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artista plástica

e educadora Katia Suzue fala de sua experiência com o grafite, de suas principais influências, da evolução de seu estilo, dos desafios e da construção de espaços de apoio e fortalecimento entre mulheres em uma cena da arte de rua tradicionalmente masculina.

Nasci e cresci na Zona Norte de São Paulo e me lancei para valer no jogo do graffiti em 2005. Nessa época eu só queria fazer parte, criando bombs [formato de grafite rápido, com letras simples e poucas pela cidade. Por tempo fiquei cenário tradicional, de regras, muitos homens, pouquíssimas mulheres, muita vivacidade e muita competição. Segui trilhando esse caminho das ruas e resistindo a esse mecanismo nada convidativo às mulheres, em que era possível contar nos dedos as graffiteiras que conheci e com as quais pintei, mas com quem me conectei profundamente e até hoje guardo em meu coração.

Minha história começou no real vandal – estilo em que só cabem letras e que é ilegal por essência, no sentido literal de vandalismo; é oriundo do movimento hip-hop e tem como objetivo demarcar território – e foi se desdobrando, entre mudanças de estilos, acompanhando meu desenvolvimento e minha evolução como estudante, artista, mãe, mulher e feminista. Quero contar um pouco sobre as mulheres que conheci ao longo desse período de lutas e glórias, no qual de poucas nos tornamos muitas. Nós nos fortalecemos em rede, compartilhando informações e eventos e nos energizando com as experiências de outras mulheres que, como nós, escrevem diariamente a sua história nas ruas de todo o mundo. Paralelamente ao meu percurso nas ruas, segui como educadora, lugar que me manteve em estudo constante e nutrindo o interesse pela trajetória dessas Seguindo a regra básica do graffiti – de respeitar quem veio primeiro –, quero começar citando Lady Pink, graffiteira equatoriana radicada nos Estados Unidos. Ela recentemente deu um depoimento contando que, quando começou a pintar, escutava rock e que a imagem atrelada a ela de mulher cult da cultura hip-hop (graças ao filme Wild style, de 1982, do qual foi protagonista) não a representava. Apesar disso, assim perpetuou seu nome e se tornou

Além das ruas - histórias do graffiti

Registro de grafite da artista Katia Suzue. São Paulo. Fotografia: Katia Suzue uma grande referência feminina na cultura hip-hop. Atualmente, segue pintando nas ruas, atuando como educadora de graffiti em espaços culturais e vendendo projetos de arte. Apesar de ser uma das minhas grandes influências, ela não foi a primeira referência, já que, no início do meu percurso, a internet era uma ferramenta limitada, à qual nem todo mundo tinha acesso, e as primeiras mulheres com as quais tive contato encontrei na rua.

Outro grande nome para mim é Martha Cooper, fotojornalista norte-americana que tive o prazer de conhecer há alguns anos. Martha é uma enciclopédia viva do graffiti e, com seus 80 anos, segue mundo afora registrando a evolução dessa arte e o trabalho das novas gerações.

Um dos primeiros contatos que tive com outras mulheres no graffiti foi em 2003, antes de me jogar de vez na cena, quando vi Waleska Nomura pintando no Clubão, um espaço de convívio da galera na Zona Norte de São Paulo. Nesse dia me senti muito impactada vendo uma mulher pintar. Uma mulher amarela, de cabelos coloridos, que muito se assemelhava a mim. Nossa origem oriental nos conectava, e a força feminina ancestral me emocionou naquele momento raro e único. No início eu me apegava a qualquer figura feminina que aparecesse e tentava rastrear essas mulheres para pintar junto. Foi assim que, em 2007, surgiram as Noturnas, grupo formado pelas graffiteiras Tikka, Prila e Zeila. Eu me juntei a elas, e, nos dois anos seguintes, entraram para o grupo Keila, Yá, Pan e Miss. Construíamos uma verdade que era só nossa, várias meninas cheias de disposição e muita vontade de colorir as ruas. Noturnas se tornou a primeira crew [equipe] de mulheres na cidade de São Paulo. Criamos nossas regras, colorindo a cidade cinza que a gestão política da época nos fazia engolir. Nós nos inscrevemos em editais e conseguimos realizar muitas conquistas apenas entre mulheres. Aprovamos o projeto As 13, que pela primeira vez levou 13 mulheres graffiteiras juntas em um espaço expositivo institucionalizado (com cachê, material e uma publicação), no Centro Cultural Ruth Cardoso.

Nesse mesmo período, fomos convidadas para o Encontro nacional da Rede Graffiteiras BR, encabeçado por Ana Clara, da crew Maçãs Podres, criada no ABC Paulista em 2003. Nesse encontro, tivemos contato com aproximadamente 50 mulheres de todo o Brasil. A Rede Graffiteiras BR nos serviu de apoio para viajar e pintar com outras mulheres de outros estados, e a partir disso muita coisa mudou, conexões foram estabelecidas e uma revolução feminina no graffiti se iniciou. Ana Clara me abriu não só a porta para o mundo feminino do graffiti, mas também minha mente ao falar de feminismo, termo que, antes do contato com ela, eu nem sabia o que significava.

Nessa mesma época, eu me formei em artes e comecei a ocupar espaços culturais ministrando aulas de arte urbana. Posteriormente, eu me graduei em museologia pela Etec Parque da Juventude, bem em frente ao Museu Aberto de Arte Urbana (Maau). No momento da criação do museu, eu estudava e pintava havia pouco mais de cinco anos, mas já tinha em mente que havia aprendido a pintar e queria muito participar dessa cena. Foi então que recebi um convite para fazer a pintura em uma das pilastras do Maau.

Esse foi um momento em que muita coisa mudou na minha vida. Tive a chance de fazer minha segunda iniciação científica, via Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), com um inventário de obras de mulheres graffiteiras. Entreguei minha pesquisa em 2011 – nela mapeei 40 mulheres atuantes no graffiti na capital paulista, estudo que serviu de apoio para a produção do capítulo sobre mulheres do livro Graffiti em SP, publicado em 2012.

Em meio ao graffiti e aos estudos, engravidei. Pensei que seria o fim do meu percurso nessa área, já que nós mulheres passamos por muitas provações no período de gestação. Nesse momento, recusei propostas para pintar, até que, como mágica, muitos convites irrecusáveis passaram a fazer parte da minha rotina. Então deixei os bombs e, graças aos movimentos do próprio graffiti, cheguei à street art. Passei a produzir telas e projetos de pintura, de grandes formatos, em instituições e galerias de arte.

Há cerca de dez anos, o graffiti se consolidava de maneira incrível, e quem tinha técnica e circulava na cena conseguia muitos trabalhos em campanhas publicitárias. Galerias na Vila Madalena, bairro paulistano, começaram a investir na venda de obras de artistas do universo da rua, outras instituições fomentaram a cultura da rua e, graças a esse momento, pude participar de residências artísticas internacionais, eventos nacionais e internacionais de muralismo e mostras coletivas em grandes museus de São Paulo, ganhei salões de arte e participei da Bienal de graffiti fine art como artista e como palestrante. Era um sucesso ser artista de rua.

Então chegou a pandemia de covid-19. Como ser artista de rua sem a rua? Eu me reinventei, mudei de cidade, de ares, e segui com as aulas remotamente. Mas como falar de arte de rua nesse momento distante da rua? Sendo educadora cultural – em um programa social desde 2014, e cada vez mais com demandas on-line –, tive a ideia de fazer entrevistas, focando em mulheres do graffiti, convidando artistas que começaram a pintar no mesmo período que eu. Entre as perguntas, uma era comum a todas, e eu a repasso a vocês: “Qual foi a primeira mulher que você viu fazendo graffiti na sua vida?”. ❄