Continuum 38 - Agosto-Setembro/2012

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TRINTA ANOS ESTA NOITE O primeiro filme pornô brasileiro completa três décadas de coragem e ousadia ago/set 2012

DELIRIUM AMBULATORIUM (SURTO) As experimentações terapêuticas e a relação de afeto e cuidado que uniam Jards Macalé e Lygia Clark FECHADO PARA BALANÇO Ferréz lança dois livros e decreta: “Não quero ser cronista do inferno a vida toda”

O reflorescer da Tulipa

Cantora e compositora lança Tudo Tanto e prova que de efêmera só sobrou o nome do disco anterior


BASE-V Da série de desenhos da exposição de dez anos do grupo BASE-V, que ocorrerá em outubro na galeria Choque Cultural [base-v.org].



COORDENAÇÃO EDITORIAL

Ana de Fátima Sousa EDIÇÃO EXECUTIVA

Marco Aurélio Fiochi PROJETO GRÁFICO E EDIÇÃO DE ARTE

Marina Chevrand

EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA

André Seiti DESIGN

Lu Orvat Design EDIÇÃO

Roberta Dezan ASSISTÊNCIA À EDIÇÃO DE CONTEÚDO

Gabriela Rassy

COORDENAÇÃO DE REVISÃO

Polyana Lima REVISÃO

Ciça Corrêa PAUTA

Ana de Fátima Sousa André Seiti Eduardo Saron Gabriela Rassy Jader Rosa Jessica Rosen Marco Aurélio Fiochi Marina Chevrand Roberta Dezan COLABORARAM NESTA EDIÇÃO

Alexia Santi Base-V Beto Figueiroa Karina Hambra Carlos Costa Carol Almeida Deborah Rocha Moraes Duda Porto de Souza Fernanda de Almeida Humberto Pimentel Ieda Estergilda de Abreu Jards Macalé Jessica Rosen Juliana Faddul Leonardo Calvano Leonardo Foletto Malu Rangel Mariana Lacerda Matthieu Rougé Micheliny Verunschk Nelson Visconti Patrícia Colombo Ricardo Daros Roberto Almeida Sabrina Duran Thais Caramico Valentina Fraiz

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007) Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento continuum@itaucultural.org.br Jornalista responsável Ana de Fátima Sousa MTb 13.554

CARTA DO EDITOR Há algum tempo, as edições da Continuum pendem para um tema ou outro, mesmo isso não sendo planejado no momento da escolha das pautas. Naturalmente acabamos abordando mais questões referentes às transformações que a arte é capaz de promover nos espaços urbanos ou mergulhamos de cabeça nos universos da literatura, da música e das artes visuais. No entanto, a edição que você tem em mãos, ou que está aberta na tela à sua frente, passeia por diversas expressões artísticas e traz um apanhado do que tem acontecido de relevante e curioso – ou até do que estava esquecido – neste movimentado mundo das artes e da cultura. Para começar, você confere as conversas de bastidores com André Abujamra e Cauby Peixoto, dois homens da música vindos de gerações e vertentes distintas, mas igualmente admirados pelos caminhos que trilharam no decorrer de suas carreiras. Na seção Certidão de Nascimento celebramos os 30 anos de Coisas Eróticas, que entrou para a história do cinema nacional, ainda em tempos de ditadura, como o primeiro filme pornô brasileiro e responsável por uma intensa chacoalhada na nossa indústria cinematográfica, não pelo apuro técnico, mas pelo pioneirismo e pela coragem inquestionáveis. No mesmo embalo vanguardista está a reportagem sobre a mais nova experiência em artes cênicas: o teatro digital. Depois de invadir praticamente todas as formas de arte, o virtual, enfim, encontra os grupos cênicos e possibilita vivências inéditas para atores e público. Duas personalidades marcantes – uma da música e outra da literatura – nos brindam com suas histórias de vida e com seus últimos trabalhos. Tulipa Ruiz estampa em flor, graça e poesia a capa da edição e fala sobre o novo disco, as parcerias e o trajeto que a fez chegar ao patamar onde está. Já o escritor Ferréz conta por que preferiu deixar um pouco de lado a temática da periferia em seus dois últimos livros e como conseguiu imprimir mais leveza ao discurso e ao mesmo tempo manter-se fiel à indignação. O incrível Jards Macalé nos presenteia com um texto no qual conta como a artista plástica Lygia Clark o ajudou a sair de um surto de bata branca de Jorge Amado e espada em punho. Assim como nas experiências terapêuticas de Lygia, nós também acreditamos que a arte e a natureza são as melhores ferramentas para a cura da alma.

Se você é ilustrador, artista ou fotógrafo, envie o link de seu portfólio virtual para <participecontinuum@itaucultural.org.br>. Queremos conhecer o seu trabalho!

Envie seu comentário sobre a Continuum para o e-mail continuum@itaucultural.org.br ou utilize os canais do Itaú Cultural no Twitter e no Facebook. Em caso de publicação na seção Carta do Leitor, a mensagem pode ser editada a critério da redação.

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TRINTA ANOS ESTA NOITE O primeiro filme pornô brasileiro completa três décadas de coragem e ousadia ago/set 2012

DELIRIUM AMBULATORIUM (SURTO) As experimentações terapêuticas e a relação de afeto e cuidado que uniam Jards Macalé e Lygia Clark FECHADO PARA BALANÇO Ferréz lança dois livros e decreta: “Não quero ser cronista do inferno a vida toda”

O reflorescer da Tulipa

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CANTORA E COMPOSITORA LANÇA TUDO TANTO E PROVA QUE DE EFÊMERA SÓ SOBROU O NOME DO DISCO ANTERIOR

capa: tulipa ruiz foto: andré seiti

Baixe o aplicativo da Continuum em seu iPad e veja todas as matérias desta edição e das anteriores, além de vídeos exclusivos.


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| homens da música Conversamos com André Abujamra e Cauby Peixoto nos bastidores dos shows que fizeram no Auditório Ibirapuera

ACESSO RESTRITO

| a casa da fotografia Localizado em Amsterdã, numa das ruelas voltadas para os canais, o museu Foam dedica-se inteiramente à arte de desenhar com a luz

MUSEUs DO MUNDO

| quando o efêmero encontra o digital Como a internet digitalizou corpos e lugares e chegou até o universo das artes cênicas

R e p o r t agem

C E R T I D Ã O D E N A S C i M E N T O | 30 anos esta noite Há 30 anos o Brasil experimentava sua primeira ereção coletiva e pública com o filme pornô Coisas Eróticas, pioneiro do gênero no país

R E S E N H A | o paraíso não é aqui Um autor iraniano, um artista gráfico árabe-americano e um editor judeu se juntam para criar O Paraíso de Zahra, uma graphic novel que conta as atrocidades cometidas contra o povo iraniano póseleições presidenciais D E P O I M E N T O | delirium ambulatorium (surto) Jards Macalé conta como seu corpo serviu de suporte para as experimentações terapêuticas de Lygia Clark C A P A | o reflorescer da Tulipa Cantora e compositora lança segundo disco e afirma que o palco é o seu lugar P E R F I L | de peão a pioneiro Aos 63 anos, o escritor Roniwalter Jatobá não tem intenção de buscar outros assuntos ou se render a modismos e aprofunda cada vez mais a temática do migrante nordestino

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| o abre-alas do audiovisual brasileiro Nova lei obriga canais de TV por assinatura a exibir programação nacional em horário nobre, sendo metade desse tempo ocupado por produções independentes

R e p o r t agem

| bailando em escala maior Festivais de dança realizados em espaços urbanos viram febre mundial

R e p o r t agem

| universo sonoro
 O projeto Memórias Capitais retoma sensações vividas por artistas em suas cidades de origem por meio da contação de histórias

R e p o r t agem

| o tesouro de Capiba O acervo do músico e compositor pernambucano é mantido por sua viúva numa casa cercada de terraços e habitada por mais de 40 gatos

R e p o r t agem

R e p o r t agem | o samba paulista: de Plínio Marcos a Kiko Dinucci O samba paulista ganha show com releitura de disco raro de Plínio Marcos R e p o r t agem | a arte prestes a transbordar 30a Bienal de São Paulo investiga as variadas poéticas que possibilitam os expressivos atos artísticos e n t r e v i sta | fechado para balanço Escritor Ferréz lança dois livros em que prioriza conflitos internos a questões políticas e sociais

| a virada da vez Primeira edição da Design Weekend discute as relações do design com a arquitetura, o urbanismo, a decoração, a inclusão social, os negócios e a tecnologia R e p o r t agem

b a l a io | para ver, ouvir e clicar Imagem, som e sites para adicionar aos favoritos na seleção cultural do bimestre

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bastidores de shows ACESSO RESTRITO |

HOMENS DA MÚSICA De gerações e estilos diferentes, Cauby Peixoto e André Abujamra apresentaram suas canções em shows no Auditório Ibirapuera, em São Paulo, nos meses de maio e junho

TEXTO patrícia colombo

FOTOS andré seiti

André Abujamra O clima era de festa nos bastidores da apresentação de André Abujamra no Auditório Ibirapuera, em 18 de maio. Não só o músico completava 47 anos de vida, como celebrava os dois outonos do álbum Mafaro, show-filme cujas imagens em telões estão sincronizadas com as canções. O trabalho traz influências de alguns locais do mundo visitados pelo artista multitarefa [que, além das atuações no cinema, vai musicalmente dos discos às trilhas sonoras] unidas em um casamento feliz e sem preconceito com relação às diferenças.

Mafaro nasceu em 2010. Como foi a elaboração desse trabalho? Fui ao Zimbábue e conheci a cultura local. “Mafaro” quer dizer “alegria”, em xona, a língua deles. Um ano antes, eu tinha ido para Praga e, logo depois do Zimbábue, fui para o Maranhão. E o Mafaro é bem essa mistura. Aí, resolvi fazer um show-filme. Essa junção foi natural, porque sou músico erudito. Tenho vergonha de mulher, tenho vergonha da vida, mas da música não. Para mim, é supernatural misturar. Acho válido para escutar coisas legais vindas do que você aparentemente não gosta. Inventei um verbo [risos]: “distribificar”, que é sair das tribos, abrir a cabeça. Vá ouvir Sepultura, depois Sandy & Junior e depois os dois ao mesmo tempo [risos]. O músico André Abujamra, que fez aniversário no dia da apresentação no Auditório Ibirapuera

Ausência total de preconceito musical [risos]. O preconceito é uma coisa que o ser humano tem mesmo. Tem contra anão, contra puta, contra gordo. É um exercício que eu faço, de tentar mudar um pouco a cabeça das pessoas. Não faço música só para alegrar. Quero que alegre, mas quero ajudar a mudar a visão. Não existe nada em música de que eu não goste, nem das coisas ruins. Até a partir delas consigo fazer música e acabo encontrando coisas maravilhosas.

Você já trabalhou em mais de 40 trilhas sonoras para o cinema. Como é esse ofício? Fazendo trilhas, eu aprendi a ser dirigido. Sempre fui muito cacique e um trabalho no qual você não é o chefe é muito complicado para quem é metido como eu [risos]. É um processo de você entender o que o cara quer. E, apesar de ser feito para muita gente, é um trabalho bastante solitário.


Cauby Peixoto A maior parte dos leitores da Continuum nem era nascida quando Cauby Peixoto surgiu no cenário musical brasileiro, arrancando suspiros de muitas menininhas na década de 1950, que grudavam os ouvidos no rádio para acompanhar a bela voz do intérprete romântico. Somando 60 anos de carreira, Cauby continua sendo um dos maiores artistas nacionais. Recebeu recentemente [com a amiga de longa data Ângela Maria] a Medalha do Mérito Legislativo da Câmara dos Deputados e segue sua duradoura união com a música ostentando canto conservadíssimo – e quem esteve presente no Auditório Ibirapuera no início de junho, na descontraída apresentação de voz e violão do cantor, viu e ouviu bem.

Está feliz com a homenagem da Câmara dos Deputados? Isso é um reconhecimento. Nunca imaginei que completaria seis décadas de carreira. É uma coisa muito impressionante. Quando comecei, estava deslumbrado [risos]. Só queria ficar junto às fãs, cantar, receber aquele carinho. Era muito bom, sempre uma surpresa, uma notícia engraçada que saía na mídia. Eu não chegava a sonhar, os sonhos estavam ali. O que eu pensava e queria estava acontecendo. Musicalmente, acho que fiz quase tudo. Acredito que não há mais nada que eu gostaria de fazer. Só queria mais uma música nova do Chico Buarque. Ele é maravilhoso. O senhor acompanhou as transformações na indústria da música. Sente falta de algo hoje? Eu sinto falta da música brasileira. A música nova está poluindo um pouco as antigas. Falta música boa hoje em dia. Do que está na moda não gosto de quase nada. Gosto do Luan Santana. Ele parece muito comigo na época em que comecei a cantar. As meninas gritando, o tipo físico. Gosto dele. Eu gravaria com ele. Se você o encontrar, mande um abraço meu. Acha que cantar sobre o amor facilita uma identificação com o público, por ser um tema comum na vida de todos? Torna mais fácil. E sempre tive vontade de cantar canções assim. É a minha maneira de ser; gosto muito de amar, de viver através do amor. Todas as canções que gravei gravei porque gostei e quis...

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Cauby: admiração pelo cantor Luan Santana


foam MUSEUS DO MUNDO |

a casa da

fotografia

Esqueça a vista para o canal e mire a paisagem de dentro

TEXTO thais caramico

FOTOS roberto almeida

É por uma daquelas ruelas voltadas para os canais de Amsterdã que você vai passar e talvez nem perceber que no número 609 da quase indizível Rua Keizersgracht está o museu de fotografia Foam, espaço inteiramente dedicado à arte de desenhar com a luz. A fachada tímida se confunde na charmosa e pululante arquitetura de tijolinhos da cidade. No entanto, se olhar para o alto, você vai ver que acima da placa luminosa, na qual a palavra Foam brilha nas cores branca e vermelha, está cravado na parede: Museu Fodor, 1861. Para entender essa história, é preciso voltar no tempo. Mas, antes, ninguém resiste a espiar pela porta e ver como o casarão revela suas influências modernas, que dialogam com outros suportes da arte contemporânea sem negar: estamos na casa da fotografia, espaço reformado pelo renomado escritório de arquitetura Benthem Crouwel, o mesmo que transformou o aeroporto da cidade num dos mais modernos do mundo. As enormes portas de ferro dão passagem para o olhar ir adiante, sem bloqueios. Cimento queima-

do, escadarias de ferro ou madeira, tijolos à vista, colunas e tubos aparentes, pé-direito enorme e um jardim nos fundos que, protegido por janelões de vidro, compõe a sala principal do museu feito paisagem. Tudo reto, retangular ou em círculo, os quatro andares se intercalam numa elegante geometria e se multiplicam em “galerias” onde a fotografia reina. A história do casarão começou com Carel Joseph Fodor (1801-1860), um colecionador de pinturas e ilustrações holandesas. Em 1863, o sobrado e patrimônio da cidade foi aberto ao público como o primeiro museu de arte moderna do país. Até que, cem anos depois, todas as obras integraram a coleção permanente do Museu de História de Amsterdã. Entre 1993 e 2000, quem ocupou o endereço foi o Instituto de Design Holandês. O Foam surgiu apenas no dia 13 de dezembro de 2001. Há 11 anos, a fotografia era vista na Holanda como uma arte em destaque, mas nenhuma galeria tratava o assunto como ele merecia. “Havia muitos fotógrafos bons que trabalhavam com

jornalismo ou publicidade e que achavam que Amsterdã tinha de ter um espaço dedicado integralmente a todos os estilos fotográficos. A ideia era ter um lugar em que se pudesse apresentar mais do que exposições”, conta a diretora de comunicação do Foam, Merel Kappelhoff, durante entrevista no café do museu. O lugar oferece tudo o que essa arte pede, e por isso está mapeado como um dos principais nomes no assunto. Exibe fotógrafos consagrados, premia jovens talentos, tem um departamento educativo e de pesquisa ativo e ainda uma revista de fotografia, impressa quatro vezes ao ano, que é referência mundial. E, além de oferecer “assinaturas”, uma espécie de amigos do Foam faz a venda de edições limitadas das impressões expostas através do site e de uma loja pop-up. E o museu é também um dos organizadores da inédita feira de fotografia da cidade, a Unseen Amsterdam, que acontece em setembro. “É um desafio se manter atualizado, mas para isso temos uma filosofia bastante firme”, diz a


Interiores do museu Foam

curadora Kim Knoppers. Equilibrar os estilos e o nível dos artistas é um dos segredos do Foam. Você pode ir ao museu para ver uma mostra pequena, como a da alemã Nina Poppe, que costura seu olhar por terras japonesas, e de repente encontrar na sala ao lado um recorte da obra de Ron Galella, o paparazzo – ou celebridade? – mais famoso do mundo. “É possível ver aqui fotógrafos de todas as nacionalidades, como o brasileiro Breno Rotatori, que a gente apresentou na sala de novos talentos”, lembra ao falar do paulistano de 23 anos. Jovens talentos, inclusive, são vistos ali com atenção. Além de investir em pesquisa, o Foam recebe centenas de portfólios, que são analisados cuidadosamente pela equipe de curadores do museu. “Gostamos de apostar nas pessoas e dar o espaço que talvez elas não conseguissem ter em outro lugar. Muitos artistas novos são convidados a expor ou participar de alguma edição da revista”, conta a curadora. O museu também organiza o Prêmio Paul Huf, para fotógrafos de até 35 anos. O vencedor ganha 20 mil euros, uma mostra e a publicação do portfólio numa edição especial da revista Foam Talent – a próxima sai em setembro com a norte-americana Alex Prager. Em todo o casarão, podem ocorrer mostras de até seis fotógrafos simultaneamente, numa conta que revela a dinâmica do espaço. São, em média, de 20 a 25 exposições por ano e uma preocupação que vai além da programação muito antecipada. “Gostamos de trabalhar com todos os estilos. Ao mesmo tempo que exibimos fotos de moda, podemos mostrar, na sala ao lado, fotos de guerra. Temos paisagem e documentário e, ao mesmo tempo, natureza-morta e arte conceitual. Fazemos um planejamento, mas também contamos com aquilo que está acontecendo no momento, em termos de nomes e técnicas”, diz a curadora Merel.

Em 2011, a mostra que celebrou os dez anos do Foam tratava exatamente disso. Sob o tema Natureza-Morta, tradicional na pintura holandesa do século XVII, 24 fotógrafos holandeses apresentaram alimentos e flores com um olhar gráfico e inovador. O que valia era o trabalho solitário do artista, uma criação totalmente voltada para a obra produzida dentro do estúdio; analisavam-se formas de, por exemplo, uma porção de batatas. O resultado foi uma composição de luz e sombra, cores e estética – não só em fotos, mas em esculturas e vídeos. Desde que abriu as portas, cerca de 1,2 milhão de pessoas já visitou o museu. O site, que também é um banco de dados e um canal de compras para as impressões e as edições limitadas, recebe em média 60 mil visitantes por mês. Mesmo com nomes como Anton Corbijn, Inez van Lamsweerde & Vinoodh Matadin e Richard Avedon em seu catálogo, o Foam vive a se reinventar. Pensando em movimentar e atrair cada vez mais “fãs”, o museu tenta sempre dar um passo novo. Recentemente, abriu uma loja pop-up em um antigo bunker onde expõe trabalhos, além de vender livros de fotografia. Moda, música, cinema e design são as diretrizes escolhidas. A cada temporada, a galeria troca o tema e os livros de cada assunto ganham destaque nas prateleiras. Há ainda palestras e oficinas com profissionais e outros eventos para o público. “Acaba sendo uma vitrine e também um ponto temático voltados à fotografia e aos artistas do Foam”, conta Merel.

O que vem por aí Uma seleção de 200 fotografias de Diane Arbus será apresentada ao público a partir de 26 de outubro. A mostra terá todas as imagens icônicas e uma série de trabalhos que nunca foram vistos em um museu holandês. Além dos retratos célebres, bibliografia, anotações pessoais, correspondências e relatos da fotógrafa serão expostos para quem quiser conhecê-la melhor.

SERVIÇO

Foam Keizersgracht 609, 1017 DS Amsterdã fone 31 0 20 5516500 Aberto todos os dias das 10h às 18h; às quintas e sextas, o museu funciona das 10h às 21h. Saiba mais em <foam.org>.

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E o que mudou nesses 11 anos? O mercado da fotografia evoluiu e há ainda mais fotógrafos na cidade e no país do que antes. Hoje, o intercâmbio entre os artistas é muito maior, assim como o diálogo com outras plataformas, mídias e suportes – reflexo que se espalha por todos os lugares. “Percebemos que a fotografia está cada vez mais

inserida na produção artística contemporânea da Holanda. Mais do que ir para a rua e registrar, há hoje um movimento grande dos jovens fotógrafos que estão investindo horas numa produção bastante conceitual e buscando respostas desaceleradas”, completa Merel.


teatro digital Reportagem |

quando o efêmero

encontra o digital Experiências inovadoras têm expandido as artes cênicas para além dos limites do aqui e agora presencial

TEXTO leonardo foletto

ILUSTRAÇÃO valentina fraiz

Seja como espectadores, seja como atores, aprendemos desde sempre que o teatro é olho no olho, é a presença física de uma plateia assistindo ao vivo ao jogo entre atores de carne e osso. Essa natureza efêmera do teatro, que dura quanto cada espetáculo deixar, sempre foi tida como impossível de reproduzir – e é o que vinha poupando a cena teatral dos ventos digitais que há tempos varreram discos, fotografias e filmes e os tornaram disponíveis a cliques de mouse diante de uma tela de computador. De alguns anos para cá, porém, os ventos se tornaram furacão e finalmente atingiram o teatro. Com a internet, estar em algum lugar deixou de ser uma condição real, física. Os corpos se digitalizaram e, com eles, as artes cênicas.

Ainda não são muitos pelo Brasil, nem pelo mundo, mas já existem grupos cênicos que pesquisam as possibilidades binárias da relação da cultura digital com o teatro. Hoje, as principais experiências usam transmissões ao vivo pela web com o intuito de ligar palcos e plateias em diferentes lugares. Mas junte projeção de vídeos, performances, iluminação e as artes visuais com streaming de vídeo, tecnologia 3D, holografias, videomapping, celulares e presenças on e off-line e teremos possibilidades cada vez maiores de experimentações criativas para um futuro próximo. Uma das experiências brasileiras na área é da companhia Phila7, de São Paulo. Em 2006, com

seu segundo espetáculo, Play on Earth, o grupo tornou-se pioneiro no uso da internet para criação e apresentação de uma peça teatral que uniu três elencos em três continentes ao mesmo tempo: Phila7 em São Paulo, Station House Opera em Newcastle, Inglaterra, e Cia Theatreworks em Cingapura. Em 2008 surgiu a continuação de Play on Earth, a peça What’s Wrong with the World?, espetáculo ao vivo entre Rio de Janeiro e Londres que contava com quatro telões e cinco possibilidades de imagens. As mesmas cenas eram apresentadas nas duas cidades, com transmissão simultânea via streaming em inglês e português, com três atores em cada cidade interagindo entre si e também via internet, por telas digitais.


De fato, não é “só teatro”, e nenhum dos envolvidos nessas experiências sustenta o contrário – embora se mantenha a tríade atores, público e mensagem que define teoricamente essa arte.

TEATRO PELA INTERNET

Outro grupo brasileiro que se destaca na mistura de teatro e tecnologia digital é o Teatro para Alguém. Criado em dezembro de 2008 pelo casal Renata Jesion – atriz formada pelo Centro de Pesquisa Teatral (CPT-Sesc) – e Nelson Kao – cenógrafo, iluminador e diretor de fotografia –, o grupo consolidou um formato específico. Encenadas numa sala adaptada para teatro na casa dos criadores, as peças são curtas – inicialmente de até 10 minutos, mas que depois se estenderam para 30 minutos – e gravadas por uma câmera que “joga” com os atores e transmite ao vivo, de graça, via streaming pelo site teatroparaalguem.com.br.

portfólio e se relacionar com outros “trabalhadores” das artes.

Nesse formato, o grupo realizou mais de 50 espetáculos, entre parcerias e produções próprias. Em 2009, seu ano mais profícuo, montou 13 peças. Além disso, fez apresentações em outros formatos, como a antinovela Corpo Estranho, do escritor e quadrinista Lourenço Mutarelli, um seriado em episódios curtos que teve duas temporadas gravadas (2009 e 2010) para a exibição no site, sem transmissão ao vivo. A produção constante e inovadora valeu ao Teatro para Alguém destaque na mídia nacional e uma indicação ao Prêmio Shell de 2010 na categoria Especial pela iniciativa de criação cênica via internet.

O espetáculo se passava em dois lugares do teatro Vila Velha ao mesmo tempo, no Palco Principal e no do Cabaré dos Novos, interligados através de projeções audiovisuais, transmissões simultâneas de voz, imagens e trilha sonora. Ainda em junho, houve a transmissão ao vivo pela internet diretamente do blog da peça [oavessodosretalhos.blogspot.com.br]. O espectador, tanto ao vivo quanto pela rede, podia escolher de onde queria assistir à ação da peça, uma crônica da decadente aristocracia baiana conduzida por duas senhoras muito religiosas que vivem numa dimensão “fantástica” do mundo.

De 2011 para cá, o grupo diminuiu o ritmo de produção e passou a diversificar suas atividades. Começou, por exemplo, a gravar e transmitir também os ensaios de algumas de suas webpeças. E, em 30 de junho deste ano, partiu para outros campos e inaugurou um novo projeto: a TPA, rede social de artistas em que cada profissional pode criar sua página, montar seu

MÚLTIPLOS TEATROS

O projeto Vila Digital, ligado ao teatro Vila Velha, de Salvador, é um dos que mais recentemente tentaram buscar uma ligação entre o efêmero do teatro e os bits do digital. Encabeçado por Márcio Meirelles, ex-secretário de Cultura da Bahia e atual diretor do Vila, o projeto busca construir um núcleo de tecnologia que viabilize a criação de cenários e instalações digitais/ interativas. A primeira experiência se deu com O Olho de Deus – o Avesso dos Retalhos, que encerrou temporada no final de junho deste ano.

Renata Jesion, do Teatro para Alguém, fala de “outro teatro, uma bifurcação que está acontecendo agora, no século XXI, que te dá outra possibilidade”. Rodolfo Araújo, jornalista, pesquisador e autor da dissertação de mestrado pela PUC/SP Panorama da Teatralidade Remidiada, diz que “estamos falando de algo que não é mais teatro, mas que tem na essência uma teatralidade expandida”. Rubens Velloso, diretor da companhia Phila7, endossa o coro de Araújo: “Eu não quero nomear de teatro nem de digital, porque, quando você fala em teatro digital, nomeia duas coisas que já têm carimbo na sociedade. Mas certamente o teatro está no que a Phila7 faz”, diz. Quanto à questão sobre a “morte” das peças tradicionais, parece não haver mais crise. As invenções de hoje não acabam com as tecnologias e práticas já existentes, mas convivem com elas. Declarou-se o fim do concerto musical ao vivo com a criação do fonógrafo, na segunda metade do século XIX, assim como da pintura com a fotografia, do teatro com a criação do cinema, do cinema com o alvorecer da televisão, e assim por diante. Ante a sobrevivência de todas as artes declaradas mortas tempos atrás, não é difícil prever que também o teatro tradicional não acabará. É mais provável que estejamos vendo o nascimento de múltiplos teatros – midiáticos, digitais, virtuais, computacionais, abertos, flexíveis, remixáveis. Melhor para o público.

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Duas das principais conversas que ouvi durante a produção de Efêmero Revisitado: Conversas sobre Teatro e Cultura Digital (selo BaixaCultura) – livro que produzi em 2011 sobre o assunto por meio da bolsa Funarte para Reflexão Crítica em Mídias Digitais – foram especulações sobre a “morte” das peças tradicionais e a ironia típica

dos puristas: “Isso não é teatro”. De fato, não é “só teatro”, e nenhum dos envolvidos nessas experiências sustenta o contrário – embora se mantenha a tríade atores, público e mensagem que define teoricamente essa arte.


coisas eróticas C E R T I D Ã O D E NASCIMEN NASCIMENTO |

Trinta anos esta noite Primeiro filme pornô brasileiro, Coisas Eróticas foi pioneiro também na linguagem: aboliu enredos insinuantes e abriu espaço para

foto: Bruno Graziano

que as produções mostrassem toda forma de sexo

Exibição de Coisas Eróticas, no Cine Windsor, em São Paulo

TEXTO sabrina duran

Faz 30 anos que o Brasil teve sua primeira ereção coletiva e pública, estimulada por quase 90 minutos de imagens de pênis e vaginas em explícitas cópulas, exibidas na tela de 7 por 8 metros do Cine Windsor, no centro da capital paulista. Era 7 de julho de 1982, quarta-feira, e o país estava mergulhado num profundo azedume por ter sido eliminado da Copa do Mundo, dois dias antes, pela Itália. Mas a sombra da derrota duraria pouco. Às 8 da noite daquela quarta-feira, o filme Coisas Eróticas, do cineasta italiano radicado no Brasil Raffaele Rossi, estreava no Windsor para um público de mais de mil pessoas, quase todos homens, atraídos pelo cartaz que estampava a frente do cinema com a foto de uma mulher de costas, deitada de bruços numa beira de praia ou piscina, cabelos molhados, a água cobrindo as pernas e querendo subir pela bunda enorme. Na parte de baixo do cartaz, o título do filme, Coisas Eróticas; na parte de cima, o chamariz: “E assim conheceram as maravilhas do sexo!”. A propaganda também alardeava que o longa continha mais cenas de sexo explícito do que O Império dos Sentidos, filme do diretor japonês Nagisa Oshima, que causara escândalo e surpresa por seu teor sexual e por, ainda assim, ter sido liberado pela censura, em 1979, para exibição na Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Para o público brasileiro, de fato, Coisas ia além de Império – era o que Rossi queria desde que vira a obra de Oshima, três anos antes. No fim da sessão de estreia de Coisas Eróticas,

o carpete, as poltronas e as moças da limpeza do Cine Windsor foram testemunhas de quão explícito e abundante era o sexo no longa. Coisas Eróticas entrava para a história do cinema nacional, ainda em tempos de censura, como o primeiro filme pornô brasileiro. É ruim, mas é bom

Dividido em três histórias, com atores em sua maioria amadores no elenco, o longa foi produzido com pouco dinheiro, limitações técnicas, locações improvisadas e nenhuma experiência da equipe em filmar aquele tipo de enredo. Para os críticos da época, o resultado era tosco, “subdesenvolvido”. Mas o mérito de Coisas Eróticas não estava em sua qualidade cinematográfica e sim no seu pioneirismo – e disso todos sabiam. Naquela época, o filme não só desbravava o terreno e deixava um rastro de fluidos para que outros cineastas o seguissem pela vereda pornô, como também alforriava o brasileiro – o homem brasileiro, sobretudo – para ver, falar sobre e emular aquele sexo explícito e público que, veja só, era o mesmo que ele fazia em casa, mas que a moral cristã e o moralismo dos milicos o proibiam de mencionar abertamente. Hoje, o filme parece ingênuo, até cômico em algumas partes. Mas há 30 anos havia algo de libertador nele. E, como se o pioneirismo de Coisas fosse pouco, ele ainda conquistou outro feito histórico: o longa foi visto por quase 5 milhões de pessoas, segundo

dados oficiais que não contabilizam os gatunos que entravam sem pagar e a prática comum dos bilheteiros da época – para fazer um extra, não rasgavam os ingressos e os revendiam. Números não oficiais falam em 8 milhões de espectadores nos primeiros seis meses de exibição – para efeitos de comparação, o filme nacional recordista de bilheteria é Tropa de Elite 2, de 2010, com público de quase 11 milhões de pessoas. Sexo a seco: o início do fim

Outro marco do filme de Rossi representou uma triste realidade para os cineastas da Boca do Lixo, quarteirão na região central da Luz, em São Paulo, que aglutinava as empresas de cinema que produziam as pornochanchadas. Até o lançamento de Coisas Eróticas, o brasileiro se contentava com as historinhas divertidas e picantes das pornochanchadas, em que um mamilo aparente, uma roupa curta e um olhar safado entre os personagens já satisfaziam seu desejo por lascívia. Mas aí veio o longa de Rossi, com cenas reais de penetração, masturbação, lesbianismo, sexo grupal e sadomasoquismo. Era o fim da insinuação e da sutileza. Coisas Eróticas inaugurava a indústria pornô e colocava a pornochanchada numa sinuca de bico. Dali para a frente, cineasta que não azeitasse seus filmes com sexo explícito não teria chance de ser visto. Na Boca do Lixo, foi impossível não incorporar a pornografia às produções – mesmo a contragosto de muitos cineastas. A oferta


foto: divulgação

A Boca do Lixo e a pornochanchada não resistiram ao poder do sexo explícito e minguaram. Minguou, até mesmo, a própria indústria pornô cinematográfica inaugurada por Rossi. A lógica era simples: o excesso de sexo (sem qualidade) repeliu a vontade de sexo. O cachorro, começando pelo próprio rabo, terminou por engolir-se. Ao ser lançado há três décadas, parecia improvável que Coisas Eróticas, desbravador de um novo nicho, blockbuster-porn-oitentista e sucesso de bilheteria, trouxesse em si, numa mesma receita, os ingredientes que fariam nascer e morrer um novo tipo de cinema.

foto: arquivo pessoal

de sexo passou a ser tanta nos filmes a partir de meados dos anos 1980 até início dos 90 – com cada vez mais cópulas “a seco” e nenhuma história – que a qualidade das produções só piorava. O público logo se cansou daquilo, e aos poucos deixou de pagar para ir ao cinema ver o que não gostava. Acrescente a esse bolo a cereja das videolocadoras, que proliferavam no país trazendo uma abundância de pornôs, especialmente estrangeiros, e deixando-os à disposição para que o espectador pudesse consumi-los mais baratos e na privacidade de casa.

A atriz Jussara Calmon, umas das estrelas da Boca do Lixo. Ao lado: Eduardo Rossi e seu pai, Rafaelle Rossi, diretor de Coisas Eróticas

Olé na censura

foto: divulgação

A história do nascimento de Coisas Eróticas foi bem pesquisada e registrada durante três anos pelos jornalistas Denise Godinho e Hugo Moura, que lançaram neste ano o livro Coisas Eróticas (Editora Panda Books) e o documentário A Primeira Vez do Cinema Brasileiro – este feito com recursos próprios e em parceria com o diretor Bruno Graziano, da Controle Remoto Filmes. O projeto de pesquisa começou em 2009, como trabalho de conclusão de curso de Denise e Moura na faculdade de jornalismo, mas a história rendeu e, terminada a graduação, resolveram

Persona non grata na Boca, Rossi era mau pagador e colecionava desafetos. “Ele era sacana, mas tinha coragem. E, para fazer um filme como aquele, tinha de ser uma pessoa assim, com peito”, diz Moura. Não por acaso, Rossi morreu em 2007 longe de quase todos os amigos, na casa que comprou com o dinheiro de seu pornô-sucesso – o

No fim daquela sessão de estreia de Coisas Eróticas, o carpete, as poltronas e as moças da limpeza do Cine Windsor foram testemunhas de quão explícito e abundante era o sexo no longa. destruiu muitas coisas, as pessoas queriam esquecer”, diz, referindo-se ao fim da Boca do Lixo.

imóvel foi um dos poucos bens materiais que lhe sobraram após ele torrar tudo.

A censura era um dos maiores entraves para o cinema naquele período, mas foi nela que o italiano Rossi deu um olé malandro. Após esperar cerca de 200 dias pela avaliação de seu longa pelos censores, o diretor finalmente recebeu o parecer: o filme havia sido liberado para maiores de 18 anos, mas com o corte total da segunda história, que continha cenas de lesbianismo, masoquismo e sexo grupal. A eliminação daquele trecho reduziria pela metade a obra, fazendo com que nenhuma sala de cinema se interessasse em exibi-la. Mas Rossi decidiu interpretar ao pé da letra o documento do censor, que pedia o corte do segundo “quadro”, e não da “cena”. Em sentido estrito, o segundo quadro seria o segundo frame do filme. E foi o que o cineasta eliminou, além de trocar o título da segunda história, dando a impressão de que havia substituído a anterior censurada.

No último dia 7 de julho, Denise, Moura e Graziano fizeram o lançamento oficial do documentário e a exibição de Coisas Eróticas no próprio Cine Windsor. O cinema ainda é propriedade do mesmo Francisco Luccas que, no dia 6 de julho de 1982, chamou Rossi em seu escritório e lhe disse: “Vamos lançar Coisas Eróticas amanhã. Vamos aproveitar que estão todos tristes com a Copa. Aí o pessoal se anima com seu filme”. Denise conta que ela e Moura foram falar com o dono do Windsor e ele mesmo sugeriu à dupla lançar o documentário lá. “Ele foi visionário ao exibir o Coisas”, arremata Moura sobre Luccas. Segundo os autores, o documentário ficará apenas no circuito de festivais. O motivo principal, dizem, é o receio do mercado em falar sobre pornografia, considerada um “tema delicado”. Para Moura, Coisas Eróticas não é um tema delicado, mas, sim, um assunto histórico. <aprimeiravezdocinemabrasileiro.com>. <video.xnxx.com/video1126447/coisas_eroticas>.

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Cartaz de Coisas Eróticas, o primeiro filme pornô nacional

levá-la adiante. Curiosamente, não havia nada publicado a respeito do filme de Rossi. “Acho que ficou uma vergonha enraizada do Coisas Eróticas. Quando ele saiu, a imprensa meteu o pau. Não encontramos nenhum jornal da época que falasse bem”, explica Denise. Moura completa: “Aquele filme foi um rolo compressor que


o paraíso de zahra RESENHA |

O Paraíso Não É Aqui

dramas do povo iraniano

Tiras de O Paraíso de Zahra, que retrata acontecimentos ocorridos após as eleições presidenciais de 2009

TEXTO micheliny verunschk

O Paraíso de Zahra é o nome do mais importante cemitério iraniano, ao sul de Teerã, que leva o nome da filha do profeta Maomé, Fátima Zahra. Acredita-se que os mortos enterrados nesse local ressuscitarão no paraíso. O Paraíso de Zahra (Leya, 2011) é também o nome de uma graphic novel que conta as atrocidades cometidas contra o povo iraniano no período posterior à conturbada eleição do atual presidente, Ahmadinejad, em 2009. Logo após o pleito, ondas de protesto tomaram conta do país, com manifestantes acusando o partido vencedor de fraude. Sob as ordens de Ali Khamenei, líder supremo iraniano, a milícia Basij atacou os grupos causando várias mortes, prisões e desaparecimentos. Uma dessas mortes, da jovem Neda Agha-Soltan, tornou-se emblemática da luta do povo iraniano por seus direitos, entre eles a democracia. A imagem da moça coberta de sangue, agonizando no meio da rua, ganhou o mundo através das redes sociais e expôs um fato que a grande mídia ocidental sempre deixou de lado: os anseios do povo árabe não são tão diferentes daqueles dos povos ocidentais.

História em quadrinhos revela

mão de Mehdi, um blogueiro ativista, é ao mesmo tempo pungente e combativa. Por meio desse roteiro, o cotidiano do povo iraniano se mostra muito próximo ao de qualquer outro e talvez seja essa uma das maiores virtudes do livro: a identificação imediata, seja pelo apelo jovem por liberdade, seja por detalhes como o trânsito caótico, a conversa do taxista ou o tráfico de poder tão conhecido de nações que enfrentam problemas com a corrupção. Não há como pensar nas mães iranianas sem lembrar das mães da Praça de Maio ou das mães da Candelária. Para além de enxergar o iraniano como o outro, o diferente extremo, é possível afirmar que eles somos todos nós. O ilustrador Khalil é contundente: “O Irã quer direitos humanos, comunicação entre as pessoas. O rosto de Ahmadinejad é somente um rosto feio que olhou para o mundo, não é a história do Irã, nem quem representa o país”. Guindastes

Entretanto, não há como não se chocar com a visão, ainda que ilustrada, de A história de O Paraíso de Zahra foi motivada por esses acontecimentos corpos de dissidentes enforcados, martirizados em guindastes e expostos políticos e reuniu sob o mesmo projeto um autor iraniano, Amir, um artista em praça pública. Na história, o narrador é cru ao afirmar: “No Irã nós tamgráfico árabe-americano, Khalil, e um editor judeu, Marc Siegel. Publicada bém temos a nossa própria KKK. No lugar dos robes brancos e capuzes, eles de forma seriada na internet, a história se tornou uma resposta à censura e usam turbantes e uniformes. Os cristãos têm a cruz; nós temos o guindasperseguição empreendida pela te”. Oferecendo um panorama “No Irã nós também temos a nossa própria KKK. República Islâmica do Irã ao seu muito atual do país, O Paraíso próprio povo. “Ficamos muito No lugar dos robes brancos e capuzes, eles usam de Zahra é o documento de um emocionados em 2009 quando tempo, uma denúncia vigorosa. turbantes e uniformes.” vimos o que estava acontecenZahra, a personagem principal, do nas ruas de Teerã. Vimos na internet uma mãe que havia perdido o filho homenageia também a fotógrafa iraniana-canadense Zahra Kazemi, morta de 19 anos, pessoas muito corajosas perguntando ‘onde está o meu voto?’, em julho de 2003 depois de ficar duas semanas sob a custódia da República outras que saíam para as ruas e documentavam o que estava acontecendo, Iraniana por fotografar uma manifestação em frente à penitenciária de Evin. como se assumissem o papel da imprensa. Precisávamos dar uma resposta rápida e fizemos a publicação simultânea à produção. O livro foi produzido Zahra, a mãe sem seu filho, é uma metáfora do Irã. Como Zuzu Angel é uma em um ano e meio porque nosso propósito era sermos solidários para com metáfora do Brasil. E ela, Zahra, pergunta: “Olhem pra este caixão, pra este aquelas pessoas.” Quem conta é Khalil, que em junho esteve no evento de túmulo. Neste momento agora, onde está o Mehdi? Este túmulo é o seu fulançamento do livro no Itaú Cultural. turo? Este caixão é o seu passado? E se ele não estiver no túmulo e nem no caixão? Olho para este túmulo e não vejo Mehdi. E se eu abrisse este caixão, A obra conta a história de Zahra, cujo filho Mehdi, de 19 anos, desaparece não encontraria Mehdi. Encontraria a assinatura de um povo sem nome e nos protestos subsequentes à eleição. Narrada em primeira pessoa pelo ir- sem rosto, sem história nem futuro”.


lygia clark

(SURTO)

Depoimento |

delirium ambulatorium

Jards Macalé relembra como a sensibilidade e as experimentações terapêuticas de Lygia Clark o ajudaram a espantar uma crise das bravas

Lygia e Macao se beijam

TEXTO jards macalé

Conheci Lygia Clark através de Hélio Oiticica, é claro, e logo nos tornamos amigos. Era o ano de 1967 e comecei a frequentar sua casa na Rua Prado Júnior, em Copacabana, quase Leme. Também através de Lygia e Hélio fui conhecendo (pessoalmente) Rubens Guerchman e Roberto Magalhães. Rubens me convidou a fazer a trilha sonora do filme sobre seu pai – um artista gráfico barra-pesada – e Roberto fez o cartaz da primeira comemoração do dia 7 de setembro em Brasília pós-ditadura. Era uma bandeira brasileira sofisticadíssima, sem a frase “ordem e progresso”. Anos depois perguntei a ele se podia transformar aquela bandeira em cenário para um show meu. Ele aquiesceu e até ajudou a fazê-la maior. Ainda hoje, volta e meia, eu a uso. Em 1982, Lygia estava imersa em experiências terapêuticas corporais. Já tinha pulado da moldura há muito e sua experimentação encontrava o corpo humano como suporte. Convidou-me a participar usando objetos que representavam os quatro elementos da natureza: água, terra, fogo e ar. Com eles, fazia o que chamava de “preencher os buracos do corpo”: sensibilizava as “zonas mortas”, tornando-as vivas e fazendo com que o corpo, estimulado pelos objetos, se tornasse inteiro. Passei dois anos entregando meu corpo ao colchonete cheio de areia (terra), onde ela passeava com os elementos-objetos (água, fogo e ar), preenchendo os “buracos”, sensibilizando-os. Saía das sessões leve e pleno. Inteiro. Diante das pressões políticas e das dificuldades de trabalho, entre outras questões, surtei em 1981. Um dia vesti a bata branca que Jorge Amado havia me dado para fazer o personagem de seu livro Tenda dos Milagres (Pedro Arcanjo, os olhos de Xangô), que Nelson Pereira dos Santos estava filmando. Coloquei os colares do santo e, com a espada de meu pai (oficial da Marinha de Guerra do Brasil), fiz discursos libertários pelas ruas do Rio.

Já sonolento, eu a vi trepada numa cadeira colocando um pano na janela para quebrar a luz. Não tinha cortina e a luz da tarde era forte. Desceu da cadeira e sumiu de novo. Apareceu com um livro e disse: “Vá lendo este livro que você vai melhorar”. Era o Poema Sujo (escrito em 1976), de Ferreira Gullar. Saiu deixando a porta entreaberta: “Qualquer coisa, chame”. Comecei a ler. O poema era barra-pesadíssima. Adormeci. Passei dois dias dormindo. Quando acordei ela estava sentada na cadeira ao pé da janela lendo o livro que me dera. Sorriu para mim: “Como está se sentindo?”. “Bem”, respondi. “Vamos à cozinha que vou fazer um cafezinho.” Enquanto fazia o café ela me falou sobre o grave problema dentário pelo qual estava passando, reclamando do preço do dentista e dizendo que tinha de vender algumas obras para pagar o tratamento. “Vou telefonar para sua casa e pedir que venham buscá-lo; sente-se em condições?” Respondi que sim e acrescentei: “Peça que tragam roupas, porque não vou sair de bata e colares por aí”. Ela riu.

Jards Macalé é compositor, músico, produtor e diretor musical, orquestrador e ator. Há quase 35 anos no cenário artístico, atua em diversas áreas de expressão, com trabalhos realizados com Gal Costa, Glauber Rocha, Caetano Veloso, Jorge Amado, Naná Vasconcelos, Maria Bethânia, Mário de Andrade, Hermeto Paschoal, entre tantos outros. Lançou recentemente o CD Jards (Biscoito Fino, 2011) e está produzindo um documentário sobre o disco, com direção de Érik Rocha, filho de Glauber.

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Vendo que eu não estava lá muito bem, Maninha, minha mulher na época, e meu amigo Xico Chaves (artista plástico e performer) me levaram até

Lygia. Pediu que me deixassem com ela, dizendo que telefonaria para eles assim que eu retornasse à “normalidade”. Deitou-me no colchonete de areia e sumiu do quarto. Lá pelas tantas voltou com uma xícara de chá de camomila e disse: “Tome este chazinho, este calmante (Lexotan) e procure relaxar”. Como Lygia tem o mesmo nome de minha mãe, transferi para ela o sentimento de proteção materna.


tulipa ruiz CAPA |

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reflorescer da Tulipa TEXTO leonardo calvano

Cantora e compositora lança segundo disco e se consolida

como uma das mais representativas artistas da sua geração

FOTOS andré seiti


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“Tudo Tanto surgiu naturalmente e foi produzido levemente, como numa brincadeira entre amigos.”

O grande desafio da carreira de um músico não é gravar o primeiro disco, e sim dar continuidade ao trabalho com a mesma qualidade demonstrada anteriormente, além de superar as expectativas e não cair na mesmice. Depois de lançar o álbum Efêmera (YP Music, 2010), sucesso de crítica e público, Tulipa Ruiz opta novamente pela ousadia e mostra quanto é capaz de amadurecer e transcender em tão pouco tempo. O trânsito livre por diversas linguagens e estilos nas composições de Tudo Tanto, seu mais novo trabalho, lançado em julho deste ano, projeta luz a esse salto rumo a algo consistente. A nova fase é uma espécie de afirmação de Tulipa como artista e já a coloca como uma das maiores de sua geração, apesar de não existir nenhum tipo de peso nessa caminhada. “Tudo Tanto surgiu naturalmente e foi produzido levemente, como numa brincadeira entre amigos”, diz a cantora. Tulipa recebeu a reportagem da Continuum horas depois de voltar de uma série de shows no Reino Unido. Mesmo sob efeito do jet lag, esbanjava bom humor e nos brindava com muitas histórias deliciosas. “Toquei até numa igreja milenar e, quando soube que passaria perto da casa do Sting, resolvi parar e colocar um disco meu na caixa de correio”, conta. Efêmera

Apesar de ter nascido em Santos, Tulipa Ruiz se considera mineira de coração. Foi criada em São Lourenço, sul de Minas Gerais, para onde se mudou com a mãe aos 2 anos de idade, logo após a separação dos pais. A primeira aproximação com a arte aconteceu quando ela fez um programa de rádio ao vivo na escola e, graças ao sucesso da empreitada, foi convidada a fazer um programa diário numa emissora comunitária. Para produzir as vinhetas, contava com a ajuda do irmão e sempre parceiro Gustavo Ruiz. Ainda na adolescência, a cantora entregou panfletos, fez curso para trabalhar em cassino, foi secretária numa escola de inglês e trabalhou numa loja de discos. A primeira experiência, de fato, com a música aconte-

ceu aos 14 anos, num coral, no qual permaneceu até os 17. Ela fazia parte também de um grupo de improviso que promovia esquetes e performances pela cidade. Passou a estudar canto lírico e por algum tempo acreditou que esse poderia ser um bom caminho a seguir. “São Lourenço é uma cidade muito pequena, tem, no máximo, 60 mil habitantes. Quando eu morava lá, só existia a faculdade de administração, então comecei a fazer aulas de canto lírico e também de italiano, para entender o que eu cantava”, relembra. “Uma hora pensei: ‘Nossa, isso que estou fazendo é surreal; preciso de algo mais prático, como uma faculdade’. Foi aí que me mudei para São Paulo e comecei a estudar multimeios na PUC, em 2000.” Na universidade, Tulipa conheceu os músicos Tatá Aeroplano e Dudu Tsuda, que se tornariam grandes amigos seus. Com Tsuda criou a banda Tugudugune, que se apresentava em festinhas e bares. Durante esse tempo, trabalhou também como arte-educadora e ilustradora. “Nessa época eu costumava fazer a arte dos flyers dos shows e das festas dos meus amigos”, conta. Tal pai, tal filha

Grande parte da bagagem e do conhecimento musical de Tulipa vem de seu pai, Luiz Chagas, guitarrista, compositor e jornalista que tocou, entre tantos outros, com Itamar Assumpção na banda Isca de Polícia. “Tinha essa coisa de ele tocar com o Itamar e ser crítico de música em São Paulo”, fala Tulipa. “Meu pai sempre mandava discos para nós e cobria as bandas que eu mais gostava quando adolescente. Uma vez ele me ligou dizendo que ia entrevistar o Slash [guitarrista dos Guns N’ Roses]. Eu fiquei enlouquecida!” Chagas atualizava Tulipa, que cresceu ouvindo discos frescos, além, é claro, de ter acesso ao rico acervo que ele mantinha – recheado de clássicos do tropicalismo, do Clube da Esquina, entre tantos outros – e que acabou indo para São Lourenço com a cantora. “Hoje em dia ele toca com a gente. É engraçado quando me perguntam da

nova geração, porque tem gente de todas as idades tocando comigo. A banda tem essa característica atemporal. Mas eu diria que meu pai é o cara mais jovem de todos. Sempre atento às novidades, antenado. É uma influência para mim e para todos os meus amigos. Um cara que transita no recorte da cena musical paulistana.” Ok, sou cantora

Tulipa sempre deu canjas em apresentações de amigos e frequentou os palcos de artistas como Junio Barreto e Ortinho em casas de shows que surgiam junto à cena musical que se formava na capital paulista. Participou ainda da banda Na Roda, com músicos do Teatro Oficina, de discos do Cérebro Eletrônico, Dona Zica e Nhocuné Soul e de shows de seu pai, como backing vocal. Desde então, foram vários projetos até se consolidar como cantora e compositora. Com outros amigos também criou a banda Doutor Arnaldo para quatro apresentações na Vila Madalena, em São Paulo, cuja proposta era bem performática. “Combinei com a Fernanda [Couto – atual assessora de comunicação da artista] que quem não estivesse cantando teria de fazer tricô com guizos”, relembra rindo. “Nessa época eu ainda não me via como cantora”, enfatiza. Por influência do cantor e amigo Thiago Pethit, finalmente Tulipa criou um perfil no MySpace [myspace.com/tuliparuiz], site utilizado por artistas, sobretudo músicos, para divulgar seus trabalhos. “Foi quando falei: ‘Ok, sou cantora’.” Surgiu então um convite para tocar no Teatro Oficina, uma oportunidade de testar suas músicas, assim como no projeto Prata da Casa, do Sesc, e na casa noturna Grazie a Dio. “Quando chegou janeiro de 2010 eu tinha de gravar. O Gustavo [Ruiz] havia fechado uma data no Auditório Ibirapuera para o lançamento do disco, mas ele nem sequer existia. Nós só tínhamos o repertório, mas chegamos à YB Music e fechamos a gravação”, conta. Resultado: gravado a toque de caixa, o disco ficou pronto a tempo, e, no dia da estreia, 150 pessoas ficaram para fora do show.


Amadurecimento

Dois anos após Efêmera, Tulipa Ruiz lança Tudo Tanto, no qual assina, sozinha ou com parceiros, todas as 11 faixas. A produção é de Gustavo Ruiz e os arranjos de cordas e sopros são de Jacques Mathias. O trabalho foi selecionado no edital Natura Musical e tem apresentações confirmadas em Salvador, no Teatro Castro Alves; em São Paulo, no Auditório Ibirapuera; no Rio de Janeiro, no Circo Voador; e em Curitiba, no Sesc da Esquina.

O palco é o meu lugar. Qualquer microfonia, respiração errada, qualquer desafinada pode ser linguagem, pode trabalhar a meu favor.”

Nesse novo disco, a cantora está ainda mais vigorosa e à vontade. Tulipa explora novos caminhos de sua extensão vocal, experimentados e aperfeiçoados no palco durante o intervalo entre os dois trabalhos. “Desta vez fizemos o caminho contrário. Antes de gravar Efêmera, havíamos feito uma série de shows. Com o Tudo Tanto, primeiro gravamos para depois pensar no palco. Estou mais à vontade, pois aconteceu justamente o que me disseram: fazer o segundo disco é muito mais divertido que o primeiro, já que não há mais aquela tensão do lançamento. Eu guardei esse conselho e isso me apaziguou”, explica.

sentindo tudo aos poucos; tive muito tempo para gravar voz e isso foi muito gostoso. O anterior foi muito rápido. Palco é uma coisa, estúdio é outra, e antes, para mim, era muito difícil gravar voz”, confessa. “Não sei se vou dizer isso daqui a 20 anos, mas o palco é o meu lugar. Qualquer microfonia, respiração errada, qualquer desafinada pode ser linguagem, pode trabalhar a meu favor. No estúdio não; é como se fosse um zoom na sua voz. Então qualquer respiração é diferente. É como se enxergássemos os nossos poros. Eu demorei a começar a curtir isso. Nesse disco fiquei mais relaxada, desfrutei mais do processo.”

Tulipa conta que, mesmo tendo amadurecido as músicas em shows, o período de gravação de Efêmera foi muito curto. “A gente se apresentou com formações diferentes e cada músico contribuiu de um jeito. Saiu até uma crítica dizendo que eu fiz um disco diferente do show. Fiquei com isso na cabeça e foi aí que percebi que gravar um disco é como fazer uma fotografia da música. Depois que você fotografa, coisas acontecem, outros músicos chegam, é algo que está constantemente em processo.”

O trabalho atual, segundo a cantora, é consequência do que aconteceu com o anterior. “Acredito que as pessoas esperam escutar coisas novas, diferentes. Se eu fizesse o Efêmera 2 ia ser mais do mesmo. Nós não vemos a hora de começar a tocar as músicas novas e ver o que acontece.” O disco inclui também uma parceria com Criolo e participação de Lulu Santos, São Paulo Underground, Daniel Ganjaman, Kassin, Rafael Castro, entre outros. Lulu no meu novo disco?

Tulipa e Gustavo Ruiz tinham como missão criar uma música para o novo trabalho, durante um café, antes de chegar ao ensaio. “Levamos um gravador, ficamos assoviando um tema, chegamos e perguntamos para a banda o que achavam”, conta. “A música rolou legal, ensaiamos a tarde inteira só com a melodia. A banda fez um intervalo para tomar um café e prometi que, quando eles voltassem, eu teria uma letra.”

Após o encontro com Lulu, Tulipa arrumou o e-mail do cantor e escreveu para ele com o assunto: Lulu no meu novo disco?. “Passou um dia e ele respondeu: boa pergunta! E se prontificou a gravar, amarradão. O processo foi muito legal, a melodia chegou nele.” No final, a música foi batizada de “Dois Cafés”, justamente por ter sido composta no intervalo entre um café e outro. Quanto à carreira internacional, Tulipa considera uma grande responsabilidade levar nossa música para fora do país, já que existe uma pressão por parte das pessoas e da imprensa em saber tudo sobre o Brasil. A cantora, que já se apresentou nos Estados Unidos, na Europa, na Argentina e na Colômbia, para citar alguns, conta que os artistas brasileiros viraram uma espécie de pequenos embaixadores. “Temos de explicar o que é samba, o que é bossa nova, quem é Tom Jobim, até finalmente perguntarem sobre o que estamos fazendo no momento. Mas, ao mesmo tempo, é interessante a forma como a música transcende o idioma”, conclui.

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O amadurecimento da cantora é facilmente perceptível no novo trabalho. Sua voz navega com segurança tanto em tons mais graves quanto em agudos extremos, desenhando melodias sinuosas. No entanto, em termos de texto e temática, as composições não abandonaram o humor e a irreverência da produção anterior. “No Tudo Tanto eu cheguei despreocupada. Fui fazendo as músicas, sem saber ainda o nome do disco, fui

Quando começaram a ensaiar a música completa, perceberam que ela se parecia muito com as baladas de Lulu Santos e decidiram fazer o convite. “Eu o conheci durante um show que fiz em Salvador. Rolava uma empatia. Depois fui vê-lo em São Paulo e trocamos uma ideia. É impressionante como todas as músicas que ouvi ali faziam parte da minha linha do tempo afetiva”, diz. “É uma ideia que existe na cabeça e não tem a menor pretensão de acontecer”, cantarola. “Isso é lindo! Esse show mexeu muito comigo.”



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roniwalter jatobá perfil |

De peão a pioneiro O escritor Roniwalter Jatobá não se rende a modernismos literários e acredita que há poucos textos bons direcionados aos jovens

TEXTO ieda estergilda de abreu

FOTO jessica rosen

A fábrica Nitro Química, fundada em 1935 na zona leste de São Paulo, tinha fama de empregar nordestinos para trabalhar em áreas perigosas e insalubres, expondo-os a vários tipos de gás tóxico. Nos últimos anos, a empresa adotou o livro Crônicas da Vida Operária (Boitempo, 2004), de Roniwalter Jatobá, para mostrar aos trabalhadores que, dos anos 1940 e 1950 para cá, as coisas haviam mudado. Finalista em 1978 do Prêmio Casa das Américas, em Cuba, e já na sétima edição, Crônicas resgata, com lirismo e denúncia, o dia a dia dos operários das fábricas do ABC paulista. Para o escritor Luiz Ruffato, nesse livro, assim como em outros como Sabor de Química (Oficina de Livros, 1976), Paragens (Boitempo, 2004) e Tiziu (Scritta, 1994), o autor praticamente instaura a literatura proletária brasileira. “Jatobá é pioneiro ao alicerçar sua obra no operário”, disse Ruffato. São mais de 15 livros publicados, prêmios importantes conquistados e contos incluídos em diversas antologias brasileiras e estrangeiras, além de versões traduzidas para o alemão, o inglês, o sueco, o holandês e o italiano. O autor, que acaba de completar 63 anos, diz ser um dos poucos que escrevem sobre o migrante nordestino. “Não tenho intenção de mudar de assunto ou buscar modismos, o que acontece com grande parte dos escritores brasileiros. Tento, ao contrário, me aprofundar na temática e elaborar cada vez mais a linguagem, fugindo, claro, do ranço naturalista”, conclui Jatobá. Caminhos

Para esse filho de baianos, nascido à beira da rodo-

via em 22 de julho de 1949, em Campanário, Minas Gerais, era como se desde cedo enxergasse outras rotas. Aos 10 anos foi morar na casa de um tio em Campo Formoso, Bahia. Fez o ginásio em um colégio protestante e lá descobriu a literatura. “Conheci quase todos os títulos da pequena biblioteca da cidade: textos de Dostoiévski, Gogol, Kafka. Os jovens, na grande maioria, brigavam para ver quem ia ler primeiro as novidades literárias que chegavam de Salvador”, conta. Durante quatro anos, o escritor se esbaldou de ler Graciliano Ramos, José Lins do Rego e muita prosa americana. Nesse meio-tempo, foi para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como office boy. Circulou pelo sertão baiano dirigindo um caminhão que servia para o pai comercializar produtos industrializados, e, nas muitas horas vagas, lia. Incentivado pelos pais analfabetos, mudou para São Paulo. “Minha mãe juntou os últimos trocados que tinha guardado da venda de umas laranjas e umas galinhas, comprei a passagem e vim”, relembra. Nos primeiros anos em São Paulo, antes de ser jornalista e escritor, o mineiro radicado em São Paulo procurou, sem sucesso, trabalho na tal Nitro Química. Conseguiu, em vez disso, uma vaga de ajudante geral na fábrica de automóveis Karmann-Ghia. Ele conta que ficou três anos empurrando carrinhos cheios de peças para a produção. “Levava tudo até a montagem e distribuía para as diversas fases. Não era exatamente a minha área, mas não tinha mais nada para fazer além daquilo. Precisava sair.” Depois da fábrica, foi trabalhar na gráfica da Editora Abril, já no final de 1973. Cinco anos depois,

com auxílio financeiro da empresa, formou-se jornalista e conheceu professores que o introduziram na literatura. “Lembro como se fosse hoje de Ana Teresa, professora e minha primeira leitora. Tinha olhar atento, incentivador. Em sala de aula, ela me passou a ideia de que eu poderia ser escritor e, se possível, um bom escritor.” Da poesia ao romance

Roniwalter escrevia poesia no ginásio, mas diz que era só por vontade poética. “Gosto do gênero e leio bastante, sempre acompanhando os grandes poetas. Pena que não saiba fazer, mas uso muito o ritmo da poesia no meu texto.” Naquele tempo, o maldito Augusto dos Anjos era lido e recitado nos bares de Campo Formoso. “Fiquei fascinado e escrevi uns versos, que foram elogiados pela minha professora de português. Até me empolguei, mas continuei só lendo.” Ele, que já foi cronista do Diário Popular, hoje segue escrevendo em blogs como o da Boitempo e o Tuda-Papel Eletrônico. “Não gosto da crônica que você é obrigado a fazer todos os dias, mas daquela que tem quase a mesma estrutura do conto, aquela que não envelhece.” Na apresentação do primeiro romance de Jatobá, Filhos do Medo (1979), o escritor e pesquisador Valdomiro Santana diz que o autor sentiu medo de não ter fôlego para encarar a mudança de estilo. “Embora o conto também seja complexo, a estrutura é mais curta. Achava realmente que no romance eu fosse me atrapalhar”, explica. “A novela Tiziu, quase um romance, foi reescrita oito vezes na máquina de escrever. Cada vez que lia achava


um problema e voltava ao começo, por isso nunca me arrisquei num romance de 400, 500 páginas.” Roniwalter acredita que sua obra se deve à experiência como redator dos fascículos Nosso Século e Retrato do Brasil. “Não escrevíamos ficção, mas, sim, história contada com uma liberdade poética que, de certa forma, ilustrava as belas fotos.” Para o público jovem, editou Juazeiro: a Guerra no Sertão (1996), sobre o padre Cícero, e A Crise do Regime Militar (1997). O romance que está escrevendo agora se passa nos anos 1920, na Chapada Diamantina, em um colégio presbiteriano. Há um entrelaçamento entre a visão protestante em conflito com o catolicismo na região, experiência vivida pelo autor, e a passagem da Coluna Prestes. “O leitor jovem não tem vícios. Você entrega um texto agradável, que flui, e ele vai embora”, enfatiza. “Há escassez de bons textos para esse público. Eles sentem falta de uma literatura que aponte rumos num momento de formação da sua personalidade”, acredita. Mais recentemente, publicou para a Coleção Jovens sem Fronteiras O Jovem Che Guevara (2004), O Jovem JK (2005), O Jovem Fidel Castro (2008), O Jovem Luiz Gonzaga (2009) e O Jovem Monteiro Lobato, este lançado em julho de 2012 com o novo livro de contos, Cheiro de Chocolate e Outras Histórias. Ao apresentá-lo, Ruy Espinheira Filho diz que “a arte de Roniwalter Jatobá se mostra por inteiro neste volume aparentemente despretensioso e que é, na verdade, tecido com as fontes profundas que trazem à superfície fria do cotidiano o que nos faz mais dignos na vida e que se chama calor humano”.

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Embora surjam convites para atuar no jornalismo, Roniwalter agora só quer fazer literatura, com tranquilidade, mesmo sabendo que não dá para viver dos seus livros. “O que ganho com direitos autorais complementa alguma coisa, mas ainda bem que tenho a aposentadoria.” E não faltam trabalhos, como a seleção e apresentação do segundo livro de crônicas de Lourenço Diaféria e um do poeta Álvaro Alves de Faria, sobre Domitila, a marquesa de Santos. “Este reproduz as cartas de dom Pedro e, como as cartas-resposta da Domitila foram extraviadas, o Álvaro as responde com poesia. Ficou muito legal.”


mudanças na TV paga

foto: divulgação

Reportagem |

O ator Marcos Palmeira interpreta o advogado Mandrake, da série homônima da HBO

abre-alas

o do audiovisual brasileiro Nova lei faz com que os canais por assinatura passem a exibir programação nacional e independente no horário nobre, dando uma guinada nas produções de conteúdo para TV no Brasil

TEXTO carol almeida

“A cidade não é aquilo que se vê do Pão de Açúcar.” A frase, de 2005 e que dá título ao episódio-piloto de Mandrake, primeira série brasileira coproduzida e exibida pela HBO na América Latina, soa profética para o que então se anunciava no mercado audiovisual brasileiro. Tal como a cidade cujo pulsar já não mais cabia em uma foto de cartão-postal, estava mais do que claro que, naquele momento, a TV por assinatura no Brasil não mais podia se adequar ao olhar gringo, à mirada panorâmica de uma programação que era turista em seu próprio país. No virar do calendário de agosto para setembro deste ano, entra em vigor a lei cujo número qualquer profissional da área já memorizou há tempos: 12.485. É com ela que o mercado de audiovisual pretende finalmente amanhecer (e brilhar ensolarado) para desabrochar, quem sabe, como uma indústria consolidada, conceituada e internacional. Pode parecer discurso de hino ufanista, mas é fato que uma brisa de otimismo sopra

hoje por entre os corredores das produtoras de conteúdo do país. E não é para menos. A tal lei, publicada no último mês de junho pela Ancine (Agência Nacional do Cinema), prevê uma série de incentivos à produção nacional para TV paga. A começar por aquele que obrigará todos os canais de TV por assinatura a exibir um mínimo de 3 horas e 30 minutos de programação nacional em horário nobre, sendo 50% desse tempo ocupado por produção independente. Com isso, a Ancine não apenas abre a primeira porta para a criação de uma indústria de audiovisual nacional, como fundamentalmente descortina o Brasil para uma parte dos brasileiros que, zapeando hoje pelos canais de pacotes pagos, conseguem muito mais facilmente entender as nuances das ruas de Manhattan do que de Copacabana. “Não faz mais sentido simplesmente legendar programas de fora. Estamos falando de uma questão que é se comunicar com a população”, acredita Gustavo Moura, que, ao

lado da mulher, a apresentadora Marina Person, abriu em 2011 uma produtora de vídeos, a Mira Filmes, hoje com 12 projetos de programas sendo desenvolvidos para canais de televisão. “A ideia é que este trabalho de pensar em novos programas não pare nunca. Digamos que desses 12 projetos consigamos emplacar 3 ou 4. Já está legal”, diz Moura. Nas palavras de Marina Person, tudo se explica mais ou menos assim: “É necessário perguntar se o Brasil quer ser fornecedor de minério e laranja ou se queremos ganhar um Oscar”. Sua provocação sintetiza todo o debate. Visto hoje internacionalmente como um país emergente e à beira de sediar uma Copa do Mundo e as próximas Olimpíadas, o Brasil ainda carimba sua identidade lá fora com ecos da maneira Zé Carioca de ser. A exemplo do que acontece há décadas nos Estados Unidos, onde há mecanismos de estímulo à produção do audiovisual, nosso cartão de visita pode mudar bastante quando começarmos não apenas


foto: Humberto Pimentel

foto: divulgação

Jece Valadão (no centro à frente), um dos protagonistas da série Filhos do Carnaval

a nos ver no espelho, como estrategicamente exportar essa imagem para além das fronteiras. “A questão é: estamos falando de uma conta que tem de fechar. O negócio precisa ser bom tanto para as produtoras quanto para os canais. Quando você fala nesses canais grandes, eles precisam de um produto brasileiro que consiga circular também por outros países da América Latina. E aí o que você faz? Cria um enredo latino-americano. E existem milhares de assuntos que envolvem toda a América Latina”, explica Joana Mariani, sócia da Primo Filmes com o primo Matias Mariani. A produtora, aliás, já deu início às filmagens de um de seus projetos mais audaciosos. Em parceria com o Canal Futura, a ficção Família Imperial é uma série infantojuvenil, dirigida por Cao Hamburger, que coloca em paralelo dois casais de irmãos da mesma família que vivem em tempos distintos: dois deles moram no Rio de Janeiro de 2012 e os outros dois estão na cidade em 1812, pouco depois da vinda da corte portuguesa ao Brasil. Graças a um feitiço, esses dois pares de irmãos trocam de tempo, dando abertura para que o nosso presente conheça nosso passado e vice-versa. Não deixa de ser uma parábola para uma possível jornada de autoconhecimento com o impulso que a Lei 12.485 dará ao audiovisual nacional. Porque, se até hoje as produtoras independentes (com o perdão do trocadilho) dependiam dos canais sob o guarda-chuva Globosat (GNT, Multishow, Canal Brasil, Canal Futura, entre outros) para fazer vingar suas ideias, daqui para a frente as possibilidades se agigantam com todas as outras combinações do controle remoto.

estrutura de pós-produção. “Estamos em uma maratona para fechar projetos para canais. O mercado de produtoras nasceu no Brasil pensando e mirando sempre o cinema, e agora temos de pensar em produtos que gerem audiência e estejam focados naquilo que os canais precisam.” Provado está que, no momento em que se encontra, a produção audiovisual independente, aquela feita fora das emissoras abertas do país, consegue, sim, criar conteúdo de qualidade internacional, capaz de desfazer nossa necrosada, introjetada e exportada imagem de samba-futebol-e-carnaval. Além das séries já coproduzidas pela HBO − como Mandrake, Filhos do Carnaval e Alice −, temos uma carta de ofertas originais e de diversos formatos e representações, como os bem-sucedidos SuperBonita, programa de variedades do GNT, e Adorável Psicose, série de ficção do Multishow. E, se há quem diga que nosso grande gargalo criativo, na TV ou no cinema, ainda está na elaboração de bons roteiros, há também quem acredite que o problema maior seja justamente essa falta de exercício de um mercado, até então, desprotegido pelo governo. “Você só aprende a pintar pintando e a jogar futebol jogando. Se falta mão de obra qualificada no Brasil, essa é a nossa oportunidade para experimentar novos caminhos. A questão agora é aprender a trabalhar, em orçamento e prazo, e entender o público. O que falta é botar esse povo para trabalhar e aí, uma hora, os acertos vão falar mais alto que os erros”, pontua Gustavo Moura. Otimistas ou realistas, os produtores são consensuais em um ponto: com a Lei 12.485, a Ancine quer ajudar a criar uma indústria que, sem mecanismos de proteção do governo, não iria muito longe. Essas regulamentações já deram certo em países próximos, como a Argentina, e, claro, mantêm o maior mercado de audiovisual do mundo, o dos Estados Unidos. E, se a produção audiovisual nacional nasceu pensando na tela grande do cinema, agora ela pode dar seu maior passo com monitores bem menores.

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“Acho que esse é o momento de novas cabeças, ideias e, principalmente, de mostrar a cara brasileira nesses canais”, afirma Tiago Mello, que até pouco tempo era diretor executivo de uma das maiores produtoras do país, a Mixer, e decidiu investir sua experiência de mais de dez anos na área em sua própria produtora, que começa com

Joana Mariani e Matias Mariani (no centro à frente) posam com a equipe da Primo Filmes


cidades que dançam Reportagem |

bailando em escala Rede Cidades que Dançam reúne festivais site specific em 35 cidades e 18 países ao redor do mundo TEXTO deborah rocha moraes

Já se deparou com um espetáculo de dança contemporânea enquanto caminhava pela rua? Pois saiba que os festivais realizados em espaços não convencionais da paisagem urbana são uma prática cada vez mais comum. É o que tem compartilhado a CQD – Cidades que Dançam – rede internacional em 35 cidades e 18 países, entre Europa, América Latina, Ásia e África. A ideia de uma aldeia global para a dança surgiu em Barcelona, em 1992, na esteira das comemorações dos Jogos Olímpicos, então sediados naquela cidade. Em meio à atmosfera de intercâmbio e cooperação cultural, foi criado o festival Dies de Dansa. E o cenário não poderia ser mais inspirador: o Parc Guell, do arquiteto Antoni Gaudí. “Naquela época, não existiam performances de dança contemporânea em espaços urbanos. A dança ainda era uma arte bastante elitista e pouco acessível”, conta Mar Cordobés, diretor da CQD. Rapidamente, o Dies de Dansa ganhou reconhecimento e o respeito do público, e hoje comemora a 20ª edição. Com o interesse crescente de profissionais e organizações internacionais, a CQD abarcou gradualmente novos festivais e consolidou-se especialmente em cidades da Europa e da América Latina. Ao mesmo tempo, encorajou outras a desenvolver produções parecidas, caso de Lugar à Dança, em Lisboa (Portugal), Ciudad en Movimiento, em Havana (Cuba), Andanza, em La Paz e Sucre (Bolívia), Danzalborde, em Valparaíso (Chile), e, mais recentemente, Dans Pie, nas Ilhas Reunião (França).

foto: Marzio Mirabella

Do Brasil, participam as cidades de São Paulo, com o Festival Visões Urbanas; Brasília, com Marco Zero; Belo Horizonte, com Horizontes Urbanos; Porto Alegre, com Dança Alegrete; e Rio de Janeiro, com Dança em Trânsito. “São Paulo é uma cidade tão importante no cenário latino-americano que não poderíamos estar de fora”, fala Mirtes Calheiros, diretora artística do Visões Urbanas, que ocorreu em março deste ano e trouxe 21 apresentações nacionais e internacionais para parques e praças do centro antigo paulistano, além da vizinha São Bernardo. “A dança con-

maior

temporânea fala direto ao coração e àquela parte do nosso ser que entende as mensagens simbólicas que não permitem tradução verbal. E, para os bailarinos, as percepções colhidas em espaços abertos podem ser utilizadas tanto em espetáculos de palco quanto nas ruas. Um não é mais importante do que o outro, embora a dança em espaços públicos seja uma arte com requisitos bastante específicos”, acredita. Sempre interessada em dançar livremente, Mirtes criou o Levante – Centro de Artes para a Rua, tendo como inspiração as propostas do livro TAZ – Zona Autônoma Temporária (Conrad do Brasil, 2001), do autor Hakim Bey. A primeira turma mostrou o resultado do seu processo no festival do ano passado. Neste ano, o grupo fez uma performance itinerante, que teve início no Largo Santa Cecília e terminou no Parque Buenos Aires. Em setembro, começam as aulas do Levante de Primavera, que incluirá outras ações, como o Cine Levante e encontros com pesquisadores. “O grupo é estimulado com propostas que visam criar na rua, com a rua, para a rua e apesar da rua. Cada encontro é um desafio, pois requer a suspensão das nossas ideias preconcebidas e também que entremos em acordo com esse espaço pleno de vida”, fala Mirtes. Também diretora da Cia. Artesãos do Corpo, fundada por ela em 1999 e que reúne cinco intérpretes, Mirtes deseja ampliar o alcance do festival. A oitava edição do Visões Urbanas, que acontece em março de 2013, pretende manter a proposta de extensão para outras cidades. “Estamos estudando a possibilidade de incluir Peruíbe ou São Sebastião e Ilhabela, Embu Guaçu ou São Luiz do Paraitinga”, adianta. Com 38 festivais ao redor do mundo, a rede comemora 20 anos no Congresso Anual Internacional Cidades que Dançam, que ocorre em novembro, na Cidade do México. Além da estreia do festival mexicano Subterrâneo na rede, o objetivo é promover o intercâmbio entre artistas e companhias de dança mexicanas e europeias, com turnês de ambas nos países parceiros.

Saiba mais em <cqd.info>.

Ubidanza, de Aline Nari e Davide Frangioni


O projeto Memórias Capitais reúne entrevistas sensoriais com

diversos artistas sobre a cidade onde nasceram

memórias capitais

s o n o r o

Reportagem |

U n i v e r s o

Manaus, uma das cidades do projeto Memórias Capitais

TEXTO gabriela rassy

FOTO matthieu rougé

Fotos, vídeos, textos. Temos uma infinidade de meios para guardar, de alguma forma, um tempo que passou. O registro dos momentos, porém, não supre o sabor, o perfume e as experiências pessoais contadas. Retomar essas sensações, através da contação de histórias, sempre relacionando-as à cidade de nascimento é a ideia principal de Memórias Capitais. Idealizado por Cacá Machado, com direção e fotografia de Matthieu Rougé, o projeto é uma compilação de entrevistas que pretende resgatar as nuances da infância para retratar cada capital brasileira por meio das lembranças de nativos que sejam, hoje, criadores de arte. Nesse sentido, a ideia é seguir um personagem, partindo sempre do bairro, da casa ou da rua onde cresceu, para, por meio de depoimentos, traduzir suas lembranças. “É uma experiência sensorial, por isso, é apenas sonora, para que o ouvinte possa recriar a imagem da época”, explica Matthieu Rougé, que, depois do primeiro programa gravado, insistiu em acrescentar imagens ao site [itaucultural.org.br/memoriascapitais] onde o projeto é exibido. As fotos, porém, não seguem ordem cronológica nem podem ser vistas enquanto se escuta o áudio, exatamente para preservar o imaginário do ouvinte. Em Salvador, por exemplo, Carlinhos Brown caminha com propriedade pelas ruas onde vive até hoje. Canta, ri e cumprimenta cada pessoa que passa enquanto mostra com orgulho o bairro onde passou a infância. “Abre o gueto aqui, Helena, por favor?”, diz ao entrar em uma de suas histórias.

“Minha infância era o meu paraíso.” Essa foi a definição que o escritor Milton Hatoum encontrou para seu lugar de origem, durante uma das entrevistas. Em Manaus, Hatoum nos leva à rua onde morou, à escola do bairro e ao porto. Depois de tantos anos vivendo longe dali, ele avalia sua relação com a cidade, de onde saiu aos 15 anos. “Acho que esse foi um dos maiores traumas da minha vida. [...] Eu queria e não queria sair daqui. Queria porque a província é sufocante e não queria para não abandonar meu paraíso”, conta o escritor. Em outro momento, ele lembra da cultura da cidade naquele tempo. “Nada era perto, tudo era distante, mas as coisas chegavam. Até mesmo as rádios do Caribe, bolero, rumba. O Caribe era mais próximo da gente do que o Brasil”, diz quase em tom de poesia. A narrativa oral foi a base de todas as culturas antes da escrita. Segundo o professor de pesquisa em sociologia Paul Thompson, que estuda a importância da oralidade dos fatos, a história oral é “a interpretação da história, das sociedades e das culturas por meio da escuta e do registro da história de vida das pessoas. E a habilidade fundamental na história oral é aprender a escutar”, como escreveu em História Falada – Memória, Rede e Mudança Social (Sesc SP, Museu da Pessoa e Imprensa Oficial, 2006). Para Rougé, é um privilégio circular pelas cidades contadas e aprender com os personagens novas leituras sobre cada lugar. “Acho que o fato de eu ser francês ajuda o programa. O João Donato, por exemplo, fazia questão de contextualizar coisas, explicar melhor, como se eu não soubesse o que aconteceu lá. Acho que essa é uma vantagem de eu ser estrangeiro”, disse aos risos. Ainda faltam nove cidades para completar o projeto, que será concluído no final de 2012. Os próximos a entrar no ar são os depoimentos de João Donato, sobre Rio Branco, e Antonio Carlos Viana, sobre Aracaju.

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A Salvador de Brown, aliás, tem mais intervenções de criação sonora do que a cidade de Fafá de Belém, por exemplo, em que o som é direto. “É um projeto muito flexível, que se adapta a cada personagem. Saem depoimentos muito diferentes, o que torna o conjunto muito mais interessante do que um só programa. Além disso, de cada um sobressaem subtemas”, explica Rougé. Um dos assuntos recorrentes é a ditadura militar, até mesmo pela idade dos artistas escolhidos pelo diretor, todos com mais de 45 anos. “É um recorte geracional. Acho que são personagens mais interessantes em termos de lembranças”, diz Rougé.

Alguns dos depoimentos mais atraentes considerados pelo diretor do projeto são o de Paulo Lins [Rio de Janeiro] e o de Paulo Mendes da Rocha [Vitória]. “O do Paulo Lins me toca muito porque ele tem uma voz incrível, que traduz vários sentimentos do Rio com doçura. O do Mendes da Rocha se destaca pela visão, gentileza articulada e pelo recuo da idade”, conta.


capiba Reportagem |

TEXTO mariana lacerda

FOTOS beto figueiroa

Na estante, 23 pastas de plástico, lombadas vermelhas e amarelas, tamanho grande. Em cada uma delas, todas abarrotadas de papel, uma etiqueta indica o conteúdo. Os temas variam de “poemas e letras de músicas (muitas)/frevos variados e orquestrados”, “frevos variados Capiba”, “choro”, “maracatu” até “valsa” e “música para concerto: flauta – piano e celo”. Há também letras e poemas – uns manuscritos, outros datilografados – e partituras musicais. Ao todo, quantas páginas? “Não faço ideia; muitas”, diz Maria José Barbosa, conhecida como Zezita, 81 anos, viúva de Capiba e guardiã do acervo deixado por ele.

mexia pouco nas coisas do marido e quase não se atrevia a dar ordem no que resultava de seu ofício. “Ele dizia que eu não entendia nada de música”, relembra.

Nascido Lourenço da Fonseca Barbosa, em 1904, na cidade de Surubim, agreste pernambucano, Capiba foi músico e compositor. Seu trabalho contribuiu de forma determinante para que o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) tornasse o frevo um patrimônio imaterial brasileiro. Ritmo [e dança] único, associado a um lugar: o Recife.

terraços generosos, onde há cadeiras e poltronas encostadas nas paredes. Nelas gatos dormem. “São mais de 40, mas na verdade nunca contei.” Metade da casa é dedicada a guardar as coisas de Capiba – e é a única parte por onde os animais não circulam.

Quando Capiba morreu, Zezita dedicou-se a dar ordem às muitas folhas avulsas com músicas, anotações, poemas e partituras deixadas por ele. “Capiba escrevia, escrevia, fazia aquelas garatujas musicais, batia no piano, depois jogava tudo numa caixa ou deixava pelo chão”, conta ela, que

Há pouco mais de um ano, Zezita deixou sua casa no Recife para residir em Surubim. “Além de gostar de cidade pequena, Capiba nasceu aqui”, diz ela. Construiu uma morada grande, ladeada por Zezita conta que as paixões do marido eram, nesTa ordem: primeiro a música, segundo o Santa Cruz, terceiro o Santa Cruz e quarto o Santa Cruz.

rolo”, que contêm áudios. São registros que Capiba considerava importantes: poemas gravados por Carlos Pena Filho e músicas nas vozes de Ella Fitzgerald, Frank Sinatra e Nat King Cole, além de narrações de alguns jogos do Santa Cruz. Na mesma estante, ao lado, está a velha máquina de escrever e o rádio em que, em teoria, Capiba ouvia jogos e resenhas esportivas. “Ouvia nada. Ligava e desligava o tempo todo. Não aguentava escutar um jogo do Santa inteiro”, conta Zezita. Na mesma sala está o piano de Capiba, fechado, com uma pequena bandeira de seu time querido do lado direito. É um símbolo, uma homenagem às coisas de que ele mais gostava. Zezita conta que suas paixões eram, nesta ordem: primeiro a música, segundo o Santa Cruz, terceiro o Santa Cruz e quarto o Santa Cruz. “Talvez eu viesse em quinto ou sexto lugar.” Ritmo do Recife

Lá, além das pastas enfileiradas, há um armário de fotografias. Algumas pinturas que retratam paisagens e figuras humanas, todas feitas pelo músico, decoram o ambiente. Também apoiado na parede está um armário com algumas de suas roupas. Em outra sala logo ao lado, na parte mais alta de uma das prateleiras, enfileira-se uma pequena série do que Zezita chama de “fitas de

O frevo é uma invenção do Recife. “Se criou no meio do povo, quase espontaneamente, e se cristalizou como traço marcante de sua fisionomia urbana”, explica o pesquisador e escritor Valdemar de Oliveira, no livro Antologia Pernambucana de Folclore (Editora Massangana, 1988). Aos pequenos e grandes blocos e clubes de frevo do Recife e de Olinda juntam-se amigos, namora-

O tesouro de Capiba A viúva do eternizado músico e compositor pernambucano torna-se guardiã de seu acervo

A máquina de escrever do músico e compositor Capiba, morto em 1997


Capiba fez também maracatus e choros, Nem sempre frevos.Teve músicas gravadas por Chico Buarque, Maria Bethânia, Nelson Gonçalves e João Gilberto, além de Junio Barreto e Maria Rita.

Aceleração e desaceleração musical é a proposta do show

As “fitas de rolo” com gravações de poemas e músicas e narrações de jogos de futebol

dos, famílias, catadores de latas, pescadores de mangues e crianças de todas as idades. Essa história começa ainda no período colonial, num momento em que assalariados e escravos não eram exatamente bem-vindos às festas carnavalescas, reservadas apenas à burguesia. A partir de 1870, no entanto, começaram a chegar na Zona da Mata de Pernambuco – região de solo fértil onde crescia (e ainda cresce) a cana-de-açúcar, então principal produto da economia do estado – novas tecnologias agrícolas que substituíram a mão de obra. Por outro lado, o Recife, que via crescer uma indústria têxtil e de produção de bens de consumo, atraía trabalhadores, em sua maioria negros ou mulatos. Eles eram operários da cana, habituados ao trabalho manual e artesanal, que migravam para a cidade e começavam a se organizar em categorias cada vez mais atentas a seus direitos.

Juntou-se a esse momento o fato de existirem grupos chamados de capoeiras – o nome derivava do jogo capoeira, que eles gostavam de brincar quando saiam às ruas. Durante o Carnaval, com movimentos firmes, os capoeiras abriam alas e faziam a defesa das bandas, que por sua vez eram acompanhadas pelo povo da rua ou do mangue, que se sentia contagiado quando um clube ou bloco passava – muito embora não fossem convidados a participar da festa.

Barbosa, era orquestrador, arranjador, professor, clarinetista, violinista e maestro de banda, como consta na coletânea Compositores Pernambucanos, 100 Anos de História, organizada por Renato Phaelante (Cepe Editora, 2010). Refinou canções de frevo de bloco e de rua, sutis derivações do ritmo, e trouxe poesia. Hoje, não há um carnavalesco que, estando nas ruas do Recife, não entoe Madeira que Cupim Não Rói nos dias de Momo [festa de Carnaval].

Eram essas pessoas, como escreveu Rita de Cássia, que ao longo dos anos incorporavam o ritmo vibrante das músicas, ao mesmo tempo que faziam surgir os passos de um novo estilo musical, até então em construção. Os movimentos eram feitos individualmente, com traços de agressividade, uma forma de domínio de espaço – e também de defesa. “Os movimentos ágeis e definidos dos corpos, por sua vez, retornavam aos músicos e inspiravam novos acordes, num processo incessante de troca, improvisação e criação coletivas.” E assim foi nascendo o frevo. “Quando menos se viu, a música tinha ganhado, ano a ano, características próprias, inconfundíveis e, do mesmo modo, a dança, que já não se parecia com nenhuma outra”, sentenciou Valdemar de Oliveira.

Capiba fez também maracatus e choros, nem sempre frevos. Reuniu, portanto, um vasto repertório. Teve músicas gravadas por Chico Buarque, Maria Bethânia, Nelson Gonçalves e João Gilberto, além de Junio Barreto e Maria Rita. Os manuscritos, as partituras, as fotografias e todos os objetos que contam essa história revelam quem foi esse artista. Alguém que compôs músicas que representam um lugar e seguem sob a guarda de Zezita. À frente da Associação Cultural Capiba, ela se articula para que o acervo seja inventariado e ganhe um destino onde seja possível a consulta pública. Por ora, Zezita espanta os gatos e mantém limpos e iluminados os dois cômodos de sua nova casa. Lá, onde as coisas do marido se misturam às suas, se entrelaçam e cruzam o tempo para chegar até nós.

Filho de músico, Capiba escreveu as notas dessa história. Seu pai, Severino Anastásio de Souza

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As festas populares, como o Carnaval, celebradas em momentos de pausa das obrigações e ocupações diárias, não eram antítese do trabalho ou a negação do cotidiano. “Emergiam das práticas e das relações que os indivíduos estabeleciam em seu próprio lidar durante o dia”, escreveu Rita de Cássia Barbosa de Araújo em seu livro Festas: Máscaras do Tempo: Entrudo, Mascarada e Frevo no Carnaval do Recife (Fundação de Cultura da Cidade do Recife, 1996).

O piano decorado com a bandeira do time de coração de Capiba, o Santa Cruz


plínio marcos Reportagem |

O samba paulista: de Plínio Marcos a Kiko Dinucci Artistas de gerações diferentes, que nunca se conheceram, se TEXTO carlos costa

encontram no palco do Itaú Cultural unidos pelo samba paulista

Nada de túmulo. Ao contrário do que disse Vinicius de Moraes, o samba paulista tem vida e história. E ganha uma ação em prol de sua memória e permanência, no dia 29 de setembro, no Itaú Cultural. É o espetáculo Plínio Marcos em Prosa e Samba – nas Quebradas do Mundaréu, com Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro, que, dirigido pelo músico Kiko Dinucci, relê o disco raro de Plínio Marcos com sambistas paulistas, lançado em 1974 e reeditado em CD, neste ano, pela Warner.

Mundaréu, seguiu para o Teatro de Arte, no porão do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC), onde foi gravado.

Entre os diversos projetos que toca, Dinucci pesquisa há tempos os sambistas participantes do álbum, que chama carinhosamente de maloqueiros e considera responsáveis por uma importante obra, reveladora da identidade do samba produzido em São Paulo, mas pouco conhecida e carente de registros. O músico também mostra vasto conhecimento e admiração por Plínio Marcos (1935-1999), escritor que renovou os padrões dramatúrgicos com uma obra cortante, de enfoque quase naturalista, e carregada de gírias e personagens de camadas sociais periféricas. Escritos e encenados a partir dos anos 1960, os textos percorreram uma atribulada trajetória, marcada por proibições da censura da ditadura militar e por conflitos diversos, além das vicissitudes de um artista genuinamente inconformado com o sistema, suas leis e seus vícios. O Samba de Plínio

O samba surgiu na juventude de Plínio como lazer, em Santos, cidade onde nasceu e cresceu. Conforme relata Oswaldo Mendes, na biografia Bendito Maldito: uma Biografia de Plínio Marcos (Leya, 1999), quando o dramaturgo morava em São Paulo – e pelejava contra a censura para poder encenar suas peças –, ele montou o show Plínio Marcos e os Pagodeiros da Pauliceia.

foto: acervo de família

O espetáculo estreou em 1970, em Belo Horizonte, com a renda revertida para a defesa de presos e perseguidos políticos e acabou dando certo. Tanto assim que dois anos depois estava em São Paulo. Primeiro, no Teatro de Arena e, em 1973, reformulado e com o nome Humor Grosso e Maldito das Quebradas do

A reedição do álbum ocorreu mediante a persistência dos filhos de Plínio, Aninha Barros, Kiko Barros e Léo Lama, que seguem com outros projetos relacionados. “Começou com uma coisa afetiva e ganhou corpo. Queria mostrar que isso de marginal já era, que há outras coisas na obra do meu pai. O disco é muito diferente. A narrativa, as músicas. As pessoas gostam muito”, conta Aninha Barros. Batuque caipira

O disco – que será relançado em vinil no show do Itaú Cultural – tem 13 faixas: 5 sambas de Geraldo Filme, 4 de Zeca da Casa Verde, 2 de Toniquinho, 1 do folclore paulista e 1 instrumental, interpretada pelos Batuqueiros de Vila Isabel, que encerra a gravação. Antes de todas as músicas, uma introdução de Plínio revela histórias, contando casos e construindo um roteiro. Como adianta Dinucci, no espetáculo esses textos serão usados como samplers e participarão dele Juçara Marçal, Thiago França, Rodrigo Campos, Marcelo Cabral e Dona Anecide, anônima para a maioria do público. Dinucci explica que ela representa a velha guarda do samba paulista. “Dona Anecide é dona do batuque de umbigada de Capivari, interior de São Paulo. O batuque tem sonoridade africana e polifônica, é acompanhado por uma dança de umbigada e mostra em estado bruto de onde veio o samba de São Paulo. Plínio Marcos vivia defendendo que o samba paulista existe”, conta. Plínio Marcos deixou a prova do que defendia registrada nessa obra e nas músicas dos três negros (Geraldo, Zeca e Toniquinho), vindos do interior do estado e que, infelizmente, ainda não alcançaram o reconhecimento que merecem.

Consulte <itaucultural.org.br/enciclopedias>.

Plínio Marcos deixou a prova do que defendia registrada nessa obra e nas músicas dos três negros (Geraldo, Zeca e Toniquinho), vindos do interior do estado e que, infelizmente, ainda não alcançaram o reconhecimento que merecem.

Plínio Marcos e os maloqueiros do samba


bienal Reportagem |

a arte prestes a

transbordar Sob o título A Iminência das Poéticas, a 30a Bienal de São Paulo começa no dia 7 de setembro

TEXTO malu rangel

Quem acompanha arte contemporânea deve ficar atento: está chegando o momento do principal evento do gênero no Brasil, a Bienal de Arte. Desde o seu início, em 1951, as edições contaram com a participação de 159 países, mais de 13 mil artistas, cerca de 60 mil obras e quase 7 milhões de visitantes. Com um histórico assim, a expectativa não poderia ser maior. E, desta vez, o título da 30a Bienal de São Paulo já atiça, por si só, a curiosidade: A Iminência das Poéticas. A partir dele, é possível pensar não apenas na proximidade e até na ameaça provocadas pela arte, como também investigar o plural, as variadas poéticas que trazem multiplicidade e possibilitam expressivos atos de caráter artístico. A mostra, que acontece de 7 de setembro a 9 de dezembro no Pavilhão Ciccillo Matarazzo, no Parque Ibirapuera, em São Paulo, sob curadoria do venezuelano Luis Pérez-Oramas, trata a iminência, conforme traduz o curador, como “o que está a ponto de acontecer, a palavra na ponta da língua, o silêncio imprevisto que antecede a decisão de falar ou não falar, a arte como estratégia discursiva e a poética em sua pluralidade e multiplicidade”. A urgência da arte, portanto, também traz a diversidade, que, em um mesmo evento, é capaz de produzir constelações de obras e de artistas que conversam entre si. “Constelação”, inclusive, é um termo importante no conceito desta bienal: muito mais do que uma exposição de artistas e obras singulares, pretende-se que tudo dentro dela converse e produza novos sentidos e significações. E, se as poéticas são capazes de se sobrepor, se desagregar e se assimilar, as obras de Nydia Negromonte, Bernard Frinze, Lucia Laguna e Eduardo Berliner também são capazes de se articular para compor o quadro geral da mostra. Esses artistas estão entre os 110 selecionados, presentes nas quatro

zonas curatoriais distintas desta bienal: Sobrevivências, Alterformas, Derivas, Vozes e, ainda, uma zona transversal, Reverso. Trabalhos como Hídrica: Episódios, de Nydia Negromonte, instalação criada a partir do sistema hidráulico do edifício da bienal; as criativas pinturas do francês Bernard Frinze − que, conforme o curador, “levantam a questão da autoria coletiva, na qual a imagem é sempre arqueológica”; e a instalação de Lucia Laguna – que reproduz o espaço de seu ateliê e expõe a pintura como um ato – falam, entre outros aspectos, sobre como as poéticas se espalham pelo cotidiano e condensam memória, descobertas e ressignificações de sentido. A 30a Bienal de São Paulo se apresenta como uma mostra nada dogmática, pois pretende incentivar diálogos e reflexões sobre a arte contemporânea em suas mais diversas manifestações. A criação de sua identidade visual é prova disso: a bienal será celebrada com 30 cartazes elaborados cada um por um autor, numa iniciativa inédita em um workshop aberto à participação do público. Luis Pérez-Oramas acredita “que um único conceito ter 30 versões diferentes é um princípio constitutivo da 30a Bienal, no qual se materializam as ideias de multiplicidade das poéticas, de alterformação, de sobrevivência e de deriva das formas”. Diversidade, diálogo, pluralidade de poéticas espalhadas pelo dia a dia: a 30a Bienal de São Paulo parece vir lembrar que, na iminência da arte, não há distinção entre o viver e o criar.

Saiba mais em <bienal.org.br>.

Persiana (2011), de Eduardo Berliner

Jasmin do Cabo (2010), de Nydia Negromonte

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Paisagem N. 51 (2011), de Lucia Laguna

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ferréz entrevista |

fechadO

para balanço Aos poucos, o escritor Ferréz se desvincula da função de agente social do bairro paulistano Capão Redondo e tenta aparecer mais calmo – mas não menos triste – em seu novo livro Deus Foi Almoçar


TEXTO juliana faddul

FOTOS alexia santi

“O que aconteceria se Deus fosse almoçar?” Foi esse pensamento que motivou Ferréz a escrever Deus Foi Almoçar (Editora Planeta, 2012), após ver uma batida de carro envolvendo uma criança e um cachorro em seu bairro, o Capão Redondo, na zona sul de São Paulo. Morador da periferia desde a infância, Reginaldo Ferreira da Silva, como consta em seus documentos, acabou se consagrando, aos 36 anos, um dos grandes nomes da literatura marginal da atualidade. Todavia, seu papel como agente social está com os dias contados. Mais calmo, mas não menos indignado, Ferréz tenta mostrar um lado mais literário numa obra que prioriza os conflitos internos aos externos e sociais. O personagem da trama é Calixto, um homem aparentemente comum e passivo, bem diferente dos heróis protagonistas de grandes romances. O intuito é mostrar a densidade psicológica do personagem e como a vida age por nós, sem ao menos percebermos.

Você passou oito anos escrevendo Deus Foi Almoçar. Como foi esse processo? FERRÉZ: Quando terminei o Manual [Prático do Ódio] (Editora Objetiva, 2003) me veio à cabeça o nome Deus Foi Almoçar. Eu queria escrever sobre um personagem apenas, diferentemente dos meus outros livros. Então veio o Calixto. Queria fazer uma história que não fosse construída, mas, sim, desconstruída. Todo mito é construído. A ideia era mudar isso. A forma de narrar de um jeito, de pôr um personagem falando de outro. Foi tudo pensado para resultar num livro diferente. Diferentemente dos seus outros livros, esse não se passa no Capão. É um lugar indeterminado. Por quê? FERRÉZ: Eu sofri muito por causa de alguns livros. Você acaba virando porta-voz de certa cultura, de certa literatura. Tinha época em que eu estava num aniversário e uma pessoa falava: “Eu tenho uma história para te contar. Morreram três caras na minha rua”. Eu não queria ser cronista do inferno a vida toda. Eu já moro no tema. Ter de remoer isso é doloroso. Não é que não vou mais abordar o assunto, mas nesse romance eu quis mostrar outro tipo de treta, o conflito interno. Eu tenho ONG na minha quebrada e vários projetos sociais. Tenho esse compromisso forte, mas também quero ser livre para poder exercer o meu lado criativo. Eu sou escritor, né? Esse livro é a sua libertação? Ou você acredita que ainda há muita coisa a ser debatida? FERRÉZ: Eu acho que é apenas uma das correntes, um pulso que já se soltou. O outro vai se soltar, talvez, no próximo livro. Na verdade, acho que mesmo no Ninguém É Inocente em São Paulo (Editora Objetiva, 2006) eu já estava trazendo uma mudança. Claro que o protesto e o tema social estão ali, mas também quero fazer o que minha cabeça pedir.

Essa responsabilidade lhe foi imposta, então? FERRÉZ: Sim. Veio com o pacote de entrevista no Jô Soares, na TV Cultura. Você não fala do tema? Ah, então vamos pôr o tema em ação. É como se fosse um castigo. É como se Zezé Di Camargo & Luciano tivessem de transar com todo mundo porque falam de amor. Rola uma cobrança. Tenho responsabilidade social, mas também preciso desenvolver a literatura. Você está mais calmo nesse livro. Você acha que o Capão melhorou? FERRÉZ: Acho, mas hoje eu vejo um monte de gente com carro gigantesco em torno de si e nada dentro. Incrível como o cara ocupou toda a carência dele com coisas que ele pode comprar, mas não trabalhou melhor a família. Eu queria colocar no livro um pouco desse conflito, que agora é interno. A gente, da periferia, também tem conflitos internos. Todas as classes passam por isso. Queria retratar esse cara, que não quer mudar, mas as coisas estão mudando em volta dele. É mais ou menos o que a vida faz com a gente, né? Você pode ter uma carreira e até achar que ela está definida, mas o sistema está mudando e articulando por você. Enquanto você não pensa, ele está agindo. Daqui a cinco anos você pensa: “Nossa, o que estou fazendo aqui?”. É meio o que o Calixto pensa. As coisas não têm mais sentido para ele.

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“Eu não queria ser cronista do inferno a vida toda. Eu já moro no tema. Ter de remoer isso é doloroso.”

Você acha que a cobrança das pessoas tem melhorado? FERRÉZ: Tem melhorado, mas porque eu também comecei a impor isso. Você representa o bairro também. Se fala alguma coisa, alguma besteira, é como se o bairro todo falasse isso. Tem um monte de gente aqui que quer ouvir o que você vai falar. Já tenho brigas demais, já colecionei muito inimigo. Chegou uma hora que ficou foda. Decidi que vou fazer meu trampo e prestar atenção na minha família e nos meus amigos. Eu só quero ser escritor. Só.


ferréz entrevista |

E você está lançando também O Pote Mágico (Editora Planeta, 2012)? FERRÉZ: Sim, é um livro infantil. Esse trata de uma temática muito forte da quebrada. É sobre dois meninos que dialogam para poder ver um pote que faz bolinhas de gude. Eu tenho o maior orgulho desse livro. Eu queria dar de presente para a quebrada, sabe? Nós vamos lançar na ONG Interferência e dar para as crianças. Não teria sentido fazer um livro e minha quebrada não poder comprar. Fala de uma infância que hoje não existe mais. De ser criado na rua, de pegar papelão para poder trocar por pão doce. Hoje os moleques são todos trancados em casa para ver televisão e jogar video game. É outro tipo de criação. Eu experimentava com o corpo, eu levava pedrada na rua. Fui muito feliz na minha infância, porque fui livre. Morava num lugar violento? Morava. Às vezes passava por um cadáver? Passava. Mas ao mesmo tempo corria no campinho, soltava pipa, jogava bola, brincava de bandido e polícia, pique-esconde. Tive uma infância muito solta, por mais que meu pai quisesse que eu estivesse às 19 horas em casa. Mas eu passava o dia na rua. Aprendi muito com os moleques. Brincava com pedaço de pedra, lata velha. A ideia era de que qualquer coisa poderia virar brinquedo na nossa mão. Agora tem de ter um puta brinquedo tecnológico. No meio do processo nasceu a sua primeira filha, a Dana. Ela vai brincar na rua? Ou você, como pai, vai mudar o discurso? FERRÉZ: Como pai, eu quero que a minha filha ande na rua. Ela corre na rua, brinca na praça. Os caras não levam na praça. Eu levo, deixo correr solta. Hoje é seu tempo de ficar na rua. Ela fica com a amiguinha dela. Ela volta e fala: “Pai, eu caí, machuquei o joelho. Da hora”. Claro que ela nunca vai ter a mesma infância que eu tive, solta de verdade. Hoje precisa de vigília, mas quero criá-la com liberdade. Não quero criar criança assistindo televisão 24 horas por dia. A meta não é essa. Ela pinta, desenha, toca teclado. A gente quer passar cultura para ela e quer que ela vá para a rua também. Crescer um pouco livre, sabe?

Você virou queridinho da crítica e um escritor cool para a classe média e alta. Como vê isso? FERRÉZ: Vamos falar a verdade: isso não é culpa minha. O cenário da geração anos 1990 estava chato, com aquele discursinho: “Somos autores contemporâneos. Não toco em tema social porque a minha literatura é livre”. Toda essa porcaria só afasta o leitor. Todo mundo sempre falou de literatura em outro nível. Eles [os escritores] nem falam olhando no olho. Estão numa torre de marfim. Eu sempre achei que a literatura é como um pão francês: “Me dá um livro de 10 centavos?”. Os caras tratam literatura como um vinho raro, fazem apenas cem exemplares. Num país onde a desinformação faz um monte de gente morrer, contrair doença, você vai negar a informação de um livro? Quando vou para a escola, os professores ficam doidos comigo. Quando termina a palestra, os alunos falam: “Pô, que livro era aquele que você falou naquela hora?”. Eu falo de literatura como um amigo explicando. Tento estimular o desejo de ler. Eu sempre tive vontade de prostituir a coisa. É barato, mano. Vai ali que tem livro que é 10 reais, tem a ver com você, você vai entender. Literatura é contestação. Quem tem voz não se abala. Essa é a fita. E a religião nessa história toda? FERRÉZ: Religião dentro da periferia é outra coisa. O Deus do gueto é outra fita. É diferente lá de fora, que você não tem a precisão de crer. Aqui é a religião que dá vida a ela. É Deus que vai mudar a vida dela. Aqui tem tanta gente que passa por dificuldades que, se não tiver

“Tratam literatura como um vinho raro. Num país onde a desinformação faz um monte de gente morrer, contrair doença, você vai negar a informação de um livro?”


Deus do lado, lascou. O livro questiona essa dependência também. O livro chama Deus Foi Almoçar por isso. Se estivesse fechado para almoço, como ia ficar? O Calixto é um cara jogado porque aconteceu uma pá de situação e ele não consegue reagir. Ele somos nós, que não somos o herói do livro. Se virmos um atropelamento, não vamos ajudar, vamos desviar. Religião é uma coisa complicada até na minha cabeça. Sou fã de vários apóstolos, bispos. Eles são brilhantes. Queria ter a capacidade que eles têm da oratória. Conseguir ganhar dinheiro só com a palavra é algo impressionante também. Manipular 1 milhão, 2 milhões. Por que cada templo religioso não tem uma central de estudos lá dentro? Nós mudaríamos o país. Eu acho que a igreja tinha de fazer o papel social dela também.

Você nunca foi sondado para entrar na política? FERRÉZ: Já, várias vezes. Ainda acontece de os caras me convidarem para ser deputado, vereador. Não sei, mas ser político é andar armado. Sou mais útil fazendo o que eu faço: cultura. Posso estar errado, mas queria viver de literatura e só. Sendo candidato a deputado aqui, o pessoal confunde. Durante a vida toda, os políticos ofereceram coisas às pessoas. Elas não querem que eu mude o bairro onde elas vivem. Vão querer que eu dê um botijão de gás, arrume o telhado. Esse imediatismo é foda. Como eu vou explicar que eu faço política pública? O que você se propõe a fazer tem de ser feito direito. Fazer com que as pessoas reflitam já é um grande passo. O que falta na literatura? FERRÉZ: Estou muito chateado com a cena da literatura atual. Você vê feira de literatura chamando só cantor. Nada contra, mas chamar Gabriel, o Pensador para feira literária é foda. Os caras pagam um puta cachê para ele, mas não pagam igual para escritores como Rubem Fonseca ou Zuenir Ventura. Uma vez, um cara da subprefeitura falou: “Os músicos nos dão público e vocês nos dão prestígio”. O cara que vai ver o show do Lobão vai ver o show do Lobão, não a palestra toda. Porra, então decida por um. O cartaz principal de uma feira literária é o músico, não o escritor. Literatura é para pensar, debater. Acho isso covarde. Nós nunca tivemos espaço e, agora que temos, as pessoas vêm tomar. Nós, que levamos a literatura no peito, passamos por entrevistas, tentamos cavar espaço, não recebemos nada. A televisão não deixa mostrar a capa do livro, não temos o apoio das rádios nem fazemos clipe. É muito frustrante. O escritor Ferréz posa no Capão Redondo (SP), bairro que influenciou boa parte de sua obra

Você está escrevendo outro livro? FERRÉZ: Estou escrevendo outro, mas ainda não posso revelar o título. Desde que terminei o Deus, estou trabalhando nele. Desta vez, é a história de uma menina. É um desafio, porque mulher tem uma cabeça muito louca [risos].

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Vai se passar na periferia? FERRÉZ: Não, acho que vai ser outra coisa. Sempre tive vontade de fazer um livro de terror. Até tem gente que fala: “Mas você sempre escreve livro de terror social” [risos]. Há muito tempo queria fazer algo de suspense, tipo Stephen King, Allan Poe. O livro está caminhando para isso. Será um mix de esoterismo com histórias bacanas. Pode ser que fique legal.


design weekend

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Reportagem |

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Depois das viradas cultural, gastronômica e esportiva, São Paulo recebe festival inspirado em design, moda, decoração, arquitetura e urbanismo

TEXTO fernanda de almeida

São Paulo está se tornando a cidade das viradas. Com uma vida cultural de dar inveja a qualquer cidade, a metrópole acaba de ganhar um evento inteiramente dedicado ao design. A primeira edição da Design Weekend, ou DW!, trata não só dessa arte visual, mas também de suas relações com a arquitetura, o urbanismo, a decoração, a inclusão social, os negócios e a tecnologia. O festival é composto de atividades independentes, que acontecem simultaneamente em toda a cidade, com programação tanto para profissionais da área quanto para leigos. Lauro Andrade, idealizador da DW!, conta que há anos planejava um evento desse porte em São Paulo. “Na última década participamos e organizamos mais de 40 feiras internacionais. Entre os muitos formatos que experimentamos, os que mais nos chamaram a atenção foram os festivais de cidade, com temas ligados à economia criativa, especialmente design, arquitetura e decoração”, diz. Segundo os organizadores, o maior desafio é fazer com que agentes diferentes e com agendas isoladas − como lojas, indústrias, museus, galerias, feiras de negócios, ONGs e órgãos públicos − consigam compartilhar uma visão integrada de ganho coletivo. Lauro explica que, “como até hoje poucos tiveram acesso a outros festivais urbanos de design, centralizamos os esforços na mobilização desses formadores de opinião”. O idealizador do evento conta ainda que “a proposta é fazer com que São Paulo se torne anualmente o

grande ponto de encontro do design da América Latina. Em dez anos, queremos ser um dos três maiores eventos de design do mundo”. Para Miriam Lerner, diretora do Museu da Casa Brasileira, um dos locais que recebem programação da DW!, São Paulo é bastante complexa e ainda carente de boas soluções no que se refere ao design urbano. No entanto, paradoxalmente, os designers brasileiros vêm apresentando uma produção intensa e diversificada. “Um evento como a DW! poderá promover a consciência sobre as possibilidades do design na solução dos problemas enfrentados pela cidade e nas questões de sustentabilidade, acessibilidade, inclusão e promoção de qualidade de vida”, acredita. Diferencial brasileiro

O Museu da Casa Brasileira foi escolhido como um dos pontos da DW! por ter se consolidado como um centro de referência nos debates das questões ligadas à arquitetura, ao design e correlatos, por meio da abordagem de sua agenda cultural. “O Prêmio Design Museu da Casa Brasileira, realizado pela instituição desde 1986, desfruta de grande prestígio no segmento, com uma história que reflete a trajetória da consolidação da identidade do design nacional”, comemora Miriam.

a região se prepara para apresentar novidades. Para Marcel Rivkind, presidente da Associação Alameda Gabriel, a DW! traz ao público a possibilidade de entender melhor o universo do design e, consequentemente, se interessar e participar mais. “A casa de cada um funciona como um espelho do morador, pois mostra seu gosto e sua qualidade de vida. Um evento como esse levará essa visão de uma forma mais abrangente para pessoas de todas as classes, profissões e gostos”, acredita. Um dos diferenciais do festival é a inclusão de comunidades da periferia, que mostrarão como os seus moradores melhoram o espaço onde vivem por meio da arte e da cultura. A iniciativa, porém, recebeu críticas da jornalista, pesquisadora e professora na área de história do design brasileiro Ethel Leon: “Já está na hora de parar de falar de habitação ‘normal’ e popular no Brasil, de soluções para o centro da cidade e para a periferia. A população precisa de habitação e isso significa mais do que uma casa. Significa acesso fácil a serviços públicos, áreas de lazer de qualidade, trabalho perto da moradia, boas escolas. Enquanto se mantiver essa divisão centro/periferia, creio que só reafirmaremos o design como atividade cosmética, sem importância no cotidiano das pessoas”. SERVIÇO

Outro endereço com atividades previstas é a Alameda Gabriel Monteiro da Silva, nos Jardins. Com mais de 70 lojas de design e arquitetura,

Design Weekend quinta 23 a domingo 26 de agosto Saiba mais em <designweekend.com.br>.


BAlAIO

Exposição fotos: divulgação

Eye Film Museum Se você está na Estação Central de Amsterdã, basta direcionar o olhar para além do Rio Ij para ver o mais novo museu da cidade, inteiramente dedicado à sétima arte. Moderno, reluzente em branco e debruçado sobre a água, o Eye Film Museum abriu as portas em abril de 2012 e já se tornou referência em imagem e som. Soma-se à fachada a ideia de ter um complexo cultural do outro lado do rio, para onde o acesso só é possível por balsa, e de onde a cidade é vista de outro ângulo. O museu tem salas de exibição e livraria e organiza pequenas mostras temáticas, além de realizar um trabalho de restauro de películas. A exposição vigente, que fica em cartaz até setembro, traz o melhor do norte-americano Stanley Kubrick. Em um andar inteiro abriga diferentes salas para a exibição dos filmes mais emblemáticos do diretor, além de figurinos, correspondências pessoais e curiosidades, entre as quais estão as máscaras de 2001 − uma Odisseia no Espaço, as mulheres de leite de Laranja Mecânica e as gêmeas aterrorizantes e todos os facões usados por Jack Nicholson em O Iluminado. Saiba mais em <eyefilm.nl>. (por thais caramico)

para ver, ouvir e clicar Seleção cultural do bimestre traz exposições, música e dicas de site – de playlists divertidas a poesia e arte contemporânea

Fotografia Luz, Cedro e Pedra – Esculturas de Aleijadinho fotografadas por Horacio Coppola, no Instituto Moreira Salles, até 11 de novembro O drama elegante e desesperado das esculturas de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, volta à cena na exposição de fotografias de Horacio Coppola. Luz, Cedro e Pedra reúne 81 imagens feitas pelo fotógrafo argentino em 1945, na cidade mineira de Congonhas, Sabará e Ouro Preto, com curadoria de Luciano Migliaccio, professor do Departamento de História da Arquitetura e Estética do Projeto da FAU/USP. Falecido aos 106 anos, em julho, Coppola foi figura central da fotografia latino-americana do século XX. Os registros que fez da obra de Aleijadinho foram publicados no livro Esculturas de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho (Ediciones de La Llanura, 1955). (por carlos costa)

Documental Imaginário: Fotografia Contemporânea Brasileira, no Oi Futuro Flamengo, até 16 de setembro Definido por alguns pesquisadores da área como uma nova vertente da fotografia contemporânea, o conceito de documental imaginário lança mão do documento real, e até mesmo jornalístico, mas com um toque subjetivo, para misturar tendências, ferramentas e formatos. Com curadoria do jornalista, crítico e fotógrafo Eder Chiodetto, a mostra Documental Imaginário exibe obras produzidas nos últimos três anos por oito artistas que tateiam terrenos mais simbólicos da fotografia documental: João Castilho, Breno Rotatori, Guy Veloso, Gustavo Pellizzon, Fábio Messias, Pedro David, Pedro Motta e Fernanda Rappa, além do coletivo Cia de Foto.

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Foto da série Essa Luz sobre o Jardim (2012), de Fabio Messias


BAlAIO

Incendeia, Ba-Boom (Independente, 2012) Dançante do começo ao fim, o primeiro disco da banda Ba-Boom traz mistura de música brasileira e africana, com elementos de jazz e hip-hop. O grupo do ABC paulista, que soma dez integrantes, reúne em sua formação teclado, guitarra, instrumentos de sopro, baixo, bateria, percussão e voz. A produção traz diversas participações especiais, entre elas a do cantor e compositor André Abujamra, na faixa “Mano, Sujou!”, e a do trompetista Felippe Pipeta − das bandas Sapo Banjo e Orquestra Brasileira de Música Jamaicana (OBMJ) −, que integraram o time dos metais. Saiba mais em <projetobaboom.com.br>.

Destaque

Uma Volta à Canção Hits pop, sintetizadores, loops e milhares de fãs gritando ao som de suas músicas. Essa é uma fórmula que já não funciona para o músico paulistano Adriano Cintra, ex-produtor da banda Cansei de Ser Sexy. Hoje, segundo ele, o sucesso comercial não é prioridade: “Estou preocupado com a realização artística”. Cintra acaba de iniciar um novo projeto musical, Madrid, feito em parceria com a vocalista Marina Vello, antiga front woman do Bonde do Rolê. O nome da empreitada é a junção harmônica do nome dos dois, assim como o som da dupla, que traz uma união redonda entre a voz de Marina e o piano e o saxofone de Cintra. Que público vocês esperam atingir com esse novo trabalho? Nesse projeto, quero focar nas pessoas que gostam de música. Não quero tocar para aqueles que saem na noite e acabam vendo uma banda por acaso. Quero fazer shows em teatros, piano bars, lugares onde a banda é a atração principal, não a balada. Tocar em um lugar onde as pessoas estão bêbadas me deixa muito frustrado. Não temos preocupações sonoras e estéticas à toa. Ao mesmo tempo, nosso show é lo-fi [técnica de gravação de baixa fidelidade, ou low fidelity]. O som do Madrid marca um retorno à canção. Ao vivo, temos acompanhamento do guitarrista Fil Lemos e do técnico de som e baterista Rodrigo Sanches. Por falar em preocupações estéticas, quais as influências do Madrid? Nossa influência vem, principalmente, do médico canadense T. G. Hamilton e das fotografias que ele tirou durante tentativas de se comunicar com espíritos. Depois dessa pesquisa, Marina e eu começamos a colecionar imagens

que encontramos na internet de pessoas realizando atividades paranormais. Usamos essa referência em vários pontos do trabalho. O diretor Dácio Pinheiro, por exemplo, utilizou esse nosso fascínio na hora de filmar o clipe de Sad Song, no Teatro Cleyde Yáconis e no Brechó Casa Juisi, em São Paulo. Até mesmo a capa do vinil traz referências das pesquisas sobre paranormalidade. O fotógrafo Miro criou as imagens e usou a pós-produção para dar a ilusão de que estamos levitando.

Onde serão os próximos shows? Já confirmamos nossa primeira turnê na Europa. Vamos para Londres, Berlim, Roma, Zurique e Paris em outubro. Esses shows não serão acompanhados de bateria e guitarra, uma aposta ainda mais rústica e intimista. Estou superanimado! (por duda porto de souza)


BAlAIO.com

cidadesparapessoas.com.br Inspirada no trabalho do urbanista dinamarquês Jan Gehl, a jornalista Natália Garcia criou o projeto Cidades para Pessoas. O objetivo é aprender com problemas urbanos de diferentes regiões do mundo para propor soluções que tornem os centros lugares melhores para viver. Nos primeiros sete meses de projeto, a idealizadora percorreu sete cidades europeias – Copenhague, Amsterdã, Londres, Paris, Lyon, Estrasburgo e Freiburg – em busca de ideias. E foi aí que entrou o trabalho de Jan Gehl; já que todas as cidades visitadas foram planejadas, tiveram consultoria do urbanista ou foram consideradas por ele um bom exemplo de planejamento. Viabilizado por financiamento coletivo, o projeto explorará ao todo 12 cidades, entre elas Acra, Rishikesh, Seul, Nova York, Portland e Cidade do México.

wearehighsociety.tumblr.com/archive O High Society é um tumblr criado para acompanhar seus ouvintes nas mais diversas situações cotidianas. Idealizado por Samia Alencar e Beatriz Vivanco, a página existe desde junho deste ano e reúne playlists inspiradas em casos do dia a dia ou em situações inusitadas. O primeiro post, por exemplo, se chama “Para Quando Você Está em Perigo” e traz dez faixas, como “Bang” (do Yeah Yeah Yeahs) e “Infinity Guitar” (da dupla Sleigh Bells). Num ritmo mais tranquilo, o post “Para Ouvir de Pijama no Feriadão” é uma seleção de músicas como “Lover” (de Devendra Banhart) e a abrasileirada “Tropicalia” (do Beck).

mallarmargens.com Uma multiesférica arena virtual. É assim que se define a Mallarmargens, revista de poesia e arte contemporânea no ar desde abril deste ano. A publicação on-line fundada por Mar Becker e Wesley Peres conta com mais de 80 colaboradores periódicos e faz atualizações diárias. O veículo pretende reunir o melhor da poesia contemporânea nacional e internacional e criar um ambiente de troca de influências e diálogo literário entre os autores. O nome da revista é inspirado no poeta francês Stéphane Marllamé, cujo trabalho im-

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pulsionou movimentos de vanguarda como a poesia visual.


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