Ocupação Itaú Cultural 50 – uma celebração

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coordenação editorial Carlos Costa edição Duanne Ribeiro, Fernanda Castello Branco de Oliveira e William Nunes de Santana conselho editorial Ana de Fátima Sousa, Carlos Gomes, Claudiney Ferreira, Edson Natale, Galiana Brasil, Sofia Fan, Tânia Rodrigues, Tatiana Prado e Valéria Toloi pesquisa Laerte Fernandes e Vinícius Rodrigues Amaral projeto gráfico Guilherme Ferreira produção gráfica Lilia Góes (terceirizada) edição de imagens André Seiti e Anna Carolina Bueno (estagiária) produção editorial Pamela Camargo supervisão de revisão Polyana Lima revisão Karina Hambra e Rachel Reis (terceirizadas)


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50 NOMES PARA CELEBRAR


Uma única trajetória, misturando vida e obra de um artista do nosso tempo ou dos tempos mais antigos, já daria muita história para contar. Fonte. Legado. Inspiração. Herdeiros, entre admiradores da obra e seguidores no caminho do fazer artístico. Uma única trajetória já é tesouro imenso. E o fato é que o Ocupação, no conturbado e inesquecível ano de 2020, chegou a 50 artistas homenageados, um marco no projeto inaugurado pelo Itaú Cultural (IC) em 2009, com o objetivo de aproximar a nova geração de artistas, criadores e pesquisadores da cultura dos nomes que a influenciam. Cinquenta histórias para celebrar.

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E todas estão aqui, seja listadas (com dados biográficos e as datas em que as exposições aconteceram), seja relembradas em textos inéditos. Nesta publicação, resgatamos 15 desses homenageados, em relatos escritos por pessoas que, em suas próprias obras e trajetórias, reverenciam a influência desses legados. A apresentação se dá em ordem alfabética, único modo de ser justo em uma roda de gigantes. Abdias Nascimento, Alceu Valença, Angel Vianna, Angeli, Aracy Amaral, Conceição Evaristo, Dona Ivone Lara, Eduardo Coutinho, Giramundo, Hilda Hilst, Lydia Hortélio, Nise da Silveira, Regina Silveira, Vilanova Artigas e Zé Celso Martinez Corrêa. Todos revisitados e saudados, cada um por um especialista na sua área de atuação. Seguindo a essência do Ocupação – que, além de exposições na sede do Itaú Cultural, em São Paulo (SP), e de algumas itinerâncias pelo Brasil, gera um conteúdo rico no site especial itaucultural.org.br/ocupacao –, esta publicação pretende mostrar que a importância desses artistas pode ser explicada por suas biografias. Os que ainda atuam em suas áreas e os que não estão mais entre nós, apesar de bem díspares nos seus fazeres, são aqui apresentados na faceta que têm em comum: todos são criadores cujas obras seguem reverberando em corpos e mentes, para além do tempo e do espaço em que vivem ou viveram. Quinze histórias para relembrar. E para nunca nos deixar esquecer: que sigamos sempre atentos à preservação da memória artística.

Itaú Cultural

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OCUPAÇÃO ITAÚ CULTURAL


Desde 2009, o projeto Ocupação integra uma das políticas mais fortes do Itaú Cultural (IC): a de preservação da memória da arte e da cultura brasileiras. Por meio desse projeto, cumpre-se o objetivo de fomentar o diálogo da nova geração de artistas com os criadores que a influenciaram. Artistas e pensadores da cultura nacional são homenageados com exposições temporárias na sede da organização, na capital paulista – e algumas itinerâncias pelo Brasil –, além de ganharem espaço permanente em um site especial que reúne conteúdos exclusivos sobre suas histórias e trajetórias. Um verdadeiro acervo de documentos, fotos, vídeos, áudios e textos está disponível em itaucultural.org.br/ocupacao. Música, cinema, artes visuais, literatura, teatro, pesquisa, quadrinhos e muitas outras expressões artístico-culturais foram e são contemplados, bem como os diversos sotaques e tradições locais Brasil afora – veja a lista completa dos homenageados nesta publicação. Com mais de 30 anos de história, o IC é uma das instituições mais atuantes no cenário cultural brasileiro, movimentando a cultura e reinventando processos de realização, desde a gestão até a execução, de projetos artísticos e culturais. Tudo isso por meio de uma atitude simples: ouvir, provocar e interagir com o outro, respondendo a demandas da e para a sociedade.

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TODOS OS HOMENAGEADOS

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NELSON LEIRNER 28 de maio a 28 de junho de 2009 Nelson Leirner (1932-2020) foi artista multimídia e professor universitário. Sua obra é marcada pelo uso de objetos industrializados e pela tematização das relações entre a obra e a audiência, entre público, mercado e instituições. Sua carreira abrangeu diversas linguagens: pintura, happenings, instalações, design, cinema experimental, desenhos e gravuras.

ZÉ CELSO 30 de julho a 6 de setembro de 2009 Zé Celso (1937) é diretor, dramaturgo e ator, líder do Teatro Oficina – um dos mais destacados grupos de teatro do Brasil, com atuação profissional desde 1961. Herdeiro da contracultura, Zé Celso reelabora o método de interpretação de Constantin Stanislávski e o teatro épico de Bertolt Brecht. Montou Nelson Rodrigues, Oswald de Andrade e Chico Buarque, entre outros autores.

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PAULO LEMINSKI 1º de outubro a 8 de novembro de 2009 Paulo Leminski (1944-1989) foi poeta, romancista e tradutor. Seu estilo mistura coloquialidade e exploração formal da linguagem literária, com poesia japonesa, cultura popular brasileira e recursos publicitários. Destacam-se seu livro de prosa Catatau (1975) e Toda Poesia (2013), que reúne sua produção poética. Como tradutor, verteu para o português James Joyce, entre outros autores.

ABRAHAM PALATNIK 3 de dezembro de 2009 a 10 de janeiro de 2010 Abraham Palatnik (1928-2020) foi artista cinético, pintor e desenhista, pioneiro da arte cinética no Brasil. No final dos anos 1940, rompeu com uma composição mais tradicional e começou a explorar cores, formas, luz e movimento, o que, nas décadas seguintes, se efetivou com obras de caráter concretista e esculturas mecânicas, nas quais artes visuais, tecnologia e ciência se somam.

CHICO SCIENCE 4 de fevereiro a 4 de abril de 2010 Chico Science (1966-1997) foi cantor e compositor. Em 1991, formou o grupo Chico Science & Nação Zumbi, que unia rock, samba-reggae, black music e ritmos pernambucanos, com letras que realizavam crítica e crônica da vivência urbana, tornando-se um marco do movimento manguebeat. Lançou os discos Da Lama ao Caos (1994) e Afrociberdelia (1996), e morreu em um acidente, aos 30 anos.


ROGÉRIO SGANZERLA 9 de junho a 18 de julho de 2010 Rogério Sganzerla (1946-2004) foi cineasta. Roteirizou e dirigiu filmes como O Bandido da Luz Vermelha (1968), Sem Essa, Aranha (1970) e Copacabana Mon Amour (1970). Seu trabalho teve influência de Orson Welles, Jean-Luc Godard, José Mojica Marins, do noir e da pornochanchada. Além de ficção, produziu documentários, como Tudo É Brasil (1997).

REGINA SILVEIRA 12 de agosto a 2 de outubro de 2010 Regina Silveira (1939) é artista multimídia, gravadora, pintora e professora. São referências do seu trabalho um de seus professores, Iberê Camargo, e o dadaísmo de Marcel Duchamp. Produz, de início, esculturas e serigrafias de teor geométrico. Depois, passa a explorar diversos materiais – microfilme, xerox, vídeo etc. –, subversões da perspectiva e intervenções no espaço.

HAROLDO DE CAMPOS 17 de fevereiro a 10 de abril de 2011 Haroldo de Campos (1929-2003) foi poeta, tradutor, ensaísta e crítico literário. Em poesia, sua obra está no cruzamento entre o barroco e o concretismo. Com Augusto de Campos, seu irmão, e Décio Pignatari, fundou a Noigandres, importante revista de vanguarda. Em tradução, desenvolveu o método de transcriação, que busca a reinvenção dos efeitos do texto original.

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FLÁVIO IMPÉRIO 2 de junho a 17 de julho de 2011 Flávio Império (1935-1985) foi cenógrafo, figurinista, diretor, arquiteto, professor e artista visual. Sua atuação mais destacada está na cenografia, que, no seu caso, abandona o caráter decorativo de épocas anteriores e ganha funções narrativas, mobilizando a cultura nacional e inovando com poucos recursos. Flávio trabalhou com Augusto Boal, Zé Celso e Fauzi Arap, entre outros nomes.

CILDO MEIRELES 21 de agosto a 2 de outubro de 2011 Cildo Meireles (1948) é artista multimídia. É cofundador da unidade experimental do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro (MAM Rio) e editou a Revista Malasartes. Depois de uma fase de desenhos expressionistas, realiza trabalhos tridimensionais, instalações e obras conceituais. Seu interesse abrange explorações sensoriais, percepção do espaço/tempo e intervenções políticas.

BALLET STAGIUM 10 de novembro de 2011 a 22 de janeiro de 2012 O Ballet Stagium, fundado em 1971, é o mais longevo grupo brasileiro de dança em atuação. Dirigido por Marika Gidali (1937) e Décio Otero (1932), o Stagium se destaca com um balé contemporâneo renovado por elementos da cultura nacional e enriquecido pela consciência do papel político da dança, efetivado não só nas coreografias, mas em projetos sociais.


ANGELI 16 de março a 29 de abril de 2012 Angeli (1956) é cartunista e chargista. Seus quadrinhos retratam tipos urbanos e figuras e cenas da política nacional, com influências de Millôr Fernandes, Ziraldo, Jaguar e Robert Crumb. Criou, com Laerte e Glauco, a série Los Tres Amigos. Suas produções, publicadas em periódicos como o jornal Folha de S.Paulo e a revista Chiclete com Banana, também foram lançadas em livro.

NELSON RODRIGUES 21 de junho a 29 de julho de 2012 Nelson Rodrigues (1912-1980) foi escritor. Criou contos, crônicas, romance e dramaturgias. Em suas obras, há análises da sociedade, da cultura, da moral, das psicologias pessoais e de grupo. Sua peça Vestido de Noiva (1943) é considerada o nascimento do teatro moderno no Brasil. Suas produções foram e seguem sendo levadas ao teatro, à televisão e ao cinema.

ANTONIO NÓBREGA 4 de abril a 26 de maio de 2013 Antonio Nóbrega (1952) é dançarino, músico, cantor e instrumentista dedicado à elaboração da cultura brasileira. Fez parte do Quinteto Armorial, grupo que trabalhava a união entre a música erudita e popular, ativo entre 1970 e 1980. Em sua carreira solo, aprofundou esse viés e buscou desenvolver a dança brasileira. É fundador, com Rosane Almeida, do Instituto Brincante.

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MÁRIO DE ANDRADE 28 de junho a 28 de julho de 2013 Mário de Andrade (1893-1945) foi poeta, romancista, cronista, crítico, musicólogo e pesquisador do folclore brasileiro. É um dos grandes expoentes da primeira fase do modernismo brasileiro, junto com Oswald de Andrade e outros nomes. Além de sua obra artística e de sua atuação em pesquisa, destaca-se na política cultural, tendo sido o primeiro diretor do Departamento Municipal de Cultura de São Paulo.

NELSON PEREIRA DOS SANTOS 24 de agosto a 8 de setembro de 2013 Nelson Pereira dos Santos (1928-2018) foi diretor, produtor, roteirista e montador. Seus filmes retrataram a vida urbana, a cultura popular, o pensamento brasileiro e grandes obras da literatura nacional, em documentário e ficção. Seu vocabulário se estende das referências ao neorrealismo italiano de Rio, 40 Graus (1955) às experiências formais de Fome de Amor (1967).

SERGIO BRITTO 23 de novembro de 2013 a 19 de janeiro de 2014 Sergio Britto (1923-2011) foi ator, diretor e produtor, tendo atuado em mais de 90 espetáculos teatrais, além de realizar trabalhos para o cinema e a televisão, tornando-se um pioneiro do teleteatro. Fez parte de grupos importantes para as artes cênicas brasileiras, como o Teatro de Arena e o Teatro dos Sete. Foi um dos fundadores da Casa das Artes de Laranjeiras (CAL), no Rio de Janeiro.


ZUZU ANGEL 1º de abril a 11 de maio de 2014 Zuzu Angel (1921-1976) foi estilista e figurinista. Inovadora da moda brasileira, incluía em suas criações elementos da cultura do país, tendo alcançado fama internacional. Ganhou notoriedade também pela luta política que empreendeu pela memória de seu filho, Stuart Jones, torturado e morto pela ditadura civil-militar, também responsável pelo assassinato de Zuzu.

JARDS MACALÉ 31 de maio a 6 de julho de 2014 Jards Macalé (1943) é compositor, cantor, violonista, arranjador, produtor musical e ator. Suas composições exibem uma estética tropicalista, com traços irreverentes e experimentais e marcas do rock, do blues, da bossa nova e do samba. O estilo com que toca o violão também é particular, explorando o potencial percussivo do instrumento. Compôs, entre outras músicas, “Vapor barato” (1971).

ALOISIO MAGALHÃES 26 de julho a 24 de agosto de 2014 Aloisio Magalhães (1927-1982) foi pintor, designer, gravador, cenógrafo e figurinista, pioneiro da comunicação visual no Brasil. Foi um dos criadores da Escola Superior de Desenho Industrial (Esdi) e teve forte atuação em políticas culturais, tendo sido diretor do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) e secretário de Cultura do Ministério de Educação e Cultura.

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LAERTE 20 de setembro a 2 de novembro de 2014 Laerte (1951) é cartunista, ilustradora e roteirista. Humor, experimentação gráfica e perspectiva política são qualidades que despontam ao longo de toda a sua obra. Laerte inventou personagens célebres – Piratas do Tietê, Hugo, Overman –, criou obras de teor filosófico – Minotauro –, atua na comunicação sindical e contribui para o debate das questões de gênero.

GIRAMUNDO 29 de novembro de 2014 a 11 de janeiro de 2015 Giramundo é um grupo ícone do teatro de bonecos no Brasil, criado em 1970 pelo casal de artistas Álvaro Apocalypse (1937-2003) e Terezinha Veloso (1936-2003) e pela também artista Maria do Carmo Martins, a Madu (1945). Entre suas peças está Cobra Norato (1979), baseada em poema de Raul Bopp. O grupo mantém o Museu Giramundo e a Escola Giramundo, por meio da qual realiza trabalho social.

HILDA HILST 28 de fevereiro a 21 de abril de 2015 Hilda Hilst (1930-2004) foi poeta, ficcionista, dramaturga e cronista. A paixão, a morte, o erotismo, a santidade, Deus, a filosofia e a metalinguagem atravessam sua obra, que mistura gêneros e linguagens “sérias” e de baixo calão. Quase toda a sua literatura foi reunida nos volumes: Da Prosa (2018) e Da Poesia (2017). O Instituto Hilda Hilst mantém seu acervo e memória.


DONA IVONE LARA 16 de maio a 28 de junho de 2015 Dona Ivone Lara (1922-2018) foi compositora, cantora e instrumentista. Pioneira, foi a primeira mulher a integrar a ala de compositores da escola de samba Império Serrano. Sua musicalidade carrega referências do samba de roda, do jongo e do partido-alto, além da cultura dos morros cariocas. Também foi assistente social, tendo trabalhado com a psiquiatra Nise da Silveira.

VILANOVA ARTIGAS 24 de junho a 9 de agosto de 2015 Vilanova Artigas (1915-1985) foi arquiteto, engenheiro, urbanista e professor. Fundou a chamada Escola Paulista, estilo caracterizado pelo uso do concreto armado aparente e pela valorização da estrutura. Sua obra pensa a relação entre edifício e cidade e é fundamentada em uma visão sociopolítica. Artigas formou arquitetos como Paulo Mendes da Rocha, Joaquim Guedes e Sérgio Ferro.

ELOMAR 18 de julho a 23 de agosto de 2015 Elomar Figueira Mello (1937) é compositor, violonista e cantor, natural de Vitória da Conquista, na Bahia. Autor de romances, poesias, peças de teatro, músicas para violão e orquestra, óperas e de um cancioneiro primoroso, retrata em sua obra o mundo rural do sertão profundo e de sua gente.

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JOÃO DAS NEVES 26 de setembro a 8 de novembro de 2015 João das Neves (1934-2018) foi dramaturgo e diretor de teatro, além de ator, iluminador, cenógrafo e produtor cultural. Contribuiu para a formação intelectual e estética de grupos teatrais de várias partes do Brasil, entre eles o Grupo Opinião durante o período da ditadura militar. Sua atuação é marcada por inovação no teatro, engajamento político-social, diálogo com a cultura popular e abertura à diversidade.

GRUPO CORPO 5 de dezembro de 2015 a 17 de janeiro de 2016 O Grupo Corpo é uma companhia de dança contemporânea fundada em Belo Horizonte pela família Pederneiras, em 1975. Em mais de quatro décadas, produziu 40 espetáculos, visitou mais de 40 países e contou com a participação de mais de cem bailarinos. É reconhecida pelo trabalho cuidadoso de pesquisa para a construção de suas coreografias, mediadas pela relação entre movimento e música.

PERSON 20 de fevereiro a 3 de abril de 2016 Luiz Sergio Person (1936-1976) foi diretor de cinema e de teatro, além de roteirista, produtor e ator paulistano, tendo atuado em ambas as áreas de expressão. Bastante diferentes entre si, suas obras possuem diversas facetas, mas com um ponto de partida em comum: uma enorme vontade de se comunicar – de maneira clara e plena – com o público. Entre seus filmes estão os clássicos São Paulo Sociedade Anônima (1965) e O Caso dos Irmãos Naves (1967).


MARIA E HERBERT DUSCHENES 28 de abril a 12 de junho de 2016 Maria (1922-2014) e Herbert Duschenes (1914-2003) dedicaram-se à educação e à elaboração de formas inovadoras de compartilhar o saber. O casal de professores – ela bailarina e ele arquiteto – chegou ao Brasil na mesma data e pelo mesmo motivo: em 1940, em razão da Segunda Guerra Mundial. Maria desenvolveu um trabalho de dança pioneiro baseado na experimentação, na liberdade e no autoconhecimento; as ideias vanguardistas de Herbert revelam a comunhão não apenas pessoal, mas profissional de ambos.

GLAUCO 9 de julho a 21 de agosto de 2016 Glauco Vilas Boas (1957-2010) foi cartunista, chargista e quadrinista. Autodidata, começou a desenhar na adolescência, fazendo caricaturas de professores e colegas. Com muito bom humor e um traço rápido, ao mesmo tempo simples e complexo, deu cara nova e uma leveza toda própria para o universo dos quadrinhos brasileiros. Ao lado dos cartunistas Angeli e Laerte, criou a série Los Tres Amigos.

CARTOLA 17 de setembro a 15 de novembro de 2016 Angenor de Oliveira, o Cartola (1908-1980), foi compositor e cantor carioca, um dos fundadores da escola de samba Mangueira, no Rio de Janeiro, e um dos principais sambistas da música brasileira. Foi iniciado ainda jovem no samba e na boêmia por seu amigo Carlos Cachaça, seis anos mais velho, que se tornou seu constante parceiro. Compôs o primeiro enredo para a Mangueira e, apenas em 1974, aos 65 anos, lançou seu primeiro disco.

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ABDIAS NASCIMENTO 17 de novembro de 2016 a 15 de janeiro de 2017 Abdias Nascimento (1914-2011) foi dramaturgo, poeta e artista visual. Dedicou-se à luta contra a discriminação racial e pela valorização da cultura negra em múltiplas frentes. Foi responsável pela criação do Teatro Experimental do Negro (TEN) – a primeira companhia a promover a inclusão do artista afrodescendente no panorama teatral brasileiro –, que atuou no Rio de Janeiro entre 1944 e 1968. Articulou grupos de pressão política, ações educativas e espaços de debate intelectual.

LAURA CARDOSO 23 de fevereiro a 30 de abril de 2017 Laura Cardoso (1927) é atriz e dubladora. Sua carreira começou no rádio, aos 15 anos, e passa por teatro, cinema e televisão, sempre acompanhando a evolução dos meios de comunicação no Brasil. São mais de 70 anos de profissão, dando corpo e alma às muitas mulheres que criou. Força, vitalidade e persistência são características primordiais para descrever sua personalidade e sua carreira.

CONCEIÇÃO EVARISTO 4 de maio a 18 de junho de 2017 Conceição Evaristo (1946) é romancista, contista e poeta, um dos nomes mais relevantes da literatura brasileira contemporânea. Nasceu em uma comunidade em Belo Horizonte e trabalhou como empregada doméstica até 1971, quando concluiu os estudos secundários no Instituto de Educação de Minas Gerais. Em seus textos, explora sobretudo o universo da mulher negra, sua condição, complexidade e humanidade.


ARACY AMARAL 22 de julho a 27 de agosto de 2017 Aracy Amaral (1930) é crítica e historiadora de arte, curadora, jornalista e professora. Suas pesquisas acadêmicas em artes visuais abrangem o modernismo brasileiro, a arte latino-americana, o construtivismo brasileiro e a influência hispânica na arquitetura paulista. Foi professora da Universidade de São Paulo (USP) e diretora da Pinacoteca do Estado de São Paulo e do Museu de Arte Contemporânea (MAC) da USP. Realizou a curadoria de mais de 50 mostras.

INEZITA BARROSO 27 de setembro a 5 de novembro de 2017 Inezita Barroso (1925-2015) foi cantora, atriz, pesquisadora e apresentadora. Dedicou seu talento à paixão pelas manifestações tradicionais da cultura brasileira, em uma obra marcada pelo pioneirismo. Já era uma estrela antes de comandar o Viola, Minha Viola, um dos mais longevos programas da televisão brasileira. Uma estrela com os pés no chão e com a alma embrenhada nas raízes da música nacional, lançou mais de 80 discos.

NISE DA SILVEIRA 25 de novembro de 2017 a 28 de janeiro de 2018 Nise da Silveira (1905-1999) foi médica psiquiatra e curadora, não apenas uma das primeiras mulheres a se formar em medicina no Brasil, em 1931, mas também uma das principais cientistas brasileiras. Foi uma alquimista da psique que redefiniu com determinação novos caminhos pelos territórios da medicina, da filosofia e da arte. Alagoana que estudou na Bahia e viveu no Rio de Janeiro, ela se autodenominou uma “psiquiatra rebelde”.

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ANGEL VIANNA 28 de fevereiro a 29 de abril de 2018 Angel Vianna (1928) é bailarina, professora, coreógrafa e pesquisadora, precursora das noções de consciência e expressão corporal no Brasil. Seu trabalho firma-se no Rio de Janeiro, onde forma profissionais que contribuem para diversificar a dança no país. Apaixonada pelo corpo e por pessoas, dedica-se a estudar o ser humano como dono de um corpo que sente e pensa por inteiro. Seu pioneirismo em relacionar dança e reeducação do movimento é hoje reconhecido nos campos da arte, da terapia e da educação.

ANTONIO CANDIDO 23 de maio a 12 de agosto de 2018 Antonio Candido (1918-2017) foi escritor, crítico literário, sociólogo e professor, considerado expoente da crítica literária brasileira. Suas obras, associadas aos estudos de nossa construção sociológica, tornaram-se base para o debate da formação literária nacional. Destaca-se na interdisciplinaridade de seus estudos, evidenciando aspectos da cultura brasileira.

PAULO MENDES DA ROCHA 13 de setembro a 4 de novembro de 2018 Paulo Mendes da Rocha (1928) é arquiteto, urbanista e professor. Representante da Escola Paulista e ganhador do Prêmio Pritzker, projetou construções públicas e particulares – de praças a estádios, de equipamentos culturais a edifícios de serviço governamental. Projetou o Museu Brasileiro da Escultura (MuBE) e o plano de reforma da Pinacoteca do Estado de São Paulo. Seu trabalho também é marcado por aprofundadas reflexões sobre o papel da arquitetura.


ILÊ AIYÊ 4 de outubro de 2018 a 6 de janeiro de 2019 Ilê Aiyê é considerado o primeiro bloco afro do Brasil. Criado em 1974 no bairro da Liberdade, periferia de Salvador, na Bahia, firma-se como polo de protesto contra o racismo, difundindo um sistema positivo de representação do negro e enaltecendo as raízes africanas da cultura nacional. Produz sua arte com música, dança, ilustração e vestuário, e desenvolve, em paralelo, projetos de extensão pedagógica.

MANOEL DE BARROS 13 de fevereiro a 7 de abril de 2019 Manoel de Barros (1916-2014) foi poeta. Concentrando-se em temas e situações do cotidiano, surpreende o leitor com uma linguagem simples e, ao mesmo tempo, inovadora. Principalmente nos livros publicados a partir dos anos 1960, sua escrita expande os limites da língua ao reunir sentidos aparentemente incompatíveis em construções que extrapolam a gramática padrão. Exaltou a grandeza dos seres e objetos menos valorizados pela sociedade da máquina, do consumo e do descarte.

GREGORI WARCHAVCHIK 27 de abril a 23 de junho de 2019 Gregori Warchavchik (1896-1972) foi arquiteto e um dos responsáveis por introduzir a arquitetura moderna no país, por meio de suas obras e de seus textos divulgados na imprensa. O imigrante ucraniano chegou ao Brasil em 1923, carregado dos debates que já aconteciam na Europa, e, em 1925, levou aos jornais o manifesto Acerca da Arquitetura Moderna. Seus trabalhos implicam uma ruptura e anunciam possibilidades de linguagem.

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LYDIA HORTÉLIO 20 de julho a 8 de setembro de 2019 Lydia Hortélio (1932) é pesquisadora, educadora e pianista. Cresceu em Serrinha, sertão baiano, e dedica-se à pesquisa etnomusical da cultura de infância, baseando-se nas cantigas que acompanham o brincar das crianças, especialmente no interior do Brasil. Seu trabalho apresenta a criança como um agente que constrói relações sociais e que contribui para a preservação da memória por meio de seus brinquedos. Busca a educação pela sensibilidade e pelas manifestações do corpo.

VLADIMIR HERZOG 14 de agosto a 20 de outubro de 2019 Vladimir Herzog (1937-1975) foi jornalista, crítico de cinema, roteirista e diretor. Entusiasta do cinema como ferramenta para retrato, divulgação e transformação da realidade social, teve importante papel na constituição do documentário crítico no Brasil, além de haver contribuído para o debate geral sobre arte e cultura em importantes veículos de comunicação. Atuou como diretor do departamento de telejornalismo da TV Cultura. Foi torturado e assassinado pela ditadura militar brasileira.

EDUARDO COUTINHO 2 de outubro a 24 de novembro de 2019 Eduardo Coutinho (1933-2014) foi cineasta e documentarista. Levou a experiência do jornalismo para a construção de seus documentários, aproximando o cinema da entrevista para registrar os relatos de seus personagens sem a prática comum de se distanciar da cena. Demonstrou um profundo interesse pelo outro e por “pessoas comuns”, indivíduos marcantes de carne e osso que emergiram diante de suas câmeras.


ALCEU VALENÇA 14 de dezembro de 2019 a 2 de fevereiro de 2020 Alceu Valença (1946) é cantor e compositor. Promove fusões originais do rock com ritmos nordestinos tradicionais, como baião, coco, frevo e toada, sendo fundamental para chamar a atenção do público para os ritmos nordestinos. Em seu baú de referências, juntam-se o cordel, o circo e a canção brasileira, cruzamentos que se ampliaram em suas andanças por Garanhuns, Recife e Olinda. Sua poesia também surpreende pela inventividade.

RINO LEVI 29 de fevereiro a 12 de abril de 2020 Rino Levi (1901-1965) foi arquiteto e urbanista. Destaca-se por ter realizado projetos que conjugam inovações técnicas e soluções originais. São edifícios variados que vão de residências a cinemas e hospitais. Com participação intensa em órgãos de classe e na imprensa, contribuiu para a regulamentação do trabalho arquitetônico e para a consolidação da arquitetura moderna brasileira, principalmente do processo de metropolização da cidade de São Paulo.

LIMA DUARTE 18 de novembro de 2020 a 7 de fevereiro de 2021

Lima Duarte (1930) é ator, diretor, dublador, narrador, sonoplasta, roteirista e apresentador. Atuou em radionovelas, teatro, televisão e cinema. Pioneiro da televisão brasileira, é reconhecido por personagens marcantes, construídos a partir de sua origem rural e memória afetiva. Uma ampla galeria de personagens com sotaques e subjetividades diversos, criando ações físicas e outras marcas que os distinguem na memória do público.

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“SE EU FOR SACRIFICADO EM NOME DO MEU POVO, ESTOU RECOMPENSADO DE TUDO. TODA A MINHA VIDA É ISSO MESMO, É O QUE INDICA TODA A MINHA BIOGRAFIA.”

Abdias Nascimento no livro Abdias Nascimento: Retratos do Brasil Negro, de Sandra Almada





A VOZ QUE NÃO CALA


por Eugênio Lima

“NÃO INTERESSAVA AO TEN AUMENTAR O NÚMERO DE MONOGRAFIAS E OUTROS ESCRITOS, NEM DEDUZIR TEORIAS, MAS A TRANSFORMAÇÃO QUALITATIVA DA INTERAÇÃO SOCIAL ENTRE BRANCOS E NEGROS. VERIFICAMOS QUE NENHUMA OUTRA SITUAÇÃO JAMAIS PRECISARA TANTO QUANTO A NOSSA DO DISTANCIAMENTO DE BERTOLT BRECHT. UMA TEIA DE IMPOSTURAS, SEDIMENTADA PELA TRADIÇÃO, SE IMPUNHA ENTRE O OBSERVADOR E A REALIDADE, DEFORMANDO-A. URGIA DESTRUÍ-LA.” Abdias Nascimento, Teatro Experimental do Negro: Trajetória e Reflexões (2005)

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Abdias Nascimento nasceu em 14 de março de 1914 em Franca, no interior de São Paulo, e fez sua passagem em 23 de maio de 2011, no Rio de Janeiro (RJ). Entre tantas realizações, foi fundador do Teatro Experimental do Negro (TEN), num tempo em que, para a cultura hegemônica brasileira, negro e teatro eram palavras que não habitavam a mesma frase. No imaginário branco dominante, as negras e os negros são estes seres capturados pelos outros, cuja ausência é naturalizada, cuja presença não se vê, não se compreende e só é invocada quando nada se quer compreender. No Brasil de 1945, de maneira geral, as negras e os negros não estavam representados no palco nem na plateia. Por isso, a criação do TEN, um organismo teatral aberto para o protagonismo negro, em 1944, e a apresentação do espetáculo O Imperador Jones em 8 de maio de 1945, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, com Aguinaldo Camargo como protagonista e direção de Abdias Nascimento, são marco fundamental para entender a representação e a presença negra no teatro brasileiro e todos os dilemas decorrentes disso. A atuação do TEN foi ampla, pois, além da dramaturgia, da presença negra, do teatro como meio de conscientização do negro, o grupo desempenhou diversas atividades de caráter social e político, alcançando outros palcos ao amplificar a militância e o engajamento nas lutas contra a discriminação racial na sociedade brasileira. A presença das mulheres foi de fundamental importância para a solidificação do grupo: Ruth de Souza, Léa Garcia, Neusa Paladino, Maria d’Aparecida e Mercedes Baptista estão entre as atrizes que participaram do TEN desde o primeiro momento. A criação do jornal Quilombo foi outro ponto marcante na trajetória do grupo. Integrava uma imprensa negra ativa,

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sobretudo em São Paulo, e foi uma espécie de porta-voz da negritude, funcionando como espaço de denúncias de discriminação e apoiando organizações afro-brasileiras em todo o país. Em 1949, o TEN ensaiava a peça Calígula, de Albert Camus, que não chegou a entrar em cartaz, em virtude da falta de financiamento para a sua conclusão. Houve apenas uma apresentação de seu primeiro ato, no Teatro Ginástico, no Rio de Janeiro, com a presença do próprio Camus (que ganharia o Nobel de Literatura poucos anos depois). Raros são os grupos de teatro brasileiros que podem dizer ter recebido, para assistir a um de seus ensaios, um autor premiado com o Nobel. Isso é mais um exemplo da relevância ímpar e do ineditismo do TEN. Em 1955, o grupo promoveu a Semana do Negro e um concurso de artes plásticas com o tema Cristo Negro. Em 1961, publicou Dramas para Negros e Prólogo para Brancos, um marco na dramaturgia negra brasileira e a primeira antologia dedicada à presença afro-brasileira na dramaturgia. Em 1964, realizou o Curso de Introdução ao Teatro Negro e às Artes Negras. Sua atuação se destacou no cenário cultural do Rio de Janeiro até 1968, quando, após a primeira exposição da coleção Museu de Arte Negra, Abdias Nascimento se viu obrigado a permanecer no exterior em razão da repressão política durante a ditadura militar. Os livros Teatro Experimental do Negro – Testemunhos, O Negro Revoltado e Relações Raciais no Brasil registram boa parte da atuação do TEN e seu contexto social. Para mim, Abdias faz parte de um conjunto de pensadores-artistas-militantes-visionários que tem nomes como: Carolina Maria de Jesus, Lélia Gonzalez, Beatriz Nascimento, Guerreiro Ramos, Milton Santos, Clovis Moura, Rubem Valentim, Maria

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Firmina dos Reis, Luiz Gama, Pixinguinha, Cartola e Dona Ivone Lara, entre tantas e tantos outros que carregam os dilemas de seu tempo nas costas, abrindo caminhos para algo que parecia interditado. A meu ver, Abdias, como todas as pessoas que não se dissociaram dos desafios de seu tempo, carrega também consigo, no peso de seu corpo, a coletividade que o formou. É uma voz singular contemporânea que fala dos desafios-mundo, uma voz-mosaico formada por outras vozes, uma voz em rede que carrega os dilemas de seu tempo, uma voz prospectiva que busca a emancipação de sua coletividade e, por consequência, a sua própria: “A revolução quilombista é fundamentalmente antirracista, anticapitalista, antilatifundiária, anti-imperialista e antineocolonialista” (“Quilombismo, um conceito emergente do processo histórico-cultural da população afro-brasileira”, de Abdias Nascimento, 1980). Imagino essa voz como uma espécie de corifeu negro, que declama e convoca o coro a cantar junto. De vez em quando, eu me imagino nesse coro transistórico, como parte dessa colcha de retalhos da diáspora negra. Como se suas vozes de alguma maneira reexistissem na minha; gosto de pensar que as vozes dos que se foram estão presentes em nós. E, no meu devaneio, acredito que, se ele estivesse aqui, diria:

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A Corifeus NEGRXS Quilombismo é um conceito científico histórico-social. Quilombo quer dizer reunião fraterna e livre. A sociedade quilombola representa uma etapa no progresso humano. Todos os elementos básicos são de uso coletivo. Quilombo é uma atitude mental, é um território imaginário. Cada coração de negro é um quilombo pulsante. Então, neste momento, aos pés do Baobá...


Isto aqui é um Quilombo! Esta é a nossa Utopia. O Quilombo se faz onde nós estamos. Reexistir! Abdias é parte da chama transmitida de geração a geração. É desejo-luta de libertação. Sua voz-história é nossa memória. Abdias Nascimento é ancestralidade.

EUGÊNIO LIMA É DJ, ator-MC, pesquisador da cultura afrodiaspórica, membro fundador do Núcleo Bartolomeu de Depoimentos e da Frente 3 de Fevereiro, e diretor do Coletivo Legítima Defesa. Sua conquista mais recente é o Prêmio Shell de Teatro 2020 de Melhor Música, com “Terror e miséria no terceiro milênio – improvisando utopias”.


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“ADEUS, RIACHÃO, SAUDADE! JÁ ESTAMOS DE PARTIDA. AQUI COMEÇO A VIAGEM PELAS ESTRADAS DA VIDA.”

“Tempo São Bento”, poema publicado em O Poeta da Madrugada (2015)





AS CHEIAS DO RIO UNA


por Almério

Anos 1980. Era eu criança na cidade de Altinho indo ver as cheias do Rio Una, no interior de Pernambuco, onde morava. Adorava ver as águas volumosas que cortavam tantas cidades também passarem pela minha. Na mesma rua morava Danielma, minha amiga de infância. Tínhamos a mesma idade. Ela era fã de Alceu Valença. Tinha a coleção dos seus discos, todos eles. Enquanto as outras crianças ouviam Turma do Balão Mágico ou Menudo, como eu, ela ouvia Alceu. Eu não entendia direito, até que um dia passei em frente à sua casa e parei para ouvir aquele som... Lembro da sensação de ficar mexido com aquelas canções, aqueles timbres que eu nem sabia o que

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eram, mas me remexiam por dentro; aquela voz relampejando dentro da gente dizendo “na bruma leve das paixões que vêm de dentro”, aquilo era forte demais. Lembro de sair cantando “tu vens, tu vens, eu já escuto os teus sinais”. Numa dessas manhãs com o som tomando conta da Rua Elias Felipe, ouço “Solidão”, de Alceu, e vou em direção ao rio deixando a música ir sumindo no vento. O tempo passou. Danielma me contava, já adolescente, dos shows a que tinha ido assistir do Mestre Encantado Alceu Valença, de tê-lo conhecido – eu ficava maravilhado. As músicas de Alceu já estavam no imaginário do povo, a identificação estava instaurada, as músicas tocavam nas novelas, as rádios faziam ressoar cada vez mais nosso sotaque, pronunciado com firmeza e poesia nos sopros sonoros daquele homem-jesus-nordestino. Anos 1990. E todo mundo queria sê-lo: virou febre, moda, virou desejo cantado; era a voz suprema e governadora de Pernambuco tomando conta do Brasil. Ninguém fica indiferente ao ouvi-lo. É um dos artistas mais luminosos que existem. Ressignificou o que chamam de “regionalismo” e criou uma linguagem e uma sonoridade que dialogavam com o mundo. Em 2003, eu, Almério, começo a me apresentar nos bares e nas casas noturnas da cidade de Caruaru (PE) cantando música popular brasileira. Foi aí que me tornei mais fã de Alceu Valença. Aonde eu chegava sempre me pediam uma música sua. Depois de algum tempo fui contratado para fazer um show no palco principal do São João de Caruaru, que tem a tradição de ser o maior e melhor São João do mundo. No mesmo dia e no mesmo palco, a atração da noite era o Mestre Encantado.

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Fiz meu show com a Banda de Pífanos Zé do Estado e, quando terminei, as pessoas vieram ao meu encontro dizer que Alceu Valença estava sendo entrevistado enquanto eu me apresentava, quando parou a entrevista e disse: “Era isso que eu fazia e faço, uma banda de pife com guitarra. E me alegra ver uma juventude assim”. Fiquei pensando naquilo, fui para casa pensando nos caminhos que sempre me levaram a ele, e lembrei que, antes de cortar minha cidade, o Rio Una passava por São Bento do Una, cidade de Alceu. As águas desse rio eram nossa ligação. Era o canto valenciano vencendo os desafios do percurso, de ser quem se é, de abrir passagem para o menino cantor que se banhava daquele encanto e nem supunha que, anos depois, sentaria para cantar para o mestre em seu quintal.

ALMÉRIO Pernambucano de Altinho, é compositor, cantor e ator. Iniciou sua carreira cantando em bares e atuando em peças teatrais de Caruaru. O cantor já se apresentou em festivais e eventos importantes, como Rock in Rio, Mimo Amarante (Portugal) e RIO2C (shows de abertura e encerramento).


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“QUANDO RESOLVI TRABALHAR O CORPO INTEIRO SÓ COM PAPEL, FOI MUITO INTERESSANTE. PORQUE O PAPEL TEM UMA TEXTURA. A PELE TAMBÉM TEM UMA TEXTURA. O QUE EU QUERIA ERA MOSTRAR A MINHA PELE E A PELE DO PAPEL, PARA MOSTRAR A DELICADEZA DA PELE...”

Depoimento para a Ocupação Angel Vianna (2018)





ANGEL VIANNA UMA PRÁTICA DE VIDA


por Juliana Ribeiro

Dar importância ao que importa: o corpo. Corpo potente, corpo emocionado, corpo cognitivo, corpo sensível, corpo eu. Meu encontro com Angel Vianna é, antes de tudo, um encontro comigo mesma. Eu a conheci em outros corpos antes de vê-la pela primeira vez. Muito jovem, fiz o curso profissionalizante de atores da Casa das Artes de Laranjeiras, no Rio de Janeiro (RJ), e lá tive aulas de corpo com Paulo Trajano. Alguns anos depois, prestei vestibular e entrei para a segunda turma de licenciatura em dança da recém-criada Faculdade Angel Vianna. Na primeira semana, Angel subiu até a sala D, sentou-se no chão junto com a gente e se apresentou. Que

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impressionante! Com mais de 70 anos de idade, ela iniciava mais um projeto: uma faculdade especializada em dança, a única do Brasil. Durante os anos de graduação, fui vivenciando seu trabalho pelo corpo dos professores, pelas conversas na cantina, pelo chão de madeira, pela arquitetura da casa, pela proximidade e intimidade com tudo e todos que conviviam ali. Porque Angel é muito mais que aulas de seu trabalho, é uma filosofia de vida e uma pedagogia, já dizia minha amiga Daniela Santos em conversas sobre ela. O modo de organizar o currículo de sua escola e faculdade diz muito de Angel, que não se limitou a oferecer apenas seu trabalho corporal. Todas as técnicas de dança que tenham afinidade com seu pensamento têm espaço em sua casa. É imensa sua generosidade. Fui continuando, fui crescendo. Angel acreditou em mim quando me cedeu a coordenação da especialização Terapia Através do Movimento – Corpo e Subjetivação. E quando me chamou para pensar, junto com profissionais já consagrados, o currículo da especialização Preparação Corporal para Atores. Fomos criando confiança uma na outra e pudemos trabalhar muito, com especializações Brasil afora. Ajudei a estruturar a administração de sua escola e faculdade, e ela pôde tirar férias, coisa que não fazia havia muitos anos. O vento da vida soprou, tive uma filha, fui morar em João Pessoa (PB) e trabalhar na licenciatura em dança da Universidade Federal da Paraíba (UFPB). Angel saiu a dançar pelos palcos do Brasil em turnê com Qualquer Coisa a Gente Muda, financiado pelo Palco Giratório. Deu muitas vezes a Aula do Papel, encantando e se surpreendendo em cada lugar por onde passava.

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Angel vive! Vive no auge de seus 92 anos, vive no corpo de cada um que, direta ou indiretamente, a encontrou pela


vida. Seu trabalho reverbera fortemente na dança brasileira. Formou muitos, e esses muitos formaram outros muitos. E como é atual e necessário seu trabalho. Nestes tempos de pandemia de coronavírus, fica evidente a necessidade de sermos corpo, pois são as práticas corporais que dão sustento físico, psíquico e emocional para passarmos por essa adversidade. Viva Angel! Viva! Viva! Viva!

JULIANA RIBEIRO É professora e pesquisadora de dança na Universidade Federal da Paraíba. Autora do livro Angel Vianna Através da História – a Trajetória da Dança da Vida.


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“FOI NO PASQUIM QUE EU COMECEI A ENTENDER MELHOR COMO ERA A CONFECÇÃO DE UM CARTUM. DEPOIS DE ENVIAR MUITOS DESENHOS, FUI PUBLICADO NA SEÇÃO DE CARTAS E CHEGUEI A TER UMA PÁGINA INTEIRA COM OS MEUS TRABALHOS. AQUILO FOI A GLÓRIA PRA MIM!”

Depoimento para a Ocupação Angeli (2012)





O OLHAR CRÍTICO E RAIVOSO DE ANGELI


por João Montanaro

Fui exposto à obra de Angeli muito cedo. Não estou dizendo isso para ostentar uma precoce capacidade de interpretação; muito pelo contrário: eu não entendia bulhufas. Com 10 anos de idade e morando no subúrbio, faltava-me repertório para entender as situações desenhadas. Ainda assim, não conseguia parar de ler. Tira após tira, eu acompanhava as idiossincrasias de personagens como Rê Bordosa, Bob Cuspe, Skrotinhos e Meia Oito tentando compreender tudo aquilo, mas, se eu falhava nessa tarefa, ainda era notável o que estava na minha frente: um retrato muito acurado de um momento específico no tempo.

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Como todas as coisas boas e ruins, aconteceu nos anos 1980. O país estava no meio de uma abertura política, a censura oficial do Estado chegava ao fim e o humor gráfico nacional ainda era refém da boêmia intelectual de Ipanema, com o pessoal de O Pasquim. Enquanto isso, em São Paulo (SP), Angeli e Toninho Mendes – dois oriundos da Zona Norte que não foram muito bem na escola – resolvem aproveitar o momento do país para falar sem rodeios sobre assuntos que antes eram apenas insinuados e, principalmente, parar de gastar tinta só desenhando general. Lançam a Chiclete com Banana, revista bimestral que acaba mudando completamente o eixo dos quadrinhos nacionais: saem a crítica política e a boêmia intelectual carioca e entram o comentário cultural e o comportamento esquizofrênico da metrópole paulistana. Nomes que viriam a ter projeção nacional, como Laerte, Glauco e Luiz Gê, publicam regularmente na revista – depois, viriam a estrelar suas próprias publicações pela mesma editora, Circo Editorial, e a colaborar na Folha de S.Paulo, como Angeli. Eu não sabia de nada disso quando li Angeli pela primeira vez. Mesmo seus personagens não apresentando grandes arcos dramáticos ou narrativas mirabolantes – e todos sendo produto do escracho e da raiva para com aqueles tipinhos –, acompanhá-los fazia surgir em mim um sentimento de perversa empatia. Eu não necessariamente me importava com aquelas figuras, mas queria mantê-las por perto porque parecia que, por meio delas, um retrato muito vivo da cidade naquela época se desenhava para mim.

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Mais tarde, a partir do fim dos anos 1990, quando Angeli passa a concentrar sua produção na charge política da Folha, acaba utilizando as mesmas ferramentas que o permitiram


retratar tão bem o comportamento da década de 1980, só que agora quanto às relações político-partidárias de Brasília. Evitando o uso da caricatura das figuras de poder, ele expande o comentário para toda a classe e cultura política. O traço empregado nas charges às vezes beirava o grotesco. A ideia era trazer desconforto tanto para o leitor do jornal quanto para o político retratado – a piada surge da aflição, não de um punchline numa linha de diálogo ou de situações de humor “físico” entre bonecos narigudos. Ele acaba desenvolvendo um estilo no qual a crítica incisiva e o potencial de síntese da imagem se sobrepõem à necessidade do humor. O grande denominador comum na obra de Angeli talvez seja a facilidade que tem em instrumentalizar seu olhar crítico e raivoso para sintetizar comportamentos e contextos, criando, assim, esse mundo gráfico que, apesar de bastante particular, é também visceralmente familiar.

JOÃO MONTANARO Nasceu em São Paulo em 1996, estuda cinema e, desde 2010, trabalha como cartunista da Folha de S.Paulo e como ilustrador em diversas outras publicações. Em 2016, lançou o livro Eu Não me Arrependo de Nada.


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“TERÁ NA VERDADE ALGUM CRÍTICO LUCIDEZ NÍTIDA DO IMPACTO QUE UMA FRASE SUA, OU UM ADJETIVO MESMO, EM MEIO A UM PARÁGRAFO QUE ELE RAPIDAMENTE BATE À MÁQUINA SOBRE DETERMINADA EXPOSIÇÃO, PODE CAUSAR NO PINTOR JOVEM – OU MESMO NO ARTISTA ‘CALEJADO’? NÃO ACREDITO...”

Trecho do texto “Anita Malfatti: cinquenta anos depois”, publicado em Arte e Meio Artístico: entre a Feijoada e o X-Burguer, de Aracy Amaral





SERIA, AFINAL, PRODUTIVO DIZER QUE EXISTE UMA ARTE BRASILEIRA?


por Paulo Miyada

Sempre dedicada a pensar criticamente a cultura nacional, Aracy Amaral pesquisou as bases culturais da ocupação de nosso território1, avaliou a originalidade e as filiações da primeira e da segunda geração de artistas modernistas brasileiros2, refletiu sobre a chegada das vanguardas construtivas internacionalistas ao país e sua aclimatação3, enfim, ajudou a estabelecer alguns dos marcos da história da arte brasileira e, nada ufanista, mostrou-se sempre atenta aos empréstimos e desvios em relação às matrizes culturais europeias. Nunca defendeu, portanto, um direito nato à arte brasileira de reconhecer-se como tal e manifestar-se com uma essência coesa e estável.

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Nesse percurso, uma pergunta permaneceu sempre presente: seria, afinal, produtivo dizer que existe uma arte brasileira? Foi em torno dessa pergunta que a conheci pessoalmente, integrando a equipe curatorial de uma mostra retrospectiva do programa Rumos Artes Visuais, que realizamos em 20144. E foi buscando aprofundar a reflexão sobre esse assunto que ela propôs a 34ª edição do Panorama do MAM-SP 5,convidandome para ser seu curador-adjunto. De uma pesquisa iniciada 20 anos antes, ela sugeriu que pensássemos a exposição tendo como núcleo um conjunto abrangente de zoólitos dos povos sambaquieiros, todos realizados em território brasileiro, porém antes que este estivesse assim batizado, quer dizer, antes da colonização europeia. Nesse convívio, comprovei a seriedade com que Aracy Amaral elabora suas teses históricas e persegue sua confirmação ou refutação sem buscar atalhos formais ou truques retóricos. Mais ainda, testemunhei seu cuidado ilimitado com a integridade dos artistas e de seus processos criativos, complementado pela comunicação franca e constante com as equipes de cada instituição. Surpreendi-me com seu fôlego sem fim e com seu interesse em ver o que lhe é novo e estranho, mesmo se for para tecer críticas. Mais adiante, na elaboração de uma mostra sobre os impactos do regime militar na sempre frágil trama cultural e institucional brasileira6, visitei seus arquivos para conhecer sua proposição do encontro de críticos de arte da América Latina (1980), a mais incisiva e política crítica sistêmica que a Bienal de São Paulo já recebeu. Quem puder ler os manuscritos e os artigos publicados por Aracy Amaral nessa ocasião testemunhará que sua principal contribuição política foi uma posição ética inabalável.

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1. Por exemplo, em A Hispanidade em São Paulo – da Casa Rural à Capela de Santo Antônio (São Paulo: Editora Nobel, 1981). 2. Como em Artes Plásticas na Semana de 22 (São Paulo: Editora 34, 2004) e Tarsila: Sua Obra e Seu Tempo (São Paulo: Editora 34: Edusp, 2003). 3. Ver: Projeto construtivo brasileiro na arte (1950-1962). Rio de Janeiro: MAM; São Paulo: Pinacoteca, 1977. 4. Singularidades/Anotações – Rumos Artes Visuais 1998-2013. Curadoria de Aracy Amaral, Paulo Miyada e Regina Silveira. Itaú Cultural, 2014. 5. 34º Panorama de Arte Brasileira: da Terra, da Pedra, Daqui. Curadoria de Aracy Amaral e curadoria-adjunta de Paulo Miyada. Museu de Arte Moderna de São Paulo, 2015. 6. AI-5 50 Anos – Ainda Não Terminou de Acabar. Curadoria de Paulo Miyada. Instituto Tomie Ohtake, 2018.

PAULO MIYADA É curador e pesquisador de arte contemporânea. Possui mestrado em história da arquitetura e urbanismo pela Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (FAU/USP), onde também se graduou. É curador do Instituto Tomie Ohtake e coordenador de seu Núcleo de Pesquisa e Curadoria, além de cocoordenador do programa de cursos da Escola Entrópica, na qual também é professor. Foi assistente de curadoria da 29ª Bienal de São Paulo (2010), integrou a equipe curatorial do Rumos Artes Visuais (2011-2013) e foi curador-adjunto do 34º Panorama da Arte Brasileira do MAM/SP (2015). Atualmente é curador-adjunto da 34ª Bienal de São Paulo (2021).


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“MINHA LITERATURA SÓ TOCA AS PESSOAS PORQUE ELA TEM O SABOR DA VIDA.”

Conceição Evaristo, em entrevista para o Itaú Cultural





UMA CELEBRAÇÃO DE CONCEIÇÃO EVARISTO


por Winnie Bueno

Uma vez presenciei um questionamento sobre o amor que mulheres negras dedicam a Conceição Evaristo. Eu estava em um evento, e uma das mesas mais esperadas era aquela em que a escritora falaria. Um pequeno auditório lotado, e todas aguardavam ansiosas sua chegada – incluindo eu. Interessava-nos ouvir suas palavras e seus pensamentos, presenciar toda a imensidão dos seus saberes. Ruidosamente aplaudida, Conceição ocupou seu lugar à mesa caminhando devagar, acenando e sorrindo para todas que ali estavam. A negridão de seus olhos e de sua pele, combinada com os grisalhos cabelos, refletia os olhos e a negridão daquelas que a aguardavam. Esse momento de

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profundo amor, entretanto, foi pontuado pela fala de uma das organizadoras, que fez questão de deixar claro que aquela não era uma mesa para Conceição, sobre Conceição. Que se tratava de uma homenagem a outra mulher, e era dela que iriam falar. O que a organizadora da mesa não sabia é que nossa admiração pela escritora potencializa todos os espaços, faz de qualquer lugar em que ela esteja uma ocupação de amor e celebração ancestral, na qual emergem as potências das vozes femininas. Nascida em um momento em que as vozes de mulheres negras eram ainda mais suprimidas dos processos de constituição do conhecimento, Conceição inscreveu sua intelectualidade em metodologia própria: a escrevivência. Seu nome está emaranhado às trajetórias de resistência a partir da escrita, um espaço seguro no qual essas mulheres confrontam as narrativas estereotipadas que frequentemente são mobilizadas para suprimir as definições que fazem de si mesmas. A voz e as palavras de Conceição Evaristo encontram as de Maria Firmina dos Reis, entrelaçam-se na escrita de Carolina Maria de Jesus, deságuam nos escritos de Lívia Natália. Essa água, cristalina, doce, amorosa e fértil, uma fertilidade mobilizada na semeadura de possibilidades de inscrição autoral para outras mulheres negras. Um rio de Oxum, negra, doce e revolucionária como Conceição.

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Sempre que a vejo, sinto-me mobilizada pela força mítica ancestral de Oxum, oriunda da fé afrorreligiosa de Conceição cristã. Sua ancestralidade negra é tão pulsante que emerge em encanto mítico sagrado da oralidade. No cuidado com sua menina Ainá, percebemos a mãe Conceição, essa que acolhe as multiplicidades da pureza da filha, em narrativas


que devolvem às mulheres negras uma maternidade para além das ideologias da feminilidade eurocêntrica. Os emaranhados de amor das vozes de mulheres negras estão também na de dona Joana, sua mãe, e, assim, Conceição é mãe, é filha, é circularidade do afeto. É inspiração da construção do amor, esse amor-revolução. Este difícil período de isolamento social fez dela um exemplo ainda maior de sua própria resistência e de seu compromisso com as subjetividades de mulheres negras. Nós a vemos em lives e a percebemos interagindo com o conteúdo produzido pela juventude, ensinando-nos e cobrando-nos aquele acordo: “a gente combinamos não morrer”1. Minha querida e amada, sua vida e sua obra nos inspiram a continuar. É bom que todos saibam: em qualquer lugar em que você estiver, estarão as mulheres negras a lhe render homenagens, amor e afeto, porque é de amor e afeto que se fazem nossas resistências, é com amor e afeto que celebramos Conceição Evaristo e suas escrevivências. 1. Trecho de conto do livro Olhos d’Água (Rio de Janeiro: Editora Pallas, 2014).

WINNIE BUENO É ialorixá, mestra em direito e coordenadora da Winnieteca (twitter.com/WinnieTeca), projeto de distribuição de livros para a população negra desenvolvido em parceria com o Twitter BR e o Instituto Geledés.


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“EU GOSTAVA MAIS DE CANTAR. QUANDO O MAESTRO VILLA-LOBOS DAVA AQUELAS FESTAS CÍVICAS, EU, QUE PERTENCIA AO ORFEÃO ARTÍSTICO, ERA SEMPRE ESCOLHIDA. CANTEI MUITO. ME APRESENTEI MUITO. FIZ MUITO SHOW SEM SABER QUE AQUILO ERA SHOW.”

Depoimento para a Ocupação Dona Ivone Lara (2015)





DONA IVONE LARA, RAINHA (E JOIA RARA) NA HISTÓRIA DO SAMBA


por Teresa Cristina

O samba carioca, tão famoso e espalhado por todo o país e também pelo mundo, nasceu de uma mulher. Uma senhora baiana de Santo Amaro da Purificação chamada Tia Ciata. Sim, o samba que chegou à Praça Onze no início do século passado veio trazido por mão feminina. Tia Ciata, segundo vários historiadores, cantava, tocava pandeiro e improvisava versos – por causa disso, chegava-se a afirmar que ela também compunha. O apagamento de sua história deu lugar à propagação da vida e da obra de muitos homens talentosos – sem sombra de dúvida – que frequentavam seu terreiro. O fato é que temos imagens remotas de Pixinguinha, João da Baiana, Donga, João da

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Gente, para citar alguns dos bambas frequentadores de seu quintal, mas não há um registro sequer do timbre de voz de Tia Ciata. Nenhuma imagem dela dançando, improvisando ou tocando seu prato e faca – instrumentos tão comuns a qualquer baiana oriunda do Recôncavo. No meu entender, o que aconteceu com Tia Ciata e com todo o poder matriarcal do samba que nascia no Rio de Janeiro se deve a um fato importante: o apagamento das figuras femininas em um ambiente tão declaradamente machista como o do samba. Ao abandonar o matriarcado, o samba carioca elege seus novos personagens principais, e a imagem da mulher como grande aglutinadora social vai se apagando, deixando de existir. Tudo isso me vem à cabeça quando penso em Dona Ivone Lara e em sua importância para o samba brasileiro. Os desafios encontrados – e, diga-se de passagem, docemente driblados por seu talento – continuam por aí, mas com uma pequena diferença: seu legado e a documentação de sua história influenciam e seguirão influenciando as gerações futuras. Sua história não foi apagada. Toda cantora, compositora ou instrumentista que ousa trilhar o caminho do samba tem – ou precisa ter – a trajetória de Dona Ivone na memória.

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A foto estampada na capa de seu álbum inicial já traz uma pista do que se trata: é a única mulher em meio a tantos sambistas já consagrados. Sorri ao céu empunhando um cavaquinho. A voz é doce e forte, de uma grande sereia preta, linda. As composições são completamente sofisticadas, com melodias atrevidas, inesperadas. O samba de Dona Ivone nos conquista à primeira audição e nunca irá nos decepcionar, é fato. Os álbuns seguintes só fizeram confirmar a sua grandiosidade como uma das maiores melodistas brasileiras do século XX.


Como se não bastasse o talento nato, também aprendemos com ela a importância do serviço social e da terapia ocupacional no tratamento de pessoas com distúrbios mentais. Sim, Dona Ivone Lara era enfermeira formada e trabalhou na equipe da doutora Nise da Silveira, médica psiquiatra que revolucionou o tratamento mental no Brasil. Ao se especializar em terapia ocupacional, Dona Ivone ajudou a criar o conceito de musicoterapia, introduzindo instrumentos de percussão nas reuniões com os pacientes. O mais lindo dessa história é que ela só passou a se dedicar exclusivamente ao samba depois de se aposentar, considerando sua missão com os doentes mentais cumprida com êxito. A história de Dona Ivone me emociona com a mesma força de suas canções. Fico muito feliz de ter vindo ao mundo na mesma encarnação que ela. Nunca me esquecerei dos momentos em que cantamos juntas ou trocamos ideias. Eu conheci uma rainha de verdade. Soberana, generosa, da mais alta patente.

TERESA CRISTINA É cantora e compositora. Sua carreira começou nos anos 1990, cantando em bares no Rio de Janeiro. Durante a pandemia de covid-19, suas lives diárias e temáticas foram um grande sucesso de audiência.


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“O QUE ELE FEZ FOI MUITO INTERESSANTE, NÃO FOI PEQUENO. O QUE ELE FEZ TEM RELEVÂNCIA DENTRO DA HISTÓRIA DO CINEMA MUNDIAL.”

Carlos Nader, cineasta, em depoimento para a Ocupação Eduardo Coutinho (2019)





CRITÉRIO E ACASO EM EDUARDO COUTINHO


por Carlos Alberto Mattos

Parte da Ocupação Eduardo Coutinho, um monitor reunia cenas de vários filmes do diretor sob o título A Conversa em Crise. Ali estava o momento angustiante em que Coutinho interrompia a entrevista com João Mariano em Cabra Marcado para Morrer por causa de um problema no som e quase punha a perder o elã do entrevistado. Ou a cena de Edifício Master em que um personagem inquire o cineasta sobre a possibilidade de obter um emprego. Ou ainda o encontro com Aniceto do Império em O Fio da Memória, quando o sambista põe Coutinho na roda com sua picardia de velho malandro. Essas irrupções do imprevisto, que subvertem a rotina da conversa e desestabilizam o lugar do diretor, são as melhores

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testemunhas da constante dialética entre critério e acaso nos filmes de Coutinho. São as pontas de um iceberg que fica submerso, mas sempre presente, no seu chamado cinema de conversa. O modelo de trabalho de Coutinho se baseava justamente num balanço de organização e surpresa, metodologia e abertura para o inesperado. Podemos dizer que, de Boca de Lixo (1992) a Últimas Conversas (2015), com poucas exceções, o documentarista trabalhou a partir de escolhas criteriosas: determinada comunidade, um edifício, um segmento social. Dentro do universo escolhido, realizava-se uma pesquisa prévia de personagens, sem a sua participação. Em seguida, ele fazia enfim sua seleção, segundo parâmetros subjetivos que envolviam carisma, narratividade e empatia pessoal. Ao se encontrarem com o diretor diante da câmera, aquelas pessoas já haviam passado por três crivos (o universo, a pesquisa e a seleção), ou seja, eram resultado de uma sistematização e de um planejamento. O encontro para a filmagem inaugurava, então, uma nova etapa, em que a planificação era colocada à prova pelo rumo da conversa. Nem tudo o que surgia na entrevista de pesquisa se confirmava na filmagem definitiva. Coutinho sentia-se livre e receptivo a tudo o que pudesse vir, e até estimulava o interlocutor a surpreendê-lo. Daí nascia o frescor de seus filmes – e aquela sensação de que tudo ali estava sendo dito pela primeira vez. É o que dava margem até para a crise nas conversas, tomada tanto como ameaça de fracasso quanto como motivo de desconcerto e comicidade.

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Eduardo Coutinho deixou muitas lições para o documentário brasileiro: a atenção à gente comum, o compartilhamento da autoria com o entrevistado, a importância da fabulação na construção do real de cada um e a proximidade entre realidade e representação. Mas talvez sua contribuição


metodológica mais importante tenha sido chamar a atenção para o fato de que todo documentário (ou ao menos o de interação com personagens) deve combinar critério e acaso em alguma medida. Sem um dos dois, é grande o risco de ter conversa jogada fora.

CARLOS ALBERTO MATTOS É crítico e pesquisador de cinema, cocurador da Ocupação Eduardo Coutinho e autor do livro Sete Faces de Eduardo Coutinho (Boitempo/Itaú Cultural/Instituto Moreira Salles).


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“A QUALIDADE TÉCNICA DA MOVIMENTAÇÃO CHEGA A SER IMPRESSIONANTE. OS BONECOS SÃO DOTADOS DE UMA AGILIDADE E DE UMA CAPACIDADE DE EXECUTAR COM NATURALIDADE E PRECISÃO MOVIMENTOS COMPLEXOS QUE LHES CONFEREM UM PODER DE CONVICÇÃO PROFUNDAMENTE HUMANO.”

Yan Michalski (1932-1990), crítico de teatro, no extinto Jornal do Brasil





ENCONTRO COM O GIRAMUNDO


por Eduardo Felix

O primeiro espetáculo de bonecos a que assisti foi Os Orixás, do Giramundo, em 2001. Foi um momento de revelação, desses que acontecem poucas vezes na vida. Na época, eu era estudante de belas-artes, ao mesmo tempo muito interessado por teatro, de tal maneira que me sentia dividido entre essas duas áreas. Quando vi no palco aquelas esculturas se movendo de maneira tão natural, em uma narrativa misteriosa que me surpreendia a cada cena, percebi que havia uma possibilidade de reunir em um mesmo trabalho todas as práticas que me interessavam artisticamente: escultura, teatro, literatura, pintura, desenho... Tive certeza de que havia encontrado uma linguagem à qual eu iria me dedicar.

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Naquela época, porém, o Giramundo era para mim um sonho muito distante. Fora do meu alcance. As referências que eu tinha sobre o grupo vinham de programas de televisão ou de reportagens em revistas, como uma que me marcou muito na adolescência pelas imagens que trazia dos bonecos do espetáculo As Relações Naturais, de Qorpo-Santo. Em meu imaginário de jovem artista, recém-chegado do interior, o Giramundo era inalcançável, quase sobrenatural. Menos de um mês depois daquela experiência, comecei a me transformar em bonequeiro. Fiz uma oficina com a Catibrum Teatro de Bonecos, participando dos bastidores de uma montagem; depois fiz um estágio com o Armatrux, manipulando marionetes; e tive minha primeira experiência realmente profissional no espetáculo O Rei de Quase Tudo, de Wanda Sgarbi. Foi então que, um dia, minutos antes da apresentação daquele espetáculo, soube que Álvaro Apocalypse, fundador do Giramundo, estava na plateia. O grande mestre, certamente o que mais formou bonequeiros em nosso país, criador de uma obra genial, era para mim, na época – e ainda hoje –, um grande ídolo. Depois do espetáculo, muito embaraçado, forjei coragem e fui cumprimentá-lo. Tremendo. Nesse dia, ele e sua filha, a Bia, me falaram sobre a possibilidade de fazer estágio no Giramundo. Já no dia seguinte fui visitar o grupo e me candidatar a uma vaga. Dois meses depois, eu era um novo e deslumbrado estagiário.

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A importância que o grupo teve para mim, e para muitos outros bonequeiros brasileiros, foi fundamental. Lembro que, na minha primeira semana, recebi como tarefa restaurar as estruturas exatamente daqueles bonecos que eu tinha visto na revista quando adolescente. A minha dedicação ao grupo foi enorme. A sua trajetória e os seus feitos sempre me inspiraram e guiaram os meus próprios sonhos. Permaneci no Giramundo enquanto durou minha formação acadêmica em


escultura, e foi um prolongamento da minha formação, a que me deu a prática, as ferramentas e o rigor técnico para o trabalho que desenvolvo hoje no Pigmalião Escultura que Mexe.

EDUARDO FELIX É formado em escultura e atua como artista visual, dramaturgo, bonequeiro e cenógrafo desde 2001. Integrou o grupo Giramundo entre 2003 e 2006. No ano seguinte, fundou o Pigmalião Escultura que Mexe, coletivo do qual também é diretor artístico.


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“COMO QUERES QUE EU NÃO PERGUNTE SE TUDO SE FAZ PERGUNTA?”

Trecho de Kadosh (1973)





HILDA HILST – VOZES DE SI


por Andréa del Fuego

Hilda de Almeida Prado Hilst nasceu na cidade de Jaú (SP) em 1930, década que começa com a Grande Depressão e termina com a Segunda Guerra Mundial. Formada em direito pela Universidade de São Paulo (USP), estreou na literatura aos 20 anos, com o volume de poemas Presságio. Prosadora, poeta, cronista, dramaturga e artista visual, seu legado é incontestável. Com mais de 40 livros, obras como Cantares de Perda e Predileção, Cartas de um Sedutor e Exercícios são um dos muitos recortes de sua produção singular e pungente. Embaralhando a evocação divina e o grotesco, na prosa e na poesia, sua escrita faz do obsceno uma literatura de afinação única. Embora não tenha recebido o devido reconhecimento em vida, sua obra é continuamente vivificada por novos

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pesquisadores e leitores. Por vezes considerada hermética, oculta ou inclassificável, Hilda produziu obras que a inscrevem entre os melhores autores de língua portuguesa do século XX. Aos 35 anos, isolou-se na chácara Casa do Sol, em Campinas (SP), onde criou e escreveu. Todavia, o isolamento não foi o de uma eremita. A autora recebia artistas e escritores – como Caio Fernando Abreu –, que faziam residência artística em sua morada. Num dos cômodos, via-se o famoso e emblemático relógio com os ponteiros quebrados, no qual se lia: “É mais tarde do que supões”. O instrumento comum de medição do tempo indica que há desencontro entre a consciência do tempo e o próprio; o relógio perturbador indica que é tarde para o mundo, mas não para o pensamento. Não é tarde para viver autenticamente; é tarde apenas para fingir que não pisamos um solo estranhíssimo.

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Hilda possuía uma forma de pensar e fazer literatura compromissada com intensa pesquisa e envolvimento com a palavra. Os ponteiros quebrados, jamais perfazendo o círculo do dia, mostram que a passagem do tempo nem sequer passa por tal instrumento. Resta claro que, para ela, o tempo é linguagem. Nesse sentido, talvez seja possível capturá-lo através de vozes inaudíveis. Hilda, em provável estudo de linguagem, colocou-se à escuta de murmúrios que gravou apoiando-se na investigação do pintor sueco Friedrich Jurgenson, que, ao armazenar sons de pássaros, teria captado vozes de pessoas mortas. O experimento é digno de nota, uma vez que revela a postura da autora diante do mundo e da escrita, ambos misturados em sua experiência, sua entrega à carne da natureza humana. Hilda defendeu a experiência das vozes como gesto dissociado de qualquer religiosidade, sem qualquer ritualística. Tampouco algo ligado ao terror, à la Béla Lugosi, tratava-se da captura de algo banal, de vozes de um cotidiano que inclui banalidades


e humor. Vozes que não trazem profecias, mas o mundo tal qual se apresenta a quem se dispõe a ouvi-lo. Nesse estudo pessoal, ela faz uma busca pela palavra, continuamente aberta para o que esta oferece. Sem jamais deixar de ser mundana, tão enraizada quanto vertical, a autora coloca-se como pontífice entre a página em branco e o que não foi dito. Hilda circula regiões místicas e eróticas, sem com isso ser binária. Ao contrário, produz várias e tantas facetas que deixam sua obra constantemente aberta, a ser retomada por leitores de agora e vindouros. Uma escritora para quem vida e obra são estudos de linguagem: a natureza, o relógio, as audições fantasmagóricas, a linguagem como esse gesto prenhe de tempo, tal qual a busca pelo espaço onde se pode testemunhar a simultaneidade entre passado e futuro. Atravessando um erotismo trágico e místico, assim como as polaridades humanas, sintonizar-se em Hilda é não se desvencilhar mais dela.

ANDRÉA DEL FUEGO É escritora, formada em filosofia pela Universidade de São Paulo (USP). Autora de oito livros, teve seu romance Os Malaquias, vencedor do Prêmio José Saramago, publicado em Israel, Alemanha, Itália, França, Romênia, Suécia, Portugal e Argentina. Ministra oficinas de escrita criativa e pesquisa a obra de Raduan Nassar na área da filosofia.


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“O BRASIL É ISSO. ESSA MISTURA TODA QUE A GENTE CHEGA NA CIDADE PENSANDO QUE NÃO É. INDO PARA MIAMI, PARA NÃO SEI MAIS PARA ONDE, SEM SABER BUSCAR O BRASIL. E O BRASIL ESTÁ NA ZONA RURAL.”

Depoimento para a Ocupação Lydia Hortélio (2019)





TRILHAS DE UM BRASIL PROFUNDO


por Lucilene Silva

Filha do sertão, Lydia Hortélio conheceu de perto o Brasil, seu povo e sua cultura. Filha de um pai dançador, experimentou no corpo a alegria do movimento e da música brasileira. Detentora de admirável determinação, atravessou o Atlântico seguindo as trilhas da escala harmônica que lhe mostraram a música da Europa, a música do mundo e, por fim, reafirmaram o significado e a beleza da música brasileira. O retorno ao país foi guiado por um mergulho no Brasil profundo, no Brasil real, aquele que traz como característica principal a alegria; a capacidade de fazer da vida uma grande brincadeira; a capacidade de cantar quando se nasce, morre, trabalha, reza, festeja e brinca.

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Meu encontro com Lydia foi um encontro com esse Brasil real, quase adormecido em mim. Ela me conduziu a olhar para a menina que fui um dia. Foi como se tivesse sido colocado à minha frente um espelho, no qual vi meu próprio reflexo e me vi instigada a ouvir a minha música e a buscar na minha história todas as melodias que foram um dia entoadas. Sabendo de mim mesma, estava pronta para percorrer outras infâncias, ouvir outras cantigas e histórias, e foi o que fiz: caminhei pelo Brasil registrando a música e a cultura da infância de muitas gerações e lugares. Como educadora, saber mais sobre a cultura infantil e a música da infância mudou a minha prática e comprometeu-me a espalhar essa música nos quatro cantos. Comprometeu-me também a levar a brincar e a disseminar a notícia de que brincar é preciso. Esse novo caminho foi trilhado lado a lado com Lydia, que de forma generosa me permitiu aprender junto com ela, compartilhando seu acervo e suas descobertas, ao mesmo tempo instigando-me a buscar respostas para todas as minhas perguntas, que é o que venho fazendo há mais de 20 anos. De forma quase silenciosa e muito paciente, ao longo de mais de 50 anos, Lydia vem soprando em nossos ouvidos melodias esquecidas, vem contando histórias pouco lembradas, acordando gestos paralisados, revisitando lugares abandonados. Assim como eu, milhares de pessoas foram atravessadas por sua forma de ver o mundo e a criança. E não apenas atravessadas, mas mobilizadas a revisitar a infância e, por meio desse ato, compreender seu significado.

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Lydia traz em sua bagagem muitos espelhos que refletem e são refletidos. Espalhados mundo afora, aos poucos eles vêm traçando o trajeto da revolução que falta, da revolução da criança que vê o mundo com outros olhos, que não tem medo de arriscar e de experimentar, que traz no gesto a sutileza, na


voz a delicadeza, na palavra a poesia, no corpo a destreza, no olhar a beleza. E é nessa direção que seguimos, na direção da revolução que falta.

LUCILENE SILVA É graduada em letras, mestra e doutoranda em música, pesquisadora do Instituto de Etnomusicologia da Universidade Nova de Lisboa e representante, em São Paulo, da Casa das 5 Pedrinhas, fundada por Lydia Hortélio.


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“A CONFIGURAÇÃO DE MANDALA HARMONIOSA, DENTRO DE UM MOLDE RIGOROSO, DENOTARÁ INTENSA MOBILIZAÇÃO DE FORÇAS AUTOCURATIVAS PARA COMPENSAR A DESORDEM INTERNA.”

Nise da Silveira, no livro Imagens do Inconsciente. Rio de Janeiro: Alhambra, 1981, p. 346





O MUSEU VIVO DE ENGENHO DE DENTRO: UM LEGADO DE NISE DA SILVEIRA


por Gladys Schincariol

Aquele que visitar o Museu de Imagens do Inconsciente (MII)1, no Rio de Janeiro, poderá conhecer em detalhes a vida e a obra de sua fundadora, a doutora Nise da Silveira. Por meio de textos, fotos e documentos históricos, percorrerá os caminhos da “psiquiatra rebelde”, inteirando-se de suas descobertas e de sua valiosa contribuição para o campo das ciências humanas, das artes e da cultura brasileira. Saberá que a história daquele museu se confunde com a história e os feitos de Nise, uma mulher brasileira, dotada de cultura e inteligência extraordinárias, além de curiosidade científica, humor refinado e uma vontade férrea, que viveu e lutou durante o século XX “fazendo rupturas” – como ela mesma dizia.

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A visita segue acompanhando a trajetória de Nise, sua formação, a prisão, o exílio, o retorno, seus grandes questionamentos, as pesquisas com as imagens e com os animais como coterapeutas, a correspondência e o encontro com o grande psiquiatra suíço Carl Gustav Jung. Seus estudos sobre o poder reorganizador das mandalas e dos temas mitológicos, sua batalha em defesa dos loucos, dos humildes e dos animais, e sua fina sensibilidade em perceber a importância do relacionamento afetivo e do convívio para o sucesso de qualquer tratamento. O visitante poderá também apreciar as telas, as pinturas, as esculturas e os desenhos expostos nas galerias e se emocionar com eles, por suas formas, cores, beleza e arte. Conhecerá a biografia de seus autores e o período em que as obras foram produzidas, de 1946 até os dias atuais. Saberá que as imagens em exposição compõem um acervo de mais de 400 mil trabalhos realizados espontaneamente pelos “clientes” da doutora Nise nos ateliês de atividades expressivas criativas livres, ali existentes desde 1946. Ela nunca pretendeu encontrar artistas. Buscava antes uma ferramenta para o tratamento e o acesso ao mundo interno tão hermético do esquizofrênico, estimulando sua criatividade. “Pintar, por si só, é terapêutico”, dizia, pois “despotencializa os conteúdos ameaçadores.” O Museu de Imagens do Inconsciente nasceu desses ateliês e foi fundado, em 1952, como um centro de estudos e pesquisas sobre o psiquismo e o imaginário. O espaço é aberto a todos os interessados. Se der sorte, o visitante encontrará, circulando livremente por ali, algum dos atuais frequentadores dos ateliês e poderá acompanhar uma visita guiada por ele, ouvindo sobre sua experiência de vida, o significado simbólico de suas imagens

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e a importância delas no seu caminho de cura. Saberá que ele circula pela cidade, frequenta um Centro de Atenção Psicossocial (Caps), faz sua terapia no museu, pinta e modela nos ateliês, pratica ioga, teatro, música, vive e convive. “A liberdade cura”, ensinava Nise. Certamente, ouvirá desse cliente um depoimento lúcido e muito carinhoso sobre a doutora, grato por ela lhe abrir as portas da prisão, lhe apontar a saída do caos e lhe resgatar, como ela mesma dizia, “o direito de ser tratado como pessoa”. Se o visitante for um pesquisador querendo aprofundar seus conhecimentos sobre o inconsciente e sobre essa misteriosa condição humana denominada loucura, terá de aceitar o convite de Nise para vestir “roupa de escafandro” e mergulhar no Mundo das Imagens, naqueles “retratos da alma” produzidos espontaneamente nos ateliês e que contêm significação profunda. Terá também de livrar-se dos preconceitos e abrir seu coração para o outro, o diferente, o louco. E pode acontecer de apaixonar-se por Nise e por seu método terapêutico, pelo museu e suas imagens, pelos pintores com suas obras, e desejar ficar por lá, aprendendo e contribuindo para a continuidade e a divulgação desse trabalho incrível. Foi o que aconteceu comigo. No distante ano de 1974, quando ainda jovem psicóloga, à procura de estudos de Jung, tive a oportunidade e o privilégio de visitar o museu e encontrar Nise pessoalmente, sendo iniciada por ela em uma visita inesquecível. Emocionei-me ao ver as obras expostas e seus autores pintando no ateliê. Encantei-me com a sabedoria da doutora e seu método de tratamento por meio da expressão livre, com o ambiente agradável e cheio de calor humano do ateliê, tão diferente do frio ambiente hospitalar, e desejei ficar para aprender tudo aquilo que tinha visto e poder contribuir de uma forma ou de outra nesse trabalho.

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Encontrei minha mestra e, desde então, tornei-me niseriana. Ela estava prestes a completar 70 anos e, em 1975, foi afastada de sua função de diretora do Museu de Imagens do Inconsciente pela aposentadoria compulsória. Mas não se afastou completamente, voltou como “estagiária” – ela brincava –, e necessitava de colaboradores para dar continuidade às suas pesquisas e manter o museu vivo. Juntei-me com outros estagiários, assim como eu, encantados com as imagens e atraídos pelo magnetismo de Nise, e passamos a trabalhar com ela, que nos recebeu com toda a sua generosidade e entusiasmo, ensinando e compartilhando seus conhecimentos. Sem exigir documentos, diplomas, crachás ou pagamentos, Nise nos abria sua casa e sua biblioteca, orientando nossas leituras tanto dos livros como das imagens modeladas e pintadas nos ateliês. Tínhamos presença obrigatória no grupo de estudos do museu, que resiste até hoje, e no grupo de estudos de Jung, em sua casa de Botafogo. Nise foi uma escola. “É preciso estudar muito”, recomendava ela, “para não correr o risco de reinventar a pólvora.” Além do museu, desde 1956 Nise realizava uma experiência inovadora na Casa das Palmeiras, onde era possível tratar a loucura com as portas abertas e em regime de externato. Liberdade, afeto e atividades criativas se tornaram verdadeiros agentes terapêuticos, em substituição a internações, eletrochoques e doses maciças de neurolépticos. Certamente, os atuais Caps, disseminados por todo o país, foram inspirados na experiência da Casa das Palmeiras.

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Muitos outros jovens de minha geração, amordaçados e silenciados pela ditadura militar, foram influenciados pelos ensinamentos e pelas ideias libertárias de Nise. É necessário “se espantar, se indignar e se contagiar, só assim é possível mudar a realidade”, ela nos alertava. Uma nova ordem se


impunha. E, paralelamente à luta pela redemocratização do país, aconteceu a luta dos trabalhadores da saúde mental pela reforma psiquiátrica e por uma sociedade sem manicômios, na qual nos engajamos. Tem sido uma longa batalha, mas muita coisa já mudou. Nise faleceu em 1999. Em sua homenagem e em nome das mudanças a ser operadas, o antigo Centro Psiquiátrico Pedro II do Engenho de Dentro foi municipalizado e passou a chamarse Instituto Municipal Nise da Silveira. Hoje, 46 anos depois de minha primeira visita, tenho a honra de estar cada vez mais niseriana, de pertencer ao Museu de Imagens do Inconsciente, reconhecido internacionalmente, e de poder contribuir, junto com uma pequena equipe, para o desenvolvimento e a prática terapêutica do método Nise, para a manutenção, a preservação e a divulgação desse patrimônio da humanidade, uma obra-prima de muitos autores. E me mantenho entusiasmada com o método terapêutico de Nise da Silveira. Faço minhas as sábias palavras da mestra, em agradecimento e reconhecimento a todos que colaboraram, de uma forma ou de outra, com ela e com o museu: “Ninguém faz nada sozinho”.

1. O MII está localizado na Rua Ramiro Magalhães, 521, no bairro do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro (RJ). As visitas podem ser feitas de segunda a sexta-feira, das 9h às 16h, com entrada gratuita. Acesse: www.museuimagensdoinconsciente.org.br.

GLADYS SCHINCARIOL É psicóloga e coordenadora do Museu de Imagens do Inconsciente.


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“INTELIGÊNCIA SE CULTIVA, SE ESTUDA, SE PREPARA. O IMPORTANTE É TER CURIOSIDADE. ACHO QUE O MAIS IMPORTANTE QUE EU GOSTARIA QUE DISSESSEM DE MIM É QUE EU TENHO CURIOSIDADE, AINDA.”

Depoimento para a Ocupação Regina Silveira (2010)





REGINA SILVEIRA, A CRIADORA DE LENTES QUE NOS FAZEM VER MELHOR


por Ana Maria Tavares

A importância de Regina Silveira na cena da arte brasileira deve-se, sem dúvida, ao conjunto de sua obra e, sobretudo, à sua atuação expandida. Desde sempre, Regina foi capaz de inventar seu lugar como mulher e artista, de construir e renovar o sistema de produção e reflexão sobre arte no contexto brasileiro. Seguiu e respondeu com sua obra e suas ações mesmo quando impactada pelas adversidades e instabilidades políticas e econômicas ou diante de um sistema de arte ainda frágil; buscou sempre formas de reexistir e seguir forte. É, a meu ver, uma dessas artistas que reúnem múltiplas qualidades, e sua capacidade de agregar pares e de investir em processos colaborativos a levou sempre a desafios renovadores dos rumos de seu trabalho.

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Desde muito jovem, percebe que a atuação do artista não se limita apenas à produção, mas se molda na prática efetiva e continuada de um conjunto de ações políticas voltadas também para a formação de instituições sólidas, para a formação e a atuação de artistas agentes e de profissionais altamente especializados. Daí a necessidade de enfatizar os distintos contextos pelos quais a artista transita e a relevância de suas ações para o desenvolvimento da arte no Brasil. Além da produção de um trabalho singular, altamente crítico e sempre conectado à história e à atualidade, Regina contribuiu e ainda contribui muito para o fortalecimento de um conjunto de produções importantes, em várias camadas do cenário artístico. Sua marca está presente desde os anos 1970, na implementação e nos desdobramentos dos programas de graduação e pós-graduação e em sua sistematização em órgãos federais; na internacionalização da arte brasileira via intercâmbios acadêmicos e exposições; no compromisso com os debates e as práticas de museus e instituições de arte; nas curadorias e organizações de exposições; no alargamento, no cruzamento e na disseminação de novos meios e linguagens, tais como a videoarte e os meios eletrônicos e digitais; por fim, na incansável defesa da pesquisa em arte, da fala e do poder do artista comprometido com a produção de sua obra e com o fortalecimento do sistema da arte.

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O mais instigante, para mim, é pensar a partir da perspectiva de ter visto a obra sendo feita, de ver a obra ser no mundo no momento mesmo de sua produção, e de poder, hoje, revê-la. Tendo acompanhado Regina, na condição de aluna, orientanda, parceira de trabalho e amiga, ao longo de mais de quatro décadas, fica evidente a forma como sua produção reverbera o tempo presente e revela significados renovados. Transitando entre a luz e a sombra, entre a perspectiva euclidiana e as mais absurdas deformações das coisas do mundo, suas proposições nos colocam diante da


representação de seres animados e objetos inanimados que adquirem uma vida estranha. Regina vê e nos mostra seu universo com dispositivos perturbadores, sempre criando lentes que nos fazem ver melhor. Por vezes, sua obra nos revela aberrações do mundo por dentro e pelo avesso “da coisa”, ao mesmo tempo que põe em xeque nosso lugar, nossa escala e nosso entendimento desse mesmo mundo. Ela brinca com nossas certezas com um humor e uma ironia ímpares. Sua obra é dotada de uma inteligência afiada; constrói a crítica e nos envolve numa imersão abismal, em um jogo contínuo entre realidade e ficção. Paradoxalmente, o período em que grande parte de suas atuações e ações na esfera pública ocorreu compreende os anos mais duros da ditadura e passa pelo momento de transição para a democracia. Se naqueles anos o cenário da censura, da perseguição política e da opressão era a marca do tempo, foram sua liberdade interior e a liberdade com a qual sempre moveu suas ações práticas, somadas à riqueza de seu repertório poético, à inteligência, ao espírito crítico e à ironia de sua produção artística, que contribuíram para que Regina Silveira se tornasse uma inegável referência para muitos artistas e profissionais da arte de várias gerações. São essas mesmas marcas de um espírito livre que me acenam, ainda hoje, como qualidades essenciais e que são exemplo e guia para este tempo turvo e desolador em que vivemos.

ANA MARIA TAVARES É graduada em artes plásticas pela Fundação Armando Alvares Penteado (1978-1982), mestre pela School of the Art Institute of Chicago (1984-1986) e doutora pela Universidade de São Paulo [USP (1995-2000)]. Entre 1993 e 2017, atuou como docente da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da USP. Desde 1982, participa de exposições no Brasil e no exterior.


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“EM TODO O CASO, SER ARQUITETO, MEUS JOVENS, É UM PRIVILÉGIO QUE A SOCIEDADE NOS DÁ E QUE EU DESEMPENHO COMO SE FOSSE UM SEGREDO, NO CANTINHO DE MEU ESCRITÓRIO, FECHADO COM MEUS PENSAMENTOS E MEU DESENHO.”

Trecho de Caminhos da Arquitetura (1981)





ARQUITETURA: ÉTICA E ESTÉTICA JUNTAS


por Walmor Corrêa

Eu vivo em São Paulo desde 2013. A casa, para mim, é absolutamente fundamental. Ela é o meu refúgio e espaço de trabalho. A sala de estar da minha casa, por exemplo, é um grande ateliê no qual eu pesquiso, desenho e pinto, assim como confraternizo, recebendo familiares e amigos, ou pesquisadores, jornalistas e estudantes interessados em conhecer a minha poética. Em certa medida, a sala de estar demarca uma interface entre o privado e o público, mais ou menos como fez Vilanova Artigas em relação ao icônico jardim que caracteriza o Louveira, edifício em que habito. Muitos arquitetos, comentaristas e críticos já chamaram a atenção para a ousadia e a beleza da solução que ele encontrou. Aqui, talvez mais do que em qualquer outro de

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seus projetos, ele nos dá uma chave para a ideia de que os edifícios – e, por extensão, as pessoas que neles moram – precisam se conectar à cidade, e vice-versa. Isso é feito pelo jardim entre os dois blocos, que, desprovido de grades, dá continuidade à área verde da Praça Villaboim. O que esse projeto nos oferece, portanto, é um espaço sensível e silencioso de diálogo. Em suma: elemento formal investido de grande sentido humano. Gosto de identificar essa postura em outros componentes do projeto, como as sinuosas e envolventes rampas, que ligam os blocos, ampliam a acessibilidade e remetem às vias públicas. Gosto de observar a curiosa coluna no meio da escada, que não cessa de fazer perguntas, assim como gosto de pensar na leveza e no inusitado dos caixilhos vermelhos e amarelos que fizeram do Louveira um marco paulistano. É uma proposição do jovem Vilanova Artigas, e como é arrojada e profundamente moderna!

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Diversas vezes, diante das luminosas janelas da minha sala de estar/ateliê, trabalhando e admirando a exuberante área verde povoada por pássaros e insetos, peguei-me pensando sobre o privilégio que é viver em um edifício como este. A começar pelo conceito-base: todos, absolutamente todos os apartamentos são iguais, têm a mesma metragem e compartilham da mesma vista; o projeto não distingue, assim, os que dele usufruem. Por outro lado, hoje se discutem, em todas as áreas da vida, mas também em arquitetura, questões de sustentabilidade, e este edifício é marcado, entre outros aspectos, por iluminação e ventilação naturais. Quantas lições são possíveis ter aqui, observando, percorrendo e contemplando esses espaços tão marcadamente modernistas, mas que olham, esperançosos, para o futuro. Há mais de 70 anos, o Louveira mostra que arquitetura é construção, é consciência da dimensão social, mas é também arte. Ética e estética juntas. Eu, que tive


formação como arquiteto e trabalho com artes visuais, me sinto totalmente abraçado por este lugar, cuja importância aumenta à medida que a sociedade se educa para reconhecê-la. O Louveira é um efetivo patrimônio de São Paulo e do Brasil.

WALMOR CORRÊA É artista plástico. Ao longo de sua carreira, participou de diversas exposições no Brasil e no exterior. Em 2015, lançou uma publicação intitulada O Estranho Assimilado, na qual sua trajetória artística é apresentada com textos de Fernando Cocchiarale, Maria de Fátima Costa, Mônica Zielinsky, Paula Ramos, Francisco Marshall e Tadeu Chiarelli.


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“NÓS CHAMAMOS O NOSSO TEATRO DE OFICINA E ESCOLHEMOS COMO SÍMBOLO A BIGORNA, PORQUE ISSO SIGNIFICAVA TRABALHO E SE PRETENDIA LIGAR O TRABALHO TEATRAL A QUALQUER OUTRO, COLOCANDO O ATOR COMO UM OPERÁRIO, COMO UM SIMPLES PROLETÁRIO, PARA DESMISTIFICAR CERTA IDEIA DE QUE O TEATRO É UMA COISA MÍTICA.”

Depoimento para a Ocupação Zé Celso (2009)





ODE AO ZÉ OU O MITO DO ETERNO RETORNO


por Cibele Forjaz

No início, para mim, Zé Celso era um mito. Nasci em 1966 e, quando José Celso Martinez Corrêa partiu para o exílio, eu tinha 7 anos de idade. Cresci ouvindo falar do Teatro de Arena e do Teatro Oficina como os grandes acontecimentos do teatro de grupo dos anos 1960, mas sempre no passado. Entendi que o Teatro Oficina tinha um lugar de honra na história do teatro brasileiro e era uma espécie de ancestral perdido, um espírito que cantava odes às grandes transformações, palavras silenciadas que não podíamos mais escutar. Estávamos, ao mesmo tempo, tão perto e tão longe dos sonhos comunitários de mudança profunda dos anos 1960: “Lembra de mim”, diz o Fantasma do pai para Hamlet. Impossível lembrar. Assim que me dei por gente, encontrei caminhos interrompidos, um passado escondido,

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ideias abortadas, terra arrasada. Éramos uma geração sem pai. Entre nós, um corte recente, feridas abertas, mortos insepultos e desaparecidos. E os fantasmas dos corpos não vingados ou não corretamente sepultados sempre retornam para puxar os nossos pés, cedo ou tarde. Mas existem outras formas de lembrança, que persistem adubando os tempos e regenerando a vida. Muito ouvi falar das peças do Oficina, e com tantos detalhes que imprimiram imagens em minha memória, como se, por meio das narrativas dos espetáculos, eu tivesse assistido às montagens. Pequenos Burgueses e a esperança renovada de uma revolução por vir; o encontro do Teatro Oficina com Eugênio Kusnet. Andorra e a violência, uma resposta direta ao golpe civil-militar de 1964. O Rei da Vela e o tropicalismo no teatro, com o palco giratório e os telões pintados de Helio Eichbauer. Roda Viva e o teatro musical, que inaugura a dicotomia entre o teatro de coro e o teatro de protagonistas – obra que, chegando a São Paulo, sofre o ataque do Comando de Caça aos Comunistas (CCC) no Teatro Ruth Escobar, sendo censurada. A Vida de Galileu, que estreou no dia da promulgação do AI-5, em 13 de dezembro de 1968, e seu final premonitório em que uma grade de ferro descia na boca de cena enquanto tocava “Banho de lua” na voz de Celly Campello. Na Selva das Cidades e o primeiro nu frontal do teatro brasileiro. O cenário de Lina Bo Bardi, feito com os destroços das casas do Bixiga demolidas para a construção do Minhocão; o ringue de boxe com público dos dois lados e os objetos que eram destruídos em cena, todas as noites. O encontro entre o Teatro Oficina e o Living Theatre. A prisão. A contracultura e suas grandes rupturas: Gracias, Señor e os pedaços de fígado jogados na plateia. A cabeça-repolho sendo estraçalhada e o público subindo em cena para fazer a peça junto com os atores e as atrizes; o teatro como rito de quebrar couraças.

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A volta do exílio, em 1979, foi uma cena que vi adolescente pela TV e mais intimamente em casa, com o retorno da minha tia Bia. Choramos de emoção. Mas o vazio do dia seguinte foi imenso. Uma geração de intelectuais e artistas voltava do exílio (fora ou dentro do país), ainda sob o império do inimigo, em plena ditadura militar, numa abertura lenta e gradual baseada no esquecimento forçado: anistia ampla, geral e irrestrita. Ainda hoje pagamos o preço desse acordo. Não há conciliação possível com a violência.

PRIMEIRO ENCONTRO A primeira vez que vi Zé ao vivo foi em 1982. Eu estava no começo do Ensino Médio e, neófita no teatro, fui ao Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo (USP) ver uma aula magna em que ele era o convidado especial. Fui justamente para ver o grande mito do teatro, que eu não conhecia. Não lembro do que Zé falou naquela tarde, mas lembro bem do impacto que causaram em mim as suas palavras e, ainda mais, a sua performance. A experiência de vê-lo cantando em cima da mesa do professor está viva em minha memória até hoje. Em qualquer lugar onde esteja, Zé sabe encarnar o teatro vivo, e as suas falas são performances políticas, com alto poder de impacto sobre as consciências. Os acontecimentos daqueles anos só vim a conhecer depois: o início da luta pela posse do território do Teatro Oficina diante do avanço da especulação imobiliária. Zé ganhou a sua primeira grande batalha contra Silvio Santos com o tombamento do teatro e do trabalho ali realizado, patrimônio imaterial da cultura brasileira. Na primeira vez em que entrei no Oficina, ele ainda estava em obras. Foi por ocasião de uma leitura da peça Acordes,

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de Bertolt Brecht, em tradução de Luís Antônio Martinez Corrêa. Zé dirigia em cena. O espaço estava todo vazio, só existiam a estrutura de ferro da cabine de luz e dos camarins do fundo e um mezanino na frente. Público e atores estavam absolutamente misturados, e a parte do texto que guardei na memória ainda é de grande utilidade: “No meio da tempestade de areia, não tente resistir à força, largue todos os seus pertences, tire a roupa e deite no chão... Reduzir-se à menor grandeza é a melhor estratégia para atravessar as grandes tempestades”. Lembro também de ver uma disputa pública entre Gerald Thomas e Zé Celso. Gerald usava uma tela de filó entre o palco e a plateia, o que deixava a cena linda, e o teatro que Zé propunha estava pronto para rasgar todas as camadas que separam os atores da plateia, até mesmo implodindo o palco italiano, para uma verdadeira comunhão entre a cena e o público – uma comunhão que eu, até então, não entendia muito bem. O formalismo do teatro dos anos 1980 ainda era a minha principal referência. Pouco tempo depois, em 1991, assisti à estreia de As Boas, de Jean Genet, no Centro Cultural São Paulo (CCSP). Pela primeira vez via um espetáculo do Teatro Oficina e Zé Celso atuando, em cena. Ele falava diretamente para a plateia de uma maneira que eu nunca tinha visto. “Falava” não, gritava, explicitando a sociedade do espetáculo, rasgando a máscara da cordialidade para esfregar na cara do público a violência da desigualdade brasileira, alegorizada na representação de mundo das novelas da Rede Globo, consumidas logo após o jantar em todo o Brasil. Ali, levei um soco no estômago e entendi o poder transformador do teatro, de quebrar couraças, não apenas dos oficiantes, mas também do público. Sua função de rasgar as máscaras de uma sociedade, virando o espelho para o seu próprio rosto.

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DE MITO A COMPANHEIRO DE TRABALHO O resultado imediato desse baque foi uma guinada total e abrupta. Entrei em crise profunda com o teatro que conhecia e fazia. Resolvi parar de dirigir por um tempo e fui fazer uma viagem longa. Quando voltei, entrei em casa e havia um recado de Zé Celso na secretária eletrônica: era um convite para fazer a luz de Hamlet. No dia seguinte, subi num ônibus para o Sesc São José dos Campos (SP), para iluminar a primeira leitura pública do processo de criação de Ham-Let, versão brasileira da peça de Shakespeare. Os atores tinham começado a ensaiar dois dias antes. Eu caí de paraquedas num pequeno auditório e, sem saber do que se tratava, fiz uma contraluz bem forte e uma geral suave no palco, onde ficavam as 12 cadeiras preparadas para a leitura. Na primeira cena, quando Francisco e Bernardo avistam o Fantasma, Zé grita do meio da escuridão da plateia: “Luz! Luz aqui!”. Na hora, de improviso, acendi a luz do fundo da plateia e na contraluz surgiu o vulto do Fantasma. Peguei um refletor plano convexo e uma extensão e corri até a tomada mais próxima. Com o refletor quente nas mãos, segui Zé por toda parte, iluminando a plateia sempre que ele se dirigia aos “vivos” ali presentes. Esse foi o começo de uma parceria de 12 anos, na qual iluminei o público de mil maneiras. A primeira impressão dos ensaios: lembro perfeitamente que fiquei comovida de ver como Zé dirigia os atores e as atrizes. Percebi, com surpresa, a força da herança de Stanislávski na maneira detalhista com que ele dirige cada fala, cada imagem, cada vírgula ou ponto-final, até fazer surgir a ação da fala. Com o tempo, percebi a também forte herança de Brecht no modo de dirigir o espetáculo, inventando planos distintos que não dizem a mesma coisa, que se atritam e

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confrontam, que criam tensão e chamam a atenção para as contradições, deixando perguntas no ar para ser respondidas depois, exigindo da plateia uma reflexão profunda e, se possível, uma tomada de posição diante do momento histórico presente; um tipo de teatro que sempre leva à ação. De Oswald de Andrade vem a sua práxis antropofágica. Um grande homem de teatro, como é Zé Celso, traz sempre consigo todos os seus mestres, vivos e mortos, de Kusnet a Stanislávski, de Brecht a Artaud, de Oswald de Andrade a Lina Bo Bardi, Madame Morineau, Henricão, Marcelo, Eurípides, Pascoal, Silvinha, Catherine, Nina, Camila, Sylvia, Cacilda... Tradição e ruptura, as grandes forças do teatro mundial, devoradas e digeridas para formar a “tragicomediaorgia”, brasileira por excelência. “Só a antropofagia nos une!” O mito do teatro da minha infância e juventude tornara-se, então, o companheiro de trabalho exigente e radical, o diretor incansável, que não separa o teatro da vida, e também o Fantasma do Rei Hamlet, que pede ao filho que vingue o seu assassinato, cometido por seu irmão, o Rei Claudius. “Lembra de mim”, diz o Fantasma ao se despedir de Hamlet, antes de o galo cantar a chegada da madrugada. Nunca me esqueço e nunca me esquecerei. Ali encontrei um elo perdido, que eu queria e precisava resgatar. O teatro é um ofício que se aprende ao vivo e que passa de mão em mão, de geração em geração, no cotidiano do próprio fazer teatral. Eu escolhi ficar e ser iluminadora, assistente de direção, eletricista, aprendiz de feiticeiro, faxineira, conselho fiscal da Associação Teatro Oficina Uzyna Uzona e tudo mais que fosse necessário para o teatro acontecer.

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Ensaiamos durante quase dois anos, período em que a máquina de Ham-Let forjou a nova Cia. de Teatro Comum Oficina Uzyna Uzona, até reabrirmos o Teat(r)o Oficina, ainda em obras, no dia 23 de outubro de 1993. A primeira imagem da peça era o enterro do Rei Hamlet, com Zé entrando morto,


carregado em cortejo, para ser enterrado no fosso do teatro. Ali morria o fantasma, o mito de um teatro do passado, para renascer o diretor de Ham-Let, Mistérios Gozozos, Bacantes, Ela, Para Dar um Fim no Juízo de Deus, Cacilda!, Os Sertões e tantos espetáculos que fizeram a cabeça de muitas e muitas gerações, para quem o Teatro Oficina é uma referência de presente e, também, da invenção de novos futuros possíveis.

CIBELE FORJAZ É diretora e iluminadora de teatro. Em 35 anos de profissão, participou de três coletivos nessa área: Barca de Dionisos (1986-1991), Teatro Oficina Uzyna Uzona (1992-2001) e Cia. Livre, da qual é diretora artística desde 1999. É também docente e pesquisadora do Departamento de Artes Cênicas da Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo (ECA/USP), além de orientadora no programa de pós-graduação em artes cênicas da instituição.


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AGRADECIMENTOS


Nosso mais profundo agradecimento a cada pessoa que, ao ler esta publicação, sabe que também estamos falando das suas ideias e das suas participações decisivas na execução destes trabalhos. De 2009 até hoje, cada vez com mais intensidade, este é o projeto que amadurece no Itaú Cultural (IC) o trabalho colaborativo do começo ao fim do processo, trazendo, inclusive, equipes internas para a curadoria das mostras. Se hoje comemoramos 50 edições, pense em uma lista imensa de nomes, formada por profissionais do próprio Itaú Cultural, pelas famílias dos artistas, pelos detentores de acervos, pesquisadores, produtores, curadores, montadores, consultores, restauradores e tantos outros trabalhadores da cultura. Uma Ocupação, para ser possível, para ir da ideia curatorial inicial à exposição aberta ao público, além de todos os conteúdos que nascem com ela, não seria possível com uma pessoa só. Nem com duas. Nem com dez. Imagine, então, 50 Ocupações... Uma lista imensa que, se depender de nós, não vai parar de crescer. Itaú Cultural

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CRÉDITOS


ABDIAS NASCIMENTO Páginas 37 a 39 Retrato de Abdias Nascimento: Luiz Paulo Lima Foto do espaço expositivo: André Seiti

ALCEU VALENÇA Páginas 49 a 51 Retrato de Alceu Valença: Rogério Vieira Foto do espaço expositivo: Anna Carolina Bueno

ANGEL VIANNA Páginas 59 a 61 Retrato de Angel Vianna e foto do espaço expositivo: André Seiti

ANGELI Páginas 69 a 71 Retrato de Angeli: André Seiti Foto do espaço expositivo: Rubens Chiri

ARACY AMARAL Páginas 79 a 81 Retrato de Aracy Amaral e foto do espaço expositivo: André Seiti

CONCEIÇÃO EVARISTO Páginas 89 a 91 Retrato de Conceição Evaristo e foto do espaço expositivo: André Seiti

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DONA IVONE LARA Páginas 99 a 101 Retrato de Dona Ivone Lara e foto do espaço expositivo: André Seiti

EDUARDO COUTINHO Páginas 109 a 111 Retrato de Eduardo Coutinho: Daryan Dornelles Foto do espaço expositivo: Anna Carolina Bueno

GIRAMUNDO Páginas 119 a 121 Retrato do Giramundo: Vagner Costa Foto do espaço expositivo: André Seiti

HILDA HILST Páginas 129 a 131 Retrato de Hilda Hilst: Mora Fuentes Foto do espaço expositivo: André Seiti

LYDIA HORTÉLIO Páginas 139 a 141 Retrato de Lydia Hortélio: André Seiti Foto do espaço expositivo: Anna Carolina Bueno

NISE DA SILVEIRA Páginas 149 a 151 Retrato de Nise da Silveira: acervo do Museu de Imagens do Inconsciente Foto do espaço expositivo: André Seiti

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REGINA SILVEIRA Páginas 161 a 163 Retrato de Regina Silveira: André Seiti Foto do espaço expositivo: Ivson Miranda

VILANOVA ARTIGAS Páginas 171 a 173 Retrato de Vilanova Artigas: acervo da família Foto do espaço expositivo: André Seiti

ZÉ CELSO Páginas 181 a 183 Retrato de Zé Celso: Agência Ophélia Foto do espaço expositivo: Edouard Fraipont

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ÇÃO ITAÚ CULTURAL 5 L 50 OCUPAÇÃO ITAÚ AÚ CULTURAL 50 OCU UPAÇÃO ITAÚ CULTUR URAL 50 OCUPAÇÃO I ÇÃO ITAÚ CULTURAL 5 L 50 OCUPAÇÃO ITAÚ AÚ CULTURAL 50 OCU UPAÇÃO ITAÚ CULTUR Esta publicação utiliza as fontes Bebas Neue Pro, Itaú Text e Myriad Pro sobre os papéis offset 120 g/m2 (miolo), cartão supremo alta alvura 350 g/m2 (capa) e offset 90 g/m2 (sobrecapa). Duas mil unidades foram impressas pela Ipsis Gráfica e Editora, em São Paulo, em fevereiro de 2021.

Memória e Pesquisa | Itaú Cultural

Ocupação Itaú Cultural 50: uma celebração / organização Itaú Cultural. - São Paulo : Itaú Cultural, 2021. 114 Mb ; PDF ISBN 978-65-88878-06-4 1. Legado. 2. Arte contemporânea. 3. Homenagem. 4. Exposição de arte - catálogo. I. Instituto Itaú Cultural. II. Título.

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Bibliotecário Jonathan de Brito Faria CRB-8/8697


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