Todos os gêneros 2022

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TODOS OS GÊNEROS: MOSTRA DE ARTE E DIVERSIDADE

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São Paulo, 2022

TODOS OS GÊNEROS: MOSTRA DE ARTE E DIVERSIDADE CULTURA LÉSBICA



SUMÁRIO

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APRESENTAÇÃO

HERDEIRAS DE SAFO

O USO DA LÍNGUA

SOM DE SAPA

NARRATIVAS DISSIDENTES

UMA SAPATÃO NO MUNDO

EXPEDIENTE


APRESENTAÇÃO

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Desde 2013, a Todos os gêneros: mostra de arte e diversidade investiga e tensiona os debates sobre as diferentes faces da experiência humana, as lógicas e a diversidade de afeto, desejo e existência da população, em especial a das pessoas LGBTQIA+. Nesse compromisso com a visibilidade, neste ano a mostra traz o amor, o afeto, a identidade e a cultura lésbica para o centro das atenções. A programação acontece no Itaú Cultural (IC), de 27 a 31 de julho de 2022, e reforça a preocupação da organização em dar voz às questões relacionadas à diversidade. As atividades – em formato híbrido, com atrações presenciais, na sede do IC, em São Paulo (SP), e on-line, no site itaucultural.org.br – incluem apresentações musicais, espetáculos teatrais e mesas de debate que exploram a diversidade cultural, política e discursiva de mulheres que não se incomodam com o fato de ser chamadas de sapatão. Entre os destaques virtuais, uma mostra de filmes estreia na Itaú Cultural Play, a plataforma de streaming do IC. Para ampliar o tema e celebrar o universo lésbico, esta publicação traz artigos sobre música, literatura, terminologias utilizadas na identidade das mulheres homoafetivas, suas representatividades e sua autoestima, além de entrevistas com a poeta, atriz, dramaturga e editora Bárbara Esmenia e a artista visual e pesquisadora Marília Oliveira. Acesse itaucultural.org.br e conheça os conteúdos das edições anteriores, como depoimentos e versões digitais das publicações impressas.

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POR ADRIANA FERREIRA SILVA

herdeiras de safo Literatura lésbica: mulheres negras e indígenas reinventam a cena; romances conquistam prêmios, e mercado editorial investe em estrelas da geração Z

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De cabelos curtos e descoloridos, piercing na sobrancelha, Elayne Baeta é recebida aos berros por um bando de adolescentes, numa reação típica a popstars, em uma livraria no Recife em maio de 2021. A escritora de 24 anos causou frenesi ainda maior em sua participação na Bienal do livro do Rio, em dezembro passado, quando dividiu os holofotes com Clara Alves, outro fenômeno da literatura young adult (para jovens adultos). Em comum, ambas escrevem sobre meninas que namoram meninas. Lésbica, Elayne vendeu 50 mil exemplares de O amor não é óbvio e Oxe, baby (Galera Record); bissexual, Clara vendeu 100 mil títulos de Conectadas (Seguinte), romance entre uma menina lésbica e uma bissexual. “Na literatura para jovens, há uma procura cada vez maior por temáticas LGBTQIA+”, explica Nathalia Dimambro, editora da Seguinte, uma divisão da Companhia das Letras. “Não enxergo como um nicho em ascensão, mas como mais abertura das novas gerações para debater esses assuntos. A diversidade não é tendência, é uma exigência. Os jovens querem se ver e se identificar. Se a juventude é plural, a literatura também deve ser, e o mercado acompanha essa demanda.” A criação de selos focados na temática LGBTQIAP+ para a geração Z (Elayne lança por um segmento da Record) é a face pop de uma cena que causa comoção desde os anos 1960, quando Cassandra Rios (1932-2002), escrevendo, entre outros temas, sobre o amor entre mulheres, se tornou a primeira brasileira a vender 1 milhão de cópias de seus livros – na época, rivalizando em popularidade com Jorge Amado. Cassandra, a Safo de Perdizes, desbravou um cenário que se renova, multiplica e espalha. São nomes de diferentes gerações, como Cidinha da Silva, Angélica Freitas, Natalia Borges Polesso, Ryane Leão, Yakecan Potyguara, Bárbara Esmenia, tatiana nascimento (cujo nome pede que seja escrito com letras minúsculas), Renata Pimentel, Adrienne Rich, Diedra Roiz, Carol Bensimon, Katia Borges e Marize Castro, entre muitas outras que se destacaram nas últimas décadas. Autora do clássico Amora (Não Editora), livro de contos vencedor do Prêmio Jabuti em 2016, Natalia Borges Polesso entendeu, com a repercussão desse trabalho, que havia uma 11


demanda por referências que ela própria desconhecia. “As pessoas perguntavam quais eram minhas influências e eu pensava em Lygia [Fagundes Telles], Clarice [Lispector], Caio [Fernando Abreu]... Eu me dei conta de que Amora era um produto de faltas, não de referências, e comecei a pesquisar sobre essas autoras”, explica. Natalia dedicou seu pós-doutorado à literatura lésbica ou sapatona, reunindo 250 nomes. “A pesquisa foi encerrada, mas, se tivesse continuado, esse número poderia triplicar.” A escritora parte da grega Safo, no século VI, numa linha que contém lacunas por motivos óbvios: as mulheres mal podiam ser alfabetizadas, quanto mais escrever. “Só encontramos outras autoras ou vestígios de lesbianidade em 1200. Um marco é [a mexicana] Sor Juana Inés de La Cruz, freira que em 1600 escrevia cartas de amor para outras mulheres”, afirma. No Brasil, em 1890, Maria Benedita Bormann publicou Lésbia, sob o pseudônimo Délia Bormann. “O texto traz uma personagem desencantada com a vida amorosa e seus parceiros, que recusa a submissão dos papéis de gênero que podemos pensar como um romance lésbico. Mas o marco mesmo é Cassandra Rios”, explica Natalia. Após o furacão Cassandra, destaca-se uma prolífica produção de poesia, seguida por um boom de romances que tratam de diferentes temáticas e gêneros, em histórias nas quais nem sempre o amor por outras mulheres está em primeiro plano. Assim é a obra da própria Natalia, composta de quatro livros de contos e das ficções Controle e A extinção das abelhas (ambas pela Companhia das Letras), além de Corpos secos (Alfaguara), trabalho coletivo – também premiado com o Jabuti. “Escrevo a partir de perspectivas ou vivências da lesbianidade, não escrevo sobre ela”, diz Natalia. “Em Controle, A extinção das abelhas e Corpos secos – esses dois últimos distopias –, as personagens são lésbicas porque tudo o que escrevo está permeado desse discurso. Não faço concessões nem dou explicações para essas vidas existirem. Elas simplesmente estão ali.” 12


Uma conclusão importante da pesquisa de Natalia é a de que a literatura lésbica no Brasil não é branca. Para a poeta, atriz e dramaturga Bárbara Esmenia, isso se deve à ebulição dos saraus no início dos anos 2000, onde surgiram poetas como Ryane Leão, autora do best-seller Tudo nela brilha e queima e de Jamais peço desculpas por me derramar (Planeta). Ryane é uma influenciadora com 629 mil seguidores em seu perfil no Instagram (@ondejazzmeucoracao), o que faz dela a instapoet mais importante do país. “O movimento de saraus foi uma retomada literária da periferia, de pessoas pretas, indígenas, pobres, devolvendo a palavra à oralidade, tradição afrodiaspórica e dos povos originários. Ao mesmo tempo, ocorreu um levante sapatão, que se expressou na fala e passou aos livros graças às editoras independentes”, diz Bárbara. Uma dessas casas, a padê editorial, foi idealizada por Bárbara e pela poeta, compositora e cantora tatiana nascimento – responsável por criar o primeiro Slam das minas, em Brasília, competição de poesia falada que depois se espalhou pelo país. “Em 2015, tatiana me mostrou uma publicação cartonera, de capa de papelão, costurada à mão, e meio que brincando me perguntou: ‘Vamos montar uma editora?’”, lembra Bárbara. “No ano seguinte, fizemos meu primeiro livro, {Penetra-fresta}, e o de tatiana, Lundu, além de quatro obras soltas, que depois batizamos de coleção Odoyá.” Foi a padê também uma das responsáveis por medir a efervescência da produção sapatona: ao ganhar um edital e abrir inscrições para publicar 44 autoras, recebeu mais de 200 textos. A multiartista, professora e pesquisadora Renata Pimentel destaca, ainda, o trabalho de pioneiras como Stéphanie Arc (Edições GLS) e Laura Bacellar e Hanna Korich (Brejeira Malagueta), além de projetos digitais como o Xana in box, do qual ela fez parte. Hoje, outros selos com lançamentos badalados são Quintal, que reuniu 50 lésbicas e bissexuais em Antes que eu me esqueça, coletânea organizada por Gabriela Soutello; e Filipa, que agregou mais de 70 poetas em Visíveis (disponível para download gratuito no site da editora). Autora dos livros de poesia Da arte de untar besouros e Denso e leve como o voo das 13


árvores e de Copi – transgressão e escrita transformista (todos pela editora Confraria dos Ventos), Renata nunca publicou por segmentadas e já teve dúvidas em usar a expressão “literatura lésbica”, mas hoje a defende. “A literatura que não é engajada não presta, porque não diz a que veio”, acredita. Isso, segundo Renata, não significa transformar o texto em palavra de ordem: “Autoras como [a estadunidense] Carmen Maria Machado, Natalia Borges Polesso, Nay Rosário ou Yakecan Potyguara complexificam tudo, falando de questões amplas, inserindo a afeição na condição de mulher e da vida na sociedade. Não se trata de diminuir o afeto entre mulheres; pelo contrário, ele é uma lente fundamental”, diz. No caso de Yakecan Potyguara, de 24 anos, a lesbianidade se entrelaça com a luta pela terra e por direitos. “Aprendo com a biblioteca viva que são nossos velhos e lendo Eliane Potiguara e Auritha Tabajara, primeira cordelista indígena, casada com outra mulher, também indígena”, diz ela. Filha de ativistas, Yakecan primeiro registrou a memória dos Potiguara no Nordeste. Ao assumir-se lésbica, sofreu preconceito dentro e fora de sua comunidade, experiência que a levou a fundar o coletivo Caboclas, reunindo indígenas LGBTQIAP+, e a escrever sob a perspectiva de uma mulher lésbica. “Fiquei quatro anos afastada do meu povo e passei a falar sobre minha dor e a tentativa de apagamento da minha sexualidade. Hoje, meus parentes dizem ter orgulho de mim.” Na mesma medida em que essas autoras ganham relevância e popularidade, o circuito se expande por meio de redes sociais, sites (Lettera, Lesboteca), iniciativas como o Clube Lesbos (que promove encontros literários e cursos) e endereços tradicionais, como a livraria Baleia, em Porto Alegre, e a novíssima Pulsa, recém-inaugurada em São Paulo. Caroline Fernandes, uma de suas idealizadoras, afirma que a Pulsa é o primeiro espaço exclusivamente dedicado à literatura LGBTQIAP+ na cidade. Se depender da produção, o primeiro de muitos.

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[ g o s t o ] por Bárbara Esmenia gosto quando teu toque ultrapassa o mero sentir e me atinge na inteligência me masturbo com tuas palavras e quando concluis uma ideia chego ao ápice ao levar-me junta a tal síntese minha pré-disposição a entender alerta com neurônios fogosos excitados de teorias que você mesma inventa tudo isso porque – sabe – que o que abala minha mente faz gozar meu corpo inteiro

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POR CRISTIANE BATISTA

o uso da língua Marisa Fernandes, Yone Lindgren, Márcia Rocha e a dupla Horrorosas Desprezíveis, formada por Amira Massabki e Patrícia Cipriano, falam da importância das nomenclaturas na identidade, representatividade e autoestima de todes.

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44. Bate-bife. Biscoito fino. Bofinho. Bolacha. Botina. Butch. Caminhoneira. Chic. Chinelinho. Chupa-charque. Chupa-priquito. Cola-velcro. Come-grama. Couro. Dyke. Entendida. Fancha. Femme. Francha. Fressureira. Fufa. Girina. Hari. Lacha. Lady. Lancha. Lesbiana. Lésbica. Leitinho. Lesbian chic. Machona. Machorra. Margarida. Maria João. Marlene. Melissinha. Mulher-homem. Mulher-macho. Petit four. Pochetinha. Preu. S10. Sáfica. Sapa. Sapatão. Sapateen. Sapatilha. Saveirinho. Scânia. SUV. Tête. Torta. Tuxa. Tríbade. Urningista. Como a construção e a desconstrução de estereótipos em torno das mulheres que gostam de mulheres afetam a vida de todes? “Não há diferenças entre as palavras. A diferença se estabelece na intenção e na forma de uso delas. De forma respeitável, ok, mas usadas para ofender, xingar, aí é violência, lesbofobia”, explica Marisa Fernandes, mestre em história social, lésbica e ativista LGBTQIAP+ há 43 anos. Em sua adolescência, termos como mulher-macho e machona eram comuns, devido ao sucesso da música “Paraíba”, composta por Luiz Gonzaga e Humberto Teixeira em 1946 (“Paraíba masculina / Muié macho, sim sinhô”). O baião fazia referência à atuação do estado na Revolução de 1930, mas encontrou coro à boca miúda com uma forma pejorativa de chamar lésbicas em geral. “O próprio termo lésbica não era usado sob nenhuma hipótese. Eu mesma não sabia que nome tinha o que eu era. A psiquiatria tratava, de forma geral, o homossexualismo como uma doença. Mulher-macho e machona incomodavam, sim, pois faziam referência ao gênero masculino e remetiam à única e normatizada heterossexualidade como possibilidade de amor, afeto e sexualidade”, conta Marisa. Mais tarde, em 1979, já no Grupo de Ação Lésbica Feminista, o LF, que ajudou a fundar, ela recorda que, mesmo nos lugares de frequência de garotas na noite paulistana, muitas das que se autodenominavam “entendidas” também reproduziam os padrões masculinos e femininos pelos nomes de frachona e lady. Foi quando o LF passou a distribuir um panfleto com o título “Homossexual: mas pode me chamar de lésbica”, em que explicava a origem 17


da palavra, proveniente da Ilha de Lesbos, na Grécia, onde viveu a poeta Safo, no século VI, que escrevia sobre o amor e o erotismo entre mulheres. “Era um incentivo para que usassem em seu cotidiano a palavra lésbica, porque só assim ela perderia a capacidade de ferir. O esvaziamento ofensivo e pejorativo da palavra desarmaria os inimigos, pois para nós ela deixaria de necessariamente estar associada a uma agressão. O mesmo acontece agora com o frequente uso de sapatão. Eu adoro isso. As jovens lésbicas transformaram o que se pretendia ser ofensivo em afeto”, opina. Sapatão é um termo que se popularizou no Brasil a partir da década de 1970, e sua origem é imprecisa. Alguns o atribuem a uma maior liberdade das mulheres na moda, com o uso de sapatos mais confortáveis (e por que não?), chamados de masculinizados. Há quem diga que surgiu nos bastidores da peça de Isabel Câmara As moças: o último beijo (Prêmio Molière em 1970), como narra o dramaturgo Antônio Bivar no livro O explorador de emoções peregrinas (Maria Lucia Dahl, Coleção Aplauso, 2010):

“Dentro do feminismo crescente, as sapatas eram uma nova tribo safista fazendo vista na sociedade. Moças destemidas, independentes, engraçadas, glamurosas, sibaritas, amazonas modernas com o pisar determinado”. Isabel, poeta dessa tribo, tinha, inclusive, a intenção de fazer uma peça usando no título uma frase que já circulava entre o pessoal: “Viva sapatas”. O fato é que o termo caiu na boca do povo mesmo em 1981, com o sucesso estrondoso de uma marchinha de Carnaval cantada por Chacrinha e escrita por João Roberto Kelly, com o refrão:

“Maria Sapatão, Sapatão, Sapatão / De dia é Maria / De noite é João”. Yone Lindgren, cofundadora da Articulação Brasileira de Lésbicas, a ABL, no Rio de Janeiro, há 44 anos no movimento, lembra: “Sapatão veio como um xingamento. A gente se adequou e começou a usar para não se sentir mais violentada nas ruas. Eu nunca me incomodei, 18


porque sempre fingia que não ouvia. Preferiria não ter rótulos, muito embora continue na prerrogativa de gostar de mulheres e ser lésbica”, diz ela.

“O chamamento interfere na autoestima e no empoderamento de algumas mulheres, principalmente das que estão na periferia e das que têm um visual mais masculinizado. Prefiro dizer apenas ‘mulheres que amam mulheres’.” Márcia Rocha, primeira advogada transexual a ter o direito de usar o nome social na carteirinha da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), se define como travesti lésbica transfeminista. “Qual é o machismo que não me atinge? Qual é a lesbofobia que não me atinge? Quantas vezes já não aconteceu de olharem feio para mim e para a minha noiva andando de mãos dadas, porque acham que são duas mulheres que estão ali? Olham feio por eu ser mais velha também! Então, eu acho que existe um pertencimento, um lugar de fala dentro do movimento”, explica. Para Márcia, as nomenclaturas agrupam características, juntam um grupo para que ele tenha mais força na hora de demandar direitos e políticas públicas, ainda mais considerando que, segundo relatório divulgado em 2021 pela Associação Internacional de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transgêneros e Intersexuais (ILGA), o Brasil seria o país que mais mata pessoas LGBTQIAP+ no mundo. “Só que rótulos não definem pessoas, porque cada ser humano é múltiplo, com particularidades próprias e exclusivas. Físicas, psíquicas, de ideias, crenças etc., e isso precisa ser considerado com respeito”, aponta ela. O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) divulgou, no mês de maio, uma pesquisa com base nos dados da Pesquisa nacional de saúde (PNS) que atesta que pelo menos 2,9 milhões de brasileiros com 18 anos ou mais se autodeclaram homossexuais ou bissexuais. Consideradas apenas as mulheres brasileiras, 0,9% declara-se lésbica e 0,8% bissexual. Tanto entre homens quanto entre mulheres, 1,1% disse não saber e 2,3% recusaram-se a responder. “Com certeza esses dados são subnotificados. Se nós pensarmos nesse grupo que não quis responder, no mínimo, metade é. Mas tem a questão 19


da informação também; às vezes, a pessoa não entende a pergunta e, se você falar “Você é hétero?”, muita gente pode ficar ofendida, mesmo sendo hétero”, diz Márcia. As artistas Patrícia Cipriano e Amira Massabki ostentam com orgulho a identidade sapatão. A dupla por trás do grupo Horrorosas Desprezíveis, formado em 2016, tem agitado Curitiba, reunindo mulheres de linguagens como teatro, música, artes visuais, dança e cinema para expandir seus trabalhos sob os lemas “Abaixo a felicidade da submissão” e “Eu vim do futuro e lá só tem sapatão!”. “A palavra lésbica não me representa, não dá match. Sapa é aberto. Lésbica, foneticamente, parece até nome de gripe! Além do mais, existem lésbicas que pensam em entretenimento e pautas de saúde, mas não respeitam a arte como ferramenta social. Sapatão é uma filosofia de vida, um ato político. Sapatão é nome de ninguém, mas, quando a gente reconhece uma, é uma sensação de pertencimento sem igual”, acredita Patrícia. Na performance Lacração, por exemplo, elas provocam a sororidade da geral com o texto: “Lesbian prime tudo bem / Sapatilha só de marca / Pras mulher do corre doido / Vira a cara, ‘tô chapada’ / As manas já tão de olho no rolê misoginia / No jogo da opressão, é algoz pra alguma mina / Cobra postura de lady / Pernas, virilhas depiladas / E no concurso de miss / Dita moda pelas magras”. “A pauta é urgente! Precisamos pensar em cooptar formas de se apresentar e se infiltrar nos meios, fazer articulações para falar sobre a existência de todos os corpos”, afirma Amira. As duas participam com outras parceiras do coletivo Selvática Ações Artísticas, que promove iniciativas que fortalecem a representatividade de todes por meio de encontros e atividades culturais, além da normatividade binária. De uma delas, a criação Yo vi el fin del mundo y me gustó, vem a prece:

“Usaremos a língua do inimigo entre nós até que a língua do inimigo deixe de fazer sentido, até que a língua do inimigo esteja esgotada e nós estejamos fluentes em uma língua que até então não existia ali”. 20


por Ryane Leão o cheiro do corpo dela se mistura com o cheiro dos bares e das casas e das garrafas e das encruzas e das estações e dos apartamentos e das festas e dos copos e das taças e dos carnavais e das maresias e das viagens e dos tumultos e das marchas e das revoluções e das praças e das músicas e dos temporais e dos encontros e dos gostos e das poesias e dos beijos e dos tambores os lugares mandaram avisar que ela não é apenas passageira é protagonista

(poema do livro Jamais peço desculpas por me derramar – poemas de temporal e mansidão, de Ryane Leão, editora Planeta) 21


POR CRISTIANE BATISTA

som de sapa Como o amor entre mulheres toca (n)o Brasil. A música como espaço de expressão, acolhimento, orgulho, representatividade, resistência, luta. Angela Ro Ro, Zélia Duncan, Maria Beraldo, Ana Gabriela e GA31 cantam seu modo de ver e perceber o mundo.

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Autora de clássicos como “Tola foi você”, “Gota de sangue”, “Amor, meu grande amor” e “Balada da arrasada”, Angela Ro Ro está no topo de qualquer playlist sapatão que se preze. Autodenominada “lésbica diamante”, invicta em relação ao relacionamento afetivo/sexual com homens, a artista começou a tocar piano aos 5 anos de idade e, desde então, seu instrumento está “aberto às últimas inconsequências da música e da vida”, como publicou o jornal alternativo Chanacomchana em 1981. Naquele ano, ela já era chamada de “a inventora do sapateado”, mas o caminho até ali foi longo. Adolescente, em peladas com os amigos na praia, Angela sofria bullying dos meninos, que caçoavam de sua voz rouca – herança da mãe e origem do malfadado apelido, que depois foi ressignificado e transformado em marca registrada. O nome Ro Ro demorou a ficar conhecido. Ela já frequentava o bar carioca Caixotinho, onde a cantora Dora Lopes (1922-1983), uma das primeiras autoras e intérpretes a se assumir publicamente lésbica, se apresentava, quando imigrou para a Europa no começo dos anos 1970, em plena ditadura militar. Entre bicos nos bares, encontrou Caetano Veloso em Londres e participou, tocando gaita, do icônico disco Transa, que completa 50 anos em 2022. Seu nome passou a circular, ela não parava de compor, mas recusava convites para gravações e shows, e só foi lançar seu primeiro disco, Angela Ro Ro, em 1979, quando estava prestes a completar 30 anos. Na primeira apresentação, o corpo tremia de nervoso. “Achava as minhas músicas tristíssimas e resolvi conversar com o público e contar minhas histórias. Aí eu desreprimi e descobri uma forma de ficar calma: como comediante! Ia usar o termo ‘a pessoa que eu amo’, mas achei ‘entendido’ demais e disse: ‘A mulher que eu amo!’. Eu já tinha me libertado. Minha mãe me dava aval, dizendo: ‘Eu te amo de qualquer forma. Se seu pai tiver qualquer atitude opressora e/ou ofensiva, venha falar comigo!’.” O cuidado da mãe, infelizmente, não a protegeu da homofobia nas ruas por muito tempo. A artista relata ter 23


sido espancada pela polícia e pela milícia, o que lhe rendeu a perda parcial da audição e também de um olho, entre outros óbvios traumas.

“Para ser sincera, já sofri tudo o que é fobia. Lesbofobia, gordofobia. Tem gente que tem ‘Ro Ro fobia’.” O clima de deboche segue em suas músicas, muitas autobiográficas, que narram os amores e dissabores das várias relações que vive. “Ter vergonha do que a gente é, é mais uma punição. A lesbianidade está no amor próprio. Amando-me como mulher, eu amo todas as outras. Sou louca, insana de amor pela vida, e quero que as pessoas nunca tenham medo de ser. Se alguém te ameaçar, exponha quem tortura!”, incentiva ela. — ZÉLIA E A CORAGEM COMO HERANÇA

“As coragens de umas vão dando espaço às outras. Minha geração procurava rastrear-se nas sombras e poeiras, nas invisibilidades e nas atitudes alheias”, conta a cantora, compositora e violonista Zélia Duncan, que começou a cantar profissionalmente no início dos anos 1980 e estourou em 1994 com seu CD de estreia, Zélia Duncan, que inclui o hit “Catedral”, versão do sucesso da cantora alemã Tanita Tikaram, que diz: “No silêncio, uma catedral / Um templo em mim / Onde eu possa ser imortal / Mas vai existir / Eu sei, vai ter que existir / Vai resistir nosso lugar”. “Ouvir sobre si mesma com naturalidade a partir da vivência alheia é fundamental, por isso eu fui me soltando também. Porque, além de ser libertador para mim, tem sido para outras mais jovens e até para as que têm a minha idade”, afirma. Hoje referência para muitas outras, Zélia considera que a música, além de acolher, tem uma potência política: “Nada escapa desse viés, isso também fui descobrindo. Quem você acolhe, como você ama são posições no mundo que afetam a sociedade e a vida uns dos outros. A sororidade em um país racista é um desafio urgente, e não considerar mulheres trans é um paradoxo que tam24


bém não entendo. Depois que essas duas etapas forem superadas, a palavra sororidade encontrará o lindo destino para o qual nasceu”, pontua. A artista acha que o campo da composição está mais aberto às mulheres no mercado e também à participação nos bastidores, como técnicas, iluminadoras e roadies: “Procuro sempre ter mulheres de todas as naturezas no meu radar. Tenho uma engenheira de som, que faz o P.A., que é o áudio da plateia, fiz um álbum com minha parceira musical, Ana Costa, que é um manifesto feminista e se chama Eu sou mulher, eu sou feliz”. O trabalho, lançado pela Biscoito Fino em 2019, reúne 20 cantoras e instrumentistas mulheres. Nem sempre foi assim. No começo do século XX, em um ambiente majoritariamente masculino, muitas das que se aventuravam pelo caminho artístico tinham sua “moral” questionada e, ainda assim, cantavam e tocavam músicas feitas por homens. O acesso de musicistas e intérpretes profissionais à esfera pública só se intensificou no Brasil a partir da década de 1960, com o avanço da pauta feminista de equidade de direitos, o crescimento organizado dos movimentos identitários LGBTQIA+ e, consequentemente, a tomada de protagonismo nas temáticas e construções de novas formas de feminilidade, evoluindo também para a transgressão de conceitos e padrões. — MARIA E A VISIBILIDADE FORA DOS ARMÁRIOS A cantora, compositora, clarinetista e mestra em música Maria Beraldo é uma das que vieram nesse esteio. Seu álbum de estreia, Cavala (Risco, 2013), traz, além de clarinetes, clarones, beats, sintetizadores e guitarras secas, versos como

“Pai, gosto muito dos homens, sim / De tê-los ao alcance da boca, sim / Mas no calor da manhã quem me fez delirar foi uma mulher / Como é minha mãe” e “Gatas sapatas mães de bebê / Tão sexy com seu sling / Tão sexy com seu bebê”. Para ela, a visibilidade pode ser uma saída para o transpor de armários: “Quando eu era mais nova, não conhe25


cia nenhuma pessoa abertamente lésbica. Sabia que minhas professoras de música eram um casal, mas elas eram induzidas a omitir isso socialmente. Isso é uma violência imensa contra elas, contra mim e todes nós. Hoje mais mulheres são incentivadas a compor, pois veem mulheres compondo, enxergam aquilo como algo possível. Só que existe uma relação do mercado com as pautas inclusivas que acho muito complexa. Tenho sempre alguns pés atrás ao afirmar coisas nesse campo: em qual camada temos mais espaço? Numa superficial, sim, acho que estamos abrindo, mas uma mudança de fato, uma alternância de poder, acho difícil de responder. São passos vagarosos e árduos na nossa história. Muita gente morreu e morre até hoje na luta por sua liberdade. Estamos juntes nessa construção ao longo do tempo”, afirma. Para Maria, a composição foi o jeito que encontrou de dizer e também de conversar com seu público.

“Sinto a música como uma das maiores forças de comunicação e transformação no mundo. Não conheço uma religião que não tenha música. É muita força, é outro caminho, e dessa maneira as narrativas lésbicas, por exemplo, chegam às pessoas por essa via. O texto, a música, a figura física, a sensibilidade, o pensamento, o espaço que se ocupa são comunicados de maneira sensível.” — ANA GABRIELA E A CARTA PARA A MÃE A cantora e compositora Ana Gabriela tem se valido dessa experiência. Começou na música ainda criança, na igreja que frequentava com a mãe. Na adolescência, apaixonou-se por uma menina e veio o caos: “Foi uma coisa muito conturbada, fiquei mal, triste, achava o tempo inteiro que eu estava pecando, que tudo era errado; não sabia para quem pedir conselho e acabei não falando com ninguém. Escrevi uma carta para a minha mãe e tinha a intenção de deixá-la debaixo do travesseiro dela, mas não o fiz. Ela descobriu, me chamou e disse que estava triste por eu não ter confiado nela. Quebrou minhas pernas”, lembra. Nascia ali a música “Carta para a mãe”, que tem um videoclipe com a presença da mãe, Isabel, o qual já 26


contabiliza quase 1 milhão e meio de visualizações no YouTube. “Até hoje eu recebo print das pessoas, meninas e meninos dizendo que mandaram essa música pra mãe e que foi ótimo”, conta. A faixa faz parte do primeiro disco da artista, Ana Gabriela (Deck, 2020), ao lado de “Não me chama de sua”, que fala de autoconhecimento e da questão do ciúme e da posse, outros pontos nevrálgicos em muitas relações: “O som é sobre isto: você não ser de ninguém. Tem cada coisa que a gente fica chocada. Não é só porque é mulher com mulher que vamos passar pano, pelo amor de Deus, né?”, explica. — O ORGULHO SAPATÃO DE GA31 Outra voz que clama por uma “nova era de paz, elegância, amor e tesão para todos” é GA31, nome não binário por trás de hits como “A força da mulher sapatona” e “Samba digital”, que canta o autoconhecimento: “Tocar a vagina, o valor, a verdade e as cores”. “O que começou como uma brincadeira de transgressão e choque social acabou se tornando um ponto de reflexão e inspiração. É divertido fazer as pessoas pensarem de uma maneira leve, e me choca como alguns ainda se assustam com os assuntos mais naturais inerentes ao corpo humano”, analisa. “Lésbica futurista”, lançada em 2014, viralizou no TikTok da Rússia no ano passado, entrando na playlist de músicas “virais” do país no Spotify. Nos vídeos, as pessoas tentam reproduzir o refrão:

“Lésbica futurista / sapatona convicta / eu não vou deixar a inveja me abalar (para sempre)”, chamando a atenção para o orgulho sapatão. “Seja de maneira acadêmica, transgressora, ingênua, irônica ou pelo humor, toda expressão artística pode trazer consigo um manifesto. Nós precisamos exaltar as qualidades das mulheres que lutam todos os dias para existir. Estamos ao lado de grandes personagens heroicas da vida real!”, opina. Rumo à liberdade de ser e e(star) em qualquer tempo, GA31 dá a dica com um spoken de uma delas, Dercy Gon27


çalves (1907-2008), na música “Afeminada”. A voz da artista, que entrou para o Guinness book, o livro dos recordes, como a atriz com a carreira mais longa do mundo, aparece entre camadas eletrônicas com a frase:

“Cada um busca a sua felicidade, então deixa cada um ser o que é!”.

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por Angélica Freitas você não sabe o que é uma teta caída uma teta de mulher, uma teta que desceu do pedestal o conteúdo macio, a pele fina o zigue-zague das estrias, não: nunca tocou numa teta caída não sabe o calor das tetas de outono não as viu por baixo, balançando nunca pensou em dormir abraçado.

(publicado no livro Canções de atormentar, de Angélica Freitas, editora Companhia das Letras) 29


POR ADRIANA FERREIRA SILVA

narrativas dissidentes Poeta com trajetória na cena literária, Bárbara Esmenia agora dá forma física ao texto com sua estreia na dramaturgia

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As pequenas alegrias do cotidiano e da convivência e as trocas de experiências e sentimentos entre mulheres encarceradas inspiraram a poeta e multiartista Bárbara Esmenia a criar Cavalos pretos são imensos, espetáculo que marca sua estreia na dramaturgia. Contemplada em 2020 no edital da 7a mostra de dramaturgia em pequenos formatos cênicos, do Centro Cultural São Paulo (CCSP), onde estreou, a montagem é também a síntese da trajetória de uma artista cujo trabalho se desdobra em poesia, teatro e uma intensa pesquisa sobre o método criado pelo dramaturgo Augusto Boal, que deu a Bárbara as ferramentas para levar seu ativismo como feminista negra e sapatão às artes. A partir desses elementos, ela reflete sobre possíveis desdobramentos para uma história que terminou em tragédia, a de Luana Barbosa dos Reis, morta em consequência de um espancamento cometido por policiais militares em abril de 2016. É a vivência de corpos como o dela, uma mulher negra, lésbica e periférica, que inspira Bárbara a dar, agora, presença física às suas palavras.

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A HISTÓRIA DE LUANA Sempre foi muito cara a mim a história de Luana Barbosa dos Reis, uma sapatão preta, periférica, [com um tipo físico] do que chamam masculinizada, que foi espancada pela Polícia Militar de Ribeirão Preto em [abril de] 2016 e morreu cinco dias depois. Tenho um compromisso com essa narrativa, que precisava chegar a mais pessoas, sair do nicho lésbico, preto, porque não é todo mundo que conhece Luana. Eu queria que esta fosse uma história de pertencimento e reflexão para mostrar como esse caso é estrutural, pois intersecciona racismo, lesbofobia, corpos periféricos e de pessoas que nasceram com vulva, mas que não são femininos.

MEMÓRIAS DO CÁRCERE A dramaturgia começou com a ideia de que, se Luana não tivesse sido morta, o que aconteceria com esse corpo? Quais eram as possibilidades para essa vivência? Talvez ela fosse presa, porque Luana reagiu ao espancamento. Ela bateu nos policiais. Se esse corpo não morre, a alternativa que sobra é o cárcere. Essa pessoa não tem liberdade: ou é o cárcere ou é o assassinato, quando não a fome e as políticas de extermínio. A Luana esteve em situação de cárcere, então também há esse debate. Decidi colocar isso em cena a partir de cinco personagens encarceradas, mas que não são mostradas pela dor, o que é uma questão para nossas narrativas dissidentes. Ela está presente, mas não vem em primeiro plano. Elas estão rindo, falando da visita íntima do fim de semana, quando vão namorar até as pernas ficarem bambas, da saudade do filho, de quando levaram a filha para passear… São momentos mágicos, de um realismo fantástico, universo que me interessa, pois quero pertencer a essa tradição literária latino-americana. Mas o público vê ainda outras camadas, como a maternidade, de que, por não ser mãe, eu não tinha me dado conta. 36


DRAMATURGIA PREMIADA Cavalos pretos são imensos é minha primeira dramaturgia [desenvolvida como parte do curso de dramaturgia da SP Escola de Teatro]. A peça foi uma das três contempladas no edital de pequenos formatos cênicos do Centro Cultural São Paulo, em 2020. Graças a isso, eu tinha a peça, mas faltavam os corpos, então comecei a convidar meu “elenco dos sonhos”, com a Thais Dias, que acabou assumindo a direção, e a Fernanda Gomes, que, como eu, é do Teatro das Oprimidas e também participa da Coletiva Luana Barbosa – que acompanha o processo de julgamento dos policiais em Ribeirão Preto. São pessoas de grupos e trajetórias diferentes que, na maioria, se conheciam, mas nunca tínhamos trabalhado juntas.

DANDO CARA AO TEXTO O que me levou à dramaturgia foi o interesse de juntar meu pertencimento literário e o teatro, criar vivências num fôlego mais longo que não o da poesia, dentro da tradição do eu lírico, com personagens que contam uma história. Escrever para corpos que vão para a cena, com iluminação, sonoplastia, figurino e demais elementos, faz com que [o trabalho] deixe de ser um momento solo e passe a uma escrita que pertence ao coletivo e a mais interpretações. É um processo coletivizado.

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NOVAS DRAMATURGIAS Desde 2021, tenho uma pesquisa sobre mulheres que se relacionavam com mulheres no período da Inquisição no Brasil. Em 1591, o Santo Ofício fez sua primeira visita ao país para julgar os que praticavam judaísmo, sodomia etc. Entre essas pessoas, 19 mulheres tiveram relatos ou foram acusadas de se relacionarem com outras. Dessas, para mim, duas se destacam: Felipa de Souza, uma portuguesa branca, sapatão orgulhosa, que assumiu tudo o que fez e foi açoitada em praça pública; e Francisca Luiz, uma negra livre, também portuguesa, que – suspeita-se – veio ao Brasil para fugir de ser julgada por se relacionar com outras mulheres no Algarve. Interessa-me tratar disso, pois temos lacunas no tempo em nossa história lésbica.

TEATRO DAS OPRIMIDAS Sou atriz de formação, mas não atuo desde que conheci o Teatro das Oprimidas, há dez anos, em uma oficina que fiz com Alice Nunes, na Unesp [Universidade Estadual Paulista], chamada Jogos do teatro dos oprimidos. Ali, tive contato com a teoria de Augusto Boal, que dizia que, se você tem um corpo, uma possibilidade de expressar sua existência, você pode fazer teatro. Não existe mais essa hierarquia de pessoas iluminadas, talentosas. Além disso, Boal defendia termos o controle dos meios de produção, pois é isso o que nos torna desfavorecidos em relação ao capital. [Na oficina,] criamos um grupo, o Trajetórias Feministas, de que eu participei de 2013 a 2016. Para mim, o Teatro do Oprimido chega juntando arte, política e essa possibilidade de tratar de temas a partir de uma metodologia que é múltipla e traz ao debate feminismo, LGBTfobia etc. Depois disso, passei a dar oficinas, multiplicando e testando também novos jogos, para não ficar estancada no método que Augusto Boal pensou.

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por Diedra Roiz Aquí y ahora Ela como sempre parada na frente da janela com seu camisão de flanela xadrez caneca esmaltada do café que leva até a boca cuando percibe mi presencia se vira e sorri mostrando que nosso presente é olhar e saber que pasado y futuro no son más que ilusiones conjecturas perdidas entre o que escolhemos recordar y olvidar y lo que podremos imaginar e pensar mesmo sem saber do tempo aquí y ahora é com certeza nossa única certeza [...] 52


por Carol Rocha Dançaram-me negra Dançaram-me negra. Dançaram-me debaixo dos panos brancos, dançaram-me sem luzes e meu convite para o baile dizia que a entrada era pelos fundos. Um espelho pequeno e sem moldura me recebeu, e quando vi os olhos encarados me gritei, sussurrando que aquela era a porta de saída, então eu deveria ir embora. Mas não fui, fiquei, e dançaram-me negra.

(trechos de poemas publicados na coletânea Visíveis – Anuário Filipa Edições 2020) 53


POR ADRIANA FERREIRA SILVA

uma sapatão no mundo Marília Oliveira cria narrativas visuais de afeto, cotidiano e memória para celebrar o amor entre mulheres

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Como é a rotina de duas mulheres que se amam? Ela deveria ser imaginada como algo banal, assim como a de qualquer outro casal, mas nem todos os corpos têm direito ao cotidiano por igual. “Quem é que pode, por exemplo, andar de mãos dadas na rua?”, argumenta a artista visual e pesquisadora Marília Oliveira. Essas questões, junto com a determinação em tratar do afeto como prática de liberdade e estratégia de resistência, levaram Marília a criar o fotolivro Um livro sobre o amor sapatão (2020), “experiência visual compartilhada” na qual cinco casais apresentam fragmentos de seu dia a dia como num álbum de família. “Pensar o trivial é também se dar o direito de construir as próprias narrativas a partir das micropolíticas”, acredita Marília. O trabalho, que representa uma reviravolta na carreira da cearense – cujas obras anteriores eram marcadas por temas como vingança e assédio –, integra um projeto maior, o doutorado Museu do amor sapatão, que deverá ser finalizado com uma exposição.

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comprar pão sem que isso seja um escândalo? Para que corpos a guerra é quase que uma condicionante? Pensar isso ajuda a entender por que, para mim, é importante discutir o cotidiano, pois o trivial, o banal, é também se dar o direito de construir suas próprias narrativas.

Qual gatilho a levou ao fotolivro Um livro sobre o amor sapatão?

ADRIANA FERREIRA SILVA

Li uma entrevista da poeta baiana Lívia Natália, professora da UFBA [Universidade Federal da Bahia], em que ela dizia como era difícil para uma mulher negra como ela tratar de afeto e de que maneira atravessou isso até lançar um livro de poemas de amor. Há uma demanda constante pela exploração do sofrimento, em que [se espera que] pessoas negras falem sobre racismo e pessoas LGBTQIAP+ só desse tema. Eu mesma tinha dificuldade de falar de amor e, no doutorado, decidi dar um primeiro passo, um gesto prático. Comecei a olhar os casais de sapatonas do meu entorno cujas trajetórias me inspiravam. Algumas são artistas com quem não tinha proximidade; outras, amigas íntimas. Convidei cinco desses casais a me enviar fragmentos vários de suas relações. Juntei isso a imagens que produzo em meu cotidiano, algumas que fiz com minha ex-namorada, e contei uma grande história de amor, com fotos de família, no mar, além de coisas sutis, como um bilhete. MARÍLIA OLIVEIRA

Um livro sobre o amor sapatão representou uma mudança temática em seus trabalhos, até então sobre assédio e vingança. Como isso se deu? ADRIANA FERREIRA SILVA

Meu imaginário estava impregnado. As histórias que eu via e ouvia e as produções com que tive contato no universo das lesbianidades tratavam de violência ou erotismo. Após a eleição do atual presidente, entendi que insistir nessa estratégia era oferecer a ele e aos seus eleitores o que queriam: a mortificação do nosso corpo. Estava na hora de parar de falar de violência. Não que ela não tenha que ser discutida ou não seja importante. Mas também a alegria é um compromisso político. É quase uma estética da vingança, que me fez começar a pensar em afeto e cotidiano como proposições para meu doutorado, o Museu do amor sapatão. MARÍLIA OLIVEIRA

O que do cotidiano lhe interessa discutir?

ADRIANA FERREIRA SILVA

Nem todo mundo tem direito ao cotidiano do mesmo jeito. Precisamos nos perguntar a quem ele é negado. Quem é que não pode andar de mãos dadas na rua ou sequer entrar numa padaria para MARÍLIA OLIVEIRA

ADRIANA FERREIRA SILVA

do amor sapatão?

O que é o Museu

Fui contemplada com um edital de apoio à cultura e, ao mesmo tempo, selecionada no douMARÍLIA OLIVEIRA

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torado, e decidi unir essas duas pesquisas. Todos os trabalhos que desenvolvi nos dois últimos anos são parte delas. [Além do fotolivro], tenho uma proposição performativo-visual: a inauguração do Museu do Amor Sapatão. Eu fiz vários santinhos, que distribuo em diferentes cidades, anunciando a abertura do museu. Enquanto entrego, fotografo sem que as pessoas percebam e acompanho as reações, que são sempre diferentes. Para cada lugar é uma foto no santinho. Atrás dela, coloco a data da inauguração, e-mail para contato e o local, em geral a praça da igreja, porque toda cidade tem uma. O Museu do Amor Sapatão passa a existir quando as pessoas o imaginam. Ao final do doutorado, a ideia é que ocorra uma exposição com essas obras, os textos e o que produzi em torno desses pensamentos sobre amor, estética do cotidiano e as possibilidades de imaginação de outros futuros e de outras experiências.

riência mediada e descrita por outras pessoas. Outro projeto em que você está envolvida é a revista Nerva. Do que trata a publicação? ADRIANA FERREIRA SILVA

É uma revista de arte nordestina feita por nordestines. Eu e mais cinco pessoas criamos um corpo curatorial e lançamos uma convocatória para que artistas de todos os estados do Nordeste enviassem trabalhos que tratassem de autobiografia ou da relação entre a imagem, a palavra e o insólito, pensando essa grande ficção que se constrói da região. Quantos estereótipos recaem sobre esse lugar, visto como único, enquanto somos vários estados, com sotaques e realidades completamente diferentes? Consideramos as estratégias xenofóbicas do mercado da arte, que tenta fazer com que a gente ache que precisa estar no Centro-Sul para ser respeitado e incluído; e, pensando em como contrariar isso, publicamos em torno de 130 trabalhos, escolhidos entre 300 inscritos, e distribuímos gratuitamente em duas edições, cada uma delas com 500 exemplares. MARÍLIA OLIVEIRA

O que é ser uma sapatão no mundo?

ADRIANA FERREIRA SILVA

Entrar em contato com as possibilidades da narrativa, ter a chance de me narrar e narrar o mundo me levou, por exemplo, a entender o que era ser uma mulher sapatão e uma cearense do interior. Isso me ajudou a compreender o que eu queria fazer com meu trabalho, do lado de quem eu tinha de contar a história e qual era a importância de que pessoas como eu pudessem fazer isso, ao invés de ter sua expeMARÍLIA OLIVEIRA

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por Angela Ro Ro (trecho de “Preciso tanto”) Você diz que quer mas não pode Que a sua cabeça é um bode Pra se soltar... Me empenho na luta seguinte Que é você achar um acinte Eu me excitar… Assim não vai dar A minha vontade é tão grande Não pode esperar Preciso tanto! por GA31 (trecho de “Samba digital”) Na manhã pós-sexo Num verão exótico Eu abri uma cerveja E olhei no relógio Te mostrei o desejo Recitei monólogos Te contei meus dramas E o tesão é óbvio

por Ana Gabriela (trecho de “Capa de revista”) Já me avisaram desse jeito seu Que você não ama Mas cê tá amando seu corpo no meu Tanta coisa boa que a gente tem Eu também não amo Mas eu tô amando seu corpo também

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por Ana Gabriela (trecho de “Teu nome imita o mar”) Ah, bonita Eu acho que não é de hoje que a gente se encontra e se gruda, não Eu gosto de te ver de perto e aprender o jeito que teu beijo tem Eu toco tua vontade Bebo tua água e você se derrama

por Ana Gabriela (trecho de “Mulher”) A cidade dorme enquanto ficamos a sós O toque da tua boca me parece diferente De tudo que vivi antes de existir o nós Tudo fica bom se esse tudo tem a gente

por Maria Beraldo (trecho de “Tenso”) Tenso Tão desavisado, meu tesão Vive um momento tenso Livre, leve e solto de coração É gostoso, é tenso Tão desavisado, meu tesão Vive um momento tenso Livre, leve e solto de coração É gostoso 59


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EXPEDIENTE

COORDENAÇÃO EDITORIAL Carlos Costa CONSELHO EDITORIAL Ana de Fátima Sousa, Andréia Schinasi, Carlos Gomes, Galiana Brasil, Natalia Souza e Regina Medeiros PRODUÇÃO DE CONTEÚDO Adriana Ferreira Silva e Cristiane Batista – Grená Conteúdo Multiplataforma (terceirizadas) EDIÇÃO Fernanda Castello Branco, Icaro Mello e William Nunes PROJETO GRÁFICO Mily Mabe ENSAIO FOTOGRÁFICO Anne Karr (terceirizada) PRODUÇÃO EDITORIAL Luciana Araripe e Mylena Oliveira dos Santos (estagiária) SUPERVISÃO DE REVISÃO Polyana Lima REVISÃO Rachel Reis (terceirizada)


Encontre no Spotify a playlist Todos os gêneros 2022, que celebra o amor, a identidade e a cultura lésbica.


Esta publicação foi composta das famílias tipográficas Sentinel e Verlag. O miolo foi impresso no papel offset 120 g/m2. Duas mil unidades foram impressas pela Pigma gráfica e editora em julho de 2022. 64


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