Continuum 26 - No centro da cultura

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REVISTA

ITAÚ CULTURAL

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No centro da cultura Nesta edição, a Continuum visita a periferia.

Eduardo Marques, Gilberto Dimenstein, Jorge Broide, Raquel Rolnik e Rose Satiko apontam caminhos para o reforço da cidadania.

E mais: Na Fotorreportagem, a visão de passageiros de ônibus é turvada de interferências. Ficção inédita de Paulo Lins conta a história de um pecado. A cratera que virou moradia para o saci-pererê e outras 45 mil pessoas.

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Um conceito bem relativo Quando você pensa em periferia, logo a associa a um espaço pobre, cheio de problemas como a violência e a falta de serviços básicos. Pois bem, essa é apenas uma ideia que se pode ter sobre o assunto. Periferia é algo mais amplo. E pode remeter ao nosso próprio corpo, com o centro e suas extremidades, como faz pensar a Crônica que abre esta edição. Ao chamar para a discussão o tema Periferia e batizar este número com o título No centro da cultura, a Continuum quer provocar seu leitor a olhar as regiões que se situam nas bordas das grandes cidades de outra forma. Uma frase que resume o espírito da edição foi dada pelo jornalista Gilberto Dimenstein, na Entrevista (que ele compartilha com outros especialistas no tema): “Um jovem alienado de classe média alta é periférico”. Definitivamente, periferia é um conceito bem relativo. Centro e fronteira se misturam o tempo todo, da mesma forma que convivem vários Brasis num só país. Mas é certo que um elemento faz com que as distâncias diminuam. É ele a cultura. Por meio dela, movimentos surgidos em bairros de baixa renda vêm reforçando a cidadania e o poder mobilizador dessas populações, como conta a reportagem que começa na página 14. É com arte que se começa a eliminar estigmas. A música, por exemplo, consegue estabelecer um elo entre as periferias. Mas novamente cabe derrubar a ideia pronta. Engana-se quem pensa que nessas comunidades só se ouvem e tocam funk ou hip-hop, revela a reportagem que encerra a edição. Seguindo o exemplo dos movimentos da periferia, a revista também oferece arte aos leitores, na Ficção inédita do escritor Paulo Lins, autor de Cidade de Deus, e na Fotorreportagem, que mostra a visão turvada que se tem de dentro dos ônibus de uma metrópole.

Ilustração: Azeite de Leos

Em tempo: é com alegria que contamos que a Continuum recebeu o Prêmio ABCA 2009, da Associação Brasileira dos Críticos de Arte, na categoria Difusão das Artes Visuais na Mídia.

Continuum Itaú Cultural Projeto gráfico Jader Rosa Design gráfico Laura Daviña Edição Marco Aurélio Fiochi, Mariana Lacerda Redação André Seiti, Thiago Rosenberg Produção editorial Caio Camargo Revisão Polyana Lima Colaboraram nesta edição Arthur Rampazzo Roessle, Augusto Paim, Azeite de Leos, Cassimano, Cia de Foto, Clayton Cassiano, Eduardo Lyra, Gabriel Bitar, Karina Buhr, Lourenço do Carmo, Lourival Cuquinha, Marcel Nanni Fracassi, Mariana Leme, Mariana Sgarioni, Micheliny Verunschk, Patrícia Cornils, Patrícia Stavis, Paulo Lins, Pedro Henrique França, Raquel Krügel, Ratão Diniz, Renata Ursaia, Rafael Tonon, Roberta Guedes, Rodrigo Silveira, Ronaldo Bressane, Tatiana Diniz, Wilson Inacio Agradecimentos Neomisia Silvestre e Fernando Alves (Instituto Pombas Urbanas), Rogério Schlegel (Centro de Estudos da Metrópole)

capa foto: Ratão Diniz

ISSN 1981-8084 Matrícula 55.082 (dezembro de 2007) Tiragem 10 mil – distribuição gratuita. Sugestões e críticas devem ser encaminhadas ao Núcleo de Comunicação e Relacionamento continuum@itaucultural.org.br. Jornalista responsável Ana de Fátima Oliveira de Sousa MTb 13.554 Esta publicação segue as normas do Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa, assinado em 1990, em vigor desde janeiro de 2009. Participe com suas ideias

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Fotorreportagem 20. Tempos parados Jornadas cotidianas: imagens captam as impressões – e expressões – de quem utiliza diariamente os transportes públicos.

Reportagem 8. Espelho, espelho meu O surgimento das periferias revela, numa perspectiva histórica, a lógica de exclusão do mercado imobiliário. 14. Povo lindo, povo inteligente Literatura, música, cinema... Veja por que a cultura é uma forte aliada na superação de problemas de populações de baixa renda. 36. Melô da diversidade Comunidades do Brasil inteiro encontram um elo na música. Mas se engana quem pensa que na periferia só se ouvem funk e rap.

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40. O bairro que nasceu de um cometa Conheça a cratera que, a 50 quilômetros do centro da capital paulista, se tornou a casa de mais de 45 mil pessoas. Entre elas, o saci-pererê. 46. Onde menos vira mais Da necessidade surge a sustentabilidade. As práticas cotidianas nas periferias e nas comunidades com menor poder aquisitivo podem inspirar soluções ecologicamente viáveis. 50. Atos de uma vida em construção Uma noite de sábado na Cidade Tiradentes, São Paulo. Saiba como se divertem os moradores de um dos maiores complexos habitacionais da América Latina.


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Entrevista

Ficção

28. Espaços em transformação Eduardo Marques, Gilberto Dimenstein, Jorge Broide, Raquel Rolnik e Rose Satiko apresentam suas visões sobre a importância da mobilização periférica.

58. O pecado mortal de Maria Em texto inédito do escritor Paulo Lins, a via sacra de uma mulher, transformada em santa pela opinião pública.

Crônica 6. O centro do mundo é aonde vão os seus pés. O resto é periférico A periferia como a delimitação imaginária do corpo. O corpo como o centro de tudo. O sertão como o centro do corpo.

Balaio 54. O periférico está no centro As dicas de livros, filmes, site e música da Continuum.

Espaço do Leitor 64. Convocação Saiba como ser um repórter da revista e fique por dentro do tema da próxima edição. Você pode ainda mandar cartas ou e-mails com sugestões, críticas e, é claro, elogios. 65. Área Livre Confira, em trabalhos artísticos, a visão dos leitores da Continuum sobre a periferia. Deadline 56. O McFavela da diretoria Um McLanche Infeliz para viagem: a lanchonete de periferia que irritou a famosa rede internacional de sanduíches.

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crônica

O centro do mundo é aonde vão os seus pés. O resto é periférico A periferia é a linha imaginária que delimita os corpos. Por Micheliny Verunschk | Ilustração Gabriel Bitar O corpo é o que está no centro de tudo. O centro é o ponto de convergência. É para onde se voltam os olhares, as atenções, os interesses e os corpos. O corpo é o centro do mundo. O corpo é o que está dentro do oco do oco do mundo. O centro do mundo é onde estão plantados os seus pés. A periferia é para onde as folhas apontam. O centro do mundo é o sertão. A periferia é o que está por fora. A maior invenção do século XVI foi o Brasil. E foi no Brasil que se inventou o sertão. Que se batizou, se nomeou o sertão. O Sertão, este vocábulo obscuro, não cabe nos dicionários porque como dizem escritores, cientistas, e, é claro, o burburinho das praças, o sertão é tudo. Tudo ou nada. Deserto. Desertão. De sertão. Sertão. Diz-se que o sertão é seco, tradicional, que o sertão está dentro, que o sertão está fora do centro. O Brasil inventou o sertão que queria, mas o sertão há muito se sabia e já estava aí quando nem a história existia. Assim, é lugar de fábula, de alegoria, é o lugar do olhar que descobre no fundo da caverna a luz que cria a sombra e o dia. E foram os gregos sertanejos que criaram a filosofia. O sertão tem a música dos chocalhos plangentes e parabólicas que se sustentam na taipa mais antiga. No sertão, deus e o diabo rodopiam. Sendo assim, como pode ser periferia algo que está no peito, coração bombeando seu sangue para as artérias, no Brasil, na Rússia, na África, na Inglaterra?! E não, não me venha com backlands e hinterlands, vaqueiro de iPod, selvagem da motocicleta!

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O negócio é sertão mesmo, com todas as letras e sotaques, babel indiscreta. Para além do Alentejo, o sertão é jangada jogada num mar de pedras. E não se engane não, profeta, ele não vira mar, ele vira mundo, mundo em espera. Pois o sertão procura, encontra, doma e inaugura. Está em todos os lugares e, assim, se transfigura.

Um corpo é a periferia de outro corpo. O centro de tudo é o desejo. O desejo é o ponto de convergência. É para onde se voltam os olhares, as atenções, os interesses e os corpos. O desejo é o centro do mundo. O desejo é o que está dentro do oco do oco do corpo do mundo.

Do sertão nascem todos. Do sertão saem todos, parto, ato, migração primordial. E é este o fato: do sertão nascem todos: as rodovias, o sistema venoso, as cidadezinhas de grandes olhos e pequenas janelas, também as metrópoles, os seus membros, os prédios, os dedos de ruas, vielas, favelas.

Sertão, substantivo masculino. Região afastada dos núcleos urbanos, do litoral e das terras de plantio. Interior. O sertão é o que está por dentro, as vísceras e o desejo. O centro de tudo é o desejo.

E hoje no século pós-tudo o sertão é que é a grande invenção. É o ponto equidistante entre o que se fala e o que se desconhece. É o ponto equidistante entre o espelho e o que não se reconhece.

O sertão é o ponto de convergência. É para onde se voltam os olhares, as atenções, os interesses e os corpos. O sertão é o centro do mundo. O sertão é o que está dentro do oco do oco do corpo do mundo. O sertão é tudo.

O sertão, esse corpo multiforme, é o ponto equidistante entre o que é dito e o que passa despercebido. Talvez por isso a melhor imagem seja a da ponte. Porque o sertão é o caminho do meio entre o meio e o homem.

A periferia é o centro do que ela mesma inventa. Micheliny Verunschk é autora de Geografia Íntima do Deserto (Landy, 2003).

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reportagem

Espelho, espelho meu Nossas metrópoles refletem a sociedade que construímos. Por Mariana Lacerda | Ilustração Rodrigo Silveira Periferia é o nome que, no Brasil, foi dado aos lugares menos privilegiados para morar. Longe dos espaços mais bem providos de infraestrutura, os bairros periféricos de nossas grandes cidades se formaram em várzeas, nas áreas de mangue, nos descampados, sobre beira de rios, no acostamento de estradas deste mundo, que antes era de meu Deus mas agora pertence à maioria da população brasileira que não pode pagar pelo preço das moradias existentes nas áreas centrais – e, portanto, mais bem equipadas. Essa é uma história que tem a ver com a dinâmica da produção capitalista. Em torno de casas e edifícios, em nossa cidade todos os dias acontece uma luta silenciosa. E a explicação é bem simples. De um lado estamos nós, que vemos na cidade, em suas ruas, nos seus parques as condições que consideramos boas para viver. Queremos moradia, oportunidade de trabalho, escola para os nossos filhos, acesso às unidades de saúde, diversão. Queremos estar perto de tudo isso. E no outro extremo existe o mercado imobiliário, para quem a cidade não passa de uma mercadoria que só não é outra qualquer porque é valiosíssima – claro, é o lugar que oferece melhores condições de vida e oportunidades para a maioria das pessoas, sendo legítimo, portanto, sua escolha de lá viver. É aí que se inicia o nó: “A luta que se trava na cidade pela apropriação da renda imobiliária é a própria expressão da luta de classes em torno do espaço construído”, diz a urbanista Ermínia Maricato, em seu livro Habitação e Cidade (Atual, 1997).


Saneamento e segregação No Brasil, essa é uma história bastante antiga. Ela está nos livros de urbanismo que tentam explicar as tramas políticas e sociais que constituem uma cidade, mas também está nas apostilas didáticas que tínhamos quando éramos pequenos. Antes, quando ainda existia escravidão no Brasil, os espaços eram compartilhados por todos. Os escravos viviam na casa dos seus senhores. Eram as mães de leite negras que alimentavam os meninos brancos. Serviam também de elevadores, ventiladores; e faziam o transporte de água, de compras e de pessoas, a limpeza da casa e o saneamento, além da comida. Com a abolição da escravidão e a instauração do regime republicano, “era preciso apagar os resquícios escravistas do passado recente”, explica Ermínia, também professora da Universidade de São Paulo e a responsável por formular a proposta de criação do Ministério das Cidades. As reformas urbanas, segundo ela, estavam incluídas entre as medidas destinadas a simbolizar o momento da então história brasileira, para assim fazer chegar os recursos externos para a economia do café. O problema é que nessas reformas não existiam planos para a massa pobre trabalhadora, a maioria formada por ex-escravos que do dia para a noite passaram a não mais caber no centro da cidade, o coração que batia e ditava as leis sociais e políticas e, com isso, dividia o espaço conforme as relações de poder.

A reforma urbana do Rio de Janeiro, chamada Regeneração, foi a mais importante, uma vez que a então capital estabelecia as condutas da República. São Paulo, Santos, Recife, Manaus, portanto, seguiram caminhos bem semelhantes. A inspiração principal vinha da reforma urbana de Paris, executada entre os anos de 1850 e 1879 pelo Barão de Haussmann, que entendeu o verbo sanear como embelezamento e segregação social. “O saneamento tinha como objetivo, além das medidas propriamente higienistas, afastar das áreas centrais os pobres, mendigos e negros, juntamente com os seus estilos de vida”, escreveu Ermínia. A comunidade de Cabeça de Porco, um dos primeiros cortiços surgidos no centro do Rio e onde viviam cerca de 4 mil pessoas, foi literalmente varrida daquele pedaço de mapa. Sua alma, contudo, permanece bem viva, disfarçada sob o nome Cabeça de Gato no clássico romance de Aluísio Azevedo O Cortiço (Ática, 2009). Consolidou-se assim o urbanismo que ditou a construção e a expansão das metrópoles brasileiras: a modernização das áreas centrais – marcos de sua face institucionalizada ou oficial –, com a consequente segregação espacial e social (e vice-versa). Na raiz dessa transformação social estava o contínuo processo que fez – e continua fazendo – de casas e edifícios uma mercadoria. Ser proprietário de um pedaço de terra era a condição primeira para que se pudesse ter acesso a essa tal mercadoria traduzida em um teto para viver, uma morada segura para dormir, sonhar, acordar, trabalhar – em paz. Pois, como escreveu o filósofo francês Gaston Bachelard no ensaio A Poética do Espaço (Martins Fontes, 2008): “A casa, na vida do homem, afasta contingências, multiplica seus conselhos de continuidade. Sem ela, o homem seria um ser disperso. Ela é o corpo e alma”. Talvez por isso mesmo, já na segunda metade do século XIX, o abolicionista André Rebouças tenha anotado em seus diários: “Quem possui a terra possui o homem”. Já nessa época surgia uma legislação complicada que estabelecia critérios para a construção de casas e edifícios. Posse legal da terra, plantas arquitetônicas, eram fornecidos os ingredientes para a consolidação, nos primeiros anos da República, do tão conhecido mercado imobiliário.

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Vem daí também o surgimento das favelas, que passarão a marcar definitivamente a paisagem do Rio de Janeiro. Lá, assim como em São Paulo, a extensão do transporte ferroviário terminou por viabilizar o assentamento da massa trabalhadora pobre nos seus subúrbios. A construção em áreas de encostas, de várzeas ou mangues em regiões longínquas feita pelas próprias famílias, aliada à extensão de linhas de transporte, foi a responsável pela formação de vastas periferias nas metrópoles brasileiras. Muitos historiadores e urbanistas consideram o ano de 1930 o início da urbanização e da consolidação das periferias brasileiras de fato. No campo, a agricultura trocava mão de obra por máquinas, enquanto as cidades assistiam de perto ao governo de Getúlio Vargas (presidente entre 1930 e 1945 e tido como o “Pai dos pobres”), que instituiu a Consolidação das Leis Trabalhistas (CLT) – e com ela fixou um salário mínimo para o trabalhador. Resultado: a troca da vida no campo pela vida na cidade levou ao êxodo rural e, com ele, o inchaço das cidades.

Queremos moradia, oportunidade de trabalho, escola para os nossos filhos, acesso às unidades de saúde, diversão. Mas existe o mercado imobiliário, para quem a cidade não passa de uma mercadoria que só não é outra qualquer porque é valiosíssima. Aos poucos, o Estado passou a reconhecer que o mercado privado não tinha condições de resolver o problema da habitação popular. Era sua a responsabilidade de fazê-lo (moradia digna foi reconhecida em 1948 como direito de todos, com a Declaração Universal dos Direitos do Homem). Com o regime militar, veio a criação do Sistema Financeiro da Habitação – e do seu agente, o Banco Nacional da Habitação, o BNH, extinto em 1986. Desde então, a política habitacional brasileira tem sido objeto de governos, sejam estaduais, sejam federais.

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Em comum, são políticas que resultam em decisões arbitrárias: a construção de casinhas ou prédios, que constituem extensos conjuntos habitacionais em algum lugar bem longe do centro da cidade. Projetos que terminam, sim, por levar a infraestrutura de serviços públicos, “embora ela sempre seja deficitária”, diz o sociólogo Tiarajú D´Andrea, pesquisador em sociologia urbana da Universidade de São Paulo. Moradas em lugares-dormitórios que surgem do nada, mas que, dia após dia, a cada nascimento de filho, aniversário, bebedeira ou reza santa, mar de histórias e de sonhos, ganham passado. Pois “é graças à casa que um grande número de nossas memórias está guardado”, anotou Bachelard. Com a construção da memória nasce a identidade e, nela, o afeto pelo canto, pelo bairro, pelo lugar – apesar de sua conquista ser não raro por vias tortas.

Para o urbanista italiano Bernardo Secchi, governantes, arquitetos e urbanistas devem agora observar com atenção como periferias e favelas reinventam modos de viver, e oferecer melhorias ao que já está consolidado e dando certo. Déficit questionável Como produto resultante de relações sociais, as cidades não poderiam deixar de expressar a realidade social e econômica em que vivemos. Segundo dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), os cerca de 18 milhões de brasileiros ricos (10% da população nacional) detêm 18 vezes a renda dos 70 milhões mais pobres (40% da população). A história de cada metrópole do mundo é diferente, claro, mas todas elas têm uma semelhança: a de cobrar caro pela moradia provida de boa infraestrutura, boas escolas, vizinhança, serviços públicos – não podemos nos esquecer de que o mundo quebrou no final de 2008 exatamente por causa da questão da moradia. A crise econômica mundial iniciada nos Estados Unidos se deu porque proprietários já não conseguiam pagar as hipotecas e as prestações de seus imóveis. Por isso, bancos deixaram de receber dinheiro e decretaram falência; e o resto da história permeou jornais e revistas durante todo o ano de 2009.

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A solução para nossas periferias e favelas é tema de debate entre os urbanistas, a exemplo do italiano Bernardo Secchi, que, em sua visita ao Brasil, em abril deste ano, se sensibilizou ao visitar Paraisópolis, bairro da periferia de São Paulo. Em sua opinião, governantes, arquitetos e urbanistas devem agora observar com atenção como periferias e favelas reinventam modos de viver, e oferecer melhorias ao que já está consolidado e dando certo. Como exemplo, um estudo feito pela Universidade Federal de Pernambuco em áreas periféricas do Recife, cujo resultado mostrou que, nessas regiões, o valor do aluguel é negociado (não raro verbalmente entre proprietário e morador) de acordo com o perfil socioeconômico da demanda. Desatar o nó para resolver a questão da boa moradia parece complicado, mas nem tanto. Na opinião de D´Andrea, uma solução simples e viável seria o poder público estabelecer teto máximo para o preço dos aluguéis, além de cobrar impostos caros de proprietários de terras caras. “Assim, ela se tornaria barata”. Outra solução, tão viável quanto lógica, desta vez para resolver o problema de quem simplesmente não tem onde morar: a legalização da ocupação dos prédios abandonados. Em São Paulo, por exemplo, o “déficit habitacional”, explica D’Andrea, é de 250 mil famílias. E existem na capital paulista cerca de 400 mil imóveis vazios, muitos deles na região central. “Ou seja, em tese, não existe déficit habitacional.” Ideias simples que talvez possam minimizar os problemas de metrópoles cujas tramas constituem pergaminhos em que diversas gerações, desde o início da história, têm deixado suas marcas, escrito seus caminhos, estratificando-os. Como escreveu Secchi em um de seus mais importantes livros sobre a construção de cidades, Primeira Lição de Urbanismo (Perspectiva, 2006), “Muitas vezes contradizendo-se [...] e levando a resultados surpreendentes e de difícil interpretação”.

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reportagem

Povo lindo, povo inteligente Movimentos surgidos nas periferias reforçam o papel da cultura no protagonismo desses espaços. Por Patrícia Cornils Em 1916, Donga vestiu seu terno, foi à Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, e registrou a autoria da música “Pelo Telefone”, em parceria com Mauro de Almeida, como um “samba carnavalesco”. Ao assumir o papel de autor e, assim, se colocar na posição de receber pelo seu trabalho, ele queria que sua produção cultural fosse reconhecida profissionalmente. Entre os muitos sambistas da época, que eram pobres e vendiam suas músicas ou a autoria delas a quem tivesse dinheiro para comprar – e que depois recebiam os louros e mais dinheiro se a música virasse um sucesso –, ele foi pioneiro.

O rapper Rappin’ Hood: “Se você pensar na cidade de São Paulo, a periferia é o próprio espaço urbano” | foto: Cia de Foto

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Donga, ou Ernesto dos Santos, era negro, filho de Tia Amélia, festeira baiana da Cidade Nova, e frequentava as festas da casa de Tia Ciata, onde os estribilhos que viriam a fazer parte de “Pelo Telefone” eram entoados. A Cidade Nova, também chamada de Pequena África, era a região do Rio de Janeiro onde viviam descendentes dos baianos da Guerra de Canudos e a população pobre – e negra – da cidade, deslocada pelas reformas urbanas do prefeito Pereira Passos, que a expulsara da Zona Portuária. Donga morou no Centro do Rio, na Rua Riachuelo, com Pixinguinha e Heitor dos Prazeres. Descendente de escravos, vinha da periferia do Brasil. Nessa periferia, em que balançava com lundus, modinhas e choros, foi inventado o samba, que hoje faz parte da identidade nacional.

Periferia é periferia em qualquer lugar, constatam os Racionais MCs, e uma das maneiras de definir esse lugar é a exclusão econômica e social. “Dos jovens de periferia sem antecedentes criminais, 60% já sofreram violência policial. A cada quatro pessoas mortas pela polícia, três são negras. Nas universidades brasileiras, apenas 2% dos alunos são negros. A cada quatro horas um jovem negro morre violentamente em São Paulo”, diz a música “Capítulo 4, Versículo 3”, um “manifesto da condição periférica”, de acordo com Leite. A exclusão cultural também existe. Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pesquisados a pedido do Ministério das Comunicações, mostram que somente 13% dos brasileiros vão ao cinema pelo menos uma vez por ano. A museus 92% nunca foram, assim como 93,4% nunca estiveram em uma exposição de arte e 78% jamais assistiram a um espetáculo de dança. Mais de 90% dos municípios do país não têm sala de cinema, teatro, museu ou outros espaços culturais.

Dados mostram que somente 13% dos brasileiros vão ao cinema pelo menos uma vez por ano. A museus 92% nunca foram, assim como 93,4% nunca estiveram em uma exposição de arte e 78% jamais assistiram a um espetáculo de dança. Mais de 90% dos municípios do país não têm sala de cinema, teatro, museu ou outros espaços culturais. Se a cultura que nasce na periferia determina a identidade do Brasil, por que ainda é vista como “de periferia”? Talvez porque “a mídia e a informação são centralizadas nas mãos de alguns, e o povo não se vê representado pelas redes de comunicação”, constata o rapper Rappin’ Hood. A realidade de que há, nesses lugares, “um mundo de coisas, bandas bombando, escritores bombando, assuntos bombando”, diz Hood, também aparece pouco. E esses lugares são um mundo. “Se você pensar na cidade de São Paulo, a periferia é o próprio espaço urbano”, observa Eleilson Leite, coordenador de Cultura da ONG Ação Educativa e editor da Agenda Cultural da Periferia, guia de cultura publicado mensalmente na capital paulista. “Mais de 60% da população de São Paulo vive na periferia. É um universo com características próprias e é natural que também surja daí uma estética própria.”

Contrariando estatísticas Esse povo, no entanto, adora contrariar as estatísticas. No caso da cultura, a periferia faz isso saindo da negação (aqui não tem nada) e, apesar da dificuldade de acesso a cinemas, teatros, shows, realiza uma produção cultural vigorosa. Os próprios Racionais mostram isso. Em 1997, lançaram Sobrevivendo no Inferno, disco onde está “Capítulo 4, Versículo 3”. Venderam mais de 1 milhão de cópias à margem das gravadoras oficiais. Na periferia. Também em 1997, a Companhia das Letras publicou Cidade de Deus, de Paulo Lins [leia a Ficção assinada pelo autor, na pág. 58], um escritor de periferia que fala sobre a ação do tráfico nesse bairro da zona oeste carioca. Bombou. “O romance de estreia de Paulo Lins [...] merece ser saudado como um acontecimento. O

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interesse explosivo do assunto, o tamanho da empresa, a sua dificuldade, o ponto de vista interno e diferente, tudo contribui para a aventura artística fora do comum”, apresenta o crítico literário Roberto Schwarz em seu livro de ensaios Sequências Brasileiras (Cia. das Letras, 1999). A produção cultural da periferia não parou depois da década de 1990. Em Belém, toda semana, milhares de pessoas participam das festas de aparelhagem. Em 2006, uma pesquisa da Fundação Getulio Vargas e da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) constatou que as aparelhagens e as bandas de música brega realizavam 3.164 festas e 849 shows por mês na região metropolitana da capital paraense. Criaram um enorme mercado de venda de CDs e DVDs em camelôs e são estudadas até hoje como um novo modelo de produção e venda de música popular.

[A cultura da periferia] fala de exclusão, mas não trata somente da negação da realidade, porém da necessidade de transformá-la. A saída não é sair da periferia, e sim mudar sua situação. Para dar um exemplo dessa movimentação cultural, na Agenda Cultural da Periferia de São Paulo, em março, havia 14 saraus e rodas de diálogo sobre literatura, 16 rodas de samba, eventos de hip-hop, seis espetáculos de teatro, saraus sertanejos, festas de celebração da cultura negra, como o Panelafro e o Jambaque, e encontros de DJs da Liga do Vinil e do projeto Vitrola’s, que ressaltam a importância do vinil. No Rio de Janeiro, o Grupo Cultural AfroReggae, criado em 1993, tem núcleos de cultura na favela de Vigário Geral, do Cantagalo, de Parada de Lucas, do Complexo de Favelas do Alemão e de Nova Era. Produz um programa de TV para o canal fechado Multishow, cinco programas de rádio e uma revista de cultura e mantém dez bandas (de rock, reggae, samba), uma orquestra de violinos e grupos de teatro e de circo. “A cultura de periferia, hoje, é muito ampla”, diz Anderson Sá, vocalista do grupo. “Cada estado tem sua realidade, cada comunidade tem sua cultura”, opina.

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Show do AfroReggae: núcleos de cultura em diversas favelas cariocas | foto: Cia de Foto

Projeto coletivo O AfroReggae foi criado para transformar a realidade de jovens moradores de favelas utilizando a educação, a arte e a cultura como instrumentos de inserção social. Essa relação entre a produção cultural e a vontade de mudar seu lugar é uma marca da cultura de periferia dos últimos 20 anos, afirma o professor de estudos comparativos transatlânticos da Universidade de Manchester, João Cezar de Castro Rocha. “O que tem mudado de maneira notável na produção cultural dos últimos 15 anos é que não se trata unicamente de uma solução individual. É um projeto coletivo”, afirmou ele em uma entrevista para a revista Época, em 2007. “Não se trata mais da expressão de uma individualidade privilegiada. Quando você vê a produção do Ferréz, do Paulo Lins, dos Racionais MCs, da Cooperifa e de trabalhos semelhantes em todo o Brasil, percebe que é um projeto coletivo.” Além disso, continua ele, essa periferia está, pela primeira vez na história do Brasil, falando com voz própria, interpretando e imprimindo seus pon-

tos de vista sobre a realidade sem intermediários, e “propondo uma interpretação radical da desigualdade no país”. É quase como se todos os músicos da casa de Tia Ciata tivessem decidido registrar suas obras. Donga teria muita companhia, em seu caminho para a Biblioteca Nacional. Essa voz está reconfigurando o conceito de periferia, explica Helena Abramo, socióloga e pesquisadora de temas relativos à juventude. Além de valorizar sua própria história, afirmar sua identidade, a periferia “criou um conceito que é mais que territorial, que expressa uma noção de classe, de lugar na estrutura social”. Quando se expressa, hoje, não está dizendo somente que o morro não tem vez. Fala de exclusão, mas não trata somente da negação da realidade, porém da necessidade de transformá-la. A saída não é sair da periferia, e sim mudar sua situação. “É uma ação política

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que parte do princípio de que se você não mudar a sua vizinhança você não muda o bairro, o município, o Brasil”, afirma Castro Rocha. Isso acontece, entre outras coisas, porque uma das características da produção cultural da periferia é não separar o cotidiano, o dia a dia, da produção artística.

não tem coitadinho, temos dignidade. A poesia é uma ferramenta importante para a cidadania”, diz Sérgio Vaz, poeta e organizador da Cooperifa, em uma entrevista ao Correio Popular, de Campinas.

“Além da literatura, há uma produção crescente na área de audiovisual, em que ocorre uma enorme apropriação das tecnologias pelos jovens.” (Eleilson Leite) No Sarau da Cooperifa, que acontece desde 2001 todas as quartas-feiras no Bar Zé Batidão, no Capão Redondo, zona sul de São Paulo, um poeta motoboy recita, cruzando o chão do bar de capacete, versos de O Navio Negreiro, de Castro Alves. O que a Cooperifa mudou em seu lugar? “Através da oralidade, muita gente chegou aos livros. Muitos voltaram ou começaram a estudar. Ninguém mais abaixa a cabeça, ali

Na literatura, com exemplos como Paulo Lins, Ferréz, Sérgio Vaz, criou-se uma linguagem, com denominação de origem. E, nas outras expressões, há algo tão novo como era, em 1916, o samba? “Ainda não se sabe se toda essa produção configura um movimento estético”, constata Eleilson Leite. “Mas sabemos

Sarau da Cooperifa, no Bar Zé Batidão, zona sul de São Paulo | foto: Cia de Foto

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A arte do futebol nasce nas peladas em campinhos de periferia, como mostra Várzea, a Bola Rolada na Beira do Coração | foto: Cassimano

que, além da literatura, há uma produção crescente na área de audiovisual, em que ocorre uma enorme apropriação das tecnologias pelos jovens.” Ele cita, como exemplo, o filme Várzea, a Bola Rolada na Beira do Coração, do poeta e arte-educador Akins Kinte. Lançado em fevereiro deste ano, mostra os campões de barro onde rolam os verdadeiros campeonatos do futebol brasileiro. Onde os peladeiros arrancam, dão caneta, lençol, pedalam, fazem gol de letra... Como diz o jornalista Xico Sá, é onde se escreve a poesia do futebol, onde os grandes não têm vez e de onde saem os craques brasileiros, rumo ao centro do mundo do futebol. “A tecnologia e a internet estão a favor de diversos segmentos da sociedade, e isso colabora para que o esquecido e o invisível apareçam”, diz João Carlos Teixeira

Chaves, o Negro JC. Um dos criadores do Coletivo Imagens Periféricas, formado na Cidade Tiradentes, periferia de São Paulo, em 2002, ele está desenvolvendo, com a produtora de vídeo Correria Filmes, o Canal Periférico, um website para exibição de peças audiovisuais cujo objetivo é ampliar o espaço de difusão das manifestações culturais na periferia e também sua relevância nesses espaços. “A cultura pode superar diversas coisas, como melhorar as condições de vida das pessoas e estabelecer um diálogo positivo entre a periferia e o centro”, diz. Se o verso “Quando derem vez ao morro/Toda a cidade vai cantar”, do samba “O Morro Não Tem Vez,” de Tom Jobim e Vinicius de Morais, ainda soa como realidade a todos, a periferia brasileira da atualidade mostra que o morro criou, sim, sua própria voz. E ela é ouvida em todo o país, que canta, escreve, filma, joga futebol, com milhões de instrumentos, harmonias, rimas, percussões, imagens, passes e melodias.

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fotorreportagem

Tempos parados Fotos Renata Ursaia Horas passadas no trânsito, todos os dias. Objetivo: locomover-se entre a periferia, local do acolhimento, e as regiões centrais onde se ganha a vida, na quarta maior metrópole do mundo, São Paulo. Segundos, minutos, horas dos quais o que resta é tecer o tempo, apreendido neste ensaio fotográfico.

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Quodi sundusSit, volorrum sit quas, 2010 | foto: Henrique Manreza

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Quodi sundusSit, volorrum sit quas, 2010 | foto: Henrique Manreza

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entrevista

Espaços em transformação Por Mariana Sgarioni e Rafael Tonon | Ilustração Mariana Leme Geralmente, a periferia é vista pelas pessoas como um bloco único, um problema único ou uma condição única de existência. Mas a aproximação ao tema faz ver que, apesar de traços comuns, cada periferia tem sua especificidade e, dependendo do enfoque, ela pode ser um conceito relativo. Para Gilberto Dimenstein, por exemplo, um jovem de classe média alta alienado é periférico. Em contraponto, analisa o jornalista, um dos entrevistados nesta seção, um jovem periférico integrado socialmente ultrapassa seus limites geográficos. Na opinião do psicanalista Jorge Broide, também entrevistado, os problemas enfrentados pela periferia, especialmente a violência, dificultam a circulação da palavra, expressa entre outros aspectos pela arte e pela cultura. Outro convidado a refletir sobre a periferia é o professor e pesquisador Eduardo Marques, que vê com otimismo a quebra da homogeneidade dessas populações, à medida que avançam os serviços públicos e a cidadania. Uma vontade política ampla é o primeiro passo para reverter o estigma de exclusão que paira sobre pessoas que vivem fora do centro das grandes cidades, na visão da antropóloga Rose Satiko. No entanto, a urbanista Raquel Rolnik, cuja entrevista fecha a seção, observa que, apesar de a cultura da periferia ganhar cada vez mais espaço dentro e fora dela, sua força política foi capturada pelo jogo eleitoral. Conheça essas e outras reflexões dos especialistas convidados a debater esses espaços em transformação.

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EDUARDO MARQUES Professor livre-docente do Departamento de Ciência Política da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, é diretor do Centro de Estudos da Metrópole, em São Paulo, desde 2004, e pesquisador da pobreza e da desigualdade social do Brasil. Para você, o que é periferia?

Que tipo de problema social a periferia representa?

As periferias são as áreas mais externas das grandes cidades, ocupadas desde os anos 1970 por populações de baixa renda que viviam em condições muito precárias e estavam submetidas a vários tipos de risco. Em termos recentes, as periferias têm se tornado mais heterogêneas socialmente, assim como têm tido maior acesso a políticas e serviços públicos, embora grandes diferenças de qualidade dos serviços ainda perdurem. Apesar de ainda ser espaços de pobreza e privação, elas se transformaram muito. Por isso, faz mais sentido falar de periferias (no plural) nos dias de hoje.

Eu não diria que elas representam um problema, mas que têm problemas. De acesso a serviços, de segregação no espaço (e grandes distâncias ao mercado de trabalho e ao lazer) e, mais recentemente, de violência, uma das principais questões que temos visto nas regiões periféricas. As iniciativas que tentam integrar a periferia ao restante das grandes cidades geram resultados? Considero essas iniciativas muito importantes, principalmente as de promoção de infraestrutura e implantação de equipamentos, mas também as de indução de atividades econômicas, para a redução da segregação social nesse espaço urbano que ainda é excluído. Qual a força da periferia em termos políticos? E no tocante à arte e à cultura? A periferia tem muita força política, tanto eleitoral quanto organizativa. Recentemente, suas expressões culturais têm aparecido com força crescente, o que é muito bom. Em um aparente paradoxo, têm se afirmado em torno de identidades periféricas gerais, em um momento de aumento de sua heterogeneidade. Como transformar o estigma de exclusão que paira sobre os moradores da periferia? Por um lado, com investimentos públicos de grande porte que permitam tornar as periferias lugares cada vez mais consolidados em termos urbanos. Por outro, através da ação política dos grupos da própria periferia, organizados politicamente ou não.

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JORGE BROIDE

Que tipo de problema social a periferia representa?

Psicanalista, é doutor em psicologia social e professor do mestrado Adolescente em Conflito com a Lei, da Universidade Bandeirante (Uniban). Também é presidente do Conselho Consultivo da Fundação Abrinq para os Direitos da Criança e do Adolescente e tem vasta experiência com pessoas em situação de rua.

O maior deles é a ausência de futuro. O jovem da periferia vive como se estivesse em uma corrida de obstáculos. Ele tem de enfrentar a desagregação familiar que a pobreza e a fragmentação do território geram; a ausência de diferenciação entre a escola e o mundo da rua, em que o professor não consegue mais ser um representante da cadeia simbólica da civilização, tornando-se somente mais uma pessoa na sala de aula; a ausência de perspectiva profissional, que, muitas vezes, o obriga a entrar para o tráfico; a violência entre os pares etc. Essa luta pela sobrevivência material e psíquica faz com que o sujeito vá se exaurindo e, em determinado momento, não consiga mais pular o próximo obstáculo. Quando cai, ele se volta à drogadição, ao alcoolismo e à violência, sintomas do desamparo e uma tentativa de amenizar a dor e a frustração.

Para você, o que é periferia? É um território com pouca presença do Estado, fragmentado, atravessado pela pobreza, geralmente distanciado do centro. Mas é, também, marcado pela solidariedade e proximidade entre as pessoas. A periferia adotou leis próprias para sobreviver ao abandono e ao desamparo vivido no cotidiano. Hoje em dia, há uma importante mistura entre o formal e o informal, o lícito e o ilícito. Essas relações se expressam, por exemplo, no controle que o tráfico de drogas vai adquirindo sobre o território, fazendo, paradoxalmente, o papel do Poder Judiciário, através dos julgamentos informais daqueles que quebram as normas impostas por eles para o controle de seu negócio. Essa situação tão complexa dificulta a circulação da palavra. A palavra circula na solidariedade e na proximidade entre as pessoas, na arte, na cultura, na organização popular, na organização para a sobrevivência e está ausente na fragmentação do território. A psicanálise nos permite entender que onde não há palavra há um ato mudo e motor. Ele ocorre porque algo não pode ser dito pela proibição, pelo medo, pela angústia, pelas perdas não elaboradas que são muito grandes na periferia. A violência surge no lugar dessa ausência da palavra.

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As iniciativas que tentam integrar a periferia ao restante das grandes cidades geram resultados? Muitas vezes, a periferia funciona como aquilo que chamamos de instituição total. O sujeito fica preso no território sem possibilidade de circulação pela cidade e pelo mundo. Isso aponta a importância do transporte público, da internet e da troca dos bens materiais e simbólicos como cultura e arte. A integração da periferia com o restante da cidade pressupõe a saída da pressão pela sobrevivência imediata, ou seja, a resolução do básico, que é moradia, trabalho, educação etc.


Qual a força da periferia em termos políticos? E no tocante à arte e à cultura? Há um movimento contraditório e multifacetado entre a passividade e as formas de organização efetivas, que vão do tradicional ao novo. Da mesma forma que o tráfico de drogas impõe uma estética, uma ética e uma organização política que fazem parte do controle do território com regras rígidas, de extraordinária violência e exploração do trabalho da juventude, há também, no mesmo lugar, e muitas vezes com as mesmas pessoas, um movimento que busca soluções através de novas formas de organização, com uma ética e uma estética que promovem o encontro com o outro no caminho de algo novo.

“Onde não há palavra há um ato mudo e motor. A violência surge no lugar dessa ausência da palavra.” (Jorge Broide) Como transformar o estigma de exclusão que paira sobre os moradores da periferia? O estigma e o preconceito não reconhecem o outro. Tratam a todos de um mesmo grupo como se fossem iguais. É a questão da invisibilidade de quem mora na periferia. A transformação deve ocorrer pela verdadeira inclusão na cadeia simbólica, o que pressupõe o trânsito das pessoas pela cidade, pela cultura, pelo melhor que o ser humano produziu. Isso subentende a possibilidade da circulação da palavra, que se dá com base na construção de uma tessitura no território, e do território para toda a cidade e para o mundo. É esse movimento que gera escutas, cria matizes, diferenças, canais de comunicação, aberturas de pensamentos, outras formas de trabalho e sobrevivência. Gosto muito daquela música dos Titãs que diz: “Miséria é miséria em qualquer canto. Riquezas são diferentes”.

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GILBERTO DIMENSTEIN Jornalista, é membro do Conselho Editorial da Folha de S.Paulo e criador da ONG Cidade Escola Aprendiz. Especialista em jornalismo comunitário, é idealizador do Catraca Livre (www.catracalivre.com.br), que propõe unir educação, interação e cultura. Para você, o que é periferia? É estar excluído dos benefícios sociais, culturais, tecnológicos e científicos. Ser periférico é estar à parte desses benefícios. Não se trata, portanto, de uma definição geográfica, mas de uma definição que trata de aspectos socioculturais e econômicos. Que tipo de problema social a periferia representa? Acredito que seja o déficit educacional. A pior das desigualdades é a da informação, do conhecimento. E essa disputa acaba se revelando nas mais diferentes formas, na questão da saúde, da cultura, do emprego, da renda. É a educação que viabiliza disputar com mais igualdade

precisa ser uma plataforma da educação. Todas as experiências praticadas em várias partes do mundo mostram que, quando se consegue colocar a juventude no centro do processo de produção do conhecimento, a periferia desaparece. Quando o jovem periférico tem a possibilidade de se integrar socialmente e ser um articulador comunitário e cultural, a periferia vira apenas um conceito geográfico, não mais um conceito socioeconômico e cultural. Afinal, um jovem da classe média totalmente alienado não deixa de ser periférico. Outro, incapaz de conhecer as novidades da música, da arte, da tecnologia, de enxergar o mundo, também não deixa de ser. Portanto, a noção da periferia não depende só da renda, mas da absorção do conhecimento. Qual a força da periferia em termos políticos? E no tocante à arte e à cultura? Politicamente, a periferia é muito mais importante como eleitorado, essa é a grande verdade. A população da

“A pior das desigualdades é a da informação, do conhecimento. [Ela] acaba se revelando nas mais diferentes formas, na questão da saúde, da cultura, do emprego, da renda.” (Gilberto Dimenstein) de oportunidades os benefícios da sociedade, que vão do progresso científico e tecnológico às questões de cultura e saúde. As pessoas bem informadas se previnem de doenças, têm menos filhos e se envolvem mais na educação deles... Isso acaba criando um ciclo vicioso. As iniciativas que tentam integrar a periferia ao restante das grandes cidades geram resultados? Quando falamos em integrar a periferia, é importante ressaltar que ela também está no centro e que há pessoas nas regiões centrais deslocadas do acesso aos benefícios. Penso que as ações mais importantes são aquelas que trabalham com o protagonismo juvenil. Defendo o conceito de cidade educadora, de que o espaço urbano

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periferia representa a maior parte dos votos ou, pelo menos, grande parte. Por isso, eleitoralmente ela tem uma representatividade muito maior na política do que como formadora de opinião. A periferia tem muito mais importância, portanto, em épocas de eleição. Já no tocante às questões culturais e artísticas, o que temos notado na cidade de São Paulo é um vigor crescente da força da periferia, reconhecida cada vez mais pelo centro. Podemos citar o grafite, o estêncil, o hip-hop, as manifestações teatrais. Hoje, na periferia há uma população jovem cada vez mais educada – inclusive no sentido formal. Dificilmente se veem jovens sem o ensino médio. E a internet ajudou a democratizar muito a informação. São Paulo, bem ou mal, é uma cidade onde as pessoas interessadas têm espaços de


apropriação do conhecimento, a exemplo de outros grandes centros urbanos do mundo, que têm diversas ofertas gratuitas ou a preços populares de benefícios culturais. Como transformar o estigma de exclusão que paira sobre os moradores da periferia?

ROSE SATIKO Doutora em antropologia social, é professora de antropologia da Universidade de São Paulo e pesquisadora do Grupo de Antropologia Visual (Gravi-USP) sobre a produção audiovisual na periferia de São Paulo. Para você, o que é periferia?

O único jeito é melhorar a educação pública, para aumentar a possibilidade de as pessoas irem às escolas, às faculdades, fazerem cursos técnicos e profissionalizantes. Já vemos isso acontecer, mesmo que de forma um pouco tímida. A melhora da educação vai permitir mais oportunidades a uma população que ainda vive periférica. Outra questão está relacionada ao orgulho. Por que se envergonhar de viver na periferia? O estigma, muitas vezes, está nos próprios moradores. Não se orgulhar do que você é também é um sinal de subdesenvolvimento intelectual. Mas é importante não confundir excesso de orgulho com baixa autoestima, que daí se cria outra forma de exclusão.

Acho difícil citar uma definição única. Até porque é muito difícil pensar em um lugar único. Periferia são territórios delimitados, com acesso restrito e precário aos direitos humanos básicos, como educação, saúde, lazer etc. É importante deixar claro que não é um lugar necessariamente isolado. Em muitas cidades, há periferias nos centros urbanos, que, em termos de localização, não estão em áreas periféricas. Que tipo de problema social a periferia representa? O principal deles – e que é comum em lugares periféricos – é, como disse, a precariedade ao acesso a questões sociais, como saúde, emprego, espaços de lazer, educação. Isso é o mais latente. É importante lembrar que a periferia é o resultado de um amplo processo de desigualdade, essa é sua principal característica. Ela foi se formando ao longo dos anos no curso da urbanização das cidades, que acabou empurrando as populações menos favorecidas para as áreas mais afastadas do centro, dificultando o acesso delas às melhores oportunidades. Hoje, as periferias representam os maiores índices de violência e de criminalidade nas grandes cidades. E esses índices não afetam somente as populações que vivem nessas periferias, mas sim todos os habitantes do mesmo município. As iniciativas que tentam integrar a periferia ao restante das grandes cidades geram resultados? Essas iniciativas têm surgido tanto de agentes externos (não moradores) que buscam atuar para transformar essas regiões periféricas quanto – e principalmente – da própria periferia para os centros, com diversas ações da população que vive ali. Um exemplo são as manifestações artísticas que surgem na periferia e que acabam por dominar também o “centro”, como no caso do grafite, hoje presente em conceituadas galerias de arte. E quando falo em acesso ao centro não digo apenas regionalmente, claro, mas ao centro da cultura, ao núcleo das artes e

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do conhecimento. É preciso ressaltar, no entanto, que existem diferentes tipos de iniciativa. Algumas delas são muito pontuais e, por isso, não conseguem ter uma grande representatividade no que diz respeito a uma verdadeira transformação social de integração da população periférica. Muitas não têm continuidade, o que é um problema. Outras preveem projetos de formação de pessoas da própria comunidade que possam se tornar agentes de transformação e dar continuidade a essas dinâmicas dentro das periferias. Essas são muito mais interessantes no sentido da integração. Qual a força da periferia em termos políticos? E no tocante à arte e à cultura? Os principais movimentos sociais – e, portanto, políticos – são reflexos de demandas da própria periferia, na organização da população em prol de um bem comum. Muitos vieram de setores periféricos e foram gestados nesses espaços de exclusão. Hoje, há um crescimento importante de ações que se utilizam da arte para propor uma reflexão sobre a condição das pessoas que vivem nas periferias. Eles são, aliás, tão criativos e de propósito tão transformador que acabam escapando para os grandes centros culturais. Há uma efervescência cultural nas favelas, como provam os saraus literários, os artistas musicais, a produção e a exibição audiovisual, as danças que vão do street dance ao afro. Enfim, são as iniciativas de reflexão sobre essa condição de ser periférico que estão tornando a periferia mais forte e influenciadora. O discurso que vemos nas letras de rap, de se orgulhar da condição de ser periférico, é algo mais contemporâneo, e que vem se tornando mais forte hoje em dia. Como transformar o estigma de exclusão que paira sobre os moradores da periferia? Acho importante pensarmos, primeiro, na exclusão não como um estigma, mas como uma realidade. Para transformar essa exclusão é necessário, antes de qualquer coisa, uma vontade política ampla. Ainda há, claro, imagens e rótulos estigmatizantes. Mas isso já está se transformando graças aos próprios moradores da periferia, dispostos a ser atores na transformação desse estigma de uma forma muito mais reflexiva, que nos ajuda a questionar a visão que temos dessa população. Eles querem construir outra imagem da periferia e, para isso, buscam formas de se apresentar e se representar. 34

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RAQUEL ROLNIK Urbanista, é professora da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo e relatora especial da Organização das Nações Unidas para o direito à moradia adequada. Foi diretora de Planejamento da Cidade de São Paulo (1989-1992) e coordenadora de urbanismo do Instituto Pólis. Para você, o que é periferia? O conceito de periferia foi forjado de uma leitura da cidade surgida de um desenvolvimento urbano que se deu a partir dos anos 1980. Esse modelo de desenvolvimento privou as faixas de menor renda de condições básicas de urbanidade e de inserção efetiva à cidade. Essa talvez seja sua principal característica, migrada de uma ideia geográfica, dos loteamentos distantes do centro. Mas é preciso lembrar que a periferia é marcada muito mais pela precariedade e pela falta de assistência e de recursos do que pela localização. Hoje há condomínios de alta renda em áreas periféricas que, claro, não podem ser considerados da mesma forma que seu entorno, assim como há periferias em áreas nobres da cidade. Que tipo de problema social a periferia representa? O principal problema das periferias hoje está na ambiguidade constitutiva entre a cidade e seus assentamentos


Nesse contexto, aos pobres resta morar onde? Por isso temos mais pessoas vivendo em áreas periféricas, sem acesso a recursos, e longe dos centros das cidades.

“O estigma se dá quando a periferia é representada e mostrada pelo olhar de alguém que não vem de lá, que não vive lá, um olhar totalmente estrangeiro sobre aquela realidade.” (Raquel Rolnik) Qual a força da periferia em termos políticos? E no tocante à arte e à cultura?

populares, principalmente de áreas irregulares e ilegais. Em primeiro lugar, na própria questão do pertencimento desses assentamentos à cidade: eles fazem ou não parte da cidade? A quem ela pertence? Apesar de estar no controle do aparato do Estado, há muitos lugares, como favelas urbanizadas de grandes cidades, em que as prefeituras não entram para fazer coleta de lixo ou manutenções (drenagem, limpeza de bueiros etc.), algo que é comum aos outros bairros. Essa questão é transcendente porque joga luz sobre muitos outros problemas das periferias, como a crescente violência e o controle do tráfico de drogas. Um lugar em que reina a ambiguidade é uma “terra sem dono”, onde teoricamente qualquer pessoa ou grupo pode tomar para si o seu controle. É isso que acontece, por exemplo, com o próprio tráfico. As iniciativas que tentam integrar a periferia ao restante das grandes cidades geram resultados? Acho que grande parte das iniciativas hoje são absolutamente fragmentadas e pontuais, uma vez que não conseguem resolver a principal questão que paira sobre a periferia, que é romper o nosso modelo de desenvolvimento econômico. As iniciativas não conseguem parar a máquina de produção da exclusão. O salário do trabalhador formal do Brasil não consegue cobrir o custo de moradia, seja em aluguel, seja na casa própria. E isso não é para uma pequena parcela da população, mas para 60%, 70% dela. Ao mesmo tempo, as políticas e os investimentos valorizam a terra, aumentam cada vez mais o seu valor.

Acredito que a força política da periferia foi capturada pelo jogo político e eleitoral. O poder político ainda está ali – afinal, a periferia é muito representativa na medida em que faz parte de uma enorme parcela da população do país, eleitoralmente muito forte –, mas perdeu a força transformadora que tinha. Se está muito mais esvaziada em termos políticos, no entanto, também vejo a periferia muito mais forte na questão das manifestações culturais e artísticas. Muitos de seus movimentos artísticos ganharam uma expressão mais ampla do que seus próprios bairros. Eles quebraram as barreiras geográficas e se difundiram no restante da cidade, em outras cidades, em outros países. Por isso, acho que a força da periferia, hoje, está muito mais nas questões culturais do que políticas. Como transformar o estigma de exclusão que paira sobre os moradores da periferia? Não se trata só de um estigma de exclusão, mas de uma exclusão que é real, e não imaginária. Acho difícil romper essa imagem quando os meios de comunicação, por exemplo, mostram apenas o lado negativo das periferias, salvo raríssimas exceções. O estigma se dá quando ela é representada e mostrada pelo olhar de alguém que não vem de lá, que não vive lá, enfim, de um olhar totalmente estrangeiro sobre aquela realidade. Para minimizar essa imagem, é imprescindível dar voz também a outras questões, mostrar outras verdades. Para isso, é necessário oferecer oportunidades para que a periferia possa se mostrar da forma como gostaria.

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reportagem

Melô da diversidade A música da periferia brasileira pode ser mais plural do que se imagina, mas é necessário chegar mais perto para ver. E ouvir. Por Augusto Paim | Fotos Ratão Diniz Chovia, e o chão estava cheio de lama. O fotógrafo Ratão Diniz pulava poças nas ruas da Nova Holanda, uma das favelas do Complexo da Maré, no Rio de Janeiro. De repente, escutou o som de um acordeão vindo de uma casa às escuras. Ele ficou imaginando a cena. Para dar sentido ao que pensava, teve a ideia de começar uma série de fotografias sobre músicos da favela. Escolheu o acordeão como motivo em comum das imagens que iria produzir, porque “é um instrumento tradicional que foge do estereótipo das favelas“, afirma. O primeiro fotografado é Joaquim Severino da Silva, de 79 anos. Seu Joaquim chegou à Maré no dia 10 de maio de 1948, vindo do vilarejo de Mamanguape, litoral da Paraíba. Aprendeu a tocar ainda criança, mexendo nos instrumentos no intervalo dos bailes. Foi só quando chegou ao Rio de Janeiro, no entanto, que começou a colecioná-los. Além do acordeão, ele tem um pandeiro, um violão, um violino, um cavaquinho e um triângulo. “Não é que eu saiba tocar“, diz, modesto, embora saiba tocar samba, baião, forró, bolero, samba-canção, valsa, músicas de sua juventude. E o que seu Joaquim pensa sobre as músicas da juventude de hoje? Ele acredita que, de certa forma, as mudanças sociais ocorridas nos últimos 60 anos acabam se refletindo na música da favela, que, para ele, “incentiva a violência“. Diz ainda que no tempo de Jorge Negão (traficante que comandou a Maré nas décadas de 1970 e 1980, muito querido e lembrado pelos moradores) era diferente; ele incentivava Folia de Reis. “Os traficantes de hoje não. O malandro antigamente se vestia bem, era boa-pinta. O de hoje é bandido“, diz.


O paraibano Joaquim Severino da Silva, morador do Complexo da MarĂŠ, no Rio de Janeiro

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Janela aberta “Quem disse que só tem rap e funk?” A pergunta é lançada por Manoel Soares, jornalista e coordenador da unidade gaúcha da Central Única das Favelas (Cufa/ RS). A sede fica no Morro Santa Tereza, em Porto Alegre, dentro da favela, na própria casa de Soares. Ele liga o alto-falante. O som de música clássica atravessa a janela e alcança as casas coladas umas às outras. “Eles me contaminam, e eu contamino eles”, brinca Soares. É uma brincadeira, pois não se trata de “contaminar”, mas de “compartilhar”. O antropólogo Hermano Vianna recomenda: “Passeie por uma favela, domingo de tarde: janelas abertas, som alto, todo tipo de música bombando. Músicas muito diferentes umas das outras, do gospel mais sagrado ao funk mais profano“.

Com tanta diversidade, é possível falar num elo entre as periferias brasileiras? Soares acredita que o rap e o hip-hop cumprem essa função porque são “autobiográficos”. Daí se explica também o porquê de as músicas muitas vezes versarem sobre violência, drogas e exclusão social. “A música na favela é o único registro confiável dos dias atuais. Fala sobre o que vai descer o asfalto daqui a alguns anos”, diz o jornalista, que completa: “O cantor de rap é um griô (contador de histórias na tradição oral dos quilombos) da vida moderna”. Soares lembra que Mano Brown e MV Bill já falavam, há mais de dez anos, sobre o crack, assunto que vem ganhando destaque na mídia somente hoje, porque não é mais um problema só da favela.

“Passeie por uma favela, domingo de tarde: janelas abertas, som alto, todo tipo de música bombando. Músicas muito diferentes umas das outras, do gospel mais sagrado ao funk mais profano.” (Hermano Vianna) Soares cita o caso de uma vizinha, de 50 anos, aproximadamente, catadora de garrafas PET, que costuma lhe pedir para pôr a trilha sonora de O Poderoso Chefão. A própria mãe de Soares é um exemplo curioso: Dona Ivanete é cantora de rap, mas “não fuma maconha, odeia palavrão e não gosta do ritmo”, descreve. De que jeito ela pode ser rapper, então? Pois dona Ivanete criou suas próprias letras e ritmos, que são um sucesso entre as outras mães da favela. Em abril, Afrika Bambaataa, pseudônimo de Kevin Donovan, norte-americano considerado o inventor do movimento hip-hop, esteve em turnê no Brasil e, a convite de Soares, subiu o morro Santa Tereza para conhecer a Cufa/RS. Bambaataa já tinha passado por outros estados brasileiros quando pôde observar como sua criação havia adquirido nuances regionais conforme a interação com a cultura local. “É como o feijão, que tem no Brasil inteiro. O feijão dos tropeiros gaúchos, porém, é diferente da feijoada baiana”, compara.

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Nas ondas da Maré No Morro do Timbau, outra favela da Maré, há um bar. Um desses típicos de esquina que se pode encontrar em qualquer lugar do Brasil e onde se espera curtir uma roda de samba ou pagode. Nisso, porém, o bar Zé Toré, de José Camilo da Silva Filho, de 54 anos, é diferente: ali o som da noite é o rock ’n‘ roll. Silva organiza shows no espaço desde 2000. Já chegou a juntar mais de 300 pessoas no pequeno estabelecimento – o público precisou ocupar a rua. Lá tocam bandas da Maré, com música própria, mas também há covers de rock internacional e nacional dos anos 1980. O proprietário é enfático na definição do público: “Não curtimos funk nem rap. Aqui é o ponto do rock ‘n‘ roll”. Na Maré, há também adoradores de heavy metal. Tão adoradores que criaram um culto religioso na favela Baixa do Sapateiro: o Metanoia, surgido na década de 1990 e hoje com cinco bandas e 30 membros, aproxi-


Diversidade musical: ensaio de uma das bandas de heavy metal do culto religioso Metanoia

madamente. Seu fundador é o pastor Enok Galvão – no passado, “uma espécie de líder de uma galera que se encontrava para beber e se drogar ao som de muita música pesada“, como descrito na homepage do grupo (www.metanoiaunderground.com.br). O site também relata a conversão vivida por ele, que passou a pregar a mensagem bíblica na pesada noite carioca. Joab Careca é o codinome de Joab Pinto da Silva, membro do Metanoia, que comenta sobre a diversidade musical na periferia: “Já vi grupos de blues, reggae, jongo, choro e alguns outros dentro da favela”. E há preconceito com o heavy metal? “Quando a vizinhança se acostuma com as camisas pretas debaixo do sol carioca de 40 graus, as caretas somem e tudo segue na maior harmonia”, diz ele. Como heavy metal e religião podem andar juntos? Careca dá uma resposta que diz muito sobre o cenário musical da periferia brasileira: “O rock ‘n‘ roll na sua essência, ou na maioria das suas vertentes, já é uma música utilizada para protestar. Isso tem muita semelhança com os ensinamentos de Cristo, pois foi ele quem mais se levantou em toda a história contra as injustiças cometidas na sociedade em que vivia. Isto é cristianismo e isto também é rock ‘n‘ roll”.

A periferia é o mundo A incursão no Complexo de Favelas da Maré e no Morro Santa Tereza serve para mostrar que é necessário ver – e ouvir – para crer. Crer na diversidade da favela. Um exemplo ainda a ser citado vem de Belém, no Pará. O tecnobrega é tão conhecido que Ronaldo Lemos, professor da Escola de Direito da Faculdade Getulio Vargas, no Rio de Janeiro, listou-o num artigo publicado no site Overmundo como um dos exemplos do que ele chama de “música eletrônica globoperiférica” [overmundo.com.br/overblog/tudo-dominado-a-musica-eletronica-globoperiferica]. O tecnobrega aparece ao lado do funk carioca, da champeta (Colômbia), do kuduro (Angola), do kwaito (África do Sul), da cumbia villera (Argentina), do bubblin (Suriname), do dubstep (Inglaterra) e do coupé decalé (França). Todos, segundo ele, são exemplos de músicas que surgiram na periferia, portanto, fora do circuito comercial de produção musical, e alcançaram o mundo. Talvez o que tenha ocorrido com esses ritmos seja apenas uma ressonância do que Preto Zezé, coordenador da Cufa no Ceará, diz: “O que se convenciona chamar música de favela é a música do mundo”. *** Sobre o assunto, leia também: baixacultura.org/2010/02/08/ musica-periferica-global/.

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reportagem

O bairro que nasceu de um cometa A vida em Vargem Grande, comunidade que habita um astroblema – cratera formada pelo impacto de um corpo celeste – em plena periferia de São Paulo. Por Ronaldo Bressane | Fotos André Seiti Saci-Pererê tem 44 anos e usa uma gravata azul com listras cinzentas e pretas. No bolso esquerdo de sua impecável camisa branca, leva um papelzinho com uma relação de tarefas laboriosamente escritas em letras maiúsculas azuis. “É para não esquecer nada”, explica em suavizado sotaque carioca, os dentes muito brancos brilhando na cara muito escura. Como o Saci veio parar ali no cemitério de Colônia? Do alto de seu 1,80 metro, muito bem-posto sobre as duas pernas, ele coça de leve a cabeça de cabelos cortados bem rentes – não há mais a carapuça – e respira fundo: “Ih, rapaz, é uma longa história. Minha vida daria um livro...”. São 5 da tarde de uma quarta-feira de outono e o sol se aconchega numa das bordas da Cratera de Colônia, próxima ao cemitério onde trabalha o ilustre morador do bairro vizinho, Vargem Grande. Antes de contar como o Saci perambula pelo mais antigo campo-santo de São Paulo, mergulhemos em outro mistério. Pouca gente sabe, mas a periferia da quarta maior cidade do planeta oculta um astroblema, cratera provocada pela colisão de um corpo celeste. “O evento ocorreu entre 5 e 35 milhões de anos atrás”, calcula o geólogo Victor Velásquez, da Universidade de São Paulo, que estuda a cratera há cinco anos. Só em 1961 foi descoberta a depressão entre os distritos de Parelheiros e Engenheiro Marsilac, extremo sul da capital paulista, a 50 quilômetros do centro. Trata-se de um círculo de 3,6 quilômetros de diâmetro e bordas de 150 a 250 metros de profundidade, que pode ter sido formado pelo impacto de um asteroide, talvez meteoro, quem sabe cometa. Até então, a Cratera de Colônia escondia-se na chácara do alemão João Rinsberg. Seu único habitante era um índio proscrito pelos krucutus, uma das duas aldeias guaranis que residem em Parelheiros. “O índio sumiu pouco depois que a gente veio para cá”, conta o bibliotecário Eduardo Francisco, postado entre os 18 mil volumes que guarda na biblioteca pública de Vargem Grande, bairro cercado pela Mata Atlântica. Vista panorâmica da Cratera de Colônia, no extremo sul da capital paulista


Clima sobrenatural No começo dos anos 1990, Rinsberg vendeu a chácara à União das Favelas do Grajaú (Unifag). Três mil famílias vindas de bairros e favelas do sul paulistano compraram lotes de 250 metros quadrados para erguer sobrados na várzea. Vinte anos depois, vivem ali 45 mil pessoas – suficientes para lotar o Estádio do Pacaembu. Um povo orgulhoso de seu passado. “É comum esse sentimento de autoestima em comunidades que construíram as próprias casas”, conta Marli Catucci, arte-educadora que trocou a vida num bairro de classe média para ser

é igreja: tem boteco que vira templo a cada 15 dias, e vice-versa”, ri. Quatro supermercados, duas escolas, uma creche, um posto policial, uma lan-games, uma lan-house, nenhum semáforo e 32 ônibus, que servem a população das 3h30 à meia-noite; às 5 da manhã os carros partem totalmente lotados. Somente uma quadra de esportes, zero cinema, zero centro cultural – assim, jovens e crianças ficam zanzando de rua em rua; seus pais voltam lá pelas 9, 10 da noite. “Mas as tardes são tranquilas”, afirma o bicicleteiro Fernando Souza, que pedalou para Vargem Grande atrás de sossego. Segundo os moradores, a criminalidade restringe-se a brigas

Trata-se de um círculo de 3,6 quilômetros de diâmetro e bordas de 150 a 250 metros de profundidade, que pode ter sido formado pelo impacto de um asteroide, talvez meteoro, quem sabe cometa. professora na cratera. O outono chega forte na região de Parelheiros, que registra as mais baixas temperaturas da cidade. Não raro, a cratera fica toda coberta pela neblina. Durante o dia tem mesmo um aspecto fantasma, uma vez que a maior parte dos residentes trabalha “em São Paulo”, como se referem aos bairros de fora do buraco, voltando só para dormir. Vargem Grande abriga cem igrejas evangélicas, dois templos católicos e um número inexato de terreiros de umbanda – “atrás de toda igreja tem um terreiro”, diverte-se Marina Nunes, agente da Associação Comunitária Habitacional Vargem Grande (Achave). “Difícil saber o que

de casal ou futebol; vários afirmaram não conhecer ninguém que tenha sido assaltado. “Se tem roubo, os próprios irmãos [do PCC] resolvem, não ficam esperando a polícia não”, segreda um morador. “Morte mesmo, só entre traficantes, disputa de boca de fumo e pó.” A política do “não sei, não vi, não conheço” impera: você não mexe comigo que eu não mexo contigo e beleza. A via principal é a Avenida das Palmeiras – embora não ostente nenhum coqueiro –, que é povoada por lojas de materiais de construção, lingerie e tudo-a-1-real e por lanchonetes como a Cinquentão, que vende deliciosas coxinhas a cinquenta centavos (R$ 16 o cento).


Fachadas de lojas na Avenida das Palmeiras, a principal da cratera

Trata-se da “única rua do mundo que tem um rio”, conforme o bicicleteiro Souza. É que, quando chove, a água desce da borda da cratera formando um córrego de águas cristalinas entre o calçamento e a curta calçada. “Uma vez vi uma senhora aí lavando um bife que havia pego no lixo trazido pela enxurrada para dar ao filho”, conta Marina. “Aquilo me deu um negócio... Corri e peguei uma cesta básica da Achave. Mas dei a ela como se fosse um presente meu. Se não no dia seguinte teria fila na porta da associação, e a gente não daria conta.” Embora existam miseráveis – morando nos lotes ao final das ruas, na porta da mata, onde às vezes se empilham 16 pessoas na mesma casa –, o bairro é carente, porém, não pobre. Celular não pega e não existe banda larga, mas há casas com piscina, outras com lareira; há quem venda lotes na Palmeiras por R$ 40 mil; e 60% têm carro. É difícil se perder aqui: todas as 89 ruas são quadriculadas e numeradas – agora rebatizadas com nome de pássaros, flores e animais. Além das dezenas de botecos/igrejas, a Palmeiras acolhe a Pizzaria Cratera’s, cuja moda da casa é a Pizza da Tia: bacon, carne-seca,

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bacon, calabresa, bacon, mussarela, bacon, cebola – e bacon. A cozinheira Tia Cida adora Vargem Grande. “Uma vez peguei um tiú na minha cama!”, entusiasma-se. A fauna do lugar exibe de veados a suçuaranas, passando por cascavéis, preguiças, tamanduás, lobos, capivaras, antas, joaninhas de cores exóticas, muitos macacos e, pasme o urbanoide, uma farta variedade de tatusbolinha. Isso sem falar nas plantas raras. A irregular “Alphavella” não foi a primeira ocupação do astroblema, e sim o Centro de Detenção Provisória, que abriga 1.200 presos – num dia bom. Criado no governo Quércia, o presídio devastou enorme área na cratera, hoje uma faixa de mil metros quadrados de terra vermelha e escura, que jamais viu nascer árvore. A terra nomeia o principal curso d’água, o Ribeirão Vermelho, que recebe sem tratamento os dejetos da prisão. Vargem Grande, que só há um ano ganhou saneamento, assenta-se sobre mananciais: a água bebida provém de quatro poços artesianos. O presídio representa perigo


tanto para o meio ambiente como para o ambiente do meio. A entrada da penitenciária atulha-se de barracas que vendem comida, cigarros e DVDs e alugam moletons e havaianas (vestimenta permitida aos visitantes). O lixo é jogado na beira da estrada do presídio, na mata e até nas bicas de água que descem do Vermelho.

porque a cratera vive sob a Área de Proteção Ambiental Capivari-Monos, bacia que pode vir a abastecer São Paulo. Ainda assim, não falta interesse pelo local. A Universidade Mackenzie presenteou a comunidade com um plano urbanístico que prevê retirar as famílias que ocupam os lotes próximos a mananciais e córregos. Há projetos para um parque ecológico. “Tudo parado na prefeitura”, reclama a presidente da Achave, Marta de Jesus. Agora, sim, o Saci

Vargem Grande vive a encruzilhada de sua história. Por ter crescido demais, o condomínio original está “congelado”, não pode mais abrigar construções – algo impossível de fiscalizar. O Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico, Condephaat, ligada ao Estado, tombou a cratera, o que dificulta a edificação de obras sociais. O bairro não está regularizado porque a escritura original permanece em poder da Unifag, desbravadora da área, cujo grupo foi substituído pelo da Achave. As trilhas mata adentro, que poderiam ser abertas ao turismo, estão “lacradas”

Se cientistas são visitas frequentes, há uma torcida para que a região seja descoberta pelo turismo ecológico. Afinal, o interior da cratera abriga uma turfeira a 450 metros de profundidade – matéria orgânica em decomposição desde o surgimento do astroblema. “Esses sedimentos podem conter registros das mudanças climáticas dos últimos 4 milhões de anos”, afirma o geólogo Claudio Riccomini, da Universidade de São Paulo. “Devido ao fato de ainda estar fechada e isolada por suas bordas, essa cratera é única.” Realmente: só existem mais seis

Rua próxima ao terminal de ônibus: muita lama em dias de chuva

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crateras do tipo no Brasil, 11 na América Latina e 170 no resto do mundo. Riccomini imagina que o impacto da queda – dez bombas atômicas – tenha matado animais que viviam num raio de 50 quilômetros, assim como o choque de um asteroide no México abriu a cratera de Chicxulub, principal evidência de que o impacto de um corpo celeste teria provocado a extinção dos

um exagerozinho, que a água degustada em Vargem Grande tenha vindo do espaço. No mundo só existe outra cratera habitada: a cidade medieval de Ries, Alemanha, que sobrevive da renda gerada pelo turismo. Esse é o sonho de muitos habitantes de Vargem Grande, comunidade surgida, por

O punhal de gelo teria penetrado na terra, misturando-se aos lençóis freáticos – donde se deduz, talvez com um exagerozinho, que a água degustada em Vargem Grande tenha vindo do espaço. dinossauros. Como não há vestígios desse astro, Riccomini crê que o impacto tenha sido causado por um cometa. “Por isso não deixou vestígios: como um punhal de gelo que se desfaz depois de um crime”, sugere. O punhal de gelo teria penetrado na terra, misturandose aos lençóis freáticos – donde se deduz, talvez com

Uma das cem igrejas evangélicas do bairro

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coincidência, ao lado de uma vila alemã – o bairro de Colônia. Logo após a Independência, dom Pedro I, comovido com os insistentes pedidos da esposa oficial, a imperatriz austríaca Maria Leopoldina, importou de Innsbruck 226 colonos para povoar a região entre Itapecerica, Santo Amaro e Parelheiros. Muitos se fixaram em Colônia, onde viviam do carvão e da salsicha, trocados com a “cidade” por sacas de sal. Os alemães fundaram


André Luiz Barboza: o saci que virou administrador do cemitério particular mais antigo do Brasil

o primeiro cemitério particular do Brasil, em 1827, e a igreja de Santo Expedito, em 1910. O campo-santo, a associação de cemitérios protestantes e a Oktoberfest – aqui, Colônia Fest – são tocados por André Luiz Barboza, um boa-praça cidadão nascido na favela do Vidigal, Rio de Janeiro. “Fui o primeiro Saci do Sítio do Picapau Amarelo”, orgulha-se Barboza do passado de artista da Rede Globo. “Sempre fui metido a besta, queria ser artista...”, ri o magro diretor do cemitério. “Mas, depois da primeira temporada do programa, em 1977, tive uns probleminhas. Minha carreira não deslanchou”, lamenta. “Mas beleza! Trabalhei para uma empresa que imprimia datas de validade em produtos e que me mandou para São Paulo. Quando procurava lugar para morar, descobri o loteamento em Vargem Grande e comprei uma casa na Rua 1, número 50, hoje Rua dos Jatobás. Soube que precisavam de um funcionário no cemitério e me

apresentei”, conta ele, hoje formado em administração e gestão ambiental e falante do alemão. Ao lado de Barboza, o paraibano Severino Carlos, vicepresidente da Achave, conta que vem se dissipando a antiga rivalidade entre colonenses e vargem-grandenses. Fermentam ideias de aproximar os bairros, mudando o nome de Vargem Grande para Cratera de Colônia – o que uniria a tradição de um assentamento à força do outro. Se depender dos orgulhosos ocupantes dessa região da Mata Atlântica, pode ser que mudanças ocorram em ritmo acelerado. Onde uma hora cai um corpo celeste, milhões de anos depois vivem 45 mil pessoas; em dois séculos, indígenas são trocados por paulistas, nordestinos, alemães; em 20 anos, um ator de TV se reinventa como diretor de cemitério. Em São Paulo, as histórias acontecem num rabo de cometa.

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reportagem

Onde menos vira mais Da necessidade surge a criatividade: populações de baixa renda fazem de suas práticas exemplos de sustentabilidade. Por Tatiana Diniz | Ilustração Lourival Cuquinha Década de 1950. A alfabetizadora de adultos Eunice Araújo crescia na periferia de Arcoverde, no agreste pernambucano. A casa em que morava era compartilhada por dois adultos e dez crianças. A comida era comprada em quantidade suficiente para passar a semana. Os vizinhos mantinham o hábito de trazer as sobras para alimentar os animais que a família criava no quintal: galinhas, cabras e porcos. Nos canteiros, capim-cidreira, boldo e outras plantas medicinais eram cultivadas; a ciência de como usá-las era transmitida dos mais velhos aos mais novos. Não havia água encanada, portanto toda a que era carregada em latas tinha de ser reaproveitada ao máximo: “Recolhíamos a água do banho para molhar as plantas e a da lavagem de roupa era usada como descarga”, lembra a educadora. Reciclar. Reutilizar. Reduzir. Como no exemplo de Eunice, por questão de necessidade, as três premissas presentes na fórmula para um cotidiano mais sustentável são frequentemente praticadas em contextos de menor poder aquisitivo. A lógica é simples: quanto menos se tem, menos se estraga e menos se compra. Em oposição à tendência consumista e ao desperdício característicos dos estratos sociais mais ricos, comunidades

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de baixa renda demonstram ter potencial para assimilar rápido iniciativas que significam custo menor e mais economia de recursos. Some-se a isso a reflexão de que sustentabilidade não é um conceito inédito, tampouco emergente exclusivamente de preocupações intelectuais. Na verdade, a ideia por trás da palavra badalada se aproxima mais de não gastar do que de gastar muito; de ter menos do que ter demais e estragar; e de consertar o que se tem em vez de comprar algo novo. Para que o pouco que existe seja suficiente para todos, a postura é de contenção: comportamento que guiou (e guia) importantes períodos de recuperação da humanidade, como o pós-guerra ou os momentos que seguiram catástrofes naturais. Reações periféricas Diversos projetos têm experimentado práticas inovadoras de sustentabilidade em áreas de baixo poder aquisitivo. Na esteira deles, inclusão social, valorização do conhecimento tradicional e profissionalização dos participantes são alguns dos benefícios. De moradias ecológicas a hortas orgânicas, passando por aquecimento de água utilizando energia solar e reciclagem de resíduos em sistemas de cooperativa, muitos são os exemplos de quanto menos pode significar mais. Há um ano, um projeto coordenado pela ONG 5 Elementos envolve dez famílias da região de Parelheiros (zona sul de São Paulo) na prática da agricultura orgânica. Afastando-se da ideia de que “orgânico é coisa de rico”, a produção de alimentos livres de insumos e agrotóxicos é acolhida pelos pequenos agricultores como um modo estratégico de gastar menos no processo produtivo.

Energia solar Na periferia de São Carlos (SP), um sistema de aquecimento solar de baixo custo desenvolvido pela Sociedade do Sol (empreendimento social baseado no Centro Incubador de Empresas Tecnológicas da Universidade de São Paulo – Cietec) é ensinado a famílias de baixa renda como alternativa para reduzir as despesas com o chuveiro elétrico. Feito com materiais baratos, muitos deles oriundos de reciclagem doméstica (garrafas PET são adaptadas e transformadas em boias, por exemplo), o aquecedor conta com um método simples de montagem. “O manuseio é fácil e o conhecimento é apreendido rapidamente pelas comunidades. Essa camada da população tem muito interesse em qualquer forma de economia e entende rápido que energia solar é reduzir as despesas usando o sol”, afirma Samir Fagury, chefe da divisão de obras da Prohab, empresa ligada à prefeitura de São Carlos e implementadora do programa, que já instalou o aquecimento solar de água em 370 casas. A tecnologia do Aquecedor Solar de Baixo Custo tem se multiplicado pelas periferias de Guarulhos (SP), Rio de Janeiro (RJ) e Belo Horizonte (MG), entre outras localidades. Por trás dela está o idealismo de um grupo liderado pelo coordenador da iniciativa, Augustin T. Woelz, que dedicou dez anos

“Parelheiros é uma periferia em região de mata, o que significa uma experiência forte de ligação com a natureza. Essa ligação é fácil de ser ressignificada. Há também uma memória coletiva da vivência de pais e avós com a agricultura, que era orgânica. O resgate desses valores toca as pessoas e facilita seu envolvimento”, descreve Árpade Spalding, coordenador do projeto apoiado pela prefeitura de São Paulo em parceria com o Centro Paulus e a Associação Biodinâmica.

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à pesquisa de materiais para a criação do sistema e fez questão de mantê-lo como tecnologia social, ou seja, sem patente fechada. O resultado é uma rede que reúne de pedreiros a gerentes de construtoras, compartilhando experiências e contribuindo para o aperfeiçoamento da engenhoca ecologicamente correta. Em Tibagi (PR), além do sistema de água aquecida pelo sol, casas populares estão sendo erguidas desde março deste ano com tijolos ecológicos fabricados pela própria comunidade e telhas feitas com caixas recicladas da Tetra Pack. A iniciativa ganhou o nome de Ecomoradia e hoje envolve 20 associados na fabricação de tijolos que não precisam ser queimados: secam expostos ao ambiente ao longo de 20 dias. As primeiras quatro casas já foram construídas e a meta é chegar a 300 em um período de três anos.

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Escassez não é solução A reciclagem é outro setor que encontra na periferia potenciais parceiros para o estabelecimento de iniciativas bem-sucedidas. Vale lembrar que boa parte dos catadores, que desempenham função de extrema relevância no tratamento de resíduos no Brasil, é moradora dessas áreas. Em Goiânia, a Cooperativa de Reciclagem de Lixo (Cooprec) é um exemplo de como a atividade pode ser organizada de forma eficiente. Uma das células do Projeto Meia Ponte (criado pelo Instituto Dom Fernando e pela Sociedade Goiana de Cultura, em parceria com o Sebrae), a Cooprec se tornou pioneira na transformação de papel e papelão em telhas para galpão. A produção mensal chega a 14 mil unidades. Além disso, sacos plásticos são transformados em 13 toneladas mensais de grânulo, matéria-prima vendida a indústrias de fabricação de mangueiras e sacos para lixo.


É importante deixar claro que a escassez não pode ser defendida como a solução para o fim das práticas não sustentáveis, lembram os especialistas. Isso seria equivalente a considerar a desnutrição uma alternativa à obesidade. Grande parte do mérito dos projetos aqui apresentados reside na habilidade de construir aprendizado a partir da situação de escassez e ressaltar a alternativa sustentável como opção consciente, processo igualmente válido nas camadas sociais mais abastadas. Para Pedro R. Jacobi, professor doutor da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo e coordenador do Teia-USP (Laboratório de Educação e Ambiente), ainda há muitos desafios à implementação de práticas sustentáveis na periferia. O ciclismo, por exemplo, apesar de mais difundido nos bairros de baixa renda, ainda demanda apoio e regulamentação para que possa ser praticado com segurança.

Reciclar. Reutilizar. Reduzir. Por questão de necessidade, as três premissas presentes na fórmula para um cotidiano mais sustentável são frequentemente praticadas em contextos de menor poder aquisitivo. “Na periferia existe muito gato, que é água tirada ilegalmente. Zonas pobres, no entanto, podem praticar a sustentabilidade plantando hortas orgânicas; fazendo coleta seletiva; organizando cooperativas de recicladores; criando hábitos de convívio nos espaços públicos e cuidando deles de forma coletiva; vendendo materiais encontrados no lixo para fazer melhoramentos no bairro ou promovendo oficinas culturais sobre reciclagem e reaproveitamento de materiais descartados”, enumera Jacobi. Criar estratégias para aplicar esse potencial de assimilação em ações educativas que levem a escolhas conscientes pode ser o atalho para aproveitar bem as vivências sustentáveis nas comunidades periféricas. “Numa sociedade de consumo de massa e com os meios de comunicação a serviço dessa sociedade, todos somos afetados permanentemente. Cada nível sociocultural

precisa de uma linguagem diferenciada e que leve em consideração o contexto na sua pirâmide de motivações”, conclui o professor doutor Arnoldo de Hoyos, presidente do Núcleo de Estudos do Futuro, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (NEF-PUC/SP). A semente está plantada. Meio século depois de seu tempo de menina, enquanto o mundo enfrenta uma revisão de valores e cresce o apelo pelo consumo consciente de água, a educadora Eunice Araújo resgatou das memórias da infância a bacia de lavar louça e a reinstalou sob a torneira da cozinha, dessa vez num bairro de classe média. “Cada prato lavado com a torneira aberta é pelo menos um litro que vai embora ralo abaixo. Sei que dá para desperdiçar muito menos”, ensina.

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Atos de uma vida em construção Na Cidade Tiradentes, a diversão vem na carona do forró e do samba. Por Pedro Henrique França | Fotos Patrícia Stavis Em 2003, o grupo de teatro Pombas Urbanas estava sentindo falta de suas raízes. Surgido em São Miguel Paulista, em 1989, e tendo migrado para o centro em 1998 e, depois, para a Barra Funda, seus integrantes queriam retomar do seu ponto de partida, a zona leste de São Paulo. Do contato com a Companhia Metropolitana de Habitação de São Paulo (Cohab), surgiu, na Cidade Tiradentes, um espaço de 1.600 metros quadrados. Tratava-se de um galpão abandonado onde funcionava um supermercado. O edifício foi revitalizado pelo presidente do grupo, Marcelo Palmares, que, com sua equipe, se mudou literalmente de mala e cuia para a região. Ao chegar, a sensação de todos foi a de um bairro em desenvolvimento, cuja arte estava em construção. Assim batizaram o espaço de Centro Cultural Arte em Construção, e nele, além do teatro, passaram a oferecer à população do bairro, incluindo crianças e pessoas da terceira idade, sessões de cinema, aulas de dança e música, biblioteca, telecentro e outras atividades. Ato 1 – Prólogo A chegada do Pombas Urbanas de alguma forma acompanhou um novo momento da comunidade. “Mudamos para cá até para entender as necessidades que a comunidade tinha. Nosso eixo é o teatro, mas passamos a investir também em outras expressões artísticas”, diz Palmares, que atualmente conta com mais de 30 membros na equipe. “Acho que recuperamos a autoestima de muitas pessoas.” Suas palavras ganham sentido em vozes distintas. O lugar, conhecido como reduto de violência, e ainda hoje assim estigmatizado, parece querer esquecer um passado não muito distante para ir em busca de um futuro melhor. Seus habitantes brindam a isso com diversão. A sensação de arte – e bairro – em construção persiste. Localizado a 35 quilômetros da Praça da Sé, marco zero da capital paulista, a Cidade Tiradentes começou a se formar na década de 1980 e é apontada como um dos maiores complexos habitacionais da América Latina. Isso, porém, não destitui o clima de interior. Da receptividade acolhedora às ruas desertas num sábado à noite. Do circo que ilumina uma das vias principais da região ao movimento de jovens nas praças. É muito comum passarem a noite ali, conversando, bebendo, vendo o sol se pôr (ou nascer) e a noite rolar. “A natureza sempre foi nosso principal meio de diversão”, afirma o músico Tiago Sena. Pista de dança improvisada em frente ao bar Gela Adega

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Se a Cidade Tiradentes fosse retratada nos cinemas, teria histórias fragmentadas que por algum motivo se interligariam, como nos longas de Alejandro González Iñárritu (Amores Brutos, 2000; 21 Gramas, 2003; e Babel, 2006), ou no colorido sombrio de Tim Burton (Alice no País das Maravilhas, 2010, e Edward Mãos de Tesoura, 1990), ou no regionalismo típico de Cacá Diegues, que, com Antônio Fagundes, afirmou que Deus É Brasileiro (2003). Acrescente-se a esse amálgama a técnica de Lars von Trier em Dogville (2003) e Manderlay (2005), que fundiu teatro e cinema para fazer pensar a realidade. Cena 1: O esquenta Depois de passar a infância nas ruas jogando bola e pião ou empinando pipa, Sena agora se dedica integralmente à música. Vocalista da banda Reggada a Café, ele canta num forró de tenda improvisada: “Se você é diferente, o nosso diferente tem um quê de semelhante”, ensina. Como ele, o colega de banda Charles Costa do Nascimento se entusiasma com o público de pouco mais de 50 forrozeiros numa noite fria de sábado, começo de outono. Morador no bairro desde os 10 anos, Nascimento jogou muito futebol na escola e andou

de bicicleta pelas ruelas de sobe e desce. Dedica-se à música, arte transmitida pelo pai, há algum tempo. Deu aulas de violão, tocou em igreja e hoje faz fé na banda para vencer um festival de música em Guarulhos. Para ele, a região está em constante evolução e, como outros moradores, crê na força da comunidade para fazê-la melhor. O relógio marca 10h30 da noite. E Michele Nunes Bonifácio chama atenção na pista de asfalto, improvisada em frente ao bar Gela Adega. É uma das mais requisitadas para dançar e raras vezes recusa um convite. Os pés são de bailarina profissional, sacrificados à dança desde os 7 anos. Ela integra, desde os 13, o corpo de dança de Ivaldo Bertazzo, com quem já se apresentou em Paris e Amsterdã. Nada, porém, deslumbrou a doce menina de 20 anos e cabelos cacheados. Ela, que até recentemente namorava o vocalista da banda – mas terminou “porque namorar músico é fogo” –, defende, aguerrida, o lugar em que nasceu e desmistifica a violência. A reclamar, só “a lonjura”. Diariamente, sai 5 da manhã de casa e gasta duas horas e meia no transporte para dar aulas na região central da cidade ou na zona sul, lugares onde repassa os ensinamentos do coreógrafo. É frequentadora assídua do forró aos sábados e, às vezes, comparece ao Delirius, às sextas. Mas também sai do habitat com os amigos de Pinheiros e Vila Madalena. E espera o metrô e o ônibus até 4h30 para regressar ao bairro.

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A dançarina Michele Nunes Bonifácio: apresentações em Paris e Amsterdã com o grupo de Ivaldo Bertazzo

Angélica Christien Purcino também é profissional na dança, como Michele. Aos 18 anos, faz companhia à amiga nas noitadas, mas lembra com nostalgia dos tempos em que brincava numa das únicas pracinhas onde se concentravam as crianças de sua época. Acompanhada da mãe, frequentou muito os ensaios da escola de samba Príncipe Negro. A matriarca observava com zelo as brincadeiras na rua nos tempos em que a violência se fazia mais presente. “Hoje não pega mais nada.”

tragosto dos microempresários, já alertados com uma multa de R$ 27 mil em outubro passado – da qual recorreram com êxito, mas preferem não arriscar uma segunda vez. “Inventaram de acabar com os eventos a céu aberto”, reclama Ferreira dos Santos da gestão do prefeito Gilberto Kassab. Ali, à frente do bar, ele também promove rodas de samba nos domingos à tarde. E lembra que, se no subúrbio carioca o funk é o carro-chefe, na periferia paulistana, no entanto, apesar de esse gênero musical ter seus fãs, “muita gente ainda torce o nariz”. O samba é mais do povão mesmo.

Se a Cidade Tiradentes fosse retratada nos cinemas, teria histórias fragmentadas que por algum motivo se interligariam, como nos longas de Alejandro González Iñárritu, ou no colorido sombrio de Tim Burton, ou no regionalismo típico de Cacá Diegues. Ela, que dá aulas no CEU Água Azul, admira o Pombas Urbanas e as iniciativas culturais. “São ações que abrem os horizontes da comunidade.” A banda faz um intervalo. Os donos do Gela Adega, Geraldo Luis Andrade Ferreira dos Santos e Denis da Silva Moraes (conhecido na área como “Macaco”), estão preparados para fechar o local rigorosamente à 1 hora. A Lei do Psiu ali também se fez valer, a con-

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Cena 2: Holofotes O relógio beira a meia-noite. Na porta do ex-Levitus, atual Delirius (desde setembro do ano passado), o movimento ainda é fraco. Dênis Serafim, um dos donos, recebe a reportagem. “Você sabe, toda casa tem uns caras errados.” Passada a desconfiança, conta que adquiriu o negócio com mais dois sócios para fazêlo andar. Mas, por enquanto, só lotou a pista – com


capacidade máxima para 1.200 pessoas – com um show recente do grupo de samba Turma do Pagode. De sexta a domingo, quem esquenta o público é o samba, com shows ao vivo. Por volta da 0h10, pouco mais de cem pessoas circulam na pista, ao som de black music comercial. As mulheres se armam com saltos. E aquelas que se preveniram do frio logo aposentam os casacos para exibir os decotes. O visual afro predomina, mas há também quem faça o contraste com raízes louras. Nas regras da Cidade Tiradentes, quem está desimpedida pode circular à vontade. Ali, o machismo se baseia no compromisso: mulher acompanhada deve evitar cenas que possam sugerir ciúme. Cinthia, que se intimidou em dar o sobrenome, mas sambou a valer, confirma a tese. Michele, horas atrás no Gela Adega, sublinhou que a questão depende “do cara”. Para ela, “se ele for bandido, a menina é louca ao dar brecha”. Herbert Silva, de 21 anos, afirma que a pegação rola solta. “As mulheres são bem acessíveis.” Mas também ganha pontos quem tem dinheiro e oferece conforto – rapazes de Ecosport estão entre os favoritos. Por volta da 1h30, o pa-

gode ecoa no palco com a banda que leva o nome da casa. Canções que falam de amor e traição são as mais executadas. Já é espírito de balada em Tiradentes. Mas há espaço para reivindicações: uma casa é pouco para o bairro. Para o jovem Maurício, que também não quis informar seu sobrenome, “Tatuapé é metade daqui e tem muito mais opções”. É dele que surge outra manifestação: o preconceito aos brancos, minoria na área: “Os negão parceiro me discriminam, moleque. Falam ‘mano, você tem que morar na zona sul’ ”. Se de alguma forma é hostilizado, ele, porém, não cogita sair dali. “Eu gosto daqui, pela união do povo, moleque.” Epílogo No auge da noite, por volta das 3 horas, o som nas caixas traduz variações sobre o mesmo tema – e batuque. Os ânimos estão turbinados com caipirinha e cerveja. Elas abusam da sensualidade; exaltam as curvas no gingado sobre os saltos. Eles, em sua maioria, observam, quase tímidos; rodeiam-nas como abelhas enfeitiçadas por um pote de mel. São reis em busca de suas rainhas numa noite da periferia.

A jovem Cinthia: regras de conduta na balada revelam certo machismo

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balaio

O periférico está no centro Livros, filmes, discos e site que colocam a periferia no alvo das atenções. Por André Seiti | Consultoria Marcel Nanni Fracassi

fotografia Uma Outra Cidade, de Iatã Cannabrava (Terceiro Nome, 2009) As periferias de cidades da América Latina, como São Paulo, Lima, Caracas, La Paz, Buenos Aires, Montevidéu e Belém, são retratadas pelo fotógrafo brasileiro Iatã Cannabrava. As imagens foram feitas entre 2000 e 2009 e não se limitam a mostrar apenas as (mais que conhecidas) condições de pobreza desses lugares.

cinema Nascidos em Bordéis, de Zana Briski (Focus Filmes, 2004) A intenção inicial da inglesa Zana Briski era fotografar prostitutas do bairro mais pobre de Calcutá. Mas, durante sua convivência no bairro da Luz Vermelha da cidade indiana, encontrou nos filhos e filhas dessas mulheres as histórias que sustentariam a produção – que lhe rendeu o Oscar de melhor documentário, em 2005. A diretora colocou na mão das crianças câmeras fotográficas para registrar tudo o que chamasse atenção. O resultado é surpreendente.

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Da Rua ao Palco: O Balé de Uberlândia, de Zezo Cintra (Rede SescSenac de Televisão, 2008) Documentário traz a história e a dança do Balé de Rua de Uberlândia, em Minas Gerais. A produção mostra como o grupo incorpora ritmos populares, a exemplo do funk, em sua coreografia, além de apresentar o projeto social desenvolvido pela companhia, voltado a idosos e jovens carentes.


MÚSICA Formigando na Calçada do Brasil, de Coletivo Rádio Cipó (Tratore, 2008) O encontro do periférico com o central: é mais ou menos assim que se pode definir a sonoridade criada pelo Coletivo Rádio Cipó. Gêneros que se tornaram universais (rock, rap, dub e reggae) são misturados a ritmos regionais (funk de morro, samba e carimbó). Produzido em parceria com moradores de comunidades periféricas, o álbum conta com composições de músicos tradicionais, como Mestre Laurentino, Dona Onete e Mestre Bereco.

LITERATURA Rastilho da Pólvora, vários artistas (Cooperifa, 2004) Os saraus realizados em um bar da zona sul de São Paulo e promovidos pela Cooperativa Cultural da Periferia (Cooperifa) são uma ocasião propícia para apresentar a produção artística e cultural “escondida” nas margens do centro urbano. Resultado desses encontros, esta coletânea traz poemas feitos por 43 escritores amadores.

Punk: Anarquia Planetária e a Cena Brasileira, de Silvio Essinger (Editora 34, 1999) O livro acompanha a trajetória do movimento surgido na periferia de Londres, na década de 1970, até sua chegada ao Brasil. De uma forma leve, sem cair na tentação do academicismo, o autor examina como o punk foi recebido no país, suas fases e as bandas de destaque.

Site Formou o Bonde, de João Alegria (Canal Imaginário, 1994) Pegando carona na onda do funk, este documentário trata de forma bem-humorada de assuntos ligados ao comportamento sexual dos jovens da periferia carioca. Repleto de depoimentos de moradores de Vigário Geral, no Rio de Janeiro, o vídeo toma como base as expressões curiosas utilizadas nas músicas do gênero, como a do título dessa produção, usada quando um casal “fica”.

Kinoforum (kinoforum.org) No site da Associação Cultural Kinoforum, entidade que promove atividades audiovisuais, é possível assistir gratuitamente a centenas de produções que abordam os mais variados temas. Os vídeos, realizados por moradores de comunidades carentes, após oficinas, retratam, por meio de documentário ou ficção (ou uma mescla de ambos), histórias do cotidiano das periferias paulistas.

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deadline

O McFavela da diretoria Antes da falência, uma lanchonete serviu de espaço tanto para a inclusão social quanto para a contestação da realidade. Por Eduardo Lyra | Ilustração Clayton Cassiano As portas de aço baixadas e trancadas representam o fim de um começo inacabado. A superfície das letras do outdoor na entrada encoberta de poeira retrata o abandono. A ausência dos 12 jogos de cadeiras envernizadas que outrora ocupavam a calçada indica o desaparecimento de mais um espaço de convivência da comunidade União de Vila Nova, em São Miguel Paulista, zona leste de São Paulo. O passado, porém, nem de longe sugeria falência. A cena vista numa sexta-feira do mês de fevereiro de 2010 mostra o oposto: eram 21 horas e a noite convidava para um happy hour. Dentro do estabelecimento dezenas de famílias se deliciavam com os lanches, sob 12 lâmpadas presas ao teto, que, além de iluminar o ambiente, realçavam o amarelo-ouro das paredes que imitam o McDonald’s. Do lado de fora, um grupo de pagode tocava para mais de 200 pessoas que se aglomeravam dançando e cantando. Há quatro anos, o McFavela vinha sendo o ponto de encontro preferido do bairro. A lanchonete parecia mais uma forma de inclusão social do que um comércio motivado pelo lucro. O acúmulo de pessoas em frente ao número 225 da Rua Catleia impedia a passagem dos ônibus que fazem a linha Jardim Pantanal, como é conhecida a localidade. Eles eram obrigados a mudar o itinerário nos fins de semana, porém o faziam sem problemas, pois a festa era regida pela batuta da paz, espírito que contagiava a todos no entorno. Enquanto o pagode rolava solto na rua, dentro da lanchonete os pedidos fervilhavam no balcão de João Carlos Mergulhão. Os funcionários, com salário de R$ 650 cada um, corriam para não deixar ninguém chateado com a espera. Antes que um cliente fosse atendido, outro esbravejava: “Me vê logo aí um McLarica que eu estou com a maior fome”. O McLarica era o lanche mais procurado. O preço baixo e a variedade de ingredientes entre as bandas do pão ganharam fama, fazendo-o cair na graça da comunidade. O nome foi cunhado com clara intenção subversiva. Foi a opção pelo hilário nos trilhos da contestação social. Ao falar da lanchonete, o proprietário filosofa: “O McFavela foi adotado pela comunidade como forma de vivenciar os mesmos prazeres da classe média, porém sem abrir mão da sua realidade e de seus valores”. Contra a burguesia Localizado em frente a um córrego, o McFavela enfrentou duas enchentes, mas nem mesmo a invasão das águas perturbou o dono. Mergulhão diz que a lanchonete não foi criada apenas para existir, mas principalmente para

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gritar contra o sistema. Na porta do estabelecimento ainda se lê: “Em prol da comunidade. Fé em Deus”. Tudo na loja parecia contestar a estrutura de classes, e os frequentadores não deixavam por menos. Do lado de fora há uma pichação com letras garrafais: “O McFavela é contra a burguesia que despreza nós, que somos da periferia”. Mergulhão se apressava para servir o lanche, enquanto algum cliente faminto sempre gritava: “Me manda 1 McFavela, 1 McPicanha e 1 McLanche Infeliz, para o meu filho”. Talvez inconscientemente, o empreendedor, que ousou desafiar a multinacional, promovia uma interessante interseção de mundos. Sob os arcos do M plagiado, pessoas compartilhavam histórias, relatavam experiências e manifestavam dores, enquanto a camada de queijo derretia na quentura da chapa. O telefone tocava. A atendente anotava o pedido, a equipe aprontava e Mergulhão chamava o “gerente” para a entrega. O sistema delivery do McFavela dependia de bicicletas. Quatro funcionários se apressavam

uma eloquente afirmação de que a comunidade não tem vergonha de onde mora. O McPicanha mostrava descontração diante da adversidade, pois as pessoas do bairro acreditam que a picanha é carne para rico. O McLanche Infeliz, diferentemente do congênere rico, não vem com brinquedo. O cardápio esclarece: “Aqui nós tomamos o brinquedo da sua criança”. Mergulhão explica: “É uma aberração pagar R$ 12 por um brinquedinho fajuto, fabricado na China. Aqui era diferente: a criança comia e depois se divertia com as outras”.

Sob os arcos do M plagiado, pessoas compartilhavam histórias, relatavam experiências e manifestavam dores, enquanto a camada de queijo derretia na quentura da chapa. nas pedaladas para que o lanche não esfriasse na garupa, evitando a irritação do cliente. Cada entrega rendia R$ 2 ao entregador, preço da habilidade para desviar de buracos quase invisíveis sob a má iluminação das ruas. Determinados, eles davam freadas bruscas e arrancadas fortes sem perder a direção e o prumo. Em poucos minutos estavam de volta. Suados, mas prontos para mais uma incursão ao coração da favela. Mergulhão chama isso de integração social e geração de renda. Ele conta que Silmar, um dos “gerentes,” vivia pedindo lanche na porta da loja. Um dia teve a ideia de oferecer uma oportunidade às crianças que queriam comer, mas não tinham nem os R$ 2 necessários.

Porta baixada

Nas comandas iam anotados os pedidos com nomes que revelam a ideologia do lugar. O McFavela era

Eduardo Lyra é estudante do curso de jornalismo da Universidade Mogi das Cruzes.

A iniciativa de Mergulhão não passou despercebida ao McDonald’s, que o notificou exigindo que o M do outdoor e dos cardápios fosse retirado. Caso contrário, a rede multinacional moveria uma ação contra o estabelecimento. A ameaça não encontrou tempo para se tornar realidade, pois antes disso a porta de aço foi baixada, não pela Justiça, mas em decorrência de problemas de administração. No momento, o empreendedor tenta conseguir capital para reabrir o negócio. Na periferia, sempre há uma maneira de recomeçar uma história inacabada.

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ficção

O pecado mortal de Maria O que fazer para o povo acreditar que era uma pecadora de fato? Por Paulo Lins | Ilustração Karina Buhr No dia trinta e um de dezembro de dois mil e nove, Maria, católica fervorosa, resolveu mudar de vida: iria se tornar pecadora. Os velhos e os novos pecados da igreja católica, da umbanda, do candomblé e da religião evangélica nunca foram cometidos em seus sessenta e oito anos de vida. E sempre procurou saber quais eram os das principais religiões orientais para se manter pura nesta vida tão atribulada que Deus lhe deu. Foi forte quando abandonada pelo marido com os cinco filhos pequenos, na crise mundial de mil novecentos e oitenta e três. Os mais chegados diziam que ela iria, pelo menos, blasfemar. Manteve, no entanto, a cabeça erguida diante da fome, do despejo de casa e da doença do caçula. Quando todos pensavam que ela iria cair na gula assim que a vida melhorasse, consumiu apenas o suficiente para se manter em condições de trabalhar o dia todo na função de diarista e cumprir os afazeres domésticos de sua própria casa. Na enchente de mil novecentos e sessenta e seis, ao perder os móveis e a geladeira e ver o filho ser arrastado pela correnteza e sumir num bueiro, não derramou uma lágrima. Disse que a morte do menino foi vontade de Deus e sendo ele quem dá a vida só ele sabe a hora de tirá-la. Ao flagrar o marido, na cama do casal, em profundo sexo com sua única irmã, perguntou somente se um nutria amor pelo outro. Os dois responderam que não. – Sendo assim, que isso não mais se repita! – disse. E, dali para a frente, agiu como se nada tivesse acontecido, sem mágoa nem ressentimento. Não pecou nem mesmo quando contraiu dengue e não conseguiu vaga para se tratar nos hospitais públicos de sua cidade. Mesmo nas tensões pré-menstruais, de nove dias, mantinha-se serena, incapaz de levantar a voz em qualquer situação que vivenciasse. Quando criança, num rico colégio católico, quase cometeu um deslize ante a fúria disfarçada em brincadeiras inocentes: os colegas faziam chacotas de sua cor, de seu corpo gordo e de sua roupa pobre. Estudava ali porque fora contemplada, num sorteio, com uma bolsa. Logo, no entanto, abandonou os estudos por repetir várias vezes a terceira série – decorrência da péssima alimentação que recebia e do fato de ter de vender balas nos sinais de trânsito para ajudar a família.

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Os mais chegados diziam que ela iria, pelo menos, blasfemar. Manteve, no entanto, a cabeça erguida diante da fome, do despejo de casa e da doença do caçula. Quando todos pensavam que ela iria cair na gula assim que a vida melhorasse, consumiu apenas o suficiente para se manter em condições de trabalhar. Não pensem que fazia esforços para levar a vida sem pecar. Ela agia naturalmente, sem muito trabalho para não cometer esse ou aquele erro. Foi assim até agora, mesmo diante de toda discriminação que sofreu e sofre por ser mulher negra, favelada, gorda e de pouca instrução. O fato de não pecar nem mesmo era percebido pelos familiares e amigos. Maria era vista somente como uma pessoa boa, equilibrada e generosa. Só descobriram que não era pecadora quando o padre Mário Barata, recém-ordenado e designado para a paróquia da favela havia pouco mais de um ano, revelou durante a missa que nas confissões de Maria não havia pecado a ser denunciado.

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Logo na saída da igreja, Maria foi cercada por homens, mulheres e crianças com os quais não tinha relação de amizade. As pessoas se ajoelhavam à sua frente, beijavam suas mãos, pediam conselhos. Curiosos se aproximavam numa aglomeração que tomou proporções gigantes atraindo a atenção de policiais que passavam em ronda. Sem saber o que estava acontecendo, atiraram como de costume, nos últimos tempos, matando duas crianças. Maria se sentiu responsável pelas duas mortes. Ficou revoltada com o governador, que afirmou, na televisão, terem os disparos partido das armas de bandidos que atacaram a viatura, ocasionando uma troca de tiros com os soldados da polícia militar. Maria o perdoou, porém, como os demais moradores, deu a versão correta à imprensa. Fizeram manifestação pacífica na entrada da favela. Mas não deu em nada, pois a polícia prendeu um pseudotraficante, dias depois, dizendo que ele havia confessado a autoria dos disparos e apresentado a arma que teria usado.

O tempo foi seguindo em desassossego para Maria depois que caiu nas garras dos paparazzi e ganhou destaque na impressa como a mais nova santa brasileira capaz de efetuar milagres. A notícia de que havia uma santa numa favela brasileira correu pelo planeta. Centenas de pessoas, de todas as partes do mundo, faziam vigília na porta de sua casa, a despeito de o padre afirmar todos os dias na missa – ordenado pela cúpula da igreja católica carioca – que Maria cometera pecados de fato e que tudo não passara de um engano. No entanto, durante as vinte e quatro horas dos dias, doentes de toda sorte, cegos, paraplégicos, surdos, mudos apareciam na esperança de alcançar uma graça da Santa Maria da favela do Urubu Branco. Maria teve de sair de casa e esconder-se numa ínfima cidadezinha no interior do estado do Rio de Janeiro. Lá teve alguns dias de paz, mas logo foi descoberta, e a pequena São Jackson foi invadida por romeiros de todo o mundo.

Durante as vinte e quatro horas dos dias, doentes de toda sorte, cegos, paraplégicos, surdos, mudos apareciam na esperança de alcançar uma graça da Santa Maria da favela do Urubu Branco. Os milagres começaram a aparecer. Não que ela tivesse esse poder, mas alguns gaiatos, em troca da fama instantânea na televisão e nos jornais, se diziam curados desse ou daquele mal só por tocarem em alguma parte do corpo ou da roupa de Maria. Sair do Brasil. Essa foi a melhor opção que amigos e parentes lhe deram. Mas... ir para onde? Com quais recursos? Como se manter fora do país? Todo brasileiro tem parentes em Portugal. E assim aconteceu, tiraram passaporte e lá se foi ela, escondida de todos, para a terrinha. Amigos e parentes lhe mandariam dinheiro até a poeira abaixar.

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Maria provou novamente da tranquilidade do anonimato, essa coisa de ser santa não era para ela. A prima morava numa vila de paralelepípedos e casinhas coloridas com vasinhos de planta na frente. Tudo era de uma beleza encantadora. Tereza afirmou que sua boca era um túmulo e jamais iriam perturbá-las naquele pequeno paraíso. No início eram só prosas sobre os antepassados portugueses. Maria se sentia um tanto sem graça por desconhecer o nome dos bisavôs índios e também dos africanos. Ficava ali ouvindo coisas de duzentos anos da parte portuguesa da família. No avião, foi reconhecida por alguns passageiros e teve de distribuir autógrafos, tirar fotos, falar por que nunca tinha pecado. Dava explicações sem muita certeza do que estava dizendo e deixava isso claro porque nunca mentiu em toda a sua vida. Há pouco tempo, preto não era gente para a igreja. Como poderia imaginar que o mundo todo pudesse acreditar que ela fosse santa se nem mesmo possuía o perfil dos gregos? Ou mesmo os olhos azuis dos anjos? Sem ter cabelos louros? Tudo bem que Obama fora eleito nos Estados Unidos, mas presidente é uma coisa, santa é outra. Já existiam Nossa Senhora Aparecida e São Benedito. Um é pouco, dois é bom, três é demais. “Pessoal bobo”, pensava. Cascais é um lugar tranquilo em Portugal. Tereza, a prima de terceiro grau, ficou feliz em poder acolher Santa Maria num momento tão atribulado em sua vida.

Passeou por Cascais, andou por outras cidades, mas a saudade de casa, dos filhos lhe apertava. Ficou ainda mais preocupada quando viu no noticiário que sua favela estava quase submersa, inundada pela chuva incessante que caíra durante todo o mês de novembro estendendo-se até o início de dezembro. Era um sem-fim de famílias desabrigadas, pessoas levadas para a morte pela correnteza, crianças desaparecidas. Resolveu voltar para passar a virada do ano com a família, já que ficaria no Natal com Tereza. Pretendia ajudar os parentes e os vizinhos na reconstrução dos barracos e na limpeza, contando que a chuva desse uma trégua no final de dezembro. Comunicou à prima que voltaria para romper o ano no Brasil, mesmo com os jornais escrevendo sobre a Santa Maria desaparecida e com o assédio dos paparazzi, que montavam guarda na porta de seu barraco.

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Tereza não saía da internet em busca de notícias sobre a prima, que pululavam nos sites brasileiros e de outros países. Por mais que quisesse ser discreta, não resistiu ao fato de estar com uma pessoa que era falada no mundo todo sem ninguém saber. Viu, na prima de terceiro grau, a possibilidade de ser também uma celebridade. Tereza levava uma vida pacata de publicitária arrependida por ter sempre enganado o povo. “Ossos do ofício”, lamentava, tentando se justificar. Nunca fez nada em sua vida que realmente tivesse valor. Na juventude, enchia a cara no Bairro Alto, nas orgias sem limites, gastando o dinheiro escuso que ganhava na publicidade. Agora, estava na hora de dizer ao mundo que era prima da santa brasileira e não haveria data melhor do que o dia vinte e quatro de dezembro para presentear a comunidade portuguesa com essa revelação. Uma santa brasileira iria bombar o Natal de Lisboa. Foi ao correio e enviou telegrama a um jornal revelando que a Santa Maria estava escondida ali em Cascais. É certo que poderia ter passado um e-mail falso, mas teve medo de ser descoberta; pensou em ligar de um telefone público, mas também se sentiu ameaçada. Ela mesma não sabia explicar por que considerava o telegrama a comunicação mais segura e que melhor protege a identidade do remetente. Em menos de uma hora os fotógrafos clicavam fotos de Santa Maria numa rua de Cascais enquanto o repórter a enchia de perguntas. Logo, a notícia estava no site do Jornal Camões. Em duas horas, centenas de fotógrafos e jornalistas infernizavam a vida de Maria, que conseguira passagem para o Brasil somente para o dia trinta de dezembro. Os dias que antecederam a viagem foram de insônia. Curiosos, enfermos, religiosos, jornalistas correspondentes de toda parte do mundo estavam sediados na porta da casa de Tereza, à espera de algum milagre, exatamente como acontecera em sua terra natal.

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Na viagem de volta, Maria teve a brilhante ideia de pecar em praça pública diante dos fotógrafos e das câmeras de televisão. – É só pecar na frente de todo mundo, depois eu me arrependo, confesso ao padre, pago a penitência e estou inteirinha de novo. Como fui burra... Mas qual seria o pecado? O que fazer para o povo acreditar que era uma pecadora de fato? Contra os dez mandamentos não iria de jeito nenhum, pois, segundo a Bíblia, Moisés os recebera diretamente de Deus, em duas tábuas de pedra. E ela jamais iria contra o que Deus designara.

Maria chegou à favela gritando para todos que a seguiam que iria pecar. Urubu Branco estava um transtorno, havia as marcas e os estragos das enchentes por todos os lados e, mesmo assim, lá estavam os jornalistas do mundo inteiro e os doentes de toda sorte à sua espera. – Chama o padre! Chama o padre! Quero pecar na frente dele! Assim que o padre chegou, Maria entrou em casa, encheu um saco enorme de lixo, saiu em direção ao rio e o atirou dentro d’água.

Fazer o que de errado para acalmar o povo? Matutou, matutou e se lembrou de que a igreja tinha lançado outros pecados. Sim, iria escolher um desses, pois pecado novo Deus relaxa e goza, visto que os fiéis ainda não se acostumaram. Mas qual deles? Poderia praticar algum pecado da igreja evangélica, da umbanda ou do candomblé, mas aí não surtiria muito efeito, pois quem não é praticante dessas religiões não as leva muito a sério. Também não cometeria nenhum dos sete pecados capitais porque, desde o final do século VI, o Papa Gregório os incorporou nas leis da igreja. Eram muito antigos para ser descumpridos. Fazer o que de errado para acalmar o povo? Matutou, matutou e se lembrou de que a igreja tinha lançado outros pecados. Sim, iria escolher um desses, pois pecado novo Deus relaxa e goza, visto que os fiéis ainda não se acostumaram. Mas qual deles? Bom, fazer modificação genética estava fora de seu alcance, causar injustiça social não daria para ela, causar pobreza jamais! Tornar-se extremamente rica era impossível, usar drogas também. O negócio era poluir o meio ambiente, pois um saco de lixo a mais não iria aumentar o risco de o planeta acabar.

– Pecadora! Agora você é uma pecadora como todos nós! – festejou o padre com passos de funk. Os enfermos foram saindo num desengano só. A imprensa também se retirou. O padre abraçou Maria em agradecimento pela sua atitude. Aliviada, Maria ia quase chegando em casa quando recebeu um tiro na nuca que a levou desta para uma melhor. Fernando Aspas, chefe do tráfico da favela, prometera que mataria qualquer um que jogasse lixo no rio, porque na última enchente seus filhos foram arrastados pela correnteza. Ele acreditava que se o povo não tivesse feito o rio de lixeira seus filhos não teriam morrido. Ninguém, a partir daí, jogou lixo no rio, nunca mais houve enchente e todos foram felizes para sempre. Paulo Lins é autor de Cidade de Deus (Cia. das Letras, 1997) e de roteiros para cinema e TV.

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convocação

Veja-se aqui

A segunda forma de participar é direcionada aos estudantes universitários, que podem enviar projetos de reportagens para a redação. A cada edição, um dos projetos é selecionado e seu autor realiza a reportagem, que é publicada na seção Deadline. Por fim, a revista está aberta ao comentário do leitor, inclusive à sugestão de pautas ou temas para as edições, desde que enquadrados no universo da arte e da cultura. Como enviar sua contribuição? Para a Área Livre e a Deadline, o e-mail é participecontinuum@itaucultural.org.br. Para comentários e sugestões, o endereço é continuum@itaucultural.org.br. É bom lembrar que para ambas as seções há prazos e condições que ficam estabelecidos aqui, e também podem ser consultados no site da revista itaucultural.org.br/continuum. É lá, por exemplo, que colocamos a cada edição uma Convocatória e o Regulamento para que os estudantes enviem seus projetos de reportagem. Agora que está tudo esclarecido, você já pode começar a pensar no trabalho que vai nos mandar. Para a edição de agosto-setembro, o tema é Futebol. E o prazo para envios de trabalhos começa agora e vai até o dia 10 de setembro. *** Opa, antes de encerrar nossa conversa, vale reforçar mais um aviso: desde março, a Continuum encerrou a promoção que garantia a todos a inserção no mailing da revista. Mas fique tranquilo, se você solicitou antes dessa data o recebimento gratuito, sua entrega está garantida por tempo ilimitado!

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Ilustração [detalhe]: Virgílio Neto

Desde seu surgimento, há três anos, a Continuum se preocupou em estabelecer um contato permanente com seus leitores. Hoje, ele se dá em três momentos diferentes. Qualquer pessoa que quiser contribuir com a revista pode enviar trabalhos artísticos, como contos e ensaios de até 5 mil caracteres, poemas, ilustrações e fotos. Após analisados, e se estiverem de acordo com o tema de cada edição, eles poderão ser publicados tanto na revista em papel quanto na versão para internet, na seção Área Livre.


área livre

Periferia, ilustração de Raquel Krϋgel

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Gravuras Digitais – Série Visão Periférica, de Wilson Inacio

Maquetes – Periferia, de Lourenço do Carmo

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Fragmentos da Panor창mica, fotos de Arthur Rampazzo Roessle

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| foto: M arcos B onisson


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