Pernambuco Jardim de Baobas

Page 25

PERNAMBUCO Jardim de Baobás | Antônio Campos e Marcus Prado | 25

vios negreiros. Para sair do Inferno, Dante teve de passar pelo corpo de Lúcifer. O poeta viu então o demônio de pernas para o ar, como fora jogado do céu depois de sua revolta contra Deus. Dante viu o mal personificado. E se o destino nos seus caprichos inexplicáveis tivesse trazido o poeta florentino para ver o período de negritude escravista do imenso país brasileiro, o que não sairia do seu extremado vigor imaginativo? A grande tarefa de narrar esse outro –inferno– dos navios negreiros coube ao poeta dos escravos, Castro Alves. Depois dele, Graciliano Ramos, humilhado, prisioneiro, de cabeça raspada, sujo, fedendo a fezes, diria numa página de dor e desamparo, nas –Memórias do Cárcere–, o que era o inferno no porão de navio, na época do ditador Getúlio Vargas e do seu cheio de poderes chefe de Policia, coronel Filinto Muller. Escondidas cuidadosamente nos trapos que restavam sobre o corpo, os escravos traziam as sementes dos primeiros baobás plantados em Pernambuco. Para eles, o baobá era uma árvore sagrada, que representava o sonho da liberdade e o símbolo da esperança de um dia voltar às suas origens africanas. Muitos escravos negros, quando descobertos com essas –relíquias–, eram castigados por seus novos donos com uma das mais humilhantes penas: lamber o solado sujo de suas botas até limpá-las.

A Diáspora Negra estava apenas no começo no solo brasileiro.

Moléstias como disenteria e varíola liquidavam grande parte da carga de escravos no tráfico, antes mesmo de chegarem a Porto de Galinhas. Eles desciam dos navios, todos em fila indiana, vinham de uma embarcação superlotada, com gargalheira, algemas e peias, até aqueles combalidos pelo cansaço e pela doença de bordo, com a sujeira do corpo acumulada durante o doloroso percurso. (Aqui e acolá ouvia-se um grito epiléptico no meio da madrugada, em alto-mar). À espera deles, se fossem desobedientes, estavam o ferro de marcar bois e o libambo. Extensivamente o libambo – um dos mais impiedosos instrumentos de tortura – era toda espécie de corrente que prendia o escravo. Designava o instrumento que prendia o pescoço do escravo numa argola de ferro, de onde saía uma haste longa, também de ferro, que se dirigia para cima, ultrapassando o nível da cabeça do escravo. A haste, ora terminava por um chocalho, ora por trifurcação de pontas retorcidas. Uns – aqueles que sobreviviam durante a viagem – num misto de curiosidade e medo, olhavam-se entre si numa silenciosa sensação de vertigem e torpor diante de tudo o que estava à sua espera, uma vez que tudo estava para sempre perdido.


Issuu converts static files into: digital portfolios, online yearbooks, online catalogs, digital photo albums and more. Sign up and create your flipbook.