Crítica em Movimento \ Estados da crítica de dança

Page 1

3

crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

1


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

Memória e Pesquisa | Itaú Cultural Crítica em movimento: estados da crítica de dança / organização Itaú Cultural; [textos Valmir Santos, Rosa Primo, Carlinhos Santos e Daniel Fagus Kairoz]. - São Paulo : Itaú Cultural, 2021. - (Crítica em movimento ; 3) 621 Kb ; PDF ISBN 978-65-88878-07-1 1. Crítica. 2. Artes da cena. 3. Teatro. 4. Dança. 5. Circo. I. Instituto Itaú Cultural. II. Título. CDD 792.015 Bibliotecário Jonathan de Brito Faria - CRB-8/8697

2


PT

Transformações da prática e do pensar crítico Valmir Santos

__ 4

Corpo dançante: de uma a outra imagem Rosa Primo

__ 10

Sobre os estados intermitentes da crítica Carlinhos Santos

__ 20

Dançar na encruzilhada Brasil Daniel Fagus Kairoz

__ 28

Endereços na internet

__ 44

Ficha técnica

__ 46

Versión en español

__ 48

3


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

Transformações da prática e do pensar crítico 1. Jornalista, crítico e cocurador do Crítica em Movimento. Idealizador e editor do site Teatrojornal – Leituras de Cena desde 2010. É doutorando em artes cênicas pela Universidade de São Paulo (USP), onde também realizou mestrado na mesma área.

Valmir Santos1

A fortuna crítica de uma obra corresponde ao campo de pensamento que ela instaurou quando veio a público editada, gravada, filmada, esculpida, pintada, apresentada, performada. Os oito cadernos concebidos especialmente para a quarta jornada Crítica em Movimento desejam inverter um pouco essa expectativa ao articular 24 textos no âmbito justamente do fazer crítico. São visões heterogêneas do que consiste e de como se desdobra ante criações em circo, dança e teatro, com variantes para intervenção e performance. Sabemos o quanto as circunstâncias históricas, sociopolíticas e culturais envolvem praticantes e partícipes, artistas, pesquisadores e, claro, espectadores-leitores. Realizado anualmente desde 2017 pelo Itaú Cultural (IC), o ciclo de debates foca a recepção às artes da cena e o imprescindível diálogo entre públicos, criadores e críticos. Em 2021, neste periclitante contexto da pandemia, o estímulo ao pensamento contorna a impossibilidade do encontro presencial por meio da veiculação de conteúdos reflexivos em texto e podcast. Além de ampliar o acesso, busca-se perenizar as discussões das três edições passadas, que abordaram a prática da crítica à luz de problemas desse ofício, inclusive combinadas com apresentações de espetáculos. Entre as pautas abarcadas estavam a precarização do trabalho no âmbito do jornal impresso e a busca pela sustentabilidade em contraponto ao mero diletantismo; o consistente avanço da análise na internet com ganas de reinvenção de estilo; e a adoção de novos procedimentos e de ideias consonantes com os estudos universitários e a inquietude da cena brasileira contemporânea. Também foram abordadas as realidades sociais de sujeitos colocados à margem e ancorados na dramaturgia de Plínio Marcos, bem como um recorte latino-americano e caribenho, com obras e reflexões de representantes da Argentina, do Chile e de Cuba. Dado o insólito cenário do ano anterior, marcado pela irrupção global do novo coronavírus, uma das alternativas foi a publicação on-line com oito itinerários de escritas realizadas por 25 pessoas do universo das artes da

4


\editorial

cena. Cada volume enfeixa três análises estimuladas pelos seguintes motes: 1) o papel da crítica de teatro no Brasil: do jornal impresso à plataforma digital; 2) o vão entre a crítica e o circo; 3) estados da crítica de dança; 4) espaços digitais empenhados em artes cênicas; 5) a dificuldade da crítica em contracenar com o teatro de rua; 6) a cena engajada no contexto contemporâneo; 7) teatros peculiares na mão dupla com Cuba e Brasil; e 8) panorama do teatro latino-americano visto da ponte. Neste terceiro caderno, você percorre o tema “Estados da crítica de dança”, abordado por pessoas afeitas a essa arte nos campos da criação, da pesquisa e da crítica no Ceará, no Rio Grande do Sul e em São Paulo. Ao discorrer sobre “tempos de crueldade”, que vão do 11 de Setembro estadunidense à dantesca votação do impeachment de Dilma Rousseff, golpe parlamentar sacramentado a 17 de abril de 2016, na grita de deputados e deputadas federais ao microfone “Pelo meu pai, pelo meu filho, pela minha família”, a pesquisadora em dança, bailarina e professora Rosa Primo (CE) mencionou: “Difícil esquecer essa imagem que nos mobilizou a olhar. Daí por diante insisto no fato de que aquilo que o olho absorve de uma imagem é sempre mais que seu objeto físico”. Lapidar, para tanto, a sua definição da arte que orientou seu existir. “A dança inventa maneiras de não fazer fazendo, de fazer sem fazer ou de fazer de outra maneira, revertendo seu sentido. Ela explora suas próprias motivações, interroga-se, articula-se a outros movimentos artísticos, engaja-se numa reflexão em torno de sua própria história, cria maneiras de ver o mundo e revelar-se em sua lógica coreográfica. Trata-se de um percurso de intensidades que, longe de equivalerem, ocasionam uma avaliação permanente. Daí a resistência. Contudo, um resistir que não designa uma capacidade de suportar; tampouco capacidade de conter. A dança, para resistir, encrava o corpo – vê-o, devasta-o com o pensamento; e dissolve-o de tal maneira que não haja um dentro e um fora”, elaborou a professora dos cursos de licenciatura e bacharelado em dança da Universidade Federal do Ceará (UFC). “A dança, radicada no sujeito, torna-se prioritariamente um espaço de circulação de potencialidades e virtualidades, um espaço de tensão entre um corpo ainda por construir e um corpo fruto de uma interação complexa de

5


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

forças. Em causa estão, portanto, processos de construção de um corpo cuja referência se compõe de estruturas complexas da subjetividade – e não um componente centrado no indivíduo como sujeito pessoal. Entender o corpo dançante, nessa perspectiva, pode-se dizer somente possível em sua mobilidade, modificação e estrutura transitória. [...] na dança o corpo acolhe o intensivo; trabalha em si a dinâmica intempestiva dos acontecimentos”, decupa de maneira brilhante Rosa, sua porção artística dando a ver como a análise pode sorver aqui pistas para um estimulante programa de crítica em dança. O jornalista e crítico de dança Carlinhos Santos (RS) relata suas experiências pontuais do exercício da crítica em contextos de festivais e mostras de dança, oficinas e sites de crítica. “Trata-se de olhar ao Sul, como pede Boaventura de Souza Santos, que referencia a potência de percursos não centralizados. Esse dado deve ser considerado no sentido da desconstrução de uma única perspectiva do exercício da crítica, mas atento a diferentes contextos e realidades que pedem igualmente olhares específicos, discursos e leituras pontuais a partir de um recorte reticular”, pondera. “Também porque citamos desde o começo desta escrita a palavra diversidade, cabe ainda refletir sobre qual é o campo fértil para a escrita crítica sobre dança na atualidade, suas bandeiras e seus projetos. Nesse aspecto, atentos à premissa urgente da descolonização dos discursos, é preciso abrir espaço para a discussão e a inserção de estéticas e poéticas que ainda seguem invisibilizadas. Cabe cada vez mais à crítica buscar temas que se confrontem com as lógicas do projeto colonialista”, defende Santos. O artista transdisciplinar e crítico de dança Daniel Fagus Kairoz (SP) imprime rupturas gramaticais na estrutura de seu texto, como a ausência de vírgulas e pontos. Vale-se de intervalo de espaço em branco em determinadas passagens, a ver com o ponto de mutação narrativa, como se fosse numa página impressa diagramada. Após referir-se “ao que conhecemos pelo nome de mundo ocidental e que traz junto de si também o Oriente, que nada mais é que a invenção de um outro, espelho de si”, conclui: “São de admirar os gestos as danças os complexos movimentos de todos esses que se dedicaram a dizer de forma crítica seu próprio mundo – tenho muito a agradecê-los e reverenciá-los muito me alimentam e alimentaram são também meus mais velhos – mas precisamos reconhecer que,

6


\editorial Transformações da prática e do pensar crítico

apesar de seus humanos demasiado humanos esforços, apenas epistemologias outras – Bantu-Kongo Yorubá Jêje Indígenas, para ficarmos na principal encruzilhada que sustenta esse país Brasil – podem realmente num só golpe abalar as estruturas do edifício ocidental e dar voz e vez a outros mundos”. Os demais escritos para a publicação on-line são assinados pela atriz Alice Guimarães, do Teatro de Los Andes (Bolívia); pela atriz e especialista em circo Alice Viveiros de Castro (SP); pelo encenador Altemar Di Monteiro, do grupo Nóis de Teatro (CE); pelo artista-pesquisador e professor chileno radicado em Fortaleza Héctor Briones (CE); pela docente, produtora e gestora cultural Andrea Hanna (Argentina); pela atriz e pesquisadora teatral Camila Scudeler (Colômbia); pelo ator e crítico de teatro Diogo Spinelli, do site Farofa Crítica (RN); pelo ator, diretor e professor de teatro Edson Fernando, do site Tribuna do Cretino (PA); pela professora e pesquisadora em circo Erminia Silva e pelo pesquisador Daniel de Carvalho Lopes, ambos do site Circonteúdo (SP); pela artista Fátima Pontes, coordenadora-executiva da Escola Pernambucana de Circo (PE); pelo ator e diretor Fernando Cruz, do Teatro Imaginário Maracangalha (MS); pela jornalista e crítica de teatro Ivana Moura, do blog Satisfeita, Yolanda? (PE); pelo ator e pesquisador teatral Lindolfo Amaral, do Grupo Imbuaça (SE); pelo diretor Luis Alonso-Aude, do grupo Oco Teatro Laboratório e do Festival Internacional Latino-Americano de Teatro da Bahia (FilteBahia/BA); pelo pedagogo, crítico de teatro e pesquisador Luvel García Leyva (Cuba); pela atuadora e pesquisadora Marta Haas, da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (RS); pela atriz e ativista cultural Nena Inoue (PR); pela diretora e dramaturga Fernanda Júlia Onisajé, do Núcleo Afrobrasileiro de Teatro de Alagoinhas (BA); pela jornalista e crítica de teatro Pollyanna Diniz, do blog Satisfeita, Yolanda? (PE); pelo crítico de teatro e jornalista Macksen Luiz (RJ), atuante no Jornal do Brasil (1982-2010), tendo iniciado seu blog em 2011 e colaborado em O Globo (2014-2018); e pela artista-pesquisadora e professora Walmeri Ribeiro, do projeto Territórios Sensíveis (RJ). Como se vê e se lê, é uma produção textual que se pretende geográfica e ideologicamente não hegemônica. Ela se derrama sobre o fazer crítico, suas potências e impasses nesta quadra da história do Brasil, em que as já insuficientes políticas públicas para as artes e a cultura enfrentam ataques beligerantes.

7


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

Escuta ativa Em simbiose com os cadernos, o podcast Crítica em Movimento chama o público em geral a também ativar a escuta reflexiva por meio de cinco episódios. Cada um deles introduz uma pergunta a seus convidados. No primeiro, o crítico de teatro e jornalista Macksen Luiz e a crítica de teatro, pesquisadora e artista Daniele Avila Small, da Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais, de distintas gerações e ambos atuantes no Rio de Janeiro, respondem à questão: “Quais são os enfrentamentos da prática da crítica de teatro hoje?”. Esse é um tópico que perpassa a precarização do trabalho remunerado, a migração do fazer crítico para a internet e como expandir a conversa com públicos, artistas e gestores culturais, e é mediado pelo jornalista e crítico de teatro que escreve estas linhas. No segundo episódio, a pesquisadora, artista e docente Lourdes Macena (CE) e o ator e diretor Rogério Tarifa (SP) discutem como a crítica se relaciona com a noção do popular nas artes cênicas, mediados pelo pesquisador e professor Diógenes Maciel (PB). Um diálogo acerca da recepção às expressões culturais emanadas do povo, muitas vezes em oposição ao conhecimento formal, às normas e às ambições dos poderes políticos e econômicos em jogo na sociedade. Qual é a percepção de quem cria a respeito do trabalho da crítica? Eis o ponto do terceiro episódio. Para respondê-lo, foram ouvidos artistas de coletivos cênicos dos mais longevos do país: a atuadora Tânia Farias, pela Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, fundada em 1978, e o dramaturgo e diretor Edyr Augusto Proença, pelo Grupo Cuíra (PA), que teve início em 1982. A mediá-los, a pesquisadora, performer e jornalista Maria Fernanda Vomero (SP). Tal triangulação vai sondar como as respectivas criações são miradas por quem escreve crítica em suas regiões ou para além delas, uma vez que as realidades social, política e econômica do Brasil apresentam contrastes e convergências. A pesquisadora e docente Walmeri Ribeiro (RJ) e o ator Pedro Wagner, do Grupo Magiluth (PE), ruminam sobre como exercer olhares e escutas a partir da cena remota. A crítica de teatro e jornalista Luciana Romagnolli, editora do site Horizonte da Cena (MG), medeia os desafios da análise diante dos procedimentos artísticos que emergem dos tempos atuais e abrem precedentes para uma nova ideia de presença e corpo mediado.

8


\editorial Transformações da prática e do pensar crítico

Por fim, o último episódio discute qual é o lugar da resistência na formação da crítica a partir do olhar de Henrique Saidel (RS) e Dodi Leal (BA), artistas que radicam pesquisa, criação e docência em suas lidas cotidianas. Sob intermediação da jornalista, crítica de teatro e professora Julia Guimarães (MG), os artistas prospectam de que maneira o estudo e o exercício da crítica podem implicar procedimentos de escrita e de pensares tão expandidos quanto a pulsante produção contemporânea. O programa pode ser acessado no site itaucultural.org.br ou tocado no seu aplicativo de podcasts favorito. Evoé.

.:. Este texto é de exclusiva responsabilidade de seus autores e não reflete necessariamente a opinião do Itaú Cultural.

9


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

Corpo dançante: de uma a outra imagem 1. Professora dos cursos de licenciatura e bacharelado em dança da Universidade Federal do Ceará (UFC). Doutora, com estágio em dança na Universidade Paris 8. Líder do Grupo de Pesquisa Concepções Filosóficas do Corpo em Cena [Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)]. Foi coordenadora de dança da Secretaria de Cultura de Fortaleza. Autora de A Dança Possível: as Ligações do Corpo numa Cena (Expressão Gráfica e Editora Ltda., 2006). Desde 2014 desenvolve pesquisa em solos com colaboração de outros artistas. Em 2018 estreou Iracema (infantil) e Tudo Passa sobre a Terra, cuja temática foca o feminicídio e o etnocídio dos povos indígenas.

2. Como também ocorreu no trabalho Iracema, no qual essa memória visual buscou um gestual de minha avó para dar conta da porção indígena que espero ter e guardar sempre e continuamente em mim.

10

Rosa Primo¹

Uma imagem é sempre mais Eu poderia começar este texto lembrando o 11 de Setembro. Difícil esquecer essa data, que fez cair por terra um projeto de proporções gigantescas, derivando daí uma nova ordem discursiva caracterizada pelas batalhas econômicas, políticas e bélicas. Contudo, inicio com o 17 de abril de 2016, que, com suas diferenças alargadas, também traz à cena a queda de um projeto, derivando daí um pacto instalado cujo lema positivista “Ordem e progresso” – já conservador quando proclamaram a República, no final do século XIX – igualmente instaura um novo discurso. Um novo discurso caracterizado pela “pacificação”, na qual a proposta é cada um voltar a ocupar seu lugar racial e social, como se essa fosse a organização natural das coisas – uma trama arquitetônica de caráter econômico, sobretudo político, mas também assustadoramente religiosa. “Se há algo pouco compreendido e investigado no Brasil é o crescimento das igrejas evangélicas” (BRUM, 2016). Pois bem, em 17 de abril de 2016, por 367 votos favoráveis e 137 contrários, a Câmara dos Deputados aprovou a admissibilidade do processo de impeachment da presidente Dilma Rousseff, processo que a partir daí seguiu para o Senado para a decisão final que a tirou da Presidência. O fato em si parece fazer parte dos procedimentos políticos, como algo que se encontra conforme se procura, mantendo uma funcionalidade própria. Contudo, o que salta aos olhos nesse desdobramento é o palco armado diante daquele cenário formado pelos 513 deputados ao microfone: “Pelo meu pai, pelo meu filho, pela minha família”... Difícil esquecer essa imagem que nos mobilizou a olhar. Daí por diante insisto no fato de que aquilo que o olho absorve de uma imagem é sempre mais que seu objeto físico. Minha memória visual – algo que persiste em meus trabalhos, sobretudo sendo professora dos cursos de licenciatura e bacharelado em dança na Universidade Federal do Ceará (UFC), ou mesmo quando envolvida em processos de criação² – revisita uma corporeidade afligente, que daquele dia 17, cujo


lamento entoava um “tempos difíceis”, me chega hoje como algo próximo a um mundo que ainda não aprendemos a olhar. Mais do que ver, olhar força uma atenção singular na qual o corpo solicita um estado de presença diferenciada, intensa, concentrada, amplificada: tempos de crueldade. Tempos de crueldade não se confundem com a abominação da tortura, mas ambas interrogam um aspecto profundo do corpo: sua potência de resistir. Resistir é um termo que, a depender do contexto, possui diferentes configurações. Resistência, para os habitantes das cidades, é algo diverso da resistência dos habitantes da floresta, sobretudo num país como o Brasil, marcado por diferenças abissais em termos de estruturas e condições de vida. Mas, em ambos os casos, solicita-se um corpo possível de dar conta de uma realidade que insiste em existir, em sua dureza e compressão. O que seria essa realidade que chamo de “tempos de crueldade”? Antes de tudo um tempo em diferença a “tempos difíceis”. A dificuldade dos tempos difíceis se faz presente sustentada em um porvir, espécie de visibilidade em perspectiva, abstrata, presa numa atmosfera temporal. Os tempos difíceis – que já estavam ali pedindo passagem antes mesmo do ano de 2016 – revelaram-se naquele dia 17 como um arrastão, do qual nada sobrou; uma ventania que tomou de assalto nossos territórios existenciais. E então a pergunta “Há mundo por vir?” deixou de ser retórica. Desde então, a crueldade invadiu nossas vidas, sustentada na carne, fazendo-se presença – uma realidade que vem tomando espaço, contaminando nossos solos e nos colocando diante do desmoronamento de nossos eixos referenciais, seja a partir de condições políticas, socioeconômicas e/ou ambientais. Um possível entendimento de tal crueldade só pode ocorrer porque do corpo o sentido se faz. Por “crueldade do real” entendo, em primeiro lugar, é claro, a natureza intrinsecamente dolorosa e trágica da realidade. [...] basta-me lembrar aqui o caráter insignificante e efêmero de toda coisa no mundo. Mas entendo também por crueldade do real o caráter único, e consequentemente irremediável e inapelável, desta realidade – caráter que impossibilita ao mesmo tempo de conservá-la à distância e de atenuar

11


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

seu rigor pelo recurso a qualquer instância que fosse exterior a ela. Cruor, de onde deriva crudelis (cruel) assim como crudus (cru, não digerido, indigesto), designa a carne escorchada e ensanguentada: ou seja, a coisa mesma privada de seus ornamentos ou acompanhamentos ordinários, no presente caso a pele, e reduzida assim à sua única realidade, tão sangrenta quanto indigesta (ROSSET, 2002, p. 17). Trata-se de tempos marcados por exclusões, forças reativas, conservadoras, capitalistas. Em meio a isso, a covid-19, seus protocolos, o uso das tecnologias e as desigualdades estruturais. Tais conjunturas exigem outros corpos e subjetividades. A dança é, nesse sentido, lugar privilegiado: tem importância decisiva por ser uma arte do corpo pelo corpo. Trabalhando nele mesmo é que o corpo devém dança, num processo permanente de invenção de si e do outro. O trabalho sobre si mesmo mobiliza uma atenção diferenciada, movimentando um tipo de visualidade que podemos definir, a partir de Gilles Deleuze e Felix Guattari, como háptica, induzindo uma percepção mais tátil do que visual, uma percepção próxima, funcionando pelo tato. Trata-se de um olhar mais atento à superfície, aos detalhes, aos pequenos eventos que emergem na imagem. Nesse exercício de estar diante de si mesmo, a percepção nos mostra que a imagem é sempre mais do que aquilo que se vê. Há, portanto, a necessidade de frequentar esse olhar. Aprender a olhar, sobretudo para potencializar e construir um corpo possível de sustentar as forças que convocam à realidade. Uma imagem é sempre menos Dar conta dessa realidade que se expressa de modo singular no contexto das artes é tarefa necessária. Muitos artistas estão passando por uma série de dificuldades, desde financeiras até existenciais. Creio que, diante das intempéries que temos enfrentado, a área das artes talvez seja uma das mais prejudicadas. No contexto da dança, os trabalhos vêm sendo produzidos e apresentados a partir de plataformas digitais. Isso desde já nos coloca grandes desafios: como manter a potência promovida pela troca

12


Corpo dançante: de uma a outra imagem

presencial perante o cenário de pandemia que impõe o distanciamento e o confinamento de corpos dissociados do convívio social? Em outra perspectiva, como abrir possibilidades de reinvenção para esses corpos que dançam, hoje submetidos a uma espécie de violência, de impedimento (impeachment)? Como criar, a partir desse interdito, outras formas de existir e de mobilizar forças de enfrentamento dessa violência? Insisto na condição de sustentar o devir, mantendo acesa a possibilidade do próprio corpo e de sua redescoberta – em sua potência de olhar-se. A relação com as plataformas digitais nos remete à dimensão da presença em meio aos limites impostos pela produção da imagem. Diante disso, não faltarão argumentos em torno da questão a partir de aspectos negativos. Ressaltarão a tendência ao reducionismo do vídeo em relação ao espetáculo, em razão da mudança do tridimensional para o bidimensional ou em consequência do enquadramento – na perspectiva de que a imagem é sempre menos que a presença. De fato, como vem sendo discutido historicamente na videodança, há uma mudança de status significativa entre o que é filmado e o espetáculo em si. Mas a questão central é pensar na possibilidade de construção de novas formas de olhar através da câmera – e creio que, para os artistas da dança, esse olhar (háptico) percorreu, e percorre, lugares ínfimos, sutilezas despercebidas, objetos quase inexistentes que no dia a dia compunham a ordem de suas casas. Para muitos, talvez, o primeiro empecilho diante da pandemia: tanto tempo dentro de casa. Para os artistas, talvez, o primeiro impulso em reconhecer-se de outro modo. Os objetos que antes compunham os espaços cotidianos, mantendo e garantindo a função habitual de lar, passam a suscitar um sentimento de estrangeiridade. A percepção das coisas e de sua ação induz processos de invenção de si e do outro – dissociando a funcionalidade estrita dos objetos e desmontando a utilização dos espaços estabelecidos como de uso apropriado. Toda a casa se move como desejo de restabelecer um contato mais sensível e corporalizado com os objetos e com as imagens em si mesmas. A casa passa a ser, então, lugar de invenção e experimentação. Nela, as imagens não somente são observadas, mas também observam: “A sensação é que sou observado pelas imagens”, diz Felipe Querino, um dos contemplados em dança pelo I Edital Festival Cultura Dendicasa³: Arte de Casa para o Mundo, realizado pela Secretaria da Cultura do Estado do Ceará (Secult) durante o mês de abril de 2020.

3. Realizado em 19 dias, do processo de seleção aos 400 projetos aprovados, entre os mais de 1.700 inscritos, o edital é uma ação pontual no contexto de isolamento social que impactou sobremaneira o campo artístico e cultural, e seu objetivo está centrado em promover e movimentar a economia artística, criativa e cultural do Ceará diante da situação de emergência e enfrentamento ao coronavírus, incentivando a sustentabilidade de artistas, grupos, coletivos, companhias e demais profissionais e empreendimentos culturais do estado. Atendendo a apenas uma parte das demandas apresentadas pelos fóruns de linguagens e segmentos culturais, com vistas a fomentar conteúdos artísticos para difusão em plataformas diversas, o edital contou com um investimento de 1 milhão de reais provenientes do Fundo Estadual de Cultura. O conteúdo selecionado está disponível em plataforma on-line. Ao todo, são mais de 7.300 minutos de conteúdo, o que representa 123 horas de material produzido pelos participantes de diversas linguagens artísticas. Confira alguns trabalhos no site: https://culturaden dicasa.secult.ce.gov.br/ linguagens-danca-mo da-design-fotografia/.

13


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

4. Para mais informações, acesse: https://cultura dendicasa.secult. ce.gov.br/noticia/ trilhasculturais8-conteudos-dedanca-aulas-co reografias-e-docu mentario/.

O Edital Dendicasa, como ficou conhecido, gerou uma série de trabalhos de dança a partir da casa: aulas, documentários, criações coreográficas⁴. A casa compõe uma estrutura operacional, onde objetos e lugares exercem e constituem funcionalidades responsivas. Criar uma corporeidade dançante diante desse espaço habitual, cotidiano, funcional impõe desde já um deslocamento: o espaço é primeiro desterritorializado – e ele será radicalmente desterritorializado, tornando-se, assim, propício à experimentação. Portanto, antes, um lugar concreto, limitado por paredes, portas, entradas e saídas, ruas e avenidas; depois, somente atmosferas. A casa carrega em si um imaginário de espaço estrito, estando partilhada conforme a resposta esperada a cada situação específica – como sustentação de soluções apropriadas de acordo com a emergência de possíveis problemas. Esse espaço seguro, imbuído de uma certa construção mental que afirma sua disposição a decisões assertivas, resoluções de dificuldades e propício a estados de calmaria, ao compor o corpo dançante em processos de criação, se dissolve num turbilhão de questões, sensações e estados de atenção – demandando uma atitude atencional, concentrada e aberta. Nela, nada se resolve estando nesse estado corporal de composição e experimentação. O desencadeamento de problematizações não se esgota ao encontrar uma solução. A casa fustiga, instiga. Confinados em seu interior, seguindo os protocolos de isolamento domiciliar e controle da infecção covid-19, muitos artistas têm se ocupado em desenvolver projetos estéticos que, atualmente, movimentam intensamente as redes. A cena, portanto, constrói-se sem limites de paredes e segue desde já colocando em questão o conceito de artes vivas – expressas como contato direto, ao vivo, entre o público e os artistas. Resistindo ao confinamento e sobrevivendo à rede, bem como tornando-se acontecimento a partir de coletivos, processos artístico-educacionais em dança nos chegam como um movimento cujo percurso é de um aprendizado permanente – uma prática na ordem do “si mesmo”, ou, como gostava de enunciar Foucault, um trabalho de si sobre si mesmo; o sentido do ensino pensando-o e praticando-o de outras maneiras. Se anteriormente ao coronavírus paredes, redes e coletivos já pontuavam deslocamentos nesse meio, hoje, diante do estado pandêmico, tem-se possivelmente esse caminho como única realidade.

14


Corpo dançante: de uma a outra imagem

Uma imagem é sempre múltipla Como artista da dança, e por ora estando mais no papel da crítica, pergunto-me quais questões podemos ver nas obras de dança produzidas atualmente e quais são as consequências políticas dessas escolhas para a cena e a experiência em dança. Creio que uma resposta possível deve vir do próprio processo do artista em seu desejo e estado de criação. Talvez Intergaláctico não responda a essas questões de modo sistemático; mas certamente expande a compreensão desse estado de coisas, trazendo-nos novas questões e fazendo-nos pensar. Um corpo fragmentado, desforme, desproporcional. Um corpo tão absurdamente grande que não cabe na tela, no visor de uma câmera. Essas são imagens que impulsionaram o trabalho artístico em dança de Maria Epinefrina, chamado Intergaláctico, cuja pesquisa teve início em 2018 e que vem sendo reinventado a partir das condições necessárias à sua apresentação. Desde o início Intergaláctico teve como propósito a relação da dança com a tecnologia. Contudo, dele novos Experimentos foram sendo construídos com base na realidade do avanço da covid-19 e do cenário-limite da casa de Epinefrina. Os experimentos vieram a partir da pesquisa do Intergaláctico. Alguns compartilhei, outros não. O Experimento no 9 surgiu com o convite do Sesc para apresentar em casa e depois fazer uma live. Creio que eles pensaram que, por ser um solo, seria algo tranquilo de fazer em casa. Só que não. O espetáculo e a pesquisa de movimento precisam de uma estrutura para acontecer. Fazer os movimentos do Intergaláctico em casa, na cerâmica! Seria findar o processo e a apresentação toda roxa e maltratada. Além da necessidade técnica do trabalho, um piso apropriado é muito importante. Diante dessa dificuldade, propus ao Sesc a apresentação do Experimento no 2, que não demanda as condições mais complexas de luz e som e que acontece de modo mais íntimo. O Experimento no 2, quando

15


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

apresentado presencialmente, o público fica sentado no chão, mais perto do corpo, proposto de uma forma mais crua. Apresentei algumas vezes. Mas aí várias questões se sobressaíram: como seria fazer isso on-line? Em uma rede social com tanta informação? Cercada por mais informações? Principalmente essa pesquisa que tem um outro tempo... É mais lento... Eu ficava pensando: ninguém vai ter paciência pra ver isso! Eu mesma não tenho. Foi então que, durante a quarentena, eu estava investindo bastante nessa relação do corpo e a aproximação da câmera. O fragmento. O recorte. Como a partir de um recorte a gente pode ter outra configuração corporal? Intergaláctico é um corpo que se desdobra no tempo e espaço. É legal pensar as diferentes maneiras de ver e enquadrar o espaço. O espaço do corpo no espaço. Decidi a partir daí que realmente seria um novo experimento. Não tinha como eu fazer uma live com a câmera quietinha e eu simplesmente apresentando a pesquisa. E aí veio o Experimento no 9. Chamo de experimento porque é real um experimento. Não considero uma obra. É um experimento. Com a real intenção de experimentar um negócio. Pedi a ajuda do Wellington Fonseca, que ama filmar. Pedi ajuda ao Linhares Jr. para me deixar fazer no Karthaz. E depois de uma conversa, explicando os pontos a serem investigados, eu e o Well, com a trilha de fundo criada por Cozilos Vivos, experimentamos esse corpo fragmentado. Eu no movimento e ele na filmagem. O Intergaláctico em si propõe também um corpo fragmentado, né? Quando eu apareço com a cabeça entre as pernas, a calça preta no escuro, o corpo se fragmenta. E aí a câmera viria para fragmentar ainda mais. Eu queria que aparecesse mais pele, mais osso,

16


Corpo dançante: de uma a outra imagem

mais desforme, talvez um corpo enorme, um corpo tão grande que não caberia na tela. Essa imagem me ajudou. Também me ajudou pensar quais são as diferentes maneiras possíveis de se aproximar, de dispor desse corpo. Acho que pensar em outras perspectivas sobre um trabalho é expandir o espaço de ocupação da obra... Como também seus rastros. O Intergaláctico, sobretudo, fala sobre expandir. Interessa-me muito expandir os espaços, dando a ver outros olhares a partir da pesquisa que desenvolvo (entrevista com Maria Epinefrina no dia 30 de setembro de 2020). Ressalto que a transcrição da própria fala de Maria Epinefrina se dá por causa da força do texto, de suas palavras, do modo como ela expõe as dificuldades do momento, as questões que envolvem apresentar um trabalho nessas condições de pandemia, a necessidade de realizar o trabalho, seja pelo desejo de produzir, seja pela situação da falta de trabalho e, por conseguinte, de tudo que envolve essa ausência, que não se restringe a questões financeiras. Contudo, creio que a maior potência na fala de Maria é a disponibilidade em olhar a si mesma e se descobrir de outro modo em suas obras. Tomada pela intensificação do espaço, Maria entra em estado de criação e dissolve o sujeito empírico e funcional do cotidiano – uma atenção distinta daquela envolvida na realização de tarefas. O desejo de criar Experimentos a transforma. Maria Epinefrina desestrutura e desmonta os esquemas conhecidos e confortáveis e parte em busca de algo outro, reinventa-se, produz outro trabalho do mesmo trabalho. Saliento também na fala de Epinefrina o coletivo, a rede de solidariedade entre os artistas. Um ajuda na luz, outro na câmera, outro no lugar de ensaio... Trata-se de uma abertura, disposição em transpor limites, lidar com fluxo, texturas, nuances, o que implica um movimento de dessubjetivação, de desprendimento de si. Todo esse processo envolve pensamento, estado de atenção, atitude, movimento, encontro, experimentação, problematização. Exige, daí, coragem – um movimento de contestação, de criação de espaços. Espaços como fissura estética, como um modo outro de estar: desejo de presença. Isto é, a vontade de restabelecer um contato mais sen-

17


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

sível e corporalizado com os objetos e com as imagens em si mesmas. Mais do que um estilo ou um modo de formar, trata-se de uma nova maneira de se relacionar com as imagens e com o mundo, outro modo de estar no mundo – possível de abandonar toda distância, toda centralidade e clareza óticas para envolver-se em uma corrente de impressões táteis, hápticas. A dança inventa maneiras de não fazer fazendo, de fazer sem fazer ou de fazer de outra maneira, revertendo seu sentido. Ela explora suas próprias motivações, interroga-se, articula-se a outros movimentos artísticos, engaja-se numa reflexão em torno de sua própria história, cria maneiras de ver o mundo e revelar-se em sua lógica coreográfica. Trata-se de um percurso de intensidades que, longe de equivalerem, ocasionam uma avaliação permanente. Daí a resistência. Contudo, um resistir que não designa uma capacidade de suportar; tampouco capacidade de conter. A dança, para resistir, encrava o corpo – vê-o, devasta-o com o pensamento; e dissolve-o de tal maneira que não haja um dentro e um fora. A dança, radicada no sujeito, torna-se prioritariamente um espaço de circulação de potencialidades e virtualidades, um espaço de tensão entre um corpo ainda por construir e um corpo fruto de uma interação complexa de forças. Em causa estão, portanto, processos de construção de um corpo cuja referência se compõe de estruturas complexas da subjetividade – e não um componente centrado no indivíduo como sujeito pessoal. Entender o corpo dançante, nessa perspectiva, pode-se dizer somente possível em sua mobilidade, modificação e estrutura transitória. Nesse ponto, e para finalizar, na dança o corpo acolhe o intensivo; trabalha em si a dinâmica intempestiva dos acontecimentos. E o que é esse intensivo? São os fluxos, as forças, as velocidades, os movimentos moleculares que animam a vida mesma, só que em estado selvagem, isto é, livres de quaisquer mecanismos de semiotização, regulação, estratificação, instituição e controle criados por todos os regimes de poder que procuraram produzir um corpo unitário, sensato, finalizado segundo as necessidades práticas das representações sociais. Tempos difíceis, tempos de crueldade... Do que uma sociedade é capaz? Tal pergunta não pode ser respondida fora do campo das ações, não pode ser respondida sem o risco da história do 11 de Setembro, 17 de abril, 1o de

18


Corpo dançante: de uma a outra imagem

janeiro de alguns anos... Hoje. Contudo, podemos pelo menos afirmar que não será possível responder a essa pergunta enquanto ficarmos presos a concepções que nos separam de nossas forças, que nos separam de nossos corpos e de suas intensidades. Enfim, um corpo que dança.

.:. Este texto é de exclusiva responsabilidade de seus autores e não reflete necessariamente a opinião do Itaú Cultural.

Referências ALLOA, Emmanuel (org.). Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. BRUM, Eliane. Temer e a Casa Grande se iludem. As elites que apoiam o impeachment ainda não compreenderam: seus privilégios continuarão a ser contestados. El País, 18 maio 2016. Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2016/05/16/opinion/1463408268_288480.html. Acesso em: 30 set. 2020. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil platôs. v. 5. São Paulo: Editora 34, 1997. GIL, José. Caos e ritmo. Portugal: Relógio d’Água, 2018. ROSSET, Clément. O princípio de crueldade. 2. ed. Rio de Janeiro: Rocco, 2002.

19


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

Sobre os estados intermitentes da crítica

Carlinhos Santos¹

1. Historiador e jornalista, especialista em corpo e cultura e mestre em educação [Universidade de Caxias do Sul (UCS)]. Como intérprete-criador, participou dos espetáculos Fato e Interface, do coreógrafo Ney Moraes, além de assinar a criação e a direção da videodança Estação, com Verônica Zevallos. É crítico de dança e curador, atuando em mostras e festivais, tendo colaborado no portal Idança e no site Agora Crítica Teatral. Foi professor no curso de tecnologia em dança (UCS), diretor da Cia. Municipal de Dança e coordenador da Unidade de Dança da Secretaria da Cultura de Caxias do Sul (RS).

No mundo contemporâneo, que pede cada vez mais um olhar atento às particularidades de experiências que problematizem e contemplem a diversidade, o desafio de falar sobre os estados da crítica no campo das artes, e da dança brasileira em especial, exige olhar para uma imbricada coleção de informações a ser partilhadas de forma sistêmica. A perspectiva é tentar catalisar alguns contextos e experiências. São percursos plurais que essa produção específica tem descrito. Assim, esta é uma escrita que se faz de um lugar periférico ao convencional. São trazidas algumas experiências para além do já estabelecido eixo de produção e circulação dessa escrita balizada principalmente por centimetragens de texto obtidas em veículos de mídia impressa convencional dos “centros” do país. Esta narrativa traz relatos sobre experiências pontuais do exercício da crítica em contextos de festivais e mostras de dança, oficinas e sites de crítica. Trata-se de olhar ao Sul, como pede Boaventura de Souza Santos, que referencia a potência de percursos não centralizados. Esse dado deve ser considerado no sentido da desconstrução de uma única perspectiva do exercício da crítica, mas atento a diferentes contextos e realidades que pedem igualmente olhares específicos, discursos e leituras pontuais a partir de um recorte reticular. Mas é preciso registrar, reforça-se desde esta partida, o que está posto no sentido da permanência e da importância da crítica: “Percebo um misto de arrogância e defesa de território embutido nessa nostalgia que insiste no fim da crítica. A crise da crítica ressoa na crise da política, de um espaço comum, múltiplo e pautado pelas diferenças, onde se negociam expectativas e anseios” (OSÓRIO, 2005, p. 9). Na busca das diferenças e das razões para a enunciação de outros discursos e experiências para a crítica de dança, esboça-se uma escrita atravessada por reflexões conceituais e citações de produções teóricas sobre esse tema, com apontamentos que entendem que o debate sobre a crítica inclui a questão dos rumos do jornalismo cultural praticado em diferentes plataformas de informação.

20


Sabe-se que nas últimas duas décadas, por políticas editoriais e contextos econômicos, a redução dos suplementos culturais e dos espaços específicos para a crítica nos ditos grandes veículos de comunicação impulsionou a abertura de outros espaços dispostos a essa tarefa. Assim, inauguram-se outras frentes de ação. Nesse aspecto, com dispositivos tão distintos, a crítica pode assumir o viés de mediação, colocando-se em estados de diálogos e anotações de potencialidades de um ambiente artístico. Por esse viés, durante várias edições do Festival de Dança do Triângulo, sediado em Uberlândia (MG), entre 2010 e 2016, pude exercitar a tarefa de crítico convidado para escrever sobre os trabalhos exibidos numa mostra que reunia grupos amadores e profissionais, produzindo textos veiculados no site do evento. Nesse lugar específico, o exercício do crítico é o de mediador das experiências sensíveis apresentadas de forma pontual. Assume até um caráter pedagógico. A tarefa possível é o mapeamento de experiências atravessadas por contextos específicos, com obras vindas de projetos sociais, escolas de dança e outras formações diversas. Para esse desafio pontual, na tentativa do registro de determinada cena e seus contextos, mapeando percursos e evidenciando peculiaridades, apontando semelhanças e registrando diferenças, a perspectiva da crítica genética da pesquisadora Cecília Almeida Salles sugere que se adentre nas camadas sobrepostas das obras e de seus criadores. Pede leituras sobre o conjunto de pensamentos acerca de mundos organizados pelos diferentes agenciadores e articuladores dos trabalhos apresentados. Esse processo solicita que o crítico vá descobrindo e compartilhando as especificidades do processo de criação daquele contexto para o estabelecimento de mediações entre o que está posto e o público, desenvolvendo uma escrita que ofereça múltiplas leituras dos códigos estéticos e conceituais, da cadeia criativa do que enfim se analisa. Para esse procedimento, mapeiam-se os códigos éticos e estéticos de determinada cena, suas potências e experiências que particularizam certo contexto histórico e artístico: “Muitas questões de extrema importância para se discutir a arte em geral e aquela produzida nas últimas décadas, de modo especial, necessitam de um olhar que seja capaz de abarcar o movimento, dado que leituras de objetos estáticos não se mostram satisfatórias ou eficientes” (SALLES, 2006, p. 16). 21


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

A partir dessa perspectiva, num ambiente como o do Triângulo Mineiro, atravessado por heranças culturais de raízes africanas, como as congadas, com uma cena de danças urbanas vigorosa, mantida a presença das escolas de clássico e com a emergência das danças tribais de matrizes indianas e árabes, cabe ao resenhador da cena a anotação dessa rede dinâmica e diversa de referências. Aqui, o estado possível para a crítica é assinalar o que particulariza um contexto e um ambiente promovendo-o ao vetor central da escrita. E ela, a crítica, é solicitada o tempo todo nesses contextos de festivais e mostras justamente pela importância da devolutiva que estabelece, cumprindo uma de suas funções, que é o registro de experiências significativas, suas potências e correlações na multifacetada cena da dança contemporânea brasileira. Há, porém, outras experiências significativas que anunciam estados de fomento e ativismo da crítica na dança brasileira. Por esse viés, o exercício da partilha de informações e formatos possíveis de escritas sobre a dança vem sendo exercitado também em oficinas específicas, em encontros como Festival de Dança de Itacaré (Bahia, 2019), Aldeia Sesc Arsenal (Cuiabá/MT, 2018) e Modos de Existir, do Sesc Santo Amaro (São Paulo/SP, 2018). Nessas instâncias, a ideia de ativismo em defesa do espaço da crítica e de suas diferentes possibilidades de permanência e contribuição às cenas foi organizada a partir do conceito de artista-etc., de Ricardo Basbaum: “Quando um artista é artista em tempo integral, nós o chamaremos de ‘artista-artista’; quando o artista questiona a natureza e a função de seu papel como artista, escreveremos ‘artista-etc.’” (BASBAUM, 2013, p. 8). A proposta aqui é problematizar a ideia de crítica entre os artistas da dança, das artes cênicas, e o público dessa linguagem, promovendo cruzamentos de informações e reflexões sobre essas produções. Procura-se estabelecer um diálogo entre as instâncias dos processos de criações visíveis em cena, suas confluências e reverberações, na busca de uma leitura plural, abrangente e multirreferencial dessas criações. Aqui, o etc. desses contextos interessa muito. O texto crítico deriva para uma expansão e reverberação da obra analisada. Para a construção desse processo de reflexão e produção textual, são usados referenciais e estratégias de escritas críticas já estabelecidas, a fim 22


Sobre os estados intermitentes da crítica

de chegar a um possível novo modo operativo com estratégias de reflexão ou novos modelos para essa mesma operação – no neologismo, uma “crítica-etc.”. Buscam-se, outra vez, novas possibilidades de tecer pensamentos para a dança, borrando modelos e formatos já postos. Mas, como é de movimento que aqui se trata, problematizando a resenha descritiva e valorativa de certos e errados, o que pede ainda mais esse recurso? Trata-se de estabelecer formas de deslizamentos nos circuitos da produção crítica sobre e para a dança. Para esses percursos, ainda, há outro caminho conceitual significativo. A Teoria do Corpomídia, de Christine Greiner e Helena Katz, é sempre instigante. Ela explica que, quando dança, todo corpo troca informações com os ambientes por onde circula, e essa troca estabelece um circuito de novas inferências, afetando inclusive os próprios ambientes de produção. O corpo não é (mais) um meio por onde a informação simplesmente passa, pois toda informação que chega entra em cruzamento, e não um lugar onde as informações são apenas abrigadas. A mídia à qual o corpomídia se refere diz respeito ao processo evolutivo de selecionar informações que vão constituindo o corpo (GREINER; KATZ, 2005, p. 131). Assim, comunicar através da crítica sobre os corpos que dançam é também um novo movimento cognitivo, pois há sempre deslocamentos de interpretações e leituras. A partir dessa coleção de possibilidades de pensar e executar a crítica, a tarefa seria evidenciar como as obras enunciam e explicitam a sua coleção de informações organizadas como pensamento artístico. Um exercício de mapeamento de referências conceituais e estéticas organizadas em redes correlatas. Essas instâncias conceituais e operacionais pedem leituras plurais, atentas aos contextos que geraram obras, às trajetórias de seus autores, aos seus processos de composição, suas redes de referências. É preciso uma percepção aberta às misturas que os objetos/obras analisados estabelecem. Cabe, também, tentar apontar as relações de acoplamentos e contaminações recíprocas, na distinção e percepção da nitidez dos contornos que os 23


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

separam ou aproximam uns dos outros. A tarefa é decodificar esses contornos, ler essas contaminações, expor esses acoplamentos, mapear novos formatos e poéticas para as escritas. Nessa perspectiva, uma crítica atenta lê, por exemplo, o espetáculo Cria, da Cia. Suave (RJ), apresentado no Palco Giratório Sesc (2019), como um quebra-cabeças montado a partir de uma coleção de informações sobre o que a dança contemporânea brasileira vem enunciando como um discurso estético e coreográfico nas últimas décadas: Se o Grupo Corpo assumiu para seu balé os cortas-jacas e requebros em corpos-partituras sobre brasilidades, e Lia Rodrigues borrou as margens corporais, reunindo corpos-manchas humanas em gambiarras de movimentos e marés dançantes, Alice Ripoll esboça um entendimento do funk como afirmação e potência de como esses trânsitos das linguagens dos bailes, dos passinhos e dos requebros, das bundas e das saídas desencontradas, atualizam o repertório da dança brasileira (SANTOS, 2019). Esse trecho de uma crítica que produzi para o site Agora Crítica Teatral, de Porto Alegre (RS), situa um exercício de escrita que procura dialogar com os repertórios conhecidos e os códigos estabelecidos, com o conjunto de informações já postas na cena da dança brasileira e com os diálogos que se abrem perante um “novo” estético-coreográfico. Os novos percursos, as novas atualizações e outros vetores da produção de discursos sobre a crítica, sua pertinência e possibilidades se organizam na coleção de artigos reunidos no volume 5 da Coleção Húmus, lançado em 2016, cuja organização assino. A publicação focaliza experiências históricas balizadas ou referendadas pela crítica, registra projetos pontuais, como a plataforma 7X7, criada pela artista Sheila Ribeiro, e afirma trajetórias significativas, como a dos críticos Marcelo Castilho Avellar e Roberto Pereira, além de trazer outros artigos que enfocam variações sobre temas para a crítica de dança brasileira.

24


Sobre os estados intermitentes da crítica

Num dos textos desse volume da Coleção Húmus, a autora Helena Katz analisa a emergência de espaços de exercício da crítica mediados pela ideia de autoautorização praticada em sites, blogs e plataformas, entre outras telas que têm mediado a comunicação contemporânea. Segundo o texto, “cada um pode postar, publicar, comentar, classificar, elogiar, qualificar, deletar, compartilhar, curtir o que quiser pelo tempo que lhe aprouver, dizer qualquer coisa sobre qualquer assunto. Me, Myself and I tornou-se a bússola do modo de existir, tanto on quanto offline”. Para sair desse impasse, nas palavras da crítica de dança, a escrita precisa “saber discernir, separar e peneirar para poder julgar”. E, para conseguir discernir, separar e peneirar, frisa a autora, “há que se ter conhecimento especializado”. Não se trata de reduzir à ação de separar e classificar por parâmetros que qualificam, tais como feio/bonito, bom/ruim, bem/mal, certo/errado. É julgar no sentido de qualificar, atribuir qualidades e derivas conceituais a determinado procedimento coreográfico que se oferece como leitura de um tempo e seus contextos. “É preciso cuidado para discernir que um possível esgotamento da continuidade da crítica que havia se consolidado na imprensa tradicional não quer dizer que a necessidade da atividade crítica se esgotou” (KATZ, 2016, p. 139). Portanto, o que a crítica pede na contemporaneidade é um estado constante de reinvenção e de expansão de suas possibilidades de ser exercitada. Porção significativa da cena, a crítica carece de novas estratégias de execução, abrindo contextos e suportes possíveis desde que balizados por um pensamento ético e estético, por reforçar uma rede operativa potente e relevante. Eis que as experiências de escrita crítica feitas em festivais e mostras, em oficinas específicas, em novas frentes de acolhimento de sua prática, agora e cada vez mais mediadas pelos ambientes virtuais, como muitas das experiências aqui relatadas, contribuem para a manutenção e a renovação de sua importância para o conjunto da dança brasileira. Então, outra e mais uma vez, a tarefa ou o papel do crítico será contribuir para fomentar a diversidade de experiências, trajetórias e legados da dança para a produção de conhecimentos e pensamentos relevantes e contributivos à diversidade cultural brasileira.

25


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

Também porque citamos desde o começo desta escrita a palavra diversidade, cabe ainda refletir sobre qual é o campo fértil para a escrita crítica sobre dança na atualidade, suas bandeiras e seus projetos. Nesse aspecto, atentos à premissa urgente da descolonização dos discursos, é preciso abrir espaço para a discussão e a inserção de estéticas e poéticas que ainda seguem invisibilizadas. Cabe cada vez mais à crítica buscar temas que se confrontem com as lógicas do projeto colonialista. Assim, nessas derivas e agenciamentos de mediação, ativismo, problematização de formatos e registros de experiências relevantes, esse outro olhar expande a prática da crítica de dança para o exercício da pluralidade e da cidadania. Um esforço às leituras sobre os percursos e as contribuições da dança para o mundo contemporâneo.

.:. Este texto é de exclusiva responsabilidade de seus autores e não reflete necessariamente a opinião do Itaú Cultural.

26


Sobre os estados intermitentes da crítica

Referências BASBAUM, Ricardo. Manual do artista-etc. Rio de Janeiro: Becomdo Azougue, 2013. GREINER, Christine; KATZ, Helena. Por uma teoria do corpomídia. In: GREINER, Christine (org.). O corpo. Pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. p. 125-133. KATZ, Helena. Um dois três: a dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID Editorial, 2005. KATZ, Helena. Crítica de dança em tempos de me, myself and I. In: SANTOS, Carlos Alberto Pereira dos (org.). Húmus 5. Caxias do Sul: Lorigraf, 2016. p. 139-149. OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. SALLES, Cecília A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998. SALLES, Cecília A. Crítica genética: uma (nova) introdução. São Paulo: Educ, 2000. SALLES, Cecília A. Redes da criação: construção da obra de arte. Valinhos: Editora Horizonte, 2006. SANTOS, Carlinhos. Crias do funk reinventam a dança contemporânea brasileira. Agora Crítica Teatral, Porto Alegre, 4 jun. 2019. Disponível em: http://www. agoracriticateatral.com.br. Acesso em: 26 set. 2020.

27


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

DANÇAR NA ENCRUZILHADA BRASIL 1. Vive e trabalha em São Paulo (SP). Encontrou no pensamento coreográfico um meio de articular seu gesto artístico e realizar suas obras transitando entre diferentes linguagens e territórios – arquitetura, dança, vídeo, texto, livro, artes visuais, música, filosofia. Bacharel em comunicação das artes do corpo pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/ SP). Desde 2014 coordena o Terreyro Coreográfico, encruzilhada entre coreografia, arquitetura e cosmopolítica que cria projetos de cultivo da dimensão pública dos espaços das cidades.

28

Daniel Fagus Kairoz¹


“Só se pode ler com base em alguma crença. Toda leitura crítica tem de partir de uma outra que não se pode criticar. Sem ela, nada pode ser criticado, nada pode ser lido. Perdemos essa crença de que não se pode criticar. Com isso, perdemos inteiramente a capacidade para criticar e para ler.” (A Escrita, Vilém Flusser) “Quando o céu ou destino coletivo desperta a circunstância, as forças que se encontravam ocultas, retraídas ou escondidas sob o manto da obscuridade são reveladas e liberadas para promoverem a mudança necessária do antigo em algo novo.” (Tratado sobre a União Oculta, Imperador Amarelo, traduzido por Wu Jyh Cherng)

Este texto se faz exercício de escuta dos meus mais velhos – assim como escuta do mundo que habito. O Brasil é minha encruzilhada. Encontro-me entre mundos. Perco-me em vários deles. O pensamento coreográfico me guia em minha leitura – seja ela crítica ou divinatória² – desses vários mundos. Eu me esforçarei em conduzi-las, pessoas leitoras, pelos múltiplos caminhos desta encruzilhada-escritura. Perder-se talvez seja condição do (nosso) encontro Nessa encruzilhada entre mundos, há um em especial que está chegando a seu fim, sua meia-noite – segundo alguns cientistas, falta apenas um minuto e quarenta segundos³. Um mundo que se fez com muito custo e esforço e que para isso roubou e rouba força vital de seus mundos circunvizinhos para conseguir força suficiente para se manter de pé ao longo de seus 2020 anos Refiro-me ao que conhecemos pelo nome de mundo ocidental e que traz junto de si também o Oriente, que nada mais é que a invenção de um outro, espelho de si. Pois essa região do globo que foi estigmatizada com o nome Oriente consiste em muitos e diversos mundos⁴ – quando neste texto digo Ocidente, refiro-me a uma perspectiva específica de um mundo que vem se impondo sobre outros de forma extremamente violenta Esse mundo ocidental diz que sua origem está no Egito passando por Grécia Roma e que, em determinado momento, que ele mesmo batizou de Idade

2. “Pode-se ler de acordo com dois métodos: com critérios (sabe-se o que se tem de bicar) ou indiscriminadamente. O primeiro método denomina-se ‘crítica’, o segundo refere-se à palavra inglesa ‘to read’, que significa ‘adivinhar’. As galinhas são criteriosas: elas bicam de acordo com o critério ‘comestível/não comestível’. Mas tal critério impede as galinhas de escrever: elas comem os grãos – ao invés de dispô-los em linhas. Nossos ancestrais, ao contrário, devem ter organizado as pulgas catadas em fileiras, antes de tê-las comido. A favor disso, fala-se que eles enfileiravam pedras. Isso confirma que o pensamento crítico precede o escrever, o que não deixa de ser desconfortável. Aqueles que afirmam que o escrever aviva a capacidade crítica e a fomenta (também um argumento desse livro) têm de tentar rever sua visão com relação às galinhas” (Vilém Flusser em A Escrita, p. 92).

3. Referência ao Doomsday Clock, relógio simbólico mantido desde 1947 pelo comitê de diretores do Bulletin of the Atomic Scientists, da Universidade de Chicago.

4. Para uma discussão mais aprofundada, ver Orientalismo – o Oriente como Invenção do Ocidente, de Edward Said.

29


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

5. Conceito criado pela filósofa Isabelle Stengers e pelo filósofo Bruno Latour, contra a ideia de que haja uma realidade única, que utilizo aqui para me referir a perspectivas de mundos que não padecem do antropocentrismo, que pensam a política como interação, troca e conflito entre mundos diversos, humanos e extra-humanos.

Média, momento de ruptura e transição, começou uma expansão interna no próprio continente europeu que culminou num novo estado chamado tendenciosamente de Renascimento, origem do sistema capitalista e da expansão além-mar que deu no que deu – início do processo de colonização de outros mundos, a imposição violenta do seu mundo, sua perspectiva sobre outros mundos estranhos a essa perspectiva Não são de hoje os sinais que indicam que esse mundo não tem mais condições próprias de manter-se de pé – desde pelo menos o século XIX, muitos são os que de dentro desse mundo ou de fora dele já vislumbraram e apontaram seja seu acabamento, seja seu fim; um mundo que literalmente respira por aparelhos (sua dependência de aparelhos e máquinas é sintoma de sua pouca força vital). Padecendo, recusa-se à morte que o visita. Agarra-se aos seus mundos circunvizinhos, quer viver a todo custo, mesmo que esse custo seja também a morte desses outros mundos Sua covardia é lamentável Contudo há muito o que celebrar desse mundo há motivos de que muitas vezes esse mesmo mundo se esquece ou tenta se desvencilhar cancelar apagar – mesmo porque é bom lembrarmos que esse mundo comporta em si ainda diversos outros mundos, uma cosmotopografia repleta de possibilidades outras diante das hegemônicas. Também o Ocidente já viveu acordes com a terra e o céu, respeitando seus ciclos e movimentos para igualmente ser respeitado Os caminhos escolhidos foram de ruptura com suas tradições cosmopolíticas⁵, tentando substituí-las por novas tradições – que sem fundamento se destinam a repetidas rupturas. A contradição se faz condição e o paradoxo se faz realidade – a ciência moderna não dá conta da multiplicidade de realidades, e outras epistemologias se fazem necessárias Nessa encruzilhada de nome Brasil, apesar dos terríveis esforços do Ocidente de se impor sobre os mil mundos ameríndios já enraizados neste território terreiro, trazendo violentamente outros mundos do continente africano para lhes servir e assim ter força para se impor sobre esses mil mundos ameríndios, acabaram se fortalecendo esses mil mundos que se encontraram na encruzilhada com esses outros mundos afrodiaspóricos.

30


Dançar na encruzilhada Brasil

Num primeiro momento os Bantu-Kongos, com seus diversos mundos, e mais tarde Fons e Iorubanos – num mundo que se queria monoteísta, uma multidão de divindades se encontraram para dançar juntas Muitos outros foram os mundos encruzados nesse grande terreiro; judeus já se encontravam nestas terras antes mesmo dos portugueses, pois perseguidos na Europa convertidos de forma brutal ao cristianismo não tiveram chance – sem escolha – lançados ao mar-acaso – alguns por sorte – aqui chegaram Um território em disputa – portugueses espanhóis holandeses franceses alemães que aqui encarnaram devoradores de terra saqueadores ladrões estupradores assassinos em sua grande maioria. Não todos, mas sua grande maioria – no mínimo cúmplices Outros, convencidos a vir ou sem condições de permanecer em suas terras – italianos, japoneses em busca de trabalho fugindo da miséria –, muitas vezes sem nem imaginar que estavam servindo ao fim de branquear os pensamentos e as peles dos que nasciam dessa encruzilhada – muitos alemães vieram justamente com essa finalidade. O Brasil abrigou e abriga inúmeras comunidades que partilham das premissas nazistas, inclusive carrascos covardes que tentaram fugir de suas responsabilidades se escondendo debaixo desta terra O branqueamento prometido nunca aconteceu, graças a todos os deuses e encantados aqui presentes, embora o esforço nesse sentido tenha conformado nossa experiência de Estado – uma máquina de expropriação que retira dos povos suas possibilidades de subsistência, produzindo, assim, uma dependência de seus aparatos tecnologias burocracias, deixando todos à mercê de sua ineficiência e precariedade. Uma máquina que produz miséria e faz é aumentar as desigualdades econômicas. Pois os que se acham donos das terras são os que criam e sustentam o Estado a fim de proteger seus interesses e escravizar os outros povos, mesmo que com trabalho assalariado, para, assim, ter força vital disponível para sustentar seu mundo ostensivamente materialista – para isso seu empenho não é pouco em difamar, silenciar, apagar, exterminar outros mundos presentes possíveis Diante do Estado brasileiro, você tem seu direito à vida respeitado se for branco de pele e de pensamento ou branco só de pele ou branco só de pen-

31


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

6. Para aprofundar-se nesses estudos, recomendo a leitura de Calibã e a Bruxa – Mulheres, Corpo e Acumulação Primitiva, da pesquisadora Silvia Federici.

samento – os só de pele, se começam a perturbar demais a “ordem” com seus pensamentos cruzados mestiços cafuzos caipiras caboclos nordestinos perdem seu direito à vida; já os brancos de pensamento, mas não de pele, precisam conquistar seu direito, pois aparentemente não são brancos, então precisam provar que o são Tudo o que vemos ruindo hoje – Brasil de 2020 – já estava a caminho de sua ruína há 520 anos – desmatamento catequização de povos indígenas desmantelamento das políticas e programas indigenistas recuo nos processos demarcatórios dos territórios das populações indígenas quilombolas previstos na Constituição, invasão dos territórios tradicionais indígenas e quilombolas por parte de madeireiros garimpeiros pistoleiros assassinato de lideranças indígenas e ativistas em suas causas, além de falsas acusações contra defensores dos direitos indígenas e ambientais Florestas em chamas O olhar vazio de uma onça Derramamento de óleo ao longo de mais de 2 mil quilômetros do litoral brasileiro nas regiões Nordeste e Sudeste, sem explicação nem grande esforço em encontrar os responsáveis pelo rompimento de barragens de dejetos da mineradora Vale, devastando cidades vidas transformando um grande rio numa enxurrada de lama tóxica Pandemia: 140 mil mortos até o momento da escritura deste texto. Cento e quarenta mil mortos em seis meses é um número tão assombroso que já não nos comove sua sombra – mortos em decorrência de um programático descaso por parte do governo federal com a gravidade da pandemia e de uma política sanitária que aumentou em muito a letalidade do vírus, além de agravar também uma crise econômica que tem se aprofundado cada vez mais com o acirramento da exploração dos trabalhadores aumento da inflação e do número de desempregados – o Ocidente tem por hábito acenar para a escravidão mesmo que assalariada em seus períodos de crise; vale lembrar as relações de exploração na Europa durante o dito Renascimento e além⁶ O sistemático assassinato de jovens e crianças negras das periferias principalmente das grandes capitais, alinhado ao incentivo do armamento do

32


Dançar na encruzilhada Brasil

dito “cidadão de bem” – branco, homem, hétero, mesmo quando representado por mulheres, gays, negros etc., pois se sabe que as aparências enganam defensores dos valores cristãos (de preferência não praticantes) defensores da propriedade privada (mesmo que tenha sido roubada de outros) defensores da família (mesmo que desestruturada pela violência de um macho inseguro e perverso) e defensores de uma tradição mesmo que sem fundamento. Valores racistas e discriminatórios ganham voz e espaço na ágora. Ao mesmo tempo que gritam pelo fim da corrupção, silenciam diante do sem-número de escândalos de corrupção envolvendo o governo principalmente federal. Escândalos que atingem diretamente o presidente e sua família com suas ligações com o submundo do crime que se organizou a partir de aparatos do Estado para tomar o poder do crime anteriormente organizado

7. Ver Sobre o Autoritarismo Brasileiro, mais recente livro da historiadora Lilia Schwarcz.

Não esqueçamos: o Estado brasileiro é formado por direita esquerda centro, cada um tendo seu papel na manutenção das engrenagens que permitem que essa máquina siga seu programa de imposição dos valores da metafísica ocidental sobre outras formas de vida. E ao mesmo tempo garantem um equilíbrio dinâmico para que o país não ceda totalmente às suas tendências autoritárias⁷ A mentira se faz princípio da práxis política desvelada de forma escancarada escandalosa. A palavra do homem ocidental, que desde tempos remotos fala em verdade beleza bondade mas pratica o oposto, já não valia muito e agora não vale nada – “palavra sem valor, sociedade sem futuro”, nos lembra a sabedoria Yorubá Davi Kopenawa – quando eu era jovem, costumava me perguntar: “Será que os brancos possuem palavra de verdade? Será que podem se tornar nossos amigos?”. Desde então, viajei muito entre eles para defender a floresta e aprendi a conhecer um pouco o que eles chamam de política. Isso me fez ficar mais desconfiado!

Essa política não passa de falas emaranhadas. São só as palavras retorcidas daqueles que querem nossa morte para se apossar de nossas terras.

Em

muitas ocasiões,

as pessoas que as proferem tentaram me enganar dizendo:

“Sejamos

amigos!

Siga

o nosso caminho e nós lhe

33


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

8. Ver A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami, p. 390, do xamã Yanomami Davi Kopenawa e do antropólogo Bruce Albert.

daremos dinheiro!

Você terá uma casa, e poderá viver na cidade, como nós!”. Eu nunca lhes dei ouvidos. Não quero me perder entre os brancos. Meu espírito só fica mesmo tranquilo quando estou rodeado pela beleza da floresta, junto dos meus. Na cidade, fico sempre ansioso e impaciente. Os brancos nos chamam de ignorantes apenas porque somos gente diferente deles.

Na verdade, é o pensamento deles que se mostra curto e obscuro. Não consegue se expandir e se elevar, porque eles querem ignorar a morte. Ficam tomados de vertigem, pois não param de devorar a carne de seus animais domésticos, que são os genros de Hayakoari, o ser anta que faz a gente virar outro. Ficam sempre bebendo cachaça e cerveja, que lhes esquentam e esfumaçam o peito. É por isso que suas palavras ficam tão ruins e emaranhadas. Não queremos mais ouvi-las. Para nós, a política é outra coisa. São as palavras de Omama e dos xapiri que ele nos deixou. São as palavras que escutamos no tempo dos sonhos e que preferimos, pois são nossas mesmo. Os brancos não sonham tão longe quanto nós. Dormem muito, mas só sonham com eles mesmos. Seu pensamento permanece obstruído e eles dormem como antas ou jabutis. Por isso não conseguem entender nossas palavras⁸. É muito tentador buscar culpados para esse estado crítico no qual nos encontramos: desgovernados. Encontrar em um presidente sem escrúpulos nem caráter, que se apresenta indiferente ou muitas vezes conivente com essa trágica realidade, a causa de tudo de ruim que está acontecendo hoje. Porém esse presidente que aí está à frente do país exatamente neste momento é também ele fruto de uma complexa trama de caminhos que o país foi seguindo em sua marcha colonial de “ordenação” rumo ao “progresso” para chegar aonde estamos A leitura de fim dos tempos é compartilhada, seja pelos apoiadores do atual presidente – que veem nele um homem que tem “coragem” de enfrentar o establishment para reestabelecer o caminho de “progresso da nação” –, seja por aqueles que são sistematicamente atacados pelo presidente e seus apoiadores, direta ou indiretamente

34


Dançar na encruzilhada Brasil

Ambos concordam: há um mundo ruindo Antes mesmo dos recentes acontecimentos, muitos eram os diagnósticos de que seu modo de vida e hábitos adquiridos são insustentáveis e de que o mundo ocidental caminhava para seu fim. Ao menos o fim de sua hegemonia Essa impossibilidade do Ocidente é sabida pelos povos indígenas e afrodiaspóricos há muito! Muito antes de discursos ecológicos e pretensamente sustentáveis Também entre os brancos há aqueles que olharam e olham com desconfiança os rumos do seu próprio mundo. Um mundo de pretensas verdades conceitos universais pressupostos ontológicos promessas de um futuro glorioso às custas de tanta exploração da terra e dos filhos e habitantes da terra. Olham com profundo desgosto tanta covardia das violências exercidas – negação da vida – em nome de um Deus. Violências essas muitas vezes justificadas por uma arrogante ciência. Olham e tentam pensar além, agir diferente, apontar caminhos outros Um caminho lento foi se fazendo no percurso do pensamento amigando-se dessa bela mulher sabedoria Sofia a fim de se aproximar de alguma dignidade em vida e escapar desse governo de morte – o pensamento crítico vai buscar ou, se preciso, forjar critérios para olhar a realidade avaliar seu estado desvelar seus fins ideológicos na busca pelas fraturas e fissuras das estruturas desse mundo –, como nos conta um desses homens apaixonados pela Sofia, o argelino Jacques Derrida. Diz ele que existem duas possibilidades para esses que se voltam contra as estruturas que sustentam a metafísica ocidental: A)

tentar a saída e a desconstrução sem mudar de

terreno, repetindo o implícito dos conceitos fundadores e da problemática original, utilizando contra o edifício os instrumentos ou as pedras disponíveis na casa; o mesmo é dizer, também, na língua.

O risco é aqui o de confirmar, de consolidar ou de superar continuamente numa profundidade sempre mais segura aquilo mesmo que se pretende destruir.

A explicitação contínua em direção à abertura corre o risco de se afundar no autismo da clausura;

35


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

9. Ver Margens da Filosofia, p. 176, de Jacques Derrida.

B)

decidir mudar de terreno, de maneira descontí-

nua e irruptiva, instalando-se brutalmente fora e afirmando a ruptura e as diferenças absolutas.

Sem

falar

de todas as outras formas de perspectivas ilusórias nas quais se pode deixar prender semelhante deslocamento, habitando mais ingenuamente, mais estreitamente do que nunca, o dentro do qual se declara desertar, a simples

“novo” possível mos-

prática da língua reinstalada continuamente o terreno sobre o solo mais antigo.

Seria

trar com exemplos numerosos e precisos os efeitos de tal reinstalação e cegueira⁹

Dois gestos críticos ao mesmo tempo que dois riscos – o risco de fortalecer aquele aquilo que se quer destruir, o risco de carregar o mundo consigo quando se tenta sair dele. Nesses dois gestos vejo o paradoxo do pensamento crítico do Ocidente, que está sempre apontando para sua superação, que nunca vem Uma crítica da crítica da crítica da crítica da crítica ad nauseam Mesmo as ciências sociais – antropologia sociologia ciência política psicologia etc. –, que lançam seus olhos para o outro do Ocidente, para os excluídos periféricos, mas também para seus próprios recalques e tabus, não têm, mesmo que queiram, condições de elaborar seus discursos senão pautadas pela metafísica ocidental. Também os chamados pós-estruturalistas, que dão desdobramentos à transvaloração de todos os valores desse outro, que se diz dinamite, amante da Sofia – Nietzsche, que invocou Dioniso de volta ao Ocidente –, fazem belas danças que evocam instigantes figuras possuem distintos olhares argutos para identificar as falhas da máquina ocidental. Desvelar seus abismos sua rígida estrutura e paradoxais princípios, sua ausência de fundamento; também eles, de certa forma, ampliam o alcance dessa metafísica para territórios antes ignorados e excluídos por ela São de admirar os gestos as danças os complexos movimentos de todos esses que se dedicaram a dizer de forma crítica seu próprio mundo – tenho muito a agradecê-los e reverenciá-los muito me alimentam e alimentaram são também meus mais velhos – mas precisamos reconhecer que, apesar de

36


Dançar na encruzilhada Brasil

seus humanos demasiado humanos esforços, apenas epistemologias outras – Bantu-Kongo Yorubá Jeje Indígenas¹⁰, para ficarmos na principal encruzilhada que sustenta este país Brasil – podem realmente num só golpe abalar as estruturas do edifício ocidental e dar voz e vez a outros mundos¹¹ Nesse ponto precisamos parar de escrever ler – levantar e dançar

10. As universidades federais brasileiras têm sido palco privilegiado de manifestação das epistemologias das encruzilhadas, sejam elas Bantu, Yorubá e também indígenas, entre outras.

11. Sugiro aqui que assistam aos vídeos no YouTube do Congresso Internacional Yorubantu – Epistemologias Yorùbá e Bantu, realizado em junho de 2020, em especial a abertura, cujo título é Caminho sobre Caminho: Epistemologias da Encruzilhada: https:// www.youtube.com/ watch?v=1Wki3S L-2hw&t=1s.

Que dança dançamos quando dançamos? Que mundo se apresenta a público quando danço? Que mundo, dançando, crio ou reitero? Que danças a colonização nos ensinou e ainda ensina a dançar? Que danças foram e são escolhidas dando continuidade às narrativas da história da dança ocidental por curadores programadores culturais editais públicos festivais em meio à imensa produção artística brasileira? Por mais progressista democrática e humanista que seja a ideia de dança contemporânea, não seria ela a forma atual que a máquina de exclusão que é o processo colonial encontrou para dar continuidade ao seu programa que se sente no direito de dizer o que é o que não é, o que vive o que morre, o que fica o que sai das narrativas que dizem a dança no Brasil? Talvez seja preciso revermos o caminho da dança cênica no mundo ocidental – apontarei aqui alguns caminhos possíveis de leitura

37


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

12. Há todo um caminho de identificação de certas danças não compreensíveis aos olhos ocidentais, com doença – num primeiro momento na própria Europa, durante a Idade Média e o Renascimento, e posteriormente nas colônias, principalmente Brasil e alguns países da África, onde também serão registrados casos de Choreomania. Para um aprofundamento nessa discussão, o livro Choreomania – Dance and Disorder, da historiadora Kélina Gotman, é muito elucidativo.

Podemos identificar na Idade Média um momento de profunda ruptura com o sentido cosmopolítico, mágico, espiritual e coletivo que a dança até então possuía para os mais diversos povos da Europa. A partir do seu banimento das liturgias católicas e das inúmeras proibições que sofreu – principalmente as danças das mulheres –, a dança se insurgirá em inúmeros “te-atos” explosivos, em coro, no que ficou conhecido como Pragas de Dança, batizadas de Choreomania pelo médico, físico e alquimista Paracelso – corpos desgovernados ingovernáveis dançando nos espaços públicos espaços sagrados dias santos possuídos por forças imponderáveis contagiando mais e mais corpos sem conseguir parar de dançar¹²

13. Há também outros caminhos de leitura da ideia de coreografia, ou de pensamento coreográfico, que muito se aproxima do que hoje vem sendo nomeado de epistemologias da encruzilhada, o que deixo apontado aqui para futuros desdobramentos deste texto.

Instaura-se uma nova realidade para a dança – uma realidade principalmente pedagógica de controle social e político. A dança se torna um dos principais instrumentos de educação e controle dos corpos da corte e, mais tarde, também das cidades – o Estado vai se tornando cada vez mais coreográfico em seu modo de estruturar as cidades modernas, mesmo que na maioria das vezes já sem dança possível¹⁴

14. Andrew Hewit desenvolverá essas questões de forma bastante minuciosa em seu livro Social Choreography – Ideology as Performance in Dance and Everyday Movement. 15. Para uma mais detalhada contextualização, ver A Dança e o Agit-Prop, de Eugenia Casini Ropa.

38

Não à toa veremos nos séculos seguintes, durante o Renascimento, a invenção de uma nova tecnologia de controle dos movimentos dos corpos – a coreografia (ou orchesographie)¹³. Durante o Renascimento serão redigidos muitos tratados coreográficos, assim como também a dança será novamente aceita pelo seu próprio mundo – porém agora sob a supervisão do próprio rei

Na história do balé, vemos um caminho que parte de uma manifestação social dos balés de corte em direção ao indivíduo protagonista solista dos balés clássicos e posteriormente românticos, quando o coro ganha um papel secundário, torna-se muitas vezes o cenário, a paisagem a reiteração ideológica das fantasias do mundo ocidental Mesmo as tentativas modernas de Rudolph Laban e Mary Wigman, entre outros nomes, de retomar as danças corais acabam se perdendo na massa uniforme e homogênea dos corpos da juventude da Alemanha nazista¹⁵. Muitas serão as coreografias a partir das danças modernas que irão tensionar justamente essa relação entre coro e solista, sociedade e indivíduo, mas poucas as que nos acordam para a força cosmopolítica do coro


Dançar na encruzilhada Brasil

É de chamar atenção o quanto o mundo ocidental tem horror e um profundo medo das forças dos coros, do espírito de comunidade (muito mais do que desse falso fantasma comunista), principalmente das comunidades que partilham de perspectivas diversas da ocidental – o Ocidente se faz de corpos desenraizados, na tentativa de um total apagamento de suas ancestralidades

16. Ver Choreomania – Dance and Disorder.

A dança no Brasil ainda hoje vive principalmente do imaginário do balé clássico, materializado nas academias de dança que povoam todo o território, educando e coreografando corpos e mentes segundo preceitos estritamente colonialistas Poderíamos dizer que a dança contemporânea brasileira faz coro com o pensamento crítico do mundo ocidental (ainda que na maioria das vezes apenas atualizando discursos coreográficos estéticos de artistas europeus e norte-americanos), traçando um caminho dissidente ao imaginário hegemônico, ao seu meio. Questiona sua linguagem na tentativa de produzir novas línguas – ávida por novidades, carrega ainda uma forte herança moderna com a sua tradição em romper com toda ruptura que se torna tradição – vive ainda esse “ab-ismo”, derradeiro movimento de uma vã guarda Já às “outras danças” restam estigmatizações fetichismos exotismos típicos do orientalismo ocidental¹⁶ – danças cujas matrizes de pensamento sejam negras ou indígenas dificilmente são vistas a partir de seus próprios mundos, mas insistentemente enquadradas pelo limitado olhar ciclope da perspectiva linear do Ocidente ou dificilmente os artistas da dança e, principalmente, curadores críticos programadores conseguem sair de seus próprios mundos para ver esses outros mundos e suas danças Mesmo em tempos como o nosso, em que as chamadas minorias e os excluídos são escolhidos como a bola da vez das curadorias e programações culturais, suas danças são reenquadradas pelas coreografias de controle social do Ocidente – seja pelas coreografias das arquiteturas do palco, dos espaços culturais, salas de ensaio e do teatro, seja pelas arquiteturas contextuais e conceituais que regem os pensamentos críticos curatoriais Talvez seja tempo oportuno de nos colocarmos, em coro, nas encruzilhadas do Ocidente e reaprendermos a dançar com as forças coreográficas ali sempre presentes com seus ventos redemunhos espirais nos abrindo a outras

39


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

dimensões do tempo e do espaço – aprendermos a dançar e pensar dança com as diversas divindades que estão ali sempre dançando nesse lugar de encontro, de risco, multiplicação de caminhos e, se não forem tomados os devidos cuidados, de perdição. Aprender a dançar com nossas próprias divindades, que estão hoje esquecidas pelas esquinas das grandes cidades, porém já há muito dançando com as divindades dos mil mundos indígenas afro-diaspóricos que se cruzam na encruzilhada Brasil Assim, quem sabe, poderemos dignamente reconhecer o horror do nosso gesto como ocidentais diante de mundos tão grandiosos. Abandonar o sentimento de culpa que nos paralisa. Desculpar-nos. Dançar. Dançando, retomar as sabedorias cosmopolíticas do Ocidente – sua herança seu tesouro escondido –, para que humildemente esse mundo, enfim, morra. Para que outros, mais dignos em seu respeito à vida, em suas múltiplas danças, possam florescer e governar os rumos dessa coreografia encruzilhada terreiro Brasil. Laroyê! Evoé!

.:. Este texto é de exclusiva responsabilidade de seus autores e não reflete necessariamente a opinião do Itaú Cultural.

Referências ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. BOURCIER, Paul. História da dança no Ocidente. In: Opus 86. Tradução Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1987. BOUREAU, Alain. Satã herético: o nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330). Campinas: Editora da Unicamp, 2016. CHERNG, Wu Jhy. Yin fú Jing: tratado sobre a união oculta. Rio de Janeiro: Mauad X, 2008.

40


Dançar na encruzilhada Brasil

DERRIDA, Jacques. De um tom apocalíptico adoptado há pouco em filosofia. Tradução C. Leone. Lisboa: Estudos Veja – Passagens, 1997. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Tradução Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2002. DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2004. DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Tradução de Joaquim Torres Costa e Antônio M. Magalhães. São Paulo: Papirus, 1991. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017. FLORI, Jean. Guerra santa: a formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão. Campinas: Editora da Unicamp, 2013. FLUSSER, Vilém. A escrita: há futuro para a escrita? São Paulo: Annablume, 2010. GOTMAN, Kélina. Choreomania: dance and disorder. Oxford: Oxford University Press, 2018. (Oxford Studies in Dance Theory). HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1987. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2007. HEWITT, Andrew. Social choreography: Ideology as performance in dance and everyday movement. London: Durham: Duke University Press, 2005. LEPECKI, André. Exaurir a dança: performance e a política do movimento. São Paulo: Annablume, 2017. ODA A. M. R. Sobre o diagnóstico diferencial entre a histeria e a beribéri: as epidemias de caruara no Maranhão e na Bahia, nas décadas de 1870 e 1880. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 2003. Disponível em: https://www.scielo.br/pdf/rlpf/v6n4/1415-4714-rlpf-6-4-0135.pdf.

41


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

PAZ, Octávio. Os filhos do barro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1984. REIS, José Carlos. História e teoria. Historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. 3. ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2006. RIBEIRO, R. I.; Sàlàmi, S. (K.). Exu e a ordem do universo. São Paulo: Oduduwa, 2015. ROPA, Eugenia Casini. A dança e o agit-prop. Os teatros não teatrais na cultura alemã do início do século XX. São Paulo: Perspectiva, 2014. SAID, E. W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: as ciências encantadas das macumbas. Rio de Janeiro: Mórula, 2018. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. WALLER, John. A time to dance, a time to die: The extraordinary story of the dancing plague of 1518. Thriplow: Icon Books, 2008.

42


Dançar na encruzilhada Brasil

43


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

Endereços na internet No emaranhado de algoritmos que se tornou a vida dos mortais neste planeta, achamos por bem reunir endereços na internet voltados para a prática da crítica nas áreas de circo, dança, teatro e demais variantes que instauram presença. A relação a seguir inclui fontes de pesquisa e consulta seminais para a produção de análise. São blogs, sites, revistas eletrônicas e portais que realimentam quem faz e quem frui artes cênicas (considerando-se que toda lista pressupõe lacunas). Individuais, coletivas ou institucionais, as iniciativas evidenciam uma alentada rede de espaços imbuída de registrar e pensar parte considerável das criações vindas a público em diferentes regiões do Brasil e, inclusive, no exterior. Um inventário provisório à maneira de bússola. Agora Crítica Teatral | www.agoracriticateatral.com.br (Porto Alegre) Alzira Revista – Teatro & Memória | www.alzirarevista.wordpress.com (São Paulo) Antro Positivo | www.antropositivo.com.br (São Paulo) Aplauso Brasil | www.aplausobrasil.com.br (São Paulo) Artezblai – el Periódico de las Artes Escénicas | www.artezblai.com (Bilbao) Bacante | www.bacante.com.br (São Paulo) Blog da Cena | www.blogdacena.wordpress.com (Belo Horizonte) Blog do Arcanjo | www.blogdoarcanjo.com (São Paulo) Bocas Malditas | www.bocasmalditas.com.br (Curitiba) Cacilda | www.cacilda.blogfolha.uol.com.br (São Paulo) Caixa de Pont[o] – Jornal Brasileiro de Teatro | caixadeponto.wixsite.com/site (Florianópolis) Cena Aberta | www.cenaaberta.com.br (São Paulo) Circonteúdo – o Portal da Diversidade Circense | www.circonteudo.com (São Paulo) Conectedance | www.conectedance.com.br (São Paulo) Crítica Teatral | www.criticateatralbr.com (Rio de Janeiro) Da Quarta Parede | www.daquartaparede.com (São Paulo) Daniel Schenker | www.danielschenker.wordpress.com (Rio de Janeiro) DocumentaCena – Plataforma de Crítica | www.documentacena.com.br (diferentes cidades) Enciclopédia Itaú Cultural | enciclopedia.itaucultural.org.br (São Paulo)

44


Farofa Crítica | www.farofacritica.com.br (Natal) Farsa Mag | www.farsamag.com.ar (Buenos Aires) Filé de Críticas | filedecriticas.blogspot.com (Maceió) Folias Teatrais – Letras, Cenas, Imagens e Carioquices | foliasteatrais.com.br (Rio de Janeiro) Horizonte da Cena | www.horizontedacena.com (Belo Horizonte) Ida Vicenzia – Crítica de Teatro e Cinema | idavicenzia.blogspot.com (Rio de Janeiro) Idança.net | www.idanca.net (São Paulo) Ilusões na Sala Escura | www.ilusoesnasalaescura.wordpress.com (São Paulo) Karpa | www.calstatela.edu/al/karpa (revista eletrônica latino-americana editada em Los Angeles) Lionel Fischer | lionel-fischer.blogspot.com (Rio de Janeiro) Macksen Luiz | macksenluiz.blogspot.com (Rio de Janeiro) Nacht Kritik | www.nachtkritik.de (Berlim) Notícias Teatrales | www.noticiasteatrales.es (Madri) O Teatro como Ele É | www.oteatrocomoelee.wordpress.com (Belém) Observatório do Teatro | www.observatoriodoteatro.uol.com.br (São Paulo) Observatório dos Festivais | www.festivais.com.br (Belo Horizonte) Palco Paulistano | palcopaulistano.blogspot.com (São Paulo) Panis & Circus | www.panisecircus.com.br (São Paulo) Parágrafo Cerrado | www.paragrafocerrado.46graus.com/ (Cuiabá) Pecinha É a Vovozinha! | www.pecinhaeavovozinha.com.br (São Paulo) Primeiro Sinal | primeirosinal.com.br/ (Belo Horizonte) Qorpo Qrítico | www.ufrgs.br/qorpoqritico (Porto Alegre) Quarta Parede | www.4parede.com (Recife) Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais | www.questaodecritica.com.br (Rio de Janeiro) Revista Barril | www.revistabarril.com (Salvador) Ruína Acesa | ruinaacesa.com.br (São Paulo) Satisfeita, Yolanda? | www.satisfeitayolanda.com.br (Recife) Teatro para Alguém | www.teatroparaalguem.com.br (São Paulo) Teatrojornal – Leituras de Cena | www.teatrojornal.com.br (São Paulo) Tribuna do Cretino | www.tribunadocretino.com.br (Belém) Tudo, Menos uma Crítica | www.medium.com/@fernandopivotto (São Paulo) Válvula de Escape | www.escapeteatro.blogspot.com (Porto Alegre) Vendo Teatro – uma Plataforma para Falar sobre Teatro em Pernambuco | www.vendoteatro.com (Recife)

45


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

Ficha técnica NÚCLEO DE ARTES CÊNICAS Gerência Galiana Brasil Coordenação Carlos Gomes Produção Felipe Sales Cocuradoria Valmir Santos

NÚCLEO ENCICLOPÉDIA Gerência Tânia Rodrigues Coordenação Glaucy Tudda Produção Karine Arruda

46


NÚCLEO DE COMUNICAÇÃO E RELACIONAMENTO Gerência Ana de Fátima Sousa Coordenação Carlos Costa Edição Ana Luiza Aguiar (terceirizada), Milena Buarque e Valmir Santos (cocurador) Produção editorial Pamela Rocha Camargo e Victória Pimentel Design Estúdio Lumine (terceirizado) Supervisão de revisão Polyana Lima Revisão do português Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas) Tradução para o espanhol Atelier das Palavras Tradução Interpretação Ltda. (terceirizado) Revisão do espanhol Atelier das Palavras Tradução Interpretação Ltda. (terceirizado)

47


crítica em movimento: \Estados da crítica de dança

48


ES

Transformaciones de la práctica y del pensar crítico Valmir Santos

__ 50

Cuerpo danzante: de una a otra imagen Rosa Primo

__ 56

Sobre los estados intermitentes de la crítica Carlinhos Santos

__ 66

Danzar en la encrucijada Brasil Daniel Fagus Kairoz

__ 74

Direcciones de internet

__ 90

Ficha técnica

__ 92

49


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

Transformaciones de la práctica y del pensar crítico

Valmir Santos1

1. Periodista, crítico y cocurador de Crítica em Movimento. Creador y editor del sitio web Teatrojornal - Leituras de Cena desde 2010. Es doctorando en artes escénicas de la Universidad de São Paulo (USP), donde también realizó una maestría en esa misma asignatura.

La fortuna crítica de una obra corresponde al campo de pensamiento que instituyó cuando se hizo pública a través de edición, grabación, filmación, escultura, pintura, presentación e interpretación. Los ocho cuadernos diseñados especialmente para la cuarta jornada Crítica em Movimento tienen el objetivo de invertir un poco esta expectativa al articular 24 textos justo en el ámbito del hacer crítico. Son visiones heterogéneas de en qué consisten y cómo se despliegan ante creaciones en circo, danza y teatro, con variantes para intervención y performance. Sabemos cuánto las circunstancias históricas, sociopolíticas y culturales involucran a practicantes y participantes, artistas, investigadores y, por supuesto, espectadores-lectores. Realizado anualmente por Itaú Cultural (IC), desde 2017, el ciclo de debates se enfoca en la recepción a las artes de la escena y el diálogo imprescindible entre públicos, creadores y críticos. En 2021, y en el contexto difícil de la pandemia, el estímulo al pensamiento supera la imposibilidad del encuentro presencial por medio de la circulación de contenidos reflexivos en texto y podcast. Además de ampliar el acceso, se busca perpetuar las discusiones de las tres ediciones anteriores, que abordaron la práctica de la crítica a la luz de problemas de este oficio, incluso combinadas con presentaciones de espectáculos. Entre los temas tratados se encuentran la precarización del trabajo en el ámbito del periódico impreso y la búsqueda de la sostenibilidad como contrapunto al mero diletantismo, el constante avance del análisis en Internet con el deseo de reinventar el estilo, la adopción de nuevos procedimientos e ideas en consonancia con los estudios universitarios y la inquietud de la escena brasileña contemporánea. También se abordaron las realidades sociales de sujetos marginados y anclados en la dramaturgia de Plínio Marcos, así como una selección latinoamericana y caribeña, con obras y reflexiones de representantes de Argentina, Chile y Cuba. Ante el insólito escenario del año anterior, marcado por el brote global del nuevo coronavirus, una de las alternativas fue la publicación en línea

50


\editorial

con ocho itinerarios de escritos realizados por 25 personas del universo de las artes de la escena. Cada volumen reúne tres análisis estimulados por los siguientes temas: 1) el papel de la crítica teatral en Brasil: del periódico impreso a la plataforma digital; 2) la brecha entre la crítica y el circo; 3) estados de la crítica de danza; 4) espacios digitales dedicados a las artes escénicas; 5) la dificultad de la crítica de coprotagonizar con el teatro callejero; 6) la escena militante en el contexto contemporáneo; 7) teatros peculiares en la doble vía con Cuba y Brasil; y 8) panorama del teatro latinoamericano visto desde el puente. En este tercer cuaderno se explora el tema Estados de la Crítica de Danza, abordado por personas familiarizadas con este arte en los campos de la creación, la investigación y la crítica en Ceará, Rio Grande do Sul y São Paulo. Al hablar de «tiempos de crueldad», que abarcan desde el 11 de Septiembre estadounidense hasta la dantesca votación por la destitución de Dilma Rousseff, golpe parlamentario llevado a cabo el 17 de abril de 2016, mediante el griterío de los diputados y diputadas federales al micrófono: «por mi padre, por mi hijo, por mi familia», la investigadora de danza, bailarina y profesora Rosa Primo (Ceará) menciona: «Es difícil olvidar esa imagen que nos movilizó a mirar. Después de eso, insisto en el hecho de que lo que el ojo absorbe de una imagen es siempre más que su objeto físico». Refinar, para ello, su definición del arte que orientó su existencia. «La danza inventa formas de no hacer mientras se hace, hacer sin hacer o hacer de otra forma, revirtiendo su sentido. Explora sus propias motivaciones, se indaga, se articula con otros movimientos artísticos, reflexiona sobre su propia historia, crea formas de ver el mundo y de revelarse en su lógica coreográfica. Es un recorrido de intensidades que, lejos de ser equivalentes, provocan una evaluación permanente. De ahí la resistencia. Sin embargo, una resistencia que no designa una capacidad de soportar, ni la capacidad de contener. La danza, para resistir, penetra el cuerpo, lo ve, lo devasta con el pensamiento y lo disuelve de tal manera que no haya adentro ni afuera», dijo la profesora de los cursos de grado y licenciatura en danza de la Universidad Federal de Ceará (UFC). «La danza, radicada en el sujeto, se convierte prioritariamente en un espacio de circulación de potencialidades y virtualidades, un espacio de tensión

51


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

entre un cuerpo por construir y un cuerpo resultado de una compleja interacción de fuerzas. Por lo tanto, están en juego los procesos de construcción de un cuerpo cuya referencia se compone de estructuras complejas de subjetividad, y no un componente centrado en el individuo como sujeto personal. Comprender el cuerpo danzante, desde esta perspectiva, sólo es posible en su movilidad, modificación y estructura transitoria. [...] en la danza el cuerpo acoge a lo intensivo, trabaja en sí la dinámica intempestiva de los acontecimientos», explica brillantemente Rosa, su faceta artística mostrando cómo el análisis puede sorber pistas aquí para un estimulante programa de crítica en danza. El periodista y crítico de danza Carlinhos Santos (Rio Grande do Sul) relata sus experiencias puntuales en el ejercicio de la crítica en el marco de festivales y muestras de danza, talleres y sitios web de crítica. «Se trata de mirar hacia el Sur, como pide Boaventura de Souza Santos, quien se refiere a la potencia de recorridos no centralizados. Este dato debe considerarse en el sentido de deconstruir una perspectiva única del ejercicio de la crítica, pero atento a diferentes contextos y realidades que también requieren miradas específicas, discursos y lecturas puntuales desde un recorte reticular», reflexiona. «Además, como hemos mencionado desde el inicio de este escrito la palabra diversidad, aún es necesario reflexionar sobre cuál es el campo fértil para la escritura crítica sobre la danza en la actualidad, sus banderas y sus proyectos. En este sentido, atentos a la premisa urgente de la descolonización de los discursos, es necesario abrir espacio a la discusión e inserción de estéticas y poéticas que aún siguen invisibilizadas. Cada vez más, la crítica debe buscar temas que confronten las lógicas del proyecto colonialista», defiende Santos. El artista transdisciplinario y crítico de danza Daniel Fagus Kairoz (São Paulo) imprime rupturas gramaticales en la estructura de su texto, como la ausencia de comas y puntos. Aprovecha el intervalo de espacio en blanco en determinados fragmentos, que tienen que ver con el punto de mutación narrativa, como si fuera en una página impresa diagramada. Después de referirse «a lo que conocemos con el nombre de mundo occidental y que también trae consigo el Oriente, que no es más que la invención de un otro, espejo de sí mismo», concluye: «Son admirables

52


\editorial Transformaciones de la práctica y del pensar crítico

los gestos las danzas los complejos movimientos de todos aquellos que se dedicaron a decir de manera crítica su propio mundo —tengo mucho que agradecerles y reverenciarlos mucho me alimentan y alimentaron son también mis ancianos— pero debemos reconocer que, a pesar de sus humanos demasiado humanos esfuerzos, solo epistemologías otras —Bantú-Kongo Yoruba Jêje Indígenas, para que quedemos en la principal encrucijada que sostiene a este país, Brasil— realmente pueden con un único golpe sacudir las estructuras del edificio occidental y dar voz y tiempo a otros mundos». Los demás escritos para la publicación en línea están firmados por la actriz Alice Guimarães, del Teatro de Los Andes (Bolivia); la actriz y especialista en circo Alice Viveiros de Castro (São Paulo), el director Altemar Di Monteiro, del grupo Nóis de Teatro (Ceará); el artista-investigador y profesor chileno residente en Fortaleza Héctor Briones (Ceará); la profesora, productora y gestora cultural Andrea Hanna (Argentina); la actriz e investigadora teatral Camila Scudeler (Colombia); el actor y crítico de teatro Diogo Spinelli, del sitio web Farofa Crítica (Rio Grande do Norte); el actor, director y profesor de teatro Edson Fernando, del sitio web Tribuna do Cretino (Pará); la profesora e investigadora de circo Erminia Silva y el investigador Daniel de Carvalho Lopes, ambos del sitio web Circonteúdo (São Paulo); la artista Fátima Pontes, coordinadora ejecutiva de la Escola Pernambucana de Circo (Pernambuco); el actor y director Fernando Cruz, del Teatro Imaginário Maracangalha (Mato Grosso do Sul); la periodista y crítica de teatro Ivana Moura, del blog Satisfeita, Yolanda? (Pernambuco); el actor e investigador teatral Lindolfo Amaral, del Grupo Imbuaça (Sergipe); el director Luis Alonso-Aude, del Grupo Oco Teatro Laboratório y del Festival Internacional Latinoamericano de Teatro de Bahia (Bahia); el pedagogo, crítico de teatro e investigador Luvel García Leyva (Cuba); la actuadora e investigadora Marta Haas, de la Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz (Rio Grande do Sul); la actriz y activista cultural Nena Inoue (Paraná); la directora y dramaturga Fernanda Júlia Onisajé, del Núcleo Afrobrasileiro de Teatro de Alagoinhas (Bahia); la periodista y crítica de teatro Pollyanna Diniz, del blog Satisfeita, Yolanda? (Pernambuco); el crítico de teatro y periodista Macksen Luiz (Río de Janeiro), que se desempeñó en el periódico Jornal do Brasil (1982-2010), inició su blog en 2011 y colaboró en el periódico O Globo (2014-2018); y la artista-investigadora y profesora Walmeri Ribeiro, del proyecto Territórios Sensíveis (Río de Janeiro).

53


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

Como se ve y se lee, este cuaderno es una producción textual que pretende ser geográfica e ideológicamente no hegemónica. Él se vuelca sobre el hacer crítico, sus potencias y dificultades en esta época de la historia de Brasil en que las insuficientes políticas públicas para las artes y la cultura enfrentan ataques beligerantes. Escucha activa En simbiosis con los cuadernos, el podcast Crítica em Movimento convoca al público en general a también activar la escucha reflexiva a través de cinco episodios. Cada uno de ellos plantea una pregunta a sus invitados. En el primero, el crítico de teatro y periodista Macksen Luiz y la crítica de teatro, investigadora y artista Daniele Avila Small, de Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais, de diferentes generaciones y ambos actuantes en Río de Janeiro, responden a la pregunta: ¿cuáles son los enfrentamientos de la práctica de la crítica de teatro actual? Este tema recorre la precarización del trabajo remunerado, la migración del hacer crítico a la Internet y cómo expandir la conversación con públicos, artistas y gestores culturales, y es mediado por el periodista y crítico de teatro que escribe estas líneas. En el segundo episodio, la investigadora, artista y profesora Lourdes Macena (Ceará) y el actor y director Rogério Tarifa (São Paulo) discuten cómo la crítica se relaciona con la noción de lo popular en las artes escénicas, con la mediación del investigador y profesor Diógenes Maciel (Paraíba). Un diálogo sobre la recepción a las expresiones culturales que emanan del pueblo, muchas veces en oposición al conocimiento formal, las normas y las ambiciones de los poderes políticos y económicos que están en juego en la sociedad. ¿Cuál es la percepción de quienes crean acerca del trabajo de la crítica? Este es el tema del tercer episodio. Para responderlo, se escuchó a los más longevos artistas de colectivos escénicos del país: la actuadora Tânia Farias, por la Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, fundada en 1978, y el dramaturgo y director Edyr Augusto Proença, por el Grupo Cuíra (Pará), que tuvo inicio en 1982. Como mediadora, la investigadora, artista de performance y periodista Maria Fernanda Vomero (São Paulo). Este trío discutirá cómo las respectivas creaciones son vistas por quienes escriben crítica en

54


\editorial Transformaciones de la práctica y del pensar crítico

sus regiones o fuera de ellas, teniendo en cuenta que las realidades social, política y económica de Brasil presentan contrastes y convergencias. La investigadora y profesora Walmeri Ribeiro (Río de Janeiro) y el actor Pedro Wagner, del Grupo Magiluth (Pernambuco), discuten como mirar y escuchar desde la escena remota. La crítica de teatro y periodista Luciana Romagnolli, editora del sitio web Horizonte da Cena (Minas Gerais), media los desafíos del análisis frente a los procedimientos artísticos que emergen en la actualidad y sientan precedentes para una nueva idea de presencia y cuerpo mediado. Finalmente, el podcast discute cuál es el lugar de la resistencia en la formación de la crítica, desde la mirada de Henrique Saidel (Rio Grande do Sul) y Dodi Leal (Bahia), artistas que manejan la investigación, la creación y la docencia en su trabajo cotidiano. Bajo la intermediación de la periodista, crítica de teatro y profesora Julia Guimarães (Minas Gerais), los artistas exploran cómo el estudio y el ejercicio de la crítica pueden abarcar procedimientos de escritura y pensamiento tan expandidos como la palpitante producción contemporánea. Se puede acceder al programa en el sitio web itaucultural.org.br o reproducirlo en su aplicación de podcast favorita. Evoé.

.:. Este texto es responsabilidad exclusiva de sus autores y no refleja necesariamente la opinión de Itaú Cultural.

55


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

Cuerpo danzante: de una a otra imagen 1. Profesora de los cursos de grado y licenciatura en danza de la Universidad Federal de Ceará (UFC). Doctora, con prácticas de danza en la Universidad de París 8. Líder del Grupo de Pesquisa Concepções Filosóficas do Corpo em Cena (Consejo Nacional de Desarrollo Científico y Tecnológico - CNPq). Fue la coordinadora de danza de la Secretaría de Cultura de Fortaleza. Autora de A Dança Possível: as Ligações do Corpo numa Cena (Expressão Gráfica e Editora Ltda., 2006). Desde 2014 realiza una investigación sobre trabajos en solitario, con la colaboración de otros artistas. En 2018 puso en escena Iracema (infantil) y Tudo Passa sobre a Terra, cuya temática se centra en el feminicidio y el etnocidio de los pueblos indígenas. 2. Como también sucedió en la obra Iracema, en la que esta memoria visual buscó los gestos de mi abuela para dar cuenta de la porción indígena que espero tener y mantener siempre y continuamente en mí.

56

Rosa Primo¹

Una imagen es siempre más Yo podría comenzar este texto recordando el 11 de septiembre. Es difícil olvidar esta fecha, que echó por tierra un proyecto de gigantescas proporciones, resultando en un nuevo orden discursivo caracterizado por batallas económicas, políticas y bélicas. Sin embargo, comienzo por el 17 de abril de 2016, que, con sus amplias diferencias, también trae a escena la caída de un proyecto, dando como resultado un pacto instalado cuyo lema positivista «Orden y progreso» —ya conservador cuando proclamaron la República a finales del siglo XIX— también instaura un nuevo discurso. Un nuevo discurso caracterizado por la «pacificación», en la que la propuesta es que cada uno vuelva a ocupar su lugar racial y social, como si fuera la organización natural de las cosas, una trama arquitectónica de carácter económico, sobre todo político, pero también abrumadoramente religiosa. «Si hay algo poco entendido e investigado en Brasil es el crecimiento de las iglesias evangélicas» (BRUM, 2016). Pues bien, el 17 de abril de 2016, por 367 votos a favor y 137 en contra, la Cámara de Diputados aprobó la admisibilidad del proceso de destitución de la presidenta Dilma Rousseff, que luego pasó al Senado, para la decisión final que la sacó de la Presidencia. El hecho en sí parece ser parte de los procedimientos políticos, como algo que se encuentra al buscarlo, manteniendo una funcionalidad propia. Sin embargo, lo que llama la atención en este despliegue es el espectáculo armado frente al escenario formado por los 513 diputados que hablaron al micrófono: «Por mi padre, por mi hijo, por mi familia...». Es difícil olvidar esa imagen que nos movilizó a mirar. Después de eso, insisto en el hecho de que lo que el ojo absorbe de una imagen es siempre más que su objeto físico. Mi memoria visual —algo que persiste en mis trabajos, especialmente al impartir clases en cursos de grado y licenciatura en danza en la Universidad Federal de Ceará (UFC), o incluso cuando participo en procesos de creación—² revisita una corporeidad aflictiva, que de aquel día 17, cuyo


lamento entonaba «tiempos difíciles», me llega hoy como algo cercano a un mundo que aún no hemos aprendido a mirar. Más que ver, mirar obliga a una atención singular en la que el cuerpo solicita un estado de presencia diferenciada, intensa, concentrada, amplificada: tiempos de crueldad. Tiempos de crueldad no se confunden con la abominación de la tortura, pero ambos indagan un aspecto profundo del cuerpo: su potencia de resistir. Resistir es un término que, según el contexto, tiene distintas configuraciones. La resistencia, para los habitantes de las ciudades, es algo diferente a la resistencia de los habitantes de la selva, especialmente en un país como Brasil, marcado por diferencias abismales en cuanto a estructuras y condiciones de vida. Pero, en ambos casos, se solicita un cuerpo que pueda hacer frente a una realidad que insiste en existir, en su dureza y compresión. ¿Qué sería esta realidad que llamo «tiempos de crueldad»? En primer lugar, un tiempo diferente a los «tiempos difíciles». La dificultad de los tiempos difíciles se hace presente sustentada en un porvenir, una especie de visibilidad en perspectiva, abstracta, atrapada en una atmósfera temporal. Los tiempos difíciles, que ya estaban allí pidiendo paso incluso antes del año 2016, se revelaron ese día 17 como un arrastrero, que no dejaba nada a su paso; un vendaval que asaltó nuestros territorios existenciales. Y luego la pregunta «¿Hay un mundo por venir?» dejó de ser retórica. Desde entonces, la crueldad ha invadido nuestras vidas, sustentada en la carne, haciéndose presente, una realidad que ha ido ocupando espacio, contaminando nuestros suelos y poniéndonos ante el colapso de nuestros ejes referenciales, ya sea desde condiciones políticas, socioeconómicas y/o ambientales. Un posible entendimiento de tal crueldad solo puede ocurrir porque el sentido se hace del cuerpo. Entiendo por «crueldad de lo real», en primer lugar, por supuesto, la naturaleza intrínsecamente dolorosa y trágica de la realidad. [...] solo tengo que recordar aquí el carácter insignificante y efímero de todo en el mundo. Pero también entiendo por crueldad de lo real el carácter único y, por lo tanto, irremediable e inapelable de esa realidad —carácter que impide,

57


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

a la vez, mantenerla a distancia y atenuar su rigor tomando en consideración una instancia cualquiera que fuese exterior a ella. Cruor, de donde deriva crudelis (cruel), así como crudus (crudo, no digerido, indigesto), designa la carne despellejada y sangrienta: o sea, la cosa misma desprovista de sus atavíos o aderezos habituales, en este caso, la piel, y reducida de ese modo a su única realidad, tan sangrante como indigesta (ROSSET, p. 17). Son tiempos marcados por exclusiones, fuerzas reactivas, conservadoras, capitalistas. En medio de esto, la COVID-19, sus protocolos, el uso de las tecnologías y las desigualdades estructurales. Tales coyunturas requieren otros cuerpos y subjetividades. En este sentido, la danza es un lugar privilegiado: tiene una importancia decisiva porque es un arte del cuerpo por el cuerpo. Trabajando en sí mismo, el cuerpo deviene danza, en un proceso permanente de invención de sí mismo y del otro. El trabajo sobre sí mismo moviliza una atención diferenciada, moviendo un tipo de visualidad que podemos definir, desde Gilles Deleuze y Felix Guattari, como háptica, induciendo una percepción más táctil que visual, una percepción cercana, a través del tacto. Es una mirada más atenta a la superficie, los detalles, los pequeños eventos que emergen en la imagen. En este ejercicio de estar frente a sí mismo, la percepción nos muestra que la imagen es siempre más de lo que se ve. Por lo tanto, es necesario acudir a esta mirada. Aprender a mirar, sobre todo a potenciar y construir un cuerpo que pueda sustentar las fuerzas que convocan a la realidad. Una imagen es siempre menos Entender esta realidad que se expresa de modo singular en el contexto de las artes es una tarea necesaria. Muchos artistas experimentan una serie de dificultades, desde financieras hasta existenciales. Creo que, ante las dificultades a las que nos hemos enfrentado, el área de las artes es quizás una de las más afectadas. En el contexto de la danza, los trabajos se están produciendo y presentando a través de plataformas digitales. Esto desde ahora plantea grandes desafíos: ¿cómo mantener la potencia que promue-

58


Cuerpo danzante: de una a otra imagen

ve el intercambio presencial ante el escenario de la pandemia que impone el distanciamiento y encierro de cuerpos disociados de la convivencia social? En otra perspectiva, ¿cómo abrir posibilidades de reinvención para estos cuerpos que danzan, hoy sometidos a una especie de violencia, de impedimento (impeachment)? ¿Cómo crear, a partir de este bloqueo, otras formas de existir y movilizar fuerzas para enfrentar esta violencia? Insisto en la condición de sostener el futuro, mantener viva la posibilidad del propio cuerpo y su redescubrimiento, en su potencia de mirarse. La relación con las plataformas digitales nos lleva a la dimensión de la presencia, en medio de los límites que impone la producción de la imagen. Ante esto, no faltarán argumentos sobre el tema con base en aspectos negativos. Destacarán la tendencia al reduccionismo del vídeo frente al espectáculo, en virtud del cambio de tridimensional a bidimensional o en consecuencia del encuadre, desde la perspectiva de que la imagen es siempre menos que la presencia. De hecho, como se ha discutido históricamente en la videodanza, hay un cambio importante de estatus entre lo filmado y el espectáculo en sí. Pero la cuestión central es pensar en la posibilidad de construir nuevas formas de mirar a través de la cámara —y creo que para los artistas de la danza esta mirada (háptica) ha recorrido, y recorre, lugares diminutos, sutilezas inadvertidas, objetos casi inexistentes que en el día a día formaban el orden de sus casas—. Para muchos, tal vez, el primer problema de la pandemia: tanto tiempo dentro de casa. Para los artistas, quizás, el primer impulso de reconocerse de otra manera. Los objetos que antes componían los espacios cotidianos, manteniendo y garantizando la función habitual del hogar, comienzan a evocar un sentimiento de extranjero. La percepción de las cosas y su acción induce procesos de invención de sí mismo y del otro, disociando la estricta funcionalidad de los objetos y desmantelando el uso de los espacios establecidos como de uso adecuado. Toda la casa se mueve como deseo de restablecer un contacto más sensible y corporal con los objetos y las propias imágenes. La casa se convierte entonces en un lugar de invención y experimentación. En ella, las imágenes no solo se observan, sino que también observan: «La sensación es que me observan las imágenes», dice Felipe Querino, uno de los seleccionados en danza en la convocatoria I Edital Festival Cultura Dendicasa³: Arte de Casa para o Mundo, realizada por la Secretaría de Cultura del Estado de Ceará (Secult) durante el mes de abril de 2020.

3. Realizada en 19 días, desde el proceso de selección hasta los 400 proyectos aprobados, entre los más de 1.700 inscritos, la convocatoria es una acción puntual en el contexto de aislamiento social que impactó mucho el sector artístico y cultural; su objetivo se centra en promover y movilizar la economía artística, creativa y cultural de Ceará ante la situación de emergencia y enfrentamiento al coronavirus, fomentando la sostenibilidad de artistas, colectivos, compañías, demás profesionales y emprendimientos culturales del estado. Cubriendo solo una parte de las demandas presentadas por los foros de lenguas y sectores culturales, con miras a promover contenidos artísticos para su difusión en diferentes plataformas, la convocatoria contó con una inversión de R$ 1 millón procedentes del Fondo Estatal de Cultura. El contenido seleccionado está disponible en una plataforma en línea. En total, son más de 7.300 minutos de contenido, lo que representa 123 horas de material producido por los participantes de diferentes lenguajes artísticos. Vea algunos trabajos en el sitio: https://culturadendicasa. secult.ce.gov.br/linguagens-danca-moda-design-fotografia/.

59


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

4. Para obtener más información, acceda a: https://culturadendicasa.secult. ce.gov.br/noticia/trilhasculturais-8-conteudos-de-danca-aulas-coreografias-e-documentario/.

El Edital Dendicasa, como quedó conocida la convocatoria, generó una serie de trabajos de danza realizados en casa: clases, documentales, creaciones coreográficas⁴. La casa compone una estructura operativa, donde los objetos y lugares ejercen y constituyen funcionalidades responsivas. Crear una corporeidad danzante frente a este espacio habitual, cotidiano y funcional impone a partir de ahora un desplazamiento: primero se desterritorializa el espacio —se desterritorializa radicalmente, volviéndose así propicio para la experimentación—. Por lo tanto, antes, un lugar concreto, delimitado por paredes, puertas, entradas y salidas, calles y avenidas; luego, solo atmósferas. La casa carga en sí un imaginario de espacio estricto, siendo compartida según la respuesta esperada a cada situación específica —como soporte para soluciones adecuadas según surgen posibles problemas—. Este espacio seguro, dotado de una cierta construcción mental que afirma su disposición para decisiones asertivas, resolución de dificultades y conducente a estados de calma, al componer el cuerpo danzante en procesos de creación, se disuelve en un torbellino de cuestiones, sensaciones y estados de atención, requiriendo una actitud atencional, concentrada y abierta. En ella, nada se resuelve al estar en este estado corporal de composición y experimentación. El desencadenamiento de problematizaciones no se agota al encontrar una solución. La casa fustiga, instiga. Confinados en su interior, siguiendo los protocolos de aislamiento domiciliario y control de la infección por COVID-19, muchos artistas se han ocupado de desarrollar proyectos estéticos que actualmente mueven intensamente las redes. La escena, por lo tanto, se construye sin límites de paredes y sigue desde ahora cuestionando el concepto de artes vivas, expresadas como contacto directo y vivo entre el público y los artistas. Resistiendo el encierro y sobreviviendo a la red, además de convertirse en un acontecimiento a partir de colectivos, los procesos artístico-educativos en danza nos llegan como un movimiento cuyo recorrido es de aprendizaje permanente, una práctica en el orden del «sí mismo» o, cómo le gustaba enunciar a Foucault, un trabajo de sí sobre sí mismo; el sentido de la enseñanza pensándolo y practicándolo de otras formas. Si antes del coronavírus paredes, redes y colectivos ya marcaban desplazamientos en este entorno, hoy, ante el estado pandémico, este camino es posiblemente la única realidad.

60


Cuerpo danzante: de una a otra imagen

Una imagen es siempre múltiple Como artista de danza, y por el momento más en el papel de crítica, me pregunto qué cuestiones podemos ver en las obras de danza que se producen hoy y cuáles son las consecuencias políticas de estas elecciones para la escena y la experiencia en danza. Creo que una posible respuesta debe venir del mismo proceso del artista en su deseo y estado de creación. Tal vez Intergaláctico no responda a estas preguntas de manera sistemática, pero seguramente expande la comprensión de este estado de cosas y plantea nuevas preguntas que nos hacen pensar. Un cuerpo fragmentado, deforme, desproporcionado. Un cuerpo tan absurdamente grande que no cabe en la pantalla, en el visor de una cámara. Estas son imágenes que impulsaron el trabajo artístico en danza de Maria Epinefrina, llamado Intergaláctico, cuya investigación se inició en 2018 y se ha reinventado a partir de las condiciones necesarias para su presentación. Desde el inicio, el propósito de Intergaláctico era la relación entre la danza y la tecnología. Sin embargo, se han construido nuevos Experimentos de él con base en la realidad del avance de la COVID-19 y del escenario límite de la casa de Epinefrina. Los experimentos vinieron de la investigación de Intergaláctico. Algunos los compartí, otros no. El Experimento no 9 surgió por invitación de Sesc para presentar desde la casa y luego hacer una transmisión en vivo. Creo que ellos pensaron que, al ser una presentación en solitario, sería algo tranquilo para hacerse en casa. Pero no fue así. El espectáculo y la investigación del movimiento requieren una estructura. Hacer los movimientos de Intergaláctico en casa, ¡en el piso cerámico! Yo terminaría el proceso y la presentación llena de moratones y maltratada. Además de la necesidad técnica del trabajo, un piso adecuado es muy importante. Ante esta dificultad, propuse a Sesc presentar el Experimento no 2, que no requiere condiciones más complejas de luz y sonido y que ocurre de

61


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

manera más íntima. Cuando presento el Experimento no 2 presencialmente, el público queda sentado en el piso, más cerca del cuerpo, propuesto de manera más cruda. Lo he presentado algunas veces. Pero luego surgieron varias preguntas: ¿cómo sería hacerlo en línea? ¿En una red social con tanta información? ¿Rodeada de más información? Especialmente esta investigación que tiene otro tiempo... Es más lento... Yo pensaba: ¡nadie tendrá la paciencia de ver esto! Yo no la tengo. Fue entonces cuando, durante la cuarentena, yo estaba invirtiendo mucho en esta relación del cuerpo y el acercamiento a la cámara. El fragmento. El recorte. ¿Cómo podemos, a partir de un recorte, tener otra configuración corporal? Intergaláctico es un cuerpo que se despliega en el tiempo y el espacio. Es genial pensar en las diferentes formas de ver y enmarcar el espacio. El espacio del cuerpo en el espacio. A partir de eso, decidí que realmente sería un nuevo experimento. No había manera de hacer una transmisión en vivo con la cámara parada mientras yo simplemente presentaba la investigación. Entonces vino Experimento no 9. Lo llamo experimento porque es realmente un experimento. No lo considero una obra. Es un experimento. Con la verdadera intención de experimentar algo. Le pedí ayuda a Wellington Fonseca, a quien le encanta filmar. Le pedí a Linhares Jr. que me dejara hacerlo en Karthaz. Y luego de una conversación, en que expliqué los puntos a investigar, Wel y yo, con la banda sonora creada por Cozilos Vivos, experimentamos este cuerpo fragmentado. Yo en el movimiento y él en la filmación. Intergaláctico en sí mismo también propone un cuerpo fragmentado, ¿no? Cuando aparezco con la cabeza entre las piernas, pantalones negros en

62


Cuerpo danzante: de una a otra imagen

la oscuridad, el cuerpo se fragmenta. Y luego venía la cámara para fragmentarlo aún más. Yo quería que se viera más piel, más huesos, más deformes, tal vez un cuerpo enorme, un cuerpo tan grande que no cupiera en la pantalla. Esta imagen me ayudó. También me ayudó pensar en cuáles son las diferentes maneras posibles de acercarse, de tener este cuerpo, ¿no? Creo que pensar desde otras perspectivas sobre un trabajo es expandir el espacio de ocupación de la obra... Así como sus huellas. Intergaláctico habla sobre todo de expandir. Me interesa mucho expandir espacios, mostrar otras miradas desde la investigación que desarrollo (entrevista con Maria Epinefrina el 30 de septiembre de 2020). Destaco que la transcripción del habla misma de Maria Epinefrina ocurre por la fuerza del texto, de sus palabras, de la forma en que expone las dificultades del momento, las cuestiones que conlleva presentar un trabajo en esta situación de pandemia, la necesidad de realizar el trabajo, ya sea por el deseo de producir o por la falta de trabajo y, por tanto, todo lo que conlleva esta ausencia, que no se limita a lo económico. Sin embargo, creo que la mayor potencia en el habla de Maria es la disponibilidad para mirarse y descubrirse de otra manera en sus obras. Tomada por la intensificación del espacio, Maria entra en un estado de creación y disuelve el sujeto empírico y funcional de la vida cotidiana, una atención diferente a la involucrada en la realización de tareas. El deseo de crear Experimentos la transforma. Maria Epinefrina rompe y desmantela esquemas conocidos y cómodos y se lanza en busca de otra cosa, se reinventa, produce otro trabajo del mismo trabajo. Destaco también en el habla de Epinefrina lo colectivo, la red de solidaridad entre los artistas. Uno ayuda con la luz, otro con la cámara, otro con el lugar de ensayo... Es una apertura, una disposición para superar límites, manejar flujo, texturas, matices, lo que implica un movimiento de desubjetivación, de desprendimiento de sí mismo. Todo este proceso involucra pensamiento, estado de atención, actitud, movimiento, encuentro, experimentación, problematización. Por lo tanto, requiere valentía, un movimiento de contestación, de creación de espacios. Los espacios como fisura estética, como

63


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

otro modo de ser: deseo de presencia. Es decir, el deseo de restablecer un contacto más sensible y corporal con los objetos y las propias imágenes. Más que un estilo o un modo de formar, es una nueva manera de relacionarse con las imágenes y el mundo, otra forma de estar en el mundo, donde es posible abandonar toda distancia, toda centralidad y claridad ópticas para involucrarse en una cadena de impresiones táctiles, hápticas. La danza inventa formas de no hacer mientras se hace, hacer sin hacer o hacer de otra forma, revirtiendo su sentido. Explora sus propias motivaciones, se indaga, se articula con otros movimientos artísticos, reflexiona sobre su propia historia, crea formas de ver el mundo y de revelarse en su lógica coreográfica. Es un recorrido de intensidades que, lejos de ser equivalentes, provocan una evaluación permanente. De ahí la resistencia. Sin embargo, una resistencia que no designa una capacidad de soportar, ni la capacidad de contener. La danza, para resistir, penetra el cuerpo, lo ve, lo devasta con el pensamiento y lo disuelve de tal manera que no haya adentro ni afuera. La danza, radicada en el sujeto, se convierte prioritariamente en un espacio de circulación de potencialidades y virtualidades, un espacio de tensión entre un cuerpo por construir y un cuerpo resultado de una compleja interacción de fuerzas. Por lo tanto, están en juego los procesos de construcción de un cuerpo cuya referencia se compone de estructuras complejas de subjetividad, y no un componente centrado en el individuo como sujeto personal. Comprender el cuerpo danzante, desde esta perspectiva, sólo es posible en su movilidad, modificación y estructura transitoria. En este punto, para terminar, en la danza el cuerpo acoge lo intensivo, trabaja en sí la dinámica intempestiva de los acontecimientos. ¿Y qué es este intensivo? Son los flujos, las fuerzas, las velocidades, los movimientos moleculares que animan la vida misma, pero en estado salvaje, es decir, libres de cualquier mecanismo de semiotización, regulación, estratificación, institución y control creados por todos los regímenes de poder que trataron de producir un cuerpo unitario, sensato, finalizado según las necesidades prácticas de las representaciones sociales. Tiempos difíciles, tiempos de crueldad... ¿De qué es capaz una sociedad? Esta pregunta no puede responderse fuera del campo de las acciones, no puede responderse sin el riesgo de la historia del 11 de septiembre, el 17

64


Cuerpo danzante: de una a otra imagen

de abril, el 1 de enero de algunos años... Hoy. Sin embargo, al menos podemos afirmar que no será posible responder a esta pregunta mientras estemos atrapados en concepciones que nos separan de nuestras fuerzas, que nos separan de nuestros cuerpos y sus intensidades. Por fin, un cuerpo que danza.

.:. Este texto es responsabilidad exclusiva de sus autores y no refleja necesariamente la opinión de Itaú Cultural.

Referencias ALLOA, Emmanuel (org.). Pensar a imagem. Belo Horizonte: Autêntica, 2015. BRUM, Eliane. Temer y los amos de la Casa Grande se engañan. Las élites que apoyan el ‘impeachment’ aún no lo han entendido: seguirá habiendo contestación a sus privilegios. El País, 18 de mayo de 2016. Disponible en: https:// elpais.com/internacional/2016/05/18/america/1463604038_365566.html. Accedido el: 30 sep. 2020. DELEUZE, G.; GUATTARI, F. Mil Platôs. v. 5. São Paulo: Editora 34, 1997. GIL, José. Caos e ritmo. Portugal: Relógio d’Água, 2018. ROSSET, Clément. O princípio de crueldade. 2. ed. Río de Janeiro: Rocco, 2002.

65


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

Sobre los estados intermitentes de la crítica

Carlinhos Santos¹

1. Historiador y periodista, especialista en cuerpo y cultura y que tiene un magíster en educación (Universidad de Caxias do Sul - UCS). Como intérprete-creador, participó en los espectáculos Fato e Interface, del coreógrafo Ney Moraes, además de firmar la creación y dirección de la videodanza Estação, con Verônica Zevallos. Es crítico de danza y curador, ha actuado en muestras y festivales, además de colaborar con el portal Idança y el sitio Agora Crítica Teatral. Fue profesor en el curso de tecnología en danza (UCS), director de la Cia. Municipal de Dança y coordinador de la Unidad de Danza de la Secretaría de Cultura de Caxias do Sul (Rio Grande do Sul).

En el mundo contemporáneo, que exige cada vez más una mirada atenta a las particularidades de experiencias que problematicen y contemplen la diversidad, el desafío de hablar de los estados de la crítica en el campo de las artes, especialmente de la danza brasileña, requiere mirar hacia una imbricada colección de información a compartir de manera sistémica. La perspectiva es intentar catalizar algunos contextos y experiencias. Son recorridos plurales que ha descrito esta producción específica. Entonces, esta es una escritura que se hace de un lugar periférico al convencional. Se plantean algunas experiencias más allá del eje establecido de producción y circulación de este escrito, marcado principalmente por centimetrajes de texto obtenidos en soportes de medios impresos convencionales de los «centros» del país. Esta narrativa trae relatos sobre experiencias puntuales en el ejercicio de la crítica en el marco de festivales y muestras de danza, talleres y sitios web de crítica. Se trata de mirar hacia el Sur, como pide Boaventura de Souza Santos, quien se refiere a la potencia de recorridos no centralizados. Este dato debe considerarse en el sentido de deconstruir una perspectiva única del ejercicio de la crítica, pero atento a diferentes contextos y realidades que también requieren miradas específicas, discursos y lecturas puntuales desde un recorte reticular. Pero es necesario registrar, se resalta desde ahora, lo que está puesto en el sentido de la permanencia y la importancia de la crítica: «Percibo una mezcla de arrogancia y defensa del territorio en esta nostalgia que insiste en el fin de la crítica. La crisis de la crítica resuena en la crisis de la política, de un espacio común, múltiple y guiado por diferencias, donde se negocian expectativas y deseos» (OSÓRIO, 2005, p. 9). En la búsqueda de las diferencias y las razones para la enunciación de otros discursos y experiencias para la crítica de la danza, se perfila una escritura atravesada por reflexiones conceptuales y citas de producciones teóricas sobre este tema, con apuntes que entienden que el debate sobre la crítica incluye el tema de los rumbos del periodismo cultural practicado en diferentes plataformas de información.

66


Se sabe que, en las dos últimas décadas, debido a políticas editoriales y contextos económicos, la reducción de los suplementos culturales y los espacios específicos para la crítica en los llamados grandes medios de comunicación ha impulsado la apertura de otros espacios dispuestos para esta tarea. Se inauguran así otros frentes de acción. En este aspecto, con dispositivos tan diferentes, la crítica puede asumir el sesgo de mediación, ubicándose en estados de diálogos y anotaciones de potencialidades de un entorno artístico. Desde esta perspectiva, durante varias ediciones del Festival de Dança do Triângulo, con sede en Uberlândia (Minas Gerais), entre 2010 y 2016, pude ejercer la tarea de crítico invitado para escribir sobre los trabajos exhibidos en una muestra que reunió a grupos aficionados y profesionales, produciendo textos publicados en el sitio web del evento. En este lugar específico, el ejercicio del crítico es el de mediador de las experiencias sensibles presentadas de manera puntual. Incluso adquiere un carácter pedagógico. La tarea posible es mapear experiencias atravesadas por contextos específicos, con obras provenientes de proyectos sociales, escuelas de danza y otras formaciones diversas. Para este desafío puntual, en un intento de registrar una determinada escena y sus contextos, mapeando recorridos y evidenciando peculiaridades, señalando similitudes y registrando diferencias, la perspectiva de la crítica genética de la investigadora Cecília Almeida Salles sugiere que se penetren las capas superpuestas de las obras y de sus creadores. Requiere lecturas sobre el conjunto de pensamientos acerca de mundos organizados por los diferentes gestores y articuladores de los trabajos presentados. Este proceso requiere que el crítico descubra y comparta las especificidades del proceso de creación de ese contexto, para el establecimiento de mediaciones entre lo que está puesto y el público, desarrollando un escrito que permita múltiples lecturas de los códigos estéticos y conceptuales, de la cadena creativa de lo que finalmente se analiza. Para este procedimiento se mapean los códigos éticos y estéticos de una determinada escena, sus potencias y experiencias que particularizan un determinado contexto histórico y artístico: «Muchos temas de suma importancia para discutir el arte en general y el producido en las últimas dé-

67


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

cadas, en particular, necesitan una mirada capaz de abarcar el movimiento, debido a que las lecturas de objetos estáticos no son satisfactorias ni eficientes» (SALLES, 2006, p. 16). Desde esta perspectiva, en un entorno como el Triângulo Mineiro, atravesado por herencias culturales de raíces africanas, como las congadas, con un vigoroso escenario de danzas urbanas, donde se mantiene la presencia de las escuelas clásicas y la aparición de danzas tribales de matrices indias y árabes, corresponde al reseñador de la escena anotar esta dinámica y diversa red de referencias. Aquí, el posible estado de la crítica es señalar lo que particulariza un contexto y un entorno, promoviéndolo al vector central de la escritura. Y ella, la crítica, es solicitada todo el tiempo en estos contextos de festivales y muestras precisamente por la importancia de la retroalimentación que establece, cumpliendo una de sus funciones, que es el registro de experiencias significativas, sus potencias y correlaciones en la multifacética escena de la danza contemporánea brasileña. Sin embargo, existen otras experiencias importantes que anuncian estados de fomento y activismo de la crítica en la danza brasileña. Debido a este sesgo, el ejercicio de compartir información y posibles formatos de escritura sobre la danza también se ha llevado a cabo en talleres específicos, en encuentros como Festival de Dança de Itacaré (Bahia, 2019); Aldeia Sesc Arsenal (Cuiabá/Mato Grosso, 2018); y Modos de Existir, de Sesc Santo Amaro (São Paulo/SP, 2018). En estas instancias, la idea de activismo en defensa del espacio de la crítica y sus diferentes posibilidades de permanencia y aporte a los escenarios se organizó a partir del concepto de artista-etc., De Ricardo Basbaum: «Cuando el artista es artista a tiempo completo, lo llamaremos “artista-artista”; cuando el artista cuestiona la naturaleza y la función de su papel como artista, escribiremos artista-etc.» (BASBAUM, 2013, pág.8). La propuesta aquí es problematizar la idea de crítica entre los artistas de la danza, las artes escénicas y el público de este lenguaje, promoviendo intersecciones de información y reflexiones sobre estas producciones. Se busca establecer un diálogo entre las instancias de los procesos de crea-

68


Sobre los estados intermitentes de la crítica

ciones visibles en escena, sus confluencias y reverberaciones, en busca de una lectura plural, amplia y multirreferencial de estas creaciones. Aquí, el etc. de estos contextos interesa mucho. El texto crítico conduce a una expansión y reverberación de la obra analizada. Para la construcción de este proceso de reflexión y producción textual se utilizan referencias y estrategias de escritura crítica ya establecidas, con el fin de llegar a un posible nuevo modo operativo con estrategias de reflexión o nuevos modelos para esta misma operación —en el neologismo, una «crítica-etc.»—. Nuevamente, se buscan nuevas posibilidades de tejer pensamientos para la danza, desdibujando modelos y formatos ya existentes. Pero, como aquí nos ocupamos de movimiento, problematizando la reseña descriptiva y valorativa de lo correcto y lo incorrecto, ¿qué es lo que requiere aún más este recurso? Se trata de establecer formas de deslizamientos en los circuitos de la producción crítica sobre y para la danza. Para estos recorridos todavía hay otro importante camino conceptual. La Teoria do Corpomídia [Teoría del Corpomedia], de Christine Greiner y Helena Katz, siempre invita a la reflexión. Ella explica que, al danzar, todo cuerpo intercambia información con los ambientes por los que circula, y ese intercambio establece un circuito de nuevas inferencias, afectando incluso a los propios ambientes de producción. El cuerpo (ya) no es un medio por el cual simplemente pasa la información, porque toda la información que llega entra en intersección. El cuerpo no es o un lugar donde solo se alberga la información. El medio al que se refiere el corpomedia tiene que ver con el proceso evolutivo de seleccionar la información que constituye el cuerpo (GREINER; KATZ, 2005, p. 131). Así, comunicar a través de la crítica sobre los cuerpos que danzan es también un nuevo movimiento cognitivo, ya que siempre hay desplazamientos de interpretaciones y lecturas. A partir de este conjunto de posibilidades de pensar y ejecutar la crítica, la tarea sería evidenciar cómo las obras

69


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

enuncian y explicitan su colección de informaciones organizadas como pensamiento artístico. Un ejercicio de mapeo de referencias conceptuales y estéticas organizadas en redes correlacionadas. Estas instancias conceptuales y operativas requieren lecturas plurales, atentas a los contextos que generaron las obras, las trayectorias de sus autores, sus procesos de composición, sus redes de referencias. Es necesario tener una percepción abierta a las mezclas que establecen los objetos/ obras analizados. También vale la pena intentar señalar las relaciones de acoplamientos y contaminaciones recíprocas, en la distinción y percepción de la nitidez de los contornos que los separan o acercan entre sí. La tarea es decodificar estos contornos, leer estas contaminaciones, exponer estos acoplamientos, mapear nuevos formatos y poéticas para los escritos. En esta perspectiva, una crítica atenta lee, por ejemplo, el espectáculo Cria, de la Cia. Suave (Río de Janeiro), presentado en Palco Giratório Sesc (2019), como un rompecabezas armado a partir de una recopilación de información sobre lo que la danza contemporánea brasileña ha enunciado como discurso estético y coreográfico en las últimas décadas: Si el Grupo Corpo asumió para su ballet los corta-jacas [pasos de samba] y los bamboleos en cuerpos-partituras sobre brasilidades; y Lia Rodrigues desdibujó los márgenes del cuerpo, reuniendo cuerpos-manchas humanas en improvisaciones de movimientos y mareas danzantes; Alice Ripoll bosqueja un entendimiento del funk como afirmación y potencia de cómo estos tránsitos de los lenguajes de las danzas, los pasos y los bamboleos, las caderas y las salidas disparejas actualizan el repertorio de la danza brasileña (SANTOS, 2019). Este fragmento de una crítica que hice para el sitio web Agora Crítica Teatral, de Porto Alegre (Rio Grande do Sul), ubica un ejercicio de escritura que busca dialogar con los repertorios conocidos y los códigos establecidos, con el conjunto de informaciones ya puestas en la escena de la danza brasileña y con los diálogos que se abren a un «nuevo» estético-coreográfico.

70


Sobre los estados intermitentes de la crítica

Los nuevos recorridos, las nuevas actualizaciones y otros vectores de la producción de discursos sobre la crítica, su pertinencia y posibilidades se organizan en la colección de artículos reunidos en el volumen 5 de la Coleção Húmus, publicada en 2016, cuya organización lleva mi firma. La publicación se centra en experiencias históricas marcadas o refrendadas por la crítica; registra proyectos puntuales, como la plataforma 7X7, creada por la artista Sheila Ribeiro; y afirma trayectorias importantes, como la de los críticos Marcelo Castilho Avellar y Roberto Pereira, además de traer otros artículos que se enfocan en variaciones de temas para la crítica de danza brasileña. En uno de los textos de este volumen de la Coleção Húmus, la autora Helena Katz analiza la emergencia de espacios para el ejercicio de la crítica mediados por la idea de autoautorización practicada en sitios web, blogs y plataformas, entre otras pantallas que han mediado la comunicación contemporánea. Según el texto, «cada uno puede postear, publicar, comentar, clasificar, elogiar, calificar, borrar, compartir, dar “me gusta” a lo que quiera por el tiempo que quiera, decir lo que sea sobre cualquier tema. Me, Myself and I se convirtió en la brújula del modo de existir, tanto on como offline». Para salir de este atolladero, en palabras de la crítica de danza, la escritura necesita «saber discernir, separar y tamizar para poder juzgar». Y para poder discernir, separar y tamizar, subraya la autora, «es necesario tener conocimientos especializados». No se trata de reducir a la acción de separar y clasificar por parámetros que califican, como feo/bello, bueno/malo, bien/mal, correcto/incorrecto. Es juzgar en el sentido de calificar, atribuir cualidades y derivas conceptuales a un determinado procedimiento coreográfico que se ofrece como lectura de una época y sus contextos. «Hay que tener cuidado para saber que un posible agotamiento de la continuidad de la crítica que se había consolidado en la prensa tradicional no significa que se haya agotado la necesidad de actividad crítica» (KATZ, 2016, p. 139). Por lo tanto, lo que pide la crítica en la contemporaneidad es un estado constante de reinvención y expansión de sus posibilidades de ejercerse. Parte importante de la escena, la crítica carece de nuevas estrategias de ejecución y abre contextos y soportes posibles, siempre y cuando se guíen por un pensamiento ético y estético, al reforzar una red operativa potente y relevante.

71


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

Por eso, las experiencias de escritura crítica realizadas en festivales y muestras, en talleres específicos, en nuevos frentes de acogida de su práctica, ahora y cada vez más mediadas por los entornos virtuales, como muchas de las experiencias aquí relatadas, contribuyen al mantenimiento y la renovación de su importancia para el conjunto de la danza brasileña. Entonces, una y otra vez, la tarea o el papel del crítico será contribuir a fomentar la diversidad de experiencias, trayectorias y legados de la danza para la producción de conocimientos y pensamientos relevantes y que contribuyan a la diversidad cultural brasileña. Además, como hemos mencionado desde el inicio de este escrito la palabra diversidad, aún es necesario reflexionar sobre cuál es el campo fértil para la escritura crítica sobre la danza en la actualidad, sus banderas y sus proyectos. En este sentido, atentos a la premisa urgente de la descolonización de los discursos, es necesario abrir espacio a la discusión e inserción de estéticas y poéticas que aún siguen invisibilizadas. Cada vez más, la crítica debe buscar temas que confronten las lógicas del proyecto colonialista. Así, en estas derivas y gestiones de mediación, activismo, problematización de formatos y registros de experiencias relevantes, esta otra mirada expande la práctica de la crítica de la danza al ejercicio de la pluralidad y la ciudadanía. Un esfuerzo por leer sobre los recorridos y aportes de la danza al mundo contemporáneo.

.:. Este texto es responsabilidad exclusiva de sus autores y no refleja necesariamente la opinión de Itaú Cultural.

72


Sobre los estados intermitentes de la crítica

Referencias BASBAUM, Ricardo. Manual do artista-etc. Río de Janeiro: Becomdo Azougue, 2013. KATZ, Helena; GREINER, Christine. Por uma teoria do corpomídia. En: GREINER, Christine (org.). O corpo. Pistas para estudos indisciplinares. São Paulo: Annablume, 2005. p. 125-133. KATZ, Helena. Um dois três: a dança é o pensamento do corpo. Belo Horizonte: FID Editorial, 2005. KATZ, Helena. Crítica de dança em tempos de me, myself and I. En: SANTOS, Carlos Alberto Pereira dos (org.). Húmus 5. Caxias do Sul: Lorigraf, 2016. p. 139-149. OSÓRIO, Luiz Camillo. Razões da crítica. Río de Janeiro: Jorge Zahar, 2005. SALLES, Cecília A. Gesto inacabado: processo de criação artística. São Paulo: Annablume, 1998. SALLES, Cecília A. Crítica genética: uma (nova) introdução. São Paulo: Educ, 2000. SALLES, Cecília A. Redes da criação: construção da obra de arte. Valinhos: Editora Horizonte, 2006. SANTOS, Carlinhos. Crias do funk reinventam a dança contemporânea brasileira. Agora Crítica Teatral, Porto Alegre, 4 jun. 2019. Disponible en: www.agoracriticateatral.com.br. Accedido el 26 de septiembre de 2020.

73


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

DANZAR EN LA ENCRUCIJADA BRASIL 1. Vive y trabaja en São Paulo (São Paulo). Encontró en el pensamiento coreográfico una forma de articular su gesto artístico y realizar sus obras, transitando entre diferentes lenguajes y territorios: arquitectura, danza, video, texto, libro, artes visuales, música y filosofía. Licenciado en comunicación de las artes del cuerpo por la Pontificia Universidad Católica de São Paulo (PUC/SP). Desde 2014 coordina el Terreyro Coreográfico, encrucijada entre coreografía, arquitectura y cosmopolítica que crea proyectos de cultivo de la dimensión pública de los espacios de las ciudades.

74

Daniel Fagus Kairoz¹


«Solo se puede leer con base en alguna creencia. Toda lectura crítica debe partir de otra que no se puede criticar. Sin ella, nada se puede criticar, nada se puede leer. Hemos perdido esa creencia de que no se puede criticar. Con ello, hemos perdido totalmente la capacidad de criticar y leer». (A Escrita, Vilém Flusser) «Cuando el cielo o el destino colectivo despierta la circunstancia, las fuerzas que estaban ocultas, replegadas u escondidas bajo el manto de la oscuridad son reveladas y liberadas para promover el cambio necesario de lo antiguo a algo nuevo». (Tratado sobre a União Oculta, Imperador Amarelo, traducido por Wu Jyh Cherng)

Este texto es un ejercicio de escucha de mis ancianos, además de escucha del mundo en el que habito. Brasil es mi encrucijada. Me encuentro entre mundos. Me pierdo en varios de ellos. El pensamiento coreográfico me guía en mi lectura, ya sea crítica o adivinatoria², de estos varios mundos. Me esforzaré por conducirles, personas lectoras, por los múltiples caminos de esta encrucijada-escritura. Perderse quizás sea una condición de (nuestro) encuentro En esta encrucijada entre mundos, hay uno en especial que está llegando a su fin, su medianoche —según algunos científicos, queda solo un minuto y cuarenta segundos³—. Un mundo que se hizo con mucha dificultad y esfuerzo, que robó y roba fuerza vital de sus mundos circundantes, para obtener la fuerza suficiente para mantenerse en pie durante sus 2020 años Me refiero a lo que conocemos con el nombre de mundo occidental y que también trae consigo el Oriente, que no es más que la invención de un otro, espejo de sí mismo. Porque esta región del mundo que fue estigmatizada con el nombre de Oriente consiste en muchos y diversos mundos⁴ —cuando en este texto digo Occidente, me refiero a una perspectiva específica de un mundo que se ha estado imponiendo a los demás de una manera extremadamente violenta— Este mundo occidental dice que su origen está en Egipto pasando por Grecia Roma y que, en un determinado momento, que él mismo denominó Edad Media, momento de ruptura y transición, comenzó una expansión interna

2. «Se puede leer de acuerdo con dos métodos: con criterios (se sabe lo que hay que picotear) o indiscriminadamente. El primer método se llama "crítica", el segundo se refiere a la palabra inglesa "to read", que significa "adivinar". Los pollos son juiciosos: picotean según el criterio de "comestible/no comestible". Pero este criterio impide que los pollos escriban: ellos comen los granos, en lugar de ordenarlos en filas. Nuestros antepasados, por el contrario, deben haber organizado en filas las pulgas recogidas, antes de comerlas. A favor de esto, se decía que ellos ponían las piedras en fila. Esto confirma que el pensamiento crítico precede a la escritura, lo que sigue siendo molesto. Aquellos que afirman que la escritura activa la capacidad crítica y la fomenta (también un argumento en este libro) tienen que intentar repensar su visión acerca de los pollos» (Vilém Flusser en Escrita, p. 92). 3. Referencia al Doomsday Clock, reloj simbólico mantenido desde 1947 por el comité de directores del Bulletin of the Atomic Scientists, de la Universidad de Chicago. 4. Para una discusión más profunda, vea Orientalismo – o Oriente como Invenção do Ocidente, por Edward Said.

75


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

5. Concepto creado por los filósofos Isabelle Stengers y Bruno Latour contra la idea de que existe una realidad única, que utilizo aquí para referirme a perspectivas de mundos que no padecen de antropocentrismo, que piensan la política como interacción, intercambio y conflicto entre mundos diversos, humanos y extrahumanos..

en el mismo continente europeo que culminó en un nuevo estado llamado sesgadamente Renacimiento, origen del sistema capitalista y de la expansión más allá del mar, que resultó en el inicio del proceso de colonización de otros mundos, la imposición violenta de su mundo, su perspectiva sobre otros mundos ajenos a esa perspectiva No son de hoy los signos que indican que este mundo ya no está en condiciones de mantenerse en pie —desde al menos el siglo XIX, muchas personas ya han vislumbrado y señalado, desde dentro o desde fuera de este mundo, ya sea su acabado o su fin; un mundo que literalmente respira con la ayuda de aparatos (su dependencia de aparatos y máquinas es síntoma de su poca fuerza vital)—. Padeciendo, rechaza la muerte que lo visita. Se aferra a sus mundos circundantes, quiere vivir a toda costa, aunque eso signifique también la muerte de esos otros mundos Su cobardía es lamentable Sin embargo hay mucho que celebrar de este mundo hay razones por las que muchas veces este mismo mundo se olvida o intenta liberarse cancelar borrar —incluso porque es bueno recordar que este mundo contiene en sí mismo varios otros mundos, una cosmotopografía repleta de otras posibilidades frente a las hegemónicas—. El Occidente también ha vivido en armonía con la tierra y el cielo, respetando sus ciclos y movimientos para ser igualmente respetado Los caminos elegidos fueron de ruptura con sus tradiciones cosmopolíticas⁵, tratando de reemplazarlas con nuevas tradiciones —que sin fundamento están destinadas a repetidas rupturas—. La contradicción se convierte en condición y la paradoja se hace realidad —la ciencia moderna no da cuenta de la multiplicidad de realidades, y son necesarias otras epistemologías— En esta encrucijada llamada Brasil, a pesar de los terribles esfuerzos del Occidente por imponerse a los mil mundos amerindios ya arraigados en este territorio patio, trayendo violentamente otros mundos del continente africano para servirlos, para que tengan fuerza para imponerse a estos mil mundos amerindios, terminaron por fortalecerse estos mil mundos que se encontraron en la encrucijada con estos otros mundos afrodiaspóricos. Al principio los Bantú-Kongos, con sus diferentes mundos, y luego los Fons y

76


Danzar en la encrucijada Brasil

Yorubas —en un mundo que quería ser monoteísta, una multitud de deidades se reunieron para danzar juntas— Muchos otros fueron los mundos cruzados en este gran patio; los judíos ya estaban en estas tierras incluso antes que los portugueses, pues fueron perseguidos en Europa y brutalmente convertidos al cristianismo, sin oportunidad — sin elección — lanzados al mar-azar — algunos por suerte aquí llegaron Un territorio en disputa —portugueses españoles holandeses franceses alemanes que aquí encarnaron a devoradores de tierras saqueadores ladrones violadores asesinos en su gran mayoría—. No todos, pero la gran mayoría —al menos cómplices— Otros, convencidos de venir o sin poder quedarse en su tierra —italianos, japoneses en busca de trabajo huyendo de la miseria—, muchas veces sin ni siquiera imaginar que estaban sirviendo al fin de blanquear los pensamientos y la piel de quienes nacían en esta encrucijada —muchos alemanes vinieron justamente con este propósito—. Brasil ha albergado y sigue albergando a innumerables comunidades que comparten premisas nazis, incluidos verdugos cobardes que intentaron escapar de sus responsabilidades escondiéndose bajo esta tierra. El prometido blanqueamiento nunca ocurrió, gracias a todos los dioses y encantados aquí presentes, aunque el esfuerzo en este sentido ha conformado nuestra experiencia de Estado, una máquina de expropiación que quita a los pueblos sus posibilidades de subsistencia, produciendo así una dependencia de sus aparatos tecnologías burocracias, dejando a todos a merced de su ineficiencia y precariedad. Una máquina que produce miseria y aumenta las desigualdades económicas. Pues los que se creen dueños de las tierras son los que crean y sostienen al Estado con el fin de proteger sus intereses y esclavizar a otros pueblos, aunque sea con trabajo asalariado, para tener la fuerza vital disponible para sostener su mundo ostensiblemente materialista —por eso, no es poco su esfuerzo por difamar, silenciar, borrar, exterminar otros posibles mundos presentes— Ante el Estado brasileño, su derecho a la vida es respetado si usted tiene piel blanca y pensamiento blanco o si solo tiene piel blanca o solo pensa-

77


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

6. Para profundizar en estos estudios, recomiendo leer Calibán y la bruja. Mujeres, cuerpo y acumulación originaria, de la investigadora Silvia Federici.

miento blanco —los que solo tienen piel blanca, si empiezan a perturbar demasiado el «orden» con sus pensamientos cruzados mestizos pueblerinos migrantes del Noreste pierden su derecho a la vida; a su vez, los que tienen pensamientos blancos, pero no la piel, tienen que conquistar su derecho, porque aparentemente no son blancos, por lo que deben demostrar que lo son— Todo lo que vemos hundiéndose hoy —Brasil 2020— ya iba camino de su ruina desde hace 520 años —deforestación catequización de pueblos indígenas desmantelamiento de las políticas y programas indigenistas retroceso en los procesos de demarcación de los territorios de las poblaciones indígenas quilombolas (descendientes de esclavos) previstos en la Constitución, invasión de los territorios tradicionales indígenas y quilombolas por madereros mineros, pistoleros asesinato de líderes indígenas y activistas en sus causas, además de falsas acusaciones contra defensores de los derechos indígenas y ambientales— Bosques en llamas La mirada vacía de un jaguar Derrame de petróleo sobre más de 2 mil kilómetros de la costa brasileña en las regiones Noreste y Sudeste; sin explicación ni gran esfuerzo en encontrar a los responsables de la ruptura de presas de desechos de la empresa minera Vale, que devastó ciudades y vida, transformando un gran río en un aluvión de barro tóxico Pandemia: 140 mil muertos, al momento de redactar este texto. Ciento cuarenta mil muertos en seis meses es un número tan asombroso que ya no nos conmueve su sombra —muertos como resultado de una negligencia programática por parte del gobierno federal ante la gravedad de la pandemia y de una política de salud que aumentó enormemente la letalidad del virus, además de agravar una crisis económica que se ha profundizado cada vez más con la intensificación de la explotación de los trabajadores el aumento de la inflación y el número de desempleados— el Occidente tiene la costumbre de permitir la esclavitud incluso la asalariada en sus períodos de crisis; vale recordar las relaciones de explotación en Europa durante el denominado Renacimiento y más allá⁶

78


Danzar en la encrucijada Brasil

El asesinato sistemático de jóvenes y niños negros de los suburbios principalmente en las grandes ciudades, alineado con el incentivo a armar al llamado «buen ciudadano» —blanco, hombre, heterosexual—, incluso cuando está representado por mujeres, homosexuales, negros, etc., pues se sabe que las apariencias engañan a los defensores de los valores cristianos (preferiblemente a los no practicantes) a los defensores de la propiedad privada (aunque se la haya robado a otros) a los defensores de la familia (aunque esté desestructurada por la violencia de un macho inseguro y perverso) y a los defensores de la tradición incluso sin fundamento. Valores racistas y discriminatorios ganan voz y espacio en el ágora. Mientras gritan por el fin de la corrupción, se silencian ante los innumerables escándalos de corrupción que involucran al gobierno principalmente el federal. Escándalos que involucran directamente al presidente y su familia con sus vínculos con el bajo mundo del crimen que se organizó desde el aparato del Estado para tomar el poder del crimen previamente organizado

7. Vea Sobre o Autoritarismo Brasileiro, libro más reciente de la historiadora Lilia Schwarcz.

No olvidemos: el Estado brasileño está formado por derecha izquierda centro, cada uno con su papel en el mantenimiento de los engranajes que permiten a esta máquina seguir su programa de imposición de los valores de la metafísica occidental sobre otras formas de vida. Y al mismo tiempo garantizan un equilibrio dinámico para que el país no se someta totalmente a sus tendencias autoritarias⁷ La mentira se convierte en el principio de la praxis política desvelada de manera abierta escandalosa. La palabra del hombre occidental, que desde la antigüedad habla de verdad belleza bondad pero practica lo contrario, ya no valía mucho y ahora no vale nada —«palabra sin valor, sociedad sin futuro»—, nos recuerda la sabiduría Yoruba Davi Kopenawa — cuando era joven, solía preguntarme: «¿Los blancos realmente tienen palabra? ¿Pueden convertirse en nuestros amigos?» Desde entonces, viajé mucho con ellos para defender el bosque y conocí un poco lo que ellos llaman política. char más!

Eso de política no es redados. Son solo las palabras

¡Eso me hizo sospemás que discursos enretorcidas de quienes

desean nuestra muerte para apoderarse de nuestras tierras. En muchas ocasiones, las personas que pronun-

79


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

8. Vea A Queda do Céu – Palavras de um Xamã Yanomami, p. 390, del chamán Yanomami Davi Kopenawa y del antropólogo Bruce Albert.

cian esas palabras intentaron engañarme, diciéndome:

«¡Seamos amigos! ¡Siga nuestros pasos y le daremos dinero! Usted tendrá una casa y podrá vivir en la ciudad, ¡como nosotros!». Yo nunca les hice caso. No quiero perderme entre los blancos. Mi espíritu solo está tranquilo cuando estoy rodeado por la belleza del bosque, junto a mi gente. En la ciudad, siempre me pongo ansioso e impaciente. Los blancos nos llaman ignorantes por el simple hecho de que somos personas diferentes a ellos.

En realidad, su pensamiento es el que se muestra limitado y oscuro. No puede expandirse y elevarse, porque ellos quieren ignorar la muerte. Están llenos de vértigo, porque no dejan de devorar la carne de sus animales domésticos, que son los yernos de Hayakoari, el ser tapir que nos hace convertirnos en otro. Están siempre tomando aguardiente y cerveza, que calientan y ahúman su pecho. Por eso sus palabras se vuelven tan malas y enredadas. Ya no queremos escucharlos. Para nosotros, la política es otra cosa. Son las palabras de Omama y de los xapiri que él nos dejó. Son las palabras que escuchamos en el tiempo de los sueños, y las preferimos, pues son nuestras. Los blancos no sueñan tanto como nosotros. Ellos duermen mucho, pero solo sueñan consigo mismos. Su pensamiento permanece obstruido y duermen como tapires o tortugas. Por eso no pueden entender nuestras palabras⁸. Es muy tentador buscar a culpables de este estado crítico en el que nos encontramos: desgobernados. Encontrar en un presidente sin escrúpulos ni carácter, que se muestra indiferente o incluso muchas veces cómplice de esta trágica realidad, la causa de todo lo malo que está sucediendo hoy. Sin embargo ese presidente que está a la cabeza del país ahora mismo es también el resultado de un complejo entramado de caminos que ha seguido el país en su marcha colonial de «ordenación» hacia el «progreso» para llegar a donde estamos La lectura de fin de los tiempos es compartida, ya sea por los simpatizantes del actual presidente —quienes lo ven como un hombre que tiene el «co-

80


Danzar en la encrucijada Brasil

raje» de enfrentar el establishment para restablecer el camino de «progreso de la nación»— o por aquellos que son atacados sistemáticamente por el presidente y sus partidarios, directa o indirectamente Ambos coinciden: hay un mundo desmoronándose Incluso antes de los sucesos recientes, hubo muchos diagnósticos de que su forma de vida y hábitos adquiridos son insostenibles y que el mundo occidental se encamina hacia su fin. Al menos el fin de su hegemonía ¡Esta imposibilidad del Occidente es conocida por los pueblos indígenas y afrodiaspóricos desde hace mucho tiempo! Mucho antes de los discursos ecológicos y supuestamente sostenibles También entre los blancos hay quienes han mirado y siguen mirando con desconfianza los rumbos de su propio mundo. Un mundo de las supuestas verdades conceptos universales supuestos ontológicos promesas de un futuro glorioso a costa de tanta explotación de la tierra y de los hijos y habitantes de la tierra. Miran con profundo disgusto la gran cobardía de las violencias ejercidas —negación de la vida— en nombre de un Dios. Violencias a menudo justificadas por una ciencia arrogante. Miran y tratan de pensar más allá, actuar de manera diferente, señalar caminos otros Se ha formado un camino lento en el recorrido del pensamiento trabando amistad con esa bella mujer sabiduría Sofia para acercarse a alguna dignidad en vida y escapar de este gobierno de muerte —el pensamiento crítico buscará o, si es necesario, forjará criterios para mirar la realidad evaluar su estado desvelar sus fines ideológicos en la búsqueda de fracturas y fisuras en las estructuras de este mundo—, como nos cuenta uno de esos hombres enamorados de Sofia, el argelino Jacques Derrida. Él dice que hay dos posibilidades para quienes se vuelven contra las estructuras que sustentan la metafísica occidental: A)

intentar la salida y la deconstrucción sin cam-

biar de terreno, repitiendo lo implícito de los conceptos fundadores y de la problemática original, utilizando contra el edificio los instrumentos o las piedras disponibles en la casa, es decir, asimismo en la lengua.

El

81


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

9. Vea Margens da Filosofia [Márgenes de la filosofía], p. 176, de Jacques Derrida.

riesgo aquí es confirmar, consolidar o revelar sin cesar, en una profundidad siempre más segura, aquello mismo que se pretende deconstruir.

La

explicitación continua

hacia la apertura corre el riesgo de hundirse en el autismo de cierre;

B)

decidir cambiar de terreno, de manera disconti-

nua e irruptiva, instalándose brutalmente fuera y afirmando la ruptura y la diferencia absolutas.

Sin hablar

de todas las otras formas de perspectivas ilusorias en las que se puede dejar atrapar semejante desplazamiento, habitando más ingenuamente, más estrechamente que nunca, el adentro desde el que se declara desertar, la simple práctica de la lengua reinstalada continuamente el

«nuevo» terreno sobre el más viejo suelo. Se-

ría posible mostrar con numerosos y precisos ejemplos los efectos de esta reinstalación y ceguera⁹.

Dos gestos críticos al mismo tiempo que dos riesgos —el riesgo de fortalecer lo que se quiere deconstruir, el riesgo de llevar el mundo consigo al intentar salir de él—. En estos dos gestos veo la paradoja del pensamiento crítico del Occidente, que siempre apunta a su superación, que nunca llega. Una crítica de la crítica de la crítica de la crítica de la crítica ad nauseam Incluso las ciencias sociales —antropología sociología ciencias políticas psicología etc.—, que miran a los otros del Occidente, a los excluidos de los suburbios, pero también a su propia represión y tabúes, son incapaces, aunque quieran, de elaborar sus discursos si no se guían por la metafísica occidental. También los llamados posestructuralistas, que despliegan la transvaloración de todos los valores de ese otro, que se dice dinamita, amante de Sofía —Nietzsche, que invocó a Dionisio de vuelta al Occidente—, ejecutan bellas danzas que evocan interesantes figuras tienen diferentes miradas agudas para identificar las fallas de la máquina occidental. Desvelar sus abismos su estructura rígida y sus principios paradójicos, su ausencia de fundamento; ellos también, en cierto modo, amplían el alcance de esta metafísica a territorios previamente ignorados y excluidos por ella

82


Danzar en la encrucijada Brasil

Son admirables los gestos las danzas los complejos movimientos de todos aquellos que se dedicaron a decir de manera crítica su propio mundo —tengo mucho que agradecerles y reverenciarlos mucho me alimentan y alimentaron son también mis ancianos— pero debemos reconocer que, a pesar de sus humanos demasiado humanos esfuerzos, solo epistemologías otras —Bantú-Kongo Yoruba Jêje Indígenas¹⁰, para que quedemos en la principal encrucijada que sostiene a este país, Brasil— realmente pueden con un único golpe sacudir las estructuras del edificio occidental y dar voz y tiempo a otros mundos¹¹. En este punto debemos dejar de escribir leer — levantarnos y danzar

10. Las universidades federales brasileñas han sido un escenario privilegiado de manifestación de las epistemologías de las encrucijadas, ya sea Bantú, Yoruba o indígena, entre otras.

11. Sugiero aquí que vean los videos en YouTube del Congreso Internacional Yorubantu — Epistemologias Yorùbá e Bantu, que tuvo lugar en junio de 2020, especialmente la apertura, cuyo título es Caminho sobre Caminho: Epistemologias da Encruzilhada: https://www.youtube. com/watch?v=1Wki3SL-2hw&t=1s.

¿Qué danza danzamos cuando danzamos? ¿Qué mundo se presenta al público cuando danzo? ¿Qué mundo, danzando, creo o reitero? ¿Qué danzas nos enseñó la colonización y todavía nos enseña a danzar? ¿Qué danzas fueron y son elegidas para continuar las narrativas de la historia de la danza occidental por curadores programadores culturales convocatorias públicas festivales en medio de la inmensa producción artística brasileña? Por progresista democrática y humanista que sea la idea de danza contemporánea, ¿no sería ella la forma actual que ha encontrado para continuar su programa el proceso colonial que es una máquina de exclusión que se

83


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

12. Hay toda una historia de identificación de ciertas danzas que no son comprensibles a los ojos occidentales como si fueran enfermedades, primero en Europa, durante la Edad Media y el Renacimiento, y luego en las colonias, principalmente Brasil y algunos países de África, donde también se registraron casos de Coreomanía. Para una discusión más profunda, el libro Choreomania – Dance and Disorder, de la historiadora Kélina Gotman, es muy esclarecedor. 13. También hay otras formas de lectura de la idea de coreografía, o de pensamiento coreográfico, que se acercan mucho a lo que actualmente se conoce como epistemologías de la encrucijada, que señalo aquí para utilizarse en futuros despliegues de este texto. 14. Andrew Hewit desarrollará estos temas con mucho detalle en su libro Social Choreography – Ideology as Performance in Dance and Everyday Movement.

siente con derecho a decir lo que es lo que no es, lo que vive lo que muere, lo que queda lo que sale de las narrativas que hablan de la danza en Brasil? Quizás debamos revisar el camino de la danza escénica en el mundo occidental —señalaré aquí algunos posibles caminos de lectura— Podemos identificar en la Edad Media un momento de profunda ruptura con el sentido cosmopolítico, mágico, espiritual y colectivo que la danza tenía hasta entonces para los más diversos pueblos de Europa. A partir de su destierro de las liturgias católicas y de las numerosas prohibiciones que sufrió —principalmente las danzas de las mujeres—, la danza se ha sublevado en innumerables «te-actos» explosivos, a coro, en lo que se conoce como Plagas de danza, llamadas Coreomanía por el médico, físico y alquimista Paracelso —cuerpos ingobernables danzando en espacios públicos espacios sagrados en días santos poseídos por fuerzas imponderables que contagian cada vez más cuerpos sin poder dejar de danzar¹²—. No es casualidad que en los siglos siguientes vemos, durante el Renacimiento, la invención de una nueva tecnología de control del movimiento de los cuerpos —la coreografía (o orquesografía)¹³—. Durante el Renacimiento se escribieron muchos tratados coreográficos y la danza volvió a ser aceptada por su propio mundo —pero ahora bajo la supervisión del propio rey—. Se establece una nueva realidad para la danza —una realidad principalmente pedagógica de control social y político—. La danza se convierte en uno de los principales instrumentos de educación y control de los cuerpos de la corte y, posteriormente, también de las ciudades —el Estado se hará cada vez más coreográfico en su forma de estructurar las ciudades modernas, aunque en la mayoría de los casos sin una danza posible¹⁴— En la historia del ballet, vemos un camino que parte de una manifestación social de los ballets de corte hacia el individuo protagonista solista de los ballets clásicos y posteriormente románticos, cuando el coro adquiere un papel secundario, muchas veces se convierte en el escenario, el paisaje la reiteración ideológica de las fantasías del mundo occidental Incluso los intentos modernos de Rudolph Laban y Mary Wigman, entre otros nombres, de reanudar las danzas corales terminan perdiéndose en la

84


Danzar en la encrucijada Brasil

masa uniforme y homogénea de los cuerpos de la juventud de la Alemania nazi¹⁵. Habrá muchas coreografías basadas en las danzas modernas que tensarán justamente esta relación entre coro y solista, sociedad e individuo, pero pocas que nos despiertan a la fuerza cosmopolítica del coro Es de destacar lo mucho que el mundo occidental tiene horror y un profundo miedo a las fuerzas de los coros, al espíritu de comunidad (mucho más que a ese falso fantasma comunista), principalmente a las comunidades que comparten perspectivas distintas a la occidental —el Occidente está hecho de cuerpos desarraigados, en un intento de borrar por completo sus ancestralidades—.

15. Para obtener una contextualización más detallada, vea A Dança e o AgitProp, de Eugenia Casini Ropa.

16. Vea Choreomania – Dance and Disorder.

La danza en Brasil hoy todavía vive principalmente del imaginario del ballet clásico, materializado en academias de danza que pueblan todo el territorio, educando y coreografiando cuerpos y mentes según preceptos estrictamente colonialistas Podríamos decir que la danza contemporánea brasileña va de la mano del pensamiento crítico del mundo occidental (aunque la mayoría de las veces solo actualiza discursos coreográficos estéticos de artistas europeos y norteamericanos), trazando un camino disidente del imaginario hegemónico, de su medio. Cuestiona su lenguaje en un intento de producir nuevos lenguajes —ávida de novedades, todavía carga una fuerte herencia moderna con su tradición de romper con cada ruptura que se convierte en tradición—todavía vive ese «ab-ismo», el último movimiento de una inútil guardia A las «demás danzas» en cambio les quedan estigmatizaciones fetichismos exotismos propios del orientalismo occidental¹⁶ —danzas cuyas matrices de pensamiento son negras o indígenas difícilmente se ven desde sus propios mundos, sino que insistentemente enmarcadas por la limitada mirada cíclope desde la perspectiva lineal del Occidente o difícilmente los artistas de la danza y, especialmente, los curadores críticos programadores logran salir de sus propios mundos para ver esos otros mundos y sus danzas— Incluso en tiempos como el nuestro, cuando las llamadas minorías y los excluidos son los elegidos de los curadores y programaciones culturales, sus danzas son replanteadas por las coreografías de control social del Occi-

85


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

dente —ya sea por las coreografías de las arquitecturas del escenario, los espacios culturales, las salas de ensayo y del teatro o por las arquitecturas contextuales y conceptuales que rigen el pensamiento crítico del curador— Quizás sea un momento oportuno para situarnos, a coro, en las encrucijadas del Occidente y reaprender a danzar con las fuerzas coreográficas siempre presentes allí con sus remolinos espirales que nos abren a otras dimensiones del tiempo y el espacio —aprendemos a danzar y a pensar danza con las deidades que siempre están allí danzando en este lugar de encuentro, de riesgo, multiplicación de caminos y, si no se tiene cuidado, de perdición—. Aprender a danzar con nuestras propias deidades, que hoy están olvidadas en los rincones de las grandes ciudades, pero desde hace mucho danzando con las deidades de los mil mundos indígenas afrodiaspóricos que se cruzan en la encrucijada Brasil Entonces, quizás podamos reconocer dignamente el horror de nuestro gesto como occidentales frente a mundos tan grandiosos. Abandonar el sentimiento de culpa que nos paraliza. Perdonarnos. Danzar. Danzando, retomar las sabidurías cosmopolíticas del Occidente —su herencia, su tesoro escondido—, para que, humildemente, este mundo por fin muera. Para que otros, más dignos en su respeto por la vida, en sus múltiples danzas, puedan florecer y gobernar los rumbos de esta coreografía encrucijada patio Brasil. ¡Laroyê! ¡Evoé!

.:. Este texto es responsabilidad exclusiva de sus autores y no refleja necesariamente la opinión de Itaú Cultural.

Referencias ALBERT, Bruce; KOPENAWA, Davi. A queda do céu: palavras de um xamã Yanomami. São Paulo: Companhia das Letras, 2015. BOURCIER, Paul. História da dança no Ocidente. En: Opus 86. Traducción de Marina Appenzeller. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

86


Danzar en la encrucijada Brasil

BOUREAU, Alain. Satã herético: o nascimento da demonologia na Europa medieval (1280-1330). Campinas: Editora da Unicamp, 2016. CHERNG, Wu Jhy. Yin fú Jing: tratado sobre a união oculta. Río de Janeiro: Mauad X, 2008. DERRIDA, Jacques. De um tom apocalíptico adoptado há pouco em filosofia. Traducción de C. Leone. Lisboa: Estudos Veja – Passagens, 1997. DERRIDA, Jacques. A escritura e a diferença. Traducción de Maria Beatriz Marques Nizza da Silva. São Paulo: Perspectiva, 2002. DERRIDA, Jacques. A farmácia de Platão. São Paulo: Iluminuras, 2005. DERRIDA, Jacques. Gramatologia. São Paulo: Perspectiva, 2004. DERRIDA, Jacques. Margens da filosofia. Traducción de Joaquim Torres Costa y Antônio M. Magalhães. São Paulo: Papirus, 1991. FEDERICI, Silvia. Calibã e a bruxa: mulheres, corpo e acumulação primitiva. São Paulo: Editora Elefante, 2017. FLORI, Jean. Guerra santa: a formação da ideia de cruzada no Ocidente cristão. Campinas: Editora da Unicamp, 2013. FLUSSER, Vilém. A escrita: há futuro para a escrita? São Paulo: Annablume, 2010. GOTMAN, Kélina. Choreomania: dance and disorder. Oxford: Oxford University Press, 2018. (Oxford Studies in Dance Theory). HEIDEGGER, Martin. Carta sobre o humanismo. Lisboa: Guimarães Editores, 1987. HEIDEGGER, Martin. Ensaios e conferências. Petrópolis: Vozes, 2007. HEWITT, Andrew. Social choreography: Ideology as performance in dance and everyday movement. London: Durham: Duke University Press, 2005.

87


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

LEPECKI, André. Exaurir a dança: performance e a política do movimento. São Paulo: Annablume, 2017. ODA A. M. R. Sobre o diagnóstico diferencial entre a histeria e a beribéri: as epidemias de caruara no Maranhão e na Bahia, nas décadas de 1870 e 1880. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, 2003. Disponible en: <https://www.scielo.br/pdf/rlpf/v6n4/1415-4714-rlpf-6-4-0135.pdf>. PAZ, Octávio. Os filhos do barro. Río de Janeiro: Nova Fronteira,1984. REIS, José Carlos. História e teoria. Historicismo, modernidade, temporalidade e verdade. 3. ed. Río de Janeiro: Editora FGV, 2006. RIBEIRO, R. I.; Sàlàmi, S. (K.). Exu e a ordem do universo. São Paulo: Oduduwa, 2015. ROPA, Eugenia Casini. A dança e o agit-prop. Os teatros não teatrais na cultura alemã do início do século XX. São Paulo: Perspectiva, 2014. SAID, E. W. Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia de Bolso, 2007. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Sobre o autoritarismo brasileiro. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. SIMAS, Luiz Antonio; RUFINO, Luiz. Fogo no mato: as ciências encantadas das macumbas. Río de Janeiro: Mórula, 2018. VIVEIROS DE CASTRO, Eduardo. A inconstância da alma selvagem – e outros ensaios de antropologia. São Paulo: Cosac & Naify, 2002. WALLER, John. A time to dance, a time to die: The extraordinary story of the dancing plague of 1518. Thriplow: Icon Books, 2008.

88


Danzar en la encrucijada Brasil

89


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

Direcciones de internet En la maraña de algoritmos en la que se convirtió la vida de los mortales en este planeta, pensamos que sería bueno reunir direcciones de Internet dirigidas a la práctica de la crítica en las áreas de circo, danza, teatro y otras variantes que se hacen presentes. La siguiente lista incluye fuentes de investigación y consulta fundamentales para la producción de análisis. Son blogs, sitios web, revistas electrónicas y portales que realimentan a quienes hacen y a quienes disfrutan de las artes escénicas (teniendo en cuenta que toda lista supone brechas). Individuales, colectivas o institucionales, las iniciativas evidencian una fuerte red de espacios imbuida de registrar y pensar una parte considerable de las creaciones que se hacen públicas en diferentes regiones de Brasil e incluso en el exterior. Un inventario provisional a la manera de brújula. Agora Crítica Teatral | www.agoracriticateatral.com.br (Porto Alegre) Alzira Revista – Teatro & Memória | www.alzirarevista.wordpress.com (São Paulo) Antro Positivo | www.antropositivo.com.br (São Paulo) Aplauso Brasil | www.aplausobrasil.com.br (São Paulo) Artezblai – el Periódico de las Artes Escénicas | www.artezblai.com (Bilbao) Bacante | www.bacante.com.br (São Paulo) Blog da Cena | www.blogdacena.wordpress.com (Belo Horizonte) Blog do Arcanjo | www.blogdoarcanjo.com (São Paulo) Bocas Malditas | www.bocasmalditas.com.br (Curitiba) Cacilda | www.cacilda.blogfolha.uol.com.br (São Paulo) Caixa de Pont[o] – Jornal Brasileiro de Teatro | caixadeponto.wixsite.com/site (Florianópolis) Cena Aberta | www.cenaaberta.com.br (São Paulo) Circonteúdo – o Portal da Diversidade Circense | www.circonteudo.com (São Paulo) Conectedance | www.conectedance.com.br (São Paulo) Crítica Teatral | www.criticateatralbr.com (Rio de Janeiro) Da Quarta Parede | www.daquartaparede.com (São Paulo) Daniel Schenker | www.danielschenker.wordpress.com (Rio de Janeiro) DocumentaCena – Plataforma de Crítica | www.documentacena.com.br (diferentes cidades) Enciclopédia Itaú Cultural | enciclopedia.itaucultural.org.br (São Paulo)

90


Farofa Crítica | www.farofacritica.com.br (Natal) Farsa Mag | www.farsamag.com.ar (Buenos Aires) Filé de Críticas | filedecriticas.blogspot.com (Maceió) Folias Teatrais – Letras, Cenas, Imagens e Carioquices | foliasteatrais.com.br (Rio de Janeiro) Horizonte da Cena | www.horizontedacena.com (Belo Horizonte) Ida Vicenzia – Crítica de Teatro e Cinema | idavicenzia.blogspot.com (Rio de Janeiro) Idança.net | www.idanca.net (São Paulo) Ilusões na Sala Escura | www.ilusoesnasalaescura.wordpress.com (São Paulo) Karpa | www.calstatela.edu/al/karpa (revista eletrônica latino-americana editada em Los Angeles) Lionel Fischer | lionel-fischer.blogspot.com (Rio de Janeiro) Macksen Luiz | macksenluiz.blogspot.com (Rio de Janeiro) Nacht Kritik | www.nachtkritik.de (Berlim) Notícias Teatrales | www.noticiasteatrales.es (Madri) O Teatro como Ele É | www.oteatrocomoelee.wordpress.com (Belém) Observatório do Teatro | www.observatoriodoteatro.uol.com.br (São Paulo) Observatório dos Festivais | www.festivais.com.br (Belo Horizonte) Palco Paulistano | palcopaulistano.blogspot.com (São Paulo) Panis & Circus | www.panisecircus.com.br (São Paulo) Parágrafo Cerrado | www.paragrafocerrado.46graus.com/ (Cuiabá) Pecinha É a Vovozinha! | www.pecinhaeavovozinha.com.br (São Paulo) Primeiro Sinal | primeirosinal.com.br/ (Belo Horizonte) Qorpo Qrítico | www.ufrgs.br/qorpoqritico (Porto Alegre) Quarta Parede | www.4parede.com (Recife) Questão de Crítica – Revista Eletrônica de Críticas e Estudos Teatrais | www.questaodecritica.com.br (Rio de Janeiro) Revista Barril | www.revistabarril.com (Salvador) Ruína Acesa | ruinaacesa.com.br (São Paulo) Satisfeita, Yolanda? | www.satisfeitayolanda.com.br (Recife) Teatro para Alguém | www.teatroparaalguem.com.br (São Paulo) Teatrojornal – Leituras de Cena | www.teatrojornal.com.br (São Paulo) Tribuna do Cretino | www.tribunadocretino.com.br (Belém) Tudo, Menos uma Crítica | www.medium.com/@fernandopivotto (São Paulo) Válvula de Escape | www.escapeteatro.blogspot.com (Porto Alegre) Vendo Teatro – uma Plataforma para Falar sobre Teatro em Pernambuco | www.vendoteatro.com (Recife)

91


crítica em movimento: \Estados de la crítica de danza

Ficha técnica NÚCLEO DE ARTES ESCÉNICAS Gerencia Galiana Brasil Coordinación Carlos Gomes Producción Felipe Sales Cocuraduría Valmir Santos

NÚCLEO ENCICLOPEDIA Gerencia Tânia Rodrigues Coordinación Glaucy Tudda Producción Karine Arruda

92


NÚCLEO DE COMUNICACIÓN Y RELACIÓN Gerencia Ana de Fátima Sousa Coordinación Carlos Costa Edición Ana Luiza Aguiar (subcontratada), Milena Buarque y Valmir Santos (cocurador) Producción editorial Pamela Rocha Camargo y Victória Pimentel Diseño Estúdio Lumine (subcontratado) Supervisión de la revisión Polyana Lima Revisión del portugués Karina Hambra y Rachel Reis (subcontratadas) Traducción al español Atelier das Palavras Tradução Interpretação Ltda. (subcontratado) Revisión del español Atelier das Palavras Tradução Interpretação Ltda. (subcontratado)

93


A Mulher Arrastada | foto: Guilherme Castoldi


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.