazem uso de metodologia internacional elaborada pela divisão de estatísticas da Organização das Nações

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Unidas (ONU), em conjunto com a Universidade John Hopkins, em 2002, para a definição do universo pesquisado, o que permite a comparabilidade com dados de outros países.6 De acordo com tal metodologia, foram consideradas as entidades que atenderam a cinco critérios: ter natureza privada, não ter fins lucrativos, estar legalmente constituída, ser autoadministrada e ter sido criada voluntariamente (ficaram excluídas iniciativas resultantes de compensações ou outras imposições jurídicas). O intuito do Ipea é mapear o universo das associações e fundações a partir de dados obtidos em bases de dados nacionais, de forma continuada,7 e dar a conhecer o perfil das entidades em relação a finalidade, idade, localização, emprego, remuneração e pessoal assalariado segundo gênero, raça e nível de escolaridade. Isso é importante pois “as fundações e associações são atores sociais e políticos que influenciam agendas públicas, exercem controle social, atuam na execução de políticas públicas e criam novos projetos de interesse público” (BARBOSA DA SILVA, 2010, p. 9). Esse entendimento se mantém: “As OSCs [organizações da sociedade civil] no Brasil definem temas centrais em discussão na esfera pública e exercem atividades de interesse coletivo que ecoam nos setores mais diversos da sociedade. [...] essas informações são fundamentais para formular ações direcionadas a esse setor, para apoiar gestores públicos a definirem políticas mais efetivas e fomentar uma agenda de novas pesquisas sobre o tema” (LOPEZ, 2018, p. 11). A publicação de 2018 apresenta resultados da análise de dados do Cadastro

Nacional de Pessoas Jurídicas (CNPJ) e da Rais, e traz um retrato inédito do universo de 820 mil OSCs ativas no Brasil em 2016, além de dados sobre o pessoal ocupado em 525 mil delas em 2015. A distribuição das organizações acompanha a distribuição da população, havendo pelo menos uma instituição dessa natureza em cada município do país. O total do universo pesquisado empregava, em 2015, 3 milhões de pessoas, o equivalente a 3% da força de trabalho do país e a 7% das pessoas empregadas no setor privado com carteira assinada. O Sudeste concentra 60% das pessoas ocupadas com vínculo formal e mais de 50% das OSCs que possuem vínculo de emprego, evidenciando um setor mais estruturado e profissionalizado nessa região. Uma informação que chama muita atenção é que 83% das OSCs não possuem trabalhadores com vínculo formal de emprego, e 7% delas têm até dois vínculos, ou seja, 90% desse universo correspondem a micro-organizações, que desenvolvem suas atividades com apoio de equipes reduzidas e trabalhadores voluntários, o que sugere um universo de entidades com poucos recursos financeiros e humanos, e com limitada capacidade de atuação. As pesquisas identificaram uma grande diversidade nos objetivos organizacionais, que foram agrupados em oito grandes áreas: saúde, educação e pesquisa, cultura e recreação, assistência social, religião, associações patronais e profissionais, defesa de direitos e interesses e outras atividades, distribuídas conforme o Infográfico 2.


GESTÃO DE PESSOAS EM ORGANIZAÇÕES CULTURAIS

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29

Lilian Sarmento Sales, Sesc/SP, supervisora de Artes Visuais e Audiovisual


OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

30

INFOGRÁFICO 2: PERFIL DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL NO BRASIL (IPEA, 2018) GRANDES REGIÕES BRASIL

NORTE

NORDESTE

SUDESTE

SUL

CENTRO-OESTE

SAÚDE

Finalidade das OSCs

6.841

318

1.189

3.424

1.412

498

Hospitais

2.646

121

473

1.194

693

165

Outros serviços de saúde

4.195

197

716

2.230

719

333

Cultura e recreação

79.917

4.999

14.308

31.901

23.394

5.315

Esporte e recreação

55.246

3.177

7.950

22.328

18.271

5.315

CULTURA E ARTE

24.671

1.822

6.358

9.573

5.123

1.795

Educação e pesquisa

39.669

3.536

11.716

15.497

5.206

3.714

Educação infantil

8.381

453

1.456

4.517

1.287

668

Estudos e pesquisas

1.268

86

221

636

209

116

Educação profissional

972

77

186

484

150

75

Ensino médio

1.941

145

394

798

393

211

Ensino fundamental

9.509

981

4.163

2.501

1.138

726

Educação superior

3.242

194

535

1.732

499

285

Outras formas de educação

6.208

459

1.343

2.717

1.067

622

Atividades de apoio à educação

8.148

1.141

3.421

2.112

463

1.011

Assistência social

27.383

1.132

5.684

13.523

4.915

2.129

208.325

13.557

32.025

112.713

27.677

19.353

Associações patronais e profissionais

22.261

2.030

4.743

8.749

4.474

2.265

Associações profissionais

14.276

1.544

3.356

5.341

2.576

1.459

Associações empresariais e profissionais

7.985

486

1.387

3.408

1.898

806

339.104

31.950

108.337

104.526

71.424

22.867

Religião

Desenvolvimento e defesa de direitos e interesses


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GESTÃO DE PESSOAS EM ORGANIZAÇÕES CULTURAIS

INFOGRÁFICO 2 (CONTINUAÇÃO):

GRANDES REGIÕES Finalidade das OSCs

BRASIL

NORTE

NORDESTE

SUDESTE

SUL

CENTRO-OESTE

41.611

5.860

13.822

10.166

9.483

2.280

Associação de pais, professores, alunos e afins

40.697

4.930

12.733

12.156

7.740

3.138

Associação de moradores

33.460

2.485

11.529

10.647

7.061

1.738

Associações patronais e profissionais

29.882

4.365

12.919

4.952

5.591

2.055

Centros e associações comunitárias

20.630

965

11.792

4.424

2.868

581

Defesa de direitos e interesses – múltiplas áreas

CULTURA E RECREAÇÃO

14.091

997

3.302

4.751

4.240

801

Saúde, assistência social e educação

13.837

675

3.021

5.613

3.713

815

Religião

5.448

436

990

2.426

1.036

560

Meio ambiente e proteção animal

3.268

291

588

1.396

680

313

Desenvolvimento rural

2.288

257

1.507

228

97

199

Defesa de direitos de grupos de minorias

1.406

66

269

571

299

201

Outras formas de desenvolvimento e defesa de direitos e interesses

132.486

10.623

35.865

47.196

28.616

10.186

OUTRAS ATIVIDADES ASSOCIATIVAS

77.550

7.742

19.076

28.849

16.036

5.847

OUTRAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL

19.136

2.106

5.222

6.194

3.360

2.254

820.186

67.370

205.300

325.376

157.898

64.242

TOTAL Fonte: SFR (Brasil, 2016). Elaboração Ipea.

31


OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

32

INFOGRÁFICO 3: PERFIL DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL NO BRASIL (IPEA, 2018)

Até 0,0502

De 0,0503 até 0,154

0,155 ou mais

Fonte: Atlas do Desenvolvimento Humano Municipal e Mapa das Organizações da Sociedade Civil. Elaboração do Ipea. Obs.: categorização do indicador de OSCs per capita a cada mil habitantes baseada em três decis.

As organizações dedicadas à área cultural e artística inserem-se nos grupos Recreação e cultura e Defesa de direitos e interesses. Incluindo recreação, elas perfazem um total de 94.062 organizações, correspondendo a 11,4% do universo pesquisado. É difícil estabelecer o número exato daquelas dedicadas a cultura e arte, pois houve a desagregação no grupo Recreação e cultura, no qual então elas perfazem 24.671 organizações (o equivalente a 3% do total de OSCs), mas não no grupo Defesa de interesses. Além disso, existe

certamente um adicional de OSCs atuantes na área cultural dentro do grupo Associações patronais e profissionais, mas sem desagregação não há como mensurá-las. É no Sul e Sudeste onde se concentra um maior número de organizações dedicadas a arte e cultura. Em relação à mão de obra, chamam atenção a predominância de trabalhadoras mulheres, perfazendo 65% do total, e a alta escolaridade, sendo que 33% tinham curso superior. O contingente de trabalhadoras mulheres aumentou um pouco em relação


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a 2010, quando era de 62,9%, e o porcentual de trabalhadores com curso superior se manteve o mesmo. No setor cultural, especificamente, as mulheres ocupavam 56% dos postos e as pessoas com nível superior estavam em 18% dos postos, ficando abaixo da média geral nos dois aspectos. A média salarial das OSCs era de 3,3 salários mínimos. A média do subgrupo Cultura e arte diminuiu significativamente em relação à pesquisa de 2010, passando de 4,6 salários mínimos para 2,9 salários mínimos, ficando abaixo da média total

33

ANA LETÍCIA FIALHO E ILANA GOLDSTEIN

das OSCs. Essa variação, especificamente no setor cultural, enseja indagações às quais os dados quantitativos não permitem responder, sendo necessários outros estudos, segmentados, que abarquem também dados qualitativos sobre o setor. No grupo todo, inclusive na cultura, a média salarial das mulheres equivalia aproximadamente a 95% da alcançada pelos homens, quando a diferença no mercado de trabalho era de 76% – havendo, portanto, menor desigualdade nesse universo das OSCs.

INFOGRÁFICO 4: PERFIL DAS ORGANIZAÇÕES DA SOCIEDADE CIVIL NO BRASIL (IPEA, 2018) 5.000

5,0

4.500

3.500 3.000 2.500

3,4 3,3 3.010 2.971 2,7 2.504

4,0 3.610 3,4 3.053

1,9 1,9 1.661 1.674

1.500

4,5

4,4 3.838

3.474 2.657

2.000

3,0

2,9

2.656 2,8 2,5 2,4 2.400 2.237 2,3 2.038

2,4 2.160

4,5 4,0

3,5 3,4 2.978 3,0 2,5 2,0 1,5

Remuneração (homens)

Remuneração (mulheres)

Fonte: Rais ampliada com base na Rais/MTE 2015 (Ipea, 2018). Elaboração do Ipea.

SMs (homens)

Outras organizações da sociedade civil

Associação de atividade não especificada anteriormente

Desenvolvimento e defesa de direitos e interesses

Associações patronais e profissionais

0 Religião

0,5

0 Assistência social

500 Educação e pesquisa

1,0

Cultura e arte

1.000

Saúde

Remuneração (R$)

4.000

4.361

4.101

SMs

4,7

SMs (mulheres)


34

OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

O nível de escolaridade revelou forte Pesquisa Benchmarking do influência sobre a média salarial: 3,2 sa- Investimento Social Corporativo – lários mínimos para os empregados com 2007-2017 curso superior, ante 1,8 salário mínimo Mais conhecida pela sigla Bisc,8 a pespara aqueles sem curso superior. No sub- quisa é realizada pela Comunitas9 desde grupo Cultura e arte, essa diferença era de 2007. Estamos diante de mais um exemplo 4,6 salários mínimos para os profissionais resultante de parcerias de uma entidade com diploma universitário, ante 2,3 para privada sem fins lucrativos com outras organizações não governamentais, nacionais aqueles sem curso superior. Ainda em relação aos dados sobre e internacionais, e também com instituios profissionais empregados nas OSCs, é ções acadêmicas. De acordo com os realizadores do estuimportante destacar que a base de dados utilizada, a Rais, indica apenas os vínculos do, é do interesse de empresas e fundações que investem no campo social formais, ou seja, o continter em mãos uma ferramenta gente de trabalhadores au- Merece destaque o que contribua para o “desentônomos sem vinculação patamar anual elevado volvimento, aperfeiçoamento formal, embora possa ser no qual as empresas da gestão e avaliação dos invesexpressivo, não pode ser mantiveram os seus timentos sociais corporativos detectado. Esse aspecto, en- investimentos sociais, no Brasil” (p. 2). A Bisc serviria, tre outros, mereceria uma independentemente das portanto, para orientar as emanálise mais aprofundada, oscilações na conjuntura econômica e da recessão presas na tomada de decisões. que somente pesquisas quados últimos anos A edição especial de 2017 litativas permitem. ofereceu um balanço de dez Não obstante, trata-se de uma contribuição significativa para o anos da pesquisa. O universo pesquisado, conhecimento das organizações da socie- nesse caso, é relativamente restrito e hodade civil. Um aspecto interessante diz mogêneo: 268 empresas e 18 fundações que respeito à parceria entre o primeiro e o são parceiras da Comunitas e realizam investerceiro setores. O Ipea, órgão do gover- timentos sociais de forma recorrente. Vale no federal com mandato para produção destacar que, de novo, se trata de um olhar de estatísticas e pesquisas, atuou aqui em específico não sobre empresas e fundações sinergia com entidades privadas represen- que investem na área cultural exclusivamentativas das associações e fundações, for- te, mas sobre investimento no campo social necendo um exemplo inspirador de como de modo mais amplo, no qual a cultura é uma se obter resultados relevantes, que sirvam das áreas de interesse. Entre os resultados do balanço da para balizar políticas públicas e propostas de regulação, assim como para orientar o Bisc de 2017, merece destaque o patamar planejamento e desenvolvimento das en- anual elevado no qual as empresas mantiveram os seus investimentos sociais, tidades da sociedade civil.


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independentemente das oscilações na conjuntura econômica e da recessão dos últimos anos, cujo pico de R$ 3,2 bilhões foi atingido no ano de 2012. O último ano aferido por essa edição da pesquisa foi 2016, quando as empresas do grupo Bisc investiram cerca de R$ 2,4 bilhões em ações sociais, ambientais e culturais. Esses valores representam um crescimento de 35% em relação ao primeiro ano em que a pesquisa foi realizada. Os recursos investidos pelas empresas que responderam à pesquisa são majoritariamente privados e os incentivos fiscais representam apenas 19% dos investimentos nos últimos dois anos. Vê-se confirmada uma

tendência que já foi apontada anteriormente. Outro dado interessante é que o padrão de investimento é compatível com o padrão internacional indicado pelo Chief Executives for Corporate Purpose (CECP),10 parceiro da pesquisa, se considerada a participação dos investimentos no lucro bruto das empresas, o que contradiz o senso comum de que no Brasil a iniciativa privada tem pouco engajamento com as causas sociais. O porcentual de investimento das empresas brasileiras em relação ao lucro apontado pela pesquisa Bisc é muito próximo dos valores apontados pelo CECP, e em alguns anos maior, conforme podemos observar no Infográfico 5.

INFOGRÁFICO 5: PESQUISA BENCHMARKING DO INVESTIMENTO SOCIAL CORPORATIVO – 2007-2017

1,23% 0,95% 1,12% 1,13% 0,91% 0,92% 0,90%

0,92% 0,62%

2007

2008

CECP*

2009

2010

1,37%

1,18%

2011

1,00%

2012

1,43% 1,01%

2013

0,82%

0,84% 0,89% 0,70%

2014

2015

BISC

* Sobre o (CECP), visite: http://cecp.co – mediana dos percentuais da participação dos investimentos sociais no lucro bruto.

0,91% 0,66%

2016

35


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36

A dimensão qualitativa do balanço de dez anos da pesquisa Bisc mostra transformações ao longo das edições. Se no início predominavam iniciativas filantrópicas e pontuais, hoje as empresas estão investindo cada vez mais em ações estruturadas e estruturantes. Tem-se buscado também ampliar o alcance dos investimentos sociais, por meio do alinhamento entre eles e os negócios da empresa, da articulação com as políticas públicas e, mais recentemente, da adesão a agendas globais de desenvolvimento, como os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS), estabelecidos pela ONU. Aumentou ao longo dos anos a participação de recursos próprios, não incentivados, em projetos culturais. Nas palavras dos autores do relatório: “Os incentivos culturais são tradicionalmente os mais utilizados pelas empresas e efetivamente estimulam a sua atuação na área, embora venham perdendo espaço para outros incentivos no campo social. Cabe registrar, no entanto, que tal retração tem sido compensada pela alocação de recursos não incentivados no financiamento de projetos culturais. Em 2010, os recursos próprios das empresas correspondiam a 17% do total de investimento destinado a essa área, e em 2016 esse porcentual subiu para 54%” (Comunitas, 2018, p. 17). Em relação às áreas de concentração dos investimentos, educação ficou com uma fatia de 40% do total, ao passo que 20% couberam a arte e cultura. Esses números não variaram muito de um ano para outro.

INFOGRÁFICO 6: COMO EVOLUÍRAM OS INVESTIMENTOS EM EDUCAÇÃO E CULTURA? R$ 1.056 R$ 926

R$ 928 R$ 854

R$ 517

R$ 593 R$ 441

R$ 391

2009

2012

EDUCAÇÃO

2014

2016

CULTURA

Em milhões de reais (R$). Valores atualizados pela inflação.

A edição especial dos dez anos da pesquisa Bisc revelou que houve crescimento do número de voluntários envolvidos na implementação das atividades sociais corporativas e reconhecimento dos benefícios pelas lideranças. A pesquisa de benchmarking, em si, foi criada para ajudar empresas, institutos e fundações a mensurar resultados, qualificar equipes, adequar mecanismos de gestão, ampliar diálogo com stakeholders e aproximar-se das comunidades. Para além de uma ferramenta de monitoramento e gestão, trata-se de uma estratégia sofisticada de comunicação e fortalecimento do grupo. Poucas pesquisas na área cultural conseguem manter tamanha regularidade e coesão metodológica. Por outro lado, poucas pesquisas têm um universo tão homogêneo.


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Laura Braga, Japan House SP, coordenadora de Mídias Sociais

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INFOGRÁFICO 7: CENSO GIFE 2016 TOTAL

3%

1%

EMPRESAS

9%

1%

3% Para institutos e fundações familiares, 12% dos recursos são provenientes de bens e direitos e 6% mensalidades ou contribuições associativas (incluídos na categoria OUTROS).

5% 5%

28%

46%

99%

DOAÇÃO DA EMPRESA MANTENEDORA FUNDO PATRIMONIAL SUBVENÇÕES, CONVÊNIOS E OUTRAS PARCERIAS COM O SETOR PÚBLICO VENDA DE PRODUTOS E SERVIÇOS

Censo Gife 2016 O Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (Gife)11 realiza pesquisa bianual entre seus associados, para compreender melhor as características das organizações associadas e suas prioridades de investimento social. Em 2016, a pesquisa teve 116 respondentes, cujo perfil estava assim distribuído: 53% institutos e fundações empresariais, 19% institutos e fundações familiares,15% empresas, 13% institutos e fundações privadas. A crise econômica se fez sentir entre 2014 e 2016, pois, quando se comparam essas duas edições do Censo Gife, houve uma queda de quase R$ 1 bilhão no total investido pelas empresas e uma queda de 33% do valor de investimento incentivado.

Ainda assim, o total investido pelos respondentes, em 2016, foi de R$ 2,9 bilhões, sendo apenas R$ 402 milhões incentivados, que correspondem a 19% desse montante. O Sudeste aparece como privilegiado em termos de investimento social privado: 77% dos respondentes apoiaram projetos nessa região. Apenas 44% dos entrevistados apoiaram projetos que abrangiam todo o Brasil. As duas principais fontes dos recursos investidos são doações das empresas mantenedoras (46%) e de fundos patrimoniais (28%). Os fundos patrimoniais são fontes significativas, tanto nos institutos e fundações empresariais como nos institutos e fundações familiares, conforme demonstra o infográfico 7.


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INFOGRÁFICO 7 (CONTINUAÇÃO): INSTITUTOS E FUNDAÇÕES EMPRESARIAIS 11% 40% 3%

INSTITUTOS E FUNDAÇÕES FAMILIARES 24%

INSTITUTOS E FUNDAÇÕES INDEPENDENTES 3%

18%

6%

30%

11%

4% 2% 1%

18%

15%

7% 4%

40%

5% 21%

7%

2%

28%

CAPTAÇÃO JUNTO A PESSOAS FÍSICAS OU JURÍDICAS DOAÇÃO DE INDIVÍDUOS OU GRUPOS FAMILIARES MANTENEDORES CAPTAÇÃO JUNTO À COOPERAÇÃO/FILANTROPIA INTERNACIONAL OUTROS

No que concerne às áreas de interesse dos investidores sociais privados, a educação aparece em primeiro lugar, com 84%, seguida de formação de jovens para o trabalho e a cidadania, com 60%. Cultura e arte aparecem com 51% e apoio à gestão de organizações da sociedade civil com 50%. A porcentagem elevada de organizações investindo no apoio à gestão de quem pratica ações sociais, culturais, ambientais, educacionais etc. sugere a consciência de que tão fundamental quanto os objetivos e as intenções de uma iniciativa ou organização é a garantia de que os recursos humanos, materiais e financeiros sejam adequados e bem administrados. A lógica da eficiência parece estar se consolidando no universo das ações sociais, o que em princípio é positivo, contanto que se respeitem as especificidades das enti-

dades sem fins lucrativos, que as diferenciam do universo corporativo convencional. O número de respondentes que declararam executar seus próprios programas, 43%, é muito próximo daqueles que afirmaram doar e executar ações próprias, 41%. São bem menos numerosos os que doam e não executam: 16%. Isso revela envolvimento dos investidores sociais privados com as causas que apoiam, tanto que, para os próximos cinco anos, 39% dos respondentes planejam aumentar seus investimentos. O Censo Gife 2016 trouxe à tona algo já apontado em outras pesquisas. Somente 37% dos respondentes usam incentivos fiscais, o que significa que existe disposição e interesse do setor privado em alocar recursos próprios em ações sociais de um modo geral.

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Um aspecto que aparece nessa pesquisa e que não havia sido destacado anteriormente é a centralidade dos fundos patrimoniais,12 cujo debate no Brasil é ainda incipiente.13 Boa parte do investimento social privado mapeado pelo Censo Gife 2016 é oriunda de fundos patrimoniais de institutos e fundações empresariais e familiares, antes mesmo de se conseguir aprovar qualquer marco legal específico, tema ao qual voltaremos na última parte deste artigo. A surpresa dos doadores individuais A pesquisa Doação Brasil, publicada em 2016, com dados referentes a 2015, foi coordenada pelo Idis e operacionalizada pela Gallup. Trata-se da primeira pesquisa de abrangência nacional a mapear os hábitos de doação dos indivíduos no Brasil. Os dados obtidos são surpreendentes: em 2015, 46% dos brasileiros fizeram doações em dinheiro, como pessoas físicas, para instituições sociais, totalizando R$ 13,7 bilhões (0,23% do PIB). Esse valor é muito superior ao investimento social das empresas apontado pela pesquisa Bisc, que indicava R$ 2,3 bilhões em 2014. Os segmentos arte, cultura e direitos humanos não são mencionados nominalmente pelos respondentes individuais na pesquisa Doação Brasil. Por outro lado, os respondentes afirmam doar para iniciativas nos campos da saúde, infância, terceira idade e combate à fome e à pobreza. Nota-se, portanto, um cenário diferente daquele delineado pelas pesquisas com empresas. Algumas hipóteses podem ser elencadas: talvez cultura e arte sejam temas muito valorizados por especialistas, mas pouco valorizados

pela maior parte da população brasileira, que, aliás, tem pouco acesso a elas. A causa dos direitos humanos talvez seja prejudicada pelo preconceito e pela falta de clareza e informação do que realmente representa para o país. Já a velhice e a pobreza são realidades cotidianas e próximas de qualquer cidadão. Mas o que realmente interessa reter é que, ao contrário do que se costuma afirmar, supostamente em contraste com países como os Estados Unidos, existe, sim, entre nós gente que destina parte de seu orçamento pessoal a causas que lhe parecem solidárias, justas ou urgentes, como uma maneira de contribuir para o bem comum. A pesquisa detecta um potencial nas doações de pessoas físicas que precisa ser mais bem conhecido e aproveitado pelos agentes e instituições culturais. Por fim, é importante observar que a pesquisa realizada pelo Idis tinha também a finalidade de alimentar e subsidiar a discussão sobre os fundos patrimoniais no Brasil, da qual o instituto tem sido um dos principais protagonistas. Mercado de trabalho cultural Embora algumas publicações recentes venham se debruçando sobre o mercado de trabalho na cultura, nenhuma apresenta informações específicas sobre os profissionais que atuam em organizações culturais. Permitem, ainda assim, pinçar algumas características e tendências entre os trabalhadores da cultura em geral que provavelmente sejam válidas para os profissionais das organizações culturais. O artigo Os Trabalhadores da Cultura no Brasil: Análise do Perfil Socioeconômico e da


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Influência das Políticas Culturais em Anos o mercado de trabalho cultural (MTC) ao Recentes,14 de autoria de Francisco Ricardo conjunto do mercado de trabalho brasileiro e Calixto de Souza, se apoia em uma publicação compara-o a outros setores econômicos. do Ipea de 2010 (BARBOSA DA SILVA, 2010). Os resultados revelam uma década de Seus dados são de 2000, o que os torna desa- crescimento nos empregos culturais e inditualizados. Porém, é interessante notar que cam a alta escolaridade dos profissionais da alguns achados significativos em 2000 conti- cultura. No ano de 2002, o setor cultural totanuam fazendo sentido, como no caso do grau lizava 2,8 milhões de ocupações. Em 2014, a de informalidade do mercado de trabalho. cultura atingiu 3,7 milhões de ocupações. No A informalidade que reinava então en- mesmo ano, o mercado de trabalho cultural tre os trabalhadores da cultura era superior cresceu 34% em relação ao observado em àquela observada no mercado de trabalho 2002. Portanto, foi mais dinâmico do que o como um todo: seu índice nas profissões mercado de trabalho brasileiro, que cresceu culturais era de 62,9% nos somente 24% no período. anos 2000, 13% maior que no Em 2014, a cultura atingiu Quanto à escolaridade, total das ocupações. Calixto 3,7 milhões de ocupações. em 2002, o nível de instrução de Souza comenta – e lamen- No mesmo ano, o médio dos trabalhadores da ta – a esse respeito: “[...] a au- mercado de trabalho cultura era 53% superior ao sência de censos específicos cultural cresceu 34% em do mercado de trabalho em dificulta sabermos quantos relação ao observado geral. Em 2014, as taxas de essão os trabalhadores e pro- em 2002. Portanto, foi colaridade subiram em todos fissionais que atuam na cul- mais dinâmico do que os segmentos do mercado de o mercado de trabalho tura de forma informal como trabalho, de modo que a difebrasileiro, que cresceu freelancers. Que renda esses rença caiu para 37%, mas não somente 24% no período trabalhadores ou empreendedesapareceu. A média de anos dores culturais auferem? Sude estudo no mercado de trapõe-se que é uma renda que oscila de acordo balho como um todo era de 8,7 anos, enquancom a sazonalidade e precariedade deste tipo to no segmento da cultura atingia 11,8 anos. de trabalho que não assegura os mesmos diUm terceiro aspecto que se destaca no reitos garantidos ao trabalhador com carteira artigo de Barbosa refere-se ao tipo de inserassinada” (p. 971). ção no mercado de trabalho. Em 2014, cerUm segundo artigo abordando o trabalho ca de um terço dos profissionais da cultura na área cultural foi publicado por Frederico atuava de modo informal. Barbosa explica Barbosa em 2018, Análise do Mercado de Tra- que a proporção de trabalhadores informais, balho Cultural (BARBOSA DA SILVA, 2010), atuando por conta própria ou sem carteira com base na Pesquisa Nacional por Amostra assinada, declinou a partir de 2009, exceto de Domicílios, do Instituto Brasileiro de Geo- nos anos de 2013 e 2014. O próximo infográgrafia e Estatística (Pnad/IBGE), trazendo fico permite visualizar a queda gradual das dados de 2002 a 2014. A análise relaciona taxas de informalidade.

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INFOGRÁFICO 8: ANÁLISE DO MERCADO DE TRABALHO CULTURAL

45,00 40,00

42,51

35,00

40,85

40,53

39,85

40,64

39,60

39,76

38,37

30,00 25,00

30,34

30,53

2011

2012

29,89

30,89

2013

2014

20,00 15,00 10,00 5,00 0 2002

2003

2004

2005

2006

2007

2008

2009

Fonte: microdados da Pnad (IBGE). Elaboração: Disoc/Ipea/autores com base em microdados da Pnad. O IBGE não disponibiliza os microdados do Pnad referentes ao ano de 2010.

Sabemos que a lógica de eventos pontuais e midiáticos em detrimento de ações em médio e longo prazos, ancorada no modelo de financiamento da cultura via leis de incentivo, tende a estimular contratações temporárias. Mas não necessariamente leva à informalidade, sobretudo a partir da entrada em vigor do estatuto do microempreendedor individual, criado com vistas a diminuir o número de trabalhadores atuando na informalidade. Uma coisa é a sazonalidade, que realmente pode

acompanhar o ciclo de vida dos projetos e a própria natureza da criação artística, e que, sem dúvida, traz incertezas. Outra coisa é trabalhar na informalidade, ou seja, sem nenhum contrato, formalização, recolhimento de tributos e assim por diante. Acreditamos que a informalidade talvez seja mais contornável que a sazonalidade. De qualquer modo, pode haver precariedade – na remuneração, na duração da jornada, na infraestrutura etc. – mesmo dentro da formalidade.


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Considerações finais Com base nos estudos e pesquisas apresentados nas páginas anteriores, mas também levando em consideração anos de experiência na gestão cultural pública e privada, levantamos, à guisa de conclusão, questões e desafios que nos parecem prementes e que precisam ser enfrentados e debatidos pelas organizações culturais no Brasil. Antes de tudo – exceções feitas para o Censo Gife e a Bisc, que analisam apenas o seu próprio grupo –, saltam aos olhos a descontinuidade na maior parte das pesquisas, a raridade das séries históricas e a dificuldade de comparar os números entre si e também os números da cultura com aqueles de outros setores, assim como a escassez de informações qualitativas sobre o funcionamento das organizações culturais. O setor público pode ser um parceiro importante na realização de estudos e pesquisas, principalmente o Ipea, com toda a expertise que acumulou em estudos sobre cultura. Entretanto, os recursos humanos e financeiros dos órgãos públicos, em um período de contenção de gastos e de defesa de um Estado mínimo, certamente não serão suficientes para dar conta de tão complexa tarefa. É fundamental que entidades da sociedade civil contribuam ativamente e regularmente para a produção de dados e estatísticas sobre o setor cultural, permitindo aferir a sua relevância no contexto econômico brasileiro, e também viabilizando a realização de estudos qualitativos que permitam o mapeamento e diagnóstico de setores específicos, o perfil e as condições laborais dos profissionais que nele atuam, além da avaliação do impacto social e econômico de suas atividades.

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Não apenas para viabilizar a produção de pesquisas, mas também para potencializar as ações, para gerar complementaridade e evitar redundância, faz-se necessário fortalecer as redes e parcerias já existentes, além de buscar novas. Se o Estado deixa de assumir o papel de formular diretrizes conceituais e metodológicas para a cultura, restam às organizações culturais não estatais a discussão, a negociação e a definição de uma agenda mínima, que confira coerência e profundidade ao campo cultural brasileiro. Nos anos vindouros, é possível que temas como a diversidade étnico-cultural desapareçam da agenda pública. É provável que novas diretrizes surjam e que entrem em confronto com linhas de ação que vinham sendo desenvolvidas na última década. Assim, é muito importante buscar alinhamento entre as organizações da sociedade civil e os trabalhadores culturais, no sentido de repensar suas estratégias e posicionamentos em um contexto em que o Ministério da Cultura foi extinto, a Lei Rouanet está em risco e disputas ideológicas assumiram um papel central na gestão pública. As árduas conquistas do setor cultural – em termos de profissionalização, inovação, experimentação, inclusão e assim por diante – precisam ser garantidas, o que só será possível com o fortalecimento de redes que permitam uma maior colaboração entre as organizações, seja na definição e negociação de uma agenda comum;15 no compartilhamento de dados, pesquisas e metodologias de diagnóstico, avaliação e monitoramento; na identificação de melhores práticas de governança e gestão; na busca de sinergias nas respectivas programações; na coprodução

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Marcelo Tápia, Casa das Rosas, diretor da Rede de Museus-Casas Literários

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de atividades e eventos; na realização de itinerâncias; no intercâmbio e qualificação das equipes; na cooperação técnica; ou na garantia de espaços e arenas para o debate livre e o pensamento crítico, entre outras possibilidades. Outro ponto importante da agenda diz respeito a novos modelos de financiamento e estratégias de sustentabilidade para o setor cultural. Como a defesa da Lei Rouanet é quase um consenso entre o setor, gostaríamos de destacar aqui um novo instrumento, que terá certamente um impacto importante para o futuro das organizações culturais no Brasil. Os fundos patrimoniais, objeto da Lei nº 13.800/2019, podem se tornar um instrumento importantíssimo para a sustentabilidade das organizações culturais e trazer uma perspectiva de médio e longo prazo inédita para o setor cultural brasileiro. Ao contrário da Lei Rouanet – ou talvez complementarmente a ela –, os fundos patrimoniais não podem ser utilizados na realização de projetos temporários ou para preencher a programação. Eles são, antes, voltados para a manutenção das equipes, dos equipamentos e da infraestrutura das organizações. Trata-se, portanto, de uma lógica diferente da que vigorou até aqui nos mecanismos de incentivo fiscal, que acabavam sendo usados predominantemente em ações de curta duração, e que exigiam um grande e constante esforço das instituições e suas equipes na captação de recursos. As instituições que lograrem constituir fundos patrimoniais terão maior estabilidade e poderão direcionar seus esforços ao cumprimento de sua missão e às suas atividades-fim, assim como ao desenvolvimento de

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políticas de recursos humanos que valorizem e ofereçam maior estabilidade a seus quadros de colaboradores. Numa primeira leitura de Luciane Gorgulho, diretora do Departamento de Economia da Cultura (Decult) do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) – entidade que catalisou os debates em torno dos fundos patrimoniais desde o início –, a nova lei traz ganhos: “Esse instrumento pode ser de grande valia para a sustentabilidade financeira das organizações sociais no longo prazo. [...] Embora antes da lei não houvesse restrição legal para que instituições privadas constituíssem estruturas assemelhadas a endowments, a ausência de um marco regulatório definido que previsse a clara segregação jurídica entre o endowment e a instituição a ele relacionada poderia ensejar riscos à blindagem dos recursos do principal desses fundos contra contingências jurídicas diversas (tributárias, trabalhistas etc.)” (comunicação pessoal, 13 jan. 2019). A Lei dos Fundos Patrimoniais também estabelece diretrizes para governança e fiscalização, o que exigirá a adoção de boas práticas por parte das organizações, de forma a garantir transparência e confiabilidade, requisitos fundamentais para que doadores privados se engajem na constituição dos fundos. Sem dúvida, essa não é uma solução para qualquer organização,16 uma vez que depende de um montante considerável de recursos para a constituição do fundo. Porém, seria possível imaginar uma situação em que um fundo fosse criado para contemplar um conjunto de pequenas instituições. Mais uma vez, redes, parcerias e alinhamento se revelam cruciais para o futuro do setor.

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Se os fundos patrimoniais se tornarem ser dispensados a qualquer momento sem uma tendência no Brasil, talvez isso possa que suas contratações impliquem o pagagerar ambientes institucionais mais estáveis, mento de encargos sociais e impostos. Em seque favoreçam o aspecto da gestão de pes- gundo lugar, constelações políticas internas soas, provavelmente um dos mais frágeis no e externas aos equipamentos culturais parecampo cultural. Temos essa impressão desde ciam exercer grande influência: mudanças que coordenamos a pesquisa Economia das sucessivas de gestão, seja no poder público, Exposições de Arte Contemporânea, entre seja nas empresas mantenedoras. Ademais, 2010 e 2011, acerca da programação e da ges- profissionais altamente qualificados, nortão de instituições voltadas para a arte con- malmente ocupando cargos comissionados temporânea no Brasil.17 Ainda que o recorte ou atuando como consultores externos, queidaquele estudo fosse focado e específico, xaram-se, na fase qualitativa da pesquisa, da foram contatadas cerca de 80 organizações dificuldade de interagir com os funcionários em todo o território nacional, permanentes, menos qualificados chegando-se a conclusões inte- Por não possuir e menos remunerados. ressantes, inclusive no tocante à um modelo de Durante as entrevistas, o (a) gestão de pessoas. dirigente de um equipamento gestão adequado, Constatamos, por exemplo, (o equipamento) cultural na Região Sul questioque a maioria dos profissionais, acabava seguindo nou a baixa profissionalização mesmo nas instituições públicas, a “lógica do sistema das artes no Brasil. era composta de colaboradores neoliberal do Um(a) entrevistado(a) de um comissionados ou terceirizados. espetáculo” equipamento cultural na Região No caso de instituições como as Centro-Oeste admitiu que, pelo Bienais de São Paulo e do Mercosul, já espe- fato de a instituição não possuir um moderávamos que fossem contratados, tempora- lo de gestão adequado, acabava seguindo a riamente, colaboradores terceirizados. Mas a “lógica neoliberal do espetáculo”, em que se tendência era geral. O Centro Cultural Banco financiam grandes eventos pontualmente, do Brasil de São Paulo, por exemplo, contava ao passo que a qualificação técnica e a fornaquele momento com 160 colaboradores mação de quadros no museu não recebiam terceirizados, 4 comissionados e apenas 17 recursos. Um(a) respondente da Região permanentes. Já o Parque Lage, no Rio de Sudeste, por sua vez, lamentou que dois Janeiro, contabilizava 75 terceirizados, 13 dos mais experientes colaboradores de seu comissionados e 4 permanentes. No Museu equipamento cultural tinham partido para o Nacional de Brasília, encontramos 52 tercei- exterior, em busca de melhores perspectivas rizados, 4 comissionados e 13 permanentes.18 de trabalho. A mesma pessoa comentou que A presença maciça de profissionais co- a entidade funcionava, naquele momento, missionados e terceirizados refletia, em pri- com praticamente metade dos colaborameiro lugar, a flutuação orçamentária, uma dores que possuía na década de 1990, por vez que trabalhadores terceirizados podem questões orçamentárias, e que estava tendo


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dificuldade em encontrar e reter profissio- não fiquem concentradas em uma única pesnais qualificados. Por fim, o (a) dirigente de soa, fragilizando a instituição, atrasando e um equipamento cultural na Região Nordes- interrompendo processos. Em seguida, por te justificou não ter entregue os documen- uma questão de ética e transparência, são tos solicitados por nossos pesquisadores em bem-vindos os processos seletivos públicos; virtude da substituição rotineira de colabo- a paridade salarial para homens e mulheres; radores, o que impossibilitou a localização a formulação de planos de cargos e salários, dos documentos. ainda que com pequenos patamares e deÉ possível que, de 2010 para cá, esse ce- graus, a fim de gerar uma maior estabilidade nário tenha se aprimorado. E sabemos que das equipes e estimular a permanência de conão se pode extrapolar diretamente resul- laboradores que conheçam e tenham vínculo tados obtidos numa pesquisa sobre museus com as organizações. Por fim, o incentivo à e espaços expositivos de artes visuais, inclu- formação/aperfeiçoamento de funcionásive públicos, para o universo das rios em todos os níveis e setores, A criação e a organizações culturais privadas apoiando capacitações, estágios, e do terceiro setor. De todo modo, manutenção de viagens, horas dedicadas a proa nossa pesquisa deixou no ar um um campo cultural jetos de voluntariado ou práticas dinâmico (...) alerta que nos parece certeiro e artísticas amadoras, por exemplo. dependerão cada ainda atual: precisaríamos de Boa parte de tais desafios vez mais de uma melhores estratégias de gestão atuação refletida, e recomendações extrapola as de pessoas e melhores políticas consciente e prerrogativas individuais das de recursos humanos, sem as posicionada das organizações e necessita de um quais as instituições perdem co- organizações movimento coletivo coordenado nhecimento acumulado, desper- culturais e da e do diálogo com políticas públicas diçam esforços empreendidos no sociedade civil específicas. Como já apontamos, passado, dispersam a memória a organização setorial e a atuação institucional e contribuem para que os pro- em rede nos parecem indicadas para avanfissionais da cultura trabalhem em cenários çarmos numa agenda mínima comum. A instáveis, de pouca solidez, sem planejamen- partir de agora, a criação e a manutenção de to de médio e longo prazos, com pouco incen- um campo cultural dinâmico, diverso e livre, tivo em termos de carreira. Isso certamente que contemple as mais diversas linguagens, prejudica a produtividade, o aprimoramento ideias e segmentos étnicos e sociais, no qual e mesmo a criatividade dos profissionais das atuem profissionais inovadores e qualificaartes e da cultura. dos, dependerão cada vez mais da atuação Como atenuar tais problemas, sobretu- refletida, consciente e posicionada das orgado se não forem possíveis grandes amplia- nizações culturais da sociedade civil. Acreções orçamentárias? Em primeiro lugar, ditamos que seu protagonismo, no campo a descentralização da gestão costuma ser cultural, tende a ser ainda mais relevante benéfica para que as funções e informações do que já tem sido até aqui.

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Ana Letícia Fialho É gestora cultural, professora e pesquisadora. Atualmente é professora visitante do programa de pós-graduação em história da arte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). Pós-doutora pelo Instituto de Estudos Brasileiros da Universidade de São Paulo (2016), doutora em ciências da arte e da linguagem pela Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais (Ehess) de Paris (2006), mestra em gestão cultural pela Universidade de Lyon II (1999) e bacharel em direito pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul [UFRGS (1997)]. Foi diretora do Departamento de Estratégia Produtiva da Secretaria da Economia da Cultura/MinC de 2016 a 2018, gerente-executiva e consultora do programa Cinema do Brasil desde 2007, consultora em inteligência comercial e coordenadora de pesquisa do programa Latitude desde 2013 e curadora-executiva do Fórum Permanente de 2007 a 2013. É autora de diversas publicações, entre elas Sociologia das Artes Visuais no Brasil (Ed. Senac, 2012); O Valor da Obra de Arte (Ed. Metalivros, 2014); La Sociologie des Arts Visuels au Brésil (Ed. L’Harmattan, 2014); e Outras Histórias na Arte Contemporânea (Ed. Paço das Artes, 2016). É coorganizadora, com Leandro Valiati, do Atlas Econômico da Cultura Brasileira (MinC/UFRGS, 2017), finalista do Prêmio Jabuti em 2018.

Ilana Seltzer Goldstein É graduada em ciências sociais pela Universidade de São Paulo (USP), mestra em mediação cultural pela Universidade Paris III e doutora em antropologia pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Foi docente e coordenadora do MBA em bens culturais da Fundação Getulio Vargas de 2008 a 2014, e docente na pós-graduação em gestão cultural do Senac de 2010 a 2013. Desde 2014, é membro do Departamento de História da Arte e do programa de pós-graduação em história da arte da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), onde também coordena a Cátedra Kaapora, voltada para a diversidade cultural e a simetrização de saberes. Paralelamente, vem atuando há mais de 20 anos junto a organizações como MinC, Itaú Cultural, Companhia das Letras, Base 7, Secretaria da Cultura do Estado de São Paulo e Sesc. Entre seus projetos recentes, destaca-se a exposição Tempo dos Sonhos, que itinerou pelo Brasil de 2016 a 2018. Entre suas últimas publicações estão o livro Cultura e Desenvolvimento (Ed. Senac, 2018, coautoria com Christian Strube); e os artigos Encontros Artísticos e Ayahuasqueiros: Reflexões sobre a Colaboração entre Ernesto Neto e os Huni Kuin (revista Mana, 2017, coautoria com Bia Labate) e Cooperativas Artísticas: o Exemplo dos Centros de Arte Indígena da Austrália (Revista Nava, UFJF, 2018).


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Referências BARBALHO, Alexandre; ALVES, Elder Patrick Maia; VIEIRA, Mariella Pitombo. Os trabalhadores da cultura no Brasil: criação, práticas e reconhecimento. Salvador: Edufba, 2017. BARBOSA DA SILVA, Frederico A. Análise do mercado de trabalho cultural. In: BARBALHO, Alexandre; ALVES, Elder Patrick Maia; VIEIRA, Mariella Pitombo (Org.). Os trabalhadores da cultura no Brasil: criação, práticas e reconhecimento. Salvador: Edufba, 2017, p. 11-29. BARBOSA DA SILVA, Frederico A.; ARAÚJO, Herton Ellery. Indicador de Desenvolvimento da Economia da Cultura (Idecult). Brasília: Ipea, 2010. FIALHO, Ana Letícia; GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. Conhecer para atuar. A importância de estudos e pesquisas na formulação de políticas públicas para a cultura. Revista Observatório Itaú Cultural, v. 1, p. 25-32. São Paulo: Itaú Cultural, 2012. FIALHO, Ana Letícia; GOLDSTEIN, Ilana Seltzer. “Economias” das exposições de arte contemporânea no Brasil: notas de uma pesquisa. In: CALABRE, Lia (Org.). Políticas culturais: pesquisa e formação. São Paulo: Itaú Cultural; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 2012. FIALHO, Ana Letícia; GOLDSTEIN, Ilana Seltzer; PROENÇA, Renata. Economias da arte contemporânea: programação, financiamento e gestão em instituições culturais brasileiras. In: VILLAS BÔAS, Gláucia; QUEMIN, Alain (Org.). Arte e vida social: pesquisas recentes no Brasil e na França, 1. ed., v. 1. Marseille: Open Edition Press, 2016. LOPEZ, Felix Garcia. Perfil das organizações da sociedade civil no Brasil. Brasília: Ipea, 2018. SOUZA, Francisco Ricardo Calixto de. Os trabalhadores da cultura no Brasil: análise do perfil socioeconômico e da influência das políticas culturais em anos recentes. In: CALABRE, L. et al. (Org.). Anais VIII Seminário Internacional de Políticas Culturais. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; São Paulo: Itaú Cultural, 2016. VALIATI, L.; FIALHO, A. L. (Org.). Atlas econômico da cultura brasileira. Brasília: MinC; Porto Alegre: UFRGS, 2017, 2 v.

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Links para a íntegra das pesquisas citadas: BISC/Comunitas. Benchmarking do Investimento Social Corporativo. Destaques de 2017. Disponível em: <http://www.comunitas.org/portal/download/bisc-2017-10anos-destaques/>. Acesso em: 5 mar. 2019. GIFE. Censo Gife 2016. Disponível em: <https://gife.org.br/censo-gife/>. Acesso em: 5 mar. 2019. IDIS. Coalizão pelos Fundos Filantrópicos. Disponível em: <https://www.idis.org.br/ coalizao/>. Acesso em: 5 mar. 2019. IDIS/Gallup. Pesquisa Doação Brasil 2015. Idis, 2016. Disponível em: <https://www. idis.org.br/pesquisadoacaobrasil/wp-content/uploads/2016/10/PBD_IDIS_ Sumario_2016.pdf>. Acesso em: 5 mar. 2019. IPEA. A iniciativa privada e o espírito público. Brasília: Ipea, 2006. Disponível em: <http:// www.ipea.gov.br/acaosocial/IMG/pdf/doc-44.pdf>. Acesso em: 14 mar. 2019. IPEA. Mapa das organizações sem fins lucrativos. Disponível em: <https://mapaosc. ipea.gov.br/>. Acesso em: 5 mar. 2019.

Notas 1

É interessante situar o Brasil em relação aos grandes modelos internacionais de funcionamento do campo cultural. Ao nosso entender, ele tem alguns elementos que o aproximam do modelo mais estatizante, conhecido como exceção cultural, no qual o Estado participa ativamente de todas as instâncias, da produção à difusão e comercialização, presente em países como França e Alemanha. Mas encontram-se também outros elementos mais próximos ao liberalismo anglo-saxão, no qual prevalecem as indústrias culturais e o mercado é o principal propulsor. Para que um e outro modelo funcionem, são indispensáveis a atuação estratégica do Estado e a existência de políticas públicas correspondentes. Nos Estados Unidos, por exemplo, a “cultura da doação” está fortemente amparada por um arcabouço tributário que incentiva tal prática e informa o planejamento da transmissão de patrimônio e herança de grandes fortunas.

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Por um lado, os momentos de mais dinamismo do setor cultural devem muito a motivações e inovações internas ao campo; mas, por outro lado, estão relacionados a fatores exógenos, tais como o crescimento ou recessão


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econômica, o ambiente normativo-legal ampliado e específico, as políticas públicas no âmbito federal, estadual e municipal e o grau de participação da sociedade civil. 3

Se tivessem sido criadas contas-satélites da cultura, ou seja, se o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) tivesse introduzido em seu esforço censitário questões que permitissem quantificar regularmente e nacionalmente o PIB da cultura, os empreendimentos, o consumo e a mão de obra ocupada no setor, seria mais fácil esboçar um panorama. Infelizmente, até hoje não se conseguiu implementar essa medida. Uma iniciativa federal recente nesse mesmo sentido foi a criação do Atlas Econômico da Cultura Brasileira, em 2017, fruto de uma parceria entre a Secretaria da Economia Criativa, do Ministério da Cultura (SEC/MinC), e a Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), que pretendia oferecer seis publicações e uma plataforma digital reunindo informações quantitativas e análises sobre empreendimentos culturais, mercado de trabalho, investimentos públicos e comércio exterior na área cultural. Porém, apenas os dois volumes introdutórios, referentes à metodologia, foram lançados (vide bibliografia); o resto do projeto, que deveria disponibilizar dados inéditos sobre empreendimentos culturais e criativos, mercado de trabalho, comércio exterior de produtos e serviços culturais e investimentos públicos em cultura, está paralisado em virtude de divergências de entendimento entre alguns dos envolvidos.

4

Serão aqui comentados textos sugeridos pela equipe editorial da Revista Observatório Itaú Cultural, cujas referências completas aparecem na bibliografia ao final do artigo.

5

Trata-se de uma base de dados formada a partir de informações fornecidas anualmente pelas empresas ao recentemente extinto Ministério do Trabalho e Emprego, e utilizada pelo IBGE para acompanhamento e caracterização do mercado de trabalho formal. Para mais informações, consultar: <https://ces.ibge. gov.br/base-de-dados/metadados/mte/relacao-anual-de-informacoes-sociaisrais.html>.

6

A metodologia internacional aplicada pelos autores do estudo consiste na publicação The Handbook on Non-Profit Institutions in the System of National Accounts. Consideramos louvável a preocupação com a comparabilidade, já que, ao redigir o presente texto, nós mesmas sentimos a dificuldade de comparar resultados das pesquisas. A categoria “jovens”, por exemplo, compreende faixas etárias diferentes em cada uma delas. Além disso, a cultura nem sempre aparece como uma rubrica à parte.

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O Ipea também criou o Mapa das Organizações da Sociedade Civil, uma plataforma de transparência on-line que traz, entre outras funcionalidades, ferramentas para consultas personalizadas sobre esse universo. Disponível em: <https://mapaosc.ipea.gov.br/>.

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Fazem parte do grupo Bisc empresas e fundações de grande porte, como Telefônica, Vivo, Tim, Votorantim, Itaú, Santander e Vale, entre outras.

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A Comunitas é uma organização da sociedade civil brasileira que tem como objetivo contribuir para o aprimoramento dos investimentos sociais corporativos e estimular a participação da iniciativa privada no desenvolvimento social e econômico do país. Todas as suas publicações estão disponíveis para download em: <http://www.comunitas.org/portal/bisc-publicacoes/>.

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Associação internacional de dirigentes de grandes empresas internacionais, fundada em 1999, com objetivos convergentes aos da Comunitas.

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O Gife é a associação dos investidores sociais do Brasil, sendo eles institutos, fundações ou empresas. Nascido como grupo informal em 1989, foi instituído como organização sem fins lucrativos em 1995.

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De acordo com o Fórum Internacional de Endowments para Legados, os fundos patrimoniais (ou endowments) “são estruturas financeiras destinadas a reunir doações de pessoas físicas e jurídicas, públicas ou privadas, e que funcionam como uma fonte de recursos previsíveis e perenes, uma vez que geram rendimentos financeiros a partir das verbas direcionadas para o fundo. Diferentemente de um fundo de investimento ou um fundo de reserva, a maioria dos endowments surge sob a obrigação de preservar perpetuamente o valor doado, sendo que as entidades podem fazer uso dos rendimentos do fundo para manutenção ou expansão de suas atividades, conforme regras acordadas. Assim, oferecem proteção contra a utilização ineficiente ou desorganizada de recursos. A experiência mostra que, para além da sustentabilidade financeira, a adoção de endowments colabora para o amadurecimento das instituições, uma vez que demanda a estruturação de uma governança sólida, com visão de longo prazo. Isso cria um ambiente mais seguro também para os investidores, estimulando a entrada de novas fontes de receita” (<https://www.leviskylegado. com/endowments/>).

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A mais importante iniciativa para colocar o tema na pauta das políticas públicas e na agenda das organizações sem fins lucrativos foi encampada pelo Instituto para o Desenvolvimento do Investimento Social (Idis), pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES) e pela Levisky Negócios & Cultura, que, desde 2016, promovem encontros sobre o tema com a participação da sociedade civil e do Estado, e acompanharam junto ao Poder Legislativo a criação de um marco legal específico, tendo como resultado a novíssima Lei nº 13.800/2019, promulgada em 4 de janeiro de 2019. Em junho de 2018, por iniciativa do Idis, foi criada a Coalizão pelos Fundos Filantrópicos, com a participação de importantes organizações públicas e privadas. O instituto segue acompanhando a agenda relacionada ao tema: <https://www.idis.org.br/coalizao/>.


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CALABRE, L. et al. (Org.). Anais VIII Seminário Internacional de Políticas Culturais. Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa; São Paulo: Itaú Cultural, 2016.

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Uma contribuição para a identificação e o endereçamento dos aspectos jurídicos e normativos que impactam o setor cultural, inclusive no aspecto de gestão de pessoas, foi a publicação do Mapa Tributário da Economia Criativa: Artes Visuais, Audiovisual, Editorial, Jogos Digitais e Música, elaborado pelo escritório Cesnik, Quintino e Salinas, contratado no âmbito do Acordo de Cooperação Técnica firmado entre o MinC e a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). A autora Ana Letícia Fialho foi responsável pela formulação da demanda e pelo acompanhamento do seu desenvolvimento até o final de sua gestão na SEC/MinC, em maio de 2018. Nesse estudo, pode-se observar que vários setores apontam dificuldades relacionadas à contratação de profissionais e de microempreendedores individuais, assim como imprecisão de categorias utilizadas na Classificação Nacional de Atividades Econômicas (CNAE). O estudo está disponível em: <http://cultura.gov.br/wp-content/ uploads/2018/12/Mapa_Tributario_da_Economia_Criativa_FINAL.pdf>.

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Vale notar que uma das críticas apontadas por agentes do setor cultural é que a sanção presidencial, já no novo governo, vetou boa parte dos incentivos fiscais previstos, o que seria importante para impulsionar os doadores privados a contribuírem para a constituição de fundos patrimoniais. Mas foi mantida, por ora, a previsão de abrangência da Lei Rouanet para esse instrumento, embora paire a dúvida sobre eventual necessidade de alteração na Lei Rouanet ou de Instrução Normativa específica para incluir a captação para fundos patrimoniais. O ineditismo e a novidade do instrumento geram ainda muitas questões e deverão ser objeto de debates e acompanhamento pelo setor.

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A pesquisa foi fruto de um convênio entre o MinC, a Fundação Iberê Camargo e o Fórum Permanente, e coordenada por Ana Letícia Fialho, com participação de vários pesquisadores, entre os quais a segunda autora deste artigo, Ilana Goldstein. O objetivo foi realizar um estudo sobre a economia das exposições nas instituições de arte contemporânea no Brasil que contribuísse para a elaboração de políticas públicas adequadas para o setor e que constituísse uma ferramenta de trabalho para as próprias instituições, em suas estratégias de gestão e desenvolvimento. Foram analisados 25 museus, 13 centros culturais, 9 espaços híbridos, 2 bienais e 9 salas expositivas sem acervo.

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Esses e outros resultados da pesquisa, bem como notas a respeito de sua metodologia, foram publicados em textos anteriores das autoras, notadamente “‘Economias’ das exposições de arte contemporânea no Brasil: notas de uma pesquisa” (2012) e “Economias da arte contemporânea: programação, financiamento e gestão em instituições culturais brasileiras” (2016).

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2.

O APRIMORAMENTO DA GESTÃO DE PESSOAS NAS INSTITUIÇÕES CULTURAIS

56. PROFISSIONALIZAÇÃO DO RH NAS INSTITUIÇÕES CULTURAIS: UM CAMINHO SEM VOLTA Ana Paula Sousa

71. A GESTÃO CULTURAL NO MÉXICO: TENSÕES E COMPROMISSOS Eduardo Nivón Bolán


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Hiromi Sato, Japan House SP, coordenadora de Operações

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PROFISSIONALIZAÇÃO DO RH NAS INSTITUIÇÕES CULTURAIS:

UM CAMINHO SEM VOLTA Ana Paula Sousa

A gestão de pessoas, pouco presente no cotidiano de boa parte do setor cultural brasileiro, passa a ganhar relevância, sobretudo, nas grandes organizações. As boas práticas de RH, além de levarem em conta as particularidades do meio artístico, estão preocupadas com o desenvolvimento dos funcionários e com a garantia de um ambiente saudável de trabalho.

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urante décadas, as instituições culturais no Brasil foram movidas essencialmente pela paixão. Gestões personalistas, instabilidade orçamentária, pensamento de curto prazo e contratações irregulares eram não apenas comuns como aceitas com relativa naturalidade. Diante de tal cenário, falar em recursos humanos soava destoante. No entanto, com o crescimento do setor a partir do século XXI – propiciado pelas leis de incentivo fiscal e pela proeminência adquirida globalmente pela cultura e pela criatividade (HOWKINS, 2001) –, a profissionalização da gestão das grandes instituições culturais foi se tornando imperativa. A reboque dela veio um novo olhar sobre o RH. Pouco a pouco, princípios que já eram básicos para o setor produtivo, como a estrutura de cargos e salários, o respeito à

legislação trabalhista e o desenvolvimento de líderes, foram sendo incorporados pela cultura. “Há alguns anos, a área de RH era até malvista nas instituições culturais, mas com o tempo as pessoas foram entendendo que, com as obrigações, vinham também os direitos”, garante Marcia Guiote, gerente de RH da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Desde 2009, Guiote lidera um grupo de profissionais de RH de instituições culturais que se reúne regularmente para trocar ideias e experiências. Essa mudança de paradigma gerou uma compreensão ampliada da gestão de pessoas. “Acho que o RH foi, durante muito tempo, entendido como algo cartorial, que cuidava apenas da admissão e demissão de pessoas”, avalia Renata Tubini (2018), que trabalha de forma voluntária como consultora do Museu de Arte de São Paulo


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(Masp). A executiva, que foi diretora de RH empresa responsável pela gestão do Paço do da Volkswagen e do Banco Itaú, define o se- Frevo, em Recife, e do Museu do Amanhã, no tor como “uma crença, um propósito”. Rio de Janeiro – afirma que é comum enconO RH, na concepção contemporânea, é trarmos gente que se envolve de forma tão um departamento que pensa no treinamento visceral com o que faz que esquece de si. Para para a função, no desenvolvimento da carrei- Oliveira, as boas práticas de RH deveriam cuira, na retenção de profissionais e, por fim, na dar para que tais padrões não se instaurem ou qualidade do ambiente. É, em menos palavras, que sejam revertidos por meio de conversas um departamento que olha para as pessoas, e estabelecimento de regras. Cabe observar defende Tubini. “A estrutura ‘manda quem que a precariedade, a instabilidade e os papode, obedece quem tem juízo’ pode até ter drões bulímicos de trabalho (GILL; PRATT, algo de rentável, mas ela destrói o ser humano. 2008) não são específicos do mercado brasiE, na área cultural, isso é espeleiro. Internacionalmente, essas cialmente grave porque, em ge- O trabalhador da são características apontadas cultura é, comumente, ral, as pessoas vão trabalhar em como prevalentes no chamado alguém que ama o busca de um sonho”, acredita. setor criativo. Para Tubini, o que o funcio- que faz e que, por Oliveira observa ainda que, nário mais precisa é de alguém sentir grande prazer dadas as limitações orçamentáque o ouça. E o profissional de no ofício, se sujeita rias do setor, é comum que uma a condições de RH que atua no setor cultural área de produção que precisatrabalho consideradas tem que ter o cuidado especial intoleráveis em ria, por exemplo, de 12 pessoas de saber identificar a dor dos outras áreas para funcionar bem tenha apefuncionários e perceber o liminas oito. Para ele, quem paga o te da sua resiliência. “No segmento artístico, preço por isso é o funcionário. “Muitas vezes, eu tenho observado um maior grau de adoeci- estica-se ao máximo a capacidade de ação mento. Eu credito isso ao fato de que muitos de um grupo que, por envolvimento pessoal profissionais são, de fato, mais sensíveis que o no projeto, se deixa levar por supostas nefuncionário padrão do mercado financeiro.” O cessidades”, explica. “Quando há paixão pelo trabalhador da cultura é, comumente, alguém projeto, muitas vezes o limite [da capacidade que ama o que faz e que, por sentir grande pra- operacional] é excedido. O ‘não’ é mais difícil zer no ofício, se sujeita a condições de traba- de ser dito. E isso pode levar a transformalho consideradas intoleráveis em outras áreas ção do sonho em pesadelo.” Marcelo Lopes, (HESMONDHALGH; BAKER, 2013). Movi- diretor-executivo da Orquestra Sinfônica dos pela ideia de vocação, esses profissionais do Estado de São Paulo (Osesp), também tendem a permitir que o trabalho ocupe um concorda que as instituições culturais conlugar absolutamente central em suas vidas tam com profissionais que possuem uma (BENDASSOLLI; ANDRADE, 2011). formação humanista mais pronunciada do Henrique Oliveira – diretor-executivo do que em outros setores, o que já determina Instituto de Desenvolvimento e Gestão (IDG), alguma diferença de comportamento. Mas,

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Kiko Demarchi, Sesc/SP, supervisor de Serviços e Apoio às Atividades Programáticas GESTÃO DE PESSOAS EM ORGANIZAÇÕES CULTURAIS

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para ele, dentro da própria área, os perfis são variáveis. “Músicos de alta performance são pessoas de elevado desempenho técnico e acostumadas a trabalhar com excelência em situações de pressão”, pondera. Essas características podem, segundo Lopes, imprimir certa tensão ao ambiente, que deve ser sempre balanceada com a compensação pelo trabalho, com o reconhecimento artístico. A ideia do prazer e da recompensa, muito presente no setor, repercute inevitavelmente na gestão. “Quem está na cultura tem um engajamento de causa muito forte. É, de fato, uma área muito contagiante; eu própria sou apaixonada pelo trabalho que realizamos aqui [na Pinacoteca]”, diz Guiote. E esse engajamento está longe de restringir-se a curadores e artistas. A Pinacoteca, assim como outras instituições, inclui todos os funcionários, mesmo os terceirizados das áreas de limpeza e segurança, em programas educativos de formação. Essa estratégia é fundamental para que a ideia de propósito jamais se perca. E é esse mesmo engajamento, que produz recompensas de ordem pessoal, que acaba por naturalizar padrões indevidos de gestão de pessoas. “Quando eu não tenho um planejamento adequado, ou o altero significativamente, os funcionários podem até entregar o projeto, mas à custa de suor, lágrimas e fins de semana trabalhando”, reflete Tubini. Não por acaso, uma das marcas do setor cultural brasileiro era (e ainda é, em instituições de pequeno e médio porte) um turnover muito elevado. No entanto, tanto aqui quanto internacionalmente, essa realidade está deixando de ser aceita. “Hoje, o terceiro setor não pode mais sobreviver de filantropismo e, também

por isso, teve de se profissionalizar. Durante muito tempo, dizia-se que o terceiro setor não precisava de feedback, de avaliação de desempenho, de cartão de ponto. Mas é claro que precisa. Não adianta levar beleza para fora e, dentro, o ambiente ser ruim”, argumenta Oliveira. Tradicionalmente, o setor é marcado por uma seleção assistemática e desestruturada, muitas vezes baseada nas indicações pessoais, com a avaliação de desempenho sendo subjetiva ou nem sequer realizada (FISCHER; BOSE, 2005). Para os pesquisadores, a dificuldade em se trabalhar com ferramentas de avaliação pode estar relacionada a dois fatores: as dificuldades de se levar a cabo uma avaliação de desempenho individual em um ambiente no qual a dinâmica de produção é coletiva, e a falta de métricas adequadas à mensuração dos resultados sociais dessas organizações. Apesar de ser imperativa a adoção de uma gestão profissional, que inclua avaliações e números, tampouco se pode desconsiderar que um museu não é uma petrolífera ou que uma orquestra não é um banco de investimentos. “A cultura é hoje um dos principais ativos sociais contemporâneos, e ela exercita a sensibilidade no ser humano. Então, quando se fala em RH no ambiente cultural, você não pode pensar em métodos cartesianos, exatos. Você está falando de bem-estar, de emoção, de uso do intelecto de forma ampliada”, defende Oliveira. Para Tubini, do ponto de vista da gestão, as organizações se dividem em dois tipos: as de comando-controle1 e as de perfil construtivista, que trabalham o senso de responsabilidade e procuram construir um ambiente


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no qual é permitido errar. “Nas organizações culturais, onde a criatividade é um elemento importante, o comando-controle não funciona”, reflete Tubini. Mas é claro que há exceções. No caso de uma grande orquestra, é inevitável que a hierarquia seja rígida e pronunciada. “Como [na Osesp] o grupo é grande e cada músico abre mão de sua individualidade e conceito pelo benefício do conjunto, há necessidade de hierarquização dos naipes e submissão do músico aos conceitos musicais do maestro”, exemplifica o diretor da Osesp, Henrique Lopes. Em quase todas as instituições ouvidas para este artigo, no entanto, a gestão é entendida como algo que deve ser compartilhado com os colaboradores. “A área social é muito marcada pelo engajamento, pelo networking e, por isso mesmo, não comporta uma administração top-down. No IDG, o código de conduta foi construído coletivamente. Trouxemos conceitos de organização, mas os 210 colaboradores do IDG participaram de sua elaboração”, conta Oliveira. A criação dos códigos de conduta é, inclusive, uma das marcas recentes das grandes instituições culturais. Assim como o IDG, a Fundação Bienal, o Masp, o Theatro Municipal de São Paulo e a Pinacoteca já lançaram ou estão preparando os seus. “O código de ética [da Pinacoteca] vai estabelecer parâmetros sobre quais os nossos acordos serão estabelecidos, tanto para fornecedores quanto para diretores e colaboradores”, relata Guiote. A Fundação Bienal já tem alguns critérios estabelecidos, como um teto para valor de presentes que podem ser aceitos por seus colaboradores e uma

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determinação de que, se um possível comprador tiver acesso antecipado a uma obra, ele não poderá comprá-la. A especificidade das questões presentes nos códigos de ética da Pinacoteca e da Bienal é exemplar das particularidades da gestão de pessoas na cultura. Quando se pensa nas diferenças entre o segundo e o terceiro setores, é preciso pontuar que, enquanto o resultado de uma empresa que vende produtos manufaturados é mensurado por lucro, em um museu ou em uma orquestra a atribuição de valor é mais complexa e sutil. Oliveira, que antes de abraçar o terceiro setor trabalhou na Shell e numa refinaria de açúcar, diz que essa diferença tem impacto, inclusive, sobre as formas de gratificação do trabalhador. “No mundo corporativo, a gratificação vem, quase sempre, em forma de bônus, de participação nos lucros. No terceiro setor, a grande gratificação é entregar algo para a sociedade. É causar um impacto positivo.” Se, para um executivo, a diminuição nos ganhos em troca de um trabalho com propósito é uma escolha, no caso dos trabalhadores dos estratos baixos e médios da cultura, a má remuneração costuma ser uma realidade imutável. A questão salarial ainda é uma barreira para a contratação de profissionais qualificados, especialmente para cargos de liderança. Outro problema do setor é a falta de recursos para desenvolver os profissionais. “As estruturas são enxutas, então você tem que tomar cuidado para, como se diz, o molho não sair mais caro que a carne”, brinca Tubini. Outra questão bastante significativa é que quase todas essas instituições dependem

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de patrocínios feitos a partir de leis de incen- ele assume um compromisso. Gerir isso tudo tivo, como a Lei Rouanet. Isso faz com que pode ser desafiante, mas é um desafio que eu as instituições culturais, para não terem ar- encaro com brilho no olho”, conta. ranhões na imagem, tenham de prezar pela Jimmy Keller, diretor de operações e transparência e pela retidão, com uma cui- finanças do Instituto Odeon – responsável dadosa prestação de contas. pelo Museu de Arte do Rio (MAR) e quem A despeito dessas particularidades men- administrou o Theatro Municipal de São cionadas, o RH carrega em si uma máxima Paulo até o fim de 2018 –, é outro que aponta que não muda e que é repetida feito mantra o desafio de se “equilibrar os pratos entre a por Tubini: “Pessoas são pessoas”. Luciana prática artística e o cumprimento dos proGuimarães, que é superintendente da Fun- cessos legais”. “O controle de jornada, algo dação Bienal e que tem uma trajetória to- corriqueiro em qualquer empresa, se torna talmente ligada ao terceiro setor, concorda mais complexo no caso dos músicos. Não com Tubini. “Em qualquer área, tem sentido controlar horário de devemos nos preocupar em fazer “O controle de entrada e saída, mas também não a equipe trabalhar com o mesmo jornada, algo é possível não haver controle alfoco, usar as melhores caracte- corriqueiro em gum”, exemplifica. rísticas de cada um, criar boas qualquer empresa, Esses não são os únicos dese torna mais condições de trabalho e ter um safios enfrentados por Keller à ambiente saudável, onde as con- complexo no caso frente do RH do Theatro Munidos músicos” versas não sejam as de corredor. cipal de São Paulo. Os problemas Porém, para Guimarães, um trabalhistas encontrados iam dos aspectos mais delicados da gestão na desde o não cumprimento do dissídio coletiárea cultural são as diferenças de prioridade. vo até as férias em atraso – isso sem falar em “Você sempre terá a turma da criação, que queixas improváveis, como a que dizia resestá mais preocupada com a experimentação peito à péssima qualidade das cadeiras tanto do que com a viabilidade, e o grupo que tem da orquestra quanto do setor administrativo. de fazer a coisa acontecer na prática”, conta. Mas seu principal desafio, pontua, foi A superintendente da Bienal considera, po- lidar com hábitos que, apesar de arraigados, rém, positiva essa tensão entre os mais cria- não eram compatíveis com as necessidades tivos e os mais cartesianos. “Da nossa parte, de gestão. “Na cultura, os anseios individuais toda a preocupação financeira e administra- se tornam, às vezes, mais importantes que tiva só tem sentido se conseguirmos viabi- a padronização de processos.” Keller cita lizar uma ideia. O outro grupo, por sua vez, como exemplo uma exposição do MAR que tem de entender que uma ideia deixa de ser seria inviabilizada pelo desejo expresso da boa quando ela pode ‘quebrar’ a instituição. curadoria de trazer determinada obra de A Bienal quase quebrou há dez anos. Um ar- Candido Portinari. “Por mais que o curador tista que trabalha com uma instituição deve se sinta desrespeitado em sua decisão, o adentender que, ao se aproximar da instituição, ministrador não pode avalizar algo que, em


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termos econômicos e de logística, se mostra inviável. Os artistas precisam entender que temos todos um objetivo comum, que é colocar o espetáculo no palco, que é inaugurar a exposição”, defende. Diversidade O que também não pode ser desconsiderado quando se fala em gestão de pessoas na área cultural é que, dentro do próprio setor, são muitas as especificidades. As necessidades de um grande museu são, obviamente, muito diferentes das necessidades de um grupo de teatro; assim como o trabalho de alguém que cuida de acervo guarda pouca relação com o trabalho de um músico de orquestra. Na Osesp, por exemplo, existem duas formas de contratação. Para o quadro administrativo, o processo seletivo é semelhante ao das empresas privadas. No caso dos músicos, a realidade é completamente outra. Os músicos passam por um processo de audição, que contempla análise de currículo, envio de gravações, audição de pré-seleção e audições finais em três fases. “É um processo bem complexo, que pode incluir tocar na orquestra em semanas de teste e, se aprovado depois disso, ter dois anos probatórios. Somente após esse longo processo é que pode ser considerado um músico titular da orquestra”, detalha Lopes. Mesmo depois de contratados, os músicos estão submetidos a um regimento interno bastante detalhado quanto à sua atuação na orquestra, desde padrões de comportamento até disposições sobre viagem e direitos autorais, por exemplo. Já as contratações dos funcionários administrativos e técnicos seguem padrões usuais da CLT.

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Em todas as instituições ouvidas para este artigo, a forma primordial de contratação é a CLT e o preenchimento de vagas é feito, primeiramente, a partir de promoções internas, e, em segundo lugar, por meio de anúncios de vagas nos sites das instituições, o que tende a seguir o procedimento padrão de análise de currículo e entrevista, mas sempre de olho nas afinidades entre o candidato e a organização. Apesar das diferenças existentes no setor, na visão de Guiote, uma regra que não muda é que tanto o processo de recrutamento quanto a gestão de pessoal têm de estar intimamente ligados à essência da instituição. Por isso, a gestora de RH da Associação Pinacoteca Arte e Cultura (Apac) tem um desafio interessante à sua frente: “A Pinacoteca é uma senhora de cem anos. E a Apac gere, além dessa senhora, uma jovem, que é a Pina_Estação,2 que tem 15 anos. Além disso, estamos gestando a Pina Contemporânea.3 Cada uma dessas instituições tem suas particularidades, e isso se reflete no RH”, conta. A Bienal, pelo fato de ter uma mostra a cada dois anos, é um exemplo interessante dos desafios únicos que a cultura apresenta. Sua principal particularidade diz respeito à figura do curador, que é alguém com grande poder e baixíssimo vínculo institucional. Esse curador chega trazendo consigo um grupo de pessoas, mas encontra também uma equipe que desenvolve um trabalho permanente. Na história recente da Bienal, os gestores têm tentado empoderar a equipe permanente, mostrando que o seu conhecimento pode contribuir para o grupo que chega a cada dois anos.

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Durante muitos anos, a Bienal contava apenas com uma secretária, um zelador e um encarregado do pagamento de contas. Hoje, isso mudou, a começar pela superintendência, que é dividida entre três pessoas. A Fundação Bienal criou ainda um plano de cargos e salários e realocou os funcionários de acordo com essas novas faixas. Hoje, conta com 56 CLTs fixos, que, entre outras coisas, tiveram de mudar o hábito de trabalhar nos fins de semana e madrugada adentro. “Não é porque viramos um lugar burocrático. É porque a lei determina isso e porque as pessoas precisam de descanso”, diz Guimarães. A ausência de faixas salariais era realidade também no Masp. A criação dessas faixas, bem como de um horizonte de promoções, foi uma das ações empreendidas por Renata Tubini no museu. Outra ação foi a realização de uma pesquisa que demonstrou que os salários seguiam o padrão do mercado de arte, contrariando o sentimento generalizado de que no Masp se ganhava mal. Mas seu grande trabalho, frisa, foi a escuta. “Nós procuramos melhorar a comunicação interna e criamos o sistema de feedback. A partir das queixas ouvidas, passamos a desenvolver um trabalho com os gestores. Eu tento levar as pessoas a refletir sobre o seu papel, o seu propósito”, explica. Tomando por base a ideia de que uma instituição deve, internamente, refletir os valores externados em suas ações culturais, o Masp também realizou uma pesquisa para conhecer melhor as pessoas que ali trabalham e verificar se a missão do museu, que é ser inclusivo e plural, estava espelhada no quadro de colaboradores. “O museu”, pontua Tubini, “não pode ser diverso só na exposição

que apresenta; é preciso haver congruência entre o que se fala e o que se faz.” A coordenadora de recursos humanos do museu, Renata Geo, informa que 30% dos funcionários se declaram LGBTI+. E as diversidades não estão só restritas à orientação sexual. “Descobrimos também que temos uma quantidade considerável de funcionários evangélicos, sobretudo no setor administrativo. Quando fizemos a mostra Histórias da Sexualidade, alguns desses funcionários vieram nos perguntar: ‘O que eu falo para a minha família?’”, conta. A pesquisa também serviu para diagnosticar uma discrepância racial dentro do Masp. “A diversidade racial só existe nos cargos mais baixos da instituição. Nós nos comprometemos a tentar mudar isso e começamos, por exemplo, a divulgar vagas da faculdade Zumbi dos Palmares”, conta. Tanto a Pinacoteca quanto o Masp têm hoje atendentes transexuais, algo que é fruto de uma política interna. Promovendo inclusão Um dos grandes exemplos de diversidade social e racial que se tem no cenário cultural brasileiro é o Instituto Inhotim. O museu, que enlaça arte e botânica, é o segundo maior empregador do município de Brumadinho, em Minas Gerais, perdendo apenas para a Vale, e tem um importante trabalho de capacitação e desenvolvimento. Segundo Raquel Murad, analista de recursos humanos do instituto, são ao todo cerca de 600 funcionários, entre diretos e indiretos. “Nosso processo de recrutamento privilegia os moradores da região. Temos famílias inteiras trabalhando no Inhotim”, diz.


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Murad explica que, além do processo Recentemente, o Sesc substituiu o externo, o instituto estimula a participação nome recursos humanos por gerência de pesem processos seletivos internos para incen- soas. “Essa gerência se divide entre a parte tivar funcionários a encararem novos desa- administrativa e a parte de desenvolvimento, fios e se desenvolverem profissionalmente. porque as pessoas não são como os recursos “Muitos jardineiros, por exemplo, iniciaram financeiros e materiais”, defende Miranda. suas atividades sem conhecimento prévio da Cabe observar que a questão da formafunção”, conta. O Instituto Inhotim também ção continuada, apesar de essencial, tende capacita seus funcionários internamente. a ser comprometida no setor cultural pelas “Hoje temos jardineiros, marceneiros, edu- limitações orçamentárias. No Sesc, o procadores e analistas das mais diversas áreas, cesso de recrutamento e seleção é extrematodos formados e capacitados aqui”, relata. mente concorrido – já houve casos de 10 mil Até a chegada do museu, o que movia a ci- candidatos para 20 vagas – e marcado pela dade era quase que exclusivamente transparência e clareza. Por uma o minério. A responsável pelo RH Um dos grandes exigência legal, as contratações de Inhotim conta que muitos mora- exemplos de são feitas por meio de concurso dores da cidade, até então, tinham diversidade social público. Excepcionalmente, são como grande sonho realizar o curso e racial que se tem chamadas pessoas de altíssimo níde técnico em mineração. “Quando no cenário cultural vel, mas, em geral, mesmo os caro Inhotim iniciou suas atividades, brasileiro é o gos mais altos são ocupados por demos a essa população a oportuni- Instituto Inhotim quem fez carreira no Sesc. “Desde dade de olhar para além do minério. que me entendo por gente no Sesc, Hoje, há moradores de Brumadinho formados há 50 anos existe essa mentalidade de que as em história, artes plásticas, turismo, ciências pessoas são muito importantes. O Sesc ofebiológicas, comunicação, psicologia, letras, rece cursos, treinamento e viagens. Em 1976, design e administração.” por exemplo, fui mandado para Lausana, na E, quando se pensa na cultura de forma Suíça, para fazer um MBA”, conta Miranda. ampliada, como é o caso de Inhotim, é imO diretor explica que, durante o propossível não mencionar o Sesc, que possui cesso seletivo, o setor de RH busca identi44 unidades, cada uma com um responsá- ficar candidatos que tenham não apenas o vel pela programação específica daquele conhecimento específico, mas a capacidade espaço. “Administramos uma rede ligada ao de absorver diferentes interesses de maneira simbólico. É uma cultura num sentido muito participativa. “O candidato deve ter, de saímais antropológico”, define Danilo Santos de da, princípios alinhados aos da instituição, Miranda, diretor do Departamento Regio- como a ideia de democratização de acesso e nal do Sesc São Paulo. A cultura, no caso do de diversidade. Não vou querer só gente proSesc, está inserida numa construção ampla, gressista, mas precisamos de gente capaz de que inclui a atividade física, a alimentação, entender a complexidade do mundo à nossa a saúde e a terceira idade. volta”, justifica.

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Abertura e transparência Para o consultor internacional James Abruzzo (2014), a sustentabilidade das organizações do setor artístico depende da conexão entre diversos agentes: governo, público, patrocinadores, artistas, críticos e funcionários. Ele defende que, para que todos confiem na instituição, ela precisa ser aberta e transparente e seus gestores precisam dividir com os trabalhadores o sentido do que eles fazem, criando uma atmosfera na qual a criatividade e os riscos calculados sejam encorajados. Se, durante muito tempo, acreditou-se que na cultura a paixão bastava, hoje sabe-se que, para além dela – e também para que sua chama não se apague –, um funcionário precisa ser gerido de forma profissional e transparente. “Cada funcionário traz um conjunto de competências técnicas, mas ele é também um ser humano cheio de expectativas, crenças e influências. Nas instituições culturais há, às vezes, certo caos administrativo e uma falta de clareza que levam à insatisfação”, identifica Tubini. Oliveira também enxerga essa insatisfação: “Nossos colaboradores têm de ter, por exemplo, sensibilidade suficiente para entender o visitante e ajudá-lo a sair daquele espaço melhor do que entrou”. “E, para que isso seja possível, os funcionários precisam ter o tão falado brilho no olho, mas também precisam se sentir respeitados pela instituição que representam”, complementa. Tubini acredita, no entanto, que as lideranças do setor cultural passaram a entender que, para contribuir para o enriquecimento do público visitante, elas precisam ajudar no desenvolvimento de cada funcionário

que ali trabalha. Sem eles, afinal de contas, não há missão social e cultural que possa ser cumprida. As práticas internacionais de gestão: um breve panorama De acordo com o pesquisador estadunidense Richard Florida (2002), que define a economia criativa em termos de ocupação, o número de artistas profissionais, escritores e trabalhadores da área cultural passou de 200 mil para 525 mil pessoas entre 1900 e 1950, e saltou para 2,5 milhões na virada do século XX para o século XXI. As chamadas indústrias criativas, nas quais as artes estão incluídas, se tornaram um empregador importante na atualidade. Mas, com a conquista de espaço e importância, vieram os desafios. O Reino Unido, que adotou o termo “indústrias criativas” em 2001, sob o governo do Partido Trabalhista, percebeu logo que, sem o gerenciamento dos recursos humanos, esse setor que começava a ser incensado teria problemas. Enquanto o então primeiro-ministro Tony Blair falava do potencial econômico das indústrias ligadas à criação e ao talento individual, e incorporava os recursos da Loteria ao setor, alguns se perguntavam: Quem vai liderar essas instituições? Já em 2004, a Clore Duffield Foundation, com sede em Londres, lançou um programa de formação de líderes. A fundação, que tem diversas ações no terceiro setor, entendeu que investir em artes não era o bastante. Era importante investir no desenvolvimento de pessoas aptas a gerir essa cultura no novo cenário de instabilidade econômica, cortes nos recursos públicos e revolução digital (DUFFIELD, 2014). A fundação, atualmente, ajuda


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a manter instituições como o Tate Museum, a Orquestra Sinfônica de Londres, o teatro Young Vic, o British Museum, a Royal Opera House e o Museu de História Natural. À época, a Clore Foundation realizou uma pesquisa para descobrir os programas existentes de formação de líderes no setor cultural. O resultado foi espantoso: praticamente nada. Nem no Reino Unido, nem nos Estados Unidos, nem na Europa. O programa, até hoje em vigor, serviu de inspiração, inclusive, para o programa de formação de líderes criado pelo órgão governamental Arts Council, em 2006. Os dez anos de ação governamental na área de gestão cultural fazem com que, em comparação com o Brasil, o setor no Reino Unido possa ser considerado avançado. Códigos de ética, a preocupação com o desenvolvimento dos funcionários, por meio de cursos e viagens, e processos transparentes de seleção aptos a identificar habilidades específicas são realidade nas grandes instituições culturais britânicas, como Tate e Museu de História Natural. Isso não significa, contudo, um mundo perfeito. O Reino Unido, a exemplo do que acontece na Alemanha e mesmo nos Estados Unidos, ainda mobiliza, no setor cultural, um exército de estagiários não remunerados. São tantos os jovens de até 30 anos que se submetem a essas condições que foi cunhado até um termo para identificá-los: “internship generation” (OSTENDORF-RUPP, 2014). De acordo com Ostendorf-Rupp (2014), ingressos gratuitos para concertos são, muitas vezes, entendidos como uma remuneração suficiente para estagiários que cumprem longas jornadas de trabalho.

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No Museu Guggenheim, os ingressos deram lugar a um programa de desenvolvimento que inclui apresentar estagiários a profissionais do mercado de arte – inserindo-os no tão desejado networking – e a participação em seminários com o acompanhamento de mentores. Entende-se o estágio, nesse caso, como uma extensão da formação. Já o Museu do Louvre, em Paris, registra no seu relatório de gestão de 2017 uma redução da ordem de 22% no número de estagiários em relação ao ano anterior. Foi considerado por eles uma vitória. Outros pontos presentes no relatório do museu, que refletem preocupações quase que universais do setor, são o aumento do investimento em formação de pessoal (70% dos funcionários participaram de ao menos uma ação de formação naquele ano) e a melhoria das condições de trabalho e de possibilidades de integração dos 6% de deficientes que compõem o quadro de funcionários. O Louvre é uma exceção. A carência de formação continuada e desenvolvimento é considerada uma marca importante do setor. Primeiramente, porque nem sempre as instituições têm como bancar iniciativas dessa natureza; depois, porque se trata de uma mão de obra muito acostumada à mobilidade e à instabilidade dos trabalhos temporários. Nos grandes museus norte-americanos, como MoMA e Guggenheim, o desenvolvimento é, no entanto, considerado peça-chave da gestão de pessoas. Outra característica comum a essas organizações é que não trabalham com bônus salariais, por acreditarem que, uma vez instauradas recompensas de ordem financeira, fica comprometido o compromisso com o experimental.

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Ana Paula Sousa É jornalista especializada em cinema e políticas culturais. Doutora em sociologia da cultura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestra em indústrias culturais e criativas pelo King’s College, de Londres.

Referências

ABRUZZO, J. Creating the company culture. In: Arts Management Newsletter, n. 118, p. 2, fev. 2014. BENDASSOLLI, P. F. e BORGES-ANDRADE, J. E. Significado do trabalho nas indústrias criativas. In: Revista de Administração de Empresas, São Paulo, v. 51, n. 2, p. 143-159, mar./abr. 2011. DUFFIELD, D. V. Fellowship and partnership – the leadership programmes of the Clore Duffield Foundation. Londres: The Clore Duffield Foundation, 2014. FISCHER, R. M. e BOSE, M. Tendências para a gestão de pessoas em organizações do terceiro setor. In: Asamblea Anual Consejo Latinoamericano de Escuelas de Administración (Cladea). Santiago, 2005. GILL, R. C. e PRATT, A. C. In the social factory? Immaterial labour, precariousness and cultural work. In: Theory, Culture & Society, v. 25, n. 7-8, p. 1-30, dez. 2008. HESMONDALGH, D. e BAKER, S. Creative labour: media work in three cultural industries. Londres: Routledge, 2013. OSTENDORF-RUPP, S. Ethical standards for unpaid internships. Arts Management Newsletter, 118, p. 8-9, fev. 2014.

Entrevistas concedidas à autora GEO, Renata. Entrevista concedida à autora deste artigo na sede do Masp, em São Paulo, no dia 12 de dezembro de 2018.


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Ana Paula Sousa

GUIMARÃES, Luciana. Entrevista concedida à autora deste artigo na sede da Fundação Bienal de São Paulo, em São Paulo, no dia 30 de novembro de 2018. GUIOTE, Marcia. Entrevista concedida à autora deste artigo via telefone, no dia 10 de dezembro de 2018. KELLER, Jimmy. Entrevista concedida à autora deste artigo na Praça das Artes, em São Paulo, no dia 11 de dezembro de 2018. LOPES, Marcelo. Entrevista concedida à autora deste artigo via e-mail, no dia 20 de dezembro de 2018. MIRANDA, Danilo Santos de. Entrevista concedida à autora deste artigo no Sesc Belenzinho, no dia 13 de dezembro de 2018. MURAD, Raquel. Entrevista concedida à autora deste artigo via e-mail, no dia 17 de dezembro de 2018. OLIVEIRA, Henrique. Entrevista concedida à autora deste artigo via telefone, no dia 7 de dezembro de 2018. TUBINI, Renata. Entrevista concedida à autora deste artigo na sede do Itaú Cultural, em São Paulo, no dia 28 de novembro de 2018.

Notas 1

Comando-controle é um conceito tradicional de modelo de gestão, no qual o gestor determina as regras a serem seguidas pelo time e, com isso, controla as equipes e garante a produtividade.

2

Em 2004, a Pinacoteca incorporou um edifício do Largo General Osório para receber parte do seu programa de exposições temporárias. Inicialmente chamado Estação Pinacoteca, hoje Pina_Estação, ele abriga ainda o Memorial da Resistência de São Paulo, o Centro de Documentação e Memória e a Biblioteca Walter Wey.

3

A Pina Contemporânea é um novo edifício, que deverá ser inaugurado em 2019, também no bairro da Luz. Será dedicada a projetos inovadores de arte contemporânea e a trabalhos que se relacionem com o entorno do museu.

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Clóvis Carvalho, Casa das Rosas, diretor-executivo

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Eduardo Nivón Bolán

A GESTÃO CULTURAL NO MÉXICO: TENSÕES E COMPROMISSOS Eduardo Nivón Bolán

A gestão cultural no México é, atualmente, uma atividade universitária. Mas não foi sempre assim. O impulso que a revolução mexicana deu à cultura teve como protagonistas intelectuais, artistas, funcionários públicos e um grande número de profissionais da educação que seguiram as diretrizes estabelecidas pelo nacionalismo cultural até os anos 1960. A formação empírica e intuitiva daqueles promotores culturais foi seguida por uma geração muito importante de agentes comunitários comprometidos com as organizações e os movimentos sociais indígenas, camponeses e urbanos que defendiam a autonomia e o controle dos seus próprios recursos culturais. No final do século, foi definida em termos gerais a profissão do gestor cultural. Porém, ainda falta definir um esquema de formação preciso que satisfaça as necessidades teóricas e práticas dos gerentes culturais.

A

gestão cultural no México só passou a ser tratada na educação universitária no século XXI. Antes disso, era uma tarefa discutida nas próprias instituições culturais ou de desenvolvimento social, que careciam de pessoas que executassem suas políticas. Mas, pouco a pouco, foi sendo desenvolvida uma parceria dos centros de educação superior e das universidades com as instituições culturais, que consideraram conveniente sua estreita colaboração. Assim, nas últimas duas décadas, a formação de gestores culturais se tornou um terreno “cedido” do campo cultural para o da educação superior com grande sucesso, embora também com alguns problemas. É possível obter um olhar sobre o desenvolvimento desse campo nos últimos anos nos trabalhos de José Luis Mariscal Orozco (2017) e do grupo de pesquisadores da

Universidade de Guadalajara do qual ele faz parte. Os dados mais recentes apontam que, em 2016, havia 61 programas de formação no país sob a responsabilidade das universidades, dos quais 56 estavam em operação. Quase dois terços desses programas eram de ensino técnico ou graduação (64%). Outro terço correspondia a programas de pós-graduação, sendo que 23% deles eram cursos de mestrado. Mais de um terço desses programas eram desenvolvidos na Cidade do México (19). Outras duas regiões metropolitanas importantes nesse levantamento eram Jalisco (6), no oeste do país; e Chiapas (5), no sul. São observados, então, dois extremos: a concentração de mais da metade dos programas em três cidades e a ausência total de algum tipo de formação nesse campo em 14 estados, ou seja, em quase metade das unidades federativas mexicanas. A participação do ensino

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privado é notável, pois oferece um terço dos programas (34%). O crescimento do número e da qualidade dos cursos aconteceu de forma mais substanciosa entre 2005 e 2010, com um aumento significativo da oferta de cursos de graduação.1 Mariscal faz várias considerações sobre como esse processo foi implantado ao longo do tempo, os campos que abrange e suas perspectivas futuras. Talvez a conclusão fundamental seja que ocorreu “um processo de formalização disciplinar da gestão cultural” e que isso levou ao desenvolvimento de um campo acadêmico delimitado por seus “objetos [de estudo], metodologias, epistemologias, além de espaços de socialização e discussão acadêmica”. Sendo um dos participantes desse processo, concordo em grande medida com essa conclusão, mas gostaria de apresentar algumas observações sobre as condições em que essa mudança ocorreu. O meu ponto de vista é que o contexto das políticas públicas de cultura foi o que provocou esse desenvolvimento. Foram as mudanças nos eixos de formação de promotores e gestores culturais que levaram a formação ao campo universitário. Isso realmente resultou na criação de um novo nicho acadêmico, mas também é a expressão de importantes mudanças nas políticas públicas, com algumas desvantagens em comparação com épocas anteriores. A profissionalização da gestão cultural no México Da mesma forma como ocorreu em outros campos, a gestão cultural foi desenvolvida intuitivamente por pessoas sensíveis às artes e à cultura e depois foi profissionalizada

como resultado de importantes tensões sociais. Essa afirmação, no entanto, é tão abrangente que pode nos impedir de olhar para aspectos sociais e históricos mais precisos. O desenvolvimento da profissão de professor de educação básica no mundo ocidental foi impulsionado pelos interesses dos Estados modernos. Sua normatização nasceu em resposta à política educacional de Frederico, o Grande, que ordenou a educação obrigatória na Prússia e criou os primeiros regulamentos relativos ao seu conteúdo e operação. Posteriormente, em quase toda a Europa, mais notavelmente na França, a educação “normal” foi padronizada para todos aqueles que queriam ser docentes. Também é necessário ressaltar que a mudança de perfil dos professores – que inicialmente eram leigos ou religiosos, ligados a instituições religiosas, e passaram a ser profissionais inspirados por uma política de Estado – afetou diretamente os cursos de formação de docentes. Isso em um momento em que as revoluções sociais transformaram a educação e os professores em seu principal instrumento de mudança e também de pressão social. A educação em todos os países modernos cumpre objetivos de integração e capacitação para o acesso à ciência e à tecnologia, mas há diferenças no modelo de Estado que se quer promover. Nos Estados Unidos, a educação básica é de responsabilidade dos estados da União, enquanto em grande parte dos países da América Latina ela é um projeto de caráter nacional. Da mesma forma como acontece com os docentes, a formação de promotores e gestores culturais tem sido uma consequência de necessidades públicas, mas, principalmente,


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do modo pelo qual o desenvolvimento cultu- abrangeu apenas um curto período de temral foi incorporado às tarefas do Estado. E é po no início dos anos 1920. Naquela época, a aí que começamos a notar as diferenças. É revolução havia deixado para trás as grandes importante enfatizar que, até agora, não há batalhas, mas não a violência. A Constituição uma formação padrão, como se pretendia no Mexicana de 1917 definiu um modelo de país caso dos professores. Os programas de gestão que integrava os direitos sociais dos trabacertamente têm muitos pontos em comum, lhadores e camponeses, embora ainda não mas também há diferenças notáveis ​​que tivessem sido construídas as instituições mencionarei mais adiante. Talvez essa dife- que possibilitariam isso. Outro fator imporrença seja explicada pela tensão entre uma tante foi que as classes menos favorecidas visão integradora da cultura e outra que se – operários e camponeses – reivindicavam baseia precisamente no reconhecimento da sua presença nas grandes decisões políticas pluralidade cultural. e econômicas do país.3 A figura que serviu como ponto de refeVasconcelos juntou-se à equipe da rência para pensar sobre o início da gestão Universidade Nacional e à nova Secretaria cultural no México nos últimos de Educação Pública (SEP) para cem anos foi José Vasconcelos, Talvez essa diferença lançar um amplo projeto de proum intelectual apaixonado e um [entre modelos moção da cultura nacional e dide gestão] seja dos destaques entre os pensadovulgação das criações artísticas. res do seu tempo. Vasconcelos explicada pela Seu ideal humanista coincidiu (1882-1959) foi advogado, filó- tensão entre uma inicialmente com a disposição visão integradora sofo, político e escritor. Durandos artistas para iniciar uma da cultura e te a revolução armada, esteve nova fase na compreensão da outra baseada no perto de Francisco Madero e reconhecimento da revolução. Para Vasconcelos, Pancho Villa. Era um fervoroso pluralidade cultural tratava-se de superar a barbárie detrator da corrupção de Venuspor meio da arte, deixar para trás tiano Carranza e, por outro lado, aproximou- a morte e a violência que tanto assustavam -se de Álvaro Obregón, um dos principais as elites, e certos setores da intelectualidaconstrutores do novo Estado revolucionário. de, em favor de um processo criativo. Seria Farto da corrupção de Plutarco Elías Calles, necessário afastar o que não fosse útil para a Vasconcelos decidiu lutar pela presidência construção cultural do México e, assim, dar da República em 1929 com uma ideologia ba- origem a um novo país. Tudo isso a partir, diseada na democracia. Sua derrota lhe trouxe zia ele, do melhor das culturas indígena e esum longo exílio, perda de influência políti- panhola. O ideal renascentista vasconceliano ca e amargura pessoal.2 Sua personalidade logo foi levado adiante pelos muralistas. Esforte e sua grande capacidade e engenhosi- tes não procuraram simplesmente superar o dade como gestor às vezes fazem com que violento México, mas plasmar a própria alma as pessoas esqueçam o contexto no qual ele popular nas paredes dos edifícios públicos. desenvolveu seu trabalho institucional, que Mais que uma obra plástica, tratava-se de

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uma revelação, de fazer com que as próprias pessoas se contemplassem nos corredores, nas absides e nos cubos das escadas de San Ildefonso, no antigo Convento de San Pedro y San Pablo ou nas paredes da SEP. Esta última instituição foi organizada por Vasconcelos em três departamentos: alfabetização, bibliotecas e artes plásticas. Três campos que integravam o fazer educativo daquele momento dedicado a alfabetizar um país majoritariamente não alfabetizado; equipar as bibliotecas como forma de viabilizar o crescimento intelectual do povo mexicano; e promover as artes plásticas, que era a grande tarefa civilizadora. Posteriormente, o Departamento de Arqueologia, que dependia da Secretaria de Agricultura, passou para o âmbito da SEP. Nas décadas de 1930 e 1940 foram criados os Institutos Nacionais de Antropologia e História (1938) e de Belas Artes e Literatura (1946). O que podemos chamar de gestão cultural naqueles anos de construção do “estado da revolução mexicana” abrangia duas grandes formas de ação. Uma é o que denominaremos “criativa”, por conta do fato de que seu objetivo era o desenho de formas de intervenção na cultura, desenvolvendo projetos artísticos, educacionais ou culturais. Suas principais atividades eram a publicação de livros, a promoção do muralismo, a difusão da cultura por meio de rádios educativas, grandes oficinas de produção de livros e outras obras de infraestrutura cultural, bem como a formação de orquestras e companhias, escolas de arte etc. Essa atividade foi realizada com uma forte dose de autoritarismo, já que Vasconcelos, e depois seus sucessores, consultavam pouco ou nada e ordenavam a

ação disciplinada de uma grande quantidade de promotores culturais. Na realidade, esse modo de agir foi o resultado de uma visão iluminada da cultura, conhecida pelos intelectuais e pela população educada, que a difundiam para o resto da sociedade. A outra forma de ação incluía a diligência administrativa na gestão das instituições. Os promotores culturais eram encarregados de formar instituições e gerenciar o seu pessoal e os recursos para colocá-los a serviço do público. Para isso, era conveniente ter uma formação universitária que fortalecesse a autoridade do gestor, mas não para realizar ou melhorar o seu trabalho. Na Espanha dos anos 1990, Eduard Delgado apontou que a gestão cultural consistia nos métodos para “harmonizar as exigências de projetos criativos com os do desenvolvimento integral de um território” (1988). Já no México, a gestão cultural foi concebida durante os anos de formação do Estado pós-revolucionário, com base no impulso desencadeado por intelectuais e artistas para desenvolver a cultura nacional em meio às contradições de um Estado centralizador e autoritário e dos movimentos sociais presos entre o clientelismo e a autonomia. A luta pelo pluralismo cultural Até os anos 1960, o projeto cultural do Estado, inspirado em Vasconcelos, era guiado por um modelo integrador e universalista. As muitas instituições fundadas ao longo desse período foram dirigidas por intelectuais e ativistas que tinham essa marca, coincidindo com um Estado paternalista e clientelista, como aconteceu


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na deriva do Estado mexicano sob a égide do Partido Revolucionário Institucional (PRI). Mas também foi possível, em razão das dificuldades de trabalhar em áreas rurais e indígenas, que muitos dos promotores sociais e culturais usufruíssem de maior liberdade do que nas cidades para promover a reflexão e a autonomia dos grupos comunitários. Dessa forma, os promotores sociais e culturais incubaram os princípios de uma gestão cujo principal lema foi a autonomia política e, no caso das comunidades indígenas, a autonomia cultural. Os antropólogos Guillermo Bonfil e Rodolfo Stavenhagen defendem que “o índio evitou constantemente as tentativas feitas para defini-lo” (BONFIL, 1995, p. 338), e por isso concluíram que, a partir dos anos 1960, a luta pela autonomia e contra a política de integração foi o eixo central da democracia na cultura. Eles também argumentam que foram realizados esforços para desenvolver modelos de intervenção cultural em comunidades indígenas e camponesas para fortalecer sua autonomia. Isso os levou a promover a fundação de instituições que trabalhassem com essa orientação. Em 1978 foi criada a Direção-Geral de Culturas Populares (DGCP), subordinada à Subsecretaria de

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Cultura Popular e Educação Extracurricular da SEP.4 Stavenhagen foi o primeiro diretor da nova instituição. Por sua vez, Guillermo Bonfil, que também dirigiu a DGCP no final dos anos 1980, criou o Museu Nacional das Culturas Populares em 1982, um projeto muito original, já que carece de coleções e, no lugar delas, projeta suas exposições a partir de um trabalho de pesquisa em parceria com as mesmas comunidades que produzem a cultura popular. Esses projetos promoveram um modelo de intervenção cultural que Bonfil denominou “controle cultural”. O diagrama abaixo mostra de forma transparente o interesse do antropólogo: as decisões tomadas por uma comunidade e não o conteúdo dela. A preocupação de Bonfil era que os recursos, ou elementos culturais de uma comunidade, fossem objeto de decisões próprias e não de outros, o que só seria possível se a sua autonomia fosse garantida. Por outro lado, quando os recursos de uma comunidade – como suas tradições, sua língua, seu artesanato ou suas atividades de subsistência – eram decididos por um órgão externo, a cultura era alienada, a favor seja do Estado, seja de uma corporação econômica.

DINÂMICA DO CONTROLE CULTURAL

DECISÕES PRÓPRIAS

DECISÕES DOS OUTROS

ELEMENTOS CULTURAIS PRÓPRIOS

Cultura autônoma

Cultura alienada

ELEMENTOS CULTURAIS DOS OUTROS

Cultura apropriada

Cultura imposta

Fonte: Bonfil, 1988.

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Emilly Kobauashi Tamayose, Sesc/SP, orientadora de público


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Até mesmo para promover decisões próprias sobre recursos próprios, e também sobre recursos externos (como a escola ou as mídias sociais), as comunidades indígenas e camponesas devem ter sua capacidade organizacional. É aí que entra o papel do promotor cultural comunitário e o sentido dos programas de formação. O promotor cultural comunitário, no esquema apresentado, é um indivíduo destacado pela comunidade à qual pertence e serve. Sua formação deve ser focada principalmente nos instrumentos necessários para valorizar os recursos culturais da comunidade, e para guiar as decisões locais para a apropriação, o uso e o desenvolvimento desses recursos. Além disso, o próprio promotor cultural tem que ser um recurso escolhido pela comunidade para ser formado no campo da promoção cultural e levar adiante suas decisões. Por isso, é difícil transferir um promotor para um ambiente diferente daquele de sua comunidade. Podemos, então, estabelecer que, a partir do final da década de 1970, houve um esforço público para formar promotores culturais no México e que o seu sentido era orientar as decisões próprias das comunidades. O Estado, por sua vez, aceitou a demanda das comunidades indígenas e camponesas e promoveu mecanismos para canalizar essas aspirações por meio de diversos programas, como o Programa de Apoio às Culturas Municipais e Comunitárias (PACMyC), também criado por Guillermo Bonfil, em 1989. Ou seja, no México, aconteceu o contrário da experiência espanhola, na qual a gestão cultural nasceu nos municípios como parte do processo de transição para a democracia e deu origem à figura de promotores

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ou animadores culturais. No meu país, o modelo do promotor cultural foi desenvolvido a partir da promoção da autonomia no mundo indígena e rural, e, pouco a pouco, uniu-se aos movimentos sociais das cidades, principalmente aos dos bairros, das mulheres e dos jovens. A crise neoliberal e a gestão cultural Em um ensaio consistente, o músico e cineasta José Luis Castiñeira de Dios (2006) expõe uma crítica radical à gestão cultural, que abrange desde as intervenções iniciais dos Estados na cultura – a partir da criação do ministério de Malraux – até a política cultural espanhola dos governos socialistas e populares, a partir do primeiro governo de Felipe González. Sua crítica incisiva a Malraux ou Semprún,5 à promoção sociocultural, à cooperação espanhola ou ao turismo cultural promovido pela Unesco enquadra-se na defesa da autonomia da atividade criadora em relação a qualquer poder político. E ainda na rejeição à conquista do tempo livre dos trabalhadores pela indústria cultural e no combate à comercialização dos bens culturais. Referindo-se aos tempos atuais, Castiñeira também critica a animação cultural como uma forma de terceirização da atividade cultural, assim como a adoção de critérios mercantilistas e de mecenato para promover a cultura. Ele questiona por que o setor cultural é visto como uma área econômica que implica investimentos, balanços econômicos e financeiros, bens de exportação ou bolsas de emprego para jovens, o que, a seu ver, acaba exigindo uma “reação contra a leitura mercantilista da atividade cultural de uma sociedade e da criação em geral” (2006, p. 92).

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É difícil não concordar com muitas das observações de Castiñeira, embora o princípio da rejeição total à intervenção do Estado no campo da cultura seja incompatível, do meu ponto de vista, com a obrigação de garantir o bem-estar e de servir como um canal de acesso e participação na vida cultural. No entanto, várias de suas críticas fazem sentido no contexto da virada neoliberal das sociedades ocidentais do final da década de 1980. O Estado se retirava de algumas áreas da vida social para ser substituído pelo mercado ou, pelo menos, para dar origem a formas de gestão semelhantes às do setor empresarial. O mercado global tomava posse do tempo livre dos cidadãos, por meio das redes internacionais de entretenimento, e as indústrias culturais, que haviam se desenvolvido a partir da resposta às necessidades das comunidades locais, enfrentavam agora novas condições. Elas passaram a ter a necessidade de fazer balanços econômicos, financeiros e de investimento mais precisos. Portanto, faz sentido que a gestão cultural tivesse que se acomodar aos novos tempos. A virada neoliberal sem dúvida transformou a gestão cultural, evidenciando a necessidade de profissionais que observassem todo o processo de produção dos bens culturais e que cuidassem dos interesses de todos os agentes envolvidos, desde criadores, produtores e intermediários até os consumidores, inclusive para se defender dos excessos do mercado. Assim, a gestão cultural no México começou a ser observada além do âmbito da autonomia comunitária. Era indispensável um profissional capaz de olhar o processo de produção cultural a partir de

múltiplos ângulos e de trocar posições, se fosse o caso. O gestor cultural começava a ser visto mais como um recurso da sociedade do que como um recurso comunitário. A formação de gestores culturais no século XXI No final dos anos 1990, o Centro Nacional de Artes e a Universidade Autônoma Metropolitana desenvolveram o primeiro seminário sobre gestão cultural. Foi ministrado por Alfons Martinell, que na época era o presidente da Fundação Interarts de Barcelona. Outros países da América Latina haviam dado esse passo anteriormente com mais facilidade. Provavelmente, a participação do Estado na cultura e a força da promoção cultural comunitária inibiram a promoção de uma visão do gestor cultural como especialista na concepção de programas. Principalmente porque era necessário um agente que levasse em conta todos os fatores da criação dos bens culturais e considerasse os valores da democracia e da participação, a fim de satisfazer as necessidades culturais da sociedade. A promoção da gestão cultural no século XXI teve como um dos seus principais protagonistas a Direção-Geral de Culturas Populares, do Conselho Nacional da Cultura e das Artes, que construiu um impressionante Sistema Nacional de Capacitação Cultural, sob o comando do ministro José Antonio McGregor. A atividade, que ele desenvolveu entre 2000 e 2006, foi quase febril, com resultados admiráveis: mais de 500 ações de capacitação, em forma de cursos ou seminários, dos quais participaram mais de 16 mil pessoas.6


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Para explicar esse sucesso é preciso quando os alunos acumulavam certo númeentender que o fator mais importante foi o ro de horas. Além disso, o programa contava trabalho determinado do responsável pelo com um subsistema de formação contínua projeto, mas outros fatores devem ser adi- e com o uso de instrumentos de educação cionados. Embora a Direção-Geral de Cul- à distância por meio de teleconferências. turas Populares tenha concedido recursos Novamente, a colaboração dos institutos ao programa, não teria sido possível atingir ou das universidades era importante para seus objetivos ambiciosos sem recorrer a essa modalidade. diferentes parcerias. Algumas universidaA novidade desse projeto foi possibides foram as primeiras a aceitar a aborda- litar certa sistematicidade, embora os curgem da DGCP, assim como as secretarias sos ministrados pudessem ter sequências ou institutos de cultura dos Estados. Neste ou conteúdos variáveis. O que os unificava último caso, a pressão do pessoal dessas era que vinham do mesmo sistema. No eninstituições – e até mesmo de tanto, uma falha notada por alguns departamentos munici- Faltavam materiais vários observadores foi que pais, que solicitaram a organiza- específicos sobre os cursos não tinham acompação de cursos – funcionou. Eles gestão cultural, e nhamento. Os organizadores tinham o duplo propósito de se por isso professores locais se dedicavam a satisfacapacitar e melhorar suas condi- buscavam em zer as necessidades logísticas ções de trabalho, podendo assim outras fontes – dos cursos, mas não a resolver aumentar seu salário ou chegar a como na filosofia, os problemas teóricos dos posições mais altas na rede ins- antropologia, alunos ou dar continuidade arte e direito titucional. Ao mesmo tempo, as aos workshops e seminários. autoridades estatais consideraAlém disso, faltavam matevam mais atrativo focar na capacitação do riais específicos sobre gestão cultural. Os que em investimentos ou programas cul- oficineiros ou professores tiravam o maturais, que poderiam exigir mais recursos. terial de diferentes fontes – como filosoOutro fator de sucesso foi a grande fle- fia, antropologia, artes e direito. Por isso, xibilidade do programa, que se baseou em não era fácil ver a gestão cultural como um um sistema de módulos entregues em forma problema social e profissional. No final, o de cursos, workshops ou seminários dados próprio Sistema Nacional de Capacitação por professores ou oficineiros contratados Cultural recebeu a tarefa de formar uma copela DGCP. O trabalho dessa instituição leção de materiais sobre questões de gestão. consistia frequentemente em contratar os Um dos principais resultados dessa ação capacitadores, mas o pagamento poderia ser foi fomentar pesquisadores para pensarem feito pela própria DGCP ou pelo instituto, nas questões da gestão cultural como um secretaria ou universidade que abrigasse o assunto substancial.7 curso, assim como as despesas de viagem e O fator que mais influencia a atual fortransporte. Os diplomas eram concedidos mação do campo da gestão cultural é que o

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Sistema Nacional de Capacitação Cultural propôs um “subsistema de formação profissional”, com o objetivo de estimular e apoiar universidades a abrirem cursos de graduação e pós-graduação em gestão cultural. As instituições foram incentivadas a “vincular seu corpo docente e seu catálogo de cursos para apoiar o desenho curricular universitário” (MARISCAL, 2006). Assim nasceu, em 2002, na Universidade Autônoma de Nayarit, a primeira graduação em gestão cultural, cuja característica era o “nivelamento” e que exigia dos alunos experiência de cinco a sete anos de trabalho no campo da gestão cultural, sendo considerada parte da sua formação profissional. Em mais dois anos, e de forma semiescolarizada, os alunos trabalhavam intensamente um currículo de conteúdos teóricos, após os quais sua formação como gestor cultural era considerada concluída. Essa graduação teve duas turmas e atualmente não está em funcionamento. O sistema provocou muitas críticas, e também houve problemas na administração escolar do projeto, por isso a experiência pioneira serviu para identificar as muitas complicações que um projeto dessa natureza pode ter. Como mencionei acima, embora a experiência na formação de gestores universitários já seja ampla no México, há uma grande diferença nos programas. Isso ocorre porque o próprio assunto da gestão é diversificado. Ainda não há consenso em torno dos vários objetivos que a formação deve cobrir. Mariscal (2006) distinguiu quatro tipos, conforme o modo como a cultura pode ser entendida: como arte acadêmica, como patrimônio, como mercadoria e como instrumento de desenvolvimento.

Em um artigo recente, Vladimir González (2018) apresenta a experiência da graduação de gestão e promoção das artes da Universidade de Ciências e Artes de Chiapas (Unicach). O trabalho é muito rico porque permite observar os esforços de grupos acadêmicos comprometidos com o conteúdo e a eficácia da formação. González propõe que o trabalho do gestor consiste em identificar as dimensões da cultura, suas vertentes e seus modos de ação.8 A reflexão é muito elaborada e extremamente sincera na descrição dos problemas do programa em que participa. Um aspecto interessante é a análise que faz dos produtos finais que os alunos elaboraram para se formar e a grande variedade de assuntos que abordam. No final, González se pronuncia de forma contundente, apontando uma contradição entre o campo epistêmico e o campo prático da gestão cultural: Neste sentido, podemos chegar às vicissitudes da gestão cultural: a construção de um campo epistêmico. se encontra? Os discursos da modernidade o situam no âmbito universitário. Aqui está uma de suas facetas, que se formou através de um longo processo de articulação em torno da formação de sujeitos epistêmicos e da imposição de um modo de saber herdado principalmente do Iluminismo. A profissionalização do gestor cultural implica a existência de outro espaço de formação e prática: o setor cultural. Aqui está outra vicissitude resultante de práticas de agentes que promoveram a cultura a partir do desejo e da intuição. Essa característica os colocou em uma relação desigual diante dos gestores culturais profissionais (GONZÁLEZ, p. 207).


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Tomás Toledo de Azevedo Marques, Masp, curador-chefe

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A atividade do gestor cultural circula constantemente entre a teoria e a aplicação prática. Realmente, no México, a formação de gestores culturais se orientou para três grandes campos: a promoção cultural comunitária; a administração de instituições culturais; e a elaboração de projetos culturais autônomos a partir de uma empresa ou organização sem fins lucrativos. Em meio a esses três grandes campos, existem grandes espaços de intervenção, como a gestão do patrimônio ligado às comunidades detentoras, o desenvolvimento cultural como interface entre instituições culturais e organizações culturais, a promoção de artistas como produtores de bens culturais e seu impacto no território. E, sem propor isso, os programas se orientam com maior interesse para um ou mais desses campos. Há, conforme aponta González, uma contradição natural na formação de uma profissão tão diretamente ligada à prática e à reflexão que implica a formação universitária. Os médicos resolvem isso vinculando a formação de futuros profissionais diretamente com a experiência do hospital e os advogados sugerem que os alunos se envolvam com especialistas para irem adquirindo experiência na formulação de processos e trâmites judiciais. Os gestores culturais devem fazer o mesmo e, no entanto, as práticas profissionais são mal projetadas ou simplesmente não existem. Para dificultar mais, seus professores universitários não sofreram as pressões e falhas dos gestores culturais no campo.

Para onde deve caminhar a gestão cultural Juan Luis Mejía (2012), em um trabalho breve e muito substancial, propõe a problemática atual enfrentada pelas instituições culturais. O texto segue a ideia de que houve dois momentos ou etapas da institucionalização cultural na América Latina. O primeiro consistiu na criação de instituições propriamente culturais dos séculos anteriores. A outra etapa foi marcada por uma promoção racionalizadora, cujo núcleo foi a integração dessas instituições sob a direção de uma organização – ministério, conselho, secretaria (esse processo ocorreu quase paralelamente à irrupção do paradigma da diversidade na América Latina e pressionou os Estados latino-americanos, forçando o reconhecimento constitucional do pluralismo em todas as suas formas). O século XXI é o século dos direitos culturais e as exigências institucionais são diferentes. A gestão cultural está na mesma situação. Os direitos culturais reorientam a ação do Estado e das instituições culturais para os cidadãos. E a gestão cultural gira cada vez mais em torno do desenvolvimento daquilo que podemos chamar de setor cultural, entendido como o conjunto das atividades culturais da sociedade que procuram bens e serviços culturais lucrativos e não lucrativos para toda a sociedade.


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Eduardo Nivón Bolán

Eduardo Nivón Bolán É professor-pesquisador no Departamento de Antropologia da Universidade Autônoma Metropolitana (Iztapalapa, México).

Referências

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MAZARIEGOS, Rolando. Proyección cultural: una herramienta metodológica para la socialización de la cultura. Artes Unicach, v. 1 e 2, n. 10, 2016, p. 6-16. MEJÍA, Juan Luis. ¿Derechos sin Estado? Tres momentos de la institucionalidad cultural en América Latina. VIII Campus Euroamericano de Cooperación Cultural, Cuenca, Ecuador, 28 nov. 2012. Disponível em: <http://www.oei.es/euroamericano/ ponencias_derechos_derechos.php>. Acesso em: 6 mar. 2019. SALAS, Violeta. Oferta educativa en gestión cultural y afín. Catálogo 2014. México: Gestores Culturales Universitarios, 2014.

Notas 1

Uma contagem anterior, de 2014, liderada por Violeta Salas, oferece um resultado mais volumoso: 62 graduações, 11 especializações, 80 mestrados e 17 doutorados. No total, 170 programas, mas os critérios de incorporação à lista são muito amplos, o que nos leva a certa indefinição do campo da gestão cultural.

2

A Revolução Mexicana foi um conjunto de movimentos políticos e sociais que transformaram um regime oligárquico baseado no latifúndio, na mineração e em outras atividades extrativistas em um moderno projeto industrial, embora com caráter autoritário. Uma reforma agrária radical fez desaparecer o latifundiarismo e, com ele, a classe latifundiária. Surgiu um sistema rural baseado na propriedade coletiva da terra. Tudo isso foi desenvolvido em várias fases, com sinais políticos e sociais muito diferentes, que, de forma reduzida, podem ser assim descritos: • Francisco Madero foi um proprietário de terras do norte do país que abriu a luta contra a oligarquia. Em 1910, ignorou a eleição que deu a Porfirio Díaz uma nova presidência da República e convocou a insurreição armada. Seu movimento triunfou em poucos meses. Novas eleições lhe deram a presidência do país em 1911; • dois anos depois, em 1913, em um golpe de Estado, foi deposto e assassinado, dando origem a uma insurreição armada contra o usurpador que triunfou em 1914; • naquela época, o movimento revolucionário já havia sido colocado em um horizonte social além da questão legal e política. Emiliano Zapata e Pancho Villa constituíram a ala radical do movimento e Venustiano Carranza e Álvaro Obregón eram os líderes do movimento legalista ou constitucional. Iniciou-se, então, uma sangrenta guerra civil, na qual os primeiros foram derrotados militarmente;


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Eduardo Nivón Bolán

• com a promulgação da Constituição de 1917, a fase das grandes batalhas militares ficou para trás, mas não a violência; • a década de 1920 assistiu às presidências de Álvaro Obregón (1920-1924) e Plutarco Elías Calles (1924-1928) e ao confuso sexênio no qual governaram três presidentes sob a tutela de Calles (1928-1934), alicerces do novo sistema político mexicano; • com o governo de Lázaro Cárdenas (1934-1940), a revolução mexicana atingiu o seu momento mais radical. A educação foi declarada socialista, a reforma agrária atingiu seus mais altos níveis, as empresas petrolíferas estrangeiras foram nacionalizadas, as classes populares foram incorporadas a grandes organizações de massas sob um partido político corporativo e suas demandas sociais e econômicas foram canalizadas por meio de importantes instituições sociais e culturais. 3

A primeira central operária mexicana foi a Confederación Regional Obrera Mexicana, criada em 1918, experimentando um grande auge entre 1924 e 1928. A organização tinha um braço político, o Partido Nacional Laborista, que levou Álvaro Obregón e Plutarco Elías Calles à presidência. Os camponeses tentaram conseguir sua representação política social por meio do Partido Nacional Agrarista, fundado em 1920. Os índios não se organizaram naquela época, mas sua presença na arte e no incipiente cinema daqueles anos e da década seguinte representa a força de sua presença simbólica na política e na cultura do país.

4

Ver: <http://isc.gob.mx/devel/patrimonio-sonora/direccion-general-culturaspopulares/>.

5

André Malraux foi ministro da Cultura do governo de Charles de Gaulle por uma década (1959-1969); Jorge Semprún foi ministro da Cultura na Espanha durante um dos governos de Felipe González (1988-1991).

6

Essa informação estava disponível ao público na internet. Os dados que apresento e as características do sistema foram obtidos de Mariscal (2006).

7

Trata-se da coleção Intersecciones del Consejo Nacional para la Cultura y las Artes.

8

González diz: “Sua área de intervenção, conforme Mazariegos, está nas dimensões da cultura: econômica, social, territorial, funcional e de estudos culturais. Essas dimensões têm vertentes: intervenção, promoção, difusão, docência, vinculação, produção, distribuição, comercialização, conservação, restauração, criação e pesquisa cultural”. Essas se dividem em modalidades: “conceito que engloba o modo, ação, meio, mecanismo, estratégia ou suporte que permite veicular produtos culturais” (GONZÁLEZ, 2018, p. 196s).

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3.

CONCEITOS E FERRAMENTAS DE GESTÃO DE PESSOAS: PERSPECTIVAS E DESAFIOS

88. O TRABALHO E A CULTURA: AS FORMAS

DE CONTRATAÇÃO DO PROFISSIONAL ARTISTA E AS DISPOSIÇÕES LEGAIS APLICÁVEIS Pedro Capanema Lundgren e Gabriel Ferreira Rodrigues

96.

GUIA PRÁTICO PARA GESTÃO DE PESSOAS NA CULTURA Pedro Capanema Lundgren e Gabriel Ferreira Rodrigues

100. ASPECTOS ESSENCIAIS EM GESTÃO

DE PESSOAS: UMA CONTRIBUIÇÃO PARA ORGANIZAÇÕES DO SETOR CULTURAL Mônica Bose

112. CULTURA E CONSTRUÇÃO DO SUJEITO Sigmar Malvezzi

125. OS DESAFIOS DO MUNDO DO

TRABALHO: ENTREVISTA COM ANDREAS AUERBACH Ana Paula Sousa


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PEDRO LUNDGREN E GABRIEL RODRIGUES

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Caio Nunes e Daniel Moreira, Casa das Rosas, assistente e coordenador de Programação Cultural, respectivamente


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O TRABALHO E A CULTURA:

AS FORMAS DE CONTRATAÇÃO DO PROFISSIONAL ARTISTA E AS DISPOSIÇÕES LEGAIS APLICÁVEIS Pedro Capanema Lundgren e Gabriel Ferreira Rodrigues

O presente estudo pretende abordar um dos aspectos da gestão de pessoas na cultura, a contratação de artistas. Diante da especificidade desse tipo de contrato de trabalho, abordam-se os direitos e obrigações próprias dessa forma de contratação. Além disso, o artigo discorre sobre a contratação de trabalho eventual (por meio de nota contratual), bem como sobre a contratação de prestação de serviços de artista autônomo e os riscos relacionados a tais formas de contratação.

Introdução A cultura e o trabalho são elementos fundamentais da nossa sociedade, capazes de proporcionar o desenvolvimento da humanidade, fortalecer os laços sociais e o reconhecimento coletivo. A relação entre esses elementos constitui amplo objeto de estudo, abarcando desde as manifestações culturais relacionadas ao trabalho e sua importância nas formas de sociabilidade até a regulação do trabalho dos profissionais da cultura. Nesse último aspecto, pode-se considerar a valorização dos trabalhadores na cultura um tema desafiador que, além de se relacionar com os direitos fundamentais previstos na Constituição Federal, é essencial para a formação do gestor cultural. Não por acaso, o Plano Nacional de Cultura, instituído pela Lei nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010, estabelece as seguintes estratégias e metas:

4.2 Contribuir com as ações de formalização do mercado de trabalho, de modo a valorizar o trabalhador e fortalecer o ciclo econômico dos setores culturais; 4.2.1 Realizar, em parceria com os órgãos e poderes competentes, propostas de adequação da legislação trabalhista, visando à redução da informalidade do trabalho artístico, dos técnicos, produtores e demais agentes culturais, estimulando o reconhecimento das profissões e o registro formal desses trabalhadores e ampliando o acesso aos benefícios sociais e previdenciários; 4.2.2 Difundir, entre os empregadores e contratantes dos setores público e privado, informações sobre os direitos e obrigações legais existentes nas relações formais de trabalho na cultura.


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O presente artigo pretende contribuir de fato, a casos concretos. A inadequação nesse tema abordando aspectos legais da da forma de contratação invariavelmente contratação de profissionais artistas como implicará risco para o contratante, podendo definidos na Lei nº 6.533/78 e no Plano resultar na formação de vínculo de emprego Nacional de Cultura acima mencionado. entre este e o profissional artista. A atividade do artista é, geralmente, associada a uma maior vulnerabilidade dos O contrato de trabalho do artista profissionais, sendo usualmente marcada empregado A profissão de artista é regulamentapela informalidade. Dessas características da pela Lei nº 6.533, de 1978,1 e regulada resultam conflitos que, por vezes, culminam em condenações judiciais, se verificado o pelo Decreto nº 82.385/1978. Ambos os descumprimento da legislação trabalhista. normativos conceituam o artista como o profissional que cria, inPor esses aspectos, a contraterpreta ou executa obra de tação do artista torna-se um A contratação do artista caráter cultural de qualquer desafio para o gestor cultural torna-se um desafio natureza, para efeito de exique objetiva cumprir a legis- para o gestor cultural bição ou divulgação pública, lação vigente, atuar com éti- que objetiva cumprir a em meios de comunicação ca e conduzir o negócio de legislação vigente, atuar de massa ou em locais onde modo adequado à realidade com ética e conduzir o negócio de modo se realizam espetáculos de do trabalho desenvolvido. Considerando as carac- adequado à realidade do diversão pública, 2 sendo o manequim ou modelo equiterísticas do segmento da trabalho desenvolvido parado ao artista.3 cultura, este artigo pretende A referida lei abrange a relação de traabordar três modalidades específicas de contratação: o contrato de emprego for- balho entre pessoa física ou jurídica que mal, o trabalho eventual e a contratação de tiver a seu serviço os artistas empregados, prestação de serviço, por meio de prestador ou que agencie mão de obra desses profissionais.4 Alice Monteiro de Barros conceiautônomo ou de pessoa jurídica. Ao gestor de cultura importa saber tua o artista empregado como “a pessoa que quando é possível a contratação de pres- presta serviços de natureza não eventual a tação de serviços, tanto de pessoa jurídica empregador, mediante salário e subordiquanto de profissional autônomo, e quando nação jurídica, independentemente da sua será obrigatória a formalização do contrato função criativa e cultural”.5 Esse conceito é característico da relação de emprego, não de trabalho com vínculo de emprego. Nesse sentido, a gestão da cultura ne- abrangendo as espécies de contratação de cessita também conhecer quais os direitos profissional autônomo ou eventual. O exercício da profissão de artista e deveres dos empregadores e profissionais da cultura, adequando as possibilidades de e de técnico em espetáculo de diversão contratação previstas em lei às situações pressupõe registro prévio no Ministério do

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Trabalho, o qual terá validade em todo o ter- desenvolvidas,12 além da necessidade de ritório nacional.6 Para o registro do artista é divisão da jornada em dois turnos, um dos exigida a apresentação de diploma, certifi- quais não poderá exceder quatro horas. cado ou atestado de capacitação fornecido No caso de exigência do contratante de pelo sindicato representativo dos trabalha- que o artista não trabalhe para outro emdores.7 Tal exigência é objeto da Ação Dire- pregador, será possível constar a cláusula ta de Inconstitucionalidade (ADPF) nº 293, de exclusividade no contrato de trabalho. ajuizada pela Procuradoria-Geral da Repú- Contudo, a previsão contratual não impeblica, sob o fundamento de que o requisito dirá o artista ou técnico em espetáculos de viola a livre manifestação de pensamento, diversões de prestar serviços a outro ema liberdade de expressão de atividade artís- pregador em atividade diversa da ajustada tica e o livre exercício de qualquer trabalho no contrato de trabalho, desde que em outro ou profissão.8 meio de comunicação e sem O contrato do artista e que se fique evidenciado preO contratante poderá do técnico em espetáculo de utilizar o trabalho do juízo para o contratante com diversões exige uma forma profissional mediante o qual fora assinada a cláupadronizada, com visto do nota contratual, por sula de exclusividade.13 sindicato, no prazo de dois prazo não superior a sete Outra característica dias, após os quais poderá dias consecutivos, sendo do contrato de trabalho do ser registrado no Ministério vedada a utilização desse artista é a previsão do pagado Trabalho. Caso não haja mesmo profissional nos mento de adicional por acú60 dias subsequentes manifestação sindical no mulo de função no patamar prazo, o contrato poderá ser de 40% pela função acumuregistrado sem o visto do sindicato. Se hou- lada, tomando-se por base a função com ver negativa da entidade, o artista poderá remuneração maior. Nesses termos, fica recorrer ao Ministério do Trabalho.9 vedado o acúmulo de mais de duas funções Atualmente, a Portaria nº 656, de 22 em decorrência do mesmo contrato.14 de agosto de 2018,10 estabelece modelo paAlém de outras disposições obrigatódrão de contrato de trabalho por tempo de- rias para o contrato do artista, destaca-se terminado ou indeterminado. No referido que, para a contratação de artista estranmodelo, já constam algumas disposições geiro domiciliado no exterior, será exigicontratuais obrigatórias, conforme previsto do prévio recolhimento de importância na Lei nº 6.533/78, mas não todas: outras equivalente a 10% (dez por cento) do valor cláusulas obrigatórias, como a previsão do total do ajuste à Caixa Econômica Federal adicional de transferência, também deve- em nome da entidade sindical da caterão ser observadas.11 goria profissional. Além disso, é fundamental que se Sem a pretensão de esgotar todas as observe a jornada de trabalho do artis- determinações da Lei nº 6.533/78 e dos ta adequada aos setores e às atividades demais dispositivos legais envolvendo a


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questão, as características e os requisitos da contratação do artista empregado revelam a peculiaridade dessa forma de contrato, bem como a existência de direitos específicos de tais profissionais, exigindo grande atenção do gestor de cultura com respeito às determinações legais. Do trabalho eventual do artista Como exposto acima, a caracterização de artista empregado pressupõe a prestação de serviços de natureza não eventual. Todavia, é comum a necessidade de utilização do trabalho do artista em substituições ou demais serviços de natureza eventual. Para esses casos, a lei prevê que o contratante poderá utilizar o trabalho do profissional mediante nota contratual, por prazo não superior a sete dias consecutivos, sendo vedada a utilização desse mesmo profissional nos 60 dias subsequentes, por essa forma, pelo mesmo contratante.15 Segundo a legislação vigente, a nota contratual deverá ser emitida com numeração sucessiva e em ordem cronológica. Além disso, devem ser obedecidas as instruções e o modelo aprovado pelo Ministério do Trabalho. Atualmente, a Portaria 656, de 22 de agosto de 2018, também estabeleceu modelo de nota contratual, determinando a geração de três vias para disponibilização do contratante, do profissional e do sindicato profissional. Algumas Convenções Coletivas de Trabalho, firmadas pelo sindicato representante da categoria dos profissionais artistas e pelo sindicato representante das empresas, estabelecem regras mais flexíveis para a utilização da nota contratual,

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por exemplo, reduzindo o intervalo exigido para utilização do mesmo profissional em outro trabalho.16 É importante destacar que a contratação do artista por meio de nota contratual de forma diversa da autorização legal pode configurar o vínculo empregatício entre o profissional e o contratante se houver decisão judicial reconhecendo a habitualidade da prestação dos serviços, fato que acarretará a condenação da empresa contratante ao pagamento dos direitos trabalhistas decorrentes da relação de emprego. Do contrato de prestação de serviços do artista autônomo ou por meio de pessoa jurídica A contratação de prestação de serviços por meio de pessoa jurídica constituída pelo artista é um fenômeno comum no segmento da cultura, especialmente se considerado que a atividade artística pressupõe certo grau de autonomia para a criação do artista. Contudo, essa autonomia não é incompatível com a relação típica de emprego, já que o conceito de artista empregado pressupõe a presença da subordinação jurídica, independentemente da sua função criativa e cultural.17 Considerando que a pessoalidade, a onerosidade e a habitualidade são elementos comuns da relação de emprego e da relação de trabalho autônomo, apenas a subordinação diferencia as duas espécies de relação contratual, ou seja, ausente a subordinação, o profissional poderá ser contratado como autônomo ou por meio de pessoa jurídica. Caso seja constatada, de fato, a subordinação jurídica na relação

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de trabalho, o vínculo de emprego poderá àquele habitualmente verificado nas reser declarado por meio de decisão judicial, lações de emprego de cunho artístico e com a consequente condenação do contra- criativo. É preciso demonstrar que o protante ao pagamento dos direitos trabalhis- fissional possui independência econômitas decorrentes. ca e jurídica, não se submetendo às ordens A contratação do artista por meio de do contratante. pessoa jurídica constituída pelo profissional unicamente para prestar serviço subor- Conclusão dinado, ou seja, como forma de mascarar A relação entre a cultura e o trabaa relação de emprego, constitui fraude à lho também exige que o gestor cultural legislação trabalhista. Tal estratagema é tenha como objetivo ético a valorização usualmente denominado “pejotização”, do artista, e isso requer o conhecimento sendo considerado nulo pela da legislação aplicável e a Justiça do Trabalho.18 adequação das relações de A contratação de Nesses casos, as deci- prestação de serviços trabalho à lei, bem como sões se baseiam na prova da por meio de pessoa às instruções normativas existência fática de subordi- jurídica ou de profissional do Ministério do Trabalho. nação do artista na relação autônomo só será De mesmo modo, é preciso possível caso a atividade de trabalho; logo, se ficar observar os limites da condemonstrado que o artista seja desenvolvida tratação de artista por meio com grau razoável de se encontra num estado de de pessoa jurídica constiautonomia, superior sujeição ao poder do empretuída por esse ou por meio àquele habitualmente 19 gador, haverá declaração verificado nas relações de contrato de profissional da existência de vínculo de de emprego de cunho autônomo, já que essa esemprego entre as partes. pécie de contratação exige artístico e criativo De outro modo, será a demonstração da ausência considerado autônomo o trabalhador que de subordinação do artista ao empregador, goza de ampla e efetiva liberdade negocial, sendo prestada com grau de autonomia inque labora com certo grau de autonomia e, compatível com a figura do empregado. portanto, que determina a intensidade do trabalho realizado e produz de acordo com o seu interesse pessoal, além de não estar atrelado à direção do contratante. Em síntese, a contratação de prestação de serviços por meio de pessoa jurídica ou de profissional autônomo só será possível caso a atividade seja desenvolvida com grau razoável de autonomia, superior


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Roberta Della Noce, Sesc/SP, coordenadora de Comunicação

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Referências BARROS, Alice Monteiro de. Contratos e regulamentações especiais de trabalho. LTr: São Paulo, 2008. BRASIL. Lei nº 12.343, de 2 de dezembro de 2010. Institui o Plano Nacional de Cultura (PNC) e cria o sistema nacional de informações e indicadores culturais (SNIIC). Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12343.htm>. Acesso em: 22 nov. 2018. BRASIL. Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978. Dispõe sobre a regulamentação das profissões de artistas e de técnico em espetáculos de diversões, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L6533.htm>. Acesso em: 22 nov. 2018. BRASIL. Decreto nº 82.385, de 5 de outubro de 1978. Regulamenta a Lei nº 6.533, de 24 de maio de 1978, que dispõe sobre as profissões de artista e de técnico em espetáculos de diversões, e dá outras providências. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/decreto/1970-1979/D82385.htm>. Acesso em: 22 nov. 2018. BRASIL. Decreto nº 5.452, de 1 de maio de 1943. Aprova a Consolidação das Leis do Trabalho. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del5452. htm>. Acesso em: 22 nov. 2018. BRASIL. Ministério do Trabalho. Aprova modelos de Contrato de Trabalho e de Nota Contratual para contratação de músicos, profissionais, artistas e técnicos de espetáculos de diversões, e dá outras providências. Portaria nº 656, de 22 de agosto de 2018, do Ministério do Trabalho. Diário Oficial, 163. ed. seção 1, p. 70, 23 ago. 2018. LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho. São Paulo: Editora Saraiva, 2018.

1

Notas A Lei nº 6.533/78 também abrange o técnico em espetáculos e diversões, conceituado como o profissional que, mesmo em caráter auxiliar, participa, individualmente ou em grupo, de atividade profissional ligada diretamente a elaboração, registro, apresentação ou conservação de programas, espetáculos e produções.


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2

Art. 2º da Lei nº 6.533, de 1978.

3

Decreto nº 82.385/78

4

Art. 3º da Lei nº 6.533, de 1978.

5

BARROS, Alice Monteiro de. Contratos e regulamentações especiais de trabalho, 4. ed., p. 78.

6

Art. 6º da Lei nº 6.533, de 1978.

7

Art. 7º da Lei nº 6.533, de 1978.

8

A ADI nº 293 ainda não foi julgada pelo STF e seu andamento pode ser acompanhado em: <http://portal.stf.jus.br/processos/detalhe. asp?incidente=4466593>. Acesso em: 20 ago. 2019.

9

Art. 9º da Lei nº 6.533, de 1978.

10

Portaria nº 656, de 22 de agosto de 2018.

11

Art. 10 da Lei nº 6.533, de 1978.

12

Art. 21 da Lei nº 6.533, de 1978.

13

Art. 11º da Lei nº 6.533, de 1978.

14

Art. 22º da Lei nº 6.533, de 1978.

15

Art. 12º da Lei nº 6.533, de 1978.

16

A Convenção Coletiva de Trabalho 2017/2018 firmada pelo Sindicato dos Artistas e dos Técnicos de Espetáculo do Rio de Janeiro e pelo Sindicato das Empresas de Radiodifusão no Estado do Rio de Janeiro estabelece a vedação da utilização do mesmo profissional nos 30 dias subsequentes à contratação por nota contratual, sendo esse período reduzido a cinco dias em caso de obras e/ou programas diferentes.

17

BARROS, Alice Monteiro de. Contratos e regulamentações especiais de trabalho, 4. ed., p. 78.

18

Art. 9º: “Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”. Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943 (CLT).

19

LEITE, Carlos Henrique Bezerra. Curso de direito do trabalho, 10. ed., p. 172.

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G

erenciar um projeto cultural exige uma formação ampla que capacite o gestor a administrar complexidades e reduzir as incertezas do empreendimento. O conhecimento básico da legislação evita a formação de um passivo trabalhista e cível originada pelo não cumprimento das obrigações legais, o que poderia colocar em risco a manutenção do empreendimento. Para contribuir nesse objetivo, apresentam-se quatro pontos fundamentais que auxiliam a gestão de pessoas na cultura. 1. Modalidades de contratação dos profissionais Todo início de empreendimento cultural envolve a seleção da equipe para realização do projeto, momento em que o gestor irá efetuar a contratação dos profissionais, tais como os operadores técnicos, artistas, músicos e demais trabalhadores. A forma de contratação depende da espécie de vínculo que o trabalhador contratado manterá com o contratante. No segmento da cultura ocorrem, usualmente, três espécies de relações de trabalho: a relação de emprego, o trabalho eventual e a prestação de serviços em caráter autônomo, podendo esta se dar por meio de pessoa física ou jurídica.

A relação de emprego ocorre quando o trabalhador é a pessoa física que trabalha subordinadamente ao contratante, e de modo não eventual, recebendo salário. Constatado que o trabalhador se encontra nessa condição, o contrato será regido pela legislação trabalhista, considerando ainda que algumas categorias profissionais são diferenciadas, já que possuem legislação específica, como músicos, artistas e técnicos em espetáculos em diversões. Quando se trata de trabalhador eventual, casos em que o trabalho será exercido em poucos dias e não será habitual, a contratação deverá ocorrer por meio de nota contratual prevista na legislação dos artistas e dos músicos, a Lei nº 6.533/78. O modelo de nota contratual (aprovado por lei) indica as incidências legais cabíveis nessa hipótese. Já o trabalho autônomo não é subordinado ao gestor contratante, de tal sorte que o próprio prestador dirige suas atividades. Nesse caso, o prestador assume os riscos do negócio, determinando a forma de realização da atividade, com iniciativa e organização próprias, escolhendo o lugar, o modo, o tempo e a forma de execução dos serviços. No trabalho autônomo – como dito acima, sem subordinação –, poderá haver prestação por pessoa física ou será firmado o contrato de prestação de serviços com pessoa jurídica, sendo este regido pela legislação civil.1 No primeiro caso, o pagamento se dará por meio de Recibo de Pagamento de Autônomo (RPA), e, no segundo, a pessoa jurídica emitirá nota fiscal de serviços, sempre observando as incidências legais. É fundamental ter atenção à forma de contratação de pessoal, já que, uma vez verificada a existência de subordinação, ainda


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que firmado contrato de prestação de serviços, poderá ser declarada a existência de vínculo empregatício por meio de condenação judicial, o que importará no pagamento das verbas correlatas. Outro ponto importante é a possibilidade de terceirização das atividades, que foi ampliada pela reforma trabalhista e agora abarca a atividade-fim, mas que confere ao contratante a responsabilidade subsidiária pelas verbas não pagas pela empresa contratada ao trabalhador terceirizado. Para reduzir esse risco, deve-se incluir no contrato de prestação de serviço com a empresa terceirizada a obrigação de arcar com todas as verbas trabalhistas, e, durante a execução dos serviços, o contratante deve fiscalizar o cumprimento da legislação. Caso haja descumprimento de alguma obrigação, especialmente em casos de não pagamento de salários, a contratante pode reter os valores devidos à empresa para arcar com os custos de eventual condenação que responsabilize a contratante. 2. Normas relativas à contratação do empregado No momento da contratação do empregado, o primeiro passo do gestor é encaminhar o empregado para exame médico admissional. Essa obrigação está disposta na Norma Regulamentadora nº 7, que dispõe a obrigação de todos os empregadores elaborarem Programa de Controle Médico de Saúde Ocupacional (PCMSO), com o objetivo de promoção e preservação da saúde do conjunto dos seus trabalhadores. Sendo considerado apto, o empregador deverá incluir a anotação na carteira de

trabalho do empregado no prazo de 48 horas, devendo constar a data de admissão, a remuneração e as condições especiais. Diante da vedação de trabalho de menores de 16 anos, salvo na condição de aprendiz, a contratação de menores para atividades artísticas só é possível com autorização do Poder Judiciário. No caso de categorias diferenciadas, como artistas e músicos, devem ser observadas as determinações específicas contidas na legislação que regula essas profissões, bem como as normas do Ministério do Trabalho que disciplinam o conteúdo desses contratos. No caso dos artistas, a legislação ainda exige o registro profissional para exercer a profissão, mas também deve-se considerar que há questionamentos sobre a constitucionalidade dessa exigência. 3. Limites da jornada de trabalho do empregado A Constituição Federal limita a jornada de trabalho a oito horas diárias e 44 horas semanais. Caso haja prestação de serviço em jornada extraordinária, as horas extras deverão ser pagas com adicional de 50%, e, no caso de trabalho em domingos e feriados, devem ser pagas com adicional de 100%, salvo estipulação em contrário em norma coletiva ou concessão de folga compensatória. No caso das profissões regulamentadas, a jornada pode ser inferior. Por exemplo, o artista possui uma jornada inferior a depender do setor e atividade desenvolvida 2 e os músicos possuem jornada de cinco horas, podendo ser elevada para seis horas para os estabelecimentos de diversão pública.3

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Caso o estabelecimento possua mais de dez empregados, é obrigatório o registro de sua jornada de trabalho, tanto de modo manual como mecânico ou eletrônico. É importante que o registro da jornada seja fiel à realidade; caso os horários registrados sejam idênticos, ou “britânicos”, o controle será considerado inválido para a prova da jornada de trabalho do empregado, presumindo-se verdadeira a alegação do empregado quanto à sua jornada em eventual reclamação trabalhista. Quando a duração do trabalho do empregado exceder seis horas diárias, é obrigatória a concessão de intervalo intrajornada de no mínimo uma hora e no máximo duas horas para repouso e alimentação. Se a jornada for superior a quatro horas e inferior a seis, é obrigatória a concessão de um intervalo de 15 minutos. Além disso, entre duas jornadas de trabalho, é obrigatória a concessão de intervalo de 11 horas. É possível instituir um regime de compensação de jornada, possibilitando ao empregado a compensação das horas extraordinárias laboradas acima do limite legal em outro dia, dentro do mesmo mês, desde que haja concordância do empregado. No caso de implementação de banco de horas, a compensação das horas deve se dar dentro do período de um ano, por meio de acordo coletivo firmado com o sindicato, e no período de seis meses por meio de acordo individual escrito firmado diretamente com o empregado. 4. Remuneração dos profissionais e rescisão contratual O pagamento de pessoal exige um controle rigoroso do gestor, afinal, quem paga mal paga duas vezes. É importante a contratação

de um profissional de contabilidade para essa tarefa, sem excluir a necessidade de acompanhamento constante do gestor. No caso dos profissionais empregados, o pagamento dos salários deve ser realizado até o quinto dia útil do mês e o 13º salário deve ser pago em duas parcelas, sendo a primeira até dia 30 de novembro e a segunda até 20 de dezembro. Deve ser entregue ao empregado um recibo que discrimine todas as parcelas pagas com a respectiva rubrica, bem como os descontos incidentes sobre o salário bruto. Além disso, a remuneração dos profissionais empregados pode ser reajustada, por meio de negociação coletiva. Por isso, é imprescindível estar atento aos direitos e deveres previstos nas normas coletivas das categorias. Deve-se atentar que, além do pagamento dos profissionais da cultura pela execução de seus serviços, é necessário o pagamento por direitos autorais e conexos eventualmente devidos. Por fim, os empregados possuem direito ao Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS), devendo ser depositados 8% da remuneração do empregado. Na rescisão contratual sem justa causa, por iniciativa do empregador, é aplicada a multa de 40% sobre o total dos depósitos, além das demais verbas rescisórias, como aviso prévio, férias e 13º proporcionais e vencidos. No caso de outras formas de rescisão, as verbas devidas ao empregado são mais restritas. Conclusão Considerando esses pontos, o risco de irregularidades reduz substancialmente,


PEDRO LUNDGREN E GABRIEL RODRIGUES

sendo fundamental ainda o acompanhamento jurídico especializado. Para o devido aprofundamento, relacionam-se a seguir os links para as leis e normas citadas. Norma Regulamentadora nº 7 <http:// www.trabalho.gov.br/images/Documentos/ SST/NR/NR7.pdf> Consolidação das Leis do Trabalho <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Decreto-Lei/Del5452.htm> Lei dos Artistas e Técnicos em Espetáculos <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ leis/L6533.htm> Lei dos Músicos <http://www.planalto. gov.br/ccivil_03/LEIS/L3857.htm> Portaria nº 656 do Ministério do Trabalho <http://www.normaslegais.com.br/ legislacao/portariamtb656_2018.htm> Lei de Direitos Autorais e Conexos <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/ LEIS/L9610.htm>

Pedro Capanema Lundgren É advogado, sócio do escritório Capanema e Belmonte Advogados e mestre em teoria do estado e direito constitucional pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC/RJ). Foi diplomado em Genebra, na Suíça, pela International Labour Standards Academy, da Organização Internacional do Trabalho (OIT), e na Filadélfia, nos Estados Unidos, pelo Programa de Estratégia e Inovação nos Negócios da Wharton School, University of Pennsylvania. É LLM em direito corporativo pelo Ibmec e graduado em direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Uerj).

Gabriel Ferreira Rodrigues É graduado em direito pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Atualmente é advogado associado do escritório Capanema e Belmonte Advogados, com atuação na área de direito trabalhista e sindical.

1

Notas Ver Art. 593º e seguintes do Código Civil (Lei nº 10.406, de 2002).

2

Art. 21º da Lei nº 6.533/78.

3

Art. 42º da Lei nº 3.857/1960.

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ASPECTOS ESSENCIAIS EM GESTÃO DE PESSOAS:

UMA CONTRIBUIÇÃO PARA ORGANIZAÇÕES DO SETOR CULTURAL Mônica Bose

O artigo apresenta elementos fundamentais para a reflexão sobre gestão de pessoas, tendo em vista as particularidades presentes em organizações do setor não lucrativo, notadamente as organizações culturais. Partindo de uma perspectiva sobre a cultura que também faz parte das organizações, busca-se articular conteúdos que visam contribuir para o aperfeiçoamento contínuo de processos e práticas para retenção, desenvolvimento e valorização de talentos.

A

gestão de organizações sem fins lucrativos requer um olhar atento e cuidadoso sobre as características que o fenômeno reserva. Enquanto a gestão de empresas privadas, com fins de lucro, se revela altamente profissionalizada e otimizada em termos de eficiência, eficácia e efetividade, no chamado terceiro setor, composto das organizações sem fins de lucro, observa-se uma incansável busca pela profissionalização, com esforços que muitas vezes resultam em nada ou quase nada substancialmente significativo em termos de avanços. Mas por que esse descompasso persiste? Por que tantas organizações sem fins lucrativos investem tempo, recursos materiais e financeiros, bem como a energia de gestores e colaboradores, para introduzir melhorias nas práticas gerenciais, mas a informalidade e o personalismo continuam?

Neste artigo vamos discutir algumas das particularidades que podem explicar esse fenômeno, bem como propor reflexões sobre mecanismos que podem melhorar a performance na gestão de pessoas em organizações sem fins lucrativos que atuam no setor cultural. Gestão de pessoas e cultura organizacional Gerenciar pessoas é uma atribuição que assusta muitos gestores e aspirantes ao cargo. Se, por um lado, ela é uma importantíssima vertente da dinâmica organizacional, por outro, essa atribuição é marcada por desafios diários para os quais poucos gestores estão realmente preparados. Cursos, livros e artigos que tratam do tema são recheados de fórmulas, ferramentas, procedimentos e toda sorte de dicas, fundamentadas ou não,


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Felipe Arantes Cavalcante e Talita Sousa, Japan House SP, recepcionistas

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que trazem soluções geralmente perfeitas, do ponto de vista racional, para os desafios identificados, mas que nem sempre funcionam na prática. Duas variáveis explicam boa parte desses insucessos: a cultura organizacional e a adequação dos processos de gestão de pessoas. A cultura de uma organização é formada pelo conjunto de normas, valores, hábitos, rituais e símbolos que comunicam aos seus membros quais tipos de condutas são considerados adequados e quais são inadequados. E acaba por revelar mitos, tabus e crenças que são transmitidos e incorporados pelas pessoas dentro do ambiente organizacional, muitas vezes de forma inconsciente. Esse arcabouço cultural é erguido sobre os valores dos fundadores de cada organização, das práticas estimuladas pelos primeiros líderes e dos códigos de conduta formais e informais que determinam como as pessoas serão gerenciadas no macroambiente organizacional e nos microambientes que o compõem. A cultura organizacional faz com que, por exemplo, instituições que atuam em um mesmo setor, com estruturas e desafios gerenciais semelhantes, sejam administradas de formas distintas. Essa diversidade ocorre porque as respostas encontradas pelos seus membros são determinadas pelos pressupostos básicos (basic assumptions1) presentes no cerne da cultura de cada organização em particular. Os pressupostos básicos orientam como as pessoas devem perceber, pensar e se sentir em relação aos problemas presentes na organização, influenciando fortemente o tipo de respostas e soluções que serão escolhidas por seus membros para superar os desafios diários (FLEURY; FISCHER, 2007).

Muito embora a cultural organizacional seja dinâmica, as mutações ocorrem lentamente, e, no curto espaço de vida da maior parte das organizações culturais brasileiras, ela ainda tende a ser fortemente determinada pelos padrões estruturais e normativos ditados pelas primeiras lideranças. A introdução de mecanismos e práticas considerados mais eficientes e eficazes para a gestão em geral, e principalmente em gestão de pessoas, é um processo que muitas vezes implica profunda ruptura com padrões ditados pelo modelo gerencial vigente. É nesse ponto que a tão esperada modernização encontra resistência nos traços culturais que permeiam o ambiente organizacional, minando o processo de transformação e reduzindo seus efeitos a pequenas e sutis adaptações. Torna-se, portanto, fundamental identificar e trabalhar com os traços culturais presentes em cada organização, de modo que os aperfeiçoamentos gerenciais possam incorporar os aspectos positivos da cultura organizacional, bem como administrar cuidadosamente os impactos negativos da mudança planejada sobre seus aspectos menos funcionais. Já os processos de gestão de pessoas têm como finalidade central equacionar os três grandes desafios da área: atrair, desenvolver e reter profissionais que contribuam para o sucesso da organização. O ciclo de contribuição de um funcionário para a organização tem início ainda no processo seletivo. Por meio das ações de captação de candidatos, as organizações escolhem, entre todos os interessados, quais serão chamados para contratação. Um processo seletivo pode ser considerado


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bem-sucedido quando a organização consegue atrair profissionais qualitativamente adequados ao perfil que se deseja contratar e, dentre essa oferta, contrata pessoas que atendam aos requisitos essenciais do cargo. Em um mercado de trabalho mais restrito, como na área cultural, algumas variáveis são relevantes para esse sucesso: a boa imagem da organização que contrata, a clareza do perfil de profissional que se deseja contratar, uma atraente oferta de recompensas e a cuidadosa avaliação da capacidade técnica e das competências socioemocionais dos candidatos à vaga. Os profissionais da área de cultura anseiam por trabalhar em uma organização que estimule a liberdade criativa, mas que também ofereça segurança nas recompensas pelo trabalho bem-feito, e que tenha um clima organizacional positivo, com líderes bem preparados e colegas colaborativos. Não raro, o ambiente de trabalho é mais valorizado do que as recompensas financeiras, especialmente entre profissionais em estágios iniciais de carreira, e esse aspecto merece ser ressaltado em propostas de contratação. A trajetória de um profissional na organização pode ser representada como um processo de contínua retroalimentação: a pessoa contribui para o sucesso da organização ao mobilizar e aplicar seu repertório de competências. E o desenvolvimento contínuo dessas competências individuais, estimulado pela organização, refina e qualifica o desempenho dos profissionais (DUTRA, 2012). Essa engrenagem é tão importante que muitos modelos consagrados enfatizam o desenvolvimento de competências como o principal processo de gestão de pessoas.

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Os recursos disponíveis atualmente para desenvolver competências são variados e podem ser proporcionados com investimentos muito inferiores aos custos dos tradicionais programas de treinamento. Há uma vasta gama de cursos on-line, especialmente para profissões baseadas em competências técnicas e especializadas, promovidos por instituições nacionais e internacionais, muitas vezes com custo zero. Também é possível adquirir e-books de obras que antes só poderiam ser importadas a alto custo. Plataformas de cursos e especializações on-line estão disponíveis em quase todas as melhores universidades. Competências socioemocionais, por sua vez, podem ser desenvolvidas com o apoio de tutores e coaches, por meio do emprego de metodologias individualizadas que promovem rápidos e visíveis avanços. As políticas de remuneração e reconhecimento sustentam, em conjunto com o estímulo ao desenvolvimento de competências, o comprometimento dos profissionais com a organização e, por consequência, a retenção de talentos. Boas políticas de recompensas são construídas sobre um tripé: remuneração e bonificações; benefícios; e recompensas não financeiras. Essa combinação ajuda em grande medida organizações que não dispõem de orçamentos robustos ou estáveis, como organizações do setor cultural, pois elas precisam criar meios de atração e retenção de talentos que equacionem limitações financeiras. Felizmente, os profissionais que buscam ocupação no setor não lucrativo priorizam, em geral, a satisfação de necessidades subjetivas, como liberdade para criar, flexibilidade de

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horários, realização por meio do trabalho, reafirmação de crenças, ideais e valores, interação social e geração de valor para a sociedade. Por outro lado, a satisfação de necessidades voltadas para empregabilidade, carreira e remuneração é mais enfatizada por profissionais que atuam no setor lucrativo, como demonstrou pesquisa realizada por Hipólito (2008). Muito embora a ênfase em recompensas não financeiras seja uma boa solução para a escassez de incentivos pecuniários, é necessário cuidar dos demais aspectos do tripé e observar que a eficácia do sistema exige esforço e algum grau de investimento por parte da organização. As remunerações devem ser compatíveis com os valores médios praticados no setor, tanto para profissionais assalariados quanto para autônomos. Os benefícios oferecidos aos empregados devem atender às especificações de cada categoria laboral e podem ser enriquecidos com benefícios úteis para o profissional do setor, como bolsas de estudo, viagens de intercâmbio e participação em feiras e congressos. O investimento em benefícios adicionais se justifica pela inexistência de custos decorrentes, como encargos sociais e trabalhistas, e por atenderem qualitativamente bem às expectativas e necessidades dos profissionais. Recompensas não financeiras englobam diversos fatores que proporcionam bem-estar e realização pessoal. São, portanto, intangíveis e de operacionalização mais complexa que a administração de salários e benefícios. Um fator de grande potencial motivacional para determinado profissional pode ser um fator extremamente desestimulante para

outros profissionais em uma mesma organização ou até em uma mesma equipe. O reconhecimento público, com alardes e comemorações, pode ser muito eficaz para profissionais que demonstram alta necessidade de interação e reconhecimento social. Mas pode ser extremamente constrangedor para profissionais cujas principais expectativas são de caráter individual, mais relacionadas à obtenção de prazer por meio do trabalho. Recompensas não financeiras devem ser individualizadas, e para isso é necessário que os gestores conheçam profundamente os traços de personalidade, as ambições, as expectativas e as necessidades de cada membro da equipe, para então criar estratégias de reconhecimento que de fato sustentem a motivação individual e do grupo. Motivação É possível que um profissional demonstre extrema satisfação com seu trabalho e com o ambiente organizacional, mas nunca atinja os objetivos que lhe são atribuídos. Essa sutil constatação está presente no rol de preocupações de muitos gestores e a explicação dessa aparente ambiguidade recai sobre o entendimento do que é a motivação. Teorias clássicas em motivação tendem a concluir que trabalhadores satisfeitos são trabalhadores motivados e que, portanto, bastaria cuidar dos fatores que levam à satisfação com a organização para que a motivação aflorasse naturalmente. Dessas vertentes originam-se práticas como ênfase em aspectos pecuniários do reconhecimento, criação de ambientes físicos atrativos, concessão de benefícios de relevância individual e familiar, e gestão de conflitos.


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Porém, o investimento na criação de condições que geram satisfação no trabalho nem sempre resulta no comprometimento com o alcance dos objetivos organizacionais, pois as contribuições individuais são desbalanceadas e, aparentemente, de difícil controle e direcionamento por parte dos gestores. Constata-se, portanto, que muitas práticas são eficazes na redução da insatisfação com o trabalho e consequente manutenção de baixos índices de rotatividade de pessoal, mas não são suficientes para motivar os profissionais a atingirem objetivos concretos relacionados à sua função. A perspectiva da capacidade que temos de persistir para atingir um objetivo acrescenta um importante componente ao processo motivacional. Por exemplo, um profissional liberal é naturalmente orientado para objetivos como obter clientes, cumprir agendas e prazos, zelar pela qualidade do trabalho e das entregas. Para que esses objetivos sejam atingidos, o profissional investirá esforço pessoal, pois seu sucesso está atrelado a um alto senso de responsabilidade sobre os resultados do trabalho. Essa motivação intrínseca é buscada pelas organizações quando optam por contratar profissionais para ações ou projetos temporários. O compromisso é pautado pelas entregas, pelos resultados contratados, e são esses resultados que determinarão o sentido e a direção dos esforços empreendidos pelo profissional. A motivação é mais bem compreendida quando observada como o processo de empregar esforços para atingir objetivos. Os objetivos atribuem direção aos esforços. Uma pessoa motivada encontra soluções para lidar com condições adversas e nem sempre satisfatórias para a realização do trabalho, e

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isso diz respeito à intensidade dos esforços que ela pode empregar. Ela não desiste facilmente, e a persistência é outra característica central da motivação. Sob essa óptica, a pessoa se compromete a empregar considerável quantidade de esforço pela perspectiva de satisfazer alguma necessidade individual (ROBBINS, 2002). Assim, motivar um profissional envolve basicamente: 1. atribuir objetivos claros, para o grupo e para cada membro, mantendo coerência entre o que é solicitado e o que é avaliado; 2. mobilizar a necessidade de realização de cada profissional, esclarecendo as recompensas que serão obtidas; 3. alinhar as recompensas pelo desempenho a expectativas e metas pessoais; 4. esclarecer como o desempenho será avaliado, estipulando fatores e métricas. Esse conjunto de fatores, considerados extrínsecos ao indivíduo, é fundamental, mas não exclusivo para o processo motivacional. Fatores intrínsecos devem ser considerados antes mesmo do estabelecimento de metas. Eles incluem basicamente: 1. existência de interesse pessoal do profissional na atividade que será atribuída; 2. adequação do estilo de personalidade, do conjunto e do nível de desenvolvimento de competências às tarefas que são atribuídas ao profissional.

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Rosi da Silva Santos, Sesc/SP, supervisora de Infraestrutura


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A harmonização de fatores intrínsecos e fatores extrínsecos relacionados ao processo motivacional assegura a existência de condições mais adequadas para o alcance de objetivos individuais e grupais. Uma vez finalizado o prazo para o atingimento dos objetivos, a avaliação do desempenho ocupa importante lugar na manutenção da motivação, retroalimentando o sistema e sustentando os critérios para ações de reconhecimento e eventuais recompensas. Avaliação e feedback Objetividade é o pilar central do processo de avaliação de pessoas. Cotidianamente, as pessoas são avaliadas de forma subjetiva, pelos erros e acertos, o que pode resultar em generalizações que não traduzem exatamente os melhores desempenhos nem as necessidades de aperfeiçoamento profissional. Isso não significa que o olhar atento do gestor deva deixar de existir; ele é fundamental para que os pequenos erros sejam prontamente identificados, comunicados e corrigidos, nutrindo uma cultura de aperfeiçoamento contínuo. Os processos objetivos e estruturados de avaliação têm a qualidade de enriquecer a avaliação cotidiana por meio do estímulo ao desenvolvimento contínuo e do estabelecimento de metas e padrões de desempenho. A avaliação pode ser um tema tabu em alguns tipos de organizações, especialmente naquelas que empregam pessoas de alta especialidade, como se verifica no setor cultural. Profissionais que desempenham atividades de natureza técnica e administrativa, e que trazem vivências de organizações de diferentes naturezas e setores, tendem a ser

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menos resistentes aos processos avaliativos e mais abertos a compreender os benefícios de um sistema de avaliação bem fundamentado e adequadamente desenhado para o contexto em particular. Já profissionais de alta qualificação, especialistas em determinadas áreas, setores e atividades, paradoxalmente mostram-se mais inseguros diante da perspectiva de uma avaliação formal. Quando predominam as ocupações de alta qualificação em uma organização, a resistência e o descaso podem constituir barreiras à implantação do processo de avaliação. O mesmo pode ocorrer em organizações que empregam pessoas para ações ou projetos pontuais, mesmo que sejam sempre os mesmos profissionais, uma vez que a ausência de vínculo empregatício tem como prerrogativa a autonomia e a ausência de vínculos institucionais. Para minimizar potenciais resistências, a concepção e a modelagem do sistema de avaliação podem contar com a participação de pessoas-chave que representem as diferentes ocupações existentes na organização, notadamente os formadores de opinião e os entusiastas institucionais, assim como os profissionais de nível técnico e administrativo. Para propiciar o engajamento das pessoas com a implantação do processo de avaliação, é recomendável, adicionalmente, o envolvimento dos profissionais nas atividades de identificação e de validação dos fatores de avaliação, evitando-se a criação de ideias persecutórias sobre critérios e formas de avaliação. A complementaridade dos métodos de avaliação é importante para a consistência do sistema. Um método que estimule os

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processos de desenvolvimento de pessoas enquanto os resultados na avaliação do atincompreende a identificação de competên- gimento de metas oferecem subsídios para cias-chave para a organização como um ações pontuais de reconhecimento indivitodo e de competências centrais em cada dual e grupal. O feedback é a mola propulsora dos natureza de atividade nela presente. A processos de avaliação de pessoas. Quanavaliação feita por meio de consenso entre o gestor e cada membro da equipe visa do empregado unicamente nos momentos identificar lacunas de desenvolvimento e formais de avaliação, que acontecem a cada criar planos de desenvolvimento individual seis ou 12 meses, torna-se temido ou repupara que, numa próxima avaliação, essas la- diado. Isso acontece porque o feedback deve cunas tenham sido minimizadas, ou para ser feito com frequência e com coerência, que o profissional possa ser elevado a ou- ou seja, deve ser praticado de forma natural tro patamar de complexidade num contínuo pelos gestores, no dia a dia da organização, processo de desenvolvimento e sempre de forma alinhade competências, atrelado às A complementaridade da aos parâmetros já estaperspectivas de crescimento dos métodos de belecidos de desempenho profissional na organização.2 avaliação é importante e resultados, presentes na Um método que oriente para a consistência ferramenta de avaliação. do sistema o desempenho das pessoas As pequenas correções para resultados, por sua vez, de rumo realizadas diariacompreende a clara definição de metas in- mente facilitam o diálogo nos momentos dividuais e grupais, as quais são um desdo- formais de avaliação, pois o profissional bramento das metas organizacionais. Elas sabe que não será surpreendido com alpodem ser definidas por área ou por projeto, guma observação completamente descode acordo com a natureza da atividade de nhecida. O feedback frequente estimula os cada pessoa. Os indicadores, que são as mé- profissionais a identificarem e melhorarem tricas aplicadas para avaliar o quão próximo deficiências, bem como a explorarem suas ou distante o desempenho individual está principais habilidades e aptidões. em relação às metas definidas, devem ser A experiência mostra que não existe claros e de fácil aferição.3 uma fórmula definitiva para um feedback Quando combinado com um método eficaz, muito embora algumas atitudes fade avaliação por competências, o método cilitem o processo: planejamento prévio, de avaliação por resultados funciona como levantamento de evidências concretas que estímulo ao desenvolvimento individual. sustentem os argumentos, foco em fatores Adicionalmente, os resultados obtidos na observáveis e alinhados aos parâmetros esavaliação do desenvolvimento de com- tabelecidos nos instrumentos formais de petências oferecem insumos para o pro- avaliação, quando esses existirem, são fatogresso salarial na organização, balizando res essenciais para assegurar a objetividade níveis de senioridade nas diversas funções, do processo.


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Julgamentos de valor, preferências pessoais, comentários inoportunos, comparações entre profissionais, bem como complacência ou severidade, são atitudes a serem evitadas. O gestor precisa identificar se essas tendências fazem parte de seu repertório pessoal, bem como esforçar-se para controlá-las, sobretudo nos momentos formais de avaliação. Aperfeiçoando a gestão de pessoas A literatura em gestão de pessoas se reinventa periodicamente e busca novos jargões para enfatizar a essência de seu campo de conhecimento: a complexidade presente nas relações humanas dentro do ambiente de trabalho. Em organizações que produzem bens e serviços de natureza social, essa complexidade parece potencializar-se, pois os profissionais nutrem alto envolvimento emocional com seu trabalho e com os objetivos organizacionais. Reconhecer essas peculiaridades é fundamental para a construção de bons sistemas de gestão de pessoas. Além disso, as barreiras presentes no setor não lucrativo não podem ser desmerecidas no campo de gestão. Lidar com recursos escassos implica o uso criativo, porém fundamentado, de boas práticas. Mas elas precisam fazer sentido para cada organização em particular, de modo a lidar de forma cuidadosa com os traços culturais presentes, bem como introduzir políticas e processos de gestão eficientes e eficazes na atração, no desenvolvimento e na retenção de talentos.

Mônica Bose É psicóloga, doutora em administração pela Universidade de São Paulo (USP) e docente em cursos nas áreas de gestão e empreendedorismo. Realiza consultoria em gestão de organizações e de pessoas, com projetos desenvolvidos na iniciativa privada, em organizações sem fins lucrativos e empresas públicas. Foi coordenadora de projetos e pesquisadora no Centro de Empreendedorismo Social e Administração em Terceiro Setor, da Fundação Instituto de Administração (Ceats/FIA), e gerente de recursos humanos na Accor Brasil/ Carlson Wagonlit Travel. Publicou artigos e livros sobre empreendedorismo social, responsabilidade social e gestão de pessoas.

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Referências DUTRA, Joel S. Competências: conceitos e instrumentos para gestão de pessoas na empresa moderna. São Paulo: Editora Atlas, 2004. FLEURY, Maria Tereza L.; FISCHER, Rosa Maria. (Coord.) Cultura e poder nas organizações. 2 ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007. HIPÓLITO, José Antonio M. Recompensas em organizações que atuam no terceiro setor: análise a partir de seus pressupostos orientadores. 2004. Tese de doutorado em administração pela Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da Universidade de São Paulo (FEA/USP), São Paulo, 2004. ROBBINS, Stephen P. Comportamento organizacional. São Paulo: Prentice Hall, 2002. SCHEIN, Edgar H. Organizational culture and leadership. 1. ed. San Francisco: Jossey Bass Wiley, 1985.

Notas

1 O termo basic assumptions foi cunhado pelo psicólogo e professor aposentado

do Massachusetts Institute of Technology (MIT) Edgar Schein (1985), considerado um dos maiores especialistas na área de liderança. 2

Sobre o processo de desenvolvimento de competências, ver: DUTRA, Joel S. Competências. Conceitos, instrumentos e experiências. São Paulo: Editora Atlas, 2016.

3

Sobre os métodos de avaliação de desempenho por resultados, ver: PONTES, Benedito R. Avaliação de desempenho: métodos clássicos e contemporâneos, avaliação por objetivos, competências e equipes. 12. ed. São Paulo: LTr, 2014.


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Plínio Correa, Casa das Rosas, diretor financeiro


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CULTURA E CONSTRUÇÃO DO SUJEITO Sigmar Malvezzi

A cultura é fator crucial na equação que move a sociedade, por seu impacto na imaginação aplicada à subjetivação e compreensão do mundo. A riqueza e a diversidade culturais fomentam os ideais e a capacitação do sujeito para a busca do bem viver e de sua emancipação. O mundo real e o mundo cultural se completam e se enriquecem. Hoje, a força transformadora da cultura enfrenta a competição do conhecimento técnico e da racionalidade econômica, inibindo a imaginação e a subjetivação. A sociedade arrisca comprometer a democracia inibindo a cultura.

A

cultura é agente visível e crucial na equação de fatores que formatam e movem a sociedade. Sua ação, em complementaridade e interdependência com outros agentes, tais como a produção econômica e as estruturas sociais, cria e movimenta as forças que desenvolvem e constroem a qualidade de vida e a paz entre os povos. Essa equação revela que as comunidades humanas sempre buscaram a sobrevivência e sonharam com o bem viver, apoiadas na cultura, cuja contribuição é força visível desde as origens da civilização (ESPRIT, 2012). Essas forças encontram na cultura manifestações de ideais que as engrandecem e ampliam sua visão de mundo. O reconhecimento da cultura na equação da sociedade revela que a ação de um povo não se limita à construção de recursos materiais e técnicos, mas se estende

à criação e produção da vida interior, que, sendo compartilhada, energiza o sentido da existência de indivíduos e comunidades, fomentando a visão idealizada de suas trajetórias. A cultura atua significativamente nessa idealização. Sob a influência desse potencial de idealização, a busca de sobrevivência e a construção do sentido da existência deveriam atuar sempre como propulsoras na equação da sociedade, porém, de fato, ambas eventualmente atuam como freios que dificultam a exploração da beleza que desponta da existência humana, como evidenciado em séculos de produção artística. Essa possibilidade do contraditório demanda reflexão da qual surgem questões como: por que a cultura desponta como fator crucial na equação que formata e move a sociedade? Que riscos a sociedade atual


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oferece à cultura e à sua contribuição para a construção da existência humana? Tais questões inspiram e fomentam a reflexão sobre os cuidados e desafios inerentes à gestão da sociedade que podem inibir a criação cultural. Seu objetivo primário foi coletar um repertório de reflexões para que o leitor aprofunde sua compreensão desses tópicos. O alvo deste ensaio é a compreensão da cultura na equação da sociedade para subsidiar as possibilidades de sua gestão. Tal escopo requer reflexão sobre alguns mecanismos que movem a sociedade, sobre suas interfaces com a cultura neste momento de globalização e digitalização e sobre as potencialidades de ações para cuidar do equilíbrio entre a cultura e os demais fatores que compõem a equação da sociedade. Cultura, idealização e capacitação Aberta, potencializada e reconhecida como recurso que enriquece a compreensão e a construção da existência, a cultura atua como agente norteador e propulsor da sociedade, mesmo em situações nas quais sua finalidade tenha sido subvertida. Os animais são norteados por instintos e os seres humanos pela cultura. A trajetória histórica dos povos, manifestando ideais de autodeterminação, expõe os impactos da cultura na busca da sobrevivência e na construção do sentido da existência. Essa contribuição tem sido visível desde os primeiros registros históricos e literários da civilização humana, como evidenciam as trajetórias de povos como os hebreus e os gregos. Assumindo a gestão da interdependência

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entre bem viver e sobrevivência, os povos construíram estruturas – econômicas, sociais, urbanas e políticas – amalgamadas pela cultura, que é reconhecida como um instrumento de idealização e de sustentabilidade da sociedade a ser preservado, compartilhado e desenvolvido. O reconhecimento dessa ação integradora e propulsora da cultura atravessou a história, como evidencia sua presença nos mais diferentes povos, ambientes e momentos históricos. Recentemente, os rápidos saltos qualitativos promovidos pelo avanço e pelas características da tecnologia, assim como por seus desdobramentos em novos modos de existência, fomentados pela globalização e pela virtualização, ampliaram a visibilidade da cultura e de sua ação na sobrevivência e na construção do sentido da existência. Os sinais dessa visibilidade aparecem rotineiramente – até mesmo nos noticiários mais populares, que regularmente divulgam ganhos pela implementação de novas tecnologias, como a digitalização – igualmente expressando a dispersão cultural e, como alguns consideram, perdas e banalização da cultura, manifestadas no passo mais lento das políticas educacionais, na banalização da comunicação de massa e na competição criada entre a cultura e os conhecimentos técnicos e aplicados, na escola. Hoje, grupos avançados no uso de novas tecnologias contrastam com o ritmo mais lento do avanço de seus membros na compreensão da sociedade e com o estreitamento de sua visão de mundo. Esses grupos buscam avidamente saltos qualitativos na instrumentalidade técnica de suas ações, ao mesmo tempo que revelam baixa aspiração

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e dedicação ao seu desenvolvimento cultural (BERAN, 2017). Nesse contraste, a precisão das atividades funcionais e utilitárias atrai mais do que a riqueza e a beleza da criação cultural. Esse desequilíbrio se desdobrou no empobrecimento cultural em segmentos significativos da sociedade, impactando na capacitação do cidadão, que frequentemente se limita a competências para fins imediatos e visíveis, distanciando-se de fins sublimes, como aqueles encontrados no folclore, nas artes e na filosofia. Esse descompasso entre desenvolvimento tecnológico e cultural, observado em diversos segmentos da sociedade, aumenta os riscos de maior empobrecimento cultural diante da acelerada evolução tecnológica e da digitalização das rotinas, esperadas nos próximos anos. Esses riscos não têm recebido atenção suficiente da sociedade para mobilizar suas instituições na recuperação de perdas culturais já largamente observadas, como o empobrecimento no uso da linguagem. Pesa, nesse insuficiente grau de atenção, a crença de que a sociedade pode abrigar o bem viver por meio da hegemonia do conhecimento técnico, sem depender do conhecimento criado no território das chamadas humanidades. Esse equacionamento dos movimentos na sociedade atual facilita a formação de racionalidades nas quais a cultura aparece reificada como “mercadoria” e não como força propulsora da busca de sentido e razão de ser da existência. Consequentemente, seu valor e função podem ficar limitados aos seus impactos como conhecimento aplicado e se distanciar de seu papel de guia para a busca de enriquecimento da existência e da visão de mundo.

Essas racionalidades já existem e atuam em aberta competição com a cultura na compreensão do mundo. A busca da linguagem dos algoritmos na avaliação da cultura, em diversos campos, como as políticas públicas e o mérito acadêmico, evidencia a hegemonia do conhecimento técnico e aplicado, invadindo até mesmo a gestão da criatividade e da ciência. Esse desequilíbrio na balança em que são pesados os conhecimentos já atinge as escolas, ninhos preciosos do desenvolvimento cultural, e remete essa análise ao objetivo deste ensaio. Respondendo, em termos sucintos e ingênuos, à questão proposta acima, para realizar a tarefa aqui assumida, o status de fator crucial dado à cultura na equação que move a sociedade se justifica por sua influência na idealização e na subjetivação individual e coletiva, que será o conteúdo da próxima análise. A tese que fundamenta este ensaio é o reconhecimento da subjetivação como questão-chave do desenvolvimento cultural e do bem viver. Cultura, subjetivação e capacitação A subjetivação é o mecanismo no qual o ser humano é construído como sujeito, e, por corolário, como ocorre sua capacitação para sobreviver e para dar sentido à sua existência. Dito de forma mais precisa, a subjetivação é um processo de capacitação no qual o indivíduo aprende a ser protagonista de sua existência e ator na construção do bem viver da sociedade. Essa função da subjetivação brota de seu impacto na compreensão que indivíduos e grupos desenvolvem da sociedade e da consciência de sua existência dentro dela. A subjetivação é um processo longo,


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contínuo e viabilizado na vida cotidiana por diversos atores, como a família, a escola, os projetos pessoais e a convivência social – esta hoje influenciada pela comunicação de massa e pelas chamadas redes virtuais. A subjetivação é uma construção manifestada em ampla diversidade de formas, conforme a dinâmica cultural singular de cada povo. Essa diversidade de formas, criada nos diferentes povos, revela o potencial criativo do ser humano e as tensões inerentes à evolução de qualquer comunidade em suas interfaces com o ambiente. O estudo de Wallman (1979) sobre a subjetivação na institucionalização do trabalho em dezenas de povos alocados em distintos lugares do mundo mostra que esse processo de capacitação do sujeito aproveita e alimenta as criações culturais para promover experiências de aprendizagem do trabalho produtivo. As diferenças enriquecem, como se pode observar na democracia, que somente se sustenta na abertura para a aceitação da diversidade. A subjetivação é um processo de oferta e articulação de experiências por meio das quais os indivíduos aprendem a se relacionar com o mundo e consigo mesmos. É uma atividade ordinária em todas as sociedades que atravessam as tensões esperadas em situações de mudanças. Mudar é próprio da condição humana e pode ocorrer dentro das fronteiras que mantêm as competências e o empoderamento dos indivíduos. A história tem revelado casos nos quais essas fronteiras foram ignoradas – como na dominação por mãos de ferro e na escravidão –, nos quais a subjetivação aparece comprometida, impossibilitada de realizar sua função de capacitação do sujeito. Nesses casos, povos

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tiveram negados todos os seus direitos, até mesmo a legitimidade da manifestação de sua cultura. Na verdade, escravidão e dominação são modos de interação nos quais o direito à subjetivação foi negado a algum grupo. O trabalho de Touraine (2017) sobre a formação do sujeito na sociedade do presente momento histórico analisa as dificuldades no processo de subjetivação criadas pela globalização e pela digitalização. Touraine explica, ampla e consistentemente, as limitações que essas condições da sociedade atual e seus desdobramentos no empoderamento dos indivíduos criam para a capacitação dos cidadãos como sujeitos, complicando seu protagonismo na busca do bem viver e do sentido da existência. A subjetivação e a possibilidade de obstáculos à sua viabilização ocorrem porque todo indivíduo, para construir sua emancipação e sua consciência, atua por meio de estruturas biológicas e subjetivas, que requerem desenvolvimento e cuja ação ocorre dentro de contextos sociais, culturais e políticos que podem tanto favorecer como complicar sua função de capacitar sujeitos. O indivíduo aprende a ser sujeito interagindo com o mundo dentro de estruturas e instituições que limitam e oferecem recursos para seu protagonismo, por meio do qual ele constrói competências, bases de julgamentos, ideais e sua emancipação. A cultura é fator crucial da subjetivação porque estimula a imaginação, empoderando sua associação à memória, para constituir as habilidades básicas dos indivíduos. As competências de ação dos indivíduos e grupos são construídas a partir da interação com as estruturas e instituições que os cercam, por meio da ação

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integrada entre a memória e a imaginação. Esses mecanismos de ação apoiados Esse aprendizado ocorre na interação en- pela cultura fomentam nos indivíduos a tre as estruturas do indivíduo e aquelas que superação das condutas instintivas obserconstituem o ambiente no qual ele exercita vadas nos animais. Na condição humana, os sua transformação e a construção do mundo, instintos podem ser superados e regulados administrando as interfaces entre pessoas, pela cultura. O ser humano atua movido pela grupos e instituições. consciência de si mesmo, por meio de suas Nessa interação, nasce a intersubjeti- competências, administrando obstáculos vidade, uma estrutura aberta à influência e demandas dos outros, direcionado para a cultural que revela o esforço de adaptação finalidade que ele assume para si mesmo e dos indivíduos para se integrarem aos ou- para o mundo. As competências que sustentros e ao ambiente. A intersubjetividade tam suas ações são produtos de sua subjetia ser observada no exercício da liderança vação e esta é construída com recursos que desponta da construção dessa ele encontra na cultura para esintegração das subjetividades A liderança consiste timular sua imaginação criadora. de indivíduos e grupos. A lide- no aprendizado Em comunidades caracterança consiste no aprendizado da cooperação rizadas por condutas unívocas, da cooperação pela construção pela construção da como aquelas que predominada intersubjetividade, sem que intersubjetividade, vam nas populações indígenas o indivíduo comprometa a pró- sem que o indivíduo que receberam Pedro Álvares pria liberdade. Igualmente, a comprometa a Cabral em 1500, a subjetivação subjetivação capacita o indiví- própria liberdade era um processo contextualizaduo para o protagonismo de sua do em situações de equilíbrio existência e a qualidade do ambiente onde entre o ambiente ainda “quase intocado” e vive, ao fomentar sua busca de habilitação as estruturas sociais criadas por eles na vida para participar de ações cuja realização de- comunitária. Hoje, diferentemente, a subjetimanda competências que transcendem os vação ocorre dentro de ambientes artificiais, limites individuais. Assim como a liderança em contínuas mudanças pela força de intercapacita o grupo para cooperar, a subjetiva- venções nas quais despontam propriedades ção capacita os indivíduos para agir como emergentes. Nesse contexto, a subjetivação é sujeitos, interagindo com outros sujeitos, em impactada por eventos que se movimentam relação de interdependência. A cooperação e em alta velocidade, sob a pressão de constana subjetivação empoderam os indivíduos por tes intervenções que priorizam a sustentameio de sua participação na ação dos outros, bilidade de suas funções. Além de enfrentar mantendo suas competências de escolhas esse dinamismo do ambiente, a subjetivação como sujeito de sua existência. A cultura é deve dar conta da compreensão dos aconteum recurso que apoia a intersubjetividade, cimentos que enfrentam demandas paradocriando um território compartilhado de va- xais, entre tantas outras características que lores, símbolos e ideais. revelam um contexto em contínuo estado de


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vir a ser. Essas características encontradas incapacidade que revela as limitações em sua na sociedade globalizada e digitalizada fun- subjetivação. Esses indivíduos enfrentarão cionam como se a sociedade fosse um lócus insegurança até mesmo para aproveitar das caracterizado pela anomia. riquezas culturais que a sociedade lhes ofeDesprovidos de recursos básicos para a rece. A compreensão dessas interferências interação, como a incerteza sobre as identida- na subjetivação revela as potencialidades des, sua e dos outros, os indivíduos se sentem intrínsecas à condição humana que abrem a inseguros e sem clareza suficiente para com- possibilidade de emancipação a todos, mas preender as demandas sociais e profissionais, demanda de cada um o aprendizado de agir e, por corolário, para identificar soluções para como sujeito para criar cultura. O ser humano as solicitações do ambiente ao seu redor. Arlie tem duas condições que expõem sua potenciaHochschild (2012) estudou esse problema, lidade para se construir como sujeito e criar que completa a análise de Touraine (2017). cultura: a ação e a construção de sentidos. Em sua pesquisa, ela mostra as Todo ser humano nasce dificuldades da subjetivação O ser humano tem indeterminado em sua existêncriando o “self terceirizado”, hoje duas condições cia e dotado de potencialidades uma identidade comum nos cida- que expõem sua multiplicáveis ad infinitum para dãos que comprometeu sua capa- potencialidade instrumentalizar sua ação. Dito cidade de absorver a cultura. Sem para se construir de outra forma, o ser humano terem certezas de si mesmos e como sujeito e nasce aberto para aprender a de suas relações com o ambien- criar cultura: a ação direcionar sua existência, escote, esses indivíduos procuram e e a construção lhendo as ações que podem reade sentidos dependem de apoios externos de lizar seus ideais, e para aprender todos os tipos para construírem a construir instrumentos insua existência, em vez de se empenharem ternos que viabilizem sua ação. Esses dois em seu próprio protagonismo, assumindo-se aprendizados ocorrem pela exploração de como sujeitos. Gurus, consultores e coaches seu repertório de potencialidades, por meio são profissionais sob significativa demanda de suas ações. Simone Weil (1972) explica para oferecer esse apoio, que supre suas di- esse aprendizado considerando que a ação ficuldades de subjetivação. De certa forma, revela ao indivíduo que ele vive imerso entre esses indivíduos perderam parte de sua capa- forças poderosas do ambiente que frequencidade para produzir sentido e interagir com temente superam sua capacidade de agir. a cultura, que poderia ajudá-los a reforçá-la Ele descobre que o desequilíbrio entre ele e para crescerem como sujeitos. essas forças pode ser superado por meio de Pode-se inferir, dessa análise de sua ação. A ação é o instrumento de que ele Hochschild (2012), que a insegurança de mui- dispõe para recriar a si mesmo e o ambiente tos indivíduos os coloca diante de dificuldade que o circunda, para ser capaz de intervir e para afirmar se gostaram ou não de um con- de transformar, mesmo enfrentando forças certo ou de um novo romance, por exemplo, mais poderosas do que ele.

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Milton Carvalho, Masp, orientador de público

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Ao agir, ele descobre sua natureza in- requer apreensão de sua parte. Reconhecer completa, o poder das forças do ambiente, a organização significa a constatação de que que superam as suas, e por quais meios ele suas partes afetam umas às outras, e que a pode, mesmo sujeito a essas forças, cons- compreensão das atividades e dos movitruir uma existência emancipada. Diante mentos de cada uma dessas partes e evendessa equação, descobre que somente po- tos depende de suas relações com o todo, no derá criar a condição de sujeito protagonista qual ele pode avaliar igualmente as relações de sua existência por meio de seu agir, sendo com os ideais. As diferentes manifestações este no fazer, no diálogo ou na cooperação. A da cultura comunicam experiências consação é instrumento incontornável para seu truídas com sentido, em que o todo e suas equilíbrio, para a construção de sua exis- partes podem ser compreendidos em suas tência emancipada e do bem viver com os relações. Essa compreensão participa e reoutros. O indivíduo passivo, ou inativo, não vela o processo de subjetivação. explora nem reconstrói o poder A percepção do todo perque tem sobre o mundo por meio A busca e a mite que o indivíduo interprete do trabalho sobre suas potencia- produção de sentido a significância das relações enlidades. Sem a ação, a constru- revelam para ele tre os elementos e a totalidade ção de sentido que caracteriza [ser humano] a da situação, fato que facilita igualmente a condição humana organização do seus julgamentos e, por coroláfica sem razão de ser, e revela, mundo e sua relação rio, a escolha da melhor forma de mais claramente, a interface en- com seus ideais ação para realizar seus ideais. A tre subjetivação e cultura. cultura contribui para a formaAlém da ação, para ser sujeito, o ser ção de sentido pelo fato de ser uma forma humano produz sentido para o mundo, de recriação dos eventos e, portanto, uma para sua ação e sua finalidade neste mun- forma alternativa de sua organização, que do. A busca e a produção de sentido revelam enriquece a apreensão das potencialidades para ele a organização do mundo e sua rela- dos fatos e eventos. A cultura, em sua diverção com seus ideais. O conhecimento dessa sidade de formas, apresenta episódios, situaorganização aprofunda a compreensão que ções, narrativas e eventos dotados de algum o indivíduo tem dos eventos, uma vez que sentido, nos quais o indivíduo, encontrando tem a explicitação dos porquês deste ou da- outras formas de organização, aprende mais quele movimento, de suas condições e de profundamente o funcionamento e as proseus efeitos. O sentido é um dos requisitos priedades do mundo. Por causa dessa funda compreensão que, se omitido, se reduz ção, a cultura é um instrumento que oferece à percepção ou sensação, sem deixar clara experiências enriquecedoras e que as renosua relação com os ideais. Interagindo com o va continuamente. É por esse motivo que a ambiente, o indivíduo descobre que o mundo leitura, o cinema, a fotografia e o teatro são no qual vive e atua é organizado e que essa recursos propulsores do desenvolvimento organização goza de alguma estabilidade que dentro do processo de subjetivação e podem


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ser articulados como ações afirmativas para a gestão da subjetivação. Cultura e sociedade Retomando o conteúdo analisado acima, para completar a tarefa deste ensaio, pode-se resumir a cultura como propriedade da sustentabilidade da sociedade que participa da equação que a movimenta por sua atuação como instrumento e veículo da idealização e da subjetivação. É difícil imaginar idealização e subjetivação sem a vida que a cultura lhes agrega. Sua ação instrumentaliza a imaginação, a reflexão e a interlocução como forças que se potencializam e estimulam a reprodução da própria cultura. Essa função faz com que a cultura contribua como instrumento estratégico da sustentabilidade da sociedade. Sua capacidade como instrumento de idealização decorre de sua capacidade para recriar o mundo, como tem ocorrido há séculos. O mundo real e o mundo cultural se completam e se enriquecem. Não há limites para essa recriação, contingência que revela as potencialidades que existem no mundo e nos sujeitos humanos. Esses dois gozam da condição de indeterminância, podendo servir-se mutuamente, pelo exercício do potencial criativo que o ser humano tem e que é estimulado pela cultura. Os artistas têm manifestado essa mutualidade entre o mundo e os sujeitos e a força dos estímulos culturais por meio de suas paixões pelo que fazem, recriando o mundo e a si mesmos e reproduzindo a cultura. Além de vereda para a idealização, a cultura, pelo seu alcance na construção das estruturas subjetivas e intersubjetivas que

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capacitam o indivíduo como sujeito, desponta como instrumento político porque, atuando como totalidade, constrói valores e padrões estéticos, além de desenvolver a capacidade e a sensibilidade críticas. Suas representações do mundo oferecem espaços de reflexão e idealização que têm contribuído significativamente para a sua própria autorreprodução e para a democracia. A cultura é uma fonte de debates, nos quais revela seu poder de estímulo à imaginação e à transformação. Essa função política completa a sua contribuição para a busca e a compreensão da estética. Embora nem toda obra cultural busque o aperfeiçoamento estético, sendo recriação do mundo, essas obras colocam a questão estética no horizonte, como possibilidade e como idealização (GARELLI, 2016). Diante de qualquer criação cultural, pode-se perguntar se o resultado obtido não poderia ficar mais bonito. Por esses motivos, a cultura é um instrumento democrático, feito para ser apresentado para fundamentar e promover o diálogo entre as pessoas e apropriado para a subjetivação. Democrático porque a cultura é um campo aberto para a interação e para a subjetivação, por oferecer conteúdos que podem ensinar e ampliar o horizonte e, principalmente, a visão de mundo. A cultura é sempre uma potência de integração e de desenvolvimento. Ademais, a cultura, tal como a luz, é desenvolvida para ser apresentada aos outros, manifestando-se na ampla riqueza de linguagens de que o ser humano dispõe para se comunicar, se reconhecer e ser reconhecido. As pessoas criam e expressam sua recriação do mundo por meio de ensaios, da poesia, do

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cinema, da pintura, da música, da dança e do alimento, entre as tantas formas de sua manifestação. Essa potencialidade de expressão expõe a transcendência que caracteriza o ser humano, que, por meio da potencialidade para superar a si mesmo, manifestada na criação cultural, institui um processo acumulativo e autocriador, no qual a cultura desponta como manifestação significativa da existência. A cultura mostra a ausência de fronteiras para a imaginação. O que se aprende com o desenvolvimento da cultura? Aprendem-se modos diferentes de ver, de pensar e de compreender o mundo que funcionam como estímulo à imaginação. A cultura é o resultado da imaginação aplicada à busca de compreensão do mundo e dos limites da condição humana. Nessa busca, o indivíduo revela sua indeterminância e sua transcendência, pelas quais o mundo foi e continua a ser explorado em suas potencialidades. Como tal, a cultura não é um objeto a ser administrado. Aquilo que tem força criadora dificilmente é administrável. A cultura pode ser fomentada e estimulada, tal como foi apresentada por Javé, no último dia da Criação. “Crescei, multiplicai-vos e dominai a terra.” Javé sabia que dominar implicaria o desenvolvimento da cultura.

Sigmar Malvezzi É PhD em comportamento organizacional pela Lancaster University e professor e pesquisador da área na USP e na Fundação Dom Cabral. Editou os livros: Ejemplos de Método en Investigaciones Sociales, Aplicaciones en Psicología Organizacional y del Trabajo, y en Psicología Social (2017); Temas e Investigaciones en Psicología Organizacional y del Trabajo (2017); Handbook of the Psychology of Training, Development, and Performance Improvement (2016) e Tópicos de Pesquisa: Carreira e Liderança na Sociedade Globalizada (2014).


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Sigmar Malvezzi

Referências BERANDALE. Cultura do fracasso. In: Ilustríssima. Folha de S.Paulo, 19 mar. 2017, p. 4. ESPRIT. L’avenir des humanités, número especial, dez. 2012. GARELLI, Gianluca. La questione della bellezza. Torino: Einaudi, 2016. HOCHSCHILD, Arlie. The outsourced self: intimate life in market times. EUA: Metropolitan Books, 2012. TOURAINE, Alain. Nous, sujets humains. França: Seuil, 2017. WALLMAN, Sandra. Social anthropology of work. Reino Unido: Academic Press, 1979. WEIL, Simone. Gravity and grace. Glasgow: Collins, 1972.

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Eduardo Carneiro da Silva, Sesi/SP, supervisor de Programas Culturais

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Ana Paula Sousa

OS DESAFIOS DO MUNDO DO TRABALHO Ana Paula Sousa

F

ormado em administração pública pela Fundação Getulio Vargas (FGV), Andreas Auerbach é sócio da agência Box1824, além de CEO e cofundador da Nexo Hw, a mais nova empresa do Grupo Box, focada em novos códigos do trabalho. Auerbach tem se dedicado, nos últimos seis anos, a estudar o futuro do trabalho e desenvolver novas metodologias nas áreas de atração, engajamento e desenvolvimento e cultura organizacional. Entre seus clientes estão grandes empresas, como Ambev, BRF, Credit Suisse, Hering, Danone, Itaú, Itaú Cultural, Grupo Boticário, Kimberly-Clark, McKinsey & Company, Red Bull, Raízen, Renault & Nissan, Renner, Roche, Unilever, Vivo e Votorantim. Na entrevista a seguir, concedida à jornalista e pesquisadora Ana Paula Sousa para a Revista Observatório, Auerbach fala sobre os desafios e as possibilidades que o futuro reserva para o mundo do trabalho.

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AO CHEGAR AO ESCRITÓRIO DA NEXO HW, SENTI-ME COMO QUEM VEM DE UMA OUTRA ERA DO MUNDO DO TRABALHO. O PRÉDIO, O AMBIENTE, O MODO COMO AS PESSOAS SE SENTAM, SE VESTEM, CONVERSAM, COMEM... TUDO AQUI ME PARECEU DIFERENTE E MUITO CONTEMPORÂNEO.

O que exatamente chamou sua atenção? Como você definiria isso?

TUDO ME PARECEU FLUIDO.

Acho que fluidez é uma palavra importante para darmos início à conversa. Antes, tudo era mais rígido, da produção de valor aos ativos das empresas. Tínhamos máquina, fábrica, tijolo. As estruturas e hierarquias eram mais rígidas, havia sinais mais aristocráticos de sucesso e as carreiras se desenvolviam de forma mais linear e previsível. Hoje, as relações são mais fluidas e isso se reflete tanto nas próprias relações quanto nas lógicas de trabalho. Se antes o grande ativo estava dentro das organizações, hoje, ele está fora também. Além dos colaboradores internos, uma empresa tem de contar com profissionais terceirizados e com outras formas de acesso a talentos. Cada vez mais, boa parte das competências e dos diferenciais será encontrada fora dos limites tradicionais das organizações.


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MAS O FLUIDO NÃO SIGNIFICA NECESSARIA-

O QUE SIGNIFICA, NA PRÁTICA, ESSA

MENTE MELHOR...

IDEALIZAÇÃO?

Não. E, às vezes, tendemos a fetichizar o futuro e os novos modelos de trabalho. Pensar que o futuro reside somente em novos formatos ou modelos de gestão é imaturo e tem consequências importantes. Esse pensamento nos leva a movimentos organizacionais pendulares, ao fetichismo das tecnologias e do novo, à idealização excessiva e a análises simplistas de fenômenos complexos. Ao apequenar os debates, apequenamos também as soluções para nossos principais dilemas.

A idealização do trabalho é muito comum entre os jovens que estão se formando. Antes, o trabalho e a escolha da carreira estavam limitados basicamente a dois aspectos: um indicador de vocação e os retornos financeiros de cada carreira. Atualmente, existe uma lista enorme de demandas: temos de amar o que fazemos; encontrar nosso propósito; ter uma boa remuneração e horários flexíveis; trabalhar em ambientes lúdicos; gerar impacto positivo no mundo e nas comunidades; contar com diálogo aberto, estruturas flexíveis, plano de carreira, líderes servidores, sustentáveis etc. A lista é gigantesca e gera expectativas desconectadas da realidade. Obviamente, todos esses pontos são interessantes para nos desafiar como líderes e contribuem para a evolução das organizações. O problema é que, em geral, o debate sobre esses temas se dá de forma pouco madura, com expectativas de mudanças irreais. Isso acaba por gerar certas dores para os dois lados.

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E COMO ISSO SE DÁ, ESPECIFICAMENTE, NAS INDÚSTRIAS CRIATIVAS?

Acredito que as chamadas indústrias criativas também passaram a sofrer as consequências dessa lógica binária, do excesso de fragmentação e das idealizações. É sutil o que estou tentando dizer, mas nossos modelos mentais separam e protegem esse “lugar da criatividade”. É como se essas organizações e esses profissionais pudessem se manter apartados da lógica sistêmica dos mercados e do mundo. Não à toa vemos, de um lado, agências de propaganda passando por um drástico processo de reinvenção e parte do setor cultural em situação crítica de viabilidade. Do outro, as indústrias mais tradicionais se digladiando para levar mais criatividade para seus times e culturas organizacionais. Parece-me que todos têm consciência da velocidade e da dimensão das mudanças pelas quais o mundo passa, mas poucos estão conseguindo encontrar formas de ler e navegar nos novos contextos.

QUE DIFICULDADES SÃO ESSAS?

Hoje, podemos sacar dinheiro pelo aplicativo, nos orientar pelo Waze, acessar todas as músicas do planeta e, recentemente, pousamos uma sonda em Marte. Ou seja, atingimos um nível de evolução e conveniência incrível. Isso é positivo. Por outro lado, dados da Organização Mundial da Saúde (OMS) indicam que quase metade da população mundial tem algum distúrbio de sono e pesquisas feitas no Brasil apontam uma alta incidência de distúrbios de ansiedade e depressão entre os jovens. Estamos perdendo a capacidade de concentração e temos dificuldade de lidar com o ócio. Em outras palavras, estamos desenvolvendo demais o campo tecnológico, mas corremos o risco de desaprender funções básicas do ser humano, como dormir, se relacionar, transar etc.


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COMO ESSES PARADOXOS IMPACTAM A LÓGICA DE TRABALHO?

Uma coisa que nos chama muita atenção é o uso do tempo. Em quase nenhum ambiente encontramos um bom uso do tempo. Mesmo com tantas tecnologias e conveniências, estão todos cada vez mais atarefados. Perdemos a noção de prioridade e urgência. Tudo é para ontem e ficamos, feito malucos, correndo para entregar tarefa atrás de tarefa. Quando analisamos a qualidade do uso do tempo, vemos que grande parte dele ainda é dedicada à repetição de tarefas de baixo valor agregado – para a empresa, para o cliente e, principalmente, para as pessoas. E isso, do nosso ponto de vista, faz com que organizações empurrem as pessoas muito mais para a mediocridade do que para suas potências criativas.

COMO MUDAR ISSO?

Acredito que será benéfico para todas as pessoas e indústrias se quebrarmos os estereótipos e fronteiras relativos à criatividade. A própria ideia de existirem profissionais e indústrias criativas me parece equivocada. Não é benéfico para nenhum dos lados. Digo isso porque no futuro, que já começamos a experimentar, a criatividade será uma habilidade necessária para praticamente todos os profissionais, independentemente da área. A forma como se pensa a criatividade hoje limita nossas potências criativas aos ambientes ditos tradicionais, e também às próprias organizações criativas e culturais, que acabam por refutar áreas de conhecimento fundamentais para que se aumentem eficiência, gestão e impacto.

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AS ESCOLAS E UNIVERSIDADES ESTÃO PRE-

NA PRÓXIMA DÉCADA, QUAIS SERÃO AS

PARADAS PARA FORMAR ESSE PROFISSIONAL

PRINCIPAIS CARACTERÍSTICAS DO TRA-

DO FUTURO?

BALHO, ESPECIALMENTE DENTRO DAS IN-

No geral, não. Mas as escolas mais de vanguarda começam a dar sinais nessa direção, mesmo que ainda de forma tímida. Existe também uma tendência importante, que é o desempacotamento da educação. Isso significa acabar com os pacotes fechados de disciplinas para cada curso, colocando fim à fragmentação programática a que estamos acostumados. Por que temos que ter um curso de administração, arquitetura, engenharia ou arte tão definidos por tão poucas pessoas? Por que não ter grades orientadas mais a projetos e tarefas do que a paradigmas de determinadas formações? Eu, como administrador, poderia ter frequentado mais aulas de filosofia, música, design e tecnologia. A formação, tal como é hoje, nos limita.

DÚSTRIAS CRIATIVAS?

É praticamente um consenso que, num futuro próximo, máquinas e computadores tomarão conta de boa parte do que fazemos hoje – especialmente das atividades mais braçais, repetitivas e previsíveis. Dessa forma, vamos migrar o “centro gravitacional” das nossas competências para três campos fundamentais: tecnologia, inteligência emocional e criatividade. E é justamente nesse sentido que as barreiras entre criatividade, gestão, tecnologia e autoconhecimento tendem a diminuir. Até hoje, esses foram campos razoavelmente separados. Não serão mais. Cada área, cada indústria e cada profissional deverão integrar essas três áreas de conhecimento. Outra perspectiva fundamental para o futuro é a transferência de poder para os indivíduos e redes. Estamos acostumados a pensar no poder nas mãos das grandes instituições, mas isso está mudando. Quem não aprender a jogar este novo jogo tende a ficar no caminho. Boa parte das indústrias criativas e culturais ainda se baseia numa lógica


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de poder e capital centralizada. Teremos de desenvolver nossas múltiplas inteligências para aprender a combinar esses mundos. O grande desafio está no fato de que a maioria das empresas não nasceu nessa lógica. Nós não fomos formados para pensar de forma mais sistêmica. Ainda imperam, no nosso modelo mental, as lógicas binárias; acreditamos em respostas prontas e “balas de prata”. Dentro dessa lógica, criamos profissionais que cultuam um lado da equação e rechaçam o outro. Se somos “criativos”, tendemos a ter resistência a processos, eficiência e prazos. Se somos analíticos e pragmáticos, desmerecemos a intuição, os processos mais orgânicos e criativos. É claro que há sempre as exceções, mas, de modo geral, é assim que funcionamos. Por fim, quando pensamos sobre o futuro, é fundamental entendermos que as pessoas não terão mais uma única carreira. Cada vez mais, teremos, ao longo da vida, diversos papéis profissionais que nos demandarão formações diferentes e complementares. Teremos de nos reinventar diversas vezes. É o long life learning: temos, fundamentalmente, que aprender a aprender.

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COMO VOCÊ DEFINE CRIATIVIDADE?

Para mim, criatividade tem a ver com transgressão dos modelos e padrões conhecidos. É conseguir ir além dos limites impostos por normas, padrões ou regras predefinidos, abrindo espaço para que novas formas de pensar e agir possam emergir.

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Marcelo Araújo, Japan House SP, presidente

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ENTÃO, NA SUA VISÃO, ELA SERÁ CENTRAL PARA TODAS AS ATIVIDADES, E NÃO SÓ PARA AQUELAS MAIS LIGADAS À CRIAÇÃO E À INOVAÇÃO?

Sem dúvida. Inclusive, um dos modelos que mais temos usado para trabalhos em organizações traz a criatividade como ponto fundamental. É o que chamamos de Mapa do Propósito. Ele se baseia em quatro vetores fundamentais [ver gráfico nas páginas 138 e 139]. Os dois elementos-chave para resgatarmos a criatividade são a transgressão e a abundância. Quando aprendemos a operar com essas duas forças, criamos um campo fértil para a criatividade. Percebemos, em biografias de empreendedores e pessoas de negócio bem-sucedidas, essas forças operando. Transgredir é, no sentido aqui colocado, superar os limites estabelecidos e conhecidos. Já a abundância diz respeito a uma convicção interna de que é possível fazer diferente e construir coisas incríveis; ela é uma espécie de fé que gera uma força que nos ajuda a persistir e realizar. A questão é que nada na natureza opera em um sentido único. Então, se temos a

transgressão, carregamos também a força da preservação e da manutenção. Quando operamos no modelo mental da abundância, essa força nos permite agregar um elemento fundamental da equação, que é a gestão eficiente, essencial para nos sustentarmos e crescermos [quadrante 1]. O problema é que o excesso desse vetor pode levar a um pragmatismo exagerado, que mina a força criativa das pessoas e das organizações e torna as empresas rígidas. É o que vemos em muitos processos de crescimento, abertura de capital, aportes financeiros e “profissionalização da gestão”. Novamente, estamos falando da incapacidade de articulação entre dois universos: o da criação e o da manutenção. Já o vetor que cria a força contrária à da abundância é o da escassez, que está conectado aos nossos medos. Quando essa força entra em demasia nas nossas vidas ou organizações, ela drena os quadrantes superiores. E, quando ela se sobrepõe às demais, entramos ou no modo de sobrevivência [quadrante 3] ou no de rebeldia imatura [quadrante 4].


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Voltando à criatividade, o que eu diria é que, à medida que se desconectam de suas forças criativas, os sistemas ou indivíduos vão fazendo um movimento em direção aos quadrantes 1, 3 e 4. Sem a força da criação e da inspiração, tendemos a nos tornar empresas e pessoas emocionalmente mais rígidas e a ir nos distanciando de parte da nossa essência. Deixamos, aos poucos, de acessar o lugar dos nossos propósitos. Com o tempo, isso nos leva a perder valor e capacidade de impacto. Por outro lado, existe o risco de idealizarmos o campo da criação, negligenciando o da manutenção. Nesse caso, podemos ser hipercriativos e cheios de boas ideias, mas não conseguimos dar vazão a elas de forma sustentável. Também assim, acabamos ficando pelo caminho. Tanto no caso dos indivíduos quanto no das organizações, é só a partir da integração dessas duas forças (transgressão e manutenção) que nosso propósito pode se manifestar plenamente.

DENTRO DISSO TUDO, QUE COMPETÊNCIAS DEVEM SE TORNAR OBSOLETAS E QUE HABILIDADES – TANTO TÉCNICAS QUANTO COMPORTAMENTAIS – DEVEM SE TORNAR AS MAIS VALORIZADAS?

Aprender a lidar com as polaridades é uma competência do futuro. O que viveremos é a permanente oscilação entre polos que são, ao mesmo tempo, opostos e complementares: criatividade x manutenção, gerenciamento de curto x longo prazo, hierarquia x colaboração. Essas são questões que não têm solução e, portanto, não deveriam ser consideradas conceitualmente como problemas, mas como polaridades. O que essas situações nos pedem é uma outra forma de lidar com elas. É o que chamamos de sustentação. Precisamos amadurecer para lidar com esses paradoxos, sem esperar respostas prontas vindas de um chefe, de um pai ou de um guru. Nesse contexto, as múltiplas inteligências serão cada vez mais importantes. É da junção das diferentes inteligências – musical, criativa e lógica, por exemplo – que surgem as maiores potências. Durante muito tempo, valorizou-se, na gestão, o Q.I. (quociente de inteligência); depois, na década de 1990, veio o Q.E. (quociente emocional). Apesar de continuarem sendo importantes, essas duas inteligências não dão conta das exigências desta era.

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Vamos ter de discutir uma terceira inteligência, que preveja recursos internos para se questionar os limites do sistema. De certa forma, estamos falando justamente de uma inteligência mais criativa. O conceito de Q.E., em sua essência, fala sobre a capacidade empática e adaptativa, mas não sobre a capacidade transgressora e questionadora. É aí que entra a terceira inteligência. Por fim, praticamente todo profissional deverá abrir espaço para os conhecimentos da tecnologia, que será a linguagem universal. A grande maioria das nossas experiências se dará por meio de diferentes tecnologias e, portanto, conhecê-las será fundamental para não ficarmos obsoletos.

O QUE ESPERAR DA GERAÇÃO NASCIDA AGORA? A BUSCA PELA “SATISFAÇÃO IMEDIATA”, MARCA DA PERSONALIDADE DOS NATIVOS DIGITAIS QUE JÁ ESTÃO NO MERCADO DE TRABALHO, DEVE SE TORNAR AINDA MAIS SIGNIFICATIVA?

O próprio conceito de nativo digital parece não ter fim, porque a evolução da tecnologia não para e aquele que hoje nos parecia ser nativo digital vai deixando de parecer. Essa é uma régua móvel. Dito isso, o que vemos são três movimentos que tendem a se ampliar: a hiperaceleração, a não distinção entre os mundos on-line e off-line e a metacognição. Todos os tipos de serviços e experiências vão se tornar cada vez mais acessíveis e velozes, e isso muda a nossa relação com o tempo e o espaço. A realidade virtual é uma nova camada de experiência que ampliará ainda mais a indistinção entre os mundos on-line e off-line. Hoje, o próprio espaço é fluido: eu posso interagir com pessoas de qualquer lugar do mundo. A percepção do tempo também mudou. O que antes nos pareceria a jato agora nos parece demorado. Se o Uber leva cinco minutos para chegar, achamos muito. E a metacognição é parte de um processo de fusão entre o humano e as máquinas. Conseguimos “saber” se vai chover, a que horas e em que volume. Sabemos a hora em que vamos chegar ao outro lado da cidade e também se temos algum amigo por perto.


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Ana Paula Sousa

COMO ENGAJAR A GERAÇÃO QUE CRESCE-

QUANDO FALAMOS NO SETOR DITO CRIATIVO,

RÁ ASSIM?

TEMOS DE PENSAR TAMBÉM NAS EMPRESAS

Há alguns elementos comuns que vemos que têm força no processo de engajamento. Um primeiro ponto é a transferência do poder da instituição que engaja para a liderança direta que engaja. Um chefe legal, que está preocupado em desenvolver seus funcionários, engaja-os. Eu posso vender a coisa mais cool do mundo, mas, se meu chefe for ruim, vou embora. O que se espera hoje, em minha opinião, são líderes que tenham uma real proximidade e preocupação em desenvolver sua equipe. Outro elemento importante da satisfação é receber desafios na medida correta. Desafio grande demais é estressante e paralisante; desafio de menos é entediante. Um terceiro elemento é a aprendizagem. A sensação de estar aprendendo e se desenvolvendo como ser humano e como profissional é um elemento quase imbatível. Por fim, eu diria que é preciso existir um senso de propósito e significado. Eu preciso ver sentido no que faço, não um grande propósito que é algo um tanto idealizado, mas um sentido prático. E isso tudo, é claro, em geral só faz sentido se o conforto econômico estiver minimamente suprido.

PEQUENAS E MÉDIAS. COMO FICA, NESTE MUNDO EM PERMANENTE TRANSFORMAÇÃO, O EMPREENDEDORISMO?

O empreendedorismo é uma das chaves para estarmos em dia com tantas mudanças e para resolvermos grande parte dos atuais desafios da humanidade. Não podemos depender somente dos grandes sistemas e organizações. Acredito muito na força empreendedora das pessoas. Mais do que nunca, precisamos despertar nosso senso empreendedor, nosso lado mais criativo, e correr os devidos riscos para nos mantermos atualizados e em máxima potência. A visão sobre o empreender também precisa, no entanto, ser amadurecida. Quando lemos alguma história sobre empreendedorismo, esse costuma se conectar com o sonho, com o desejo, com o ideal. Mas há o outro lado disso. Não existe, na história da humanidade, evidência de construção relevante sem persistência e esforço, sem muito trabalho.

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MATRIZ PROPÓSITO – NEXO

• Gestão, métodos, processos e disciplina • Inovação incremental • Foco em performance e eficiência • Visão de futuro mais linear • Pode ter um excesso de pragmatismo e rigor

fé ABUNDÂNCIA

gestão & eficiência

GESTORES E EMPRESAS EFICIENTES MANUTENÇÃO manter, sustentar, fortalecer

• Medo de errar • Rigidez emocional • Rigidez e burocracia • Baixa criatividade e inovação • Baixa conexão com clientes e stakeholders

sobrevivência REMAR CONTRA A MARÉ

ESCASSEZ medo


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fé ABUNDÂNCIA

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• Movido por sonhos individuais e coletivos • Inspiração e criação de novas realidades • Mobiliza, atrai e engaja • Alta conexão emocional • Risco de não implementar e sustentar por falta de disciplina e método

criação & inspiração

LÍDERES E EMPRESAS INSPIRADORAS TRANSGRESSÃO

rebeldia imatura

ESCASSEZ medo

superar limites, ir além

• Baixa maturidade emocional • Mais julgamento • Crítico do sistema e das pessoas sem proposições efetivas e construtivas

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4.

LIDERANÇA E SUCESSÃO NAS INSTITUIÇÕES CULTURAIS

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PERFIL DAS LIDERANÇAS EM GESTÃO CULTURAL: UM RECORTE NO “EIXO DA PRODUÇÃO” BRASILEIRO Ricardo Augusto Alves de Carvalho e Sanyo Drummond Pires


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RICARDO DE CARVALHO E SANYO PIRES

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Natasha Barzaghi Geenen, Japan House SP, diretora cultural


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PERFIL DAS LIDERANÇAS EM GESTÃO CULTURAL: UM RECORTE NO “EIXO DA PRODUÇÃO” 1 BRASILEIRO

Ricardo Augusto Alves de Carvalho e Sanyo Drummond Pires

O presente artigo procurou, a partir de uma pesquisa de campo com gestores de instituições culturais, estruturar categorias analíticas que permitissem traçar um perfil desses gestores, bem como das principais práticas de gestão específicas das instituições culturais. Para isso foram entrevistados 18 sujeitos de 14 instituições de destaque no cenário cultural dos estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e São Paulo. A amostra englobou diferentes ramos culturais, aportes financeiros e estrutura de pessoal. A partir do levantamento foi identificado um conjunto de características em comum relacionadas aos perfis dos gestores, bem como fundamentos que balizavam seus processos de gestão. Com essa base, construiu-se uma classificação de categorias explicativas que abrangem tanto os processos psíquicos, sociais e gerenciais desses sujeitos quanto os modelos de articulações entre essas características e fundamentos em unidades compreensivas mais amplas.

Da formulação da demanda ao working progress da ação A demanda para o presente artigo partiu da indagação de um lócus de observação de que o campo curatorial, sobre as políticas e ações culturais no Brasil, exigia uma atualização, em razão de lacunas e questões candentes para a cultura brasileira. Ou seja, havia a necessidade de se traçar um perfil generalizável, mas também de apontar características que nesse caso se aproximam muito mais da noção de configuração em um dado campo (ELIAS, 1991). Aqui se encontra o campo propriamente dito, com a dimensão qualitativa das entrevistas realizadas face a

face com os pesquisadores, que, estruturadas em escuta e construção ulterior do texto, produziram categorias de análise. Um dos frutos da pesquisa é a edição de uma revista que sirva à produção de fontes e subsídios para políticas e ações na área cultural no Brasil. Este artigo pretende, por meio do que foi visto na elaboração das falas desses gestores/líderes, realizar uma análise de contexto. Análise essa que, ao mesmo tempo que nos mostra a trajetória desses sujeitos que criam e fazem a gestão cultural nesse campo, revela como podemos identificar suas práticas nesse afazer e resistir da gestão cultural. O resultado – ou, seria melhor, a resultante – é


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o entrelaçamento do que, à primeira vista, aparece como objetos distintos: a gestão e a cultura. Essa junção gera uma tensão que, se desejada, otimiza as faces do estranhamento do que seria uma fronteira inicial, podendo se tornar o recomeço de um novo território. O campo revelado: metodologia e território As entrevistas 2 realizadas abordaram um universo de 14 instituições, tendo ocorrido, em sua maioria, apenas com o responsável geral pela instituição. Nos poucos casos em que as entrevistas se deram com a presença de mais de um entrevistado foram incorporados representantes tanto da coordenação administrativa quanto da coordenação artística. Ao final, chegou-se a um total de 20 pessoas. Foram entrevistados gestores e/ou representantes das seguintes instituições: 1. em Minas Gerais, Grupo Galpão (Chico Pelúcio), Grupo Corpo (Paulo Pederneiras e Wagner Furtado Veloso), Instituto Inhotim (Antônio Grassi), Grupo Ponto de Partida (Ronaldo Pereira, Regina Bertola e Pablo Bertola) e Orquestra Filarmônica de Minas Gerais (Diomar Silveira); 2. no Rio de Janeiro, Grupo Nós do Morro (Guti Fraga), escola de samba Unidos da Tijuca (Laíla e Fernando Horta), Museu do Amanhã (Ricardo Piquet), Museu de Arte do Rio (Carlos Gradim) e Museu de Imagens do Inconsciente (Gladys Schincariol); 3. em São Paulo, Fundação Bienal (Luciana Guimarães), Mostra

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Internacional de Cinema (Renata de Almeida), grupo Pombas Urbanas (Adriano Mauriz) e Instituto Tomie Ohtake (Ricardo Ohtake). O campo contemplou diferentes e diversos ramos da atividade cultural, contendo as atividades de teatro, dança, cinema, música, artes circenses, pintura e escultura, além de aspectos como educação artística nessas diversas áreas. A amostra contou também com instituições de tamanho e alocação de recursos humanos e financeiros diferenciados, de grandes parcerias público-privadas a projetos sociais de comunidades periféricas. Todos com capacidades técnicas e artísticas amplamente reconhecidas nacional e internacionalmente. As entrevistas tiveram duração média de 40 minutos, variando de 20 minutos a 2 horas e meia. Nelas, os entrevistados eram questionados quanto à relação entre a sua trajetória pessoal (formação e vivências) e o papel ocupado naquele momento na instituição. Dentro desse contexto, buscou-se a percepção desses gestores tanto do que foi importante quanto do que faltou no tocante à sua trajetória e às políticas de gestão cultural no país. Também foram abordados os temas de gestão de pessoas e do tempo, dinâmicas metodológicas, prospectivas de mercado quanto a público interno e público externo e instrumentos e estratégias para renovação e inovação dessas instituições. Finalmente, no terceiro eixo de abordagem dessas entrevistas, procuramos investigar como o gestor criava condições para si e para sua equipe pensarem o impensável, partindo do pressuposto de que a relação

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entre gestão e cultura, numa perspectiva criativa, se torna noblesse oblige. E, por decorrência, incitamos uma resposta com relação aos desafios contemporâneos para a formação tanto de lideranças quanto de gestores culturais no Brasil. Tais elementos eram abordados de maneira natural, sendo muitas vezes retomados ao longo da entrevista, sem ordem específica. Com isso, buscava-se a emergência das percepções e articulações que essas diversas questões encontravam nas práticas cotidianas e nas compreensões Quanto às características dos entrevistados, embora a formação na área teatral fosse mais presente, outras formações profissionais também foram percebidas, sem nenhum destaque específico. No entanto, cabe ressaltar que a maior parte dos entrevistados possuía curso superior, apenas três não. Dos 14 empreendimentos, 11 eram coordenados por pessoas com mais de 30 anos de experiência na área; outros dois, por pessoas com mais de 15 anos de experiência; e somente um era gerido por alguém com menos tempo de experiência. Outro fator interessante é que aproximadamente dois terços dos entrevistados foram fundadores ou tiveram sua formação no próprio empreendimento no qual trabalham atualmente. Isso nos dá uma indicação do alto envolvimento pessoal dos entrevistados do campo de análise com seus empreendimentos. Chamou-nos atenção a longevidade no exercício da gestão/liderança das instituições, com relação à aderência e ao histórico/trajetória dessas pessoas, assim como o desafio de dinâmicas de reprodutibilidade e produção de conhecimento gerado por essa

prática. Por inferência, poderíamos supor que essa trajetória longeva se verificaria em todo o país, porém, seria necessária uma pesquisa de maior envergadura para verificar essa hipótese. As falas foram analisadas a partir de uma perspectiva metodológica de orientação clínica, em uma abordagem eminentemente qualitativa, cujo resultado só poderia emergir tanto na escuta do entrevistador quanto na dialogia que se constitui a partir desse setting.3 Do ponto de vista teórico, ancoramos nossa análise e método principalmente na abordagem da psicanálise e da escola psicossociológica de origem francesa (ERIQUEZ, 1997). Porém, permitimo-nos lançar mão de conceitos e concepções teóricas diversas, que, em dialogias com esse eixo teórico central, nos norteavam quando considerávamos que poderiam enriquecer as análises. As emergências oriundas dessa dialogia foram analisadas visando destacar os pontos em comum no pensar e no experienciar a gestão, e as compreensões relacionadas a esses pontos. Com isso, procurou-se estruturar, a partir do arcabouço analítico acima referenciado, uma caracterização de perfil de gestores de instituições que tenha a cultura por missão, evidenciando os contornos e pontos de convergência e divergência em relação ao lugar onde atuam. A procura das categorias analíticas: a produção dos “descritores” A partir da análise das entrevistas, procuramos identificar práticas e concepções comuns, dotadas de significados e intencionalidades compartilhados no tocante


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às ações específicas relacionadas à gestão de instituições culturais. Pudemos, então, destacar um conjunto de ações que teria de se articular com os seguintes aspectos: 1 . o contexto em que a gestão de instituições culturais ocorre; 2. as trajetórias de formação dos líderes e as formas de construção do lugar do gestor; 3. as práticas de gestão identificadas; 4. a sustentabilidade do processo criativo em relação à previsibilidade dos processos administrativos. O contexto da gestão de instituições culturais O primeiro grupo de convergências nas falas dos entrevistados se refere às concepções gerais, ao contexto e às repercussões que as práticas de gestão das instituições culturais têm na sua relação com a sociedade e com a cultura de forma ampla. É interessante notar que arte e gestão, de maneira geral, não são pensadas como questões separadas. O produto (arte) e o meio (gestão) são pensados como elementos integrados, guardando sempre alguma maleabilidade quanto a objetivos e formas de consecução. Nesse sentido, não foi percebida a adesão a nenhum modelo gerencial específico, com exceção das concepções adotadas no teatro no tocante à estruturação de hierarquias de comando. Essa característica específica do teatro será vista mais destacadamente na análise das práticas de gestão.4 Em algumas instituições em que se realizaram separadamente as entrevistas com o responsável pela gestão artística e

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com o responsável pela gestão geral, como no caso da Unidos da Tijuca, percebeu-se que as formas de pensar as soluções para os problemas encontrados caminhavam sempre para a mesma direção. Isso aconteceu mesmo quando os problemas relacionados à gestão e sua função de sustentação de uma expressão artístico-cultural eram percebidos como sendo diferentes pelos entrevistados. O mesmo aconteceu durante entrevistas em que os responsáveis pela gestão artística e pela gestão geral estavam presentes. No entanto, tal fato, antes de indicar o compartilhamento de concepções de gestão, parecia ser decorrente do compartilhamento de visões de mundo, ou da função que a arte e a cultura possuem na sociedade. O nosso entendimento é que a convergência nas formas de se pensar soluções para demandas gerenciais das instituições parece decorrer desse compartilhamento de concepções mais amplas. A partir do exposto anteriormente, pudemos destacar alguns elementos que se mostraram recorrentes nas diferentes entrevistas. Entre eles, o mais veemente diz respeito à influência que os modelos de financiamento possuem em relação ao estabelecimento das ações artísticas e das ações de gestão. Diante dessa questão, dois aspectos se sobressaíram nas falas: a dubiedade perante o marketing cultural e o mecenato, e a preocupação com o entorno da instituição cultural. Embora houvesse falas que considerassem legítimos ambos os modelos de financiamento, existiam muitas queixas no que se refere à ingerência da lógica do marketing cultural. Havia a percepção de que,

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muitas vezes, pessoas sem uma compreensão mais elaborada sobre a cultura acabam estabelecendo uma curadoria do que é financiável ou não por empresas. Porém, o importante a destacar é que tal percepção acaba interferindo nas possibilidades de solucionar problemas administrativos, por estabelecer critérios muito restritos de avaliações de impacto ou do gasto financiável por meio de leis de incentivo. O que, na prática, acaba por determinar os fluxos de ações administrativas a serem tomadas pelas instituições. E essa interferência, por sua vez, comumente não estabelece nenhum elemento que potencialize processos de governança ou que proporcione um sistema mais racionalizado de gestão, que são os fundamentos de um discurso de necessidade gerencial nas instituições culturais. Além disso, esses processos acabam colocando empecilhos à integração da instituição cultural com a comunidade, um elemento que nos chamou atenção e que pareceu ser um dos princípios norteadores das práticas de gestão. Essa preocupação com o entorno, embora com diferentes níveis de desenvolvimento e importância, foi uma constante em todas as entrevistas. A princípio, ela pôde ser percebida na estruturação de uma série de ações no estabelecimento de gestão de stakeholders, ou em ações de desenvolvimento social da região onde a instituição se encontra. No entanto, uma análise um pouco mais aprofundada do conteúdo das entrevistas nos levará a um questionamento que ultrapassa essas ações mais pontuais. O que se percebe é que essa vinculação busca estabelecer relações de pertencimento à comunidade.

E não só no sentido da instituição, de suas ações poderem ser apropriadas de maneira mais democrática pelos membros do entorno, mas também de poder atuar de maneira mais sistemática na configuração do território, dentro de uma perspectiva que nos remete à noção de enraizamento, proposta por Simone Weil (2001). Essa vinculação comunitária se refere a processos de participação ativa que ocorrem a partir da legitimidade dada por um pertencimento tanto na história e nas riquezas simbólicas dessa comunidade quanto na estruturação (ainda que como sonho) de sua percepção e de seus projetos de futuro. O pensamento sobre a gestão da instituição cultural, portanto, será norteado pela capacidade de gerar possibilidades de intervenção na comunidade a que pertence. Da mesma forma, emergiu em nossa escuta a sensação de que as instituições têm por função possibilitar ações sociais que muitas vezes o próprio Estado não possibilita, e o desejo de se colocar como mediadoras dessas ações, integrando dinâmicas amplas dos territórios. A fala adiante, de um dos entrevistados, resume bem esse sentimento coletivo: [...] o que eu acho que seria mais importante é ter um espaço próprio. Além de dar segurança para as ações, por você saber que tem para onde voltar e poder ter tranquilidade ao sair para desenvolver seus projetos, ele também dá essa relação de vinculação com a comunidade. Você está ali. A pessoa que mora do seu lado não é só seu público, é sua vizinha. As questões que a afetam afetam você também.


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Amanda Marques Paschoal, Masp, orientadora de público

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Trajetórias de formação dos líderes e a construção de um lugar de fala no lócus da gestão cultural no Brasil Ao analisar o que caracterizaria gestores, seja competências e conhecimentos desenvolvidos, seja aspectos pessoais, optamos por enfocar não só o sujeito, mas também sua compreensão sobre a estruturação de um lugar da gerência nas instituições culturais. De fato, esse lugar – por sua necessidade de articular a racionalidade e a previsibilidade buscadas pela gestão com a criatividade e a expressividade da arte – exigirá do gestor um exercício dialético de superação de posições contraditórias, além da estruturação de um conhecimento híbrido, no qual arte e gestão estão associadas. É interessante notar que, das instituições entrevistadas, apenas duas não eram geridas por alguém com trajetória profissional estruturada a partir de instituições culturais ou artísticas, mas que, mesmo nesses casos, seus gestores já atuavam no ramo há mais de 15 anos. Esse elemento, somado ao fato de a maior parte dos gestores possuir longa trajetória na mesma instituição, permite uma caracterização da liderança da gestão no ramo da cultura. Ou seja, o lócus da gestão cultural no Brasil é estruturado não só por competências gerenciais, mas sobretudo por um compromisso com a arte, a cultura e com a própria instituição. Isso, porém, não responde o que diferenciaria nossos entrevistados de outras pessoas com trajetórias semelhantes. O lugar da gestão ou da liderança emerge, na maioria das falas, a partir de uma delegação por parte dos pares ou dos conselhos administrativos das instituições culturais. As funções gerenciais são deixadas, em maior ou menor

grau, em aberto,5 passíveis de serem ocupadas na medida em que as atividades ocorrem. O que pudemos perceber é que algumas pessoas foram, naturalmente e aos poucos, ocupando esse lugar de liderança, que, mais do que de poder, era um lugar de resolução (ou prevenção) de conflitos – seja entre os membros do grupo constitutivo da instituição cultural, seja desse grupo com os diversos outros agentes que em torno dela transitam. Ainda que a experiência de trabalho no ramo cultural pareça cumprir função importante, a formação específica na área artística não se mostrou tão fundamental. Concluímos isso ao observar que a formação profissional dos entrevistados era bastante variada. Mesmo que aproximadamente metade deles tenha formação na área de artes cênicas ou música, muitos vieram de outras áreas, geralmente dentro do âmbito das ciências humanas. Do universo pesquisado, apenas dois entrevistados eram formados na área de gestão ou engenharia, e três não possuíam formação superior. Porém, em todos esses casos, o que se pôde constatar foi que o processo de capacitação para assumir um lugar de gestão aconteceu graças a uma articulação da formação de base com a experiência em instituições culturais. Somente dois dos entrevistados foram capacitados para lidar com situações de gestão em instituições culturais. Em ambos os casos, o treinamento era voltado a elaborar e prestar contas de projetos dentro dos parâmetros da Lei Rouanet. O que observamos foi que a apropriação dos processos de criação e das ferramentas de gestão se deu com a prática cotidiana, além da relação com outros agentes, como os responsáveis


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das empresas pelo financiamento de ações se instaurar o desejo de saber, que, além de culturais, os representantes do poder público uma forma de satisfação pulsional, também é e outros artistas ou instituições culturais. o responsável pela criação de mecanismos de Cabe destacar que, embora essa for- autopreservação diante da angústia gerada mação para assumir o lugar da gestão se dê por perdas e pela percepção de vulnerabilina prática, a educação universitária inicial, dade ante o mundo e as outras pessoas. independentemente da área, tem significado A pulsão epistemofílica é o que possibiimportante nas falas dos entrevistados. É a lita que o sujeito saia de uma posição passiva partir dela e do que foi aprendido por meio diante de uma construção de uma realidade dela que a experiência prática é lida e anali- para uma construção ativa, na qual é capaz de sada. Não raras vezes foi dito que a educação tomar ações condizentes com os problemas a universitária serviu de base para pensar a serem solucionados, na busca da satisfação de gestão e a produção cultural, como nos casos desejos e necessidades. Quando estruturada dos modelos de organização de de maneira adequada, é ela que peças teatrais ou dos conceitos É nessa conformação permite ao sujeito enxergar, na da psicologia e da sociologia. articulação dos elementos que específica de um Essa prática pode ser en- desejo de saber compõem a realidade e nas detendida como uma das caracte- interrogado de mandas de compreensão que ela rísticas específicas dos gestores maneira adequada exige, a solução a ser aplicada. e líderes, que, além de assumi- que se encontra Para Freud (1910), essa pulsão rem um lugar de legitimidade a posição dos ocorre, de maneira geral, em índado pela capacidade de mediar gestores nas tima associação com a arte. instituições culturais conflitos, realizam uma ação sisÉ nessa conformação estemática de articulação entre os pecífica de um desejo de saber saberes já existentes e a busca por novos. Tal interrogado de maneira adequada que se enfato nos remete à noção de pulsão epistemofíli- contra a posição dos gestores nas instituições ca da psicanálise, ou seja, a um desejo de saber. culturais. É na construção de uma articulaEmbora ela esteja articulada com a ção entre elementos díspares – e, em alguns curiosidade sexual infantil, Freud (1905) aspectos, contraditórios – que se sustentam mostra que a pulsão epistemofílica é resul- a elaboração de previsibilidade e o controle, tado da articulação de dois fortes desejos, o que, por sua vez, dão suporte à expressividade de olhar e o de dominar, que, sublimados, po- do desejo que pode emergir. E é na imprevidem ser direcionados para atividades como sibilidade do sujeito que será estruturado o a apreciação artística e a observação da na- saber híbrido de gestor artista. Saber esse que tureza. Em um segundo momento, Freud sustenta, ao mesmo tempo, um saber/fazer (1920) soma a esses desejos a necessidade operativo diante das demandas das instituide satisfação das pulsões agressivas, acres- ções e uma legitimidade de vinculação afetiva centando ao ato de observar o desejo de pre- com a instituição e as dinâmicas de satisfação visão e controle. É nessa confluência que vai que ela proporciona a seus membros.

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A gestão e a identificação de suas práticas na construção de saberes A partir dessa compreensão maior das demandas gerais da articulação entre gestão e arte/cultura e do lugar do gestor e de sua liderança nas configurações institucionais, as entrevistas permitiram identificar algumas práticas que ganharam significados analíticos um pouco mais claros dentro da perspectiva hermenêutico-compreensiva (RICOEUR, 1986) Pudemos constatar, em todas as instituições, uma avaliação positiva do uso de procedimentos de gestão/racionalização/ profissionalização das funções administrativas. Embora os critérios de avaliação e de financiamento fossem questionados, a incorporação de práticas de governança e da organização administrativa e financeira era percebida como positiva não só do ponto de vista da gestão, mas também em relação à sustentação das práticas artísticas e culturais dessas instituições. Da mesma forma, a profissionalização da gestão também era percebida como algo positivo, o que pode parecer, a princípio, uma contradição com os históricos de capacitação informal relatados pelos gestores/lideranças. Essa contradição fica ainda mais evidente quando constatado que as únicas capacitações formais se davam geralmente em relação a aspectos específicos, como questões contábeis ou legais. Nas entrevistas, ficou clara uma dicotomia na percepção de quem deveria assumir essa função de liderança, com parte dos entrevistados defendendo que os próprios artistas deveriam se qualificar para a função e parte achando que seria melhor

haver um quadro técnico específico para isso, mas destacando que esse quadro deveria ser parte da instituição. Houve relatos sobre a dificuldade de compreensão, por parte de agentes externos, das especificidades das ações culturais desenvolvidas nas instituições. A percepção geral era a de que pode haver uma diferenciação entre o corpo gerencial e o corpo artístico-cultural nas instituições culturais, sem que isso signifique necessariamente uma cisão dos dois. Seria apenas um reflexo dos diferentes níveis de articulação entre conhecimentos artísticos e gerenciais. Essa percepção nos remete ao processo de formação do gestor líder, que, como vimos, é caracterizado majoritariamente por um hibridismo resultante da própria natureza das instituições e que contém elementos do campo da arte e cultura e do campo da gestão propriamente dita. Tal hibridismo pode ser definido como uma compreensão tanto das necessidades de sustentação simbólica e imaginária do processo de criação e divulgação cultural quanto das necessidades materiais, sociais e políticas que também o sustentam. Quanto à capacitação voltada para aspectos técnicos, pudemos perceber que as ações de treinamento ocorrem em razão de trocas de competências, que se dão pela aquisição de informações com outros profissionais (geralmente convidados ou contratados) ou por setores responsáveis pelas atividades de financiamento. Estes últimos são as principais fontes de qualificação proporcionadas por agentes externos. Foi notório um alto nível de interação entre profissionais, práticas e conhecimentos, tanto nacional quanto internacionalmente.


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Exemplos disso são a vinda de profissionais li- abarcar necessidades institucionais, não se gados à produção de fantasias e carros alegóri- restringem a elas. cos dos festivais de Parintins para o Carnaval Além dessas questões relacionadas à do Rio de Janeiro; e a contratação sistemática capacitação de mão de obra, um segundo de diretores de teatro ligados a linguagens ti- elemento em que foram observadas converpicamente regionais (do Brasil e do exterior) gências foi referente ao modelo de tomada de para a direção de peças específicas, o mesmo decisão e de estruturação hierárquica adotado acontecendo com músicos, dançarinos e res- pelas instituições. Esse modelo é resultado da ponsáveis por aspectos técnicos, como ilumi- ampla liberdade inicial dada a diversos atores, nação, som etc. ligados às funções técnicas, para a realização Essas aquisições de conhecimentos de suas atividades. No processo de articulação criativos6 reforçam nossa análise de uma entre essas diferentes competências, estruantropofagia talvez autofágica que o referi- turam-se lugares de poder compreendidos do eixo triangular do sudeste dentro de uma perspectiva de brasileiro exerce em relação Tal hibridismo pode legitimidade dada por compeà produção cultural no Brasil. ser definido como uma tência técnica e pela vinculaNo entanto, essas aquisições compreensão tanto ção (ou responsabilidade) à de competências técnicas das necessidades de instituição. Esses lugares de parecem não influir tanto no sustentação simbólica e poder possuem função mais modo de pensar a gestão, que imaginária do processo de dirimir conflitos entre as se articula principalmente de criação e divulgação partes anteriores ao processo em torno de uma identidade, cultural quanto das de articulação do que de impor necessidades materiais, ocasionalmente fecundada uma ordem ou um planejasociais e políticas que por elementos externos. E, mento preestabelecido. também o sustentam sempre que isso ocorre, ela Tal processo vai se afuniprovoca uma resistência que lando à medida que as articunos revela, apesar dessa antropofagia do su- lações vão aumentando em complexidade e deste, as diferenças em nuances de linguagens envolvendo mais elementos, sempre dentro e abordagens da produção cultural (e de sua dessa mesma perspectiva (conhecimentos gestão) em função do estado em que a insti- técnicos mais solução de conflitos), até chegar tuição se localiza. à figura central do gestor líder, a quem cabe Cabe destacar, porém, que a preocu- dirimir os conflitos mais gerais e sustentar pação com a qualificação parece ocorrer de uma coesão na identidade da instituição. forma constante, independentemente de deAlguns entrevistados mencionaram, mandas específicas, como a incorporação de ainda que de forma sutil, o papel do conselho novas tecnologias ou a ampliação de compe- curador externo à administração com relatências competitivas. Os processos de qua- ção à gestão e ao processo de afunilamento lificação são percebidos como um bem a ser dentro dessa estrutura de tomada de decisão. buscado pela instituição, e, embora procurem Embora não tenha sido um ponto analisado

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de maneira mais sistemática, não foram O fato de esse processo não se restringir percebidos interferências ou conflitos de- a uma história oral ou a um imaginário mítico correntes desse modelo. Nas poucas vezes da instituição (ENRIQUEZ, 1997) demonsem que a questão foi abordada, especifica- tra que a construção de memória formalizada mente no caso em que um membro desse em arquivos se estrutura na busca de supeconselho participou da entrevista, o que se ração de legitimações que remetam somente evidenciou foram relações de confiança e de- aos locais de poder. Ou seja, as referências ferência mútua, não de subordinação. Porém, simbólico-imaginárias, baseadas em figuras tal fato pode não ser uma constante na gestão históricas dos fundadores ou de suas ações cultural, mas fruto de um retrato específico heroicas, se desdobram em ideais a serem perde momento, no qual existia uma relação de seguidos. Além disso, o fato de esses arquivos confiança entre esse conselho e o gestor da serem compartilhados em formulações teóriinstituição específica. Trata-se de mais um cas mais elaboradas, como no caso dos livros elemento para futuras análises. publicados sobre as instituições Um terceiro ponto que nos A pesquisa para analisadas, nos apresenta um chamou atenção – embora não se produção de panorama relativamente aberto configure como ação de gestão, espetáculos e da construção da história dessas mas algo a ela relacionado – foi exposições é uma instituições, permitindo que sua a estruturação e o desenvolvi- atividade constante legitimação aconteça a partir de mento sistemático de pesquisa em instituições um diálogo mais amplo. para a elaboração das atividades culturais mais bem É interessante, neste ponto, culturais e a manutenção de ar- estruturadas retomar as noções da relação enquivos sobre essas pesquisas. A tre o saber e o arquivo, proposta pesquisa para a produção de espetáculos e por Roudinesco (2006). A autora, analisando exposições é uma atividade relativamente as diferentes posições ante os arquivos para constante em instituições culturais mais a elaboração de uma história da psicanálise, bem estruturadas. Porém, a estruturação remete essas posições a uma constante tende arquivos sobre tais pesquisas e sobre os são entre a adoção de um lugar de totalidade produtos delas oriundos nos pareceu algo para tais arquivos e o esvaziamento de sua que ultrapassava sua função inicial de re- função gerado pela exclusão de algo. De um gistro e se constituía também em função da lado, ela entende que é necessário ignorar alconstrução de um saber/fazer específico da guns elementos relacionados às diferentes instituição. Algo que não apenas se restrin- narrativas que emergem paralelamente ao gia a questões relacionadas à produção cul- foco dos arquivos. De outro, explica que, ao tural, mas que influenciava a estruturação ignorá-los, os arquivos acabam deixando esdos elementos identitários que sustentam os sas narrativas sem uma referência primária processos de legitimação de ações de gestão compartilhável, remetendo a verdade somene os relacionamentos com agentes externos te à projeção da fantasia que o elaborador nas instituições. do discurso possui em relação à instituição.


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Nesse sentido, o arquivo e sua abertura se mostram como condição da história. Além disso, a construção de espaços nos quais a rememoração possa ocorrer também se constitui como espaço para que os elementos vivenciados – e, principalmente, os equivalentes simbólicos do desejo relacionados a essas vivências (FREUD, 1926) – possam ser elaborados. A criação de espaço de elaboração está fortemente vinculada à sustentação da capacidade criativa dos grupos, visto que tal capacidade precisa escapar da compulsão pela repetição na qual vivências e desejos, caso não elaborados, retornam somente como repetição do mesmo (ainda que de forma diversa). No entanto, o que nos chama atenção é a inserção do outro nesses arquivos (assim como nas dinâmicas de estruturação de práticas culturais e gerenciais), como seus intérpretes ou legitimadores, para que se possa escapar da repetição ou do delírio, ambos consequência de uma autorreferência solipsista. Há uma ação com vistas à apropriação desse outro em um sistema de apoios ou trocas, o que chamamos de uma consciência de legado. O legado ao qual nos referimos não é percebido como algo que se deixa para o outro, mas como manter em circulação algo que nos foi dado, e que só se efetiva quando o transmitimos para alguém, que por sua vez também o recebe. Nesse sentido, o legado é a inserção em uma cadeia de dádiva, a qual retribuímos com nossas sínteses pessoais, para além dos feitos, fatos e fotos que nos afamaram (CARVALHO; PIRES, 2019). Essa inserção em tradições criativas, por sua vez, nos leva diretamente ao quarto grupo de questões, em que se abordou a relação entre a gestão e o processo criativo.

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Sustentação do processo criativo em relação à previsibilidade dos processos administrativos A questão da manutenção da criatividade mereceu atenção especial durante as entrevistas. Isso em razão de uma aparente antinomia que se nos mostrava ao início da pesquisa. Por um lado, havia uma busca por previsibilidade e explicitação de processos, práticas e objetivos inerentes a uma gestão racionalizada, assim como uma priorização da visão de conjunto e da busca de sinergia entre os diversos elementos construtivos da organização em detrimento de projetos pessoais. Por outro lado, havia uma expectativa de priorização do processo criativo artístico, marcado pela imprevisibilidade e pela valorização da expressão pessoal (ainda que dentro de um contexto de trabalho coletivo), em detrimento de uma prescrição dada por processos e metas estabelecidos pelas instituições. O questionamento que apresentamos aos entrevistados, no tocante a essa antinomia, foi o de como manter a criatividade na previsibilidade e também qual o lugar nessas instituições para pensar o impensável. Como fazer emergir, em suas práticas cotidianas, novas ações e concepções? Busca-se abordar, então, duas perspectivas básicas. A primeira, relacionada a verificar e compreender a conformação de uma tensão instaurada entre o processo de gestão e o processo criativo artístico; e a segunda, ligada às condições necessárias para a emergência de construções simbólicas e imaginárias que, embora já pudessem existir enquanto possibilidades, não estavam na centralidade de um discurso artístico ou gerencial.

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Cabe aqui uma pequena digressão sobre como um processo de integração de diferentes a demanda que nos foi colocada nesse sen- elementos nem como a busca de uma subsuntido, de buscar aprender como essas insti- ção na qual a articulação entre gestão e arte tuições conseguiam pensar o impensável e emergisse a partir de uma nova configuração a atribuição da criatividade a tal fato. O que discursiva de uma estética organizacional. destacamos, nesse caso, é o termo “impensáEsse páthos apresentou-se a partir de vel”, que tem como objeto o que não pode ser uma dubiedade entre duas ações sistemáticas, pensado, e não o que ainda não foi pensado. que também parecem contraditórias nas falas Ou seja, a questão que nos foi demandada re- dos entrevistados. A primeira dessas ações se fere-se7 mais à capacidade dessas institui- referia à necessidade de estruturação e mações de transgredir uma proibição do pensar/ nutenção de uma linguagem própria. Como criar do que propriamente à estruturação de nos mostra a fala de um dos entrevistados: novas conformações artísticas. “Quer coisa mais nova do que ser sempre a Não cabe aqui fazer uma discussão so- gente mesmo?”. Esse “ser a gente mesmo” bre se tais novas conformações poderiam ou como novidade, como o impensável, remete não existir enquanto criação ex à sustentação de uma ipseidade, nihilo, ou um “imaginário radi- “Quer coisa mais que se manifesta não enquanto cal”, como proposto por Casto- nova do que destino, mas como uma possibiser sempre a riadis (1986), ou se decorreriam lidade de atualizar as capacidade um mergulho em seu zeitgeist gente mesmo?” des e potencialidades presentes [espírito do tempo]. Tampouco nas instituições e nos artistas caberia discutir a diferença prática entre que delas fazem parte. A novidade do sujeito uma ou outra coisa. A demanda fala da cria- acontece sendo, e é a sustentação desse ser, tividade como a superação das interdições e enquanto o processo de “ser a gente mesmo”, limitações ao pensamento, que possibilita a que possibilita a emergência do novo. emergência do novo, ainda que já estivesse No entanto, esse ato de devir constitutivo lá presente, ou melhor, ainda que ele seja a da novidade não ocorrerá enquanto algo absomanutenção de si mesmo. luto e exclusivamente autorreferenciado. Ao Como nos mostra Rancière (2009), a mesmo tempo que as falas dos entrevistados própria estética se estrutura enquanto a pro- remetiam à estruturação e manutenção de cura tanto de um pensamento em um não uma linguagem própria, também se referiam pensamento quanto da presença de um não à manutenção da criatividade e à sistemática pensamento em um pensamento. Ela nos leva, introdução de elementos externos à instituiassim, a uma busca mais da configuração de ção (artistas ou técnicos convidados, a comuum páthos que demanda um trabalho de de- nidade, as empresas financiadoras com seus cifração e de reescrita do que a de uma bela saberes, práticas e olhares a partir de outros forma a ser descrita e materializada. Da mes- contextos) como fontes de orientação tanto ma forma, o processo de abordar a antinomia para o processo criativo artístico quanto para entre criatividade e gestão não foi estruturado pensar a gestão.


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Esses elementos externos também apa- Ela chegou a afirmar “isso não é um camarim, receram nas falas associados a não saberes, é um quarto”, e se emocionou. ou a sentimentos de ansiedade. Uma das Da atriz, não sabemos o que sentiu, mas falas mais interessantes nesse sentido diz a interpretação dada pela instituição foi que sobre a escolha desse outro a ser inserido a convidada percebeu não só o esforço que na instituição: “Sentimos que não sabíamos haviam feito para agradá-la, mas também a trabalhar com música tão bem. Então re- intimidade que lhe era oferecida por meio do solvemos fazer um musical. Chamamos um quarto/camarim. Essa experiência, segundo diretor de musicais e começamos a estudar o grupo, a emocionou positivamente e inse a nos dedicar a isso”. A associação com o taurou uma relação de amizade entre a atriz desafio e sua articulação com sensações de e a instituição. não saber (e, em alguns casos, de ansiedaA transgressão inerente em tal história de) parecem caracterizar a inserção desses se dá na subversão do lugar esperado de um elementos externos. Porém, nesse caso, mais camarim – como espaço profissional assépdo que uma estratégia de aquisição de conhe- tico de solidão – e na emergência de um lucimentos, ela possui também um gar agradável, e que se descobre papel dentro da dinâmica psicos- Freud, ao discutir como num palimpsesto. Essa social da instituição. agradabilidade decorre justasobre o estranho Um caso em específico nar- familiar, mostrava mente de remeter ao espaço de rado em uma das entrevistas ser- que ele é tudo intimidade e acolhimento caracve de exemplo para compreender que deveria ter terístico de um quarto. melhor nossa interpretação. O permanecido Freud (1919), ao discusecreto e oculto, grupo de três entrevistados vitir sobre o estranho familiar, nha falando sobre a relação com mas que veio à luz já nos mostrava, relembrando esses agentes externos, de como Schelling, que esse estranho buscavam parceiros e não apenas profissio- (unheimliche) é tudo que deveria ter pernais, e que tal parceria se daria por meio de manecido secreto e oculto, mas veio à luz. uma vinculação afetiva. Eles afirmavam que No entanto, tal estranhamento será afetado a forma como eram recebidos buscava ex- pela vivência subjetiva na qual nos ligamos pressar essa abertura e intenção de vincu- nessa situação de estranhamento. Ao comenlação. Contaram, então, da vez em que uma tar a história de Heródoto sobre o tesouro de atriz foi convidada para dar uma oficina so- Rhampsinitus, Freud nos mostra que, para bre questões técnicas de atuação. A institui- a vivência subjetiva da princesa, que tenta ção teve que improvisar um camarim para prender o chefe dos ladrões pela mão e esta recebê-la. A atriz, por sua vez, ao entrar no se solta, a cena parece de extrema estranhecamarim, o elogiou, falando mal do camarim za. No entanto, para a vivência subjetiva do que lhe tinha sido disponibilizado anterior- chefe dos ladrões, o que é percebido é sua asmente por outra instituição (que dispunha túcia na estruturação de um artifício (uma de muito mais recursos físicos e financeiros). mão falsa) que o libertou.

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Esse algo interdito, não desenvolvido, não elaborado, impensável, que lhe dá uma sensação de falta (percebida como falta de competência), mais que uma aquisição de conhecimentos dentro de um planejamento estratégico, pode ser considerado, então, como uma ação sistemática de inserção de um outro que nos permita outra referência. Essa outra referência, no entanto, não é cognitiva, contextual ou técnica, mas de autorização. É a autorização que o outro se dá – assim como no caso do chiste (Freud, 1905b), em que a licença que o outro se dá para rir nos permite rir também – que possibilita que o impensável seja pensado, o não elaborável seja elaborado e a falta, embora não possa ser suprida, seja encarada, ainda que não sem temor e “with a little help from my friends”. Afinal, nossa antropofagia – por que não – também é cordial. A apropriação burocrática e a apropriação potente dos mecanismos de gestão Todas essas características elencadas evidenciam uma percepção diferenciada da gestão por parte da maioria dos gestores culturais entrevistados. Embora seja percebida a necessidade de uma racionalização dos processos organizacionais dentro da perspectiva dos teóricos da administração, assim como a importância dos processos e das ferramentas de gestão modernas, existe uma diferença no que diz respeito ao objetivo de referência para a estruturação desses processos. A apropriação dos pressupostos da gestão não se dará no modo mais comum encontrado nas empresas. Esse modo tradicional chamaremos aqui de “apropriação

burocrática dos mecanismos de gestão”. Na fala dos entrevistados, percebe-se a presença de outro modelo, que, mais do que uma opção, pode ser entendido como uma oposição (ou uma resistência) ao primeiro, e que chamaremos de “apropriação potente dos mecanismos de gestão”. Entende-se por apropriação burocrática dos mecanismos de gestão uma estruturação baseada nos princípios weberianos de burocracia: um modelo de organização baseado em um sistema de regras e hierarquias de poder, que busca a eficiência na consecução de objetivos minimizando a interferência da arbitrariedade e da busca de interesses individuais dos membros em detrimento da organização de modo geral. Não pretendemos aqui questionar a legitimidade de tal modelo, mas ressaltar que, por sua função de estruturar relações de poder com vistas a assegurar uma governabilidade, ele se encaixa na definição de dispositivo de Agamben (2005). Segundo o autor, o termo se refere a: [...] qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes. Não somente, portanto, as prisões, os manicômios, o pan-óptico, as escolas, a confissão, as fábricas, as disciplinas, as medidas jurídicas etc., cuja conexão com o poder é num certo sentido evidente, mas também a caneta, a escritura, a literatura, a filosofia, a agricultura, o cigarro, a navegação, os computadores, os telefones celulares e – por que não – a linguagem mesma, que é talvez o mais antigo dos dispositivos, em que há milhares


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e milhares de anos um primata – provavelmente sem dar-se conta das consequências que se seguiriam – teve a inconsciência de se deixar capturar (AGAMBEN, 2005, p. 13).

A oposição que se estabelece no nosso caso, com os gestores culturais, se refere à sustentação de um aparato de controle e racionalização de processos em relação a metas preestabelecidas, dadas por necessidades alheias ao próprio ato criativo ou expressivo das atividades culturais. Pelo contrário, a apropriação dos mecanismos de gestão se dá na tentativa de manter o não assujeitamento dos objetivos a serem buscados, que se flexibilizam, em função da atividade cultural em questão, às lógicas de funcionamento do aparato organizativo estruturado para sustentar essa busca. Tal fato, por sua vez, acaba por gerar uma ruptura que, no entanto, não impede que haja uma relação entre a meta e o sistema organizativo. A ruptura sustentada é com a influência no modo de estruturar a organização8 na definição das metas a serem buscadas, assim como na conformação de suas definições. De uma realidade em que as lógicas da instituição determinam as metas e fazem dos sujeitos os seus instrumentos para alcançá-las, passa-se a outra na qual os sujeitos são quem determina essas metas, configurando-se a instituição como o instrumento. Nesse sentido, denominamos aqui a noção de “apropriação potente dos mecanismos de gestão”, que parte de duas noções de potência que são, a nosso ver, complementares e que estão em constante diálogo. A primeira é a noção de potência de viver, em Deleuze

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(2010), na qual se busca o efeito de objetos estéticos no estabelecimento de novas conformações de subjetividades. Isso resultaria na constante emergência de novas possibilidades narrativas que permitam a superação das determinações disciplinares e normativas dos dispositivos. Essa potência se baseia na possibilitação da emergência dos discursos menores (referentes a aspectos aparentemente secundários em uma narrativa já estruturada) como discursos possuidores de centralidade na enunciação de si e na enunciação do outro em relação a si. Tal emergência, no entanto, só é possível por meio de uma amputação de elementos dos discursos voltados para a estruturação de uma hegemonia. O que a potência de viver permite são essas múltiplas possibilidades de existir para os sujeitos, em detrimento de uma forma única de existência dada por um discurso voltado para a sustentação de um conjunto de relações de poder. A segunda noção é a de potência destituinte, de Agamben (2017). Ela permite uma afirmação de si (ou de algo), mas se encontra descolada de uma intenção de instituir. O que é destituído, nesse caso, são as relações nas quais as coisas se conformam (passagem da potência ao ato). Há a atribuição do ser à sua existência em potência, ainda que não conformada, o que lhe abre uma infinidade de possibilidades de vir a ser. No caso do sujeito estruturado em relação com a instituição, isso o conforma como sujeito-em-relação-com-a-instituição, o que já lhe designa a partir de um dispositivo de poder que o envolve e que estrutura sua forma de viver. A potência destituinte,

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embora não tenha a intenção de abolir a instituição (nem de instaurar outra relação), se apresenta na ruptura da relação que nomeia o sujeito a partir do seu existir enquanto ser em relação com a instituição. O que se possibilita, assim, é que o sujeito exista enquanto sujeito não relacionado, não existindo em ato, mas só em potência. É desse lugar que as relações, que antes eram constitutivas do sujeito, podem se configurar enquanto relações a serem analisadas não como “de fato”, mas como uma possibilidade entre outras. A apropriação potente dos mecanismos de gestão vai acontecer destituidamente. Não é o contato do sujeito ou das demandas da produção cultural com a instituição ou com a gestão que a determina. É uma apropriação que torna inoperante a função desses mecanismos de conformar as ações artísticas – bem como as subjetividades, os desejos e as expressividades – que são mantidas, a partir dessa destituição, como potências de ser ainda em aberto. Elas vão se tornar ato a partir de um ato de vontade, e não de uma relação conformadora dada por demandas da gestão. Nesse sentido, uma série de narrativas menores encontram possibilidades, não de instituir, mas de se apresentar como portadoras de sentido e potência criativa, na elaboração tanto de ações artístico-culturais como de práticas de gestão. O lugar da conclusão: gestão e/ ou cultura? Hibridismos e novas frequências de um campo em formação Se esta investigação teve como ponto de partida um lugar de observatório sobre como tem se delineado a cena cultural brasileira (ainda que restrita ao seu polo

regional de maior influência), finalizaremos com a convicção de que demos visibilidade a uma rica, e ainda não sistematizada, experiência concreta de saberes reais da gestão em práxis inventivas e em novas formas de liderança. Não por acaso, o questionamento que guiou esta pesquisa está orientado a um (a)fazer cultural – que, como bem salientou Freud, tem como base o ato de sublimar inerente a toda criação – e ao trabalho criativo decorrente. É também em razão disso, segundo nossos entrevistados, que uma tensão criativa se faz necessária para, de forma explícita ou não, legitimar certa liderança. Ou seja, seria competência do gestor, que assim efetiva sua liderança, a gestão da tensão criativa entre a própria gestão e a criação. Isso sendo o ato criativo do gestor, como na maioria das vezes, ou do corpo de artistas, como é o caso em instituições com fins culturais. Nosso olhar procurou observar as evidências para demonstrá-las e, ao assim fazer, explicar compreendendo. O que esta investigação desvelou foi uma liderança advinda de uma prática num terreno ávido por profissionalização, mas sem querer perder as asas inerentes à criação. Temos como dever ser testemunhas e críticos da cultura que é produzida no nosso tempo. A gestão e o que a sua liderança convoca é uma escolha artística e técnica com hibridismo no DNA. É preciso assegurar, ao mesmo tempo, avaliações críticas confiáveis para criar meios de produção e expressão cultural, como o nosso último questionamento na entrevista propôs. “Como criar condições para pensar o impensável?” É possível formar lideranças


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culturais capazes de pensar o impensável? Pensadores capazes de transgredir sem destruir, ou seja, capazes de se apropriar da gestão destituindo sua função de conformação de potencialidades? Este artigo não pretende estender seu limite a esse vasto campo indagativo, mas oferecer pistas de aproximação e eliminar falsas dicotomias presentes no querelar muitas vezes espinhoso na arte de tensionar a cultura e a sua gestão. O fazer cultural na gestão implica um trabalho na diferença para produzir uma tensão criativa fértil, como disse um dos entrevistados. Podemos afirmar que a expressão humana de sua dimensão espiritual está presente na criação cultural que nos obriga a negociar constantemente com o outro os regulamentos do viver bem na civilização, já que certo mal-estar é inerente à civilização. E, por fim, talvez porque a cultura, na sua acepção mais generosa,9 seja a mãe da arte, o afeto é convocado como ingrediente perceptivo. A cultura é o outro, num giro em Rimbaud, que nos obriga a se afetar como numa família e, ao mesmo tempo, a se “estrangeirar” para fazer a gestão das diferenças. O reconhecimento simbólico do outro é a creative skill do gestor que quer desenvolver liderança na área cultural. Observamos que o principal efeito que a cultura tem sobre seus gestores é o de criar uma afinidade afetiva e eletiva. Isso ficou evidente em todos os sujeitos desse campo, o que, ainda que ele seja delimitado, nos sugere uma generalização possível para além do território deste eixo triangular da produção cultural brasileira em instituições de relevância.

RICARDO DE CARVALHO E SANYO PIRES

Ricardo Augusto Alves de Carvalho É psicólogo formado pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), especialista em gestão pública pela Fundação João Pinheiro, mestre em psicologia social e clínica pelo Conservatoire National des Arts et Métiers, doutor em sociologia das mutações pela Universidade Paris VII (Denis Diderot) e pós-doutor em arte e gestão pela Reims Management School, também francesa. É professor associado da Fundação Dom Cabral, em São Paulo.

Sanyo Drummond Pires É psicólogo e mestre em psicologia social pela UFMG. É doutor em avaliação psicológica pela Universidade São Francisco (USF), pós-doutor em gestão pela Fundação Dom Cabral e professor adjunto da Universidade Federal da Grande Dourados (UFGD), em Mato Grosso do Sul.

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Referências AGAMBEN, G. O que é um dispositivo? Outra Travessia, n. 5, 2010, p. 9-16. Disponível em: <https:// periodicos.ufsc.br/index.php/Outra/article/download/12576/11743>. Acesso em: 5 fev. 2019. _________. O uso dos corpos (Homo Sacer, IV, 2). São Paulo: Boitempo Editorial, 2017. CARVALHO, Poliana N. S. Organizar para administrar: uma análise da gestão do Grupo Galpão (MG) e do Bando de Teatro Olodum (BA). Dissertação de mestrado em artes cênicas, Universidade da Bahia, Salvador, 2015. Disponível em: <https://repositorio. ufba.br/ri/bitstream/ri/17681/1/Organizar%20para%20Administrar%20-%20Uma%20 An%C3%A1lise%20da%20Gest%C3%A3o%20do%20Grupo%20Galp%C3%A3o%20 %28MG%29%20e%20do%20Bando%20de%20Teatro%20Olodum%20%28BA%29%20 -%20CARVALHO%2C%20Poliana%20N.%20Santos%20de..pdf>. Acesso em: 5 fev. 2019. CARVALHO, R. A. A.; PIRES, S. D. O paradigma do dom e a arte de legar. Belo Horizonte: Editora da Fundação Dom Cabral, 2019 (no prelo). CASTORIADIS, C. A instituição imaginária da sociedade. São Paulo: Paz e Terra, 1986. DELEUZE, G. Sobre o teatro. Rio de Janeiro: Zahar, 2010. ELIAS, N. Qu’est-ce que la sociologie. Paris: Agora, 1991. ENRIQUEZ, E. A organização em análise. Petrópolis: Editora Vozes, 1997. FREUD, S. Três ensaios sobre a sexualidade. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 7. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1905a/1996. ________. O chiste e sua relação com o inconsciente. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 7. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1905b/1996. _________. Leonardo da Vinci e uma lembrança de sua infância. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 11. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1910/1996. _________. Além do princípio do prazer. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 18. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1920. _________. Inibição, sintoma e angústia. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud, v. 20. Rio de Janeiro: Editora Imago, 1926. RANCIÈRE, J. O inconsciente estético. São Paulo: Editora 34, 2009.


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RICARDO CARVALHO E SANYO PIRES

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Notas

1 Quando nos referimos a eixo de produção, aludimos ao lócus de maior concentração

econômica e, por conseguinte, cultural do Brasil, notadamente representado pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais e suas zonas de influência, aqui categorizados como eixo triangular da produção cultural brasileira. 2

Todas as entrevistas realizadas foram face a face e gravadas em áudio. Gostaríamos de agradecer a disponibilidade e solicitude de todos. Agradecemos também aos pesquisadores Alê Gabeira, Isabela Pinheiro e Luiza Vaz, pela participação nas entrevistas referentes ao Museu de Imagens do Inconsciente, ao Instituto Tomie Ohtake e à Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, respectivamente.

3 O setting é compreendido como um lócus que emerge e permanece no momento

em que se instaura o contexto da entrevista. 4

A dissertação de Carvalho (2015), que tem como um de seus objetos de estudo uma das instituições por nós entrevistadas, apresenta uma interessante análise sobre essa questão.

5

Isso ficava mais explícito nos casos em que o gestor era parte do grupo fundador da instituição ou havia sido formado profissionalmente nela.

6

Aquisições que são, muitas vezes, decorrentes da troca de experiências e linguagens com agentes culturais regionais responsáveis por cases de sucesso no âmbito da produção artística.

7

Se não intencionalmente, como nos mostra Lacan, ao menos na equivocação que apresenta a verdade.

8

Englobando aqui também os elementos externos que conformam essa organização, como as leis e demandas políticas e mercadológicas que influenciam os processos de financiamento.

9

Nesta interpretação, não nos referimos ao conceito de cultura como gestão dentro das ciências administrativas.

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5.

MUNDO DO TRABALHO: UM ESPAÇO A SER HUMANIZADO. UM AMBIENTE DE CRIAÇÃO E NÃO APENAS REPRODUÇÃO

164.

TEMPO DE IMAGINAR: ENTREVISTA COM PRISCILA FERNANDES Tanja Baudoin

172. CULTURA DA GESTÃO DE PESSOAS NA PERSPECTIVA DA BIOLOGIA CULTURAL: ENTREVISTA COM HUMBERTO MATURANA E SEBASTIÁN GAGGERO Káritas Ribas


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Cecília Winter, Masp, coordenadora de acervo

TANJA BAUDOIN

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Gozolândia, vídeo full HD, 17min35s, em cores, sonorizado. © Priscila Fernandes 2016-2018


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TANJA BAUDOIN

TEMPO DE IMAGINAR Tanja Baudoin

Priscila Fernandes é entrevistada pela curadora Tanja Baudoin sobre sua instalação Gozolândia e Outros Futuros,1 que produziu e apresentou pela primeira vez na 32ª Bienal de São Paulo, em 2016. A artista discute sobre seu interesse pelo tempo de trabalho e de lazer e sua pesquisa no Parque Ibirapuera, assim como sobre o processo de criação da obra e sua relação pessoal com a condição de ser produtiva ou estar ociosa como artista.

E

m 2016, a artista Priscila Fernandes foi convidada para fazer um novo trabalho para a 32ª Bienal de São Paulo, que se transformou no filme Gozolândia e em um conjunto de gravuras fotográficas intitulado Outros Futuros. Gozolândia nos presenteia com cenas de pessoas passando o tempo no Parque Ibirapuera, ao lado de imagens e livros encontrados nos acervos de dois museus localizados no mesmo parque: o MAM-SP e o Museu Afro Brasil. O filme traça paralelos entre o desenvolvimento histórico do modernismo e a abstração, por um lado, e as mudanças na concepção do tempo livre e do trabalho, por outro. Ele evoca as formas complexas pelas quais nos envolvemos com ideias utópicos de como a vida e o tempo livre devem ser organizados, as pressões reais do desempenho e o potencial do artista para incorporar outras formas de passar o tempo. Fernandes discute o processo de desenvolvimento e pensamento por trás de Gozolândia e Outros Futuros em entrevista a Tanja Baudoin.

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EM SEU FILME GOZÔLANDIA, VEMOS MUITAS PESSOAS QUE ESTÃO APROVEITANDO O PARQUE IBIRAPUERA SENTADAS À BEIRA DO LAGO, BRINCANDO OU PRATICANDO IOGA, ENFIM, REALIZANDO ATIVIDADES QUE NORMALMENTE CONSIDERAMOS PARTE DO “TEMPO DE LAZER”, MAS QUE TAMBÉM INCLUEM APRENDIZAGEM E (AUTO)DISCIPLINA. DIANTE DISSO, SERIA CORRETO AFIRMAR QUE, EM SUA VISÃO, O PRAZER PARECE VIR MAIS DO ENVOLVIMENTO EM ALGUMA ATIVIDADE OU DA PRESENÇA EM UM LUGAR E MOMENTO DO QUE DE DEIXAR-SE LEVAR PELA PREGUIÇA OU FICAR CERCADO DE LUXO E CONFORTO. O QUE VOCÊ QUERIA EVOCAR COM ESSA IDEIA EM GOZOLÂNDIA?

Quando visitei o Ibirapuera pela primeira vez, deparei-me com um acontecimento curioso: uma garota em seus 30 anos com seu personal trainer exercitando-se com pesos enquanto repetia em voz alta: “Eu quero ser uma mulher bem-sucedida, eu quero um carro enorme, uma viagem a Paris, serei a chefe de uma empresa”. Achei aquilo incrível. Suas aspirações expostas com tanta clareza. Ver como o lazer e o tempo livre estão tão profundamente entrelaçados com nossa ética de trabalho e o quanto eles servem para satisfazer o desejo de ser produtivo e bem-sucedido financeiramente. Com esse filme, eu queria usar o lazer como um espelho que reflete as maneiras

como nos pedem para atuar em nosso ambiente de trabalho profissional e também em muitos outros aspectos de nossas vidas. Filmei e coreografei atividades para o filme que, de certa forma, poderiam deixar imprecisa esta linha de separação entre o trabalho e o lazer. Porém, também queria trazer outra lógica ao filme, na qual poderia subverter o foco produtivo e disciplinar das atividades de lazer que eu observava no parque. No primeiro capítulo do filme, vemos crianças pegando algodão-doce de uma árvore e falando sobre a Cocanha – uma terra imaginária da abundância, onde o trabalho é proibido e você pode dormir feliz o dia todo. Achei que seria interessante trazer essa referência mitológica para o filme para propor que “fazer nada” pode ser algo valoroso em si. Essa subversão é interessante para mim, porque sinto que nos concentramos demais em estar ocupados e ser produtivos, a tal ponto que agora podemos associar a ociosidade à letargia e à preguiça. Esse filme e a instalação como um todo estão, em parte, tentando resgatar a necessidade de uma “Gozolândia” de ociosidade e contemplação. Aqui, meu interesse é ver como poderíamos participar de nossa sociedade por meio da ociosidade, como seria diferente nossa percepção do trabalho e do entorno.


GESTÃO DE PESSOAS EM ORGANIZAÇÕES CULTURAIS

EM UM MOMENTO DO FILME, SÃO APRESENTADAS ALGUMAS IMAGENS DE LIVROS SOBRE ABSTRAÇÃO E MODERNISMO. COMO AS CENAS NO PARQUE, ELAS INCLUEM CORPOS EM MOVIMENTO, CORES CONTRASTANTES, RITMOS, PADRÕES E, FINALMENTE, UM DETALHE DE UMA PINTURA DE SEURAT, UMA PESSOA SENTADA À BEIRA D’ÁGUA. FORAM PRINCIPALMENTE ESSAS SEMELHANÇAS FORMAIS QUE A FIZERAM PENSAR NESSAS OBRAS DE ARTE EM RELAÇÃO AO QUE VOCÊ ESTAVA OBSERVANDO NO PARQUE?

No Museu de Arte Moderna, deparei-me com o catálogo da primeira exposição ocorrida lá, chamada Do Figurativismo ao Abstracionismo. O catálogo serviu de dispositivo para criar uma narrativa entre as obras: das representações de resistência, luta e impotência dos trabalhadores às pinturas nas quais se celebram o lazer, a comunidade e o amor. A narração passa da figuração à abstração porque eu também estava interessada no papel da arte

TANJA BAUDOIN

abstrata na discussão sobre a preguiça e o lazer. Os textos de Malevich, A Preguiça como Verdade Definitiva do Homem, e de Hélio Oiticica, Crê Lazer, foram importantes referências em minha pesquisa. Tentei, assim, encontrar obras no MAM que pudessem evocar um sentimento de resistência ou de contemplação. Esse capítulo do filme termina com uma reprodução da pintura de Seurat Banhistas em Asnières, de 1884. Essa é a única referência à arte europeia ocidental. Para mim, essa pintura é significativa porque o modo como olho para ela reflete o contexto de onde venho e como meus próprios pontos de vista de lazer foram culturalmente construídos. Nessa pintura, vejo o olhar desapontado do trabalhador finalmente aproveitando seu lazer, descontente com o sentimento de não fazer nada, entediado, olhando fixamente para a água poluída pelas fábricas ao fundo. O Ibirapuera tem uma vista para o lago que me lembrou essa pintura.

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NA BIENAL DE SÃO PAULO, VOCÊ EXPÔS O FILME E TRÊS “FOTOPINTURAS” ABSTRATAS QUE OS VISITANTES FORAM CONVIDADOS A CONTEMPLAR ENQUANTO ESTAVAM SENTADOS NAS CADEIRAS DE PRAIA. A INSTALAÇÃO FOI CHAMADA DE GOZOLÂNDIA E OUTROS FUTUROS, CRIANDO UM LUGAR CALMO EM PLENA AGITAÇÃO DA BIENAL. VOCÊ ACHA QUE O SEU TRABALHO REQUER UM TIPO ESPECÍFICO DE OLHAR? OU GOSTARIA QUE A OBRA ESTIMULASSE UMA OUTRA MANEIRA DE VER, DE IMAGINAR?

Eu estava interessada no que pode acontecer se uma obra de arte o convida a desacelerar e como conseguir fazer isso por meio da forma. As fotogravuras que fazem parte da instalação foram obtidas com pintura e raspagem feitas diretamente nos negativos fotográficos. Como estava basicamente pintando-os “no escuro”, só depois da impressão é que via os resultados. Mesmo podendo controlar a técnica, há sempre um momento de surpresa, de olhar para uma imagem pela primeira vez e tentar dar sentido a ela. Percebi que as melhores imagens são realmente aquelas que me tomam mais tempo para entender. Acho que é importante o envolvimento do tempo nesse processo de fazer e olhar.

A instalação foi concluída com um conjunto de cadeiras de praia. Embora sejam objetos ligados à ideia de descanso, elas apresentam uma ambiguidade no contexto de uma bienal movimentada. Enquanto observa as obras, o espectador pode estar em um ponto oscilante entre contemplação e análise, distração e atenção, descanso e trabalho. Curiosamente, quando mostrei essas cadeiras na Europa, em um contexto menor, pouquíssimas pessoas sentaram-se nelas, e, se o faziam, podia-se ver que elas estavam “no trabalho”. Confesso que estava nervosa ao mostrá-las no contexto da bienal, temendo que funcionassem apenas como alegorias. Felizmente, esse não foi o caso e as pessoas as usaram para muitas finalidades, até mesmo para cochilar. Desejar que uma obra de arte seja mais lenta pode ser bastante produtivo para a maneira como a percebemos e nos relacionamos com ela. Contudo, em nossa economia atual, ir mais devagar é uma provocação quando tudo se volta para a eficiência e a produtividade. É aí que estabeleço uma ligação entre o lazer/ociosidade e a criação artística. Apresento estratégias que podem ser usadas para interromper o tempo, resistir ao hiperdesempenho, e que provocam uma nova temporalidade e percepção no criador e no espectador.


TANJA BAUDOIN

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Foto: Pedro Ivo Trasferetti/Fundação Bienal de São Paulo. © Priscila Fernandes 2016

GESTÃO DE PESSOAS EM ORGANIZAÇÕES CULTURAIS

Outros Futuros, instalação exposta na 32ª Bienal de São Paulo


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QUANDO INTRODUZIMOS OS TEMAS DE

EXISTE UMA PARTE DO SEU PROCESSO

ATIVIDADES DE LAZER, TEMPO LIVRE E

DE TRABALHO PELA QUAL VOCÊ TENHA

TRABALHO EM SEU PRÓPRIO MÉTODO DE

UM GOSTO ESPECIAL? E UMA DE QUE

TRABALHO, VOCÊ DIRIA QUE SEU PROCES-

GOSTE MENOS?

SO ENVOLVE MOMENTOS DE AÇÃO E INAÇÃO, POR EXEMPLO? PODE EXPLICAR O RITMO DE SEU PROCESSO DE TRABALHO?

Gosto de fazer coisas e manter-me ocupada no ateliê. Na verdade, não há muitos momentos de inação. Recentemente, instalei uma rede para ver se eu poderia mudar um pouco as coisas.

Acho muito gratificante quando consigo me soltar e brincar livremente com ideias e materiais. Não gosto de trabalhar quando me sinto pressionada. O QUE VOCÊ GOSTA DE FAZER QUANDO NÃO ESTÁ FAZENDO ARTE?

Estou sempre no trabalho.


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Tanja Baudoin

Priscila Fernandes É artista, portuguesa que mora e trabalha nos Países Baixos. Suas atividades compreendem vídeo, performance, instalação e pintura. Seus trabalhos mostram um interesse em verificar como a aprendizagem, a brincadeira, o trabalho e o lazer se cruzam em nossas vidas. Entre seus trabalhos recentes, figuram a instalação Gozolândia e Outros Futuros (2016), na 32ª Bienal de São Paulo; The Book of Aesthetic Education of the Modern School, na Fundação Joan Miró, em Barcelona (2014); Back to the Sandbox: Art and Radical Pedagogy, no Museu de Arte de Reykjavik, na Islândia, Kunsthall Stavanger, na Noruega, e Western Gallery, em Washington, nos EUA (2016-2018); Playgrounds, no Museu Reina Sofía, em Madri (2014); PIGS, no Museu Basco Artium (2016); Learning for Life, no Henie-Onstad Kunstsenter, em Oslo (2012); e Those Bastards in Caps Come to Have Fun and Relax by the Seaside Instead of Continuing to Work in the Factory, no Tent, em Roterdã (2015).

Tanja Baudoin É curadora nascida nos Países Baixos e mora e trabalha no Rio de Janeiro desde 2015. Recentemente, deu início a uma série de conversas públicas no Capacete, no Rio de Janeiro, chamada Maneiras de Trabalho, com artistas de diferentes gerações que conversam sobre como lidam com as circunstâncias materiais que existem em torno de sua produção artística.

Nota

1 Um link temporário para visualização de Gozolândia (17min35s, 2016) está disponível

para os leitores da Revista Observatório até o final de 2019: <bit.ly/gozolandia_ priscilafernandes>.

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Humberto Maturana

Ilustrações: André Toma


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Káritas Ribas

CULTURA DA GESTÃO DE PESSOAS NA PERSPECTIVA DA BIOLOGIA CULTURAL Káritas Ribas

Consigo reconhecer alguns pontos de inflexão que me levaram a observar o mundo de maneira distinta e, consequentemente, modificar meu modo de viver. O contato com o pensamento de Humberto Maturana e seus parceiros, tanto os da Matríztica1 quanto os muitos autores que refletiram com ele e sobre ele, sem dúvida foi um desses pontos. Ter contato com a biologia cultural, sua linguagem, sua complexidade e sua elegância nos faz mais capazes de olhar o mundo do trabalho como um espaço a ser humanizado e vivido como ambiente de criação, e não apenas de reprodução. Esse é um pensamento que nos provoca a pensar no observador que somos, e, mesmo reconhecendo que há vários pontos de vista sobre o mundo, é importante afirmarmos que cada ponto de vista é um mundo.

B

iólogo de formação, Humberto Maturana só começou a pensar em gestão empresarial após conhecer sua colega e sócia, Ximena Dávila, há 20 anos. Juntos, eles fundaram a Matríztica, empresa que se dedica a gerar e facilitar espaços de bem-estar e que se autodefinem como “uma escola de formação humana em diferentes áreas”. Para eles, só é possível compreender a existência humana se analisarmos o homem como um ser biológico-cultural. Nesta conversa com a pesquisadora Káritas Ribas, Maturana estava acompanhado do diretor-executivo da empresa, o sociólogo Sebastián Gaggero.

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Sebastián Gaggero


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NA OPINIÃO DE VOCÊS, QUAL O PAPEL DE UM GESTOR?

Sou biólogo e nunca, em meu trabalho científico, havia me dedicado ao assunto da gestão empresarial, de modo que tudo o que eu disser agora a esse respeito pertence ao campo da reflexão nos últimos 20 anos, desde a criação da Matríztica como uma escola de formação humana em diferentes áreas, como educação e organizações. Foi o encontro com minha colega Ximena Dávila, que trabalhou como consultora em grandes empresas, que motivou meu interesse pela gestão organizacional em todos os “níveis”. Isso aconteceu quando ela me mostrou que eu não poderia compreender o comportamento humano se não assumisse plenamente que o “cultural” não é um mero aspecto do nosso ser biológico, mas sim o fundamento do nosso viver como pessoas. Como resultado dessas conversas, e sob sua inspiração, fundamos a Matríztica, partindo do fato de que não podemos compreender a nossa existência humana sem reconhecer a unidade indissolúvel do nosso ser biológico-cultural. Assim, o nosso trabalho na Matríztica, a partir desse fundamento observacional do nosso viver e conviver humano, levou-nos a desenvolver uma visão e um entendimento da natureza do trabalho organizacional como um aspecto central de grande parte do nosso convívio, codesenhando processos de transformação e integração cultural nas organizações. Agora, junto com Sebastián Gaggero, nosso diretor-executivo, achamos que a resposta à sua pergunta pode ser resumida da seguinte forma:

Káritas Ribas

1) acreditamos que a tarefa do gestor, em qualquer organização, é a de coordenar os desejos das pessoas que trabalham com ele ou ela para que elas façam o que sabem fazer, de forma adequada e oportuna, por meio de conversas reflexivas e inspiradoras; 2) acreditamos que toda organização consiste em uma rede ou sistema de conversas interligadas, que coordenam as tarefas, operações e reflexões que a tornam um projeto comum; 3) acreditamos que, para que os itens acima sejam cumpridos na operação de uma organização, todas as pessoas que a compõem devem não só se sentir membros fundamentais dela, qualquer que seja a sua função, como também agir sempre de acordo com essa responsabilidade; 4) acreditamos que o nosso convívio humano se fundamenta, ao nascer, em uma disposição operacional inconsciente na confiança de que existimos em um contexto harmonioso de coerências sensoriais, operacionais e relacionais que nos acolhe, e que qualquer incoerência que surja em nossa ação nos diz que estamos confundindo domínios de ação; 5) acreditamos que vivemos um presente biológico-cultural, centrado na competição contínua, e não vemos que, ao fazê-lo, desvalorizamo-nos e desvalorizamos o outro, ao negá-lo em nosso desejo de ser melhor que ele ou ela, mostrando a nossa insegurança.

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EM QUAIS MODELOS OU PARADIGMAS SE BA-

O QUE DEVE ACONTECER NA GESTÃO DE UMA

SEIA A GESTÃO CONTEMPORÂNEA E QUAIS

ORGANIZAÇÃO PARA QUE ELA SEJA HUMA-

SÃO OS PROBLEMAS DESSES MODELOS?

NAMENTE ACOLHEDORA E EFICAZ NO CUM-

A competição é um modo de convívio em nosso presente cultural que aprendemos desde pequenos em nossa casa e na escola, a menos que vivamos em um ambiente familiar que não queira mantê-la e a evite, abrindo continuamente espaços nos quais apareça somente a colaboração. Mais que de modelos ou paradigmas, preferimos falar de modos de viver e conviver nas conversas e reflexões que são mantidas de uma geração para a outra na aprendizagem das crianças. Modos de conviver que, enquanto ocorrem em nosso “linguagear” como diferentes redes de conversas, são tratados como culturas diferentes, que em nossa autonomia reflexiva e de ação podemos escolher mudar. Podemos dizer que o principal elemento em uma organização é o modo de convívio cultural que escolhemos. Ele pode ser uma esfera de relacionamentos baseados na hierarquia, na obediência e na submissão; ou uma esfera em que são centrais a colaboração e o respeito mútuo – que fundamenta a orientação para a colaboração. E isso dependerá do que os seus fundadores queiram e da autonomia dos gestores que os guiam.

PRIMENTO DE SUAS TAREFAS, LIDERANÇA OU COINSPIRAÇÃO?

Quando falamos de liderança, confundimos a inspiração e o entendimento na condução das tarefas de uma organização com a autoridade e a obediência nesse ordenamento. O problema com a liderança é que o seu valor é necessariamente transitório e vem acompanhado pela tentação da apropriação do poder. Isso é evitado somente com a atribuição transitória das tarefas que definem o curso histórico de uma organização em uma abertura reflexiva no presente em mudança no qual vivemos. Se estivermos dispostos a refletir e questionar-nos sobre o bem-estar das pessoas que colaboram em uma organização, é


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fundamental deixar de lado as nossas certezas e permitir que os nossos colaboradores apareçam em toda a sua legitimidade. É preciso que o erro não seja punido e as pessoas, em suas vidas cotidianas, ampliem continuamente a sua autonomia reflexiva e de ação. Se perguntarmos a uma pessoa por que ela faz algo de determinada forma e ela responder “porque sempre foi assim”, está presa em uma esfera emocional na qual prevalece a obediência e não a sua autonomia reflexiva, que expande a inteligência e a criatividade. E é justamente a partir dessa autonomia reflexiva e de ação que ampliamos a consciência daquilo que queremos proteger. Somente essa ampliação da consciência permitirá distinguir e entender as consequências sistêmicas daquilo que fazemos e de como o fazemos na organização.

Káritas Ribas

O QUE É AMAR NO CONTEXTO DA GESTÃO HUMANIZADA DAS PESSOAS?

O amar surge na legitimidade do outro ou da outra. No contexto organizacional, será que estou disposto a ouvir os meus colaboradores, não a partir de uma teoria que me prende, mas a partir da candura que me convida a descobrir os critérios de validade a partir dos quais a pessoa explica as coerências do seu viver? Esse modo de ouvir abre a oportunidade de conversar, refletir e colaborar. Quando o que prevalece é a instrução e o apego rígido a um método, a pessoa desaparece como um ser humano criativo, porque o que se torna central para ela é aplicar a instrução recebida, mesmo com relutância, qualquer que seja a esfera onde ocorra (contábil, logística, financeira). Por isso, é importante ter tempo para que a conversa surja e tudo possa ser feito com abertura reflexiva e criatividade.

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QUAIS SÃO AS PRINCIPAIS COMPETÊNCIAS NECESSÁRIAS PARA UM GESTOR DE PESSOAS?

Mais do que competências regulamentadas, é necessário que o gestor tenha confiança em seu entendimento, que se permita refletir sobre suas ações e escolher o que for adequado e oportuno em cada instante, podendo inspirar os seus colaboradores. Quando isso acontece, esses têm liberdade para expressar o seu entendimento e escolher adequadamente o melhor em sua área de responsabilidade. Por essa razão, as competências não são um “em si”, são instrumentos operacionais que só podem ser utilizados por quem entende o que faz. E o outro aspecto central que queremos mencionar é que o saber sempre se refere a um fazer. Quando alguém diz que sabe algo, qualquer que seja o campo (filosófico, científico, econômico ou de gestão empresarial, por exemplo), sempre mostra o seu conhecimento com um fazer adequado. Por tudo o que foi dito, um gestor de pessoas deve ter um entendimento profundo do que nós humanos somos, como seres vivos e como pessoas.

COMO PREPARAR UM GESTOR DE PESSOAS?

Primeiramente, é necessário perceber que o mais fundamental em uma organização são as pessoas que a compõem. Em seguida, é preciso entender que os problemas de convívio não se devem à razão ou à inteligência. Na medida em que podemos conversar, somos todos inteligentes. Os conflitos humanos não são erros lógicos, mas ocorrem no encontro de desejos contraditórios, que só serão resolvidos em uma conversa com respeito mútuo, com tempo suficiente para ouvir-se e encontrar um propósito comum, caso se deseje conviver. Por fim, devemos entender a dor cultural que as pessoas experimentam dentro das organizações em razão da falta de respeito, dos abusos que sofrem e da insegurança diante da arrogância de quem se sente superior. A tarefa do gestor é observar as emoções que geram mal-estar e interferem na harmonia operacional e relacional, prejudicando a qualidade do trabalho. Para resolver essas dificuldades, o gestor deve se movimentar no sentido de ver o outro ou a outra como legítimo, ampliando a disposição para colaborar.


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Káritas Ribas

QUAIS SÃO AS MAIORES DIFICULDADES DE

O QUE É COLABORAÇÃO E POR QUE TRABA-

UM GESTOR?

LHAR DE FORMA COLABORATIVA?

Em nossa opinião, a impaciência e a arrogância o levam a não ouvir nem ver os seus colaboradores como pessoas inteligentes e criativas, porque ele não age no “deixar aparecer” do amar. Para ouvir, o gestor deve respeitar seus gerenciados, suas dificuldades, suas queixas, suas perguntas, suas propostas, que mostram o mundo em que eles vivem e o caminho para sair da encruzilhada emocional em que estão ou que sentem que pode aparecer. O gestor é mais do que um líder, ele abre o caminho para a autogestão a partir do entendimento e da responsabilidade, do fazer parte do projeto comum que integra como seu nicho ecológico, operacional e psíquico. É o caso, por exemplo, do ensino-aprendizagem de um instrumento musical, em que o professor nos guia, mostrando-nos a nossa postura e plasticidade corporal. A partir dessa percepção, vamos corrigindo e entrando em sintonia com as habilidades necessárias. Para isso, é fundamental perguntar-nos se faz sentido o que fazemos ou para onde queremos ir. E essa é a tarefa fundamental do gestor de uma organização.

Não há dúvida de que a colaboração dentro das equipes torna o trabalho mais interessante e inspirador, iluminando a imaginação no processo reflexivo e a criatividade no trabalho. Na Matríztica, observamos que o fato de sermos seres biológico-culturais mostra-nos que a espontaneidade da colaboração faz parte do nosso fundamento ancestral na constituição da linhagem Homo sapiens-amans amans. E isso é visível: a colaboração nos traz bem-estar, ampliando nossa visão e entendimento do que fazemos. O prazer que a colaboração nos proporciona nos remete simplesmente à origem do nosso modo de conviver no encanto da brincadeira infantil. Por isso, talvez, a colaboração nos convide a olhar e cultivar uma dinâmica relacional em que a presença legítima do outro é central – ouvir é sentir, ver é amar – e em que a conversa é realmente geradora de novos mundos, entre os quais escolhemos aquele no qual queremos viver.

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QUAL É A EMOÇÃO DE GERENCIAR?

O prazer de coinspirar e a segurança que aparece no gestor quando ele tem uma base profunda que lhe dá o entendimento do vivo e do humano.

COMO SE PREPARAR PARA SER UM GESTOR DE PESSOAS? COMO ACHA QUE AS EMPRESAS DEVERIAM REALIZAR ESSA PREPARAÇÃO?

Para fazer gestão de pessoas, o mais importante é, primeiramente, que o futuro gestor se preocupe com as pessoas, se comova com o que lhes acontece e tenha uma visão ampla de como olhar para a vida relacional dos que estão no seu processo gerencial. É importante, nesse sentido, que a preparação daqueles que irão ocupar esse papel tenha o apoio dos tomadores de decisões organizacionais. Portanto, a gestão de pessoas tem que fazer parte da estratégia nuclear do negócio das organizações, pois, caso contrário, os processos de conversação reflexivos e acompanhantes que o gestor de pessoas realiza não terão uma posição segura.


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Káritas Ribas

Káritas Ribas É filósofa, educadora e mestra em biologia cultural, tendo sido orientada pelo professor doutor Humberto Maturana.

Humberto Maturana É cofundador da Matríztica. Doutor em biologia pela Universidade de Harvard e pós-doutor pelo Instituto de Tecnologia de Massachusetts (MIT). Recebeu o Prêmio Nacional de Ciências, do Chile, em 1994. Desenvolve a biologia do conhecer, a biologia do amar e a biologia cultural.

Sebastián Gaggero É diretor-executivo na Matríztica. Sociólogo com ampla experiência em acompanhamento de transformação cultural em organizações e desenvolvimento de equipes de trabalho. Acompanha o desenvolvimento da biologia cultural desde a sua criação.

Nota 1

Matríztica é uma empresa fundada por Humberto Maturana e Ximena Dávila; é dedicada a gerar e facilitar espaços de bem-estar. Há 18 anos, destaca-se na vanguarda do desenvolvimento do conhecimento e da compreensão sobre a transformação e a integração cultural de pessoas e organizações.

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6. CONTEÚDO ON-LINE

ENSAIO FOTOGRÁFICO ENSAIO Rafael Roncato

A Revista Observatório Itaú Cultural é disponibilizada gratuitamente nas e-stores Amazon, Apple, Google, Iba, Kobo e Saraiva, além do site do Itaú Cultural (itaucultural.org.br/secoes/observatorio-itau-cultural/ revista-observatorio).


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RAFAEL RONCATO

Daniel Moreira, Casa das Rosas, coordenador de Programação Cultural

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

Caio Nunes e Daniel Moreira, Casa das Rosas, Programação Cultural


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RAFAEL RONCATO

Caio Nunes, Casa das Rosas, assistente de Programação Cultural

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Clóvis Carvalho, Casa das Rosas, diretor-executivo


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Marcelo Tápia, Casa das Rosas, diretor da Rede de Museus-Casas Literários

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Plínio Correa, Casa das Rosas, diretor financeiro


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RAFAEL RONCATO

Elicéia Amarante, Japan House SP, gerente financeira

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Felipe Arantes Cavalcante, Japan House SP, recepcionista xxxxxx


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RAFAEL RONCATO

Hiromi Sato, Japan House SP, coordenadora de Operações

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Laura Braga, Japan House SP, coordenadora de Mídias Sociais


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RAFAEL RONCATO

Marcelo Araújo, Japan House SP, presidente

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RAFAEL RONCATO

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Natasha Barzaghi Geenen, Japan House SP, diretora cultural


OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Felipe Arantes Cavalcante e Talita Sousa, Japan House SP, recepcionistas


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RAFAEL RONCATO

Talita Sousa, Japan House SP, recepcionista

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Amanda Marques Paschoal, Masp, orientadora de público


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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Cecília Winter, Masp, coordenadora de acervo


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RAFAEL RONCATO

Horrana de Kássia Santoz, Masp, assistente de Mediação e Programas Públicos

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Milton Carvalho, Masp, orientador de público


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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Tomás Toledo de Azevedo Marques, Masp, curador-chefe


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RAFAEL RONCATO

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Cibele Camachi, Sesc/SP, técnica de Programação do Núcleo Socioeducativo


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RAFAEL RONCATO

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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Edson Fernandes Machado, Sesc/SP, supervisor de Audiovisual


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OBSERVATÓRIO ITAÚ CULTURAL

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Emilly Kobauashi Tamayose, Sesc/SP, orientadora de público


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Felipe Mancebo, Sesc/SP, gerente da unidade Avenida Paulista


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Kiko Demarchi, Sesc/SP, supervisor de Serviços e Apoio às Atividades Programáticas


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Lilian Sarmento Sales, Sesc/SP, supervisora de Artes Visuais e Audiovisual


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Marli Pereira, Sesc/SP, analista administrativa


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Roberta Della Noce, Sesc/SP, coordenadora de Comunicação

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Rosi da Silva Santos, Sesc/SP, supervisora de Infraestrutura


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Daniele Carolina Lima Uchikawa, Sesi/SP, analista de Atividades Culturais

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RAFAEL RONCATO

Débora Viana, Sesi/SP, gerente-executiva de Cultura

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Eduardo Carneiro da Silva, Sesi/SP, supervisor de Programas Culturais


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RAFAEL RONCATO

Juliano Vinicius Moda, Sesi/SP, analista de Atividades Culturais

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Nilson dos Santos, Sesi/SP, encarregado/maquinista


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7. CONTEÚDO ON-LINE

RELATORIA DO SEMINÁRIO SEMINÁRIO OCORRIDO EM 14/11/2019


GESTÃO DE PESSOAS EM ORGANIZAÇÕES CULTURAIS

Ana Paula Sousa

ENCONTRO PROMOVE TROCAS ENTRE GESTORES E PESQUISADORES Ana Paula Sousa

Foi num encontro em forma de roda na Sala Multiúso do Itaú Cultural, em São Paulo, que alguns dos envolvidos na construção da Revista Observatório nº 26 trocaram impressões e informações sobre este assunto tão urgente quanto silenciado que é a gestão de pessoas em instituições culturais.

O

evento, realizado no dia 14 de novembro de 2019, teve um quê de sessão de psicanálise. Não no sentido estrito do método, porque não havia ali um terapeuta, mas em sua acepção popular. E o primeiro achado do encontro surgiu já na fala de abertura, feita por Eduardo Saron, diretor do Itaú Cultural. Saron pontuou, de saída, o quão importante era falarmos sobre um tema que, apesar de emblemático e fundamental para o dia a dia das instituições culturais, sempre foi deixado à sombra nas discussões a respeito do campo cultural. Virou um não dito. Ele entende que a gestão de pessoas deveria estar no centro do trabalho das organizações cujo papel é, essencialmente, formar

e transformar os indivíduos que passam por seus territórios. “Se o sujeito é a essência do nosso trabalho, parece-me ainda mais importante que trabalhemos os nossos próprios sujeitos”, refletiu Saron. “Se fomentamos a transformação da sociedade, não podemos nos esquecer de cuidar das pessoas que participam desse processo.” O ineditismo do encontro, que colocou numa mesma sala responsáveis pela gestão e pelos recursos humanos de variadas instituições, para Saron, é sintomático da pouca atenção que a cultura dá ao assunto. “Talvez este seja o primeiro dos alertas que este encontro traz: é preciso dialogar mais sobre o que é fazer gestão de pessoas numa orquestra

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como a Filarmônica de Minas Gerais, que tem corpos estáveis, ou no Sesc, que tem 8 mil funcionários”, disse, referindo-se a duas das instituições ali representadas. Saron recorreu a um dos princípios básicos da área de recursos humanos para pontuar um dos desafios da gestão nas instituições culturais: a liderança deve se dar pelo exemplo. “E aí já começa uma questão complexa, já que muitas vezes as lideranças, ao lidarem com os colaboradores, não são tão humanistas quanto quando pensam no público”, ponderou. Não se pode negar que a relação com os profissionais da área cultural carrega uma série de particularidades e nem sempre é simples. Se isso acontece, é em parte porque aqueles que dão à cultura um papel central em suas vidas tendem a desenvolver uma natureza crítica e questionadora. “Dialogar com o mundo da cultura é complexo. O questionamento e a criticidade são do nosso core e é comum que se queira sempre saber o porquê do porquê”, disse Saron, lamentando apenas que, por vezes, a criticidade gire no vazio. Justamente por isso, uma das metas de um gestor cultural deve ser incentivar a criticidade propositiva. “Às vezes, sinto que passo mais tempo realizando gestão de pessoas do que de projetos. Mas um bom serviço para o público exige pessoas que se sintam integradas e acolhidas.” E será que é assim que se sentem os trabalhadores da cultura? Em busca de respostas sobre quem são e o que desejam os líderes do setor, os pesquisadores Ricardo Augusto Alves de Carvalho e Sanyo Drummond Pires realizaram, para esta edição da Revista Observatório, um levantamento empírico que ouviu

18 pessoas de 14 instituições de Minas Gerais, São Paulo e Rio de Janeiro (ver página 142). No encontro, Carvalho, que é psicólogo, especialista em gestão pública e pós-doutor em arte e gestão, e Pires, também psicólogo, mestre em psicologia social e doutor em avaliação psicológica, compuseram a mesa Perfil das Lideranças em Gestão Cultural: um Recorte no “Eixo da Produção” Brasileiro. Durante o debate, eles procuraram esmiuçar as bases teóricas da pesquisa que teve como norte a seguinte pergunta: “O que é o afazer cultural?”. Para levar a cabo tal investigação, eles lançaram mão do instrumental psicanalítico. Era importante oferecer aos entrevistados a possibilidade de se manifestarem não só a partir do que pensam, mas a partir do que vivenciam em suas experiências. “Procuramos recuperar a dimensão do olhar”, explicou Carvalho. Para isso, a dupla buscou, primeiramente, estabelecer uma relação entre a trajetória dos líderes e o papel por eles ocupado naquele momento. “Conhecer o percurso do indivíduo é fundamental para a psicanálise”, pontuou Carvalho, para mais adiante revelar que dois dos elementos presentes nessas trajetórias eram o desejo e a motivação. Outro aspecto fundamental da pesquisa foi desconstruir um lugar-comum desse campo: o de que se tem, de um lado, o artista criativo e, de outro, o gestor burocrático. Em busca de uma imagem capaz de sintetizar a convivência entre aqueles que compõem uma instituição cultural, Carvalho colocou na roda “O Dilema do Ouriço” (1851), parábola escrita por Arthur Schopenhauer e retomada por Sigmund Freud em texto de 1921:1


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Num dia frio de inverno, um grupo de porcos-espinhos se aconchegou bastante para se esquentar mutuamente e não morrer de frio. Contudo, logo sentiram os espinhos uns dos outros, o que os fez novamente se afastarem. E quando a necessidade de aquecimento os aproximava de novo repetia-se o segundo mal, de modo que eram impelidos de um sofrimento para outro até acharem uma distância média que os permitia suportar o fato da melhor maneira.

Carvalho e Pires tomaram emprestada essa dimensão da dialética de Freud – a da possibilidade de aproximação entre os espinhos – para tentar compreender a possibilidade de interseção entre a liderança e o que eles chamam, a partir da definição de Marcel Mauss,2 de “fato cultural total”. Ou, em outras palavras, a possibilidade de convivência entre as dimensões da arte e da razão. O objetivo do estudo era traçar um perfil amplo, incluindo no levantamento instituições diferentes tanto do ponto de vista de atividade quanto do de recursos financeiros e estrutura de pessoal. Entre elas estão os grupos Galpão e Corpo, de Minas Gerais, a escola de samba Unidos da Tijuca e os museus do Amanhã e de Imagens do Inconsciente, do Rio, e a Fundação Bienal, a Mostra Internacional de Cinema e o Instituto Tomie Ohtake, de São Paulo. O que ficou claro, tanto na pesquisa feita com essas instituições quanto na roda de conversa, é que, na cultura, a razão não está jamais desprovida de utopia. Durante o trabalho, para trazer à tona a dimensão do ideal, os pesquisadores perguntaram: o que você, gestor, faz para pensar o impensável e tornar

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possível o impossível? As respostas caíram no terreno da paixão. Pires chamou a atenção ainda para o fato de que a pesquisa encontrou uma percepção positiva da gestão. Apesar de haver uma diferença entre a percepção do que é gestão e do que é trabalho criativo, não havia oposição entre os dois universos. A gestão portava, além disso, as sensações de pertencimento à comunidade, de afetividade e de legado. “A gestão pode ser entendida como um saber entre outros”, pontuou Pires. “E a liderança tem um papel fundamental em não deixar que um discurso se hegemonize em detrimento dos outros.” Outro aspecto interessante que emergiu da pesquisa é que os líderes entrevistados não tinham formação acadêmica voltada para o cargo. O gestor do Grupo Corpo, por exemplo, disse que aprendeu administração na horta de seu pai. Na construção teórica, Carvalho e Pires chegaram a duas categorias: uma baseada no conceito weberiano de apropriação burocrática3 e outra originada na noção de inconsciente estético, de Rancière.4 Pode-se, portanto, dizer que é no encontro entre racionalidade e paixão que se constrói a gestão da cultura. Assim, mesmo em um ambiente essencialmente voltado para a criação, a burocracia não deve ser combatida. Ela é, ao contrário, algo a ser “deglutido e incorporado”, nas palavras de Pires. Mas será que os profissionais da cultura têm essa clareza ou a desconfiança em relação à burocracia persiste? Como observou Luciana Guimarães, superintendente-executiva da Fundação Bienal de São Paulo (ver artigo na página 62), talvez exista, inclusive, o desejo das próprias lideranças de

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não serem vistas como os burocratas, como aqueles que vão dizer o que não pode ser feito – eventualmente, em oposição a determinado processo artístico. Para quem estava na plateia, a fala dos pesquisadores reverberou de maneiras distintas. Diomar Silveira, que foi entrevistado para o trabalho como líder da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, trouxe a questão do delicado equilíbrio que é gerir uma instituição que lida com algo tão particular quanto a música clássica. “Venho da experiência de se fazer música clássica, ou seja, cultura de excelência, de modo inovador, por meio da parceria público-privada. Nós saímos da polaridade de viver só do Estado ou só do capital privado. Existe, no nosso caso, a dimensão de compreender o que significa transitar por esses novos espaços para fazer música clássica de excelência. E eu tenho que falar com o olhar apaixonado desse novo modelo”, disse, puxando o fio da conversa para a paixão. Silveira acredita numa liderança apaixonada, que inspire as pessoas a conviverem mesmo com seus “espinhos”. É, porém, importante que isso tudo se dê sem prejuízo dos mecanismos de autoridade. “O que eu entendi [da fala de Carvalho e Pires] é que nosso grande desafio é administrar gente num mundo multipolar. E administrar gente não é administrar dinheiro. É estar diante do imponderável.” E esse imponderável tem seu custo. Andreia Nogueira, gerente do Centro de Pesquisa e Formação do Sesc, fez menção ao etéreo e movediço e (se) perguntou: “O gestor cultural vira noites em montagens e lida, como todos, com esse universo digital movediço. Como

lidar com esse tempo que perpassa os espaços em que atuamos? Qual é a relativização que temos de fazer, ainda mais numa área tão apaixonante? Como equilibrar o cotidiano?”. Sabendo que essa é uma pergunta para a qual não há resposta, Carvalho arriscou: “Acho que o tempo da cultura não é o tempo da métrica teluriana ou do relógio. É um outro tempo, que exige um fluxo da atividade criativa”. O psicólogo Sigmar Malvezzi (ver página 112), por sua vez, disse ter captado da fala dos pesquisadores a ideia de que a gestão cultural é um esforço da capacitação para a manifestação do inconsciente por meio de dois mecanismos: a paixão e a estética. Recorrendo ao conceito de desencantamento do mundo, de Max Weber, Carvalho disse, na sequência da reflexão de Malvezzi, que o gestor cultural tem o desafio, na apropriação estética, de reencantar o mundo. Mas como realizar tudo isso na prática da gestão e em meio às demandas do dia a dia? Na roda de conversa Conceitos e Ferramentas de Gestão de Pessoas: Perspectivas e Desafios, Érica Buganza, consultora de pessoas do Itaú Cultural, procurou tatear as respostas para essa pergunta em um diálogo com Andreas Auerbach, CEO e cofundador da Nexo Hw, e Renata Tubini, executiva de recursos humanos (ver artigo na página 56). Renata foi puxada para o setor cultural após deixar um cargo de executiva no Banco Itaú. “Sou apaixonada por gestão e por desenvolvimento de pessoas. Sou especialista em caminhar entre espinhos”, brincou. Andreas definiu-se como alguém que, hoje, se dedica a entender como os comportamentos emergentes impactam nas relações de trabalho.


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Durante o encontro, o CEO da Nexo Hw apresentou seu “mapa do propósito” (ver páginas 138/139), que mostra as forças presentes em todo trabalho e empreendimento. Enquanto se têm, de um lado, a transgressão e a abundância como molas propulsoras da criatividade, do outro estão as forças da manutenção e da escassez. “Do encontro da gestão e da eficiência com a criação e a inspiração nasce o sol da prosperidade”, explicou. “Quando falamos em instituições, é importante estarmos nesses dois universos.” Ele também disse que, em todas as instituições, o elemento que mais drena energia é o medo. A capacidade de propiciar às equipes segurança psicológica é, portanto, algo de grande valor. Já Renata Tubini ressaltou que, para navegar no mar das dificuldades, é fundamental que se tenha o que ela chama de propósito. “O quanto aquilo que eu faço traz algo para a minha vida? O que é importante para mim neste momento? A remuneração tem que ser justa, mas a alegria não depende só disso”, frisou. Lembrando que, como apontou a pesquisa feita por Carvalho e Pires, os líderes do setor cultural não necessariamente passam por um processo de formação, Érica Buganza perguntou aos debatedores que características alguém que assuma uma posição de liderança deveria desenvolver. “O que, na cultura, não difere do mundo corporativo é que quem não foi preparado vai ser defrontado com algo difícil de se lidar”, respondeu Renata, para em seguida listar o autoconhecimento e a comunicação não violenta como características intrínsecas ao bom gestor. “O gestor precisa aprender a humanizar a relação e a criar uma agenda de valorização de pessoas.”

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Na visão de Auerbach, é necessário, sobretudo, que se busque uma gestão de pessoas mais quântica, menos binária, ou seja, que não enxergue um funcionário como sendo ou introspectivo ou expansivo, por exemplo. Tanto Renata quanto Auerbach entendem que a escassez de recursos e de uma estrutura mais sólida, comum entre empresas e instituições do campo cultural, não justifica o descuido com a gestão de pessoas. Auerbach cita a ferramenta do feedback como um poderoso recurso à mão de todos: “Feedback não custa nada. Ele é a arte de conversar. O mais importante é a conexão de pessoas e o desejo genuíno de se buscar a evolução”. E a evolução passa, necessariamente, pela conquista da autonomia do sujeito. Nesse sentido, como disse Saron, a democratização não pode ser a grande meta da cultura. Ela é um degrau dentro de outro, mais amplo. Relembrando o artigo 27 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, que diz que todas as pessoas têm direito a participar da sua vida cultural e da vida cultural do outro, o diretor do Itaú Cultural propôs a seguinte reflexão: “Para promover a participação, você tem que permitir que o sujeito pense por si mesmo. E, se pensamos assim para o campo da cultura, por que não pensamos assim para quem trabalha na cultura?”. Se a psicanálise pode ser compreendida como um processo ao longo do qual, ao falar e olhar para si, as pessoas desvendam o que se esconde por trás de suas próprias práticas e conflitos, não é demais dizer que o encontro, marcado por perguntas desafiantes e respostas autorreflexivas, levou-nos todos ao divã.

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Ana Paula Sousa É jornalista especializada em cinema e políticas culturais. Doutora em sociologia da cultura pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e mestra em indústrias culturais e criativas pelo King’s College, de Londres.

Notas

1 FREUD, S. Psicologia das massas e análise do eu. São Paulo: Companhia das

Letras, 2013. 2

O antropólogo francês Marcel Mauss introduziu a dimensão subjetiva na análise dos sistemas sociais, passando a considerar o caráter inconsciente das práticas e dos costumes.

3

Para Max Weber, o grande teórico da ideia de burocracia, a modernidade é o produto de processos cumulativos de racionalização que se deram nas esferas econômica, política e cultural.

4

Jacques Rancière defendia que a estética não designa a ciência ou a disciplina que se ocupa da arte. A estética designa, para ele, um modo de pensamento que se desenvolve sobre as coisas da arte e que procura compreender em que consiste a arte enquanto coisa do pensamento.


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Marli Pereira, Sesc/SP, analista administrativa

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COLEÇÃO OS LIVROS DO OBSERVATÓRIO

eCultura – Utopia Final Teixeira Coelho

A Economia Artisticamente Criativa Xavier Greffe

A Singularidade Está Próxima Raymond Kurzweil

O Lugar do Público Jacqueline Eidelman, Mélanie Roustan e Bernardette Goldstein

A Máquina Parou E. M. Forster

Identidade e Violência: a Ilusão do Destino Amartya Sen

Com o Cérebro na Mão Teixeira Coelho


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GESTÃO DE PESSOAS EM ORGANIZAÇÕES CULTURAIS

As Metrópoles Regionais e a Cultura: o Caso Francês, 1945-2000 Françoise Taliano-des Garets

Cultura e Estado. A Política Cultural na França, 1955-2005 Teixeira Coelho

Afirmar os Direitos Culturais – Comentário à Declaração de Friburgo Patrice Meyer-Bisch e Mylène Bidault

Cultura e Educação Teixeira Coelho (org.)

Arte e Mercado Xavier Greffe

Saturação Michel Maffesoli


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O Medo ao Pequeno Número Arjun Appadurai

Leitores, Espectadores e Internautas Néstor García Canclini

A Cultura e Seu Contrário Teixeira Coelho

A República dos Bons Sentimentos Michel Maffesoli

A Cultura pela Cidade Teixeira Coelho (org.)

Cultura e Economia Paul Tolila


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SÉRIE RUMOS PESQUISA Os Cardeais da Cultura Nacional: o Conselho Federal de Cultura na Ditadura Civil-Militar − 1967-1975 Tatyana de Amaral Maia

Por uma Cultura Pública: Organizações Sociais, Oscips e a Gestão Pública Não Estatal na Área da Cultura Elizabeth Ponte

Discursos, Políticas e Ações: Processos de Industrialização do Campo Cinematográfico Brasileiro Lia Bahia

A Proteção Jurídica de Expressões Culturais de Povos Indígenas na Indústria Cultural Victor Lúcio Pimenta de Faria


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AS REVISTAS

Revista Observatório Itaú Cultural No 25 – Sertões: imaginários, memórias e políticas

Revista Observatório Itaú Cultural No 21 – Política, Transformações Econômicas e Identidades Culturais

Revista Observatório Itaú Cultural No 24 – Arte, Cultura e Educação na América Latina

Revista Observatório Itaú Cultural No 20 – Políticas Culturais para a Diversidade: Lacunas Inquietantes

Revista Observatório Itaú Cultural No 23 – Economia da Cultura: Estatísticas e Indicadores para o Desenvolvimento

Revista Observatório Itaú Cultural No 19 – Tecnologia e Cultura: uma Sociedade em Redes

Revista Observatório Itaú Cultural No 22 – Memórias, Resistências e Políticas Culturais na América Latina


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GESTÃO DE PESSOAS EM ORGANIZAÇÕES CULTURAIS

Revista Observatório Itaú Cultural No 18 – Perspectivas sobre Política e Gestão Cultural na América Latina

Revista Observatório Itaú Cultural No 15 – Cultura e Formação

Revista Observatório Itaú Cultural No 17 – Livro e Leitura: das Políticas Públicas ao Mercado Editorial

Revista Observatório Itaú Cultural No 14 – A Festa em Múltiplas Dimensões

Revista Observatório Itaú Cultural No 16 – Direito, Tecnologia e Sociedade: uma Conversa Indisciplinar

Revista Observatório Itaú Cultural No 13 – A Arte como Objeto de Políticas Públicas


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Revista Observatório Itaú Cultural No 12 – Os Públicos da Cultura: Desafios Contemporâneos

Revista Observatório Itaú Cultural No 9 – Novos Desafios da Cultura Digital

Revista Observatório Itaú Cultural No 11 – Direitos Culturais: um Novo Papel

Revista Observatório Itaú Cultural No 8 – Diversidade Cultural: Contextos e Sentidos

Revista Observatório Itaú Cultural No 10 – Cinema e Audiovisual em Perspectiva: Pensando Políticas Públicas e Mercado

Revista Observatório Itaú Cultural No 7 – Lei Rouanet. Contribuições para um Debate sobre o Incentivo Fiscal para a Cultura


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GESTÃO DE PESSOAS EM ORGANIZAÇÕES CULTURAIS

Revista Observatório Itaú Cultural No 6 – Os Profissionais da Cultura: Formação para o Setor Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural No 3 – Valores para uma Política Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural No 5 – Como a Cultura Pode Mudar a Cidade

Revista Observatório Itaú Cultural No 2 – Mapeamento de Pesquisas sobre o Setor Cultural

Revista Observatório Itaú Cultural No 4 – Reflexões sobre Indicadores Culturais

Revista Observatório Itaú Cultural No 1 – Indicadores e Políticas Públicas para a Cultura


Esta revista utiliza as fontes Sentinel e Gotham sobre o papel Pólen Bold 90 g/m2. O pantone 382 U foi o escolhido para esta edição. Duas mil unidades foram impressas pela gráfica Ipsis em São Paulo, no mês de novembro do ano de 2019.



Realização

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