pontilhados: pesquisas da cena universitária

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pontilhados pesquisas da cena universitária

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Sumário

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Texto institucional Galiana Brasil

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Por sob a_ponte se tecem trilhos para um presente do futuro Danieli Balbi Felipe Sales Renata Pimentel Vicente Concilio

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GiraDramatúrgica ou aquilombamentos e escrevivências por e entre dramaturgas/os/es negras/os/es Carlos Alberto Mendonça Filho

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Jogo, corpo e imagem: entre o tabuleiro e o teatro Christian Alexsander Martins

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A dramaturgia da luz na performance cenográfica inspirada na canção “eutanásia” da banda supercombo

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Crislene Jardim de Almeida

Performatividade como chave para improvisação: uma cartografia (auto)etnográfica de um ator-improvisador-performer

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Edgar Vicente Quintanilha da Rocha

A dramaturgia corporal no trabalho de composição do ator – o corpo que opera sobre imagens e gera afetos

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Guilherme Martins Moreira

FIM. Alini Maria Bianco Isabella Cristina de Azevedo e Mello Lucas de Souza Ribeiro

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Sumário

\184 Poéticas do “entre” e as rachaduras do professorarteatrar no mundo de 2020 Jocteel Jonatas de Salles

\208 A videoperformance como mídia antirracista Lucas Antonio Bebiano

\232 Documentação e registro: trajes de cena na companhia de teatro da ufba Lucas Souza Oliveira

\248 Anatomia da inquietação Luísa Ferrari Capistrano de Mesquita

\272 Sobre_carregar pai_sagens: relato de uma criação compositiva em isolamento Bianca Alves Marquetto Santos Milena Plahtyn Fernandes Vinícius Augusto Précoma Vinicius Medeiros dos Santos 4


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Fim de tempo \292 Raimundo Kleberson de Oliveira Benicio

O homem que era só metade: \308 reflexões sobre os diálogos relacionais na criação teatral em espaços urbanos Raphael Bernardo dos Santos

Como a palavra amor sai \336 naturalmente das nossas bocas Rúbia Sousa da Silva

A poética dos elementos e as \362 epistemologias do sul Thazio Silva Bezerra de Menezes

Ficha técnica \386

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O projeto a_ponte: cena do teatro universitário nasceu em 2018 com o propósito de mobilizar a produção cênica de universidades e escolas técnicas em âmbito nacional. A ação contribui para a ampliação das potências dos trabalhos gerados em processos de formação, proporcionando encontro e intercâmbio de experiências éticas, poéticas e libertadoras a estudantes das cinco regiões do país. Ao inaugurarmos, em 2020, a chamada para trabalhos científicos no âmbito da graduação, ampliamos nossa mirada para o diálogo com a escrita acadêmica em uma fase extremamente producente de estudantes para que se estimulem os caminhos da problematização e do questionamento na busca do saber científico. Desta forma, arte e ciência se envolvem, alargando, até mesmo, os diálogos, a fim de que se ilumine o futurismo das ancestralidades originárias. Nesta publicação, as vozes ecoam pensares acerca das perguntas que nortearam os minicursos da edição passada e versam em torno da necessidade de uma perspectiva plural na dramaturgia, no diálogo com a produção para a infância, na suposição da existência de uma cena posicionada como queer, na discussão do corpo/voz na virtualidade e em torno das poéticas de composição, como a indumentária. Para a próxima chamada, ampliaremos essa porta de entrada, sem delimitação de tema e aberta a todos os cursos de graduação em artes e áreas afins que tenham como reflexão as artes da cena. Ressaltamos a perspicácia das antenas de captação do momento atual, através das torções nos discursos e referenciais de muitos trabalhos em razão das necessidades geradas pela situação pandêmica, aspecto apurado no texto de apresentação da banca organizadora desta edição, a quem agradecemos a valorosa atuação, os olhares marcados pela escuta pedagógica e o entusiasmo no diálogo com os trabalhos.

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Agradecemos também e parabenizamos os estudantes deste primeiro caderno de textos acadêmicos, que inscrevem, com suas indagações e seus desejos de aprofundamento, uma espécie de memória coletiva de um tempo que certamente marca o processo de formação e expressão nas artes da cena de uma forma irreversível. Lembrando-nos, ainda, que tudo é cíclico e há de se mirar adiante, afinal, nas sábias palavras do poeta italiano Carlo Levi, “o futuro tem um coração antigo”.

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foto: Ênio Cesar

Galiana Brasil gestora do Núcleo de Artes Cênicas Itaú Cultural


por sob a_ponte se tecem trilhos para um presente do futuro Foi sempre mantendo as antenas atentas ao elástico contínuo do tempo – essa instância codificada por sistemas humanos, que todos sentimos, mas não conseguimos apaziguar em uma definição que abarque suas nuances tantas – que nos parece ter se dado o nascedouro de um projeto como a_ ponte: pensar o teatro nas escolas, nos espaços formais que se propõem a preparar atrizes e atores, professoras e professores das artes da cena. E a inquietude que contamina espíritos e corpos em busca também se espalha e precisa ser a tonalidade para que se siga em constante reinvenção. Se “viver é perigoso”, como já ensinou João Guimarães Rosa, o ano de 2020 trouxe ao cenário ingredientes de gosto ácido e forte: um vírus em escala mundial, forçando mudanças e adaptações urgentes. Se aprendemos algo? Certamente há quem apenas sobreviva sem muito refletir, quem escape aos eventos e siga alienado; tragicamente, há os que não seguirão entre nós... E, certamente, também há quem seguirá. E a estes é dada a tarefa de fazer ainda mais perguntas, contorcendo-se em movimentos imprevistos de um roteiro de susto, de sobressalto. Sim, sempre é assim estar vivo, mas há cenários e dramaturgias em que o caos parece mais cruento. Parece ser necessário dar um passo atrás para empurrar a superfície do chão e seguir na caminhada: olhar pelo espelho retrovisor, mas mirando o presente, que já enseja a conjugação do que virá a minar. E eis que, em

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1. Ver: SIMAS, Luiz A.;

RUFINO, Luiz. Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018, p. 19.

2020, ano pandêmico da covid-19, o projeto a_ponte também precisou se valer do formato virtual para seguir existindo, ilhados que ficamos nos espaços domésticos e em conexão pelas redes de internet – as pessoas que podem e têm teto e aparatos tecnológicos para isso. Uma das aberturas, então, iniciadas nesta edição do projeto, foi voltar antenas e buscar em uma chamada pública os trabalhos de pesquisa que vêm sendo feitos por estudantes em finalização de cursos nas áreas de artes da cena pelo Brasil. Aqui entramos, com nossos olhares de docentes e pesquisadores do campo, convidados para ler e pensar sobre tais escritas que responderam ao chamado em edital. Certamente, nós nos encontramos diante de uma tarefa complexa, porque são múltiplas as formas e as abordagens com que a pesquisa em graduação se manifesta nas diversas instituições de ensino superior no país. A isso, destacamos o fato de estarmos presenciando e, felizmente, sendo participantes de um contexto em que formas antes consideradas obrigatórias para tratar das artes cênicas e elaborar investigações científicas a partir delas estão sendo trincadas, corrompidas, diluídas e, por isso mesmo, aperfeiçoadas por saberes que emergem da complexidade do momento atual. Temos cursos de teatro em todas as unidades da federação; temos um reconhecimento e a valorização de saberes antes marginalizados pelos sistemas conservadores, e, mais do que nunca, nasce um consenso de que produzir ciência em artes é também um modo de criar arte. Fazer ciência é forjar poéticas, e não um meio de conservar saberes instituídos. Invocamos como mantra e ponto na nossa jira as sábias palavras de Luiz Antonio Simas e Luiz Rufino em Fogo no mato: a ciência encantada das macumbas (2018): Estamos convencidos de que nós, educadores, temos uma tarefa urgente: precisamos nos deseducar do cânone limitador para que tenhamos condições de ampliar os horizontes do mundo, nossos e das nossas alunas e alunos. Educação deve gerar gente feliz,

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escrevendo, batendo tambor, dando pirueta, imitando bicho, fazendo ciência e gingando com gana de viver (p. 19).1 Um mundo de inquietações, temas e escrituras no chegou a partir dos eixos criados e propostos para a edição do projeto. Foram cinco: dramaturgias, teatro para a infância, estudos sobre corpo e voz, estudos sobre indumentária e maquiagem e, ainda, investigações ou relatos de experiência que se situassem no eixo da teoria ou dos estudos queer (um campo que, para alguns, ainda é recente nas áreas de humanidades e artes). Algumas surpresas e algumas confirmações em nossas bússolas: as escolas e as universidades ainda são um campo de disputas de poder e conservações de ideias. Assim sendo, apesar de recorrente em espaços de pós-graduações humanas e artísticas, as graduações parecem ainda não abarcar ou encampar as discussões do terreno queer. Seria porque seus currículos seguem engessados, submetidos a uma ideia de cânone europeizado? Seria porque subestimam as possibilidades de usar os conhecimentos que os estudantes trazem em sua bagagem? Ou porque esses temas interessam a discentes cujas vivências, ativismo e luta por sobrevivência tenham sido atingidos em cheio nesse contexto de restrições impostas pela pandemia? Salta aos olhos também a evidência de que pouco se segue produzindo em termos de reflexão sobre o teatro feito para crianças e adolescentes. Embora seja uma forma de fazer teatral cuja produção é constante e diversa, com trabalhos instigantes elaborados rotineiramente por grupos de diversos lugares do país, o fato de a área não despertar o interesse de pesquisadores pode ser fruto desse lugar estigmatizado da arte que se engaja em oferecer experiências artísticas ao público infantil. Se essa arte tem correlação evidente com preocupações educacionais e estéticas, a quem interessa, então, que ela praticamente suma das graduações em artes vivas? Mesmo assim, alguns dos trabalhos refletem pesquisadores com sensibilidades afinadas a meandros pouco observados do universo das

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artes da cena: indumentárias, acervos e suas manutenções; tensões no ensino da arte (agravadas por uma virtualidade pouco democratizada e aterrorizada pelo vírus); olhares sobre corpos dissidentes (racializados, periféricos) na ficção estabelecida como norma (o corpo e as noções de arte e beleza eurocentradas). Ouvem-se vozes que buscam se inserir no campo da reflexão sobre seu fazer na arte e na docência, tão insultados e pouco respeitados nos tempos que vivemos (quiçá em todos os tempos esses saberes e fazeres sigam sendo uma teimosia inevitável de certa tribo inquieta). A exemplo do único trabalho selecionado no eixo temático “teatro para a infância”, é possível vislumbrar um rico campo de pesquisa ao abordar a infância de modo não romantizado, enxergando-a como realmente está, conectada ao mundo digital. Assim, os próprios estudantes criaram conexões de jogabilidade entre o jogo teatral e o de tabuleiro, articulando percepção teatral e imagética e revelando, ainda, um comparativo entre estudantes de escolas públicas e privadas. O teatro para infância que desponta no nosso tempo parece ser um teatro para o futuro, para o despertar da inquietação e da esperança. Ao propor uma arte feita para crianças, a compressão do estético e do lúdico para além da alienação aparecem como tônica do reencantamento desse mundo desencantado. Já a cena queer, ainda que timidamente engatinhando, evidencia a ficcionalização do gênero, das performances e dos papéis que desempenhamos do lado de cá da história. Ironicamente, aqui, à cena queer coube – e caberá cada vez mais – a tarefa de desvelar a ficcionalidade do plano não ficcional, da vida fora da arte, da própria insustentabilidade da rigidez e, bem assim, do absurdo do enquadramento em todos os níveis. A dimensão corpo e voz como elemento do fazer teatral nesses nossos tempos, além de retomar a convergência do processo criativo denso e cheio de vetores para o corpo do artista, propõe questões acerca do trabalho de direção de atores e de dramaturgia, e intervém com veemência para que essa convergência não se dilua em mimetismos e formalismo por meio do espetáculo. Os trabalhos que ocupam o espaço

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da nossa publicação propõem, outrossim, que essas poéticas da voz e do corpo sejam ponto de convergência para uma cena dialética, poderosa, política e poeticamente potente. Da mesma forma, é pontuada uma nova perspectiva sobre o lugar que ocupa a composição na construção poética da cena. Isso aparece seja pensando a indumentária como memória, como traço de racialização e de assimetrias de classe, gênero e do direito à autoria, seja afirmando a visualidade e a materialidade como assinatura e, portanto, como agência artística tão indispensável quanto todas as outras. A indumentária, a caracterização e a composição aparecem como concretizadores da experiência sensual do teatro, sem o que ele não existe e, por suas marcações, não se deixa confundir com outras formas de arte, miméticas ou não. Vale também destacar que, embora tenha sido rica a miríade de pesquisas inscritas, foi possível observar em alguns dos textos a ausência de uma orientação mais próxima, que instigasse um mergulho em águas mais densas e auxiliasse a emergir um pensamento que revelasse essa verticalidade possível. Portanto, tivemos a percepção de que algumas pesquisas estavam ainda em sua gênese embrionária e que poderiam ter maior consistência com uma orientação mais atenta, sobretudo na graduação. Docentes sobrecarregados, supervalorização do trabalho nas pós-graduações e pouco prestígio da graduação: inúmeros fatores podem ser hipóteses, mas nenhum justifica que não se dê o devido cuidado ao primeiro estágio de formação do artista-pesquisador e do licenciando em sua formação técnica/superior por meio de uma orientação mais engajada. Todavia, os trabalhos selecionados carregam em si potencialidades e olhares singulares para seus objetos de pesquisa caros às artes da cena. Sendo assim, são valiosas leituras para demais artistas-pesquisadores, abordando os eixos nos quais estão inscritos sob diversas perspectivas e vetores, como arquivo e acervo, videoperformance, dramaturgia negra e cenografia. Interessantíssimo também observar a curva que algumas

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pesquisas tomaram como processo de adaptação forçada pela pandemia, o que levou inclusive à busca de epistemologias pouco usuais e gerou novas perspectivas e pontes. São textos produzidos na crise provocada pelas medidas sanitárias que atingiram em cheio as artes cênicas, impedindo encontros presenciais e, assim, acabando com a possibilidade de ensaios e de apresentações nas quais os corpos compartilham de um mesmo espaço simultaneamente. Refletem as alternativas e as angústias de um momento em que as aulas foram suspensas, os projetos tiveram que alterar seus meios e, mais do que nunca, a busca pelos sentidos da presença nas artes performativas foi reconfigurada. Artistas-pesquisadores carregam em si a complexidade do fazer artístico contemporâneo, criando infindáveis sinapses entre teoria e prática, bem como entre arte e vida. A labuta e o prazer da inventividade artística alicerçada pela pesquisa e pela reflexão crítica são como a margem e o rio que dão força e fluidez para que poéticas e pensamentos nas artes da cena possam emergir cada vez mais transdisciplinares e caleidoscópicos. E, nessa espiral, refazemos a pergunta que não se pode calar: qual a pertinência da arte em tempos como os nossos, cuja marca é a incerteza, a dissolução dos limites outrora conhecidos e, em muitos aspectos, um caos tenebroso que assombra e ameaça a todos? Qual seria, ainda, a forma da arte que poderia ser fio, câmara, encontro e reunião para todos nós que olhamos aterrorizados para o ontem e com espanto para o porvir diante das determinações da moira? Qual forma possível surge e fala a todos nós muito de perto nesses tempos em que já não há no horizonte a correção dos helênicos e das suas crises, em que nos abandonamos sem o direito à dúvida e ao desamparo que nossos ancestrais experimentaram em seu mundo cerrado? Pois bem: se a tragédia é a forma da crise anunciada da perda de unidade entre o mundo físico e a transcendência panteônica que dava coesão e coagia a estrutura social, as verdades filosóficas e o desenvolvimento científico à cosmogonia homérica e clássica; se as moralidades, as farsas e os autos foram a estrutura do mundo cerrado cristão no período medieval;

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se o teatro elisabetano, a commedia dell’arte e o século de ouro foram a possibilidade da comunhão celebratória que o teatro proporcionou em tempos de trevas; se o drama burguês foi o choque de consciência da humanidade reduzida às neuroses e às histerias da compleição reduzida e plana da humanidade moderna; então, marcam os nossos tempos a performance como encontro, a quebra da cisão entre experiência e experimentação, entre colagem e mise en scène, montagem e fabulação. O que pudemos observar, palpar e arriscar diante de nossa imersão nos textos que ora se apresentam é a radicalização da experiência sensória como resgate da dimensão disruptiva do fazer teatral, da experiência da arte. Essa quebra de continuidade, essa natureza questionadora e interpelatória do teatro se reafirma. É justamente nos momentos de crise da forma que algo nuclear, estruturante e, de certa forma, latente e inerente ao teatro se apresenta e se pronuncia. Esse chamado rebelde como motor anima. Não é e não será, todavia, uma ode à catarse performativa hedonista que centraliza a experiência egoica – muito pelo contrário. As artes da cena são, como aqui se atesta pela experiência colhida a partir do resultado dos processos desta mais nova geração de artistas, um dos poucos lugares em que o corpo humano e a experiência singular, que existem no limiar do intercambiável, do sensório e do sensual, são apresentados como arregimentadores e propositores de uma humanidade como projeto do eu para o coletivo. As artes cênicas aparecem, então, como a viagem humanista reposta e revisitada, como esperança de reunião dos seres humanos diante da noite indevassável que se avizinha, a partir da celebração daquilo que é peculiar ao humano: dúvidas, dores, paixões, corporeidades e fragilidades. É assim que brindamos com doses cavalares de esperança a dramaturgia que se formaliza aqui como experimentação para um mundo em desafio, para o universo dissolvido, para a humanidade desagregada. Os trabalhos reunidos, em todas as suas diferenças, em tantos formatos e tantas referências e apontamentos, são estudos e peças que resistem a aceitar a fragmentação como ponto final e, por essa razão, partem dessa mesma

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fragmentação do espaço, do tempo e da unidade ontológica provisória para uma outra cisão, na certeza da provisoriedade e, ainda assim, celebrando a vida, a comunhão e a compaixão. A partir do que reunimos neste caderno que ora publicamos, fica a certeza de que as artes vivas, mesmo a partir da virtualidade, da diluição e da ruptura radicais com a câmara física, com a transmissão in praesentia, com o suspiro abafado compartilhado, com a rua, com a trupe itinerante e com a expectativa da reunião de todos os sentidos humanos, é o lugar que, dialeticamente, nos lembra e nos permite experimentar em conjunto toda sensorialidade, disruptura, proposição e interpelação ao desconhecido. É certa coragem de reunião, de dramatização do belo ordinário, de encerrar o olhar espantado e estupefato. A pertinência de nossa arte milenar é lembrar, como sempre, que a desmesura humana é um ato de grandeza, de corpo, de voz, de audácia e, não por isso, menos coletivo, generoso e inflado de esperança e de presenças. Eis algumas imagens para o que nos forneceram os encontros, os trabalhos e as tantas indagações colhidas durante a leitura deste vasto material que você tem agora em mãos. Um material que delineia uma fresta do pensamento e da produção escrita de estudantes que vêm concluindo etapas formais de estudo para atuar na cena e em seu ensino nas mais diversas instituições e regiões deste convulso país continental chamado Brasil.

Danieli Balbi Felipe Sales Renata Pimentel Vicente Concilio (organizadores)

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Danieli Balbi é doutora em ciência da literatura pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), pesquisadora de dramaturgia, teatro e cinema e professora de roteiro da Escola de Comunicação Social da UFRJ. Atua também como roteirista do Grupo “Y”, contratada pela produtora Take4Content. Roteirizou o média-metragem Tata Korongo e foi membro da comissão avaliadora da banca de seleção de projetos culturais da Secretaria Municipal de Niterói em 2021. É ainda articulista do portal Vermelho, avaliadora da revista Diadorim de estudos linguísticos e literários do programa de pós-graduação em letras vernáculas da UFRJ, e da Sala preta, revista do programa de pós-graduação em artes cênicas da Universidade de São Paulo (USP). Assina a autoria de diversos capítulos de livros e artigos científicos e tem ministrado uma série de palestras no Brasil.

Felipe Sales é produtor cultural, ator e fotógrafo. Possui graduação em artes cênicas pelo Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Ceará (Ifce) e mestrado em artes pela Universidade Federal do Ceará (PPG-Artes/UFC). Suas pesquisas se debruçam sobre a precisão e a espontaneidade do atuante. Realiza experiências em fotografia, sobretudo de espetáculos, e é produtor no Núcleo de Artes Cênicas do Itaú Cultural.

Renata Pimentel 49 anos, nascida em Recife (PE), é professora na Universidade Federal Rural de Pernambuco (UFRPE) desde 2010. Poeta e escritora de prosas, dramaturgias e roteiros para audiovisual, tem formação em letras, dança e teatro e atua na área de curadoria em artes visuais, ou seja, acredita nas artes em diálogo. Vive em Recife, em uma casa cercada de felinas, plantas e outros seres.

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Vicente Concilio é diretor, pesquisador e professor da licenciatura e da pós-graduação em teatro da Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc). Atua na área da pedagogia do teatro, enfocando as práticas cênicas em espaços de privação de liberdade e a encenação como prática pedagógica. Como diretor teatral, seus experimentos mais recentes foram com o Coletivo Baal, de Florianópolis (SC), explorando as peças didáticas de Bertolt Brecht.

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\giradramatúrgica ou aquilombamentos e escrevivências por e entre dramaturgas/os/es negras/os/es Carlos Alberto Mendonça Filho¹ 22 anos, Curitiba (PR), Faculdade de Artes do Paraná/Universidade Estadual do Paraná (FAP/Unespar). É dramaturgo, ator, professor e pesquisador da dramaturgia negra brasileira e das encruzilhadas políticoestéticas entre escrita dramatúrgica, pedagogia, memória e identidade. Atua como diretor cênico do grupo curitibano Batalhão Cia. de Teatro e é autor do livro Retilíneo., publicado pela La Lettre (2020). carloscanarim1@gmail.com

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1. Graduando do curso de licenciatura em teatro da Universidade Estadual do Paraná. O presente trabalho teve como orientadora a Profa. Dra. Stela Regina Fischer.


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ficha técnica Universidade Universidade Estadual do Paraná (Unespar) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2016-2021 Estado Paraná Título do trabalho GiraDramatúrgica ou aquilombamentos e escrevivências por e entre dramaturgas/os/es negras/os/es Nome do autor Carlos Alberto Mendonça Filho Nome da orientadora Stela Regina Fischer Número de páginas 18

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\giradramatúrgica ou aquilombamentos e escrevivências por e entre dramaturgas/os/es negras/os/es

RESUMO Proponho um olhar sobre o teatro negro e a dramaturgia negra brasileiros a partir de escrevivências minhas enquanto sujeito e artista em constante processo de me tornar negro, analisando os processos de segregação e dominação coloniais que permeiam corpos/as/es, imaginários e subjetividades. Por fim, trago para discussão o projeto GiraDramatúrgica, que promove encontros virtuais entre dramaturgas/ os/es negras/os/es para pensar, discutir, investigar e criar dramaturgias verdadeiramente nossas. Palavras-chave: dramaturgia negra; escrevivências; pedagogia do teatro; teatro negro.

ABSTRACT I propose a look at Brazilian black theater and black dramaturgy from my records as a subject and artist in a constant process of becoming black, analyzing the processes of colonial segregation and domination that permeate bodies, the imaginary and subjectivities. Finally, I bring to discussion the GiraDramatúrgica project, which promotes virtual meetings between black playwrights to think, discuss, investigate and create dramaturgies truly ours. Keywords: black dramaturgy; theater pedagogy; black theater.

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RESUMEN Propongo una mirada al teatro negro brasileño y la dramaturgia negra desde mis registros como sujeto y artista en constante proceso de volverse negro, analizando los procesos de segregación y dominación colonial que permean los cuerpos, el imaginario y las subjetividades. Finalmente, traigo a discusión el proyecto GiraDramatúrgica, que promueve encuentros virtuales entre dramaturgos negros / os / es / es / es para pensar, discutir, investigar y crear dramaturgias verdaderamente nuestras. Palabras-clave: dramaturgia negra; pedagogía teatral; teatro negro.

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para este país eu traria os documentos que me tornam gente os documentos que comprovam: eu existo parece bobagem, mas aqui eu ainda não tenho certeza: existo. (...) (Lubi Prates, Um corpo negro)

I.

PELE, COR E ESCREVIVÊNCIA

Não lembro muito sobre a minha infância; algumas imagens dançam em minha mente. Imagens marcantes, elas. Chamavam a mim e a meu irmão mais novo de bagunceiros, mas éramos crianças sendo crianças. Entre constantes nãos, o que restava muitas vezes eram as nossas próprias companhias. Lembro que uma vez, sozinhos em casa, descobrimos potes e potes de tinta branca no quartinho que servia como dispensa. Aquilo era da minha mãe, na época professora de artes. Não era de brincar. A cena que se segue é a dos nossos corpos, o meu e o de meu irmão, cobertos por aquelas tintas brancas. A clara pele dele e a minha, azeviche, embranquecidas. Entre violências constantes e banhos salgados para purificar, constatei ainda menino que tudo que se impregna em algo não é fácil de remover. E isso vale do menor torrão de açúcar que cai no café até à mão suada que dispara a bala faminta por corpas/os/es negras/os/es periféricas/os. Tudo foi e vem sendo impregnado de branco: casas, terras, corpos e corpas, vozes, palavras. Ao levantar episódios de racismo cotidiano, Grada Kilomba (2019) reflete que o mundo colonial, além de engendrar uma pilhagem ostensiva de corpos/as, subjetividades, culturas e riquezas naturais dos territórios colonizados, operou também pela disseminação e manutenção de ideologias supremacistas, sexistas e racistas através das instituições sociais.

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2. Na educação, penso principalmente quanto às práticas de ensino na universidade pública, visto que a instituição superior de ensino ao qual estou me formando possui essa característica.

3. No campo da arte, me detenho à análise do teatro e da dramaturgia, principalmente no Brasil. Porém, as diferentes linguagens artísticas podem ser utilizadas para pensar essa manutenção colonial, principalmente ao analisarmos as principais metodologias utilizadas no ensino artístico e a não-representação de maiorias minorizadas nas iconografias, por exemplo.

4. Para entender a decolonialidade, Nelson Maldonado-Torres define primeiramente o colonialismo moderno como “(...) os modos específicos pelos quais os impérios ocidentais colonizaram a maior parte do mundo desde a “descoberta.” (MALDONADOTORRES, 2020, p. 35). Decolonialidade então, “(...) refere-se à luta contra a lógica da colonialidade e seus efeitos materiais, epistêmicos e simbólicos.” (MALDONADO-TORRES, 2020, p. 36)


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5. Para utilizar uma definição específica a fim de análise, parto do pressuposto de que a dramaturgia “(...) corresponde ao planejamento e elaboração de textos de todo e qualquer formato ou gênero discursivo (...), a ser comunicado publicamente” (NICOLETE, 2013, p. 72). Essa comunicação pública que a dramaturgia pressupõe não opera somente pelo campo do texto escrito ou verbal, mas também por uma conjuntura de signos existentes na composição de imagens, por exemplo. Dessa forma, não restringimos o texto dramatúrgico somente à uma concatenação lógica de falas e acontecimentos, mas sim abrimos o campo de definição para diversas possibilidades e formas de se fazer.

Nos pediam para ler sobre a época dos “descobrimentos portugueses”, embora não nos lembrássemos de termos sido descobertas/os. Pediam que escrevêssemos sobre o grande legado da colonização, embora só pudéssemos lembrar do roubo e da humilhação. (...) Que ótima maneira de colonizar, isto é, ensinar colonizadas/os a falar e escrever a partir da perspectiva do colonizador. (KILOMBA, 2019, p. 65) Assim, a educação2 e a arte3, diretamente (enquanto discurso) ou pelo campo da linguagem (a palavra e a imagem, por exemplo), são práticas que também ratificam e atualizam epistemologias eurocêntricas, patriarcais, brancas e heterossexuais em sua maioria. Teorias que surgem a partir da decolonialidade4, desenvolvidas por autoras/es como Leda Maria Martins (1995), Djamila Ribeiro (2017), Luiz Rufino (2019), Silvio Almeida (2018) entre outras/os/es, ao denunciar epistemicídios e a desigualdade gerados por um sistema, também reivindicam outras formas de entender o mundo e as relações que daí surgem. Destrinchar o racismo sintomático também na arte, recortando-a nas áreas do teatro e da dramaturgia5, pede que nos debrucemos sobre alguns questionamentos norteadores, como propõe Júnia Pereira (2019): A pergunta “quem fala?” sempre foi possível ou foi(é) dirigida a todos os enunciados teatrais? Como se configura historicamente a visibilidade da autoria na criação dramatúrgica e o que ela tem (ou não) a ver com o gênero e outros marcadores sociais dos(as) dramaturgos(as)? (PEREIRA, 2019, p. 64) Apreender a dramaturgia como um lugar acessível, democrático e possível para todas/os se mostra como um grande desafio, principalmente quando avançamos sobre a segregação histórica no teatro (mas também na arte em geral) contra as múltiplas narrativas populares, periféricas e de resistência advindas das ditas “maiorias minorizadas”, como as dramaturgias negras e os teatros negros. As constantes reproduções

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e postulações únicas dos ditos cânones europeus-brancos-masculinos no teatro dito ocidental constrói uma grande maquinaria perversa que escolhe, classifica, referencia e recomenda quem pode pensar, quem pode escrever e como se deve escrever. Além de se constituir como homem, nosso olhar demarca o dramaturgo clássico também como europeu, pois ele só pode ser concebido em uma análise que exclui manifestações espetaculares de outros continentes e centra suas investigações na Europa, excluindo também, dela, as tradições populares nas quais não existe contexto não somente para a forma dramática pura, mas também para a primazia do texto e/ou do autor. (PEREIRA, 2019, p. 65) Ao deflagrar essa hegemonia branco-europeia que atualiza e reproduz a dominação colonial pela linguagem (nesse caso, a escrita dramatúrgica), Júnia Pereira nos propõe uma mirada às outras possibilidades de escritura cênica que pautam outras formas de fazer, de pensar e de existir na cena. Dessa forma, a dramaturgia e o teatro podem assumir lugares de desobediência e resistência ao atuar pela descolonização de uma lógica importada e maniqueísta, pautando urgências e transformações próprias de seu tempo. Leda Maria Martins (1995) analisa historicamente que as cenas negras insurgem no Brasil pela busca do deslocamento da visão e do discurso ao que já está posto como norma no teatro dos séculos XIX e XX, colocando em cheque representações feitas por dramaturgos e encenadores que recorriam ao estereótipo, à satirização e à demonização da pessoa negra. Assim, as nossas histórias vem gingando e carnavalizando o que o imaginário branco estruturou ao escravizar, objetificar, demonizar, negar, anular, marginalizar, hiperssexualizar, invisibilizar, violentar, racializar e tentar exterminar o/a negro/a, suas diferentes culturas, vivências e subjetividades, com isso propondo narrativas e poéticas sobre nós e para nós. Empretecemos a cena e o papel no desejo e no direito de poder nos enxergarmos ao ler/interpretar um texto ou produzir/assistir a um

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6. Alinho-me ao prof. Dr. Marcos Alexandre ao dialogar com as teorias pensadas anteriormente pela profa. Dr. Leda Maria Martins (1995): “(...) a encruzilhada é um lugar de encontro e desencontro, passagem, interseção, mediação, entrecruzamento. Como espaço de trânsito e deslocamento, na encruzilhada, nós nos deparamos com um ponto de interseção, um lugar em que os corpos se cruzam e são cruzados, tocados” (ALEXANDRE, 2017, p. 57-58).

espetáculo. As nossas narrativas mergulham em mares de manifesto, denúncia e resistência, sambam as plurais existências afro-diaspóricas que ao mesmo tempo se ajuntam e se afastam numa grande encruzilhada6 poética e política.

II.

TEMPO, COR E ENCRUZILHADA

Minha mãe, como a grande maioria das mulheres negras periféricas brasileiras, sempre trabalhou muito para que pudéssemos ter uma vida melhor. Quando criança, em Porto Alegre, me acostumei a vê-la sair muito cedo para o trabalho e muitas vezes nem vê-la chegar, pois já era muito tarde. Na época ela também estava se graduando no ensino superior através de uma bolsa de estudos, algo importante mas também desafiador para quem muitas vezes viu-se sendo a única nos lugares em que frequentava ou não tinha dinheiro para sequer ir até a universidade. Uma frase dela sempre me foi recorrente: “Meu filho, você é negro. Nunca deixe alguém dizer o contrário”. Sempre que eu ouvia essas palavras, sacudia a cabeça e respondia: “Bah mãe, de onde tu tirou isso? Eu sou branco”. O que poderia um menino dizer quando via seus colegas brancos/as brincando no recreio e deixavam-o isolado num canto? Ou quando seus personagens preferidos dos desenhos animados, como o Batman e o Homem-Aranha, eram homens brancos? Ou quando o sinônimo de belo para as pessoas ao seu redor normalmente era aquele cara ou aquela mulher brancos, loiros e/ou com olho claro? Ou também quando a mãe falava e falava e falava sobre como a vizinha que morava ali na rua do lado tinha chamado ela de tanta coisa feia? O que poderia um menino dizer? Podemos dizer que o racismo é uma forma sistemática de discriminação que tem a raça como fundamento, e que se manifesta por meio de práticas conscientes ou inconscientes que culminam em desvantagens ou privilégios para indivíduos, a depender

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do grupo racial ao qual pertençam. (...) uma pessoa não nasce branca ou negra, mas torna-se a partir do momento em que seu corpo e sua mente são conectados a toda uma rede de sentidos compartilhados coletivamente, cuja existência antecede a formação de sua consciência e de seus afetos. (ALMEIDA, 2018, p. 22-43, grifo meu) Não se trata somente de uma cor epidérmica ou ao conjunto de fenótipos, mas também de dimensões ideológicas e políticas quanto à identidade e ao pertencimento. Aproximo o meu processo de tornar-me negro7 ao meu contato mais direto com o teatro, seja como espectador e aluno, seja como ator, diretor, dramaturgo, pesquisador e professor. Me descubro e percebo envolto de brancura nos pensamentos, nas relações com as pessoas, nas técnicas para atuar, nas grandes teorias para pensar a cena, além de enxergar o meu corpo preto como o diferente e muitas vezes o único nos espaços de formação dominados pela branquitude. A aparente falta de teóricas/os e artistas negras/os/es se mostra uma necessidade a ser falada e discutida por mim, principalmente devido às outras vivências que começo a ter fora do ambiente acadêmico com outros cursos8 voltados ao teatro negro e à dramaturgia. Começo a questionar os porquês de não estarmos estudando pessoas negras importantes para a construção de um teatro dito brasileiro, mas também quanto às grandes teorias do teatro ocidental, da sociologia, da educação e no que se refere à própria formação pedagógica das/os discentes do curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Estadual do Paraná. Onde estavam e estão as/os artistas e teóricas/os negras/os/es? Em contraponto à reprodução e a manutenção desse ideário colonizador, é necessário mencionar que muitas/os professoras/es brasileiras/os vêm propondo outras abordagens para os conteúdos curriculares, reforçando através de ações extensionistas9, grupos de estudos e encontros temáticos a importância de pedagogias que partam da decolonialidade para a emancipação e a construção de novos saberes na arte, nas/os corpas/os/

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7. É importante lembrarmos que é na obra O Segundo Sexo (1949) que Simone de Beauvoir pensa a ideia de “tornar-se” mulher, atribuindo dimensões sociais e políticas às construções simbólicas e ideológicas advindas dos marcadores sociais (no caso da autora, no que se refere às mulheres e às construções sociais e imagéticas do feminino); já no livro “Tornar-se Negro” (1983), Neusa Santos propõe uma mirada ao processo de tornar-se referente à negritude, denunciando as arapucas coloniais presentes na sociedade brasileira ao naturalizar o massacre e a negação das construções identitárias negras. 8. Um dos cursos que participei foi o projeto “Negro Olhar”, realizado pela atriz e diretora Tatiana Tibúrcio, que promove ciclos de leitura dramatizada de textos de autoras/es negras/os e a própria pesquisa quanto à história do teatro negro brasileiro. Pude participar da etapa curitibana do projeto em 2019, promovido pelo SESC Paraná. 9. Um exemplo recente dessas ações é o projeto Estudos em Teatro Negro, que promove encontros virtuais sobre a cena negra a partir de pesquisas acadêmicas e entrevistas com artistas negras/os/ es. O projeto é realizado a partir da Universidade Federal da Bahia (UFBA) e é coordenado pelo


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prof. Dr. Gustavo Melo Cerqueira e pelo prof. Dr. Licko Turle. Os encontros do Módulo I iniciaram em maio de 2020, com as aulas ocorrendo às terças e quintas-feiras das 14h às 16h. Mais informações disponíveis em: https:// www.youtube.com/channel/ UCjVtUsM4PxU05NyK406E_ RA. Acesso: agosto, 2020. 10. É impossível que eu não mencione o racismo cotidiano, direto ou simbólico, presente não só em Curitiba mas em muitos lugares do sul do país, fruto de uma política de embranquecimento operada pelo governo imperial entre o final do século XIX e início do XX. Um dos exemplos mais recentes desse racismo velado foi o da juíza Inês Marchalek Zarpelon, que sentenciou um homem negro à prisão pela sua “raça”, associando a cor da pele à violência e vandalismo. Disponível em: https:// www.brasildefato.com. br/2020/08/12/exclusivojuiza-diz-em-sentenca-quehomem-negro-e-criminosoem-razao-da-sua-raca. Acesso em: agosto, 2020. 11. Utilizo aqui “teatros negros” para tentar abranger a pluralidade e a diversidade presente tanto na formação brasileira como nos movimentos cênicos que desde o século XIX pautam o/a negro/a, suas subjetividades e histórias como centro do que entendemos no ocidente como teatro.

es, nas relações interpessoais e para a formação de artistas de teatro. Outro ponto recorrente para mim é a representatividade negra na universidade: não tenho outras/os/es colegas auto-declaradas/os/es negras/os/es em minha turma, ao passo de que, no colegiado de Teatro, não há nenhum/a professor/a negro/a/e ministrando aulas. Todas essas “ausências” se mostram sintomas da naturalização do racismo que também segrega e gerencia os lugares a serem ocupados, ainda mais numa cidade como Curitiba10. Todas essas interrogações coçam, incomodam, mas também mobilizam; o que se revela é o apagamento, o silenciamento, o escasso incentivo, o processo de reprodução de uma narrativa única, a ausência de inserção, a exclusão e o exotismo das/dos artistas negras/os/es e suas produções, sintomas do racismo estrutural que se mostra como um dos pilares da formação social brasileira e do colonialismo como um todo, pois: (...) não poder acessar certos espaços, acarreta em não se ter produções e epistemologias desses grupos nesses espaços; não poder estar de forma justa nas universidades, meios de comunicação, política institucional, por exemplo, impossibilita que as vozes desses indivíduos sejam catalogadas, ouvidas (...) O falar não se restringe ao ato de emitir palavras, mas de poder existir. (RIBEIRO, 2017, p. 65) Os teatros negros11 insurgem a partir da reivindicação dessas urgências: o direito de existir, o direito de poder falar, de poder se ver representado/a nas histórias contadas na cena, seja ela no palco, seja na rua, na arte, na educação, na sociedade e em qualquer outro lugar. (...) Uma das premissas do teatro negro é ser uma arte engajada e este engajamento deve ser manifestado em distintos níveis, assumindo características que vão desde uma arte que seja

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(por que não?) panfletária até uma estética que assume vieses que dialogam com outras nuances que exploram características relacionadas com os aspectos políticos e ideológicos que possam assumir espaços voltados para questões dos afetos e das subjetividades, demonstrando que há um vasto campo de atuação do teatro negro e que este, hoje, não mais se restringe exclusivamente ao caráter da religiosidade. (ALEXANDRE, 2017, p. 35-36) Um lugar de manifesto também paira sobre os teatros da diáspora, pois as cenas negras expõem, questionam e denunciam tudo aquilo que é negado ou ainda não existe em sua plenitude - principalmente quando pensamos num país como o Brasil onde o racismo possui máscaras de diferentes tons brancos e o pensamento colonial ainda fundamenta as práticas do Estado. Mesmo após 132 anos de uma falsa abolição, ainda não somos livres. Entretanto, coletivos/as e dramaturgas/os/es vêm contribuindo para uma construção efetiva do teatro negro no Brasil ao longo da história. É o caso de grupos como a Companhia Negra de Revista (RJ, 1926), a Cia Bataclan Negra (RJ, 1927), o Teatro Experimental do Negro (RJ, 1944) liderado por Abdias do Nascimento, o Teatro Popular Brasileiro (RJ, 1950) de Solano Trindade, o Teatro Profissional do Negro (RJ, 1970) promovido por Ubirajara Fidalgo, o Bando de Teatro Olodum (BA, 1990), o Grupo NATA (BA, 1998), a Cia Marginal (RJ, 2000), a Cia dos Comuns (RJ, 2001), a Cia Caixa Preta (RS, 2002), o Grupo Clariô de Teatro (2002), a Cia Os Crespos (SP, 2007), a Capulanas Cia de Arte Negra (SP, 2007), o Coletivo Negro (SP, 2007), a Companhia Negra de Teatro (MG, 2015); e também dramaturgas/os/es negras/os/es como Artur Rocha (RS), Lima Barreto (RJ), Romeu Crusoé (PE), Hermes Mancilha (RS), Leda Maria Martins (MG), Grace Passô (MG), Aldri Anunciação12 (BA), Cidinha da Silva (MG), Jô Bilac (RJ), Viviane Juguero (RS), Ana Maria Gonçalves (MG), José Fernando Peixoto (SP), Dione Carlos13 (SP), Jé Oliveira (SP), Jhonny Salaberg (SP), Maria Shu (SP), Onisajé (BA), Cristiane Sobral (DF); entre tantos outras/ os/es dramaturgas/os/es, grupos e manifestações espalhados pelo país que precisam ser conhecidas/os, pesquisadas/os e divulgadas/os.

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12. É importante mencionar o projeto virtual chamado Melanina Digital, coordenado por Aldri. Na plataforma online, podemos encontrar um panorama da dramaturgia negra no Brasil, assistir leituras dramáticas e saber mais sobre as/os dramaturgas/os/es negras/ os/es em nosso país. Mais informações, disponível em: https://melaninadigital. com/. Acesso: agosto, 2020.

13. Aproveito também para mencionar o importante curso de Dramaturgia Negra “Palavra Viva” ao qual participei ministrado por Dione e promovido pelo Itaú Cultural/SP. No curso, pudemos conhecer mais sobre dramaturgias como as de Viviane Juguero, Cristiane Sobral e Onisajé, além de acessar materiais e discussões acerca da historicidade do teatro negro no Brasil.


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Nas formas, nas falas, nos desejos vai se construindo uma poética negra tão complexa e diversa quanto sua matriz de inspiração. Poética que, como não poderia deixar de ser, se disseminou por todas as partes da Diáspora. E cujas distâncias geográficas, históricas, culturais e/ou sociais, guardando suas distintas particularidades, acabam por fomentar uma rica variedade de expressões e possibilidades. (LIMA, 2010, p. 234) Dessa forma, a diversidade presente na existência também se mimetiza nas formas teatrais negras, somando diferentes repertórios, (escre) vivências e características singulares advindas muitas vezes da regionalidade - o que se mostra um aspecto relevante num país de grandes dimensões territoriais e composto por diferentes povos como o Brasil. Os teatros negros e as dramaturgias negras manifestam-se assim de modos pluriversais e multidisciplinares, bebendo em diferentes áreas do conhecimento de um modo geral, horizontalizando saberes e convidando-os para a dança. A escrita dramatúrgica assume então um lugar de ruptura, de possibilidade, de ginga na brecha, para adentrar e ocupar espaços considerados (pelo imaginário colonial) como impróprios e negados à/ao negra/o/e. Assim, a dramaturgia também “(...) pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto-inscrição no interior do mundo” (EVARISTO apud ALEXANDRE, 2017, p. 28). A autonomia, a liberdade, a criatividade e a afirmação de um pertencimento a uma ação historicamente-estruturalmente e colocada distante de nós, escrevedoras/os/es pretas/os/es, geram altíssimos abalos sísmicos e emergentes revoluções em toda a ordem e a lógica colonial. Por que sou levada a escrever? Porque a escrita me salva da complacência que me amedronta. Porque não tenho escolha. Porque devo manter vivo o espírito de minha revolta e a mim mesma também.

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Porque o mundo que crio na escrita compensa o que o mundo real não me dá (...) Escrevo para registrar o que os outros apagam quando falo, para reescrever as histórias mal escritas sobre mim, sobre você. (ANZALDÚA, 2000, p. 232) Escrevemos com um grito engasgado. A garganta ferve, borbulha, coça, arranha. Escrevemos com uma ânsia, com um devir, com uma voracidade ancestral. Escrevemos porque estamos vivas/os e essa escrita se transforma numa “forma de vida”. Falar e escrever não nos era possível; as máscaras de ferro e transparentes prendiam e modelavam toda a linguagem expressiva de nossas/os ancestrais escravizadas/os/es. Esse silenciamento ainda persiste nos dias de hoje, apesar de muitos avanços em diversos níveis sociais, políticos e educacionais. Ao tecer, tramar, costurar novas histórias sobre nossas plurais existências, reescrevemos todo o imaginário e as representações na dramaturgia brasileira permeados por estereótipos e por narrativas únicas, além de impedir o sucesso de um projeto de dominação pautado no silenciamento, na invisibilização e na morte sistemática física, epistemológica e/ou simbólica de pessoas negras brasileiras.

III.

VERBO, ESPIRAL E AQUILOMBAMENTO Vocês precisam me escutar. | Sim, escutar, e não ouvir. Talvez, depois de escutar, vocês entenderão melhor porque meus olhos se enchem de lágrimas ao assistir filmes que falam sobre a vida das pessoas que lutaram contra a discriminação racial, que dão a dimensão de quanto isso pode nos ferir por dentro. Ou vão compreender porque eu chorei com a morte de Chadwick Boseman. Prestem muita atenção nas próximas palavras, pode não parecer, mas elas podem mudar a sua perspectiva de mundo e sinceramente é o que eu desejo. Preste muita

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14. Participaram da primeira edição da GiraDramatúrgica as/os dramaturgas/os/es Carolina Maria, Cláudia Simone, Diego Ferreira, Denise Telles, Jaiara Soares, Kelle Bastos, Mário Alves, Ozzy Souza, Rafael Cristiano, Tamyres Costa e Yannikson Pereira. Os encontros foram e são realizados virtualmente pelas plataformas Google Meet e Zoom.

atenção, pois pelo fato de estarmos aqui (aponta o palco) isso pode parecer ficção, mas não é. É vida real. Vida concreta. Vida pulsante. A vida me ensinou a ser negro numa sociedade racista. Repito. A vida me ensinou a ser NEGRO. (FERREIRA, 2020, texto não publicado) Diante de todas essas teorias críticas perpassadas anteriormente e que seguem reverberando em mim, foi fermentando e florescendo em mim ideias, delírios e sonhos. Foi então que criei, sob orientação da profa. Dra. Stela Fischer, a GiraDramatúrgica - Núcleo de Pesquisa e Criação em Dramaturgia, projeto de extensão vinculado à Universidade Estadual do Paraná - Campus de Curitiba II, que iniciou seus trabalhos em abril de 2020, com previsão de término para outubro do mesmo ano. Meus principais objetivos ao pensar a Gira são os de criar um grupo de dramaturgas/os/es negras/os/es voltado à pesquisa e à experiência criativa nas áreas de dramaturgia e teatro negro; estabelecer conexões, trocas de experiências e diálogos entre artistas negras/os/es de diferentes regiões do país; estimular o exercício da escrita criativa para a cena e a busca por diferentes narrativas, visando a construção de uma dramaturgia negra autoral e inédita de cada dramaturga/o/e (como podemos notar no trecho escrito pelo dramaturgo Diego Ferreira, presente na citação acima); e aprofundar questões, pertinências e urgências sobre a Dramaturgia Negra e o Teatro Negro Brasileiro. Devido à pandemia de COVID-19 precisei adaptar o projeto à nova realidade de distanciamentos físicos e simbólicos. Houve com isso o aumento do alcance de pessoas interessadas em compor o curso devido ao ambiente virtual, não ficando restrito somente à região de Curitiba. Através de um chamamento público que teve como públicoalvo dramaturgas/os/es, escritoras/es e pessoas negras interessadas/ os/es no desenvolvimento da escrita dramatúrgica, mais de trinta inscrições foram realizadas em uma semana. Visando otimizar o contato e o acompanhamento de cada integrante, foram selecionadas onze dramaturga/os/es14 de sete estados do país (RS, PR, SP, RJ, ES, BA e MA) a

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partir do envio de um breve currículo, da escrita de uma “carta atemporal” (endereçada a uma pessoa de qualquer tempo-espaço da história da humanidade) e de um pequeno “vídeo de intenções”, falando sobre as expectativas e anseios pessoais sobre o curso. A Gira se forma principalmente através de procedimentos e práticas pedagógicas que reivindicam uma outra abordagem através da descolonização das relações de ensino-aprendizagem em dramaturgia, entendendo o desenvolvimento da escrita para a cena como uma poéticapolítica democrática e interdisciplinar que emerge das encruzilhadas insurgidas do jogo de estar junto. Tomo como referência o que propõe o professor Luiz Rufino (2019), que amplia entendimentos de que as relações de ensino e aprendizagem resultam do cruzo entre diferentes saberes (valorizando principalmente o que é marginalizado, tornado periférico, não-hegemônico), que acontece a partir da experiência humanizante, afetiva e mediadora do encontro, da aglomeração mesmo que virtual. Proponho na Gira a aplicação dessas possibilidades do entre e por consequência a contínua formação dramatúrgica das/dos integrantes. Não foi exigido das/os participantes uma experiência prévia na área da dramaturgia nem do próprio teatro; inclusive, há no grupo pessoas ligadas a outras áreas como o cinema, a jornalismo e a literatura de um modo geral. Entendo que qualquer pessoa, seja qual for seu repertório e vivência, pode vir a escrever um texto para a cena, desmistificando um imaginário povoado pela exclusão e pelo “dom”. Também, o referencial bibliográfico sobre teatro e dramaturgia a ser estudado buscou priorizar obras brasileiras, especialmente no que se refere às escritas por autoras/ es negras/os/es. Essa postura adotada pode ser percebida no trecho abaixo, escrito pelo dramaturge Rafael Cristiano a partir de um resgate histórico e mnemônico da ativista, professora e historiadora brasileira Beatriz Nascimento: Eu observei muito as gaivotas. Acho o destino uma ironia. Eu acredito em destino, depois de morta eu comecei a acreditar. Pra mim é uma ironia, passar

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os dias da minha pós vida em um espaço de terra no meio do oceano Atlântico. Exatamente no meio. Eu sei que estamos no meio do Atlântico. Aqui tem um cheiro diferente, o barulho do mar é diferente aqui. Me pergunto se depois de morta, começo a acreditar no purgatório Cristão. Me pergunto se em vida eu já não acreditava… (Silêncio acentuado) Foi um vácuo de memória. Não me lembro… Me lembro com exatidão que não estimei passar a minha eternidade assim. Entre o lugar que nasci, me criei e morri. E o lugar que tanto imaginei. A América fica pra lá. (aponta para o lado onde vivem os caranguejos) A África pra cá. (aponta para o lado das gaivotas) E eu estou exatamente no meio. Há dias em que acordo e me pergunto se esse momento irá durar para sempre. (CRISTIANO, 2020, texto não publicado) Com esses deslocamentos das epistemologias do centro, damos um rolê a cada encontro, perpassando saberes que o mundo branco postula como periféricos, ou marginalizados, ou “menores”, invertendo assim a composição e o exercício da aprendizagem para transgredir efetivamente pela ação, no caso, a escrita para a cena. O que interessa é, justamente, a pluralidade de ideias, narrativas e jeitos de contar histórias. Celebramos a alteridade como potência para a cena e para a escrita, entendendo que a vivência e o repertório de cada dramaturga/o/e-integrante são diversos e igualmente riquíssimos dentro de sua singularidade. Não me coube então nesse caso específico propor uma ideia ou abordagem temática-estrutural que servisse a todos de uma maneira igual, mas sim convergir possibilidades de reinvenção do mundo e da vida a partir da dramaturgia e do acontecimento de estarmos juntos. Outras vozes emergem de um silêncio secular. Os processos de criação dos textos dramatúrgicos partiram fundamentalmente de pesquisas teórico-práticas compartilhadas entre

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as/os dramaturgas/os/es sobre dois grandes temas: o teatro negro brasileiro e as representações e urgências negras na dramaturgia. Nessas investigações analíticas e documentais, realizadas nos primeiros meses do curso (abril, maio e junho), buscamos resgatar a(s) história(s) negra(s) do teatro brasileiro e os nomes apagados e/ou invisibilizados historicamente pela branquitude, promovendo análises e debates em grupo a partir de falas públicas e textos norteadores escritos por autoras/ es negras/es, como Lima Barreto, Leda Maria Martins, Sayonara Pereira, Daniel Santos Costa, Evani Tavares Lima, Abdias do Nascimento, Dione Carlos, Gloria Anzaldúa, Aldri Anunciação, Jô Bilac e Grace Passô. Ao final de cada estudo em grupo, propus exercícios de escrita criativa a partir de estímulos diversos tais como a leitura de poemas, como podemos observar abaixo nas palavras escritas pela dramaturga Cláudia Oliveira: Trancado a sete chaves/ Estava a história escondia que falava de mim/ Alguém abriu o tampão da cabeça/ E deixou ao vento meu Ori/ Numa rajada só/ Muitos se ocuparam de mim/ Balançando meu corpo negro, de lá para cá/ Solano, só queria falar de América/ Lelia, perguntava cumé que a gente fica/ Mercedes nas pontas dos pés, queria bailar o mundo/ Conceição bradava aos quatros ventos que eles combinaram de nos matar, mas nos combinamos de não morrer/ Nessa puxa-puxa, estica-estica dentro de mim, habitada por tantas vozes negras/ Comecei a falar a linha do i/ Voltando no tempo para ver se alguém me via/ Pidi vicis sii di mim, piqui si nim ii nim pidi vivir issim/ Ouvindo vozes em mim/ Andei como errante na América, vaguei surda por becos, vielas e favelas/ Atravessei mares de gente branca, escutando o canto da casa grande sem sabores e tambores/ De repentemente, em algum lugar na América do Sul/ Ouvir falar de extermínio das possibilidades de experiência/ Num clima tenso/ Meu corpo negro começou a vibrar

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com sensação de pandemia, não conseguia falar/ No movimento do mar marejo, mergulho e me vejo/ Pesco a consciência/ Fechando o balaio corpo negro território de mim/ Ori cuidado! (OLIVEIRA, 2020, texto não publicado) A dramaturga propõe, neste exercício, um olhar poético a partir da leitura dos poemas “Também sou amigo da América” e “Cantares da América”, escritos pelo poeta pernambucano Solano Trindade (1908 1974) e publicados em 1992. Oliveira reivindica sua identidade a partir de seu corpo negro que ocupa um território desconhecido, evocando uma América que verdadeiramente seja lar. Além de poemas, estímulos criativos como a escuta ativa e afetiva do álbum musical “Planeta Fome” (de Elza Soares, lançado em 2019) e a apreciação de obras fílmicas como o curta “Alma no Olho” (1974) de Zózimo Bulbul e o filme “A Negação do Brasil” (2000) de Joel Zito Araújo, foram utilizados como convites para o exercício e a prática da escrita. Num segundo momento, dos meses de julho a outubro, nos voltamos à escrita dos projetos dramatúrgicos individuais. Intencionando auxiliar no tecer e na trama dos fios das urdiduras propostas por cada dramaturga/ o/e, foram realizadas outros jogos de escrita que trabalharam, por exemplo, com a efemeridade da obra e a criação sem pudor e julgamento, visando escrever de forma automática e cronometrada tendo como base uma foto, um áudio, uma conversa; também houveram a carta de apadrinhamento, que foi uma dinâmica entre as/os dramaturgas/os/ es onde, depois da leitura do material escrito pela/o sobrinha/o/e, cada padrinho/madrinha sugeria possibilidades para a obra em análise, através de disparadores referenciais como a sugestão de um filme, uma música, uma peça, uma imagem, etc.). Após cada exercício, sempre propus que cada participante compartilhasse ao grupo sobre como havia sido os desafios e os prazeres de realizá-lo, bem como ler as escrituras realizadas. Compreendo que o ato de ouvir um feedback sobre seu texto e/ou ler o que a/o colega produziu e apreender a linguagem sendo desenvolvida

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processualmente no texto agem também como práticas de aprendizagem na formação dramatúrgica. Os onze textos dramatúrgicos seguem em andamento e em constante costura; cada dramaturga/o/e opera seu coser de forma livre e autônoma, mirando a escrita para a cena não como um problema inalcançável ou irresolúvel, mas como um lugar onde tudo é possível. Esse caráter processual é bastante importante para a composição dramatúrgica, visto que cada obra possui um modus operandi específico e requer tempos de maturação e abordagens diferentes. Além dos ciclos de análise relacional com cada projeto dramatúrgico, proponho orientações individuais com cada participante, onde podemos aprofundar questões, anseios, dúvidas, medos, conquistas, tudo o que alimenta e faz parte de um processo criativo e artístico. Assim sendo, a Gira se configura como uma ação horizontal onde cada dramaturga/o/e a compõe com seu repertório e através da troca e da partilha, como uma grande encruzilhada poética que afeta e deixase afetar ao tensionar as hierarquias do poder e do conhecimento. Esse aquilombamento virtual torna-se um ato de resistência num momento histórico onde se fala e se documenta com mais intensidade (sobretudo na internet pelas redes sociais) acerca da violência policial e do racismo como práticas institucionalizadas pelo Estado, do genocídio negro, sobretudo jovem e periférico, no Brasil e da eugenia emergindo novamente com outras roupagens e máscaras numa pandemia onde pessoas negras são as que mais morrem15 e que acirra ainda mais as desigualdades e exclusões que já existiam.

IV. RETICÊNCIAS A GiraDramatúrgica - Núcleo de Pesquisa e Criação em Dramaturgia é uma iniciativa inacabada: não há ponto final, mas sim as reticências. Os anúncios e as urgências pairam pelo ar, nossas teias de ligação estão cada vez mais tomando forma e não há dúvidas de que vieram para ficar.

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15. Mais informações sobre o dado apresentado podem ser encontradas em: https://apublica. org/2020/05/em-duassemanas-numero-denegros-mortos-porcoronavirus-e-cinco-vezesmaior-no-brasil/. Acesso em: setembro, 2020.


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Estes são processos contínuos e que reverberam pelo tempo, como as dramaturgias. Cabe a nós, dramaturgas/os/es negras/os/es brasileiras/os/ es, continuarmos promovendo discussões, pesquisas e aquilombamentos outros de formação e encontro para que cada vez mais continuemos ocupando espaços e visibilizando nossas vozes e reivindicações. Ao entendermos a dramaturgia feita por dramaturgas/os/es negras como ação de reescrita da pessoa negra na representação teatral e, consequentemente, no próprio mundo, ludibriamos e damos uma rasteira em todo um projeto colonial de dominação que alimenta e é retroalimentado pela sociedade em que vivemos, até mesmo pela educação e pela arte. A dramaturgia e o teatro devem, são e precisam continuar sendo áreas artísticas verdadeiramente democráticas e acessíveis à todas/ os/es, sinalizando um devir decolonial transformador e plural. Ao gestar e colocar no mundo onze novas dramaturgias negras num contexto histórico-social como ao qual estamos passando, povoamos e fomentamos nossas cenas com narrativas outras que não as que a branquitude internalizou e limitou (como exclusivamente o ridículo, a morte e/ou a dor, tudo sob a ótica do branco). Fazendo uma menção à autora Conceição Evaristo: eles combinaram de nos matar, mas nós combinamos de não morrer (e também escrever, pois a escrita é um ato de vida!). Ao olhar para a espiral do tempo até agora, me vejo conquistando lugares e promovendo iniciativas que nunca pensei que poderiam ter algum êxito ou que seria eu quem proporia, muito devido às impossibilidades e às negações que permeiam nossas subjetividades desde a infância. Como artista e docente em formação, me descubro e me emancipo a cada nova leitura ou pesquisa dramatúrgica nova, a cada diálogo que tenho com minhas/meus pares e a cada encontro que temos na Gira. Que continuemos na ginga, fazendo arte e tecendo histórias em espaços pretos onde efetivamente possamos nos sentir libertas/os, corajosas/os e empoderadas/os. Estejamos sempre juntas/os/es!

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REFERÊNCIAS ALEXANDRE, M. A. O teatro negro em perspectiva: dramaturgia e cena negra no Brasil e em Cuba. Rio de Janeiro: Malê, 2017. ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. Belo Horizonte: Letramento, 2018. ANZALDÚA, Gloria. Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Revista Estudos Feministas, Florianópolis, v. 8, n. 1, p. 229, jan. 2000. ISSN 1806-9584. Disponível em: <https:// periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880/9106>. Acesso em: 11 jul. 2020. CRISTIANO, Rafael. Beatriz Nascimento. Texto criado para a GiraDramatúrgica em set. 2020. (texto não publicado). FERREIRA, Diego. Bluesman ou Como se afogar num mar sem água. Texto criado para a GiraDramatúrgica em set. 2020. (texto não publicado). KILOMBA, G. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano. Tradução: Jess Oliveira. Rio de Janeiro: Cobogó, 2019. LIMA, E. T. Um olhar sobre o Teatro Negro do Teatro Experimental do Negro e do Bando de Teatro Olodum. 279f. Tese (Doutorado em Artes). UNICAMP, Campinas, 2010. MARTINS, Leda Maria. A Cena em Sombras. São Paulo: Perspectiva, 1995. NICOLETE, A. Ateliês de dramaturgia: práticas de escrita a partir da integração artes visuais-texto-cena. 288f. Tese (Doutorado em Artes) Universidade de São Paulo, São Paulo, 2013. OLIVEIRA, Cláudia. Ori, cuidado! Texto criado para a GiraDramatúrgica em set. 2020. (texto não publicado).

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PEREIRA, J. C. Dramaturgias de Si e do Outro: Construções Identitárias. 253f. Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas, Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2019. PRATES, Lubi. Um corpo negro. São Paulo: Nosotros, 2018. RIBEIRO, Djamila. O que é lugar de fala? Belo Horizonte: Letramento, 2017. RUFINO, Luiz. Pedagogia das Encruzilhadas. Rio de Janeiro: Mórula, 2019. COSTA, J. B.; TORRES, N. M.; GROSFOGUEL, R. (Org). Decolonialidade e pensamento afrodiaspórico. Belo Horizonte: Autêntica, 2020.

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\jogo, corpo e imagem: entre o tabuleiro e o teatro

Christian Alexsander Martins¹ 24 anos, São Paulo (SP). Formado em licenciatura em artes cênicas pela Universidade de São Paulo. Game designer e pesquisador-artistaeducador com destaque nas áreas de jogos de tabuleiro, jogos teatrais, role-playing games, tecnologia e metodologias de aprendizagem ativa. christian.martins.ismart@gmail.com

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1. Graduando em licenciatura em artes cênicas pelo Departamento de Artes Cênicas da Universidade de São Paulo. Orientação: Maria Lúcia de Souza Barros Pupo.


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ficha técnica Universidade Universidade de São Paulo, Escola de Comunicações e Artes (ECA/USP), Departamento de Artes Cênicas Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em artes cênicas Período do curso 2015-2021 Estado São Paulo Título do trabalho Jogo, corpo e imagem: entre o tabuleiro e o teatro Nome do autor Christian Alexsander Martins Nome da orientadora Maria Lúcia de Souza Barros Pupo Número de páginas 21

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RESUMO O presente trabalho procura refletir sobre as relações pedagógicas entre jogos de tabuleiro (HUIZINGA, JÄRVINEN, SALEM, WOOD e ZIMMERMAN) e jogos teatrais (BOAL, RYNGAERT e SPOLIN). Partindo de discussões sobre uma juventude que cresceu com a comunicação digital (LEVY, SANTAELLA), são propostos exercícios que separam, analisam e unem os jogos de tabuleiro aos jogos teatrais com estudantes. Criaram, então, dois jogos que trabalham espaço, corpo, observação e narratividade. Palavras-chave: Jogo. Corpo. Imagem.

ABSTRACT The present work aims to reflect over pedagogical relations between board games (HUIZINGA, JÄRVINEN; ZIMMERMAN e WOODS) and theatrical games (BOAL e RYNGAERT). Starting from discussions about a youth that grew up with digital communication (LEVY, SANTAELLA), we suggest activities that slip up, analyze and join board games and theatrical games with students. So, they created two games that work space, body, observation as well as narrativity. Key-words: Games. Body. Image.

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RESUMEN El presente trabajo busca reflexionar sobre las relaciones pedagógicas entre los juegos de mesa (HUIZINGA, JÄRVINEN; ZIMMERMAN e WOODS) y los juegos teatrales (BOAL e RYNGAERT). A partir de discusiones sobre una juventud que creció com la comunicación digital (LEVY, SANTAELLA), se proponen ejercicios que separan, analizan y unen juegos de mesa a juegos teatrales com los alumnos. Luego, crearon dos juegos que trabajan el espacio, el cuerpo, la observación y la narratividad. Palabras clave: Juego. Cuerpo. Imagen.

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I. INTRODUÇÃO O jogo é uma função da vida, mas não é passível de definição exata em termos lógicos, biológicos ou estéticos. JOHAN HUIZINGA. Homo Ludens. Jogar possui alguma capacidade intrínseca de inventividade? Quais são as experiências que estão em jogo? Para criar um jogo, sobre quais experiências seu criador se atenta e se debruça? Além disso, em 2019, uma parceria entre a Hootsuite, plataforma de dados sobre mídias sociais, e a agência estadunidense We Are Social resultou numa pesquisa que mostrou o Brasil como o 2º país que passa mais tempo na internet. Os relatórios foram levantados a partir de uma série de plataformas de estatística, como GlobalWebIndex, GSMA Intelligence, Statista, Locowise, App Annie e SimilarWeb. Uma tecnologia com tamanho alcance e permanência afeta nosso modo de pensar, agir e se relacionar com o mundo. Lembrando de Chaplin no filme “Tempos Modernos” (1936), a industrialização acelerada mantinha-o na repetição dos movimentos que realizava na indústria: a máquina e o corpo estão em conflito e se confundem. Observando o avanço da tecnologia digital sobre nossas vidas, há a necessidade de um estudo offline com jovens estudantes no campo dos jogos que necessitam da presença dos jogadores, o famoso “aqui e agora”. Ao alcance da palma da mão, estamos conectados ao outro lado do mundo por redes sociais repletas de fotos e vídeos. Suas galerias instantâneas rendem horas de nossos dedos rolando os feeds2. Produzimos e consumimos imagens em uma escala gigantesca. Descuidamos nosso olhar. E uma geração cresceu junto com esse boom digital: a juventude do milênio, aqueles que nasceram nos anos 2000. É com eles que este trabalho é realizado. Partindo dessas perspectivas, escolhi duas categorias para aprofundar o a investigação com o jogo, os jogos de tabuleiro e os jogos teatrais,

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2. o feed é o formato de texto veiculado nas páginas das redes sociais. Chamamos "feed de notícias" aquele que aparecem os compartilhamentos dos outros usuários.


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destacando a seguinte questão: como a criação de um jogo de tabuleiro, pelos estudantes, articula elementos da percepção teatral e imagética? Os participantes do projeto passaram por um processo de criação de um jogo que pretendia unir aspectos dos jogos de tabuleiro e dos jogos teatrais. Atendendo à temática sobre comunicação digital proposta, foram selecionados dois jogos de tabuleiro para inspirar e compor a estrutura do trabalho, Dixit e Abstratus – Esculpindo Palavras, que exploram a construção de uma imagem e suas relações de significado. Em cruzamento, o conjunto de atividades de modelagem corporal (BOAL, 2015), técnicas de Teatro-Imagem (idem) e as sequências de ocupações espaciais (RYNGAERT, 2009), que investigam as capacidades dos corpos de criar uma imagem e as faculdades do olhar de observação e transformação de um ambiente, foram as inspirações teatrais para os exercícios criados. Assim, alunos do 8º Ano do Ensino Fundamental em duas instituições, uma pública e uma privada, a Escola Estadual Paulo Egydio de Oliveira Carvalho Senador e o Colégio Bandeirantes, tiveram o objetivo de explorar atividades que articulam elementos da percepção cênica e visual. Estabeleceram-se 10 horas totais de oficina, distribuídas em encontros de 1 ou 2 horas.

II.

OS JOGOS CRIADOS PELOS ESTUDANTES

Com a criação dos alunos do Colégio Bandeirantes, o espaço pôde ser transformado pelo corpo a partir de uma proposição imagética. No jogo, um participante conta uma história, sobre o que lhe ocorreu antes de chegar na escola por exemplo. A partir do que foi narrado, outro participante escolhe uma imagem para a história, um momento que lhe tomou a atenção, e então cria essa imagem com o próprio corpo. O restante dos jogadores devem tentar representar aquela imagem da melhor maneira possível, utilizando peças coloridas montáveis. Torna-se vencedor aquele participante que melhor representar com a escultura de peças a imagem cênica da narrativa.

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Uma sala vazia pode se tornar uma floresta, por exemplo. Os jogadores pretendem dificultar o trabalho de seus oponentes. Dessa forma, a relação de fisicalização2 de objetos e lugares torna-se um elemento que exige maior esforço de seus escultores. Em todas as rodadas os jogadores criam e observam: esse ciclo repetitivo, o qual nomeio de “faz-lê”, provoca os jogadores para criarem imagens mais interessantes. Com o jogo criado pelos alunos da Escola Estadual Paulo Egydio, o espaço é alterado por meio de um mapa: uma cenografia imaginária criada para uma improvisação. De acordo com as regras, os participantes precisam disputar para construir um mapa de um mundo fantástico a partir de peças coloridas montáveis. Então, com o cenário construído, quem mais pontuou conquista a possibilidade de ser o narrador de uma história, a qual deve inserir em uma cena improvisada todos os jogadores em cada um dos objetos que pertencem ao mapa criado. Nesse jogo, há a ausência da função de observador da imagem e a presença da quente competição baseada na construção do mapa e na criação de narrativas. Suponho que isso tenha acontecido devido à falta de foco e tempo com o esquema “faz-lê”. Com eles, fiz muito, mas propus poucas situações de leitura da imagem, o que provavelmente levou a ausência desses elementos em diálogo na criação do jogo.

III. JOGO 3.1.

A experiência do jogo

Retomando, quais são as experiências que estão em jogo com ou entre os jogadores? O jogo é uma forma natural de grupo que propicia o envolvimento e a liberdade pessoal necessários para a experiência. Os jogos desenvolvem as técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo em si, através do próprio ato de jogar (SPOLIN, 2015, p. 4).

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3. “Em qualquer forma de arte procuramos a experiência de ir além do conhecido. Muitos de nós ouvimos os movimentos do novo que está para nascer, mas é o artista que deve executar o parto da nova realidade que nós (plateia) impacientemente esperamos. É a visão desta realidade que nos inspira e regenera. O papel do artista é dar visão” (SPOLIN, 2015, p.14).


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Se “aprendemos através da experiência, e ninguém ensina nada a ninguém” (SPOLIN, 2015), jogar, enquanto uma atividade viva e mobilizadora, tem potencial para fazer parte de um processo de aprendizagem. O historiador holandês Johan Huizinga (2018) explora a maneira como o jogo está relacionada ao comportamento da humanidade, referida como Homo Ludens. A própria existência do jogo é uma confirmação permanente da natureza supralógica da situação humana. (...) Se brincamos e jogamos, e temos consciência disso, é porque somos mais do que simples seres racionais, pois o jogo é irracional (HUIZINGA, 2018, p.6). Esforçando-se para contornar melhor a palavra “jogo”, continua: (...) Poderíamos considerá-lo uma atividade livre, conscientemente tomada como “não-séria” e exterior à vida habitual. Mas ao mesmo tempo capaz de absorver o jogador de maneira intensa e total (HUIZINGA, 2018, p.16). Sabe quando alguém está caminhando sozinho pelas ruas e começa a desviar das rachaduras, caminhar nas quinas ou andar apenas sobre os pisos mais claros da calçada? Essa atividade exterior à vida habitual é praticada voluntariamente com uma seriedade surpreendente. Jogar é divertido. “É uma atividade desligada de todo e qualquer interesse material, com a qual não se pode obter qualquer lucro” (idem). Mas como podemos implicar a ela algum interesse imaterial, da ordem da aprendizagem? O jogo possui uma importante estrutura “praticada dentro de limites espaciais e temporais próprios, segundo uma certa ordem e certas regras” (HUIZINGA, 2018). Assim, manter esses limites mágicos, da ordem da imaginação, e propor uma avaliação com um ponto de concentração posterior ao jogo, onde questões como “quais são as regras do jogo?”, “o

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que o jogador faz neste jogo?” ou “o que sentimos ao jogar este jogo?”, é um caminho para implicar aquele interesse. De acordo com JÄRVINEN (2009), a experiência do jogo perpassa por nove elementos: os componentes materiais e o ambiente onde se joga o jogo; o conjunto de regras, as mecânicas, o tema, a interface e as informações que os jogadores manipulam; o jogador e o seu contexto. Então, o que o jogador manuseia? Onde ele joga? Quais as regras e os objetivos do jogo? Como vencer? Qual é o jogador e o contexto alvo? Todas essas perguntas levaram à necessidade de destacar um fundamento da criação do jogo: uma mecânica principal, a qual eu chamei de loop. O loop, ou a mecânica principal, “é a atividade de jogo essencial que os jogadores executam de novo e de novo em um jogo” (SALEN; ZIMMERMAN, 2012). Construir uma escultura e interpretar uma imagem, elencar um tema para uma carta e votar no pensamento que mais se aproxima, alterar um espaço com o próprio corpo ou posicionar os braços e pernas para mostrar algo a ser adivinhado. Trata-se da principal forma de interação entre os jogadores e os sistemas dos jogos de tabuleiro e teatrais em questão. Porém, como é criar essa interação? Por quais caminhos percorrer na invenção de um loop? E como esse jogo de tabuleiro-teatro pode aproximar um objeto de estudo, como no caso da justiça com a ETEC Parque da Juventude? Percebi que para criar um jogo, seria necessário fazer: valorizando a perspectiva prática, explorar o material. 3.2.

A imaginação no processo de criação

O que une jogos de tabuleiro e os jogos teatrais selecionados no processo de criação? O trabalho com a surrealidade, a abstração e a inverossimilhança da realidade. A imaginação fantástica, uma narratividade além de nossa realidade rastaquera, desnutrida de poesia. Os estudantes então foram incumbidos da tarefa de inventar um jogo híbrido4 entre o tabuleiro e o teatro, provocados por uma perspectiva

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4. O adjetivo “híbrido”, por sua vez, significa miscigenação, aquilo que é originário de duas espécies diferentes” (SANTAELLA, 2013, p. 20)


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imaginativa e inverossímil, divida entre os símbolos da “imagem” e da “ação”. Utilizando as peças, as cartas e os corpos, trabalhamos com jogos de construção e interpretação de imagens. Um mesmo objeto, uma mesma palavra, um mesmo ambiente ou uma mesma pintura podem ser transformados, dependendo de quem as cria e de quem as vê. Em primeira mão, Dixit: com sua primeira versão em 2005, criado pela terapeuta e psiquiatra infantil Jean-Louis Roubira, o jogo foi apoiado por diversas instituições francesas e distribuído pelo mundo, conquistando o coração de pessoas do outro lado do oceano. Dixit é quase um sinônimo de imaginação: os jogadores criam conexões entre as imagens de suas cartas e seus pensamentos. No início do turno, um jogador-narrador anuncia um tema, que pode ser uma palavra ou uma frase, relacionado a uma carta em sua mão, que coloca para jogo sem revelar o conteúdo. Cada outro jogador escolhe, também, uma carta que se relacione com o tema mencionado e a insere nesse mesmo monte. As cartas então são embaralhadas, depois reveladas e votadas - qual carta melhor representa o tema anunciado? Você ganha pontos se você vota e acerta qual a carta do jogador-narrador ou quando alguém vota na sua carta pensando ser a carta do jogador-narrador. Se esse não obtiver nenhum voto ou, pelo contrário, receber todos, ele não pontua - ou seja, é necessário fugir da obviedade e também da falta total de sentido. Dixit é baseado em desenhos de objetos ou elementos da vida real misturados elementos do sonho ou da fantasia: a alteração da realidade para uma ficção de outro mundo. O outro jogo, muito recente, é o Abstratus - Esculturas de Palavras, lançado em 2018 pelo coletivo Zebra 5. Trata-se de um jogo no qual cada jogador deve construir, a partir de um kit de peças geométricas de madeira e acrílico, palavras concretas e abstratas a depender do baralho que o grupo preferir. Na rodada, cada jogador retira uma carta de um baralho de palavras e tem aproximadamente 2 minutos para esculpi-la com seu kit de peças. Passado

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o tempo, as palavras são embaralhadas, reveladas e os jogadores também votam, semelhante ao Dixit, relacionando as esculturas às palavras e conquistando pontos se a relação estiver correta. Na tentativa de expandir o conhecimento dos estudantes sobre os jogos de tabuleiro, Dixit e Abstratus são menos convencionais que Banco Imobiliário e Jogo da Vida, por exemplo, e têm elementos próximos ao conceito de eurogames, que podem nos ajudar quanto à lucidez dos termos: Eurogames tendem a ser jogos mais acessíveis e que privilegiam o papel das mecânicas sobre o tema na jogabilidade. Eles tipicamente facilitam o conflito indireto ao invés do direto, retiram a ênfase no papel da chance, oferecem previsão de tempos nas jogadas, e possuem normalmente um alto padrão em termos de qualidade de componentes e apresentação (WOODS, 2012, p. 79). Com os jogos teatrais, percebi a necessidade de me atentar às capacidades do corpo tais como sensibilidade, criação e transformação. “Na batalha do corpo contra o mundo, os sentidos sofrem, e começamos a sentir muito pouco daquilo que tocamos, a escutar muito pouco daquilo que ouvimos, a ver muito pouco daquilo que olhamos. Escutamos, sentimos e vemos segundo nossa especialidade. Os corpos se adaptam ao trabalho que devem realizar. Essa adaptação, por sua vez, leva à atrofia e à hipertrofia” (BOAL, 2015, p. 99). Em oposição à perda da sensibilidade com o ambiente, optei pelo conjunto de jogos de ocupação e transformação espacial de Ryngaert (2009). O espaço é tomado como indutor de jogo, destacando a maneira como as suas nuances e o corpo do aluno se relacionam, a fim de manter viva a metáfora teatral.

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A regra: alguém do grupo entra em um espaço pré-enquadrado e o ocupa, sem se preocupar com narrativas. Em suas variações, a instrução de ocupação pode vir também conectada à transformação do espaço naquilo que ele não é, que ele não se parece ou que não existe no mundo real, por exemplo. “A utilização de um espaço real bem enquadrado induz os corpos a se situarem e se expandirem dentro dele. O espaço é um elemento flexível que convém às primeiras “bricolagens plásticas” (RYNGAERT, 2009, p. 127). Além do corpo, o olhar é outra matéria importante a ser educada em um mundo digital. A imagem nos invade, ao mesmo tempo que a produzimos. Utilizamos nossos corpos em permanentes selfies. Assim, construir uma imagem com os próprios corpos pareceu fundamental no processo. Emprestamos, então, técnicas do Teatro-Imagem e da modelagem de esculturas de Boal (2015). Entre as possibilidades, ocupar o espaço vazio do outro, criar mímicas e observar e nomear imagens ganham destaque. Além disso, o mesmo autor propõe, a partir do corpo como material de cena, uma sequência de modelagens: um ator molda o outro de perto e de longe, comunicando-se com palavras e depois apenas com movimentos. 3.3.

Jogos separados se aproximam com a perspectiva do jogo

Jogamos Abstratus com o foco em compreender seu funcionamento e avaliamos a sessão de jogo a partir das seguintes questões: • Qual é o objetivo do jogo? “Fazer pontos e ganhar”, uma aluna disse. Ou seja, é um jogo baseado na competição entre os jogadores. Como se pontua no jogo? “Tem que usar a criatividade, usar a imaginação”, um aluno. Através das peças e do estabelecimento das relações entre escultura e palavra, o aluno foi capaz de compreender que, naquele jogo, era necessário olhar e imaginar. “Olhar e pensar”, como disse uma aluna;

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• O que acontece em todas as rodadas? “Construir, interpretar e votar”, uma aluna. Sua resposta percebe a mecânica de todas as rodadas, o loop. Trata-se do que o jogador faz no jogo. Uns avançam casas e giram moedas, outros decidem as próximas rodadas; • Do que o jogo é feito? Quais são os materiais que utilizamos para jogar? “Figuras geométricas de madeira e acrílico e cartas com palavras diferentes”, uma aluna. A resposta elucida quais objetos são manipulados para que o jogo possa acontecer. A regra é o contorno para que o jogador resolva seu problema como preferir. Funciona como a instrução, “o método usado para que o alunoator mantenha o Ponto de Concentração sempre que ele parece estar se desviando. Isso dá ao aluno-ator auto-identidade dentro da atividade e o força a trabalhar com o momento novo da experiência” (SPOLIN, 2015). As comparações do jogo híbrido vieram na avaliação. Um jogo com peças, o outro com o corpo. Qual a diferença entre eles? Qual a semelhança? Quais as dificuldades de cada um? Quais materiais compõem o jogo? O que o corpo tem a ver com as peças? Com o Dixit isso também se evidenciou. Apostei no binômio fazerler: notando a importância da avaliação, propus uma sequência entre tabuleiro e jogos teatrais com a observação a partir do conjunto dramático de Spolin (2015) o que?, quem? e onde?. Então uma leitura: o processo de percepção da imagem não está no controle de quem a faz, mas atravessa principalmente quem a vê, lendo seu conteúdo material e conectando às memórias, aos pensamentos etc. Foi proposta uma avaliação parecida para quase todos os jogos a partir de então, tentando perceber o loop de cada um deles. Se pergunto “o que o jogador manuseia?”, por exemplo, tanto para o Abstratus quanto para uma sequência de modelagem do Boal, ambos são tratados como jogos e as diferentes espécies se aproximam enquanto categoria. Criar um jogo, então, trata-se de articular os elementos de todos esses jogos, sejam eles de tabuleiros ou teatrais.

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Uma avaliação por uma aluna percebe como a separação entre os jogos de tabuleiro e os jogos teatrais podem aproximá-los no mesmo trabalho: “acho que o que fizemos hoje foi trabalhar com cada aspecto do jogo e depois tudo junto. Primeiro a gente estava esculpindo os corpos, como a gente construía no jogo, depois focamos em a estátua adivinhar o lugar que estava, depois juntamos tudo mexendo nas cadeiras e montando o lugar”. 3.4.

Jogos juntos tornam-se material poético um do outro

Um jogo de tabuleiro não é uma peça de teatro. Ele não é feito para espectadores. Ele é feito para as pessoas que estão jogando. Assim, o objetivo dos alunos não era criar uma experiência para ser vista, mas uma para ser vivida de maneira compartilhada por quem joga. A obra convida à participação. Diante do processo de criação de um jogo híbrido, os jogadores receberam uma proposta temática, “jogo, corpo e imaginação”, e tinham apenas um conjunto de 300 peças coloridas montáveis que, em princípio, serviam para construir. Realizaram um brainstorm, elencando e selecionando palavras-chave para o que seria esse jogo. Observando o raciocínio dos alunos no que diz respeito ao desenvolvimento do jogo, relacionaram imagens, espaços teatrais e mecânicas de interpretação e construção baseadas no Dixit e no Abstratus. Na Escola Estadual Paulo Egydio, os estudantes destacaram a encenação feita por cartas, a encenação demonstrada pela criação de objetos e a criatividade pela possibilidade de encenar uma cena imaginária como conceitos-chave. “É necessário uma história? E se a história fosse de um castelo mágico? Nosso objetivo é chegar até ele!” comentaram, mas não havia tabuleiro nenhum para orientar esse ponto de chegada, todo e qualquer material que fosse usado seriam apenas aquelas 300 peças coloridas. “Então podemos construir nosso próprio tabuleiro? E se um objetivo do jogo for construir o tabuleiro? Um constrói e o outro continua. Pode ser uma história em continuação, um começa e o outro continua”. A narratividade se inseriu como elemento capital no núcleo do jogo.

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“Seremos reconstrutores! O reino foi destruído por alguma coisa e nós vamos reconstruir ele!” pensavam em voz alta. A palavra construção chegou com mais ênfase no final do processo, quando a reconstrução se tornou uma dúvida capital: “o jogador pode construir qualquer espaço ou objeto no reino? Ou o jogador tem que criar algo dentro do contexto medieval? E se ele quiser criar um portal? Ou e se ele quiser construir um poço com fantasmas? Pode criar algo que não exista, pode inventar?” Nessa criação, contar vem antes de mostrar. Eles traçam o cenário da história – “Estamos no ano de 3000, alta tecnologia”, por exemplo – e constroem o tabuleiro, compreendido como um mapa. O vencedor do jogo conquista o ofício de narrador, tendo como função contar essa história inserindo os jogadores numa improvisação que atravessa todos os objetos e marcações do mapa construído. “É como uma prenda paga por quem perder o jogo!” uma aluna disse. No Colégio Bandeirantes, o movimento foi outro: iniciaram a criação pelo conceito de construção. “Como seria um estilo de construção mais sofisticado? Talvez unisse aspectos de todos os jogos?” comentaram. Os alunos analisaram como as construções eram feitas em cada um dos jogos, principalmente no Abstratus, e quais eram as possibilidades de conexão entre uma mecânica de construção e outra. “As peças são pontuações ou construções? Elas se relacionam com o que? De que maneira nossos corpos fazem parte desse jogo? As peças podem construir nossos corpos? Como?” A relação entre o corpo do jogador e a peça do jogo tomou ênfase. A divergência entre esses materiais se transformou em convergência fundamental no jogo: a pontuação. “E se fosse um jogo onde as peças fossem os pontos e os jogadores tivessem que construir uma palavra? Ou uma pose corporal?”. A modelagem começa a fazer parte desse jogo. Modelar o corpo se trata de mostrar algo a alguém. Mostrar é diferente de contar com palavras. “Qual a instrução para essa pose? E se a pose fosse uma parte de uma história? É necessário uma história?“ Daqui, o núcleo do jogo se formou: uma escultura seria formada com um corpo a partir de uma história

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contada e as peças representariam por meio de uma construção essa pose. É interessante perceber como a proposta com as peças montáveis se conectou à palavra construção e desenvolveu relações diferentes com conceitos como narratividade, fisicalização e observação. Como seria se os componentes de um jogo (as peças, as cartas ou mesmo o tabuleiro) guiassem um processo de criação? Para pensar nisso, vale lembrar que as referências que trabalhamos com os alunos mudam completamente os caminhos de sua criação: jogos com ou sem tabuleiro? Competitivo ou cooperativo? Envolto de uma narrativa prévia? Baseado em fatos reais? Nesse processo de criação, os alunos questionaram-se e aprofundaram as leituras sobre cada um dos jogos, envolvendo todos os elementos da experiência do jogo por JÄRVINEN (2009) e por HUIZINGA (2015), destacando os de maior interesse. Além disso, os alunos lutaram muito por um outro aspecto: a diversão. O jogo precisava ser divertido. Deveria ser legal jogar aquele jogo e, para isso, nós temos que nos divertir jogando ele. É preciso se divertir criando. O jogo é uma obra de arte. Convida à participação. Provoca à intervenção. Ele reage às ações de seu público, possibilitando-o de apropriação e de personalização da mensagem recebida, concretizando uma interatividade capital para a experiência do jogador (LEVY, 1999).

IV. CORPO 4.1.

O corpo tecnológico da juventude Quando o ator aprende a comunicar-se diretamente com a platéia através da linguagem física do palco, seu organismo como um todo é alertado. Emprestase ao trabalho e deixa sua expressão física levá-lo para onde quiser. (...) O ator cria a realidade teatral tornando-a física (SPOLIN, 2015, p. 15).

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Em 2019, realizei uma aula curricular com os estudantes do 8º Ano. Quando pedi aos estudantes de fora de uma imagem cênica que registrassem a composição enquadrada feita pelos colegas, tive uma surpresa: os registrados fizeram uma pose de selfie, mudando sua expressão facial, realinhando os corpos para a câmera e inclusive trocando de posição num exercício de imagens estáticas. Isso ocorreu em todas as 7 turmas de aproximadamente 30 alunos da disciplina de Artes. O dispositivo tecnológico não é simplesmente um objeto exterior ao processo de produção, uma ferramenta que apenas viabiliza tecnicamente o fazer, ficando externa a ele, pois sua materialidade adentra naquilo que produz de forma estruturante” (GREINER; KATZ, 1999, p. 246). O jovem de 13 anos abre o seu Instagram e prepara uma selfie. Como está o seu rosto? Como está a sua roupa? Tira a primeira foto, mas ela não sai bem: péssima expressão. Sorri de maneira mais espontânea e tira uma outra foto. Apaga, o cabelo ficou desarrumado. Mais uma. Não, próxima! Mais uma. Outra. Pronto, depois de quase 10 fotos essa ficou perfeita. É preciso produzir a foto perfeita. A tecnologia permite que você apague o erro e o substitua pelo acerto, com alta velocidade. A precisão que temos é muito diferente entre um datilógrafo e um computador, ou entre uma câmera analógica e uma digital: o tempo que cada tecnologia processa seu material é próprio. O corpo da juventude é um corpo tecnológico, influenciado pelo telefone, pelas câmeras e pelos dispositivos de interação visual e motora que se deparam no dia-a-dia. Porém, “o corpo sensório-motor está quase que totalmente devolvido à esfera privada, ao desporte, ao lazer, ao jogo. A intimidade com o concreto sensível está tornando-se um luxo” (LEVY, 1998, p. 16).

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“Começamos a sentir muito pouco daquilo que tocamos, a escutar muito pouco daquilo que ouvimos, a ver muito pouco daquilo que olhamos. Escutamos, sentimos e vemos segundo nossa especialidade. Os corpos se adaptam ao trabalho que devem realizar. Essa adaptação, por sua vez, leva à atrofia e à hipertrofia” (BOAL, 2015, p. 99). Assim, esta pesquisa tenta propor uma experiência diferente do corpo tecnológico da juventude, que modifica suas maneiras de agir e pensar de acordo com o modo de operação do dispositivo. Trata-se da experiência presente do jovem em jogo, lidando com fundamentos espaciais e imagéticos da cena teatral. “Ela [a presença] não é algo que existe e que está ali na nossa frente. É mutação contínua, um crescimento que se dá diante de nossos olhos. É um corpo-em-vida. O fluxo das energias que caracteriza nosso comportamento cotidiano foi dilatado. As tensões ocultas que regem nosso modo de estar fisicamente presente no cotidiano afloram no ator, tornam-se visíveis, imprevistas” (BARBA, SAVARESE, 2012, p. 52). 4.2.

O tabuleiro, a peça e o corpo

E se o grupo jogar a modelagem com as peças e com o corpo, ao mesmo tempo? Apostamos na utilização conjunta dos jogos. O corpo, então foi compreendido como parte integrante e fundamental para a criação de um jogo de tabuleiro. Tratamos de moldar, simultaneamente, esculturas utilizando as palavras, os corpos e as peças de madeira e acrílico de Abstratus, em exercícios de imagem e construção espacial.As análises dos estudantes levaram às seguintes sentenças.

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4.2.1. “O corpo é maior que as peças.” Em uma das esculturas, uma aluna foi moldada sentada em frente a uma parede preta, olhando para cima, na tentativa de mostrar a palavra “cinema”. O escultor criou uma relação de tamanho: a parede, uma tela grande de cinema, e a aluna, algum espectador pequeno em uma plateia. Como as peças, o corpo pode se relacionar com os objetos do espaço de acordo com seu tamanho. Em outro exemplo, dois alunos moldaram seus corpos, um ao lado do outro, formando duas torres para a palavra “torre”. Eles se posicionaram no meio da sala e sob seus pés colocaram almofadas verdes e azuis. Invertendo o que aconteceu anteriormente, o corpo se tornou uma torre grande, enquanto as almofadas lago, rios e gramados menores. Perceberam como eles poderiam se relacionar com os objetos ou estruturas dos espaços, sendo maiores ou menores que eles de acordo com a necessidade. O tamanho, no entanto, não se relaciona apenas com quão alto ou quão baixo está um corpo em relação a um objeto, mas também com até onde o corpo pode chegar: suas extensões, direções e projeções. Em uma das esculturas, num espaço vazio e fechado, uma aluna se moldou em pé, olhando para cima. Nessa imagem, ela criou com seus olhos uma projeção de algo que não estava no palco. Isso significa é possível ultrapassar os limites do espaço cênico e projetar um objeto fora dele por meio da tridimensionalidade do corpo. Mas ele também pode ser bidimensional. Num outro momento, a palavra era “cozinha” e uma aluna foi esculpida deitada no chão, como uma representação egípcia um deus - apenas com altura e largura, nada de profundidade. Ao seu redor, uma planta-baixa de uma cozinha, com fogão, geladeira, pia etc. Esse tipo de representação que destaca que o corpo possui uma característica bidimensional, que foi inclusive reutilizada em outras esculturas.

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4.2.2. “O corpo é uma coisa só, você não monta coisas nele, não tem várias peças para encaixar”. Um aluno recebeu a palavra “fábrica” para modelar. A comum imagem de várias torres soltando fumaça se choca com a necessidade de construir um objeto com um único corpo. A solução encontrada foi criar essas torres com os braços, como se fossem um conjunto de construções, só que feitas pelo mesmo material. As peças do jogo são separadas, você pode colocá-las uma em cima da outra ou espalhá-las em diferentes construções. Mas o corpo é uma unidade. No palco, ele pode se tornar três torres (os braços e a cabeça), mas ele ainda é um único corpo. Apesar de ser uma unidade, o mesmo corpo pode se tornar duas coisas ao mesmo tempo. A palavra foi “portal” e para ser moldada uma aluna observou uma cortina vermelha no palco e levou sua escultura até lá. Emprestou uma blusa vermelha de alguém e posicionou o corpo atrás da cortina com metade vestido pela roupa da cor da cortina e a outra metade com outras roupas, acinzentadas. Foi necessário pensar como criar duas coisas com o mesmo objeto. 4.2.3. “O corpo é articulado, ao invés de encaixar tem que moldar, tem que dobrar partes.” “Garfo” era o objetivo. A escultura foi moldada na tentativa de ser o próprio objeto: foi colocada de ponta cabeça, na parede, com os braços dobrados formando a cabeça do garfo. As articulações do corpo foram utilizadas com destaque para concretizar uma imagem. Em outro exemplo bidimensional, “labirinto” foi a palavra. Porém, neste momento, as articulações do joelho também foram utilizadas, o corpo foi esculpido no chão ao lado de outras figuras retilíneas que representavam a palavra.

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Além disso, a geometria saltou para além das linhas: em “fogo”, um aluno se tornou uma fogueira reta. Porém, neste exercício especificamente, outros escultores que não o original poderiam moldar a escultura caso acreditassem que algo lhe faltava. O mesmo aluno então foi curvado e envolto de panos amarelos. A dinâmica do fogo foi materializada a partir da maleabilidade do corpo e do tecido.

5. IMAGEM 5.1

A imagem e o jogo

Utilizando as palavras de Silvia Laurentiz, “imagem sempre foi um termo instigante e elástico o suficiente para ora ficar amplo demais, ora ficar atrelado a legados reducionistas” (LAURENTIZ, 2005, p.1). Assim, na tentativa de definir melhor esse conceito para o trabalho, menciono dois complementares: “O mundo das imagens se divide em dois domínios. O primeiro é o domínio das imagens como representações visuais: desenhos, pinturas, gravuras, fotografias e as imagens cinematográficas, televisivas, holo e infográficas pertencem a esse domínio. Imagens, nesse sentido, são objetos materiais, signos que representam o nosso meio ambiente visual. O segundo é o domínio imaterial das imagens na nossa mente. Neste domínio, imagens aparecem como visões, fantasias, imaginações, esquemas, modelos ou, em geral, como representações mentais. Ambos os domínios da imagem não existem separados, pois estão inextricavelmente ligados já na sua gênese. Não há imagens como representações visuais que não tenham surgido de imagens na mente daqueles que as produziram, do mesmo modo que

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não há imagens mentais que não tenham alguma origem no mundo concreto dos objetos visuais” (SANTAELLA, 2013, p. 15). ”Estamos, sem dúvida, entrando numa revolução da informação e da comunicação sem precedentes que está desafiando nossos métodos tradicionais de análise e ação” (SANTAELLA, 2001, p. 4). O teatro possui uma dimensão plástica. Durante o século XIX, o que chamamos de “palco italiano” é a tridimensionalização viva de um quadro renascentista: o palco, as cortinas, o pé direito e o urdimento constroem suas arestas e a equipe de artistas dá vida à cena. A plateia assiste a uma imagem. Com o desenvolvimento acelerado de tecnologias para a comunicação digital, a imagem foi capaz de ser lida pelo sistema de informações de um computador, quebrada em partes de 0 e 1, e transmitida por meio de “telefone, cabo ou fibra ótica para qualquer outro computador, através de redes que hoje circundam e cobrem o globo como uma teia sem centro nem periferia” (SANTAELLA, 2001). Por meio de um infográfico criado pela Agência Interativa e pela Infobase, em 2015, sobre o uso de redes sociais no Brasil, foi evidenciado que 68% das postagens feitas no Facebook, em 2014, continham imagens. Elas estão ao alcance de nossa mão, incentivadas a serem criadas, compartilhadas e armazenadas. Com tantas disponíveis, quanto tempo ficamos para observar uma única imagem? Pouco. O Instagram é um exemplo: uma galeria de imagens online produzida por artistas e não artistas. A plataforma é compatível com o celular: com dois cliques, “gostamos” da imagem vista e seguimos para a próxima. Vemos muito pouco daquilo que olhamos (BOAL, 2015). Na tentativa de olhar com mais atenção para imagens, trouxe para

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os alunos o tabuleiro Dixit. Sua premissa é envolta da relação entre pensamento e imagem: um jogador-narrador explicita uma palavra relacionada a uma carta que possui, embaralha-a com as demais e os outros jogadores pontuam se descobrirem sua carta. O baralho é bastante surrealista e propositivo ao se relacionar com outras palavras. Decidi então relacioná-lo com o espaço escolar. Se os estudantes veem com tanta velocidade as imagens no próprio celular, as dimensões visuais do lugar que eles mais frequentam além da própria casa talvez estivessem embaçadas. A partir desse olhar, propus aos estudantes ocuparem enquadramentos espaciais da própria escola, por meio de exercícios inspirados no espaço como indutor de jogo por Ryngaert (2009), num processo constante de criação e análise. 5.2.

A imagem e a comunicação digital

Um observador é necessário para que uma imagem se faça imagem. Ela ”só existe para ser vista” (AUMONT, 2012, p. 205). Mas a visão se modifica de acordo com o desenvolvimento das tecnologias de comunicação. Nos últimos cem anos, a imagem passou pelo jornal impresso, pelo cinema, pela televisão e hoje está em nossos celulares. A Organização das Nações Unidas (ONU) informou em 2018 que cerca de 3,9 bilhões de pessoas ao redor do mundo têm acesso à internet. A internet já faz parte de nossas vidas. A juventude que nasceu a partir dos anos 2000 cresceu com o desenvolvimento de tecnologias de comunicação digitais, como o Facebook, que oficializou suas operações em massa a partir de 2006 e hoje possui cerca de 130 milhões de usuários só no Brasil, segundo a mostra realizada pela Statista em 2019. Nas redes sociais, “a cultura do disponível começou a contaminar a cultura de massas com o vírus da personalização comunicativa do qual esta jamais se livraria” (SANTAELLA, 2001, p. 3). O feed do usuário gira em torno daquilo que ele “segue”, “curte” ou “compartilha”. O consumidor se tornou o produtor de seu próprio conteúdo.

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Todo mundo está feliz nas redes sociais, mas “a mídia digital realiza uma inversão icônica, que faz com que as imagens pareçam mais vivas, mais bonitas e melhores do que a realidade deficiente percebida” (HAN, p. 53). A juventude deve ter consciência dessa inversão, porém a produção e o consumo subsequentes de imagens não dá o tempo necessário para se pensar sobre. Fazemos muito e lemos pouco. A mania de otimização e produção massiva de imagens (Idem, p. 5657) desprepara nosso olhar. As imagens invadem nossos olhos. Somos obrigados a visualizar propagandas no Youtube por pelo menos 5 segundos. A imagem deixa de ser vista para ser consumida. Imagens são mais do que meras reproduções do real, mas são “domesticadas ao se tornarem consumíveis” (HAN, 2019). “Um tal panorama parece exigir uma abertura do olhar e dos horizontes de todos aqueles que, de uma forma ou de outra, estão envolvidos com a comunicação, quer na teoria e pesquisa quer nas suas diversas formas de prática, desde as práticas pedagógicas até as práticas profissionais nos mais diferenciados tipos de mídia” (SANTAELLA, 2001, p. 6). Na tentativa de colocar uma lupa sobre a leitura de imagens com os alunos, apontei para o aprofundamento de sua criação no mundo offline: com seus próprios corpos, provoquei-os na capacidade que têm de transformar uma imagem. “Felizmente, nem os nomes, nem as rotas fazem falta aos jovens, pois é deles o privilégio de compreender pela vivência as emergências do presente” (SANTAELLA, 2014). 5.3

A leitura da imagem

Introduzindo a prática da leitura, o início do trabalho foi com o tabuleiro Dixit. Por meio da própria mecânica do tabuleiro, foi possível que a imagem fosse vista. Seu aspecto imaterial, relacionado à percepção da imagem, começou a ser restituído do consumo: sob a mesma palavra,

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imagens diferentes; sob a mesma imagem, distintos modos de pensar. Seguimos para as ocupações espaciais inspiradas em Ryngaert (2009). Em todos os jogos, uma pessoa entrava em cena e propunha uma ocupação, depois uma segunda entrava compondo com o espaço já ocupado, depois uma terceira fazia o mesmo e assim por diante. Então, observávamos a espaço ocupado e comentávamos. “O trabalho sobre o espaço é a oportunidade de educar o olhar dos jogadores e dos espectadores. Os enquadramentos se realizam a partir de espaços reais. Como e onde colocar o olhar dos outros em relação a um determinado espaço? As duas coisas estão ligadas: como eu mostro e também como é percebido aquilo que mostro” (RYNGAERT, 2009, p. 127). Investigamos os espaços reais da escola: a sala, o pátio, os corredores. “Existe uma poesia do espaço. Uma ligeira modificação de um espaço banal, ou já muito visto, lhe confere novo interesse.” (RYNGAERT, 2009, p. 127). Num primeiro momento, o desafio era ocupar um espaço com as características que já eram dele. Um grupo de alunas, por exemplo, ocupou a sala de aula de maneira despojada, sentando sobre as carteiras e criando rodas de conversa. Numa outra situação, os alunos transformaram grandes mesas da sala de aula em uma pista de boliche. Num segundo momento, o desafio era transformar um espaço que existe nesse mundo em um que não existe segundo nossas leis naturais. Com Dixit inspirando as ocupações espaciais, os alunos foram capazes de criar uma grande ave subindo em uma cadeira para aumentar seu tamanho, direcionar uma estrada com seus corpos e um espaço entre bancos, transformar um muro em um poço das profundezas e criar uma porta mística que não existia, se posicionando como guardas numa parede de folhas com gramado. Com tempo, puderam perceber os detalhes: as mesas, as cadeiras, os bancos, o muro, as paredes da sala de aula. Partindo da observação do

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espaço e das cartas, eles transformaram os lugares em semelhantes ou inexistentes no mundo humano. “O espaço como trabalho sobre o sentido. Ele é o que é representado, em sua realidade imediata; é também o que representa ou aquilo que os jogadores se esforçam para fazê-lo representar. Assim começa o trabalho sobre a noção de metáfora, as formidáveis variações em torno do sentido. Tudo se torna possível a partir de um mesmo cadinho” (RYNGAERT, 2009, p. 128).

6.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O jogo é uma perspectiva, uma maneira de olhar o mundo, uma visão de mundo, um óculos para a realidade. Podemos observar e avaliar os jogos de tabuleiro e os jogos teatrais por essa ótica e aproximá-los. Podemos também juntar numa mesma prática essas duas espécies e transformá-las em material poético mútuo. Por meio principalmente do Abstratus, os alunos estabeleceram relações entre o tabuleiro e os próprios corpos: se tornaram as peças do jogo. Mas um é feito de madeira e acrílico, e o outro de carne e sangue. Um é pequeno, passível de separação e sem flexibilidade material. O outro é grande, impossível de ser partido e possibilitando dobras. A tridimensionalidade do corpo se tornou consciente. Trata-se de uma experiência corporal diferente da experiência do corpo tecnológico intrínseca à juventude do milênio, acostumada à selfie como postura, ao celular como extensão corporal e à tecnologia como necessidade. Mas se foram tão fortes as relações que teceram entre o próprio corpo e as peças de um tabuleiro, como as peças geométricas de um jogo de tabuleiro podem introduzir fundamentos visuais da teatralidade? Como um conjunto de peças de um tabuleiro pode guiar um processo de aprendizagem teatral?

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Partindo dessa mesma juventude tecnológica, mas propondo uma lupa no desenvolvimento acelerado das comunicações digitais, uma imagem pode deixar de ser vista: passa despercebida pelo feed de notícias das redes sociais, ou no invade por meio de propagandas. Sem ser contemplada, a imagem é produzida em larga escala planetária. Fazemos muito, mas lemos pouco. Trata-se de uma cultura do fazer que subestima a capacidade de observação e de leitura do sujeito. Concede ao consumidor a possibilidade da produção e da transmissão, mas retiralhe o direito do olhar. Com Dixit, foi possível introduzir o cuidado com o olhar: a cada jogada, todas as cartas na mão devem ser olhadas e analisadas em seus detalhes. Seguindo para as ocupações de espaços pela escola, exploramos como um mesmo lugar ou imagem pode possuir vários significados. Depende de quem cria e de quem vê. Como o tabuleiro, os jogos teatrais seguiram o esquema “faz-lê”, notando como a avaliação cuidadosa de uma imagem pode tornar a próxima imagem criada mais complexa. Nasceram, daí, dois jogos. Os alunos de uma escola criaram um jogo de ocupação espacial, tridimensionalização do corpo, observação de detalhes visuais e transposição para uma escultura material. Na outra escola, foi elaborado um jogo de improvisação cênica baseado na construção de um cenário, nas narrativas tecidas por um vencedor e na comunicação corporal que os perdedores devem exercer. “Os jogos desenvolvem as técnicas e habilidades pessoais necessárias para o jogo em si, através do próprio ato de jogar” (SPOLIN, 2015). Se o jogo possui uma capacidade intrínseca de retroalimentação, a criação de um jogo pode renovar esse ciclo interno por meio das vontades e dos conhecimentos de seus criadores.

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7. REFERÊNCIAS AUMONT, Jacques. A imagem/ Jacques Aumont [Trad. Estela dos Santos Abreu, Cláudio C. Santoro]; Revisão técnica Rolf de Luna Fonseca. – 16ª ed. – 2012 – Campinas, SP: Papirus. - (Série Ofício de Arte e Forma). BARBA, Eugenio. A arte secreta do ator: um dicionário de antropologia teatral / Eugenio Barba, Nicola Savarese; [tradução de Patrícia Furtado de Mendonça]. – São Paulo: É Realizações, 2012. - (A arte do ator). BOAL, Augusto. Jogos para atores e não atores: Augusto Boal; [tradução: Bárbara Wagner Matrobuono e Célia Euvaldo]. São Paulo: Cosac Naify, 2015. GREINER, Christine; KATZ, Helena. Arte e cognição / Organização Helena Katz; Christine Greiner. São Paulo: Annablume, 2015. HAN, Byung-Chul. No enxame: perspectivas do digital / Byung Chul Han; tradução de Lucas Machado. - Petrópolis, RJ: Vozes, 2018. HUIZINGA, Johan. Homo ludens: o jogo como elemento da cultura. Johan Huizinga; [tradução de João Paulo Monteiro]. São Paulo: Perspectiva, 2018, 8 ed. (Estudos/ dirigida por J. Guinsburg). JÄRVINEN, Aki. Game design for social networks: interaction design for playful dispositions. Proceedings of the 2009 ACM SIGGRAPH Symposium on Video Games. ACM, 2009. LAURENTIZ, Sílvia. “Questões da Imagem”. In: VALENTE, Agnus (Org.). HIBRIDA. Revista Eletrônica. São Paulo, Brasil, maio/2005. LÉVY, Pierre. A máquina universo: criação, cognição e cultura informática/ Pierre Lévy [trad. Bruno Charles Magne]. - Porto Alegre: ArtMed, 1998. LÉVY, Pierre. Cibercultura / Pierre Lévy [tradução de Carlos Irineu da Costa]. – São Paulo: Ed. 34, 1999 (Coleção TRANS).

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RYNGAERT, Jean-Pierre. 2009. Jogar, representar: práticas dramáticas e formação [tradução: Cássia Raquel da Silveira]. São Paulo: Cosac Naify, 2009. SALEN, Katie; ZIMMERMAN, Eric. Rules of play: game design fundamentals / Katie Salen and Eric Zimmerman. Massachussetts Institute of Technology: The MIT Press, 2004. SANTAELLA, Lucia. Novos Desafios da Comunicação. Juiz de Fora: Facom/ UFJF, 2001. V. 4, n. 1. SANTAELLA, Lucia. Image: cognição, semiótica, mídia / Lúcia Santaella, Winfried Nöth - 1. edição, São Paulo: Iluminuras, 1997 - 6. reimp., 2013. SANTAELLA, Lucia. Mídia, participação e entretenimento em tempos de convergência. São Paulo: Revista GEMInIS / Edição Especial - JIG 2014. SPOLIN, Viola. Improvisação para teatro. [tradução e revisão Ingrid Dormien Koudela e Eduardo José de Almeida Amos]. São Paulo: Perspectiva, 2015. WOODS, Stewart. Eurogames: The Design, Culture and Play of Modern European Boardgames. McFarland: Jefferson, NC, 2012.

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\a dramaturgia da luz na performance cenográfica inspirada na canção “eutanásia” da banda supercombo Crislene Jardim de Almeida¹ 27 anos, Manaus (AM). Atriz e designer gráfica, é estudante de teatro da Universidade do Estado do Amazonas (UEA/Esat) e pesquisa cenografia e iluminação na cena teatral. Dirige o Grupo Garfo na Tomada e teve destaque com a montagem do espetáculo A jaula, aprovado em dois editais na cidade. cjda.tea19@uea.edu.br

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1. Discente do curso de bacharelado em teatro da Universidade do Estado do Amazonas. Orientadores: Fátima Maria da Rocha Souza, professora de metodologia científica, e Jhon Weiner de Castro, professor da disciplina cenografia.


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ficha técnica Universidade Universidade do Estado do Amazonas, Escola Superior de Artes e Turismo (UEA/Esat) Tipo do curso Graduação Nome do curso Bacharelado em teatro Período do curso 2019-2023 Estado Amazonas Título do trabalho A dramaturgia da luz na performance cenográfica inspirada na canção “Eutanásia” da banda Supercombo Nome da autora Crislene Jardim de Almeida Nome dos orientadores Fátima Maria da Rocha Souza (metodologia científica) e Jhon Weiner de Castro (cenografia) Número de páginas 20 71


\a dramaturgia da luz na performance cenográfica inspirada na canção “eutanásia” da banda supercombo

RESUMO O presente estudo tem como objetivo relatar os procedimentos utilizados para desenvolver a proposta cenográfica, percorrendo as etapas projetadas e seus conceitos em seu processo de criação. Foram utilizadas pesquisa de revisão bibliográfica, levantamento de dados e estudo de caso para ajudar a entender a função de disponibilidade em questões físicas e climáticas do espaço cênico durante a funçãocenógrafo atribuída. Os processos aplicados, como observação e escolha do espaço, analisando todos os prós e contras, o brainstorming para compreender de forma aprofundada as simbologias contidas na letra que auxiliariam no desenho da dramaturgia da luz e assim realizar as primeiras propostas cenográficas, tal como suas alterações, roteiro de cena, escolha de materiais, pesquisa de orçamento, organização de cronograma, detalhamento técnico, confecção e teste da maquete, corte do material em tamanho real e por fim a execução da cenografia em sua total funcionalidade e interação com a atriz conforme planejado. Palavras-chave: Cenografia, Semiótica, Iluminação, Processo Criativo, Música.

ABSTRACT This study aims to report the procedures used to develop the scenographic proposal, going through the projected stages and their concepts in their creation process. Bibliographic review research, data collection and case study were used to help understand the availability function in physical and climatic issues of the scenic space during the assigned scenographer function. The applied processes, such as observation and choice of space, analyzing all pros and cons, brainstorming to understand in depth the symbologies contained in the letter that would assist in the design of the dramaturgy of light and thus carry out the first scenographic proposals, as well as their changes , scene script, choice of materials, budget research, schedule

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organization, technical details, making and testing the model, cutting the material in real size and finally the execution of the scenography in its full functionality and interaction with the actress as planned. Key-words: Scenography, Semiotics, Lighting, Creative Process, Music.

RESUMEN Este estudio tiene como objetivo informar los procedimientos utilizados para desarrollar la propuesta escenográfica, pasando por las etapas proyectadas y sus conceptos en su proceso de creación. La investigación de revisión bibliográfica, la recopilación de datos y el estudio de casos se utilizaron para ayudar a comprender la función de disponibilidad en cuestiones físicas y climáticas del espacio escénico durante la función de escenógrafo asignada. Los procesos aplicados, como la observación y elección del espacio, analizando todos los pros y contras, la lluvia de ideas para comprender en profundidad las simbologías contenidas en la letra que ayudarían en el diseño de la dramaturgia de la luz y así llevar a cabo las primeras propuestas escenográficas, así como sus cambios , guión de la escena, elección de materiales, investigación de presupuestos, organización de horarios, detalles técnicos, confección y prueba del modelo, corte del material en tamaño real y finalmente la ejecución de la escenografía en toda su funcionalidad e interacción con la actriz según lo previsto. Palabras-llave: Escenografía, Semiótica, Iluminación, Proceso Creativo, Música.

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A pesquisa deu-se inicio durante a disciplina de cenografia do curso de Teatro da Universidade do Estado do Amazonas, onde fomos motivados a criar ou dar procedimento algum projeto/espetáculo que estivéssemos envolvidos e que poderia servir para a atividade, no entanto, o ponto de partida surgiu de um insight2 enquanto ouvia a música Eutanásia da banda Supercombo. Alguns trechos da canção como “respira pelos canos”, “apagar a luz deve ser melhor” me chamaram atenção, a canção dá a entender que se trata de uma mulher em estado de coma em uma sala de UTI clamando para que todo aquele sofrimento termine, a ideia de usar as lâmpadas surgiu ao entender que se levar a personagem a um estado de subconsciente seria possível gerar um novo ambiente para que ela transitasse, e a luz representaria uma espécie de caminho, onde cada “pico de luz” seria um fio de esperança de vida para ela. A concepção da cenografia partiu da possibilidade de simular este ambiente hospitalar e para isso foi feito uma pesquisa com intuito de identificar as similaridades quanto às especificações deste ambiente onde pudessem ser utilizadas na projetação, com fortes traços do surrealismo em uma performance materializando a consciência e os sentimentos desta pessoa em estado de coma. Como esta canção não possui clipe, o que torna viável arriscar desenvolver um trabalho que possa contribuir com os estudos de cenografia. Curiosamente, em seus shows a banda utiliza o suporte de iluminação de palco durante esta canção e um efeito visual de aparelho de monitoramento vital, com a freqüência cardíaca ao fundo, esta que busquei representar com as lâmpadas, levando em consideração o estudo semântico que deve ser feito para transpor a letra da música. A escolha do material partiu do questionamento de como poderia substituir os tubos de respiração citados na canção e inseri-los de forma diferente na cena? Sendo assim feita a escolha dos tubos de PVC e as lâmpadas como iluminação cênica. As demais dúvidas e como permaneci com a ideia inicial será apresentada no decorrer deste projeto.

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2. Estalo de luz, compreensão ou solução de um problema pela súbita captação mental dos elementos e relações adequadas.


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3. GUINSBURG, J; NETTO, J. Teixeira Coelho; CARDOSO, Reni Chaves. Semiologia do Teatro. São Paulo: Perspectiva, 2006.

4. ASSIS, Rodrigo Horse. Design de Iluminação: Iluminação ênica de um espetáculo teatral. Goiânia: Gráfica e Editora América, 2016.

1.

A PESQUISA

Foram utilizados alguns livros Semiologia do Teatro3 e Design da Iluminação4 para trazer referências pertinentes a estudos de cenografia e iluminação, e alguns sites, para apresentar um pouco a história da banda Supercombo e coletar dados quanto aos aspectos estruturais de uma UTI a fim de trazer o máximo de detalhes para agregar na criação da atmosfera hospitalar para a cena. 1.1

Cenografia e Iluminação

Segundo Guinsburg (2006) “A tarefa primordial do cenário é representar o lugar”. Quando a música é o ponto de partida de um espetáculo, os problemas específicos e muito difíceis colocam-se neste caso, quando ela é acrescentada ao espetáculo, seu papel é o de sublinhar, de ampliar, de desenvolver, às vezes de desmentir os signos de outros sistemas ou de substituí-los. O papel do cenógrafo (chamado também de autor do dispositivo cênico, ou decorador) é criar signos do cenário, dos acessórios, às vezes da iluminação; ele mesmo ou os colaboradores especializados criam os signos do vestuário, do penteado, da maquilagem. Por determinada disposição no espaço cênico, o cenógrafo pode sugerir os signos do movimento. (GUINSBURG; NETTO; CARDOSO, 2006, p.116) Quanto à iluminação, o autor afirma que tem como importante função de ampliar ou modificar o valor semiótico: o rosto, o corpo do ator ou o fragmento do cenário são às vezes ‘modelados’ pela luz. (p.113) Assis (2016) ressalta, Para criar a luz de um espetáculo, é importante estudar a direção dela, a escolha das cores

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adequadas para cada cena, a localização dos equipamentos e focos de luz de acordo com a composição da cena e com o objetivo dela. No caso deste projeto a música está diretamente ligada à cena, as lâmpadas são os recursos visuais que ajudarão a conduzir a narrativa das ações, devemos então considerar as influências do teatro simbolista, na qual esta concepção é tratada como justaposição de signos, onde os significados são idênticos ou muito aproximados. 1.2 Supercombo Formada em 2007 em Vitória (ES), atualmente a Supercombo é integrada por Leo Ramos (voz e guitarra), Pedro “Toledo” Ramos (guitarra), Carol Navarro (baixo) e Paulo Vaz (teclados). Em suas músicas, a banda apresenta como principal essência temática os dilemas e as emoções diárias que marcam a vida das pessoas, tornando temas densos e profundos em letras diretas e otimistas. ​Próximos do público, os integrantes da banda dialogam com os fãs não apenas por meio das canções, mas também via redes sociais. Sempre conectada, a Supercombo revela diariamente curiosidades de bastidores e da rotina do grupo, integrando seus seguidores em tudo que estão produzindo e divulgando. A Supercombo já possui cinco álbuns lançados - Festa? (2007), Sal Grosso (2011), Amianto5 (2014) e Rogério (2016) e Adeus, Aurora (2009) - e uma série de projetos extras, entre eles o canal de YouTube (Supercomborock). ​ ele, o grupo publica conteúdos próprios por meio de narrativas variadas, N incluindo uma websérie de sessões acústicas - a Session da Tarde -, que já possui duas temporadas disponibilizadas com participações especiais de diversos grupos e artistas brasileiros. ​Escalada para grandes eventos, a Supercombo já tocou em palcos famosos - festival João Rock, Lollapalooza Brasil e Planeta Atlântida - além de seguir na estrada participando de

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5. Há uma teoria entre os fãs de que as letras a partir do álbum Amianto estão interligadas, o que nos leva a traçar uma linha entre as personas de cada canção.


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Line-ups variados em diferentes casas de show espalhadas Brasil a fora. 1.3

Tipos de Lâmpadas

Realizei um levantamento de dados sobre quais lâmpadas utilizadas em ambientes hospitalares, e em UTI é comum encontrarem as LED’s devido à redução da emissão de calor. Porém não são todas as led que possibilitam controlar a potência elétrica, por isso a utilização deste tipo de lâmpada inicialmente teria que ser deixada isolada. Já o efeito de oscilação da luz foi resolvido com o uso de dimmer com lâmpadas halôgenas.

Imagem 01: Tipos de lâmpadas https://www.ibdi-edu.com.br/home/tag/iluminacao-de-pe-direito-duplo/

1.4

UTI

Projetar uma UTI ou modificar uma unidade existente exige conhecimento das normas dos agentes reguladores, experiência dos profissionais de terapia intensiva, que estão familiarizados com as necessidades

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específicas da população de pacientes. Deve contar com uma equipe multidisciplinar composto de médico, enfermeiro, arquiteto, administrador hospitalar e engenheiros. Esse grupo deve avaliar a demanda esperada da UTI baseado na avaliação dos pontos de fornecimento de seus pacientes, nos critérios de admissão e alta, e na taxa esperada de ocupação. É necessário análise dos recursos médicos, pessoal de suporte (enfermagem, fisioterapia, nutricionista, psicólogo e assistente social) e pela disponibilidade dos serviços de apoio (laboratório, radiologia, farmácia e outros). Cada UTI deve ser uma área geográfica distinta dentro do hospital, quando possível, com acesso controlado, sem trânsito para outros departamentos. Sua localização deve ter acesso direto e ser próxima de elevador, serviço de emergência, centro cirúrgico, sala recuperação pósanestésica, unidades intermediárias de terapia e serviço de laboratório e radiologia. A disposição dos leitos de UTI podem ser em área comum (tipo vigilância), quartos fechados ou mistos. A área comum proporciona observação contínua do paciente, é indicada a separação dos leitos por divisórias laváveis que proporcionam uma relativa privacidade dos pacientes. As unidades com leitos dispostos em quartos fechados, devem ser dotadas de painéis de vidro para facilitar a observação dos pacientes. Nesta forma de unidade é necessário uma central de monitorização no posto de enfermagem, com transmissão de onda eletrocardiográfica e freqüência cardíaca. Independente da forma escolhida para a Unidade de Terapia Intensiva, esta deve obedecer aos seguintes critérios: Os pacientes devem ficar localizados de modo que a visualização direta ou indireta, seja possível durante todo o tempo, permitindo a monitorização do estado dos pacientes, sob as circunstâncias de rotina e de emergência.

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6. Proporções utilizadas como base para as metragens da cenografia no espaço cênico.

O projeto preferencial é aquele que permite uma linha direta de visão, entre o paciente e o posto de enfermagem. a área de cada leito deve permitir ampla circulação e fácil manejo da aparelhagem. Os leitos devem ficar tanto quanto possíveis isolados uns dos outros. As unidade deve ter aberturas amplas de vidro ou janelas isolantes para o exterior, para evitar claustrofobia. a aparelhagem de ar condicionado deve ter funcionamento perfeito e suas saídas não devem canalizar ar sobre os leitos; todos os leitos devem possuir 11 tomadas/leito de energia elétrica , em 110 / 220 volts, localizadas 0,9 m acima do piso e devem estar conjugadas com o gerador de emergência do hospital; todos os leitos devem contar no mínimo com 1 saída de canalização à vácuo, 2 de ar comprimido e 2 saídas de oxigênio; 9,0 m² por leito com distância de 1 m entre paredes e leito, exceto cabeceira, de 2 m entre leitos e pé do leito = 1,2 m (o espaço destinado a circulação da unidade pode estar incluído nesta distância).6 São desejáveis para este ambiente cores vivas, carpete, janelas, iluminação indireta e suave. Para suprir cada U.T.I. deve ser planejado um corredor com 2,4 metros, portas com abertura no mínimo 0,9 metros, permitindo fácil acesso. A circulação exclusiva para itens sujos e limpos é medida dispensável. O transporte de material contaminado pode ser através de quaisquer ambientes e cruzar com material esterilizado ou paciente, sem risco algum, se acondicionado em carros fechados, com tampa e técnica adequada. As janelas são aspectos importantes de orientação sensorial e o maior número possível das salas deve ter janelas para indicação de dia/ noite. Para controlar o nível de iluminação pode utilizar cortinas, toldos externos, vidros pintados ou reflexivos. Os leitos necessários para fornecer uma cobertura segura e adequada para pacientes gravemente doentes num hospital, dependem da população do hospital, quantidade de cirurgias, grau do compromisso de cuidados intensivos pela administração do hospital, pelos médicos e enfermeiros, e dos recursos institucionais.

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Uma UTI deve existir com no mínimo cinco leitos, em hospitais com capacidade para cem ou mais leitos. A instalação com menos de cinco leitos torna-se impraticável e extremamente onerosa, com rendimento insatisfatório em termos de atendimento. O ideal considerado do ponto de vista funcional, são oito a doze leitos pôr unidade. Caso se indique maior número de leitos, esta deve ser dividida em subunidades. Esta divisão proporciona maior eficiência de atendimento da equipe de trabalho. De acordo com a Portaria nº 466,do Ministério da Saúde, de 04 de junho de 19987 os seguintes critérios devem ser seguidos: • Para cada paciente internado na UTI, deve existir uma cama Fawler com grades laterais e rodízios e/ou um berço aquecido ou incubadora, de acordo com a modalidade de UTI e faixa etária dos pacientes atendidos. • Toda Unidade de Tratamento Intensivo deve estar provida, no mínimo, dos materiais e equipamentos, atendendo à quantificação nela prevista. 1.5 Eutanásia A eutanásia é definida como a conduta pela qual se traz a um paciente em estado terminal, ou portador de enfermidade incurável que esteja em sofrimento constante, uma morte rápida e sem dor. É prevista em lei, no Brasil, como crime de homicídio. Entre as formas dessa prática existe a diferenciação entre eutanásia ativa, quando há assistência ou a participação de terceiro – quando uma pessoa mata intencionalmente o enfermo por meio de artifício que force o cessar das atividades vitais do paciente - e a eutanásia passiva, também conhecida como ortotanásia (morte correta – orto: certo, thanatos: morte), na qual se consiste em não realizar procedimentos de ressuscitação

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7. Ministério da Saúde. Critérios de classificação para as unidades de Tratamento Intensivo – UTI. Acessado em 28 de Outubro de 2019. Disponível em < http://bvsms.saude.gov.br/ bvs/saudelegis/gm/1998/ prt3432_12_08_1998.html>


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8. Unidade acadêmica da Universidade do Estado do Amazonas que recebe os cursos de Arte e Turismo, dentre eles dança, música e teatro.

ou de procedimentos que tenham como fim único o prolongamento da vida, como medicamentos voltados para a ressuscitação do enfermo ou máquinas de suporte vital como a ventilação artificial, que remediariam momentaneamente a causa da morte do paciente e não consistiriam propriamente em tratamento da enfermidade ou do sofrimento do paciente, servindo apenas para prolongar a vida biológica e, consequentemente, o sofrimento.

2.

A ESCOLHA DA SALA

A Esat (Escola de Arte e Turismo)8 atualmente tem duas possibilidades de sala para as turmas de teatro - as salas de encenação que são toda preta e as salas de aula normal, branca. De inicio o dilema era se iniciava a cena com as luzes acesas e depois apagava ou se fazia uma exclusão dos objetos e depois acendia as luzes, no entanto estes questionamentos tornaram-se irrelevantes ao decidir que o ambiente precisaria ser todo escuro e aos poucos ir revelando o labirinto. Para que o projeto desse certo passei alguns dias observando as duas salas escuras que havia na Universidade, a Grande Otelo e Ariano Suassuna, localizadas no terceiro andar da unidade. Ambas as salas a partir das 19h ficam totalmente escuras, tal motivo que me fez escolher inicialmente a sala Ariano Suassuna, porém depois troquei pela Grande Otelo por ter as tomadas na eletro calha e toda a projeção superiores e inferior foram projetadas para esta sala.

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Imagem 02. Sala Grande Otelo durante o dia, mais ou menos umas 11h40 O autor, 2019

Imagem 03. Sala Grande Otelo no fim da tarde, quase 18h. O autor, 2019

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Imagem 04. Sala Ariano Suassuna as 19h O autor, 2019

Contudo, pela necessidade de reserva, acabei ficando impossibilitada de executar na data prevista na sala escolhida, tendo então que trocar para a sala Ariano Suassuna (imagem 04), o problema só não foi agravado pelo fato das salas serem parecidas, o que mais dificultou foi a distribuição da lâmpadas/tubos superiores (vide imagem 05 e 06), que sofreram modificações quanto posicionamento. Vale ressaltar que este projeto poderia ter tido sua estrutura comprometida por com conta das instalações serem projetadas exatamente para o espaço cênico.

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Imagem 05. Calhas de luz da sala Ariano Suassuna O autor, 2019

Imagem 06. Calhas de da sala Grande Otelo O autor, 2019

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3. SIMILARES A principal referência estética de UTI e principalmente quanto à iluminação foram inspiradas na cenografia da série The Handmaid’s Tale, no episódio 3x09, na qual uma das AIAS grávida está em coma e a June precisa estar acompanhando sua internação 24h por dia.

Imagem 07: Prints da tela durante exibição do episódio (The Handmaid’s Tale, HULU) O autor, 2019

4. PROJETAÇÃO “Respira pelos canos” – esta frase deu inicio ao brainstomirng de todo o projeto, os primeiros desenhos foram feitos na tentativa de construir este ambiente hospitalar presente na simbologia da canção (vide imagem 08). Inicialmente me surgiu o questionamento de como poderia substituir os tubos de respiração sem perder a essência dramatúrgica, e os tubos de PVC (que até então eu chamava de cano) surgiram como uma boa solução para isto, por ser um material resistente e de fácil manuseio, contemplava mais da ideia da estrutura pretendida. A princípio achava que as bases seriam individuais e que os tubos a serem utilizados seriam os grossos, por pensar que teriam uma melhor sustentação e as

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ramificações superiores seriam feitas com os canos mais finos, no entanto ao realizar o orçamento, fui orientada de que não haveria necessidade de fazer um investimento com tubos de tamanhos diferentes, pois para o que pretendia o tubo de tamanho 40 mm já seria suficiente, pois teria a resistência e a estrutura permaneceria erguida.

Imagem 08: Sketch inicial da disposição

Imagem 09. Primeira Planta baixa

dos tubos

O autor, 2019.

O autor, 2019

4.1

A MAQUETE

Foi usada a plantada sala (vide imagem 10) como referência principal para projetação em escala menor, tentando ao máximo respeitar as dimensões do local, esta etapa é feita para diminuir as chances de erros tendo assim uma observância com riqueza de detalhes necessários para quando for executar em tamanho real, é fundamental que todos os elementos inseridos sejam semelhantes aos que serão usados no projeto propriamente dito.

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Imagem 10. Planta das novas salas do terceiro andar. Fonte: Coordenação ESTAT, 2019

Dado início a montagem da maquete comecei a observar os primeiros problemas de sustentação quanto às bases de tubo isoladas, forçandome a interligar todas as pontas dos tubos e transformar de fato em um labirinto retangular, como é possível observar nas alterações feitas de lápis na imagem 09.

Imagem 11. Materiais e confecção da maquete O autor, 2019

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No intuito de evitar grandes gastos com a maquete foram utilizados alguns materiais recicláveis e outros com um preço mais acessível, dentre eles: • • • •

Papel A4 usado para confecção dos tubos. Cola branca, cola de isopor, cola de silicone e cola de sapateiro, Fita gomada para cobrir as imperfeições do papelão. Papelão, usado para montar a estrutura da Grande Otelo (Ar condicionado, paredes, porta, janelas) todos os detalhes possíveis quanto à estrutura da sala. • Pisca-pisca, utilizado para simular os picos de luz que ficariam em cada ponta dos tubos. Durante o teste, notei que vazava luz por todos os espaços do labirinto, experimentei usar outros materiais para cobrir, como fita crepe, camadas de tinta branca, mas nada funcionou, foi então que usei o papel alumínio, este material resolveu o problema causado pelas lâmpadas do piscapisca - uma vez que não tinha como fazer as conexões destas lâmpadas individuais, pois danificaria o material, sendo necessário dar voltas no tubo da maquete e seguir com os fios nas demais ramificações (vide imagem 12).

Imagem12. Isolamento de luz O autor, 2019

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Imagem 13. Maquete finalizada O autor, 2019

A maquete ficou com o tamanho 35 cm (largura) e 45 cm (comprimento) confeccionada de forma totalmente intuitiva. 4.2

O Labirinto-UTI

Foi utilizado 5 tubos de PVC tamanho 40 mm, 20 curvas para as bases do labirinto e 15 curvas para as ramificações, 11 te’s,fita isolante, alicate, abraçadeira, 2 extensões (1 para ligar a mesa e a outra para a led), arame recozido, 100m de fio, 11 bocais,11 lâmpadas sendo 10 halógenas (foram as únicas disponíveis com função dimerizável) e uma Led (para o centro), 5 tomadas macho para ligar os bocais das ramificações na mesa, 1 tomada macho para ligar os tubos instalados na calha superior, 1 tomada macho para a led,, intencionalmente tem essa quantidade de lâmpadas/ tubos devido a quantidade de leitos conforme referência no tópico UTI (vide tópico anterior), a distância entre o teto e a altura da ponta da ramificação mais alta é de 0,9m pois também é baseada na referência real da UTI. A trena (7,5m) foi usada para distribuir e conferir as dimensões dos cortes dos tubos. As dimensões foram feitas a partir da demarcação (vide figura 14) foi feita no piso da minha casa com fita crepe, alguns tamanhos inseridos de forma dedutiva por conta da limitação do espaço, mas calculadas baseadas no tamanho da sala na qual seria montada a

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estrutura, coincidentemente ao final juntando as conexões das curvas e te’s as proporções ficaram exatas em tamanho real como projetado na maquete - 3,5m (largura) e 4,5m (comprimento).

Imagem 14. Demarcações e distribuição dos tamanhos em metragem real. O autor, 2019

O corte dos tubos (vide imagem 15) foi feito com uma serra, e o acabamento com lixa e lima para que não ficasse cortante ou impedisse de inserir as curvas.

Imagem 15. Tubos cortados O autor, 2019

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4.3

A iluminação

Para que fosse possível alcançar o resultado de oscilação/controle da potência e disposição das luzes foi necessário montar uma mesa de iluminação com 6 dimmers, com base de madeira, contendo 6 tomadas fêmeas, sendo 5 para as ramificações do labirinto e 1 para ligar as outras 5 superiores. Recebi ajuda de um profissional para confeccionar esta mesa de iluminação dimmer (vide imagem 16).

Imagem 16. Mesa de iluminação caseira O autor, 2019

A instalação foi realizada na noite da segunda-feira (02 de Dezembro de 2019), dia anterior a apresentação, tendo duração de 4 horas para a montagem completa (instalação elétrica e montagem dos tubos), com ajuda de um eletricista (Manoel Messias) e minha irmã (Cristiane Jardim) (vide imagens 17 e 18), neste momento foi feito todos os testes que antes não puderam ser realizados, testar se os bocais estavam funcionando (dois tiveram que ser substituídos), verificar os dimmers (constatado que dois estavam com a placa solta), se os fios iam dar (foi necessário fazer algumas emendas) e verificamos se todas as lâmpadas

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estavam funcionando. Toda conexão/montagem da fiação teve que ser feita durante a montagem da estrutura. Como alguns materiais estavam danificados, tivemos que retornar na manhã do dia seguinte (terça-feira, dia 03) para substituir e testar se estava tudo realmente funcionando.

Imagem 17. Montagem da estrutura O autor, 2019

Imagem 18. Montagem da estrutura O autor, 2019

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9. Professora do corpo docente do curso de teatro e dança da ESAT.

Imagem 19. Cartaz de Divulgação para redes sociais e sala de apresentação. O Autor, 2019

5.

EUTANÁSIA: A PERFORMANCE

No dia da apresentação, pela tarde, a atriz fez o reconhecimento do espaço e ensaiou as movimentações conforme a dramaturgia da luz, de forma fluída foi pegando o ritmo da música e se familiarizando com a proposta. A apresentação foi realizada no dia 03 de Dezembro de 2019 as 19h na sala Ariano Suassuna, tendo como público alunos, familiares, amigos e a professora Daniely Peinado9 com a ausência do professor da disciplina, John Weiner se voluntariou a ser a “testemunha acadêmica” para acompanhar a apresentação. Na cena havia uma atriz deitada ao centro (Simone Alencar) que fora escolhida exatamente pela sua afinidade quanto a trabalhos mais expressivos e dramáticos, assim como um bom desempenho em expressão corporal e um olhar penetrante, o que casava exatamente com a proposta para a personagem.

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O roteiro de cena foi acompanhado com a execução da música Eutanásia da Banda Supercombo que teve duração exata de 3 minutos e 13 segundos, repetida em uma segunda sessão (feita 19h20). Confira a seguir alguns registros da apresentação:

Imagem 20. Resultado final. Cenografia Eutanásia Fonte: Cris AxlVaquer

Imagem 21. Resultado final. Cenografia Eutanásia Fonte: Cris AxlVaquer

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REFERÊNCIAS OLIVEIRA, Lucas. Eutanásia. Disponível em <https://brasilescola.uol.com. br/sociologia/eutanasia.htm>. Acessado em: 16 set. 2019. PORTAL DA EDUCAÇÃO. UTI. Disponível em <https://www.portaleducacao. com.br/conteudo/artigos/enfermagem/estrutura-fisica-na-uti/41788>. Acessado em 15 set. 2019. SUPERCOMBO. Supercombo. Disponível em <https://www.supercomborock. com/sobre> Acessado em 10 dez. 2019.

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\performatividade como chave para improvisação: uma cartografia (auto)etnográfica de um ator-improvisadorperformer Edgar Vicente Quintanilha da Rocha¹ 29 anos, Belo Horizonte (MG). Ator, comediante, improvisador e performer, é bacharel em interpretação teatral pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), em 2018, e licenciado em teatro pela mesma instituição, em 2020. É fundador do Queijo, Comédia e Cachaça, primeiro grupo de comédia stand-up de Minas Gerais, criado em 2008. edgarquintanilha@gmail.com

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1. Ator, improvisador, comediante e performer. Bacharel em interpretação teatral pela UFMG (2018). Graduando em licenciatura em teatro também pela UFMG.


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ficha técnica Universidade Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) Tipo do curso Graduação Nome do curso Bacharelado em interpretação teatral e licenciatura em teatro Período do curso 2013-2020 Estado Minas Gerais Título do trabalho Performatividade como chave para improvisação: uma cartografia (auto)etnográfica de um ator-improvisador-performer Nome do autor Edgar Vicente Quintanilha da Rocha Nome do orientador Vinícius da Silva Lírio Número de páginas 21

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RESUMO Relacionar a improvisação teatral, considerando o Sistema Impro, e a performance, a partir de experiências de um ator e performer, é o que mobilizou esse estudo. Esferas distintas na arte, no “aqui-agora”, elas têm em comum serem atravessadas por performatividade. Esse reconhecimento disparou essa pesquisa de Iniciação Científica. O Sistema Impro, criado por Keith Johnstone, é um agrupamento de conceitos e práticas que visam a criação de improvisações teatrais. Diz respeito à execução de histórias em espetáculos improvisados. Já performance se furta de conceitos e definições estabelecidos, constituindo-se como forma de expressão híbrida e flexível que dribla formatações de mídias, matérias ou espaços. Ela desafia definições, ao se constituir em dinâmicas paradoxais, como é o caso da cena-não-cena. Assim, a partir de vivências do autor na Impro e na performance, investigou-se aspectos e princípios entre os modos de criar e de ser/estar do ator-improvisador e do performer, bem como, os traços constitutivos do “aqui-agora” nesses lugares de expressão. Por meio de exercícios (auto)etnográficos e por entre princípios da cartografia, investiu-se num mapeamento das experiências do autor no projeto de extensão “Corpos (da) Cidade” e em espetáculos de Impro. Por entre análises e interpretações, buscouse entender a questão-norteadora: seria a performatividade a chave, também, para a realização de uma improvisação? Palavras-chave: Improvisação, performance, poéticas híbridas. ABSTRACT Relating theatrical improvisation, considering the Impro System, and performance, based on the experiences of an actor and performer, is what mobilized this study. Different spheres in art, in the “here-now”, they have in common to be crossed by performativity. This recognition triggered this research. The Impro System, created by Keith Johnstone, is a set of concepts and practices aimed at creating theatrical improvisations. It concerns the execution of stories in improvised shows. Performance, on

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the other hand, evades established concepts and definitions, constituting itself as a form of hybrid and flexible expression that circumvents media formats, materials or spaces. Thus, from the authors experiences at Impro and performance, aspects and principles were investigated between the ways of creating and being / being of the improviser-actor and the performer, as well as the constitutive traits of the “here-now” in these places of expression. Through (auto) ethnographic exercises and among the principles of cartography, we invested in mapping the author’s experiences in the extension project “Corpos (da) Cidade” and in Impro shows. Between analyzes and interpretations, we sought to understand the guiding question: would performativity be the key, too, for the realization of an improvisation? Keywords: Improvisation, Performance, Hibridy Poetics RESUMÉN Relacionar la improvisación teatral, considerando el Impro System, y la performance, a partir de las experiencias de un actor y un performer, es lo que movilizó este estudio. Diferentes esferas del arte, en el “aquíahora”, tienen en común ser atravesadas por la performatividad. Este reconocimiento desencadenó esta investigación de Iniciación Científica. El Impro System, creado por Keith Johnstone, es una agrupación de conceptos y prácticas dirigidas a crear improvisaciones teatrales. Se trata de la ejecución de historias en espectáculos improvisados. La performance, en cambio, evade conceptos y definiciones establecidos, constituyéndose como una forma de expresión híbrida y flexible que elude formatos, materiales o espacios mediáticos. Desafía las definiciones, ya que constituye una dinámica paradójica, como es el caso de la escena-noescena. Así, a partir de las experiencias del autor en Impro y performance, se investigaron aspectos y principios entre las formas de crear y ser / ser del improvisador-actor y del performer, así como los rasgos constitutivos del “aquí-ahora”. en estos lugares de expresión. A través de ejercicios (auto) etnográficos y entre los principios de la cartografía, invertimos en mapear las experiencias del autor en el proyecto de extensión “Corpos

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(da) Cidade” y en espectáculos de Impro. Entre análisis e interpretaciones, buscamos comprender la pregunta guía: ¿la performatividad sería también la clave para la realización de una improvisación? Palabras Clave: Improvisación, Performance, Poética Híbrida

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INTRODUÇÃO Neste artigo eu irei mapear e discutir, através de questionamentos pessoais e tomando como base minhas vivências artísticas na improvisação teatral e na performance, pontos entre as áreas artísticas citadas e, principalmente, aspectos e princípios entre o modo de criar e ser/estar do ator-improvisador e do performer. A partir disso, busco identificar recursos comuns a ambos os campos e analisar o “aqui-agora”, tanto na performance como na improvisação como espetáculo2. Em 2012, iniciei meus estudos sobre essas formas de improvisar, tendo como base o Sistema Impro3, em oficinas dadas pela UMA Companhia4. Meu conhecimento sobre esse estilo teatral era mínimo e fiquei surpreso com a quantidade de técnicas e diretrizes, que, de certa forma, são limitadoras, dentro de um modo de fazer teatral que, antes, eu considerava como livre e aberto. Já em 2018, iniciei um estudo sobre a performance, através de uma observação participante no projeto de extensão “Corpos (da) Cidade”5, que desenvolveu um processo de criação coletiva chamado ÀRRUAS. Este projeto consistiu em um passeio performático pelo centro de Belo Horizonte - MG, contemplando a Praça da Estação e seus arredores. A proposta envolvia uma “itinerância poética por um conjunto de programas performativos, derivas, intervenções, partituras e situações cênicas, marcadas pela afecção mútua por passeios do centro de Belo Horizonte”6. Em minhas experimentações, deparei-me com uma sensação muito parecida com aquela de 2012: tudo pode ser performance, logo, deveria ser muito mais fácil. Porém, ao acompanhar mais de perto sua criação e execução e ler sobre o assunto, percebi como os programas performativos7 devem ser minuciosamente pensados e estudados, levando-se em consideração inclusive os possíveis riscos, para que a resposta dada pelo performer, no “aqui-agora”, a uma determinada situação não fuja ao programa da performance.

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2. Segundo Muniz (2007, p. 1), “este conceito se remete às formas teatrais nas quais os atores criam em presença do público uma dramaturgia do instante. Este tipo de improvisação tem como principal referente histórico a Commedia dell´arte”.

3. O Sistema Impro, criado na década de 1950 por Keith Johnstone, é um agrupamento de conceitos e práticas que visam a criação de improvisações teatrais. Este trabalho fez surgir a criação de um gênero teatral que se dá pela execução de histórias improvisadas diante do público, gerando espetáculos totalmente improvisados denominados como Impro (HORTA; MUNIZ, 2015). Abordarei o Sistema Impro, mais profundamente, posteriormente.

4. Companhia teatral sediada em Belo Horizonte que, desde 2006, dedica-se à pesquisa e à divulgação da improvisação teatral como espetáculo.

5. Projeto de Extensão “Corpos(da)Cidade: poéticas e fricções entre teatro, dança, performance e intervenção urbana”, coordenado pelo Prof. Dr. Vinícius da Silva Lírio, que reuniu um agrupamento de atores/performers e outros artistas, sendo eles docentes, discentes


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e egressos da UFMG e de outras instituições, além de artistas locais, numa investigação prática e teórica de uma poética cênica implica em pesquisas e experiências no que tange às fricções e hibridismos entre expressões artísticas e/ou manifestações culturais espetaculares.

6. Informações contidas na sinopse.

7. Programas performativos são enunciados norteadores para a execução de performances. Conforme esclarece Fabião (2013, p. 1): “O programa é compreendido como “motor da experimentação” – enunciado que norteia, move e possibilita a experiência”. Desdobrarei sobre programa performativo adiante.

Uma questão que me chamou atenção foi o fato de a performance acontecer no entre, conforme apresentado por Richard Schechner (2003, p. 28) ao explicar onde ocorre a performance: “Uma pintura ocorre em um objeto físico, uma novela ocorre em palavras. Mas uma performance, mesmo quando partindo de uma pintura ou de um romance, ocorre apenas em ação, interação e relação. A performance não está em nada, mas entre”. Logo, na performance, o “aqui-agora” é uma parte constituinte fundamental. É o que atribui o caráter performativo. Porém, deve-se levar em consideração que uma performance é composta de outros tantos elementos envolvidos na ação, na poética, nos atravessamentos e na própria transformação mútua e simultânea entre o performer e o meio/ espaço-tempo da performance. Já quanto à Impro, por mais que exista a necessidade de se contar uma história, ela está sendo construída no “aqui-agora”. Pensar num final que amarre a história, enquanto ainda não chegou esse momento, é impor uma ideia. Mariana Lima Muniz (2015, p. 24), ao questionar se é possível improvisar uma cena a partir do nada e, ao salientar que ator, espaço e público são os três elementos fundamentais e indispensáveis para a existência de um ato teatral, elucida: Além desses três elementos indispensáveis ao teatro, podem ser introduzidos outros, pelo ator ou pelo público, a fim de contribuir para o surgimento de “algo”, um objeto, uma música, um cheiro etc. Assim, o nada é quase uma topografia impossível, sempre há algo e é a partir da tranquilidade da observação do que já existe que a cena improvisada se constrói. Desta maneira, por mais que esteja na criação de uma história a intenção dentro de uma estrutura de um espetáculo teatral improvisado, o start se

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dá por um ato performativo. Logo, seria a performatividade a chave para a realização de uma improvisação? Para buscar responder essa problematização, utilizarei princípios da autoetnografia como forma de autorreflexão acerca das minhas experiências pessoais de vivências no projeto de extensão “Corpos (da) Cidade” e nos espetáculos de improvisação que já participei – como “Suspeitos – um crime improvisado”, “Improcedentes”, “Happy Day”, entre outros – conectando minhas vivências a significados, desenvolvendo análise e interpretação acerca delas e, assim, desdobrar reflexões e buscar entendimentos acerca da questão levantada. A autoetnografia, abordagem de pesquisa que, segundo Santos (2017, p. 218), “refere-se à maneira de construir um relato (‘escrever’), sobre um grupo de pertença (‘um povo’), a partir de ‘si mesmo’ (da ótica daquele que escreve) ”, será adotada como estratégia metodológica, uma vez que me permitirá refletir sobre as minhas experiências pessoais com a performance e com a Impro. Além disto, utilizarei a cartografia, no sentido de mapear características da improvisação e da performance, a partir das minhas experiências, que possam apontar para aspectos tanto da improvisação quanto da performance implicadas neste estudo, principalmente no que se diz respeito à performatividade. As cartografias, construídas por meio de exercícios (auto)etnográficos dos processos, tem a característica de potencializar a criação e estruturação de uma memória do percurso criativo e o próprio ato de compartilhar o mapeamento pode trazer, em si, aspectos performativos (LÍRIO, 2017a). Assim, a cartografia como forma de registro foi adotada como estratégia metodológica pelo seu carácter de “abrigar tempos, espaços, interações, teorias, vozes e transformações” (LÍRIO, 2017b, p. 164). Para isso, estruturei este artigo em três partes. Na primeira, intitulada “Eu no ÀRRUAS. Eu na performance”, trarei as minhas percepções dentro

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8. Fizeram parte do processo de criação do Àrruas Cláudio Márcio, Karol Monteiro, Keu Freire, Lucas Emanuel, Nani Oliveira e Vinícius Lírio.

do ÀRRUAS8, dando destaque ao fato de este ser o primeiro projeto de intervenção urbana e performance em que estive presente e como se deu a minha assimilação e compreensão, dentro de um processo utilizando de várias outras expressões artísticas, uma vez que o projeto é hibrido. Na segunda parte, denominada “Eu como improvisador”, trarei uma abordagem das minhas experiências como improvisador teatral, discorrendo sobre o estilo de improvisação em que sempre estive inserido e sobre os espetáculos de improvisação teatral que participo e os que já participei. Por fim, na parte “Considerações sobre a arte do encontro”, irei analisar as minhas experiências práticas dentro da improvisação como espetáculo e da performance, principalmente no aspecto do encontro, a fim de encontrar pontos convergentes entre o ator-improvisador e o performer nesses lugares de expressão e manifestação espetacular/cultural.

EU NO ÀRRUAS. EU NA PERFORMANCE No dia 11 de setembro de 2018, iniciei minha observação participante no processo de criação coletiva de uma proposta híbrida entre intervenção urbana, teatro e performance, do projeto de extensão “Corpos (da) Cidade”, que teve como resultado um passeio performático pelo centro de Belo Horizonte, o que, posteriormente, foi chamado de ÀRRUAS. Estava adentrando um processo que já havia iniciado há algum tempo. E já naquele primeiro encontro saímos todos percorrendo o trajeto dos programas performativos. O trajeto em questão começava na porta principal do CRJ e avançava para o centro da referida praça, passando em frente ao edifício da antiga Estação Central, onde hoje está localizado o Museu de Artes e Ofícios, e seguia em direção à escadaria da Estação Central do metrô de Belo Horizonte. Em seguida, retornando ao centro da praça em uma diagonal, avançava para onde há uma estátua de uma figura masculina.

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O trajeto seguia atravessando a Avenida dos Andradas, pela faixa de pedestre, e chegava à praça Rui Barbosa, situada em frente à Praça da Estação. Algumas ações ocorriam no corredor central desta praça, em uma via arborizada, caracterizada pelas suas frondosas palmeiras e demais espécies de árvores. O percurso seguia pelos corredores da praça Rui Barbosa passando em frente a um chafariz desligado e prosseguia atravessando a Rua Guaicurus, em direção ao edifício do CentoeQuatro9, um local predominantemente frequentado por um público de condições econômicas favorecidas, devido ao seu cardápio com preços onerosos. Por fim, após ações em frente ao referido prédio, o trajeto retornava à Avenida dos Andradas e finalizava no canteiro central da via, local em que se é possível ver e ouvir, através de frestas na estrutura do asfalto, o rio Arrudas, curso de água extremamente poluída que corta o centro de BH e que, em vários pontos, é coberto, sendo escondido aos olhos dos que por ele passam. Finalizamos, assim, a caminhada pelo trajeto dos programas performativos, o que eles chamaram de deriva. Deriva? Programa performativo? Tudo, para mim, era novo e soava complexo. Lembro de perguntar para o grupo o que, afinal, era sair em deriva e ouvi frases como: “é estar aberto ao que possa lhe atravessar”, “se deixar perder”, “estar aberto e se algo te levar a um lugar, ir”. Tudo aparentando incompreensível e até um pouco enigmático, para mim, naquele momento inicial. Posteriormente li, por recomendação do orientador, Vinícius Lírio, uma definição do arquiteto italiano Francesco Careri (2017, p. 31) sobre deriva: “palavra de origem náutica, capaz de expressar a ambiguidade do perderse conscientemente, procurando dosar o desejo e o acaso, o racional e o irracional, o projeto e o antiprojeto”. E, completando: A deriva é um dispositivo que não se opõe ao devir, mas o deixa acontecer e desdobrar-se, acompanhando-o para seus próprios fins: atravessar

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9. Espaço cultural que possui um café, cinema e galeria de arte, localizado na Praça Rui Barbosa, número 104, no centro de Belo Horizonte.


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o mar, um território fluido em perpétuo movimento – e, portanto, um território do “aqui e agora”, como tantas vezes são os fenômenos urbanos – obtendo potência e secundando a energia do vento, daquela pura força imaterial que, quando para, deixa de existir. (Ibid., p. 32) Diante dessa abordagem sobre esse dispositivo, percebi que, quando iniciei a Iniciação Científica, aquele mar que eu estava adentrando, trazendo uma metáfora, era muito mais revolto, agitado e extenso do que eu, em minha pequena canoa, aqui trazendo uma outra metáfora, agora para traduzir meu background, minha poética, estava pronto. Meu repertório dizia respeito ao fazer teatral com o qual eu estava acostumado: o Sistema Impro. Este estranhamento com as novas palavras e com esse novo modo de expressão foi um dos aspectos mais difíceis nessa minha imersão, durante a Iniciação Científica, neste mar, neste outro modo artístico, com o qual eu não estava habituado. Ultrapassar esse quebra-onda em que eu, constantemente, via-me parando ou recuando, para refletir sobre significados e dizendo, para mim mesmo, coisas como “que palavra é essa? ”, “o que é isso? ”, “o que quiseram dizer com isto? ”, foi um dos aspectos mais difíceis dessa fase inicial e que, em algum grau, acompanhou-me por todo o meu percurso dentro dessa pesquisa. Até então, os encontros consistiam na experiência por entre o conjunto de programas, em uma semana, e, na outra, uma roda de conversa sobre o encontro anterior e a experiência, revisão, atualização e demais atividades que não a execução dos programas performativos – outra expressão desconhecida, por mim, com a qual me deparei ao cruzar o misterioso mar que eu, há pouco, adentrara, isto é, o da pesquisa sobre a performance e, posteriormente, da sua prática. Eleonora Fabião (2013, p. 4) define programa performativo como “o enunciado da performance: um conjunto de ações previamente

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estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas a ser realizado pelo artista, pelo público ou por ambos sem ensaio prévio”. Trata-se, então, de um “roteiro de ações”, com verbos no infinitivo, que direciona e conduz à vivência das experimentações da performance. Ela ressalta, ainda, que é por meio deste procedimento que ocorre a desconstrução da representação. Segundo ela, através da realização do programa, o performer suspende o que há de automatismo, hábito, mecânica e passividade no ato de “pertencer” – pertencer ao mundo, pertencer ao mundo da arte e pertencer ao mundo estritamente como “arte”. Um performer resiste, acima de tudo e antes de mais nada, ao torpor da aderência e do pertencimento passivos. Mas adere, acima de tudo e antes de mais nada, ao contexto material, social, político e histórico para a articulação de suas iniciativas performativas. (Ibid., p. 5) Reconhecidos esses traços, volto à experiência. No encontro seguinte, no dia 18 de setembro de 2018, aconteceu o primeiro passeio performático que eu presenciei. Aquele dia, em especial, é um dos que eu guardo na memória de maneira mais vívida, provavelmente, pelo fato de ser o meu primeiro contato com aquele fazer artístico híbrido, contemporâneo, e que se esquivava de padrões do teatro dramático. Toda a minha experiência como espectador foi na tentativa de buscar linearidades, tentando decifrar as imagens e buscando estruturá-las em um enredo. Porém, naufraguei na tentativa de amarrar o que eu via e criar uma história. Fiquei apenas com a lembrança de imagens. Recordo-me que era uma terça-feira e que chuviscava. Saímos do CRJ, até que alguns foram se afastando, outros acelerando o passo e eu, então, percebi que uma das ações do programa performativo intitulado “esse peso que eu carrego, leve”, presente na escritura do ÀRRUAS, havia iniciado.

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Esse programa consistia em: parar em um lugar onde se dê para ver todos; retirar a mochila das costas e experienciar sem o peso; colocar tudo de volta; e trocar de lugar, indo para um que ainda não se foi. Não sei há quanto tempo o passeio performático havia começado, até o momento em que eu o percebi. Não percebi quando começou. Só me dei conta quando já estava instaurado. Estariam os outros transeuntes percebendo o que eu percebia? Ou dando o valor que eu estava dando? Tudo tão pequeno dentro do todo da cidade, mas tão grandioso, em si. Ali, pela primeira vez, vi a potência da performance. Vi a força do que Schechner (2003, p. 33) chama de Comportamento Restaurado, “o processo chave de todos os tipos de performance, no dia a dia, nas curas xamânicas, nas brincadeiras e nas artes”. Para Vinícius Lírio (2015, p. 45), “esse comportamento, em linhas gerais, diz respeito ao deslocamento de ações já experimentadas em determinados contextos para situações diversas, em processos de interação diferentes e em espaços estranhos”. Apenas o fato de ter ações cotidianas, de esvaziar e encher uma mochila, sendo repetidas diversas vezes e transportada para um ambiente diferente do habitual, o chão de uma praça, no centro de uma metrópole, foi, na minha visão, impactante e belo. “Por que estão fazendo isso? Por que estão tirando objetos de valor, como notebooks, e deixando no chão, numa região perigosa? O personagem de todos eles estão receosos de terem esquecido algo? Esse seria o tema da trama? ”. Estes foram alguns dos meus questionamentos, enquanto assistia e, ainda com um olhar viciado, buscava características do teatro dramático, como personagens, trama, etc. Isso devido ao fato de eu, até então, sempre estar envolvido e em contato com trabalhos, seja como espectador ou atuando, que dizem respeito a um tipo de teatro convencional, no qual se busca contar uma história,

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com início, meio e fim. Até mesmo na Impro, cuja estrutura se diferencia do teatro convencional, com seus textos definidos e marcações ensaiadas, há a premissa de haver uma dramaturgia linear. Há a necessidade de que uma história seja contada e, para que isso ocorra de maneira lógica, fazse indispensável a presença de elementos como personagem, conflito e desfecho, dentro da improvisação como espetáculo. Posteriormente, vi todos indo em direção ao metrô, agrupando-se e, seguidamente, enfileirando-se na escadaria de acesso à Estação Central do metrô de Belo Horizonte. Ali, esperei que o que estava acontecendo fosse, de certa maneira, amarrado e justificado, pois a ação de esvaziar as mochilas, vesti-las vazias e, depois, enchê-las se manteve, porém, agora com um adicional: todos falavam repetidamente sentenças curtas que, naquele vai e vem de transeuntes, saindo e entrando da estação, não eram ouvidas ou eram ignoradas pela maioria dos que passavam. Aquelas ações performáticas foram, aos poucos, dissipando-se e, lentamente, uma roda se formou até culminar num convite, feito por Vinícius Lírio, para fazer amor com Belo Horizonte. Ao que se seguiu o partilhamento de um contrato de deriva, no qual regras eram acordadas para esse passeio, afim de, ao mesmo tempo, garantir a segurança, a liberdade de ir e vir, de se expressar e, ainda, o próprio programa performativo. Regras essas que eram repetidas em todas as experimentações: 1) andarás sempre em grupo, nunca sozinho; 2) caminharás sempre pela calçada; 3) atravessará a rua sempre na faixa de pedestres, com o semáforo fechado para os carros; e 4) farás apenas o que te convier. Aqui, me deparei com um aspecto que de fato aproximava a minha percepção sobre performance, que eu, naquele momento, ainda visualizava como ações de improvisação, da Impro. Schechner (2003) elucida que a performance acontece no entre, na interação e relação do performer com o espaço-tempo, com o meio que ela está inserida e na própria transformação recíproca e conjunta que,

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10. Keith Johnstone é um dramaturgo e professor de Teatro nascido em 1933 na Inglaterra. Atualmente, em 2019, reside em Calgary, Canadá, onde continua ensinando Impro a estudantes, recebendo muitos alunos de várias partes do mundo. Em 1979, publicou seu primeiro livro, intitulado Impro: Improvisation and Theatre, sua obra mais conhecida. Posteriormente, levado por uma necessidade de sistematizar melhor seus exercícios e evitar um entendimento ligeiro de sua obra, publicou, vinte anos depois, o livro Impro for Story Tellers (1998). (MAIA; MUNIZ, 2017)

neste encontro, ocorre. As falas e regras apresentadas neste momento do contrato de deriva, então, e tudo que dali surgisse, no entre, deveria, em primeiro lugar, estar atravessado por aquelas regras iniciais. Eram regras acordadas, mas as pessoas poderiam discordar e transgredir, como aconteceu em todas vezes, como pessoas que iam no seu tempo, que decidiam não ir junto mais pelo percurso do ÀRRUAS, que atravessavam com o semáforo aberto, etc. Diante dessa compreensão, percebo uma similaridade com a criação no Sistema Impro, pois, apesar dos conceitos e princípios presentes no sistema elaborado por Keith Johnstone10, por vezes, aparentarem como normas e diretrizes fechadas do que pode ou não ser realizado em uma improvisação, é por intermédio dessas regras que a pessoa que está em contato com a Impro é convidada e estimulada a vivenciar a sua liberdade de criar (HORTA; MUNIZ, 2015). Após este contrato de deriva, o grupo saiu correndo e em cantoria em direção à estátua, localizada bem no centro da Praça da Estação. Posteriormente, foram realizadas algumas ações na praça Rui Barbosa, localizada em frente à Praça da Estação. Algumas delas configuravam um programa performativo com todos do grupo segurando velas, numa espécie de procissão pela referida praça, lendo orações previamente recolhidas ou falando orações que lhe vinham à cabeça. Vinicius Lírio atravessou a rua primeiro que todos, sentou-se em frente ao prédio do CentoeQuatro e pôs um saco na cabeça. Todos, ao chegarem, depositaram as velas ao redor daquele sujeito sentado e encarapuçado em pleno centro de Belo Horizonte, formando uma imagem tão forte e bela e que, apesar de não ter nenhum texto sendo falado, tinha muita coisa sendo dita. Esse programa seguiu com Karol Monteiro lendo, no celular, uma oração, também forte e instigadora. Aquele contexto, com o forte cheiro que a própria parafina queimada exala, associado à luz trêmula alaranjada das velas ao redor, iluminando alguém com a cabeça coberta, sensibilizou-me

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de tal maneira, que minha emoção veio para o físico, fazendo-me arrepiar. Terminei a minha primeira observação daquele trabalho que estava sendo construído com muitas dúvidas, muitos não entendimentos, mas muitas imagens e sensações. Aos poucos e de maneira tímida, fui adentrando, cada encontro mais, naquele processo. Ao passo que mais entrosamento com o grupo e mais afinidade para com aquela proposta híbrida eu adquiria, mais eu me permitia sair do papel de apenas observador para, também, arriscar e tentar. Muito pelo fato do ÀRRUAS permitir essa liberdade para se expressar. Gradualmente, comecei a realizar alguns programas da escritura, enquanto outros, eu ainda só observava. Até que, nos dias 13 e 14 de novembro de 2018, me vi completamente envolvido naquele processo, realizando não apenas ações mais amenas e brandas, como, também, participando de maneira ativa em programas bastante animosos e desenvoltos. Como, por exemplo, no programa inicial, na qual nos lambuzávamos de argila (mãos, braços e vestes), ainda na porta do CRJ; e, também, naquele subsequente àquele das mochilas, na qual, todos desenvolviam, em looping, uma verborragia advinda de vozes/discursos retirados de situações ouvidas pelos atuantes-performers em transportes públicos. A verborragia do Lucas Emanuel sempre me marcou, em especial, pelo fato de que, por vezes, os/as transeuntes que passavam de maneira rápida, a fim de pegar o metrô ou saindo da Estação Central, ao ouvir aquele discurso, davam dinheiro a ele ou, pelo menos, desculpavam-se por, naquele momento, não poder ajudar com alguma quantia. Nesta situação, eu sempre percebia uma semelhança com a improvisação. Quando Mariana Muniz (2015, p. 31-32), ao definir o que é a Improvisação como espetáculo, esclarece que “trata-se da improvisação que é praticada diante do público, a partir de roteiros preestabelecidos ou não, que tem no encontro entre artistas e espectadores o momento máximo da criação

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e que se desfaz assim que é concebida”. Traçando um paralelo, via naquele encontro e naquela relação entre Lucas e os transeuntes, o momento máximo da criação. Logo concluía que estava vendo uma legítima improvisação. Por que, então, estas situações eram tratadas como performance e não como improvisação? Encontrei em Fabião (2009 p. 63) uma resposta para essa questão que me surgia: Chamo as ações performativas de programas, pois esta me parece a palavra mais apropriada para descrever um tipo de ação metodicamente calculada, conceitualmente polida, que exige extrema tenacidade para ser levada à cabo, e que se aproxima do improvisacional única e exclusivamente na medida em que não será previamente ensaiada. O performer não improvisa uma ideia: ele cria um programa e programa-se para realizá-lo. Ao agir seu programa, necessariamente, des-programa seu organismo e seu meio. Percebo, então, que, naquela ação, não havia improvisação, pelo fato de perceber que aquele programa havia sido pensado e colocado em prática levando em consideração os possíveis riscos que dali surgissem. Tudo isso colocado na escritura do ÀRRUAS e estudado para que a “saída” fosse dentro do programa, compreendendo “saída” como essas ações que, a priori, visualizei como possíveis improvisações. Reconhecendo, inclusive, a (im)possibilidade do programa se “des-programar”, como propõe Fabião, acima, na medida em que ele está aberto e passível a outros contornos que, de alguma forma, passa a integrá-lo. Após a verborragia, outro momento, neste início do ÀRRUAS, que, costumeiramente, levava à interação dos que observavam e que eu, antes da leitura de Fabião, considerava como um momento de improvisação, era

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quando a Nani Oliveira convidava todos para ver a lua, avisando que tinha cachaça. O que, de fato, era oferecido, convite este, realizado após o Vinícius Lírio estabelecer o contrato de deriva e combinar as cláusulas, proposta que não era aceita por Karol Monteiro, que se retirava, em direção ao CRJ. Iniciava-se, assim, outro programa da escritura, intitulado coro vagabundo. Esse programa tinha como ações: tocar músicas num som vagabundo (caixinhas de som); cantar, em uníssono ou em várias vozes, as músicas tocadas; e vagabundear admirando a lua. Músicas essas que eram sempre a mesmas: Ela partiu, do Tim Maia, Árvore, do Edson Gomes e Bumbum de ouro, da Glória Groove. Esta última era bastante simbólica, já que este programa acontecia aos pés da estátua de um homem desnudo, diante do qual, por muitas vezes, quando a lua não aparecia no céu, restava-nos olhar para aquele bumbum, não de ouro, mas de bronze. Após esse momento de descontração com músicas, cachaça e risos, a atmosfera era quebrada quando Karol Monteiro surgia do CRJ, correndo em nossa direção, carregando um volumoso cacho de balões vermelhos, que, como uma capa, tremulavam no ar, proporcionando uma imagem tão bonita e poética aos meus olhos. Karol atravessava a faixa de pedestre da avenida dos Andradas e o passeio performativo seguia com o programa seguinte. Intitulado balões, ele tinha suas ações realizadas por Karol e finalizava quando, ao chegar no centro da praça Rui Barbosa, todos estouravam aquelas bexigas, deixando o chão coberto por aqueles pedaços de látex vermelho que, em minha cabeça, sempre trazia imagens de um chão coberto por sangue. Esse programa era caracterizado por três atmosferas que eram criadas: primeiro, um clima festivo e descontraído com balões; depois, um clima agressivo com enfrentamentos, na tentativa de estourar balões, do que Karol se empenhava em esquivar; e, por fim, um clima down e de reflexão, quando Cláudio Márcio compartilha uma narrativa, após todos os balões estourados, na qual dizia que não se podia ter festa e música alta, nem dançar ou festejar, quando há alguém doente em casa.

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O clima se transformava quando ele questionava se conhecíamos ou tínhamos na família algum morador de rua. Enquanto isso, os que antes brincavam e festejavam, agora catavam os restos dos balões estourados. Cláudio completava, dizendo que, em sua família, havia duas pessoas vivendo em situação de rua. Sujeitos estes acerca dos quais ele contava a história, enquanto entregava velas para todos. Este momento, em especial, geralmente, aguçava minha atenção e minha emoção, pois, por várias vezes durante o passeio, havia, naquele instante, pessoas em situação de rua acompanhando o ÁRRUAS e este momento, frequentemente, os tocava, levando alguns, por vezes, até a dividir as suas histórias, como moradores de rua. A transição para o programa posterior, denominado velas ao vento, ocorria de maneira bastante emocionante, devido a atmosfera que a situação anterior instaurava. Aquele programa constituía em acender velas, caminhar em procissão com as velas acesas, à altura do peito, e orar. Rezar, por vezes, em sussurros, outras vezes, em voz alta. Caminhando pelos caminhos delimitados por cercas vivas de cipreste, na praça Rui Barbosa. De maneira impactante, aos meus olhos, após a procissão, nos deparávamos com o início do programa Se quiser saber o que [h]ouve, sente – o qual já havia citado aqui, sinteticamente. Nele, ao atravessar a rua Guaicurus e chegar ao prédio do CentoeQuatro, nos defrontávamos com Vinícius Lírio sentado no chão, com o rosto coberto por um saco de pano. Criávamos, então, uma espécie de altar, de modo que, aquela figura tão potente sentada no chão, ficava ao centro das velas. Depositávamos, ao redor dela, as velas que, anteriormente, foram utilizadas na procissão. Uma imagem potente, sensível e instigadora se criava. Um quadro poético que sempre me emocionou. Em seguida atravessávamos a avenida em direção ao canteiro central, onde ocorria o último programa da ÁRRUAS. Este último conjunto de

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ações, denominado o rio arrudas sob nós, tinha como proposta: escutar o rio e convidar os outros à escuta; relacionar-se com o rio de carros da avenida dos Andradas – enquanto Keu Freire e Cláudio Márcio ofereciam água barrenta “do rio” aos motoristas. Aquele momento prosseguia com Vinícius Lírio que descrevia o dia em que um menino, vestindo um saco de lixo preto, a fim de se proteger do frio e da chuva que caía, lhe pediu um sanduíche. Pedido este que não foi atendido devido ao fato do Uber que ele esperava chegar. Provocando-nos, ao perguntar “você já lavou a sua mão hoje? ”, enquanto lavávamos nossas mãos e retirávamos aquela argila com a qual nos sujamos, na entrada do CRJ, e que nos acompanhava desde o início do passeio performático. Muitos, após a provocação de Vinícius, contavam seus momentos de “lavar a mão” já vivenciados e se seguia com ele cantando trechos da música O juízo final, da Alcione. Após este momento, instaurava-se um metateatro com a presença de frases como: “isso vai entrar? ”, “ah não... tira isso”. Diálogos que surgiam enquanto retornávamos à entrada do CRJ. Não sei bem dizer se foi ali, sentado no canteiro central, sobre o rio Arrudas aprisionado, um espaço de BH que eu nunca havia estado antes, que finalizou aquela minha experiência dentro daquela proposta híbrida de performance, teatro e intervenção urbana, ou se aqueles diálogos despretensiosos e em clima descontraídos finalizavam o ÀRRUAS. Assim como não percebi quando o passeio performático começava, na minha primeira experiência nele, também não percebi quando e onde ele, de fato, terminava. Só me dava conta do término quando o clima já estava, de fato, modificado. Porém, modificado também saia eu, após cada vivencia do ÀRRUAS.

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EU COMO IMPROVISADOR Em 2012, comecei minhas primeiras experimentações dentro do Sistema Impro, através da UMA Companhia, por meio das oficinas que eles ministravam. Desenvolvido por Keith Johnstone, o Sistema Impro é um agrupamento de teorias e práticas que têm como objetivo a criação de improvisações teatrais (HORTA; MUNIZ, 2015). Em Londres, entre as décadas de 1950 e 1960, Johnstone começou a investigar e desenvolver seus conceitos e práticas acerca da improvisação em suas atividades como professor, em escolas públicas. “Seus exercícios estão direcionados ao desbloqueio das capacidades criativas por meio de treinamento da espontaneidade e da imaginação” (MUNIZ, 2015, p. 162). Jorge Wilson da Conceição (2010, p. 172) cita a liberdade de criar como um dos princípios da improvisação teatral. Para ele, podemos dizer que a liberdade de criar e imaginar é um pressuposto do jogo de improvisação. Se não houver liberdade pessoal de jogo, o ator ficará constantemente submetido a um controle do que dizer, fazer ou de como reagir. Caso o jogador não esteja se sentindo à vontade nesse exercício de se expor, dentro do jogo, ele pode travar. Seu mecanismo de censura pode causar um bloqueio, que Ryngaert (2009, p. 45) vê como “uma impossibilidade de superar a angústia causada pelo olhar do outro ou o sentimento de ser ridículo a seus próprios olhos, a famosa consciência de si”. Ao longo da minha pesquisa, compreendi que essa liberdade de criar é um aspecto da performatividade. Porém, na minha vivência na performance, durante o ÀRRUAS, não havia a necessidade de “amarrar” uma narrativa e nem ações. Já na Impro, isso é necessário, pois uma história está sendo contada e, para isso, ela precisa ter início, meio e fim.

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Tendo em vista isto, vejo que quando estou improvisando, não me preocupo apenas com os estímulos que recebo ou com a percepção/ recepção que o público ou os demais atores-improvisadores têm em relação ao espaço/tempo criados. Percebo que há a preocupação de pensar dramaturgicamente na improvisação, afim de “amarrar” o que está sendo criado. Sendo assim, vejo que, diferente da performance, é fundamental ao improvisar, no aqui-agora, também pensar e trabalhar por uma linha, a fim de possibilitar uma construção lógica dramatúrgica. Por algum tempo, durante minha pesquisa, me questionei se não seria a improvisação a chave, ou a essência, para a performance, dado que, de acordo com Schechner (2003), a performance acontece no entre. Portanto, o “aqui-agora” na performance é um componente fundamental, pois é ele que atribui o caráter performativo. Recordo-me quando, nas primeiras reuniões com meu orientador, ao expor este questionamento para Vinícius Lírio, que me explicou e esclareceu sobre esta problemática, ele me fez a provocação se não seria a performatividade a chave para a realização de uma improvisação. Fiquei instigado com a provocação e me aprofundei na busca pela resposta através da minha história dentro da Impro e das minhas lembranças improvisando. Estreei na improvisação com o espetáculo Happy Day11. Após alguns cursos ofertados pela UMA Companhia, eu e os demais alunos do último módulo propusemos montar um espetáculo improvisado e optamos por investigar o universo da dramaturgia da improvisação teatral dos espetáculos longforms12. Já em 2013, recebi um convite por parte da UMA Companhia para participar do espetáculo que eles já realizavam, chamado Improcedente. Um espetáculo short-form de improvisação, no qual os atoresimprovisadores disputavam, entre si, quem propunha, como diretor, as melhores improvisações da noite.

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11. Espetáculo de improvisação teatral com direção de Débora Vieira e Fabiano Lana que estreou em 2012 em Belo Horizonte. Happy Day foi um espetáculo de improvisação teatral que falava sobre a vida em família. Fazia parte do elenco os atoresimprovisadorea Ana Belmani, Bárbara Oliveira, Cristina Moraes, Edgar Quintanilha, Léo de Castro, Léo Duarte, Henderson Pacheco, Lennison Farah, Marko Novaes e Myriam Campas.

12. Uma classificação dentro da Impro que diz respeito a espetáculos em que a história improvisada tem maior duração. Há, também, os espetáculos improvisados no formato short-form, em que são improvisadas várias cenas curtas, durante todo o período de duração do espetáculo.


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Eu sempre fui, durante todos os anos que participei do Improcedente, o Mestre de Cerimônias, conduzindo os desafios de improvisação da noite. Nesta peça, que participei até 2016, sempre tive uma posição muito interessante. Mesmo estando no palco, meu papel, durante as improvisações, era de observador. O que traz uma grande similaridade com o meu início na performance, pois principiei meus estudos nesse lugar estando inserido nos passeios performáticos, porém, como observador. Estando ali, no Improcedente, em local privilegiado, sessão após sessão, vendo inúmeras cenas curtas sendo criadas e acompanhando vários improvisadores diferentes da cena mineira, pude constatar que não se improvisa sem um estímulo inicial. No Happy Day, por exemplo, características presentes na improvisação auxiliavam claramente na criação. Como o fato de que objetos eram solicitados para o público no início do espetáculo e cada um dos atoresimprovisadores pegava uma peça, o que podia ser o impulso para a criação de alguma característica do personagem ou o start para uma cena. Já no espetáculo Suspeitos – Um Crime Improvisado, uma peça de improvisação long-form, em cartaz desde 2014 até os dias atuais, em 2019, o start para a criação ocorre, inclusive, quando o público escolhe a manchete jornalística, advinda das páginas de jornais sensacionalistas, a ser improvisada e ela se torna o título da improvisação feita pelos atoresimprovisadores, que estão divididos entre os personagens suspeito, vítima e investigador do crime. Além disso, a plateia auxilia o investigador e dá rumos para a história e características para os personagens. No final, é a plateia que decide quem é o culpado daquele assassinato. Além desses estímulos claros e diretos, como um objeto a ser utilizado ou uma recomendação do público, há, também, outros princípios da improvisação teatral. Para Jorge Wilson da Conceição (2010), além do

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estímulo, ou mote, um outro fator fundamental para a improvisação é viver o aqui-agora. Segundo ele, “o aqui e agora resulta na possibilidade e necessidade de diálogo com os elementos que componham ou que penetrem o espaço de jogo, como sons que surjam da plateia, pessoas, objetos, um efeito da luz etc.” (Ibid., p. 170). É no aqui-agora que a improvisação acontece, ou, como sintetiza Conceição (2010, p. 170), “aqui... agora: o momento do jogo é o momento do espetáculo”. Esse pensamento me traz muito a lembrança o fato da performance ocorrer na “ação, interação e relação” (SCHECHNER, 2003, p. 28), ou, como ele mesmo elucida, no entre.

CONSIDERAÇÕES SOBRE A ARTE DO ENCONTRO Analisando as minhas vivências na improvisação como espetáculo e na performance, na busca por relações entre esses lugares de expressão e manifestação artística, percebo pontos de convergência. Nas minhas primeiras observações e experiências com a performance, ainda tateando, algumas similaridades entre ambas as áreas, inclusive, trouxeram-me questionamento sobre o que as diferenciavam. Apesar de serem áreas diferentes, com poéticas e modos de execução distintos, percebo um ponto congruente importante entre a performance e a Impro: o encontro. Pude identificar, fortemente, este aspecto em diversas situações observadas e/ou vivenciadas por mim no ÀRRUAS, como, por exemplo, quando os transeuntes interagiam com Lucas Emanuel, ao ouvir a sua verborragia, em frente à estação de metrô de Belo Horizonte, ou quando os moradores de rua nos acompanhavam pelo passeio performático. A própria itinerância por entre performances, visitando vários pontos da cidade, desbravando o baixo-centro e dando novos significados a diversas partes do centro da capital mineira, já traz, em sua essência, o encontro. O ÀRRUAS foi – e isso devido ao seu hibridismo envolvendo performance –

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teatro e intervenção urbana, indo até as pessoas, convidando-as a seguir com os demais, colocando-as nos programas, direta e indiretamente. Isso o transformava, intencionalmente, em uma plataforma para o encontro. Também observo como este elemento se faz tão necessário na Impro, seja no encontro entre atores-improvisadores durante a cena ou no encontro com o público que, além dos momentos claros de interação, também se faz presente e necessário durante as criações. O encontro proporciona aos atores-Improvisadores criar por meio dos motes dados pelo público, que seriam estímulos disparadores das criações – algo também reconhecido no ato performático, considerando uma das nuances o que propõe Fabião (2013), da performance como disparador de outras ações, criações e performances – ou reagindo ao que dele vier, mesmo que despropositadamente, como uma risada engraçada, um celular que toca, uma tosse. Nestes casos, ao permitir ser tocado por essas coisas, as vezes simples e fortuitas, o ator-improvisador enriquece sua cena (CONCEIÇÃO, 2010), no encontro. O encontro é primordial para ambas formas de expressão. Pois, como sublinha Fabião (2013, p. 5-6), “através da realização de programas, o artista desprograma a si e ao meio. Através de sua prática acelera circulações e intensidades, deflagra encontros, reconfigurações, conversas, como diz Pope.L, ‘faz coisas acontecerem’”. Percebo essas “coisas que acontecem” na Impro como as ações que levam a criação das cenas. “O ator-Improvisador não sabe que história vai criar, nem sequer sabe o que vai fazer no segundo seguinte” (MUNIZ, 2015, p. 165-166), mas faz para que algo aconteça e fazer é ação. Ações que vão se estruturando e formam uma cena, uma história. Sobre isso, percebo uma ligação com a performatividade. Segundo Luiz Fernando Ramos (2013, p. 150), performatividade diz respeito à “alguma coisa que implica realização completa, ou que perfaz e concretiza uma ação, constituindo, assim, um objeto a ser decodificado, algo próximo do

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que poderíamos entender como uma mimesis”. Sendo assim, compreendo que o termo performativo se refere ao que é executado/realizado diante e/o entre outros. Ramos (op. cit) elucida que “o aspecto performativo estará presente em qualquer fenômeno espetacular – o que se dá a ver com intenção de afetar outrem”. Diante dessa trama de pensamentos e, também, considerando o meu histórico como artista, as minhas percepções acerca das vivências na Impro e na performance e, ainda, as conversas e provocações com meu orientador Vinícius Lírio, creio que seria, sim, a performatividade a chave para a improvisação. Mas não fecho essa discussão. Acredito que esta investigação ainda está só no começo, como, também, principiando-se está o meu estudo sobre a performance. Esta questão segue aberta, com a certeza que minha busca pela resposta, fechará muitas outras questões (e abrirá outras tantas). Meu início no universo da pesquisa acadêmica, através da Iniciação Científica, trouxe-me algumas respostas, mas, principalmente, muitas perguntas sobre a Impro e a performance. E, com a certeza de que são as perguntas que me movem enquanto artista-professor-pesquisador, sigo minha jornada. Porém, sigo com mais bagagem, com mais repertório, com mais maturidade.

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FABIÃO, Eleonora. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea. Sala Preta, v. 8, p. 235-246, 2008. FABIÃO, Eleonora. Performance, teatro e ensino: poéticas e políticas da interdisciplinaridade. In: FLORETINO, A.; TELLES, N. (Orgs.). Cartografias do ensino de Teatro. Uberlândia: EDUFU, 2009. p. 61-72. FABIÃO, Eleonora. Programa performativo: o corpo-em-experiência. Revista do LUME, São Paulo, n. 4, p. 1-11, dez. 2013. FABIÃO, Eleonora. Performance, teatro e ensino: poéticas e políticas da interdisciplinaridade. In: FLORENTINO, Adilson; TELLES, Narciso. (Org.). Cartografias do Ensino do Teatro. Uberlândia: EDUFU, 2009. p. 61-72. HORTA, Diogo; MUNIZ, Mariana Lima. O Sistema Impro e a criação teatral. Revista Aspas, São Paulo, v. 5, n. 1, p. 47-59, 2015. LÍRIO, Vinícius Silva. Mapas em movimento: performatividade e cartografias (auto)etnográficas em poéticas no ensino de teatro. In: CONGRESSO NACIONAL DA FEDERAÇÃO DE ARTE/EDUCADORES DO BRASIL, 27., Campo Grande, 2017. Anais [...]. Campo Grande: CONFAEB, 2017a, p. 88-108. LÍRIO, Vinícius Silva. Poéticas da sala de aula: processos de criação e aprendizagem entre o teatro e a performance. Teatro: criação e construção de conhecimento, Palmas, v. 3, n. 4, p. 41-49, jan./jun. 2015. LÍRIO, Vinícius Silva. Rastros metodológicos para poéticas híbridas: da crítica genética, entre provocações (auto)etnográficas, à cartografia. Revista Aspas, São Paulo, v. 7, n. 2, p. 157-167, 2017b. MACHADO, Marina Marcondes. Conheça Allan Kaprow (1927-2006). [Belo Horizonte], 9 mar. 2014. Disponível em: http://agachamento. com/?p=1274. Acesso em: 28 ago. 2019

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\performatividade como chave para improvisação: uma cartografia (auto)etnográfica de um ator-improvisador-performer

MAIA, Hortência Campos; MUNIZ, Mariana Lima. O Sistema Impro na sala de aula: escutando as crianças sobre essa prática do teatro. Urdimento, Florianópolis, v.3, n.30, p. 56-76, 2017. MUNIZ, Mariana Lima. A relação ator-público na Improvisação como espetáculo. In: REUNIÃO CIENTÍFICA DE PESQUISA E PÓS GRADUAÇÃO EM ARTES CÊNICAS, 4., Belo Horizonte, 2007. Anais [...]. Belo Horizonte: Abrace, 2007. p. 1-4. MUNIZ, Mariana Lima. Improvisação como espetáculo: processo de criação e metodologia de treinamento do ator-Improvisador. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015. RAMOS, Luiz Fernando. O conceito de performativo, a performance e o desempenho espetacular. Rebento. Revista de Artes do Espetáculo. São Paulo, n. 4, p 149-154, 2013. SANTOS, Silvio Matheus. O método da autoetnografia na pesquisa sociológica: atores, perspectivas e desafios. Plural, 24(1), 2017. p. 214-241. https://doi.org/10.11606/issn.2176-8099.pcso.2017.113972 SCHECHNER, Richard. O que é performance. O percevejo: revista de teatro crítica e estética, Rio de Janeiro, v. 11, n. 12, p. 25-50, 2003. VERSIANI, Daniela Beccaccia. Autoetnografias: conceitos alternativos em construção. Rio de Janeiro: 7letras, 2005.

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\a dramaturgia corporal no trabalho de composição do ator – o corpo que opera sobre imagens e gera afetos Guilherme Martins Moreira¹ 25 anos, Campinas (SP). Ator e arte-educador com ênfase nos estudos em dramaturgias do corpo, teatro físico, dança-teatro e palhaçaria. Ao longo da graduação, estagiou no Sesc Campinas e foi pesquisador pelo Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (Pibic). Desde 2020, participa da Companhia do Bagaço, pesquisando as linguagens da comicidade e do audiovisual. Está sempre determinado a tirar uma gotinha de riso de uma pedra. moreira.guilherme.999@gmail.com

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1. Iniciação científica realizada pelo Pibic – Unicamp, finalizada em 2019. Orientação: Profa. Dra. Melina Scialom.


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ficha técnica Universidade Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Tipo do curso Graduação Nome do curso Bacharelado em artes cênicas Período do curso 2017-2021 Estado São Paulo Título do trabalho A dramaturgia corporal no trabalho de composição do ator – o corpo que opera sobre imagens e gera afetos Nome do autor Guilherme Martins Moreira Nome da orientadora Melina Scialom Número de páginas 20

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RESUMO Poderia o ator/performer ser o dramaturgo do seu próprio trabalho, baseando sua composição através do que lhe afeta? Esta pesquisa de cunho teórico-prático buscou investigar a dramaturgia do ator pelo viés do corpo e sua capacidade de afetar e ser afetado, explorando os processos criativos que o permeiam na cena. Para tal, este estudo articulou-se em quatro eixos principais: laboratórios sob a metodologia “prática como pesquisa” (SCIALOM, 2017); criação, composição e apresentação de dramaturgias; compilação e estudo de autores que dilogam com a temática; e a análise dos processos executados, relacionando teoria e prática. Por meio de exercícios coreológicos e composicionais, leituras de bibliografias baseadas no estudo da dramaturgia do ator, principios do movimento, corpo-imagem e afetos, a pesquisa sistematizou práticas que buscaram ampliar o autoconhecimento e a autonomia do ator e desafiar os modos de se pensar e fazer dramaturgia. Palavras-Chaves: Coreologia; Dramaturgia do ator; prática como pesquisa.

ABSTRACT Could the actor/performer be the dramaturge of his own work, basing his composition through what affects him? This theoretical-practical research sought to investigate the actor’s dramaturgy through body’s perspective and its capacity to affect and be affected, exploring the creative processes that permeate the scene. For such, this study was articulated in four main axes: laboratories under the methodology “practice as research” (SCIALOM, 2017)¹; creation, composition and presentation of dramaturgies; compilation and study of authors who dialogue with the theme; and the analysis of the process, relating theory and practice. By means of Choreological and compositional exercises and theoretical readings based on the study of actor’s dramaturgy, principles

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of the movement, body-image and affects, the research systematized practices that sought to increase the self-knowledge and autonomy of the scenic body and challenge the way of think and doing dramaturgy. Key words: Actor’s dramaturgy; Choreology; Practice as research.

ABSTRACTO ¿Podría el actor/intérprete ser el dramaturgo de su propia obra, basando su composición en lo que le afecta? Esta investigación teórica y práctica buscó indagar en la dramaturgia del actor a través del sesgo del cuerpo y su capacidad para afectar y ser afectado, explorando los procesos creativos que lo impregnan en la escena. Para ello, este estudio se dividió en cuatro ejes principales: laboratorios bajo la metodología de “práctica como investigación” (SCIALOM, 2017); creación, composición y presentación de dramaturgias; recopilación y estudio de autores que dialogan con el tema; y el análisis de los procesos ejecutados, relacionando teoría y práctica. A través de ejercicios coreológicos y compositivos, lecturas de bibliografías basadas en el estudio de la dramaturgia del actor, principios de movimiento, imagen corporal y afectos, la investigación sistematizó prácticas que buscaban expandir el autoconocimiento y autonomía del actor y desafiar las formas de pensar y hacer dramaturgia. Palabras clave: Coreología; Dramaturgia del actor; Práctica como investigación.

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1.1 INTRODUÇÃO Segundo Magda Romanska (2015, p.1), o termo “dramaturgia”, em sua definição mais ampla e antiga, significa “criação teatral”, ou seja, a ação de se criar uma peça de teatro. A autora revela que a própria etimologia da palavra vinda do grego drama-ergon, que significa trabalho das ações, pode ajudar a entendê-la como um termo expandido e não somente como literatura teatral. Como explica Romanska, ao longo dos séculos, o conceito de dramaturgia passou a ter novos significados e a ser aplicado de diversas maneiras como na composição dramática, nas artes corporais e na representação. Nesse contexto, Pavis (1999, p.113), define a dramaturgia como “o conjunto das escolhas estéticas e ideológicas que a equipe de realização, desde o encenador, até o ator, foi levada a fazer”. Romanska aponta que o conceito de dramaturgia foi sendo remodelado de acordo com a prática de diferentes artistas que utilizaram do conceito para denominar suas práticas artístico-criativas, como por exemplo o trabalho do diretor de teatro italiano Eugenio Barba (2010), que tem a ideia de dramaturgia como um dispositivo teatral, uma tessitura textual, um fluxo performático e por fim uma organização institucional. Através destas considerações sobre o termo dramaturgia, a ideia de “dramaturgia corporal” é definida, segundo Kalisy Cabeda de Souza e Sayonara Sousa Pereira, como um “conceito que pretende encontrar no corpo as ferramentas para a construção de uma linguagem cênica, onde as metáforas corporais sejam o principal veículo de criação”. Em seu site, a pesquisadora Neide Neves reflete sobre este assunto: “O entendimento de dramaturgia corporal com o qual trabalho é explicado pela compreensão de que o movimento corporal está na base dos processos mentais, assim como a memória e a cognição. O sistema sensoriomotor aciona processos mentais quando nos movemos, quando pensamos em nos mover, e mesmo quando vemos outra pessoa em movimento. Somos uma unidade corpomente. Desta

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maneira, compreendemos que forma e significado estão intimamente relacionados no corpo. O corpo se dá a ler como um texto. Ele é mídia de si mesmo, comunica suas próprias questões e está em constante processo de troca com o ambiente. [...] Esta forma de dramaturgia é própria ao corpo, que organiza sua comunicação no processo de troca com o ambiente, sem linearidade, na emergência de significados enquanto nos movemos.” (NEVES) Assim, este corpo em determinado espaço-tempo-ambiente, é responsável pela criação de imagens (visíveis) ao mesmo tempo em que revela imagens inscritas em si (invisíveis). Segundo Maria Lúcia Bastos Kern, o termo imagem, desde sua origem, esteve relacionado à ideia de representação e imitação do real, apresentando noções de duplo e de memória e adquirindo a função de tornar presente o ausente. A autora explica que a natureza da imagem não é apenas do domínio do olhar, mas de outros domínios mais complexos, nos quais a presença física e mental do ser humano é significativa, de modo que o corpo se faz um suporte de mediação da imagem, produzindo em sua memória corporal uma presença muito específica de algo que está ausente, mas que permite a elaboração de imagens mentais e semelhantes ao mundo visível (KERN, 2005). Através dessa ideia, é possível dizer que a dramaturgia corporal dialoga diretamente com as imagens que o corpo produz. “É assim que a imaginação parece se tornar matéria no corpo em movimento. Ao nos movermos, estamos criando comunicação, informação, expressão. Movimento é imaginação corporificada.” (NEVES, 2008, p. 75) Essa composição visual e imagética possui a potencialidade de afetar em algum aspecto, através dos próprios sentidos, tanto o performer que realiza a ação quanto quem o vê. Para entender melhor esses processos, nos aproximamos da teoria dos afetos. Segundo a pesquisadora Dee

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Reynolds (2012), os afetos podem ser entendidos como algo que precede a emoção, mas que ainda não assumiram uma identidade definida. Já para o diretor Antonin Artaud, a palavra afeto designa uma espécie de poder de contágio – da capacidade que o teatro teria de afetar, inclusive organicamente, os que dele participam. Segundo o autor, existe um organismo afetivo acoplado ao organismo físico, passível de ser trabalhado e modelado (QUILICI, 2011). A partir desses pensamentos indagamos: como a corporeidade do ator consegue afetar e ao mesmo tempo estar permeável a ser afetada? De que forma corpo, imagens e afeto se correlacionam na criação de uma dramaturgia corporal?

2.1

MÉTODOS E AÇÕES DA PESQUISA

A pesquisa se articulou através de quatro eixos principais: Laboratórios sob a metodologia “prática como pesquisa”; leitura teórica; criação, composição e apresentação de dramaturgias; e análise dos resultados obtidos. Juntamente com os estudos teóricos, bibliográficos, o trabalho se desenvolveu com a participação no grupo de pesquisa “Dramaturgia do Performer”2 dirigido pela professora Melina Scialom, que trabalha os princípios do movimento de Laban, e a relação entre movimento, imagens e afetos, buscando entender suas possibilidades criativas. Para a pesquisa prática utilizamos do método prática como pesquisa, que vem sendo amplamente conceituada através do termo practice-asresearch. Traduzido como prática como pesquisa (FERNANDES, 2014) o método prevê uma reflexão epistemológica realizada a partir da prática – fazer artístico e criativo – ou o que chamamos de pesquisa empírica. É, portanto, através deste método que associaremos a pesquisa teórica com as práticas experimentais de criação a serem desenvolvidas na pesquisa. A partir destas práticas, diversos processos criativos de composição dramatúrgica se deram, traduzindo de forma cênica e artística a pesquisa teórica e empírica que foi realizada.

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2. Parte da pesquisa de pós-doutorado de Melina Scialom, FAPESP processo n.2016/08669-5


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2.2

PRIMEIRA ETAPA OU DA COREOLOGIA ÀS IMAGENS

Em abril de 2018 ingressei no grupo de pesquisa “Dramaturgia do Performer”, realizado por Melina Scialom no Departamento de Artes Cênicas da Unicamp, onde elaborei as diretrizes da minha pesquisa (e do projeto que foi enviado ao PIBIC no mesmo semestre) e exercitei diversos princípios contidos nela. Neste grupo foram estudados exercícios conhecidos como “escala”, da Harmonia Espacial proposta por Laban e práticas sobre as cinco categorias dos Estudos Coreológicos. Através dessas práticas, adotamos a metodologia de sempre observar os afetos que surgiram no corpo no momento do exercício e como ele se manifesta no movimento, quais as qualidades deste, e em seguida buscar reproduzir artificialmente esses movimentos. Nos encontros do grupo abordamos os dois braços da Coreologia descritos acima de forma sistemática e através de exercícios dos princípios da Harmonia Espacial e da Eucinética. Utilizamos do movimento e seus princípios para iniciar um estudo sobre a teoria dos afetos, de acordo com Espinoza (2009), Massumi (1995) e Dee Reynolds (2012) e como eles se manifestavam em cada indivíduo. Investigamos como a afetividade se dava no movimento executado tanto por nós mesmos como pelos corpos dos outros participantes; como era gerar afetos, ser afetado e assim por diante. Também buscávamos experimentar o corpo como produtor de imagens e suas definições, sua expressividade, suas leituras e como eles operam quando são afetados por estas ou outras imagens.

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Figura 1: Espetáculo “Kandinsky”.

2.3

SEGUNDA ETAPA OU DAS MATRIZES ÀS MEMÓRIAS

Retomamos os exercícios baseados nas ferramentas e aprendizados incorporados no semestre anterior, e novamente colocamos em relação os Estudos Coreológicos com afetos e imagens, porém desta vez começamos a nos aprofundar nas relações entre afeto e movimento. Com o objetivo de realizar uma criação cênica mais elaborada, decidimos trabalhar a partir de memórias pessoais. Esta escolha aconteceu porque o grupo considerou que as memórias são um grande mobilizador de afetos e que a dramaturgia corporal possui uma forte relação com elas. Assim através das imagens e afetos provindos das memórias incitadas, criamos partituras de movimento de modo que os primeiros movimentos criados foram reflexo direto das imagens e afetos produzidos por aquela memória. Porém, ao longo da improvisação, a memória que havia despertado o movimento era deixada completamente de lado e

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o foco passava a ser unicamente a materialidade do corpo, as imagens e afetos que ele produz por si só. Nesse processo, os movimentos vão se transformando de acordo com eles, numa pesquisa e busca pelo seu entendimento através dos princípios do próprio movimento (Coreologia). Através de improvisações e da escolha de sequências de movimentos utilizamos um mecanismo que chamados de “matriz dos movimentos”, no qual através de improvisações se estabelecia algumas matrizes, que são pequenas estruturas flexíveis de sequencias de movimentos, que foram sendo modificadas de acordo com os interesses dos performers, até ser fixada uma partitura. Por um determinado período, o foco era estudar essas matrizes, fazer experiências e analisá-las. Na incorporação de cada matriz havia a constante tentativa de se reconectar com os afetos que serviram de ignição para a criação e escolha dos movimentos, gerados no instante dessa gênese. Em seguida, selecionamos matrizes que dialogavam entre si e se uniam através de misturas, justaposições e composições, criando-se diversas estruturas dramatúrgicas. Por meio de experimentações e discussões, organizamos uma composição que, após ensaios e lapidações, resultou no espetáculo “Memórias”. A busca era pela composição de uma dramaturgia que não se pautasse diretamente nas significações dos elementos da obra (por exemplo, o conteúdo simbólico das memórias iniciais), mas que utilize como elemento de composição primordial o corpo e seus afetos, seus movimentos e suas imagens, se distanciando da racionalização puramente mental que denota um entendimento linguístico e verbalizável àquilo que se percebe. Este seria um tipo de “pensar em movimento”, que faz parte da metodologia da “prática como pesquisa” em desenvolvimento pela pesquisadora Melina Scialom: “Junto com o movimento acontece uma atenção sobre a corporalidade e afetos sendo gerados, de forma que, quem está pensando não é somente a

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“mente” mas a integração corpo-mente ou o soma. Sem o movimento o pensamento se tornaria uma conceituação mental, o que vai de contrário ao que estou propondo. Portanto, introduzo um processo de “pensar em movimento” (thinking-in-motion) que acontece justamente no ato (presente) da criação. Laban (1978) já trabalhava sobre este conceito ao estruturar sua práxis que chamou de Arte do Movimento ou de Coreologia.” (SCIALOM, 2018, p. 3) Através disso, chegamos a uma obra cênica que se constituiu em uma experiência estética que abarcava não apenas os princípios estudados, mas também as memórias vivas que recolhemos.

Figura 2: Espetáculo “Memórias”. Fotografia tirada por Nina Pires.

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2.4

TERCEIRA ETAPA OU DO TEATRO FÍSICO ÀS LACUNAS

Nesta fase do trabalho, a proposta era a criação de um solo de Teatro Físico relacionando todas as questões levantadas nos processos anteriores, e entender como elas se manifestavam com apenas um performer em cena. Considerando essa pesquisa, a linguagem conhecida como “Teatro Físico” pareceu ser um terreno fértil para explorar as potências do corpo em cena e sua expressividade, já que o coloca em evidência através de sua materialidade. Segundo Victor de Seixas (2009): “Teatro físico é um termo vago e passível de diferentes interpretações quando utilizado para definir gênero teatral. A definição mais comum, onde todos concordam, é de um trabalho que coloca a fisicidade do artista cênico em primeiro plano no resultado estético final de uma performance.” (SEIXAS, 2009, p.2) Segundo o autor, o termo surgiu na Inglaterra nos anos 70 pelo ator/ dramaturgo/diretor Steven Berkoff, que estudou em Paris com Jacques Lecoq e Etienne Decroux, e explorava ao máximo a capacidade física de seus atores, em um tipo de “teatro extremamente visual onde a gestualidade/movimentação é o elemento primordial, colaborando ou às vezes substituindo a dramaturgia textual, também podendo substituir o cenário ou elementos cênicos pelo movimento/corpo dos artistas” (SEIXAS, 2009). Ao refletir sobre este termo e linguagem teatral, Eliana Rodrigues Silva e Rosemeri Rocha ressaltam que: “O corpo do ator, a partir das mudanças históricas ocorridas no teatro desde o século XVIII, especialmente após as correntes pós-dramáticas, vem se revestindo, cada vez mais, de importância na composição da cena. A dramaturgia passa a nascer e se edificar a partir do corpo do ator e menos do texto ou da espetacularidade da cena.” (SILVA; ROCHA, 2009, p. 39)

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As autoras esclarecem que foi desta corrente que nasceu o teatro físico, tendo o corpo como o principal elemento da cena e seu movimento como a base dessa estética, sendo responsável por reunir informações sensoriais e mentais, gerando imagens. Através destas ideias, o processo criativo iniciou revisitando as matrizes de movimentos de “Memórias” e os materiais utilizados neste espetáculo como disparadores de imagens e afetos – cartas, relatos de memórias, objetos pessoais dos performers, etc. – observando as diferenças que se davam na tentativa de realizar a dramaturgia com apenas um ator. Ao longo dos ensaios, as observações e impressões eram anotadas no formato de escrita automática (o pesquisador, assim que finaliza o exercício, escreve sobre ele ininterruptamente por alguns minutos), gerando novos materiais de estudo e disparadores de afetos. Ao longo dos laboratórios e improvisações, eram trazidos roupas, objetos, músicas e outros elementos que pudessem dialogar com as temáticas dos materiais já levantados e utilizá-los como parte dos exercícios. Através das relações criadas, das percepções dos afetos gerados e das leituras que se fazia das imagens que se formavam, foram selecionados os elementos que fariam parte da dramaturgia. Estes elementos se relacionavam com o ator/performer como se fossem outros corpos. Através dos novos materiais gerados, realizei novamente o processo de improvisação sobre eles criando novas matrizes. A ideia, neste momento, era estabelecer uma sequencia de matrizes que dialogasse diretamente com os novos materiais disparadores, e dissolve-las de modo que elas se conectassem mais homogeneamente. Para isso, era necessário entender a trajetória dos elementos e suas transformações. A tentativa era de aos poucos abandonar a ideia de composição dramatúrgica por estruturas de matrizes dos movimentos, que se dividia como peças que se encaixavam entre si, e buscar uma estrutura que se compusesse de outra maneira: os elementos da cena que se entrelaçavam como um tecido, em uma tessitura dramatúrgica. A dramaturgia-tecido pode ser entendida, como sugere Ferracini (2011), pelo entrelaçamento dos elementos cênicos macroscópicos (corpo,

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roupas, luz, som), como se fossem linhas-cênicas, que por meio de seus encontros geram relações (tensões, relaxamentos, buracos, etc.) que desenvolvem uma tessitura: a dramaturgia. Dessa forma, nesse processo de criação foi necessário observar, principalmente, a trajetória do corpo do ator como um fio cênico que se relaciona com diversos fios de “macroelementos”, sendo afetado por estes e pela interferência ambiental e afetando aqueles que o observam e interagem com ele. A metodologia desse processo consistia, então, relacionar de maneira coesa estes elementos, inicialmente de maneira improvisada, e em seguida de maneira estruturada. Concomitantemente ao processo de dissolver as matrizes em tecido, foi realizado o trabalho de investigar como os movimentos se configuravam em ações dentro da dramaturgia, já que a pesquisa trabalhou sobre a definição de dramaturgia através de Barba – “constituída materialmente de ações que interagem nos diferentes níveis de organização de um espetáculo” (BARBA, 2010, p. 44). Para isso, buscamos no corpo os impulsos que o levavam a elas e o efeito transformador da mesma, através da busca pela menor partícula do movimento e sua reverberação. Estudamos os processos respiratórios e sua relação com a ação física, como modo de relação entre corpo e afetos através da ideia de Artaud de “atletismo afetivo” (QUILICI, 2011). Para isso, pratiquei exercícios de respiração com o objetivo de conectar o corpo físico ao corpo afetivo e promover ações que gerem afetos através de sua materialidade. Assim descreve Quilici: “O ponto de contato entre o afeto e o corpo será, precisamente, a respiração. É a respiração que o ator deve sabe esculpir, se pretende manejar as forças afetivas. Assim, tem de desenvolver uma percepção aguçada dos fluxos respiratórios, como modo de reconhecer no próprio corpo as sutis variações dos estados afetivos [...] A atenção voltada à respiração remete à intensa concentração nos ritmos do corpo. O afeto é apreendido corporalmente na medida em

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que o ator desenvolve a percepção das pequenas mutações das sensações expressas, por exemplo, na respiração. Deste modo, a respiração é a base sobre a qual o ator deve construir sua movimentação. Ela precede, por assim dizer, a exteriorização da ação. Pesquisar a respiração significa investigar o nascimento dos impulsos e as transformações sutis dos estados interiores.” (QUILICI, 2011, p. 98) Por último, procuramos juntar todas estas metodologias e estudar essa ação na tessitura dramatúrgica que estava sendo tecida. O resultado desta etapa foi sintetizado na criação do espetáculo solo “As Lacunas Sobre Um Alguém Em Suspensão” (ALSUAES).

Figura 3: Espetáculo ALSUAES. Fotografia tirada por Melina Scialom.

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3.1

RESULTADO DA PRIMEIRA ETAPA OU KANDINSKY

Ao fim da primeira etapa, chegamos ao resultado de uma obra cênica que chamamos de “Kandinsky”, uma experiência estética na qual realizamos composições corporais de maneira improvisada nos baseando no quadro “Composição II” do artista plástico Wassily Kandinsky. Deste modo, com o quadro projetado ao fundo da cena, partimos de improvisações coletivas no qual deveríamos nos movimentar de acordo com os afetos gerados nos performers através da pintura. Esta imagem foi escolhida justamente pelo seu caráter abstrato e pela subjetividade e diversidade de leituras possíveis das formas e cores ali presentes. A proposta inicial era analisar outras imagens e realizar composições em cima destas, entretanto, o grupo concordou em se aprofundar na “Composição II” para explorar com mais detalhes suas questões. Após sua apresentação analisamos como cada um realizou essa “tradução” entre imagem visual e afeto: quais ferramentas foram utilizadas, como os Estudos Coreológicos se relacionavam com essa improvisação, quais as sensações que surgiram e como cada performer foi afetado.

Figura 4: Experimento cênico “Kandinsky”.

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3.2

RESULTADO DA SEGUNDA ETAPA OU MEMÓRIAS

Nesta etapa, sistematizamos um método de construção dramatúrgica por meio de afetos e matrizes de movimento, que consistiu em utilizar elementos disparadores afetivos (objetos, relatos, músicas) para estimular a criação de matrizes através de improvisações com determinados parâmetros (temáticas, objetivos, regras, etc.) tanto individuais quanto coletivas. Em seguida, repetir o processo buscando uma reconexão com os afetos que geraram a matriz até fixar em uma estrutura. Depois, compartilhar e “ensinar” as matrizes individuais, para serem incorporadas pelos colegas por meio da mimese, de modo que todos tivessem conhecimento corporal de todas elas. Por último, buscar a conexão entre essas matrizes, fazendo as alterações que forem convenientes para seguir trabalhando através da temática proposta, de modo a compor uma dramaturgia. O estudo das matrizes dos movimentos baseadas nos materiais disparadores, que possuíam um vínculo memorial com os performers, resultou em uma obra cênica, com uma dramaturgia criada através dessas “peças” em que já estávamos trabalhando, que chamamos de “Memórias” – interpretado pelos performers Ana Flávia Felice Nunes, Caroline Sobolewska De Lima, Guilherme Martins Moreira e Melina Scialom, com operação de luz e som por Gabriel Gonçalves. A estrutura de “Memórias” se deu, principalmente, como uma composição dessas matrizes em associação e incorporação de elementos que pudessem evidenciar o corpo como agente protagonista e elemento principal da linguagem, com sua materialidade sendo responsável por incorporar imagens e ser veículo de afetos. Os demais componentes cênicos (figurino, iluminação, sonoplastia) foram escolhidos de modo a evidenciar a corporeidade dos performers e suas imagens e potencializar a geração de afetos através destes, dialogando com as temáticas trabalhadas. Numa primeira parte do espetáculo, os performers interagiam de maneira improvisada ao longo de um corredor de luz, entretanto só podiam se movimentar através das matrizes dos movimentos desenvolvidas ao longo dos ensaios.

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O intuito de “Memórias” era buscar uma dramaturgia baseada em um tipo de materialidade corporal conduzida pelos afetos gerados no próprio movimento, composta e desenvolvida pelos próprios performers na prática do movimento expressivo e sua associação com o pensamento, distante de um campo semiótico de significados pré-definidos e verbalizáveis.

Figura 5: Espetáculo “Memórias”. Fotografia tirada por Nina Pires.

3.3 RESULTADO DA TERCEIRA ETAPA OU AS LACUNAS SOBRE UM ALGUÉM EM SUSPENSÃO Como resultado da terceira etapa da pesquisa, criei o espetáculo solo “ALSUAES”. Nesta peça, foi possível condensar todas as questões levantadas ao longo da pesquisa, ainda que não completamente respondidas, tendo como objetivo inicial responder algumas questões trazidas na etapa anterior, mas partindo de princípios diferentes. ALSUAES procurou a criação de um sistema de signos corporais como construção de imaginário, narrativas, linguagem e pensamento.

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A pesquisadora Maria Fonseca Falkembach, através dos estudos corporais de Christine Greiner e da semiótica de Charles Peirce, explica como o corpo é resultado de dinâmicas trocas de informação com o ambiente e estas se constituem em pensamento encarnado. Dessa maneira, a construção de um sistema de signos corporais se faz também constituição de linguagem e pensamento, fazendo com que as artes da cena (como o teatro, a dança e a performance, por exemplo) sejam modos de pensamento que criam linguagens que se estruturam de maneira diferente da linguagem discursiva. Assim, o ator incorpora e expressa a experiência cognoscitiva através da elaboração de signos corporais (FALKEMBACH, 2005). Nos ensaios, com a ausência de outros corpos, foram estabelecidas relações de vínculo com os objetos trazidos. As roupas, por exemplo, adquiriram o valor simbólico de extensão do próprio corpo do performer, pedaços de si deixados como rastros físicos e memoriais; uma das cadeiras em cena permanece sempre vazia e intocável, como uma lacuna que nunca pode ser preenchida; o copo cheio revela, pouco a pouco, pequenos transbordamentos ao longo da cena; e assim por diante. Através da corporeidade do ator, o espetáculo trata dos vazios existenciais cotidianos, ligados a uma tentativa de reconhecimento das próprias memórias, às sombras de pessoas, situações e objetos que já não estão mais lá. A busca de preenchimento se dá tanto pelo espaço, na procura de se entender naquele ambiente, quanto na cartografia do próprio corpo, no esforço de se encontrar em si mesmo. Perseguida por seus fantasmas, em um espaço que serve de metáfora para seu próprio interior, essa persona busca inutilmente uma fuga de si.

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Figura 6: Espetáculo ALSUAES Fotografia tirada por Melina Scialom.

5.1 DISCUSSÃO: AFETOS NAS COMPOSIÇÕES DRAMATÚRGICAS Ao longo do processo verificamos, através dos laboratórios práticos, que diversos fatores do ambiente são capazes de gerar afetos. Por exemplo, a inserção de uma música na realização de uma matriz pode afetar os performers de maneira diferente de quando realizavam a estrutura em silêncio, ou a realização da mesma em um ambiente pouco iluminado pode gerar afetos diferentes de quando a executavam em meio a muita iluminação, assim como qualquer outra alteração ambiental. E quanto mais radical for esta modificação, maior o grau de alteração nas relações entre afetos. Neves esclarece a relação entre movimento e ambiente da seguinte maneira:

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“O movimento, facilitado nas condições citadas, se dá em relação ao ambiente externo, já que se insere no mundo. As conexões que se estabelecem podem ser vistas como relações de contaminação e troca. Ainda utilizando o exercício do tema corporal como exemplo, os estados corporais vão se alterando não apenas por razões internas, mas pela relação de troca com o ambiente.” (NEVES, 2008, p. 106) Percebemos através dos exercícios, que os afetos não são controláveis, já que os participantes não tinham pleno domínio do que os afetavam e a cada nova execução da matriz dramatúrgica de movimento, novos afetos surgiam. Ainda assim, é possível reconhecer seus efeitos e perceber sua capacidade de potencializar, mobilizar, despotencializar e desmobilizar. No entanto, nas repetições, verificamos que éramos afetados, em determinados aspectos, de maneira semelhante. Percebíamos, por exemplo, a criação de uma atmosfera que nos levava a um mesmo lugar, sensações parecidas, percepções próximas. Deste modo, descobrimos que podemos utilizá-los como elementos de composição, tecendo a cena. No trajeto da pesquisa passamos por uma criação que consistia ser um improviso total, uma que possuía um espaço limitado para improvisar e uma sem nenhum tipo de improvisação prevista. Ao longo dele, verificamos que os afetos sempre são diferentes, porém nas estruturas menos fixas a tendência é ter uma alteração muito grande de movimentos de afetos, por serem muito imprevisíveis as ações que irão decorrer, criando sensações, atmosferas e estados muito variáveis. Enquanto nas estruturas mais fixas, os afetos tendem a gerar efeitos no ambiente de maneira mais semelhante. Mas ainda assim, mesmo nas mais rígidas estruturas e mais exatas realizações, os afetos são sempre diferentes. Considerando a dramaturgia como uma composição cênica, e que envolve um processo de construção e estruturação, como nos sugere PAVIS (1947), a cada realização dessa dramaturgia, ou seja, em cada performance ou apresentação teatral, há uma atualização em sua estrutura, um “fazer

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de novo” (VOLPE, 2011, p. 93) que gera pequenas diferenças a cada execução, visto que cada apresentação acontece em um tempo-espaçoambiente diferente, ou seja, a cada dia o tempo é outro, os corpos se encontram em estados outros, há novos olhares do público, outros ruídos, outras percepções, respiros e condições ambientes diferentes a cada performance. Seguindo o pensamento de Peter Brook (1999), podemos dizer que através desses sutis detalhes improvisados cada apresentação é única, em que cada dia há uma nova experiência em potencial a se estabelecer. Portanto, ainda que se siga rigorosamente as organizações corporais determinadas pela composição dramatúrgica – a macroestrutura de uma dramaturgia corporal – existem espaços de fissura, com sutis diferenças a cada apresentação, que alteram todo o evento cênico a cada performance, assim como ressalta Volpe: “Estas invisibilidades que a microestrutura faz transitar, podem afetar sim a macroestrutura do espetáculo, porém, aparentemente sem modificá-la. Este espaço faz esburacar e respirar uma estrutura rígida, permitindo ao atuador reinventar (diferenciar) e não repetir (executar). Na microestrutura vibram os afetos e perceptos do improvisador, que o fazem capaz de tornar visível o invisível.” (VOLPE, 2011, p. 118) Assim, percebemos que é exatamente na atualização viva do trabalho artístico, nessa “diferenciação”, que novos afetos surgirão. E se a dramaturgia se baseia nos afetos do próprio performer, concluímos então que ele poderia ser, portanto, o criador dela.

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\a dramaturgia corporal no trabalho de composição do ator – o corpo que opera sobre imagens e gera afetos

5.2

DISCUSSÃO: O CORPO E SUA IMAGEM

Ao buscarmos apreender e imitar a matriz do colega, além de entrar em contato com as lógicas corporais do outro, num grande exercício de alteridade, podemos descobrir aspectos em nossa própria corporeidade: padrões de movimento, possibilidades de organização corporal, imagens inscritas em nós mesmos, etc. A mesma matriz, traduzida para um corpo diferente, remonta novas leituras. Notamos que existem relações corporais e experiências inacessíveis ao performer que imita, mas na tentativa de se aproximar da organização do material vivo de outro corpo, foi possível entrar em contato com dramaturgias desconhecidas escondidas dentro de si. Nesse processo de incorporação dos movimentos alheios, percebemos que fomos afetados de maneira semelhante ao realizarmos a mesma matriz, mas não exatamente iguais (aliás, é complexa a discussão no campo dos afetos, por se tratarem de elementos que fogem de uma definição verbalizável), principalmente após muitos ensaios, mostrando que, até certo ponto, é possível treinar e induzir alguns afetos. De acordo com as práticas realizadas e com alguns estudos no campo da antropologia cultural, foi possível observar que existe uma relação entre diferentes organizações corporais e uma possível leitura sociocultural que se faz delas: o corpo é moldado pelo seu contexto social e cultural e é o vetor semântico de uma relação com o mundo (BRETON, 2007). Ou seja, mesmo que não se pretenda atribuir significados às imagens formadas, quem as vê pode criar interpretações de acordo com o que elas poderiam significar socioculturalmente dentro de algum contexto. O corpo, em toda sua plasticidade, já carrega informações concretas sobre sua materialidade (formas, cores, tamanhos, texturas) que, associadas em um contexto, podem atribuir-se de significados ligados à cultura, história, política, etc. Logo, a existência de um determinado corpo, em um determinado espaço, tempo e ambiente, já carrega por si só informações passíveis de serem interpretadas e de se atribuir um significado, possuindo em si uma expressividade concreta. Entretanto, através dessa

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materialidade, é possível considerar o corpo, também, como um veículo para algo além do visível, um canal para a imaginação e para os afetos, em outro tipo de expressividade (VOLPE, 2011).

6.1

DRAMATURGIA CORPORAL NO TRABALHO DE COMPOSIÇÃO DO ATOR:

Através da dramaturgia corporal do ator foi possível desenvolver dramaturgias que utilizaram o corpo e sua multiplicidade de níveis semânticos como elementos chave de sua criação, através de métodos elaborados ao longo da pesquisa: estudos coreológicos na criação de partituras, afetos como criação de matrizes, matrizes como criação de dramaturgia, fios como criação de dramaturgia. Nas dramaturgias desenvolvidas, os signos construídos se manifestavam principalmente como sinais biológicos que atingem os sentidos por meio das ações orgânicas através de uma experiência presencial, gerando interpretações subjetivas das imagens visuais compostas pelos atores e das imagens mentais projetadas sobre suas composições corporais. “O movimento de qualquer pessoa põe em jogo a experiência do mesmo movimento por parte de seu observador. A informação visual gera, no espectador, uma participação cinestésica. A cinestesia é a sensação corporal interna dos próprios movimentos e tensões e também dos movimentos e tensões dos outros. Isso quer dizer que as tensões e as modificações do corpo do ator provocam um efeito imediato no corpo do espectador [...] O visível e o cinestésico são indissociáveis: aquilo que o espectador vê produz nele uma reação física, a qual, sem que ele saiba, influencia sua interpretação sobre o que vê. [...] Entendo por “orgânico” as ações que provocam uma participação cinestésica no espectador e que, para ele, tornam-se convincentes

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independentemente da convenção ou do gênero teatral do qual o ator faz parte.” (BARBA, 2010, p. 57) A presença do público é um fator que modifica radicalmente os afetos gerados em cena, mesmo executando uma estrutura dramatúrgica muito fixa, por ser um fator que altera o ambiente com outros olhares, respiros, movimentos. Nas apresentações dos espetáculos percebemos que surgiram diferentes afetos do que quando ensaiávamos a mesma dramaturgia sem a presença de espectadores. Assim como cada apresentação é única, a percepção de cada espectador é igualmente singular e subjetiva: “O espetáculo não é um mundo que existe igual para todos; é uma realidade que cada espectador experimenta de maneira individualmente na tentativa de penetrá-la e de apropriar-se dela. A substância definitiva do teatro são os sentidos e a memória do espectador. É essa substância que as ações dos atores atingem.” (BARBA, 2010, p. 252) Assim, observamos empiricamente o quanto o corpo humano está sujeito a afetar e ser afetado quando em contato com outros corpos e fatores ambientais, num movimento ininterrupto de afetos. A partir disso, verificamos que é possível utilizar estes elementos como material primeiro de criação e composição de dramaturgia, promovendo ao ator/ performer uma grande autonomia e uma forte escuta de si na cena.

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Figuras 7 e 8: Material de divulgação dos espetáculos “Memórias” e “ALSUAES”.

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BIBLIOGRAFIA BARBA, E. Queimar a casa: origens de um diretor. Tradução Patrícia Furtado de Mendonça – São Paulo: Perspectiva, 2010. BRETON, D. L. A Sociologia do Corpo. Tradução de Sônia M. S. Fuhrmann. Petrópolis, RJ:Vozes, 2007. FALKEMBACH, M. Dramaturgia do corpo e reinvenção de linguagem: transcriação de retratos literários de Gertrude Stein na Composição do Corpo Cênico. Florianópolis: Universidade do Estado de Santa Catarina, 2005. Dissertação (Mestrado em Teatro). FERNANDES, C. A Prática como Pesquisa e a Abordagem Somática Performativa. VIII Congresso da ABRACE-Belo Horozonte-UFMG.Anais... In: VIII CONGRESSO DA ABRACE. Belo Horizonte: ABRACE, 2014. KERN, M. L. B. Tradição e modernidade: a imagem e a questão da representação. Estudos Ibero-Americanos, vol. XXXI, núm. 2, diciembre, 2005, pp. 7-22. Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, Brasil. LABAN, R. Domínio do Movimento. 5ª edição. São Paulo: Summus, 1978. 268p. NEVES, N. Klauss Vianna: Estudos para uma Dramaturgia Corporal. São Paulo: Cortez, 2008. 111p. OKAMOTO, E. Anotações para uma dramaturgia de ator. Rebento. Revista de Artes do espetáculo nº2. São Paulo – SP. Julho de 2010. ISSN 2178-1206. PRESTON-DUNLOP, V.; SANCHEZ-COLBER, A. Dance and the performative: a choreological perspective: Laban and beyond. Alton, Hampshire: Dance books, 2010.

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REYNOLDS, E. D.; REASON, M. Kinesthetic Empathy and the Dance’s Body: From Emotion to Affect. Kinesthetic Empathy in Creative and Cultural Practices. Ed Dee Reynolds and Matthew Reason. Intellect/University of Chicago, 2012. Press.121-138. SOUZA, K.; PEREIRA, S. Dramaturgia Corporal: Em busca de um Corpo Virtual. Revista Aspas, v. 2, n. 1, p. 26-31, 7 out. 2012. QUILICI, C. (2011). Antonin Artaud: O ator e a física dos afetos. Sala Preta, nº2, 96-102. SCIALOM, M. Laban Plural: Arte do Movimento, Pesquisa e Genealogia da Práxis de Rudolf Laban no Brasil. São Paulo, Brasil: Summus, 2017. SCIALOM, M. Experimentando a Dramaturgia do Performer. X Congresso da ABRACE. v. 19, n. 1 (2018). VOLPE, M. F. E.Cartografia de um Improvisador em Criação. 2011. 209 f. Dissertação (Doutorado em Artes) – Instituto de Artes, Universidade Estadual de Campinas, Campinas–SP, 2011.

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\fim. Alini Maria Bianco 21 anos, Campo Largo (PR). Graduanda em teatro e pedagogia, é atriz e arte-educadora. Faz parte de companhias de teatro em Curitiba e é docente e atriz no teatro Pé no Palco. alinimariaatriz@gmail.com

Isabella Cristina de Azevedo e Mello 21 anos, Curitiba (PR). Bacharela em teatro, é atriz, fotógrafa e produtora. Desenvolve projetos culturais pela empresa Dadá Estúdio e Galeria de Arte. isabella.azevedoemello@gmail.com

Lucas de Souza Ribeiro 26 anos, Curitiba (PR). Graduado em teatro, é amante da cenografia e da caracterização. Atua como ator, maquiador e cabeleireiro. lucasribeirosza@gmail.com

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ficha técnica Universidade Pontifícia Universidade Católica do Paraná (PUC/PR) Tipo do curso Graduação Nome do curso Teatro Período do curso 2017-2020 Estado Paraná Título do trabalho FIM. Nome dos autores Alini Maria Bianco, Isabella Cristina de Azevedo e Mello e Lucas de Souza Ribeiro Nome dos orientadores Paulo Vinícius Alves e Marcelo Munhoz Número de páginas 20

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RESUMO Este projeto tem como finalidade relatar e fundamentar o processo de montagem do espetáculo FIM., baseado em dramaturgias de Samuel Beckett e no Teatro do Absurdo. São levantadas problemáticas acerca dos temas centrais do espetáculo: a falta de sentido da língua, a relação com o tempo e a finitude, além dos aspectos sensoriais envolvidos na criação cênica. Propondo uma atualização da obra de Beckett, busca-se enfatizar sua atemporalidade, levando-a para o palco de maneira nova e acessível. Ao longo deste projeto, serão exploradas e discutidas problemáticas existencialistas referentes à língua, ao tempo e à contemporaneidade, sob uma ótica lírica fundamentada no Teatro do Absurdo e no Teatro Pósdramático. Palavras-chave: Samuel Beckett; Teatro do Absurdo; Finitude.

ABSTRACT This Project aims to present and justify the process of creating the play FIM., that is based on dramatic texts from Samuel Beckett and on the Theatre of the Absurd. Questions are raised, concerning the main themes of the play: language’s lack of meaning, human’s connection with time and the inevitable end, besides all the sensory aspects explored in the creation of the scenes. This research proposes an update of Beckett’s artistic work, in order to highlight its timelessness, bringing it to stage in a new and accessible way. Existential questions related to language, time and contemporality, grounded in the Theatre of Absurd and the Post-dramatic Theatre, will be explored over this project under a lyrical perspective. Keywords: Samuel Beckett; Theatre of Absurd; Finitude.

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RESUMEN Este proyecto tiene por objetivo informar y fundamentar el proceso de montaje del espectáculo FIM., basado en dramaturgias de Samuel Beckett y Teatro Absurdo. Se plantean cuestiones sobre los temas centrales de la obra teatral: la falta de sentido del lenguaje, la relación con el tiempo y la finitud, además de los aspectos sensoriales implicados en la creación escénica. Proponer una actualización de la obra de Beckett busca enfatizar su atemporalidad, llevándola a la etapa de manera nueva y accesible. A lo largo de este proyecto, será explorado y discutido problemas existencialistas relacionados con el lenguaje, el tiempo y la contemporaneidad, bajo una mirada lírica basada en el Teatro del Absurdo y el Teatro Posmoderno. Palabras clave: Samuel Beckett; Teatro del Absurdo; Finitud.

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1. INTRODUÇÃO O espetáculo FIM., em linhas gerais, é um grito de socorro de uma humanidade já sem esperanças de que ele seja ouvido. É uma colagem de textos de Samuel Beckett, em que as personagens condensam toda uma sociedade vivida e interpretada pelo autor, que perdura até os dias atuais. A angústia, a espera e a consciência de um fim inevitável são o motor de uma reflexão da nossa existência e do que significa ser humano. Os trechos que compõem o texto de FIM. foram retirados de quatro peças do autor: Aquela Vez, Berceuse, Dias Felizes e Não Eu. A poesia das palavras, em conjunto com a falta de sentido dos diálogos, propõe uma reflexão acerca do tempo, ilustrando a angústia humana diante de um fim inevitável, que parece estar tão perto, mas ainda assim tão longe. A passagem dos dias, a espera por alguma mudança e as recordações dos tempos que ficaram permeiam a atmosfera do espetáculo. Recortes que, reorganizados, criam uma história em comum, na qual é possível encontrar uma narrativa sobre a vida de uma personagem, entre devaneios, medos e lembranças. O autor, Samuel Beckett, é considerado um dos dramaturgos mais influentes do Teatro do Absurdo — conceito criado por Martin Esslin para definir o movimento teatral que preencheu a brecha entre a Era Moderna e a Contemporânea. Essa estética se funda em uma temática essencialmente existencialista e busca traduzir da forma mais autêntica possível a falta de sentido da condição humana em sua própria contemporaneidade. O princípio-base dessa filosofia, formulada em um período de transição ideológica — muito marcada pela ascensão do Marxismo e declínio da soberania Católica —, é a aceitação de que a racionalidade é falha. Por esse motivo, tudo que a envolve, como a lógica ou a linearidade discursiva, é motivo de repúdio por parte dos dramaturgos do Absurdo. Ser absurdo é cada vez mais tentador. A incerteza do que há após a vida que se conhece ainda desestabiliza a humanidade deste século. Se não existe a certeza de um deus que signifique a existência humana, tudo

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passa a ser permitido. Dizer, porém, que “tudo é permitido não significa que nada é proibido” (CAMUS, [19??] p. 51), já que as consequências continuam sucedendo os atos. À vista disso, tudo o que nos acomete atualmente, desde as guerras até a pandemia — do voluntário ao involuntário — demanda uma consciência que é herança do homem do século XX. Ainda que represente uma época passada, a atualidade temática dessa estética justifica seu resgate, e este projeto pretende confirmar o valor do teatro de Beckett ainda nos dias de hoje. Dessa forma, a pesquisa que sustenta a montagem do espetáculo FIM. se fundamenta principalmente no Existencialismo, tanto como vertente filosófica, quanto como estética teatral. Analisando de maneira comparativa, o Teatro do Absurdo e o Teatro Existencialista seguem, enquanto temática, o caminho trilhado pela mesma filosofia, mas tomam rumos opostos na forma como a comunicam. De um lado, discursos perfeitamente lógicos que tentam comunicar a insuficiência da língua, recorrendo a ela própria; de outro, diálogos desconexos que buscam provar essa teoria na prática, por meio de novos artifícios. Tendo como ponto de partida a insuficiência da língua, há uma busca por diferentes métodos de comunicar a essência humana, desbancando o texto de seu protagonismo canônico. São adicionados ao espetáculo elementos visuais que ganham o mesmo valor dramatúrgico, e a manipulação dos sentidos passa a ser explorada, quando o som da palavra se torna mais importante que seu significado. Apesar de a crítica à língua ser motor do movimento, é importante destacar que ela ainda é entendida como um dos recursos — embora não o principal — para que a comunicação se efetive. Essa mistura de elementos visuais e vocais, em conjunto com o texto, então, traz à tona a possibilidade de criar um teatro no qual a palavra não é mais o elemento central, e sim mais um dos componentes do espetáculo. Diante da necessidade de estabelecer comunicação por outros meios, partimos em busca de um teatro que unisse públicos diversos, levando a pesquisa a abarcar também a língua brasileira de sinais.

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A introdução da Libras, em conjunto com o português, busca ampliar a recepção da peça, abrangendo dois grandes grupos de público: ouvintes e surdos. Tratando o teatro surdo como uma arte completamente independente do teatro ouvinte, busca-se encontrar um meio-termo a que chamamos de teatro bilíngue, mantendo tanto quanto possível as especificidades de cada um. Todas as teorias e hipóteses apresentadas na introdução, que servem de sustento para a montagem da peça FIM., serão devidamente exploradas e aprofundadas no decorrer deste projeto. Para justificar e fundamentar as escolhas estéticas do espetáculo, esses princípios se desenvolvem em torno de três grandes temas: o Teatro do Absurdo, as linguagens humanas e o tempo, respectivamente. Em seguida, o projeto de montagem será descrito em detalhes, abordando todos os devidos aspectos práticos de um processo teatral.

2. JUSTIFICATIVA 2.1

O teatro do absurdo

A expressão Teatro do Absurdo classifica a estética que surgiu entre o fim da Era Moderna e o início da Contemporânea. Uma época que corresponde, mais precisamente, ao período pós-Segunda-Guerra-Mundial. O produto desse movimento são peças que traduzem a sensação de angústia e da perda de sentido da existência humana, quando a fé religiosa e as crenças totalitárias passaram a se mostrar insuficientes. Absurdo é aquilo que não tem um propósito e que não significa, necessariamente, coisa alguma. “[...] Divorciado de suas raízes religiosas, metafísicas e transcendentais, o homem está perdido; todas as suas ações se tornam sem sentido, absurdas, inúteis” (Ionesco apud Esslin, 2018, p. 23). O Teatro do Absurdo se estrutura, no aspecto temático, a partir das mesmas raízes do Existencialismo — movimento contemporâneo a ele que parte da filosofia e se apropria das mais diversas linguagens, inclusive

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a teatral. A diferença entre essas duas estéticas se funda na forma de comunicar a angústia e a falta de sentido da condição humana de uma sociedade que se descobriu no caos ao renegar o estado de verdade absoluta do pensamento racional. Enquanto a vertente existencialista se apropria de um discurso perfeitamente lógico e lúcido, para o Absurdo, essa linguagem linear e arbitrária passa a ser insuficiente. 2.1.1 O absurdo de Beckett O autor, Samuel Beckett, nasceu na Irlanda e é considerado um dos dramaturgos mais influentes do século XX. Com seu teatro tão revolucionário — na sua época e ainda nos dias de hoje —, Beckett encerrou o movimento moderno e abriu portas para o contemporâneo. As obras de Beckett seguem uma temática sempre permeada pela angústia humana, às vezes de maneira interior ligada a uma crise de identidade, outras vezes externalizada em formas de se relacionar com o tempo e o mundo. Em uma busca para explicar essa tendência do autor, Martin Esslin aponta: Já foi sugerido que a preocupação de Beckett com os problemas da existência e da identidade do eu tem sua origem no inevitável e perpétuo engajamento dos anglo-irlandeses na busca de uma resposta individual, particular à pergunta “Quem sou eu?”, mas muito embora possa haver alguma verdade nisso, por certo não fica assim completamente explicada a profunda angústia existencial que é a tônica da obra de Beckett e que se origina sem dúvida em camadas de sua personalidade muito mais profundas do que a da superfície social (ESSLIN, 2018, p.26). A esse respeito, um estudo mais aprofundado da vida do autor pode servir de evidência para entender o caráter recordativo e de consciência da efemeridade que recai sobre suas obras. O ano de 1973 foi uma época

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de várias perdas de pessoas queridas na vida de Beckett. Esse choque pode ser o motivo de uma dramaturgia de intensa reflexão sobre o tempo (PEREIRA JÚNIOR, 2008 p.21). A vertente beckettiana do Teatro do Absurdo tem grande apelo por sensações auditivas, sendo muito frequentemente indicada, pelo próprio autor, a fala rápida e ininterrupta do texto. Essa estratégia proporciona uma experiência menos racional e mais sensorial do discurso, a partir dos sons das palavras, muito mais que dos conceitos aos quais elas remetem. Apesar disso, uma sensação auditiva pura é muito difícil de ser alcançada. Assim, se faz essencial combinar a isso o estímulo de outros sentidos como forma de atrair a atenção para o discurso. O Teatro do Absurdo sofre várias influências, desde a Comédia Grega até a Commedia Dell’Arte, o Cinema Mudo, o Expressionismo e o Surrealismo. Mas uma das mais importantes características desse teatro ainda é o texto nonsense, que se pauta na falta de necessidade de se nomear as coisas. Por esse motivo, inclusive, é absolutamente dispensável que se dê nome ou definição concreta às personagens. Há uma tendência do Teatro do Absurdo, principalmente representada por Beckett, que é a fragmentação do discurso. Observamos esse aspecto em obras como Aquela Vez e Play. Monólogos, por vezes lineares, são entrecortados por outros monólogos de tema parecido ou sem qualquer conexão clara — já que, como defendido neste projeto, em algum grau seus discursos sempre têm algo em comum. Em Aquela Vez, cada uma das vozes relembra uma situação em um determinado momento da vida, todas diferentes, em fragmentos de texto intercalados. Em Play, três versões de um mesmo fato nos são apresentadas, também por meio de falas que se interrompem e se sobrepõem. Tomando esse artifício como base, buscamos traduzir no mesmo molde nossa pesquisa, que conecta as personagens e as histórias selecionadas.

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2.1.2 O absurdo na peça FIM. As personagens, a que chamamos de A, B e C, são como uma mistura de todas aquelas presentes nos textos dessa adaptação. Elas refletem, cada uma, uma face do que é ser humano a partir do momento em que o Cristianismo e a racionalidade se provam não ser verdades absolutas. A, B e C ocupam lugares e dimensões diferentes. Cada um se revela isolado em seu próprio mundo, distantes uns dos outros apesar da proximidade física em alguns momentos. Cada uma das personagens é um condensado de características do Homem Absurdo, conceito formulado por Albert Camus para denominar o ser humano que surge de um conturbado século XIX. A, B e C têm naturezas opostas, mas não tão distantes a ponto de não poderem coexistir em uma mesma pessoa. 2.2 Língua 2.2.1 Língua enquanto semântica Podemos entender a língua como um sistema organizado a partir de um conjunto de convenções que liga palavras a conceitos, de forma essencialmente arbitrária. Assim, um indivíduo não conseguirá usá-la para expressar de maneira plenamente precisa seu interior, já que terá que adaptá-lo a um padrão comunicável. Além disso, para que se efetive a comunicação, é imprescindível considerar o fator social, que é capaz de levar um grupo de pessoas a relacionar as mesmas imagens aos mesmos conceitos. Segundo o linguista francês Ferdinand de Saussure: Entre todos os indivíduos assim unidos pela linguagem, estabelecer-se-á uma espécie de meiotermo; todos reproduzirão — não exatamente, sem dúvida, mas aproximadamente — os mesmos signos unidos aos mesmos conceitos (SAUSSURE, 2012, p.44). Sendo um sistema intrinsecamente conectado ao aspecto cultural de seus falantes, então, a língua deve ter sua arbitrariedade entendida de

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forma coletiva. Não cabe ao falante decidir usar uma palavra da forma que bem entender, senão da forma como sua própria comunidade decidiu que ela seria empregada. Isso quer dizer, portanto, que cada conceito (significante) se une à sua representação linguística (significado) sem partir de qualquer pressuposto específico. Assim, sem estar pautada em lógica alguma, a forma como cada língua se organiza é apenas um reflexo do efeito do tempo sobre uma sociedade, sua cultura e o meio. Como consequência disso, há uma incessante necessidade de adaptação da língua, que pode ser tomada como evidência da sua incapacidade de estabelecer a comunicação plena da essência humana individual. 2.2.2 Língua enquanto pragmática Um meio talvez mais efetivo de externalização de ideias, como defendido neste projeto, é a comunicação não verbal, por meio do que chamamos de símbolo. Tudo aquilo que representa um conceito com base na ilustração de uma característica que remeta a ele é um símbolo, como uma balança para justiça ou as convenções da pantomima. Segundo Saussure, “o símbolo tem como característica não ser jamais completamente arbitrário; ele não está vazio, existe um rudimento de vínculo natural entre o significante e o significado”. Conforme exemplificado pelo autor: “o símbolo da justiça, a balança, não poderia ser substituído por um objeto qualquer, um carro, por exemplo” (SAUSSURE, 2012, p. 109). É dessa forma que tudo que não é linguístico seria mais próximo e mais fiel ao que se tem a comunicar. Nada disso exclui, porém, a possibilidade de unir uma coisa à outra. A língua não se sustenta apenas pelo aspecto semântico. A parte mais essencial no que diz respeito à efetivação da comunicação é a Pragmática. Esse conceito se refere às diferentes estratégias comunicativas que compõem um diálogo, além do significado literal de suas palavras. Entre esses artifícios, escolhemos ressaltar o tom de voz e as expressões faciais e corporais. Elas podem funcionar como reafirmação, ênfase ou contradição à semântica do discurso. Por isso:

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Parece bem provável que certos aspectos do significado se encontrem fora do estudo de uma teoria semântica. Veja (4): (4) a. Você quer um milhão de dólares sem fazer nada? b. Não!!! (responde o interlocutor, com uma entonação e uma expressão facial que significam: claro que quero!) (CANÇADO, 2015, p.18). Nenhuma dessas características é exclusiva do português, nem sequer das línguas orais. As línguas de sinais passam pelas mesmas etapas descritas nos parágrafos anteriores, sendo feitas as devidas adaptações. Em análise específica da Libras, encontra-se nas expressões não manuais — faciais e corporais — algumas funções gramaticais, inclusive. 2.2.3 Uma proposta de teatro bilíngue As Línguas de Sinais têm uma estrutura diferente das línguas orais, por serem inteiramente transmitidas no campo visual. A Libras (Língua Brasileira de Sinais) é a principal forma de comunicação da comunidade surda de nosso país. É a partir dela que se estabelecem sua educação, sua cultura, seus ensinamentos; ou seja, sua relação com o mundo, que é diferente da relação dos ouvintes. Partindo dessa diferença linguística, um grande incômodo que motivou este projeto é o mau emprego do conceito de acessibilidade para surdos no teatro brasileiro. Conforme estabelecido pelo art. 42 da lei 13.146/2015: A pessoa com deficiência tem direito à cultura, ao esporte, ao turismo e ao lazer em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, sendo-lhe garantido o acesso [...] a programas de televisão, cinema, teatro e outras atividades culturais e desportivas em formato acessível (BRASIL, 2015).

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Faz-se necessário esclarecer que, apesar de o termo “pessoa com deficiência” não ser o mais apropriado para denominar os surdos, na constituição brasileira ele é utilizado para abranger todos os cidadãos que têm “impedimento de longo prazo de natureza física, mental, intelectual ou sensorial” (art. 2º, lei nº 13.146, BRASIL, 2015). A partir do momento em que a acessibilidade da arte e da cultura passa a ser prevista em lei, é obrigação do Estado promover meios para que ela seja aplicada. Uma das estratégias se pauta em outra lei extremamente relevante para o cenário artístico nacional: a lei nº 8.313/1991. A antiga Lei Rouanet, reformulada para a nova Lei de Incentivo à Cultura, determina, entre outras coisas, que somente recebam incentivos fiscais os projetos que satisfaçam o requisito da acessibilidade a ao menos um dos grupos descritos — entre eles a comunidade surda. A forma como isso se concretiza, porém, é longe de ser ideal. Em termos legais, uma peça de teatro que disponha de um intérprete de Libras é considerada acessível aos surdos. É, porém, intuitivo o fato de que a pessoa surda não terá equidade, enquanto plateia, em relação à ouvinte: a atenção dela estará dividida entre a ação cênica e o texto sinalizado. A alternativa que buscamos adotar para que o espetáculo FIM. possa formar uma plateia de surdos e ouvintes em igualdade de condições de experimentá-lo é um teatro bilíngue, em que o texto falado não se sobreponha à visualidade. Dessa maneira, pretende-se ainda romper com uma forma de comodismo do público ouvinte que é a dependência de um sistema de comunicação ao qual está acostumado; verbal. Esta pesquisa, que fundamenta a montagem da peça FIM., busca suprir, com base em artifícios sensoriais — que serão detalhados na concepção criativa —, uma inquietação proposta pelo Existencialismo: a insuficiência da língua como método pleno de comunicação.

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2.3 Tempo 2.3.1 Os vários tempos As personagens e o texto do espetáculo representam o tempo em seu aspecto múltiplo, a fim de provocar uma reflexão sobre ele. Empiricamente, pode-se perceber o tempo de várias formas. O tempo subjetivo é individual e percebido de acordo com o contexto em que estamos vivendo; o tempo objetivo é aquele que é contado no relógio e já foi vastamente estudado pela física, filosofia e diversas outras áreas do conhecimento. No livro em que trata da velhice, Simone de Beauvoir ilustra com o seguinte trecho a percepção do tempo subjetivo: Quando saímos da infância, o espaço se restringe, os objetos diminuem de tamanho, o corpo se fortifica, a atenção se fixa, familiarizamo-nos com os relógios e com os calendários, a memória adquire amplitude e precisão. As estações, no entanto, continuam a se suceder com maravilhosa ou terrível lentidão. Passamos por essa experiência, não somente quando velhos, mas por exemplo em uma longa viagem em que o tempo parece não passar e o destino fica cada vez mais demorado, é uma questão de percepção do tempo (BEAUVOIR, 1970, p. 113). Não há como definir o ser humano sem falar de tempo, assim como o contrário. O tempo cria memórias, que definem pessoas e tudo isso desemboca num fim inevitável. 2.3.2 A velhice O espetáculo apresenta um indivíduo — ambiciosamente simbolizando todas as pessoas que vivem hoje — que tem sua percepção do tempo comprometida e não consegue organizar os fatos em outra ordem, senão aquela em que vêm espontaneamente à cabeça. E é nesse mesmo formato,

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seguindo de maneira fidedigna o tempo subjetivo, que Beckett organiza os textos dos quais retiramos trechos para criar a dramaturgia de FIM. O tempo cronológico já não tem valor de comunicação na peça, mas tem sua importância direcionada a outro aspecto essencial: balizar a vida dessa personagem retratada. É ele que determina a idade e deixa marcas ao passar. Quando a personagem se depara com a velhice e com a consciência de sua finitude, o sentimento de angústia se instaura e o processo de busca por um sentido da vida é retomado, para, logo depois, ser abandonado novamente. Assim, revela-se a grande reflexão levantada pelo texto: como as imagens mentais dessa personagem e o pensamento fluido, por vezes duvidoso, vindos da imaginação ou de algum lugar distante da memória, são desafiados pelo tempo biológico e moldados pela certeza do fim. O homem idoso interioriza o passado sob forma de imagens, de fantasmas e de atitudes afetivas. Depende dele ainda de outra maneira: é o passado quem define minha situação atual e sua abertura para o futuro; constitui o elemento a partir do qual eu me projeto e que tenho de ultrapassar para existir. Isso é verdadeiro em todas as idades. Trago do passado mecanismos montados em meu corpo, os instrumentos culturais que utilizo, meu saber e minhas ignorâncias, minhas relações com outros, minhas ocupações e minhas obrigações (BEAUVOIR, 1970, p. 111). Há, então, uma riqueza de referências e memórias embaralhadas, que constroem a personagem e propõem uma identificação geral, mediada pelo conceito do tempo que passa deixando seus rastros. Como uma representação, de certa forma, da pessoa contemporânea, a personagem deve mover o público a sentir uma instabilidade do tempo cronológico e uma consequente reflexão sobre o tempo subjetivo.

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2.3.3 Atualidade de Beckett Para perceber a relevância do resgate das peças do Teatro do Absurdo no tempo em que vivemos, basta que seja traçado um paralelo entre o panorama político--social daquela época e o atual. A síntese apresentada por Martin Esslin do contexto histórico em que se situa nosso objeto de estudo é quase que um espelho da situação que enfrentamos no Brasil de 2020 — e no mundo todo, de uma forma geral: O número de pessoas para quem Deus está morto aumentou consideravelmente desde os tempos de Nietzsche, e a humanidade aprendeu a amarga lição da falsidade da natureza malévola de alguns dos sucedâneos baratos e vulgares que foram inventados para tomar Seu lugar. E assim, depois de duas terríveis guerras, ainda há muitos que continuam (...) buscando um caminho para, com dignidade, enfrentar um universo privado do que era seu centro e seu objetivo vital, um mundo privado de um princípio coordenador geralmente aceito e que se tornou desconexo, sem objetivo – absurdo (ESSLIN, 2018, p. 343). Ainda que não se possa desvincular o homem contemporâneo da religião, a ciência já ocupa, no mínimo, um lugar de paridade quanto à sua credibilidade. A igreja, então, passa a estar submetida à escolha humana de aceitar ou não a crença que era antes imposta. A partir daí, o homem está livre para fazer o que quiser, já que seus atos não necessariamente passam pelo julgamento de um deus que o observa. Isso significa, acima de tudo, a perda de sentido da existência humana e, então, esse esclarecimento se revela extremamente angustiante. Segundo Camus, “a certeza de um Deus que daria seu sentido à vida ultrapassa de muito, em atrativo, o poder impune de fazer mal. A escolha não seria difícil. Mas não há escolha e então começa a amargura” (CAMUS, [19??], p. 50).

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Apesar de tudo passar a ser permitido, não é certo afirmar que nada mais é proibido: a proibição apenas passa a ser responsabilidade de um igual, e não de uma entidade superior. As ações perdem a certeza de uma consequência pós-morte, mas continuam a repercutir a curto prazo. Assim, o homem contemporâneo tem sua personalidade moldada no imediatismo e em uma observação de causa e efeito. A conquista do prazer imediato ultrapassa em valor a perspectiva de qualidade de uma possível vida eterna. Dessa forma, com a consciência de que se é perecível e de que tudo é efêmero, agora o ser humano tende a prezar pela quantidade de prazeres em detrimento à qualidade, que é incerta. É, inclusive, em virtude disso e de um egocentrismo inerente que o teatro — de uma maneira mais representativa, mas também a arte no geral — é tão cativante e necessário à vida. Ele reproduz de maneira extremamente fiel aquilo que o homem absurdo vive, poupando-o da angústia que é constante. Ali, é permitido ao espectador gozar da esperança e se distanciar de sua realidade fatídica, apresentando uma existência toda em poucos minutos. De todas as artes, é a mais efêmera, e assim mais ainda se aproxima da vida.

3.

CONCEPÇÃO CRIATIVA

A montagem de FIM. segue a estética do Teatro do Absurdo, que mistura elementos de diversas outras escolas, como o Naturalismo, Surrealismo e até mesmo o Dadaísmo. Fazendo uso de elementos de atitude antiliterária, o movimento visa potencializar o artifício do nonsense verbal e dos efeitos cênicos abstratos denominados pelo autor Martin Esslin de Ação Pura. Por essa razão, no Teatro do Absurdo, é de extrema importância o uso de elementos visuais: iluminação, cenário, figurino, entre outros. “O teatro sempre foi mais que mera palavra. Somente a linguagem permite a leitura, mas o verdadeiro teatro só pode se manifestar na execução do espetáculo” (ESSLIN, 2018, p.282). O aspecto sensorial que o Teatro do Absurdo exige é o que fundamenta a montagem de FIM., como já exposto anteriormente. Sendo assim, há

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a necessidade de harmonia — ainda que uma harmonia construída a partir de oposições —, se mostrando então essencial a criação de uma sólida estratégia de encenação, que transforma a peça em um organismo uno. Desse modo, buscamos borrar as linhas que separam cada um dos elementos textuais e extratextuais, promovendo um encadeamento mais natural entre eles. Essa estratégia é prevista e descrita por Matteo Bonfitto da seguinte forma: Ele [figurino] tem um valor em si enquanto “signo móvel” produtor de significados, contribuindo assim para a produção de sentido do espetáculo. Nesses casos o figurino assume muitas vezes, também funções cenográficas, fornecendo informações sobre a situação e o local onde se passa a cena (BONFITTO, 2013, p.112). Busca-se, então, uma unidade entre todos os elementos da peça, tendo todos o mesmo valor e sendo igualmente essenciais para a construção de significados e para a experiência estética da peça. Os itens a seguir surgem como propostas de encenação, visto que, por razão do isolamento social durante a pandemia do Covid- -19, não foram passíveis de experimentações e execução. A proposta cênica do espetáculo consiste em três personagens inseridas em atmosferas isoladas, cada uma representada por um elemento natural e rodeada de matéria orgânica, em um híbrido de humanidade e natureza. No decorrer do espetáculo, as cenas se desenvolvem individualmente, em desabafos de personagens que são um só, compondo um momento coletivo de tomada de consciência da própria existência e finitude. A peça se encerra num ápice de êxtase e poesia: uma ópera é fundo de uma cena de delírio e desvario. Encontramos inspiração para essa cena em uma teoria neurológica de que o cérebro humano tem um disparo energético nos últimos instantes antes da morte, podendo provocar confusão e alucinações. (GARATTONI, 2010) Assim, o espetáculo se aproxima ainda mais da vida, tentando representar seu fim o mais fielmente possível dentro da linguagem absurda.

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3.1 Dramaturgia A partir do estudo amplo da dramaturgia de Samuel Beckett, concluímos que em muitos momentos as obras se interligam, como se falassem de uma mesma personagem ou contassem uma mesma história. A partir disso, fizemos uma seleção de trechos de sua obra para organizálos dramaturgicamente em forma de colagem. Os critérios foram estabelecidos a fim de criar uma narrativa cujos temas centrais fossem o tempo, a finitude e a angústia humana. 3.2

Texto

Pautando-se em memórias, lembranças e em um texto fluido que se estende por várias direções de raciocínio, no que chamamos de fluxo de pensamentos, chega--se a uma atmosfera cênica na qual “a linguagem acompanha a trajetória da lembrança”, como afirma Pereira Júnior (2008, p.27). “Aqui, a forma é conteúdo, e conteúdo é forma. [...] Quando o sentido é dormir, as palavras adormecem. Quando o sentido é dançar, as palavras dançam” (BECKETT, apud PEREIRA JÚNIOR, 2008, p. 27). FIM. não pode ser contido dentro dos limites da língua como meio de comunicação convencional, de forma que esta deve então se submeter às representações derivadas daquilo que é interior, das emoções. Quando o texto vem sem pausas, seguindo o fluxo sugerido, é evidenciada sua ligação com o tempo, algo que se esvai sem poder ser pausado: um fluxo em direção à finitude, a um ar que acaba ou um espetáculo que chega ao fim. “A arte, neste caso, enfrenta sua própria pretensão de furtar-se ao tempo e passa a se situar nesta tensão entre o desejo de permanência e a inevitabilidade do fluxo” (PEREIRA JÚNIOR, 2008, p. 27). O tempo se funda no processo mental das personagens e não pode ser medido a partir de uma realidade objetiva, mas sim de um mecanismo subjetivo de percepção. A concepção do espetáculo é inspirada nas imagens mentais passíveis de serem construídas a partir da palavra enunciada e que logo se diluem e

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se transformam em outras, em um ciclo alimentado pelo subconsciente e pelas referências de cada um. A capacidade de resgatar lembranças por meio do ouvir e do não ouvir — silêncio —, evoca a necessidade de um subtexto e a aproximação entre personagem e plateia. Esta pesquisa explora, na mesma medida, o efeito inverso: sem que se perca a força da palavra enunciada, sugerimos a possibilidade de dar protagonismo à imagem, à visualidade, tornando-a parte essencial da dramaturgia. Busca-se alinhar o apelo auditivo da palavra enunciada à sua semântica, sem que uma sobressaia de maneira geral. Essa harmonia, porém, fica à mercê da relação estabelecida pelo espectador, por meio da identificação e associação entre suas vivências e as imagens cênicas construídas pelo elenco, cenário e todos os elementos cênicos no espaço. 3.3

Interpretação

Grande parte do processo de criação da peça foi concebido durante o isolamento social, em resposta à pandemia do Covid-19. Dessa forma, o trabalho dos atores teve que acontecer individualmente e de dentro de suas casas. Cada um fundamentou suas performances em técnicas e referências de sua escolha, em um processo muito individual. É importante ressaltar que, na data de escrita deste projeto, o processo de montagem do espetáculo ainda está em andamento, e deve ser concluído apenas quando a situação estiver normalizada. Nossa proposta não trabalha com personagens totalmente definidas. Os três podem ser um como podem ser vários. Essa personagem é um compilado da angústia e da falta de sentido da condição humana. Da sensação de vazio e de solidão. Sua função é demonstrar a angustiante espera por mudança, sempre à mercê de um tempo, que pode ser pouco ou muito. 3.3.1 Movimento Desde que nascemos, nossos corpos são constantemente codificados. As memórias que criamos ficam gravadas e constroem nossa forma de pensar

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e nos movimentar. O corpo expressivo que buscamos para o espetáculo não vai contra as nossas realidades corporais, mas, a partir delas, cria um novo corpo, simbólico e universal. Ele deve ir além das palavras e, por meio de um certo estranhamento, aproximar a plateia; convidá-la a ser cúmplice da história que é contada e das emoções que são propostas. O entrelaçamento da memória dos afetos e a memória das sempre mutantes formas, no decorrer do tempo do espetáculo (acompanhando a dança das emoções e dos impulsos), faz com que o atuante se torne, como instrumento e pessoa, ao mesmo tempo, um objeto estético. Corporificação de algo que o transcende e, nessa mesma medida, surpreende (AZEVEDO, 2008, p. 220). O processo de criação desse corpo-objeto-estético que compõe a dramaturgia, junto aos outros elementos cênicos, acontecerá por meio de experimentações. Partindo da fundamentação teórica e de diversas referências estéticas — entre elas as montagens de Beckett, Bob Wilson e Pina Bausch — alcançamos lugares de interpretação que se aproximam do Teatro Pós-dramático, do Teatro do Absurdo e da dança-teatro. A pesquisa corporal e vocal teve início com a leitura dramática do texto Aquela Vez, de Samuel Beckett, seguida pela montagem de uma prévia do espetáculo FIM., na mostra acadêmica Curto Teatro, para que, então, pudesse evoluir para a montagem final. Durante esse período, nossa ideia de interpretação transitou por diversas vertentes, e fomos descobrindo novas formas de se dizer o texto e de se movimentar no palco. Para tanto, além das referências estéticas, utilizamos de um vasto material de pesquisa teórica e de campo. Em certo momento do processo, coletamos áudios de atores dizendo trechos do texto da peça, para que pudéssemos analisá-los e nos desapegar da nossa forma viciada de enunciação. Foi um ponto importante de virada da construção do corpo e voz em cena, já que, mesmo encontrando algumas dificuldades e percebendo nossa atuação cristalizada pela repetição,

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repensamos o projeto todo. Em relação a isso, segundo Sônia Machado de Azevedo (2008, p.220): A máscara, do ponto de vista corporal, compõe-se de uma partitura física de caracteres expressivos do caráter da personagem e, nesse sentido, permite um crescimento sucessivo e um aprofundamento desses caracteres, o processo não pára: ou a criação segue buscando a relação vital afetivo-estética, ou fossiliza-se na forma obtida, incapaz já de mobilizar a energia original, corre o risco de tornar-se estanque, esterilmente fixada. Para construir essas máscaras, partimos dos elementos inspirados pelo texto e pelos signos que decupamos a partir dele. A personagem C, inspirada pela Boca protagonista de Não eu, tem como principal característica a urgência na fala e na movimentação corporal. A interação com a água surgiu a partir da análise do seu movimento predominante, que é súbito e indireto; fluido como a água. A personagem B, inspirada pelo texto Berceuse, baseia-se nos elementos ar e fogo, em uma fluidez mais instável. Elevada por uma passarela no meio do palco, sua movimentação se baseia na inconstância entre desatino e lucidez, na qual ela se encontra. Ela atua como a ponte entre as personagens A e C. A personagem A, assim como Winnie de Dias Felizes, está enterrada até a cintura, e toda essa terra que a envolve sugeriu diversos significados durante o processo de criação. A natureza morta e a aridez permeiam a movimentação da atriz, e sua partitura corporal tem, predominantemente, qualidades sustentada e pesada. Todos os conceitos utilizados aqui para classificar e descrever a movimentação foram cunhados por Rudolf Laban. Nessa busca pela movimentação universal, que comunica e expressa o que as palavras não podem, nos deparamos com a Libras e a encaixamos

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no nosso processo de criação. Por ser transmitida apenas no campo visual, a língua de sinais, ao fazer parte do espetáculo, pode provocar uma nova relação e significação do movimento em cena. Nesse sentido, o bilinguismo pode agir de forma a aguçar a capacidade sensorial do público, enquanto provoca em nós, artistas, uma reflexão sobre o fazer teatral a que estamos acostumados, e como ele pode ser acessível. Segundo Sônia Machado de Azevedo (2008, p. 221): A máscara, como conjunto disposto no tempo de signos, apela, inevitavelmente, à concretude do mundo e do universo sensorial, de um lado; e, de outro, ultrapassando-o, projeta-se num mundo de novas possibilidades, no misterioso solo etéreo de vir-a-ser. A constante busca unese à perda constante: o tempo decide o instante surpreendente do símbolo, como paisagem, como lugar de outras coisas que ali não estão. Paisagem que desafia a posse total, que não se deixa inteiramente possuir, escancarada e resguardada em seu mistério. O lado que nos interessa nessa criação é o outro, o lado do vir-a-ser, no qual os signos se projetam em novas possibilidades. O público, nesse cenário, se depara, a todo momento, com a estranheza, sendo inevitável sair da inércia habitual dos significados e do tempo concreto. A experiência sensorial que a atuação propõe vem do naturalismo e do cotidiano, mas nada tem a ver com ele enquanto estética. Estudando os movimentos na sua forma abstrata, podemos perceber que eles surgem dos momentos mais banais e se deixam observar e recriar com uma lupa: a lupa do Teatro do Absurdo. Em experimentos individuais feitos nas nossas casas durante a quarentena, encontramos matéria para criação em meio às nossas rotinas, no levantar, comer, trabalhar, observar, estudar e tudo o mais que representa nossa vivência artística e pessoal.

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3.4 Sonoplastia Idealizamos para a sonoplastia do espetáculo a concepção de paisagem sonora, construída a partir de vários sons verbais e não verbais, sendo o próprio texto um dos componentes. A sonoridade atua, em certos momentos, como um complemento do cenário, ao delimitar atmosferas específicas para cada um dos atores e tempos da peça. Outra função que cabe a ela é potencializar a experiência estética do público ouvinte — a experiência do público surdo terá sua potencialidade pautada em outros elementos —, a partir do apelo auditivo. Para tanto, será utilizado um material sonoro que foi coletado durante o processo e modificado para caber na estética da peça, por meio de sobreposição e remixagem. Trata-se de trechos da dramaturgia nas vozes de vários atores convidados, que serão utilizados como samples para compor parte da trilha sonora. O espetáculo é encerrado no ápice de uma ópera de Giuseppe Verdi, compositor italiano do período romântico. Nesse momento, som e cena se combinam num êxtase sublime. FIM. deve terminar num espetáculo contemplativo, inspirado na essência humana pura e não racional. 3.5

Concepção visual

A concepção visual foi toda criada a partir dos elementos naturais — terra, água, fogo e ar, sendo o último parte integrante de todos os demais —, que simbolizam tanto a vida quanto a morte. Os elementos sofrem transformação durante o progredir do espetáculo, de forma que a efemeridade desses materiais é também componente da dramaturgia. As texturas e formas são exploradas de maneira a causar sensações e estabelecer o lugar do ator em cena. Cenário, figurino e maquiagem são elementos cênicos que se complementam nessa montagem. No decorrer das cenas, um vai tomando o lugar do outro, e a percepção de onde um acaba e o outro inicia passa a ser muito difícil.

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3.5.1 Cenário São componentes do cenário a iluminação, as projeções e o figurino. A terra que cobre uma parte do palco é também continuidade do figurino da personagem A. O recorte de luz que delimita o espaço da personagem B, em conjunto com as velas que completam seu figurino, cria uma atmosfera para o cenário proposto; além disso, um tecido vermelho, que recobre o chão do palco, se transforma em sua saia na cena final. Da mesma forma acontece com a água que escorre pelo corpo da personagem C, modificando sua vestimenta e dando dramaticidade à cena. O cenário está em constante mutação ao longo da peça. Em certo momento, os elementos se misturam, criando novas texturas: a água que molha a terra; o fogo que é apagado pelo vento; a luz que revela silhuetas e cores; e a projeção de vídeos que aparecem e desaparecem em momentos pontuais. Fazem parte do espetáculo três atmosferas diferentes, estando cada personagem inserida em uma delas e isolada das demais. Apesar da distância simbólica, porém, há similaridades entre eles. Detalhe este que nos remete ao isolamento social, em que cada um, do seu próprio espaço, convive com um problema comum. As projeções que surgem estarão visíveis a todos eles, marcando o poder da tecnologia de trazer fragmentos do mundo para dentro da cena, com fidelidade. Serão utilizados em cena dois projetores, e várias traquitanas que terão a finalidade de elevar a saia da personagem B na cena final. Para a devida funcionalidade desses elementos, se fará necessária a contrarregragem. 3.5.2 Iluminação A principal característica da iluminação da peça FIM. é uma relevância pautada na mescla de linguagens: ela é luz, cenário, figurino e dramaturgia unidos em suas individualidades. Os recortes, focos e cores devem ser muito bem direcionados, para construir a sensação

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de isolamento e solidão, essenciais à experiência visual absurda que é proposta. A atenção da plateia é direcionada a detalhes que ajudam a delimitar diferentes atmosferas. Recursos de luz que ora revelam, ora escondem partes da cena são usados a fim de despertar a curiosidade e instigar a imaginação do público, com constantes quebras de expectativa. Todas as personagens são parte integrante de seu cenário, criando uma imagem híbrida de corpo e lugar. 3.5.3 Figurino e maquiagem A proposta de figurino se funda no conceito de materialidade-figurino; ou seja, não se pensa o figurino como vestimenta, mas sim a partir de referências e símbolos. As referências, nesse caso, dizem respeito aos elementos naturais correspondentes a cada personagem: terra, água, fogo e ar (componente comum). Os símbolos remetem aos nossos referenciais na forma de cores, pesos, volumes e texturas, fazendo parte da composição materiais orgânicos e não convencionais. Isso vale tanto para o figurino quanto para a maquiagem, em uma busca de traduzir também o tempo e o estado de espírito de A, B e C. 3.6 Encenação O conjunto da peça FIM. se organiza a partir de uma ideia de harmonia conflitante. Esse método organizacional dos componentes da cena se encaixa nas bases fundamentais do teatro pós-dramático, conceito criado por Hans-Thies Lehmann para classificar uma estética que se iniciava no fim do séc. XX. E é em um dos princípios centrais deste movimento que o nosso espetáculo se estrutura; a não submissão ao texto exige uma “perturbação recíproca de texto e cena” (LEHMANN, p. 247 apud DE PAULA, 2017, p.66). A narrativa tradicional linear, assim como a língua de maneira geral, desde então, não é suficiente para que uma peça de teatro proporcione uma experiência estética satisfatória. O estilo de encenação adotado pelo grupo foi o de criação coletiva. A partir de objetivos e princípios comuns, todos os integrantes são

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igualmente responsáveis pela criação ao longo do processo, sem uma centralização na figura do diretor. Para que isso seja possível, todos os momentos do processo estão sendo construídos a partir da experimentação, ao conceber o lugar de trabalho do ator como um laboratório. Um aspecto central e decisivo para o processo de criação coletiva é a produção de dramaturgia. Ela tem o caráter provisório, aberto, estando sempre sujeita à reescrita. Em muitos casos, assume um aspecto de “mosaico”, comportando uma vasta quantidade de “vozes”, pois, se todo o coletivo está envolvido na escrita, o texto deve dar vazão a isso (DE PAULA, 2017, p. 75). Essa afirmação se mostrou muito verdadeira ao grupo, tanto em vista do processo, quanto do resultado: trata-se do aspecto de “mosaico” — nos referimos a ele aqui como colagem —, segundo o qual as várias vozes se apresentam na dramaturgia de texto e cena. Como ampliação dessa forma de encenação, há uma segunda técnica que é a do processo colaborativo. O que o grupo propõe para a montagem de FIM. se adequa também a ele. Desse modo: Os artistas sabem e têm consciência de suas funções e o que devem propor como respostas relativas às suas áreas específicas. Mas, tendo consciência de que são propositores, podem e devem colaborar com todas as áreas, sendo corresponsáveis pelo desenvolvimento das especificidades, comprometendo-se com algo muito maior: o próprio objeto de criação (DE PAULA, 2008, p. 76). Isso permite que cada artista forneça o melhor dentro de suas habilidades específicas, sem ser soberano e, ao mesmo tempo, sem se submeter à

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soberania dos outros artistas em suas respectivas áreas. Levando em consideração tudo o que foi apresentado, essa estratégia se revelou a mais benéfica ao objeto de criação FIM.

CONSIDERAÇÕES FINAIS A realização deste trabalho se deu pela identificação do grupo com os textos de Samuel Beckett, percebendo como os temas tratados no período pós-guerra são atuais. A partir daí, nos desafiamos a combinar seus trechos em uma nova dramaturgia, coordenando-a com a LIBRAS e uma encenação bastante visual, em um espetáculo harmonioso. Por conta da pandemia, ainda não pudemos pôr em prática a concepção descrita neste projeto, mas isso acontecerá assim que a situação for normalizada.

REFERÊNCIAS AZEVEDO, Sônia Machado de. O papel do corpo no corpo do ator. São Paulo: Perspectiva, 2008. BEAUVOIR, Simone de. A velhice. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1970. BONFITTO, Matteo. O ator compositor: as ações físicas como eixo: de Stanislávski a Barba. 3. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013. BRASIL. Lei nº 13.146, de 6 de julho de 2015. Institui a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Brasília, 6 de julho de 2015. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm>. Acesso em 31/05/2020. CAMUS, Albert. O Mito de Sísifo. [19??] 102 f. Biblioteca Digital PUCCampinas. Disponível em: <http://bibliotecadigital.puc-campinas.edu.br/ services/e-books/Albert%20Camus-2.pdf> Acesso em 01/06/2020.

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CANÇADO, Márcia. Manual de Semântica: noções básicas e exercícios. 2. ed. São Paulo: Contexto, 2015. DE PAULA, Eduardo. O ator no olho do furacão: metáforas norteadoras para o trabalho criativo do ator. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2017. ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar, 1968. ESSLIN, Martin. O Teatro do Absurdo. Rio de Janeiro: Zahar, 2018. GARATTONI, Bruno. Atividade cerebral dispara logo antes da morte. Superinteressante, 2010. Disponível em: <https://super.abril.com. br/ciencia/atividade-cerebral-dispara-logo-antes-da-morte/>. Acesso em 02/06/2020. OLIVEIRA, Mirian Martins de. Surdos e ouvintes: dos bastidores aos aplausos...a busca de autoria em um processo de inclusão pelo teatro. 2005-2006. 170 folhas. Dissertação (Educação) - Universidade Metodista de São Paulo, São Bernardo do Campo, SP. Disponível em: <http://tede. metodista.br/jspui/handle/tede/1790>. Acesso em 25/05/2020. PEREIRA JÚNIOR, Vicente Carlos. Escutar o tempo: um estudo sobre Aquela Vez de Samuel Beckett. 2008. 141 f. Dissertação (Pós-graduação em Teatro) Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ, 2008. SAUSSURE, Ferdinand de. Curso de linguística geral. 28. ed. São Paulo: Cultrix, 2012.

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\poéticas do “entre” e as rachaduras do professorarteatrar no mundo de 2020 Jocteel Jonatas de Salles¹ 30 anos, Montenegro (RS). Ator, professor e pesquisador, coordena a Tela Cia. Artes, grupo de ensino, pesquisa e criação no campo das artes da cena (teatro e performance), criado em 2013 na cidade de Itajubá (MG). Atualmente, é mestrando no programa de pós-graduação em artes cênicas da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). jocteelsalles@gmail.com

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1. Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs). Orientadora: Profa. Ma. Marli Susana Carrard Sitta, Uergs.


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ficha técnica Universidade Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (Uergs) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2016-2020 Estado Rio Grande do Sul Título do trabalho Poéticas do “entre” e as rachaduras do professorarteatrar no mundo de 2020 Nome do autor Jocteel Jonatas de Salles Nome da orientadora Marli Susana Carrard Sitta Número de páginas 18

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\poéticas do “entre” e as rachaduras do professorar-teatrar no mundo de 2020

RESUMO Este trabalho faz-se no “entre” enquanto poéticas do professor-ator para a criação teatral. Em decorrência da necessidade do isolamento social, devido à pandemia do novo coronavírus (Covid-19), a experiência teatral acontece por meio de telas digitais, em plataforma virtual, com a Tela Cia Artes. Próxima das noções de performance, a pesquisa possui o processo pedagógico-artístico como sendo a própria obra e seu resultado. No acontecimento do professorar-teatrar, na relação arte-vida, colocam-se como premissas dessa pesquisa, a reflexão e elaboração dos pensamentos-teatro de Antonin Artaud. É também na experiência da escrita que o pesquisador performa sua noção de “entre” por meio da imagem das rachaduras. Palavras-chave: Criação. Entre. Performance.

ABSTRACT This work is made in the “in between” as a teacher-actor’s poetics for the theatrical creation. Due to the need for social isolation, as a result of the new coronavirus pandemic (Covid-19), the theatrical experience takes place through digital screens, on a virtual platform, with Tela Cia Artes. Near to the notions of performance, the research possess the pedagogical-artistic process as being the work itself and its own result. In the event of teacher-theater, in the art-life’s correlation, setting up as premises of this research are the reflection and elaboration of Antonin Artaud’s theater-thoughts. It is also in the experience of writing that the researcher performs his notion of “in between” through the image of the cracks. Keywords: Creation. Between. Performance.

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ABSTRACTO Este trabajo se realiza en el “entre” como poética del maestro-actor para la creación teatral. Debido a la necesidad de aislamiento social, por la pandemia del nuevo coronavirus (Covid-19), la experiencia teatral se desarrolla a través de pantallas digitales, en una plataforma virtual, con Tela Cia Artes. Cercano a las nociones de performance, la investigación tiene como proceso pedagógico-artístico la obra en sí y su resultado. En el caso de la enseñanza-teatro, en la relación entre arte y vida, las reflexiones y elaboración del pensamiento-teatro de Antonin Artaud se sitúan como premisas de esta investigación. Es también en la experiencia de la escritura donde el investigador realiza su noción de “entre” a través de la imagen de las grietas. Palabras clave: Creación. Entre. Actuación.

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\poéticas do “entre” e as rachaduras do professorar-teatrar no mundo de 2020

INTRODUÇÃO O presente texto é um relato experiência do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) da Graduação em Teatro: Licenciatura da Universidade Estadual do Rio Grande do Sul (UERGS), realizado no primeiro semestre do ano de 2020. Provocado no “entre”, enquanto tema-poética do professor-ator, a pesquisa aconteceu de forma remota, em decorrência da necessidade do isolamento social, devido à pandemia do novo coronavírus (Covid-19), e redimensionou questões acerca da criação teatral na experiência do professorar-teatrar2 por meio das telas digitais, em plataforma virtual, com a Tela Cia Artes – grupo experimental de teatro criado em 2013 na cidade de Itajubá, Minas Gerais – o que resultou em um evento cênico performativo virtual3. As ações desenvolvidas no trabalho foram apoiadas na noção de performance como linguagem, constituindo-se como espaços de experimentações nos quais a concepção dos processos são tão importantes quanto os produtos deles resultantes. (ICLE e BONATTO, 2017). O “entre” como tema-poética de pesquisa, é absorvido mais na dinâmica dos acontecimentos, dos encontros, das vibrações e das experiências de modo geral, do que num tempo e espaço localizável; está como uma poética provocativa, disparadora de pesquisas-criações, pois ele não se deixa delimitar ou explicar, é invisível e abstrato, é movimento (in) constante entre uma coisa e outra, é passagem, está no fluxo que arrebata os sentidos em devaneio, é um contágio de forças criadoras e relaciona-se com os estudos da performance (SCHECHNER, ICLE, PEREIRA, 2010). A pesquisadora em Artes Cênicas, Angelene Lazzareti (2019, p. 90 e 91) em sua tese de doutorado, ajuda a pensar o “entre” quando diz que, “O entre poético se dá no acontecimento teatral operando como uma pulsão o fazer: fazer criação, fazer abertura nos corpos, fazer o nascimento da presença, fazer o encontro das ausências, fazer camadas de relações, fazer confronto, fazer a perda, fazer construção, fazer o acontecimento teatral”. Nessa perspectiva, o “entre” como movimento da experiência, aberto, se fazendo, favorável para a criação, se deu nesse

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2. Utilizamos os verbos professorar-teatrar para denominar as ações do professor-ator de teatro, no sentido de hibridar-se, alimentar-se um do outro, tentando assegurar a singularidade de cada um no exercício da criação.

3. Nomear de evento cênico performativo virtual foi uma tentativa de ampliar o entendimento sobre teatro neste momento de pandemia. O que podemos fazer e fruir próximo ao teatro nestes tempos? “[...] como propor procedimento de mediação – compreendida aqui como todo ato proposto no espaço existente entre a cena e a sala, entre o gesto do ator e a percepção do espectador – que favoreçam o encontro e a realização propriamente artística do evento?” (DESGRANGES, 2017, p. 22).


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4. Segundo Patrice Pavis (1999), a teatralidade é um termo polissêmico, que inclui a performatividade e depende da leitura do espectador para se constituir.

trabalho como uma abordagem de contaminação, na (des)continuidade do mundo pandêmico, como um convite para a experiência simbólica do acontecimento teatral também em telas digitais.

2. A EXPERIÊNCIA DO PROFESSORAR-TEATRAR Em busca de transpirar teatralidade4 e reaprender o corpo em telas digitais para uma experiência simbólica do teatro, foram desenvolvidos encontros docente-performativos com o grupo Tela. Essa prática buscou, a partir de noções do “entre”, investigar-compor um processo de criação docente-artística. Os encontros aconteceram em quatro quintas-feiras nos meses de julho e agosto de 2020, via plataforma Google Meet, com duração aproximada de 1h30 cada. Os integrantes-participantes foram: Gabrielle Moura, Geovana Salles (convidada), João Paulo Xavier, Karina Kess, Kell Ferreira e Larissa Dias. Esses encontros docente-performativos foram norteados por muitas questões, dentre elas: O que é preciso para transformar o encontro virtual em uma experiência simbólica do teatro? Qual o lugar do corpo no isolamento social? Como compor cenicamente com esse corpo virtualizado? É possível reaprender o corpo pela tela? É possível um corpo-tela? Como desenvolver uma outra gestualidade, outras convenções do espaço-tempo (ritmo)? Podemos assumir a câmera como uma extensão dos corpos? É possível provocar teatralidade por meio das telas digitais? É possível provocar outros olhares para cena? Qual a postura do professor-ator, aluno-ator e espectador nessa experiência? Onde está a sala de aula? Onde está o palco? Onde está a sala de trabalho? Como podemos habitá-la virtualmente? Quais são os rituais do teatro passíveis de serem adaptados para esses encontros? Quais recursos podemos utilizar para que aconteça teatro em tempos de pandemia? É teatro? Para a experiência de criação em telas digitais, buscamos convencionar a plataforma virtual como espaço simbólico do acontecimento teatral.

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Investigamos quais recursos a plataforma nos oferecia e com quais possibilidades de layout poderíamos jogar cenicamente. Trocamos algumas informações tecnológicas ajustando os microfones e as câmeras dos dispositivos e acordamos que os utilizaríamos na posição horizontal, assumindo-os como espaço cênico/virtual da experiência. O recurso do ligar/desligar os microfones e as câmeras, a interação pelo chat da plataforma foram ritualizados como “estar em cena” e “estar em jogo” e os corpos presentes-ausentes buscados na experiência fragmentária da voz, da imagem e da escrita. Com essas abordagens e convenções teatrais, percebemos diferentes maneiras de experienciar o corpo em jogo na moldura da câmera-tela. O recorte para partes mais específicas do corpo como a mão, os olhos, a boca, objetivou uma maior potência de teatralidade dentro do que propúnhamos criar. Nesta perspectiva: O corpo é reversível e sua a reversibilidade é sempre conhecimento, a mão que toca e é tocada, o olho que olha e é olhado, é uma comunhão do ser no mundo; nela, já não se sabe o que é um ou outro, são um entre, vivenciamos o tempo todo uma experiência do ser atado às coisas do mundo. (MOURA, 2011, p. 3). Em cada encontro do trabalho o professor-ator buscou articular os conhecimentos e as práticas dos componentes curriculares, dos estágios, dos projetos de pesquisa e extensão vivenciadas no curso de licenciatura em teatro, sem deixar de levar em consideração os laços afetivos existentes com e entre os participantes. As primeiras propostas focaram em ações dramáticas de explorar a voz, a escrita e o desenho no corpo a partir das memórias e narrativas pessoais. O material produzido em cada encontro foi organizado em pasta no Google Drive, na qual os participantes tinham acesso e autonomia para fazer alterações, cortes e acréscimos em suas criações. Alguns fragmentos artísticos apresentados no evento cênico performativo virtual também foram construídos e alimentados num grupo de WhatsApp, esse aplicativo foi importante para os devaneios-afetivos compartilhados por meio de música, de imagens, de fotos, de poemas, dentre outros. Sobre este aspecto,

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Quando as linhas da trama teatral costuram, abrem vetores, esparramam-se, essa costura atravessa os tecidos do espaço cotidiano. A linha que costura poeticamente faz dos corpos no acontecimento teatral também agulhas: perfuradoras e esburacadas, conquistadoras de formas e escavadoras de matérias, corpos que afetam e são afetados uns pelos outros. As experiências singulares testemunhadas a partir da memória dos corpos se tornam linhas plurais que tramam tempos, histórias, lugares, desejos, gestos, dores. Essas linhas, além de constituírem o acontecimento teatral, também se tornam matérias poéticas que passam a vagar autônomas pelo entre. (LAZARETTI, 2019, p.92). Alterados pelo tempo da transmissão online, as ações e movimentos criados geram outra percepção do ritmo da cena e os participantes são convocados de forma orgânica a operar num outro tempo. Tanto para falar quanto para escutar é necessário um esforço maior que o convencional. A transmissão online, por vezes, apresenta ruídos e capta sons, barulhos, dos diferentes territórios na vídeochamada e propõe um lugar outro, inesperado, na dimensão do duplo estar-não estar. Interessante perceber que nesses ruídos, há gatilhos para jogo e efeitos potentes para compor a cena performativa virtual. O diálogo apresentado na cena em tempo real entre as duas atrizes, Adelita Siqueira e Bruna Johann Nery, que não se conheciam, que nunca tinham se visto e nem se ouvido, distantes geograficamente, em fusos horários distintos e separadas por um oceano, pode ser citado como exemplo. Quando são convidadas a abrirem suas câmeras e microfones e jogarem teatralmente com o pequeno Diálogo poético recebido e memorizado dias anteriores, estão se colocando na experiência do acontecimento teatral, que dessa forma, só poderia acontecer virtualmente.

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Diálogo Poético ATRIZ B — E se tu soubesses o que eu faço na escuridão, certamente me iluminaria. Que cor é o céu para ti que está aí? ATRIZ A — Não sei, tem a cor do mar. ATRIZ B — Que cor é o mar? ATRIZ A — Eu não sei... você já chupou laranjas com sal? ATRIZ B — Não... (Estranha) O que isso tem a ver com a cor do mar? ATRIZ A — Eu hoje vi uma velha senhora, encurvada, carregando sacolas com laranjas, pensei na gostosura que seria chupar aquelas laranjas com sal. ATRIZ B — Que cor eram as laranjas? ATRIZ A — A cor do tempo que corre, corre, corre e quando pensamos em sua cor já não sabemos que cor é. (Silêncio). Que cor é o teu vazio?

Imagem 1 – Jogo entre as atrizes, 25/08/2020 | Fonte: Autor (2020)

(Fragmento de dramaturgia criado por Jocteel Jonatas de Salles em Oficina de Dramaturgia com Francisco Gick na Semana Acadêmica 2017 da Unidade UERGS - Montenegro-RS).

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5. Lazzaretti e Spritzer (2017) trazem no artigo O Corpo-voz entre aspectos da voz (proferida e escutada) como produtora de expressão e articuladora de sentido e presença, e aproximam da reflexão a noção do “entre”.

É na experiência desses atravessamentos e desdobramentos possíveis que a música Som do Mar, composta por Geovana Salles exclusivamente para a cena, é executada no piano ao vivo e, também, onde as ações e movimentos das atrizes da Tela Cia Artes aparecem para compor, entremeando a dramaturgia vocal. Das investigações poéticas que foram possíveis nos encontros por meio do recurso virtual, a voz compreendida “como corpo que excede o corpo” e que “pulsa na esfera” do “entre”5, revela-se nesse trabalho como elemento importante no processo criativo. Indutora de sentidos, ela agita a palavra em sons, brinca desacomodando a escrita, produzindo efeitos mais do que significados, efeitos estes que empurram os pensamentos no playground da imaginação. A voz-corpo atravessou a experiência dos encontros como força e promoveu um estado de presença do pesquisador, compartilhada entre os participantes. Pelo ato de desligar as câmeras e operar apenas com os microfones abertos em alguns momentos, foi experiência para outras formas do professorar-teatrar, que deslocou o compromisso do olhar como um primeiro plano e colocou todo o corpo para o dizer e o ouvir, para além da linguagem formal. Essa experiência da voz mobilizou o acontecimento teatral entre os corpos presentes-ausentes. Instigados pela teatralidade produzida pela voz, buscamos em Antonin Artaud (1896-1948), especificamente em sua obra radiofônica Pour en finir avec le jugement de dieu (Para acabar com o juízo de deus), de 1948 (FLORENTINO, 2015), desenvolver uma dramaturgia vocal. O trabalho com a voz, e consequente com a palavra, de uma linguagem mais próxima do fluxo de consciência, permitiu explorar os efeitos mais do que os sentidos, como é sugerido na peça radiofônica de Artaud. Buscamos nessa etapa experimentar nas palavras proferidas, os ruídos, os gritos, os murmúrios, os cochichos, os sussurros, a respiração, o cantarolar, as pausas, os ritmos, o grave e o agudo, a passagem entre tons da voz. Outra proposta importante, foi a de que os participantes desenhassem-escrevessem em fluxo a partir da experiência do ouvir a dramaturgia vocal do pesquisador, da recepção dos efeitos que percebiam dela. Esta última, foi pensada a partir dos desenhos-escritos de Artaud, nos quais esboçava seus

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pensamentos numa tentativa de expandir o limite do corpo, em busca de um corpo mais expansivo que ecoa através da palavra. (AZEVEDO, 2014). Isso tudo rearranjado do processo criativo, aparece no evento cênico performativo virtual, inclusive a participação do espectador que ao se sentir provocado pôde aparecer, abrir a câmara e/ou o microfone e interagir. Foi o que aconteceu no processo da pré-banca do TCC, quando um dos convidados participava como espectador diretamente de uma praia de Portugal e ao perceber que o mar era citado e provocado como efeito na cena, abriu a sua câmera para mostrar ao vivo o mar. Tal ação enriqueceu a cena e nos fez aproximar de um teatro mais poroso, um teatro mais plural “[...] quantas possíveis combinatórias há dentro das linguagens teatrais: infinitas.” (DUBATTI apud ROMAGNOLLI e MUNIZ, 2014, p. 255). A seguir, uma narrativa de imagens do evento cênico performativo virtual, realizado no dia vinte e cinco de agosto de dois mil e vinte, em plataforma Google Meet.

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Imagem 2 – evento cênico performativo virtual Fonte: Autor (2020) 195


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Os saberes se encontram, não apenas no que já sabemos sobre teatro, mas saberes de tempos outros, que exigem experiências diferentes, relações diferentes, modelos de referência diferentes. O teatro aparece mais na suspensão da necessidade de interpretação fixa, mais na dilatação das subjetividades em prazer de travessia, mais no discurso da performance. A noção de performatividade se localiza tanto nos encontros docente-performativos quanto no evento cênico performativo virtual desta pesquisa porque, em sua concepção, redefiniu os parâmetros permitindonos pensar a arte hoje; permitiu descobrir formas criativas para exprimir a perda de lugar e poder lidar com essa experiência traumática que o ano de 2020 impõe. Richard Schechner diz que “a performance é mais que uma ação teatral, [...]. Performance é, por definição e por prática, provisória, em construção, processual, lúdica [...]” (Apud, ICLE E PEREIRA, 2010, p.27 e 34). Uma vez que estamos neste mundo frequentemente lidando com as telas digitais como forma possível do trabalho, da educação e da interação social é necessário deslocar olhares e buscar uma relação outra com os dispositivos, de maneira que reoriente nossa postura de interação no virtual capaz de nos aproximar da experiência de criar “com o” e não “a partir do” virtual. A postura convocada é a de abertura, aquela de nos permitimos ao desconhecido e ao não domínio dos saberes. A fragilidade dos acontecimentos virtualizados podem ser potentes para a criação ao desenharem a perspectiva de um teatro (des)articulado, desierarquizado, um teatro que performa um teatro, aberto a experiência dos atravessamentos de outras linguagens e desejos, às possibilidades de novos conhecimentos do campo teatral. Esse momento que nos obriga ao virtual ensaia a compreensão do “entre” como campo aberto para a criação, convoca maneiras outras de ser e estar, desloca o tempo e o espaço e age numa lógica de suspensão, de ilusão, de contaminação, de arranjo da duplicidade das coisas. Foi preciso desviar dos circuitos projetados, sair das vias conhecidas, proferir o desapego e rumar ao acaso dos corpos agora virtualizados, viralizados. Pensar e criar a cena e os encontros com os colaboradores virtualmente

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colocaram o pesquisador numa certa irritação como professor-ator, pois é inevitável o atrito e a dor existente de pulsar no “entre”. Quando o “entre” infiltra ele rasga, ele pode vincular ou separar, em alguns momentos vincula e em outros separa. Por isso, a premissa desta reflexão, é apresentar o “entre” como rachaduras, pois elas são rachas, são feridas abertas – que permanecem por determinado tempo, não todo o tempo –, e por isso mesmo, há sensibilidade, carne ou nervo exposto, dói, mas ali há também possibilidade de construir um novo corpo-corpos. “[...] costurando os fragmentos de um complexo processo de criação” (TESSLER, 2002, p. 106).

3. AS RACHADURAS Como modo natural de aliviar as tensões sobrevindas no processo de criação, as rachaduras são feridas que surgiram no movimento da pesquisa, resultantes de uma agitação das forças criadoras sobre a carne, maior do que a sua capacidade de resistência, e que poeticamente se apresentam como dramaturgia. Ao compreendê-las como potência criativa do professorar-teatrar nesse tempo em que o mundo sofre com o vírus da covid-19, essas rachaduras aparecem como agitações de um corpo em contaminação, que se (des)organiza em fluxo de consciência e instaura, concomitantemente, outras operações da criaçãovida. Desse modo, as rachaduras como ações entre a formalidade da escrita e a fluidez de um pensamento se pensando foram estendidas horizontalmente em atos performativos no encontro cênico performativo virtual e está como abertura para produzir efeitos do “entre” do professorator-pesquisador, portadores para outros “entres” produzidos na relação com o leitor, assim como o que aconteceu com os participantes do evento. RACHADURA No processo de construção desse trabalho, de vida, a ação sofrida assume seu lugar nas imagens e palavras. Provocadas pela dilatação natural, rachaduras são fendas, frestas, trincos,

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que compõem nossas memórias em ação. Sem escondê-las, assumo as rachaduras como parte da criação, os desvios que aliviam o pátio cimentado, o duro, concreto de mim, cascas que se desgastam. Assumo pensamentos aleatórios que contrastam ao pensamento linear, aqueles que colocamos nas linhas para fazer algum sentido (tolo!). Tenho a mania de ligar afetos, escritas, dimensões, ritual como quebra cabeça, que se encaixa desencaixando, faz algum sentido? Não da ordem lógica. As rachaduras devem ser escritas, lidas, guardadas, cantadas, assumidas, são marcas do tempo, marcas que ligam a outros tempos, que fazem ver a vida no seu estupor ganhando contornos, desenhos, formas (Como as rugas da velha senhora, que carrega saco de laranjas e vai chupando enquanto trilha, quase perto da sua morte). As rachaduras, assumem-se na rigidez da paisagem, compõem. Convido-lhe a olhar como o menino Diego no poema de Eduardo Galeano (2002), que ao ver o mar pela primeira vez pede ao pai que lhe ajude a olhar. A arte salva o momento, para as rachaduras, das duras realidades que lembram a vida em fragilidade. Nesse momento alguém deu seu último suspiro. Percebe? Somos rachaduras no tempo, rasgando, rasgando... Acolhemos as rachaduras, há mistérios, são passagens, d(escola) daquele funcionamento bonito, d(escola) daquela prática que dá certo, suspira vida e fragilidade. Rachaduras, fragilidades, tamanha força! Não a ideia de força que conhecemos e fomos educados a ter, a parecer ter, me sugere ser uma força estranha, de ser. Eu perco sentido agora. Tá vendo?! Perdemos sentidos quando queremos sistematizar demais. Eu releio sobre isso, as rachaduras, elas continuam a rasgar e a ganhar novas formas. Não se desespere!

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Há criação! Ela é feita nessa dança mesmo, nessa música polifônica, nesses ruídos, nessa conexão em falha, nesse esforço a mais ao ouvir o outro do outro lado da câmera, às vezes falha a imagem, às vezes ouço barulhos, como ruídos na transmissão. Busco melhorar o dispositivo do microfone no computador, busco um programinha para corrigir o microfone, ali na busca, eu encontro fotos de quem fui, de quem eu estive, personagens de mim. Silêncio! Uma foto me chama a atenção, me conecta. Parece ser um ruído, busco por essa peça de mim, roubada no tempo de outras rachaduras, da dura religião que corrói. A religião é uma parede dura, dura, difícil rachar. Mas teve ali um furo. Escorro como água nas rachaduras, perdi quem amei, e não pude demorar-me ali, culpo a parede. Sim, a religião é uma parede dura, dura, difícil rachar. Eu me escondi e me esqueci, até que encontrei naquela foto que chamou a atenção, morte! A dor da morte. Da perda. Você já amou alguém? Há amor na criação que atrita na morte. Eu me demoro aqui. Tomo meu tempo, é meu? O tempo é uma rachadura na memória, esquecimento que te leva para outras vibrações. Há desejos não vividos nas rachaduras, não vividos, não sentidos, espremidos. Quisera eu ter controle sobre as rachaduras. Ritualizar a perda, colocar voz, grito! Coloco a dor de quem não pude amar porque tem um muro difícil de não só rachar, como também derrubar. Será que não veem que “Deus é perigo, é abismo. Mora no grande mar” (ALVES, 2002). Deve ser alguma rachadura, de uma busca, tamanha essa rachadura, é preciso coragem para lançar-se nela. Não só a religião, a escola é outro lugar, que interpela, que limita e endurece a criação. Mas o teatro pode ser uma possibilidade de rachadura da escola, pois joga para

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o mundo outros corpos para criar, vazar e escorregar. Tem uma rachadura agora sendo redimensionada. O teatro é a rachadura da vida. Viva! Por favor, assumamos as rachaduras, a vida. Por favor! Precisamos estar lá, como professores, como atores, criadores, rachadores. O teatro é feito em )nó(s. Engraçado tem dores dentro das palavras criadores e rachadores, criar dores, rachar dores, dividir dores, dilatar dores, sonhar dores, dores, dores… dolores…cores…flores…amores…tambores... Artaud? Antonin Artaud? Homem de dores (parafraseando Isaías 53, profeta que anunciou o Cristo). Artaud e Cristo, rachadores, poucos os que entenderam suas mensagens, rachadores de seu tempo, performers (a parede dura grita em mim: Profano! É heresia! Eu sigo rachando.) Olhar suas vidas, ver performances, mensagens, no “entre”, em parábolas, em manifestos, em dor.Um anuncia “Para acabar com o julgamento de Deus” (ARTAUD, 1983), outro anuncia que o véu do templo se rasgou! Mais comum do que parece. Por que insistem ressuscitar o juízo e recosturar o véu? Temos essa mania doida de não aceitar a liberdade, não é? A parede dura berra. De tempos em tempos somos movidos a encarar essa organização, esse corpo que insiste em ser um corpo com órgãos6. Lembro-me do corpo de Cristo, a “igreja”, não a que fizeram dela, mas aquela que Cristo anunciou, penso agora a igreja-corpo sem órgãos. É preciso percebê-la em Artaud. Reencontro-me para me perder. Perco-me para me achar. Digo, ra-char! Na compreensão do teatro não apenas como linguagem, mas como experiência e acontecimento, as rachaduras levaram a pesquisa à Antonin Artaud. O poeta francês convoca “[...] um teatro funcionando como a peste, por intoxicação, por infecção, por analogia, pela mágica; um teatro

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6. Gilles Deleuze e Félix Guattari (2010) desenvolvem o conceito do Corpo sem Órgãos (CsO) a partir de noções encontradas na vida-obra de Antonin Artaud. O conceito é complexo e está ligado tanto a questão ontológica quanto a questão ética, e aqui cabe trazer a noção do CsO na abordagem do desejo. Segundo os autores, o corpo é máquina desejante, cria fluxos e promove cortes, constrói novos processos e novas (des) organizações no tecido social. Os movimentos dessa máquina são as multiplicidades que negam a identidade e são sempre revolucionárias na história. Relaciono no teatro esse desejo de criar como impulso do professorarteatrar.


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no qual a peça, o próprio acontecimento, está no lugar do texto. ” (BROOK, 1970, p. 47). Nesse pensamento-teatro, concebe-se então a ideia de um corpo em contaminação, um corpo que se (des)organiza na experiência dos acontecimentos e que se emancipa da automatização dos saberes e fazeres, um corpo que se dilata poeticamente na subversão das palavras e imagens, um corpo em devir. O pesquisador aproxima essa noção de contaminação articulada no pensamento artaudiano do processo da escrita e do professorar-teatrar nesse trabalho, na qual foi possível pensála em perspectiva do tema da pesquisa, no contágio das forças criadoras. A vida de Artaud escrita com o teatro, reflete marcas de dor inscritas no corpo – um corpo não submetido à linguagem, mas de acontecimentos na impossibilidade de ser representado –. Daí a percepção de um corpo não mais como totalidade da experiência, mas sempre aberto, como zona de indeterminação e deriva. É esse corpo que reflete a prática pedagógica teatral nesse trabalho, onde as palavras e as imagens são referências e não totalizantes do acontecimento, pois nos parece que há sempre uma pulsação do pensamento-criação que entorta e redimensiona a experiência. Ao relacionar o teatro com a peste, Lazzareti (2019, p. 148) diz que A peste mostra de forma violenta o que pode um corpo, aquilo que experimentamos em experiências limites, acontecimentos extremos em que o controle e a organização racional têm pouco lugar. O teatro de Artaud pretende o mesmo, mostrar o que pode um corpo (e com isso, o que pode o teatro) não a partir dos preceitos organizadores regulamentados já conhecidos, mas de outras formas de comunicação e outras formas de estruturação orgânica. Na emergência de contrapor modelos, os corpos produtores de novas forças de vida, performam suas (des)continuidades em fragmentos, em circuito (des)organizador do pensamento, subvertem os limites colocados como impossibilidade e exercitam o teatro naquilo que é ritualístico,

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para além da linguagem, pensando-o como laboratório social, no qual forças criadoras buscam reintegrar a humanidade em dimensão física e espiritual. Nessa abordagem, o teatro de Artaud leva-nos a ações poéticas e fragmentárias em que se vivenciam outras formas de ser-estar no acontecimento teatral, como se fossemos contaminados pelo desejo de outros corpos, contaminados pelo desejo de habitar radicalmente a existência na insuficiência, contaminados pelo desejo das memórias, sem molduras. “[...] a operação poética desorganiza o cotidiano estruturado para a reorganização criativa de outro mundo, o do acontecimento teatral.” (LAZZARETI, 2019, p. 95). O exercício teatral, portanto, dispõe de um campo aberto as suas possibilidades, sempre com anseio de se expandir, rasgar-se, desfazer-se das organizações produtivas que lhe delegaram para se tornar produção de outras realidades possíveis. A destruição da organicidade é uma revolução micropolítica do corpo, uma revolução de si que se compreende na experiência múltipla, plural e fluída dos acontecimentos, e que pelo pensamento artaudiano propõe rever a própria noção de presença no teatro, destituindo-a do plano puramente físico. É possível pensar Artaud no “entre” desse trabalho, seus pensamentos que escapam em seus textos nos levam ao corpo e ao teatro, um corpoteatro que atua na liminaridade para refazer a vida, um corpo-teatro que teatra, um corpo-teatro se fazendo no “entre” dos acontecimentosexperiências: “Uma verdadeira peça de teatro perturba o repouso dos sentidos, libera o inconsciente comprimido, leva a uma espécie de revolta virtual.” (ARTAUD, 1999, p. 24). Artaud convida a professorar-teatrar nos desvios, na subversão, nas muitas questões, nos pensamentos caóticos, em lapsos e colapsos, na inquietude, como o espírito de uma criança, perdida no tempo, que só está existindo tranquilamente nas trocas rápidas dos brinquedos, preferindo dançar o seu corpo no sentir, no pulsar dos devaneios. A partir das noções encontradas no seu teatro, o pesquisador desse trabalho buscou experimentar com os seus colaboradores, nas aberturas dos saberes e fazeres teatrais, uma (des)

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continuidade do pensamento, em (des)organização das conexões habituais entre a docência e a atuação, afim de colocar-se como zona de experiência, sem divisão e sem dicotomia, deixando-se ser afetado pela presençaausência dos corpos no mundo digital.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS A complexidade desse tempo impulsionou a prática como guia de pesquisa e levou a refletir a (des)construção da cena como seu resultado simbólico, expressivo e performativo. O performativo está relacionado [...] a mover e ser movido pelas coisas, pessoas, palavras, lugares etc. Daí a coerência em associar a prática e a pesquisa com a performatividade – compreendida aqui não apenas como linguística, mas como a dinâmica entre movimento e repouso, matéria e energia, que a tudo permeia e constitui. (FERNANDES, 2014, p. 3). O “entre” como movimento de chegada ao gerúndio, numa vinda que não cessa, remete aos fragmentos e as inconclusões. A compreensão do “entre” como espaço aberto de transformação e conflitos dos saberes e fazeres, desloca e redimensiona constantemente o ofício do professorator e não só, convida ao risco da (des)continuidade – tramada no afetivo da memória pelo (des)arranjo das palavras e das imagens no teatro. Na radicalidade do mundo pandêmico de 2020, o trabalho sobreveio das experiências, como acontecimento do pesquisador e de seus colaboradores, que em perspectiva pedagógica teatral colocaram-se disponíveis para a criação por meio de telas digitais. O “entre” potencializa a criação do acontecimento teatral, pois é lugar ainda indefinido, ainda se fazendo, é substância fluida de incompletude que abastece o motor da existência em suas rachaduras, transcende a ideia do teatro como um fim e potencializa e legitima a arte teatral como

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um meio de outras possibilidades, uma experiência que perpassa o corpo e é capaz de criar, “instaurar modos de existência que não existem.” (PELBART, 2014, p. 250). Habitar o “entre” como possibilidade do ofício é abrir-se às experiências dos acontecimentos do mundo na sua complexidade e contribuir na sua emancipação, sendo afetado por elas. O desejo do professor com o desejo do ator se misturam proporcionalmente e se (des)fazem das classificações quando pulsam no desejo de criar novos mundos. Há na poética do professorar-teatrar um lugar de trânsito, um lugar de excitações, afetações, combinações, de dinâmicas e de energias, que quando mobilizadas, expelem para o mundo algo novo. O tema se faz importante na compreensão de um teatro mais aberto a suas transformações, um teatro que se revisita e se lança aos não saberes-fazeres, aos atravessamentos, em direção a uma linguagem “[...] a meio caminho entre o gesto e pensamento.” (ARTAUD, 1999, p. 101). O deslocamento da percepção da cena e da pedagogia teatral por meio de telas digitais eleva a discussão do que pode o teatro na escola e na sociedade, que está agora sendo fortemente impactada. Novas relações e abordagens sociopoliticoculturais se fazem necessárias na elaboração do novo mundo e o teatro, como experiência lúdica formativa do corpo pelas telas digitais, pode contribuir significativamente nessa (des)construção da vida e mundo, na perspectiva de um teatro-rito-terapia – daí a proposta dos encontros docente-performativos e do evento cênico performativo virtual como tentativas de acontecimentos teatrais na elaboração das experiências. As plataformas virtuais utilizadas na experiência do professorar-teatrar na pandemia apresentam recursos com lógica de empresa, bem de acordo com o neoliberalismo que nos assola. Talvez seja possível subverter esses recursos e torná-los, ainda que por um tempo, mesmo breve, um lugar de poesia, como tentativas de abrir campos do teatro, que são da ordem do convívio, numa prática transitória em tecnovívio (DUBATTI, 2015). Ecos poéticos.

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REFERÊNCIAS ALVES, Rubem. Navegando. Campinas: Papirus Editora, 2002. ARTAUD, Antonin. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1999. AZEVEDO, Gerlúzia de Oliveira. Antonin Artaud: a crueldade pelos desenhos e autorretratos. 2014. 159 f. Tese (Doutorado em Desenvolvimento Regional; Cultura e Representações) - Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2014. BROOK, Peter. O teatro e seu espaço. Petrópolis: Editora Vozes, 1970. DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo. São Paulo: Ed. 34, 2010. DESGRANGES, Flávio. A inversão da olhadela: alterações no ato do espectador teatral. 2. ed. São Paulo: Hucitec, 2017. DUBATTI, Jorge. Convivio y tecnovivio: el teatro entre infancia y babelismo. Revista Colombiana de las Artes Escénicas, 9, 44-54, 2015. FERNANDES, Ciane. A prática como pesquisa e a abordagem somáticoperformativa. VIII Congresso ABRACE. Belo Horizonte: UFMG, 2014. Disponível em: https://www.publionline.iar.unicamp.br/index.php/abrace/ article/view/4626 Acesso em: 01/08/2020. FLORENTINO, Cristiano. Antonin Artaud: uma vida em registro. Fólio – Revista de Letras. Vitoria da Conquista-BA, Vol. 7, n 1, (jan./jun. 2015), p. 215-229, 2015. GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. - 9. ed. - Porto Alegre: L&PM, 2002. ICLE, Gilberto; BONATTO, Mônica Torres. Por uma Pedagogia Performativa: a escola como entrelugar para professores-performers e estudantes-performers. Cadernos CEDES. Campinas, SP. Vol. 37, n. 101 (jan./abr. 2017), p. 7-28, 2017.

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\poéticas do “entre” e as rachaduras do professorar-teatrar no mundo de 2020

LAZZARETI, Angelene. ENTRE: a trama dos corpos e do acontecimento teatral. Tese (Doutorado) - UFRGS, Instituto de Artes, PPGAC, Porto Alegre, BR-RS, 256 f. 2019. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/ handle/10183/193835 Acesso em: 03/06/2020 ___; SPRITZER, Mirna. O corpo-voz entre. Urdimento-Revista de Estudos em Artes Cênicas. v. 1, n. 28, p. 221-231, 2017. MOURA, Marinalva Nicácio de. A sensibilidade estética no acontecimento teatral: uma reflexão sobre teatro e educação do corpo sensível. Reunião científica da abrace, 2011. Disponível em: http://www.portalabrace. org/vireuniao/pedagogia/79.%20Marinalva_Nicacio.pdf. Acesso em: 02/08/2020. PAVIS, Patrice. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 1999, p. 371-374. PELBART, Peter Pál. Por uma arte de instaurar modos de existência que “não existem”. Como falar de coisas que não existem. 1ed. São Paulo: Bienal de São Paulo, v. 1, p. 250-265, 2014. ROMAGNOLLI, Luciana. MUNIZ, Mariana. Teatro como acontecimento convival: uma entrevista com Jorge Dubatti. Urdimento. v.2, n.23, p 251261, dezembro 2014. SCHECHNER, Richard; ICLE, Gilberto; DE ANDRADE PEREIRA, Marcelo. O que pode a Performance na Educação? Uma entrevista com Richard Schechner. Educação & Realidade. v. 35, n. 2, 2010. TESSLER, Élida Starosta. Coloque o dedo na ferida aberta ou a pesquisa enquanto cicatriz. O meio como ponto zero. Porto Alegre: Ed. da UFRGS, 2002. p. 103-111, 2002.

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Lucas Antonio Bebiano¹ 20 anos, Recife (PE). Formado em teatro pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) e em artes visuais pelo Instituto Federal de Pernambuco (IFPE). Multiartista, relaciona seus trabalhos em performance com sua pesquisa sobre dramaturgias negras brasileiras. É fundador da produtora visual Pretoator Solar. lucasbebiano09@gmail.com

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1. Universidade Federal de Pernambuco. Orientador: Elton Bruno Soares de Siqueira.


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ficha técnica Universidade Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2018-2021 Estado Pernambuco Título do trabalho A videoperformance como mídia antirracista Nome do autor Lucas Antonio Bebiano Nome do orientador Elton Bruno Soares de Siqueira Número de páginas 19

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RESUMO Ciente da complexidade de estabelecer uma reflexão crítica em tempos de pandemia, abordada pelo antropólogo libanês-australiano Ghassan Hage em seu texto “O Fantasma do Acadêmico Inútil: Pensamento Crítico em Tempos de Coronavírus”, o intuito do presente artigo é perceber como a vídeo performance preta possibilita a produção de narrativas contrahegemônicas ao racializar as questões que envolvem o contexto de pandemia. A escrita se desenvolve a partir do contato com um panorama de performances e textos produzidos por pessoas pretas e/ou dissidentes de gênero durante a crise do coronavírus, no qual a performance “Corpo Alvo” do artista Reinaldo Júnior (RJ) se torna objeto principal da pesquisa. Palavras-chave: pandemia; coronavírus; performance preta.

ABSTRACT Aware of the complexity of establishing critical reflection in times of pandemic, addressed by the Lebanese-Australian anthropologist Ghassan Hage in his text “The haunting figure of the useless academic: Critical thinking in coronavirus time”, the purpose of this article is to understand how black video performance enables the production of counter-hegemonic narratives by racializing pandemic issues. The writing develops from contact with a panorama of performances and texts produced by black people and/or gender dissidents during the coronavirus crisis, in which the performance “Corpo Alvo” by the artist Reinaldo Júnior (RJ) becomes the main research object. Keywords: pandemic; coronavirus; black performance.

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RESUMEN Consciente de la complejidad de establecer una reflexión crítica en tiempos de pandemia, abordado por el antropólogo libanés-australiano Ghassan Hage en su texto “La figura inquietante del académico inútil: pensamiento crítico en tiempos de coronavirus”, el propósito de este artículo es comprender cómo La performance de video negro permite la producción de narrativas contrahegemónicas al racializar los problemas de la pandemia. La escritura se desarrolla a partir del contacto con un panorama de performances y textos producidos por negros y / o disidentes de género durante la crisis del coronavirus, en el que la performance “Corpo Alvo” del artista Reinaldo Júnior (RJ) se convierte en el principal objeto de investigación. Palabras clave: pandemia; coronavirus, performance negro.

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1. INTRODUÇÃO “Se o vírus parece assumir uma forma a-social, ele é vivido efetivamente como algo social, e o esforço em contê-lo, seja por meio da prevenção ou da medicação, continua sendo um esforço social. Por isso ele é marcado por todos os preconceitos e relações de poder que definem qualquer ação humana: racismo, colonialismo, preconceito de classe, sexismo, preconceito heteronormativos.” (Ghassan Hage, 2020) Instalou-se no primeiro semestre de 2020 a pandemia do coronavírus. Uma proliferação em escala mundial de um vírus altamente contagioso, e até o momento sem cura. Por isso o decreto da Organização Mundial da Saúde (OMS) de suspensão das atividades sociais, e que todos fiquem em casa de quarentena. Essa nova organização social pegou todos os setores trabalhistas de surpresa. Os setores culturais e artísticos que não estavam habituados com o home office foram os primeiros a parar. Diante disso, grupos e artistas independentes das artes da cena tiveram que se deslocar (física e financeiramente) para pensar possibilidades de encontro e desenvolvimento de processos artísticos pela internet. Para aqueles que trabalham com a escrita e a pesquisa em artes, cabe a reflexão: quais seriam os deslocamentos da crítica cultural? Ao pensar sobre essa questão, me afino com o pensamento do antropólogo libanês-australiano Ghassan Hage em seu texto O Fantasma do Acadêmico Inútil: Pensamento Crítico em Tempos de Coronavírus. Nele, o autor nota a tendência de alguns pesquisadores nesse momento, em tratar a realidade pandêmica como serviente exclusiva de suas teorias pessoais sobre o capitalismo, o colonialismo, a biopolítica etc. Para Hage, ao fazerem isso, tais pesquisadores correm o risco de produzirem pesquisas que do ponto de vista das urgências práticas, se tornam inúteis. Ainda segundo o autor:

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2. Os especialistas e profissionais dos saberes de valor prático para a contenção do coronavírus, como as instituições médicas, políticas e as policias, não se enquadram na categoria de inutilidade e incômodo abordada pelo antropólogo.

“Um intelectual crítico - um profissional cujo trabalho é observar, pensar, refletir e transmitir ideias – pode ser um verdadeiro incômodo em circunstâncias de urgência prática. Isso se dá, pois a temporalidade da crítica e a temporalidade das ações de urgência são geralmente incompatíveis.”2 (2020). Ao estabelecer um conflito entre pensamento crítico vs realidade prática, Hage vai propor em seu texto a imagem de um fantasma do acadêmico inútil, que assombra as mentes academicistas nesse momento de pandemia. Apesar de Hage estabelecer um recorte pandêmico, esses fantasmas não são novidade, pois regularmente esses intelectuais pouco práticos dominam os espaços ditos “intelectuais” como jornais, telejornais, revistas, congressos científicos etc. Isso porque usualmente eles se utilizam da linguagem do universalismo, que, segundo Abdias Nascimento, vem com uma dita neutralidade científica: “A chamada neutralidade científica funciona como máscara para o preconceito eurocêntrico exatamente como o chamado “universalismo” tem sido um disfarce para a imposição do sistema de valores europeus sobre outros povos do mundo.” (2019a, p.321). Ou seja, numa linguagem do cotidiano, trata-se de uma forma “isentona”, que finge falar por e para todas/todos, mas fala apenas de si. Antes de qualquer coisa, este texto é uma tentativa máxima de distanciamento do fantasma do acadêmico inútil. Esse texto existe porque os espaços hegemônicos de disseminação de informação no Brasil, como jornais, telejornais, e falas oficiais do governo, falharam no primeiro semestre (e continuam falhando) ao não relacionarem raça e coronavirus. Essa falha se deu e se dá através de diversas metodologias, como o uso de uma linguagem epidemiológica universal, como se existisse democracia racial no acesso a saúde (ou em qualquer setor da sociedade brasileira);

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como também no registro quantitativo das vítimas de covid-19, não racializando os corpos; e principalmente: falharam na criação do imaginário de uma quarentena, que nunca chegou para a classe trabalhadora e empobrecida, que, sabe-se bem, no Brasil, é majoritariamente racializada. Todas essas falhas envolvendo a desarticulação das categorias de raça, classe e gênero me afetam diretamente em alguns pontos da minha construção/condição de sujeito: homem cisgênero, negro, com menos de 29 anos, bolsista de assistência estudantil etc. Isso fez com que eu não me visse nos espaços hegemônicos de informação sobre coronavírus, mas as minhas questões diante a pandemia não deixaram de existir. Diante da necessidade uma narrativa imagética sobre as problemáticas e questões que me cercam, me vi atraído por uma vídeo performance chamada Corpo Alvo, do artista Reinaldo Junior, produzida durante os primeiros dias da nova organização social no Rio de Janeiro. Peço licença para empreender um percurso crítico da obra, e assim como muitos fizeram antes de mim, tentar urgentemente refletir sobre a racialidade dentro do debate pandêmico no Brasil.

2.

CORPO ALVO

Corpo Alvo (1,39s) é uma vídeo performance do multiartista Reinaldo Júnior (RJ), esse que também é idealizador de grupos, coletivos e festivais de teatro negro como o Grupo Emú, a Confraria do Impossível, o Terreiro Contemporâneo e a Segunda Black. Reinaldo assina a concepção, o texto, a direção, a performance e a edição da obra, que também conta com a colaboração da artista Dani Câmara e do artista Fernando Porto. Corpo Alvo faz parte de um conjunto de performances que Reinaldo criou durante a quarentena, intitulado Crônicas Políticas por Palhakaus. Se trata de uma produção independente, sem fomento financeiro, que ainda assim conseguiu uma circulação ativa pela internet, apresentando, desse modo, possibilidades de produção das artes da cena em home

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office durante a pandemia. O vídeo foi postado no perfil de Reinaldo no Instagram (@reiblack) em abril de 2020, com mais de 1.950 visualizações (até agosto de 2020). No mesmo período a performance foi postada no Instagram da Confraria do Impossível (@confrariadoimpossível). A postagem foi dentro de um projeto chamado #criaçõesdequarentena, espaço onde artistas negros de diversas linguagens publicaram seus afetos em relação aos primeiros dias de mudança social no Brasil. Foi nesse contexto que conheci Reinaldo e sua obra pela primeira vez. Em junho, a performance concorreu ao Júri Popular no Festival Felino Preta (realizado inteiramente de forma online). No debate de apresentação do evento Reinaldo detalhou que o vídeo foi gravado inteiramente pelo celular. A obra também circulou por cinco regiões do país ao ser selecionada no projeto #QuarentenaProjetada, uma parceria das plataformas Mídia Ninja e Instituto Moreira Salles, em que trabalhos visuais que foram produzidos durante a quarentena foram projetados em edifícios de 5 capitais brasileiras. Na publicação da performance no perfil da Confraria do Impossível, a sinopse do vídeo vem com duas perguntas: “Mas é tranquilo preto andar de máscara?” e “Como usar máscara sendo preto?”. De cara, percebemos que o discurso da performance direciona o olhar da espectadora/dor para a imagem do sujeito negro usando máscara, que, pelo atual contexto social de pandemia passou a ser um acessório, em comum uso, devido ao risco de contaminação da covid-19 por vias respiratórias. No período em que a performance foi publicada (abril de 2020), o uso de máscaras de pano ainda não era popularizado. Isso fez com que a OMS recomendasse usar um lenço cobrindo o nariz e a boca ao sair na rua, uma vez que as máscaras descartáveis passaram a ser reservadas as/aos profissionais de saúde. Voltemos a pergunta: mas é tranquilo preto usar máscara? A imagem de uma pessoa negra, sobretudo a imagem de um homem negro com o rosto coberto por um pano, é uma imagem associada ao crime. Existe o estereótipo do homem negro com o rosto coberto, que pode facilmente ser associado com um assaltante/criminoso. É a partir dessa lógica racista que Reinaldo produz sua performance.

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Imagem 1 (screenshot retirado em Agosto de 2020, do vídeo ”Corpo Alvo”, no IGVT, do perfil de Instagram @reibblack )

É como disse à CNN estadunidense, em abril de 2020 o professor Trevor Logan da Universidade de Ohio: “Nós temos muitos exemplos de criminalidade presumida de homens negros em geral. E aí nós temos as autoridades pedindo que usemos em público algo que pode, certamente, ser visto como um adereço de um criminoso, particularmente quando usado por homens negros”. A fala do professor veio a público depois que algumas autoridades policias no EUA pediu para que a população negra não usasse máscara nas ruas, por ser um adereço ligado a criminosos. A CNN estadunidense só deu atenção à fala do professor depois que um tweet do educador Aaron Thomas viralizou em seu perfil da rede social Twitter: “Eu não me sinto seguro usando um lenço ou qualquer coisa que não seja CLARAMENTE uma máscara protetora cobrindo meu rosto até a loja porque eu sou um homem negro vivendo nesse mundo. Eu quero ficar vivo mas eu também quero ficar vivo”.3 Depois da repercussão em seu perfil pessoal, Aaron chegou a dar entrevistas em jornais locais de Ohio e publicou um texto argumentando sobre no jornal estadunidense The Boston Globe. Nos EUA, assim como no Brasil, existiu e existe um grande espaço nas mídias hegemônicas e nos pronunciamentos governamentais, tratando apenas das questões epidemiológicas da pandemia, não se comprometendo diretamente com a racialização das questões de saúde pública. Isso fez com que as páginas pessoais na internet e os espaços de mídia alternativos se tornassem possibilidade de fala e denúncia racial durante a pandemia. No Brasil, a tímida atenção que alguns jornais da internet depositaram sobre casos de racismo na pandemia, atrelados ao

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3. Livre tradução de: “I don’t feel safe wearing a handkerchief or something else that isn’t CLEARLY a protective mask covering my face to the store because I am a Black man living in this world. I want to stay alive but I also want to stay alive.” postado no perfil @Aaron_TheThomas no Twitter. Essa publicação obteve mais de 120 mil curtidas até agosto de 2020.


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4. Tweet publicado no perfil @Sukitabr. O post obteve mais de 90,2 mil curtidas até agosto de 2020.

uso de máscara, só foi dada depois de uma repercussão expressiva nas redes sociais por parte das vítimas. E todos os casos de homens negros atingidos pelo racismo por uso de máscaras de proteção que tive nota, e isso seja no Brasil ou nos EUA, só chegaram em grandes jornais depois de terem repercutido no Twitter. No Rio de Janeiro, o estudante Carlos Paulo Falcão (UFRJ) foi abordado grosseiramente por um segurança da rede Carrefour ao entrar no supermercado. Detalhe: ele não usava um lenço, ele já usava uma máscara de pano confeccionada e, mesmo assim, foi abordado. Carlos tentou prestar queixa por injuria racial, mas teve sua denúncia cancelada pela delegacia de polícia. O jovem usou seu perfil no Twitter para se manifestar e, mesmo com a conta reservada para um número limitado de seguidores, o post viralizou, fazendo com que, posteriormente, ele passasse a dar entrevistas a jornais na internet. Já em São Paulo, um dos diretores do portal Buzz Feed Brasil, Suki de Pilares também se manifestou no Twitter, dizendo: “Saí de máscara para ir ao mercado e uma viatura me seguiu por 7 quarteirões. Eu não aguento mais”.4 O uso do Twitter para a denúncia e/ou desabafo sobre tais casos de racismo é uma das formas que esses sujeitos negros possuem para se colocarem em perspectiva, nos fazendo atentar para o volume e pluralidade dos casos, uma vez que são homens negros de diferentes países e estados das Américas, e de diferentes classes sociais. Nesse caso, o estabelecimento de uma corrente midiática contra-hegemônica se dá pelo caráter de repercussão da linguagem da internet, uma vez que, com o crescimento do número de usuários nas redes sociais, é muito fácil que as informações, muitas vezes de forma inesperadas, circulem massivamente, ganhando, assim, a atenção de quem usualmente detém o controle hegemônico da propagação de informação, no caso, os jornais e a televisão. Assim como nos casos citados, o artista Reinaldo Júnior, em sua vídeo performance também usa seu perfil pessoal em uma rede social para se colocar em perspectiva. Além disso, ele também pega carona em uma outra característica da linguagem da internet para construir a sua

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estratégia narrativa: o deboche. Um exemplo disso está na sonoplastia, que, dentre inúmeros desenhos de som, também apresenta: a voz da rapper negra estadunidense Cardi B dizendo a palavra “Coronavirus” (em inglês); e trechos da música Astronomia do artista russo Tony Igy, remixada pela dupla holandesa Vicetone. Ambos os áudios foram retirados de dois vídeos que repercutiram mundialmente na internet no início da pandemia; o vídeo em que Cardi B expõe com seu “jeito engraçado” suas aflições em relação ao agravamento do vírus; e uma reportagem da BCC News de 2017 sobre o grupo ganense Dancing Peallbearers, conhecido pelos serviços de carregamento de caixão na região sul do país africano Gana. Esse último virou meme depois que o remix da música Astronomia foi anexado por cima da reportagem. Esses eram os dois vídeos envolvendo corpos negros que a internet propagava em escala mundial no começo da pandemia, ao passo que Aaron Thomas, Carlos Paulo Falcão e Suki de Pilares buscavam chamar atenção para suas denúncias e/ou alertas de racismo por uso de máscara ou lenço de proteção por corpos negros. Os dois vídeos citados repercutiram através do humor, o que nos leva a pensar sobre a forma com que corpos negros alcançaram (na lógica de repercussão da internet) relevante notoriedade nas mídias durante a pandemia. Afinal, apesar da notoriedade local, nenhum dos casos citados envolvendo as denúncias de racismo e coronavírus repercutiram mundialmente na internet, ou tiveram de fato uma grande atenção da mídia, ou governo, para a mudança de alguma estrutura. Para que isso de fato acontecesse, foi preciso chegar ao assassinato do estadunidense George Floyde pelo policial branco Derek Chauvin (o ápice da violência contra o corpo negro masculino na pandemia). Aqui, sim, tivemos uma repercussão midiática trazendo a racialidade para o debate pandêmico, propagada em escalada mundial pelos jornais, telejornais, internet etc., e ganhando a atenção de alguns líderes governamentais sobre o tema.5 Essa inserção da racialidade nas pautas e discussões das mídias hegemônicas chegou tarde demais. Como pudemos ver através de alguns exemplos, o racismo na pandemia já estava dilatado antes do caso

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5. Para mais detalhes sobre a repercussão envolvendo o assassinato de George Floyd ver 09ª citação em referências.


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6. As referências das manchetes de jornais não são localizadas na vídeo performance. Porém, encontrei manchetes de jornais com os mesmos títulos usados e/ou falando sobre o mesmo assunto. Para conferir tais manchetes, ver a 7ª, 8ª e 10ª citação em referências.

Floyde. A diferença é que a única estrutura que vídeos de corpos negros relacionados a pandemia moviam antes desse assassinato era a estrutura dos memes. Meu primeiro acesso aos casos envolvendo racismo e máscaras de proteção foi na performance de Reinaldo Júnior, isso porque ele insere na edição do vídeo algumas manchetes dos poucos jornais que pautaram alguns dos casos citados acima, algumas delas com os títulos: “Racismo por uso de máscara de proteção no RJ” e “Racismo: por que alguns homens negros não se sentem seguros ao usar máscaras durante a...”6. Dessa forma, a narrativa da performance de Reinaldo se envolve com discursos jornalísticos, criando, assim, uma dimensão documental. E ao trazer elementos da linguagem da internet para a narrativa da performance, Reinaldo cria uma relação entre o conteúdo e o espaço de criação/propagação - as redes sociais.

Imagem 2 (screenshot retirado em Agosto de 2020, do vídeo ”Corpo Alvo”, no IGVT, do perfil de Instagram @reibblack )

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Para além da dimensão informativa e documental, Corpo Alvo também insere em sua narrativa camadas de imagens. Se a questão central da performance é o uso de máscara por pessoas negras, Reinaldo brinca com a temática e propõe diversas possibilidades de reflexão racial. Afinal, para além da noção protetiva da máscara, que está sendo consumida dentro do contexto atual de pandemia, seu símbolo também diz respeito a representações e identidades. E Reinaldo usa isso como um dispositivo estético. A exemplo disso temos a imagem 2 do texto, que é a primeira imagem escolhida por Reinaldo para abrir a vídeo performance. Na imagem, existem duas representações de homens negros, a do próprio Reinaldo e a de um desenho anexado na parede ao fundo, ambas estão olhando fixamente para a câmera. Durante a performance, Reinaldo usa diversas vezes essa ideia de multiplicidade como recurso visual, o que se torna uma metáfora quando levamos em consideração que o gatilho criativo da performance (denúncias de racismo por homens negros), apesar de também atravessá-lo, não parte exclusivamente de si. O que Reinaldo faz é criar uma estrutura narrativa que diz respeito a uma parcela significante de masculinidades negras, que podem ou não se encontrar na mesma situação: “Como usar máscara sendo preto?”. Para além da questão da multiplicidade, o que também me chama a atenção nessa primeira imagem é a relação entre a temática da performance e o design da máscara elaborada pelo artista Fernando Porto. Se trata de uma máscara animalizada, o que faz com que a imagem também permita ser vista como uma metáfora com a forma com que historicamente pessoas negras foram (e ainda são) discursivamente construídas através do racismo, como animais. É como diz a escritora Grada Kilomba: “O Racismo não é biológico, mas discursivo. Ele funciona através de um regime discursivo, uma cadeia de palavras e imagens que por associação se tornam equivalentes: africano - África - selva – selvagem – primitivo – inferior – animal – macaco.” (2020, p. 130).

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E essa ideia racista de sujeita/to negra/negro animalizada/o é logo destruída, isso porque a máscara permite que o rosto de Reinaldo fique a mostra, fazendo ver, assim, aquilo que supostamente deveria estar escondido. Afinal, a ideia comum de uma máscara é que ela cubra parcial ou totalmente uma identidade, a fim de que a sujeita/to que está sendo coberta, passe a ser representada/do por outra coisa. Nesse caso, a ideia de uma máscara que possibilita ambas as presenças: a do sujeito (performer negro) e a da representação (animal), transmite a sensação de inversão de valores, ou seja, quem está no comando é quem supostamente deveria estar sendo representado.

Imagem 3 (screenshot retirado em Agosto de 2020, do vídeo ”Corpo Alvo”, no IGVT, do perfil de Instagram @reibblack)

No decorrer da performance, Reinaldo vai intensificar seu jogo com máscaras e as representações que elas trazem. Se na primeira imagem pudemos traçar analogias que partiam exclusivamente do sujeito negro, agora, na imagem 3, temos o sujeito negro em relação com outras representações. Vemos que as duas representações de homens negros continuam em quadro, só que dessa vez o performer usa uma máscara de rosto branco com nariz de palhaço, mesclando, assim, três

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representações: performer-homem negro/ máscara-rosto branco/ máscara-nariz de palhaço. Para a contribuição da leitura da imagem, um gesto: o performer segura um globo terrestre com uma das mãos. Uma das metáforas que se pode depreender dessa imagem remete à tese do psiquiatra e filósofo martinicano Frantz Fanon: Pele Negra, Máscaras Brancas. Nela Fanon traça seu percurso enquanto homem negro no mundo e suas impressões acerca do olhar branco e colonial perante a racialidade. O título da obra de Fanon vem da ideia de que historicamente, as subjetividades políticas das sujeitas/tos negras/negros são construídas/dos a partir do que a colonialidade e a branquitude define como negra/negro, o que é problemático. Identifico essa metáfora ao ver Reinaldo colocar literalmente sua pele negra vestindo uma máscara branca. O globo terrestre sendo sustentado por uma das mãos pode trazer uma noção de controle e poder; a imagem do objeto é uma boa metáfora para a colonialidade, que foi articulada pela supremacia branca enquanto um fenômeno global. Nessa lógica, as sobreposições entre as máscaras de homem negro vs homem branco podem representar um conflito de controle, no qual, dentro da narrativa da performance, o controle é do homem negro. A máscara de palhaço traz uma analogia direta ao ridículo, como o próprio Reinaldo denomina: um “PalhaKaus”. Um estado de corpo debochado, que também é uma forma de mídia contra-hegemônica, pois expõe as violências das estruturas de raça e classe. E da maneira que expõe, nos permite compreender essas violências enquanto uma coisa só, ou seja, estruturas de opressão que se compõe.

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Imagem 4 (screenshot retirado em Agosto de 2020, do vídeo ”Corpo Alvo”, no IGVT, do perfil de Instagram @reibblack )

Para melhor representar essa ideia de estruturas de opressão que se compõe, temos a imagem 4. Dessa vez o performer usa uma máscara de homem branco com um semblante cordial. Ele se posiciona atrás de um microfone segurando o que parece representar uma bíblia. Entendemos que se trata de uma figura religiosa. A imagem da máscara perante o microfone mostra quem é o sujeito que pode falar (homem branco), e o sorriso cordial (debochado) dá o tom de uma certa banalização. Rapidamente ele abaixa o que segura e levanta um revólver. Áudios de tiros são reproduzidos. Fotos do atual prefeito do Rio de Janeiro Marcelo Crivella são anexadas ao vídeo. Se trata de algumas imagens do prefeito que foram desumanizadas com um filtro de distorção, como podemos ver ainda na Imagem 4. Tais fotos foram reproduzidas desde o começo do vídeo e retornam nesse momento, fixando, assim, uma persistente crítica da performance a Crivella, que não só pode representar o Estado como também a Igreja. Isso porque, antes de ser político, Crivella também já havia adquirido os títulos de pastor e de bispo. Sua eleição como prefeito do Rio de Janeiro, em 2016, foi alavancada por um discurso fundamentalmente religioso. Ou seja, existe um esquema no sistema eleitoral brasileiro (constitucionalmente laico) de nomeação de figuras religiosas a cargos governamentais através da democracia. Ao trazer a figura de Crivella, Reinaldo localiza a questão, o que nos permite lembrar de casos isolados para a exemplificação. Como no dia do resultado do 2º turno das eleições

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de 2016 no Rio de Janeiro, no qual o então eleito prefeito Crivella rezou a oração do “Pai nosso” ao finalizar seu agradecimento oficial, oficializando publicamente as relações entre Estado e Igreja. Separados, o Estado e a Igreja já apresentam falhas quanto às políticas raciais, e ambos seguem persistindo, juntos, atualmente, nessas falhas durante a pandemia. Ao se mesclarem na construção de um governo, como é o caso do governo Crivella, vemos as estruturas de opressão se comporem sem mais precisar de filtros. Assim, por que a raça excede (salvo raras exceções) a ideia de amor cristão? E o que tem no olhar cristão do Estado perante a racialidade, que foge aos princípios da religião? Ao refletir sobre essa falha, Abdias Nascimento (2019a, p. 63) diz: “Cristianismo, em qualquer das suas formas, não constituiu outra coisa que aceitação, justificação e elogio da instituição escravocrata, com toda sua inerente brutalidade e desumanização dos africanos”. Ao relacionarmos as atuais estruturas conjuntas de opressão com essa fala de Nascimento, vemos que o trio supremacia branca, colonialidade e cristianismo formam uma espécie de “pacto” colonial. Ilustram bem isso a questão da exploração da mão de obra negra escravizada, para serviços domésticos e tarefas agrícolas por parte da Igreja Católica em suas propriedades rurais (NASCIMENTO, 2019a, p. 198); a intolerância religiosa na sociedade brasileira, que em geral parte de uma visão cristã perante uma presença religiosa de matriz africana; a exclusão da raça nas doutrinas e histórias religiosas; a personificação da branquitude em figuras sacras de fé/poder etc. No caso desse último, uma ligação direta ao Prefeito Crivella: bispo, branco, ex-senador, eleito prefeito da cidade do Rio de Janeiro em 2016. Já as falhas dos governos atuais que se constroem a partir dos pilares da supremacia branca, da colonialidade e do cristianismo, se dá pela manutenção (ou dilatação) do racismo estrutural durante um contexto que não faz parte da organização social comum: a pandemia. Os exemplos disso são abundantes: a abordagem abusiva a homens negros de máscara, e a omissão policial perante a isso; operações policiais acontecendo nas favelas do Rio de Janeiro (habitada majoritariamente por pessoas racializadas) sem manter o respeito ao isolamento social nessas regiões;

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hospitais públicos e/ou unidades de tratamento nas periferias com superlotação e sem recursos ou estrutura etc.

3.

A DIALÉTICA ENTRE PESSOAS NEGRAS E MÁSCARAS

Ao investigar o uso das máscaras de proteção em corpos negros masculinos, Reinaldo cria diversas imagens performativas produzidas a partir de máscaras cênicas, uma metáfora ao tema. O artista usa exemplos reais de racismo cotidiano durante a pandemia, mas a dialética entre pessoas negras e máscaras no continente americano é mais antiga do que o coronavírus. A escolha das manchetes jornalísticas feitas por Reinaldo correspondem a dois países: Brasil e EUA. Na tentativa de compreender alguma lógica nessa relação dialética entre corpos negros e máscaras, penso que existe, sim, uma diferença histórica entre os sistemas coloniais e escravocratas de cada país. Mas para a elaboração de uma melhor metáfora, também gosto de pensar que existe alguma ligação continental entre eles, possivelmente, uma herança colonial em comum. Digo isso por representarem os dois maiores sistemas escravocratas do período colonial em seus respectivos hemisférios: América do Norte e América do Sul. E se trata de dois países que foram colônias europeias e que viveram a experiência das plantations. A palavra plantation (plantação em inglês) diz respeito ao antigo sistema de exploração colonial europeu, consistindo na manutenção de grandes latifúndios; na monocultura de cana-de-açúcar, algodão etc.; mão de obra escravizada; exportação exclusiva para as metrópoles. E é justamente nesse cenário que o uso das máscaras por pessoas negras passa a ser um objeto de opressão na lógica da subjugação racial no continente americano. No ensaio Memórias da Plantação: Episódios de Racismo Cotidiano, a escritora Grada Kilomba detalha o que foi o uso de uma máscara de ferro aplicada

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em pessoas negras escravizadas, e reflete sobre a simbologia atribuída a esse objeto em corpos racializados: “.... sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silenciamento e de tortura.” (2020, p.33). A autora ainda detalha que essa máscara era instalada dentro da boca das sujeitas/os negras/os e amarrada por duas cordas, uma passava pelo queixo e a outra pelo nariz e testa. Em seu livro, ela apresenta, numa rápida introdução, a história da “Escrava Anástacia”, e expõe sua ilustração como exemplo:

Imagem 5 – Jacques Etienne Arago, Castigo de Escravos, 1839. litografia aquarelada sobre papel (sem dimensões definidas) (Fonte: Coleção Museu AfroBrasil)

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Kilomba usa o termo das plantations como metáfora de um passado violento que não é superado, que constantemente é reencenado a partir do racismo cotidiano. Segundo a própria autora: “A ideia de “esquecer” o passado torna-se, de fato, inatingível; pois cotidiana e abruptamente, como um choque alarmante, ficamos presas/os a cenas que evocam o passado, mas que, na verdade, são parte de um presente irracional.” (2020, p. 213). Essa citação nos ajudaria, por exemplo, a melhor compreender o título de uma das manchetes selecionadas por Reinaldo em sua performance: “...por que alguns homens negros não se sentem seguros ao usar máscaras...”. Ou seja, para além de questões sociais como a criminalização de homens negros usando máscara por policiais, também existe uma dimensão subjetiva, que diz respeito as/os sujeitas/sujeitos negras/negros no geral, que podem não se sentir bem usando uma máscara que tampa apenas sua boca, possivelmente, por poder remeter a uma memória colonial da máscara como símbolo de silenciamento e inferiorização racial.

4.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Se no primeiro semestre de 2020 os Estados Unidos e o Brasil apresentavam casos de racismo por uso de máscara de proteção durante a pandemia, hoje, no segundo semestre, tais países são respectivamente 1º e 2º lugares no número de mortes por covid-19. Talvez esteja nesse fato a relevância da hipótese sustentada pelo antropólogo Ghassan Hage, citado na epígrafe e no início do texto: o vírus também é um fator social. Fazer isso pode significar uma abertura para uma maior atenção a direitos mínimos que não foram distribuídos de forma igualitária quando levado em consideração a raça, a classe, e o gênero. Nesses casos, com direitos mínimos, me refiro especialmente ao que talvez seja o mínimo para qualquer pessoa durante uma pandemia: o direito de poder se preocupar apenas com a pandemia. Mas isso não aconteceu de forma massiva no Brasil.

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\a videoperformance como mídia antirracista

Nesse ponto, o caráter de mídia contra-hegemônica que atribuo a vídeo performance Corpo Alvo não vem com uma ideia de ineditismo, pelo contrário, identifico no trabalho de Reinaldo uma aproximação com outras manifestações midiáticas que acabam por entrar nessa mesma lógica. Por exemplo, a questão do racismo na pandemia também foi abordada pelo artista Felipe Oládelè em sua vídeo performance Fragmentos; a professora Dodi Leal publicou um texto na n-1 edições refletindo sobre como a pandemia faz com que as pedagogias travestis identifiquem a ruína dos pilares cisnormativos da democracia brasileira; a filósofa Djamila Ribeiro publicou diversos textos em sua coluna na Folha de S. Paulo (talvez o maior espaço de destaque contra-hegemônico dentro de um jornal impresso e digital no Brasil) nos quais relaciona os impactos da pandemia com as falhas dos governos perante a sociedade. Em um de seus textos a filósofa destaca o agravamento da violência doméstica relativa às mulheres que puderam ficar em casa de quarentena. Esses foram alguns dos arquivos/imaginários sobre a pandemia que consumi no primeiro semestre de 2020. Ao trazer Corpo Alvo para esse texto me interessei em destacar quais aspectos da performance me comunicam, e quais aspectos da performance me tensionam. Destaco, então, meu tensionamento final: O que estaria o artista Reinaldo Júnior criando se não fosse o racismo? E sobre o que eu estaria escrevendo?

5. REFERÊNCIAS BERMÚDEZ, Ángel. Morte de George Floyd: 4 fatores que explicam por que caso gerou onda tão grande de protestos nos EUA. BBC News Brasil. São Paulo, 02 de junho de 2020. Disponível em: https://www.bbc.com/ portuguese/internacional-52893434. FAGUNDES, Ana Caroline. Uso de máscara por homens negros é motivo de racismo durante a quarentena. Notícia Preta. 12 de abril de 2020. Disponível em: https://noticiapreta.com.br/%EF%BB%BFuso-de-mascarapor-homens-negros-e-motivo-de-racismo-durante-a-quarentena/.

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FURTADO, Marcos. Estudante diz ter sofrido racismo por usar máscara de proteção contra coronavírus. Folha de S. Paulo. São Paulo, 09 de abril de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/04/ estudante-diz-ter-sofrido-racismo-por-usar-mascara-de-protecaocontra-coronavirus.shtml. GONÇALVES CONCEIÇÃO, Jessy Kerolayne. A máscara não pode ser esquecida. Poiésis, Niterói, v. 21, n. 35, p. 345-362, jan./jun. 2020. [https:// doi.org/10.22409/poiesis. v21i35.36386]. HAGE, Ghassan. O Fantasma do Acadêmico Inútil: Pensamento Crítico em Tempos de Coronavírus. São Paulo: n-1 edições, 2020. Disponível em: https://n-1edicoes.org/099. KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: Episódios de racismo cotidiano. 1ª edição, Rio de Janeiro, Cobogó, 2019, 244. LEAL, Dodi. A arte travesti é a única estética pós apocalíptica possível? Pedagogias antiCIStêmicas da pandemia. São Paulo: n-1 edições, 2020. Disponível em: https://n-1edicoes.org/094. NASCIMENTO, Abdias. O Genocídio do Negro Brasileiro: Processo de um Racismo Mascarado. 4ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2019, 229. NASCIMENTO, Abdias. O Quilombismo: Documentos de uma Militância Pan-Africanista. 3ª edição. São Paulo, Perspectiva, 2019, 390. RIBEIRO, Djamila. Doméstica idosa que morreu no Rio cuidava da patroa contagiada pelo coronavírus. Folha de S. Paulo. São Paulo, 19 de março de 2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamilaribeiro/2020/03/domestica-idosa-que-morreu-no-rio-cuidava-da-patroacontagiada-pelo-coronavirus.shtml. RIBEIRO, Djamila. Com isolamento, a questão da violência contra mulher fica ainda mais grave. Folha de S. Paulo. São Paulo, 27 de março de

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\a videoperformance como mídia antirracista

2020. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/djamilaribeiro/2020/03/com-isolamento-a-questao-da-violencia-contra-amulher-fica-ainda-mais-grave.shtml. THOMAS, Aaron. Why I don’t feel safe wearing a face mask. The Boston Globe. Columbus, 05 de abril de 2020. Disponível em: https://www.bostonglobe. com/2020/04/05/opinion/why-i-dont-feel-safe-wearing-face-mask/.

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\documentação e registro: trajes de cena na companhia de teatro da ufba Lucas Souza Oliveira¹ 27 anos, Salvador (BA). Ator, figurinista, aderecista e cenógrafo, é bacharelando em interpretação teatral na Universidade Federal da Bahia (UFBA). Atua também como pesquisador na área de trajes de cena, da sua criação até as possíveis formas de conservação e preservação, chamando-os de trajes-história, já que compõem a história do teatro local. lucas.souza_oliveira@hotmail.com

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1. O presente trabalho está vinculado à Universidade Federal da Bahia (UFBA); Esta pesquisa científica tem a orientação da Profa. Dra. Renata Cardoso da Silva.


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ficha técnica Universidade Universidade Federal da Bahia (UFBA) Tipo do curso Graduação Nome do curso Bacharelado em artes cênicas – interpretação teatral Período do curso 2008Estado Bahia Título do trabalho Documentação e registro: trajes de cena na Companhia de Teatro da UFBA Nome do autor Lucas Souza Oliveira Nome da orientadora Renata Cardoso da Silva Número de páginas 13

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\documentação e registro: trajes de cena na companhia de teatro da ufba

RESUMO O projeto visou utilizar jornais e periódicos locais para investigar o registro e documentação dos aspectos visuais apresentados pelos espetáculos da Companhia de Teatro da UFBA. Desde sua criação, em 1981, a Companhia vem integrando docentes, estudantes, servidores técnicos-administrativos e artistas convidados no intuito de encenar espetáculos da dramaturgia universal, participando ativamente do cenário teatral da cidade. Este projeto se propôs a pesquisar os espetáculos apresentados pela Companhia entre os anos de 2001 e 2019 pelo viés da visualidade da cena, com atenção especial, mas não exclusiva, aos trajes de cena. Além da pesquisa em jornais e periódicos, foi feito levantamento bibliográfico, trocas de e-mails e contatos através de redes sociais - que devido a pandemia da COVID-19, substituíram a realização de entrevistas presenciais. Estes contatos foram feitos no intuito de angariar documentos e registros visuais das montagens, para a construção de dossiês dos espetáculos, dando conclusão nesta pesquisa. Palavras-chaves: Trajes de Cena; Teatro Baiano; Companhia de Teatro da UFBA

ABSTRACT The project aimed to use local newspapers and periodicals to investigate the registration and documentation of the visual aspects presented by the performances of the Companhia de Teatro da UFBA. Since its creation in 1981, the company has been integrating teachers, students, technicaladministrative servants and guest artists in order to create contemporary contemporary dramaturgy shows, actively participating in the city’s theatrical scene.

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This project aimed to research the shows presented by the Company between the years 2001 and 2019 through the bias of the visuality of the scene, with special, but not exclusive, attention to the stage costumes. In addition to research in newspapers and periodicals, bibliographic surveys, e-mail exchanges and contacts via social networks were carried out - which, due to the COVID-19 pandemic, replaced face-to-face interviews - in order to collect documents for the assembly of the dossiers of each show - using these as a result of this research. Key-words: Stage costumes; Baiano Theater; UFBA Theater Company

ABSTRACTO El proyecto tenía como objetivo utilizar periódicos y revistas locales para investigar el registro y documentación de los aspectos visuales presentados por las representaciones de la Compañía de Teatro da UFBA. Desde su creación en 1981, la empresa ha ido integrando a profesores, estudiantes, servidores técnico-administrativos y artistas invitados con el fin de crear espectáculos de dramaturgia contemporánea contemporánea, participando activamente en el panorama teatral de la ciudad. Este proyecto tuvo como objetivo investigar los espectáculos presentados por la Compañía entre los años 2001 y 2019 a través del sesgo de la visualidad de la escena, con especial pero no exclusiva atención al vestuario escénico. Además de la investigación en diarios y revistas, se llevaron a cabo encuestas bibliográficas, intercambios de correo electrónico y contactos a través de las redes sociales - que, debido a la pandemia COVID-19, sustituyeron a las entrevistas cara a cara - con el fin de recopilar documentos para el montaje de la expedientes de cada programa, utilizándolos como resultado de esta investigación. Palabras clave: Vestuario escénico; Teatro Baiano; Compañía de Teatro UFBA

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\documentação e registro: trajes de cena na companhia de teatro da ufba

1.

INTRODUÇÃO

Esta pesquisa partiu do interesse mútuo meu e da orientadora, a Professora Dra. Renata Cardoso, no assunto que a norteia - os trajes de cena utilizados nos espetáculos da Companhia de Teatro da Universidade Federal da Bahia. Ao saber que a maioria destes trajes, que marcaram grande parte das encenações do teatro baiano, estão há mais de quatro anos trancados em um galpão sem nenhum tipo de armazenamento correto, decidimos transformar nossa inquietação em ação. Este projeto está vinculado ao Programa Institucional de Bolsas de Iniciação Científica (PIBIC) e ao Programa Permanecer2. Tendo esta inquietação como ponto de partida, montamos uma equipe - que orgulhosamente se tornou complementar - com Anthea Xavier, estudante de Museologia e Everton Luís Pereira, estudante de Biblioteconomia, ambos pela Universidade Federal da Bahia (UFBA) também. Na nossa primeira reunião decidimos retomar um projeto antigo da orientadora3, que por diversos motivos não obteve o sucesso esperado quando foi executado. Projeto este que tinha como intenção catalogar todo o Acervo de Trajes de Cena da Escola de Teatro da UFBA, o que incluía o acervo da Companhia de Teatro da UFBA. Como o acervo se encontra indisponível por tempo indeterminado, por falta de espaço físico que o abrigue na Universidade, optou-se por começar a investigação a partir do que fosse encontrado de registro dos espetáculos da Companhia em jornais e periódicos. Dessa maneira, os objetivos deste projeto eram: levantar informações sobre os espetáculos produzidos pela Companhia de Teatro da UFBA entre os anos de 2008 a 2019 (período não coberto pela publicação já existente, que trata dos anos 1981-2007); Levantar informações sobre os aspectos visuais – com enfoque principal, mas não exclusivo, nos trajes de cena – dos espetáculos realizados pela Companhia de Teatro da UFBA entre os anos de 2001 a 2019, através de pesquisa em jornais e periódicos; realizar entrevistas com a equipe dos espetáculos e organizar as informações recolhidas em formato de dossiês sobre os espetáculos.

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2. O Programa Permanecer faz parte das ações da Coordenadoria de Ações Afirmativas, Educação e Diversidade da PróReitoria de Assistência Estudantil da UFBA, cujo objetivo é assegurar a permanência bem sucedida de estudantes em vulnerabilidade socioeconômica por entender que estes têm maior probabilidade de ter que adiar ou mesmo interromper sua trajetória acadêmica devido a condições desfavoráveis que interferem concretamente na sua presença no contexto universitário. <http://www. permanecer.ufba.br/>

3. Este projeto pode ser encontrado em: CARDOSO, Renata. Catalogação do acervo de figurinos da Escola de Teatro da UFBA . In: Anais do I Seminário de Preservação de Acervos Teatrais / Universidade de São Paulo, 8 a 10 de agosto de 2012, / Elizabeth Cardoso Ribeiro Azevedo (org.) – São Paulo:USPPRCEU; TUSP; LIM CAC, 2015. Disponível em <http://www2.eca.usp. br/cdt/sites/default/files/ acervos_teatrais_versao_ digital.pdf>. Acesso em 02 out. 2020.


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Nos encontramos semanalmente e iniciamos a pesquisa pelo suporte teórico, o que nos deu subsídio para entender como se monta um acervo “do zero”. Depois partimos para o livro comemorativo aos 35 anos da Companhia. Deste momento em diante começaram a surgir as dificuldades, tendo a pandemia da COVID-19 como a maior delas, ainda tivemos que lidar com contratempos, como a falta de comunicação com algumas e alguns integrantes das equipes dos espetáculos, ou até mesmo a precariedade dos acervos públicos na cidade de Salvador. A finalização deste projeto não seria possível sem o vínculo de companheirismo que a Anthea, o Everton, a Renata e eu construímos. A vontade de fazer dar certo, a palavra de apoio nos momentos de desânimo - principalmente nos meses que se sucederam o isolamento social, onde os transtornos psicoemocionais se tornaram cada vez mais presentes. Chegamos ao fim do projeto com a satisfação de ter nos superado a cada dificuldade, encontrando meios para finalizar de maneira satisfatória, mas repletas (os) de outras inquietações trazidas pelo caminhar deste projeto e que com certeza alimentará outros futuros.

2. MÉTODO O projeto se inicia com leituras de livros, artigos e outros meios teóricos, que nos dessem parâmetro para a criação e manutenção de um acervo que podem ser classificados como identificação de trajes, catalogação, restauração, higienização, armazenamento, empréstimos e/ou exposição. Ouso dizer que os livros Pequeno Manual de Conservação de Trajes Teatrais (Viana e Azevedo, 2006)” e “Anais do I Seminário de Preservação de Acervos Teatrais / Universidade de São Paulo, 8 a 10 de agosto de 2012, / Elizabeth Cardoso Ribeiro Azevedo (org.) 2015 se tornaram o norte para esta empreitada. Em sequência, focamos no livro comemorativo aos 35 anos da Companhia de Teatro da UFBA, onde se tem registro dos espetáculos entre 1981 até

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2016 com suas respectivas fichas técnicas, mas aí surge o nosso primeiro problema. Essas fichas não têm um padrão, e são poucas as que constam a ficha técnica completa. Existem muitas com lacunas não preenchidas, profissionais não citadas (os), principalmente as/os que mais nos interessa nesta pesquisa - profissionais ligadas (os) a área da visualidade. Fizemos planilhas detalhadas com todas (os) profissionais descritos nas fichas técnicas presentes no livro e suas devidas funções. Então decidimos focar nas informações que tínhamos em mãos e contactar estes profissionais. Concomitantemente, pesquisamos as fichas técnicas dos espetáculos que vieram depois deste período e não constam em registro, preenchendo ao máximo estas lacunas vazias. Mais uma vez, outro problema. Por fazermos parte diretamente do corpo docente e discente da Escola de Teatro da UFBA (ETUFBA), pensamos que seria mais fácil termos contato com estas pessoas, mas nos deparamos com pessoas que não moram mais na cidade e outras que não encontramos nenhum tipo de contato. Com este contraponto me surgiu uma outra proposta para uma pesquisa futura. Um banco de dados, onde todas (os) profissionais da área, possam se cadastrar e facilitar o contato profissional para com elas (es). A princípio, pode ser um banco de dados através dos docentes, discentes da ETUFBA e convidadas (os) que se apresentaram em espetáculos na casa. Assim como pode abranger todo o território estadual e/ou nacional facilitando além do contato profissional, pesquisas futuras. Sendo este banco de dados atualizado a cada espetáculo realizado. Uma outra dificuldade foi colocar em prática a ideia de realizar entrevistas presenciais e buscas em arquivos digitalizados nos acervos públicos, pois nos deparamos com a pandemia mundial da COVID-19, o que nos deixou sem respostas de como prosseguir por mais ou menos uns quinze dias, já que os locais públicos começaram a ser fechados no período previsto para a visita a estes acervos públicos.

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4. Site do Arquivo Público do Estado da Bahia: <http://www. fpc.ba.gov.br/modules/ conteudo/conteudo. php?conteudo=66>

5. Site da Biblioteca Central do Estado da Bahia: <http://www. fpc.ba.gov.br/modules/ conteudo/conteudo. php?conteudo=62>

Aqui surge uma problemática, que atinge diretamente à pesquisa em âmbito regional, estadual e nacional. Estava previsto a investigação em jornais e revistas que circulavam na época - como o Jornal A Tarde, Correio da Bahia e o Correio. Estas investigações estavam indicadas para acontecerem entre o terceiro e o nono mês do projeto. Nas poucas visitas que conseguimos fazer nestes acervos outras dificuldades foram encontradas. Nos deparamos com a precariedade da cidade em termos de pesquisas. Esses jornais e revistas estão disponíveis para consulta apenas de maneira presencial e em pouquíssimos espaços públicos de Salvador, e não é fácil localizar quais são estes espaços e nem quais acervos eles abrigam. Uma vez localizado estes espaços, descobrimos que alguns não estavam abertos à visitação; aqueles em que era possível fazer a visitação contavam com informatização precária, sistemas lentos, dificuldade de acesso de naturezas diferentes. Dos locais públicos para consulta na cidade de Salvador, cito o Arquivo Público do Estado da Bahia4, situado na ladeira de Quintas, 50, no bairro da Baixa de Quintas e a Biblioteca Central do Estado da Bahia5, situada na Rua General Labatut, 27, no bairro dos Barris, que foram nossos locais de pesquisa, quando possível. Dos poucos acervos públicos que tenham jornais e revistas, uma parte significativa não está digitalizada, e as poucas que contrapõem este fato não podem ser acessadas de maneira remota. Além de tudo isso, teve a pandemia e consequentemente o distanciamento social, e como os documentos só podem ser acessados presencialmente, esta parte da pesquisa ficou totalmente inviabilizada. Logo, a investigação em jornais e revistas, tiveram que ser realizadas apenas por buscas em matérias digitais - reportagens divulgadas em blogs, jornais online, páginas na internet de programação cultural, redes sociais e etc. A realização de entrevistas presenciais previstas para o período entre o sexto ao décimo mês, também sofreram alterações devido ao distanciamento social e tiveram que ser feitas de forma online.

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Ou seja, as/os pesquisadoras (es) se deparam com poucos locais de consulta na cidade e a precariedade destes locais, principalmente no software utilizado, que gera lentidão e retardo nas pesquisas. É importante salientar que as hemerotecas e acervos digitais aparecem nesse cenário como dispositivos indispensáveis à contemporaneidade informacional, na medida em que encurtam a distância entre o/a pesquisador(a) e suas fontes, disponibilizando documentos e desenvolvendo ferramentas cada vez mais ágeis, precisas e eficazes, mas infelizmente esta não é uma realidade da cidade de Salvador. Nos adaptamos às medidas preventivas, recomendadas pela Organização Mundial de Saúde (OMS) e passamos a nos reunir virtualmente e decidimos que seria a hora do que podemos chamar de “mudança de planos que deram certo”. Como já dito acima, decidimos focar nas pesquisas via internet, em sites, jornais eletrônicos e afins e alterar as entrevistas presenciais por troca de e-mails. Aproveito o ensejo, para falar da dificuldade de desenvolver processos criativos como este em meio à pandemia, em que muitas vezes me deparei com falta de foco, ansiedade, angústia, incerteza em relação ao futuro e consequentemente com a desmotivação. O esgotamento emocional, provocado pela mesma interfere diretamente no processo e no resultado. De volta ao projeto, a princípio estes e-mails seriam enviados à parte técnica ligada às áreas da visualidade dos espetáculos e a direção, mas nos deparamos com outro problema, além de não termos conseguido os e-mails de todas estas pessoas, das poucas que tínhamos, o número de retorno que obtivemos foi insuficiente para o que precisávamos. Com este empecilho veio a ideia de incluirmos os elencos destes espetáculos nesta rede de mensagens, e passamos a contatá-los através de suas redes sociais. Neste momento a motivação passou a se tornar ainda mais presente no dia a dia do projeto, os retornos passaram a ser mais constantes e acompanhados de mensagens positivas e congratulações pela pesquisa e pela iniciativa de reunir este material. Com o elenco, que em alguns casos também fizeram parte da produção dos espetáculos, recebemos uma

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6. Espetáculo realizado pela Companhia de Teatro da UFBA, sob a direção de Paulo Cunha. A estreia aconteceu na cidade de Salvador em setembro de 2014.

7. Espetáculo realizado pela Companhia de Teatro da UFBA, sob a direção de Edwald Hackler. A estreia aconteceu na cidade de Salvador em março de 2004.

8. Espetáculo realizado pela Companhia de Teatro da UFBA, sob a direção de Deolindo Checcuci. A estreia aconteceu na cidade de Salvador em novembro de 2007.

9. Espetáculo realizado pela Companhia de Teatro da UFBA, sob a direção de Edwald Hackler. A estreia aconteceu na cidade de Salvador em dezembro de 2002.

10. Espetáculo realizado pela Companhia de Teatro da UFBA, sob a direção de Tom Carneiro. A estreia aconteceu na cidade de Salvador em julho de 2017.

gama de arquivos que desejávamos, e um pouco além - como por exemplo no espetáculo As Confrarias6, encenado em setembro de 2014, em que recebemos a planta baixa do cenário. Como nem tudo sai como planejamos, alguns espetáculos não conseguimos nenhum contato com os integrantes de ambas as partes, nenhuma matéria online foi encontrada, nenhum registro, aqui cito como exemplo os espetáculos Arte7 (mar 2004) e Terceiro Sinal8 (nov 2007). Existiram espetáculos em que conseguimos entrar em contato com os integrantes, mas poucos registros foram encontrados, como é o caso do espetáculo Senhorita Júlia9 (dez 2002), onde recebemos retornos como este “Fiz sim Senhorita Júlia (dez 2002) com Jussilene e Agnaldo, só que naquela época não tinha Facebook, web. Então realmente não tenho fotos.” (Lika Ferraro, atriz e bailarina, coreógrafa, diretora, sócia proprietária da Cia de Teatro Musical Pó Compacto). Um outro exemplo interessante em salientar, é o espetáculo Gusmão o Anjo Negro e Sua Legião10 (jul 2017). Este espetáculo é o primeiro da Companhia que não foi dirigido por um (a) professor (a) da casa. O primeiro a ser dirigido por um negro, com uma trama voltada para a história negra e encenado por negras e negros. Nas minhas pesquisas pela internet eu só encontrei matérias sobre este espetáculo em blogs e/ou sites voltados para a cultura negra. No início da pesquisa, só tínhamos o nome do espetáculo e do diretor (Tom Carneiro), os nomes das/dos atuantes só conseguimos depois por reconhecimento em fotos. Daí fomos numa espécie de rede que ligava uma pessoa à outra, até que nos foi enviado o programa do espetáculo e conseguimos ter acesso à ficha técnica. Recebemos também de um dos integrantes do elenco, uma carta aberta enviada por uma professora da casa, reivindicando os acordos feitos no início da Companhia, até mesmo os tipos de textos encenados pela mesma. Se referindo diretamente ao espetáculo em questão pelas “particularidades” já ditas acima (esta carta encontra-se em nossos registros também). A reivindicação feita pela professora, é feita baseada no acordo feito pelos fundadores da Companhia onde explicitam que as encenações

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deveriam ser feitas por profissionais da Escola de Teatro da UFBA e os textos escolhidos deveriam ser algum dos ditos “clássicos”, que têm por sua grande maioria autores europeus. E o espetáculo em questão foi de encontro a estes acordos. Aproveito o ensejo para deixar registrado aqui o meu agradecimento à esta equipe, à todas e todos que estiveram presentes de alguma forma neste espetáculo. Eles e elas fizeram mudança, fizeram a diferença, eles e elas são o despertar para as lutas que vivenciamos ainda hoje na Companhia de Teatro e consequentemente na Escola de Teatro da UFBA. Em meio a este turbilhão de mensagens, emoções, registros, deparome com o prazo para a finalização da pesquisa, o que me exige abrir mão de dedicar o meu tempo às pesquisas e passar a escrever os relatórios finais. Neste momento, onde rememoro o que esta pesquisa me proporcionou/ensinou, percebo que questionamentos ainda se sobrepõem ao resultado final.

3. CONCLUSÃO Nesta pesquisa, tivemos que saber nos readaptar. Muitos imprevistos aconteceram e as dificuldades vieram de vários lugares. Como nossa pesquisa é sobre a área da visualidade da cena, com o foco - mas não exclusivo - nos trajes de cena, foi preciso entrar em contato com os profissionais responsáveis por estas áreas em cada espetáculo, mas nos deparamos com muitas fichas técnicas incompletas no livro que tomamos como ponto de partida (livro em comemoração aos 35 anos da Companhia de Teatro da UFBA), descobrimos quem foram estes profissionais através de contatos com outros, como em uma colcha, fomos costurando as informações que nos eram dadas e preenchendo os vazios com os retalhos que nos eram oferecidos. A proposta era que ao final do projeto, o bolsista tivesse vivenciado um processo de investigação através do contato com múltiplas categorias documentais, ampliando assim suas ferramentas de trabalho e seus

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horizontes de perspectiva em relação à pesquisa acadêmica. Esperando que o estudante se aproximasse e desenvolvesse interesse pela área da pesquisa acadêmica, e que pudesse perceber que muitas são as possibilidades de fontes para busca de informação, e variados são os horizontes da pesquisa, contemplando diversificadas áreas de interesse. Como um alicerce para o entendimento da importância desta pesquisa e da importância de conservar uma coleção dos trajes de cena de qualquer espetáculo, Fausto Viana (2012) transcreve muito sucinto e objetivo: De forma muito direta, porque eles são documentos potenciais para a preservação da memória do teatro. O traje de cena, muitas vezes acidentalmente, é o único elemento que atravessa a história das representações teatrais. Acaba tornando-se o único testemunho material de uma determinada representação teatral. Com isso, muda seu status para ‘documento’. Com esta certeza, afirmo que a vivência nesta pesquisa proporcionou várias inquietações, além de pensamentos e sugestões para pesquisas futuras como a criação de um banco de dados, onde todas e todos profissionais da área, possam se cadastrar e facilitar o contato profissional para com eles. Além da criação de uma ficha técnica padrão, no intuito de através de uma pesquisa ir atrás das lacunas ainda vazias - referente aos profissionais - presentes na maioria dos espetáculos apresentados pela Companhia. Outra proposta que nasceu deste projeto é a ideia de gravar um documentário sobre a Companhia de Teatro da UFBA e a história da visualidade dos seus espetáculos, tendo como clímax do curta a abertura do galpão onde estes figurinos estão trancados por mais de quatro anos, sem nenhum tipo de cuidado - conforme já dito aqui anteriormente. É válido ressaltar que a finalidade principal deste projeto era a criação de dossiês sobre os espetáculos da Companhia de acordo com os documentos

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que recebemos. Alguns espetáculos, por não conseguirmos contatar nenhum (a) profissional, ou nenhuma informação foi encontrada pelas matérias online (blogs, jornais, páginas de cultura e etc.) encontram-se com os dossiês vazios. Todos estes dossiês encontram-se em um drive, enquanto buscamos uma forma de disponibilizá-los para o público em geral - outra ideia que surgiu durante a pesquisa. Desta forma o projeto foi finalizado mas com a ânsia por mais. Por mais pesquisas, por respostas aos questionamentos que ainda se sobrepõem ao resultado final. Enquanto artistas, qual a valorização dada às outras áreas que compõem o espetáculo? Quem cuida da maquiagem, da fotografia, do figurino - e aqui é bem importante salientar que quem os costura, também merece reconhecimento - por exemplo? Uma ficha técnica extensa, é cansativa ou justa para com todas (os) envolvidas (os)? Hoje percebo a importância da menção de todas (os) profissionais, não só por reconhecimento, mas também por facilitar buscas/pesquisas futuras como esta. Aproveito para enfatizar a importância da outra proposta de pesquisa que foi sugerida, uma busca pelo preenchimento das lacunas vazias, das fichas técnicas em que mencionei neste projeto. Outro questionamento é sobre a inquietação que deu início a esta pesquisa. Qual a importância dada aos trajes utilizados em cena? São poucas as pessoas que os vêem como história. Mas qual importância damos à nossa história? Foi baseado nestes questionamentos que encontramos o suporte para esta pesquisa. Com ela buscamos chamar a atenção das pessoas para essa parte da nossa história. A visualidade está e sempre estará presente no teatro, é necessário cuidado e zelo para com esta parte do espetáculo. É importante lembrar que ao abrir das cortinas, antes mesmo que a primeira fala seja dita, a conexão com o público já foi feita através do que se vê. Pesquisas como esta, exaltam a possibilidade de recontar a história por imagens. Fotografias que são tão comuns e facilitadas, pela imersão da internet e suas redes sociais, nem sempre foi natural. E o que fazer com os trajes depois de cada temporada, quais cuidados eles devem ter? A

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melhor forma de comparar isto, para se ter a noção da sua importância para o social, é se perguntar qual a importância da sua contribuição para a história? Cada vez que um (a) atuante entra em cena, está costurando um retalho da história do teatro. Finalizo este projeto com a esperança que esta pesquisa não acabe por aqui. Espero ter instigado um pouco da inquietação que lhe deu origem em quem o acaba de ler. Que possamos encontrar um local adequado para todos os trajes que ainda, se encontram trancados no galpão há mais de quatro anos e possamos reconstruir a história da Companhia de Teatro da UFBA de maneira digna ao significado que carrega para o teatro baiano, já que estamos falando da Companhia de Teatro da primeira Escola de Teatro em uma Universidade do país. Que esta questão torne-se também prioridade para as autoridades responsáveis e se movimente de forma mais ágil na resolução deste problema e na mudança de visão do que é história e o que realmente importa.

REFERÊNCIAS ANCHIETA, José de. Cenograficamente da cenografia ao figurino. São Paulo: Edições SESC, 2015. ANDRADE, Rita. Biografia cultural das roupas: uma poética do vestir. In: XXVIII Latin American Studies Association Congress 2009: Rethinking Inequalities, 2009, Rio de Janeiro. XXVIII Latin American Studies Association Congress 2009: Rethinking Inequalities, 2009. AZEVEDO, Elisabeth; VIANA, Fausto. Breve manual de conservação de trajes teatrais. Escola de Comunicações e Artes/Universidade de São Paulo, 2006. CARDOSO, Renata. Catalogação do acervo de figurinos da Escola de Teatro da UFBA . In: Anais do I Seminário de Preservação de Acervos Teatrais / Universidade de São Paulo, 8 a 10 de agosto de 2012, / Elizabeth Cardoso

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\documentação e registro: trajes de cena na companhia de teatro da ufba

Ribeiro Azevedo (org.) – São Paulo:USP-PRCEU; TUSP; LIM CAC, 2015. Disponível em <http://www2.eca.usp.br/cdt/sites/default/files/acervos_ teatrais_versao_digital.pdf>. Acesso em 02 out. 2020. CARDOSO, Renata. O uso de acervos digitais em pesquisas acadêmicas Bataclan e Velasco nas hemerotecas do Brasil, da França e da Espanha. In: Rascunhos - Caminhos da Pesquisa em Artes Cênicas, v. 3, p. 14-26, 2016. NACIF, Maria Cristina Volpi. O CENTRO DE REFERÊNCIA TÊXTIL/ VESTUÁRIO – RELATO DE UM PROCESSO. In: 19º Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas “Entre Territórios” – 20 a 25/09/2010 – Cachoeira – Bahia – Brasil. VIANA, Fausto; NEIRA, Luz Garcia. Princípios gerais de conservação têxtil. In: Revista CPC, São Paulo, n. 10, p. 206-233, 2010. VIANA, Fausto. Uma coleção de trajes de cena: como lidar com ela?. In: Anais do I Seminário de Preservação de Acervos Teatrais / Universidade de São Paulo, 8 a 10 de agosto de 2012, / Elizabeth Cardoso Ribeiro Azevedo (org.) – São Paulo:USP-PRCEU; TUSP; LIM CAC, 2015. Disponível em <http://www2.eca.usp.br/cdt/sites/default/files/acervos_teatrais_ versao_digital.pdf>. Acesso em 02 out. 2020. VIANA, Fausto; PEREIRA, Rogério. Figurino e Cenografia para Iniciantes. São Paulo: Estação das Letras e Cores, 2015. ____________. Fontes documentais para o estudo da história da moda e da indumentária: o caso James Laver e novas perspectivas. Dissertação (Mestrado em Ciências). Programa de Pós-graduação em têxtil e moda, Escola de Artes, Ciências e Humanidades – EACH, Universidade de São Paulo, 2015.

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Luísa Ferrari Capistrano de Mesquita¹ 24 anos, Rio de Janeiro (RJ). É figurinista, artista visual e pesquisadora nas áreas da estética do grotesco e de figurinos manipuláveis pela técnica do teatro de formas animadas. É membro do Laboratório Objetos Performáticos de Teatro de Animação do curso de artes cênicas da UFRJ, no qual desenvolveu o espetáculo de sombras Ananse e o baú de histórias (2016). anatomiadainquietacao@gmail.com

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1. Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro- EBA/UFRJ. Orientador: Prof. Dr. Gilson Moraes Motta.


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ficha técnica Universidade Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) Tipo do curso Graduação Nome do curso Artes cênicas com habilitação em indumentária Período do curso 2015-2019 Estado Rio de Janeiro Título do trabalho Anatomia da inquietação Nome da autora Luísa Ferrari Capistrano de Mesquita Nome do orientador Gilson Moraes Motta Número de páginas 20

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RESUMO Este trabalho tem como objetivo explorar novas possibilidades de interação entre ator, personagem e figurino teatral a partir da técnica de manipulação. A melhor forma de conseguir chegar a novos modelos de interação foi o de fundir roupa, personagem e corpo de maneira coesa em uma única ação onde o espectador é o foco de sensações provocadas pelo figurino vivo e sua movimentação. Desta maneira, o resultado de mais de um ano de pesquisa á procura de uma identidade artística própria e de uma expansão visual para o figurino teatral vem em forma de uma performance artística. Baseado nos conceitos de “Teatro da Crueldade” de Antonin Artaud, do “Grotesco” de Wolfgang Kayser e de “Arte Abjeta” de Julia Kristeva, este figurino pretende passar todos esses conceitos em sua ação e estética. Palavras-chave: Grotesco, Sentidos, Interação.

ABSTRACT This work aims to explore new possibilities of interaction between actor, character and theatrical costume from the manipulation technique. The best way to achieve new models of interaction was to merge clothes, character and body in a single action where the viewer is the focus of sensations provoked by the living costume and its movement. In this way, the result of more than a year of research looking for my own artistic identity and visual expansion for theatrical costumes comes in the form of an artistic performance. Based on the concepts of Antonin Artaud’s “Theater of Cruelty”, Wolfgang Kayser’s “Grotesque” and Julia Kristeva’s “Abject Art”, this costume aims to convey all these concepts in their action and aesthetics. Keywords: Grotesque, Senses, Interaction

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RESUMEN Este trabajo tiene como objetivo explorar nuevas posibilidades de interacción entre actor, personaje y vestuario teatral a partir de la técnica de manipulación. La mejor manera de lograr nuevos modelos de interacción fue fusionar ropa, personaje y cuerpo de manera cohesionada en una sola acción donde el espectador es el foco de sensaciones provocadas por los disfraces en vivo y su movimiento. De esta forma, el resultado de más de un año de investigación en busca de una identidad artística propia y una expansión visual del vestuario teatral llega en forma de uma performance artística. Basado en los conceptos de “Teatro da Crueldade” de Antonin Artaud, “Grotesque” de Wolfgang Kayser y “Arte Abjeta” de Julia Kristeva, este traje pretende transmitir todos estos conceptos en su acción y estética. Palabras clave: Grotesco, Sentidos, Interacción.

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1. INTRODUÇÃO Nos anos finais do curso de Artes Cênicas com habilitação em Indumentária na Universidade Federal do Rio de Janeiro, percebo o figurino teatral como protagonista da cena, como centro vital da concepção de um personagem. O que era visto anteriormente como uma peça de um conjunto maior de mecanismos foi direcionado a outra perspectiva na qual o figurino tinha máxima importância na cena. Com isso, chego ao final do curso com a seguinte problemática: Como explicitar tal importância? Com meu trabalho de conclusão de curso iniciado em 2018, começo a adentrar na busca de respostas para tal problemática ao investigar maneiras de trazer o figurino ao centro da cena, transformando-o em personagem. Neste caso, retira-se o caráter do figurino como catalisador da ação do ator e eleva-se uma potência performática, fazendo deste, personagem independente. Aqui, o figurino é visto como organismo vivo. Para que houvesse contemplação nesta visão acerca do figurino teatral, trazendo vida e movimento a este, estabeleci um diálogo direto com práticas do teatro de animação. O uso da técnica de manipulação foi essencial para metamorfosear o figurino, em um vestível. Entendo a palavra “vestível” como algo além de uma peça de vestuário de tecido, perpassando limites que chegam ao caráter de criatura viva e operante e, portanto, neste ponto, esta é a nomenclatura ideal para o trabalho. Um vestível performático que se movimenta a partir da ação do ator que o manipula, havendo uma transmissão energética com inicio na prática do ator, passando pelo figurino para que este se torne o personagem. Desta forma, chegamos a uma coesão intensa entre três elementos muitas vezes vistos como separados na ação teatral: Ator, figurino e personagem. Há uma interdependência entre estes elementos que atuando juntos são capazes de produzir uma ação, a tornando vestível- performance. Esta nova perspectiva da qual o ator é o agente catalisador da ação e o figurino concentra toda a ação teatral, acompanha o estudo de

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2. KAYSER, Wolfgang. O Grotesco. 1. ed. São Paulo: Perspectiva, 2013. 166 p.

conceitos estéticos acerca do Grotesco de Wolfgang Kayser (1957) e de Arte Abjeta de Julia Kristeva (1980) e conceitos performativos com o Teatro de Crueldade de Antonin Artaud (1938). Iniciada em 2018, Anatomia da Inquietação é o resultado de um ano e meio de pesquisa voltada ao desenvolvimento do Trabalho de conclusão de curso de graduação em Artes Cênicas com habilitação em Indumentária. Iniciada no Laboratório de Objetos Performáticos de Teatro de Animação da EBA/ UFRJ, coordenado pelo professor Gilson Motta, é um desdobramento da pesquisa PIBIAC Estéticas da Compaixão e Estéticas da Crueldade. Tal pesquisa visava explorar estéticas artísticas que lidassem com a ambiguidade de sentidos, passando pelo horror e pela afetividade. Em meio aos estudos, foi identificado que a estética do Grotesco traduz tal contrariedade, sendo Wolfgang Kayser (1957) o teórico estudado que analisou o fenômeno.

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CONCEITOS DE “ANATOMIA DA INQUIETAÇÃO”

Em meio aos estudos no Laboratório de Objetos Performáticos, entro em contato com a estética do Grotesco- segundo Wolfgang Kayser (1957)- e passo a me identificar com a visualidade que esse fenômeno carrega, despertando a vontade de pesquisá-lo mais a fundo no TCC. Desta forma, como complemento na concepção estética do vestível estudo a Arte Abjeta de Júlia Kristeva (1980) que dialoga diretamente com Kayser (1957) ao falar de obras que discorrem entre a repulsa e horror. O terceiro conceito fundamental que definiu o potencial performático do vestível foi o de Teatro de Crueldade de Antonin Artaud (1938), evidenciando o poder da interação do espectador com o vestível. 2.1

O Grotesco de Wolfgang Kayser

Wolfgang Kayser (1957) em seu livro O Grotesco2 traça as manifestações dessa categoria estética em diversas esferas artísticas e históricas. Iniciando sua análise pelo século XV com os pintores maneiristas na Itália, passando pelo Romantismo na literatura em 1800, até a idade moderna com o movimento surrealista, Wolfgang Kayser (1957) procura encontrar

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uma definição para o termo grotesco. Segundo Kayser (1957): A deformação dos elementos, a mistura dos domínios, a simultaneidade do belo, do bizarro, do horroroso e do nauseabundo, sua fusão num todo turbulento, o estranhamento no fantástico-onírico, tudo aqui entra no conceito do grotesco. (KAYSER, 1957, p. 75) Para Kayser (1957) “o grotesco é o mundo alheado (tornado estranho)”. Ou seja, todo tipo de estranhamento causado ao ser humano é considerado grotesco por não fazer parte da vida comum, fazendo com que percamos as orientações dos domínios convencionais ao qual o mundo está assentado. Tudo que é tido como disforme, monstruoso, amedrontador e bizarro caminham dentro desse fenômeno abrangente, abarcando também a caricatura, o risível e o ridículo. Há uma mistura de domínios entre o belo e o feio, o engraçado e o horrível para as produções de obras dentro desse movimento, o que deixa o espectador em meio à ambiguidade de sensações ao se relacionar com a obra. É importante ressaltar que para que possamos identificar uma obra como essencialmente grotesca, é necessário que haja uma investigação do efeito, pois só a partir dele é que teremos as reações reais dos espectadores para com a obra. Somente a partir do estranhamento do espectador, de sua reação que perpassa a repulsa, o nojo, o horror, o riso nervoso e gargalhadas plenas; somente quando o espectador mantém um afastamento ou até mesmo uma aproximação impulsionada pela curiosidade, é que podemos afirmar a natureza grotesca da obra. As reações, assim como as obras são ambíguas e Julia Kristeva complementa a linha de pensamento. 2.2

A Arte Abjeta de Júlia Kristeva

Continuando no conceito estético do trabalho, Kristeva em Poderes do Horror- Ensaio sobre a Abjeção3 (1980) faz uma análise filosófica e psicológica acerca da abjeção. Pode-se dizer que os dois autores se completam

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3. KRISTEVA, Julia. Ensaio sobre a Abjeção. Poderes do Horror. [S. l.: s. n.], [1980].


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por tratarem de duas estéticas que dialogam com os sentimentos de nojo e repulsa a partir da reação do espectador. Kristeva (1980) ressalta que, assim como no Grotesco, o efeito também é o grande catalisador da abjeção. Nosso corpo responde psicologicamente aos estímulos abjetos quando tenta repelir, afastar-se por pura repugnância, estranheza ou ameaça iminente. Kristeva (1980) ainda adiciona que o efeito só é manifestado a partir de gatilhos emocionais do indivíduo que experimenta a vivência com a obra, o que assim esclarece as diversas reações que uma obra pode despertar em um mesmo grupo de pessoas: (...) sem dúvida, a abjeção é, sobretudo ambiguidade. Porque, ao demarcar, ela não separa radicalmente o sujeito daquilo que o ameaça – pelo contrário, ela o reconhece em perigo perpétuo. (KRISTEVA, 1980, p.9) Como dito anteriormente acerca do Grotesco ser um fenômeno mais abrangente, a abjeção percorre outro caminho: o do horror e do nojo. O abjeto está em toda obra que segue uma linha estética que perturba uma identidade, um sistema ou uma ordem. Tudo aquilo que é culturalmente rejeitado, impróprio ou impuro, desprezível e que não deve ser exposto publicamente são considerados abjeções. Provocando um afastamento permanente do espectador que procura expulsar ou enxotar de sua vivência qualquer sinal de confronto. A relação do individuo com a abjeção é definida pela não assimilação deste com a obra. O que acaba gerando a repulsa e o sobressalto que separam o ser humano do contato, o afastando em distância que o protege daquilo que não é de seu gosto. O abjeto desvia, rejeita, não assume nenhum tipo de regra para que dessa maneira seja mais fácil negá-las e distorcê-las em sua verdade sem julgamentos. Unindo o conceito de Grotesco como catalisador de provocações no espectador que visualiza algo estranho a sua vivência e o de Arte Abjeta para despertar sensações ambíguas em diferentes situações no espaçotempo, forma-se um encaixe estético coeso. Kayser (1957) e Kristeva

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(1980) desta maneira definem a atmosfera tátil e visual para chegar à visualidade necessária para que o vestível se comunicasse diretamente com o conceito de Teatro de Crueldade de Antonin Artaud (1938). A busca por uma coesão não se deu apenas entre os três elementos teatrais citados anteriormente, mas também na pesquisa teórica. Ao olharmos os três conceitos que regeram a pesquisa, podemos avaliar a posição do espectador como algo comum entre o grotesco de Kayser (1957), o abjeto de Kristeva (1980) e a crueldade de Artaud (1938). Este último, essencialmente comunicativo, desperta sensações a partir do contato do espectador que está inserido como centro da ação teatral. 2.3

Antonin Artaud e o Teatro da Crueldade

Antonin Artaud (1938), dramaturgo francês do século XX, atribui o nome de Teatro da Crueldade a uma maneira inovadora de prática teatral, concentrado inteiramente na estimulação do espectador. Em seu livro O Teatro e seu Duplo4 (1938), destrincha este conceito em dois manifestos frisando que o substantivo crueldade atribuído ao teatro não significa um ato cruel com o intuito de fazer algum mal a certa pessoa. A crueldade segundo Artaud (1938) é tudo aquilo que seja regrado e rigoroso, que não apresenta nenhuma forma de saída ou mudança de condição. Desta maneira, Artaud (1938) elucida a ideia de crueldade a partir da sua visão da existência humana e como o teatro é um agente capaz de mudar a condição de vida na qual o indivíduo está inserido: “A nossa existência é uma das imagens da crueldade”. (ARTAUD, 1938, p.118). Ao afirmar isso, Artaud (1938) admite que a vida humana esteja sempre dentro de um destino previamente imposto. Um ciclo rotineiro de decisões irreversíveis e implacáveis do qual não se possui controle absoluto para mudar o destino. Estar eternamente preso nessa condição pré-estabelecida por si só já pode ser visto como doloroso e uma manifestação da crueldade por não haver a mínima possibilidade de fuga dessa realidade imposta.

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4. ARTAUD, Antonin. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1938. 173 p


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Esse tipo de realidade imposta traz consequências a vivência humana que se deteriora à medida que acumula angústias e desejos reprimidos. Ao conviver com tais angústias, o indivíduo acaba por se comover com sua condição o que o leva a chegar ao estado transcendente da vida, migrando para outras formas de abstração e fuga da realidade por meio do uso de drogas, do amor e do crime como forma de alcançar outra realidade paralela, se desprendendo da crueldade diária. Partindo dessa análise sobre a existência humana, Artaud (1938) pensa no fazer teatral como algo capaz de abalar as certezas na qual o mundo está configurado, afirmando que o teatro deve ser como um ritual para a cura e expurgação das angústias produzidas pela realidade humana. Visto de maneira terapêutica para tratar as questões do mundo interno e externo do homem, fazendo a experiência teatral perpassar intensamente o espectador que jamais será esquecido. Desta forma, é pensando um teatro totalmente sensorial, concentrado inteiramente no despertar da total potencia sensível do espectador que Artaud (1938) propõe a abertura do organismo do individuo para novas possibilidades de fuga de sua própria realidade: Sem um elemento de crueldade na base de todo espetáculo, o teatro não é possível. No estado de degenerescência que nos encontramos, é através da pele que faremos a metafísica entrar nos espíritos. (ARTAUD, 1938, p.114) O Teatro da Crueldade é voltado a explorar a fuga da realidade pelas reações corpóreas a partir da sensibilidade nervosa. O teatro penetra no ser a partir de um turbilhão de ações diretas sobre os sentidos, estimulados a todo o momento com mesclas da realidade com o horror reconfigurando reações infinitas naqueles que se relacionam com este modelo teatral. E é neste ponto, que o fazer teatral de Artaud (1938) atravessa minha vivência artística com Anatomia da Inquietação. A partir do estudo dos três conceitos expostos acima, decido por fazer um vestível- performance no qual a ação é essencialmente voltada a vivência

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do espectador que interage com a obra, buscando o efeito do Grotesco e da Arte Abjeta atrelados a expurgação das angústias do espectador pelo Teatro da Crueldade. Desta maneira, chego à definição de movimento do vestível, concentrado a energia nos braços que oferecem contato físico ao espectador a partir de um abraço entre este e a criatura. Em alguns minutos de abraço pelo vestível, procuro oferecer ao transeunte uma forma de fuga da realidade por meio de uma performance sensorial, despertando os sentidos e a manifestação da afetividade no cotidiano.

3.

A ESTÉTICA NA PRÁTICA

Para iniciar na produção do vestível, o primeiro impulso foi recorrer ao encontro de um repertório de imagens e referências artísticas que lidassem esteticamente com os conceitos de grotesco e de arte abjeta destrinchados em um primeiro momento da pesquisa. Em meio aos estudos com uma série extensa de profissionais da arte, posso dizer que três deles foram de extrema importância para chegar a visualidade imaginada para o vestível. São eles: Arcimboldo (Itália, século XV), Ana Mendieta (Cuba, anos 70) e Björk (Islândia, anos 90). O objetivo era o de explorar as manifestações artísticas dos fenômenos em diversos momentos históricos, em diversos espaços e em diversas linguagens artísticas. Neste caso a pintura, a performance, a fotografia e a música. 3.1

Arcimboldo (1527-1593)

Encontro no pintor maneirista o primeiro foco imagético da pesquisa. Possuía um estilo próprio que não se encaixava em um padrão estético único, por migrar de pinturas e obras sacras, a desenhos científicos e bustos compostos por uma série de elementos acumulados. Giuseppe Arcimboldo (Itália, 1527) é considerado pertencente ao período maneirista italiano do qual após o óbito dos aprendizes de Leonardo Da Vinci, a procura de encomendas fora direcionada a pintores de fora do país. Tal crise impulsionou artistas de Milão a reformar a pintura tradicional promovendo a estética do grotesco como foco central, indo

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contra o padrão de arte voltada para o cristianismo e o mais importante: buscando a valorização da perspectiva individual do artista. O poder inventivo de imaginar a criação de monstruosidades, deformações, criaturas bizarras e ridículas aterrou solo fértil a artistas como Arcimboldo que em 1573 realiza sua série mais famosa intitulada As Estações (Arcimboldo, 1973). Composta de quatro bustos divididos em Primavera, Verão, Outono e Inverno, a série traz uma quantidade excessiva de elementos que se organizam de maneira a criar figuras humanas. Provocando o espectador a uma experiência visual que confunde entre o acúmulo e a coexistência de elementos harmônicos, que amplifica o olhar na vivência a explorar os detalhes, a relação entre a fantasia e o real e principalmente seu caráter instável. A obra de Arcimboldo está sempre se reconfigurando à medida que o espectador é levado a observar de incomum lugar de perspectiva. Tais aspectos transgressores na obra do italiano se encaixam perfeitamente no contexto do Grotesco (KAYSER, 1957) e foi o pontapé inicial do contato visual com a manifestação prática do conceito estudado na fase inicial da pesquisa. 3.2

Ana Mendieta (1948-1985)

Iniciando a aproximação de manifestações mais voltadas ao período moderno, a artista e performer cubana Ana Mendieta (Cuba, 1948) dialoga com a estética do Grotesco pelo poder de estranhamento causado em obras como Glass on Body Imprints (Ana Mendieta, 1972) que brinca com a deformação de seu corpo e Bird Transformation (Ana Mendieta, 1972) que mistura domínios animal e humano. No campo da abjeção, o desconforto do uso de elementos como o sangue para compor suas obras é presente em performances como Rape Scene (Ana Mendieta, 1973) e Sweating Blood (Ana Mendieta, 1973). Porém, chamo a atenção para a íntima conexão com a Crueldade de Artaud (1938). Mendieta via em sua produção artística uma forma de curar o não pertencimento ao espaço provocado pelo regime comunista de Fidel

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Castro que a exilou nos Estados Unidos ainda na primeira infância. Encontrou a potência performática da arte no reaproveitamento de sua dor acerca do desprendimento precoce de sua ancestralidade, imprimindo o próprio corpo como medida do mundo na série Siluetas Series (Ana Mendieta, 1973-77) dividida em mais de duzentas obras que a ajudaram na busca por tal reconexão com a mãe terrena. Nessa série, vemos a silhueta da performer registrada em significado na natureza por meio de materiais como o barro, folhas e galhos de árvore, fogo e sangue. 3.3

Björk (1965- dias atuais)

O trabalho da cantora e compositora islandesa foi de extrema importância para o desenvolvimento da pesquisa que tinha o rumo contornado a temática da cura tão visitada em Artaud (1938) e nos trabalhos de Ana Mendieta. Considerada multi artista visionária em novas tecnologias da música, além de sua estética peculiar nos tratamentos de voz, figurinos e visualidades de videoclipes, Björk entra neste repertório na tentativa de estabelecer uma coesão entre os conceitos estudados anteriormente. Mantendo um diálogo direto com o grotesco e a crueldade de Artaud (1938), concentro meus estudos em seu nono álbum de estúdio. “Vulnicura”- em latim: “Vulnus” acrescentado à palavra “cura” significando, assim, “cura para as feridas”- lançado em 2015 pela gravadora One Little Indian é totalmente intimista e destrincha o doloroso término de um relacionamento de dez anos com o artista visual Matthew Barney. Este trabalho se relaciona diretamente com a Crueldade de Artaud (1938) não apenas pelas letras fortes- das quais a artista não teve êxito na finalização de sua turnê, cancelando uma série de shows por motivos emocionais em Agosto de 2016- quanto pela experiência sensorial de realidade virtual da mostra Björk Digital que unia seis videoclipes da era Vulnicura. Em entrevista para a “Iceland Magazine” a cantora diz que “Você precisa escrever uma música tendo em mente que você deve levar uma experiência completa para todos os sentidos”. (BJÖRK, 2015). Deste modo, Björk coloca o espectador no centro da ação, o envolvendo

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na experiência imersiva, o estimulando sonora e visualmente. Stonemilker, primeira faixa do álbum, foi o primeiro videoclipe gravado com tecnologia 360° na história da música. É uma faixa que traz peso emocional na expressão traduzida pelo português como “tirar leite de pedra” na questão de abertura para a permissividade do atravessar afetivo. Tal questão era de extrema importância no tratamento do vestível, por este estar aberto a oferecer afetos e depender dos espectadores que se permitissem interagir com a obra. Portanto, pareceu-se coerente incluir esta faixa na realização da performance.

4.

CONCEPÇÃO DO FIGURINO

Baseando-se nos estudos da fase teórica da pesquisa, finalmente me encontro na fase prática de produção do vestível. Iniciando-se em agosto de 2019 e levando quatro meses para a concepção desde os primeiros croquis, passando pelos testes de mecanismos e materiais e finalmente chegando a intensa semana de ensaios para a apresentação final. 4.1.

Desenho

Como o grande objetivo era fazer do figurino centro da cena, precisei desconstruir métodos de produção criativa a partir da visão de um corpo adaptado ao figurino, e não a peça adaptada ao corpo do ator. Neste caso, inicio a produção de ideias por meio de exercícios de abstração humana, nos quais era importante desprender-se da ideia do corpo humano, valorizando formas e valores de linhas estranhos a prática convencional de criação de figurino. Aqui, o corpo deveria adaptar movimentos e vivência para encaixar no grande protagonista da cena: o vestível. Os exercícios de abstração da forma exigiam uma dedicação maior no afastamento do modo de produção criativa, por consistirem em desenhos livres de convenções estéticas, seguindo linhas intuitivas vindas de vivências cotidianas. A inspiração acontecia em qualquer lugar comum do dia-a-dia ou no caminhar, sendo de extrema importância para o

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treinamento da atenção a novas perspectivas e valorização de momentos muitas vezes tidos como banais e rotineiros. No total, doze desenhos foram produzidos, dos quais três foram escolhidos como representantes do projeto, pensados em formato, materiais e mecanismos de manipulação do teatro de formas animadas. Ocasionalmente o primeiro desenho de abstração da forma que produzi foi o selecionado no qual concentrei os movimentos nos tentáculos pendurados em sua estrutura:

Figura 1, 2 e 3: Evolução do desenho do vestível. Fonte: Arquivo pessoal, 2019.

4.2. Estrutura Considerada o esqueleto do vestível, era de suma importância que a estrutura fosse perfeitamente executada por esta sustentar e dar a forma concebida no desenho. Feita em ferro fundido com técnicas usadas em figurinos de carnaval, a estrutura garante a estatura que varia entre dois metros e meio a três metros dependendo da altura do ator que o veste. Isso por que fica assentada nos ombros do ator e sustentada por um velcro que deve ser ajustado com firmeza nas costelas do ator para que a estrutura não tombe para frente.

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A exigência na produção deste vestível era o de causar o estranhamento presente na estética do grotesco e deste modo, adiciono o fator de alta estatura ao trabalho para que fosse assimilado como algo monstruoso e despertasse o estranhamento e o valor do horror ao espectador. Em contrapartida, o imagino como uma mistura de domínios entre o monstruoso e a natureza humana e para chegar ao resultado satisfatório, adiciono uma espécie de cabeça e movimento respiratório, ao qual irei falar posteriormente neste trabalho. A estrutura não só sustenta toda a parte exterior do figurino, como também os tentáculos móveis e estáticos. Inicialmente acoplados ao tecido do vestível, os tentáculos não tinham firmeza de movimento e para tal, precisaram ser realocados a estrutura para que não despencassem e tivessem vitalidade na movimentação.

Figuras 4 e 5: Desenho e estrutura posicionada no manequim Fonte: Arquivo pessoal, 2019.

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4.3

Mecanismos e manipulação

Assim como o esqueleto de sustentação, também se faz presente um esqueleto para os tentáculos que, pela necessidade de possuir movimento, era imprescindível sua maleabilidade e articulação. Para chegar ao resultado esperado do movimento de abertura e fechamento característico do abraço- movimento definido para o vestívelperformance- foi feita uma série de testes de materiais e mecanismos. Chego assim a duas estruturas diferentes: os seis tentáculos móveis são compostos de flutuador de piscina e os estáticos compostos de conduíte e acrylon para dar volume e valor estético à obra. O flutuador de piscina foi o material ideal para uso pelos pouco peso e fácil maleabilidade. A partir da articulação e sustentação dos tentáculos definidas, a manipulação precisou de estudo de repertório de movimentos por meio de ensaios. Quatro tentáculos fazem o movimento do abraço e estão posicionados a frente do ator que o manipula pegando na base dos flutuadores de piscina que compõem os tentáculos, os direcionando em sentidos contrários exteriores para a abertura do abraço e em um mesmo sentido interior para o fechamento do movimento. Vale ressaltar o aspecto vital do vestível traduzido no movimento de respiração. Para torná-lo criatura e organismo vivo, o repertório de contração e relaxamento do tecido foi fundamental e consiste em um movimento produzido pelo ator que agarrando o tecido, o puxa para si e o empurra para fora de maneira sutil. Este simples movimento trouxe a total potência do caráter grotesco na mistura dos domínios de monstruosidade e humanidade.

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Figura 6: desenho esquemático de teste do tentáculo Fonte: Arquivo pessoal, 2019.

Figuras 7 e 8: Manipulação do esqueleto do vestível Fonte: Arquivo pessoal.

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5.

A PERFORMANCE

Levando em consideração a necessidade de apresentar o vestívelperformance em atividade utilizando o tempo de apresentação de quinze minutos na banca, estabeleci o tempo da performance em aproximadamente três minutos para que houvesse tempo hábil para a explicação da conceituação do trabalho. Além disso, existe a questão da resistência física do ator manipulador. Por se tratar de uma peça pesando aproximadamente quinze quilos, o tempo de performance é reduzido para que o corpo não seja prejudicado em uma ação de grande extensão. Desta forma, o movimento do abraço é reproduzido em um ritmo lento o suficiente para envolver o espectador e rápido o suficiente para haver a possibilidade de o vestível entregar mais abraços. A performance consiste no despertar da criatura, que acompanhando a música “Stonemilker” (BJORK, 2015) inicia os movimentos de respiração lenta e gradual até a abertura dos dois tentáculos inferiores, convidando o espectador para a interação. Os tentáculos inferiores se fecham e em seguida, os superiores se abrem para fazer o movimento do abraço que dura em torno de vinte segundos com o espectador inserido na atmosfera sensorial. Esse é o momento no qual a Crueldade de Artaud (1938) se faz presente, ao acessar toda a sensibilidade do espectador que abraça texturas diferentes, se fecha na afetividade íntima do abraço, se permite atravessar pela abertura a experiência de envolvimento com estímulos sonoros presente em “Stonemilker” (BJORK, 2015), estímulos olfativos com o aroma de alfazema presente no vestível e o estímulo visual do grotesco presente na obra. Passado o intervalo do abraço, os tentáculos superiores se abrem lentamente e em seguida, os inferiores. A respiração continua até que o vestível se contrai em movimento decrescente, como adormecendo novamente. A experiência observada no público que interagiu visualmente com a performance foi intensa e de grande carga emocional fazendo parte dos integrantes da plateia que não haviam entrado em contato com a

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pesquisa anteriormente, chegarem a se emocionar demasiadamente. Houve uma grande comoção durante o movimento do abraço até mesmo para o ator que manipulava o vestível e para a pessoa escolhida para interagir com o mesmo. Desta maneira, consigo ver presente o conceito de crueldade de Artaud (1938) perpassando o vestível, atingindo até mesmo pessoas que não tiveram interação direta com a performance.

Figura 9: Apresentação da performance e banca de “Anatomia da Inquietação em Dezembro de 2019 na EBA-UFRJ. Fonte: Arquivo pessoal.

Infelizmente, em consequência da pandemia do novo corona vírus- COVID 19, não foi possível apresentar Anatomia da Inquietação novamente por esta ser uma ação artística que preza pelo contato. Havia o desejo de iniciar performances com transeuntes em centros urbanos, oferecendolhes um momento de cuidado e afeto em meio ao cotidiano acelerado.

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Desta forma, necessitei reinventar a performance em meio digital. Gravada em Agosto de 2020 respeitando as normas de distanciamento social, recriei Anatomia da Inquietação no ambiente caseiro para que nesse momento em que nos encontramos distantes uns dos outros, possamos nos aproximar por meio de um abraço. O afeto do vestível chegou á pessoas que não tiveram a oportunidade de interagir com a performance usando as ferramentas das redes sociais. No mesmo mês, apresento minha pesquisa no 2° seminário de Teatro de Animação do 3° Festival de Teatro de Bonecos de Joinville- ANIMANECO transmitido pela primeira vez de maneira virtual (vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=PR_IBgyojRI&list=PLbbFOM77n5g1Ig zqyp7FnmWNRFOuVgVGu&index=11). Participei como integrante da mesa de pesquisa que abria o festival, composta pelas artistas Nina Vogel e Elisa Rossin falando sobre nossa relação com a pesquisa do Teatro de formas animadas (vídeo disponível em: https://www.youtube.com/watch? v=xTEEdv6osQM&list=PLbbFOM77n5g1Igzqyp7FnmWNRFOuVgVGu&in dex=12).

6. CONCLUSÃO Apresentada em dez de Dezembro de 2019 na Escola de Belas Artes da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Anatomia da Inquietação foi a terceira apresentação da banca de Trabalhos de Conclusão de Curso de Artes Cênicas com habilitação em Indumentária ministrada pelos professores Gilson Moraes Motta, Maria Cristina Volpi e Madson Luís. Fruto de um ano e meio de pesquisa, ouso afirmar que o processo de estudo e produção com Anatomia da Inquietação trouxe luz ao que sempre estive procurando artisticamente. A realização e satisfação que trago com este trabalho é suficientemente grandiosa para pretender seguir no mesmo caminho de pesquisa e produção prática a nível acadêmico. Contando com outros dois desenhos gerados no processo de exercícios de abstração da forma, o objetivo é produzi-los e levar ainda mais dessa vivência artística para o público e, além disso, propor diálogos sobre o teatro de animação.

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Anatomia da Inquietação vem como forma de aproximar os seres humanos, de propor diálogos emocionais em cada espectador que se permite ser atravessado pelo afeto. Porém, sobretudo, Anatomia da Inquietação também veio como forma de explorar o meu interior e encontrar o que de fato faz sentido para o eu artístico habitável em mim. Há muito procurava uma identidade e partindo deste trabalho, percebo uma mudança crescente em meu fazer artístico.

7. REFERÊNCIAS ARTAUD, A. O Teatro e seu Duplo. São Paulo: Martins Fontes, 1938. 173 p. Disponível em: <http://escolanomade.org/wp-content/downloads/artaudo-teatro-e-seu-duplo.pdf>. BARBARA, R. O Corpo sem Órgãos: Francis Bacon e o Butoh: Propondo uma estética cruel. Arte da Cena, Goiás, ano 2017, v. 3, n. 2, Dezembro 2017. Disponível em: <https://www.revistas.ufg.br/artce/article/view/48856>. BARRERAS DEL RIO, Petras et al. Ana Mendieta: A retrospective. Nova Iorque: The New Museum of Contemporary Art, 1987. 87 p. ISBN 0-915557-61-4. E-book. BJÖRK. Björk Digital. São Paulo: Museu da Imagem e do Som, 2019. Catálogo da exposição, 18 Jun.-18 ag. 2019, MIS. ERIK SCHOLLHAMMER, K. A crueldade do real. XI Congresso Internacional da ABRALIC: Tessituras, Interações e Convergências, São Paulo, 2008. FERINO- PAGDEN, Sylvia et al. Arcimboldo. Itália: Skira, 2017.176 p. FRANKLIN, O. Magnetic dresses and laser-cut feathers: the designer behind Beyoncé and Björk: The Amsterdam-based designer creates clothes that are as innovative as they are beautiful. Wired Magazine, [s. l.], 9 set. 2016. Disponível em: <https://www.wired.co.uk/article/fashion-designer-iris-van-herpen>.

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\sobre_carregar pai_sagens: relato de uma criação compositiva em isolamento Bianca Alves Marquetto Santos¹, 24 anos, Barretos (SP). É atriz e pesquisadora de dança-teatro, com enfoque nos métodos de Pina Bausch. Em 2021, ingressou na Coringas Comunicação com Arte, atuando como atriz, produtora e recreadora. biancamarquetto3@gmail.com

Milena Plahtyn Fernandes², 22 anos, Curitiba (PR). Atriz e pesquisadora dedicada a métodos de composição, cartografia e ciências cognitivas. Cofundadora do Teatro Secalhar, grupo curitibano que investiga as intersecções possíveis entre Modo Operativo AND e criação artística. mplahtyn@gmail.com

Vinícius Augusto Précoma³, 22 anos, Curitiba (PR). É ator e pesquisador com ênfase em cenografia e figurino. Atualmente, cursa a Escola de Arte Dramática da Universidade de São Paulo (EAD/USP). É membro fundador do Grupo de Pesquisa em Teatro para Infância (GPeTI), coletivo curitibano que investiga o teatro contemporâneo para crianças. vi.precoma@yahoo.com.br

Vinicius Medeiros dos Santos⁴, 29 anos, Curitiba (PR). Ator, dramaturgo e diretor, desenvolve pesquisa sobre os usos do Modo Operativo AND em processos de criação teatral. É mestrando em teatro na Universidade do Estado de Santa Catarina (Udesc), cofundador do grupo Teatro Secalhar e integrante do Grupo de Pesquisa em Teatro para a Infância (GPeTI). essenaoeoemaildovinicius@gmail.com

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1. Acadêmica do quarto ano do curso de bacharelado em artes cênicas da Universidade Estadual do Paraná.

2. Acadêmica do quarto ano do curso de bacharelado em artes cênicas da Universidade Estadual do Paraná.

3. Acadêmico do quarto ano do curso de bacharelado em artes cênicas da Universidade Estadual do Paraná. Trabalho orientado pelo Prof. Dr. Francisco Gaspar Neto.

4. Mestrando em teatro – PPGT-Udesc (Programa de Pós-Graduação em Teatro – Universidade do Estado de Santa Catarina). Vinicius Medeiros foi convidado pelo grupo para integrar o projeto.


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ficha técnica Universidade Universidade Estadual do Paraná (Unespar) Tipo do curso Graduação Nome do curso Bacharelado em artes cênicas Período do curso 2017-2021 Estado Paraná Título do trabalho Sobre_carregar Pai_sagens: relato de uma criação compositiva em isolamento Nome dos autores Bianca Alves Marquetto Santos, Milena Plahtyn Fernandes, Vinícius Augusto Précoma e Vinicius Medeiros dos Santos Nome do orientador Francisco Gaspar Neto Número de páginas 16

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RESUMO Este texto pretende relatar o percurso criativo remoto de Sobre_carregar Pai_sagens, trabalho de conclusão do curso de Bacharelado em Artes Cênicas da Universidade Estadual do Paraná, Campus de Curitiba II. A pesquisa para essa montagem parte da invenção de procedimentos criativos partindo das técnicas de composição Modo Operativo AND, de Fernanda Eugenio e João Fiadeiro, e da Arrumação, de Francisco Gaspar Neto. A dramaturgia “Bon, Saint-Cloud”, da autora francesa Noëlle Renaude, foi tomada como condição para composição. Trabalhamos, então, na potência desse encontro propondo uma ética compositiva à distância. Palavras-chave: Dramaturgia; Processo Criativo; Composição.

ABSTRACT The text aims to report the remote creative path of Sobre_Carregar Pai_sagens, the final project of the Bachelor’s degree in Performing Arts of State University of Paraná, Campus of Curitiba II. The research for this montage starts with the invention of creative procedures based on the composition techniques Modus Operandi AND, by Fernanda Eugenio and João Fiadeiro, and Arrumação, by Francisco Gaspar Neto. The dramaturgy “Bon, Saint-Cloud, by the french author Noëlle Renaude, was chosen as a condition for the composition. We have worked, therefore, on the potency of this encounter by proposing a distance-based compositional ethics. Key-words: Dramaturgy; Creative Process; Composition.

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RESUMEN Este texto busca relatar el trayecto de creación remota de Sobre_carregar Pai_sagens, trabajo de finalización de curso del Bachillerato en Artes Escénicas de la Universidad Estadual de Paraná, Campus Curitiba II. La investigación en esta obra piensa y utiliza procedimientos creativos que son parte de las técnicas de composición Modus Operandi AND, de Fernanda Eugenio y João Fiadeiro, y Arrumação de Francisco Gaspar Neto. La dramaturgia “Bon, Saint-Cloud”, de la escritora francesa Noëlle Renaude, fue elegida como condición para la composición. Trabajamos así junto a la potencia de este encuentro, proponiendo una ética compositiva a distancia. Palabras clave: Dramaturgia; Proceso de creación; Composición

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1. INTRODUÇÃO Esta pesquisa, ainda em processo, é fruto de uma proposta de montagem prática de conclusão do curso do Bacharelado em Artes Cênicas da Universidade Estadual do Paraná, Campus de Curitiba II. Ademais, conta com a orientação do Prof. Dr. Francisco Gaspar Neto. O trabalho visa a experimentação e a invenção de procedimentos criativos a partir de técnicas que se encontram no campo ético-estético da composição que, nas palavras das autoras Jussara Xavier e Sandra Meyer (2016, p. 261), consiste em “‘pôr-se com’, ou seja, posicionar-se com o outro: com+posição”. O texto “Bon, Saint-Cloud”, da dramaturga francesa Noëlle Renaude, foi escolhido como ponto de partida para as nossas investigações. A motivação para essa escolha veio da vontade latente de investigar as relações interpessoais - atravessamento esse que percorre todos os níveis da criação - e também pelo grau de abertura na conexão com leitories que a dramaturgia carrega, permitindo o questionamento das convenções teatrais em prol de um posicionamento mais compositivo. Assim, a partir do interesse nas relações, pudemos entrar em sintonia com a dramaturgia de Renaude, pretendendo permanecer fiéis ao estilo da autora e ao nosso processo criativo, trabalhando, ao mesmo tempo, na potência desse encontro através das técnicas de Modo Operativo AND (MO_AND) e Arrumação. Expressivas alterações aconteceram em nosso processo criativo em Março de 2020. A pandemia do novo coronavírus se instaurou e, com ela, a necessidade de trabalhar de maneira remota. Tivemos que incorporar as ferramentas tecnológicas que estavam à nossa disposição no momento, pensando em não interromper o processo iniciado em Janeiro do mesmo ano. Tendo como norte os parâmetros éticos do MO_AND, que descreveremos adiante, tentamos operar de modo a não tentar “imitar” ou “reproduzir” as atividades presenciais no âmbito virtual. Reparando as novas condições, buscamos uma transição (e não uma transposição) justa sem abrir mão por completo do que foi proposto antes da pandemia.

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5. Soldera propõe, a partir de exercícios baseados na noção de intermedialidade, “estruturas de ‘trabalhos’” onde o espaço de ensaio é dividido em três áreas (atuação, expectação e encenação e técnica), buscando assim uma maior fluência entre a funções da criação e visando compor cenas intermediais, além de refletir também sobre os procedimentos de planejamento dos ensaios.

A partir das intenções apresentadas anteriormente e visando uma criação desierarquizada, tomamos o princípio de funções flutuantes, de Natália Soldera (2015), como referência para a organização do grupo nesse processo. Sem a intenção de levar a estrutura de trabalho proposta por Soldera5 (2015) para os nossos ensaios de maneira integral, entendemos que o trânsito entre as funções é de extrema importância para um processo criativo ancorado na noção de composição, visto que ela desencadeia um estado de atenção mais afinado e exige a abertura de todas as pessoas envolvidas para a “proposição e transformação de ideias” (SOLDERA, 2015, p.44), fato que contribui para a desestabilização de projeções individualizadas. Também tomamos por inspiração o que Antonio Araújo denomina como hierarquias flutuantes no processo colaborativo, ou seja, uma dinâmica de criação que ora está mais debruçada sobre um “determinado polo de criação (dramaturgia, encenação, atuação etc.) para então, no momento seguinte, mover-se rumo a outro vértice” (ARAÚJO, 2018, p. 14). Ainda que a discussão acerca das funções não seja o centro deste escrito ou desta pesquisa, constituindo tão somente uma provocação em nosso processo, é importante pontuar brevemente aqui que trabalhamos a partir da perspectiva de estarmos em função da matéria-texto e das imagens criadas coletivamente e não nas funções que havíamos determinado previamente. Isso é um tensionamento sempre presente nesse trabalho.

2.

MODO OPERATIVO AND E ARRUMAÇÃO

O MO_AND é uma técnica de composição derivada dos estudos etnográficos da antropóloga e performer Fernanda Eugenio e do método de Composição em Tempo Real do bailarino português João Fiadeiro. Sem intenções voltadas unicamente para o campo artístico, o MO_AND é, nas palavras de Eugenio e Fiadeiro (2013, p. 222) “um sistema de ferramentas-conceito e conceitos-ferramenta de aplicabilidade transversal à arte, à ciência e ao quotidiano para a

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tomada de decisão, a gestão sustentável de relações e a criação de artefactos”. Para tanto, as perguntas-proposições “como viver juntes?” e “como não ter uma ideia?” são sempre refeitas sem a pretensão de serem respondidas irrevogavelmente, mas pensadas em ato. A sua prática em laboratório é caracterizada por jogos que criam suas regras no próprio fazer, inventando, a cada vez, um modus operandi que tenta sustentar o plano comum com atitudes abertas e explícitas, afastandose das repetidas e consagradas cisões corpo e mente, sujeito e objeto e do determinismo de pensamentos e modos de existência que não permitem o desdobramento de outras potências além das previamente deliberadas. Para um jogo de MO_AND efetivamente começar, Eugenio e Fiadeiro (2013) reforçam a necessidade de encontrar um plano comum. No âmbito laboratorial, a autora e o autor distinguem os eventos entre Primeira, Segunda e Terceira Posições a fim de reparar atentamente a emergência do comum. Essa Primeira Posição inaugura a com-posição colectiva, por meio do desdobrar de uma ‘regulação imanente’ e comum. Como em qualquer processo de improvisação, uma vez instalada a Primeira Posição, na vida ou no estúdio, ninguém controla de antemão o que cada “jogador/agente” fará, nem o que será feito do que cada um faz. [...] cada posição, nesse caso, é tomada em relação com as “propriedadespossibilidades” da posição precedente [...]. (EUGENIO; FIADEIRO, 2013, p.226) A Segunda Posição afirma algumas propriedades-possibilidades da Primeira, estabelecendo uma primeira relação que aponta caminhos possíveis para serem seguidos. A Terceira Posição, por sua vez, consolida a entrada em um plano comum com a criação de relações entre as relações anteriormente estabelecidas entre a Primeira e Segunda.

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6. A Arrumação com um texto dramatúrgico já foi experimentada previamente em 2017, com o grupo de pesquisa “Arrumação: Devir Consciência Coletivo na Criação Cênica”, orientado pelo Prof. Dr. Francisco Gaspar Neto, utilizando como ponto de partida a dramaturgia “Bertha manda lembranças” de Tennessee Williams. Criou-se, então, uma dramaturgia para estudar a dramaturgia de Williams.

A Arrumação (variação do MO_AND), de Francisco Gaspar Neto (2019, p. 20), expressa-se no exercício de reorganizar de modo sustentável um espaço-território singular e solitário que “tende a se ampliar e constituir fronteiras com as demais composições no ambiente”. Da solidão ao coletivo, é suscitada a questão “é possível fazer de outro modo?”. Um dos entendimentos possíveis do termo Arrumação, proveniente dos sistemas de navegação, é rumar sendo orientades pelos sinais marítimos. Nesse sentido, há o trabalho de arrumar a relação entre a subjetividade e o ambiente para encontrar outros meios de reexistir. Nas palavras do próprio pesquisador, Arrumação é uma prática coletiva de ação nos espaços, na lida com materiais diversos, que articula tanto o conhecimento do espaço e dos objetos quanto o conhecimento de si; o que modula esse encontro entre o espaço e a subjetividade é a ideia de arrumar lugar para novos modos de existência e de relação, orientados por sinais relativos e heterogêneos. (GASPAR NETO, 2019, p. 20). Enxergamos a utilização dessa técnica de composição não apenas no trabalho de criação do espetáculo, mas no próprio entrelaçamento entre o acervo de materiais e pesquisas individuais de cada integrante no plano comum. Entre os sinais heterogêneos que a própria obra aponta, vamos modulando aquilo que coletamos ao longo das nossas trajetórias dentro da faculdade para, no timing propício, arrumar um lugar para nós mesmes. Arrumação e MO_AND são técnicas aliadas ao nosso processo criativo, pelo plano de abertura que sustentam; o mesmo plano para a participação de leitories/espectadories que identificamos no texto de Renaude. Na Arrumação com a dramaturgia citada6, experimentamos procedimentos em direção a uma obra que tenha abertura e força para que seja um convite à criação conjunta.

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3. PALESTRAS Em nosso primeiro encontro como grupo, em Janeiro de 2020, começamos a encontrar pistas de como proceder com a matéria-texto. Como primeiro impulso, Vinicius Medeiros propôs que cada integrante criasse uma palestra individual a partir da dramaturgia “Bon, Saint-Cloud”. Buscando entender as aproximações que podiam ser criadas, cada ume articulou aspectos em potência no texto a sua maneira para apresentar ao coletivo. À primeira vista, as palestras pareciam extrapolar as doses de individualidade, com temas e modos de apresentar que traziam uma certa estranheza em relação ao texto. Ao entrar no processo remoto, decidimos retomá-las paralelamente aos outros procedimentos que estávamos testando. Aos poucos, a estranheza foi ganhando o seu lugar justo dentro do plano comum. Retroativamente7, compreendemos que essas palestras foram de suma importância para lançar novos feixes de luz sobre a escrita de Renaude, um modo de acessar o entre do nosso encontro com a matéria.

4.

VÍDEOS: CRAFT, FRASE-SÍNTESE E FRASE-FORÇA

Ao lado das palestras, ainda sem saber como as coisas se encontrariam, Bianca propôs uma Primeira Posição que inaugurou efetivamente os procedimentos que usamos até as presentes investigações. Iniciouse, com os desdobramentos posteriores, um encontro pelo meio, uma modulação recíproca e constante diante dessa jornada. Ancorades à posição de Bianca, realizamos coletivamente o primeiro craft. Partindo da noção de “fazer de modo artesanal”, o craft é - dentro das práticas do MO_AND - uma tentativa de abrir um acontecimento e mapear verbalmente suas propriedades-possibilidades, pistas óbvias e concretas para lidar com aquilo que se apresenta. Indissociável da percepção de quem vê, o craft não deixa de ser um “mapear do próprio mapeamento”. Logo, criamos uma lista que apontava formas, volumes, linhas, cores, movimentos e outros pontos de atenção presentes no que nos foi ofertado.

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7. De acordo com João Fiadeiro (2018, p.17), o princípio de retroatividade se manifesta, dentro de uma composição, quando os sinais emitidos por um primeiro interveniente são, posteriormente, atualizados pelo próximo interveniente. Assim, cada ação reescreve a anterior e justifica a sua existência retroativamente.


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A partir dessa listagem, Milena e Vinícius Précoma enviaram a Vinicius Medeiros frases-síntese, como pequenas impressões acerca do acontecimento. Vinicius Medeiros, em uma posição de dramaturgistaprovocador, devolveu para Bianca uma articulação dessas impressões em forma de provocação para a criação do próximo vídeo. Cabe ressaltar que Milena e Vinícius Précoma nunca souberam o que continha nessas frases, assim como Bianca nunca soube o que Milena e Vinícius Précoma enviaram a Vinicius Medeiros. Esse ciclo foi repetido por mais cinco encontros, sempre no caminho vídeo - craft - pequenas impressões provocações - vídeo. Nesses vídeos, Bianca desvendou partes de sua casa conosco, trazendo pistas que nos ajudaram a enxergar aspectos cotidianos, fortemente ligados à matéria-texto de Renaude, atravessados por um campo simbólico e misterioso. A linha de tensão entre humano/cotidiano e simbólico/misterioso continua a nos acompanhar.

Figura 01: Frames retirados da série de vídeos produzidos por Bianca Marquetto. Fonte: Acervo de imagens do grupo.

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Após a sexta rodada desse jogo, percebemos que a matéria começou a se desprender da lógica compositiva vigente e passou a estabelecer narrativas demasiadamente personificadas e “humanizadas”. Com controle dos riscos, optamos por balançar suficientemente a estrutura para deixar o mistério entrar. Assim, Milena e Vinícius Précoma realizaram um trabalho de circunscrição dos seis vídeos apresentados por Bianca para a elaboração de uma Frase-Força, exercício proposto pelo MO_AND: A chegada à Circunscrição - sob a forma de uma Frase-Força - corresponde ao esforço por transpor suficientemente, para uma só frase, apenas a dimensão operacional das quantidades mapeadas, simultaneamente dizendo e desdizendo a ImagemSituação: explicitando a vibração afectiva do Isso que (se) passa entre as forças cruzadas em cooperacionalidade (nunca só elas, mas com elas e através delas) e, ao mesmo tempo, preservando um campo de relatividade não-prescritiva em termos de como ele pode(ria) (re)tomar corpo de acontecimento. (EUGENIO, 2019, p.32). Dessa confluência, a Frase-Força obtida foi “paissagens caseiras de apoios entre duros planos-linhas (áudio em off: exo-inter-fluiências) em acréscimas trajetórias lapso-vaporais”. Vinicius Medeiros, em um trabalho de dramaturgismo, recebeu-a como critério para a reedição dos vídeos. Com o re-arranjo apresentado ao grupo, voltamos nossos olhos com mais afinco para a relação entre “mistério” e “humano”, apontada ao longo das orientações por Francisco. Ademais, refletimos sobre como dar relevo para coisas que, inicialmente, eram acaso e - com a afinação da atenção - passaram a ganhar outra dimensão no processo. Uma reestruturação da matéria por dentro dela mesma. Após esses procedimentos, Francisco nos provocou a deslocar as percepções, levantando a problemática de como poderíamos, em contextos pandêmicos, equivocar a comunicação sistemática estabelecida

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via internet, alterando essas formas para além das transmissões de dados. Atrelado a isso, como - retroativamente - podemos produzir efeito nos vídeos de Bianca? Com esse desafio em jogo, as perguntas “como produzir efeito?” e “como ferrar a comunicação?” ecoaram insistentemente ao longo dos dias.

5. PAI_SAGENS Um novo jogo, que denominamos como a etapa “Pai_sagens”, se iniciou com maiores doses de mistério. Como resposta à proposição de equivocar a comunicação via internet, nos colocamos a pensar quais outras formas de comunicação poderiam aparecer como matéria. Decidimos trocar, entre nós, listas com endereços residenciais, números de telefone, redes sociais e todos os outros modos possíveis de contato (não descartamos nem mesmo a telepatia). As novas regras eram jogar com o material produzido até o momento e os canais de comunicação, tendo em mente as perguntas anteriormente mencionadas: “como produzir efeito?” e “como ferrar a comunicação?”. Ao longo desse período, suspendemos os encontros que aconteciam semanalmente na plataforma Zoom. Sabíamos que algum sinal seria emitido, mas sem a certeza dos “comos”. Nessa etapa, diversos e-mails, textos, fotografias, vídeos e cartas foram trocados entre nós, mas nem tudo foi exposto amplamente ao coletivo. Vinícius Précoma enviou à casa de Milena, por exemplo, um envelope com fotografias impressas e decalques em acetato, registros feitos a partir dos vídeos criados anteriormente por Bianca, que só foi mostrado ao grupo algumas semanas depois, já incluído em outra composição.

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8. De acordo com Francisco Gaspar Neto (2016, p. 41), “a diferença entre fractais e fragmentos é que os primeiros são os elementos do feixe de relações e que a atenção habitual deixa ao largo do enquadramento. Os fragmentos, por sua vez, são as partes que constituem o evento já tomado como uma entidade fechada; pedaços de coisas reconhecidas que em si são outras coisas reconhecidas.”

Figura 02: Frame do vídeo criado por Milena Plahtyn com os decalques em acetato. Fonte: Acervo de imagens do grupo.

Aqui, é possível identificar uma aproximação mais intensa com a Arrumação. Em uma criação solitária, fomos articulando o coletivo dentro de composições suficientemente abertas para permitir a emergência de novos rumos. Essa relação entre os elementos angariados ao longo dos exercícios de MO_AND e a prática de Arrumação é estudada por Francisco Gaspar Neto: “O universo disparatado que no MO AND funciona como um acervo de materiais que possivelmente entrarão em jogo, torna-se na Arrumação parte integrante e ativa da composição.” (GASPAR NETO, 2016, p. 209). Após o vídeo enviado por Milena, Vinícius Précoma enviou - através de um email secreto - uma imagem editada que continha frames dos vídeos de Bianca com pingos de água que apareceram nas composições de Milena. Torna-se visível, neste exemplo, os caminhos de diferenciação e modulação dos fractais8 que fomos descobrindo e investigando nas nossas criações.

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Figura 03: Imagem editada por Vinícius Précoma. Fonte: Acervo de imagens do grupo.

Começamos a observar, nessas “pai_sagens”, a acentuação do gesto criador com ações que demonstravam um “esgarçar” dobrado pelo próprio processo. Tal constatação nos levou a perceber mais evidentemente que as implicações do que chamamos acima de gesto criador é o conceito de ostensão, descrito por Patrice Pavis como o ato de mostrar “o objeto como reconstituído ou desmontável: por trás do objeto não mais aparece um aspecto secreto, mas a figura do fabricante e o comentário daquele que mostra ou põe esta realidade à distância.” (PAVIS, 2017, p. 270). A título de exemplo, podemos utilizar a seguinte imagem, enviada por Vinícius Précoma, que ressalta o uso da plataforma de edição.

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Figura 04: Imagem enviada por Vinícius Précoma. Fonte: Acervo de imagens do grupo.

6.

SOBRE_CARREGAR PAI_SAGENS

Com todas as “pai_sagens” coletadas, fez-se necessária uma revisão cíclica do processo. No trabalho de “adiar o fim”, nos questionamos a respeito das costuras dramatúrgicas possíveis com esses materiais, entendendo que continuar a criar essas imagens dispersas e mantêlas arquivadas em um “museu” seria, no fim das contas, a morte do movimento encadeado até então. Adiar o fim trata-se de: um trabalho com o ilimitado, com o alargar em espiral dos “limites-tensão” da direção comum, realizando o seu prolongamento na medida da sua “meta-estabilidade”. É, portanto, um trabalho com o “finito”: dentro do ciclo de vida ou do espaço-tempo de autonomia da situação. (EUGENIO; FIADEIRO, 2013, p. 226). Durante uma chamada de vídeo, no dia 18 de Junho de 2020, outro jogo se iniciou. Vinicius Medeiros acessou a plataforma com outros

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dois dispositivos, mostrando o ambiente em que ele se encontrava simultaneamente por diversos ângulos. Compusemos com essas mudanças de ângulos, potência que conseguimos conectar com os vídeos de Bianca e as impressões que foram escritas anteriormente, estabelecendo um jogo de vozes com leituras de textos produzidos durante a etapa “pai_sagens”. Essa foi a primeira vez que testamos a composição através de chamadas ao vivo.

Figura 05: Frame da gravação do encontro do dia 18 de Junho de 2020. Fonte: Acervo de imagens do grupo.

Marcamos outro encontro via Zoom para continuarmos a investigação das potências que surgiram no primeiro vídeo-jogo e, ao mesmo tempo, compor com fractais que já estávamos explorando ao longo do processo. Para isso, decidimos usar um dispositivo de pequenos comandos para serem realizados ao longo do vídeo-jogo. Vinicius Medeiros elaborou o comando geral “Revelar a(s) casa(s) dentro da(s) casa(s).” e o enviou ao grupo antes do encontro. Durante a chamada, ele enviou uma tabela criada no Google Presentation - em um modelo de “batalha naval” - que tinha comandos individuais para serem solicitados em tempo real no jogo, tais como “brincar com os pontos de luz”, “escreva”, “se esconda”, etc. Nesta experiência, os reflexos (presentes desde a série de vídeos

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de Bianca) se desdobraram ainda mais: reflexos das paredes, dos espelhos, dos próprios celulares, das telas dos computadores, das janelas. Sonoramente, o eco das vozes fazia-se, também, reflexo. Uma repetição insistente de imagens e sons.

Figura 06: Frame do vídeo-jogo realizado. Fonte: Acervo de imagens do grupo.

Esses experimentos em vídeo, além de oferecerem outras vias para a experimentação das formas, foram transformados em outra FraseForça: “{sob_re [carregar (espaiçagens) ] }”, organizada graficamente com espaçamentos crescentes entre os caracteres e sucessivas repetições da frase9. A partir dela, entramos em contato com outros experimentos que deram início à fase atual de investigação.

7. CONCLUSÃO O trabalho se situa, já de saída, no campo da experimentação, propondo a invenção de técnicas de criação em teatro a partir de ferramentas que não foram projetadas diretamente para a prática teatral. Além disso, a

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9. A Frase-Força em sua formatação original se encontra nos anexos.


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situação da pandemia, ao “transferir” a sala de ensaio presencial para plataformas online, acentuou o caráter experimental do processo, forçando o grupo a se aprofundar ainda mais no próprio fazer e a produzir estratégias novas (por exemplo, a troca de e-mails, os jogos online, etc.) O Modo Operativo AND e a Arrumação se mostraram estratégias e ferramentas de composição - ou posição-com - capazes de dar corpo a uma criação teatral em grupo feita em isolamento e, principalmente, enquanto modos de aproximação de uma matéria já existente previamente, que é, neste caso, a dramaturgia de Noëlle Renaude. Na relação com o texto, percebemos uma dinâmica de aproximações graduais que não passam por uma tentativa de encenação direta dele, mas pelo tatear de sua tessitura através de experimentações que partem dele sem se comprometer em executá-lo ipsis litteris. Isso tem produzido até o momento uma dramaturgia híbrida, que conjuga relato de processo e texto original. A dinâmica das trocas de frases e impressões, bem como o enfoque na contínua produção de novos materiais em afinamento com uma ética compositiva, deu ao grupo, pouco a pouco, um plano comum sobre o qual traçar a direção da obra, que será apresentada presencialmente em 2021. Sendo assim, o próprio trajeto foi colocando a nós a necessidade da manutenção de um campo misterioso e fazendo desse campo uma poética, estabelecendo um movimento criativo que buscamos sustentar e alimentar.

REFERÊNCIAS ARAÚJO, Antônio. Aproximações ao processo colaborativo. In: Teatro da Vertigem. Organização Silvia Fernandes. São Paulo: Cobogó. 2018. EUGENIO, Fernanda; FIADEIRO, João. Jogo das Perguntas: o Modo Operativo AND e o viver juntos sem ideias. Fractal Revista de Psicologia, v.25, n.2, p. 221-246, 2013.

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\sobre_carregar pai_sagens: relato de uma criação compositiva em isolamento

EUGENIO, Fernanda. Caixa-livro AND. Rio de Janeiro: Fada inflada, 2019. FIADEIRO, João. Composição em Tempo Real: Anatomia de Uma Decisão. Lisboa: Ghost, 2017. GASPAR NETO, Francisco. Modo Operativo AND (MO AND): o incomum em comum. 2016. 206f. Tese (Doutorado em Teatro) - Centro de Artes, Universidade Estadual de Florianópolis, Florianópolis. GASPAR NETO, Francisco. Devir Consciência Coletivo na criação dramatúrgica de Berta dos Trópicos. In: SIMPÓSIO DE FILOSOFIA DO CORPO E MOVIMENTO, I, 2019, Curitiba. Anais… Curitiba: UFPR, 2019. p. 15-32. Disponível em: <https://filosofiadocorpoemovimento.wordpress. com/anais-do-evento/>. Acesso em: 16/09/2020 MEYER, Sandra e XAVIER, Jussara. Com + posições = investigações acerca do ato de compor nas artes. In: XAVIER, Jussara et al (Org.). Tubo de Ensaio: Composição [interseções + intervenções]. Florianópolis: Instituto Meyer Filho, 2016, p. 261-275. PAVIS, Patrice. Dicionário de Teatro. Trad. J. Guinsburg e Maria Lúcia Pereira. São Paulo: Perspectiva, 2017. SOLDERA, N. P. O processo de composição da cena a partir da noção de intermedialidade.189 p. Dissertação (Mestrado em Artes Cênicas) - Instituto de Artes, Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre, 2005. Disponível em: <http://hdl.handle.net/10183/122542>. Acesso em: 22/11/2019.

ANEXOS 1.

Frase-força “{sob_re [carregar (espaiçagens) ] }”

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\fim de tempo

Raimundo Kleberson de Oliveira Benicio Kleber Benicio (nome artístico), 27 anos, Juazeiro do Norte (CE). É artista múltiplo – ator, performer, encenador, fotógrafo e pesquisador – licenciado em teatro pela Universidade Regional do Cariri (Urca). Mestre em artes cênicas pela Universidade Federal da Bahia (UFBA), desenvolve pesquisas sobre processos criativos a partir de uma recepção em diferentes perspectivas, tanto de quem executa a ação cênica como de quem a frui. Ex-membro do Grupo Trupe dos Pensantes (2014-2017), é fundador do antigrupo Teatro do Irrupto (2018). kleberbeniciop@gmail.com

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ficha técnica Universidade Universidade Regional do Cariri (Urca) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2014-2019 Estado Ceará Título do trabalho Fim de tempo Nome do autor Raimundo Kleberson de Oliveira Benicio Nome da orientadora Cecília Lauritzen Jácome Campos Número de páginas 12

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Todas as imagens deste texto pertencem ao acervo pessoal do autor. 295


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RESUMO Fim de Tempo é um espetáculo teatral que tem como tema principal a violência à Pessoa idosa com uma abordagem que discute a relação do homem contemporâneo com sua negligência frente ao idoso e o sucateamento do planeta. Conta a história de três personagens: a mãe que é cega, um idoso e um cuidador, estes moram em uma casa de praia e são os últimos sobreviventes de uma epidemia misteriosa. Comem ratos e lixos para sobreviverem. A dramaturgia desta encenação foi fruto do processo de pesquisa do Trabalho de Conclusão de Curso intitulada “Os múltiplos Olhares de Espectador: análises-reconstituições a partir da Trupe dos Pensantes” (2019) defendida no curso de Licenciatura em Teatro da Universidade Regional do Cariri, Crato, Ceará. A poética do absurdo para esse trabalho foi norteadora como suporte poético, devido ao contexto pós-guerra, no qual a humanidade sofreu impactos biológicos, estruturais, psicológicos, época em que residiu a incerteza e o vazio da humanidade. Palavras-chaves: Trupe dos Pensantes, Encenação Contemporânea, Dramaturgia, Fim de Tempo.

ABSTRACT Fim de Tempo is a theatrical show whose main theme is violence against the Elderly with an approach that discusses the relationship of a contemporary man with his negligence towards the elderly and the scrapping of the planet. It tells the story of three characters: a mother who is blind, an elderly man and a caregiver, these live in a beach house and are the last survivors of a mysterious epidemic. They eat rats and rubbish to survive. The dramaturgy of this staging written was the result of the research process of the Course Conclusion Paper entitled “The Multiple Spectator Looks: reconstitutions from the Trupe dos Pensantes”, (2019) from the Theater Degree course at the Universidade Regional do Cariri, Crato, Ceará. The poetics of the absurd for this work is not

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compatible with poetic support, due to the post-war context, without impact caused by biological, statistical, psychological diseases, times when the uncertainty and emptiness of the population resided. Keywords: Trupe dos Pensantes, Contemporary Staging, Dramaturgy, End of Time.

RESUMÉ Fim de Tempo es un espectáculo teatral cuyo tema principal es la violencia contra las personas mayores con un enfoque que discute la relación del hombre contemporáneo con su abandono de las personas mayores y el desguace del planeta. Cuenta la historia de tres personajes: la madre ciega, un anciano y un cuidador, viven en una casa de playa y son los últimos supervivientes de una misteriosa epidemia. Se alimentan de ratas y basura para sobrevivir. La dramaturgia de esta puesta en escena fue el resultado del proceso de investigación del Trabajo de Conclusión del Curso titulado “Las múltiples miradas del espectador: análisisreconstrucciones desde la Troupe de Pensantes” (2019) defendido en el Grado en Teatro de la Universidade Regional do Cariri, Crato, Ceará. La poética del absurdo para esta obra estaba orientando como soporte poético, debido al contexto de posguerra, en el que la humanidad sufrió impactos biológicos, estructurales, psicológicos, una época en la que residía la incertidumbre y el vacío de la humanidad. Palabras clave: Troupe dos Pensantes, Escena contemporánea, Dramaturgia, Fin de los tiempos.

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Personagens: Idoso Cuidador Mamãe Uma casa de praia

CENA 01 – ESPERANDO DEUS Idoso – Então o que vamos fazer? Cuidador – E existe algo que possamos fazer? Idoso – Vamos esperar e ver o que ele diz. Cuidador – Quem? Idoso – Deus. (permanece um silêncio) Cuidador – O que ele disse? (permanece um silêncio) Idoso – Perdemos nossos direitos? Cuidador – Existe direito para gente como nós? Idoso – Antigamente existia. Cuidador – Nós não estamos presos? Idoso – Presos? (reflete) Cuidador – você está com frio? Idoso – Desde que nasci. Cuidador – Escuta. Idoso – O que? Cuidador – shhhhhhh! (eles escutam, segurando um na mão do outro). Idoso – Você me assustou Cuidador – Isso é coisa deles! Idoso – Quem? Cuidador – Os ratos... ontem tinha um dentro da sua boca quando dormia. Você não percebeu? Idoso – (silêncio) Eu tenho vontade de dormir pra sempre, vamos dormir?

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(não se movem). Estou com fome. Cuidador – A comida está acabando. Preciso ir lá fora. Idoso – Já falei que lá fora é muito perigoso. Cuidador – Tudo aqui é perigoso, a água, a comida, o ar... Idoso – Será que não estamos contaminados? Cuidador – Talvez, estejamos. Idoso – Você já olhou se as sementes brotaram? Cuidador – Não. Idoso – Talvez seja muito cedo ainda.

CENA 02 – TERNURA (Silêncio)... Idoso só. Idoso - Não posso ir muito longe. Ele não é macio? (segura um rato). É uma espécie muito rara, ainda não sei que sexo ele é. Acho que ele quer passear. Não... lá fora é muito perigoso, já te disse isso. (coloca o rato no chão) senta. (não se mexe), rola... por que você não me obedece? Você antes falava comigo... (delírios, olhar horizonte) uma vez conheci um louco que pensava que o fim do mundo havia chegado. Ele sempre olhava pra cidade e dizia: olha quanta beleza, um minuto depois ele dava um passo pra traz horrorizado, mas tudo ta tão cinza.

CENA 03 – QUEIMAR OS RATOS (Cuidador só). Cuidador – Tudo é morto cheira a nada, só destroços, chega a apodrecer Os demônios se acumulam na bagunça que é difícil até de ver Vem grunhindo, vem correndo Seus peludos rabugentos, passa aqui que eu vou te queimar!

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CENA 04 – PAPA Idoso – Você lembra quando eu te encontrei? Cuidador – Não. Quando foi isso? Idoso – Há muito tempo. Cuidador – Silêncio! Não quero me lembrar daquele maldito em que todo mundo começou a usar máscaras e se confinar em suas casas. Idoso – Você não me abandonará não é? Cuidador – Não sei, já não estamos todos abandonados? Idoso – Talvez alguém nos olhe de algum lugar. Cuidador – Mais cedo ou mais tarde estaremos todos fedendo. Idoso – Você já fede. A casa toda já fede a carniça. Cuidador – O universo todo fede. Idoso – Está na hora da minha live. Quer ver? Cuidador – Não. Idoso – Vá perguntar a mamãe se ela quer. (Cuidador vai até o quarto) Cuidador – A mamãe ta dormindo. Idoso – Acorde ela. Cuidador - Ela disse que não há razão para ver. Ninguém vê. Idoso – Diga a ela que eu dou papa. Cuidador – Ela quer um cookie. Idoso – Ela ganhará um cookie. Traga a mamãe. Mamãe – Está escuro? Idoso – Não. Mamãe - Abra a janela. Idoso - para quê? Mamãe – Quero ouvir o mar. Idoso – Mas você não poderia ouvir. Mamãe – Abra mesmo assim. A cortina ainda ta fechada? Idoso – Não podemos. Mamãe – Ainda está tudo contaminado? Idoso – Sim mamãe, na verdade nós todos já estamos contaminados. Mamãe – Precisamos ficar em casa então, é mais seguro.

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CENA 5 – O ÚLTIMO SUSPIRO DA MAMÃE. Um caixão, um candeeiro, apenas vagam levando o corpo da Mamãe, jogam ela em uma pilha de corpos putrificados. Depois queimam com álcool.

CENA 06 – TORTURA Cuidador- Fogo no bixo!. (Acende o isqueiro) E por quê? Uma tentativa de carbonizar os meus pensamentos deles! Aonde coloquei o outro imundo? (Procura algo nos bolsos. Não encontra) Hum... (maligno) Sei o que você está pensando... Gosto de tudo picadinho, queimado... Nós Chegamos, Dumba!!!... Sorri bixinho, enquanto pode. Alano - Você enlouqueceu filho da puta? (Desesperado) por favor... O que eu te fiz? O que eu cometi para você matar os bixinhos?... Ô Dumbinha! Dumbinha nasceu cego do olho direito, mas ele pulava em cima de mim toda manhã. Cuidador - Sangue escorrendo sobre os cacos na pia. Depois urinei em cima, com a pinça arranquei aquele olho dele... o aroma de suco verde saindo do seu corpo...vou te contar um segredo, eu odeio essas catitas! Aquela ali no canto da parede que já ta comendo há três dias sem parar, vou já tacar ácido nela! Os ratos estão dominando essa casa! Idoso - Silêncio. Ele não responde, mas sei que adora escutar o mar... Dumbinha... (Gritando) ta escutando? (Gritando mais alto) ta escutando? (Sussurrando com um sorriso no rosto) ta escutando? (Chorando muito) Não consigo raciocinar agora, por favor, por que está fazendo isso? Eu te amo... Vamos mudar de assunto... Qual sua hora favorita, Dumbinha? (Puxa um pedaço de osso avança no Cuidador, começa a deslizar pelo rosto dele) Semana passada, domingo, ele foi no quarto da mamãe. Comeu cookie, mastigou cookies... ouviu cada palavra da mamãe. Na sua cabeça, já arquitetava tudo... Cuidador - Existe diferença entre capinar um rato e cortar uma goela humana? Fico me perguntando se martelar a cabeça de um bixo é pior do que a de um humano... Qual o sentimento ao ver o corpo do animal sendo queimado? Será o animal, tão frígido quanto eu? (Silêncio). O que nos

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leva a cometer esses incidentes diários? Penso. O que nos leva a matar? Penso. E penso tanto que quase tenho uma overdose de pensamentos... Respondam, o que vos leva a matar, as formiguinhas? Chacinando, aos poucos, aqueles que nos amam, pegando as palavras que machucam o coração. Não existe inocência. No quarto da mamãe está dormindo o pessimismo... Todos somos assassinos! A diferença é que uns matam com as palavras, outros com o abandono. Uns queimam cabeças, outros queimam corações... e se eu esquecesse tudo e fosse gozar lá fora? Estou ficando demente, a insanidade bate em mim com pequenas doses diárias... passo a substituir a papa por desejos... Idoso - .... Amaldiçoados serão os teus dias... Minhas mãos estão doloridas (Pensa mordendo a língua extremamente nervoso). (Se contorcendo). Você queimou tudo... queimou a vida, queimou os corpos, queimou principalmente a tua cabeça chata. Não sabe o porquê, realmente não sabe. Você está mais cego que eu! Cuidador – eu senti um tesão fazendo o bixo explodir, sua boca sangrando devagar... ele me mordeu antes disso tudo, maldito. (vai até a janela) Eu sou maior que você toda essa poluição que ninguém está nem aí.

CENA 07 – JANELAS Idoso – Como está o tempo? (Cuidador Abre as janelas) Cuidador – O mesmo de sempre. Idoso – Dê uma olhada pela janela. Cuidador – Já olhei. Idoso – Olhe para o mar. Cuidador – É a mesma coisa. (Cuidador se assusta com o que vê) Idoso – O que está vendo? O que está vendo? Cuidador – Nada se mexe. Tudo tá... Idoso – Como tudo tá? Cuidador – Cadavérico. Idoso – Nenhuma gárgula?

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Cuidador – Não, o céu ta mais poluído que ontem. Idoso – E o sol? Cuidador – Azulado. Idoso – E o horizonte? Nada no horizonte? Cuidador – Dane-se o horizonte! Idoso – As ondas, como estão as ondas? Cuidador – Estão cheias de corpos. Idoso – Como ta a cor do céu? Cuidador – Tudo...Cinza... Idoso – Cinza! Ouvi você dizer cinza? Cuidador – o céu está cinza.

CENA 08 – BANHO Apenas a luz do candeeiro ilumina a casa, o Cuidador traz uma bacia com água do mar, limpa o idoso com uma flanela suja. Cuidador – Já faz um tempo que você não fala... (silêncio) Cuidador – Fale! Eu não sei o que está acontecendo com você... Não sei quando está com fome, se está com dor... (silêncio) Cuidador – Foi alguma coisa que fiz? Eu vou fazer papa daqui a pouco... Cuidador – Você deve estar cansado, deve ser isso... Eu também estou. Me sinto velho demais... A terra está acabada ainda que nunca a tenha visto acesa. (silêncio) Cuidador – Já é de noite. Você não vai me perguntar suas bobagens de sempre? Você sempre me pergunta... Cuidador – Sabe do que ela morreu a mamãe? De escuridão. Ela já estava morta a muito tempo e você sabia disso o tempo todo. Aos poucos vamos morrendo mesmo, sentindo um vazio que não tem fim, eu cansei de acordar todo dia me sentindo só, mesmo estando nós dois, é uma falta sem nome. (silêncio) Idoso – Ninguém liga pra isso, vamos sendo lapidados feito pedras, nos fechando, nos individualizando, e o tempo passa, o tempo cura o nada. Podemos ir lá fora?

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CENA 09 – MAR Fora da casa. É noite, sob a luz verde da lua, andam em direção ao mar. O Cuidador coloca a máscara de gás e guia o Idoso, que já não enxerga mais. O Idoso chega finalmente ao mar, e sente a água gelada molhando suas roupas. (O Cuidador reflete e decide tirar a máscara). O vento chega. O gás aos poucos, vai corroendo o corpo dos dois. O Idoso pela última vez olha com Ternura para o Cuidador, ele finalmente sorriu.

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\o homem que era só metade: reflexões sobre os diálogos relacionais na criação teatral em espaços urbanos Raphael Bernardo dos Santos¹ 29 anos, Vitória de Santo Antão (PE). É ator-pesquisador, performer, professor de teatro e mestrando em artes cênicas na Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Criou o Laboratório de Criação Relacional, que vem investigando possibilidades de criação em teatro em diálogo com as ideias da estética relacional desde 2019. raphaelbernardo001@hotmail.com

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1. Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à licenciatura em teatro da Universidade Federal de Pernambuco, em dezembro de 2019. Este trabalho foi orientado pelo Prof. Me. João Denys Araújo Leite.


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ficha técnica Universidade Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2016-2019 Estado Pernambuco Título do trabalho O homem que era só metade: reflexões sobre os diálogos relacionais na criação teatral em espaços urbanos Nome do autor Raphael Bernardo dos Santos Nome do orientador João Denys Araújo Leite Número de páginas 21

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\o homem que era só metade: reflexões sobre os diálogos relacionais na criação teatral em espaços urbanos

RESUMO Este trabalho apresenta reflexões sobre táticas de criação em teatro em espaços urbanos, tomando como princípio o pensamento da Estética Relacional, conceito desenvolvido pelo teórico francês Nicolas Bourriaud, em que se propõe a criação artística calcada na invenção de relações entre sujeitos. Situamos como objeto de estudo as vivências do Laboratório de Criação Relacional em Espaços Urbanos: O homem que era só metade, processo artístico realizado no Recife de agosto a setembro de 2019. Nele, investigamos a interdependência entre o caráter processual e a criação relacional no trabalho do/da ator/atriz, estabelecendo dinâmicas relacionais periódicas em espaços como: as ruas do bairro do Recife, área histórica e turística da cidade; a Rua da Imperatriz, no bairro da Boa Vista, um tradicional centro comercial; o bairro de Roda de Fogo, bairro periférico da capital; e o sistema de transporte público da cidade. Palavras-chave: Teatro relacional. Atuação teatral. Espaços urbanos.

ABSTRACT This study aims to reflect on theatre creation tactics in urban spaces, based on Nicolas Bourriaud Relational Aesthetics thought. The french theorist’s concept suggests artistic creations should be built from the inventions of relationships between subjects. Experiences from the Laboratory of Relational Creation in Urban Spaces were taken as object of study: “O homem que era só metade” (The man who was only half a man), an artistic process carried out in Recife from August to September 2019. The interdependence between the procedural character and the relational creation in the actor/actress’ work was investigated, establishing periodic relational dynamics in spaces such as: the streets of the Recife neighborhood (the historical and tourist part of the ​​ city); Imperatriz Street, in the Boa Vista neighborhood (a traditional commercial area); Roda de Fogo neighborhood (a peripheral neighborhood of Recife); and the city’s public transport system.

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Keywords: Relational theater. Theatrical performance. Urban spaces.

ABSTRACTO Este trabajo presenta reflexiones sobre tácticas de creación en teatro en espacios urbanos, tomando como base el pensamiento de la Estética Relacional, concepto desarrollado por el teórico francés Nicolas Bourriaud, en el que se propone la creación artística basada en la invención de relaciones entre sujetos. Utilizamos como objeto de estudio las experiencias del Laboratorio de Creación Relacional en Espacios Urbanos: “O homem que era só metade” (El hombre que era solo la mitad), proceso artístico realizado en Recife de agosto a septiembre de 2019. En él, investigamos la interdependencia entre el carácter procedimental y la creación relacional en el trabajo del/de la actor/actriz, estableciendo dinámicas relacionales periódicas en espacios como: las calles del barrio de Recife, el casco histórico y turístico de la ciudad; Rua da Imperatriz, en el barrio de Boa Vista, un tradicional centro comercial de la ciudad; el barrio de Roda de Fogo, ubicado en la periferia de la capital; y el sistema de transporte público del Gran Recife. Palabras clave: Teatro relacional. Presentación teatral. Espacios urbanos.

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1.

ESTÉTICA RELACIONAL: PEQUENAS UTOPIAS PARA NOVAS RELAÇÕES

O ponto de partida para a construção deste trabalho é o conceito de uma Estética Relacional, pensamento criado pelo teórico francês Nicolas Bourriaud nos anos de 1990, tendo como princípio o estudo de trabalhos artísticos que proponham a invenção de relações entre sujeitos: “o artista concentra-se cada vez mais nas relações que seu trabalho irá criar em seu público ou na invenção de modelos de sociabilidade” (BOURRIAUD, 2009, p. 40). A ideia de uma Estética Relacional começa a ser gestada a partir dos ensaios escritos por Nicolas Bourriaud em 1997, em que ele reflete sobre o panorama das artes, sobretudo as visuais, na década de 1990. Seu olhar é fruto de seu trabalho como curador, refletindo sobre as novas perspectivas de criação e fornecendo possibilidades de leituras para a arte contemporânea. Naquele momento, havia uma forte resistência à arte puramente de consumo, tão vista no final do século XX, e um movimento de valorização às pautas politizadas das artes (BISHOP, 2004). Bourriaud oferece novas perspectivas de leitura, destacando que a arte construída nos anos de 1990 parece apontar para a esfera das relações humanas e seus contextos sociais. Fugindo de uma perspectiva de construção de arte privada, Bourriaud nos fala sobre a construção de um sentido de comunidade que é reencontrado pelo o contato dos indivíduos com a arte. Como nos aponta Claire Bishop, em vez de um trabalho de arte discreto, portátil e autônomo que transcenda seu contexto, a arte relacional fica inteiramente sujeita às contingências do ambiente e do público. Além disso, esse público é visto como uma comunidade: em vez de uma relação individual entre trabalho de arte e observador, a arte relacional estabelece situações em que se dirige aos observadores não apenas como uma entidade social coletiva, mas de modo que a eles estivessem sendo

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dados os meios para criar uma comunidade, por mais temporário ou utópico que isso venha a ser (BISHOP, 2004, p.2). Para Bourriaud, esse olhar sobre o fazer artístico é fruto da sociedade naquele momento, com suas relações fluidas, construídas pelas redes virtuais. A arte relacional respondia a isso propondo encontros físicos, em que a obra de arte parecia exigir a presença dos indivíduos para a sua concretização. Os artistas buscam estabelecer nesses encontros possibilidades de olhares, para habitar o mundo: “as obras já não perseguem a meta de formar realidades imaginárias e utópicas, mas procuram construir modos de existência ou modelos de ação dentro da realidade existente, qualquer que seja a escala escolhida pelo artista”. (BOURRIAUD, 2009, p. 18). Os artistas envolvidos no movimento da Estética Relacional foram um grupo que não se apoiou na reinterpretação de movimentos estéticos. A estética relacional era nutrida pela observação e reflexão do tempo presente. Para Bourriaud, é a primeira vez que as relações humanas são tomadas como obra de arte, antes disso, na história da arte, a esfera das relações era tomada apenas como um pano de fundo. Já havia a discussão sobre o lugar da interatividade na obra de arte, mas essa interatividade ainda não havia sido pensada como ponto de partida e de chegada. Em seus ensaios, Bourriaud nos oferece exemplos de obras que superam o modelo de exibição de arte em um “cubo branco”, e ele o faz a partir da investigação de obras que propõem novas possibilidades de existência por meio do convívio. Esses trabalhos instauram momentos de sociabilidade e/ou, objetos produtores de sociabilidade, como o trabalho de Pierre Joseph, em 1990, que instaura moradia em uma galeria de Nice, transformando-a em um ateliê de produção. Na abertura desse trabalho, cada visitante usava uma camiseta personalizada que identificava certos tipos sociais, que definiam as relações dos presentes, com base em um roteiro escrito ao vivo e projetado em vídeo. Tal experiência também pode ser percebida no trabalho do artista Jens Haaning, que transmitiu,

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em turco, em uma praça de Copenhague, histórias engraçadas, reunindo com essa ação uma pequena comunidade de exilados em um momento de alegria (BOURRIAUD, 2009). Conceituar a estrutura de uma obra relacional é uma tarefa difícil, tendo em vista as inúmeras possibilidades de estruturas que podem ser realizadas de acordo com os repertórios de cada artista. Algumas críticas são construídas sobre o pensamento de Nicolas Bourriaud, como é apontado por Claire Bishop em seu texto “Antagonismo e Estética Relacional” (2004), em que ela questiona a ideia de relação. Para Bourriaud, os encontros são mais importantes que os indivíduos que o compõem. Em sua perspectiva, encontro é sinônimo de diálogo e, consequentemente, de democracia. Bishop levanta a discussão sobre a necessidade de expandir a reflexão sobre as relações, entendendo que tipo de relações são criadas por essas obras: Não estou sugerindo que trabalhos de arte relacional precisem desenvolver maior consciência social – fazendo murais com recortes de jornal sobre terrorismo internacional, por exemplo, ou distribuindo legumes com curry a refugiados. Estou simplesmente me perguntando como decidimos o que constitui a “estrutura” de um trabalho relacional e se isso é separável do tema visível no trabalho ou se é permeável a seu contexto. Bourriaud quer igualar o julgamento estético ao julgamento éticopolítico das relações produzidas por um trabalho de arte. Mas como medimos ou comparamos essas relações? A qualidade das relações em “estética relacional” nunca são examinadas ou colocadas em questão. Quando Bourriaud afirma que “encontros são mais importantes que os indivíduos que os compõem”, percebo que essa questão (para ele) é desnecessária; todas as relações que permitem

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“diálogo” são automaticamente presumidas democráticas e, portanto, benéficas. Mas o que “democracia” de fato significa nesse contexto? Se a arte relacional produz relações humanas, então, a próxima pergunta lógica a se fazer é quais tipos de relações estão sendo produzidas, para quem e porquê (BISHOP, 2004, p. 07). Para Bishop, as relações construídas dentro de uma obra de cunho relacional não são necessariamente democráticas, visto que, de alguma forma, ela continua restrita a um ideal subjetivo, com pensamentos e relações ligadas a uma comunidade específica, não universal. Bourriaud tinha como objetivo o alcance dos espaços microssociais, instaurando utopias que são germinadas a partir das relações. Julia Guimarães (2015), por exemplo, nos alerta para a dificuldade de verticalização das relações, que tendem a ser frágeis pelo pouco tempo de suas ações. Rancière (2014) nos fala sobre a necessidade de os trabalhos de natureza relacional manterem o seu lugar no mundo, cultivando seu olhar crítico e político, mas sem perderem seu potencial artístico, evitando cair em três pontos: o simulacro, o assistencialismo e a função meramente comunicativa. (GUIMARAES, 2015).

2.

TEATRO RELACIONAL: CAMINHOS REVOLUCIONÁRIOS DE CONTATO

O pensamento de Nicolas Bourriaud tem seu princípio no campo das artes plásticas, mas não é preciso muito esforço para deslocar suas ideias para campos mais estendidos das artes. Para ele, a arte é um terreno frutífero para pensar sobre convívio e relação. Em nossos tempos, vivemos sob um ritmo frenético de ações mecanizadas, que diminuem cada vez mais os espaços/tempos dedicados a construir relações. A arte possui o poder de recuperar no humano o seu espaço de via de afetos, afetando e sendo afetado, produzindo trocas, gerando relações.

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Hoje, estamos cada vez mais inseridos em espaços de convívio onde somos obrigados a cumprir modelos adequados de sociabilidade e seguir “acordos”, em favor da imagem do sujeito ideal: Perante as mídias eletrônicas, os parques recreativos, os espaços de convívio, a proliferação de moldes adequados de sociabilidade, vemo-nos pobres e sem recursos, como o rato de laboratório condenado a um percurso invariável em sua gaiola, com pedaços de queijo espalhados aqui e ali. Assim, o sujeito ideal da sociedade dos figurantes estaria reduzido à condição de consumidor de tempo e espaço, pois o que não pode ser comercializado está fadado a desaparecer. Em breve, as relações humanas não conseguirão se manter fora desses espaços mercantis: somos intimados a conversar em volta de uma bebida e seus respectivos impostos, forma simbólica do convívio contemporâneo (BOURRIAUD, 2009, p.11). Voltando o olhar para o nosso campo, podemos dizer que o teatro é, em essência, uma arte relacional, visto que sua ação só se concretiza no momento de encontro entre o ator e o espectador. Apesar disso, Bourriaud defende a ideia de que a arte da cena não é capaz de criar uma arte relacional, pois para ele o encontro proporcionado pelo teatro produz imagens unívocas, sem diálogo com seu público. Podemos concordar que o simples encontro entre ator e espectador não garante um diálogo relacional, mas o teatro passa longe de ser uma arte com relações apenas unívocas. A experiência do autor com o teatro nos parece ser limitada. A história do teatro no Ocidente observa, ainda no Renascimento, convenções que difundiam uma autonomia da encenação diante do espectador. A este último cabia o lugar de observador, aquele que deve contemplar a ação que é vista no palco. Com o passar do tempo, os encenadores são convocados a criar obras para além da representação dos textos, e é justamente nesse movimento que começamos a observar

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uma busca por um espectador cocriador da cena, um movimento que na verdade está presente desde as formas pré-teatrais com suas ações ritualísticas (SOARES, 2018). Como já falado anteriomente, um trabalho que se propõe a dialogar com os princípios da estética relacional não tem necessariamente uma forma préestabelecida. Muitos são os trabalhos teatrais que se propõem a deslocar o espectador como um puro observador, trazendo-o como elemento importante e essencial para a concretização da poieses, sem que para isso defenda – ou nem mesmo conheça – os ideais da estética relacional. Desse modo, alguns encenadores brasileiros são autores de trabalhos que dialogam com os princípios relacionais, provocando a construção de novos vínculos entre obra e espectador. Entre esses encenadores, está Augusto Boal, em toda a árvore do Teatro do Oprimido, que chegou a ter suas obras comparadas a verdadeiros ensaios revolucionários, para pensar nas relações de poder na sociedade; e José Celso Martinez Correia que, em muitas de suas encenações, no Teatro Oficina, provoca possibilidades de relações de afeto entre o público e entre o público e os seus atores. Mais recentemente, desataca-se também o trabalho do encenador e professor Antonio Araújo, que provoca possibilidades de relações entre público e obra, quase sempre explorando as possibilidades do espaço trabalhado na encenação, levando o público a um presídio desativado ou às margens de um rio poluído de uma grande metrôpole, por exemplo. Sobre os grupos que assumidamente se propõem a investigar a estética relacional em suas encenações, destacamos o trabalho do grupo teatral Teatro Público, de Belo Horizonte/MG, que, desde 2011, investiga a criação de trabalhos que propõem novas formas de relações entre artistas, espectadores e espaços urbanos (GUIMARÃES, 2015). O grupo já possui em seu repertório quatro trabalhos: Naquele Bairro Encantado (2011), Saudade (2014), O Baile (2017) e Café Encantado (2018). Em Naquele Bairro Encatado, o grupo instaura, por meio de uma habitação cênica, um convite para que o público entre em contato com as ruas do

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bairro de Lagoinha, em Belo Horizonte, um bairro tradicional da cidade, mas que sofria com a degradação e o abandono do poder público. Um dispositivo de relação é instaurado no bairro quando quatro atores alugam uma casa sobre o pretexto de serem velhos moradores que voltam a habitar no bairro depois de longos anos fora dele (GUIMARÃES, 2015). O projeto tinha como princípio o desejo de construir um dispositivo de relação que pudesse recuperar a memória do bairro, um caminho para revitalizar sua imagem. Durante nove meses, os atores mergulharam no cotidiano do bairro, fazendo saídas quase todos os dias, ocupando os espaços de convívio daquele lugar. Nas saídas em deriva, as personagens entravam em contato com os moradores do bairro, fazendo uso de alguns dados históricos daquele lugar, suscitanto memórias e histórias de seus moradores. Também nesse projeto, o grupo opta pelo uso de máscaras, para delimitar a presença de um universo ficcional no espaço do real. As máscaras, no trabalho, são apontadas como um elemento que favorece a aproximação do público e o convite para uma postura mais lúdica dos moradores, facilitando o estado de jogo. Outro referencial de trabalho relacional pode ser visto nas ações da professora e artista Tania Alice, com o Coletivo de performance Heróis do Cotidiano, que, desde 2009, desenvolve performances nas ruas do Rio de Janeiro, questionando o lugar do herói na contemporaneidade. Tania parte do princípio de que “o herói é aquele que cria e recria vínculos que foram perdidos pelos processos de subjetivação gerados pela lógica capitalista” (ALICE, 2016, p. 43). Sendo assim, elabora um trabalho em que os heróis realizam “atos heroicos” no nosso dia a dia: fazer massagem nos vendedores ambulantes, carregar compras de alguém, ceder o lugar no ônibus etc. Vestidos de super-herói, os jogadores propõem ações “heroicas”. Esses pequenos atos de gentileza chegam, muitas vezes, para nós como pequenos momentos de suspensão. O afeto é algo importante nas proposições relacionais; tem-se a ambição de conseguir, por meio dos

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dispositivos de relação, o encontro com outra forma de uso do tempo. No caso dos Heróis do Cotidiano, a identificação com o universo dos superheróis facilita para que haja relação entre artistas e público. A ironia em usar um super-herói para realizar tarefas tão banais – como ceder o lugar a alguém no ônibus – cria uma situação engraçada e ao mesmo tempo abre a possibilidade de quebrar as dinâmicas mecânicas da vida daquele que é testemunha da ação. Tania Alice (2016) nos lembra que os trabalhos do campo teatral que se propõem a dialogar com a estética relacional devem estar dispostos a ter o espectador enquanto sujeito ativo na construção da poieses. Para além de roteiros e regras que devem ser seguidas, repetindo padrões de relações, é preciso enxergar nas construções relacionais a possibilidade de encontrar novas formas de relação, não tendo o espectador como um executor de um roteiro pré-definido, mas alguém que se aproxima da obra na função de co-criador. A autora ainda apresenta alguns elementos recorrentes nas ações relacionais construídas pelo Coletivo que, com certeza, podem ser expandidos para a leitura de outros procedimentos relacionais: A vivência da cidade como dramaturgia e não como cenário, a geração de tensões entre uso funcional e o uso poético do espaço, a relação estabelecida entre ecologia interna e ecologia externa, o questionamento da progressiva privatização do espaço público, a valorização do “inútil”, o desejo de uma transformação energética no espaço e nas pessoas, o fato de pensar a performance como uma dádiva e, principalmente, o fato de privilegiar o que as artes marciais japonesas definem como “ma”: o espaço relacional. (ALICE, 2016, p. 128). Os exemplos apresentados até aqui mostram sempre, em alguma medida, as propostas de trabalhos relacionais em diálogo com o espaço

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urbano. Essa predileção pelo cenário da cidade talvez se dê pela natureza dionisíaca da rua, onde existe uma grande sobreposição de estímulos. O espaço da rua, dessa forma, torna-se impossível de ser controlado. A cidade transforma-se em um ser vivo, pulsante de vida, carregado de paixões e movimentos próprios, gatilhos para processos criativos. Embora estejamos vivendo tempos em que o medo de conviver na cidade é um discurso amplamente bradado, os artistas ainda parecem enxergar nesse espaço um terreno vivo de criação, com impulsos próprios, incapaz de ser totalmente dimensionado ou controlado; lugar rico para construir relações. Até aqui, aproximamos nosso olhar sobre os princípios da Estética Relacional propostos por Nicolas Bourriaud, entendendo como ele reflete sobre a construção de obras artísticas capazes de gerar formas de sociabilidade. Mas também enxergando as críticas feitas ao seu pensamento, como as colocações de Bishop. Também refletimos as possibilidades de diálogos entre o teatro e a Estética Relacional, criando uma perspectiva de teatro relacional e aproximando-o de exemplos artísticos que tomam o relacional como campo de pesquisa. No próximo ponto, situaremos a nossa experiência, buscando refletir sobre caminhos de criação possíveis dentro do diálogo entre o teatro e a Estética Relacional na experiência do O homem que era só metade, resultado das experiências do Laboratório de Criação Relacional em Espaços Urbanos.

3.

QUANDO AS EXPERIÊNCIAS TORNAM-SE CANTO: O LABORATÓRIO DE CRIAÇÃO RELACIONAL EM ESPAÇOS URBANOS

A escrita deste trabalho é um canto de experiência, atravessado pelos encontros de vários outros cantos. Aqui, ecoam pensamentos criados a partir de muitas relações, que se concretizam em experiências. Jorge Larossa (2016) bem nos diz como a experiência causa tremores em nosso corpo; somos atravessados por sensações que nos transformam e nos

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situam no mundo. A experiência parece ser o caminho de descobertas, sempre único, impossível de ser reproduzido, mas quando transformado em canto, pode reverberar em muitos e por muito tempo. O canto de Nicolas Bourriaud ressoou até nós, e desse encontro nasce o Laboratório de Criação Relacional em Espaços Urbanos, projeto pensado para investigar possibilidades táticas de criação em teatro, tomando como princípio a Estética Relacional. A natureza investigativa desse trabalho nos fez refletir sobre a necessidade de construir caminhos metodológicos que abordassem criação e análise, não polarizando esses dois processos: ao contrário, unindo-os. O espaço do laboratório parecia ser um solo fértil para pensar sobre caminhos possíveis para a pedagogia teatral. Laboratório é aqui pensado em dois sentidos: “como um espaço de criação e experimentação dentro do processo criativo, e no sentido de workshop, oficina” (FERREIRA, 2016). O laboratório foi realizado entre os dias 5 de agosto e 6 de setembro, com uma carga horária total de 40 horas, e explorou alguns habitats da cidade do Recife, concluindo seu processo com a apresentação da intervenção urbana O homem que era só metade. Os atores e as atrizes envolvidos nesse processo foram selecionados por meio de uma chamada pública para pessoas interessadas em participar da experiência, sem que necessariamente tivessem uma aproximação com o pensamento da Estética Relacional, mas que estivessem dispostas ao trabalho investigativo do laboratório. No total, doze atores e atrizes foram selecionados para o laboratório. Todos eles tinham em comum o fato de estarem realizado algum processo de formação na função de alunos atores ou de terem passado por essa experiência há pouco tempo. Outro ponto compartilhado por todos era o fato de terem vivido poucas criações artísticas com o cenário urbano. Sobre os espaços ocupados pelo laboratório, vale lembrar que, para Bourriaud, a arte está, sobretudo, inscrita em uma área de interstício; sua construção está para além das relações econômicas capitalistas de

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nossa sociedade (BOURRIAUD, 2009). Nesta pesquisa, interessava-nos a ocupação de espaços livres para a comunicação. Buscamos, então, não ocupar espaços institucionalizados, construídos para ordenar e mecanizar relações. Tínhamos a ambição de reinventar relações. Parecia ingênuo e utópico pensar que ainda existissem espaços para além da lógica das relações funcionais, visto que a rua parece ser, cada vez mais, ordenada para estabelecer certos tipos de relações e repudiar outros. Assim, os medos são alimentados, os afetos são vistos como inadequados, e a convivência torna-se algo impossível. Mas há também nesse lugar um forte espírito de contra fluxo. Se havia um espaço que pudesse provocar novas perspectivas de relações, este era o cenário urbano, nele os desejos pareciam pulsar mais livremente. Na busca por ocupar espaços urbanos para a concepção de nosso laboratório, estabelecemos dinâmicas relacionais periódicas, durante quatro semanas, nos seguintes espaços:

PERÍODO

LOCAL INVESTIGADO

05, 06,07, 08 e 09 de agosto de 2019

Sala de ensaio da Caixa Cultural e o bairro do Recife Antigo.

12,14 e 16 de agosto de 2019

Ônibus (Linhas: Conde da Boa Vista/Cidade Universitária e Cidade Universitária/ Engenho do Meio), seus terminais de integração e a comunidade de Roda de fogo, no bairro dos Torrões.

20, 21 e 23 de agosto de 2019

Rua da Imperatriz Teresa Cristina, no bairro da Boa Vista

06 de setembro de 2019

Rua da Imperatriz Teresa Cristina (Apresentação da intervenção O homem que era só metade).

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Fig. 1 – Mapa do Recife pontuando as áreas trabalhadas no projeto (ponto rosa – bairro do Recife; ponto verde – Rua Imperatriz Tereza Cristina; ponto azul – Comunidade de Roda de Fogo; linha azul – percurso percorrido de ônibus na travessia)

Os lugares trabalhados foram escolhidos por suas naturezas e também por facilidades logísticas de produção. Na primeira semana era preciso que tivéssemos uma sala de ensaio para que pudéssemos trabalhar sobre os pré-textos de criação. A sala de ensaios da Caixa Cultural do Recife foi conseguida graças à parceria da instituição com o Sesc. Ela fica situada no bairro do Recife, área histórica e turística da cidade. No Marco Zero da capital pernambucana, realizamos nossos primeiros experimentos da rua. A comunidade de Roda de Fogo, no bairro dos Torrões, zona periférica da capital, é um bairro pobre que nasce de uma ocupação popular. Ela foi escolhida porque havia o desejo de investigar as potencialidades de intervenção em um espaço que vive às margens de nossa política cultural. Além disso, a proximidade do bairro com a Universidade e com a minha residência torna essa possibilidade viável.

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Por fim, nosso último espaço de investigação é a Rua da Imperatriz Teresa Cristina, um tradicional centro comercial, localizado no bairro da Boa Vista, onde temporariamente está situado o Sesc Santa Rita, parceiro de nosso projeto. Já de partida, expressamos a pretensão de trabalhar com uma obra que tivesse a capacidade de manter o frescor do estado de jogo, estando aberta para as transformações que o processo pudesse suscitar. Interessava-nos resgatar no espectador o espírito do homo ludens, do humano que entende e cultiva o lugar do jogo em sua existência. Como pré-texto para a criação do universo ficcional, tínhamos a obra literária do escritor português Valter Hugo Mãe, O filho de mil homens (2016), mais especificamente o primeiro capítulo, “O homem que era só metade”, que conta a história de Crisóstomo, um homem que, aos quarenta anos, morando em uma praia dos confins do mundo, passa a sonhar com a companhia de um filho. A obra de Valter Hugo parecia ser um recurso rico, sua escrita, carregada de belos diálogos e imagens, era um substrato potente para a criação teatral. Não tínhamos o objetivo de alcançar a construção de um trabalho que adaptasse o texto para a cena, nem mesmo o de ser fiel a uma linha fabular da história. Nossa pretensão era a construção de uma ideia de reação ao texto, como trabalhado por Paulina Caon (2012), em que buscase desenvolver um estudo sobre o texto, fazendo ligações múltiplas com vários outros estímulos e gerando uma cena que é uma resposta ao mergulho dado. Nossa ideia era desenvolver a metáfora apresentada pelo texto: a figura que se sente só metade. A sede, a fome por algo que pode vir a completar nosso ser, é um pensamento constante. Estamos sempre correndo, buscando encontrar as partes que nos faltam. O espírito da segmentação, característico de nossos tempos, parece impedir que nos reconheçamos como seres inteiros. A metáfora da criatura que se sente só metade parecia ser ideal para trabalharmos no cenário da cidade.

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Nossa viagem é feita caminhando, ação primeira de transformação da paisagem natural (CARERI, 2018). Em nosso laboratório, tínhamos a pretensão de investigar caminhos relacionais de criação dentro da cidade, e o caminhar parecia ser um disparador potente. Não nos interessávamos pela construção de uma estrutura de cena, em que convocaríamos o público para a audiência. Partindo da hipótese de que a ação de caminhar aproxima o espectador do fazer artístico e do olhar não funcional sobre o espaço ocupado, Veloso (2018) nos ajuda a pensar no potencial pedagógico dessas práticas, colaborando para que o público expanda suas leituras sobre a arte contemporânea. A travessia e, sobretudo, a deriva foram instrumentos usados em nosso processo. A deriva pode ser compreendida como uma forma de caminhar aleatória pelo espaço, de caráter mais subjetivo. A pessoa em deriva move-se sem planos pré-definidos, de acordo com estímulos encontrados na caminhada. Já a travessia caracteriza-se por ser um deslocamento prédefinido, objetivo, que visa percorrer distâncias relativamente grandes (VELOSO; CAON, 2018). 3.1

Primeira semana: um pé na caixa e outro na rua.

Em nossa primeira semana de trabalho, tivemos a sala de ensaios da Caixa Cultural como ponto de encontro para as práticas. Esta foi uma semana bastante híbrida, pois experimentamos jogos tanto na sala fechada como no espaço da rua. Nesses primeiros dias, tínhamos o objetivo de introduzir os doze participantes do laboratório no universo da nossa metáfora, aproximá-los do cenário da cidade e estabelecer os primeiros diálogos de relações. A ideia de relação é tomada aqui em três níveis: a relação com o “eu”, realizando jogos e práticas que colocassem o ator/atriz em contato com o seu trabalho psicofísico; a relação com o “outro”, que, nesse caso, é

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entendida como a relação estabelecida com os outros atores e atrizes participantes do laboratório, aproximando-os enquanto companheiros de jogo; e a relação com a “cidade”, estabelecendo os primeiros contatos de jogo com as arquiteturas dos espaços e seus habitantes. A ideia de construção de dispositivos de relações é um conceito bastante importante para todo o nosso processo. Dispositivo pode ser tido como “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar os gestos, as condutas, as opiniões e os discursos dos seres viventes” (AGAMBEM, 2009). Sendo assim, tínhamos a pretensão de investigar a construção de dispositivos que pudessem gerar relações com a cidade. As deambulações pelas ruas do Recife antigo foram um importante caminho metodológico de aproximação dos integrantes do laboratório com a dramaturgia da cidade. Foi por meio delas, por exemplo, que realizamos a “deriva do vazio”, quando saímos caminhando pelas ruas em busca de registrar os vazios contidos naquele bairro. Mais à frente, esses vazios foram transformados em partituras corporais, gerando as primeiras germinações das figuras criadas pelos participantes. O uso de máscaras foi outro recurso utilizado para fortalecer o universo ficcional que estava sendo criado. A presença das máscaras demarcava bem o espaço da ficção no cotidiano, friccionando sua presença no tecido urbano, causando estranhezas, mas ao mesmo tempo sendo um catalisador para as aproximações das figuras em relação à cidade. Ao final da primeira semana, tínhamos construído as doze figuras: Manoel, Bárbara, Matilde, Teodora, Vitor, Passarin, Cicero, Zuli, Nonato, Cifo, Dante e Solitude, seres que compartilhavam o sentimento de se sentirem apenas metade, que começavam a vagar em busca de encontrar aquilo que os completava.

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Fig. 2 – As doze figuras em processo de relação com o bairro do Recife, 07 de agosto de 2019, foto de Raphael Bernardo.

3. 2

Segunda semana: travessia para novas terras.

A segunda semana de laboratório foi iniciada com a grande travessia. Encontramo-nos com o objetivo de cruzar a cidade com nossas figuras, em um ônibus, até chegar ao bairro do Engenho do Meio. Nessa experiência, tínhamos a possibilidade de fazer uso do repertório que os atores e as atrizes construíram até então – o uso de perguntas banais e inusitadas e as histórias biográficas de suas figuras, por exemplo – compartilhando também, nesse dia, o dispositivo do “coração da cidade”. Na travessia, as figuras deveriam indagar às pessoas que cruzassem os seus caminhos em que local ficava o coração da cidade. Além disso, cada uma levaria consigo uma maçã – seu coração – que deveria ser entregue a alguém durante o caminho.

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Nessa segunda semana, também exploramos a comunidade Roda de fogo, zona periférica da cidade. Interessava-nos ocupar um espaço que ficasse à margem dos centros de produções teatrais da cidade. A presença do grupo causou estranheza no bairro. Para o grupo, houve dificuldade de lidar com a dureza que parecia haver no local – as ruas apertadas, o esgoto a céu aberto, o tráfico de drogas. A chegada do grupo foi precedida, inclusive, pelo assassinato de um jovem do bairro, com 17 tiros. As figuras entraram na comunidade Roda de fogo com o exercício de passeio, perguntando aos habitantes onde morava a felicidade daquele bairro. Entre respostas duras e poéticas, chamou-nos a atenção a abertura dos moradores para o jogo.

Fig. 3 – Figuras em relação em processo de travessia na linha do ônibus Av. Conde da Boa Vista/CDU, 12 de agosto de 2019, foto de Raphael Bernardo

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Fig. 4 – Figuras encontram a “embaixada da alegria” (uma banca de jogo do bicho) na comunidade de Roda de Fogo, 14 de agosto de 2019, foto de Kennyo Freitas.

3.3

Terceira semana: passeios na Rua da Imperatriz

Em nossa última semana, ocupamos a Rua da Imperatriz, centro de comércio popular da cidade. Nessa altura, as figuras já estavam bastante delineadas. Além dos dispositivos de relações e jogos propostos, cada figura agora já tinha o seu dispositivo individual de relação, como, por exemplo, Cícero, que distribuiu punhados de confetes pelas ruas recomendando que as pessoas fizessem bom uso desse material, ou Manoel, que vagava pelas ruas recitando poemas e convidando para que outras pessoas recitassem poemas para ele. Nesse espaço, despertou nossa atenção a grande quantidade de vendedores em frente às lojas. Mulheres e homens mestres em convencer qualquer um, que passe por aquela rua, da necessidade de adquirir seus produtos. Causou-nos aflição observar as difíceis condições de trabalho

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dessas pessoas: longas jornadas de trabalho feitas em pé, sob o forte sol da cidade do Recife. Seus tempos são milimetricamente pensados e arranjados para cumprirem números, baterem metas de produtividade, os recebimentos de seus honorários estão estreitamente ligados às suas capacidades de gerarem a maior quantidade de trabalho no menor tempo possível. Aqui, nitidamente, tempo é sinônimo de dinheiro. Interessavanos muito conseguir nos aproximar desse público. Em contato com as figuras, por alguns instantes, os vendedores suspendiam seus ofícios e se relacionavam com as figuras, experimentando outras possibilidades de vida em seus espaços de trabalho. Abraços, sorrisos e conversas transformaram, por alguns instantes, aquele cenário.

Fig. 5 – Figuras e transeuntes em jogo de relação na rua da Imperatriz, 06 de setembro de 2019, foto de Morgana Narjara.

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Fig. 6 – Vendedoras preparam um aniversário surpresa para Crisóstomo, 06 de setembro de 2019, foto de Morgana Narjara.

4.

AS FIGURAS-DISPOSITIVOS

As figuras-dispositivos criadas no processo do laboratório são um convite para conectar o cenário urbano novamente ao seu potencial de gerar encontros. As ações desenvolvidas pelas figuras trazem à tona camadas de subjetividade que nos permitem acessar novos ritmos, histórias, contatos, sensações e desejos que foram encobertos pelos fluxos automáticos do cotidiano. Fruto das reações à metáfora da criatura que se sente metade, as formas dadas pelos dispositivos dialogam com o universo criativo de cada ator e atriz, que traz nesse processo de construção suas referências e seus afetos. Cícero, por exemplo, figura criada pela atriz Bruna Martins, é um ser feminino que usa uma capa de super herói e distribui confetes por seu caminho. Sua ação nos remete aos saudosos e amados dias de carnaval, festa tão popular e celebrada em nossa cidade.

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Ao afetar novas formas de olhar, sentir, relacionar e viver, as figurasdispositivos ganham uma dimensão profética: é o sonho de ver o mundo funcionando não a partir de uma lógica de encaixe de engrenagens, mas sim como um grande corpo que respira, afeta e deixa-se ser afetado. Os dispositivos convocam a participação dos sujeitos, convidando-os a acessar seu poder de criatividade e abstração, subvertendo a ideia de cidade. Há nisso uma dimensão poética, mas também uma dimensão política, a arte podendo provocar os sujeitos a repensarem e a não tomarem seus espaços como algo natural, dado, instigando para que pensem sobre suas liberdades. A estrutura das figuras-dispositivos colabora para que as táticas de jogo possam ser experimentadas em diversos espaços e com diferentes públicos. Cada figura possui, em nosso processo, um repertório de jogos relacionais que foram sendo descobertos e lapidados durante todo o nosso laboratório, reforçando a forte ligação do caráter relacional com a perspectiva de construção processual. A ideia de construção de figuras-dispositivos foi algo que atravessou o nosso processo. Talvez, no princípio, não tínhamos nítido que a vivência tomaria esse rumo, mas hoje percebo que boa parte do nosso trabalho nos levou a pesquisar formas de construir esse formato de jogo, em que o artista ganha o potencial de estabelecer formas de sociabilidade em nosso cenário urbano, novas perspectivas de trabalho com a Estética Relacional.

5.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em tempos de brutalidade institucionalizada, de propagação do medo, o encontro com o outro se torna, cada vez mais, uma sombra de perigo. O teatro insiste – e resiste! – por toda a sua história em proporcionar o encontro de estranhos, criando espaços de afetos em terrenos desérticos, momentos fugazes, em que, por vezes, cabem palavras, abraços ou apenas um olhar.

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A potência de um teatro relacional está em sua célula revolucionária de sonhar com uma sociedade mais humana e menos mecânica. Seus dispositivos relacionais podem despertar nos indivíduos novos olhares para o mundo ao seu redor, ressignificando sua existência. Essa vivência pode gerar nos indivíduos novos sentidos para concepções de arte contemporânea, enxergando na arte um lugar de afeto, encontro e relação. A possibilidade de criação artística dentro do cenário urbano dota os cidadãos com a chance de estabelecerem novas relações com o concreto da cidade, enxergando novas possibilidades para habitar a urbis, dando a ela a possibilidade de ser também, para além de todas as suas funções, um espaço lúdico, instaurando novos tempos/ritmos de existência e quebrando a lógica do tempo utilitarista. Dessa forma, redescobriremos a cidade explorando seus lugares, criando uma cidade em estado de jogo. O Laboratório de Criação Relacional em Espaços Urbanos foi um terreno de treinamento e de criação cênica que apostou na ocupação de lugares não convencionais para a prática artística. É necessário ampliar cada vez mais esse campo, descobrindo possibilidades de criação cênica no espaço urbano do Recife, buscando entrar em contato com os diversos cenários dessa cidade e enxergando as particularidades e os estímulos próprios de cada lugar. Também vale ressaltar a importância da criação em espaços urbanos que vivem às margens das políticas públicas, ampliando o sentido democrático do trabalho artístico na cidade, ação que já é muito trabalhada nas perspectivas de criação em teatro de rua. A vivência aqui compartilhada é construída sobre uma perspectiva. Como dito antes, a Estética Relacional não está presa a uma forma, ela é desenhada conforme as referências de cada artista. A realização do Laboratório possibilitou que doze atores e atrizes entrassem em contato com esse pensamento e descobrissem seus caminhos de criação. É importante lembrar que o campo das relações é um terreno de conquistas, onde nem sempre as ações do público correspondem às expectativas dos artistas, portanto é preciso estar aberto às situações inesperadas, tendo disposição para jogar com os diferentes estímulos

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recebidos. O medo, pano de fundo em quase todas as discussões sobre a cidade, também esteve presente em nossa experiência; a criação artística no espaço urbano parece sempre ocupar um lugar de risco. Em nosso caso, vivenciar deambulações em um bairro marcado pelo tráfico de drogas ou se propor a usar uma peça de figurino um pouco curta, forçou os atores e as atrizes a entrarem em um campo de desafios, forçando-os a repensar seus limites de relação com o ambiente da cidade. Fica o desejo de que eles possam verticalizar suas descobertas, aprofundando suas pesquisas nessa perspectiva. Há também a esperança de que esse trabalho possa chegar às mãos de outras pessoas interessadas em pesquisar a Estética Relacional, gerando novos olhares e criações. Por fim, ressalto o potencial pedagógico dessa experiência, tanto como campo de formação para atores e atrizes, como também um espaço para formação de espectadores, mostrando-se um terreno frutífero para descobertas da área da pedagogia teatral.

REFERÊNCIAS AGAMBEN, Giorgio. O que é contemporâneo? e outros ensaios. Chapecó: Argos, 2009. ALICE, Tania. Performance como revolução dos afetos. São Paulo: Annablume, 2016. BISHOP, Claire. Antagonism and Relational Aesthetics. Mit Press, Revista Octobre, 2004. BOURRIAUD, Nicolas. Estética relacional. São Paulo: Martins, 2009. CAON, Paulina Maria. O disfarce do ovo – reação como procedimento de criação para a cena contemporânea. São Paulo: Revista Sala Preta, vol. 12, n. 2, dez 2012, p. 78-85

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CARERI, Francesco. Walkscapes: o caminhar como prática estética. São Paulo: Editora G. Gili, 2018. FERREIRA, Melissa. Isto não é um ator. São Paulo: Perspectiva, 2016. GUIMARÃES, Julia. O teatro como dispositivo relacional na habitação cênica Naquele Bairro encantado. Belo Horizonte, Pós: Revista do Programa de Pós-graduação em Artes da EBA/UFMG , v. 5, n. 10, p. 44-57, nov. 2015. LAROSSA, Jorge. Tremores: escritos sobre experiência. Belo Horizonte: Autentica editora, 2016. MÃE, Valter Hugo. O filho de mil homens. São Paulo: Biblioteca Azul, 2016. RANCIERE, Jacques. O espectador emancipado. São Paulo: Martins Fontes, 2012. SOARES , Stênio José Paulino. O corpo-testemunha na encruzilhada poética. 2018. 251 f. Tese (Doutorado em Pedagogia do Teatro) Escola de Comunicações e Artes, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. VELOSO, Verônica Gonçalves. Percorrer a cidade a pé: ações teatrais e performativasno contexto urbano. 2017. 422 f. Tese (Doutorado em Pedagogia do Teatro) Escola de Comunicações e Arte5s, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. VELOSO, Veronica; CAON, Paulina. Cortar a cidade com os pés: travessias em paisagem brasileira. Londrina: Revista Boitata, vol 01, novembro de 2019.

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\como a palavra amor sai naturalmente das nossas bocas

Rúbia Sousa da Silva 28 anos, é atriz, dramaturga e diretora formada pela Escola Superior de Artes Célia Helena (ESCH) e pela Escola Livre de Teatro (ELT). Graduada em comunicação social pela Faculdade Cásper Líbero (FCL), é mestranda em artes da cena na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) com o projeto de pesquisa Performance ancestral: a função mágica do corpo em escrita. rubiavaz09@gmail.com

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ficha técnica Universidade Escola Livre de Teatro Tipo do curso Núcleo de Estudos Nome do curso Direção Teatral e Orientação de Processos Criativos Período do curso 2019 Estado São Paulo Nome do trabalho Como a palavra amor sai naturalmente das nossas bocas Nome da autora Rúbia Sousa da Silva Nome do orientador Luiz Fernando Marques Número de páginas 22

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\como a palavra amor sai naturalmente das nossas bocas

RESUMO O memorial analítico de processo de criação da dramaturgia como a palavra amor sai naturalmente das nossas bocas aborda os desdobramentos da investigação da atriz diante da personagem Ofélia, da obra Hamlet, de Shakespeare. Motivada pela condição da loucura imposta à personagem busca se reparar tal imaginário por meio de relatos autobiográficos, assim como também é levado para a cena materiais que foram concebidos a partir de programas performativos criados e executados pela atriz.

ABSTRACT The scenic exercise’s analytical process memorial Drowning: how the word love comes out naturally from our mouths approaches the unfolding of the actress’s investigation against the character Ophelia, from Hamlet, of Shakespeare. Motivated by the madness condition imposed on the character seeks to repair such imaginary through autobiographical account as well some scene materials were designed from performative programs that were created and performed by the actress.

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pontilhados

SUMÁRIO 1. APRESENTAÇÃO 340 2. CONVERSA COM A RAINHA 344 3. PROCESSO DE EMBRIGUÊS 347 4. ENCONTRO COM HAMLET 349 5. AFOGAMENTO 353 6. CONSIDERAÇÕES FINAIS 358 BIBLIOGRAFIA 359

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1. APRESENTAÇÃO “Da mesma forma já não faz mais sentido a cena naturalista (observada da fechadura da porta) nem o discurso narrativo. Não há “história” para ser contada – todas as histórias já são conhecidas. Na medida em que o teatro (parte dele) se basear em uma forma-ideia que vem do século passado, ele nunca mais ocupará o lugar de vanguarda, que já ocupou em outras sociedades, mas sim o de reboque das outras artes. Conservará apenas uma função museológica. Isso por misoneísmo, porque a relação teatral do homem em frente do outro homem (mesmo com aparato tecnológico) é eterna.” RENATO COHEN, Performance como linguagem, p. 89

O construção da dramaturgia autoral “como a palavra amor sai naturalmente das nossas bocas” surgiu a partir de um exercício cênico que apresentei como Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) na Pósgraduação em Artes da Cena: Direção e Atuação da Escola Superior de Artes Célia Helena. Foi a partir de um texto clássico que meu estudo se desenvolveu. E com isso não é como se eu estivesse recontando uma história. Estou recontando a história. Trata-se de Hamlet. Trata-se de Shakespeare. E de toda uma aura sagrada que a obra carrega. Pensado, a princípio, pelo viés da atuação, a proposta era criar uma releitura da personagem Ofélia através de relatos autobiográficos e programas performativos. Ciente de que trata-se de um material já saturado, minha intenção não é de inovar a forma – o caminho que me levou à ela foi calcado em uma série de referências que trago comigo – mas apresentar a minha versão da história, a versão que eu achava que tinha que contar. O início do processo de criação se deu de um modo intuitivo, uma intuição que pressupunha empatia e alteridade diante de uma personagem. Me deparei com a Ofélia pela primeira vez no segundo semestre de 2016.

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1. M. Foucault, História da Loucura, p.9

2. Ibidem, p.12

3. Ibidem, p.39

4. E. Showalter, Representing Ophelia: Women, Madness and the Responbilities of Feminist Criticism, Shakespearean Criticism: Hamlet, v.59, p. 78. (Tradução minha.)

5. Ibidem

Na época eu era aluna do curso técnico do Teatro Escola Célia Helena e estava estudando Teatro Clássico. Nesse primeiro momento procurei entender porque a personagem me tocava e porque eu tinha, de certa maneira, desenvolvido uma espécie de carinho por ela. O primeiro ponto de contanto é um tanto óbvio: somos mulheres. E diante desse fato parecia que eu poderia compreende-la através das minhas próprias experiências. O que a princípio me movia era a condição de louca imposta à personagem. Eu queria, de alguma maneira, tentar rever essa leitura. Em seu estudo sobre a loucura Michel Foucault recupera a figura da Nau do Loucos, uma embarcação que tinha como finalidade escorraçá-los das cidades1. Começa assim, uma lógica, apontada pelo autor, de exclusão moral e geográfica do louco. Atrelada à embarcação e ao exílio imposto está o signo da água, é ela que afasta a loucura. “Ela leva embora, mas faz mais que isso, ela purifica”2. Ofélia morreu afogada. E a isso Foucault analisa também que a loucura nas obras de Shakespeare se aproxima da morte, em um sentido que não há recursos para voltar dessa condição3. Ao meu ver é como se a água, na qual a personagem morre afogada, levasse embora o sofrimento ao mesmo tempo que coloca um fim à vida. E eu não estava satisfeita com esse desfecho. No meu final ideal Ofélia viveria. Elaine Showalter, em seu artigo sobre a representação da personagem, ressalta a importância dela ser relida por uma mulher uma vez que, sob a lógica de um discurso patriarcal, há uma certa impossibilidade dela não ser representada por um viés que desencadeie na loucura, incoerência, volúpia e silenciamento4. Contudo, a autora aponta que por mais que Ofélia seja invisível na narrativa de Hamlet – a personagem aparece em apenas cinco das vinte cenas que compõe a peça – ela se mostra visível como memória cultural5. Quando, em 2017, comecei o curso da Pós-graduação em Artes da Cena na Escola Superior de Artes Célia Helena sabendo que ao final dele deveria apresentar um Trabalho de Conclusão de Curso, sentia a necessidade de desenvolver a personagem que tinha estudado no curso técnico. A princípio o que me moveu foi a herança da loucura deixada

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pela personagem e como isso alimenta abusos praticados às mulheres ainda hoje. Conforme fui me aproximando do texto e das questões que pontuava descobri que estava falando também sobre paixões – que Foucault analisa como um tipo de loucura6 – e como sobreviver à elas. Ao longo do ano fui adquirindo referências teóricas e práticas que modificaram o meu olhar sobre o fazer teatral e que me aproximaram do Teatro Performativo7. Levei para a minha subjetividade as questões históricas e sociais que envolviam a personagem e motivada por elas tentei construir uma cena que, assim como na análise de Silvia Fernandes sobre teatralidade e performatividade, dissolve os “limites entre obra e processo, ficcional e real, espaço cênico e espaço público, ator e performer”8. Assumo o papel de performer ao encarnar a personagem e sair dela, mostrando em cena esse procedimento. Também o processo de criação do exercício faz parte da própria dramaturgia do exercício. A cena se baseia em elementos autobiográficos que foram estimulados pelo imaginário da Ofélia, imaginário esse que possuí uma dimensão histórica e ao ser pessoalizado se atualiza e se torna histórico novamente. Ao emprestar minhas memórias à personagem descobri histórias pessoais que impregnaram o material criado de um gesto próprio, levando, assim, traços da realidade para a cena. Procurei saturar essas experiências que, se tornando um percepto, podem dar uma dimensão universal ao que era pessoal. Ao longo do processo entendi que o exercício tinha três momentos: a conversa com a rainha, o encontro com Hamlet e o afogamento. O primeiro deles aborda o meu primeiro contato com a personagem questionando a ideia de loucura. O segundo retoma o primeiro exercício que fiz levando a personagem para uma cena performativa evidenciando um tipo de abuso psicológico praticado às mulheres. O último está atrelado ao momento em que descobri que estava também falando sobre paixões e como isso podia simbolizar o ato de se afogar.

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6. Op. cit, p. 38

7. Termo cunhado por Josette Féral para designar práticas teatrais contemporâneas que se beneficiam da performance.

8. S. Fernandes, Teatralidade e performatividade: o teatro performativo, Repertório Salvador, n.16, p. 12.


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A terceira e última parte da dramaturgia começou a ser pensada já com o TCC em andamento sob a orientação de Joana Dória. Foi sugerido que eu tivesse um olhar de fora para esse momento, papel assumido por Natália Nery, Como ela é pesquisadora da experimentação da palavra e do corpomusical guiou a proposta que tinha apresentado à ela dentro do seu repertório de pesquisa. Quando o exercício foi apresentado como um cena curta, em abril de 2018, e a banca – formada por Joana Dória, Alice Nogueira e Marcos Barbosa – deu uma devolutiva foi ressaltado que embora se tratasse de uma especialização em direção e atuação um dos pontos positivos era a dramaturgia. Assim, no ano seguinte levei o material criado como projeto para o Núcleo de Direção e Orientação de Processos Criativos, orientado por Luís Fernando Marques (Lubi), na Escola Livre de Teatro. A intenção era revisitar a dramaturgia do exercício repensando a função da performer, compreendendo as possibilidades de se dirigir estando em cena, e como através do material que ia se levantando, continuar trabalhando o texto. Naquele momento havia também o desejo de repensar o exercício levando em conta uma direção musical tendo em vista o fato de que quando Ofélia se afoga ela está cantando e isso foi deixado de lado durante a criação anterior. Tal função foi assumida pelo meu companheiro, que também desenvolveu uma função performática documental e testemunhal em cena, criando possíveis diálogos da linguagem musical com a obra. Assim, o que antes era uma cena de quinze minutos se transformou em uma obra de 1 (uma) hora e vinte, e foi apresentada pela primeira vez na Mostra de Processos Criativos da Escola Livre de Teatro em 2019.

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2.

CONVERSA COM A RAINHA “Não aceito nem compreendo a loucura. Parece-me que toda a humanidade é responsável pela doença mental de cada indivíduo. Só a humanidade toda evitaria a loucura de cada um.” MAURA LOPES CANÇADO, Hospício é Deus, p.160

Embora a tarefa de criar uma cena fosse um dos formatos sugeridos para o Trabalho de Conclusão de Curso, o processo de criação da prática que foi apresentado é anterior ao início dos estudos na Pós-graduação. O primeiro contato que tive com a personagem Ofélia foi em 2016 ainda durante o curso técnico do Teatro Escola Célia Helena quando, no quinto semestre, optei pela linguagem Teatro Clássico que foi lecionada por Renato Borghi, tendo Isabela Mariotto como assistente. Retomo a experiência desse estudo na primeira parte da dramaturgia intitulada “conversa com a rainha”. Nela utilizo da narrativa em primeira pessoa que é deslocada do meu ponto de vista para o ponto de vista da personagem. Tento dissolver as fronteiras entre meu relato pessoal sobre o processo e o relato da personagem que rememora a cena como uma situação vivenciada. O dispositivo para essa configuração se deu nas aulas, que fiz como eletiva, da Pós-graduação ministradas por Luah Guimarãez. Na disciplina O ator sob a perspectiva de Stanislavski fizemos o exercício de contar a cena estudada em um depoimento em primeira pessoa como se fossemos o personagem. Quando comecei a pensar na prática que foi apresentada fiz esse mesmo exercício com a Ofélia, dentro das circunstâncias que me propunha – relatar um momento de perda para uma mulher que exerce algum tipo de poder. Tal enunciado foi feito na tentativa de neutralizar qualquer juízo de valor a respeito da cena, em Hamlet, que Ofélia vai conversar com a rainha e é tida como louca – cena na qual interpretei Ofélia no exercício apresentado daquele semestre9.

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9. O texto referente à cena pode ser encontrado no Anexo 6.1, p. 22.


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10. Grupo teatral de São Paulo que surgiu nos anos 1990 sob a direção de Antonio Araújo. Conhecido por desenvolver obras site specifc – apropriação de espaços públicos para a construção e apresentação de espetáculos. Peças apresentados pelo grupo: O Paraíso Perdido, O Livro de Jó, Apocalipse 1,11, BR-3, História de Amor, A Última Palavra é a Penúltima, Cidade Submersa e Bom Retiro: La Paz.

11. J. Grotowski apud M. Rinaldi, O Processo Colaborativo no Teatro da Vertigem, Sala Preta, v.1, n.6, p.140.

12. R. Cohen, Performance como Linguagem, p.105.

Com o exercício descobri não só o quão subjetivo é o conceito de loucura – porque na minha percepção eu sempre estava lúcida – como a proximidade com a experiência de algo que já vivi. Diante disso recorri ao depoimento pessoal sobre a experiência que foi se desdobrando em outros depoimentos no que me tocava em relação à personagem, como a história de um acidente doméstico que sofri quando tinha seis anos e o valor que é dado à virgindade da mulher. Miriam Rinaldi, ao relatar o processo colaborativo do Teatro da Vertigem10, aponta esse instrumento – o depoimento pessoal – como um ativador de participação e proposição do ator. “A origem dela está claramente associada às ideias de Jerzy Grotowski, que enfatiza a importância de trazer um “eu” para a performance, diminuindo o espaço existente entre “quem você é” e “o que você representa”, na relação entre ator e personagem [...] Não se trata de exibicionismo, mas antes de desarmamento, de um ato de “emergir para si mesmo” que envolve disciplina, a que Grotowski se refere como uma oportunidade responsável.” 11 Embora a imersão nesse universo tenha se dado por um viés dramático, a criação da cena é amparada por elementos performativos. A personagem clássica aparece como uma referência, mas é um “eu personagem” tensionado a um “eu próprio”. Busquei, por meio de situações reais, alimentar o imaginário em questão. Processo que Renato Cohen caracteriza como tendo o intento de procurar o personagem dentro do próprio ator, em um trabalho “muito mais por extrojeção – tirar coisas de si –, do que pela introjeção – receber a personagem”12. Ofélia foi um dispositivo, mas o que motivou o estudo ser levado a diante foram as discussões, ainda em 2016, que tinha com alguns amigos e amigas que participavam da encenação junto comigo. Tentávamos, despretensiosamente, argumentar contra a condição de “louca” imposta à personagem. Lembro de apontar o que achava que estava muito mais

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para um estado de tristeza do que para um estado de “loucura”, sendo esse apenas uma maneira que ela conseguiu para se expressar diante dos valores e imposições da sociedade em que vivia.

13. Grifos meus.

14. W. Shakespeare, Hamlet, p.103.

O que me instigava eram as palavras usadas por Horácio ao anunciá-la: “As palavras, junto com os olhares, meneios e gestos Que ela faz, dão pra acreditar Que realmente ali há um pensamento13, bastante incerto; Mas muito doloroso.”14 Ao analisar o conceito de loucura, apresentado por Descartes, Foucault explicita a sentença de que “a loucura é justamente a condição de impossibilidade do pensamento”15. Sendo assim a frase de Horácio, para mim, era como uma lacuna que merecia atenção. Embora se trate apenas de uma opinião, da minha maneira de enxergar a personagem e ler a obra, procurei, na literatura, uma referência para embasar meu ponto de vista. Entrei então em contato com Hospício é Deus, livro que reúne diários de Maura Lopes Cançado, jovem mineira que registrou sua passagem em um sanatório no final dos anos 1950. Durante a primeira parte de criação da cena, recorri ao livro para rememorar sensações que tive da primeira vez que li. Alguns trechos foram lidos em voz alta para uma pessoa que acompanhou o processo ao que me foi sugerido levar essa prática para a cena, e ter o livro também como suporte dramatúrgico. A alusão à ele seria feita em um segundo momento – que não é condizente com a ordem cronológica dos acontecimentos – contudo ao longo dos ensaios tal procedimento acabou sendo descartado e o diário foi guardado para uma outra proposta. O processo de construção dramatúrgico faz parte da própria dramaturgia, procurei explicitar as fases que compõe todo o caminho para se chegar ao “resultado final”, resultado esse perecível, que foi se reestruturando a cada fase e movimento. Cecília Almeida Salles analisa a característica

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15. Op. cit, p.46.


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16. C. Almeida Salles, Gesto Inacabado: Processo de Criação Artística, p. 34 texto original está na p. 9.

metamórfica dos processos de criação que geram obras cuja forma final não é definitiva, tendo em vista uma realidade em movimento. “De uma maneira bem geral, poderia se dizer que o movimento criativo é a convivência de mundos possíveis. O artista vai levantando hipóteses e testando-as permanentemente. [...] Convive-se com possíveis obras: criações em permanente processo. [...] Como cada versão contém, potencialmente, um objeto acabado e o objeto considerado final representa, de forma potencial, também, apenas um dos momentos do processo, cai por terra a ideia da obra entregue ao público como sacralização da perfeição. Tudo, a qualquer momento, é perfectível. A obra está sempre em estado de provável mutação, assim como há possíveis obras nas metamorfoses que os documentos preservam.”16 Tal prática se insere também na tentativa de documentar o processo. Da mesma maneira que, em cena, tenho comigo documentos que fizeram parte da trajetória: o vestido, a caixa transparente, o livro e outros materiais que serão abordados nos próximos itens – caixa de presente, áudios, fotos, músicas, pedras e o carretel de barbante vermelho.

3.

PROCESSO DE EMBRIAGUÊS

Como a cena da “conversa com a rainha” era um primeiro pilar da dramaturgia, durante os primeiros meses no núcleo houve um novo contato com esse material, na tentativa de construir um momento anterior à ele. Retomá-lo era uma necessidade diante das discussões em sala de aula, principalmente depois de ser mencionado o “processo de embriagues”, fase similar a um trabalho de mesa na qual todas as pesquisas e referências são discutidas entre a equipe. Como eu já tinha vivido esse momento quando levantava o exercício em 2018,

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precisei trazer as referências que tinha para o diretor musical. Algumas delas nunca tinham sido registradas, de modo que foram que foram redescobertas e incorporadas na dramaturgia. Procurou-se pensá-las por diferentes áreas da arte. Segue registro das anotações: Literatura • Hospício é Deus de Maura Lopes Cançado (primeira “bandeira”: loucura) • História da Loucura de Michael Foucault (a Nau dos Loucos e o signo da água) • Calibã e a Bruxa de Silvia Federici (a morte por afogamento das infanticidas e a tortura por afogamento das que eram consideradas prostitutas) Cinema • As Horas (a cena em que Virginia Woolf coloca as pedras no bolso e se joga no rio) • A carta de suicídio de Virginia Woolf (segunda “bandeira”: suicídio) – O suicídio de outras mulheres que escreviam: Sylvia Plath, Sarah Kane... Artes Visuais • Paisagem do mar em corda de Delfina Bernal (azul X vermelho/ frio X quente/ água X fogo) Artes Cênicas • Ensaio.Hamlet da Cia. dos Atores • Hamlet do Grupo Irmãos Guimarães • Dinamarca do Grupo Magiluth • Conversas com meu pai de Janaína Leite • LOBO de Carol Bianchi • Vaga Carne de Grace Passo

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17. O texto referente à cena pode ser encontrado no Anexo 6.1, p. 24.

Performance • Her Long Black Hair de Janet Cardiff (Audio Tour no Central Park) Música • Cry, cry, cry de Johnny Cash • (enviada por um namorado após um término) • Você não soube me amar da Blitz • (quem são Hamlet e Ofélia?) • Se avexe não da Tássia Reis • (depois do afogamento) • Se essa rua fosse minha • (canção de ninar cantada durante a performance)

4.

ENCONTRO COM HAMLET “Quando uma sociedade não consegue elaborar os efeitos de um trauma e opta por tentar apagar a memória do evento traumático, esse simulacro de recalque coletivo tende a produzir repetições sinistras.” MARIA RITA KEHL, O tempo e o cão, p. 27

O segundo pilar dramatúrgico começou a se configurar no primeiro semestre de 2017, também durante o curso técnico, nos estudos de Teatro Performativo com Alice Nogueira. Após um exercício energético nos foi pedido uma cena que respondesse a pergunta “o que me impede de estar, de fato, com o outro?”. Tal questionamento me remeteu às relações de poder e optei por trabalhar com a questão da desigualdade de gênero retomando a Ofélia. A proposta da cena tinha como base o texto que a personagem vai conversar com a rainha, mas “contaminado” com um depoimento pessoal que aludia ao encontro que Ofélia tem com Hamlet17.

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Laura Dorwart analisa a cena em que Hamlet duvida da virtude de Ofélia e aponta as acusações e comportamento dele como disparador do caminho da personagem à “loucura”18. No exercício cênico apresentado naquele semestre a cena em questão foi inspirada pelo imaginário da Ofélia, mas trabalhada por um viés contemporâneo que abordava o gaslighting, tipo de abuso psicológico no qual a vítima duvida da própria sanidade mental a ponto de se anular19. A tentativa de atualizar a personagem foi a de evidenciar um sintoma social que, embora tenha se deslocado, ainda continua recaindo sobre as mesmas vítimas. Elaine Showalter argumenta que Ofélia tem uma história própria, que não é nem a história de sua vida, nem sua história de amor, mas a história do que ela representa. Ressaltando que a personagem não é apenas uma representação da loucura feminina, mas a representação da loucura feminina, refletindo ainda se ela é o arquétipo da mulher como louca ou da loucura como própria da mulher20. Também Maria Rita Kehl, ao analisar a depressão e o incômodo que ela acarreta à sociedade, retoma o mal que recai ao feminino aludindo às histéricas do século XIX e o início dos estudos da psicanálise. “O que a perturbação que as histéricas trouxeram para a ordem familiar oitocentista revelou, de forma sintomática, foi que os modos tradicionais de simbolizar a diferença sexual já não respondiam às novas configurações que se abriram na vida da mulheres, em um mundo recentemente modificado pelo capitalismo liberal. Penso que a psicanálise, em seus primórdios, participou do importante trabalho de dar nome ao mal-estar que emergiu sob a forma dos desajustes entre o lugar que a tradição designava às mulheres e os novos lugares que se abriam diante delas, desde as revoluções do século XVIII até a consolidação da ordem burguesa no fim do século XIX.”21

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18. L. Dorwart, Revisinting Janet Cardiff’s Central Park Áudio Walk as an Ophelian Performance and Representation, Liminalities: A Journal of Perfomance Studies, v.12, n.2, p.9. (Tradução minha.)

19. Matéria que aborda o tema, disponível em: <https://brasil.elpais.com/ brasil/2017/09/15/ internacional/1505472042_ 655999>

20. Op. cit, p. 77. Grifos meus.

21. M. Rita Kehl, O tempo e o cão: a atualidade das depressões, p. 29.


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22. E. Fabião, Programa Performativo: O Corpo em Experiência, Revista do Lume, n.4, p.4.

23. E. Fischer-Lichte, Realidade e ficção no teatro contemporâneo, Sala Preta, v.13, p.14.

Para alimentar a dramaturgia me propus a fazer um programa performativo que retomasse questões suscitadas na cena anterior. Eleonora Fabião define como programa performativo o enunciado de uma performance que deve ser “um conjunto de ações previamente estipuladas, claramente articuladas e conceitualmente polidas a ser realizado pelo artistas, pelo público, ou por ambos, sem ensaio prévio”22. Assim, pedi a quatro amigas que marcassem um encontro, na minha casa, com uma mulher que até então não conhecia e que me seria apresentada por elas – essa ação nomeio aqui como Programa 1. Detalhes do encontro – dia e horário – foram combinados entres essas mulheres e me avisados, assim, através de quatros mulheres conhecidas conversaria com quatro mulheres desconhecidas. Durante o encontro contei uma história, baseada no texto usado na cena, e pedi à elas que me contem uma história em troca. No final do encontro pedi ainda um objeto que cada uma das mulheres carregava com elas no dia. Como todas as conversas foram gravadas – mediante autorização de cada uma delas – pensei em usar criar um áudio como se fossem vozes na cabeça da personagem. A intenção seria usar o material da seguinte maneira: fazer uma colagem com os áudios e colocá-la em cena, enquanto escuto o áudio – resultado dessa colagem – passo uma pedra que estava dentro de uma caixa de presente. Tal ação surgiu depois de apresentar o material para o Núcleo de Direção em forma de áudio-tour, no qual eu colocava a caixa em um local específico da Escola Livre de Teatro – onde exatamente a tinha recebido pela primeira vez – em baixo da seguinte frase: “tenho comigo alguma lembranças suas que gostaria muito de lhe restituir”, em alusão ao presentes que Ofélia tenta devolver a Hamlet. Tal procedimento ocasiona uma fricção entre a minha própria história e as histórias de outras mulheres e, ao mesmo tempo em que as tomo como minhas explico o procedimento que as gerou. Assim, surge um terreno para se discutir o que é real ou não. Erika Ficher-Lichte indica que “quaisquer que sejam os lugares e os momentos nos quais o teatro acontece, ele sempre se caracteriza por uma tensão entre o real e o fictício”23, contudo, ao analisar o teatro contemporâneo, expõe ações

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que tendem a saturar esse limite. Tal mecanismo é notável nas obras de Sophie Calle, em Histórias Reais, por exemplo, a performer francesa esgarça a fronteira entre realidade e ficção instigando o leitor que pode duvidar do titulo da obra tendo em vista a natureza mirabolante do que é contado. A história é verdadeira? Qual história é verdadeira? Se existe uma história fictícia, ela é completamente inventada? Cecília Almeida Salles sugere que esses jogos com a realidade são um modo do artista se deixar afetar, uma vez que ele é capaz de transformar mentiras em verdades, “o que só tem importância relativa, pois ambos são igualmente vividos e pessoais”24. Embora não seja essa a pretensão, me interessa que ao optar por tal estrutura, com a colagem dos áudios, ocorra dúvidas quanto à veracidade do que é contado, uma vez que essa atitude gera um posicionamento de quem recebe a obra. Duvidar é se posicionar. E assim, a cena se dispõe de histórias privadas que se tornam públicas, deslocando questões do âmbito pessoal para o âmbito coletivo. A questão que perpassa não somente a cena, mas toda obra com caráter autobiográfico é analisa por Janaína Leite como dispositivo de mudança. “O que nos parece é que nessas obras e nas demais tentativas de representação autobiográfica, as figurações e escolhas estéticas não são simplesmente uma forma de expressar o vivido, mas, o próprio espaço de sua elaboração. Daí seu caráter “terapêutico”, se entendermos terapêutico como o terreno de uma ação sobre si mesmo, sobre o vivido, em que o individuo, ao dar forma à experiência, pode entrar em confronto com as figuras de si mesmo, do passado e do presente, e dar-lhes mobilidade, movimento.”25 Recorrer à memória – minha ao longo de toda a cena e de outras mulheres nesse momento específico – é uma maneira de ativar a imaginação. “Lembrar não é reviver, mas refazer, reconstruir, repensar com imagens

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24. Op. cit, p.104.

25. J. Fontes Leite, Autoescrituras Performativas: do diário à cena, p.81.


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26. C. Almeida Salles, op. cit, p.105. 27. Op. cit, p.14.

de hoje as experiências do passado. Memória é ação. A imaginação não opera sobre o vazio, mas com a sustentação da memória”26. Diante disso percebo que ao longo desse programa o modo como eu contava a minha história para as outras mulheres ia se modificando, parecia que eu ajeitava o relato para ele ficar mais “apresentável”. Alguns detalhes foram propositalmente esquecidos, informações foram alteradas e eu sabia que fazia isso para poder contar uma história que me era mais conveniente e interessante, e que ao mesmo tempo não deixava de ser real. Após tal constatação consegui olhar de uma outra maneira para um episódio do meu passado e entendi que alguns sentimentos – que me motivaram a levar essa história para uma cena – já não eram mais o mesmos. O momento presente tinha resignificado-os. Assim, retomo o que Leite indica como ser “necessário inventar a forma que convém a cada experiência”27, afinal é como se sempre estivéssemos fabulando o que vivemos, além de não haver um modo de reprodução fidedigna da nossa história.

5. AFOGAMENTO “Um performer não apenas coloca propositalmente pedras em seu sapato, mas usa sapatos de pedra para que outros fluxos e outras maneiras de percepção e relação possam circular”. ELEONORA FABIÃO, Performance e teatro, p.235.

Antes de fazer esse exercício já vinha fazendo um outro programa performativo. Durante um mês, uma vez por semana, às segundas-feiras, caminhava da Praça Roosevelt até o cruzamento da Consolação com o Viaduto Nove de Julho pegando todas as pedras que encontrava no meio do caminho e as colocava dentro de uma sacola. Chegando no destino proposto colocava a sacola no chão e tirava dela um carretel de barbante

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vermelho – que já se encontrava lá durante a ação anterior – e então desenrolava o fio e o enrolava de volta cantando uma canção de ninar – essa ação nomeio aqui como Programa 2. Eleonora Fabião define um programa performativo como “um tipo de ação metodicamente calculada, conceitualmente polida, que em geral exige extrema tenacidade para ser levada a cabo, e que se aproxima do improvisacional exclusivamente na medida em que não seja previamente ensaiada”28. Para ela o fim desse tipo de ação é o de ativar experiências, “longe de um exercício, prática preparatória para uma futura ação, a experiência é a ação em si mesma”29. Diante disso me senti em um impasse: se podia, de fato, chamar o que estava fazendo de programa uma vez que o dispositivo para ele foi o imaginário do meu estudo. Quando me propus fazê-lo tinha a pretensão de, através dele, caminhar em direção a construção de uma cena e tal prática é rejeitada pela performer. “Sugiro que através da prática de programas performativos, o ator poderá ampliar seu campo de experiência e conhecer outras temporalidades, materialidades, metafisicalidades; experimentar mudanças de hábitos psicofísicos, registros de raciocínio e circulação energéticas; acessar dimensões pessoais, políticas e relacionais diferentes daquelas elaboradas no treinamento, ensaio ou palco. [...] Porém, faço aqui uma ressalva que me parece necessária: penso ser descabido realizar programas cujo objetivo seja levantar material para uma cena à maneira de uma improvisação ou laboratório. O que a performance possibilita é uma ampliação da pesquisa sobre cena e sobre presença justamente por ser cena-não-cena. Transformá-la num método para levantamento de material é esvaziá-la de sua imediatidade, de sua urgência; é enquadrá-la numa

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28. E. Fabião, Performance e Teatro: Poéticas e Políticas da Cena Contemporânea, Sala Preta, v.8, p.237.

29. Ibidem.


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funcionalidade que a descaracteriza e enfraquece – esta seria a arte de não fazer performance. Em outras palavras: assim como uma performance não é “ensaiável”, não faz sentido transformá-la em ensaio. Porém, desdobrar a performance realizada em novas experimentações – experiências de escrita, de criação dramatúrgica, de teatro, de vida – isto sim me parece condizente e potente.”30

30. E. Fabião, Programa Performativo: O Corpo em Experiência, Revista do Lume, v.4, p.9.

Contudo, por mais que questionasse o que estava fazendo por um viés conceitual, percebia a potencia da ação e opto por continuar chamando-a de programa, uma vez que ela tem um valor próprio e não é apenas como uma etapa para alguma outra coisa. O que sempre me interessou era experiência proporcionada pelo programa, que tem sentido por si só, mas que pode também ser um gerador de materiais. Reafirmo que a ação tem um caráter independente daquilo que vai ou não ser levado para a cena. Convidei uma amiga para registrar meu percurso, dei à ela uma câmera e um gravador para isso. Quando fui ver o material me surpreendi com um áudio que ela tinha feito no qual descrevia minhas ações e o que acontecia ao redor, além de fazer suas próprias observações. Percebi mais uma vez a presença de mulheres comigo por meio de vozes. Ao longo do período em que fiz a ação convidei mais três amigas para também fazer o registro – num total de quatro mulheres. Diante disso, o relato a seguir – proposto por Natália – tem como finalidade dissecar alguns elementos presentes no programa para entender como eles me afetam. O caminho percorrido: Começo no local combinado como ponto de encontro. Estou em um encontro, e percebo isso ao longo do encontro. Antes de ir pra lá não tinha certeza se era sobre isso que se tratava. Podia muito bem ser só dois amigos tomando uma cerveja. Mas não era. E eu soube disso no momento em que meus olhos começaram a arder, isso acontece quando eu estou, de alguma maneira, emocionada. E para tentar esconder a emoção tampo os meus olhos com as mãos e faço um movimento como se tivesse os limpando.

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Não sabia exatamente onde estava, só soube mais tarde, já em casa, quando percorri o caminho mentalmente. O meu ponto de referencia era a Biblioteca Mario de Andrade. Foi quase em frente a ela que paramos, mais preciso, em um cruzamento antes dela. Lembro de ter pensado em como demonstrações de afeto mudam o modo como nos relacionamos com o espaço público. Mas o que antes era afeto chega em mim agora como mágoa. Na verdade é um misto dos dois: em algum lugar da lembrança tenho o momento de felicidade. Estaria tentando congelar esse momento para não ter que lidar com o resto da história? Queria mudar o rumo da história? Ou queria que ela simplesmente não tivesse existido? Queria mudar a história. Queria mudar a relação que tive comigo mesma: faltou autocuidado. Na semana passada estive nesse mesmo lugar, numa outra situação, que não era nem a do encontro nem a da performance. Era carnaval e fui a um bloco que passou por ali. Uma das convidadas desse bloco era a cantora Tássia Reis, minha conterrânea. Ao longo do caminho que se seguiu ela falou sobre autocuidado antes de começar a cantar: “Se avexe não, não chore. Nem se demore nesta dor porque acalanto do seu coração está vindo, e é tão lindo quanto essa canção. Não que eu lhe deva dizer como é que se deve sofrer, chore se quiser chorar, corra se quiser correr. Mas saiba que amor quando é dor, mais pra dor do que amor, vou dizer, não vale o seu desgastar já que há tanto pra se viver”31. As pedras: A imagem da Ofélia morrendo afogada está na minha mente intrinsecamente com um outra imagem que me apavorou quando eu tinha dez anos: a cena em “As Horas” em que Virginia Woolf, interpretada por Nicole Kidman, enche os bolsos com pedras e se atira no rio. Me parecia uma morte que envolve muito sofrimento, só de imaginar me sinto sufocada. E me apavora ainda mais que isso seja uma opção. Aos dezessete anos tive uma overdose – esse episódio está na história que conto para as mulheres no Programa 1 – mas não consigo me lembrar se foi uma escolha. Só lembro de sair do hospital querendo viver e prometendo pra mim mesma que coisas daquele tipo jamais se repetiriam. Mas se repetiram. Não comigo. Sete anos

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31. T. Reis, Se Avexe Não.


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32. Carta escrita no diário pessoal da artista.

depois, na mesma data do meu acidente, uma menina tomou uma cartela de remédio em meio a uma crise de pânico. Eu me culpo por isso. Sinto que fui educada pra me sentir culpada. E a isso atribuo, de certa forma, uma infância e adolescência dentro da igreja católica. Sempre quando algo dá errado na minha vida eu automaticamente me cobro por isso. Me pergunto o que poderia ter feito de diferente como se fosse só responsabilidade minha As pedras que encontro no caminho são todas as culpas que carrego comigo e não me pertencem. São elas que devem se afogar e não eu. Essas pedras que eu coloquei no meu bolso, eu preciso atirar elas no rio. O barbante vermelho: Duas referências me levaram a esse fio: o mito chinês akai ito e o fio de Ariadne. O mito chinês trata de um fio vermelho invisível que os deuses amarram no dedo mindinho das pessoas unindo aquelas que estão predestinadas a se conhecer. Já o fio de Ariadne representa o modo de resolução de um problema voltando as etapas que antecederam à ele para assim encontrar alternativas de reverte-lo. Queria com isso reverter um problema e, ao mesmo tempo, tentar fazer as pazes com o destino, porque ele, de certa forma, me angustia. Até que ponto o que acontece é porque estava destinado a acontecer? Quando nossa imposição basta por si só? A ideia de usar esse fio veio no momento em que escrevia uma carta e dizia: “É natural eu achar que eu estou louca. É um modo de me orientar quando a realidade que se apresenta é uma pessoa que, de manhã, me dá a corda para que, a noite, eu me enforque com ela”32. Pra mim se tratava de um história que tinha sido tecida de uma maneira e isso precisava de um reparo. Precisava voltar à fase anterior: desenrolar todo o fio. Depois, como um pouco mais de controle, enrolá-lo a minha maneira. Sem me enforcar. Sem me afogar.

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Terminado esse procedimento compreendi que eu estava abordando algo que ia além da loucura e do abuso. Era sobre paixões que estava falando. E sobre toda a contextura de loucura e de abuso – esse último sendo pra mim o contrário do amor – contida nele. Mais especificamente, era sobre o meu modo de me envolver. Era sobre o desejo de mergulhar no rio sem se afogar, mas se o afogamento acontecesse como sobreviver a ele? Quando procurei a orientação do Lubi, já fazia quase um ano em que tinha apresentado a cena de 15 minutos, e estava em um outro relacionamento, inclusive colocando o meu companheiro em cena. Essa atualização fez parte da dramaturgia e criação cênica. Também procurei me alimentar de algumas oficinas vivenciada ao longo do período para a criação e revisão do texto. Dentre elas destaco a Oficina Dramaturgias do Front, orientada por Dione Carlos – na qual escrevi o último trecho da peça – e o Ateliê Experimentos em Dramaturgia, orientado por Leda Maria Martins.

6. CONSIDERAÇÕES FINAIS “No que depender do amor, para além da paixão e para além do desejo: ninguém mais se afogará”. MATILDE CAMPILHO, Veleiro in: Jóquei, p.36 Ao longo do processo de criação cênica descobri que o fazer teatral pode começar de uma intuição que, por mais pequena que seja, é algo que nos move. Se debruçar sobre uma personagem e com isso ativar uma história pessoal que possa ser levada para a cena pode resignifcar um imaginário. A potência do relato autobiográfico consiste em deslocar um fato pessoal para uma dimensão histórica, articulando também o privado e o público, o individual e o coletivo. Faço uma ressalva a importância da experiência proporcionada pelos programas performativos que são, por si só, um acontecimento. Ao

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desdobra-los e obter, através desse procedimento, materiais que podem ser usados em cena elucido a maneira como um texto clássico pode ser reinterpretado tendo em vista as perspectivas contemporâneas de construção cênica. Sinto que o afogar ganha uma nova dimensão diante da trajetória proporcionada pelo exercício. É como um mergulhar em si mesmo a fim de suscitar uma potência criadora.

7. BIBLIOGRAFIA CALLE, Sophie. Histórias reais. Rio de Janeiro: Agir, 2009. CAMPILHO, Matilde. Jóquei. São Paulo: Editora 34, 2015. CANÇADO, Maura Lopes. Hospício é Deus. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2015. COHEN, Renato. A performance como linguagem. São Paulo: Perspectiva, 1989. DORWART, Laura. Revisiting Janet Cardiff’s Central Park Áudio Walk as an Ophelian Performance and Representation in Liminalities: A Journal of Performance Studies, v.12, n.2, 2016. Disponível em: <http://www. liminalities.net>. Acesso em 23 jan 2018. FABIÃO, Eleonora. Ações Cariocas: 7 ações para o Rio de Janeiro in ______. Corpo cênico, estado cênico in Revista Contrapontos, v.10, 2010. ______. Performance e teatro: poéticas e políticas da cena contemporânea in Revista Sala Preta, v.8, p.235-246, 2008. ______. Programa performativo: o corpo em experiência in Revista do Lume, n.4

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FÉRAL, Josette. Por uma poética da performatividade: o teatro performativo in Revista Sala Preta, v.8, p.197-210, 2008. FERNANDES, Silvia. Teatralidade e performatividade: o teatro performativo in Repertório Salvador, n.16, p.11-23, 2010. FISCHER-LICHTE, Erika. Realidade e ficção no teatro contemporâneo in Revista Sala Preta, v.13, p.14-32, FOUCAULT, Michel. História da Loucura. São Paulo: Perspectiva, 2014. KEHL, Maria Rita. O tempo e o cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2015. LEITE, Janaina Fontes. Autoescrituras performativas: do diário à cena. São Paulo: Perspectiva: FAPESP, 2017. LEONARDELLI, Patrícia. A Memória Como Recriação do Vivido: Um Estudo do Conceito de Memória Aplicado às Artes Performativa na Perspectiva do Depoimento Pessoal. Tese (Doutorado em Artes Cênicas), ECA, São Paulo, 2008. RINALDI, Miriam. O ator no processo colaborativo do Teatro da Vertigem in Revista Sala Preta. SALLES, Cecília Almeida. O gesto inacabado. São Paulo: Editora Intermeios, 2015. SHAKESPEARE, William. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 2016. SHOWALTER, Elaine. Representing Ophelia: Women, Madness and the Responsibilities of Feminist Criticism in Shakespearean Criticism: Hamlet, v. 59, 1985. Disponível em: <http://www.enotes.com>. Acesso em 23 jan 2018.

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Thazio Silva Bezerra de Menezes 33 anos, Natal (RN). Ator e bailarino, é graduado em ciências contábeis pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), licenciado em teatro também pela UFRN e pós-graduando em ensino em teatro no Instituto Federal do Rio Grande do Norte (IFRN). É integrante do Entre Nós Coletivo de Criação e do Arkhétypos Grupo de Teatro e professor de artes da rede básica de ensino. thaziomenezes@hotmail.com

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ficha técnica Universidade Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN) Tipo do curso Graduação Nome do curso Licenciatura em teatro Período do curso 2016-2020 Estado Rio Grande do Norte Título do trabalho A poética dos elementos e as epistemologias do sul Nome do autor Thazio Silva Bezerra de Menezes Nome do orientador Prof. Dr. Robson Carlos Haderchpek Número de páginas 18

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RESUMO Essa pesquisa de iniciação cientifica teve como foco uma investigação acerca das epistemologias do sul na sua relação com a cena e os saberes interculturais oriundos da prática metodológica desenvolvida pelo Arkhétypos Grupo de Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN). Propondo um recorte no tema central o presente trabalho buscou investigar como a relação entre ócio e prazer pode marcar a construção de um processo criativo. À luz da Poética dos Elementos e da “Dramaturgia dos Encontros” (HADERCHPEK, 2016), e tomando como referência os escritos sobre elementais de Gaston Bachelard (2013), as Epistemologias do Sul (SANTOS, 2009), e o conceito de Ócio Criativo (DE MASI, 2000), o processo “Tempo” emerge como resultado prático desta pesquisa, portando uma perspectiva de trabalho saudável, permitindo a todos os participantes revisitar intimamente a sua forma de trabalhar criativamente e de entender de forma profunda suas questões a comunicar teatralmente. Palavras-chaves: Epistemologias do Sul, Poética dos Elementos, Ócio Criativo. ABSTRACT This scientific initiation research focused on an investigation about the epistemologies of the south in their relationship with the scene and intercultural knowledge from the methodological practice developed by the Arkhétypos Theater Group at the Federal University of Rio Grande do Norte (UFRN). Proposing a cut in central theme, the present work searched to investigate how the relationship between leisure and pleasure can mark the construction of a creative process. In the light of the Poetics of the Elements and the “Dramaturgy of Encounters” (HADERCHPEK, 2016), and taking as a written reference the elements of Gaston Bachelard (2013), the Epistemologies of the South (SANTOS, 2009), and the concept of Creative Leisure (DE MASI, 2000), the “Tempo” process emerges as a practical result of this research, carrying a perspective of healthy work, allowing all participants to intimately revisit their way of

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working creatively and in a profound sense of their issues to communicate theatrically. Keywords: Epistemologies of the South, Poetics of the Elements, Creative Leisure. RESUMEN Esta investigación de iniciación científica se centró en una investigación sobre las epistemologías del sur en su relación con la escena y el conocimiento intercultural desde la práctica metodológica desarrollada por el Grupo de Teatro Arkhétypos de la Universidad Federal de Rio Grande do Norte (UFRN). Proponiendo un corte sobre el tema central, el presente trabajo buscó investigar cómo la relación entre ocio y placer puede marcar la construcción de un proceso creativo. A la luz de la Poética de los Elementos y la “Dramaturgia de los Encuentros” (HADERCHPEK, 2016), y tomando como referencia los escritos sobre elementales de Gaston Bachelard (2013), las Epistemologías del Sur (SANTOS, 2009), y el concepto de Ocio Creativo (DE MASI, 2000), el proceso “Tempo” surge como resultado práctico de esta investigación, brindando una perspectiva de trabajo saludable, permitiendo a todos los participantes revisar íntimamente su forma de trabajar creativamente y comprender profundamente sus preocupaciones para comunicarse teatralmente. Palabras clave: Epistemologías del Sur, Poética de los Elementos, Ocio Creativo.

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1. INTRODUÇÃO

1. Financiamento PIBIC/ CNPq (2019-2020).

Essa pesquisa de iniciação científica realizada na Universidade Federal do Rio Grande do Norte (UFRN), intitulada “A Poética dos Elementos e as Epistemologias do Sul”1, teve como foco uma investigação acerca das epistemologias do sul na sua relação com a cena e os saberes interculturais oriundos da prática metodológica desenvolvida pelo Arkhétypos Grupo de Teatro da UFRN. Escolhi, dentro desta temática, fazer uma investigação sobre a importância do ócio criativo para atores e atrizes nos dias de hoje, à luz da Poética dos Elementos - procedimento de criação cênica do Arkhétypos Grupo de Teatro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte -, e tomei como referência os escritos sobre os elementais de Gaston Bachelard (2013) e das Epistemologias do Sul, base de estudo de Boaventura de Sousa Santos (2009). Ressalto desde já que, o exercício de associar símbolos, imaginações, práticas corporais a elementos da natureza, quais sejam, terra, fogo, ar e água, inspirando o imaginário criativo, chama-se Poética dos Elementos. Esta poética, inspirada no trabalho de Gaston Bachelard (2013) e que se traduz na prática do Grupo Arkhétypos, traz em sua concepção a classificação de nossas imaginações materiais conforme elas se associem à tetralogia dos elementos. Tais elementos materiais aliados ao processo criativo têm a força de alimentar fortemente as almas poéticas dos atores e atrizes. Com esta pesquisa quis problematizar e experimentar outras dinâmicas de produzir arte, mais especificamente a teatral, e de produzir novos significados e aprendizados à minha existência por uma perspectiva que não é tão bem vista dentro desse modus operandi “corrida maluca” que a nossa sociedade enfrenta atualmente. Então, queria colocar como ponto de partida, tanto em minha vida como no processo de investigação criativo, um estado de espírito e de sentimento de calma, que promovesse um respiro maior, por um viés que não fosse o fazer exaustivo, que traz consigo o estresse, a fadiga e o cansaço.

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Evoco, com isso, o ócio e seus sinônimos o “descanso”, a “pausa”, o “repouso”. O ócio, da forma como eu o percebo e o insiro no meu cotidiano, não é colocado como um tempo estagnado ou improdutivo. Mas sim, como um tempo que despendemos para o próprio cuidado de si, revelando-se altamente produtivo e saudável para nossas vidas. E é justamente desse tipo de ócio que trato nesta pesquisa, o que também o sociólogo italiano Domenico de Masi (2000) vai descrever, em um de seus livros que carrega esta acepção, chamando-o de “ócio criativo”. Ao se voltar para dentro, ao promover o olhar para si, e perceber e sonhar com a sua própria intimidade, segundo Bachelard (2003, p. 4), é “que se sonha com o repouso do ser, com um sonho enraizado, com um repouso enraizado, um repouso que tem intensidade e que não é apenas essa imobilidade inteiramente externa reinante entre as coisas inertes”. Declarado isto, pude perceber que, durante os momentos de apreciação do meu eu, meu íntimo busca prazer nas ações que promovo, eu busco ter tempo livre para fazer o que gosto. Após esta breve apresentação do meu tema, divido esta reflexão da seguinte forma. Primeiramente falo sobre como o tempo livre pode ser utilizado na criação de significados. O tempo ocioso ao ser preenchido com cultura, de forma a enriquecer os significados, dando sentido às coisas, torna-se saudável. Em seguida, abordo a questão do ócio criativo estabelecendo um diálogo com as Epistemologias do Sul e propondo uma análise crítica da sociedade frente ao fator tempo. Ainda neste tópico discorro sobre o massacre e as bonanças ditados ao tempo livre, que é percebido no mundo infantil bem como no teatro ritual, onde ele acontece de forma dilatada. E finalizo falando sobre o processo de criação “tempo” e os desdobramentos gerados com este estudo.

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2. METODOLOGIA A presente pesquisa se norteou pelas seguintes diretrizes: • Experimental: foi conduzida por mim e pela aluna-pesquisadora Ana Clara Veras Brito de Almeida (graduanda do curso de Licenciatura em Teatro na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, membra do Arkhétypos Grupo de Teatro e bolsista de Iniciação Científica) e orientada pelo Prof. Dr. Robson Haderchpek, dentro da perspectiva da prática laboratorial (GROTOWSKI; POLASTRELLI; FLASZEN, 2007), contemplando investigações artísticas e experimentos práticos desenvolvidos pelo Arkhétypos Grupo de Teatro da UFRN; • Bibliográfica: foi desenvolvida relacionando o tema proposto por mim, qual seja, a importância do ócio criativo para o trabalho de composição do ator e da atriz, com as reflexões conceituais oriundas do projeto em questão, tomando como base as epistemologias do sul (SANTOS, 2009) e as poéticas e estéticas decoloniais. Esse campo epistemológico que trata os autores Santos e Meneses (2009) procura, de forma desafiadora, ganhar voz diante dos danos e impactos historicamente causados pelo capitalismo. As Epistemologias do Sul como os autores descrevem: Trata-se do conjunto de intervenções epistemológicas que denunciam a supressão dos saberes levada a cabo, ao longo dos últimos séculos, pela norma epistemológica dominante, valorizam os saberes que resistiram com êxito e as reflexões que estes têm produzido e investigam as condições de um diálogo entre conhecimentos. (2009, p. 7) O Sul localizado neste conceito de Santos, muitas vezes coincide com o sul geográfico - América do Sul, América Latina, África, sul da Ásia - que são partes continentais que não atingiram níveis de desenvolvimento

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econômico semelhantes ao Norte Global (América do Norte e Europa). Digo, “muitas vezes”, por excluir desse sul geográfico a Austrália e Nova Zelândia. Dessa forma, esse Sul surge como metáfora para revelar o lado dos oprimidos pelas diferentes formas de dominação colonial e capitalista. E mais, criou-se uma linha abissal entre os saberes do norte e do sul. Os do norte considerados como saberes úteis inteligíveis, visíveis. E os saberes do sul como inúteis, perigosos, ininteligíveis, objetos de supressão ou esquecimento. E é sobre este último que recaem os saberes milenares de nossos índios, de nossos antepassados. Para combater esse processo de apagamento, Santos (2009) propõe uma iniciativa epistemológica que se assente na ecologia dos saberes, promovendo o diálogo e o reconhecimento entre os diferentes saberes (norte e sul, tradicionais e modernos, científicos e não científicos) e na tradução intercultural. 2.1

Técnicas e procedimentos:

Tive à minha disposição os princípios norteadores do Teatro Laboratório e do Jogo Ritual do pesquisador Jerzy Grotowski (2007), o Treinamento Energético (BURNIER, 1985:35, In Burnier,1994:33 apud FERRACINI, 2012), que tem como base os Elementos Pré-expressivos (BARBA, 2012), a Poética dos Elementos (BACHELARD, 2013) e a Dramaturgia dos Encontros (HADERCHPEK, 2016). O treinamento energético é um treinamento físico intenso e ininterrupto, e extremamente dinâmico, que visa trabalhar com as energias potenciais do ator. Ao confrontar e ultrapassar os limites de seu esgotamento físico, provoca-se um —expurgo— de suas energias primeiras, físicas, psíquicas e intelectuais, ocasionando o seu encontro com novas fontes de energias, mais profundas e orgânicas. —Uma vez ultrapassada esta fase (do esgotamento físico), ele (o ator) estará em condições de reencontrar um novo fluxo energético, uma

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organicidade rítmica própria a seu corpo e à sua pessoa, diminuindo o lapso de tempo entre o impulso e ação. Trata-se, portanto, de deixar os impulsos — tomarem corpo—”. (BURNIER apud FERRACINI, 2012, p. 95). Não existem movimentos específicos no exercício desse tipo de treinamento. O ator deve estar preparado para trabalhar com diferentes dinâmicas, níveis, intensidades, a fim de colocar o corpo em movimento até a exaustão. A regra é: não parar! Já o procedimento chamado por Haderchpek (2016) de “dramaturgia dos encontros” foi utilizado na tentativa de tornar claro para nós um ou alguns caminhos que fossem compartilhados por todos, para possibilitar cada vez mais o estreitamento da dramaturgia do trabalho prático. Para tanto, realizávamos roda de conversas: A “roda de conversas” é um procedimento que integra o processo de criação a partir do “jogo ritual”. Após a realização dos laboratórios, os atores sentam-se numa roda e partilham suas experiências fazendo relação com as experiências do outro. É neste momento que registramos o que aconteceu de mais importante dentro do laboratório, é daí que nasce a “dramaturgia dos encontros”. (HADERCHPEK, 2016, p. 50) 2.2

Forma de discussão e análise dos resultados:

A análise dos resultados obtidos nesta pesquisa foi desenvolvida de forma dialética, traçando paralelos entre a prática laboratorial desenvolvida no Grupo Arkhétypos de Teatro da UFRN, os estudos sobre as Epistemologias do Sul (SANTOS, 2009) e o Ócio Criativo (DE MASI, 2000).

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2.3

Teoria de base:

A teoria de base foi estruturada a partir da inter-relação entre os princípios decorrentes do Teatro, do Ritual e da Performance desenvolvidos pelo Grupo Arkhétypos, os estudos sobre as Epistemologias do Sul (SANTOS, 2009), o conceito de Ócio Criativo (DE MASI, 2000) e as definições de inconsciente coletivo e de arquétipos propostos por Carl Gustav Jung (2012). Foram utilizados também os depoimentos dos atores e atrizes, e posterior análise acerca dos experimentos práticos. 2.4

Registro e coleta de dados:

O material foi registrado através de vídeos, fotografias e depoimentos.

3.

RESULTADOS E DISCUSSÕES:

3.1

O prazer e o tempo livre

O prazer é algo que pulsa vivamente em mim e que está implícito (e explicitamente) também na arte teatral que faço, pois a base do teatro é o jogo, e no jogo se tem o divertimento e o prazer, como afirma Huizinga (2010): Os animais brincam tal como os homens. Bastará que observemos os cachorrinhos para constatar que, em suas alegres evoluções, encontram-se presentes todos os elementos essenciais do jogo humano. Convidam-se uns aos outros para brincar mediante um certo ritual de atitudes e gestos. Respeitam a regra que os proíbe morderem, ou pelo menos, com violência, a orelha do próximo. Fingem ficar zangados e, o que é mais importante, eles, em tudo isto, experimentam evidentemente imenso prazer e divertimento. (HUIZINGA, 2010, p. 5)

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Essa sensação prazerosa de fazer algo foi algo libertador em minha vida e foi dessa junção que passei a viver: o trabalho (dança, teatro e canto), o estudo e o jogo (que as artes cênicas promovem), e o prazer. O prazer para mim está diretamente ligado ao “ócio criativo”, conceito elucidado por Domenico de Masi: Quando trabalho, estudo e jogo coincidem, estamos diante daquela síntese exaltante que eu chamo de “ócio criativo”. Assim sendo, acredito que o foco desta nossa conversa deva ser este tríplice passagem da espécie humana: da atividade física para a intelectual, da atividade intelectual de tipo repetitivo à atividade intelectual criativa, do trabalho-labuta nitidamente separado do tempo livre e do estudo ao “ócio criativo”, no qual estudo, trabalho e jogo acabam coincidindo cada vez mais. (DE MASI, 2000, p. 16) O ócio, como dito por Domenico de Masi (2000), está ligado a 3 grandes pilares: o tempo, o prazer e o silêncio. Pode-se gerar conhecimento e devaneios criativos pelo ócio e pelo prazer, se enxergarmos este ócio não pela estagnação, não pelo não fazer, mas pelo ócio criador que traz o prazer, que alimenta e não que exaure. Inclusive sobre essa relação da tríade tempo/prazer/silêncio com o ócio criativo faço uma ponte com o que o autor Peter Senge (2010) fala em seu livro “A Quinta Disciplina”. Segundo o autor, nas empresas japonesas, quando uma pessoa está em silêncio em sua mesa parecendo não fazer nada, ninguém a aborda ou a interrompe, pois um trabalho muito importante está em curso: o pensamento. Diferentemente do que ocorre nas empresas ocidentais, onde a nossa cultura nos leva a brecar o raciocínio de alguém quando este se encontra parado, quieto, parecendo não fazer nada. É como se não se pudesse existir a pausa para a reflexão. Ponderando sobre essa questão, e tomando como base as epistemologias do sul, de Boaventura de Sousa Santos (2009), podemos associar a este ócio uma brecha para o massacre, pois de acordo com nosso pensamento

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colonizador e a nossa sociedade capitalista atual, há pecado quando existe prazer em nosso trabalho diário. Os indígenas brasileiros, por exemplo, de um modo geral, “ainda são percebidos como bons, inocentes, mas ao mesmo tempo preguiçosos e violentos, especialmente quando são apresentados como obstáculo ao progresso e ao desenvolvimento do país.” (LAMAS; VICENTE; MAYRINK, 2016, p. 125). A estigmatização desses povos está condicionada aos interesses do colonizador/conquistador, mantidos não somente pelos meios comunicacionais, mas também pelas escolas e obras didáticas. Então, se aqueles ocupam terras que poderiam ser utilizadas para a pecuária ou para a construção de estradas e hidrelétricas, a ideologia dominante escrita pelo colonizador acaba deturpando, para o bem ou para o mal, a imagem do indígena. Por isso, “o índio é aquele vagabundo preguiçoso, que só faz as coisas no tempo dele.”, como dizem ainda alguns muitos. Termos preconceituosos que referendam uma prevalência cultural dentre outra(s). Mas entendamos que a utilização dos tempos (seja de trabalho ou de descanso) é feita de maneiras distintas. E sob a ótica da antropologia, não se pode hierarquizá-las como piores ou melhores, ou superiores ou inferiores. A sua forma de descansar é própria e decorrente de um processo cultural. Carmen Junqueira fala que pesquisas realizadas em diversas partes do mundo indígena revelaram que poucas horas são gastas para assegurar a alimentação e, parte do tempo, é despendida em conversas, banhos de rio, passeios, e várias horas são reservadas para o descanso (apud DERZETT, 2016, p. 24-25). 3.2

A relação entre o ócio e as epistemologias do sul

“Não é do trabalho que nasce a civilização: ela nasce do tempo livre e do jogo.” Esta frase de Alexandre Koyré, filósofo francês de origem russa que escreveu sobre história e filosofia da ciência do século XX, alertanos para a mudança (e supremacia) de paradigmas culturais referente ao tempo livre. Podemos, também, analisar de uma forma crítica a raiz desse tipo de pensamento hegemônico nos estudos e pesquisas do professor português Boaventura de Sousa Santos.

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Na nossa sociedade atual, que sofre dos impactos do insano frenesi do ritmo pós-industrial capitalista, muito se tem relatado sobre o estresse e outros adoecimentos psíquicos oriundos do excesso de trabalho e consequente falta de tempo para atividades mais prazerosas. Muitos são designados a terem uma rotina extenuante de afazeres, e por vezes obrigados a fazer o que não gostam, e isso tem provocado o adoecimento de seus corpos, de suas mentes e do seu coração. Problemas de ansiedade, stress e depressão, estão cada vez mais comuns. Cronos, o Deus-Tempo, que comanda nossos relógios, não para. Segundo Franco, Druck e Seligmann-Silva, muitos dos regimes de trabalho atuais estão em contradição com os biorritmos dos indivíduos, principalmente no que se refere às cargas e ritmos de trabalho, resultando em adoecimentos. De fato, a fase da acumulação flexível coloca exigências ao nexo biopsíquico geradoras de níveis de desgaste que superam significativamente sua capacidade de reprodução. Se em momentos pretéritos, como os séculos XVIII e XIX, a disparidade entre desgaste e reprodução tinha como consequência a alta mortalidade e baixa expectativa de vida da classe trabalhadora, nos dias atuais, esse contraste se expressa de forma distinta. Reduz-se a mortalidade e prolonga-se a vida. Entretanto, uma vida sofrida, agonizante, permeada por profundos sinais de desgaste, expressos nas diversas formas de sofrimento crônico. (VIAPIANA; GOMES; ALBUQUERQUE, 2018, p. 183-184) A autora Miila Derzett traz em seu livro Superdescanso um olhar sobre a necessidade da pausa. Ela se indaga por que nós, adultos, temos cada vez mais perdido o espaço natural sobre o descanso. Para os mais jovens (crianças e adolescentes), o tempo ocioso caminha junto no percorrer do desenvolvimento físico e cognitivo. Passada essa fase, o habitual virou

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uma vida na busca e no querer de infindos estímulos e entretenimentos. “Uma vez, em um encontro, Judith Hanson Lasater perguntou: - Será que não estamos confundindo uma vida com significado com uma vida cheia de compromissos?” (DERZETT, 2016, p. 14). Essa correria no dia a dia, aos poucos, vem nos gerando grandes insatisfações. Correndo de um lado para o outro, dividindo a vida entre trabalho, estudo, atenção a familiares e amigos, e nas horas vagas que surgem, precisamos planejar e dar conta de novas demandas que parecem nunca cessar. Como fazemos para ter tempo para tudo isso e ainda podermos descansar? Gostaria de ter poder de parar o tempo e me dar o tempo necessário para fazer, pensar e planejar, e também PARAR, DESCANSAR, PAUSAR! Sabe-se que todo processo ritualístico prescinde uma suspensão do tempo. Este fato é percebido, inclusive, no jogo ritual experimentado nas práticas teatrais do Grupo Arkhétypos. (...) a entrega à improvisação cênica no teatro ritual parece desafiar o tempo do relógio, numa tentativa de subvertê-lo: o tempo se vai lentamente no decorrer do jogo, com tamanha intensidade que às vezes, por exemplo, três horas de duração podem ser experimentadas como se fossem apenas uns quinze ou vinte minutos (...). (COUTINHO; HADERCHPEK, 2019, p.09) O tempo no jogo ritual opera semelhantemente ao manifesto no mundo infantil no que tange à supressão habitual do mundo, gerando como consequência a percepção de um tempo dilatado. E é essa dilatação do tempo que buscamos, pois com ela se poderia, então, experimentar um tempo expandido com o intuito de olhar para si, e isso significa prestar uma maior atenção à própria intimidade, resultando num processo de autoconhecimento, ou melhor, um sinal de empoderamento contra a produção colonizadora e capitalista vigente.

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Nesse sentido, o teatro ritual experimentado no Arkhétypos traz consigo a possibilidade de aprendizado sobre si mesmo, que é o que nos conta o conceito da “Pedagogia de Si” descrito por Coutinho e Haderchpek (2019). Os autores descrevem como o jogo no teatro ritual do Arkhétypos tem o poder de proporcionar nos jogadores desdobramentos em cima deles mesmos, fazendo com que se conheça a multiplicidade de seres que podem habitá-los e, especialmente, como gerenciar cada múltiplo neles, constituindo-se, assim, uma poética do aprender, um aprender de si. Através desse conhecimento em si podemos sair da lógica reprodutivista e mecânica atual, que não considera a holística do ser e nos mantém afastados de nosso íntimo, de nossa natureza, dando um salto para o oposto disso: integrando-nos ao todo, aos múltiplos que somos em nós e entre nós, de uma forma mais sensível em relação a nós mesmos e ao outro, seguros em nossos pensamentos e vontades. 3.3

Prática laboratorial do Grupo Arkhétypos: processo “Tempo”

Pensando em tirar esse tempo para si, esse tempo de descanso, levei esta proposta para a condução das Oficinas de Práticas Corporais do Grupo Arkhétypos. Com o propósito de realizar esta investigação foram realizados 10 encontros, contudo, neste relatório pontuarei apenas os dias mais relevantes. Minha primeira condução frente ao grupo aconteceu no dia 15 de agosto de 2019 e realizei, de forma adaptada, uma cerimônia do chá japonês. Experimentei a dinâmica dessa cerimônia pela primeira vez num ensaio do Grupo Arkhétypos durante o segundo semestre de 2018. Ressalto que, na ocasião, escrevi uma carta para mim mesmo dialogando com meu próprio eu, ressaltando minhas qualidades e defeitos, refletindo e poetizando recomendações para continuar a viver uma vida saudável e próspera. Baseado nisso, ao final da minha primeira condução abrimos uma roda de compartilhamento sobre o que foi vivido. Foi aí que senti junto a eles e elas que não estava só quanto à minha percepção fugidia de tempo.

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Parecia que todos e todas estávamos precisando de momentos como aquele para parar! E, claro, pensar mais em nós. Nos voltarmos para dentro, para nossas intimidades, nossos desejos, anseios e prazeres. E daí, foi que surgiu a temática de “tempo”! O “tempo” que conduziria, a partir de então, nossa investigação. Associamos a pausa, o descanso ao elemento terra, por este ser o mais estável de todos e porque é para a terra que regressamos em nosso descanso final: a morte. Passamos a encarar este processo de construção e criação artística de modo tranquilo, para que não houvesse pesos, a fim de que déssemos a nós mesmos o tempo necessário para se trabalhar com as inquietações que estavam surgindo. O nosso espaço/tempo de trabalho seria marcado por tranquilidade e prazer. No dia 10 de setembro, trabalhamos a partir do mito de Prometeu, de origem grega. Prometeu, segundo a mitologia grega, é um Titã, um deus gigante, filho de Jápeto e Ásia, e irmão de Atlas, Epimeteu e Menoécio. Seu nome, no idioma grego, significa “premeditação”, ou seja, o que pensa antes. Ele foi responsável, de acordo com o mito grego, pela criação da espécie humana. Prometeu, por ter uma relação muito próxima com a raça humana, ensinou aos homens vários ofícios, tal como o ofício da carpintaria, garantindo que eles tivessem tudo o que fosse necessário para sobreviver. Percebendo que lhes faltava algo, Prometeu ofereceulhes o fogo - símbolo do conhecimento intuitivo. A intuição é base para todo o processo criativo. O fato é que o domínio do lume era fundamental para garantir uma melhor qualidade de vida aos nossos ancestrais. O mito de Prometeu nos conta que ao entregar o fogo ao homem, que só era disponível aos deuses, ele entrega também a sua liberdade. Zeus, irado com a evolução da criação da humanidade, planejou se vingar tanto dos homens como de Prometeu. Aos homens, enviou Pandora - e com ela, todas as desgraças que existem no mundo - enquanto que Prometeu foi acorrentado no monte Cáucaso por 30 mil anos. E dia após dia, uma águia bicava o seu fígado a fim de se alimentar. Ao anoitecer, sua ferida voltava ao normal, pois se regenerava, por ser também um deus imortal. Hércules, um semideus, ao concluir suas tarefas (Os doze trabalhos de Hércules) pôs

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fim ao castigo do titã. Colocou o centauro Quíron em seu lugar para que Prometeu fosse livre. Dias antes, avaliando as atividades passadas para pensar o que trabalhar nas vindouras e avançando a leitura em De Masi (2000), pensei em trabalhar com este mito, pois ele faz uma ponte interessante com nossa atual sociedade. Depois que o Prometeu é libertado de seus afazeres, primeiramente graças às máquinas da sociedade industrial (no mito simbolizado pelo centauro Quíron), tenta-se conceder a ele uma segunda liberação, a dos membros que carregam o tempo/corpo-alma/ conhecimento, simbolizada no mito pelo fogo. É neste momento em que o Prometeu torna-se livre para expressar-se em toda a sua plenitude. O mito do titã Prometeu se atenta ao surgimento da intelectualidade, o que é representado pela busca do fogo que ilumina as pessoas, no sentido de torná-las conscientes ou esclarecidas, constituindo-se, também, como uma baliza do tempo que assinala o exato momento em que a humanidade apropria-se do conhecimento (intelectual, sensível, racional, imaginativo). Percebemos, aqui, a introdução de mais um elemento na construção poética: o fogo! Atento aos depoimentos que se seguiram pós-laboratório, fui anotando elementos-símbolos que surgiram nas mentes/corpos dos atores e atrizes: lamento, caos, relógio, morte e vida. A percepção de todos os que estavam participando dos laboratórios de criação era que o tempo era fugidio. Por isso, já que o tempo a todo tempo se vai, ou simplesmente já não existe perante o caos moderno, tínhamos que encontrar um tempo em que todos nós pudéssemos habitar. Então foi lançada a proposta: “Criar nosso próprio tempo!”. No dia 26 de setembro, sentamos para refletir as conquistas nos trabalhos feitos até ali. Avaliação feita, levantamos algumas espacialidades possíveis para o enredo como: floresta fechada, terra árida com chão batido, limbo, lixão. Era como se em todos esses locais estivesse incluso o fator: mundo abandonado, mundo perdido! Foi quando propus o local

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“Atlântida”, com base no mundo antigo e perdido de Atlântida. Local objeto de investigações de diversos historiadores. Lendário. Neste momento, a água surgiu como um terceiro elemento dentro do processo. A mitologia de Atlântida, que carrega a história de um povo descendente do deus do mar Poseidon, está relacionada às mitologias da água. A água é a linguagem contínua e fluida, é o símbolo universal da vida de fecundidade e fertilidade, geralmente associada ao lado feminino. Segundo Bachelard uma gota de água poderosa basta para criar um mundo e dissolver a noite. Para sonhar o poder, necessita-se apenas de uma gota imaginada em profundidade. A água assim dinamizada é um embrião; dá à vida um impulso inesgotável. (2013, p. 10). Porém, quando o elemento água assume o papel da destruição, da inundação, da cólera, como aparece na história de Atlântida que afundou no oceano em um único dia e noite de infortúnio, ele assume um papel masculino: “(...) a água violenta é logo em seguida a água que violentamos. Um duelo de maldade tem início entre os homens e as ondas. A água assume um rancor, muda de sexo. Tornando-se má, torna-se masculina.” (BACHELARD, 2013, p. 16). Pensávamos nessa história a contar como uma passagem temporal cíclica, como o Sol que nasce e morre todos os dias no horizonte. O tempo diário que se finda com as 24 horas e volta a renascer, como uma história que não teria um possível fim... A fábula, então, se passaria como num sonho. Dentro do sonho o tempo se dilata, e isso nos faria questionar: “Será que estamos vivendo de verdade?”. A cada dia que passa a hora de dormir chega, e precisamos passar por esta hora: a hora sagrada do sono, do sonho, onde o mundo real e a fantasia se encontram nesse tempo adormecido, onde as horas passam e não passam, onde o passado/ presente/futuro se misturam, onde os mais belos sonhos podem acabar virando monstruosos pesadelos. TEMPO DOS SONHOS!... Era o nosso universo. Foi daí que conseguimos encontrar o ponto de partida para contar a nossa história. E a partir

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de então tínhamos melhores condições de sequenciar as ações cênicas de início, meio e fim. Com esse amadurecimento no trabalho, seguimos experimentando e fazendo amarras mais justas em nosso roteiro dramatúrgico, chegando à última versão no dia 20 de novembro de 2019. Percebo que em diversos momentos, ao finalizar o roteiro dramatúrgico, as cenas deste processo foram delineadas como numa partitura musical. Cada estímulo sonoro, inclusive a ausência dele, direcionava o percurso, dando a tônica dos corpos, das falas, e das transições de ações. Talvez esta forma de estruturar a cena seja decorrente de minha relação com a música e com a dança, que me permite visualizar com mais facilidade a cena que se desdobra em suas dinâmicas, intensidades, cores (timbres) e alturas. As duas artes, dança e música tem uma forte ligação com o tempo. A música está relacionada ao quarto elemento: o Ar. Com base na última configuração dramatúrgica, nós fizemos nossa primeira apresentação do “Processo Tempo” dentro do “I Seminário Internacional de Pesquisa do Grupo Arkhétypos”, que aconteceu nos dias 21 a 24 de novembro de 2019, nas dependências do Departamento de Artes da UFRN e também nas do Museu Câmara Cascudo. Como desdobramento dessa pesquisa, além da apresentação da encenação neste dia, participei também da mesa temática sobre “Debates Decoloniais”. Passado o Seminário, em outro dia de reunião com os integrantes do “Processo Tempo”, pudemos conversar melhor sobre os feedbacks da apresentação. Tínhamos a pretensão de dar continuidade ao trabalho no primeiro semestre deste ano de 2020, porém o tempo nos fez parar, e com a pandemia do corona vírus (Covid-19), tivemos que suspender todas as atividades acadêmicas. Parece que o nosso processo teve um tom premonitório. E é, no mínimo, curioso como essa necessidade em fazer o tempo parar de correr foi atendida. Estamos agora em quarentena, passando por quase três meses de isolamento social. Entretanto, isso traz uma mensagem poderosa para todos nós: SE VOCÊ NÃO PODE IR LÁ FORA, VÁ PARA DENTRO. É o que tenho buscado ao viver meus momentos de ócio!

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2. MENEZES, Thazio Silva Bezerra de. O Ócio Criativo e as Epistemologias do Sul: Diálogos com a Prática Laboratorial do Grupo Arkhétypos. Revista de Pós Graduação em Artes Cênicas – MANZUÁ, Natal/ RN, vol. 3, p. 214-239, n. 1, 2020. [recurso eletrônico]. Disponível em: <https:// periodicos.ufrn.br/ manzua/issue/view/1042/ Dossi%C3%AA%20 de%20Teatro%20 Potiguar%3A%20 10%20Anos%20do%20 Arkh%C3%A9typos%20 -%20completo>.

3. MENEZES, Thazio Silva Bezerra de. “Processo tempo”: a importância do ócio criativo no trabalho de composição do ator. 50f. Monografia (licenciatura). Universidade Federal do Rio Grande do Norte, Natal, 2020.

Por fim, destaco também como resultado proveniente desta pesquisa, a publicação de um artigo científico denominado “O Ócio Criativo e as Epistemologias do Sul: Diálogos com a Prática Laboratorial do Grupo Arkhétypos”2 para a revista eletrônica Manzuá, da UFRN, bem como a feitura de meu Trabalho de Conclusão de Curso3 para obtenção do título de Licenciado em Teatro, da mesma instituição citada acima.

4. CONCLUSÕES: O ócio vai exercitar o músculo do desejo. “O que é que nós desejamos?”. Ao pararmos para refletir sobre essa questão, ao nos proporcionar tempo para entender o que pulsa em nosso íntimo, nós crescemos. Descanso e tempo livre estão presentes desde o início de nossas vidas, ajudando-nos em nosso desenvolvimento físico e cognitivo. O afinco e a perseguição de conquistar os nossos desejos íntimos fazem com que deixemos de lado os nossos medos e passemos a caçar, como uma flecha certeira, o alvo que nos fará felizes. A gente não ter tempo para nós mesmos, para nos dedicarmos a nós, resulta num processo de adoecimento, como no pesadelo vivido pela Menina do “Processo Tempo”. Sem tempo de brincar, ela vive com medo, correndo em meio a momentos difíceis, como nos pesadelos, sem degustar os momentos de prazer e alegria que ela poderia criar e sentir. Precisamos de tempo ocioso para nos conhecermos e sabermos como enfrentar os nossos medos. Precisamos dar uma pausa nessa “corrida maluca” que é a vida pós-moderna capitalista de hoje, e, com mais regularidade, gozar com o que nos faz bem! E não é ninguém que vai dizer a nós o que nos faz feliz. Pois, para ter uma consciência maior sobre o que pode me fazer bem, eu preciso parar. Eu preciso pensar. Eu preciso me dar o tempo necessário! Eu preciso ter momentos de ócio. A pauta é brincar e usar o tempo livre, porém, ainda não gozamos de liberdade. O tempo corrido nos dias de hoje nos acorrenta como a Prometeu, deixando que as águias dos atropelos e do cansaço nos

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façam feridas, que apesar de cicatrizáveis, nos machucam a cada dia. Intermitentemente dia após dia. Num verdadeiro pesadelo sem fim! Acredito que o ócio criativo experimentado nesse processo de criação fez com que seguíssemos uma perspectiva de trabalho saudável, menos estressante. Penso que esse tempo dilatado para a construção dessa poética nos fez revisitar intimamente a nossa forma de trabalhar criativamente e de entender de forma profunda quais questões e inquietações dentro de nós, artistas e pesquisadores (as), queríamos comunicar, com este trabalho, ao mundo. Senti-me muito à vontade em conduzir o processo dessa forma, pois eu pude planejar e executar com paciência e calma os passos dessa jornada criativa. E isso é importante demais para mim, pois sou daqueles que precisa de muita confiança e muito entendimento para poder externar minhas colocações e pontos de vista. Não sou tão imediatista. Gosto de refletir com esmero a mensagem que pretendo criar para que ela venha com a maior clareza e maior potência possível quando externada. Sei que nem todos os processos criativos podem ter esse lapso temporal estendido na elaboração do produto cênico, mas aqui, neste trabalho, deixo registrada essa possibilidade, com suas eficácias e importâncias.

5. REFERÊNCIAS BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São Paulo: Martins Fontes, 2013. ___________________. A terra e os devaneios do repouso: ensaio sobre as imagens da intimidade. Tradução Paulo Neves. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. BARBA, Eugenio e SAVARESE, Nicola. A Arte Secreta do Ator: Dicionário de Antropologia Teatral. São. Paulo: É Realizações, 2012.

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Ficha Técnica

conselho editorial Ana de Fátima Sousa Carlos Gomes Galiana Brasil Natalia Souza Regina Medeiros

projeto gráfico Estúdio Lumine (terceirizado) produção editorial Matheus Torres (estagiário) Victória Pimentel

comissão de seleção Danieli Balbi Felipe Sales Renata Pimentel Vicente Concilio

Memória e Pesquisa | Itaú Cultural Pontilhados: pesquisas da cena universitária / organização Itaú Cultural. São Paulo : Itaú Cultural, 2021. 8 Mb ; PDF ISBN 978-65-88878-19-4 DOI https://doi.org/10.53343/9786588878194 1. Artes. 2. Artes da cena. 3. Pesquisa universitária. 4. Teatro. 5. Trabalho acadêmico. I. Instituto Itaú Cultural. II. BALBI, Daniele. III. SALES, Felipe. IV. PIMENTEL, Renata. V. CONCILIO, Vicente. VI. Título. CDD 792.0291 Bibliotecário Jonathan de Brito Faria - CRB-8/8697

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foto: Ophélia

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foto da capa: Ophélia

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