O relato memorialista de Zélia Gattai

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RELATO MEMORIALISTA: ZÉLIA GATTAI

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ARTES VISUAIS



guia de Ă­cones ler

assistir, apresentar (vĂ­deo)

pesquisar, aprofundar, procurar

analisar, questionar, elaborar hipĂłteses, comentar (questionando)

apresentar, relatar, compartilhar em voz alta

comentar, explicar discutir, conversar trabalho interdisciplinar



título

Relato Memorialista: Zélia Gattai apresentação O registro da memória é fundamental no momento em que vivemos, já que tudo se torna transitório. A memória da infância e dos lugares visitados auxilia o reconhecimento da história de vida de uma pessoa. Nesse sentido, o relato memorialista de Zélia Gattai vem ao encontro da construção da autora como pessoa e remonta ao desenvolvimento da cidade de São Paulo. Em Anarquistas, Graças a Deus vemos, pelos olhos da menina Zélia, a paisagem urbana se modificando, e acompanhamos a vida de uma família de imigrantes italianos que vieram ao Brasil “em busca da terra de sonhos”. Por meio do relato autobiográfico, o passado se presentifica. O uso de sequências descritivas reconstrói os espaços e retrata imagens que acompanharam a vida da autora.

objetivos ••Reconhecer as características do gênero relato memorialista; ••Reconhecer o relato e a pintura como forma de representação do espaço; ••Conhecer o contexto histórico da cidade de São Paulo no início do século XX; ••Produzir um relato de infância.

áreas do conhecimento

segmento

Literatura, história, geografia e artes visuais.

Ensino Fundamental I e II.

duração

recursos necessários

4 aulas.

Computador ou tablet com acesso à internet.


desenvolvimento 1º MOMENTO

Aproximação com o gênero Inicie a aula fazendo a leitura compartilhada do seguinte trecho de Anarquistas, Graças a Deus.

Alameda Santos Número 8

Num casarão antigo, situado na alameda Santos número 8, nasci, cresci e passei parte de minha adolescência. Ernesto Gattai, meu pai, alugara a casa por volta de 1910, casa espaçosa, porém desprovida de conforto. Teve muita sorte de encontrá-la, era exatamente o que procurava: residência ampla para a família em crescimento e, o mais importante, o fundamental, o que sobretudo lhe convinha era o enorme barracão ao lado, uma velha cocheira, ligada à casa, com entrada para duas ruas: alameda Santos e rua da Consolação. Ali instalaria sua primeira oficina mecânica. Impossível melhor localização! Para quem vem do centro da cidade, a alameda Santos é a primeira rua paralela à avenida Paulista, onde residiam, na época, os ricaços, os graúdos, na maioria novos-ricos. Da praça Olavo Bilac até o largo do Paraíso, era aquele desparrame de ostentação! Palacetes rodeados de parques e jardins, construídos, em geral, de acordo com a nacionalidade do proprietário: os de estilo mourisco, em sua maioria, pertenciam a árabes, claro! Os de varandas de altas colunas, que imitavam os palazzos romanos antigos, denunciavam – logicamente – moradores italianos. Não era, pois, difícil, pela fachada da casa, identificar a nacionalidade do dono. O proprietário do imóvel que meu pai alugou era um velho italiano, do Sul da Itália, Rocco Andretta, conhecido por seu Roque e ainda, para os mais íntimos, por tzi Ró (tio Roque). Dono de uma frota de carroças e burros para transpor-

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Zélia Gattai In: Anarquistas, Graças a Deus. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.


tes em geral, fora intimado pela prefeitura a retirar seus animais dali; aquele bairro tornava-se elegante, já não comportava cocheiras e moscas. O velho Rocco fizera imposições ao candidato: reforma e limpeza do barracão, pinturas e consertos da casa por conta do inquilino. Dona Angelina, minha mãe, assustou-se: gastariam muito dinheiro, um verdadeiro absurdo! Onde já se vira uma coisa daquelas? Velho explorador! Por que o marido não comprava um terreno em vez de gastar as magras economias em reformas de casa alheia? E o aluguel? Uma exorbitância! Como arranjar tanto dinheiro todos os meses? Onde? Como? Mas ela sabia que não adiantava discutir com o marido. Considerava-o teimoso e atrevido. O vocabulário de dona Angelina era reduzido – tanto em português como em italiano, sua língua natal –, não sabia expressar-se corretamente; por isso deixava de empregar, muitas vezes, a palavra justa, adequada para cada situação. Usava o termo “atrevimento” para tudo: coragem, audácia, heroísmo, destemor, obstinação, irresponsabilidade e atrevimento mesmo. Somente conhecendo-a bem se poderia interpretar seu pensamento, saber de sua intenção, se elogiava ou ofendia. No caso da reforma em casa alheia, não havia a menor dúvida, ela queria mesmo desabafar, chamar o marido de irresponsável: “Um atrevido é o que ele é!”, disse e repetiu.

Após a leitura, ressalte as características do casarão da alameda Santos. Identifique a sequência descritiva utilizada para a visualização dessa casa ampla, que logo receberia toda a família de Zélia. Observe o fato de o dono do imóvel ter de retirar os animais daquele lugar por conta da mudança urbana da região. Comente com os alunos (se não forem de São Paulo) que esta região hoje compõe o grande centro comercial da cidade de São Paulo, juntamente com a avenida Paulista. Informe que restam poucos casarões, pois foram substituídos por prédios comerciais, shoppings e apartamentos. Retome o quarto parágrafo e discuta a ideia do “desparrame de ostentação”, atentando para o fato de as casas terem uma fachada de acordo com a nacionalidade do dono. Além disso, converse sobre o contexto histórico da São Paulo do início do século XX, mostrando, por exemplo, que o ofício do proprietário do casarão em que a família Gattai moraria era ser dono de uma frota de carroças e burros para transportes em geral.

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Você pode propor ao professor de história ou geografia um trabalho interdisciplinar para que os alunos conheçam a história do desenvolvimento da cidade de São Paulo na década de 1920, já que este livro traz o olhar de quem viveu as mudanças ocorridas na paisagem urbana e nas questões econômicas. Também é possível aprofundar os estudos sobre as ideias anarquistas no país.

2º MOMENTO

Apresentando Zélia Gattai Inicie a aula apresentando Zélia Gattai. Visite o verbete na Enciclopédia Itaú Cultural e comente sobre a importância da autora para a literatura brasileira. Apresente o vídeo da Fundação Casa de Jorge Amado, no qual a autora fala sobre como se tornou escritora e porque decidiu escrever o livro Anarquistas, Graças a Deus. Em seguida, peça para que os alunos procurem no dicionário a palavra anarquismo, atentando para o significado da expressão anarquismo socialista:

anarquismo s. m. (1871 cf. DV) 1 FIL HIST POL teoria social e movimento político, com presença atuante na história ocidental durante o sXIX e na primeira metade do sXX, que sustenta a ideia de que a sociedade existe de forma independente e antagônica ao poder exercido pelo Estado, sendo este considerado dispensável e até mesmo nocivo ao estabelecimento de uma autêntica comunidade humana [...] a. socialista FIL HIST POL vertente clássica e hegemônica do anarquismo teórico e prático que preconiza a substituição da propriedade privada e do poder estatal por uma organização social baseada na coletivização dos meios de produção, na democracia direta (não representativa), e na autonomia política e econômica de pequenas unidades confederadas [...]

Explique que o pai de Zélia era anarquista no sentido político, por isso decidiu, baseado em princípios, morar numa casa alugada, já que era contra a propriedade privada. Converse com os alunos sobre o fato de o relato autobiográfico trazer o registro de lugares, pessoas e apresentar um retrato da

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Antônio Houaiss e Mauro de Salles Villar In: Dicionário Houaiss da Língua Portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. p. 204.


época. Em seguida, faça uma leitura compartilhada com os alunos de outro relato de Zélia Gatai.

Os Automóveis Invadem a Cidade

Naqueles tempos, a vida em São Paulo era tranquila. Poderia ser ainda mais, não fosse a invasão cada vez maior dos automóveis importados circulando pelas ruas da cidade; grossos tubos, situados nas laterais externas dos carros, desprendiam, em violentas explosões, gases e fumaça escura. Estridentes fonfons de buzinas, assustando os distraídos, abriam passagem para alguns deslumbrados motoristas que, em suas desabaladas carreiras infringiam as regras de trânsito, muitas vezes chegando ao abuso de alcançar mais de 20 quilômetros à hora, velocidade permitida apenas nas estradas. Fora esse detalhe, o do trânsito, a cidade crescia mansamente. Não havia surgido ainda a febre dos edifícios; nem mesmo o Prédio Martinelli – arranha-céu pioneiro de São Paulo, se não me engano do Brasil – fora ainda construído. Não existia rádio, e televisão, nem em sonhos. Não se curtia som em aparelhos de alta-fidelidade. Ouvia-se música em gramofones de tromba e manivela. Havia tempo para tudo, ninguém se afobava, ninguém andava depressa. Não se abreviavam com siglas os nomes completos das pessoas e das coisas em geral. Para que isso? Por que o uso de siglas? Podia-se dizer e ler tranquilamente tudo, por mais longo que fosse o nome, tudo por extenso – sem criar equívocos – e ainda sobrava tempo para ênfase, se necessário fosse.

Zélia Gattai In: Anarquistas, Graças a Deus. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.

Os divertimentos, existentes então, acessíveis a uma família de poucos recursos como a nossa, eram poucos. Os valores daqueles idos, comparados aos de hoje, no entanto, eram outros; as mais mínimas coisas, os menores acontecimentos, tomavam corpo, adquiriam enorme importância. Nossa vida simples era rica, alegre e sadia. A imaginação voando solta, transformando tudo em festa, nenhuma barreira a impedir meus sonhos, o riso aberto e franco. Os divertimentos, como já disse, eram poucos, porém suficientes para encher o mundo.

Peça para que os alunos identifiquem como era a cidade de São Paulo nessa época, segundo o relato de Zélia. Verifique se comentam sobre a chegada dos automóveis, sobre a velocidade atingida pelos carros, considerada alta pela narradora. O que os carros trouxeram para a pacata cidade? Converse sobre a ausência da televisão e imaginem como seria o dia a dia das pessoas da época. Como era a agitação da cidade? Por que Zélia comenta a respeito da falta de abreviatura?

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Peça para que os alunos relatem um pouco da infância de cada um e solicite que os demais ouçam o colega para que depois possam comparar seus relatos com o de Zélia. Chame a atenção para o último parágrafo, no qual a autora coloca que a vida era simples e rica, discutindo com a turma qual o sentido desses dois adjetivos.

3º MOMENTO

Outras leituras da cidade Converse com os alunos sobre a relação entre a chegada dos automóveis e o crescimento da urbanização da cidade. Em seguida, peça aos alunos que pesquisem uma imagem (pode ser pintura, grafite, fotografia etc.) que represente elementos da cidade atualmente. Eles farão uma breve apresentação na aula seguinte.

4º MOMENTO

Fechamento Agora é a vez de os alunos escolherem um acontecimento da infância para que possam narrá-lo. Apresente alguns temas possíveis como os vistos no livro da autora: a rua, a casa, a chegada dos automóveis. Pode-se pensar em aniversários, nascimentos, perdas, escola, entre outros. Quando finalizarem a escrita, peça que compartilhem, em voz alta, com os colegas da classe.

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reflexão final

A

avaliação dos alunos pode ser realizada com base no envolvimento em classe e nos trabalhos propostos. Pelo estudo da obra é possível compreender o que é o gênero memorialista, como era a São Paulo do início do século XX, suas transformações políticas, econômicas e sociais. A atividade contribui para a percepção de que a reconstrução histórica de um período pode partir de vivências pessoais e possibilita que os alunos registrem suas memórias.

referências HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. FUNDAÇÃO Casa de Jorge Amado. Site oficial. Disponível em: <http://www. jorgeamado.org.br/>. Acesso em: jan. 2018. GATTAI, Zélia. Anarquistas, graças a Deus. Rio de Janeiro: 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. ZÉLIA Gattai. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2018. Disponível em: <http://enciclopedia.itaucultural.org. br/pessoa289864/zelia-gattai>. Acesso em: jan. 2018. Verbete da Enciclopédia. ISBN: 978-85-7979-060-7.

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núcleo enciclopédia Gerência Tânia Rodrigues Coordenação Glaucy Tudda Equipe Camila Nader Elaine Lino Lucas Rosalin (estagiário)

núcleo comunicação Gerência Ana de Fátima Souza Coordenação Carlos Costa Direção de Arte Arthur Costa Luciana Orvat (terceirizada) Projeto Gráfico Serifaria Produção Editorial Victória Pimentel


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