A Tragédia da Cultura

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A TRAGÉDIA DA CULTURA GEORG SIMMEL SEGUIDO DE

CULTURA, GRANDEZA NEGATIVA TEIXEIRA COELHO


Georg Simmel pensou fora da caixa, o que torna sem sentido apresentá-lo como filósofo e sociólogo ou coisa análoga: mentes poderosas transgridem fronteiras. Simmel interessava-se por pensar o mundo e a vida, a pessoa e a arte, a cidade mais do que o Estado, a cultura e sua fragmentação já na-

quele tempo. Antecedeu muita gente boa, como Walter Benjamin em seu interesse pela metrópole; ou como Marshall McLuhan, ao mostrar como forma (“meio”) e conteúdo (a “mensagem”) interagem e determinam-se mutuamente. E interessou-se por temas que a sociologia oficial da época — e aquela em vigor ainda no século 20 por suas décadas todas e as do 21 — consideravam irrelevantes, secundários ou periféricos em relação à economia, como a aventura, a moda, os sexos, a

coqueteria, a personalidade de Deus, a cultura feminina. Para o pensamento dito progressista duro, a questão das mulheres, das etnias, das preferências sexuais seriam resolvidas depois que a revolução tomasse o poder e resolvesse o básico. Quer dizer, nunca. Simmel sempre considerou o sexo, o amor, a religião e arte como

os verdadeiros pontos básicos. Mas interessou-se também pelo dinheiro e sobre ele escreveu outra obra notável,

Filosofia do dinheiro, que não trata de economia, nem do capitalismo tampouco do mercado, mas do di-

nheiro, “forma pura da possibilidade das trocas.”


A tragédia da cultura seguido de Cultura, grandeza negativa


OS LIVROS DO OBSERVATÓRIO formam uma coleção voltada para a reflexão sobre as tendências da cultura e da política cultural no Brasil e no mundo. Numa época em que as inovações tecnológicas reelaboram com crescente rapidez o sentido da cultura, uma investigação ampla sobre os velhos e novos conceitos em uso nesse campo é a condição necessária para a formulação de políticas de fato capazes de contribuir para o desenvolvimento humano, muito além do desenvolvimento apenas econômico.


A TRAGÉDIA DA CULTURA Georg Simmel

CULTURA, GRANDEZA NEGATIVA seguido de

Teixeira Coelho


Coleção Os Livros do Observatório dirigida por Teixeira Coelho Título original “Der Begriff und die Tragödie der Kultur” in Philosophische Kultur (1911) Copyright @ desta tradução Teixeira Coelho Título original “Cultura, grandeza negativa” Copyright @ Teixeira Coelho Publicado por Itaú Cultural e Editora Iluminuras Copyright © 2020

Equipe Itaú Cultural Presidente Alfredo Setúbal Diretor Eduardo Saron Núcleo Observatório Gerente Marcos Cuzziol Coordenador Luciana Modé Produção Andréia Briene

Projeto gráfico Eder Cardoso | Iluminuras Capa Michaella Pivetti Imagem de capa A Floating World, por Bruna Goldberger Revisão Bruno D’Abruzzo

Memória e Pesquisa | Itaú Cultural Simmel, Georg A tragédia da cultura / Georg Simmel; tradução Teixeira Coelho. Cultura, grandeza negativa / Teixeira Coelho. - São Paulo : Itaú Cultural : Iluminuras, 2020. 128 páginas ; 22,5 cm. ISBN 978-6-555-19070-0 (Iluminuras) ISBN 978-65-990418-9-1 (Itaú Cultural) 1. Tecnologia e sociedade. 2. Cultura. 3. Filosofia. 4. Políticas culturais. 5. Subjetividade. I. Instituto Itaú Cultural. II. Título. CDD 303.482

2020 EDITORA ILUMINURAS LTDA. Rua Inácio Pereira da Rocha, 389 – 05432-011 – São Paulo – SP – Brasil Tel./Fax: 55 11 3031-6161 iluminuras@iluminuras.com.br www.iluminuras.com.br O Itaú Cultural (IC), em 2019, passou a integrar a Fundação Itaú para Educação e Cultura com o objetivo de garantir ainda mais perenidade e ao legado de suas ações no mundo da cultura, ampliando e fortalecendo seu propósito de inspirar o poder criativo para a transformação das pessoas.


SUMÁRIO A tragédia da cultura, 7 Georg Simmel Conceito e tragédia da cultura, 9

Cultura, grandeza negativa, 43 Teixeira Coelho A cultura vista do lado de fora, 50 O espírito em chave contemporânea, 58 Simmel antecipa o homem sem qualidades e sem conteúdo, 65 Quando a cultura é inútil, 84 Inesperados aportes da tecnologia para a filosofia e a cultura, 89 A cultura inimiga da cultura, 94 Afogando em números — mesmo nos bem-intencionados, 99 Cultura do excesso, cultura do nada, 105 Trabalho da cultura: encarar a época, 109 Os conteúdos de cultura contra a finalidade da cultura, 112

Posfácio ao posfácio, 117 Sobre os autores, 125



A TRAGÉDIA DA CULTURA Georg Simmel



CONCEITO E TRAGÉDIA DA CULTURA

O fato de que o homem não pertence, de modo inquestionável, ao

estado natural do mundo, ao contrário do animal, mas dele se afastar, confrontando-o, fazendo-lhe exigências, lutando contra ele, impondo-

-lhe sua violência e sofrendo sua violência, constitui o primeiro grande dualismo a dar origem a um processo infindável de interação entre o

sujeito e o objeto. Uma segunda instância desse dualismo encontra

espaço no interior do próprio espírito humano. O espírito humano cria inúmeras formas que continuam a existir com peculiar independência diante dessa mesma alma que as criou ou de qualquer outro que as

aceite ou rejeite. Assim é que o sujeito vê-se — diante da lei, da religião, da tecnologia, da ciência e da moral — ora atraído, ora repelido pelo conteúdo que lhe é oferecido, às vezes fundindo-se com essas formas como se fossem parte de seu próprio Eu, outras vezes delas distanciado

e evitando intencionalmente o contato com elas. Em outros momen-

tos ainda, é sob uma forma rígida, coagulada, como numa existência congelada, que o espírito, assim transformado em objeto, opõe-se à

vitalidade fluída, à própria responsabilidade pessoal diante de si e do

mundo, às cambiantes tensões interiores de sua psychè subjetiva. Pelo

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próprio fato de estar o espírito estreitamente vinculado a si mesmo, ele passa por inúmeras tragédias surgidas desse profundo conflito entre

formas opostas: entre a vida subjetiva, incessante mas finita no tempo, e seus conteúdos que, uma vez criados, são inamovíveis e permanecem indefinidamente válidos.

A ideia de cultura vive no meio desse dualismo. Na origem dessa

ideia encontra-se um fato interno que só pode ser expresso plena-

mente por meio de uma parábola — uma parábola algo nebulosa: o caminho da alma rumo a si. Ninguém nunca é apenas aquilo que

é neste momento, é sempre algo mais que isso, algo superior e mais

perfeito, algo que já estava pré-formado e constituído nele mesmo, algo irreal mas de algum modo existente. Não nos referimos a um

ideal ingênuo localizado em algum ponto do mundo espiritual, mas ao ser-livre, à liberação das energias potenciais nele existentes, ao

desenvolvimento de seu próprio ser mais profundo que obedece a uma pulsão formal interior. Assim como a vida — em seu ponto mais

alto de desenvolvimento consciente — contém, de forma imediata, seu próprio passado como uma parte de seu inorgânico, assim como

o passado segue vivo na consciência com seu conteúdo original e não apenas como causa mecânica de ulteriores transformações, do mesmo

modo a vida abarca o próprio futuro de uma forma que não tem qual-

quer analogia com o mundo do inanimado. Em todos os momentos

da existência de um organismo que pode crescer e reproduzir-se, sua forma futura está nele presente como uma necessidade e uma

pré-moldagem tão profundamente interior que de modo algum pode

ser comparada, por exemplo, ao processo de uma mola tensionada que em si mesma contém sua subsequente liberação e expansão. Enquanto

tudo que é não-vivo possui como seu apenas o instante presente, o ser vivo estende-se de maneira incomparável por seu passado e seu futuro. Todos os movimentos da alma como a vontade, o senso

de dever, a vocação, a esperança, são prolongamentos espirituais da

determinação fundamental da vida que é esse fato de conter o futuro em seu próprio presente de uma forma específica que só existe no

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processo da vida. E isso se aplica não apenas aos desenvolvimentos e realizações parciais do espírito: também a personalidade como um todo, e como uma unidade, traz dentro de si uma imagem previamente

desenhada com linhas invisíveis, imagem que, realizada, permitiria

à personalidade, por assim dizer, sua realidade plena e não sua mera

possibilidade. Por mais que o amadurecimento e o refinamento das forças do espírito possam consumar-se sob aspectos parciais, em ações

e interesses parciais e, digamos, provinciais, abaixo ou acima desse

plano encontra-se a exigência de que a totalidade do espírito como tal cumpra a promessa nele mesmo contida de tal modo que todos os

aperfeiçoamentos parciais do espírito surjam, com efeito, como uma

multiplicidade de caminhos pelos quais o espírito chega a si mesmo. Se for o caso de dizê-lo assim, esse é um pré-requisito metafísico de nossa

natureza prática e emocional — por mais que também essa expressão simbólica mantenha-se a uma ampla distância do comportamento

real, isto é, do fato de que a unidade da alma não é simplesmente um vínculo formal que permite o desenvolvimento de suas forças

parciais sempre da mesma maneira, mas que, através dessas forças

parciais, dá-se um desenvolvimento do espírito como um todo — e

esse desenvolvimento do todo antepõe-se, internamente no espírito, ao objetivo de um desenvolvimento para o qual todas essas faculdades e perfeições parciais surgem como meios para a consecução do objetivo final.

E assim vem à tona a primeira determinação do conceito de cultura

que, a título provisório, serve-se dos recursos da linguagem para ser

expressa. Ainda não estamos cultivados, ainda não somos cultos, quando apenas desenvolvemos em nós este ou aquele conhecimento

ou capacidade parcial, mas somente quando tudo que se relaciona

com o desenvolvimento pleno do espírito — por certo relacionado com seus desenvolvimentos parciais mas sem se reduzir a eles — servir à

centralidade do espírito. Nossas aspirações conscientes e direcionáveis aplicam-se a interesses e potencialidades parciais e é por isso

que o desenvolvimento de todo ser humano, visto em termos de sua

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capacidade de ser assim nomeado, surge como um feixe de linhas de crescimento que se desdobram em direções diversas e com compri-

mentos de onda bem distintos. Mas o ser humano não se cultiva com

essas linhas em suas perfeições parciais: só se cultiva com o significado que possam ter para o desenvolvimento de sua integralidade pessoal

indefinível. Em outras palavras, a cultura é o caminho da unidade, encerrada em si mesma, rumo à unidade desenvolvida passando pela multiplicidade aberta. Em todas as circunstâncias, porém, esse só pode

ser um desenvolvimento rumo a um fenômeno enraizado nas forças germinais da personalidade e que, por assim dizer, está nela delineado como seu próprio plano ideal.

Também aqui os usos da linguagem sugerem um outro modo

adequado de dizer a mesma coisa. Dizemos cultivada a fruta de um

pomar que o trabalho do jardineiro extraiu de uma árvore lenhosa com frutos antes não comestíveis. Dizemos também que essa árvore selvagem foi cultivada até transformar-se em árvore frutífera. Se, de outro lado, um mastro de navio for feito dessa mesma árvore, e a ele

aplicar-se um trabalho teleológico, finalístico, em nada menor que o

trabalho com a fruta, não diremos de modo algum que esse tronco foi

cultivado até transformar-se em mastro. Essa nuance da linguagem indica claramente que a fruta, mesmo não podendo surgir sem o esforço humano, emerge das forças interiores da árvore e corresponderá apenas

à possibilidade prefigurada em seus próprios desígnios, ao passo que a

forma do mastro é acrescentada ao tronco a partir de um conjunto de

finalidades a ele em tudo estranhas e que carece, em suas tendências próprias e essenciais, de toda prefiguração com esse objetivo. Nesse sentido, todo conhecimento possível, todas as virtuosidades, todos os

refinamentos de uma pessoa não nos permitem dizer que ela tem de fato a qualidade de um ser cultivado caso esses traços operem apenas como acréscimos que chegam à sua personalidade a partir de um valor

a ela exterior e que, em última instância, a ela permanecem igualmente

exteriores. Nesse caso, a pessoa certamente exibirá aspectos cultivados, mas não é uma pessoa culta; ela só se torna culta quando os conteúdos

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oriundos de uma esfera suprapessoal parecem desdobrar em sua alma, como por uma secreta harmonia, aquilo que nele existe como pulsão própria e projeto prévio interior de sua perfeição subjetiva.

E aqui enfim surge a condicionalidade da cultura, através da qual

se propõe uma solução para a equação sujeito-objeto. Não aceitamos

o conceito de cultura nos casos em que a perfeição não é percebida como interior ao núcleo do espírito; mas esse conceito tampouco se aplica ali onde se apresenta apenas como um autodesenvolvimento que não requer meios e mediações objetivos e externos. Inúmeros movimentos de fato conduzem a alma na direção de si mesma tal

como o exige seu ideal, isto é, levam-na à realização de um ser pleno e o mais adequado possível mas que, de início, existe apenas como possibilidade. Na medida, porém, em que o espírito apenas lograr

esse objetivo exclusivamente a partir de seu interior — por meio de

impulsos religiosos, abnegação moral, intelectualidade predominante, harmonia global da existência — ele pode não se adequar ao que

entendemos por culto, cultivado. Não se trata do fato de que careça desse algo total ou relativamente exterior que o uso linguístico reduz

à condição de civilização. Isso não importa. É que o cultivado, em seu

sentido mais puro, mais profundo, não reside ali onde o espírito percorre, exclusivamente com suas forças subjetivas pessoais, o caminho

que o conduz de si para si mesmo, desde a possibilidade de nosso Eu

mais autêntico até sua plena realização — embora seja certo, talvez, que, de um ponto de vista mais elevado, essas realizações sejam as mais

valiosas. E assim se demonstraria que a cultura não é o único valor do

espírito, o definitivum. O significado específico da cultura, no entanto, só é alcançado quando os seres humanos incorporam em si algo que é

exterior a esse desenvolvimento, quando o caminho do espírito passa

por valores e avanços que não são, eles mesmos, animicamente subjetivos. As formas objetivamente espirituais de que falei no início — arte

e moral, ciência e objetos formatados para fins específicos, religião e direito, tecnologia e normas sociais — são, todas, estações pelas quais o sujeito precisa passar para lograr o valor intrínseco especial a que

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se dá o nome de sua cultura. O sujeito tem de abarcar essas estações em si mesmo: não pode permitir que existam apenas como valores objetificados, a ele exteriores.

O paradoxo da cultura consiste em que a vida subjetiva, que senti-

mos em seu fluxo contínuo e que por si mesma impulsiona-se rumo

à perfeição interior, não pode alcançar essa perfeição (considerada na

perspectiva da ideia de cultura) a partir apenas de si mesma: só a pode

consegui-la passando por aquelas formas que ficaram completamente

fora dela e que se cristalizaram em um todo fechado e autossuficiente. A cultura surge — e isso é absolutamente crucial para a sua compreensão — ao reunirem-se os dois elementos, nenhum dos quais

isoladamente a contém: o espírito subjetivo e as criações espirituais objetificadas, exteriorizadas.

Aqui reside o significado metafísico dessa forma histórica. Um

grande número das ações essencialmente humanas decisivas ergue pontes inconclusas — e que, se concluídas, serão sempre repetidamente

destruídas — entre o sujeito e o objeto em geral, como o conhecimento, de modo especial o trabalho, a arte e a religião em algumas de suas

significações. O espírito depara-se com um ser para o qual a compulsão

e a espontaneidade de sua natureza o dirigem; mas ele permanece eternamente contido em si mesmo por esse movimento, em um cír-

culo que o ser apenas roça de leve; e toda vez que, desviando-se pela tangente de seu caminho, desejar penetrar no ser, a imanência de sua lei interna arrasta-o outra vez para a rotação do círculo encerrado em

si mesmo. Na formação dos conceitos sujeito-objeto como correlatos, cada um dos quais encontra significado apenas no outro, existe o desejo e a antecipação de uma superação desse dualismo rígido e último. Pois

bem, aquelas ações mencionadas transpõem-no para atmosferas específicas nas quais a estranheza radical dos componentes desse dualismo

é reduzida e permite certas fusões. Como elas, porém, só podem ocorrer sob as modificações criadas pelas, digamos, condições atmosféricas

dessas províncias específicas, elas não podem superar a estranheza

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desses componentes em seu interior mais profundo e continuam sendo tentativas finitas de resolver uma tarefa infinita. Mas nossa relação

com os objetos com os quais nos cultivamos, incorporando-os em nós

mesmos, é de outra natureza porque eles mesmos são o espírito que se tornou objetivado naquelas formas éticas e intelectuais, sociais e

estéticas, religiosas e tecnológicas: o dualismo com o qual o sujeito, encerrado em seus próprios limites, opõe-se ao objeto existente por si mesmo, experimenta uma conformação singular quando ambos

os componentes são, tornam-se espírito. Assim, o espírito subjetivo deve sair de sua subjetividade, mas não de sua espiritualidade, para

experimentar a relação com o objeto através do qual seu cultivo ocorre. Essa é a única maneira pela qual a forma dualista da existência, que

se define a partir da existência do sujeito, organiza-se rumo a um relacionamento internamente uniforme. É aí que o sujeito torna-se

objetivo e o objetivo se torna subjetivo, o que caracteriza a especifici-

dade do processo cultural no qual, para além dos conteúdos parciais, ele

exibe sua forma metafísica. Sua compreensão mais profunda, portanto, requer uma análise mais detalhada dessa objetivação do espírito.

Estas páginas partiram da constatação da profunda estranheza ou

hostilidade que existe entre a vida e o processo criativo da alma, por

um lado, e seus conteúdos e produtos, por outro. À vida vibrante do

espírito, inquieta e sem limites, criativa, opõe-se seu produto rígido, idealmente imutável, com seu inquietante efeito contrário capaz

de paralisar aquela mesma vivacidade, enrijecê-la. Com frequência, é como se a mobilidade criativa da alma morresse em seu próprio

produto e por causa dele. Aqui reside uma forma básica do sofrimento

que nos é imposto por nosso próprio passado, nosso próprio dogma, nossos próprios fantasmas. Essa discrepância que existe, por assim

dizer, entre os estados agregados da vida interior e seus conteúdos, é

em certa medida racionalizada e pressentida de modo menos intenso

pelo fato de que, por meio de seu trabalho teórico ou prático, o homem

confronta seus produtos ou conteúdos espirituais como um cosmo do espírito objetivado, um cosmo em certo sentido determinado e

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autônomo. A obra externa ou imaterial na qual mergulha a vida do

espírito é percebida como um valor especial — por mais que a vida, fluindo em seu interior, enverede por um beco sem saída ou seja levada

pelas ondas da correnteza que deixam para trás essas formas imóveis; e esse valor especial constitui a riqueza especificamente humana, i.e., o fato de que os produtos da vida objetiva pertencem ao mesmo tempo a uma ordem objetivada de valores, que não flui, a uma ordem

lógica ou moral, a uma ordem religiosa ou artística, a uma ordem

tecnológica ou jurídica. Ao se revelarem portadores de tais valores, como membros de tais séries, esses produtos da vida objetivada são, não apenas libertados de seu rígido isolamento do processo vital, em

virtude do entrelaçamento e sistematização de ambos, como também alcançam, nessa mesma malha, um significado a que não poderiam aspirar dado o caráter irrefreável de sua dinâmica.

Uma tônica axiológica recai sobre a objetivação do espírito, o valor

surge na consciência subjetiva mas o que essa consciência com ele faz é apontar para algo além dela mesma. O valor nem sempre precisa ser

positivo no sentido do bem, daquilo que é bom, da coisa certa; antes, o mero fato formal de que o sujeito pôs-se a considerar algo objetivo, de

que sua vida assumiu corpo fora dele mesmo, é percebido como signi-

ficativo porque somente a autonomia do objeto moldado pelo espírito

libera a tensão básica entre o processo e o conteúdo da consciência. Pois, assim como as representações particularmente naturais apaziguam a estranheza que é persistir dentro do processo de fluxo contínuo da

consciência como algo completamente solidificado, legitimando essa estabilidade em sua relação com um mundo objetivamente externo, do

mesmo modo a objetividade do mundo do espírito presta um serviço equivalente. Sentimos toda a vivacidade do nosso pensamento na

firmeza das normas lógicas, toda a espontaneidade de nossas ações

nas normas morais, todo o curso de nossa consciência preenchido com conhecimentos, tradições, impressões de um ambiente de algum modo

moldado pelo espírito; a rigidez e, por assim dizer, a insolubilidade química de tudo isso revelam um dualismo persistente diante dos

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ritmos irrequietos do processo subjetivo de nosso espírito, no qual, no entanto, surge como uma representação, como um conteúdo espiritual

subjetivo. Mas por pertencer a um mundo ideal acima da consciência individual, esse contraste fundamenta-se e se justifica.

Quanto ao sentido cultural do objeto, que em última instância é

o que interessa aqui, o importante é que nele reúnem-se vontade e inteligência, individualidade e impulso anímico, potência e estado de ânimo dos espíritos parciais (e também do conjunto deles). É somente

assim que esses significados espirituais alcançam o ponto final de seu percurso.

Na felicidade que o criador sente diante de sua obra, por mais rele-

vante ou menos importante que ela seja, talvez exista uma satisfação objetiva, por assim dizer, ao lado da descarga das tensões internas ao

longo da criação, ao lado da comprovação da força subjetiva, ao lado da satisfação de ver sua própria expectativa atendida — ao lado de

tudo isso continua existindo, por assim dizer, uma satisfação objetiva pelo fato de que o cosmo das coisas com valor tornou-se mais rico

com essa parte a ele agora agregada. Sim, talvez não exista um prazer

pessoal sentido de modo mais sublime com nossa própria obra do que

quando a percebemos em sua impessoalidade e em seu distanciamento de nosso ser subjetivo. E assim como as objetificações do espírito são

valiosas para além dos processos subjetivos da vida que atuaram como suas causas, também o são para além dos outros processos que

delas dependem como consequência. Por mais que apreciemos os modos pelos quais a sociedade se organiza e os formatos técnicos dos

fenômenos naturais, das obras de arte e do conhecimento científico da verdade, dos costumes e da moral, e embora saibamos o quão

influentes são em sua incidência sobre a vida e o desenvolvimento dos espíritos, apesar de tudo isso muitas vezes, talvez sempre, está

implícito o reconhecimento do que são essas formas em geral e de que

o mundo também compreende essa conformação do espírito. Trata-se, aqui, de uma diretriz de nossos processos de valoração que se detém

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na natureza do dualismo objetivo-espiritual sem indagar, além de quão definitivas são essas coisas, a respeito de suas consequências

espirituais. Ao lado do prazer subjetivo fornecido pelo fato de que a obra de arte, por exemplo, é percebida como algo que se torna parte de

nós, por assim dizer, reconhecemos como um valor especial o fato de

que um espírito criou esse recipiente de conteúdos assim proposto a que chamamos obra. Assim como pelo menos uma diretriz da vontade

artística desemboca na persistência própria da obra de arte e implica uma valoração em tudo objetiva do desfrute da força criativa eviden-

ciada por suas energias vitais, do mesmo modo existe uma diretriz

semelhante, de igual orientação, no interior da atitude do receptor dessa mesma obra.

E isso em clara distinção dos valores que revestem aquilo que é

dado de forma puramente objetiva, como esse objetivo que é a natu-

reza. É que todas as coisas naturais, o mar e as flores, os Alpes e o céu estampado de estrelas, somente têm valor quando refletidas nas almas subjetivas. Assim que pomos de lado as humanizações místi-

cas e fantasiosas da natureza, também ela revela-se apenas um todo

continuamente coerente cuja lei, indiferente a nossa existência, não

admite qualquer sentido baseado em sua existência objetiva, nem mesmo numa existência objetivamente diferenciada das demais. São apenas as nossas categorias humanas que recortam as fatias parciais dessa natureza às quais vinculamos nossas reações estéticas, solenes e

simbolicamente significativas; a ideia de que o belo da natureza é “uma

bênção em si mesmo” só existe como ficção poética; para a consciência

que se esforça por alcançar a objetividade, não existe na natureza valor algum além do que em nós suscita. Assim, enquanto o produto

das energias absolutamente objetivas só pode ter valor em nossa esfera subjetiva, de modo contrário o produto das forças subjetivas

tem um valor objetivo para nós. As formas materiais e imateriais nas

quais a vontade do ser humano, sua capacidade, seu conhecimento e sentimento estão investidos, são aquelas que existem objetivamente

e que percebemos como significativas e enriquecedoras da existência

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mesmo quando as abstraímos da natureza de seu ser-contemplada, ser-usada ou ser-desfrutada. Embora valor e significado, sentido e importância originem-se exclusivamente no espírito humano, eles

são vistos como existentes na natureza dada; mas isso não prejudica o valor objetivo daquelas formas nas quais essas energias e valores

subjetivos — criativos e formativos — já estão investidos. Um pôr do

sol que nenhum olho humano observa não torna o mundo, de modo algum, mais valioso ou magnífico porque sua facticidade objetiva

não comporta essa categoria; mas quando um pintor coloca em uma imagem do sol nascente seu estado de espírito pessoal, sua própria

ideia de forma e cor, sua expressividade, consideramos essa obra (por enquanto não entram em jogo suas eventuais categorias metafísi-

cas) como um enriquecimento, um acréscimo ao valor da existência

em geral; o mundo nos parece, por assim dizer, mais digno em sua existência, mais próximo de seu significado, quando a fonte de todo

valor, o espírito humano, faz-se presente nesse fenômeno que agora também pertence, como obra, ao mundo objetivo (nesse significado

peculiar, independentemente do fato de que algum espírito possa depois captar o valor assim produzido e dissolvê-lo no fluxo de seus sentimentos subjetivos). O sol nascente natural e a pintura desse nascer do sol existem como realidades, mas o primeiro só tem valor enquanto

permanecer vivo na esfera psicológica; quanto à segunda, porém, que

já recobriu aquela vida natural e a transformou em um objeto no qual

nosso senso de valor detém-se como diante de um definitivum, de algo acabado, essa independe de toda subjetivação.

Se observarmos esses movimentos sob a ótica de uma polaridade,

veremos, por um lado, uma avaliação que pertence apenas à vida sub-

jetivamente motivada, na qual todo sentido, valor, significação, são não apenas gerados como nela permanecem contidos. Por outro lado, não é

menos compreensível a ênfase radical no valor que se tornou objetivo. Certamente, esse valor objetivo não está vinculado à produção original das obras de arte, das religiões, tecnologias e conhecimentos; mas o que

quer que uma pessoa faça, para ser considerado como algo de valor deve

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contribuir para o universo ideal, histórico e materializado do espírito.

Não cabe ao imediatismo subjetivo de nosso ser e ação fazê-lo, mas, sim, a seu conteúdo objetivamente normalizado e ordenado de modo que, no final das contas, apenas essas normas e ordens contenham a

substância do valor e a comuniquem aos eventos pessoais que fluem. Mesmo a autonomia da vontade moral em Kant não envolve nenhum

valor próprio em sua facticidade psicológica, mas a vincula à realização de uma forma existente na idealidade objetiva. Também o espírito e a

personalidade têm sua significação, para o bem e para o mal, na medida em que pertencem a um domínio suprapessoal. A cultura formata sua unidade comparando e contrastando essas avaliações do espírito

subjetivo e objetivo: é que a cultura significa esse tipo de perfeição

individual que só pode ser alcançada por meio da incorporação de uma forma suprapessoal que de algum modo situa-se fora do sujeito. O valor específico de ser-culto é inacessível ao sujeito se ele não chegar a esse

valor através de realidades espirituais objetivadas; estas, por sua vez, são valores culturais apenas na medida em que fornecem o caminho do espírito que vai de si para si mesmo, um caminho que vai do ponto que pode ser chamado de seu estado natural ao ponto descrito como seu estado cultural.

É possível também expressar a forma do conceito de cultura do

seguinte modo: não há valor cultural que seja apenas valor cultural; para apresentar-se com esse valor, deve ainda ser um valor numa série objetiva. No entanto, mesmo quando esse valor existe numa

série objetiva, e ainda que algum interesse ou capacidade de nosso ser

seja por ele estimulado, o valor cultural somente surgirá quando esse

desenvolvimento parcial elevar o Eu-total a um ponto mais próximo

de sua unidade e perfeição. Essa é a única maneira de entender dois

fenômenos negativos da história do espírito e que de algum modo correspondem-se mutuamente: de um lado, o fato de que as pessoas

com o mais profundo interesse cultural geralmente demonstram uma

notável indiferença pelos conteúdos objetivos parciais da cultura, e até os rejeitam, por não conseguirem perceber o grau de contribuição

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superespecializada que aportam à promoção das personalidades plenas (e provavelmente não há qualquer produto humano que tenha de demonstrar tal grau de contribuição embora, sem dúvida, tampouco

exista algum que não possa demonstrá-lo). De outro lado, surgem fenômenos que parecem ser apenas valores culturais por ostentarem certas formalidades e refinamentos do modo de viver que pertencem

a épocas maduras e por demais esgotadas. Ali onde a vida se tornou estéril e sem sentido, todo desenvolvimento na direção da plenitude do ser, que é possível como manifestação da vontade, não passa de um

esboço de desenvolvimento e já não é capaz de extrair, do conteúdo das coisas e ideias, o necessário alimento e estímulo — como ocorre

com o corpo doente que não mais consegue assimilar a substância dos

alimentos com os quais poderia recuperar suas forças e desenvolver-se. Neste caso, o desenvolvimento individual apenas pode extrair das

normas sociais a conduta socialmente válida e, das artes, apenas o desfrute improdutivo, assim como dos avanços tecnológicos somente

o lado negativo manifestado nas facilidades e comodidades propostas à vida cotidiana. Surge nesse momento uma espécie de cultura formal-

-subjetiva desprovida da trama interna com o elemento objetivo que

atende às exigências do conceito de cultura concreta. Assim é que, por um lado, manifesta-se uma ênfase tão apaixonadamente centralizada

na cultura que o conteúdo objetivo de seus fatores objetivos torna-se

excessivo e com isso desvia-se de suas metas maiores uma vez que, como tal, não cabe e não pode caber em sua função cultural. E, por outro

lado, manifesta-se também um tal enfraquecimento e esvaziamento

da cultura que ela não consegue absorver os fatores objetivos em sua qualidade própria de conteúdos objetivos. Ambos fenômenos — que surgem à primeira vista como contrapostos à vinculação da cultura pessoal com os eventos impessoais — confirmam a necessidade de um estudo mais preciso dessa relação.

O fato de encontrarem-se unificados na cultura esses fatores últimos

e decisivos da vida manifesta-se exatamente no fenômeno de que o desenvolvimento de cada um deles pode ocorrer com uma autonomia

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que não apenas pode carecer de motivação pelo ideal cultural como

também rejeitá-lo. Isso porque atentar para um ou outro deles desvia a atenção do sujeito daquele foco que ele deveria sustentar: a necessidade de definir-se em decorrência de uma síntese entre os dois. Os espíritos

que criam conteúdos duradouros, quer dizer, os elementos objetivos

da cultura, provavelmente se recusariam a extrair, da ideia de cultura, os motivos e as ideias de seu produto próprio. Pelo contrário, pode-se

dizer que há um duplo efeito no fundador de uma religião e no artista, no estadista e no inventor, no cientista e no legislador: a descarga de

suas forças essenciais, a ascensão de sua natureza às alturas em que ela deixa sair de si os conteúdos da vida cultural e, de outro lado, a paixão

por seu produto em cuja perfeição, definida por suas leis próprias, o sujeito torna-se indiferente a si mesmo e se extingue diante do que criou. No gênio, essas duas correntes confundem-se: o desenvolvi-

mento do espírito subjetivo rumo a si mesmo, levado por suas forças prementes, é indistinguível, para esse mesmo gênio, de sua dedicação

à tarefa objetiva na qual ele se separa de si mesmo. A cultura objetiva,

como foi dito, é sempre uma síntese. Mas a síntese não é nem a única, nem a mais imediata forma da unidade dado que sempre pressupõe a separação dos elementos em dois grupos: os que a precedem e os

que lhe são correlatos. Somente uma época tão voltada para a análise como a moderna poderia encontrar na síntese aquilo que existe de

mais profundo, a unidade e a totalidade da relação formal do espírito com o mundo ao mesmo tempo em que subsiste, no entanto, uma

unidade original e pré-diferencial. À medida que essa unidade expele de si os elementos analíticos, do mesmo modo como o núcleo orgânico

subdivide-se na multiplicidade de partes distintas, ela coloca-se para

além da análise e da síntese — a não ser que essas duas desenvolvam-se a partir dela própria em um processo de interação, uma pressupondo a existência da outra em cada nível; isso só não acontece se a síntese conduzir posteriormente os elementos analiticamente separados a

uma unidade que, no entanto, é distinta da unidade existente antes da

separação das duas. O gênio criador é dotado dessa unidade original composta pelo subjetivo e pelo objetivo, unidade que primeiro tem de

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ser desfeita para de certo modo ressuscitar, no processo de cultivo dos

indivíduos, de uma forma inteiramente diferente, uma forma sintética.

É por isso que o interesse pela cultura reside nesses dois movimentos: o puro autodesenvolvimento do espírito subjetivo e o puro emergir na matéria — não em um nível situado além do impulso axiológico imediato e interior da matéria, mas apegando-se a ela mesma como algo

secundário, abstrato. Assim, mesmo quando o percurso do espírito em direção a si mesmo — único fator definidor da cultura — gera outros fatores, a cultura permanece em ação como puro autodesenvolvimento

do próprio ser, seja como for que esse ser determine-se sob um ponto de vista objetivo.

Vejamos o outro fator da cultura: aquela produção do espírito que

amadureceu a ponto de lograr uma existência ideal própria, inde-

pendentemente de toda motivação psíquica. Considerada em seu isolamento autossuficiente, seu sentido e valor mais próprios não coincidem de modo algum com seu valor cultural; mais ainda, aquele abandona por completo sua significação cultural. A obra de arte

deve ser perfeita de acordo com as normas da arte, que não buscam

nada além de si mesmas e que reconheceriam ou negariam o valor da obra mesmo quando, por assim dizer, nada existisse no mundo

além dessa obra; o resultado da reflexão que levou à obra deve ser verdadeiro e isso basta. A religião alcança seu sentido com a salvação que proporciona à alma; o produto econômico quer ser perfeito como produto econômico e não reconhece outro padrão de valor a orientá-lo

que não seja o econômico. Todas essas séries processam-se no âmbito de uma normatividade puramente interior e qualquer valor que se

agregue à evolução dos espíritos subjetivos será avaliado pelas normas meramente objetivas e válidas por si e em si mesmas. A partir dessa

situação objetiva, torna-se compreensível que encontremos, tanto nas

pessoas que se orientam apenas pelo sujeito quanto naquelas que se

orientam apenas pelo objeto, uma indiferença aparentemente notável pela cultura e, mesmo, uma aversão à cultura. Quem se interessa

apenas pela salvação da alma ou pelo desenvolvimento individual

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interno no qual nenhum movimento exterior pode intervir, é o tipo de

pessoa cujos valores recusam exatamente um dos fatores integrantes da cultura, ao passo que o outro fator inexiste no tipo de pessoa que só

se interessa pela pura perfeição objetiva de nossas obras de tal modo que apenas elas, e nada a elas eventualmente ligado, satisfazem sua

ideia de valor. O exemplo radical do primeiro tipo é o estilista e, do

segundo, é o especialista encerrado no fanatismo de sua especialidade. À primeira vista, há algo surpreendente no fato de que portadores

de tais “valores culturais” inquestionáveis — como a religiosidade, a

formação da personalidade, o conhecimento de técnicas de todo tipo — desprezam ou criticam o conceito de cultura. Mas isso se esclarece de imediato com a compreensão de que a cultura significa sempre apenas

a síntese de um desenvolvimento subjetivo e de um valor espiritual objetivo, e que a ênfase extremada dada a um deles leva à recusa do outro na medida da exclusividade reivindicada pelo primeiro.

O fato de o valor cultural depender de um segundo fator situado

além da própria série de valores a que pertence o objeto torna com-

preensível que este alcance, com frequência, seja uma ordem em tudo diferente, na escala de valores culturais, daquela a que chegaria apenas

pelos meros significados do próprio objeto. Muitas obras artísticas, tecnológicas, teóricas, que permanecem em um nível inferior àquele por outras já alcançado, têm no entanto a capacidade de somar-se ao

desenvolvimento de muitas pessoas como alavancas e pontes para seus

esforços latentes rumo a um plano mais elevado. Do mesmo modo, entre as impressões da natureza que nos marcam não figuram apenas

as dinamicamente mais poderosas ou aquelas esteticamente mais fortes, capazes de oferecer-nos uma profunda sensação de felicidade e o sentimento de que elementos opacos e adormecidos em nós exis-

tentes repentinamente iluminam-se e em nós harmonizam-se: não

raro devemos ser gratos, por essas percepções, a uma paisagem de resto bastante modesta ou ao simples jogo de sombras de uma tarde

de verão. De igual maneira, não cabe atribuir a significação de uma

obra do espírito, em sua manifestação mais elevada ou mais plana,

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apenas àquilo que ela nos pode oferecer como um passo a mais para o caminho rumo à cultura. E isso porque tudo depende do fato de que esse significado especial da obra manifeste, por assim dizer, o

benefício adicional de servir ao desenvolvimento central ou geral das personalidades. E o fato de que esse benefício possa ser inversamente proporcional ao valor próprio ou intrínseco da obra tem várias causas

mais profundas. Existem obras humanas de uma perfeição inatingível às quais, exatamente em virtude dessa completude absoluta, não temos acesso ou que, por isso mesmo, não têm acesso a nós. Obras

desse tipo permanecem, digamos, em seu próprio lugar de onde não cabe transpô-las para nossos domínios: essas obras são casos de uma perfeição solitária em cuja direção talvez possamos nos dirigir mas que

não podemos incorporar para, com elas, nos elevarmos à nossa própria perfeição. Para a atitude moderna em relação à vida, a Antiguidade

costuma aparentar essa unidade completa e autossuficiente que se

recusa a ser incluída nas pulsações e inquietações de nosso tempo, de

nosso ritmo atual de desenvolvimento; e isso pode, hoje, levar muitas pessoas a procurar outros fatores fundamentais para a nossa cultura. O

mesmo ocorre com certos ideais éticos. As chamadas formas do espírito objetivado estão destinadas, talvez mais do que outras, a conduzir o

desenvolvimento pessoal de um estado de mera possibilidade à mais alta realidade de nossa totalidade e dar-lhe a direção adequada. Mas

alguns imperativos éticos contêm um ideal de perfeição tão rígido que a partir deles, por assim dizer, não é possível incorporar ao nosso desenvolvimento nenhuma energia que os transforme em algo con-

creto. Apesar da posição elevada que ocupem na série de ideias éticas, como componente cultural esses imperativos ficarão facilmente atrás

de outros que, mesmo ocupando uma posição menos elevada nessa

série, podem ser por nós assimilados e incorporados a nosso ser, com isso reforçando o ritmo de nosso desenvolvimento.

Outro motivo para a desproporcionalidade entre o valor objetivo e o

valor cultural de um objeto reside na unilateralidade do estímulo que dele recebemos. Vários conteúdos do espírito objetivado tornam-nos

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mais preparados ou melhores, mais felizes ou mais competentes, mas

na verdade não nos desenvolvem; pelo contrário, desenvolvem um

aspecto ou qualidade em nós já existente. As razões para isso são, evidentemente, escorregadias e infinitamente tênues, difíceis de serem identificadas externamente, e que se mesclam com a misteriosa relação entre nosso todo unitário e nossas potencialidades, energias e perfei-

ções parciais. Certamente, podemos descrever a realidade plenamente

realizada a que damos o nome de sujeito como sendo apenas a soma de tais parcialidades ou particularidades sem que, no entanto, seja

possível apontá-lo como resultado da composição entre elas; e a única

categoria disponível para esse entendimento, a das partes e a do todo, não esgota esse relacionamento único. Tudo que é singular tem em

si um caráter objetivo, poderia existir isoladamente em quaisquer outros sujeitos distintos e só assume o caráter de nossa subjetividade

sob o ponto de vista inicial de sua interioridade que, exatamente, é a que desenvolve essa unidade de nosso ser. Mesmo que construa

uma ponte rumo ao valor objetivado, permanece na periferia de nosso sujeito pessoal por meio da qual nos conectamos com o mundo obje-

tivo, o exterior tanto quanto o espiritual. Mas, assim que essa função

dirigida ao exterior, alimentada desde esse exterior, desliga-se de sua

significação que se dirige a nossa interioridade e desemboca em nosso centro interior, surge aquela discrepância: tornamo-nos educados, transformamo-nos em finalidade para nós mesmos, mais ricos em prazeres e competências, talvez também “mais formados”, porém nosso cultivo não acompanha o ritmo justo porque passamos de um nível inferior a um nível superior mas não a partir de nós mesmos desde nosso nível mais baixo até nosso nível mais elevado.

Enfatizo essa possibilidade de discrepância entre significação

objetiva e significação cultural de um mesmo objeto de modo a deixar

nítida a dualidade básica dos elementos cujo entrelaçamento constitui, de modo exclusivo, a cultura. Esse entrelaçamento é absolutamente

único, no sentido em que o desenvolvimento cultural significativo da pessoa é um estado que existe apenas no sujeito mas que só pode ser

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alcançado por meio da incorporação e do aproveitamento de conteúdos

objetivados. Por esse motivo, o cultivo de uma pessoa é, de um lado, uma tarefa sem fim já que o número de momentos objetivos úteis para

a realização do ser pessoal nunca pode ser considerado completo e encerrado. De outro lado, os recursos da linguagem permitem expressar

de modo preciso esse estado de coisas na medida em que a cultura vinculada a um único objeto (a cultura religiosa, a cultura artística

etc.) geralmente não serve para descrever a condição dos indivíduos, mas, sim, apenas para descrever o espírito coletivo geral difuso — e isso, no sentido de que em uma dada época encontram-se muitos

conteúdos espirituais e relevantes, de algum tipo determinado, por

meio dos quais se dá o cultivo dos indivíduos. Estritamente falando, porém, os indivíduos em geral só podem cultivar-se de modo apro-

ximado, mas não deste ou daquele modo específico; uma cultura do indivíduo objetivamente singular só pode significar que sua plenitude

cultural, uma plenitude superespecializada, deu-se principalmente por meio de um certo conteúdo unilateral ou que, ao lado de seu cultivo

real, configurou-se também uma considerável competência ou saber relativo a um dado conteúdo objetivo. Por exemplo, a cultura artística de um indivíduo — se deve ser algo além das capacidades artísticas

específicas que podem manifestar-se ao lado da “carência cultural” de uma pessoa — só pode indicar que, nesse caso, são precisamente essas

capacidades objetivas bem definidas que levaram à plenitude dessa pessoa em sua integralidade.

Surge, porém, uma fissura no interior dessa forma da cultura,

uma fissura que já estava em seu âmago e que, a partir da síntese

sujeito-objeto, a partir da significação metafísica de seu conceito, dá

origem a um paradoxo e, mais que isso, a uma tragédia. O dualismo

do sujeito e do objeto, que pressupõe uma síntese entre eles, não é apenas um dualismo substancial, por assim dizer, que diz respeito ao ser de ambos; a lógica interna segundo a qual se desenvolve cada um

desses dois componentes não coincide de modo evidente com a lógica

de desenvolvimento do outro. O conhecimento, em suas formas, por

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mais que seja determinado pelas prioridades definidas por nossos

espíritos, é continuamente preenchido apenas com o aceitável e o imprevisível, e nada garante que esses conteúdos sirvam à perfeição

da alma, determinada por seu temperamento interior. O mesmo se

aplica à nossa relação técnico-prática com as coisas. Certamente, nós apenas a delineamos de acordo com nossos propósitos; mas estes não são absolutamente compatíveis com aquelas, têm conteúdo e

lógica próprios, com duvidoso poder quanto à sua capacidade para

conduzir-nos a nosso desenvolvimento principal. E essa lógica própria

contém igualmente todo o espírito objetivo no sentido mais restrito. Uma vez criados em nós certos fundamentos básicos do direito, da

arte, da ética — talvez segundo nossa espontaneidade mais própria e íntima — não mais controlamos o desdobramento de cada um desses elementos em formas individuais ulteriores. Em vez disso, nós os gera-

mos ou recebemos de acordo com a orientação de uma necessidade

ideal que é completamente objetiva e não se preocupa mais com as demandas de nossa individualidade, por mais centrais que sejam, do que com suas próprias forças físicas e leis. É em geral verdadeiro dizer

que a linguagem escreve e pensa por nós, isto é, que ela absorve os impulsos fragmentários ou limitados de nosso próprio ser e leva-os

a uma perfeição à qual não chegariam por si sós, mesmo se apenas para nós mesmos. Mas esse paralelismo entre os desenvolvimentos

objetivos e subjetivos não é necessariamente essencial. Em certas ocasiões, percebemos a linguagem como um poder natural estranho a

nós e que falseia e mutila, não apenas nossas manifestações exteriores, como também nossas tendências mais íntimas. E a religião, uma vez

existente — ela que certamente surgiu da busca da alma por si mesma e que serve como asas para elevar as forças próprias do espírito à altura

que lhe compete — segue certas leis formativas que desenvolvem suas

próprias necessidades, mas que nem sempre correspondem às nossas. Aquilo que com frequência se censura na religião, como seu espírito anticultural, não é apenas sua ocasional hostilidade a certos valores

intelectuais, estéticos e morais, mas também algo mais profundo: o fato de que ela segue seu próprio caminho, determinado por sua lógica

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inerente, na qual engloba toda a vida. No entanto, sejam quais forem

os bens transcendentais que o espírito encontre em seu caminho, eles não o levam à plenitude de sua totalidade, para a qual o remetem suas

próprias possibilidades e que, incorporando o significado das formas objetivadas, recebem o nome, exatamente, de cultura.

Como a lógica das formas e conexões impessoais têm sua própria

dinâmica, surge um forte atrito entre elas e as pulsões e normas internas da personalidade, que experimentam uma conformação única na forma da cultura. Desde o momento em que o homem se assume como

um Eu, desde quando por isso torna-se um objeto, acima de si mesmo

e a seus próprios olhos, desde que através da forma de nosso espírito

seus conteúdos pertencem a um centro, a partir dessa forma ele teria

de propor-se o seguinte ideal: aquilo que assim está vinculado a seu centro é também uma unidade fechada em si mesma e, portanto, um todo autossuficiente. Mas os conteúdos com os quais o Eu deveria

levar a cabo essa organização, de modo a obter um mundo próprio e

unitário, não lhe pertencem de modo exclusivo; são-lhe dados a partir de um lugar espacial, temporal, ideal, exterior; eles são ao mesmo

tempo os conteúdos de vários outros mundos, o social e o metafísico, o conceitual e o ético, e com esses outros mundos mantêm formas e conexões que não buscam coincidir com as do Eu. Com esses conteú-

dos, que o Eu molda de uma maneira especial, os mundos externos

apreendem o Eu para incorporá-lo a esses mesmos mundos externos; querem conformar esses conteúdos em torno de si mesmos em vez de

moldá-los de acordo com as necessidades do Eu. Esse fenômeno pode encontrar sua expressão mais ampla e profunda no conflito religioso

entre a autonomia ou liberdade humana e sua inserção nas ordens divinas; mas isso não difere do conflito social entre o homem como

indivíduo aperfeiçoado e como simples membro do organismo social. Esse é apenas um caso daquele dualismo puramente formal que nos enlaça de modo inelutável com os outros círculos distintos e externos a nosso Eu. O homem não apenas se encontra inúmeras vezes na

interseção de dois círculos de forças e valores objetivos, cada um dos

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quais quer atraí-lo para si; ele também se sente como um centro que organiza a seu redor, de forma harmoniosa e de acordo com a lógica

de sua personalidade, todos os conteúdos de sua vida — e ao mesmo

tempo sente-se solidário com cada um desses conteúdos periféricos

que, no entanto, obedecem a uma dinâmica diferente de modo que

nossa essência configura, por assim dizer, a interseção entre ele mesmo e um grupo de demandas a ele estranho. O fato de cultura pressiona um

contra o outro, fortemente, os dois lados dessa coalizão, vinculando o

desenvolvimento de um deles (que o torna cultivado) ao do outro; ou seja, dá-se um paralelismo ou adaptação mútua dos dois. O dualismo metafísico de sujeito e objeto, que essa forma da cultura deveria em

princípio superar, ressuscita como discordância entre os conteúdos particulares empíricos e os desenvolvimentos subjetivos e objetivos.

No entanto, talvez a fratura permaneça exposta mesmo quando

em suas partes não existam conteúdos orientados em direção con-

trária, mas quando o objetivado furta-se a sua significação para o

sujeito por meio de suas duas condicionantes formais: a autonomia e

a grandeza de suas dimensões. A fórmula da cultura era, com efeito, a seguinte: as energias do espírito subjetivo assumem uma forma

objetiva, em seguida independente do processo criativo da vida, e essa, por sua vez, é incorporada de volta aos processos subjetivos da vida de uma maneira que leva a pessoa ao aperfeiçoamento pleno de seu ser central. Esse fluxo de sujeitos relacionados a outros sujeitos por

meio de objetos, em que uma relação metafísica entre sujeito e objeto

assume uma realidade histórica, pode ser interrompido; o objeto pode emergir de seu significado mediador de uma maneira mais forte do

que o indicado anteriormente e, assim, romper as pontes pelas quais passa o caminho rumo ao cultivo do sujeito. O isolamento e alienação

resultantes afetam inicialmente os sujeitos criativos devido à divisão do trabalho. Os objetos criados pela cooperação entre muitas pessoas formam uma escala, cada degrau dependendo da extensão com que

sua unidade remonta à intenção espiritual unitária, reflexiva, de um

indivíduo, ou do fato de ter sido obtida sem uma consciência de si

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mesma e derivada apenas das contribuições parciais dos diversos cola-

boradores no processo de criação. Como exemplo desse segundo caso está a cidade não construída conforme um plano preexistente, mas de

acordo com as necessidades e preferências aleatórias dos indivíduos

e que mesmo assim se torna uma forma dotada de um significado

totalizante cujas partes relacionam-se organicamente como um todo. O primeiro caso pode ser exemplificado pelo produto de uma fábrica

na qual vinte trabalhadores, cada um sem conhecimento dos outros

trabalhos parciais e da posição que ocupam na montagem do produto final, e sem interesse por esse quadro, trabalharam juntos guiados

pela vontade e intelecto central de uma pessoa. Numa orquestra, o

oboísta e o percussionista não conhecem a afinação de um cello ou

de um violino e mesmo assim são conduzidos pela batuta do maestro, junto com os demais músicos, rumo a uma unidade perfeita de ação. O jornal, pelo menos em termos de unidade aos olhos de um observador

exterior, pode figurar a meio caminho entre os dois casos, uma vez

que é guiado pela personalidade de uma liderança que, no entanto, desenvolve-se em grande parte devido a contribuições ocasionais de várias pessoas, das mais diversas personalidades envolvidas e que

são completamente estranhas umas às outras. Em termos absolutos, o tipo desses fenômenos pode ser assim descrito: por meio da ação

de diferentes pessoas surge um objeto cultural que, como um todo, como unidade permanente e especificamente eficaz, não tem produtor individualizável e não surgiu da unidade de um sujeito espiritual. Os

elementos se uniram como se formassem um Eu, na qualidade de realidades objetivas, seguindo uma lógica e intenção de configuração próprias que seus criadores no entanto neles não colocaram. A

objetividade do conteúdo espiritual, que o torna independente do

ser-absorvido ou não-absorvido, localiza-se no fato de sua produção;

não importa o que os indivíduo desejaram ou não: a forma acabada, realizada fisicamente, não incorpora nenhum espírito alimentado com o significado agora efetivo que ela passa a ter e transmitir no processo cultural — de um modo apenas levemente diferente daquele com

que uma criança acidentalmente combina, dando-lhes um sentido,

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blocos de letras com as quais brinca; nessa composição forma-se um sentido com objetividade e concretude espirituais apesar de ter sido produzido na mais completa ignorância da criança. Considerado de modo preciso, no entanto, este é apenas um caso muito radical de

um destino humano-espiritual muito geral, que se estende a todos os casos em que ocorre a divisão do trabalho. A maioria dos produtos

de nossa criação espiritual contém em seu interior uma parcela de significado por nós não criada. Não me refiro aqui a temas como falta

de originalidade, valores herdados, dependência de modelos existentes; apesar de tudo isso, a obra poderia ter nascido da nossa consciência e

segundo seu conteúdo, mesmo que essa consciência passasse adiante tal qual apenas aquilo que tivesse recebido. Em vez disso, a grande

maioria de nossas realizações que se executam objetivamente contém algo de relevante que delas pode ser extraído por outros sujeitos, mas que nelas não colocamos. O que se segue não vale em sentido absoluto para todos os casos mas é válido para todos de modo relativo: nenhum

tecelão sabe o que está tecendo. A obra finalizada contém tons, relações, valores, oriundos apenas de sua existência objetivada e que ignoram o fato de ter, o criador, eventual consciência de que esse seria o resultado de sua criação. O fato de que um significado espiritual, objetivo e

reprodutível por toda consciência, possa estar vinculado a uma forma material que nenhuma consciência colocou nessa obra, mas que adere

à subjetividade pura e peculiar dessa forma, constitui-se num factum tão misterioso como indiscutível.

Em relação à natureza, o assunto não oferece problemas: nenhuma

vontade artística deu às montanhas do sul a pureza estilística de seu contorno ou, ao mar tempestuoso, seu simbolismo atemorizador. Em

todas as obras do espírito, no entanto, existe, em primeiro lugar, aquilo que é puramente natural na medida em que contém possibilidades de significado; mas ato contínuo, também a contém ou pode conter o con-

teúdo espiritual de seus elementos e a conexão entre eles estabelecida. A possibilidade de alcançar-se, a partir daí, um conteúdo espiritual

subjetivo está presente nessas obras como uma configuração objetiva

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não descritível a posteriori e que deixou sua origem completamente para trás. Um exemplo extremo: um poeta concebeu um enigma com

uma dada solução; se outra solução for encontrada, tão apropriada,

significativa e surpreendente quanto a original, ela será tão “correta” quanto a primeira; e apesar de estar a princípio muito distante do processo criador original, ela está embutida no enigma como objetividade

ideal exatamente do mesmo modo como a primeira solução imaginada pelo poeta. Assim que nossa obra apresenta-se como acabada, ela tem

não apenas uma existência objetiva e uma vida própria separadas de nós como também, nesse seu ser-ela-mesma, como resultado do

espírito objetivo, ela apresenta forças e fraquezas, partes constitutivas e significações com as quais nada temos a ver e que nos surpreendem a nós mesmos, seus autores.

Essas possibilidades e indicadores da autonomia do espírito objeti-

vado pretendem apenas esclarecer que, mesmo quando criada a partir da consciência de um espírito subjetivo, após sua objetificação a obra passa a ter uma validade e uma possibilidade de existência independen-

tes de qualquer re-subjetivação; é evidente que isso tampouco precisa

realizar-se uma vez que, no exemplo acima, com efeito, a segunda solução daquele enigma existe de pleno direito em sua espiritualidade

objetiva mesmo antes de ter sido encontrada e mesmo que nunca o fosse. Essa qualidade peculiar do conteúdo cultural — que até agora se aplicava aos conteúdos parciais isolados — constitui o fundamento

metafísico da fatídica autonomia com a qual o domínio dos produtos culturais cresce sem parar, como se uma necessidade lógica interna

extraísse-os uns dos outros, frequentemente sem relação com a vontade e personalidade dos produtores iniciais e como se indiferentes à

questão de quantos sujeitos, e em que grau de profundidade e extensão, esses produtos assim gerados conduzem à plena significação cultural. O “caráter de fetiche” que Marx atribui aos objetos econômicos na era da

produção de mercadorias é apenas um caso peculiarmente modificado desse destino geral de nossos conteúdos culturais. Esses conteúdos estão — e cada vez mais, com uma “cultura” que cresce numerica-

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mente sem parar — sob o peso do paradoxo de que foram criados por e destinam-se a sujeitos mas, na forma intermediária da objetividade

que assumem aquém e além dessas instâncias, seguem uma lógica imanente, própria e, desse modo, afastam-se de sua origem e de seu

objetivo. Não se trata aqui de necessidades físicas, mas de necessidades culturais que, é claro, não podem ignorar as condicionantes físicas. Mas o que os produtos, como produtos do espírito, aparentemente extraem uns dos outros é a lógica cultural do objeto, não a lógica

científico-cultural. Aqui reside o fatídico impulso interno compulsivo de toda “tecnologia” a mostrar-se assim que sua completude afasta-a de um uso imediato. Por exemplo, a produção industrial de algumas

fábricas pode provocar o aparecimento de subprodutos para os quais

não há realmente necessidade alguma; mas a compulsão para tirar o máximo proveito dessas instalações, uma vez criadas, impele-as a

isso; a série tecnológica exige, por si mesma, ser complementada por

elementos que a série espiritual, realmente definitiva em si mesma, não solicita — e assim surge a oferta de mercadorias que despertam

necessidades artificiais e que, na perspectiva da cultura dos sujeitos, não têm qualquer sentido.

O mesmo acontece em alguns ramos da ciência. Por um lado, a tec-

nologia filológica, por exemplo, desenvolveu uma sutileza e perfeição

metodológica insuperáveis; por outro lado, os objetos que realmente interessam à cultura teórica e investigativa não surgem na mesma velocidade e, assim, o esforço filológico frequentemente se transforma

em uma micrologia, um pedantismo e uma dinâmica do não-essencial, que se constitui num passo rumo ao vazio do método, um avanço da

norma objetiva cuja dinâmica não mais coincide com a da cultura em sua qualidade de aperfeiçoamento da vida. Assim é que em muitos

campos do conhecimento surge o que se pode chamar de saber supér-

fluo, uma soma de conhecimentos metodologicamente irrepreensíveis, não contestáveis do ponto de vista do conceito abstrato de ciência, mas que se distanciam do verdadeiro sentido final que deve ter toda pesquisa — com o que não me refiro a nenhuma finalidade exterior

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mas aos fins ideais e culturais. A fantástica oferta de meios à disposição, favorecida pela economia, e com frequência aproveitados também pela produção do espírito, levou a uma valorização de todo trabalho científico, por si e em si mesmo, cujo valor, porém, não raro é apenas

convencional, como numa conspiração da casta dos sábios em favor de uma inquietante e ampla procriação endógena do espírito científico

cujos produtos, porém, são infrutíferos tanto em sentido interno como em resultados exteriores. Assim se explica o efeito fetichista, há tempos

em vigor, do “método”, como se um produto fosse valioso apenas por aplicar corretamente um método; esse é um recurso muito astuto

para a legitimação de muitas obras que apenas de modo excessiva-

mente generoso podem ser ditas como integrando o progresso do desenvolvimento cognitivo. Levanta-se aqui, sem dúvida, a objeção

de que, também nas pesquisas aparentemente não essenciais, aquele desenvolvimento maior, geral e válido pode acabar sendo por elas favorecido de modos surpreendentes. Essa é uma possibilidade impre-

visível, como ocorre em qualquer campo, mas que não pode impedir que reconheçamos ou neguemos a uma dada prática seu direito e

seu valor próprios segundo os moldes da racionalidade vigente numa certa época, mesmo se essa racionalidade não for onisciente. Ninguém

diria que é razoável perfurar poços ao acaso num lugar qualquer do

mundo em busca de carvão ou petróleo, por indiscutível que seja a possibilidade de que ali se encontre algo. Existe um certo limite nas

probabilidades de justificação de determinados trabalhos científicos

que, num caso em mil, pode mostrar-se correto mas que, exatamente por isso, é usado para justificar seu emprego nos outros 999 casos que

resultam em coisa nenhuma. Do ponto de vista histórico-cultural, esse

é apenas mais um fenômeno particular daquele crescimento desenfreado dos conteúdos culturais em um terreno tratado por outras forças

e finalidades diferentes daquelas plenas de significado cultural — e no qual inevitavelmente surgem flores que não dão frutos. O caso é

o mesmo quando, na evolução da arte, o poder tecnológico torna-se suficientemente poderoso e emancipa-se da carga que lhe impõe o fim cultural global da arte. Nesse caso, obediente apenas à sua própria

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lógica interna, a tecnologia desenvolve refinamento após refinamento que, no entanto, são apenas seus próprios aperfeiçoamentos como

tecnologia mas não aperfeiçoamentos do significado cultural da arte. Toda a especialização abusiva hoje deplorada em todos os campos do

trabalho humano e que, com uma implacabilidade demoníaca, força seu desenvolvimento, é apenas uma característica particular desse

destino inexorável dos elementos culturais: o fato de que os objetos têm

sua própria lógica de desenvolvimento — não uma lógica conceitual, não uma lógica natural mas apenas a lógica de seu desenvolvimento

como obras culturais humanas; e, consequentemente, desviam-se do

rumo do desenvolvimento pessoal do espírito humano. Por esse motivo, essa discrepância não é de modo algum idêntica àquela com frequência

enfatizada: a atribuição do valor de finalidade àquilo que de início não passava de meio, como a todo momento demonstram as culturas avançadas. Esse fenômeno é puramente psicológico, uma ênfase das coincidências ou necessidades espirituais sem qualquer relação deter-

minada com o contexto objetivo das coisas. Mas trata-se exatamente

disso, trata-se da lógica imanente da configuração cultural das coisas; o ser humano transforma-se agora em mero portador da coerção com a qual essa lógica controla os desenvolvimentos dos objetos e dá-lhes continuidade como na tangente da via pela qual retornariam ao desen-

volvimento cultural das pessoas — algo não muito diferente da lógica

dos termos com que pensamos frequentemente, com as consequências

teóricas que estão longe da intenção inicialmente determinante desse mesmo pensamento. Essa é a verdadeira tragédia da cultura.

Contudo, por trágico destino — algo distinto do que seria um destino

triste ou perturbado por alguma ação exterior — entendemos o seguinte: que as forças negativas direcionadas contra o ser surgem das camadas

mais profundas desse próprio ser; que, com a destruição desse ser,

consuma-se um destino inerente a ele mesmo e que, por assim dizer, o desenvolvimento lógico é a própria forma com a qual o ser construiu

sua positividade e o contrário disso. Integra o conceito de cultura o fato de que o espírito cria um objetivo autônomo através do qual o

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desenvolvimento do sujeito segue seu caminho rumo a si mesmo; mas

exatamente por isso, aquele elemento integrador, que marca a cultura, está predeterminado ao autodesenvolvimento que consome cada vez

mais as forças do sujeito, que o empurra em seu caminho sem com isso

elevá-lo ao ápice de si mesmo: o desenvolvimento do sujeito já não pode

seguir o caminho que os objetos tomam. Se continuar em frente, o sujeito

perde-se num beco sem saída ou no vazio da vida mais íntima e pessoal. No entanto, o desenvolvimento cultural coloca o sujeito para fora

de si de uma maneira ainda mais marcante por meio da já mencionada ausência de forma e de limites que chega ao espírito objetivo por força da quantidade numérica ilimitada de seus produtores. Para

o crescimento do estoque de conteúdos culturais objetivados pode contribuir qualquer sujeito sem qualquer tipo de consideração para

com outros sujeitos que igualmente contribuam para esse estoque. Nos diferentes momentos culturais singulares, esse estoque prova-

velmente tem uma certa coloração, na forma de um limite mínimo

de qualidade definido interiormente; mas esse estoque não tem um limite quantitativo semelhante, não tem motivo algum para não

propagar-se indefinida e infinitamente, nenhum motivo para não enfileirar livro após livro, obra de arte após obra de arte, invenção

após invenção: a forma da objetividade como tal tem uma capacidade

de realização ilimitada. Com esse tipo de acumulação inorgânica, por assim dizer, a forma da vida pessoal transmuta-se em algo incomensuravelmente inconcebível — e o sujeito deixa de lado aquilo

que seu desenvolvimento próprio não consegue assimilar. Mas não é

assim tão simples. O estoque indescritivelmente crescente do espírito

objetificado impõe demandas ao sujeito, nele desperta veleidades,

atinge-o com sentimentos de sua própria inadequação e desamparo, envolve-o numa trama de amplas relações globais das quais não pode escapar sem subjugar seus conteúdos individuais.

É assim que surge a situação problemática típica do homem

moderno: a sensação de estar cercado por uma infinidade de elementos

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culturais que não lhe são insignificantes, mas que tampouco lhe são

significativos no sentido mais profundo; elementos que, pela quantidade massiva, têm algo de avassalador: o homem moderno não os

pode assimilar todos mas tampouco pode simplesmente rejeitá-los pois

potencialmente pertencem à esfera de seu desenvolvimento cultural, por assim dizer. Pode-se caracterizar esse estado como o exato contrário

da máxima que descrevia os primeiros franciscanos em sua pobreza bem-aventurada, em sua absoluta independência de todas as coisas que

de alguma forma pudessem colocar-se como obstáculos ao caminhar

do espírito rumo a si mesmo e que essas coisas excedentes pretendiam transformar em caminho indireto: Nihil habentes, omnia possidentes (nada temos, tudo possuímos). Em vez disso, em comparação, as pessoas

dessa cultura rica mostram-se sobrecarregadas: omnia habentes, nihil possidentes (tudo temos, nada possuímos).

Essas experiências podem expressar-se de várias formas; 1 o que

importa aqui são as raízes profundas que têm no centro do conceito

de cultura. Toda a riqueza que esse conceito demonstra reside no fato

de que formas objetivas são incluídas, sem perder sua objetividade, no processo de aperfeiçoamento do sujeito como caminho que ele

vai percorrer ou meio para essa caminhada. Resta ver se, do ponto de vista do sujeito, é possível desse modo alcançar o mais alto nível de

perfeição; para a intenção metafísica, no entanto, que busca unir o

princípio do sujeito e do objeto como tal, encontra-se aqui uma garantia

de que ela não se verá desapontada. A pergunta metafísica encontra, com isso, uma resposta histórica. Nas formas culturais, o espírito alcançou uma objetividade que o torna independente dos acasos

da reprodução subjetiva e, que ao mesmo tempo, serve ao propósito central da perfeição subjetiva. Enquanto as respostas metafísicas a

essa pergunta tendiam a diminuí-la, apresentando de alguma forma a oposição sujeito-objeto como nula e sem efeito, a cultura se apega 1

Em minha Philosophie des Geldes (Filosofia do dinheiro) ampliei a exposição para um número maior de âmbitos historicamente concretos.

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precisamente ao enfrentamento pleno das duas partes, à lógica suprassubjetiva das coisas conformadas no espírito, lógica ao longo

da qual o sujeito se eleva acima de si mesmo para seguir em direção

a si mesmo. A capacidade básica do espírito — que consiste em ser capaz de separar-se de si mesmo, de ver-se de fora como se fosse um terceiro a moldar-se, reconhecer-se, avaliar-se e ter consciência de si

mesmo somente dessa forma — essa capacidade do espírito, como dizia, alcançou com a cultura seu raio de ação mais amplo; por meio da cultura conseguiu colocar em enérgica tensão o objeto e o sujeito

de modo a levar o sujeito de volta para si mesmo. Mas justamente por

causa da lógica do objeto, com a qual o sujeito recupera a si mesmo do modo mais perfeito e mais de acordo consigo mesmo, rompe-se o entrelaçamento das duas partes.

O que estas páginas enfatizaram desde o início — o fato de que

o criador não pensa no valor cultural mas apenas no significado

objetivo da obra, descrito por sua própria ideia — mostra-se como um

fluxo que derrapa, com as transições imperceptíveis de uma lógica

de desenvolvimento puramente objetivo, rumo à caricatura, isto é, rumo a uma especialização tão afastada da vida que se transforma em autocomplacência com uma tecnologia que não mais consegue encontrar o caminho de volta aos sujeitos eles mesmos. É exatamente

essa objetividade que permite a divisão do trabalho, que reúne as

energias de todo um complexo de personalidades no produto singular, independentemente de poder o sujeito desenvolver o quantum de

espírito e de vida nele investidos para sua própria promoção ou, pelo

contrário, de com isso satisfazer apenas alguma necessidade periférica. Essa é a razão profunda do ideal de Ruskin que defendia a substituição

de todo trabalho fabril pelo trabalho artesanal dos indivíduos. A divisão do trabalho afasta o produto, como tal, de cada um dos que para ele

contribuíram; esse trabalho representa uma objetividade independente que o torna apto a encaixar-se em uma dada ordem das coisas ou a servir a um propósito específico; mas, ao fazer isso, ele escapa

daquele espírito interior que somente a pessoa integral pode dar a

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todo trabalho, a toda obra, e que carrega sua inserção na centralidade espiritual de outros sujeitos.

É por isso que a obra de arte é um valor cultural tão grande: porque

é refratária a toda divisão do trabalho, porque nela (pelo menos no

sentido agora essencial e ao lado das interpretações metaestéticas)

o que foi criado preserva o criador do modo mais completo. O que poderia parecer um ódio de Ruskin à cultura é de fato uma paixão pela cultura: ele queria reverter a divisão do trabalho, que torna o conteúdo

cultural sem sujeito e oferece uma objetividade sem espírito que leva esse conteúdo a colocar-se fora do processo cultural autêntico.

E nesse momento torna-se manifesto o trágico desenvolvimento

que a cultura imprime à objetividade dos conteúdos; mas esses con-

teúdos, exatamente em razão de sua objetividade, estão submetidos em última instância a uma lógica própria e furtam-se à assimilação cultural pelos sujeitos. Esse processo fica claro na reprodutibilidade

arbitrária dos conteúdos do espírito objetivo. Como a cultura não possui uma unidade de forma específica e unitária para seus conteúdos, cada

criador coloca seu produto ao lado do produto de outros sujeitos num espaço ilimitado a fazer com que a massa de coisas assim criadas cresça

sem parar, cada uma com um certo direito a ter um valor cultural e

fazendo ecoar em nós o desejo que ela tem de ser como tal considerada. A falta de forma definida do espírito objetificado como um todo per-

mite-lhe um tempo de desenvolvimento que leva o espírito subjetivo a ficar para trás, a uma distância que aumenta rapidamente. Mas o

espírito subjetivo não sabe como proteger por completo a integridade de sua forma contra os contatos, tentações e deformações provocados

por todas essas “coisas”; a preponderância do objeto sobre o sujeito, geralmente exercida pelo fluxo do mundo, levada a um feliz equilíbrio na cultura, torna-se outra vez perceptível no contexto dessa cultura graças à ampliação ilimitada do espírito objetivo que não encontra

fronteiras. O que se deplora como um obscurecimento e esmagamento

de nossas vidas sob o peso de mil coisas supérfluas das quais não

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podemos nos libertar, o que se deplora como a contínua “ansiedade” do homem de cultura, em nada estimulado por esse peso a exercer sua própria criatividade; o que se deplora como mero conhecimento ou

desfrute de mil coisas que nosso desenvolvimento não pode incorporar

a si mesmo e que nele permanecem como mero peso morto — enfim, todos os males culturais frequentemente apontados nada mais são do que manifestações daquela autonomia do espírito objetificado. A

existência dessa autonomia significa que o conteúdo cultural segue

uma lógica independente da lógica de seus fins culturais e continua a evoluir sem que em seu caminho o sujeito consiga ver-se livre de

todos os conteúdos que se tornaram qualitativa e quantitativamente

supérfluos. Pelo contrário, como esse caminho, em sua condição cultural, encontra-se condicionado pela autonomia e pela objetificação do conteúdo espiritual, vem à tona a situação trágica de uma cultura

que já traz em si, desde sua origem, a forma de seus conteúdos que está determinada a desviar o sujeito do caminho do espírito a partir

dele mesmo, como ser imperfeito, na direção de si mesmo como uni-

dade perfeita. Desviado de seu rumo, sobrecarregado por produtos supérfluos, perplexo diante da ambiguidade encontrada, o espírito

vê-se diante de algo que seria uma inevitabilidade inerente da cultura. O grande empreendimento do espírito humano, consistente em

superar o objeto como tal, esse objeto que cria a si mesmo como objeto, de modo a retornar um sem-número vezes a si mesmo como sujeito

enriquecido por aquela criação objetiva, é muitas vezes bem-sucedido; mas o espírito humano deve pagar por essa sua realização com a trágica

possibilidade de encontrar, na autorregulação do mundo por ele assim criada, uma lógica e um dinamismo que dissipam os conteúdos da

cultura a um ritmo sempre mais acelerado e os levam para um ponto cada vez mais distante da finalidade própria da cultura.

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Posfácio

CULTURA, GRANDEZA NEGATIVA Teixeira Coelho

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Uma das tragédias a marcar a vida da cultura, e com a qual começo

este posfácio, não é aquela a que Simmel se refere. É uma tragédia

posterior, do ponto de vista do século 21. E, de certo modo, uma tragédia menor para ele, tanto que a ignora por completo. Mas não pequena para o universo dos que abordam a cultura hoje — não do ponto de vista da filosofia da cultura, e sim, na perspectiva do que fazer com

a cultura e como fazer com a cultura. Essa perspectiva é a da ação

cultural, da política cultural. E nesse ângulo, a primeira tragédia, a mais visível, a tragédia imediata, é a presença ainda dominante da

antropologia do século 19 no território da política cultural. O marco a que me refiro é aquele fincado por Edward Tylor em 1871 na forma

de um livro em dois volumes apresentado sob o título geral Primitive

Culture (vol. 1, The Origins of Culture; vol. 2, Religion in Primitive Culture). Na primeira página desse livro que ainda podia chamar-se, naquele século, de cultura primitiva e que fundou a antropologia, Tylor descreve

a cultura — não define: descreve — como o conjunto complexo de fenômenos incluindo a dança, os costumes, o conhecimento, as cren-

ças, a arte, a moral, a lei e “quaisquer outras competências e hábitos adquiridos pelo ser humano em sua condição de membro da socie-

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dade”. Resumindo: cultura é tudo. De um ponto de vista estritamente

antropológico, quer dizer, do ponto de vista do ser humano entregue

a sua vida cotidiana, Tylor não se equivocava: tudo é cultura. A cultura está no centro de tudo, tudo é questão de cultura: economia é uma

questão de cultura e não o contrário (a cultura como uma questão de

economia e, mais, como um epifenômeno, um fenômeno da periferia da economia, foi grave e desastroso equívoco de Marx: ele dizia que era preciso pôr Hegel a andar sobre seus pés em vez de arrastar-se

sobre a cabeça mas não percebeu que a mesma coisa teria de ser feita

com ele — e foi feita, em todo caso, venho insistindo). Saúde, educação, epidemia, tudo é cultura. Mas exatamente por tudo ser cultura na

perspectiva da antropologia é que a plataforma daí resultante torna-se

inoperante para a política cultural, obrigada a determinar aquilo que, no interior do universo do homem, é cultura de um ponto de vista

estrito na abordagem própria da ação cultural. Sob esse ângulo, por exemplo o direito — sendo uma questão de cultura — não é um tema de política cultural, nem o transporte, nem a economia.

Nenhum desses tópicos é uma questão de cultura pelo menos dire-

tamente, em termos de política pública. Em um governo consciente, decente e eficiente, o “responsável” pela Cultura, ostentando o título

burocrático que tiver (secretário de cultura, ministro da cultura, coor-

denador, gerente etc.), estaria presente em toda reunião “de gabinete” definidora de políticas na instituição para poder dizer como a cultura vê

um tema de direito, de transporte público, de educação, de economia, de

saúde etc. que será discutido e indicar como a cultura pode participar

do processo civilizatório amplo ao lado das ações culturais específicas e próprias que lhe competem de modo central.

O que parece não ser ainda evidente, sobretudo para aqueles que não

vão além da leitura da primeira página de seu livro, fenômeno ainda comum entre gestores da cultura, é que a descrição abrangente de Tylor

aponta apenas para a exterioridade dos fenômenos de cultura, para o modo como aparecem à superfície do campo observado pelo pesquisa-

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dor. Vejo que este lugar ou grupo tem estes costumes, práticas, rituais, orientados por estas crenças, e que, por exemplo, os objetos usados para

conter alimentos assumem esta ou aquela forma com ou sem decoração e que a decoração não incorpora o mesmo significado registrado em objetos análogos nas sociedades ocidentais modernas etc. Para a política cultural — sem que, obviamente, disso se dê conta — essa é uma visão preguiçosa da cultura, habitualmente fruto do despreparo intelectual e científico que ainda, largamente, controla seu território. A descrição de Tylor aponta para a casca da cultura. Sim, é importante saber que o

arroz, digamos, tem uma casca e que talvez seja melhor comê-lo sem

essa casca ou, pelo contrário, exatamente com essa casca. Mas a questão do arroz não se limita à consideração de sua casca, a questão inclui onde

plantá-lo, como plantá-lo, como colhê-lo, como tratá-lo, como prepará-lo, com o que combiná-lo quando levado à mesa, como elaborar uma receita para o preparo desse arroz de modo a favorecer esta ou aquela de suas

propriedades. E, acima de tudo, saber por que comer arroz, e este tipo de arroz e não aquele. Haveria por acaso à disposição algo melhor, mais

substancial, mais propício a meu desenvolvimento pessoal do que arroz?

Quando comer arroz? Qual o valor alimentício do arroz e de cada um de seus tipos ou modos de preparar? Quais as limitações do arroz? Qual a

negatividade do arroz, se alguma? Após a vitória da revolução cubana, a política cultural triunfante apontou os componentes de uma lista de dez equipamentos culturais que toda cidade (se pequena) ou distrito

(como bairro de uma cidade maior) deveria ter: um centro de cultura, um cinema, uma biblioteca, uma banda, uma sala de exposição de arte…

Por algum ponto é preciso começar e essas cascas físicas, esses lugares, podem servir para instigar a ação cultural num primeiro momento. O

problema é que, uma vez levantados os edifícios — e quase sempre se

trata (ou se tratava, antes do digital) de materialidades, de edifícios: cultura material como poucas — eles não raro vedam o horizonte mais amplo da cultura e ocultam seus mecanismo internos, afirmando-se a si mesmos como a única coisa que há para ver, em mais um caso do

conteúdo segue a forma. Em todo caso, como a coisa mais fácil de se ver. Aí começa o problema. Em ainda outras palavras, o entendimento de

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cultura derivado de Tylor limita-se à matéria da cultura — e não por

nada provocou o surgimento da noção consagrada de cultura material. A materialidade é um dado da existência humana, não há como des-

considerá-la; o próprio Simmel a admite e enfrenta ao falar da cultura objetificada, outro modo da materialidade. Só que a materialidade não está sozinha, existe apenas diante de seu contrário: a espiritualidade, o

espírito, o que não é assim material, palpável. E a política cultural, bem como um amplo entendimento da cultura, apoiado e estimulado pelos

materialistas da segunda metade do século 19 e da primeira do século

seguinte, preferiu descartar o outro lado da cultura, o lado invisível, o

lado sem massa, muito difícil de manipular e, mais ainda, de controlar, classificar, ajustar, engavetar. Os estragos resultantes dessa concepção foram e continuam sendo imensos. Um dos mais consideráveis foi a

passagem da obra de cultura e de arte, da dimensão do espírito (a “mais elevada manifestação do homem”, como ainda se diz empoladamente

nas cerimônias de diversos tipos), para a esfera daquilo que pode ser medido e pesado. László F. Földényi,1 recorrendo a Taine, tem uma

expressão eloquente e mais ampla: os dogmáticos que impulsionaram a Revolução Francesa, e dela saíram, quiseram transformar o mundo

segundo as “linhas de axiomas político-geométricos”, frutos da febre da ciência que compreensivelmente os acometeu depois de séculos de obscurantismo, e assim medir a história do mesmo modo como os físicos

mediam a matéria inerte — ou a matéria morta. Se é impossível medir a história, imagine-se a possibilidade real de medir a cultura, matéria

viva... E o que se está fazendo com ela neste exato momento em que se

agita a economia criativa e a ideia da cultura como alavanca do PIB e da cultura como motor do turismo e da cultura como fator de emprego e dos leilões de arte nos quais a obra que custa US$ 120 milhões é mais alvo

de atenção do que outra que custa US$ 5 mil… Os danos da concepção

material e materialista da cultura são profundos, acaso irreversíveis. (Em seguida voltarei ao assunto.) 1

Dostoyevsky Reads Hegel in Siberia and Bursts into Tears; Yale University Press, 2020, eBook.

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Num segundo momento, distinguem-se nuances no interior dessas

categorias físicas exteriores. Uma sala de música pode oferecer um concerto de música “erudita”, como se diz, ou de música supostamente mais acessível, menos elaborada, mais popular. Entram em cena os

conceitos de cultura popular, cultura erudita e uma terceira que

aparecia já ao final do século 19, a cultura de massa, a tomar impulso

definitivo ao iniciar-se o século seguinte com uma força de arrasto, uma potência inercial que, sem encontrar obstáculo a detê-la, como descreve a física, seguiu adiante em sua dinâmica própria. E foi em

frente de modo tão fácil que se irradiou para todas as direções da

rosa dos ventos, não apenas em linha reta para a frente; e não só não diminuiu sua velocidade como a aumentou em virtude de seu potencial

interior — a ponto de jogar para o segundo plano do cenário cultural ou, mesmo, de jogar para fora desse palco, ou quase, suas duas parceiras

iniciais, as únicas em cena até então: a cultura popular e a erudita. A

eloquência e eficácia dessa nova lente de análise tripartite, contudo,

mostraram-se não menos limitadas — ou limitadas de outro modo, com outros tons, outros sotaques. Substituem-se ou multiplicam-se os rótulos afixados na embalagem da cultura mas, como ao tempo

de Tylor, a cultura continua considerada a partir de sua exterioridade — exterioridade agora adjetivada e ampliada por uma etiqueta

complementar não menos exterior: a etiqueta do “social”, da sociedade. Tratam da cultura do ponto de vista de onde ela surge e a quem se dirige mas não a partir dela mesma, cultura. Aquilo que em Tylor já era observado como capacidades e hábitos adquiridos pelo ser humano

como membro da sociedade passa agora a ser visto também sob a ótica mais fechada, setorial ou segmentada das classes sociais interiores ao

recipiente maior da sociedade que remete, por exemplo, às ideologias socialista e marxista-leninista. Na verdade, o objeto recoberto pelo

rótulo cultura de massa (ou cultura pop) revela uma capacidade elástica

única para avançar sobre os dois outros distritos culturais tradicionais, conquistar adeptos produtores e receptores nos dois campos e assim

borrar fronteiras de modo quase definitivo — o que ficou evidente e marcado, por exemplo, pelas propostas de Andy Warhol (Duchamp era

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“elitista” demais, suas propostas requeriam reflexão e conhecimento) e tanta outra coisa menos ou mais evidente nos domínios do cinema

(2001: Uma Odisseia no Espaço), da música (Liberace e seus herdeiros atuais, Lang Lang e a que veio na esteira dele, Yuja Wang), do circo

(Cirque du Soleil)… A extensão desse “menos evidente” é ampla — e incorporada e engolida pacificamente com casca e tudo em inúmeros

produtos menos ou mais comerciais: em 2001: Uma odisseia no espaço as aspirações à cultura erudita vinham estampadas no próprio título

a piscar um olho para Homero, aspecto kitsch raramente apontado (se alguma vez) pela crítica especializada (não era esse o único índice de kitsch no filme, claro: Strauss vinha logo a seguir…). Foi impossível

escapar ao rótulo do “social” a partir de meados do século 19 e menos

ainda ao longo de todo o século seguinte, com poderosas ramificações nestas duas décadas iniciais deste século 21 (décadas a respeito das quais não se sabe quando e se poderão ser humanamente contadas e numeradas…). Mas não aportaram muito à compressão da cultura.

A CULTURA VISTA DO LADO DE FORA Esse era e é, majoritariamente, o quadro básico de referências contra o

qual foram e em larga medida continuam a ser consideradas as questões de cultura. E que constituem, como escrevi no início, uma das tragédias

da cultura (tragédias raramente vêm sozinhas, é mais que sabido…), um

tipo de tragédia à qual Simmel sequer se referiu, no que de resto agiu de modo acertado: não era essa sua questão. E não o fazendo, Simmel

esquivou-se da ascendência de uma escola já forte a seu tempo, que ele

não ignorava (em seu texto aqui publicado Simmel faz menção explícita e nominal a um conceito de Marx, o de fetiche) e à qual adiciona um

pavimento filosófico e teleológico, como ele mesmo indica, passível de fornecer às abordagens sociológicas dos últimos dois séculos uma rodagem talvez não mais suave do que a anterior, porém mais retificada

e que tende para a completude possível do que se pode entender por cultura. O “social” e o dinheiro — este, sob o rótulo imposto pela noblesse

oblige e que atende pelo nome de economia — são dados; dados duros,

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que antes obstaculizam ou impedem a compreensão dos fenômenos

que recobrem do que a facilitam na extensão e na profundidade requeridas. Para a área da política cultural, as dimensões do social e do dinheiro apenas acrescentam novas camadas trágicas às legadas pelo século 19. A

mais recente é representada pela etiqueta da economia criativa — com sua coirmã a indústria criativa, quase sempre colocada no plural: indús-

trias criativas — que aspira canhestramente a substituir uma rotulagem

anterior, em tudo apropriada, ainda não suficiente explorada, mas cuja eliminação de cena deve, parece, ser promovida pelos que consideram

a constante mudança de rótulo como suficiente para caracterizar um novo conhecimento ou uma nova exploração (comercial) do tema, um “novo” que na verdade nunca se configura porque tudo nele é velho, da abordagem aos resultados. Um fenômeno bem conhecido na academia

e fora dela. Essa nova expressão é de fato uma tragédia terminológica e

epistemológica a acrescentar novo grilhão aos pés de uma cultura assim condenada e condenada outra vez a arrastar-se pedestre e pesadamente ao nível do chão quando poderia estar voando no espaço azul, livre e desimpedida. A questão é grave. Um dos princípios básicos para o progresso da ciência, como se convencionou dizer recentemente, ou para o

avanço do conhecimento,2 de modo mais direto e verdadeiro, é o da ética

da terminologia: em ciência, um termo deve remeter a um único objeto e

um mesmo objeto deve ser designado permanentemente por um único

termo. O modismo conceitual, aliado à tentação irrefreável de aderir 2

No sentido de Wissenschaft, quase sempre erroneamente traduzido por “ciência” mas que se refere a todo corpo sistemático de compreensão de alguma coisa, objeto ou fenômeno, incluindo as ciências da natureza, as humanidades e os estudos da “mente” ou do “espírito” (Geisteswissenschaften), tópico a abordar mais adiante. As Humanidades não resistem ao ataque das “ciências duras” que se entrincheiraram no interior da ideia de Wissenschaft, rótulo que, obviamente, reivindicam como pertinentes a elas apenas; mas as Humanidades resistiriam muito bem se a Wissenschaft fosse reconhecido o significado que o termo de fato recobre: o de conhecimento, ponto final — e nesse caso, a arte e a filosofia são um corpo sistemático tanto quanto a física e a química…

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a algo supostamente “mais sério” — no caso, a ideia de economia —, com o que fica evidente a total falta de confiança de seus propositores

no potencial criativo próprio da cultura sem muletas importadas dos

campos “nobres” ou “fortes” (coisa que a economia está longe de ser), fez surgir essa economia criativa, com suas indústrias criativas, em substituição à anterior indústria cultural. E isso, sem sequer remotamente preocupar-se com o fato de que todo ato econômico e industrial é na

essência um ato criativo. A ideia de que o rótulo “economia criativa” possa referir-se à economia da cultura, quer dizer, da arte, do livro, do cinema, da dança, do espetáculo e tanta outra coisa, é baixamente

desrespeitosa para com a indústria automobilística, a indústria química, a indústria aeronáutica, a indústria espacial, a agroindústria e todas as demais formas de trabalho e ação do homem sobre o mundo (e em breve, com esperança, sobre o universo ou o cosmo). Todas essas formas

da indústria sempre foram criativas. Um carro, elétrico ou movido a combustível fóssil, pode não configurar um grande valor moral, pode

estar na mão de empresários imorais, pode significar de fato um risco existencial crescente; mas essa deficiência ética incorporada ao carro

não elimina o quantum de criatividade nele embutida, inclusive sob o

ponto de vista da estética: a Bauhaus quis introduzir a ideia de arte e de

belo nas coisas corriqueiras e banais da vida, dos edifícios aos móveis, esses que habitam o interior da casa moderna ou que transitam pelas ruas impermeabilizadas das cidades modernas a aumentar o efeito

estufa do planeta. Criação não é um conceito sinônimo de positividade, ao contrário do que supõem os espíritos corroídos pela superficialidade

e pelas armadilhas do politicamente correto: a criação emerge também

da negatividade e pode vir plena de negatividades, como a cultura.3 Mas 3

O pensamento fast food guiado pelas palavras de ordem repetidas pela “mídia social”, como as do politicamente correto, vem identificando tanto a ideia de criação quando a de cultura como pertencentes ao território da positividade, um erro trágico. Em A cultura e seu contrário abordei o tema na perspectiva da cultura. De modo mais simples e existencial: numa viagem à Patagônia, passei certo dia por um lodaçal a alguns quilômetros de Santa Rosa, capital da província argentina de La Pampa. Esse

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criação é um termo “na moda”, então precisa ser posto em cena com as

pompas & circunstâncias de praxe e agregado a outro de ascendência

supostamente mais nobre: economia. E assim se esquece — ou nunca se soube, nunca se deu atenção ao fato — que indústria pressupõe um

trabalho, o ato de indústria é um ato de trabalho e o trabalho é por definição a mudança de alguma coisa em alguma outra coisa, outro

modo de descrever a criação. Em física, trabalho é o produto de dois

fatores, força e deslocamento: quando uma força é aplicada sobre um

ponto, resulta um trabalho que é o deslocamento desse ponto na direção da força aplicada. Mudanças ocorrem, a criação se dá. A transformação do calor em energia é um trabalho e, portanto, criação. Usar um pedaço

de pau para fazer cair em minhas mãos alguma fruta pendendo alto de uma árvore é um ato de criação. Toda indústria é criativa, todo trabalho

é criativo. Mesmo o trabalho repetitivo é criativo ou contribui para uma criação independentemente da vontade e da consciência de quem o rea-

liza (e o conceito marxiano de reificação e alienação entra em cena para

explicar o que aí ocorre). Duas infrações ao espírito verdadeiramente científico — bem distinto dessa vulgata de ciência frequentemente

invocada como se sua simples interpelação bastasse para justificar o

que é feito em seu nome — são assim cometidas. Uma, terminológica: cada coisa deve ser referida por um termo; se a coisa em questão é a

cultura, ela assim deve ser chamada — e para ela não se usará o termo “criação”, nela embutido. A segunda, epistemológica: não apenas a

cultura é criativa (a arte é muito mais que a cultura), muito mais coisa o

é. E há ainda uma terceira infração a considerar, implícita nas anteriores: aquela representada pelo fato de que, com essa expressão, é indicada e reforçada a ideia de que cultura é antes de mais nada uma questão

pantanal, de razoável extensão, fora criado por uma enchente anterior e o terreno e a temperatura contribuíram para sua manutenção no local. Além disso, o lodaçal era alimentado também por dejetos de esgotos da redondeza. Passando de carro ao lado daquilo, vi quando um bando de grandes e belos flamingos, até então tranquilamente parados na lama, alçou voo numa bela revoada: não poderei me esquecer que a beleza surge também da imundície — sem com isso resgatá-la…

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de dinheiro e que a cultura importa e apenas importa se considerada como dinheiro, se justificada como dinheiro.4 4

Nos anos 80 do século passado, aqueles como nós que nos esforçávamos para reduzir o atraso em relação ao cenário internacional e introduzir na universidade o campo do conhecimento conhecido como política cultural, cometemos um sério erro estratégico. Constatando que governo, iniciativa privada e sociedade civil não reconheciam na cultura — neste país Brasil — qualquer valor a justificar atenção e apoio econômico por parte das políticas públicas ou privadas, decidimos alterar o discurso e tentar convencer esses três setores de que o investimento em cultura pagava-se amplamente sob mais de um aspecto: a cultura reduziria a violência nas ruas (e os anos 80 foram particularmente violentos nas ruas, aqui, com sequestros relâmpagos, assaltos à mão armada a motoristas de carro, roubos de tênis usados nas ruas por crianças e jovens etc. etc.: os exemplos que vinham de cima, quer dizer, do próprio governo ditatorial do período 64-85 e dos grandes grupos industriais alheios a qualquer ideia de civilização, inspiravam o comportamento das ruas); e tentar levá-los a perceber que a cultura promoveria o desenvolvimento econômico. Apontávamos a quantidade de pessoas empregadas (formal ou informalmente) na cultura, em números muito maiores, por exemplo, do que as atuantes em toda a indústria automobilística, dávamos o exemplo dos EUA, onde a indústria cultural fornecia o segundo maior componente do PIB nacional, atrás apenas da indústria aeronáutica da qual os EUA detinham praticamente o monopólio mundial, depois compartilhado com a Airbus. Um grupo de colegas do Uruguai lançou um volume intitulado La cultura da trabajo, a cultura dá trabalho. O trocadilho era assumido: dá muito trabalho fazer cultura, como se diz, e como dá!, e a cultura fornece muitas possibilidades de trabalho, portanto de renda. Fazíamos isso porque havíamos constatado — era fácil fazê-lo, de resto — que este país havia perdido por completo a crença nos valores intrínsecos da cultura e que de nada adiantava continuar insistindo no potencial educacional, civilizacional da cultura. Éramos uns hipócritas, claro: não acreditávamos que a cultura “pudesse tudo isso”, nem parte disso; mas promover a cultura, para nós, era preferível — como descoberta da vida e do mundo, como ampliação da esfera de presença do ser como quis Montesquieu: mas quem entende ou dá atenção a um discurso como esse? — a muita outra coisa oferecida e apoiada neste país, como as partidas de futebol cercadas por brigas e assassinatos antes e depois dos jogos. Menos ou mais, para o mal ou para o bem — muito mais

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Simmel afasta-se de todas essas infrações éticas, sua abordagem da

cultura é filosófica — como expresso no título do livro do qual o texto aqui publicado é um capítulo — e teleológica. Não será demais recordar

que a teleologia é o estudo de um fenômeno a partir do objetivo a que

serve, busca ou conduz mais do que pela causa que o fez surgir. O que está em jogo para a teleologia é a finalidade de algo, seu propósito, sua meta (telos), não a consideração de suas condições, causas e motivos imediatos de existência ou, como cabe melhor quando se fala da “mer-

cadoria cultural” e da “economia da cultura”, não a consideração das

condições de produção do objeto de cultura — ideia que tomou conta

do cenário e o submergiu. Simmel toma o conceito de teleologia em para o mal do que para o bem —, aquele discurso economicista da cultura conseguiu alguns adeptos, não muitos. Poucos e bem pouco consistentes: mesmo com as leis de incentivo fiscal, nem para o governo, nem para a iniciativa privada, nem para a sociedade civil, ao contrário do que acontece em países desenvolvidos (o Brasil é um país subdesenvolvido, nada de eufemismos do tipo “país em desenvolvimento” etc.), a cultura tornou-se valor evidente. Enfatizar a vertente econômica da cultura foi um erro — no qual agora incorrem alegremente, e sem qualquer justificativa porque têm à mão nossos depoimentos, os adeptos da “economia criativa”, expressão que, para esses desiluminados, significaria “cultura”. A gestão da cultura continua ocupada por espíritos mal preparados, a inevitabilidade da repetição da história — agora na fantasia do ridículo — é clara. Em ensaio também este essencial, o prêmio Nobel Imre Kertész descreveu em The Unhappy Twentieth Century como insistem em nos convencer de que “nossa redenção reside na promoção da economia e que a solução [grifo meu] está na política” e isso “embora os problemas do mundo sejam econômicos apenas em parte e apesar de que a política […] tornou-se indefinível e informulável e isso porque os conceitos políticos tornaram-se caóticos.” (A respeito, ver László F. Földényi, op. cit.) O paradigma do dinheiro como guia da cultura deve ser imediatamente abandonado e o que fazer com a política está claro nos escritos de Simone Weil que publiquei com posfácio meu em Sobre a supressão geral dos partidos políticos (Ed. Iluminuras). Mentes esclarecidas e respeitáveis insistem na necessidade de não desprestigiar a política. Ela deixou de ser inútil para tornar-se um obstáculo: antes de pô-la a serviço das pessoas, será preciso reformá-la de modo radical e impressionante…

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seu sentido mais extremo possível — o que lhe valeu, junto a filósofos materialistas e histórico-materialistas, o rótulo de idealista, etiqueta que, quando aplicada, busca de imediato desqualificar por completo

aquele que com ele é carimbado em certos círculos acadêmicos. Adorno, o mesmo que viu no jazz uma das expressões mais baixas da alma humana, foi um dos críticos que dedicaram algum tempo a Simmel

apenas para aceitá-lo em parte e com reservas. Adorno não gostou nem do título do livro, Cultura filosófica, do qual “O conceito e a tragédia

da cultura” é um capítulo. Considerou-o de uma “irritante obviedade”,5 de uma molesta, fastidiosa, enfadonha obviedade. É mesmo? Nessa

passagem, Adorno reconheceu que, “apesar de todo seu idealismo psicológico…”, Simmel pelo menos tratou de coisas concretas em vez de contentar-se com a litania acadêmica da “crítica do conhecimento e

da história do pensamento”. Aí está em cena a etiqueta do “idealismo”,

mortal em certos círculos modernos e contemporâneos. O que eram as “coisas concretas” de que Simmel ocupou-se e que escaparam dos “pen-

sadores” pelo menos até meados da década de 60 do século 20? Eram

a moda, a aventura, o problema dos sexos, a coqueteria, as ruínas, os

Alpes, Michelangelo, Rodin (de quem Simmel gostava particularmente), a personalidade (a personalidade!) de Deus, a cultura feminina…6 Tudo

aquilo que as esquerdas marxista e comunista consideravam, mesmo bem entradas nos anos 60 e 70, “epifenômenos” nada urgentes e

mesmo desviantes do objetivo central: a luta de classes e a tomada do poder. Remember o livro antes de O que é isso, companheiro? de Fernando Gabeira, ele que passeou pelas praias do Rio vestindo uma

exígua sunga de tricô com malhas largas… Espero que um dia a coleção 5

Theodor W. Adorno, “Henkel Krug und frühe Erfahrung” in Gesammelte Schriften,vol. II, 1974, p. 558.

6

Não me recordo se Roland Barthes citou Simmel como um dos inspiradores e precursores para seu Mitologias, que tratou exatamente de temas da mesma natureza, mesma extração: o banal, o cotidiano, o concreto mais imediato. Mesmo naqueles anos, final dos 50 (o livro de Barthes saiu em 1957), não era muito comum, na França, mencionar fontes de inspiração, precursores, referências de citação…

56


em que hoje aparece esta “Tragédia da cultura” publique, se continuar existindo, o texto completo de Simmel abordando esses temas.

Simmel, um idealista — ao interessar-se por questões, como o

desenvolvimento máximo das capacidades humanas, que não podiam ser verificadas experimentalmente em situações controladas cientificamente e passíveis de reprodutibilidade histórica em outros seres humanos? E que não se encaixavam na caixa preta da ideologia que

alimentou Adorno? Sim, era por coisas assim concretas que se interessava Simmel — por elas e por essa outra coisa concreta mesmo sendo terrivelmente abstrata que é o dinheiro, a que dedicou um grosso

volume inteiro, Philosophie des Geldes, “Filosofia do dinheiro”. Outro título “enfadonho e simplório pela obviedade”? Talvez. Despropositado? Desde quando o dinheiro tem filosofia ou aceita uma filosofia? Muito mais concreto, porém, do que capital. Marx tratou do capital, Simmel foi à raiz da coisa: o dinheiro. Ernst Bloch, em Spuren (Traços: um bom título), reconheceu sua dívida para com Simmel, ele que se encantou

com o divagar de Simmel sobre a lâmpada e o armário ou sobre a primeira locomotiva ou sobre as pontes e as portas (Brücken und Türen)

para, nessas formas (Simmel foi um filósofo, se não formalista, pelo menos formista, um pensador da forma: algo mais concreto do que

isso?), encontrar traços, vestígios, pegadas do espírito humano. Um

idealista, então. Que seja. Não creio que Simmel se incomodasse com

rótulos, assim como não se preocupava com métodos:7 preocupava-se com coisas e movimentos.

7

Surge nítido, na leitura de A tragédia da cultura, o alvo dos comentários de Simmel sobre o fetiche do método para muitas mentes acadêmicas. Simmel tinha suas razões, dado o número de vezes que as portas de entrada para a universidade foram-lhe fechadas quando se apresentou para uma posição docente. Independentemente disso, tinha toda razão quando denunciava a questão do método como estratégia para ocultar o vazio intelectual de muitos professores e pesquisadores e os resultados pífios de muitas teses e dissertações que, ao recorrer a um dado método, antes demonstram

57


O ESPÍRITO EM CHAVE CONTEMPORÂNEA E, no parágrafo anterior, entrou em cena a pista reveladora do idea-

lismo de Simmel, que nunca se deu ao trabalho de ocultá-lo: a pista

do espírito, a forma do espírito. Uma palavra extemporânea hoje, em

filosofia, não? Simmel fala, o tempo todo, em espírito e alma. Já em 1911, quando publicou Cultura filosófica, não era mais o momento de falar-se

em espírito e alma, não era mais bem visto, pelo menos, falar de alma. Espírito, continuava admissível. O termo tem ainda muito trânsito na língua alemã, antes de mais nada numa expressão onipresente também

em vários outros idiomas e bastante laica: Zeitgeist, o espírito do tempo. Do espírito de um tempo participam formas bem pouco religiosas ou mís-

ticas, como a velocidade, a pressa, as massas, a moda, a superficialidade, o populismo, a ascendência da ignorância, o sexo aberto e múltiplo, a ganância, o partido como religião, o acidente, a ideologia como religião…

A expressão alemã migrou bem para o português e por aqui encontrou

bom terreno. Mas espírito, sozinho, nem tanto. Do francês e do inglês ela é, adequadamente, um frequent flyer. Uma das mais influentes revistas de ideias da França — algo que não sobreviveu neste país Brasil, a revista

de ideias — até hoje publicada e lida desde 1932, é justamente Esprit, durante largo tempo vista como a antagonista de Le Temps Modernes, de Sartre e amigos. Se Les Temps Modernes era moderna como pretendia desde o título, quer dizer, se era uma revista de esquerda, sua antagonista

só podia ser de direita. Assim caminha o simplismo humano, sobretudo o simplismo político — sempre avassalador. Entre seus colaboradores

figuravam muitos católicos e, como a revista apoiava os dissidentes da Cortina de Ferro e repudiava o totalitarismo numa época em que boa

parte da esquerda francesa recusava-se a reconhecer a realidade sovi-

ética (Camus era a exceção, motivo da ruptura com Sartre), foi descrita

como reacionária; hoje é passavelmente social-democrata. O espírito está por toda parte na literatura e na vida comum do francês, como na do

ou “demonstram” a eficácia do método (se alguma) do que contribuem para o avanço do conhecimento do objeto escolhido.

58


inglês. E mesmo a alma. Num texto de filosofia contemporânea, ambas

palavras não raro soam fora de lugar, fora de foco. Um pouco mais acima, neste mesmo texto, já apareceu uma “alma humana”…). Nos tempos do

século 20, mente entrou em cena para propor-se como substituto laico a um espírito marcado pelos territórios das religiões e misticismos de

variado espectro com os quais se identificava de modo quase exclusivo; mente veio como substituto ao e recusa (excessiva e indevida) do campo do sagrado, num movimento que começou a ser vencido entre os anos

60 e início dos 70 do século 20 com os estudos de dimensões “imateriais” como as definidas pelo imaginário. Algumas culturas, tomadas em seu amplo espectro, resistem, porém, a esse “modernismo”. Mind

atravessou bem a alfândega anglo-saxã (sem todavia eliminar de todo

a competição do spirit) mas, em seu sentido de mente, foi barrada na

fronteira com a França. Peça ao Google Translate para traduzir mente, mind e Geist para o francês e terá a impressão de que sua conexão com

o servidor está com problemas — porque a resposta entregue é sempre uma só: esprit. Não se trata de uma debilidade do site. Traduzir Simmel para o português significa deter-se diante desse posto de verificação de passaportes e decidir sobre o equivalente a empregar dado que mesmo

o mais desideologizado e laico dos leitores pode achar bem estranho

esse encontro recorrente com as duas palavras alma e espírito. Levando esse aspecto em conta, cabe observar que há uma alternativa capaz de superar as estranhezas contemporâneas com esses dois termos, espírito

e alma, e mesmo com os três termos a compor o conjunto maior que inclui a mente (mind). Trata-se do termo interpretante, como proposto por Charles S. Peirce.

A aproximação entre os dois homens, Simmel e Peirce, é mais do

que justificada, em particular quando se recorda que Peirce é chamado

de “pai do pragmatismo” e que Simmel via-se a si mesmo, e era assim

apresentado por outros, como um pragmatista — outro termo não raramente usado para desqualificar aquele a quem é aplicado. Há

quase uma geração inteira (no cenário do século 19) entre os dois: Peirce nasceu em 1839 e Simmel, em 1858. Mas ambos morreram quase

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ao mesmo tempo e, em todo caso, no interior do contexto, da tragédia

do mesmo evento mundial, da mesma pandemia extremamente mortal, de vírus de origem exclusivamente humana, que foi a Guerra de 14-18: Peirce em abril de 14, Simmel em setembro de 18. Não há sinal

claro, que eu saiba, de que se tenham lido mutuamente — mesmo porque, os primeiros textos de Peirce saíram publicados em 1923, cinco

anos depois da morte de Simmel. O primeiro de Simmel apareceu em 1890, Über sociale Differenzierung (Sobre a diferenciação social); o

essencial Philosophie des Geldes (Filosofia do dinheiro) é de 1900; de 1903 é Die Grosstädte und das Geistesleben (A metrópole e a vida do

espírito — que para o inglês foi traduzido como, claro, A metrópole e

a vida mental ou The Metropolis and mental life) e serviu de alavanca oculta para Walter Benjamin; a Philosophie der Mode (Filosofia da

moda), confirmando que Simmel interessava-se mesmo pelas coisas

concretas, em 1905; e o Philosophische Kultur, com parte do qual nos ocupamos aqui, em 1911. Simmel publicou Kant em 1904, sendo o

filósofo alemão um farol claro para Peirce, ele que no entanto não foi nada tão concreto quanto Simmel na escolha de seus assuntos (mas aquele primeiro livro de Peirce publicado em 1923 aproximava-o

muito de Simmel: Chance, Love and Logic: Philosophical Essays (Acaso, amor e lógica: Ensaios filosóficos), com esse Love aparecendo já no título para enlaçar-se de modo apenas levemente indireto com A

filosofia dos sexos, que forma um dos capítulos do Cultura Filosófica). Peirce não leu certos textos de Simmel por uma simples questão de cronologia: morreu antes que fossem publicados; outros poderiam

ter estado a seu alcance mesmo se especialistas em Simmel e em Peirce reconhecem que Simmel não leu Peirce e que Peirce, e outros

pragmatistas americanos “clássicos”, como John Dewey e William James, eram “largely unfamiliar”,8 nada familiares, com a obra de

Simmel. Há pontos de contato entre os dois mas que indicam, antes, mais as diferenças de entendimento entre ambos do que uma 8

Martin Kusch, “Georg Simmel and Pragmatism” in European Journal of Pragmatism and American Philosophy XI-1, 2019; https://doi.org/10.4000/ejpap.1490

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convergência a aproximá-los. Um desses conceitos é o de verdade, fundamental para um lógico como Peirce e importante também para Simmel mas ao qual raramente se referiu neste ensaio sobre a tragédia da cultura. Simmel preferia compreender a verdade (“aquilo

que chamamos de verdade”) pelo viés das normas do comportamento, cuja formulação abstrata resulta nas leis lógicas. Para Peirce — um

químico de formação que trabalhou como cientista durante trinta

de seus anos na exploração do conhecimento (a ciência, esse fator

essencial, necessário para a ampliação e iluminação da pesquisa filosófica tanto quanto o estudo da arte foi vital à prática filosófica de

Simmel) — a verdade encontra-se no contexto da pesquisa científica, algo com muito pouco trânsito, se algum, entre políticos, ideólogos e pessoas ditas comuns, ao passo que Simmel considerava a verdade no

contexto das crenças e necessidades que (sendo ele um interessado pelas coisas concretas como disse Adorno) todos ou a maioria dos

membros de uma dada espécie, como a humana, entendem como

instrumentais para a satisfação de suas aspirações e exigências. E

isso significa que, tratando do conceito de verdade no cenário da ciência, Simmel calça seu entendimento prático da verdade mais na ideia da coerência ou da verdade como probabilidade 9 do que

nas concepções teóricas tradicionais; não abandona o conceito de verdade prática mas não entende que seja suficiente para explicar

a abordagem científica de um objeto. Outras coisas entram nesse jogo — e nisso ele era mesmo “mais pragmático” do que Peirce.

Mesmo sendo extremamente relevante para esta discussão e para

o que se segue, não é esse o aspecto do pensamento dos dois, porém, que aqui interessa. A questão, diante da necessidade de traduzir 9

Com o que Simmel aproxima-se fortemente de um conceito de ciência contemporânea lastreado mais na estatística e na probabilidade do que no determinismo clássico, motivo para o afastamento de Ettore Majorana do cenário científico — e, se for o caso, para seu desaparecimento puro e simples — na primeira grande crise ou cisma da ciência no século 20.

61


Geist (espírito) e Seele (alma) para o português no cenário acima desenhado, é considerar a possibilidade de recurso ao conceito de

Interpretante como uma alternativa apropriada, sugestiva e contem-

porânea a espírito e alma — sobretudo ao primeiro. Sob esse ângulo, o que interessa de Peirce é sua semiótica, por ele tomada como “apenas” um outro nome para Lógica — como de fato é. E em sua

Semiótica, eleger um de seus pilares fundamentais, o Interpretante, que Simmel poderia, se não incorporar à sua terminologia (se ele pudesse voltar à vida, reler seu texto e conhecer o de Peirce), em

todo caso aceitar como expressão adequada — talvez, como escrevi, mais contemporânea e menos tingida pela vaguidade de formas

como espírito e alma, portanto mais estratégica — para a dinâmica do caminho do sujeito em direção a si mesmo. Adorno retorna para

dizer que, “apesar de todo seu [de Simmel] idealismo psicológico…”, Simmel foi o primeiro a tratar de objetos (temas) concretos etc. Idealismo e teleologia não mais eram perspectivas aceitáveis em tempos de materialismos históricos e dialéticos; no entanto, são bem-vindos de volta para oxigenar um pouco o ambiente nestes momentos carentes de oxigênio de todos os tipos.

O Interpretante, então. Se o leitor entrou neste livro pela porta

principal, a do ensaio de Simmel, já sabe que o primeiro conceito por ele proposto para a ideia de cultura é que ela é outro nome para

o caminho da unidade acabada (bem realizada e formatada) através

da multiplicidade e rumo à unidade desenvolvida, desabrochada. Sob uma condição: que esse desenvolvimento se faça mediante a

combinação do que vem do interior do próprio sujeito com o que provém de seu exterior, com aquilo que vem do objeto. Em outras

palavras, a cultura resulta do que é espiritualmente subjetivo e do

que existe como valores objetivados. Uma composição desses dois territórios. Valores apenas objetivados — os que vêm de fora, de

normas definidas como o direito ou a religião, aqueles que provêm

dos cânones literários ou filosóficos, do coletivo (como virou moda há algum tempo repetir) — não constituem uma cultura efetivamente

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incorporada,10 assim como valores apenas subjetivos, subjetivados, tampouco podem propô-la. Uma cultura meramente objetivada, obje-

tificada, ou uma cultura apenas subjetivada, subjetificada, interior, não pode alcançar a perfeição (em todo caso, o acabamento, o caráter

de coisa acabada — tanto quanto possível) a que Simmel atribui o nome de cultura, a única forma de cultura a valer a pena, a única com

direito a usar esse nome. Nesse caminho de junção entre a cultura subjetiva e a objetivada, objetificada, o processo não tem um fim

previsível: o desenvolvimento pleno do sujeito é uma obra inaca-

bada e inacabável pois sempre pode ser continuada e prolongada, indefinidamente. Ali onde ela se detém surge o dogma, a barreira de controle ou muro — como todos os Muros da Vergonha na história

humana — cuja transposição requer um estado de espírito particu-

larmente fortalecido que por vezes, como escreveu Dante, requer o complemento, na mão, de uma faca com bom corte… a ser usada no momento certo contra o oponente. Quem diria que o humanista Dante reconheceria a força da realidade mais violenta… O pleno

desenvolvimento da cultura afigura-se, para retomar a expressão feliz de Heinrich Wölfflin a que Umberto Eco por sua vez recorreu em sua

proposta estética sem dar a seu antecessor alemão os devidos créditos,

como uma obra aberta:11 tem ou pode ter um ponto de partida claro, porém não estão previstas, desde o início, as estações intermediárias desse percurso, nem antevista é sua estação terminal, que de fato 10

E essa é uma tragédia da cultura e do estudo da cultura e da prática da política cultural que se detém, deliberadamente, na cultura objetivada. Um filme hoje interessa a essa prática pelo ângulo de sua proveniência (vem da “máquina capitalista de Hollywood” ou é produto “da identidade brasileira”?); ou da ocupação de telas ou do tempo de exibição nos canais de televisão e por assinatura, ou da quantidade de dinheiro envolvida etc.

11

Heinrich Wölfflin, Principles of Art History: The Problem of the Development of Style in Later Art (1915). Menciono essa questão em minha Teoria da Informação Estética (Editora Vozes, 1974), depois revista e resumida em Semiótica, Informação, Comunicação (Ed. Perspectiva).

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nunca será tal — a não ser como ficção ou ilusão: nesse caminho

existem apenas estações provisoriamente acolhedoras a funcionar como plataformas de onde o espírito retomará seu caminho — depois

de um momento de descanso, reavaliação e carregamento de novo combustível — para a continuação de sua aventura12 do conhecimento que é ao mesmo tempo a aventura da vida, para retomar esse outro conceito preferido por Simmel e no qual vale a pena mergulhar.

Pois bem, voltando às concepções de Peirce e Simmel para a verdade

e como esse ponto relaciona-se à noção peirciana de Interpretante

e à possibilidade de encontrar um termo contemporâneo capaz de substituir com vantagem as tradicionais noções (incertas, escorre-

gadias e assumidamente vagas — e tão expressivas à falta de serem significativas) de espírito e alma. A compreensão que Simmel tem da verdade aponta para o conjunto de crenças e ações que todos os ou a

maioria dos membros de uma espécie, como a humana, consideram

como instrumentais para a satisfação de suas necessidades básicas. Esse entendimento que Simmel tem da verdade, o de uma “verdade

prática”, é para ele suficiente e substitui o recurso a uma verdade alcançada pela pesquisa científica sistemática a obedecer cálculos

lógicos rígidos. Peirce, como cientista além de filósofo (embora a Lógica seja, antes de mais, outro nome para filosofia), poderia incorporar a

verdade prática de Simmel à sua concepção de verdade como aquela que pode ser encontrada no curso de uma pesquisa ou reflexão que é

levada às suas últimas consequências, a seu estado, não último, porém o

mais avançado possível, e um estado que não pode ser anulado ou contraditado — pelo menos enquanto um novo avanço do conhecimento

não inaugura novos territórios.13 Essa compreensão que Peirce tem da

12

“A aventura”, primeira seção do subtítulo “Para uma psicologia filosófica” in Philosophische Kultur.

13

As reflexões de Peirce sobre a verdade podem ser encontradas de modo mais cômodo e imediato (sem prejuízo de uma pesquisa mais encorpada em sua obra caudalosa, na

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verdade coincide com seu entendimento de um termo e conceito por

ele inteiramente proposto, o de Interpretante. Não sei se em algum ponto de sua caudalosa produção — a espalhar-se por um mínimo

de trinta volumes publicados e um total de mais de 100.000 páginas (a ampla maioria não publicada e existente apenas na forma de microfilme) — ele mesmo faz essa aproximação expressa entre os dois

conceitos. Mas a convergência é evidente e, mais que isso, lógica — e lógica nos termos de seu próprio discurso. Vejamos.

SIMMEL ANTECIPA O HOMEM SEM QUALIDADES E SEM CONTEÚDO O Interpretante não é o intérprete. A relação semiótica envolve

um signo (aquilo que representa alguma coisa sob algum aspecto ou qualidade; no passado, descrito como aquilo que representava alguma

coisa para alguém sob algum aspecto ou qualidade; agora, nos tempos computacionais, aquilo que representa alguma coisa para alguém ou alguma coisa [um algoritmo, por exemplo] sob algum aspecto ou qualidade), a coisa (o referente) representada por esse signo e aquele

para quem ou aquilo para o que esse signo representa aquela coisa ou fenômeno sob algum aspecto ou qualidade. Como em: signo verbal na

expressão cão marrom; um cão marron real ou genérico (referente) ao

qual esse signo-expressão remete; aquele ou aquilo (o Interpretante) que recebe esse signo e para o qual se forma (em resumo) o conceito de cão marrom. Esse que ou quem decodifica o signo não é, porém, o

qual constantemente retorna a um conceito já desenvolvido antes para complementá-lo e ampliá-lo) em “How to Make Our Ideas Clear”, de 1878. No Brasil, incluído no volume Semiótica e Filosofia: Ensaios Escolhidos de Charles Sanders Peirce, seleção de Octanny Silveira da Mota e Leonidas Hegenberg (Ed. Cultrix, 1972), que me serviu como ponto de apoio para a tradução na qual me lancei de uma coletânea relativamente ampla dos escritos de Peirce, publicada pela Editora Perspectiva sob o título Semiótica. A leitura do volume da Cultrix levou-me, de modo especial, a propor uma alternativa à tradução de certos termos de Peirce ali proposta e que definitivamente adotei a partir de então.

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intérprete, um intérprete — um sujeito, um espírito, a mente, a mind: é o Interpretante. Essa distinção talvez fosse mais difícil no tempo

radicalmente antropomórfico de Peirce, quando um intérprete só poderia ser, naturalmente, evidentemente, um ser humano. Agora, nos tempos da eCulture, torna-se claro que o intérprete não necessita ser

um humano e que os tempos do antropomorfismo encerraram-se:

o intérprete, na forma do Interpretante, pode ser agora aquilo que, outrora, se chamaria de não-vivente. O Interpretante constitui-se em

um sistema operacional, um conjunto de procedimentos alinhados por uma lógica convergente ou divergente de modo a alcançar ou gerar um produto final: uma compreensão, o conhecimento. Aquilo que no intér-

prete interpreta é o Interpretante. E o Interpretante tem uma extensão, uma potência e um poder — no caso, poder sobre o intérprete, sobre o sujeito — que não pode ser minimizado. Em A tragédia da cultura

há uma rápida passagem cujas implicações Simmel, infelizmente, não chegou a explorar. Esse trecho repete uma sua ideia central: que

as necessidades encontradas ou definidas ao longo do caminho do sujeito rumo à plenitude de seu espírito organizam-se ao longo de um

fio condutor que é “completamente objetivado” e que não se preocupa

mais com as exigências de nossa individualidade, por mais centrais que sejam, do que com os poderes físicos e suas leis a reger esse mesmo

processo. E imediatamente em seguida, Simmel aponta o caso da linguagem, destacando que, no geral, é correto dizer que a linguagem

imagina e pensa por nós, quer dizer, em nosso lugar. Assim exposto, o

caso deve ter parecido à época (e ainda hoje…) uma enormidade e um

despropósito; mas Simmel específica em seguida que isso significa que a linguagem recolhe os impulsos fragmentários ou combinados de nosso próprio ser e os conduz a um estado de perfeição a que, de

outro modo, não teriam chegado. Dito de outro modo, a linguagem é

um Interpretante, um subsistema a integrar um Interpretante maior

e mais amplo que é aquele, Final, para o qual tende o ser. Dizer que a

linguagem constitui um Interpretante significa afirmar, nos termos de Simmel, que ela recolhe tantos sinais fragmentados e isolados captados

de seu contexto (do qual o ser humano faz parte) e por ela combinados

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de tal modo que o próprio ser falante dessa linguagem não lograria graças apenas a sua vontade e capacidade próprias e subjetivas. Um

pouco de Freud poderia enxertar-se nesse quadro para lembrar que existe, na subjetividade do ser, um âmbito ao qual o próprio sujeito

não tem acesso regular e automático — por vezes, nem ao final de um processo deliberado de exploração — e que se designa pelo termo de inconsciente, o Id, o isso, a respeito do qual um outro Georg, Groddeck este, discorreu de modo arguto e sensível em obra maestra que também

tive a oportunidade de introduzir em português.14 Em ainda outras

palavras, a linguagem é um sistema, um sistema interpretante, um

subsistema do Interpretante, maior do que o sujeito, do mesmo modo como se afirma que um livro escrito ou uma tela pintada ou um filme

feito é maior do que seu autor: Platão estaria coberto de razão quando disse que a obra importa, seu autor nem tanto…

E eis que Roland Barthes retorna a esta cena, convocado na forma do

discurso pronunciado quando de sua aceitação no Collège de France em janeiro de 1977, publicado sob o título Leçon (título um tanto presunçoso

na sua alegada simplicidade despreocupada; em todo caso, era um costume que a personalidade assim consagrada desse uma aula, que é a tradução do título…). Esse texto causou um escândalo considerável à

época, e no próprio Collège, por afirmar que não é o homem que fala a

língua mas, pelo contrário, é a língua que fala o homem. Numa época, anos 70, em que o marxismo convocava amplamente ainda os espíritos e entrava por diferentes domínios do conhecimento e do desconhe-

cimento, a reação não poderia ser outra: como assim, a língua fala o homem? Se o homem faz a história, se o homem pilota a história, como não falaria sua língua? O discurso de Barthes ressoava com os tons de um ultrarreacionarismo de todo inaceitável. O homem já conhecera

três quedas notáveis: já havia sido retirado, com a Terra que o abriga e

que agora procura expulsá-lo como a um parasita ou vírus, do centro do universo; Darwin em seguida negou-lhe a ascendência divina para 14

Georg Groddeck, O livro do Isso, Editora Perspectiva.

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igualá-lo a qualquer verme rastejante dotado de imensa soberba; depois, foi despejado do controle de sua própria consciência, algo demasiado perturbador mesmo considerando a quantidade de indícios que sem-

pre apontaram para essa possibilidade (os sonhos incompreensíveis, os pesadelos, os gestos incontrolados, os lapsus linguae recorrentes, a incapacidade de distinguir entre sua esposa e um chapéu jogado sobre a cama). Agora, o homem perdia o controle até mesmo do que

sempre parecera um instrumento banal à sua disposição e do qual

parecia servir-se para pedir uma baguette ou condenar um criminoso:

a língua. Talvez apenas Lévi-Strauss, armado com seu estruturalismo, pôde compreender o que Barthes dizia e eventualmente endossá-lo

(embora não me lembre que o tenha feito, pelo menos publicamente). Por certo, Barthes não se referiu à linguagem: usou o conhecimento da

linguística e da semiótica do momento para estabelecer uma distinção entre a linguagem, como capacidade geral de comunicar, e a língua, o

instrumento concreto de comunicação. Esses elementos, derivados das propostas de Ferdinand de Saussure, não se apresentavam como um dualismo, mas, de fato, como uma tríade da qual o terceiro elemento é

a fala, a parole, o uso prático e concreto da língua e da linguagem por um indivíduo específico e determinado. Esse estoque coletivo de signos

e significados sujeitam-se a normas e leis próprias (os “poderes físicos

e suas leis” a que com frequência refere-se Simmel) que se impõem aos

falantes. Alguma liberdade lhes é deixada, eles que dispõem também, no limite, da possibilidade e da capacidade singular de formular uma

fala própria, por vezes com sua linguagem e língua igualmente próprias e que não necessariamente são compreendidas pelo seu leitor, seu

interlocutor, na forma do idioleto, fruto de uma liberdade, como se diz, do ser humano como criador, como poeta, romancista, como o artista

visual que torce uma linguagem e uma língua e as submete ao próprio

desejo. Esse sujeito assim libertado pode falar sua língua, ao preço de não

ser entendido por algum tempo ou para sempre. Dito de outro modo, naquela passagem Simmel distinguiu entre o sintagma, atualização

concreta e pessoal (por vezes, coletiva) de uma mensagem, feita a partir da escolha de significantes e significados, e o paradigma, conjunto ou

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estoque de elementos à disposição para a combinação do discurso. A

linguagem é claramente maior do que a língua e, em princípio, do que a fala, basta comparar um bom dicionário com seus 300 mil vocábulos

nas línguas ocidentais com a escassez dos 300 vocábulos necessários para a leitura de um jornal médio hoje… Mas que a língua falasse o

homem, e não o contrário, era insuportável. A linguagem é, para Bar-

thes, aquele objeto no qual o poder sempre se inscreveu, ao longo de

toda a eternidade humana (portanto, ao longo de todo o passado, do

presente e do futuro, sem escapatória). Na linguagem ou, para ser mais

preciso, continuava Barthes, em sua expressão obrigada, na língua.

A linguagem é uma legislação (cf. Simmel), a língua é um código; e, prosseguia Barthes, não nos damos conta do poder que reside na língua porque nos olvidamos de que toda língua é uma classificação e que toda classificação é opressiva. Como Roman Jakobson anotou, um idioma

define-se menos pelo que permite dizer do que por aquilo que obriga a dizer. Um exemplo clássico, sempre dramático: um falante não se reconhece como machista; no entanto, ao combinar João e Maria numa

frase que lhes atribuirá uma qualidade, de modo natural esse falante

dirá que João e Maria são bonitos. A preferência, a dominância, o tom, é dada legalmente pelo masculino… Donde, outra evidência: pior dita-

dura não é a que proíbe dizer, é aquela que força a dizer isto ou aquilo, remember 1984, de Orwell. E isso levou Barthes a pronunciar, de modo

claro, que a linguagem não é nem reacionária nem progressista: ela é, simplesmente, fascista. O espírito de 1968 continuava vivo e agitado em Barthes mesmo em 1977…

Pois bem, Barthes dizia em 1977 o que Simmel escrevera em 1911:

“Sem dúvida, é em geral correto dizer que a linguagem imagina e

pensa por nós…” A enunciação de Simmel dá margem a imaginar que

ele lera, anteriormente, algo do gênero em algum lugar, em alguém, e que parece concordar com alguém mais (“Sem dúvida é correto dizer que…”) — a menos que se referisse a si mesmo e se autorizasse em antecipação a alguma crítica eventual. Não sei em quem Simmel possa

ter lido algo do gênero, e se. Mas não é impossível, nem improvável,

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que Barthes lesse Simmel ou de algum modo soubesse das proposições

de Simmel, Barthes que escreveu Mitologias (também publicado no

Brasil pela editora Cultrix) circulando pelos mesmo trilhos assentados por Simmel 46 anos antes. Simmel não era uma leitura a impor-se na França entre 1957 (Mitologias) e 1977 (Leçon) ou antes, longe disso: o

marxismo dos intelectuais franceses dessas décadas não abria espaço

para o “revisionismo” idealista e pragmatista de Simmel. Mas Barthes, heterodoxo em mais de um aspecto de sua vida, pode tê-lo lido — e

como escrevi acima, não era muito comum que os autores franceses

reconhecessem sua dívidas com autores anteriores por meio de notas

de rodapé. Se cito esse episódio é antes para acentuar o caráter inovador e antecipatório de Simmel do que para colocar Barthes ao lado de

Umberto Eco e Sartre na lista dos que usaram autores anteriores sem

qualquer preocupação com o reconhecimento de suas respectivas

notas de filiação… E, também, para colocar em evidência a atualidade

constante e presente do pensamento de Simmel, mera fantasmagoria para a França da metade do século 20.

E isto para configurar a linguagem, ficando com o termo usado por

Simmel, como um Interpretante maior que o intérprete. Antes de

chegar a esse Interpretante Final (que nunca é final), passa-se pelos

dois outros tipos de Interpretantes mais à mão imediata do sujeito, do “intérprete”, tal como aparecem na classificação de Peirce. No caminho

para a realização da completude — que no entanto nunca ocorre como tal — o sujeito depara-se com dois estágios ou instâncias intermediá-

rios (Peirce não o diz nesses termos; recorro aqui ao desenho proposto

por Simmel uma vez que meu objetivo é evidenciar a convergência entre os dois sistemas de pensamento): o do Interpretante Imediato e

o do Interpretante Dinâmico. “O Interpretante Imediato consiste na Qualidade da Impressão que um signo está preparado [destaque meu] para produzir, não na reação efetiva produzida”: essas são as palavras (com as iniciais maiúsculas por ele mesmo usadas) do próprio Peirce

apresentando sua concepção do termo numa carta para William James, com quem se correspondia regularmente. Numa outra perspectiva

70


aberta pela semiologia, o Interpretante Imediato equivale ao sentido

de um signo (verbal, visual, sonoro etc.). O sentido de um signo é aquilo que um signo está preparado para veicular, seja por convenção (uma

palavra qualquer, como alma, é completamente convencional, i.e., artificial), por uma apreciação vinculada a uma experiência prática concreta e existencial (vejo fumaça a distância, é bem provável que

essa fumaça signifique que ali há fogo) ou por uma sensação subjetiva sempre difícil de explicitar e traduzir (“a cor vermelha me excita por

motivos que não posso explicar”, “não encontro palavras para dizer o

que sinto por você”). Retorne-se ao signo alma: um signo convencional, significa em virtude de uma convenção uma vez que a, l, m, a não

correspondem a nada de concreto no universo existencial a não ser pelo fato de que a não é l e não é m (sentido oposicional das letras do

alfabeto, ao qual se junta ocasionalmente um outro sentido, o sentido

posicional: na palavra casas, o primeiro s tem sentido apenas oposicio-

nal e o segundo s, um significado posicional: ao final da palavra, indica a ideia de plural). E o signo alma ainda é convencional porque aponta para um objeto que é assim designado em português mas que será

expresso em inglês por soul, em alemão por Seele etc. Uma ida ao

Houaiss resultará no conhecimento de que o signo alma está preparado para produzir a ideia de que “1) aponta para o princípio vital, vida; ou

designa o 2) conjunto das atividades imanentes à vida (pensamento, afetividade, sensibilidade etc.) entendidas como manifestações de uma substância autônoma em relação à materialidade do corpo [ufa!, logo na segunda acepção de alma esse dicionário faz um apelo a todos os

recursos filosóficos do leitor…]; e que alma acena ainda para a 3) parte

imaterial do homem” etc. — e continua assim por mais 24 sentidos e

subsentidos… ao longo de uma boa meia coluna da página. Indo para um dicionário da língua inglesa para ver como um seu falante inter-

preta o signo soul (por exemplo, o Novo dicionário Webster’s da língua inglesa para o século 20 em versão completa), vê-se que soul, que um

terceiro dicionário português-inglês afirma ser o equivalente de alma, é “1) A parte espiritual, racional e imortal do homem que o diferencia

dos brutos; a parte imaterial do homem; o espírito imortal que habita

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o corpo; aquela parte do homem que o habilita a pensar e raciocinar e que dele faz um sujeito do controle moral…” e por aí vai. A opção que o Webster’s fez pela primeira definição, que não é definição mas apenas

descrição, explica por si só porque esse dicionário, apesar de ser completíssimo (a lombada do meu tem 12,5 cm de altura, no formato geral

de 28,5 x 22,5 cm), foi sempre tão criticado. Um dicionário que se preze não pode começar a descrição de um termo por um endosso a uma concepção religiosa, quer dizer, uma concepção partidária (“parte imortal do homem”) — a menos que o diga claramente — e não pode

logo em seguida esposar uma ideia desqualificatória ao referir-se à capacidade que teria a alma de estabelecer uma separação entre os seres humanos e os “brutes”, i.e., os selvagens (hoje designados por

“primeiros” no lugar de “primitivos”) e os animais (muitos animais demonstram ter uma alma mais generosa e humana do que tantos seres humanos…). O que se entende por alma, afinal? Como se vê, não

é nem mesmo certo que dois falantes, um de língua portuguesa e outro de língua inglesa, refiram-se à mesma coisa quando empregam os

termos alma e soul, o que aponta para a convencionalidade absoluta

a reger a formação e formulação de cada um deles; mesmo quando em jogo está apenas o sentido de um signo, isto é, aquilo para o que ele foi

preparado para expressar da maneira mais geral e abstrata possível, sem levar em conta qualquer atualização específica que esse signo possa vir a ter e que fornece o Interpretante Imediato desse mesmo

signo. Sem dizer que a coisa complica-se ainda mais, se for isso possível, quando se busca o sentido de um termo como vermelho (ter em mente: o signo representa alguma coisa para alguém ou alguma coisa sob um aspecto ou qualidade — e o vermelho é antes de mais nada uma

qualidade) nesse mesmo Houaiss: “vermelho: 1) que tem a cor do

sangue [qual? de que tipo de sangue? Em que estado deve estar esse sangue para ter essa cor?]; 2) diz-se dessa cor [dicionários são ótimos para, muitas vezes, nada dizer ou nada de prestável]; 3) que se enrubesceu […]; 9) relativo a ou próprio dos países comunistas — e seguem-se

outras tantas acepções. Nenhuma das dez listadas pelo grande Houaiss (além de alguns outros exemplos que continua a arrolar sem numera-

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ção específica) oferece a única descrição adequada, isenta e, digamos, perfeita (no sentido de Simmel: a plenitude do sentido desse signo

específico) do vermelho, que se pode encontrar num manual de física: “A cor é uma percepção visual provocada pela ação de um feixe de fótons sobre células especializadas da retina [ou do sensor de um autômato qualquer, não?, do qual não se pode dizer que tenha uma

retina], que transmitem ao nervo óptico, através de informação pré-processada, impressões para o sistema nervoso. A cor é relacionada

com os diferentes comprimentos de onda do espectro eletromagnético.” Pensando bem, não ajuda muito… Tampouco parece colaborar muito

com um leigo que queira conhecer, afinal, o sentido de “vermelho”, o

acréscimo que se pode fazer, a essa descrição, da indicação do compri-

mento de onda do vermelho, ~625-740nm, e sua frequência: ~480-405 THz… Para complicar o quadro, vale lembrar ainda que não

existe um dicionário para signos icônicos como as imagens; estudos

isolados, como os de proxêmica, podem deter-se no sentido das figuras de distanciamento (noção bem apropriada para os tempos de quaren-

tena e confinamento como estes ao longo dos quais escrevo este ensaio)

para dizer que a figura X significa intimidade; a Y, formalidade para

tal e qual cultura mas não para todas…; nem um dicionário de imagens, que eu saiba, que arrole os sentidos que o molusco conhecido como caracol tem na simbologia cristã (reprodução assexuada, o que significa

que a imagem desse molusco tinha ingresso admitido na imagética

aceita pela Igreja ao longo dos séculos 15 e 16, como na tela de Rafael

Ascensão de Cristo, pertencente à coleção do MASP em São Paulo). E tampouco existe um dicionário do sentido dos sons, embora críticos

musicais insistam em dizer que os compassos lentos e arrastados designatórios de um certo movimento das Quatro Estações de Vivaldi

significam “obviamente” o verão — pois, não sabem todos que o verão na Itália, nos meses de julho e agosto, só permite movimentos lentos

e arrastados por parte de tudo aquilo que vive? Resultado: é possível

entender e aceitar a ideia da incomunicabilidade entre os homens, antes ou depois da Torre de Babel, como uma constante através dos

milênios — e também aceitar que parece melhor ficar do lado dos

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poetas e suas imprecisões estéticas, que todos entendemos (mais ou menos) sem precisar acrescentar mais muita coisa…

Enfim, assim é o Interpretante Imediato: a qualidade da impressão

que um signo está apto para produzir e para a qual foi elaborado em

termos gerais e abstratos, válidos atemporalmente e idealmente. No passo seguinte do caminho do espírito saindo fora de si para a si

retornar numa forma mais elaborada, como propõe Simmel, entra o Interpretante Dinâmico: “é […] o efeito direto efetivamente produzido

por um signo sobre seu intérprete. […] O Interpretante Dinâmico é

aquilo que se experimenta em cada ato de Interpretação e que nisso é diferente de outro […]”, entendendo-se que o efeito produzido sobre

o Intérprete A na situação X pode ser distinto do efeito causado por

esse mesmo signo no Intérprete B na situação Y ou, ainda, para o mesmo Intérprete A numa situação Z; o Interpretante Dinâmico é

um “evento singular concreto” (descrição de Peirce em carta a Lady Welby, com quem Peirce igualmente trocou intensa correspondência

na qual experimentava sucessivamente suas ideias). Interpretante Dinâmico: o efeito real e concreto que um signo provoca em mim e que pode ser total ou parcialmente distinto do efeito que exerce em alguém a meu lado. Ouvindo a palavra alma posso ser levado, por

complexa cadeia de associações, a recordar-me imediatamente da morte recente de minha mãe mesmo se meu interlocutor estiver se referindo à “alma do negócio” que pensamos fazer logo mais; naquele

momento, o negócio que faremos é obscuramente matizado pela imagem de minha mãe morta, tanto quanto ouvir a palavra cão ser pronunciada me traz à mente a imagem do cão que na infância me mordeu, com a consecutiva ida a um hospital ao lado de meu pai no banco da frente de um táxi (na época em que os carros tinham bancos

dianteiros contínuos) para ali levar vários pontos na perna, numa cicatriz presente ainda hoje, enquanto meu colega ao lado, ouvindo

a mesma palavra, imagina apenas um animal doméstico, mamífero, quadrúpede e amistoso…

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Essa sucinta incursão pelos domínios de Peirce foi armada, primeiro,

com o objetivo de apontar para um cruzamento entre dois sistemas filosóficos distintos em sua inspiração, estrutura e objetivos gerais —

um mais solto e, digamos, terra a terra; o outro mais ordenado (como a lógica que de fato é) a propor-se como instrumento ou andaime de um

pensamento capaz de debruçar-se sobre praticamente qualquer objeto

de reflexão. E, segundo, com o objetivo de buscar, como foi escrito pági-

nas acima, um equivalente contemporâneo para pelo menos um dos

termos recorrentes nos textos de Simmel, o espírito, parceiro da alma. O recurso ao espírito é poético, claro, e, nessa linha, eficaz: nem todos

os leitores irão tomá-lo ao pé da letra e, menos ainda, ao pé da letra

religiosa. De seu lado, o Interpretante é capaz de descrever como se dá esse processo complexo que respondeu, no passado, pelo nome de espírito, deixando de lado pelo menos algumas das brumas imprecisas que

por vezes mais perturbam do que estimulam a compreensão ancorada

no contemporâneo. Entender o Interpretante como um equivalente do espírito, mas com uma estrutura passível de ser analisada em seus componentes e seu processo, e portanto aceitar o Interpretante como

um conjunto do qual o espírito é uma manifestação particular, é de algum modo (como ele gosta de dizer), atualizar o texto de Simmel.15 15

A ideia não é banir o espírito, condená-lo ao ostracismo — algo que, de resto, o espírito simplesmente irá ignorar. No caminho do sujeito de si para si mesmo, através do espírito objetivado e objetificado na cultura, existirá sempre, tudo indica, ampla margem para um imponderável, para aquilo que não encontra e não respeita limites e fronteiras e que, sendo assim, é próprio do espírito e o traduz. A relação sujeito-espírito é necessária, desde que mantida em termos “adequados”, “saudáveis”, não deterministas, não submissos. Afinal, é a perda do espírito que abriu caminho para a ascensão da massa irrompendo em diversos momentos da história, como na Alemanha nazista. A massa é outro nome para a Bolha Assassina, para a Blob do filme homônimo, que busca destruir os seres humanos. A massa não tem espírito ou foi despojada de seu espírito — como Frankenstein. O Interpretante é apenas outro modo de denominá-lo, quem sabe de manipulá-lo, em todo caso, de torná-lo por um instante um pouco mais claro de modo a poder aceitá-lo e dele extrair o melhor proveito. Mas

75


Seria isso suficiente para autorizar a tradução de Geist ou Seele, espírito ou alma, por Interpretante? E se sim, qual deles: Geist ou Seele, espírito

ou alma? Simmel usa os dois, de um modo aparentemente indistinto ou movido por estímulos subjetivos cuja explicitação não faz parte de seu programa. Se usa dois termos com identidade significante distinta

é porque supostamente estabelece uma distinção de conteúdo entre

ambos — a menos que, envolvido pela conformação de sua opção ensaística, tome poeticamente um pelo outro como modo de evitar

uma constante repetição dos dois termos ou se deixe guiar por um

indicador próprio e íntimo a dizer-lhe que aqui deve usar espírito e ali, alma.16 Ostenta o espírito um matiz mais laico ao passo que a alma não

não de escorraça-lo. Existe um certo número de coisas que resistem à análise, não podem ser decompostas e tampouco explicadas e que é melhor assim deixá-las — e o espírito é uma delas. Nisso reside a vertente metafísica, teleológica de Simmel, rechaçada pelos materialistas do século 19 e 20. É bem possível que o espírito seja o recurso extremo contra o que Thomas Mann designou — em palestra pública em Berlim, 1930 sob o título Discurso aos Alemães (Deutsche Ansprache) — como a “barbárie fanático-cultural” (vershwärmte Bildungsbarbarei) apoiada em suas palavras de ordem atemporais: raça, povo, a tribo (o bando), o heroísmo. É essa a barbárie cuja ressurreição hoje constatamos apavorados, aqui como ali, por toda parte. Essas massas do ódio, mesmo quando acobertadas pelo rótulo de alguma religião autodeclarada detentora do caminho certo, apresenta-se como falando em nome do espírito. Não é esse espírito que interessa, é o espírito como um Interpretante capaz de integrar em si a razão mas também o afeto, o sentimento e a intuição. Esse Discurso de Thomas Mann é uma peça que se recusa a tomar o caminho da prateleira, tanto ele parece dirigir-se a nós, aos dias de hoje, ao mencionar “o avanço da tecnologia com seus triunfos e catástrofes, o barulho e as emoções do esporte, a frenética adoração e absurdas somas de dinheiro jogadas em cima dos astros e estrelas que atraem as multidões de espectadores”. Nada mais atual, não? 16

Escritores, quer dizer, romancistas e poetas, fazem uso preciso de uma e outra palavra. Em La Peste, que obviamente reli agora, no exato momento em que escrevo estas páginas e quando a peste do século 21 ataca forte, Camus descreve a alegria dos habitantes de Oran quando fica claro que a praga entrava em recessão: efusões de

76


consegue desligar-se de sua marca mística ou religiosa de nascença, impressa indelevelmente em sua pele, em seu invólucro ou sleeve como se diz hoje na ficção transumana? Alma quase sempre aparece no texto

quando a intenção de Simmel é referir-se ao anímico, esse indicador

de um princípio vitalista inexplicável, enquanto o espírito seria a manifestação mais reflexiva da alma. O mais provável é que exista, no

uso dos dois termos, uma circularidade de notação poética, pertinente

à forma ensaística. Caso Simmel tivesse de referir-se a Gustav Mahler, sem dúvida recorreria a Seele, alma, e não a espírito; Seele surge, por exemplo, no título Die Garten der Seele (O jardim da alma) em sua

sinfonia Das Lied von der Erde (O canto da Terra): alma é uma noção

recorrente em Mahler, uma marca do compositor, sua marca d’água. E caso Simmel fosse referir-se ao Iluminismo, o mais provável é que recorresse ao espírito e não à alma: o espírito do Iluminismo.

Se assim for, eu optaria por guardar o Interpretante para designar

o espírito, deixando a alma entregue a si mesma tal como aparece no

texto, como ela sempre foi (o que não resolve o problema de onde usar Interpretante e onde, alma…)17. Provavelmente o recurso imediato, não

alegria por toda parte, sinos repicando pela cidade toda, canhões disparando sem parar, casais abraçados, gente dançando nas ruas e praças: “O estoque de vida que haviam acumulado naqueles meses em que colocaram a alma em estado de vigília estava sendo gasto naquele dia que era como o primeiro dia de sobrevida.” Nesse cenário, apenas a alma cabe, não é a vez do espírito… 17

Peirce poderia entrar em cena outra vez neste momento, com sua tríade de interpretação dos modos de relacionamento do sujeito com o mundo e a vida. Mesmo no século atual os campos filosóficos ainda não conseguem pôr-se de acordo a respeito do que entendiam os gregos por psychè e pneuma, tomados como alma e espírito, e em que medida um recobria e recobre o outro e como ambos se relacionam com o corpo. Em todo caso, se ao corpo corresponde o fisiológico (ou a percepção de mundo, o efeito de mundo — o efeito do mundo sobre o sujeito), o espírito define a esfera da consciência (e nesse aspecto remete-se a deus ou aos deuses, dos quais poderia

77


previamente argumentado, à terminologia de Peirce introduziria uma inopinada taxa de entropia na leitura de Simmel maior do que aquela pela qual os termos espírito e alma são responsáveis.18 O texto assim

provir o conhecimento), ficando a alma com a percepção das relações de vida com o Outro, o que inclui os sentimentos, as emoções, aquilo que se refere ao psicológico (psychè). Simmel poderia acomodar-se a esse esquema. E Peirce sem dúvida o fez com seu gráfico “laicizado” da Primeiridade (emoção, sentimentos, intuição, abdução, estética: o ícone), da Secundidade (a inserção direta no mundo, o signo vinculado ao mundo: o índice) e da Terceiridade (a lógica, a lei, o conhecimento regrado, a abstração: o símbolo). Não se trata de mera troca de palavras, de jogo de termos: o modo de considerar o mundo e a vida transforma-se por completo. E a tradução, como fica? Parece bem pertinente referir-se ao Ícone no lugar da alma e ao Símbolo em vez do espírito, ficando o corpo (que não entra muito em cena na Tragédia embora sim, embora lateralmente, em outros textos de Simmel como “O relativo e o absoluto na questão dos sexos”) na esfera do Índice: o corpo como um índice é uma boa construção. Não seria uma solução pacífica, por certo. Nunca seria. Mas permitiria, por exemplo, superar qualidades atribuídas a um ou outro desses conceitos e supostamente típicas deste ou daquele mas que apenas aumentam a confusão, como o caráter de ilimitação, de indeterminação, de ampla liberdade de movimentos (unboundedness) próprio apenas do espírito, como sugere László Földényi. O espírito, a Terceiridade, i.e., a razão, a investigação normatizada, é sem dúvida bastante ilimitada (mesmo retirando-se do palco a figura do deus ou dos deuses, como convém); mas não mais do que a “alma”, quer dizer, o ícone, a intuição, a abdução, a forma estética. Certamente não mais, sob nenhum aspecto. Seja com for, de novo é melhor deixar a alma e o espírito no texto de Simmel, como estão, e introduzir nestas notas a correção de rumo possível. 18

Por outro lado, é sempre preferível confrontar o leitor com um termo que ele quase certamente desconhece — Interpretante — do que oferecer-lhe outro que ele acredita entender — espírito, alma — sem jamais ser capaz de minimamente descrevê-los. Mas… não é improvável que esse hipotético leitor contemporâneo fizesse deslizar esse Interpretante para a figura do intérprete, i.e., uma pessoa de carne e osso, pondo a perder todo o edifício conceitual não só de Simmel como de Peirce… O fato é que esses dois termos são um problema para o tradutor enredado na cultura atual e tendo de ver-se às voltas com uma cultura do passado. Pelo menos uma tradução para o

78


atualizado poderia permitiria uma aterrissagem mais suave da leitura

desse texto por parte do homem contemporâneo do século 21; Simmel foi censurado em vida, entre outras coisas, por sua atitude relativista

ou, segundo alguns, complacente diante do cristianismo, de tal modo

que o aggiornamento de alguns de seus termos talvez beneficiasse uma

aceitação maior de suas ideias (sem prejuízo das alegadas ressonâncias cristãs que em nada invalidam a pertinência de sua análise e o papel

inovador e renovador que imprimiu à filosofia no começo do século 20). Com essa troca de terminologia, porém, algo seria certamente perdido: um toque, um sotaque, um matiz, uma nota, um tom. Com o

acréscimo possivelmente negativo da referência a um sistema lógico de compreensão do processo de informação e comunicação que ainda hoje

inexplicavelmente não faz parte do ensino nem pré-universitário, nem

universitário, como o de Peirce. O atraso educacional sob esse e outros

tantos aspectos é simplesmente imenso, possivelmente irrecuperável. O trabalho do tradutor é dupla ou triplamente ingrato: procurando simplificar, pode erigir barreiras intransponíveis. A linguagem de Simmel é de fato, neste texto, arrevesada em muitas passagens, barroca

mesmo, prolixa e redundante em vários trechos (sinal, não necessário, da performance a que se entrega ao escrever) — o que quase significa dizer que, nessas passagens, há partes, se não desnecessárias, por vezes de difícil compreensão (nesta tradução, algumas delas passaram por

cuidada remoção das ramagens excessivas). Os leitores e sobretudo

os críticos de Simmel apontam sua prática do ensaio com o objetivo, não raro, de desqualificá-lo diante do que seria o certo, o esperado, o codificado: o discurso científico rígido e normatizado. Esses críticos

afirmam que Simmel com frequência divaga ao redor de ideias que se cristalizam aos poucos, página após página, e que ele volta a examinar

inglês usa com frequência os termos intelectualidade ali onde no original aparece espiritualidade e mente no lugar de espírito. Ambas soluções são modernas, se não contemporâneas. O tradutor não resiste à tentação de recorrer a palavras que lhe parecem mais “neutras”e tragáveis para o leitor atual. Um equívoco: não eram as escolhas de Simmel…

79


para cristalizar de outro modo mais adiante — num claro indício de que

ele descobre à medida que escreve, único modo aceitável e criativo de

escrever. Nesse enfoque enquadram-se, por exemplo, a meia dúzia de

conceitos de cultura espalhados pelo texto e que não propriamente se substituem mas se somam, cada um explicitando ou aprofundando algo

que o anterior deixara esboçado. Um desses críticos, Jürgen Habermas, embora reconhecendo também ele o papel precursor de Simmel sob mais

de um aspecto, reclama dessa divagação, desse ensaísmo e do recurso

a frases “de tipo aforístico”, diz ele, como “a escultura antiga buscava, para dizê-lo deste modo, a lógica do corpo e Rodin, sua psicologia”19

que jamais, insistia Habermas, “poderia competir seriamente com

uma dissertação de vinte páginas sobre Rodin como ‘personalidade artística’”.20 Ora, francamente, essa afirmação soa como autêntica barba-

ridade, rebaixando Simmel a um nível inferior a alguma dessas tantas

dissertações acadêmicas de principiantes mais interessados em repetir

ao infinito as fórmulas de alguns “mestres”, de modo a garantir a entrada do candidato no Olimpo, do que realmente investigar seu objeto de

modo amplo e criativo. É como se esses críticos não pudessem deixar de

reconhecer o papel renovador de Simmel, a descoberta que Simmel faz

de novos temas para a filosofia — temas mais concretos como a própria 19

No ensaio dedicado a Rodin e incluído no original de Philosophische Kultur do qual “A tragédia da cultura” é parte.

20

Breve ensaio de Jürgen Habermas sobre Simmel intitulado “Simmel como intérprete da época” incluído na versão espanhola de Philosophische Kultur publicado sob o título Sobre la aventura (Ediciones Peninsula, Barcelona). Esse é um ensaio central em Simmel: nele expõem-se suas ideias centrais sobre, não só a aventura, como sobre a arte, a vida, Deus e a religião — e sobre a vida, a arte e Deus como aventuras. A escolha do título para a edição espanhola soa restritiva quando se pensa no escopo do volume como um todo; mas talvez seja preferível à escolha da edição francesa, que preferiu “Filosofia da Cultura”, praticamente o oposto de “Cultura filosófica” — talvez um filósofo francês sugeriu a opção, protegendo sua área quando deveria ter reconhecido a referência dada por Simmel à cultura e à arte, além da vida, formas da filosofia concreta… Habermas deve ter gostado do título em francês…

80


aventura, a moda, a metrópole, o feminismo… —, mas, e exatamente por isso, se pusessem à cata daquilo que o pode desmerecer de algum

modo, como a cobrar do criticado um imposto pelo elogio que lhe fazem. A verdade é que Simmel foi preciso e expressivo ao distinguir entre uma escultura antiga — a Vênus de Milo, a Vitória de Samotracia, até mesmo

o David de Michelangelo, por magníficas que sejam —, que buscava a lógica do corpo (quer dizer, a mecânica do corpo, o fisicismo do corpo)

e a escultura de Rodin, que se interessava pela psicologia do corpo. Está perfeito, no entanto! Não é preciso sequer contemplar, de Rodin, O beijo ou O Pensador para compreender o que Simmel diz, basta (e esse “basta” é

tão extenso quanto o diâmetro do universo) observar com um mínimo de

neurônios ativos a escultura de u’a Mão, uma única Mão sozinha, saindo crispada de um bloco de mármore apenas esculpido. Habermas parece

incomodado por ter de reconhecer que um aforismo (palavra dele) pode ser mais expressivo e eficaz do que uma dissertação acadêmica de vinte páginas sobre Rodin como personalidade artística. E, no entanto, pode —

assim como um haiku pode ser mais expressivo, eficaz e abrangente do

que um tratado ecológico ou um ensaio memorialista (a tradução em seguida é meramente indicativa):

Um velho lago silencioso… Um rio de verão atravesso Um sapo mergulha no lago que agradável

Splash! de novo o silêncio com as sandálias nas mãos Matsuo Basho (1644-1694) Yosa Bosun (1716-1784)

O “método” de Simmel, para mentes assim formatadas, é um ponto

negativo contra ele como o seria também sua “questionável metafísica da vida” em ação neste ensaio sobre A tragédia da cultura. Não se

espera, de fato, que um autor de formação marxista, como Habermas,

possa aceitar qualquer coisa que de algum modo soe metafísico. Provavelmente Habermas descartaria de igual modo a Peirce, outro

pragmaticista “che la dritta via era smarrita”,21 mais um a perder-se 21

Dante, na abertura do Inferno.

81


do “reto caminho”, do caminho reto da ciência na sua forma filosófica

(claro, o que faço é ciência; o resto…). Simmel não estava preocupado com a dritta via da filosofia dominante em seu tempo (e no tempo de

Adorno e Habermas também), ele que não foi aceito na Universidade

de Berlim, depois também recusado na de Heidelberg (apesar de apresentado por ninguém menos que Max Weber, já um nome à época) e novamente rejeitado pela mesma Heidelberg em 1919.22 Habermas

prefere o Simmel da Filosofia do dinheiro que, para o crítico, assinala

a “transferência do conceito de cultura do plano das especulações do

espírito para o processo social e material da vida em seu conjunto”. Isso, esse toque de materialismo sociológico, Habermas pode compreender. Georg Lukács — que se atreveu a escrever um Tratado de Estética

numa época em que a estética já explodira em mil pedaços e não mais

estava em lugar algum por estar em todos os lugares, e quando a ideia de escrever um tratado já se tornara completamente implausível e

démodé23 — igualmente contestou Simmel, rápida e cortantemente, porque as leis (?) econômico-sociais perderiam, escreveu ele, todo seu conteúdo concreto e seu gume revolucionário se entendidas como

expressão de um conjunto geral “cósmico” 24 — mesmo que o próprio

Lukács tivesse sua considerável dívida intelectual junto ao autor da Tragédia. Que diria Lukács se visse hoje a preeminência da ideia do

cosmo e o bom nome da cosmologia, reivindicada por cientistas e

filósofos instalados na primeira fila da ciência da física contemporânea?

22

Em 1914, Simmel foi indicado para uma cátedra em Estrasburgo, bem longe de sua Berlim. Para ele, era o ostracismo.

23

A ideia de um tratado de estética fascinou-me em minha baixa juventude e tornou-se um projeto durante algum (pouco) tempo: um tratado sobre arte contemporânea (da época, i.e., arte moderna na cotação de hoje). Percebi rapidamente a inutilidade e a arrogância autoritária da empreitada — e os três volumes do tratado de Lukács figuram numa prateleira de minha biblioteca como ícones de uma época encerrada. Servem para manter em pé os livros ao lado.

24

82

G. Lukacs, Die Zerstörung der Vernunft, 1955.


(Nada de muito trágico nisso, tampouco: a ciência muda, como mudam a cultura… e a filosofia.)

Em suma, tornou-se evidente para mim que o conceito de Interpre-

tante era e é o conceito concreto de espírito que cairia bem numa edição contemporânea do texto de Simmel. Mas faltou-me audácia, aqui, para

promover a substituição. Adotando-a, eu não deixaria, por certo, de apontar para os subjacentes espírito e alma que seriam ocasionalmente

deslocados nessa operação (não iria simplesmente, em silêncio, jogá-los sob o tapete), mas prefiro adotar o caminho ora materializado neste

posfácio. A última justificativa à minha disposição para o recurso ao Interpretante, na perspectiva da argumentação do próprio Simmel, é a que oferece a seu discurso outro dos lastros e faróis concretos com que ele opera.25 A cultura é esse percurso que vai do sujeito ao próprio

sujeito com uma passagem pela esfera a ele exterior. Ora, o Interpretante Final não é outra coisa, como forma da imbricação entre a cultura

subjetiva e a cultura objetivada em constante modificação e depuração 25

O recurso à noção de Interpretante permite contornar uma crítica ao “idealismo” e à “vaguidade” da noção de espírito em Simmel e ao modo como o autor a ele se refere. Simmel fala de “forças anímicas”que amadurecem e se cristalizam ao longo do caminho da alma em direção a si mesma, de uma “promessa”de realização existente na alma na forma de “forças particulares” e “capacidades” que irão desabrochar-se. Esse cenário pode levar a imaginar um estado inato passível de ser conduzido à plenitude e que alguns sujeitos poderiam ter e outros não. Na verdade, esse estado não é inato, ele é apenas formado, adensado e multiplicado ao longo do indeterminado e indefinido, provavelmente infinito, processo de semiose, numa operação que pode tender para este ou aquele rumo conforme os investimentos subjetivos nele feitos (as forças anímicas de Simmel) pelo indivíduo interessado. O Interpretante é algo de muito “concreto” — na mesma proporção em que os códigos semióticos são concretos — e sobre ele não incide nenhum determinismo ou predeterminação ou predestinação além daquela inseminada nesses mesmos códigos pela ação humana e que sobre ela pode em seguida voltar-se com força tremenda, como na ascendência da língua sobre a capacidade de enunciação do homem mencionada pelo próprio Simmel.

83


no caminho do espírito rumo à plenitude — a uma plenitude que nunca

será alcançada por ser infindável, pelo menos enquanto existir ou subsistir vida sobre a Terra. É o que vem gravado na própria definição de Peirce para o Interpretante Final: “O Interpretante Final é o efeito que o Signo produz em qualquer mente nas quais as circunstâncias lhe

permitiriam desdobrar seu pleno efeito”. Se o Interpretante é o efeito (necessário, para um pragmaticista) que um signo produz em toda

mente, ele está necessariamente fora de toda mente e portanto escapa à esfera subjetiva do indivíduo, assim como transita na imensa rede

semiótica ao longo da qual vai tocando num sem-número de outros

Interpretantes e intérpretes antes de regressar ao sujeito e depois de

recolher, em seu caminho, a soma de conteúdos enriquecidos a cada nova conexão. Ele é, claramente, o lado objetivado do sentido e do significado reincorporado ao sujeito em modo aprimorado.

QUANDO A CULTURA É INÚTIL O reaparecimento, a esta altura, desses dois conceitos, sujeito e

objeto, subjetivado e objetivado, permite apontar para o que é uma das

contribuições heurísticas mais sensíveis de Simmel à compreensão do processo cultural, algo nem de longe alinhavado sobre cosmicidades

como supunha Lukács. Essa contribuição não é visível em A tragédia da

cultura ou outros textos de Simmel, que eu saiba, mas é a decorrência

lógica de suas reflexões. E como uma teoria avalia-se pelo seu efeito, como vem no próprio conceito de Interpretante, nada mais pertinente

do que expô-la aqui. Há um incômodo declarado e confessado em inúmeros se não em quase todos os círculos de especialistas em política cultural — pelo menos nos mais conscientes, naqueles cujo espírito

ou Interpretante, dinâmico ou final, nunca se deixou formatar pelas palavras de ordem correntes ou pela superficialidade das “leis” da

dinâmica cultural. Esse incômodo é “clássico” já e, embora fosse per-

ceptível há tempos que se tratava de um paradoxo apenas aparente, o horizonte só se tornou totalmente claro para mim após a leitura da

Filosofia do dinheiro. Esse incômodo, próximo de uma perplexidade,

84


que ainda se manifesta em diferentes circuitos, traduz-se assim: como entender que militares de alta patente e burocratas alemães, nazistas ou simpatizantes ou apáticos, podiam sair de uma ópera

ou concerto, seguir para o campo de concentração mais próximo e acionar as alavancas de liberação do Zyklon B sobre densos grupos de pessoas aterrorizadas no interior dos “banheiros”? Ainda mais

sabendo, ou sendo possível imaginar, que muitos desses militares e gestores tinham, à época, idade suficiente para ainda sentirem de algum modo os efeitos diretos ou indiretos do Zeitgeist (Zeitin-

terpretant soa mal…) cultural da República de Weimar, no coração mesmo de uma Alemanha provavelmente detentora do maior capital cultural do momento? A exposição à cultura não é transformadora em

si mesma? Afinal, a cultura não salva? Não, a cultura não salva, não

é esse seu papel. Se tanto, a cultura mantém o estado de vida por ela

encontrado (e gerado) tal como está. A cultura é conservadora. Quase

sempre, a cultura é reacionária. Como somos, a amplíssima maioria, conservadores, o papel da cultura nos cai bem. Então, a exposição à cultura não transforma, por si só? O cartaz abaixo reproduzido, criado

décadas atrás para uma campanha de promoção de visitas aos museus,

e ainda hoje uma atração nas lojas de posters, sintetizava, com espírito, uma crença ingênua entre os arte-educadores:

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Esse poster espirituoso aproveita-se de uma ideia feita: exponha-se

à arte. O convite é pertinente: não é a arte que se expõe, não existe uma exposição de arte, são as pessoas, somos nós que nos expomos à

arte — e isso é tão mais evidente quanto nossa exposição à arte, assim como a um vírus, pode ser ocasionalmente desafiadora e perigosa para nós mesmos. Ocorre que essa exposição está longe de bastar por si

só, de provocar alguma coisa apenas por si. Em diferentes passagens de Simmel, na Tragédia e outros textos, ficam nitidamente desenha-

dos dois planos de manifestação da cultura: a cultura subjetiva, ou

melhor, subjetivada, e a cultura objetiva, melhor, objetivada. A cultura objetivada é essa cultura dura, concreta, visível na forma de salas de

teatro, cinema, ópera, nas galerias e bienais e feiras, nesses imensos

objetos que foram e ainda são as bibliotecas —, nas lojas de discos ou CDs ou DVDs, nos livros e nos eBooks, nas práticas populares sob a

forma de desfiles ou procissões, nas tapeçarias, nos castelos e igrejas consagrados como Patrimônio, por toda parte e em uma miríade de

formas. Modos da cultura objetivada porque saíram do interior da mente, de um espírito e tomaram forma concreta exterior. Dentro

de minha cabeça, ou desse complexo de neurônios a que damos o

nome de cérebro e que talvez seja igual à mente, sou sempre um gênio: falo mandarim perfeitamente quando recolhido ao interior da caixa

craniana, a ópera que desenhei na cabeça em todos seus detalhes irá revolucionar o mundo do teatro, o tratado de estética que escrevi na imaginação são para mim indiscutivelmente geniais. O problema é

extraí-los de lá e atracá-los no mundo “real”, objetivado, transformá-los em objetos, se for o caso em produtos. Mas se isso for feito, alguém depois se exporá a todos esses objetos. Essa exposição não basta para

que o sujeito assim exposto receba o rótulo de cultivado, nas palavras

de Simmel — por mais que vá a concertos de música clássica e aplauda

entusiasticamente ao lado de todos na sala nos momentos que acre-

dita serem os certos e como manda o código de apreciação da música erudita. Tudo isso não passa, de fato, quase sempre e para um número elevado de pessoas, de uma encenação, um código — um simulacro. O

caráter de cultivado surge quando essa cultura objetificada é efetiva-

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mente reincorporada ao sujeito e torna-se subjetivada, quando adere

ao Interpretante em sua tendência rumo ao Interpretante Final da

experiência estética. Mas é preciso que seja realmente, factualmente, subjetificada; é imperioso que penetre molecularmente em todos os recantos do espírito e lá permaneça. Inclusive no caso em que esse

sujeito for o próprio autor dessa ópera, dessa música, desse livro, desse filme. Só nessa condição esse autor rompe o muro da alienação em relação ao próprio trabalho e apropria-se do que ele mesmo gerou (produziu é o termo a aplicar quando em jogo estiver uma questão

de economia), sob pena de estranhar sua própria obra. Apropriar-se

da própria obra não é operação fácil para autores, entre os quais me incluo, que se comportam diante de seu work in progress como numa

performance apenas vagamente preparada com antecipação mas

efetivamente levada a cabo no processo de execução e apenas nele. É a única situação em que escrever ou pintar ou compor ou filmar justifica-se — razão pela qual só escrevo sobre o que não sei. Compre-

endo Godard quando filma sem roteiro, ou quem filma com a câmera na mão que pode ser instantaneamente deslocada de um lado para outro se uma imagem imprevista insinuar-se para o interior do campo

da lente… Provavelmente essas opções de procedimento impedem, nesses autores, a completa subjetificação de suas obras, o que significa uma incompleta apropriação daquilo que saiu deles mesmos. Sob esse

aspecto, a subjetificação de obras geradas por outros é mais operacional, mais clara, mais evidente — talvez mais necessária: essas obras estão lá, objetivamente situadas no sujeito. Fato é que Simmel permite

elucidar o problema que, felizmente, não teve de enfrentar: nazistas e

simpatizantes e cúmplices saíam de um concerto de música erudita

para mover as alavancas que soltavam o Zyklon B sobre os “inimigos” do Estado, da raça, do partido, da religião… Aqueles assassinos de fato nunca subjetivaram a cultura objetificada com que conviviam. Como

não o fez um sequestrador que manteve prisioneiro um certo comerciante durante semanas ao longo das quais lia, no esconderijo, Guerra

e Paz de Tolstói, como descobriu a polícia ao invadir o lugar: um caso histórico em São Paulo. Qual a porcentagem das pessoas por cuja pele

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escorre, sem no espírito penetrar, o filme de Godard que acabaram de

ver na sala de cinema, como acontecia nos anos a.C., antes do confinamento? Ou os que acabaram de assistir à montagem de uma tragédia grega numa igreja sconsacrata em Veneza? Alta. A cultura tem um comprimento de onda e um comportamento de comunicação análogo

ao quadro de vida de um vírus — mas com sinal trocado. No momento mais agudo de uma pandemia, um infectado pode contaminar dez ou

mais outras pessoas, o ideal é que infecte apenas um e depois menos de

um em sua tendência assintótica para o zero. A cultura, pelo contrário, deveria partir de zero e infectar sempre mais — mas boa parte da

humanidade está imunizada, está naturalmente imunizada contra a

cultura. A exposição à cultura objetificada é simples, insere-se num

cenário amplo de simulações culturais e torna-se cada vez mais fácil (voltaremos ao assunto); o processo de subjetivação, esse, é bem mais

raro — um pouco mais fácil para a cultura em seu sentido restrito, bem mais árduo no caso da arte… A etapa de subjetificação da cultura

corresponde, no esquema de produção da cultura, à etapa do Uso: de

nada adianta a existência de um livro objetificado (etapa da produção), sua colocação ao alcance físico do leitor (distribuição para uma livraria

ou biblioteca), o acesso econômico a esse livro (troca) se a fase do Uso, da apropriação efetiva do conteúdo do livro, da incorporação de seu

conteúdo pelo sujeito, de subjetificação desse conteúdo, não ocorrer. O comum é que ocorra pela metade ou menos, ou nada. Não há como espantar-se com a ida dos nazistas da sala de concerto à sala de exter-

mínio: o consumo formal, ritual, da cultura, a exposição superficial à

cultura configura, como norma, apenas o cumprimento de um código

estéril, uma estrutura vazia — um simulacro, como preferia Baudrillard. O espanto e o desânimo de tantos e tão numerosos especialistas em

política cultural diante do fato histórico do nazismo não surpreendem: quando não são apenas despreparados e pouco mais do que estranhos

à dinâmica da cultura e da arte (o exercício da ação cultural parece não requerer qualquer preparo ou especialização, afinal todo mundo

sabe o que é cultura, não?), são adeptos do materialismo prezado por

Habermas e Lukács, treinados para considerar a cultura unicamente

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na perspectiva do objeto, do coletivo e das “leis” econômico-sociais sem qualquer preocupação com o “processamento” interno da cultura

pelo sujeito, complexo demais para ser levado em conta por políticas públicas, por demais incerto e personalizado… Triste. Autenticamente trágico. Tragédia: aquilo que não tem conserto, não tem remédio.

INESPERADOS APORTES DA TECNOLOGIA PARA A FILOSOFIA E A CULTURA A relação objeto-sujeito como proposta por Simmel é particular-

mente rica para a compreensão do processo cultural e artístico e para a prática da cultura e da arte. Um caso: o Memorial do Holocausto e

Centro Babyn Yar em Kiev, Ucrânia, cujas bases foram lançadas em

2016. Na ravina de Bayn Yar, perímetro da cidade, foram massacrados, entre 29 e 30 de setembro de 1941, 33.771 judeus, número superado

apenas por duas outras carnificinas massivas: a de Odessa, também

em 1941, com mais de 50.000 mortos, e outra na Polônia com 43.000

vítimas. Naqueles dias de setembro de 41, cartazes foram espalhados pela cidade ordenando aos judeus que se dirigissem à esquina das ruas

Dehtyarivska e Melnykova de onde seguiriam a pé — sem necessidade de logística de transporte… — para seu destino final. A polícia local cola-

borou com os nazistas na operação, muitos moradores viram as colunas de escolhidos para a morte passando pelas ruas de Kiev. Certamente

os convocados suspeitavam o que os esperava: por que aceitaram a ordem, não havia realmente como escapar? Pergunta a me assombrar para sempre. A cada que vez que ela retorna, pergunto-me como teria eu reagido: me submeteria à ordem, diria para mim mesmo que não

poderia ser muito ruim, talvez um tempo na prisão, não mais do que isso — ou fugiria, fossem quais fossem as consequências? Naquela

ravina, onde ficará o Memorial, foram exterminados judeus, ciganos, prisioneiros de guerra russos e ucranianos, pacientes de hospitais psiquiátricos, dissidentes políticos e sexuais foram assassinados. Dezenas de milhares. Os números e as circunstâncias são aterradores e acabrunhantes. A esfera do inimaginável os recobre.

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Essa breve introdução é necessária não apenas como situação histó-

rica da questão a ser levantada a seguir mas também como recordação

sempre necessária do horror sempre possível. E como homenagem. Ponto.

Em 2025, quando o Memorial abrir as portas para seu trabalho

documentar, preservar, estudar o que ali aconteceu, suas causas e consequências, e expor tudo publicamente, um novo conceito de

visita estará implantado. À entrada, os visitantes da exposição serão “entrevistados” por um algoritmo na forma do preenchimento de um

questionário individual cujas respostas seriam em seguida complementadas por dados coletados pelo mesmo algoritmo junto às “mídias sociais” e onde possível. Nada difícil de fazer, dada a total exposição

das vidas privadas que as pessoas hoje resolveram fazer e aceitam. Esse algoritmo mastigaria as informações obtidas e em consequência designaria, a cada respondente, um papel específico dentro da tragédia

que o lugar recorda; conforme as respostas fornecidas, poderiam ser, enquanto permanecerem no Memorial, carrascos, colaboradores dos

opressores ou vítimas. Os visitantes não escolherão seus papéis, o

algoritmo faz isso por eles, sem margem para opção. Ou isso ou nada. Esse projeto foi concebido por Ilya Khrzhanovsky (nascido em 1975),

cineasta conhecido por filmes (ou performances, happenings teatrais filmados: os gêneros misturam-se) como 4 e Dau, este baseado na

vida do físico Lev Landau, russo como Ilya K. Dau é um film-fleuve

ainda inconcluso em 2019, a maior coprodução entre Rússia e Europa, envolvendo diversos institutos de cinema e TVs do continente europeu. Por seus filmes, Ilya K recebeu diversos prêmios em festivais e inte-

grou a lista dos 17 melhores projetos do Atelier do Festival de Cannes

de 2006; portanto, alguém já com um lugar no cenário de sua arte, independentemente das opiniões que possa suscitar: admirado, res-

peitado, criticado, odiado. Seus atores, entre profissionais e amadores, são alertados de que participarão de cenas fortes, podendo incluir sexo

real, situações de humilhação, agressões físicas e mais. A proposta

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de Ilya K, em suas próprias palavras, quer evitar “um mesmo tipo de visita [ao museu] para todos”. Observação e proposta são argutas e adequadas. Nos museus tradicionais, o imã é o objeto: o museu é projetado para o objeto. Antes que alguém o diga: é feito para as pessoas

também, “para a sociedade”. Mas, dentro do museu, o protagonismo é

do objeto. E objetivamente, a experiência objetivada de cada visitante é basicamente a experiência de todos os visitantes: todos veem a mesma coisa, todos leem as mesmas etiquetas. Alguns, que pagarem algo a mais, receberão comentários adicionais via audiofones — ouvidos

individualmente mas com conteúdo que é idêntico para todos. A cultura antiga e a política cultural antiga só conseguem lidar com e

pensar para o grupo, o coletivo, a massa. No conjunto, a experiência “é a mesma para todos”. Melhor: o Interpretante Imediato é o mesmo

para todos, no ponto de partida. Em seguida, no entanto, cada sujeito

acionará um Interpretante Dinâmico próprio — ou poderia fazê-lo. (Ilya K não recorre a esses conceitos, por certo.) Ilya K está correto em sua observação, em termos gerais, mesmo ignorando a dinâmica

pessoal da interpretação. No Memorial de Babyn Yar, quando aberto,

o algoritmo, conforme sua análise de todos e cada um dos visitantes, irá dirigi-los pelos labirintos da exposição. E nesse cenário passarão

por experiências virtuais por meio de óculos de realidade virtual con-

forme os papéis que lhe foram designados pelo algoritmo: vítimas, colaboradores dos nazistas, soldados nazistas, prisioneiros de guerra, encarregados de proceder à queima dos corpos, tantas opções quanto

permitidas pelo sistema de computação instalado. Tecnologias do tipo

“deep fake”, que permitem a colocação de outros rostos em corpos aos quais não pertencem de modo a serem apresentados como filmados em situações delicadas de modo comprometedor — ou a aposição de palavras nos lábios de alguém que nunca as disse nem diria, e sem que os observadores percebam o truque — fariam com que os visitantes do

Memorial vejam a si mesmos na situação de vítimas. Ou de carrascos. Ou de cúmplices. A apresentação do projeto observa que cada visita ao

Memorial se revelaria “uma jornada desafiadora e por vezes chocante, com opções éticas no centro da experiência”. Talvez como algo ainda

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mais perturbador, se houver algo mais perturbador do que ver seu

próprio rosto no corpo de um torturador caso a representação que essa pessoa possa fazer de si mesma nunca incluísse conscientemente essa

imagem… Custo inicial do projeto: US$ 100 milhões, talvez suficientes para tudo isso.

As questões éticas subjacentes ao projeto são óbvias e muitas,

algumas já aparecem sob a forma de crítica à “gameficação do horror”. Esse aspecto à parte, fica evidente que o projeto de Ilya K coloca em

cena, sem dizê-lo, a relação entre sujeito e objeto de um modo não praticado por um museu “normal”. Qual a questão? Há uma barreira

entre o subjetivo e o objetivo (melhor: o objetificado) a ser superada, se é que o sujeito pretende alcançar a plenitude possível de seu desen-

volvimento — essa palavra é péssima, tem má fama e está corroída: melhor trocá-la por algo como desabrochamento, florescimento, o que

for. O sujeito tem de defrontar-se com a cultura objetificada — por exemplo, um objeto de museu, uma inteira exposição — e encontrar um modo de incorporá-la, de apossar-se dela, de modo a realmente

torná-la sua, torná-la uma experiência pessoal na qual ele mergulha por inteiro. Como fazê-lo? Colocando-se no lugar do objeto.

No passado recente, grupos teatrais tiveram plena consciência

dessa relação entre objetos e sujeitos embora não fossem esses os

termos e conceitos por eles operados.26 Os exemplos não são tantos, 26

Um homem de teatro, no entanto, teve consciência explícita dessa relação: Antonin Artaud. Sem formação filosófica específica, Artaud ergueu-se contra uma cultura ocidental que dissociava o sujeito do objeto — e o dizia explicitamente. Sem conhecer Simmel, que tampouco o cita, nos anos 20 do século de mesmo número, Artaud associava-se a uma corrente teatral que recusou a ascendência do teatro logocêntrico, baseado na palavra para abrir um espaço para o não verbal em cena. Por essa via Artaud procurou reunir de novo o sentir e a experiência livres do império da palavra, isto é, da Razão — do espírito. Em seu O teatro e seu duplo, que traduzi para o português, Artaud menciona explicitamente um espírito que “passa a vida procurando

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mas significativos: o grupo Grotowski e seu Teatro Laboratório (pelo menos o segundo Grotowski, aquele que abandonou o palco convencional dos teatros), o Living Theatre, hoje o Fura del Baus, ainda que todos, de um modo ou outro, propunham a íntima comunhão entre

objeto27 (os atores) e os sujeitos (os espectadores, transformados em “falsos espectadores”, em “quase participantes”), uma mescla de objetos e sujeitos. Um arremedo de fusão, por certo, dado que, mesmo se

minimamente, os “verdadeiros” atores (ou os atores responsáveis por

dar início à cena) ainda guardavam a iniciativa da convocação para o evento e dispunham de um roteiro mínimo capaz de permitir-lhes

evoluir pelos meandros da nova relação; mesmo assim, uma mistura de papéis (por vezes, uma abolição de papéis) capaz em todo caso de

prover uma experiência diversa e mais intensa. Os legados de Grotowski e do Living Theatre dão a impressão de não terem conquistado adeptos: o teatro a que se entregavam é cruel demais, no sentido em

que Artaud compreendia a crueldade… Nenhuma dessas experiências era “de massa”: Grotowski, em seu momento mais radical, admitia

apenas 15 ou 20 “espectadores” ao lado dos “atores”, que deveriam transformar-se em espectadores enquanto estes viravam atores. Ilya K está propondo uma versão dessas propostas teatrais agora adaptada por si mesmo, procurando não apenas as palavras mas o estado mental, palpável ou sentido, que corresponde a ele mesmo.” Mais do que isso, Artaud queria encontrar um modo de vincular essa experiência, esse espírito e essa alma ao corpo, desse modo vitalizando-o e com ele vitalizando o espírito e a alma. E isso somente seria possível com a incorporação do sujeito ao objeto e a introjeção deste naquele. Arte e filosofia, mesmo se por vias separadas, encontram-se e dão as mãos — com a diferença que a arte aterriza aquilo com que a filosofia apenas sonha. Ligando o sujeito ao objeto, Artaud queria conectar o teatro com a vida e, no limite, fazer da vida um teatro e, do teatro, a vida. Metafísico demais para a época. Seu Teatro do Absurdo era uma utopia — que Grotowski tratou de adaptar para o possível. 27

Os atores são ao mesmo tempo sujeitos do objeto que eles mesmos representam e atuam e para eles, os espectadores, embora não o sejam, apresentam-se como seus objetos…

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para os tempos da massificação galopante e descerebrante quando o

que mais se aproxima de uma cena grotowskiana é o concerto de rock

em estádios e arenas com os corpos em êxtase polissensual — música, cheiro, pele. E a questão filosófica adjacente é clara: se eu vir a mim

mesmo de fora, como um objeto, no papel de um carrasco, sentirei algo mais que não posso sentir assistindo à Lista de Schindler ou qualquer dos grandes filmes tchecos e poloneses do passado sobre o mesmo tema. Se eu vir a mim mesmo, com meu rosto, em meu papel assumido de vítima, nas mãos de um carrasco, saberei o que foi aquilo. Se eu

entrar com meu rosto no corpo de um ator que estará representando

essa vítima dentro de um “banheiro de desinfecção” que agora sei que libera um gás que me matará, sentirei outra coisa. Terei ultrapassado

a barreira quase sempre intransponível que me separa, como sujeito, do objeto, da cultura objetificada no museu…

Ilya K tampouco manipula conceitos como cultura objetivada e

subjetivada; mas a possível implementação de seu projeto no Memo-

rial de Babyn Yar será uma nova colocação em destaque das relações

entre objeto e sujeito, entre cultura objetivada e subjetivada, entre alheamento em relação ao que diz respeito ao objeto e incorporação

plena da experiência estética na subjetividade, que se apresenta assim na qualidade de experiência vital-estética, estético-existencial. Sua intenção era “apenas” evitar que as pessoas tenham, todas, a mesma experiência no interior de um museu — sem que o museu tenha qual-

quer informação ou controle sobre o que ali de fato experimentaram. Seu ponto de partida, porém, tem um forte potencial heurístico para

a cultura e a política cultural. A experiência do Memorial Babyn Yar, caso se realize, irá propor-se como exemplo de como um algoritmo e um game (mesmo no formato de role playing game ao vivo e não na

tela do computador) podem resolver um velho problema de filosofia, provavelmente o problema filosófico por excelência.

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A CULTURA INIMIGA DA CULTURA E com isso chega-se, nos limites deste texto, à tragédia da cultura

segundo Georg Simmel. Abertura:

À vida vibrante, incessante, que não conhece fronteiras, da alma de algum modo criadora, opõe-se seu produto fixo, idealmente definitivo, e isso com o inquietante efeito retroativo de imobilizar aquela vivacidade e, mais ainda, petrificá-la; com frequência é como se a mobilidade produtora da alma morresse em seu próprio produto”. 28

Da reflexão de Simmel sobre a natureza da cultura emerge, organi-

zada ao redor da síntese sujeito-objeto e por ela inseminada, um paradoxo e, mais que isso, uma tragédia derivada do fato de que a lógica

interna de desenvolvimento de cada um dos polos não coincide com a

lógica de desenvolvimento do outro. Especificamente, a lógica do sujeito não é a mesma lógica do objeto, de seu objeto; se é fato que a síntese entre ambas colabora para a efetivação da caminhada do espírito a

partir de si mesmo e rumo a si mesmo, a disparidade entre as duas é a

primeira força a responsabilizar-se pelo fracasso do processo. Na ver-

dade, essa tragédia é dupla. Primeira, aquilo que o sujeito cria e em seguida objetifica — exterioriza, por dizê-lo de modo rasteiro — retorna de modo estranho ou indiferente para o próprio sujeito e apresenta-se como inerte ou morta. À vida vibrante da alma, que não conhece fron-

teiras, opõe-se a inércia congelada do produto, que o próprio sujeito não mais reconhece como oriundo de seu próprio interior. O sujeito é

estranho ao objeto criado que se coloca à sua frente. Para esse sujeito, a criação do objeto interessava, o objeto não mais. A reflexão assim orientada, à margem de Simmel — naquele momento pouco ou nada

conhecido —, levou, a partir dos anos 70, de modo particular, à propo-

sição “o que interessa é o processo, não a obra”. Como a performance é do sujeito, é o sujeito, o que importa é o sujeito — e o processo — não o 28

A tragédia da cultura, p. 15

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que dele resulta. O exato oposto da crença de Platão entra em cena.

Platão: a obra interessa, não o autor; a obra seria admitida em sua cidade, o autor faria melhor se passasse ao largo. Agora, o que interessa está no interior do sujeito, não na obra. Esse é o motivo pelo qual não é nada incomum — pelo menos nos criadores que não se deixam tragar pelo

reflexo abismal de si mesmos como na pior versão de Narciso — que o autor se desinteresse de sua obra imediatamente após nela colocar o

ponto final ou, como na melhor expressão de Paul Valéry, imediatamente

após abandonar sua obra: uma obra não se conclui, nem se acaba: abandona-se. Qualquer obra, poema, romance, filme, música — e é relevante observar como a máquina do código foi muito forte para os

compositores “clássicos” que, não sabendo como abandonar suas obras, recorriam ao fecho clássico que se ouve em ampla maioria dos concertos na forma daqueles três ou quatro compassos finais, sempre iguais a si

mesmos qualquer que seja o compositor… Um mestre em abandonar seus filmes é Godard, o que não raramente deixa o espectador atônito em sua cadeira: “como, é isso? Acabou?”. O espectador não quer que a

arte seja como a vida: a vida, que sempre esteve e está por um fio, cos-

tuma acabar abruptamente, sem desfecho, sem desenredo, sem epílogo. Como num filme de Godard: acaba, acabou. E uma vez abandonada, a

obra não interessa a seu autor, que dela já tirou o que havia para tirar:

algo mais ele irá buscar na próxima obra, se houver. A obra, para o autor, uma vez abandonada está fria, congelada e a rigor morta. Como para mim. Um modo de descrevê-lo cristalizou-se, nítido, para mim: a obra é a sobra. A obra é o que sobrou da performance, o que sobrou do processo de sua criação, que é forçosamente maior do que ela. A obra é a

sobra do processo que levou à sua produção. Uma sobra necessariamente menor do que o gesto que levou a sua existência. Não há como a obra

revelar-se maior que seu criador. Para Platão, pelo contrário, sim, a obra

surge como maior que o autor. Para o autor, por vezes pode ser também:

não é de todo incomum que, por acaso relendo um texto que escreveu, surpreenda-se o autor com o que ali escreveu: “como escrevi isso, como

fui capaz de escrever isso que eu não sabia que sabia?” A surpresa pode

ser positiva ou negativa. De um modo ou de outro, por mais que consi-

96


dere o que ali escreveu e tente refletir sobre o processo daquela criação,

a obra nada lhe dirá a respeito, nada mais lhe dirá a respeito: para ele, a obra emudeceu. Ele soube aquilo, no passado — se soube; não mais

sabe. E se a performance não foi suficiente para grudar aquilo em seu espírito, a obra tampouco poderá fazê-lo. A obra é a sobra. Se o autor

estiver insatisfeito com sua obra, se não achou na obra recém-terminada aquilo que buscava, embora nunca tenha sabido o que procurava, irá

refazer a obra. Não tal qual, ele não é um mero copista de si mesmo. Irá

refazer outra vez o caminho da obra: para adotar a linguagem de Simmel, irá refazer o caminho de si para si mesmo por meio de um novo espírito objetificado a ver se, ao final do trajeto, atingirá a plenitude que não

sentiu alcançar na vez anterior e que no fundo sabe ser inalcançável e para sempre destinada a manter-se fora de alcance… Mas ele simples-

mente tem de refazer o trajeto assim como continuamos a voltar (em

todo caso, algumas pessoas continuam a voltar) a uma mesma cidade, a um mesmo lugar para ver se ali reencontramos alguma coisa ali antes

encontrada e que não sabemos bem o que foi da primeira vez, razão pela qual queremos ver se descobrimos na segunda ou na terceira ou

na quarta vez. Repetidamente, indeterminadamente: retornar a Veneza, retornar a Alexandria a viver uma coisa que não viveram da primeira

vez porque na primeira vez essa coisa foi vivida pelo autor da obra que

leram e por meio da qual, na qual pela primeira vez viveram aquilo imaginariamente. Quase ninguém sabe que a obra é uma sobra e que

aquilo que acabaram de ler ou ouvir ou assistir é o que sobrou de algo imensamente maior e tão maior que jamais poderia caber na pequenez

da obra. Esse maior é o Interpretante Final. Platão sofria de hipermetropia, seus olhos não se focavam na obra, focavam-se no que estava por trás da obra, focavam-se atrás da retina do olho — significando que

focavam em sua própria mente: a ideia de que o autor da obra tem pouco

da obra feita não estava de todo equivocada; nem correta. Platão preferiu

ficar com a casca e jogou fora o âmago da obra, seu autor. O autor, então, tem de refazer o caminho. Não exatamente o mesmo caminho mas um

análogo plano de jornada. E irá repetir o processo da mesma obra, alterando alguns detalhes não por um desejo de mudar mas simples-

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mente porque, não tendo prestado atenção aos detalhes da viagem

inicial (porque não lhe interessava prestar atenção a esses detalhes),

precisa encontrar outros que de algum modo, como prefere dizer Simmel, sabe que servirão para seu périplo. E refará seu próprio caminho. Fellini

fez e refez sempre o mesmo filme depois de I vitelloni, Os boas-vidas no Brasil (vitelloni é muito mais que os boas-vidas: vitelloni são os grandes

novilhos, os grandes vitelos, os novilhos que ainda não têm um ano, explica Houaiss: isto é, as crianças crescidas, as crianças que nunca

cresceram — assim como Fellini foi uma grande criança e nunca o escondeu. Todos seus filmes sucessivos de algum modo são refações de

I vitelloni, os mesmos personagens, praticamente as mesmas cenas e sequências, a mesma música, a mesma criança a pontuar a narrativa

dos adultos ou das crianças crescidas, a mesma alegria, a mesma tristeza, os mesmos amores, a mesma entusiasmante melancolia… Os grandes

criadores recriam sempre as mesmas criações, músicos, cineastas, escritores, artistas visuais: não estão no negócio de vender novidades a um público que foi viciado em novidades, não precisam inovar: precisam cavar sempre no mesmo lugar. Como escrevi acima, há um pouco de

egoísmo na asserção de que a obra revela-se em seguida congelada e

petrificada. Para o autor está petrificada, para quem chega depois e encontra aquele produto à frente, aquela obra, ela pode ser um vivo

ponto de partida para um caminho próprio desse novo observador em direção a ele mesmo passando pela plataforma objetivada que é aquela

obra embora ela própria de nada mais sirva para quem a criou e esteja, portanto, petrificada. Mas para o autor, sim: uma tragédia. Do ponto de vista adotado por Simmel, porém, que é o ponto de vista do sujeito, o

raciocínio está perfeito: como a cultura é o caminho de si rumo a si

mesmo passando por aquilo que está fora de si, aquilo que o sujeito deliberadamente ou intuitivamente ou mesmo sem o desejar buscava alcançar, é algo ao final estranho a ele, indiferente a ele, alheio a ele. E

não existe dialética capaz de remendar os buracos dessa estrada gasta

de tanto uso, capaz de espalhar uma manta asfáltica nova e lisa por cima da qual o espírito possa voltar a deslocar-se sob o efeito da força que lhe foi aplicada por qualquer estímulo exterior.

98


A segunda tragédia, ou a segunda versão da mesma tragédia,29 é

observada menos do ponto de vista do sujeito e mais na perspectiva do objeto. Essa segunda tragédia é a do “destino fatal dos elementos

culturais”: 30 o fato de possuírem os objetos uma lógica própria de

desenvolvimento. Como anotei acima, ou deixei implícito, o texto de

Simmel é barroco, arrevesado, parece redundante (mas não rastei-

ramente repetitivo); trata-se de um repetição com um double down, um reforço e adensamento do que foi antes dito e apostado só que

agora com novas e geralmente mais ricas ou decoradas fichas); e

assim procedendo, ele deixa muita coisa em seu modo implícito e, mais importante, não explicado: talvez porque não considere relevante essa explicação. E assim é que os objetos culturais são por Simmel

apresentados como detentores de uma lógica própria que não é, diz

ele, uma lógica conceitual ou natural mas uma simples lógica de seu

desenvolvimento na qualidade de obras culturais humanas. Certamente essa lógica não é natural porque esses objetos culturais não

são naturais e sim fabricados, concebidos; mas não está claro que essa

lógica não seja conceitual; em todo caso, esse é outro ponto ficará para mais tarde. Como consequência de terem os objetos culturais uma

lógica própria de desenvolvimento, segue Simmel, eles se desviam do rumo que deveriam assumir para o desenvolvimento pessoal das almas

humanas. Essa lógica própria é na verdade uma lógica do sistema em que se inserem os objetos culturais e, portanto, de algum modo, é uma lógica conceitual; mas isso igualmente fica para depois.

29

É pertinente aqui adotar essa terminologia e esse procedimento uma vez que Simmel ele mesmo toma e retoma suas proposições para variá-las em algo, diferenciando as subsequentes das primeiras sem perder estas de vista: como na música, quando um tema apresentado é em seguida desenvolvido em suas variações — como no jazz e na música erudita.

30

Não estou procurando, na tradução que abre este volume, o correspondente preciso da ideia que quero destacar: aqui coloco uma versão menos ou mais livre do que anotei anteriormente como significativo e me ficou na memória.

99


AFOGANDO EM NÚMEROS — MESMO NOS BEM-INTENCIONADOS Continuando na trilha de Simmel: as forças que ao final revelam-se

negativas em sua orientação contra o sujeito, em seu apresentar-se como obstáculos não raro insuperáveis na trajetória do espírito rumo a si mesmo, surgem exatamente das profundezas de seu ser; e com

a destruição ou cancelamento do objetivo desse ser — alcançar a

plenitude — e, portanto, de todo esse ser, consuma-se um destino que estava inscrito nele mesmo. É como dizer que a morte está inscrita na vida, assim como se diz que o capitalismo contém em si o germe que o

destruirá. Nenhuma das duas proposições é particularmente perspicaz

ou inovadora. Mas a pessoas mostram-se pouco inclinadas a admitir a validade da primeira embora muitas estejam prontas a acreditar na

segunda… Esse é o conceito central da reflexão de Simmel: cultura é aquilo que o espírito cria como um “objeto objetivado” autônomo (a obra

de arte, as obras de cultura) por meio do qual o sujeito desenvolve-se em

seu caminho de si mesmo para si mesmo. Mas esse desenvolvimento fica na dependência desses espíritos ou Interpretantes objetivados que

“consomem cada vez mais forças do sujeito”, que arrastam cada vez mais esse sujeito para o caminho deles mesmos, espíritos objetivados, sem

com isso levar o sujeito ao seu ponto culminante, ao auge de si mesmo, ao ápice do potencial em si mesmo. Em outras palavras, o desenvolvi-

mento do sujeito não pode percorrer o caminho dos objetos; se o fizer, entrará por um beco sem saída cujo resultado é o esvaziamento daquilo que em si existe de mais íntimo. De fato, a “lógica própria dos “objetos objetivados” faz com que esses objetos se reproduzam indefinidamente

porque seus produtores são em número ilimitado e “contribuem” com uma provisão de conteúdos31 culturais objetivados sem levar em conta 31

Simmel não tinha como prever que esse termo iria tornar-se moeda corrente nos tempos do digital e da internet a ponto de tornar-se fora de moda falar em produtores de culturas: agora a ordem é dizer “fornecedores de conteúdos” — assim como se fornece papel higiênico e sabão em pó a quem quiser comprá-los… No fundo, a nova

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os demais “contribuintes” de conteúdos culturais e, pior, sem levar em conta os interesses do sujeito desejoso de percorrer seu caminho rumo

à plenitude. Dito de outro modo, os conteúdos aumentam sem regras e sem limites, sem real objetivo maior: se não cresciam exponencialmente à

época de Simmel — esse não era um termo comum em seu momento —, fazem-no agora. Simmel é condescendente num ponto: observa que em

distintas épocas culturais esses objetos encontravam pela frente uma

barreira qualitativa “definida desde o interior” sem nunca encontrar, porém, uma barreira quantitativa e, assim, encontram-se livres para

propagar-se indefinidamente, para encadear livro com livro, obra de arte com obra de arte, filme com filme. A expressão de Simmel para descrever essa situação é delicada e academicamente erudita: a forma da

objetividade como tal tem uma capacidade ilimitada para multiplicar-se. Dito vulgarmente: visite uma feira de arte e comprove que as obras de arte não encontram limite algum para reproduzirem-se indefinidamente e colocarem-se lado a lado sem critério algum. Onde se encontra a gene-

rosidade de Simmel: na crença de que nas épocas culturais anteriores havia uma fronteira qualitativa que os fornecedores de conteúdo tinham

de enfrentar mas não uma fronteira quantitativa. Na verdade, a única

fronteira colocada diante dos produtores de conteúdo cultural sempre

foi, por muito tempo, a quantitativa: a escassez de meios de produção

definia a escassez de objetos com qualidade (e dos objetos, ponto) e, em princípio, apenas objetos com qualidade “passavam”. Qualidade para quem, conforme qual critério?, é a pergunta comum. O material

para a confecção dos vitrais de Notre Dame, hoje destruída e sem data para renascer, ao contrário do que ocorreu com o Teatro della Fenice

em Veneza que, fiel a seu nome — ou sob o império determinista de

seu nome — renasceu das cinzas três vezes (nunca se deve menospre-

zar o poder de convocação de um nome), retomando: o material para confecção dos vitrais de Notre Dame era escasso e caro e ainda mais escassas e caras eram as cores usadas para fazer deles aquilo que são: um

expressão é pertinente: os conteúdos nem sempre são culturais mesmo quando se pretendem culturais — são conteúdos, ponto.

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deslumbramento. E material e cores tinham de ser bem empregados — e por sorte quem os encomendava tinha o discernimento requerido para

determinar o modo de empregá-los. Era uma época de escassez cultural, que principiou a tomar o rumo da época da abundância cultural com a invenção da imprensa de tipos móveis, depois com a invenção da

fotografia e sua reprodutibilidade crônica (hoje, aguda) e do cinema e em seguida do vídeo e agora, nec plus ultra, do digital que, multiplicando-se

indefinidamente (de modo que nunca mais será possível dizer nec plus

ultra), coloca-se quantitativamente ao alcance de quem quiser, de todos e de qualquer um — e a qualidade desaparece. A quantidade determina a qualidade — no sentido em que limita a qualidade. No mínimo, digamos

que há uma relação íntima entre a qualidade e a quantidade; mas se for necessário identificar qual delas é, afinal, determinante, hoje, não há dúvida de que é a quantidade.

E essa quantidade afoga o sujeito: drowning by numbers, outra vez a

proposta poética de Peter Greenaway é pertinente. Há uma passagem de Simmel particularmente eloquente e feliz: a expansão do espírito objetificado, que cresce de modo indescritível e sem obstáculos, apresenta exigências ao sujeito, nele desperta veleidades, golpeia-o com a certeza

de sua própria insuficiência (como se, na terminologia de hoje, o sujeito não tivesse memória randômica suficiente para tratar esses conteúdos multiplicados em tempo real à medida que com eles se defronta). Insu-

ficiência e desamparo, é o que sente diante da multidão de conteúdos o sujeito contemporâneo, enredado em uma malha de conexões cujo

caráter maior ele desconhece e à qual não consegue subtrair-se. E isso,

continua Simmel, faz surgir a situação problemática do homem moderno: “[…] a sensação de estar cercado por uma infinidade de elementos culturais que não lhe são insignificantes, mas que tampouco lhe são significativos no sentido mais profundo; elementos que, pela quantidade massiva, têm algo de avassalador: o homem moderno não os pode assimilar todos mas tampouco pode simplesmente rejeitá-los pois potencialmente pertencem à esfera de seu desenvolvimento cultural, por assim dizer.”

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Situação aflitiva e constrangedora: nada dessa montanha de ima-

gens, palavras, sons, carece de significados para mim mas nada dessa

massa me é plenamente significativo — talvez, nada significativo.32 Não 32

Simmel menciona a questão do valor embora, talvez de modo acertado e sobretudo prudente, nela não se detenha de modo explícito: não é uma questão que se resolva. E não se defrontou com outra questão bem difícil, bicéfala, que somente cem anos depois, no século 21, subiu à tona: a diversidade cultural e o reenfoque da cultura como correia de transmissão da economia. Da segunda cabeça — a cultura atrelada à economia —, da segunda questão (e, óbvio, ambas cabeças saem do mesmo pescoço e se misturam) tratei em nota anterior. A respeito da diversidade, a cautela indica que seria melhor silenciar… O fato é que ambas cabeças são responsáveis pelo aumento exponencial de conteúdos que assediam o sujeito por todos os lados sem lhe dar chance de orientar-se nesse oceano indistinto. Ambas cabeças da segunda questão respondem pela proliferação de galhos acessórios da árvore central da cultura, galhos demasiado distantes daquilo que nela é vital, demasiado débeis e pequenos para oferecer um mínimo de sombra ou algum fruto apetitoso ou substancial, mas de algum modo fazendo parte da mesma árvore. As alegadas estratégias de realçar o recurso à cultura como alavanca do desenvolvimento, de pacificação dos espíritos, ou como instrumento do soft power, antes impedem de enxergar a árvore e apreender sua natureza do que o contrário. Não são apenas ramos suplementares, parasitas que, nascendo ou não no interior da árvore, sugam-lhe a seiva e a levam à morte. De outro lado, estão as cenas da diversidade com suas reivindicações ao direito à expressão e não apenas isso mas, nos próprios termos de Simmel, com sua exigência de verem-se reconhecidas como valor, como mais um valor. O “homem moderno”, diz Simmel, não pode assimilar tudo isso, tampouco pode rejeitá-lo pois de algum modo participam de sua esfera cultural. Esse viés tem por enquanto resultado em mais destruição do que efetiva criação: os cânones têm sido abatidos um a um, os cânones da literatura, das artes visuais, da música… Mas em seu lugar nada surgiu, pelo menos por enquanto — e como um cânone leva dezenas de anos, séculos, para propor-se como tal, não é difícil prever o quadro… A sensação de culpa animada pela ideia do politicamente correto contribui para os cânones retirarem-se menos ou mais tranquilamente do cenário da cultura comum. E é ela que se perde, numa Terra sempre mais habitada. O valor não é mais um valor, o filtro da qualidade não mais se coloca nem é admitido, e a quantidade

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posso assimilar tudo isso mas tudo isso pertence de algum modo (como

Simmel repete sempre) a minha esfera de desenvolvimento cultural próprio. Ou será que já perdi o sentido do que seja um desenvolvimento

cultural próprio e só me resta o desenvolvimento cultural que não é mais coletivo — como defendem as ideologias coletivistas — mas, sim, um

desenvolvimento próprio do rebanho,33 da manada? Só me resta pensar

como a massa? Na verdade só me resta impensar como a massa, nesses espetáculos deprimentes de reações abjetas a espalhar-se como vírus de tremenda pandemia nestes tempos de populismo boçal sem fronteiras? E Simmel remata, cada vez mais impactante, ferino e brilhante à

medida em que se encaminha para o final de seu concerto barroco: antes, alguém defendia o nihil habentes, omnia possidentes, agora todos omnia habentes, nihil possidentes. Nunca se tratou de mero jogo de

palavras entre habentes e possidentes: ter algo é uma coisa, simples até

procura afirmar-se como princípio único. O sujeito defronta-se com a inevitabilidade de juntar-se ao rebanho ou refugiar-se em sua construção própria e única, rumo a sua plenitude sem pontes nítidas com as outras ao redor, se existentes. Nesse momento, o caminho do espírito subjetivo passando pelo espírito objetivado resultante do “trabalho histórico da espécie” não mais existe, foi destruído; se o espírito subjetivo for capaz de alcançar sua plenitude, parece que só o fará ao modo dos ermitões cristãos ou monges budistas — em pleno deserto ou em algum cume do Nepal. Nesse instante, a própria noção de cultura, e ela mesma como fenômeno, terá desaparecido. Em seu lugar existirá apenas a publicidade, a palavra de ordem, a religião, a ideologia. Nada disso é cultura. Não se trata de forçadamente podar essa ramagem que cresce excessiva sem considerar o que existe ao lado, mas de conhecer a complexidade do novo cenário, entender suas consequências e buscar um modo de usá-la — se houver. A arte já está assestada há algum tempo no rumo a seu encerramento; agora a cultura, que parecia bem mais sólida e resistente, começa a tomar o mesmo caminho… 33

Rebanho: termo que, com a pandemia de 2020 retornou à cena sem qualquer constrangimento na expressão “imunidade de rebanho”. Há outros aspectos nos quais a expressão é igualmente válida…

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sob certas condições; possuir algo, bem diferente — diferente e cada vez mais difícil, tendendo ao impossível, nesse quadro de uma lógica própria

dos objetos em reprodução sem controle e sem barreiras num espetáculo sempre mais trágico porque a lógica da humanidade tornou-se a lógica da multiplicação dos objetos e produtos sem finalidade e sem

razão: se a massa desses objetos não crescer sem parar e se a procura por eles cessar, a humanidade — na presente lógica de organização

política e econômica da sociedade (como mostra a atual pandemia de

2020) — não tem como sobreviver. Mais uma vez, a tempestade perfeita. Tenho o direito cultural a ver um filme de Godard,34 tenho o ingresso

para este filme de Godard, fui admitido na sala e vi o filme; mas não o possuo porque ele escorreu por cima do saco de pipoca que seguro

nas mãos e foi ao chão ou permanece grudado em minhas calças. Até

tenho o DVD desse filme mas não possuo nem a chave conceitual para abri-lo e permaneço distante de seu conteúdo, cujo sentido desconheço

e que permanece sem qualquer significação, significado ou sentido para mim. Mesmo porque nunca soube da importância de Godard e talvez nem da existência de Godard, uma vez que as telas de cinema

estão ocupadas pela 25a versão dos Velozes e Furiosos. A lei da economia política é imperativa: a moeda fraca expulsa a forte do mercado.

CULTURA DO EXCESSO, CULTURA DO NADA E Simmel refraseia, cada vez mais claro à medida que se aproxima

a estação terminal — provisória — de sua reflexão:

Como a cultura não possui uma unidade de forma específica e unitária para seus conteúdos, cada criador coloca seu produto ao lado do produto de outros sujeitos num espaço ilimitado a fazer com que a massa de coisas assim criadas cresça sem parar, cada uma com um certo direito a ter um valor cultural e fazendo ecoar em nós o desejo que ela tem de ser como tal considerada.

34

O que destaca a inanidade dos direitos culturais…

105


E essa é a tragédia contemporânea da cultura, que Simmel não

poderia ter conhecido em sua plenitude em 1911 mas que já pressentia

em 1911. Anos férteis e sugestivos esses entre 1905, publicação da Teoria da Relatividade Restrita de Einstein, e 1915, quando surge uma das mais

marcantes obras da história da arte, O Quadrado Negro de Malevich, talvez a versão estética da teoria de Einstein; ao lado desses dois fenô-

menos há ainda a criação (mas não a exibição pública, que tardou nove

anos por medo à reação possível) das Demoiselles d’Avignon de Picasso

em 1907 e, em 1909, a publicação da notável novela de antecipação A máquina parou, de E.M. Forster. Certamente havia no ar um je ne sais quoi,35 essa expressão do século 17 que fez as delícias de mais de

uma mente iluminista. Simmel escapou de ver-se às voltas com o que

acontece hoje, dias de internet, facebook, whatsapp, instagram e twitter (todos com inicial minúscula, como lhes convém dada a parca dimensão moral de cada um), quando todos e cada um instalam-se não apenas na pretensão de ver sua fala, sua opinião ou “obra”, ser tomada como forma

de direito de expressão acoplado com a exigência de vê-la entendida e aceita como valor cultural — como de fato assim exigem — em nome

da correção política e social de diversos rótulos. A poucas linhas do fim de sua reflexão, Simmel fica sempre mais claro e contundente: diante

dessa multiplicidade de contatos, tentações, deformações, o espírito

subjetivo não sabe como manter intacta sua forma unitária própria; o espírito objetificado, de fato um espírito verdadeiramente sem fron-

teiras, prepondera sobre o espírito subjetivo de modo implacável caso

o sujeito não esteja adequadamente implantado em si mesmo e no processo cultural de caminhada rumo a si mesmo. Implacável é modo

de dizer: aquele espírito prevalece de modo indiferente, muitas vezes

nem percebe que o faz, nem leva em conta a cultura subjetivada ao lado: apenas passa por cima. A vida subjetiva fica soterrada por milhares de insignificâncias das quais “não conseguimos nos libertar” — e isso em

1911 — nesse fluxo contínuo de um estado de sempre “estar-estimulado” que se tornou próprio do homem de cultura. Simmel neste ponto deveria 35

Não sei bem o quê…


saber melhor: próprio não só do homem de cultura mas do homem, do

ser humano, ponto final. Refletindo sobre a vida nas grandes cidades, na metrópole, ele certamente leu Baudelaire e sua denúncia do spleen que o criador das Flores do mal imortalizou em sua reflexão sobre a

vida moderna: Le spleen de Paris, um livro proto-existencialista sobre

o processo de excitação, de estiramento dos nervos e dos neurônios até seu ponto máximo acarretando uma tensão excessiva (um stress)

a colocar o sujeito em estado de ansiedade profunda, limítrofe daquilo

que décadas depois viria a ser conhecido como o mal do século vinte (e do 21): a depressão, inspiradora das beautés noires de Baudelaire. Nesta

tela expressiva de um artista que permaneceu em segundo plano, Carlos Schwabe, a anotação de Baudelaire poderia considerar-se razoavelmente

traduzida para os signos visuais (adequadamente traduzida se for pos-

sível esquecer que 1907 é, outra vez, o ano das Demoiselles d’Avignon do

qual Schwabe estava a anos-luz de distância — mas quase ninguém vira ainda a tela de Picasso):

Carlos Schwabe, Spleen et idéal, 1907.

Algum controlador da moral pública, algum ditador de plantão — e

a ditadura como figura permanente da sociedade humana, como a

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regra que ela é, sempre tem um ditador de plantão — mandaria vetar essa tela, talvez queimá-la e, junto, seu autor: é mais do que erótica não apenas na insinuação do que acontece sob a espuma — a metáfora

da espuma, outra vez — como na exposição do êxtase sexual que se

apossa do ser alado e ao qual ele se entrega impotente e consciente. Schwabe, pintor simbolista e ilustrador das Flores do mal, traduz

iconograficamente esse estado de superestimulação do homem por

todos os lados e sob todos os aspectos que só não é de todo moderno, na obra de Schwabe, por ter essas asas imaculadamente brancas: a estimulação sensual que parece constante e infinita, as ondas de um mar agitado quebrando sobre a dupla a agulhar cada nervo de suas peles, de suas mentes, de sua imaginação. A cidade grande de Baudelaire, como ele mesmo descreveu, é suja e barulhenta e o spleen é dela

integrante; como bom intelectual moderno, Baudelaire abominava sua

modernidade, o Zeitgeist de sua modernidade a incluir esse spleen na aparência arrebatador e no entanto aniquilador.

O espírito subjetivo, segue Simmel, não pode abarcar essa incitação

generalizada e global,36 causa de “sofrimentos culturais específicos” que

são outros tantos indícios do espírito objetivado. Sofrimentos culturais, Simmel poderia ter acrescentado, que o são apenas para o homem de cultura, aquele ciente do processo que o submete: a imensidão quan-

titativa do homem sem qualidades de Musil, do Everybody de Joyce, passaria despercebida por tudo isso e, de fato, a tudo isso se entrega alegremente… Mas Simmel estava preocupado com o mecanismo do

relacionamento do espírito subjetivo rumo a sua plenitude, não em desenhar uma crítica do homem de massa que ele ainda mal conhecia

mas cujo bafo já sentia na nuca. Essa superexcitação sensorial e inte-

lectual do homem moderno (digo intelectual com alguma largueza de generosidade…) resulta da emancipação do espírito objetivado ao seguir

sua lógica própria ao mesmo tempo que impede o espírito subjetivo (do 36

No sentido de Simmel, global quer dizer “que abarca o homem por inteiro, em toda sua realidade física e existencial, sob todos os aspectos”.

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espírito subjetivo fraco, devo acrescentar) de dela livrar-se — livrar-se, quer dizer, de tudo que se tornou ou revelou impróprio qualitativa e quantitativamente.

E o trágico da cultura vem à superfície outra vez, desnudado: a cultura

carrega oculta em seu interior, desde seu primeiro “instante existencial”, aquela forma de seus conteúdos que está determinada a levar o sujeito

a perder-se de seu caminho reto. Quando se dispõe a entregar-se a sua grande façanha — vencer o objeto contemporâneo em sua tendência para criar-se a si mesmo de modo constante e incontrolado (conforme a

legalidade de seu próprio sistema, as leis de seu processo) e assim afogar o espírito subjetivo —, num caminho que é não apenas o melhor como talvez o único, o espírito tem um preço a pagar: o preço da trágica possibilidade de ver surgir nesse processo “uma lógica e um dinamismo que

dissipam os conteúdos da cultura a um ritmo sempre mais acelerado e os levam para um ponto cada vez mais distante da finalidade própria da cultura”, escreve Simmel em suas palavras finais.”

TRABALHO DA CULTURA: ENCARAR A ÉPOCA A quarta tragédia não manifesta na reflexão de Simmel incluída

neste livro, nele no entanto embutida e que dele se segue como sua

correção monetária, expressa-se assim: o que o espírito subjetivo assim submetido às forças do espírito objetificado a crescer em proporções

exponenciais encontrará ao final de sua caminhada será, no lugar da plenitude, o nada. Quem o diz não é Simmel mas seu amigo, aquele que o recomendou inutilmente à universidade de Heidelberg, Max

Weber, que em 1917 fez uma palestra a convite de estudantes da universidade de Munich sobre “o trabalho intelectual como vocação”, depois publicada sob o título “Wissenschaft als Beruf”, bem traduzida para o

inglês como “The Scholar’s Work”37 (“O Trabalho do acadêmico” ou “O 37

Max Weber, Charisma and Disenchantment: The Vocation Lectures; New York, The New York Review of Books, 2020, eBook.

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trabalho do cientista das Humanidades” ou “O trabalho do cientista do espírito”) e não simplesmente “A ciência como vocação”, que é como habitualmente se traduz Wissenschaft, nessa fórmula que tende ingloriamente a desqualificar essas mesmas Humanidades. Uma palestra não costuma conter notas de rodapé nas quais seria possível verificar se

Max Weber leu Philosophische Kultur, publicada dez anos antes, e a ela se refere ou tem em vista. É possível que sim. E isso, porque Max Weber

parece dialogar diretamente com seu amigo Simmel ao longo de várias

passagens da palestra. Iniciando com uma referência ao processo de desencantamento do mundo, conceito por ele mesmo introduzido, Max

Weber menciona Leon Tolstói e sua obsessão por saber se a morte tinha sentido ou não. Vulgarmente, se a morte fazia sentido ou não. Tolstói

achava que não — não na nossa cultura (a cultura dele, mas também a

nossa) porque no contexto da civilização moderna, com seu “progresso” (o termo é de Tolstói) teoricamente infinito (o vírus porá fim a ele?), a vida do sujeito carece de qualquer significado final. Tolstói é com frequência apresentado como um conservador, mas nem por isso sua

anotação é desprezível. Há sempre, é Max Weber quem fala agora, um

passo mais a dar no caminho progresso (repare: caminho, como em Simmel) e ninguém morre no auge ou ao final de sua jornada porque esse caminho continua ao infinito — portanto, nenhum significado

pode ser alcançado. Alguém nesta civilização moderna ou atual está sendo constantemente “enriquecido” com ideias, informação e questões

de modo que pode até ficar “cansado da vida”, como escrevia Tolstói, mas nunca poderia sentir-se preenchido por ela, i.e., nunca poderia

sentir a plenitude. Simmel diria, dez anos antes, que não se trata de

“enriquecimento” mas de assédio, de acosso, para usar um termo atual, e de um processo desembestado de autonomia do espírito objetificado que cerca e ao final submete o espírito subjetivo com uma montanha de

“ideias meramente provisórias, nunca definitivas” (Max Weber). Como

resultado, a morte não tem sentido para esse espírito (Weber não usa o termo espírito). E como a morte não faz sentido para o espírito ou sujeito, tampouco a vida o faz. Max Weber indaga-se — retoricamente apenas (porque sabemos a resposta, embora seu público de estudantes

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em 1917 não a soubesse e não esperava ouvir essas palavras) — se

“progresso” tem um sentido claro, para além dos “benefícios práticos” dele derivados. Não tem. E qual o significado do trabalho do intelectual, do cientista das Humanidades, qual o valor desse trabalho? Falando nisso, qual é mesmo o significado da ciência “dura”, aquela que ainda

tolamente se opõe às Humanidades? Max Weber pergunta “quem, além dessas crianças crescidas [os vitelloni?]” que se encontram entre nossos cientistas, de fato acredita que conhecer astronomia ou biologia

ou física ou química nos dirá algo sobre o significado do mundo?” E continua: “se a ciência pode fazer algo, é precisamente arrancar e

destruir a crença de que o mundo tem qualquer coisa a que se possa dar

o nome de ‘sentido’!” Weber: “Dada a premissa de que todas as antigas ilusões sumiram”, que a ciência ou outro conhecimento sistemático [a filosofia?] “é o caminho para o verdadeiro significado”, “o caminho para

a verdadeira arte”, “o caminho para a verdadeira natureza”, “ o caminho para o verdadeiro Deus”, “o caminho para a verdadeira felicidade” [e aqui Max Weber parece novamente estar contracenando com Simmel

no teatro de seu próprio imaginário, cada um com sua réplica preparada

e pronto para atingir o oponente, sobretudo Weber atacando Simmel], “que significado pode ter o trabalho do acadêmico?” Não muito. Será possível apenas, continua Weber, “fazer um gesto na direção do que os resultados afinal significam… A ciência não pode comprovar que

o mundo cujas leis ela descreve justifica-se em sua existência, nem que tenha um sentido.” A ciência “nem tenta” provar esse ponto, Max Weber acrescenta. Mas, ele se volta agora para o campo oposto, nem a

história da cultura ajuda em algo nesse sentido. A ciência da história da cultura, Max Weber prossegue, “mostra como compreender um leque de fenômenos culturais — políticos, artísticos, literários, sociais — no

contexto de suas épocas. Não nos diz o que esses fenômenos são ou se

valem a pena, nem responde à pergunta sobre se compensa o trabalho de conhecê-los e entendê-los. O que subjaz a essa história é que nos

interessamos por essas coisas a fim de participar da comunidade das

pessoas cultivadas.” Max Weber fere fundo. Como é de se esperar nele. “Mas não pode provar que assim é ‘cientificamente’, e apenas supor não

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significa que assim seja evidente em si mesmo. De fato, é tudo menos isso.” Qual o significado do trabalho do professor universitário nisso tudo?, Max Weber pergunta diante dos estudantes que o chamaram para dele ouvir as respostas certas. “O verdadeiro professor fará tudo que puder para evitar, desde o pódio, impor qualquer juízo que possa

ter, explicitamente ou apenas como sugestão.” O que todo “professor

eficaz” pode fazer é, primeiro, tentar levar seus estudantes a reco-

nhecer os fatos desconfortáveis — fatos, quero dizer, que vão contra

suas próprias opiniões partidárias.” E segue: “Sempre existem fatos

totalmente desconcertantes para todas as opiniões políticas, inclusive as minhas.” E: “Acredito que quando o orientador acadêmico força

seus estudantes a admitir tais fatos, ele cumpriu algo que vai além do

nível meramente intelectual: me atreveria mesmo a afirmar que ele

realizou ‘uma façanha ética’, não fosse o tom demasiado sentimental assumido por esse verdade simples e óbvia.” E continua mergulhando

a faca na ferida aberta: “Hoje, nossa religião é a ‘religião do cotidiano’, do dia após dia. Tendo perdido seu poder mágico, os vários deuses do

passado erguem-se de seu túmulos na forma de forças impessoais e por cima de nossas vidas combatem pelo poder, com isso retomando

sua luta eterna uns contra os outros. […] O que é tão difícil para nós, homens e mulheres modernos, e antes de mais nada para a geração

mais jovem, é exatamente enfrentar o desafio desta vida de todos os dias. Toda essa busca por uma ‘experiência autêntica’ a ser necessaria-

mente encontrada em algum lugar deriva dessa fraqueza. Pois é sinal

de fraqueza não conseguir encarar de frente o destino de cada época.”

OS CONTEÚDOS DE CULTURA CONTRA A FINALIDADE DA CULTURA Mesmo dois amigos próximos, que se estimam, podem divergir

frontalmente. Simmel parece ser o alvo primeiro e maior das palavras de Max Weber. Mas, depois de ler todas as páginas anteriores do ensaio de Simmel, que ressoam idealistas e positivas, com sua descrição da

síntese entre o subjetivo e objetivo a ser processada ao longo do cami-

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nho do espírito em direção a si mesmo na busca contínua e sem fim da plenitude, as últimas linhas com que conclui sua reflexão são bem claras: o espírito deve pagar o preço por sua aventura com a “trágica

possibilidade de ver produzir-se, no mundo por ele mesmo criado com suas leis próprias, uma lógica que aumenta a distância entre os

conteúdos da cultura e a finalidade da cultura, com uma aceleração

cada vez maior e colocando entre os dois lados uma distância cada vez mais ampla.” O sentido perde-se de vista. Os dois amigos, por pala-

vras distintas, estão de acordo: a plenitude é impossível, se o espírito subjetivo voltar a si mesmo depois de buscar a síntese com o espírito objetivo, a única coisa que mais provavelmente encontrará é um sujeito

esvaziado, um sujeito sem conteúdo como sugere Giorgio Agamben

em seu livro homônimo que, com toda evidência deve muito a Simmel e Weber mesmo que o católico Agamben não o diga.

Para que serve a cultura, então? Simmel não se arrisca a dizê-lo mas

Max Weber sim: para enfrentar o presente cara a cara, para olhar a “vida de todos os dias” de frente, olhos nos olhos, sem fraquejar por mais

assustadora que ela possa ser. O homem contemporâneo, capaz de fazer frente ao “destino da época” — essa cor dominante do Zeitgeist — deve

voltar a ser um herói da mitologia grega que perdeu toda sua mágica, todos seus deuses e que não aceita esse combate eterno a que se condenam esses mesmos deuses por cima da cabeça dos humanos e em nome dessas cabeças, em nome da posse dessas cabeças (quase sempre

em seguida entregues aos “líderes”, aos partidos) como num pacto

furado com Fausto — furado porque Fausto nada lhes dará em troca, nem depois, nem antecipadamente. Para isso serve a cultura. Ela não se

impõe. Algum eventual Hércules ou Apolo ou Sísifo tentará a aventura sozinho, algum conseguirá impor-se. Mas, mesmo os bravos perecem

antes do fim. Nietzsche, talvez o maior deles, pagou seu preço com a própria razão. Ele diria e deve ter dito que valeu a pena. Bem provável. Ter

razão não é preciso, navegar olhando o cenário de frente é preciso — caso

Fernando Pessoa não se oponha. Não o fará, antes soerguerá o chapéu num cumprimento à distância: reconhecerá a música familiar.

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A cultura, porém, não será perdoada por isso — por recusar os

múltiplos papéis mal escritos, inúteis, grotescos, que com ela nada

tem a ver. Nada nem ninguém a perdoará, nem a ela nem à sua melhor parte, a arte. Nem a religião, nem a política, nem a economia, nem a

universidade, nem a diversidade, nem os partidos, nem o politicamente correto, nada nem ninguém a perdoará. Não haverá política cultural para essa nova cultura voltada apenas para o dia a dia, essa cultura que

olha nos olhos, não haverá fundos para ela, ela não mais tem fundos, ela faliu na função que quiseram lhe atribuir embora não na função

que ela mesma se atribuiu desde sempre. A cultura nos mantém vivos, a arte nos impele para a frente. De modo menos sentimental, como

quer Max Weber: a arte nos faz ou permite dar o passo à frente, nos faz sair do hoje e chegar até o dia seguinte ou pelo menos considerar que depois de hoje pode vir um amanhã — que não “vai raiar”, que não é

melhor nem pior do que hoje, que é apenas o dia de amanhã, que é o

cotidiano de amanhã, o tempo presente do amanhã. A cultura não pode fazer isso, a cultura nos ajuda a viver hoje, aqui ancorados no longo cais

do presente; a arte, ela, permite divagar livremente por esse amanhã. Mas tampouco serve para muito mais que isso, tampouco serve para algo. Como a cultura revela-se igualmente despida e despojada, como

também a cultura mostra não servir para muita coisa, outra distinção

terá de ser buscada para diferenciar entre uma e outra, entre a cultura e a arte. O que fica para depois.

Simmel, um idealista, como quis e quer pintá-lo a teoria crítica,

i.e., a teoria do materialismo histórico banhada no sêmen de Adorno, Habermas e tutti quanti, incluindo figuras bem menores como Lukács?

Idealistas soam esses mesmos, Simmel é apenas um humilde realista. Melhor, como queria Nietzsche, Simmel — com sua visão sobre o

processo da cultura que escapa às superficialidades da antropologia impregnada de cultura material e às obsessões do materialismo his-

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tórico com sua obsessão por um coletivo que jamais terá condições de

fazer o que nem o espírito subjetivo e subjetivado consegue — é um niilista reativo. Adorno e Horkheimer, num Manifesto tardio — um

Manifesto Comunista.2 que não veio à luz e que talvez um dia eu

revisite, — estiveram muito tentados a conceder toda razão a Simmel, sem formalmente se atreverem a dar esse passo. Os que vivemos estes dias contemporâneos e sentimos mais uma vez a fragilidade da

vida e dos sonhos esmagados pelo destino da época, podemos dá-lo.

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Posfácio ao posfácio: inevitável. O móvel para este ensaio foi a necessidade de insistir, mais uma vez e outra vez ainda, no fato de que a

cultura não é uma dessas “noções plenas que oferecem de imediato

seu conteúdo ao mundo”, como Descartes acreditava que, em seus dias, fossem as ideias de tempo e espaço. Longe disso. A ideia de cultura aproxima-se, antes, do quadro explorado por Kant em Essai pour Intro-

duire en philosophie le concept de grandeur négative (Paris, Librairie

Philosophique J. Vrin, 1991 — ou dois anos depois da queda do Muro de Berlim; hoje essa livraria, no número 6 da Place de la Sorbonne, deixou de existir e em seu lugar entrou uma loja de fast roupas, assim como se

diz fast food, o habitual lixo de massa agora imposto e bem recebido). Kant resumia: “as grandezas negativas não são negações de grande-

zas, como a expressão permite supor por analogia de expressão, mas algo de verdadeiramente positivo em si e que apenas se opõe a outra

grandeza positiva; de modo que a atração negativa não é […] o repouso

mas uma verdadeira repulsão” tal como esse termo é entendido em física: força em virtude da qual certos corpos ou partículas se repelem

mutuamente. O princípio da repulsão é interno à cultura e não está

claro de antemão qual dos vetores em ação prevalecerá em qualquer

aventura pessoal e específica de desabrochamento ou florada do Eu: se o caminho rumo à plenitude ou o contrário disso em seus múltiplos

formatos (a mesmice, o nada, o naufrágio). Há, no título dado a este

posfácio ao texto de Simmel, uma nota do sentimentalismo que Max

Weber preferiria evitar — mas que não é estranho ao campo da cultura. Essa nota seria ainda mais acentuada se o título do presente ensaio

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derivasse, como cheguei a cogitar, do título de um romance central na

obra de Yasunari Kawabata, Beleza e Tristeza, para cuja reedição revista

no Brasil tive o prazer, a honra e o atrevimento de escrever um prefácio. Essa reedição foi lançada em 2001, não me recordo se antes ou depois de setembro daquele ano, antes do 9/11, do nine eleven, do onze de

setembro a propor-se como outro marco da civilização ainda mais do

que de simplesmente da cultura. Uma das primeiras anotações daquele prefácio diz respeito à noção de positividade em arte. Pois, naquele

mesmo ano, depois de setembro, lendo as declarações de Karlheinz

Stockhausen sobre o ato terrorista contra as Torres Gêmeas de Nova York, eu iria escrever meu livro A cultura e seu contrário com o propósito

de pôr em destaque o papel da negatividade na arte para — à maneira

de Artaud — acabar com a ideia de que a cultura é só positividade, uma ideia primária, tola, cuja função é decorar programas políticos repletos

de bons sentimentos e intenções. Eu lera Simmel na década de 90 do século 20 e Simmel, apesar de ele não trabalhar com a ideia de negati-

vidade em A tragédia da cultura (mesmo que ela permaneça latente, inexplícita, pouco abaixo da superfície), deve ter ficado operando em alguma partição de meu cérebro e ali realizado o trabalho que deveria fazer. A presença constante das duas grandezas, beleza e tristeza, o

roçar incessante entre elas, a tensão e o conflito que armam, traduz

de outro modo o que ocorre na cultura assentada na repulsão interna. O mesmo princípio do choque de contrários aparentes ou reais foi

filtrado por Eisenstein para a elaboração de sua teoria da montagem

no cinema, baseada na conjugação de duas ideias distintas, quando não opostas, para a obtenção de uma terceira, de um Interpretante

dinâmico com forte carga de significado imprevisto, sobretudo de natureza emocional. Não é exagero dizer que Eisenstein levou para

o cinema o princípio do ideograma japonês, que não lhe passara despercebido. (Haroldo de Campos, essa mente necessária, organizou

o livro Ideograma: Lógica, Poesia, Linguagem com textos dele mesmo, de Ernst Fellonosa e do próprio Eisenstein expondo sua aproximação

inovadora no cinema.) O encouraçado Potemkin organiza-se ao redor de sua teoria da montagem: é clássica a sequência nas escadarias de

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Odessa na qual tomadas de um carrinho de bebê que escapa das mãos da mãe alternam-se com outras de uma mulher que leva um tiro no rosto e outras de um pelotão de soldados descendo os degraus de Odessa e atirando sem mercê contra as pessoas. Significados distintos e con-

trários — a inocência de uma criança em perigo mortal, a indiferença dos soldados atirando, o horror da mãe pela sorte da criança mais do

que pela própria, a inevitabilidade do desfecho trágico, a impotência da

mulher e de todos, o exército carregando de cima para baixo na escadaria — organizam-se para suscitar no espectador uma significação poderosa cujas linhas de sentido e significado tecem-se por oposição ou

repulsão para alcançar um impacto não exatamente de início definido

embora o diretor esperasse alcançar um efeito final análogo ao obtido. Eisenstein denominava sua montagem de dialética — como mandava a cartilha marxista pela qual ele então rezava: a junção de dois signos opostos gera um terceiro diferente de ambos e com alcance semiótico

maior. O encouraçado Potemkin foi lançado em 1925, Philosophische Kultur saiu em 1911: Eisenstein teve tempo para lê-lo, mas não há sinal

de que o tenha feito. Não importa, a base é comum: grandezas negativas em confronto conduzem o espírito, ou a alma, de volta a si mesmo, si

mesma. Ou não. Não há determinação aqui, ou fatalidade, ou destino. Uma viagem pela paisagem pontilhada por Simmel, aqui com-

pletada com o recurso a Max Weber, não estaria completa (embora

permanecerá longe disso) sem uma visita rápida à concepção que Simmel fazia da arte. Esse entendimento deve ser extraído de todos seus escritos sobre o tema, ao qual voltava sempre em outra cota para retomar o que já havia pensado e reformulá-lo em outras palavras e

com outras latitudes sem se preocupar em dar ao todo alguma visão

orgânica. Eu deveria ter escrito “uma aventura pela paisagem” de Simmel em vez de viagem, já que o fio da meada que pode levar a uma concepção mais ampla da arte via Simmel inicia-se exatamente pelo primeiro capítulo de seu “Cultura filosófica”, dedicado exatamente

à aventura, cuja forma é compartilhada com a obra de arte, e, como ele dirá logo em seguida, à vida. A arte, ou a obra de arte, está sempre

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mais além da vida como realidade, assim como a aventura encontra-se

mais além da vida. Ambas, arte e aventura, contrapõem-se à vida — e

estamos aqui outra vez diante de grandezas negativas. O aventureiro, escreve Simmel, é o exemplo mais forte do homem a-histórico, i.e., da

“criatura do presente”. Max Weber não cita Simmel em sua palestra aos estudantes alemães e Simmel não menciona seu amigo. Mas

ambos convergem para o mesmo ponto. Sabendo que o fazem? Outra

questão. O aventureiro, como criatura do presente (quer dizer, criado pelo presente e nele imerso), está entregue à acidentalidade tanto

quanto a arte — portanto à extraterritorialidade diante do contínuo

da vida ao mesmo tempo em que se enlaça com os encadeamentos racionais da vida movido por misteriosa necessidade. Daí surge, para

Simmel, o parentesco entre o aventureiro, o jogador — aquele que

gosta de apostar, de operar com o acaso, o acaso do lance de dados que jamais por ele será anulado — e o artista. Não é inquestionável, em minha perspectiva, a ideia de que o apelo ou possibilidade da aventura

imponha-se como necessidade à vida, a toda vida, a todas as opções

singulares de vida, o que significa que tampouco é inquestionável que

a arte se apresente como uma necessidade para a criatura do presente: há criaturas do presente, do passado e do futuro que não sentem essa necessidade. Mas esse é outro ponto para mais tarde (mesmo já tendo sido um ponto de meu A cultura e seu contrário). Simmel acredita que

no acaso da aventura e do jogo existe um sentido e que esse sentido é necessário mesmo se essa necessidade não se organize conforme a

lógica racional. Pode ser. De todo modo, a aventura não é um evento, um corte abrupto no contínuo da vida, como não o é a arte embora a arte propicie esse corte, espere por ele, aspire a ele. A aventura é vista por Simmel como uma apropriação violenta do mundo. Certo.

A arte também é uma apropriação violenta do mundo, proponho.

Belíssima fórmula. É possível, porém, e Simmel não o menciona por alguma razão, que a aventura — seguindo a suposição de Simmel de

que a língua fala o homem — seja um modo pelo qual o mundo se

apropria violentamente da criatura do presente… A aventura parece

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ser, para Simmel, uma experiência consciente, intencional ou em todo

caso necessária. Mas a aventura — a aventura simples, se isso existe, não a aventura da arte — pode sobrevir como uma cesura inopinada

e indesejada: um acidente, um naufrágio, um desastre aéreo, um encontro fortuito na rua com alguém que desperta no passante uma

paixão conscientemente não buscada. Nesse caso, a aventura não é

necessária, embora possa encontrar seu lugar no contínuo da vida: é o acaso imprevisto. A aventura é ou pode ser como a arte — mas a arte, contrariamente, não é uma aventura para o artista no sentido

em que é uma fratura, uma cesura na vida contínua: para o artista, a

vida é uma fratura, fratura é a vida tal qual, a vida como a vida é. Van Gogh sabia disso e o dizia com cortante lucidez, lucidez tão aguda que se transfigurava como loucura evidente aos ouvidos das criaturas do

passado, que são a maioria. Van Gogh repetiu: só vivo quando pinto,

só estou vivo quando entregue à pintura, quer dizer, literalmente, quando a pintura se apossa de mim, quando a pintura fala por mim. Não há misticismo nessa proposição, mistério algum, poesia barata

alguma: a arte é uma entrega voluntária a uma aventura cujo final não está escrito. Neste ponto devo divergir de Simmel, se interpreto

corretamente sua reflexão: ao contrário do que ele escreve, o trabalho

(quer dizer, a vida) não estabelece “uma relação orgânica com o mundo” ao passo que a arte, quer dizer, a aventura, arma “uma relação orgânica com o mundo”. Se Van Gogh for levado a sério, se Joseph Beuys for

visto como alguém muito sério e não um vigarista da arte, a única

relação orgânica com o mundo, com a vida, é aquela que a aventura, a arte propicia. (Se for o caso, a arte é a única maneira para recuperar

no presente uma relação orgânica com a vida que foi perdida — no caso de Beuys, o ano passado com os camponeses que dele cuidaram

após a queda de seu avião na II Guerra.) A verdade da arte é o artista, o trabalho (como eternamente existente até aqui, o trabalho como

maldição, como punição) é a quebra da relação harmônica com a vida. A síntese das grandes categorias vitais que Simmel busca, das quais a aventura é uma forma, o jogo outra e a arte, uma terceira, só pode se

dar com a arte ou ao modo da arte. A aventura como síntese contínua é

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inviável, o trabalho a ameaça; o jogo como síntese contínua é inviável, o jogo inviabiliza a vida (a menos que a vida não mais importe: jogar é preciso, viver não é preciso…); a arte é a única forma que mantém

essa síntese em equilíbrio. A arte é a insegurança em equilíbrio com

o momento de segurança, o que o jogo não é a não ser ilusoriamente; e a aventura que propõe e mantém esse equilíbrio não é outra coisa que o turismo ou a aventura amorosa passageira, que pode fornecer

algum equilíbrio mas apenas fora dela mesma: a aventura fornece o equilíbrio recomposto na vida ela mesma, na vida contínua para a

qual ela foi uma passageira ruptura. Simmel não é inconsciente dessa vertente da vida, uma vez que dedica alguns parágrafos ao erótico e à relação amorosa — que Barthes, outra vez ele, iria chamar de discurso amoroso. (O outro, a outra também é um espírito objetivado que o

sujeito em seu caminho de volta a si mesmo busca incorporar em si mesmo, fisicamente se possível: o corpo do outro, da outra integra

a formada arte. Mas isso fica para depois.) A arte já foi apresentada

como um ersatz para o princípio amoroso e erótico da vida orgânica

entre as pessoas no mundo: é possível, em momentos; mas em outros

momentos ela é a chave para a apropriação amorosa e erótica da vida. Talvez este seja o momento de fazer entrar em cena a distinção que o próprio Simmel faz entre “forma estética” e “arte”: arte é a forma

estética a viver sua vida que é independente do aventureiro na pessoa do artista, a forma estética que se transformou em algo secundário, em

linguagem vazia. Em código. Em simulacro. Como venho dizendo e já

repeti neste posfácio, independentemente do cenário de Simmel, a obra é a sobra: a obra é apenas a sobra, a massa mesma ficou lá na forma

estética que englobava o gesto e a vida, outro modo de referir-me ao processo. Não me iludo: a sobra como objeto objetivado e objetificado

pode ser essencial e necessária para o espectador, mesmo não o sendo (não o sendo mais) para seu autor; as sobras podem ser uma delícia mesmo sendo muito pouco, como a pequena colher de chá com que

a mãe cozinheira permite ao filho pequeno raspar o fundo da fôrma onde o bolo foi batido. Como autor, a forma estética me trouxe até aqui

inclusive em seu disfarce de obra de arte; a partir daqui, pode servir

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como cultura objetivada e objetificada para um terceiro. Perfeito. Tudo bem se for assim. Parece que a única lição de Joseph Beuys a seus

“alunos” (aspas porque arte não se ensina, embora se aprenda) de Düsseldorf era: uma verdade é necessária para a forma estética, busque sua verdade dentro de si, não fora de si. Fora de si, só existe o “discurso

artístico”, a forma vazia, a estrutura codificada da arte — mas não a

forma estética que é a experiência da aventura continuada. A fórmula para transformar a vivência da arte em aventura estética? A radicali-

dade, a tensão interior do processo vital feito de grandezas negativas

que empurram a vida para além da matéria inerte. O processo pode ser cruel, como o entendia Artaud; mas não há outro recurso se a ideia for evitar que a língua, i.e., o mundo, a “arte”, fale a criatura do presente.

TC, 17 maio 2020

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SOBRE OS AUTORES

GEORG SIMMEL nasceu num reino, o da Prússia, na cidade

de Berlim de 1858, e morreu num império, o Germânico, na cidade de Estrasburgo (que hoje abriga o Parlamento Europeu), em 1918.

Um inovador do modo de pensar, Simmel viu-se por longo tempo excluído da universidade antes de ser admitido como docente, ao final da vida, na de Estrasburgo em 1914. Mesmo ao longo do século 20, seus interesses heterodoxos e seu modo de pensar não ligado às correntes ideológicas fez com que fosse pouco conhecido e lido. No Brasil e no mundo. Deveria ter acontecido o contrário, uma vez que estava na primeira onda da nova disciplina a surgir no século 19, a sociologia. Tomado em seu sentido atual, o rótulo sociologia oculta a perspectiva de Simmel, que praticava essa disciplina como o estudo da sociedade em suas amplas manifestações — nas Foto: autor anônimo quais o indivíduo não é reduzido a figurante da massa e dos coletivos de toda natureza — e na fragmentação da existência na vida moderna, no que ele tem mais em comum com Baudelaire do que com Marx. Interessou-se por assuntos que a esquerda da época, como a de quase todo o século 20, considerava periféricos por, segundo ela, desviar a atenção do que “de fato importava”: o capitalismo, a ideologia, as classes sociais, o poder. Entre seus temas, à época ditos heréticos, figuravam a filosofia dos sexos, a condição feminina, a personalidade de Deus, o amor, a pobreza, a moda e o conflito como o oposto necessário do consenso que muitas ideologias tentam implantar. E preferia falar do dinheiro mais do que de economia: a diferença entre uma coisa e outra é abissal, a economia situando-se na esfera das ideias e o dinheiro, no lado da existência. O fato de ser um neokantiano precipitou-o na questão filosófica mais quente da época e criou-lhe barreiras para prosseguir sua carreira, quase tanto como, depois, aconteceu com Heidegger e Ernst Cassirer. Seus temas insólitos e a linguagem de seus livros — “pouco acadêmica”, dizia a academia — dele fizeram um relativo marginal mas, também, o precursor de outros com destino análogo, como Walter Benjamin que se interessou pela vida moderna na metrópole como Simmel fizera. Roland Barthes, muito mais tarde, foi bem recebido na academia; mas as portas para seu Mitologias, O sistema da moda e sua Leçon, com a qual tomou posse no Collège de France, foram previamente arrombadas por Simmel… E enquanto outros preocupavam-se com o conteúdo, Simmel reconhecia o poder da forma, que vira conteúdo, e vice-versa, em antecipação ao estruturalismo. Entre suas obras mais marcantes estão Die Probleme der Geschichtsphilosophie (Problemas da filosofia da história),1890; Philosophie des Geldes (A filosofia do dinheiro), 1900; Philosophie der Mode (A filosofia da moda), 1905, e Philosophische Kultur (Cultura filosófica ou A cultura como filosofia), 1911, que incluía A tragédia da cultura aqui traduzida. Escreveu sobre a arte e artistas, foi próximo de Max Weber, conheceu Rilke, Rodin e Bergson. Um homem de seu tempo com interesses ampliados e que colocava a arte na mesma plataforma da filosofia.

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Foto: Bruna Goldberger

TEIXEIRA COELHO, vive e trabalha em São Paulo e tem na cultura e na arte seus dois

campos (conflitantes) de interesse, compartilhando com Néstor Canclini (em seu Pistas Falsas, 2020) a certeza de que a arte ultrapassa o real e reordena as questões da vida e da sociedade de um modo inacessível à sociologia, à filosofia e à própria vida. Em 1969 fundou, com quem viria a ser sua esposa, a Editora Documentos, pela qual publicou no Brasil o primeiro romance de Georges Perec, As coisas, além de ensaios sobre a nova sociologia contestatária nos países da “cortina de ferro” e sobre a revolta dos estudantes de 1968, estes assinados por Henri Lefebvre do qual publicou ainda O direito à cidade. Como os livros da Documentos eram distribuídos pela Livraria Brasiliense — à época dirigida por Caio Graco, filho do historiador de orientação marxista Caio Prado Jr. que a ditadura não tolerava — e impressos pela Gráfica Urupês, sob o comando de outro filho de Caio Prado Jr., Roberto, a continuação da Documentos revelou-se incerta e temerária: seus livros, como os de outras editoras, eram apreendidos assim que lançados. A previsão de que em seguida eles mesmos, os diretores da editora, seriam apreendidos, levou-os a uma temporada de prudência na França a partir de 1972. Rejeitando a existência de muros entre as Humanidades e a arte, dedicou-se desde o início à literatura, tendo recebido em 2007 um Prêmio Portugal Telecom pelo romance História Natural da Ditadura. Seu mais recente “texto de ficção” é Puro gesto (2020). No campo da ensaística, publicou, entre outros, A cultura e seu contrário (2016) e o Dicionário crítico de política cultural (1997), com edições no México e na Espanha; seu título mais recente nesse campo é eCultura, a utopia final (2019). Traduziu, entre outros, História da Loucura, de Foucault; Semiótica, de Ch.S. Peirce, e Concerto barroco, de Alejo Carpentier (este, em parceria com Jean-Claude Bernardet). Repete sempre que herdou de Wittgenstein a obrigação de ver as coisas sempre desde um outro ponto de vista. Foi professor titular da Universidade de São Paulo (Escola de Comunidades e Artes), diretor do Museu de Arte Contemporânea-USP e curador-coordenador do MASP-Museu de Arte de São Paulo. Dedica-se hoje ao estudo das culturas e humanidades computacionais, tema ao redor do qual coordena um grupo de estudos no Instituto de Estudos Avançados da USP.

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Coleção Os Livros do Observatório

AFIRMAR OS DIREITOS CULTURAIS: Comentários à Declaração de Friburgo Patrice Meyer Bisch e Mylène Bidault ARTE E MERCADO Xavier Greffe A CULTURA PELA CIDADE Teixeira Coelho (Org.) CULTURA E ECONOMIA Paul Tolila CULTURA E EDUCAÇÃO Teixeira Coelho CULTURA E ESTADO: A política cultural na França 1955-2005 Geneviève Gentil e Philippe Poirrier A CULTURA E SEU CONTRÁRIO Teixeira Coelho (Org.) COM O CÉREBRO NA MÃO: No século que gosta de si mesmo Teixeira Coelho A ECONOMIA ARTISTICAMENTE CRIATIVA: Arte, mercado, sociedade Xavier Greffe eCULTURA, A UTOPIA FINAL: Inteligência artificial e humanidades Teixeira Coelho IDENTIDADE E VIOLÊNCIA: A ilusão do destino Amartya Sen


LEITORES, ESPECTADORES E INTERNAUTAS Néstor García Canclini O LUGAR DO PÚBLICO: Sobre o uso de estudos e pesquisas pelos museus Jacqueline Eidelman, Mélanie Roustan, Bernardette Goldstein A MÁQUINA PAROU | E. M. Forster seguido de PAISAGEM COM RISCO EXISTENCIAL | Teixeira Coelho MEDO AO PEQUENO NÚMERO: Ensaio sobre a geografia da raiva Arjun Appadurai AS METRÓPOLES REGIONAIS E A CULTURA: O caso francês 1945-2000 Frannnoise Taliano – Des Garets

PISTAS FALSAS: Uma ficção antropológica Néstor García Canclini A REPÚBLICA DOS BONS SENTIMENTOS Michel Maffesoli SATURAÇÃO Michel Maffesoli A SINGULARIDADE ESTÁ PRÓXIMA: Quando os humanos transcendem a biologia Ray Kurzweil


CADASTRO

Para receber informações sobre nossos lançamentos e promoções, envie e-mail para: cadastro@iluminuras.com.br

Este livro foi composto em The serif e The Mix pela Iluminuras e terminou de ser impresso em 2020 nas oficinas da Paym Gráfica, em São Bernardo do Campo, SP, sobre papel off-white 80g.


Seu leque de temas pouco comuns à época, antecedendo os estudos sobre a cotidianidade, em linguagem também inovadora, foi um obstáculo para uma carreira na universidade — como aconteceu com Walter Benjamin — mas dele fez um farol para a reflexão contemporânea. Esta tradução de uma de suas obras centrais — breve, forte e que atinge diretamente o alvo — é publicada com posfácio de Teixeira Coelho — Cultura,

uma grandeza negativa — colocando as ideias de Simmel no cenário ocupado por pensadores e temas contemporâneos, o que inclui a entrada em cena da cultura computacional.

Georg Simmel (1858-1918) foi uma corrente de ar fresco sobre o pensamento alemão — o que lhe valeu exclusões mas também o papel de antecessor de Walter Benjamin no estudo da vida moderna em metrópoles. Recusando-se a submergir o indivíduo no meio da massa e do coletivo, colocou em evidência a importância da forma em interação com o conteúdo, ao qual ela não se submete (Marshall McLuhan disse o mesmo, mais tarde). Para Simmel, a vida é um fenômeno complexo e paradoxal definido por conflitos e contradições. Teixeira Coelho fundou a Editora Documentos em 1969 e desde então divide seu tempo entre a arte, a cultura e a literatura, em iguais proporções. Depois de dirigir museus e centros de cultura, e organizar exposições no Brasil e no exterior, coordena hoje um grupo de estudos sobre Culturas e Humanidades Computacionais no Instituto de Estudos Avançados da USP.


Georg Simmel (1858-1918) continua pouco lido e, mesmo, ignorado — não raro, de modo intencional. O motivo é nítido: desde o início revelou-se um pensador que não seguia os trilhos ideológicos reconhecidos e abençoados, na universidade e fora dela. No entanto, é um pensador fundamental para a compreensão não apenas de seu tempo como do mundo atual. Em A tragédia da cultura, sem perder tempo com as ideias batidas e superficiais de cultura — derivadas de uma primeira antropologia e em seguida postas a serviço da economia e da ideologia —, mostra como a cultura é o percurso do ser humano rumo a si mesmo num processo de ampliação constante de sua existência. Mas não esconde que a cultura, hoje mais que nunca, aceita uma lógica que a afasta sempre mais daquilo que poderia oferecer...


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