Artfliporto n. 5

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n.5

A POESIA PLURAL/UNIVERSAL DE FERNANDO PESSOA EM DESTAQUE NA FLIPORTO


A Revista ArtFliporto, em nova fase, é uma publicação trimestral da Editora Carpe Diem.

APRESENTAÇÃO

Expediente Edição: Digital Setembro | Novembro 2015 Direção Antônio Campos Edição Marcus Prado Assistente Cláudia Cordeiro Projeto gráfico /Fotografia Roberto Portella Revisão Isolda Wanderley Editora Carpe Diem Direção Antônio Campos Direção Executiva Capa: Roberto Portella Desenho: Júlio Pomar

Veronika Zydowicz Endereço para Correspondência (Address for correspondence): Carpe Diem Edições e Produções Rua do Chacon, 346—Casa Forte 52061–400 Recife–Pernambuco–Brasil www.fliporto.net https://editoracarpediem.com.br/ https://twitter.com/editcarpediem

E

m Olinda, a XI Festa Literária Internacional de Pernambuco, durante quatro dias, de 12 a 15 de Novembro, o poeta português Fernando Pessoa será lembrado como um dos mais importantes de nossa língua. Livros recentes o reposicionam como um dos mais expressivos do século em que viveu. Nessa festa olindense, não vão faltar louvores à sua Poesia, nem deixará de ser discutida a sua multifacetada e fértil existência. Difícil aquilatar o alcance da contribuição de sua obra. Mensura–se o valor de um autor justamente na sua potencialidade de semear reflexões e exegeses ensaísticas. Na sua também potencialidade de descobrir novos leitores. É o que vem acontecendo com o autor de “Mensagem” e outras obras plenas de significados poéticos. Uma poesia, no conceito do juízo estético e inventivo, de suprema grandeza. O que insinua que, se tentássemos analisar o efeito que essa Poesia exerce sobre nós, as palavras não dariam conta. A revista ArtFliporto interage com a grande Festa e tem o orgulho de inaugurar o seu número 5 com uma homenagem ao poeta–constelação Fernando Pessoa, intensificando os propósitos da iniciativa. Grandes temas culturais da atualidade e das artes são também discutidos nesta edição por autores de notórios saberes, especialmente convidados, cada um em busca de melhores argumentos e coerentes justificativas para suas ideias. A esses autores, a ArtFliporto agradece especialmente pela partilha voluntária de suas Letras editadas e ilustradas com esmero pela nossa equipe. Convidado a voos grandiosos e mutantes, o leitor desta Revista constatará, mais uma vez, a marca da ousadia e do zelo pela beleza estética, embalados nos princípios da Arte que ora temos a satisfação de compartilhar com todos. A ArtFliporto é, pois, uma iniciativa pernambucana que tem o propósito de fazer ecoar, na Grande Teia, o poder da criação que enobrece o espírito humano através da Arte e entrega–se democraticamente ao leitor como fruto a ser colhido sem restrições, na mais democrática e gratuita forma de conceber o direito de acesso à cultura, ao conhecimento e à beleza estética.

ANTÔNIO CAMPOS Diretor


Congresso literário

PROG R AMAÇ ÃO DIA 13/11 19h ABERTURA: Manuela Nogueira, escritora, sobrinha do poeta Fernando António Nogueira Pessoa DIA 14/11 15h Javier Cercas, Sérgio Godinho e Ioram Melcer: Verdade, Falsidade e Fingimento: os heterónimos de cada um de nós 17h Luíze Valente, Alfredo Antunes e Eric Nepomuceno: Saudade e Memória: o passado presente e o futuro na literatura e na história 19h Miguel Sousa Tavares e Mário Prata: Portugal e Brasil: o que nos une, o que nos afasta DIA 15/11 15h Elisa Lucinda e Paulo José Miranda: O meu caso de amor com Fernando Pessoa 17h Richard Zenith e Arnaldo Saraiva: Fernando Pessoa traduzido, Fernando Pessoa tradutor 18h30 André Morgado e Alexandre Leoni: A vida oculta de Fernando Pessoa 20h CONVERSA DE ENCERRAMENTO: Pasquale Cipro Neto: As nossas—e as outras—línguas portuguesas

HOMENAGEADOS

COM PLACA E DIPLOMA FAMÍLIA EDUARDO CAMPOS CLUBE O HOMEM DA MEIA NOITE GOVERNADOR PAULO CÂMARA REAL HOSPITAL PORTUGUÊS GABINETE PORTUGUÊS DE LEITURA ACADEMIA PERNAMBUCANA DE LETRAS FUNDAÇÃO GILBERTO FREYRE ITAÚ CULTURAL M.DIAS BRANCO REDE GLOBO/NORDESTE EDUARDO CÔRTES COLÉGIO SÃO BENTO


ESTÁ SENDO MUITO COMENTADO nos círculos literários e culturais do país o grande feito que é a Fliporto contar com a participação da sobrinha do poeta Fernando Pessoa, Manuel Nogueira. O escritor Arnaldo Saraiva, que esteve recentemente com ela em Lisboa, contou nesta semana do grande entusiasmo dela em abrir a festa em Olinda. Nos seus quase 90 anos, que completa quando da sua estada em Pernambuco, Manuela não poupou esforços para atravessar o oceano e dar o seu depoimento sobre o tio, de sua obra e como foi conviver com ele no endereço hoje visitado pelos admiradores de sua obra de todo o mundo: a Casa Fernando Pessoa.

ALGUNS DESTAQUES DA

FLIPORTO

FOTOS: DIVULGAÇÃO

2015

UMA DAS PRESENÇAS mais aguardadas na Fliporto é a do romancista espanhol Javier Cercas, um dos mais premiados e populares autores da língua espanhola na atualidade. Colunista do jornal El País, ele lança a edição brasileira do novo livro O Impostor, cujos primeiros exemplares estão saindo da gráfica nesta semana e despachados para o Recife. Para assistir à apresentação do escritor e acompanhá–lo em Olinda a Editora Globo designou um dos seus principais editores.

OS JOVENS AUTORES ANDRÉ MORGADO E ALEXANDRE LEONI, embora estejam trabalhando juntos, pela internet, há mais de um ano, nunca se encontraram pessoalmente. O primeiro encontro deles será em Olinda, na Fliporto, quando farão o lançamento da História em Quadrinhos A Vida Oculta de Fernando Pessoa.

MAIS DO QUE UMA COINCIDÊNCIA: a história de Pernambuco está no foco da atenção de dois dos mais importantes romancistas portugueses da atualidade: Miguel Sousa Tavares e Paulo José Miranda. Nos novos romances, ainda inéditos, de ambos, o Recife é o cenário. A época dos holandeses e a vida dos judeus na cidade, que tanta atenção despertou nos historiadores de vários países, agora estão sendo reconstruídas em ficção da melhor.

DO OUTRO LADO DO MUNDO, das terras bíblicas, precisamente, vem uma boa nova para muitos poetas de língua portuguesa: o tradutor israelense Ioram Melcer, que participa da Fliporto, acaba de concluir uma grande antologia, onde reúne 365 poemas de autores portugueses, brasileiros e africanos. No livro, em hebraico, ele incluiu também textos de autores pernambucanos como Geraldino Brasil, Manuel Bandeira, João Cabral de Melo Neto e Alberto da Cunha Melo.

CINE FLIPORTO 2015 APRESENTA: A LUNETA DO TEMPO


SUMÁRIO

56 O SERTÃO DE ZÉ LINS — O SERTÃO DE ARIANO Sônia Ramalho de Farias 61 GALERIA CAMARGO VILAÇA, UMA REFERÊNCIA

04 PROGRAMAÇÃO DO 11º CONGRESSO LITERÁRIO INTERNACIONAL PERNAMBUCO —FLIPORTO 2015

62 CONFERÊNCIA DAS NAÇÕES UNIDAS —PATRIMÔNIO HISTÓRICO DESTACA OLINDA FOTO: DIVULGAÇÃO

03 APRESENTAÇÃO

10­ LINGUAS E PESSOAS Antonio Campos

22 DE PORTUGAL E DO BRASIL: O PRÓXIMO, O DISTANTE, A VOZ PRÓPRIA Maria Alice Amorim

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FOTOS: VOLKER HINZ

32 FOTO: DIVULGAÇÃO

38 UM OLHAR SOBRE A CAPELA SISTINA Cristiana Tavares de Queiroz Marques 42 MÁRIO FAUSTINO E SEUS PRECURSORES Ermelinda Maria Araujo Ferreira

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82 A FOTÓGRAFA Plinio Palhano 84 O LIVRO DO NORDESTE — Gilberto Freire e o Diario de Pernambuco 86 GANHADORES DO PRÊMIO MAXIMIANO CAMPOS DE LITERATURA 2014 89 "NEGATIVOS" MINICONTO — PRÊMIO MAXIMIANO CAMPOS 2014

46 ROBERTO BURLE MARX, UMA VONTADE DE BELEZA Isolda Walderley

90 EDITH DERDITH: NÃO SEPARO PROCESSO DE RESULTADO 94 NU ENCONTRO DO TEU CORPO (Texto: Aleta Câmara / Fotos: Roberto Portella)

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FOTO: DIVULGAÇÃO

FOTO: MARCELO CORREA

52 JOÃO CÂMARA —LITOGRAFIAS

86 GALERIA CAMARGO VILAÇA, UMA REFERÊNCIA

80 GUERRA PEIXE "SEU MAESTRO" Nestor de Holanda Cavalcanti

45 NOVO LIVRO DE AGUINALDO SILVA

51 A SEREIA NO MEL (CRÔNICAS) Paulo Fernando Craveiro

66 JOCHEN VOLZ NA CURADORIA DA BIENAL DE SÃO PAULO

78 CRISE NO MERCADO EDITORIAL E OS DESTINOS DA LITERATURA (Entrevista com Walter Moreira Santos)

32 IBERÊ CAMARGO

50 BARTHES OU SONHO (IN)FINITO DE LINGUAGUEM Mario Helio

64 AS NARRATIVAS INSANAS DE KRAMER E FELLINI Andrés Von Dessauer

68 POEMAS DE JACY BEZERRA Paulo Gustavo

26 PRESERVAR A MEMÓRIA: LUTAR CONTRA O TEMPO, RECUPERAR O TEMPO José Rodrigues de Paiva 34 O DECLÍNIO DA AUTORIA NA WEB & NAS ARTES Heloisa Buarque de Holanda

63 PARA MAIS E PARA MENOS (POESIA) Paulo Gustavo

88 CONVERSAS COM CURADORES E CRÍTICOS DE ARTE

ILUSTRAÇÃO: M. BANDEIRA

18 JOÃO DE CALAIS NO CORDEL DE PORTUGAL E DO BRASIL Arnaldo Saraiva

10 FOTO: DIVULGAÇÃO

12 ASTROLOGIA E PENSAMENTO MÁGICO MARCARAM VIDA E OBRA DE FERNANDO PESSOA Fellipe Torres

FOTO: DIVULGAÇÃO

ILUSTRAÇÃO: BRAMBILLA.VC

08 SÚMARIO

98 VAN GOGH PASSOU POR AQUI

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99 SAGA YHUTHAN Edson Capistrano (Fragmento)

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ILUSTRAÇÃO: DIVULGAÇÃO

P LÍNGUAS PESSOAS E Texto ANTÔNIO CAMPOS

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essoa. Pessoas. O mais singular e plural de todos os poetas da língua portuguesa. Nenhum tão português e universal, tão de Lisboa, tão seu, e nosso, de cada um, pessoal. Como um jogo de espelhos–caleidoscópios sua poesia parece decifrar os mais íntimos sentimentos e pensamentos dos leitores. Fernando Pessoa tem um quê de plural/universo, tal como uma vez definiu– se. Lê–lo é superar os bairrismos, regionalismos, nacionalismos. Tão de sua aldeia quanto de qualquer parte da terra, soube conciliar o próprio e o de todos, a unidade e o fragmento. Por essas e muitas outras razões, pessoais e impessoais, continua tão atual. Soube, com o seu ‘drama em gente’, falar das paixões humanas, e revelar, em verso e prosa, os mais profundos desassossegos. Sua mensagem é mais que Portugal, é o português. Por isso podemos considerá–lo um poeta tão de Lisboa quanto de Luanda, tão do Porto quando de Olinda, dos Açores, São Paulo ou São Tomé e Príncipe, Rio de Janeiro, Macau, Recife, Maputo, Manaus, Goa, Maceió... Ao falar de língua e de linguagem, é outra vez o plural que evoca Fernando Pessoa. Educado também em inglês, foi no idioma de Shakespeare que apareceram alguns dos seus primeiros versos e uma de suas últimas frases. De Durban a Lisbon, do fumo da Tabacaria à poeira dos astros. Revisitamos Fernando Pessoa, arca inesgotável, pensando que há muito veio morar no Brasil sob o nome falso/verdadeiro de Ricardo Reis. O Brasil ama Fernando Pessoa, e de tal maneira, que não pensa que ele seja um poeta brasileiro, sente–o assim. Compreendeu–o e adotou–o há muito. De Cecília Meireles a Maria Bethania, de Murilo Mendes a Edson Nery da Fonseca, de Carlos Pena Filho a Ferreira Gullar, do mais famoso ao anônimo dos leitores.

A Fliporto, desde o primeiro ano de realização, tem preferido destacar os temas e os autores da cultura brasileira, ibero–americana, africana, e mergulhar nas suas mais profundas raízes, do Ocidente ao Oriente. Desta vez volta–se para um assunto essencial—o da língua. Unha–e–carne com o autor homenageado; a passagem do Livro do Desasssossego assim contextualiza o problema: “Não tenho sentimento nenhum político ou social. Tenho, porém, num sentido, um alto sentimento patriótico. Minha pátria é a língua portuguesa. Nada me pesaria que invadissem ou tomassem Portugal, desde que não me incomodassem pessoalmente. Mas odeio, com ódio verdadeiro, com o único ódio que sinto, não quem escreve mal português, não quem não sabe sintaxe, não quem escreve em ortografia simplificada, mas a página mal escrita, como pessoa própria, a sintaxe errada, como gente em que se bata, a ortografia sem ípsilon, como o escarro directo que me enoja independentemente de quem o cuspisse. Sim, porque a ortografia também é gente. A palavra é completa vista e ouvida. E a gala da transliteração greco–romana veste–ma do seu vero manto régio, pelo qual é senhora e rainha.” Se Pessoa via a língua como uma pessoa, nós vemos Pessoa como uma língua, muitas línguas e linguagens. Em quatro dias—12 a 15 de novembro—Olinda terá essas companhias heteronímicas—dele e de cada um dos escritores que irão celebrá–lo e debater, sempre no plural, a alta literatura, nos mais diferentes jeitos e sotaques. Pois assim tem sido e sempre será a língua portuguesa: pátria, casa, roupa, ‘pessoa’ inteira. De Vieira a Euclides. De Camões a Bilac. De Eça a Machado. De Camilo a Graciliano, Rosa, Cabral... Unidade e diversidade da língua, das línguas portuguesa, portugais, áfricas, ásias e brasis. 

ANTONIO CAMPOS Presidente do Conselho Cultural da FLIPORTO FESTA LITERÁRIA INTERNACIONAL DE PERNAMBUCO

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ILUSTRAÇÃO: ALMADA NEGREIROS /REPRODUÇÃO

ASTROLOGIA E PENSAMENTO MÁGICO MARCARAM VIDA E OBRA DE FERNANDO PESSOA Pesquisadora BIANCA CAMPELLO aborda o misticismo do poeta português Texto FELLIPE TORRES

FOTO: BLENDA SOUTO MAIOR DP/ D.A.PRESS

“Ele inventou o perfil fake no Facebook antes do Orkut. Era um nerd introvertido com vontade de ter amigos muito íntimos. Como não conseguia se abrir, inventou a própria rede social”. Assim a pesquisadora pernambucana Bianca Campello define o poeta português Fernando Pessoa, cujo interesse por temáticas místicas é investigado neste domingo (25), às 9h, no Espaço Pasárgada. Parte do Festival Internacional de Poesia (FIP), o minicurso aborda a relevância da astrologia e do pensamento mágico na forma literária que o escritor deu aos seus heterônimos e para a obra poética de cada um deles. Pessoa criou cerca de 300 mapas astrais, tanto para traduzir a personalidade dos seus “amigos imaginários” quanto para prever eventos ou o sucesso de instituições (como a empresa Íbis, fundada por ele). A confiança na leitura dos astros o levou, por exemplo, a desistir de um encontro marcado em Lisboa com a poetisa carioca Cecília Meireles. Essa forte ligação do autor de Livro do desassossego com a magia é responsável por uma aura de mistério em torno

do poeta. Há quem acredite em mediunidade, loucura, genialidade e até em transtorno de múltipla personalidade (embora certa vez o poeta tenha se declarado bipolar). A criação dos personagens–autores foi uma maneira de viver várias “encarnações” de uma vez só e, assim, evoluir espiritualmente? Ou constitui um grande investimento em um “projeto de literatura”? Fernando Pessoa tornou–se refém das próprias invenções? “Acho bastante possível cada uma das teorias, mas quando vejo um quebra–cabeça tão bem armado, acho difícil pensar em uma mente tão instável, atuando fora da realidade”, diz Campello, doutoranda em letras pela UFPE. Para a especialista, as ideias de Pessoa são comparáveis a modelos propostos por Sigmund Freud, pelo cubismo e surrealismo. Com uma leitura astrológica tradicional, é possível identificar a descrição do estilo e da personalidade, dos objetivos e realizações de Alberto Caeiro, Ricardo Reis, Álvaro de Campos e do próprio Fernando Pessoa. Fosse louco, médium ou gênio, o mais relevante é a coesão e coerência do universo literário criado pelo poeta português. Afinal de contas, sublinha Bianca Campello, a visão astrológica dos heterônimos não muda a maneira de ler a obra de Pessoa,  13


porque ela somente confirma o que já se sabia. “A única certeza é de que, por meio da astrologia,ele buscou caminhos para projetar aquilo que já era representado através da linguagem verbal”. QUAL A ORIGEM DESSA PROXIMIDADE DE PESSOA COM MAGIA? Já é de divulgação ampla a relação de Fernando Pessoa com o ocultismo. Isso já é extremamente documentado, mas como um traço biográfico. Há também casos de epígrafes, citações e poemas com referências diretas à magia, à Ordem da Rosa Cruz, à maçonaria. Mas havia pouca pesquisa referente à astrologia, mesmo ele tendo exercido atividade de astrólogo extremamente cotidiana. Nas anedotas dessa lenda que Fernando Pessoa é —a gente nunca pode levar tudo completamente a sério, pois ele gostava de brincar com isso—você tem um cara que fazia mapa astral para quase tudo. No espólio do poeta foram encontrados cerca de 300 mapas astrais, inclusive dos três heterônimos poéticos, Alberto Caeiro, Ricardo Reis e Álvaro de Campos. O QUE ELE BUSCAVA COM ESSES MAPAS? Uma das lendas é que Cecília Meireles, quando visitou Lisboa, marcou encontro com ele. Estava tudo certo, até que ela recebeu um recado dizendo que Pessoa não iria porque o horóscopo do dia não era favorável. Outra lenda, essa muito cercada de mistérios, é que ele conheceu o mago negro Aleister Crowley, a partir de um episódio em que o poeta corrigiu uma carta astrológica publicada nos jornais. Eles passaram a trocar correspondências, o inglês vai parar em Portugal, encontra o poeta, e pouco tempo depois desaparece em um lugar chamado Boca do Inferno, uma gruta, uma praia perto de Lisboa. Então ficam as lendas, porque além de tudo, Crowley era duplo espião no período pré– Segunda Guerra Mundial. Há a história de que ele se suicidou e contou com a ajuda de Fernando Pessoa, de que ele estava fugindo de dívidas, de uma mulher que estava querendo casar com ele, dos nazistas, dos ingleses, de todo mundo. Enfim, lá vai Fernando 14

Pessoa dar depoimento para a polícia, ser considerado “o mago”, “a besta 666”. QUE INFORMAÇÕES PODEM SER OBTIDAS COM UM MAPA? O mapa astral é uma combinação de símbolos que tem uma linguagem, diz um texto completo, que pode ser sobre a identidade de uma pessoa, sobre um fato, e que requer um estudo não apenas da linguagem, mas uma dedicação para a construção. Hoje em dia, qualquer pessoa vai na internet, insere determinados dados (data de nascimento, local, hora), e o site gera o mapa astral bonitinho. Na época de Fernando Pessoa não tinha isso. Era preciso pegar régua, compasso, conferir tabela, então era um processo longo que requeria estudo. E as relações entre os mapas astrais de Pessoa são muito intrincadas. Ele consegue criar fenômenos relativamente raros, que o mapa de um heterônimo se comunica com outro. POR QUE ELE FOI TÃO A FUNDO NA CONSTRUÇÃO DESSAS IDENTIDADES? Há quem diga que a heteronímia era uma questão mediúnica. Até porque o próprio Pessoa deixa material para indicar isso. Em uma carta a Adolfo Casais Monteiro, de 1965, sobre a gênese dos heterônimos, ele diz que no “dia triunfal”, como ele chamava, ele estava em pé à frente da máquina de escrever, como sempre ficava, e vêm de repente os 35 poemas de O guardador de rebanhos, de Alberto Caeiro. Quase em um transe. Mas vários estudiosos apontam que isso é lenda, pois você encontra várias versões dos poemas desses livros, com correções, anotações. COMO AS MÚLTIPLAS IDENTIDADES SE CONECTAM COM O ESPIRITISMO? Para Fernando Pessoa, havia três caminhos para a evolução da alma: o mágico (o mais perigoso, ligado à incorporação mediúnica), o místico (que ele diz ser o mais demorado, provavelmente uma referência à meditação) e o alquímico (o mais eficiente). No espiritismo, a alquimia tem a ver com a transmutação de

uma alma não evoluída para uma evoluída. Juntando com o que Fernando Pessoa leu, a gente sabe que existe a ideia da encarnação como um processo para evolução da alma e de aprimoramento. Então há uma possibilidade de que os heterônimos sejam uma tentativa de, numa mesma vida, você encarnar várias delas. E de volta à astrologia, há quem pensa que o mapa astrológico é uma narrativa que poderia contar um processo de evolução da alma, com combinação de identidades, interesses, impulsos essenciais. O QUE OS MAPAS FALAM DOS HETERÔNIMOS? Com uma leitura astrológica tradicional, você vê a descrição do estilo e da personalidade, dos objetivos e realizações de cada um dos heterônimos. Pessoa teve que “futucar” para saber quais eram os dia, local e hora que esse povo nasceu, pra justificar esses mapas. Ele fez vários mapas astrais até chegar a esses, que se combinam perfeitamente. Ou, se alguém preferir pensar assim, veio um guia espiritual de outro mundo e disse quais eram as datas. Existem pesquisas médicas que relatam problemas psiquiátricos documentados na família. A avó de Fernando Pessoa era esquizofrênica. Ele tinha medo, em cartas ele dizia ter transtorno de bipolaridade, buscava diagnósticos. Há dois anos foi publicado um estudo de diagnóstico psiquiátrico de Pessoa, que aponta para um transtorno de múltipla personalidade. AFINAL, FERNANDO PESSOA ERA GÊNIO OU LOUCO? Acho bastante possível cada uma dessas teorias, mas quando vejo um quebra–cabeças tão bem armado, acho um pouco difícil pensar em uma mente tão instável, que estaria atuando fora da realidade. Vejo uma pessoa que está investindo muito seriamente em um projeto de literatura que corresponde a ideias e propostas estéticas. O que ele faz na divisão do ser tem muito a ver com o que ocorre em outras formas de pensamento. Há Freud, com a ideia de que a alma está dividida em setores (ego, id e superego), o cubismo, que

fala sobre uma fragmentação de mundo, o surrealismo, que fala sobre a escrita automática (para muitos estudiosos, Pessoa utilizou esse mecanismo para escrever poemas de Álvaro de Campos). Há muito mais incertezas do que certezas. Fernando Pessoa deixou uma obra aberta. ELE CHEGOU A ATUAR COMO ASTRÓLOGO OU FOI APENAS UM HOBBY? Um dos personagens de Pessoa, um dos “amiguinhos imaginários”— que os especialistas preferem não chamar de heterônimo por não ter uma personalidade tão constituída—é um cara chamado Rafael Baldaia. É um astrólogo que teria previsto com dois meses de diferença a data de morte do próprio Fernando Pessoa. Entre os documentos do poeta, foram encontradas tabelas de cobrança de consulta para fazer mapas astrais. O pesquisador Paulo Cardoso defende que Pessoa atuou profissionalmente como astrólogo. Entender o viés astrológico muda a maneira de ler a obra de Pessoa? Seja qual for a origem dessa obra, trata–se de um universo projetado para ter muita coesão e coerência. A gente nunca vai descobrir se Fernando Pessoa era louco, tinha transtorno de múltipla personalidade ou se era médium. Não podemos confiar nem no que ele disse. A visão astrológica dos heterônimos não muda as leituras, porque ela somente confirma o que já se sabia. O que se pode saber é que, por meio da astrologia, Fernando Pessoa busca caminhos para projetar aquilo que vai estar representado através da linguagem verbal. MAPAS ASTROLÓGICOS ÁLVARO DE CAMPOS VÊNUS EM SAGITÁRIO—ligado à forma e ao exagero. Poemas são enormes, com versos longos. É verborrágico. MEIO DO CÉU EM ESCORPIÃO—pessoa de caráter dúbio, possivelmente ligado ao “lado negro da força”. Manipuladora emocionalmente. Em determinado momento, passa a ser personalidade dominante.  15


JÚPITER NA CASA 1, COMANDADO POR CAPRICÓRNIO—expressão como indivíduo. Teimoso. Quer status e poder. Personalidade que se amplia. Heterônimo não parou de escrever até a morte de Fernando Pessoa, cujas poesias assinadas com o próprio nome cessaram anos antes.

VÊNUS RETRÓGRADA—herança artística. Tem tudo “virginianamente” organizado, metrificação perfeita. Fernando Pessoa dizia: “pus nele toda a minha disciplina mental”. Não traz nada de novo. Universo temático é de poesia neoclássica, com referência a mitologias, carpe diem, viver de maneira simples.

TRECHO: E o esplendor dos mapas, caminho abstracto para a imaginação concreta, Letras e riscos irregulares abrindo para a maravilha.

TRECHO: Tirem–me os deuses Em seu arbítrio Superior e urdido às escondidas O Amor, glória e riqueza.

O que de sonho jaz nas encadernações vetustas, Nas assinaturas complicadas (ou tão simples e esguias) dos velhos livros.

Tirem, mas deixem–me, Deixem–me apenas A consciência lúcida e solene Das coisas e dos seres.

SOL EM ÁRIES (CONSIDERADO A CRIANÇA DO ZODÍACO)—imagem da criança está presente na poesia dele, também a imagem do menino Jesus, do Deus criança. SOL NA CASA 9, DA FILOSOFIA—heterônimo traz nova filosofia, neo–paganismo. VÊNUS EM CONJUNÇÃO COM MEIO DO CÉU EM TOURO (SIGNO SIMPLÓRIO)— ligada à forma poética simples. Não há metrificação. Versos livres e brancos (sem rima). Não se identifica como poeta. Forma sem preocupação com a elaboração. Vocabulário pequeno, com poucos adjetivos e predominância de substantivos e verbos.

ILUSTRAÇÃO: KLEBER

TRECHO: O meu olhar é nítido como um girassol. Tenho o costume de andar pelas estradas Olhando para a direita e para a esquerda, E de vez em quando olhando para trás... E o que vejo a cada momento É aquilo que nunca antes eu tinha visto, MERCÚRIO NA CASA 8—Sexualidade cheia de taras. Pode estar ligado a aspectos rejeitados pela consciência. Também ligado à herança. Grande desconfiança sobre as próprias palavras. Falta autoconfiança.

FERNANDO PESSOA (ORTÔNIMO) LUA NO MEIO DO CÉU EM LEÃO—sinal de pessoa extremamente vaidosa. CONJUNÇÃO EM SATURNO—indica ação de contenção. Ele tem que esperar o reconhecimento social. Mas como o que é construído com o tempo tem solidez, Fernando Pessoa ficou para a história. MARTE NA CASA 12—autodestrutivo. Energia de combate está voltada para si mesma. Pessoa morreu de crise hepática, provavelmente cirrose provocada de tanto beber. SOL EM GÊMEOS—pessoa nasce preparada. ASCENDENTE EM ESCORPIÃO—ligado a emoções profundas, mas que ficam ocultas.  Deixo ao cego e ao surdo A alma com fronteiras, Que eu quero sentir tudo De todas as maneiras. Do alto de ter consciência Contemplo a terra e o céu, Olho–os com inocência : Nada que vejo é meu.

FONTE: Diario de Pernambuco

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JOÃODE CALAIS NO

CORDEL DE PORTUGAL E DO BRASIL

A

FOTO: DIVULGAÇÃO

Texto ARNALDO SARAIVA

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versão original da História de João de Calais, que Madame de Gómez publicou em Paris em 1722, diz que, ao chegarem a Lisboa, o herói e o seu barco “ atraíram quase toda a Cidade ”, incluindo o Rei de Portugal. Esse episódio fictivo, por sinal ausente das versões portuguesas, que substituíram Lisboa por Palermo, Portugal pela Sicília, e ainda os Algarves pela província de Siracusa e Cascais por Messina, dir–se–ia que funciona como imagem, ou como “myse en abyme” especial, do que tem acontecido na realidade: mesmo com aquelas substituições, a história de João de Calais (às vezes qualificada como “nova”, “verdadeira”, “completa”) tem seduzido como poucas, até aos nossos dias,1 os leitores e ouvintes portugueses, que, com variantes ou 1 As últimas impressões ou reimpressões autónomas da História foram feitas em Angra do Heroísmo em 1956, por João Azevedo Almada ( História de João de Calais) e em Lisboa em 1967, pela Livraria Barateiro (História do Célebre Navegador João de Calais). Nos Contos Populares Portugueses recolhidos por Alda da Silva Soromenho e Paulo Caratão Soromenho e editados em Lisboa, em 1984 figuram quatro versões da História ouvidas em terras de Norte de Portugal nas décadas de 50 e de 60 e em 1975.

variações, a fizeram circular em folhetos ou oralmente, em prosa ou em verso, por terras do Brasil e por muitas outras que colonizaram ou para onde emigraram.2 Não admira, pois, que o “emigrante” António Nobre pedisse, em Paris, no poema “Lusitânia no Bairro Latino”: “conta–me a história da Fermosa Magalona /E do Senhor de Calais”—3 rimando, curiosamente, “Calais” com “sinais”, à semelhança do que viriam a fazer vários poetas do Nordeste do Brasil, entre os quais Severino Borges da Silva, o autor do folheto O Verdadeiro Romance do Herói João de Calais, onde “Calais” rima com “divinais”, “celestiais”, “cabedais”, “especiais”, “paz”, “mais”, e José Costa Leite, o autor de O Herói João de Calais e a Princesa Constança, onde “Calais” rima com “rapaz”, “demais”, “capitais”, “jornais”, “sagaz”, “pais”; note–se no entanto que no Nordeste brasileiro também se pode usar a pronúncia francesa (“Calé” ou mesmo “Quelé”, como dizia a mãe de Francisca Neuma Fechine4 Borges ), que talvez tenha levado Zé Bernardo da Silva a editar um folheto possivelmente da sua autoria com o título Romance de João de Calae, quando o título interior diz “Histórias de João de Calais” e este último nome rima com “atrás”, “imperiais”, “cais”... 2 Não será a falta de referências ou de recolhas que desmentirá essa circulação fora do Continente Europeu. Apesar de tudo sempre é possível lembrar que Elsie Clews Parsons recolheu uma variante em Cabo Verde, na Ilha de Santo Antão—e não de Santo António como se lê em Cinco Livros do Povo de Luís da Câmara Cascudo (2ª Ed. João Pessoa, UFP, 1979, p. 365); e que Claude Hulet assinalou a existência de um folheto com a história de João de Calais publicado em Oakland, Califórnia, em 1915, destinado à comunidade luso–americana (cfrCandace Slater, A vida no Barnante, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1984, p.8) 3 Poesia Completa, Lisboa, Círculo de Leitores, 1988, p. 113 4 Estruturação e Isossemias da História de João de Calais, tese de mestrado apresentada à Universidade Federal da Paraíba em 1979, p. 62

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É possível que a referência a Portugal e a lugares e personagens portugueses tenha chamado a atenção de leitores portugueses cultos, como o anónimo que fez a tradução ou (às vezes) adaptação do texto francês, e que a publicou em 1783, se não antes. Cascudo supôs, no que é seguido por Francisca Neuma, que já nesse ano a história era “lida e popular, corrente nas listas de livrinhos de cordel”5 . Mas não apontou outras edições ou outras listas, e baseou–se apenas numa informação de Teófilo Braga, que vira num catálogo de 1783, do livreiro João Henriques, o anúncio da venda da História Nova de João de Calais, dos grandes trabalhos que padeceu e a fortuna que teve depois.6 Só que nem Teófilo, nem Cascudo, nem outro qualquer estudioso que veio depois deles terá visto essa edição, que também é referida em A Tradução em Portugal, de A.A. Gonçalves Rodrigues, mas com o título Histórias de João de Calais, dos grandes trabalhos que padeceu e a fortuna que teve depois.7 No entanto, Cascudo garantiu que a “versão portuguesa” da história não ocultava “a fonte da redacção francesa”.8 Ora o próprio Cascudo lembra que, 13 anos antes da referida edição portuguesa, apareceu em França outra versão, ampliada, da história, que passaria a figurar na “Bibliothèque Bleue”. Essa versão “sur nouveaux mémoires” deveu–se a Jean Castillon, ou Castilhon, que é por certo o mesmo Jean–Louis Castilhon de que no mesmo ano de 1783 se traduziu para português uma sua Correspondência...9 Curiosamente, a história de Jean de Calais não se popularizou em Espanha, onde tiveram 5 Op. cit., p.361 6 O Povo Português nos seus Costumes, Crenças e Tradições, II, Lisboa, D. Quixote, 1986, p.339

7 Vol. I, Lisboa, Imprensa Nacional—Casa da Moeda, 1992, p. 176 8 Op. cit. na nota 2, p.359. Terá havido duas edições, ou versões, ou uma reimpressão? 9 Op. cit. na nota 7, p.175

grande sucesso outras histórias que em Portugal e no Brasil lhe andam associadas, tais como Carlos Magno e os Doze Pares de França, Roberto do Diabo, Pierres e Magalona. E isso parece tanto mais curioso quanto é certo que Madame de Gómez foi casada com um espanhol, de que recebeu o nome, e deu a um personagem que era príncipe da corte portuguesa o nome de Juan (Dom Juan); compreende–se que, para não se sobrepor ao nome de “Jean” de Calais, o nome do seu rival não fosse traduzido para francês, como foram os nomes da princesa Constança (“Constance”) e da sua companheira Isabel (“Isabelle”); só que a verosimilhança exigiria que o “ Premier Prince de Sang” se chamasse João (ou Joham, ou Joam) e que, se se queria insinuar alguma semelhança com o sedutor de Tirso de Molina, se escrevesse com linguística lógica “Don” e não “Dom” Juan.10 Por outro lado, a segunda versão francesa da história, que se publicou em 1770, foi, como dissemos, assinada por outro Jean que decerto não por acaso se chamava Castilhon, e que decerto não por acaso pôs as personagens Constança e Isabel a falar castelhano. Mas é óbvio que o sucesso da história de Jean de Calais em Portugal não se deveu à conduta portuguesa de alguns dos seus personagens e lugares, que, já o notámos, as versões portuguesas substituíram por lugares e personagens da zona do Mediterrâneo. Francisca Neuma Fechine Borges adianta explicações para essa permuta, que se deveria a razões de ordem estrutural e de ordem histórica. Mas João de Calais não era bem um conquistador, salvo do coração de Constança; 10 Há outras incongruências ou anomalias no texto de Madame de Gómez, que também por aí se assemelha aos contos populares. Notaremos apenas mais três: o rei de Portugal é tratado como “Prince”, tal como, poucas linhas adiante, o seu sobrinho malvado, o mesmo rei diz a João de Calais “ je reconnais ton fils pour le mien” quando mais correctamente devia dizer “ je reconnais ton fils pour mon petit–fils”; a personagem Isabelle é dada como filha do “Duc” de Cascais e, cinco parágrafos adiante, é dada como filha do “Marquis” de Cascais.

e a sua deslocação marítima podia pô–lo mais à prova no Atlântico do que no Mediterrâneo. O que a meu ver mais terá motivado as substituições (não as correcções) do tradutor foi o desejo de poupar ao leitor português a tentação da pergunta ou da colagem histórica (qual dos reis de Portugal era o pai de Constança? quando é que João aqui chegou?), favorecendo, com o distanciamento, o devaneio romântico, o trabalho da imaginação e o gozo da evasão exótica. Depois, é bem possível que aos olhos do letrado ou literato que era o tradutor (e adaptador), o cenário ou o passado siciliano parecesse mais exemplar tanto do ponto de vista literário (João de Calais é bem um descendente de Ulisses e de Eneias), como do ponto de vista cristão. Sob este aspecto, interessa considerar sobretudo o caso das cativas Constança e Isabel. Os “romances de cativos” estiveram muito em voga ao longo dos sécs. XVI e XVII, e facilmente se perceberá por quê: só entre 1621 e 1627 havia cerca de 20 mil cristãos cativos—lembra Joaquin Marco, citando Braudel, que citara um testemunho português.11E ele mesmo acrescentava: os cativos eram frequentemente “prisioneiros de combates navais, viajantes aprisionados pelo corsário turco e vendidos em Argel em hasta pública ou habitantes das costas mediterrânicas raptados pelas pequenas lanchas turcas e levados a Argel como escravos”. Recorde–se que as jovens portuguesas Constança e Isabel tinham sido raptadas por corsários quando passeavam à beira–mar. 11 Literatura Popular en España, vol. II, Madrid, Taurus, 1977, p.390

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Francisca Neuma também se debruça sobre o sucesso em Portugal («vende–se como canela»—dizia Teófilo Braga) da história de origem francesa. E não se esqueceu de invocar razões de diverso peso e natureza: o nome de João, a estrutura narrativa, as aventuras marítimas, os comportamentos idênticos aos de personagens bíblicos e aos dos cavaleiros medievais, as situações parecidas com as da épica renascentista, as isossemias amorosa, moral e sociológica, e sobretudo os motivos, que também já Cascudo referia, do “morto agradecido” e da “esposa resgatada”. Mas outras razões e motivos poderiam ser explorados, desde os de ordem linguística ou estilística (o texto português é esteticamente mais elaborado do que o francês) até aos do rapto, do sequestro ou do cativeiro, desde os da relação amorosa, ou conflitiva, ou dramática pai/filho até aos da traição ou da deslealdade, desde os do secreto e do fantástico ou do mágico até aos da ilha misteriosa ou da “vida na ilha”, habitada ou deserta. A este propósito conviria recordar que a historia de João de Calais é publicada exactamente três anos depois do Robinson Crusoe de Defoe e três anos de L’Ile des Esclaves de Marivaux. Madame de Gómez soube aproveitar, como Perrault o fizera um quarto de século antes, tipos e motivos eleitos de velhas tradições verbais. E a habilidade com que os seleccionou e conjugou salva ou atenua a inanidade dos seus clichés, entre os quais o do “happy end”. O conto ou o “romance” de João de Calais é de algum modo o da civilização ocidental.  21


De PORTUGAL e do BRASIL: o próximo, o distante,

VOZ PRÓPRIA Texto MARIA ALICE AMORIM

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Assim, proposta aceita, aconteceu no MAP, entre março de 2011 e maio de 2012, a exposição Teia de Cordéis—desdobrada em duas expografias: Cordéis Portugueses/Coleção Arnaldo Saraiva, Cordéis Brasileiros/ Coleção Maria Alice Amorim— sob a curadoria de ambos os colecionadores no tocante à exibição dos portugueses e somente sob a de Maria Alice Amorim quanto aos brasileiros. 

FOTO: MARCUS PRADO

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novelo de Ariadne, no labirinto vai unindo ramagens, cosendo rupturas, redesenhando começos, bifurcações. É Aracne que de si própria extrai os fios com que tece a precisão e a beleza, desafios à deusa Atena. Nem pista sem saída, nem rumo estéril, os muitos fios que compõem a paisagem tradicional da literatura popular brasileira, conhecida sobretudo pelos matizes da poética de violeiros repentistas e de cordelistas, deixam vislumbrar caminhos herdados, mudanças de rota, voz própria. A partir do instante inaugural, no século XVI, entre terras lusas e brasileiras cordões umbilicais engendravam heróis, mitos, emblemas. Inicialmente guiada por prévios roteiros de criação, exteriores à cultura local, a literatura de cordel se vale da astúcia de Ariadne e do primor artístico de Aracne, abraçando o desafio de não se enredar na própria teia, não se perder em labirintos, nem se deixar devorar. Assume voz própria, conquista autonomia criadora no continuum das tramas seculares de engenhosa narrativa poética, constituindo–se patrimônio imaterial do Nordeste brasileiro e, de maneira exuberante, do Estado de Pernambuco. Recife sempre se destacou, desde o início do século XX, na invenção, edição e difusão do folheto popular. Foi considerando este relevante dado histórico e, igualmente, o volume e a importância da produção de/sobre o folheto popular brasileiro, disseminado país afora ao longo de mais de um século e a partir de

matrizes poéticas populares medievais de procedência européia, que surgiu a pertinente iniciativa de propor à pauta do Museu de Arte Popular (MAP), da Prefeitura da Cidade do Recife, uma exposição que pudesse abranger a produção editorial portuguesa, a partir mesmo da datação dos mais antigos exemplares de que se tem notícia em acervos institucionais e particulares—o século XVII—e que contemplasse, ainda, a produção editorial brasileira estabelecida como produção cultural do Brasil, inaugurada com autores considerados pioneiros na consolidação da tradicional poética cordelística no país, a exemplo de Leandro Gomes de Barros, Francisco das Chagas Batista, Silvino Pirauá de Lima, João Martins de Athayde. 0 presente catálogo trata,

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pois, do registro dessa atividade museológica que, na primeira parte, se caracterizou por ter sido pioneira, em território nacional, quanto ao expressivo volume de literatura de cordel d’além–mar aqui jamais antes exibido numa mesma ocasião e espaço, abarcando edições do período histórico em que foi prolífica tal produção editorial: os séculos XVII, XVIII, XIX e XX. Esse primeiro momento permitiu, portanto, que o público pudesse conferir no MAP, durante quase três meses, documentos raros, inclusive um folheto português de 1602, então o mais antigo da coleção de Arnaldo Saraiva. Na sequência, em meados de junho de 2011, o museu inaugurou a segunda parte do evento, ou seja, a mostra brasileira composta pelo Acervo Maria Alice Amorim. Com isso foi possível apreciar publicações do gênero, sobretudo novos autores do cenário poético nacional,­ofertando–se, assim, aos visitantes, o que traduziríamos como sendo a contínua tessitura de Aracne e os fios de regresso oferecidos por Ariadne, em meio a encruzilhadas e labirintos: a produção contemporânea aliada a retrospectiva histórica de vigorosa expressão da cultura brasileira, de modo evidente relacionada a poéticas tradicionais—provençal, ibérica, portuguesa—que remontam à Idade Média. Logo, pelo relevante fato de inventariar rara e pioneira reunião de mais de quinhentos exemplares de cordel de Portugal e do Brasil, fica completamente justificado este registro em catálogo, mesmo deslocado do momento cronológico em que ocorreu o evento.

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Foram trazidos ao Recife 254 cordéis pertencentes ao acervo do colecionador e especialista, que possuía, à época, um conjunto constituído de cerca de quatro mil folhetos brasileiros e 700 lusos, destes últimos diversos deles datados dos séculos XVIII e XIX, entre os quais seis dezenas de poemas impressos sob a forma de folha solta ou volante. Os títulos em exibição no Recife deram idéia de temas, períodos, formatos, modalidades textuais que caracterizam o cordel de Portugal, e, especificamente, a referida coleção, a qual se encontra registrada, em quase totalidade, no catálogo Folhetos de Cordel e outros da minha colecção, editado em 2006 pela Biblioteca Municipal Almeida Garrett, do Porto, cidade onde Saraiva reside, e onde expôs no mesmo ano cerca de 125 exemplares da particular recolha de raridades, os mesmos que também foram mostrados na Biblioteca Nacional de Lisboa. O texto de Arnaldo Saraiva, reproduzido neste livro, e que circulou no folder da exposição no Recife, foi originalmente preparado, a título de apresentação, para o catálogo luso acima referido. Deixando registrada a passagem, pela capital pernambucana, de precioso acervo documental estrangeiro, a presente publicação trata, ainda, de inventariar o segundo momento da Teia de Cordéis, este atinente a seleção de mostra nacional. Em complementaridade às raridades históricas, o MAP ofereceu a mais

recente produção de cordéis brasileiros—tanto novas narrativas, quanto reedição de clássicos— colocada lado a lado com a produção editorial que compõe a secular história da literatura de cordel brasileira. Do acervo de Maria Alice Amorim foram selecionados 258 folhetos brasileiros, de autores consagrados e das novas gerações, escolhidos pelas narrativas tradicionais e também contemporâneas, ciclos temáticos, pelejas inventadas e pelejas virtuais, variedade dos modelos editoriais, estética das capas. Em meio a tal seleção, foi posta em evidência a obra de três patrimônios vivos de Pernambuco—os xilógrafos e cordelistas José Soares da Silva (Dila), José Costa Leite e José Francisco Borges (J. Borges). Outro dos destaques foi a edição em Braille do conjunto de dez livros escritos pelo pernambucano Marco di Aurélio e publicados em 2005. Este acervo brasileiro, então emprestado ao MAP, constitui parte de catálogo virtual que pode ser consultado no endereço eletrônico www.cibertecadecordel.com.br. Quanto ao texto incluído no folder do momento brasileiro, aqui reeditado, aborda questões referentes à produção emergente com o século XXI. Pelo que foi visto nos dois momentos, percebe– se claramente, não apenas um repertório nordestino e nacional, construído por autores do Brasil, como também a presença de temas tradicionais que já circulavam entre as recorrências da narrativa popular da Europa medieval, a exemplo do que Luís da Câmara Cascudo registra em Cinco Livros do Povo, ou seja, as narrativas referentes à Donzela Teodora, Princesa Magalona e Imperatriz Porcina, a Roberto do Diabo e João de Calais, todas elas contempladas nas vitrines do MAP, em variadas edições, de distintos séculos, quer portuguesas, quer brasileiras. Foram exibidos, ainda, títulos

que tratavam do heróico, do satírico, do religioso, das histórias de trancoso, contos pastoris, novelas de cavalaria, persistências temáticas que compõem significativa parcela de tão rico patrimônio cultural brasileiro. Graças à compreensível impossibilidade de folhear os cordéis e ter acesso ao respectivo conteúdo, a concepção expográfica incluiu, nas paredes, mesas e vitrines do ambiente expositivo, a transcrição de alguns textos para conhecimento do público. Embora o cordel de Portugal inclua múltiplas modalidades textuais, a curadoria optou por transcrever e destacar versos de poetas brasileiros e portugueses, para realçar confluências nas formas fixas e construção poética de ambas as tradições.

Ainda como diretriz para a plasticidade da mostra, a evidência recaiu sobre a reprodução de aspectos visuais das capas, tais como ilustrações, vinhetas, xilogravuras, composição gráfica, escolha e combinação de cores, de fontes, a fim de privilegiar, além da expressão formal e estilística de tradição poética, a sofisticação e variedade editorial deste grande e precioso legado de memórias culturais seculares, o cordel, que segue unindo ramagens, cosendo rupturas, redesenhando começos, bifurcações. 

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Preservar a memória:

LUTAR CONTRA O TEMPO, RECUPERAR O TEMPO Texto JOSÉ RODRIGUES DE PAIVA

FOTO: DIVULGAÇÃO

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estes tempos que correm, quando tudo é cada vez mais virtual e descartável, preservar a memória das instituições—sejam elas poderosas ou modestas, tenham maior ou menor visibilidade—é uma necessidade que se impõe cada vez mais urgente e importante. É por acreditar nisso que, aceitando em 1985 a missão de conduzir as atividades da Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, sucedendo ao professor Francisco Balthar Peixoto, decidi que não daria por encerrada a incumbência sem deixar o testemunho de uma memória que é muito mais a dos meus antecessores do que a minha. Uma memória, ou uma história, que começou a ser construída em 1954 no momento em que o professor Severino Jordão Emerenciano, catedrático de História da Literatura Portuguesa da Faculdade de Filosofia da Universidade do Recife (assim se chamava então a atual Universidade Federal de Pernambuco) criou o Instituto de Estudos Portugueses, seguindo o exemplo dado por Fidelino de Figueiredo (secundado por Antônio Soares Amora) na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo.

Nos 60 anos decorridos entre a criação do Instituto de Estudos Portugueses da Universidade do Recife e o momento atual, a que o Instituto chega com a denominação de Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, muitas e de relevante importância foram as iniciativas da instituição criada pelo professor pernambucano nascido em Catende, cujo nome, por justa homenagem que lhe foi feita em 1973, passou a integrar a identidade institucional. Tais iniciativas em muito contribuíram para o renome do Instituto de Letras da Universidade do Recife e, na seqüência, para o do Departamento de Letras da UFPE. Particularmente a série dos Seminários de Verão anualmente realizados nas décadas de 60 e 70 do século passado, assim como os Encontros nacionais de professores universitários brasileiros de literatura portuguesa (o III em 1974 e o IX em 1982), ou as comemorações pela passagem do cinqüentenário da morte de Fernando Pessoa (1985), ou as do centenário de nascimento do poeta (1988), ou ainda o conjunto de atividades acadêmicas realizadas em torno da obra de Eça de Queirós a pretexto do sesquicentenário do seu nascimento (1995) ou do centenário da morte (2000), celebrado, este, entre nós com o Colóquio Internacional “Eça entre Milênios: Pontos de Olhar”, realizado em parceria com o Instituto Camões, de Lisboa. 27


Muitas e importantes personalidades nacionais e estrangeiras do ensino da literatura—além de muitos escritores, entre poetas, ficcionistas, historiadores e críticos literários—passaram pelas salas da antiga Faculdade de Filosofia de Pernambuco, pelas do Instituto de Letras e depois pelas do Centro de Artes e Comunicação da UFPE participando destas e de inúmeras outras realizações proporcionando projeção nos noticiários da imprensa local a essas unidades universitárias. Feito o “balanço”, é inegável a importância dos serviços prestados pela instituição à Universidade que a abriga, assim como, no cumprimento dos seus objetivos, ao estudo e divulgação da cultura portuguesa. Não obstante, a continuidade do velho Instituto de Estudos Portugueses na atual Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano correu também muitos e sérios riscos, sobretudo em tempos mais recentes, quando, da parte de alguns dirigentes—que por sorte são transitórios—, se verificou perdida a sensibilidade para o que significa um projeto realizado como este. Perdida também, na indiferença e no desconhecimento de alguns daqueles que chegaram depois, estava igualmente a dimensão de quem foram, do que fizeram e do que representaram para a Universidade professores como Jordão Emerenciano, Joel Pontes e Francisco Balthar Peixoto. Facilmente e lamentavelmente podia constatar–se, nessa indiferença gerencial, que se havia perdido a memória desses mestres, o que era absolutamente injusto. O pragmatismo e o imediatismo do 28

gerenciamento ameaçavam imperar sobre quaisquer razões. Por várias vezes, em tempos de crise de espaço para a instalação de novas salas de aula para o Departamento de Letras pesou sobre a Associação de Estudos Portugueses a ameaça de perder a dependência onde está instalada e que é o seu abrigo desde a inauguração do Centro de Artes e Comunicação. Segundo a insensibilidade dessa visão pragmática, a Associação simplesmente desapareceria, tendo o seu acervo bibliográfico disperso e descaracterizado na incorporação ao da Biblioteca Central ou ao da setorial, a Joaquim Cardozo. Outros acervos, como o documental, móveis, equipamentos, utensílios, etc., seriam igualmente liquidados para esvaziamento do espaço. Entretanto, uma sala que individualizasse a instituição como um núcleo voltado para o estudo, a divulgação e o apoio ao ensino da literatura (e mais amplamente da cultura) portuguesa foi tudo quanto os primeiros doadores de material bibliográfico solicitaram à Universidade a título de contrapartida pelas sucessivas ofertas com as quais se fez a biblioteca. Entre esses primeiros doadores estiveram o Instituto de Alta Cultura (hoje Instituto Camões), a Academia Portuguesa da História, a Sociedade de Geografia, o Arquivo Histórico Ultramarino, a Academia das Ciências de Lisboa, a Junta de Investigações do Ultramar, o Ministério da Educação de Portugal, a Imprensa Nacional Casa da Moeda, a Fundação Calouste Gulbenkian. O que pediam, era uma sala na qual se identificasse uma biblioteca de cultura portuguesa. O professor Jordão Emerenciano assumiu o compromisso, por si e pela sua Universidade, desde o reitorado de João Alfredo Gonçalves da Costa lima (1959–1964) e até hoje, felizmente (e no que pesem ou pesaram as ameaças), ele tem sido respeitado. Mas os riscos de extinção ainda mais reforçaram a minha convicção de que era necessário escrever essa história. Os documentos, assim como os livros, os móveis antiquados e desgastados são peças de uma memória que é necessário preservar, tal como as biografias dos professores que à causa dos estudos portugueses no Recife

deram tanto da sua força de trabalho no ideal em que se empenharam. Por isso a escrevi: para deixar um testemunho, um registro, uma memória que, neste campo das atividades universitárias, o das Letras, una o passado ao presente e o projete para o futuro, na esperança de que esse testemunho possa gerar um compromisso de continuidade. Se assim não for, ou seja, se algum dia a ameaça de extinção se concretizar, ficará pelo menos a memória do que houve. Penso, entretanto, que nenhuma instituição é tão rica que se permita o luxo ou o desperdício de ignorar ou desprezar uma parte de si, sobretudo quando essa parte conta com uma história de 60 anos, que é praticamente a idade da Universidade Federal de Pernambuco.

A Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano é, na prática (e não obstante a sua denominação de sociedade civil), um núcleo de pesquisas, de extensão e de apoio ao ensino. Como tal, é, em termos absolutos, o mais antigo no domínio das Letras, e está, com certeza, entre os mais antigos de toda a Universidade. Só por isso mereceria ser preservado, dinamizado, modernizado, sendo essa uma tarefa para os vindouros. A perspectiva metodológica que adotei para escrever esta História da Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano é a memorialística. Trata–se de um “memorial” que trata da história propriamente dita da instituição seguido do relatório das principais atividades realizadas ao longo dos seus 60 anos de existência, organizado cronologicamente, na seqüência das quatro gestões administrativas que trouxeram o Instituto de Estudos Portugueses de 1954

até hoje, quando é outra a sua denominação. Entretanto, trata–se de uma memória “construída” sobre os alicerces de pesquisa realizada em fontes muito escassas. Para “construir” essa memória percorri arquivos da Universidade, da Academia Pernambucana de Letras, do Arquivo Público Estadual Jordão Emerenciano, do Gabinete Português de Leitura de Pernambuco e da própria Associação de Estudos Portugueses, compulsando dezenas de pastas de documentos (correspondência, planos de trabalho, relatórios, programas de seminários e congressos), de fotografias e de recortes de jornais. Vali–me de bibliografia que levantei sobre a presença dos estudos portugueses no Brasil e dos brasileiros em Portugal e, num segundo plano, de depoimentos pessoais ouvidos, principalmente, do professor Francisco Balthar Peixoto e de Alfredo Xavier Pinto Coelho Afonso, vice–cônsul de Portugal que à época dos Seminários de Verão idealizados por Jordão Emerenciano presidira o Clube Português do Recife e depois o Gabinete Português de Leitura de Pernambuco. Xavier Pinto Coelho, amigo de Jordão e de Joel Pontes, em muito contribuiu com as iniciativas do Instituto de Estudos Portugueses (depois Centro de Estudos e finalmente Associação) envolvendo como parceiros das suas realizações as instituições a que presidiu e o Conselho da Comunidade Portuguesa de Pernambuco. Por isso o incluí (in memoriam) entre aqueles aos quais dedico este trabalho e, na ampliação da homenagem, inseri no volume (na seção “Anexos”) um texto necrológico que publiquei por ocasião da sua morte. Não há como, registrando–se a memória de uma instituição, deixar–se à parte a memória dos que a fizeram, conduziram e auxiliaram. Por isso nos “Anexos” procurei delinear os perfis acadêmicos, culturais e humanos do fundador do Instituto de Estudos Portugueses, professor Jordão Emerenciano, daqueles que na condução do Instituto o sucederam—Joel Pontes e Francisco Balthar Peixoto—e, entre estes, o do constante colaborador (e muitas vezes co–patrocinador de atividades) Alfredo Xavier  29


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E Pinto Coelho Afonso. E assim o fiz por considerar justa e merecida a inclusão. Encerrando o “memorial” inseri uma seção iconográfica composta por fotografias de sessões de seminários, reproduções de capas de livros e revistas, programas de colóquios e ciclos de palestras, porque a imagem é também linguagem da história, documento capaz de fixar a memória de um tempo e do que nele se realizou. É um meio de lutar contra o tempo ou de tentar recuperá–lo. Escrevendo a História da Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano procurei fixar essa memória, que não é absoluta porque nenhuma memória o é, mas que, mesmo com as lacunas que tem, procura contribuir para salvar do esquecimento, da indiferença e da insensibilidade do imediatismo pragmático do nosso tempo o significado do trabalho em que se empenharam os que viveram e construíram essa história. Foi isso que me moveu a fazê–lo e espero não estar enganado. 

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Solenidade de entrega de fundo bibliográfico doado pelo instituto de Alta Cultura (Lisboa) ao Centro de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano (1973). Freira das Dorotéias representante da Fafire, Professor José Lourenço de Lima, Cônsul de Portugal em Pernambuco, Domingos Tomás Vila Garrido Serra, Reitor da UFPE, Marcionilo de Barros Lins, Professor Joel Pontes, Professor Elijah Von Sohsten, Diretor do Instituto de Letras da UFPE

MEMORIAL DOS 60 ANOS

m 1954, quando a UFPE era ainda a Universidade do Recife, o professor Severino Jordão Emerenciano, catedrático de Literatura Portuguesa, criou o Instituto de Estudos Portugueses junto à Faculdade de Filosofia de Pernambuco onde então funcionava o curso de Letras. Veio– lhe a inspiração ou a motivação para tal projeto, da criação, na Universidade de São Paulo, de instituição de nome e objetivos idênticos que passaria a ser tomada como modelo para as congêneres que viriam a surgir em várias universidades do país com o propósito de apoiar o ensino, a pesquisa e a extensão em Literatura Portuguesa. Com esse direcionamento, o professor Jordão fez realizar, pelo Instituto, cursos, seminários, conferências, publicando os resultados bibliográficos dessas atividades, o que, rapidamente, lhe assegurou prestígio junto aos meios universitários e culturais de Pernambuco e de outros estados. O Instituto de Estudos Portugueses da Universidade do Recife, inicialmente instalado na Rua Nunes Machado, na Soledade, onde funcionava a Faculdade de Filosofia de Pernambuco, mudou algumas vezes de sede e também de nome, embora não mudasse nunca de objetivos. Em 1965 passaria da Nunes Machado para o Centro de Filosofia e Ciências Humanas, no Campus Universitário e, dez anos depois, seria transferido para o Centro de Artes e Comunicação, sempre acompanhando o curso de Letras. De Instituto passaria a chamar– se Centro, mas sucessivas reformas universitárias tornaram impróprias essas denominações, optando–se, em 1973, pela de Associação de Estudos Portugueses à qual foi incorporado, em homenagem póstuma, o nome do fundador. A este, na gestão da entidade, sucederam os professores Joel Pontes, Francisco Balthar Peixoto e o autor deste livro em que são tratados estes e outros aspectos do já longo percurso da instituição. O “Memorial dos 60 anos” da Associação de Estudos Portugueses Jordão Emerenciano, para além de representar um esforço pela preservação da memória do que foi feito, é também homenagem aos que, pioneiramente, construíram essa história. 

NAS LIVRARIAS O N.º 188, DA COLÓQUIO LETRAS MATERIALIDADES DA LITERATURA “Materialidades da Literatura” é um paradigma de trabalho emergente nos estudos literários, wcom uma ascendência variada: história do livro, nova filologia, materialismo cultural, teorias dos novos meios, poética digital, etc Neste âmbito, Osvaldo Manuel Silvestre aborda a técnica de cinema usada por Joaquim Pedro de Andrade para filmar Manuel Bandeira no documentário O Poeta do Castelo; as tecnologias digitais aplicadas às Humanidades são comentadas por Paulo Silva Pereira em "Barroco digital: remediação, edição textual e arquivo" e por Ricardo Namora em "(Re)criando infraestruturas: o que é exatamente a e— Filologia?"; Manuel Portela e António Rito Silva apresentam–nos uma nova forma de ler o Livro do Desassossego em "A dinâmica entre arquivo e edição no ‘Arquivo LdoD’"; e Sónia Deus Ferreira elucida a forma como no Barroco texto e imagem se conjugam para figurar a morte. O n.º 188 inclui ainda artigos de Maria Alzira Seixo (o romance Maria Adelaide de M. Teixeira Gomes), Maria de Jesus Cabral (Interlúnio de Eugénio de Castro), Rita Basílio (a correspondência de Pessoa com Ofélia Queiroz), Ângela Varela (o poema em prosa de António Ramos Rosa) e Laura Cavalcante Padilha (Luanda de Luandino Vieira). Para além das habituais secções de notas e recensões críticas, publicam–se poemas de Golgona Anghel, um quase—inédito de Alberto de Lacerda e uma entrevista de Ana Marques Gastão a Lídia Jorge.  31


nos últimos dias de vida, ibêre camargo

já debilitado pelo tratamento do câncer, encontrou forças para finalizar sua última pintura, Solidão. As três figuras fantasmagóricas talvez fossem o prenúncio de sua morte, ocorrida em 9 de agosto de 1994. Diante de grande tela na parede, está A negra (1997), obra em tecido da paulista Carmela Gross que emula a maior pintura em proporções que Ibêre realizou. iberê ficou conhecido como o pintor dos carretéis

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mas também dos ciclistas. Esses seres desfigurados, que parecem pedalar sem rumo em busca de algo, surgem em suas obras a partir dos anos 1980. A pintura Ciclistas (1989) ganhou companhia de modelos de duas rodas que integram a série Cicloviaérea (2001-2007), de Jarbas Lopes.Nesses trabalhos, o artista carioca entrelaça vime sobre as bicicletas.

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O declínio da autoria na

WEB&NAS ARTES Texto HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA

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uriosamente, o tema a teatralidade do humano—ainda que, no mais das vezes, refira–se à práticas artísticas e comportamentais que atravessam a História, encontra um terreno fértil nas práticas artísticas e comunitárias da web. Aqui, ela vem em diálogo direto e intenso com as novas práticas identitárias e autorais no ambiente www e seu reflexo na criação off line. Não fosse assim, a cultura do século XXI não seria tão profundamente marcada pela abertura de um debate radical acerca da questão da autoria. Voltando um pouco no tempo, é interessante lembrar que o surgimento da noção de autoria, tal como a experimentamos hoje, vem mais ou menos sincronizada com o ascenso do individualismo e da economia de mercado pós Revolução Francesa. É nesse momento que

surgem as primeiras leis reguladoras da propriedade intelectual como a inglesa copyright e a francesa droit d’auteur. Ainda que com pequenas distinções, ambas geraram um debate forte que já naquela época reforçava os dois eixos do problema: o direito do indivíduo x o interesse público. O direito do autor, bem como seu corolário a importância da autoria, é, portanto, um direito relativamente novo, que surge gerando polêmicas e cujo DNA sinaliza conflitos de base. Por volta dos anos 1960/70, o debate cultural coloca em pauta outra questão não menos polêmica também fruto dos novos paradigmas modelados pela revolução burguesa que é a questão da centralidade do sujeito. Em todas as áreas da cultura, as noções de sujeito e subjetividade são discutidas, testadas, experimentadas. É o noveau roman, é o cinema de autor, é a volta do figurativismo, é a filosofia pós–estruturalista. A morte do sujeito é proclamada como definitiva e incorpora–se a descoberta do outro e da alteridade como traço distintivo das rebeliões culturais dos anos 60. Em 1969, Michel Foucault traz esse debate para a noção de autor com o ensaio tão belo quanto fundamental, Qu’est un auteur?. Nesse trabalho, Foucault desloca o ideia essencialista da existência real de uma autoria para a noção de função do autor. Ou seja, a autoria é uma noção construída historicamente e existe apenas em sua funcionalidade cultural e comercial. Daí para cá, a História parece ter se acelerado. Novos modelos políticos e culturais associados ao rápido desenvolvimento das tecnologias digitais emergem a cada dia, marcando o final do século XX como um momento de mudança paradigmática radical. Apenas nessa área, chamo atenção para a criação de equipamentos leves e de baixo custo o que permite que todos possam se tornar produtores culturais e divulgadores de conteúdo, para o surgimento da internet que inaugura a comunicação e a divulgação descentralizada e rápida inaugurando formas inéditas de comunicação entre pessoas e comunidades. Isso sem falar nos equipamentos comunicação móvel que trazem surpresas e definem inovações decisivas na  35


criação e no consumo culturais. Consolida–se o que chamamos de Geração C, ou a geração produtora de conteúdos que, pela facilidade atual de produção e difusão digitais, passa a ter um valor em si. Ao lado da febre do conteúdo, essa mesma geração apresenta uma infinita possibilidade de atuação através de máscaras nas quais se evidencia a questão da teatralidade exercida em grande escala nessas múltiplas teias permitidas pela web que demonstram sua capacidade de autorepresentação e articulação imediatas que vêm afetando os modelos comportamentais vigentes. Tentando resistir à tentação de mergulhar nessas águas, vou procurar focar aqui, entre as tantas novidades que a virada do milênio nos trouxe, a questão das novas formas de criação e produção que indiciam um declínio da primazia do autor e o avanço de uma experimentação intensa em torno da criação compartilhada, dos formatos coletivos, das trocas produtivas e de uma complexa e polêmica positivação da “pirataria”, através de práticas estéticas do cut & paste, do remix, do cover, das performances identitárias permitidas por vários novos programas como, por exemplo, o Second Life de o My Space com seus avatares e simulações ou nos grupos de comunidades virtuais como o orkut, blogs e simulares. Nesse campo, fica claro a relativização das práticas autorais tradicionais. Os exemplos 36

são infinitos e as audácias são favorecidas ao lado de uma legislação razoavelmente limitada, denunciando a complexidade de regulação que o universo www oferece. Entretanto, no mundo off line, as coisas também começam a sinalizar mudanças. Os movimentos culturais de vanguarda também começam a defender novas posições diante da hegemonia autoral e a defender o "plágio criativo". Não foi por acaso que o movimento copyleft (a guerrilha comandada por artistas e escritores contra o copyright), expandiu–se de tal forma e força que vários paises já adotaram o modelo de regulamentação de direitos autorais conhecido como creative commons para responder a esse momento no qual já não é tão certo que os direitos do autor são patrimônio inexpugnável. Essa nova forma de legislação, traz um espectro flexível de proteções para artistas e escritores. O creative commons—no Brasil representado por Ronaldo Lemos—constitui, sem dúvida, um real avanço no lidar com a lei do copyright em tempos de abertura de espaço para a reivindicações como o direito ao acesso ao conhecimento e do livre exercício de uma cultura da troca. O creative commons, resumidamente, é um busca de flexibilização dos direitos autorais que passam a ser definidos pelo autor de determinada obra em função de sua decisão pessoal quanto à liberação ou não desses direitos ou

parte deles para o uso público. As consultas ao creative commons são oferecidas num um site gratuito onde há vários tipos de licenças de uso para obras. Há licenças como “ domínio público”, “uso não comercial”, “recombinação”, “some rights reserved” e muitas outras. Essas inovações, tanto no campo prático quanto no jurídico, procuram enfrentar e superar os impasses das novas formas de produção geralmente vistas, de uma forma simplista, como mera pirataria, enfatizando o sentido de uma fábrica cultural com poder de criação e cooperação social. Ao lado dessas novas práticas, há ainda a midia tática que propõe a reutilização das midias tradicionais como tv, radio, vídeo, web sites, impressos e os demais tipos de midia eletrônica para dar voz a comunidades alternativas , dissidentes políticos e artistas de rua. Tanto o copyleft quanto a midia tática prometem efeitos radicalmente trasformadores não apenas do ponto de vista legal (que por si só é fascinante) mas principalmente como desafios aos modelos culturais vigentes, em sua quase totalidade, baseados nas idéias de autoria e autenticidade. Na web, a evidência da experimentação da criação cultural compartilhada ou não–autoral é múltipla e é, digamos, quase a norma. Que o comprovem os casos do Re–combo, pioneiro na

criação livre compartilhada, do Mídia Sana que atropela a mídia oficial com ácidos remixes e tantos outros. Fora da web, pode–se observar como praticamente todas as áreas da criação vêm desenvolvendo alguma forma de fragilização da autoria como princípio criativo. Nesse quadro, identidade, autoria, “raiz” e, até mesmo, subjetividade são noções que hoje se afirmam mais como fatores de negociação do que de essencialidades ou verdades. Trago aqui apenas um exemplo que me pareceu tão eloqüente quanto representativo que é o caso da atuação dos recentes coletivos de artistas plásticos. Os coletivos começam a surgir no final dos anos 90 e realizam um trabalho de intervenção no espaço urbano. Politicamente, trazem em seu perfil traços do hip hop brasileiro que trocaram , com inegável sucesso e resultado, a posição reativa que marca as políticas defensivas de resistência dos anos 60/70 ou mesmo a estratégia contracultural de atuar fora–do–sistema, para ações de caráter pro–ativo, ou seja, de enfrentar e tentar resolver por si mesmo as dificuldades e carências de suas comunidades através de ações de efeito transformador imediato ou de médio prazo. De forma similar, as intervenções dos coletivos de arte, também imbuídas do lead “o importante é agir”, começam a assumir função política de denúncia social, agora em vias e praças públicas. Simultaneamente, esses trabalhos discutem a própria estrutura da produção nos moldes do circuito e do mercado de arte. Os coletivos, que se propagam em proporção geométrica pelo Brasil, trazem um plus de novidade. Os coletivos não se configuram por seus integrantes e sim por determinadas ações, agindo sempre num contexto de intervenção pública. 

HELOISA BUARQUE DE HOLLANDA, editora e coordenadora do PACC da UFRJ.

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E

FOTOS: DIVULGAÇÃO

“A arte existe porque a vida não basta.”

Para Ferreira Gullar a arte torna a vida mais rica, mais fascinante, mais encantadora. Seu pensamento nos sugere que o ser humano necessita de uma contextualização artística para refletir sobre o mundo e sobre o seu papel como indivíduo no espaço que o cerca, possibilitando com isso seu desenvolvimento e a expansão de suas habilidades. Para Gullar, o objetivo da arte não é revelar a realidade, mas sim reinventá-la. Texto CRISTIANA TAVARES DE QUEIROZ MARQUES

Um olhar sobre a

CAPELA SISTINA

que é arte afinal? É um substantivo abstrato. É adjetivo, tanto quanto maravilhoso, deslumbrante. É verbo, pois gera, desperta, produz emoções, encantamentos, sentimentos. É filosofia pois leva à reflexão sobre o mundo, seus dilemas e suas realidades. Medicina é arte. Engenharia é arte. Física é arte. A arte também é tempo verbal: pretérito, presente e futuro. Por isso, é inescrupuloso aprisionar a arte em um único significado ou um mero conceito. O historiador russo Host Waldemar Janson, em sua definição filosófica diz que a arte é uma das razões pelas quais o homem cria por impulso irresistível de reestruturar a si próprio e ao seu ambiente de forma ideal. A arte representa a compreensão mais profunda e a mais grandiosa aspiração do criador e eis por que uma obra de referência pode ajudar a compreensão do universo e tem a magia de despertar profunda emoção. A arte representa um diálogo silencioso entre o salto da imaginação artística e a interpretação do interlocutor. Segundo Janson, a arte nos dá a possibilidade de comunicar a concepção da vida através de procedimentos que não podem ser expressos de outras formas. A imagem vale por mil palavras, tanto pelo seu valor simbólico como pelo seu valor descritivo, assim como algumas palavras valem por mil imagens. O impulso de navegar por mares desconhecidos, ousar, ser original é o que diferencia o artista do artíficie. É essa originalidade, essa ousadia, essa vontade de encontrar, de ser criativo que constitui a genialidade de quem produz arte de qualidade.

Originalidade e todos os seus sinônimos como unicidade, novidade, ineditismo é o que diferencia a arte da destreza. E toda essa complexidade do seu significado está condensada na genialidade criativa de Michelangelo Buonarroti. O renascimento, assim denominado em virtude da redescoberta e da revalorização das referencias culturais da antiguidade clássica, norteou mudanças neste período em direção a um ideal humanista. Foi um período de explosão de novas concepções motivadas parcialmente pela substituição de uma doutrina dogmática por uma doutrina científica. Durante a efervescência dessa nova forma de pensamento, Michelangelo teve a oportunidade de conviver com pintores, escultores, arquitetos, médicos e filósofos que lhe deram a chance de permear entre os mundos da arte e da ciência, 39


incluindo sessões de dissecação. Aos dezoito anos, mia, dominava técnicas de d ­ issecação conhecia em detalhes o corpo humano, o que fazia a diferença no seu processo criativo. Michelangelo não é visto como um anatomista, mas o conhecimento anatômico minucioso, com construção de moldes de cera, madeira, desenhos e representações gráficas davam um estilo próprio à genialidade artística de sua obra traduzida não somente pela realidade, pelo movimento, pela presença perfeita de músculos e tendões, mas principalmente pelo enigma nela contido. O pintor, arquiteto e escritor florentino Giorgio Vasari, relata em sua biografia sobre Michelangelo: “Não se pode imaginar um nu tão bem estudado nos músculos, veias e nervos que preenchem a ossatura, nem um morto mais parecido com um morto. A expressão doce do rosto, a harmonia entre os ligamentos e as articulações [...] É um prodígio que, de um bloco grosseiro, seja tirada tanta perfeição que a natureza se encarrega em produzir na carne”. 40

Michelangelo era essencialmente um escultor, um entalhador de estátuas de mármores, pai da Pietá, do David, do Moisés. A arte para ele significava a criação dos homens como uma analogia à criação divina. Em meados de 1500, Michelangelo foi convidado pelo Papa Júlio II, o maior e mais ambicioso dos Papas de Roma, para trabalhar nos afrescos do que viria a ser o menor país do mundo. Revoltado, por se considerar um escultor e não um pintor, por vezes tentou desistir dessa missão, entretanto após quatro anos de trabalho árduo, resmungos, reclamações, em pé sobre andaimes grande parte do dia, com a cabeça estendida para trás e olhos voltados para o teto, Michelangelo, aos 37 anos, eternizou–se através de um verdadeiro organismo composto por centenas de figuras com distribuição r­ ítmica em seu interior, o teto da Capela Sistina. Por muito tempo, sua obra artística encantou o mundo pela estética, pela originalidade, pela complexidade, pelos jogos de luz e sombra, pelos seus profetas, nus artísticos, sibilas e querubins. Mas, tamanha genialidade não caberia nesse espaço tão limitado. Heródoto Barbeiro é exímio em sua colocação: “O enigma é um dos elementos transcendentais responsáveis pela perenidade da obra e pelo desprezo que ela tem com o tempo. Nada a abala. É um elo entre gerações humanas que se sucedem”. O enigma não se resolve pois é mutável de acordo com a visão dos homens e interpretável com os valores de uma época, de maneira que quanto mais passa o tempo, mais polêmica produz”. Em 1990 o médico norte americano Frank Lynn Meshberger publicou um artigo científico no Journal of American Medical Association apresentando uma interpretação baseada em neuroanatomia da cena de A criação de Adão e Eva em que comparava a imagem—em que o Criador está dentro de um manto esvoaçante cercado de querubins—com várias figuras anatômicas, apresentando esquemas do corte sagital do crânio (e o cérebro nele contido) e a semelhança impressionante entre a representação pictórica e as peças anatômicas.

Em 2000, o nefrologista norte–americano Garabed Eknoyan publicou um estudo no Web of Science do Institute of Scientific Information, ISI no qual identificou o formato de um rim direito no manto da figura do Criador em A separação das águas e da terra. Em sua análise, divulgada na revista científica Kidney International, Eknoyan estabeleceu uma relação direta entre o conhecimento anatômico de Michelangelo e suas conhecidas crises por nefrolitíase. Em 2004, o médico Gilson Barreto e o químico Marcelo Oliveira publicaram, no Brasil, uma obra completa intitulada A Arte Secreta de Michelangelo—Uma lição de Anatomia na Capela Sistina, na qual decifram a simbologia da anatomia das cenas da Capela Sistina. É d ­ eslumbrante a forma como os autores d ­ esvendam a genialidade de Michelangelo através de pistas iconográficas e pictóricas onde as peças, os olhares, os movimentos, as luzes, as posições, os temas formam um verdadeiro jogo de duplo sentido. Através da digitalização das imagens a Arte e a Ciência foram comparadas e a representações artísticas das estruturas anatômicas colocadas lado a lado a fotos de peças reais ou a reproduções de alguns Atlas de Anatomia. Diante do exposto, fica claro que Michelangelo foi um artista que fundiu a arte à ciência ratificando a compreensão de Joan Josep Tharratz no que tange a necessidade permanente desse caminhar par e passo.

“Na consciência do criador plástico, a imaginação é superior à razão. Tudo o que existe na natureza nos atrai. Não só desejamos analisar a fachada, o envoltório ou a pele das coisas, mas o que há dentro que lá se esconde: os músculos, as veias, as vísceras, a energia contida e secreta, a explosão inevitável de cada fonte de vida” Arte e ciência nutrem–se do mesmo húmus: originalidade, criatividade, curiosidade humana, unicidade, objetivo de encontrar e de ousar. O fazer artístico e o científico constituem duas faces das ações e do pensamento humano, faces complementares, ambas geram reflexão, contextualização e apreciação de que o trabalho pode significar uma linguagem libertadora desde que se tenha o prazer e a autonomia como princípio da criação.  CRISTINA TAVARES DE QUEIROZ MARQUES, Médica oncologista clinica Hospital Universitário Oswaldo Cruz (Recife)

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MÁRIO FAUSTINO e seus precursores

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(Resenha do livro O ROMANTISMO RESISTENTE E O CLASSICISMO POSSÍVEL: Mário Faustino e a poesia moderna brasileira, de Artur Almeida de Ataíde (Recife: Bagaço)

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presentar o primeiro livro de fôlego da futura obra crítica de Artur Almeida de Ataíde—a sua dissertação de mestrado, premiada no Programa de Pós–Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco em 2009—é uma tarefa que me enche de orgulho e talvez até de um certo temor. Porque Artur só é jovem na enganosa aparência de menino e estudante com a qual optou percorrer os corredores da Academia nesta primeira década do século XXI, para ocultar da nossa sofrível contemporaneidade a indiscutível maturidade que lhe vem de berço, expressa na serenidade de seu semblante, na elegância de sua conduta, na agudeza de seu raciocínio e na notável perspicácia de sua percepção aglutinadora de formas e demolidora de fórmulas. O leitor deste texto que não venha, porventura, a se deparar com a atual figura de seu autor, não hesitará em reconhecer que ele atesta, como raros, a presença de um verdadeiro mestre.

“Yo premedité alguna vez un examen de los precursores de Kafka. A este, al principio, lo pense tan singular como el fénix de las alabanzas retóricas; a poco de frecuentarlo, creí reconocer su voz, o sus hábitos, en textos de diversas literaturas y de diversas épocas. Registraré unos pocos aquí, en orden cronológico.” —Jorge Luis Borges

O que se lerá a seguir não é, portanto, o resultado de um trabalho convencional de orientação, no qual o candidato apresenta a sua proposta e submete–a à aprovação dos doutos, ­construindo–a lentamente a partir das leituras e influências, embates e confrontos que constituem o cotidiano dos cursos, seminários e atividades de uma pós–graduação. Sem jamais se furtar a participar ativa e generosamente de todos os rituais universitários, o autor de O Romantismo resistente e o Classicismo possível: Mário Faustino e a poesia moderna brasileira sempre me pareceu gestar a sua palavra no silêncio e na imunidade características dos poetas, mas com a objetividade e a precisão características de experientes pensadores. Coube a mim, apenas, a honrosa e gratificante tarefa de acompanhar mais proximamente os fragmentos de uma obra em progresso—a de Artur, cuidadosamente debruçado sobre a de Mário—, e de comparecer, ao final, nestas páginas, com meu breve testemunho sobre a sua autonomia intelectual e a sua originalidade crítica. Como costuma ocorrer nos textos mais representativos do gênero ensaístico, não há, rigorosamente, nada que se possa dizer a respeito deles que não se obtenha com mais prazer, clareza e intensidade do contato direto com eles. Por isso, faço deste testemunho, principalmente, um convite entusiasmado à leitura: que os interessados no poder fundador da palavra no mundo, estejam ou não na 43


Academia, não hesitem em visitar esta erudita, não obstante irreverente revisão da tradição poética brasileira, orientada borgesianamente pela inversão das origens, e eliotianamente pelo dialogismo temporal. Nas entrelinhas desta pesquisa, percebe–se a utilização de uma inusitada e inconfessa metodologia analítica a Jorge Luis Borges. Assim, num “pequeno exercício de futurologia”, Artur Almeida de Ataíde opta, como o narrador do conto “Pierre Menard, autor do Quixote”, pela escolha de um corpus, por assim dizer, invisível: a obra O homem e sua hora e outros ­poemas—deste também falso jovem, ­infelizmente falecido de maneira trágica e prematura, o poeta piauiense Mário Faustino— que, “apesar da materialidade inconteste do seu volume na estante ou em nossas mãos”, como afirma Artur, “é uma que perdemos sem nunca termos chegado a possuir; parece um objeto que vive à sombra de outro—a sua “verdadeira” obra—, do qual depende, mas que podemos apenas entrever, como algo que perturba o nosso campo de visão sem se deixar, no entanto, circunscrever a ele”. Que não se imagine, porém, que este ensaio trata estritamente da obra visível/invisível de Mário Faustino. À sensível e arguta leitura dos poemas da terceira parte de O homem e sua hora e outros poemas, os “Fragmentos de uma obra em progresso”, alocada no terceiro e último capítulo desta dissertação, soma–se uma impressionante releitura retrospectiva (embora cronologicamente posicionada na estrutura do ensaio) das obras de seus supostos precursores na literatura brasileira: de Camões, Gonçalves Dias e Castro Alves no primeiro capítulo a João Cabral de Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade e Jorge de Lima no segundo, cuidadosamente escolhidos entre os seus pares ora como arautos, ora como traidores de um extemporâneo olhar épico, capaz de fazer eco, algo contraditória e também anacronicamente, à demanda faustiniana por uma “criação em percepção”, uma criação de universos de natureza ontologicamente estética e lírica, um tanto 44

avessos à referencialidade histórica e social tão caras à epopeia. Uma poesia viva, uma “vida toda linguagem”. Como diz Artur nesta ousada afirmação borgesiana: “O texto dos Fragmentos, quando analisado em suas relações de atração e ­repulsão com alguns elementos da história da poesia, revelaria o modo singular de combinação que impôs aos mesmos, gerando uma resposta distinta já em seus fundamentos daquela que nos teriam fornecido os outros modernos. O modo como destes se afastaria Faustino, mais radicalmente do que se permitiriam afastar qualquer deles entre si, nos autorizaria a falar em pelo menos duas grandes poéticas de nossa modernidade: uma representada tão somente pelos Fragmentos, e outra, cujos princípios irmanariam obras tão heterogêneas quanto as de Drummond, Cabral e Jorge de Lima”. Esta afirmação praticamente coloca Mário Faustino na condição de precursor de uma poética modernista que eliminaria, da poesia de seus ditos e elencados precursores, qualquer efetiva influência. Ora, um tão devastador revisionismo somente se equipara, em língua portuguesa, ao do poeta Fernando Pessoa, que se autoproclamava, aos vinte anos, “o poeta do ­Supra–Camões”; e, no conto de Borges referido nas entrelinhas do ensaio de Artur, “Kafka e seus precursores”, à originalidade brutal atribuída pelo argentino ao escritor Franz Kafka na literatura de todos os tempos e lugares: “Se não me engano, os heterogêneos textos que enumerei parecem–se a Kafka; se não me engano, nem todos se parecem entre si. Este último fato é o mais significativo. Em cada um desses textos, em maior ou menor grau, encontra–se a idiossincrasia de Kafka, mas, se ele não tivesse escrito, não a perceberíamos; vale dizer, não existiria. [...] No vocabulário crítico, a palavra precursor é ­indispensável, mas se d ­ everia tentar purificá–la de toda c­ onotação de polêmica ou de rivalidade. O fato é que cada escritor cria seus precursores. Seu t­ rabalho modifica nossa

concepção do passado, como há de modificar o futuro”. (Neste ponto, Borges insere uma nota de rodapé, que remete ao livro de T. S. Elliot: Points of View, de 1941, provavelmente ao ensaio “Tradição e talento individual”). Quer concordemos quer não com essas ­especulações tão sugestivas, não podemos deixar de assinalar o aspecto mais generoso que elas nos traduzem no texto de Artur Almeida de Ataíde: a atitude de admiração e de homenagem, não apenas para com Mário Faustino—o artista historicamente mais atual que é tomado como ponto de partida e referência, ainda que cronologicamente invertida, de precursividade—; mas para com a tradição em que o poeta se inscreve, e que faz ressuscitar no momento mesmo em que a elege como alvo de seus desvios interpretativos. Para o ensaísta, a presença de Mário Faustino, identificada nos precursores que ele cria para a sua obra, é muito mais do que apenas “devedora”: torna–se a promessa de um porvir, uma aposta no futuro, uma verdadeira profissão de fé na Poesia. Assumidamente inacabada, compõe–se “fragmentos”, pois a Grande Obra está em progresso. Embora não saibamos ainda, ela já foi incorporada aos textos nos quais s­ obreviverá, e é disto que trata tão acuradamente este ensaio, ousadamente escrito sob a perspectiva de um tempo futuro, onde Mário Faustino já não ­representa apenas um hipotético precursor do passado, mas uma efetiva dívida do presente. 

ERMELINDA MARIA ARAÚJO FERREIRA Professora Doutora do Programa de Pós–Graduação em Letras da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE).

NOVO LIVRO DE AGUINALDO SILVA Após o sucesso de ‘Império’, Aguinaldo Silva novelista prepara livro sobre os tempos em que foi jornalista em diários como o ‘Lampião da Esquina’ Aguinaldo fechou com a Objetiva um livro sobre suas reportagens policiais—publicadas sobretudo em jornais alternativos. A ideia do livro não é reunir os textos do autor, mas que ele conte como cada reportagem foi produzida. E a história é longa. Aguinaldo colaborou com dois dos jornais alternativos mais famosos, “Opinião” e “Movimento”, e foi ­­editor–chefe do “Lampião da Esquina” —o primeiro jornal gay do país. E o dramaturgo lembra–se bem de sua estreia nessas publicações, porque ela foi tensa. Nascido em Carpina, Pernambuco, o hoje novelista chegou ao Rio em 1964 para trabalhar na “Última Hora”. Mais tarde, ficou só dois meses no “Jornal do Brasil”, “porque tinha que atravessar dez nuvens de gás lacrimogêneo” para chegar à redação (o jornal ficava na Avenida Rio Branco, na época cenário de seguidas manifestações). E foi aí que parou de trabalhar e decidiu ser marginal.  45


UMA VONTADE DE BELEZA Texto ISOLDA WANDERLEY

A

Pinacoteca do Estado de São Paulo, a Prefeitura da Cidade do Recife, a UFPE, através do seu núcleo de Paisagismo e a galeria Barte BraSIL Arte Contemporânea, no bairro recifense de Casa Forte, tiveram a iniciativa de realizar, recentemente, uma série de eventos para comemorar o aniversário de Roberto Burle Marx. O público teve a oportunidade de conhecer não apenas o Burle Marx paisagista admirado no mundo inteiro, mas um artista fluente e criativo em muitas áreas da expressão estética. Burle Marx nasceu em São Paulo no ano de 46

1909 na Villa Fortunata, palacete localizado na esquina da Avenida Paulista com a Alameda Ministro Rocha Azevedo, onde passou sua primeira infância. Pode–se dizer que, de forma poética, ele construiu os alicerces fundamentais de sua obra inspirados nos seus pais, Cecília Burle, uma grande musicista pernambucana do Recife, romântica e lírica, e Wilhelm Marx, alemão, objetivo e racional. Em 1913 a família transferiu–se para o Rio de Janeiro onde permaneceram até 1928, ano em que mudaram para Berlim, então um dos centros culturais mais vivos do velho continente. Burle Marx pode nesta época, entra em contato direto com as obras dos movimentos de vanguarda

europeus— Picasso, Van Gogh, Arp, Klee etc. Também por lá, ao observar plantas tropicais brasileiras no Jardim Botânico de Berlim, o jovem de 20 anos teria percebido e se deixado hipnotizar pelas qualidades estéticas dos elementos da flora brasileira que a partir de então impregnariam sua obra. Em 1930, de volta ao Brasil, passou a colecionar plantas tropicais, ao mesmo tempo em que começou a frequentar a Escola Nacional de Belas Artes (Enba) no Rio de Janeiro, onde teve professores como Portinari e Leo Putz. Na década de 1930, passa a integrar sua obra ­paisagística à arquitetura moderna, ­experimentando formas orgânicas e sinuosas na elaboração de seus projetos. A partir de 1940 o paisagismo de Burle Marx assumiu proporções importantes enquanto o seu trabalho de pintura continuou a se desenvolver de modo bastante intenso e original. Segundo Giancarlo Hannud, curador da exposição e da Pinacoteca de São Paulo, “sua prática paisagística, caracterizada pela ordenação de formas, massas, cores e texturas 

FOTO: GILSON BARRETO /CPDOC JB

FOTOS: DIVULGAÇÃO

ROBERTO BURLE MARX:

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sobre um dado espaço geográfico em estreita relação com sua t­ opografia e flora nativa, sempre esteve intimamente ligada à sua atuação como pintor e vice versa. Conhecido internacionalmente como um dos mais importantes arquitetos paisagistas do século 20, Roberto Burle Marx estudou pintura em Berlim, na Alemanha, no final dos anos 1920. Lá, ele era frequentador assíduo do Botanischer Garten Und Botanisches Museum Berlin—dahlem, o mais antigo jardim botânico alemão, fundado no século 17 como um parque real para flores, plantas medicinais, vegetais e lúpulo (para a cervejaria do rei).

Esse jardim foi reformado no início do século seguinte e se tornou um dos mais importantes centros de pesquisa em botânica da Europa. Foi lá, a mais de 10.000 km de sua casa no Rio de Janeiro, que o rapaz de 19 anos notou pela primeira vez a beleza das plantas tropicais e da flora brasileira. Em 1949, Roberto Burle Marx organizou sua grande coleção no Sítio Santo Antônio da Bica, hoje Sítio Roberto Burle Marx. A partir de 1973 passa a ser a residência oficial do artista. Além de um acervo botânico dos mais importantes, por seu tamanho e abrangência, a propriedade abriga as coleções reunidas por ele ao longo de mais de oito décadas de vida. De volta ao Brasil, ele continuou seus estudos na Escola de Belas Artes, no Rio. Os jardins planejados por Burle Marx eram comparados 48

a pinturas abstratas, alguns bem curvilíneos, outros de linhas retas, usando plantas nativas brasileiras para criar blocos de cor. Além de paisagista de renome internacional, ele também foi um pintor notável, escultor, tapeceiro, ceramista e designer de joias. Seu primeiro projeto paisagístico foi o jardim de uma casa desenhada pelos arquitetos Lucio Costa (que projetou Brasília) e Gregory Warchavchik, em 1932. Dali em diante não parou mais de projetar paisagens, pintar e desenhar. Em 1949, Burle Marx comprou uma área de 365.000 m2 em Barra de Guaratiba, no litoral do Rio de Janeiro. Ali começou a organizar sua enorme coleção de plantas. Em 1985 ele doou a propriedade à Fundação Pró–Memória Nacional, entidade cultural do governo federal que atualmente se chama Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN). Hoje em dia pode–se encontrar um jardim ou uma estufa projetados por Burle Marx em várias partes do mundo, como em Longwood Gardens (Filadélfia), na Universidade da Califórnia, na cobertura da sede de um banco paulista, no aterro do Flamengo (Rio de Janeiro), em Caracas (Venezuela).

Mesmo sem ter uma educação formal em arquitetura paisagística, o aprendizado de Burle Marx na pintura influenciou a criação de seus jardins. Ele aceitava, embora de forma relutante, que “pintava” com as plantas. Mas seu trabalho não pode ser reduzido ao efeito pictórico e visual produzido por suas paisagens. Marx se a­ utodefinia como um artista de jardins. Conhecido por sua preocupação ambiental e pela preocupação com a preservação da flora brasileira, ele inovou ao usar plantas nativas do Brasil em suas criações e isso se tornou sua característica marcante. Foi ele quem valorizou as bromélias, por exemplo, e t­­ ornou–as populares: hoje essas plantas naturais da Mata Atlântica se tornaram conhecidas e são cultivadas em viveiros para serem vendidas. O “estilo Burle Marx” tornou–se sinônimo de paisagismo brasileiro no mundo. PATRIMÔNIO TOMBADO O Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan) anunciou, no final de 2014, o tombamento dos Jardins de Burle Marx, no Recife (PE). De acordo com o órgão, a medida foi tomada em razão do elevado valor histórico, artístico e paisagístico do local. O tombamento inclui a Praça de Casa Forte— Praça da Vitória Régia—situada na avenida 17 de Agosto; a Praça Euclides da Cunha—Cactário da Madalena— ou Praça do Internacional; e a Praça da República e o Jardim do Campo das Princesas. Também foram tombadas pelo Iphan, a Praça do Derby— Parque do Derby—; a Praça Ministro Salgado Filho—Praça do Aeroporto—; e a Praça Faria Neves—Praça de Dois Irmãos. O instituto destacou a necessidade de obtenção de autorização para as intervenções em bens tombados e na sua respectiva área de entorno, a ser requerida na superintendência estadual.  . 49


PINTURA: VICTOR NIZOVTSEV FOTO: JERRY BAUER

BARTHES OU O SONHO

(IN)FINITO DA LINGUAGEM

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e uma certa maneira mais metafórica e lírica, Roland Barthes foi o grande biógrafo da linguagem para toda uma geração. E no sentido literal da bio–grafia. Uma vida somente feita de sinais, signos, sentidos. Lê–lo continua a ser um prazer, não tanto como crítico ou teórico da literatura, mas pelas carícias que parecem advir das suas frases sobre frases, das palavras sobre as palavras, um corpo todo palimpsesto de sensações pensadas. Entendeu muito bem o drama de cada romancista, no enfrentamento da frase como uma luta, e o que chamou de “infinita liberdade do discurso”. O narrador dos dias atuais, tão desprotegido das roupas por vezes suntuosas da retórica, tem muito a aprender com suas reflexões, ele um romancista que rejeitava o romance e quando por fim decidiu escrever um não pode fazê–lo. Já estava demasiado perto da morte, sem o saber, como todos nós, e não deixa de ser irônico que fosse Vida nova o título imaginado para o seu romance. Cada romance ou novela é, sob vários aspectos, uma vida nova, como toda obra de Barthes, é, como no título de um dos seus melhores livros, uma Câmara Lúcida. 

Texto MARIO HELIO

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A NO MEL SEREIA

Texto PAULO FERNANDO CRAVEIRO

la pensou que era uma sereia, pensou com os botões que não tinha porque sereia era, pensou com suas escamas, ou talvez eu tenha pensado que ela pensara com suas escamas, ela sonhando em passear de submarino em mares e rios inexistentes, e durante verões e invernos sonhara também com o dragão basilisco, o leviatã– demônio da inveja do livro de Jó, o leontofone pequenino capaz de matar leões, as harpias com rosto de mulher e corpo de abutre, os grifos que protegem os deuses, e sonhara também com ondas, elevações oceânicas logo transformadas em montanhas, que passavam a existir somente enquanto sonhava consultando escamas de madrepérola. Tinha medo, muito medo, somente da medusa, jamais desejaria encará–la para não se transformar em pedra. Ainda assim, apesar de tanta realidade, onde não há limite para o sonho, gostava de varrer, com sua cauda de peixe, os resíduos de pó do fundo do mar enquanto pensava alto, borbulhando, que Deus está farto de nós, ah! Deus cansado, ele manda lixo demais para pouca vassoura, recordando que a última vez em que varrera o mar descobrira no chão, entre conchas, o bafo ainda morno dos afogados vítimas do kraken norueguês de 100 braços, grande como uma ilha, que afundava navios, e outros restos de naufrágios, uma inútil caixa de Pandora

porque todos os males do mundo haviam sido usados, para vários fins ou princípios, e tudo se consubstanciara estéril, o útil e o agradável, a carícia e a falta do gesto. Deste jeito, eu, que acompanhava a sereia, passei a escrever só por escrever, e o digo só por dizer, e vivo só por viver, sabendo de antemão que nenhum silêncio nem qualquer alvoroço será capaz de causar uma tormenta, vantagem de quem se habitua ao inverso da verdade ou ao côncavo da mentira. Enfim, acrescento, tudo é possível, mesmo o impossível para quem lê a Naturalis Historia, de Plínio, o Velho, aliás Gaius Plinius Secundus, morto ao observar a erupção do Vesúvio que arrasou Pompéia em 79, desde a flor que nasce de uma lágrima até a narrativa, registrada nos livros do enciclopedista, de que o príncipe Cláudio, reinante entre Calígula e Nero, trouxera do Egito um centauro que conservava no mel. Agora, que me livro da indolência e saio para o apuro da memória, porquanto a memória me liga a tantas coisas, até mesmo a um campo de minotauros e centauros na Bourgogne, seres espantosos que bebem vinho e ruminam mitologias, confesso que guardo a sereia e a contemplo todos os dias abotoando e desabotoando escamas de madrepérola—fruto da realidade e não da vulgar fantasia dos homens—dentro de um pote de mel de abelha.  51


JOÃO CÂMARA LITOGRAFIAS

Olinda, onde mora, o livro/catálogo “João Câmara— Litografias”, reproduzindo os t­ rabalhos em gravura que produziu entre 1975 e 1989. Almerinda da Silva Lopes, líder do Grupo de Estudos Pesquisas Teóricas em Arte e Teoria e História da Arte Moderna e Contemporânea da UFES, com graduação em Licenciatura em Desenho e Plástica pela Universidade Estadual Paulista Júlio Mesquita Filho, mestrado em Artes pela Universidade de São Paulo e doutorado em Comunicação e Semiótica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e Universidade de Paris, pós–doutorado pela Universidade de Paris I (Sorbonne), assim define a pintura de João Câmara: “Desde o início de sua produção, João Câmara revela total obsessão pelo retrato e pelo corpo humano, submetendo–os, na maioria das vezes, a estranhas deformações e ambiguidades. Cria metáforas com os quais ironiza a hipocrisia b ­ urguesa, as mazelas do poder e a vulnerabilidade da relação entre os homens. Daí seus códigos poéticos exigirem que o observador se detenha num diálogo atento e numa percepção curiosa para desenredar a trama desse labirinto. Em algumas obras, arquiteta cenas e cenários em que as figuras se projetam com tal verossimilhança, como se estivessem vivas no écran da tela para nos encarar, provocar e desafiar. Mais lentamente, vamo–nos dando conta dos paradoxos e da blague, seja pelo ridículo das atitudes e ações, seja pelas amputações, torções e rotações que imprime ao corpo ou partes dele. Sem que lhe possamos negar singularidades intransferíveis, essa imagística universal de Câmara deixa transparecer, também, as raízes culturais do autor e o forte resíduo regionalista, seja nas cores, às vezes incendiárias, na extravagância das estampas dos tecidos e na decoração kitsch, seja na ação dominadora do homem em relação à mulher, na erotização e particularidade dos corpos. É através desse contexto que traduz a sua maneira de ver, pensar e sentir, pondo em destaque valores, ­aspirações, mazelas e contradições humanas”. 

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pintor João Câmara Filho lançou recentemente em


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O Sertão de

ZÉ OLINS Sertão de ARIANO Texto SÔNIA RAMALHO DE FARIAS

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editora da Universidade Federal de Pernambuco e o Programa de ­Pós–Graduação em Letras da UFPE publicaram, em dezembro de 2006, o livro de O sertão de José Lins do Rego e Ariano Suassuna: espaço regional, messianismo e cangaço, da autoria de Sônia Lúcia Ramalho de Farias, como parte das comemorações dos 30 anos de fundação daquele Programa. O estudo constituiu originalmente tese de doutorado, defendida na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, em 1988, sob a orientação do professor doutor Silviano Santiago. Como o próprio título indica, trata–se de uma leitura conjunta de dois escritores paraibanos, que tematizam em suas respectivas obras, Pedra Bonita (1938) e Cangaceiros (1953), e Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai–e–volta (1971), o fenômeno messiânico da Pedra Bonita, (também denominado de Pedra do Reino ou Reino Encantado, eclodido em 1838, na comarca de Flores, fronteira de Paraíba e Pernambuco), e o fenômeno do cangaço. A escolha dos autores e dos textos se deu em função das semelhanças e diferenças que apresentam no

tocante a dois aspectos intrinsecamente correlacionados em suas narrativas: a representação do espaço regional do Nordeste e a controvertida questão da apropriação da cultura popular pela literatura erudita. O objetivo principal do estudo é verificar de que maneira, através da apropriação e reelaboração de uma temática popular, a ficção dos autores empreendem representações do Brasil em sua dimensão regional e quais os mecanismos estéticos e ideológicos acionados em cada uma dessas representações. Com a preocupação de não isolar as obras do contexto histórico e cultural em que se inserem, o trabalho busca correlacioná–las aos respectivos pressupostos regionalistas de seus autores, confrontando tais pressupostos com o ideário regionalista de outros escritores nordestinos, ficcionistas ou não. O confronto se dá, sobretudo, com determinadas vertentes historiográficas/sociológicas de base

oligárquica: a vertente que privilegia o Nordeste litorâneo–açucareiro e a que concede primazia ao Nordeste pecuário–algodoeiro do sertão, representadas, respectivamente, por Gilberto Freyre e Djacyr Menezes. Não se pretende com isso reduzir os romances em pauta a um reflexo da historiografia. Trata–se, ao invés, de problematizar as correlações entre literatura, história e cultura, através de uma metodologia interdisciplinar, mostrando que, se por um lado, não se pode negar as marcas contextuais que informam a produção ficcional, por outro lado, é próprio da ficção acionar determinados mecanismos retóricos que, embora não neguem as suas orientações discursivas (pelo menos no caso dos romances selecionados), também não podem se confundir com elas. Assim, no exame das concepções regionalistas de José Lins e de Ariano e ao longo da análise dos seus textos, foi constatada uma dupla articulação espacial relativa à representação do espaço regional por parte de cada um deles. A oposição  57


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entre os “dois Brasis”, o Nordeste e o Centro–Sul do país, e entre os “dois Nordestes”, o Nordeste sertanejo e o da cana–de–açúcar. A primeira oposição espacial é comum a ambos os romancistas. Tanto nas suas formulações teóricas, quanto no nível ficcional, eles buscam resgatar, no contexto de crise ­caracterizado pela perda de hegemonia da região nordestina diante do processo de modernização do p ­ aís—cujo marco ­histórico, é a Revolução de 1930—os valores regionais do espaço nordestino, identificando–os com os autênticos valores da nação, com a própria busca do “caráter brasileiro”, ou seja, com a tão decantada identidade nacional. Em contrapartida,o Centro–Sul, do país passa a representar os valores capitalistas e “estrangeirados” da então emergente burguesia urbana, tidos como espúrios e degradados, sobretudo na visão de Ariano. A segunda oposição espacial aponta para uma ­correspondência entre José Lins do Rego, Gilberto Freyre e Nordeste açucareiro, de um lado, e Ariano Suassuna, Djacyr Menezes e Nordeste pecuário–algodoeiro, do outro. Explicando melhor: embora os dois romances de Lins do Rego aqui destacados tenham (ao contrário daqueles s­ ituados no chamado “ciclo da cana–de–açúcar”) como cenário o sertão, palco das manifestações culturais populares recortadas nos textos, o espaço sertanejo é sempre correlacionado negativamente com o espaço açucareiro do brejo, que lhe serve positivamente de contraponto. No caso de Ariano, a correspondência com o espaço regional privilegiado por Djacyr Menezes, o sertão, não é excludente. Pressupõe, também, uma correlação com oideário regionalista de Gilberto Freyre.

Neste  sentido, as concepções regionalistas e armorias do autor d’A Pedra do Reino podem ser tomadas como uma variante do luso–tropicalismo ­freyreano, à revelia do próprio romancista, que já negou em algumas ocasiões esta correlação. A representação ficcional do messianismo e do cangaço na obra dos dois autores corresponde, pois, aos seus propósitos de legitimar a cultura popular do Nordeste, por meio de uma literatura erudita, desejosa de resgatar as suas raízes. No caso do primeiro autor, situado na vertente do Modernismo brasileiro que se convencionou chamar Romance do Nordeste ou, mais precisamente, Regionalismo Nordestino de 30, este resgate se dá por meio de uma estética de tendência realista ou neonaturalista que oscila entre a mitificação do espaço regional e o seu desnudamento crítico. No caso de Ariano, subsidiado pelos pressupostos armoriais do movimento por ele arquitetado e liderado, na década de setenta, O Movimento Armorial, essa busca ocorre via recriação poética do Nordeste. São acionados, com esse propósito, a mediação do romanceiro tradicional europeu, dos folhetos de cordel e do substrato mítico da novela de cavalaria. (não de todo ausentes nos dois romances de Lins do Rego, mas utilizados aí em proporções bem menores do que na referida obra do segundo romancista). Explica–se, assim, a par dos traços comuns que unem as suas respectivas produções, uma diferença fundamental no tratamento que dispensam ao cangaço e ao messianismo, que em Ariano assumem uma feição caval(h) eiresca e feudalizante bem mais acentuada do que em Lins do Rego. Isso se torna evidente, para ficarmos apenas com este exemplo, na recriação ficcional do movimento messiânico do reduto da Pedra Bonita. Nos textos de autor de 

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Menino de engenho, há praticamente um obnubilamento do veio sebastianista que subsidia a eclosão do surto messiânico no contexto do Nordeste. Em Pedra Bonita e Cangaceiros, o sebastianismo não emerge em primeiro plano na cena textual. As várias versões dos personagens acerca desse fenômeno não aludem diretamente à figura de Dom Sebastião. Tampouco veiculam a crença no regresso glorioso do rei português e na restauração de um novo reino sebastianista no Nordeste brasileiro, conforme sucede com o fato histórico que serve de suporte à sua matéria ficcional. Do mito sebastianista, readaptado na manifestação religiosa do arraial da Pedra do Reino, os romances de José Lins, retêm apenas os aspectos atinentes aos ritos de desencantamento da lagoa, com a consequente implantação de um paraíso terrestre de justiça, riqueza e igualdade entre os homens. O messias anunciado pelo beato da Pedra é o Filho de Deus, não Dom Sebastião. N’A Pedra do Reino, ao contrário, o sebastianismo torna–se onipresente, em unção do processo de feudalização do texto, que associa a sua imagem aos heróis da cavalaria. Assim, o mito do “Encoberto” avulta em primeiríssimo plano na dramatização romanesca do fenômeno messiânico, permeando praticamente todos os níveis da narrativa. A figura do “Desejado” torna–se aí uma referência não só explícita e insistente, mas o próprio móvel aglutinante de grande parte das histórias e subtemas que se entrelaçam e imbricam à temática central. É através dessa avassaladora presença que o narrador Dom Pedro Dinis Ferreira—Quaderna reagencia as várias coordenadas temporais que interagem no processo de composição da obra, amalgamando mito e história, ficção e realidade. O sertão do Nordeste estaria, assim, no romance de Ariano, predestinado a realizar o sonho do Quinto Império profetizado pelo jesuíta Antônio Vieira no século XVII. A referência explícita à utopia sebástica de Vieira é feita pelo personagem Samuel, no “folheto”XXXIV do livro, onde narra os sucessos da batalha de Alcácer–Quibir. Para o narrador protagonista, 60

no entanto, não se trata de uma transposição direta do mito português, mas de sua atualização através do desdobramento e fusão de duas vertentes distintas e complementares: a tradição do sebastianismo luso e os movimentos messiânicos ocorridos no Nordeste, conciliando, assim, as duas vertentes do mito sebastianista: a aristocrática e ibérica e a popular e nordestina Chega–se, desta forma, ao conceito de “sebastianismo–castanho”, defendido no romance, em conformidade com o ideário armorial que subsidia a obra. Em nome desse sebastianismo, que reúne a realidade “parda e afoscada” do sertão e os brilhos da heráldica, amalgamando a mitologia negro–tapuia, defendida pelas ideias nacionalistas e xenófobas do “comunista” Clemente, e as concepções monarquistas e lusófilas do filósofo Samuel, seus dois mestre e mentores intelectuais, Quaderna se propõe a fundar uma “monarquia de esquerda” no sertão nordestino, que se tornaria, assim, a sede do Quinto Império brasileiro. Esse projeto messiânico envolve simultaneamente uma demanda política, religiosa e literária e se propõe à construção simbólica de uma identidade nacional, através da confluência de quatro noções básicas: a noção de raça, cultura , região e nobilitação. Todas elas confluem para o objetivo máximo de Quaderna que é construir um “romance–epopéico”, uma obra literária “completa, modelar e de primeira classe”, concebida como a “súmula da literatura brasileira” e destinada à “cristalização da nossa nacionalidade” Tal projeto literário, que se inscreve dentro do romance, motivando longas discussões teóricas acerca das questões de gênero, técnica e enfoque a serem adotados, não é mais que um artifício encontrado pelo narrador para explicitar a obra que ora escreve: o Romance d’A Pedra do Reino e o príncipe do sangue do vai–e–volta, cujo subtítulo, ”romance armorial brasileiro”, nos remete significativamente de volta para os pressupostos regionalistas do autor. O rápido cotejo entre as obras que compõem o chamado “ciclo do misticismo e do cangaço”, de Lins do Rego, e a considerada obra prima de

Suassuna reafirma a hipótese de que suas obras podem ser lidas conjuntamente em função não apenas da temática sobre a qual se debruçam, mas, sobretudo, em função da demanda de um projeto literário nacional, que, alicerçado por etapas conjunturais históricas e estéticas distintas, guardam, no entanto, uma característica comum: o resgate da tradição cultural do Nordeste, erigido em símbolo identitário dos valores nacionais. Tal resgate se justifica ideologicamente face aos respectivos contextos históricos que funcionam como interlocutores dos romancistas. No caso de José Lins, o interlocutor é a nova ordem burguesa consolidada pela Revolução de 1930, que mina o poder da oligarquia rural do Nordeste, motivando, em contrapartida, a recuperação literária desses valores perdidos. No caso de Ariano, ao contexto de 1930, tematizado explicitamente tanto n’A Pedra do Reino, como no segundo romance da trilogia, História do rei degolado nas caatingas do sertão: ao sol da onça caetana, acrescem–se duas outras etapas conjunturais do processo de modernização do país. Um deles é o contexto dos anos cinquenta, marcado pela política desenvolvimentista do governo de Juscelino Kubitschek, o chamado “arranque desenvolvimentista”. O outro é o contexto do regime militar de 1964, durante o qual se criam as condições políticas para a implantação definitiva do capitalismo no Brasil., consubstanciado no dito “milagre brasileiro” Vale lembrar que A Pedra do Reino foi elaborada durante o período de 1958 a 1970. O contexto em que se insere a produção do romance recobre, portanto, além da Revolução burguesa de 1930, nomeada na ordem textual, as outras duas etapas ­conjunturais acima delineadas. Embora deslocadas do nível manifesto da cena de representação do romance, essas etapas imprimem aí sua marca, funcionando como interlocutores latentes em contraposição aos quais o romance busca resgatar, nostalgicamente, uma ordem perdida, um “mundo fidalgo” e caval(h)eiresco, anterior à industrialização. 

GALERIA CAMARGO VILAÇA, UMA REFERÊNCIA A Galeria Camargo Vilaça, de São Paulo, fundada por Marcantonio Vilaça, considerada a mais importante referência para a arte brasileira, tornou-se colaboradora da revista ArtFliporto. Falecido no dia 1 de janeiro de 2000, aos 37 anos, Marcantonio Vilaça foi homenageado com a criação de dois prêmios de incentivo à produção artística com o seu nome, regulamentados por lei federal. Personalidade atuante nas artes visuais nas décadas de 1980 e 1990, o advogado por formação dirigiu a revista de arte “Galeria”; fundou com sua irmã a galeria Pasárgada Arte Contemporânea, provocando um movimento renovador no Recife; e inaugurou com Karla Ferraz de Camargo a galeria Camargo Vilaça. Por sua atuação, Marcantonio Vilaça projetou a arte contemporânea brasileira internacionalmente, profissionalizou a representação do artista contemporâneo brasileiro, que passou a frequentar bienais e feiras internacionais, ganhou catálogos e livros, entrou para acervos de grandes museus e coleções particulares. Também investiu ao expor artistas estrangeiros no Brasil, numa tentativa de abrir os olhos do público brasileiro para a produção contemporânea mundial. A revista A rtFliporto inaugurou na sua nova fase, a partir do número 4, um noticiário voltado também para os movimentos de vanguarda existentes fora do Brasil, inspirada no legado desse jovem empreendedor que tanto fez pelas artes no Brasil. O Museu de Arte Moderna de Miami possui, em sua homenagem, uma sala chamada Marcantônio Vilaça. Com perseverança e a defesa ferrenha de sua ideias, o galerista pernambucano Marcantonio Vilaça conseguiu inserir a arte contemporânea brasileira no contexto internacional.  61


Conferencia das Nações Unidas sobre

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Centro de Estudos Avançados da Conservação Integrada (ceci), entidade sem fins lucrativos voltada para estudos, projetos e pesquisas sobre a conservação urbana e o patrimônio cultural, sediada no sítio histórico de Olinda, foi convidado a participar da Conferência das Nações Unidas sobre Moradia e Desenvolvimento Urbano Sustentável, o HABITAT III, que será realizada em 2016, no Equador, cujo Relatório Global de Cultura e Desenvolvimento Urbano Sustentável da Cidade Patrimônio Mundial de Olinda será coordenado pela arquiteta Juliana Barreto, integrante do Conselho Científico da entidade. A Conferência pretende reunir instituições públicas, universidades, pesquisadores, sociedade civil e todos os interessados pelo tema, tendo como objetivo a criação da “Nova Agenda Urbana” frente aos desafios impostos no século XXI. O Relatório Global deve abordar a situação atual da gestão da conservação do sítio histórico de Olinda, bem como as leis, os programas e as ações voltados para a preservação das características relevantes do patrimônio cultural, as ameaças ao meio ambiente e ao acervo histórico edificado e imaterial, a participação da população nas ações e, de modo objetivo, as tendências para o desenvolvimento urbano e a conservação integrada frente os debates internacionais sobre o tema. Também deve conter reflexões acerca do papel das políticas públicas, refletindo a visão da UNESCO e seus parceiros, para o futuro do patrimônio cultural. 

PARA MAIS E PARA MENOS PA U L O G U S TAV O

PATRIMÔNIO HISTÓRICO DESTACA

OLINDA

Há um nervo que não se toca Embora vivo e tecido Da matéria leve e torta Que mantém nosso equilíbrio. Há uma boca que não beija Enquanto o Amor nos convoca A seus jardins e cadeias, A suas fontes e joias. Há um nome que não ressoa Porque dele mal sabemos O plural que sempre soma Aquilo que já perdemos. A lista seria longa Para mais e para menos. Mas, enfim, se o homem sonha, Hão de sonhar seus venenos!

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As naves insanas de KRAMER e FELLINI Texto ANDRÉS VON DESSAUER

Stanley Kramer

Federico Fellini

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humanista alemão Sebastian Brant, com seu satírico poema ‘Das Narrenschiff’ (‘A Nau dos Insensatos’) e Hieronymus Bosch, precursor do surrealismo, com o quadro ‘A Nave dos Loucos’, se tornaram fonte de inspiração de inúmeros artistas, filósofos e escritores. Mas, foi no século XX, que esses ícones desencadearam uma verdadeira reação em cadeia, já que, em alusão às referidas obras, Katherine Anne Porter publicou, em 1962, o romance ‘A Ship of Fools’, o qual motivou o cineasta americano Stanley Kramer a montar o filme ‘A Nau dos Insensatos’ (1965) e, por sua vez, impulsionou, em 1983, a filmagem de ‘La Nave Va’ de Federico Fellini. Vale destacar, todavia, que enquanto os loucos da embarcação de Bosch são conduzidos para fora da civilização, como em uma

A NAU DOS INSENSATOS— Ship of Fools (1965)

espécie de pena de ostracismo ateniense, o avanço da medicina e, em especial, da psiquiatria no século passado, tornou possível o convívio com a loucura—até porque de ‘louco todo mundo tem um pouco’. Assim, por mais excêntricos que pareçam, os passageiros retratados nas naves de ambos os cineastas não são considerados insanos, mas, pelo contrário, representam um microcosmo das sociedades que antecederam as duas guerras mundiais. A NAVE italiana, ambientada em 1914, retrata uma sociedade estritamente ligada à cultura, com uma finalidade especifica. Já a NAU alemã é composta por um grupo heterogêneo, com objetivos diversos. Apesar disso, as duas naves têm semelhanças, que vão desde seus nomes femininos (GLÓRIA ‘N’ e VERA), à extrema relevância da música que, por vezes, ganha vida própria, e parece conduzir o roteiro.

Na NAVE o embarque se dá com arrolamento de todos os passageiros em um movimento de ascensão, aproveitando a subida de uma longa escadaria, em meio ao canto lírico, já que estamos no mundo da ópera. O filme se inspirou na morte da cantora Maria Callas, cujas cinzas foram jogadas, em 1977, no mar Egeu. Os embarcados tinham, assim, um propósito pré–determinado: o funeral de uma famosa cantante lírica. Mas, o que vai a pique é a aristocracia européia, pois, com a primeira guerra mundial essa sociedade perde, para sempre, seu poder político. E, com a dissolução dos reinados e impérios vai abaixo todo um mundo ligado às Belas Artes. O filme, em questão, foi rodado, integralmente, no famoso Studio 5 da Cinecitá. Feito que revolucionou o jeito de fazer cinema e, que hoje parece se repetir diante da substituição do estúdio pela computação gráfica. Na NAU os passageiros são apresentados após o embarque, mas, sua individualização propriamente dita só ocorre em seu destino, no porto de Bremerhafen, onde a vida apresenta uma nova bifurcação para cada um. Aliás, como estamos em 1933, os degraus descendentes do desembarque poderiam ser recepcionados como um mau presságio político, já que, nesse mesmo ano, a Alemanha de Weimar se encontrava em dissolução e o partido nazista subia ao poder. O narrador de Fellini sobrevive, de forma surreal, ao naufrágio da NAVE dividindo um bote salva– vidas com um rinoceronte—animal que, desde a xilogravura de

Albrecht Duerer (1515), é sinônimo de autoridade, tenacidade e vigor. Nesse passo, fica quase evidente a mensagem subliminar de que a Arte sobrevive a qualquer guerra. Já o judeu–anão da NAU não é um sobrevivente, mas, uma testemunha da despreocupação de uma sociedade pré–guerra, que pensa, essencialmente, de forma egoísta. E, ao concluir que nada daquilo que foi apresentado é relevante, a obra sublinha o sentimento de alienação da época. A ironia é o fio de ouro que conduz as duas obras. E, a indiferença da classe dominante, para com os menos abastados, é a tesoura que separa, em partes desiguais, o tecido social. O povo passa a ser, por si, uma ameaça. Assim, na NAVE, qualquer interferência externa é recebida como algo negativo, mesmo que se trate de uma inofensiva gaivota na sala de jantar. Na NAU, de igual forma, essa aversão fica clara na exclusão de passageiros judeus da mesa do capitão, composta, exclusivamente, por alemães anti–semitas e um cão. Em resumo, a obra de Fellini é essencialmente estética. Até porque a ‘cultura’ atua como um mecanismo capaz de alçar a âncora possibilitando o deslocamento de um verdadeiro gigante. Tem–se, assim, uma clara metáfora para a força da música que, se impõe sobre as picuinhas pessoais– sociais–políticas. De outra banda, na obra de Kramer, ‘A NAU DOS INSENSATOS’, menos vinculada às notas musicais, a mensagem resta sintetizada na afirmação de que, ‘a alienação e a indiferença são as portas de entrada da insensatez’.  65


de

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reconduziu Luis Terepins à presidência da diretoria da instituição. Na ocasião, a diretoria apresentou Jochen Volz como curador da 32ª edição

da mo s t r a marcada para 2016. O historiador de arte alemão, nascido em 1971 na cidade de Braunschweig, atua como curador chefe da programação da Serpentine Galleries, em Londres, e também como curador de Inhotim, Minas Gerais, tendo sido diretor artístico da mesma instituição entre 2005 e 2012. Profundo conhecedor da cena artística internacional e nacional, Volz foi co–curador da 53ª Bienal de Veneza (2009), ao lado do diretor artístico Daniel Birnbaum. Em 2006, a convite de Lisette Lagnado, participou da curadoria da 27ª Bienal de São Paulo, onde realizou projeto

especial em homenagem a Marcel Broodthaers. Em Inhotim, trabalhou na concepção artística e na produção de novos pavilhões e instalações, entre eles, os dos artistas Adriana Varejão, Dominique Gonzalez–Foerster, Doris Salcedo, Doug Aitken, Helio Oiticica, Lygia Pape, Matthew Barney, Rirkrit Tiravanija e Tunga. O curador tem contribuído ainda com muitas exposições pelo mundo, entre as quais a de Olafur Eliasson em São Paulo, como parte do 17º Festival Sesc Vídeobrasil (2011), The Spiral and the Square, no Bonniers Konsthall, Estocolmo (2011), Aichi Triennial, Nagoya, Japão (2010), Cinthia Marcelle, na

Bienal de Lyon, França (2007). Entre 2001 e 2004 foi curador da Portikus, em Frankfurt, Alemanha. Desde 2012, a convite da diretora Julia Peyton–Jones e do co–diretor Hans Ulrich Obrist, Volz dirige a curadoria de programas da prestigiada instituição londrina, Serpentine Galleries, na qual colabora para o desenvolvimento de atividades públicas nas áreas de arte, arquitetura, design, educação e programação cultural: dança, filme, literatura, música, performance, ciência e tecnologia. nSegundo Luis Terepins, o processo de escolha do curador é uma preocupação permanente da instituição. 

O CONSELHO DA FUNDAÇÃO BIENAL

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CRISTIANA TEJO

fundamentais para artistas e estudiosos de arte contemporânea, o livro insere–se como material primário para a compreensão da prática crítica e curatorial recentes.

O LIVRO “CONVERSAS COM CURADORES E CRÍTICOS DE ARTE”— Editora Circuito, com

365 p., investiga a atuação dos jovens profissionais da área no Brasil. Organizado pelo escritor Renato Rezende e pelo historiador e crítico Guilherme Bueno, a edição tem patrocínio do Governo do Rio de Janeiro e da Secretaria de Estado de Cultura RJ – Edital Artes Visuais 2011. O livro resulta de uma série de entrevistas feitas pelos autores com 14 jovens curadores e críticos de arte (a maioria nascida na década de 1970): Carlos Cassundé, Cauê Alves, Clarissa Diniz, Cristiana Tejo, Daniela Labra, Felipe Scovino, Fernanda Lopes, Gabriela Kremer Motta, Janaína Melo, Luisa Duarte, Marcelo Campos, Marisa Flórido, Orlando Maneschy e Sergio Martins. A edição será lançada pela Editora Circuito, no dia 17 de abril, às 19h, na Escola de Artes Visuais do Parque Lage. O projeto foi feito com patrocínio do Governo do Rio de Janeiro e da Secretaria de Estado de Cultura—Rio de Janeiro—Edital Artes Visuais 2011. No lançamento, haverá um debate com Renato Rezende, Guilherme Bueno e as críticas de arte Glória Ferreira e Clarissa Diniz.

A IDEIA DOS ORGANIZADORES foi mostrar que existe um pensamento articulado e original na arte contemporânea, refutando os clichês da ausência de critérios ou de vale–tudo. Outro objetivo foi discutir com os entrevistados o significado de uma década (ou quase) de atuação, tanto do ponto e vista pessoal com suas convicções e dúvidas, quanto das transformações do cenário artístico. Com informações

Críticos de arte entrevistados: Carlos (Bitu) Cassundé (Várzea Alegre, CE, 1976) Cauê Alves (São Paulo, 1977) Clarissa Diniz (Recife, 1985) Cristiana Tejo (Recife, 1977) Daniela Labra (Santiago do Chile, 1974) Felipe Scovino (Rio de Janeiro, 1978) Fernanda Lopes (Rio de Janeiro, 1979) Gabriela Kremer Motta (Pelotas, 1975) Janaína Melo (Belo Horizonte, 1974) Luisa Duarte (Rio de Janeiro, 1979) Marcelo Campos (Rio de Janeiro, 1972) Marisa Flórido (Rio de Janeiro, 1962) Orlando Maneschy (Belém, 1968) Sergio Martins (Rio de Janeiro, 1975)

A PERNAMBUCANA CRISTIANA TEJO,

que integra a equipe, é coordenadora e curadora de artes plásticas do Instituto de Cultura da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj) e curadora da Made in Mirrors Foundation. Mestre em comunicação pela UFPE, leciona história da arte nos cursos de jornalismo e publicidade das Faculdades Integradas Barros Melo, em Pernambuco. Curadora, em parceria com Cauê Alves, do 32º Panorama da Arte Brasileira do Museu de Arte Moderna de SP (MAM-SP) em 2011. Foi coordenadora do Projeto Rumos Itaú Cultural Artes Visuais 2005/2006. Participou da Comissão Deliberativa do Sistema de Incentivo à Cultura—Funcultura do Estado de Pernambuco e da Comissão de Seleção da 2ª edição do Projéteis de Arte Contemporânea da Funarte. Foi curadora e consultora em artes plásticas da Torre Malakoff no Recife. 

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Poemas de JACY BEZERRA

FOTO: NIALL SCANLON.JPG

CANÇÃO Vou plantar na varanda a minha mágoa, e espero, assim, que a vida a mim esqueça. Fluídico e sereno como as águas deixem, vocês, que eu me desapareça. Vou partir depois disso, prontos tenho o passaporte e a blusa de emigrante. Deixem vocês, eu parto como venho para ser outra vez o que fui antes, As lágrimas ardendo são estrelas cintilando no fundo de outro poço. Vocês não se debrucem para vê–las que, nelas, acharão só meus destroços (a canção que inventei de ouvido, inteira, e as rosas florescendo nos meus ossos). Não procurem saber dos meus intentos, peço como um favor, ninguém me ouça, pois rosário já vem tangendo os ventos e apaziguando a minha carne moça, vem molhada de luz, vem sem lamentos, trazendo um lírio em suas mãos de louça. Já é chegada a hora da partida, No meu bolso soluça o coração, por isso, não liguem muito à vida que para olhar e ver, trago na mão. Nem olhem, se ainda me veem, para a ferida que expõe, aberta, a minha solidão. Parto rendido e entregue aos meus afetos, e amigos que não tenho, não terei. Matei as sempre–vivas do deserto recusando as canções que não criei. E descobri, sentindo o amor tão perto, que nada sou do sonho que inventei. 69


Poemas de JACY BEZERRA

MOBILIÁRIO ÍNTIMO As paredes do sótão são feridas e a noite em flor se agacha entre os seus muro: é no sótão que o homem empilha a vida e empilha o tempo que ficou maduro. No seu interior, por entre pilhas de tempo e mundo, a saudade cresce ressuscitando no homem maravilhas que exceto o homem, ninguém mais conhece. Às vezes o sótão geme e chora, opresso, hora em que o homem, voltando ao início, sente, folheando o tempo nele impresso, que o sótão respira feito um bicho. O homem habita o sótão que o habita e no chão deixa a pátina dos seus passos, sem saber explicar, quando o visita, porque no sótão o tempo é sempre intacto.

FOTO: LEONID TISHKOV E BORIS BENDIKOV

Nos dias em que o sótão cheira a azedo e a memória do homem, inchando dói, o homem, aninhado nos seus feudos, quer falar mas não acha a sua voz. O sótão, como o homem, é uma imagem feita de imagens, no tempo desdobrada: o homem sabe onde nasce a sua imagem, porém não sabe em que dia ela se apaga. Quando, para expurgar a sua angústia, o homem abre o silêncio e o sótão se abre, o tempo na memória é luz e música e, no silêncio, o homem inteiro arde. A paz desse momento é alada e exata e resplendendo, sem nódoa e sem ferrugem, a ternura do homem se desata e o sótão todo cheira a flor e nuvem. 71


Poemas de JACY BEZERRA

GRAVANDO MINHA DOR NUMA ÁGUA FORTE

FOTO: TSA MEERA

Estendeu no horizonte a cor madura da sombra que buscou, o tempo antigo, as paisagens do mar, a lenda impura, cada vez mais achado e mais perdido depois, exausto e só, foi à procura do quadro iniciado e dissolvido do catavento azul, da rosa escura, do pranto, da mulher e do gemido chegou largando as mãos na longa estrada e abrasado de amor ficou na rua buscando, em vão, a luz da madrugada só então foi ternura e foi abraço a paisagem deixou vazia e nua para que tantas cores neste espaço?

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Poemas de JACY BEZERRA

ESQUECI NO CADERNO A ADOLESCÊNCIA

FOTO: SICKLITTLEMONKEY

Para que tantas cores neste espaço? dormiu no atelier, rasgou a tela e num gesto de mágoa e de cansaço sacudiu os pincéis pela janela correndo do papel fez-se aquarela na tinta azul–marinho breve traço, entre as águas do mar, na caravela, na renda bela e estranha do sargaço esqueceu a pintura e, flutuando, contemplou em silêncio o mundo aceso, ao seu redor a paisagem naufragando acordou vendo braços, pernas nuas, e liberto outra vez sentiu–se preso: saiu e foi andando pelas ruas.

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Poemas de JACY BEZERRA

QUERIA AO ME GRAVAR VENCER A MORTE

FOTO: FONTE LUDIMAGINARY.NET

Saiu e foi andando pelas ruas só, diante do mundo irrevelado, antes que a alma se abrisse leve e nua revelando na tela o rosto amado a paisagem, agora, era só sua e no verão da lembrança, desatado, desenhou, sem que visse, em pânico a lua no silêncio imprevisto e inesperado e partiu, e partiu deixando o rosto esquecido no chão verde-cinzento entregue e preso na solidão de agosto levando da viagem, além de espaço, o corpo envelhecido, sombra e vento, tela, pincel e tinta sob o braço.

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Crise do MERCADO EDITORIAL e os destinos da LITERATURA Com uma peça, um filme baseado em um dos seus romances e um novo livro a caminho, o pernambucano Walther Moreira Santos é hoje um dos mais profícuos escritores do país. Conversamos com o autor de O Ciclista sobre a crise do mercado editorial e os destinos da Literatura ENTREVISTA COM WALTER MOREIRA SANTOS COMO É VIVER DO LIVRO MORANDO EM UM DOS ESTADOS MAIS POBRES DA FEDERAÇÃO? É bem verdade que gostaria de participar mais ativamente dos eventos em meu estado, mas ter nascido na mesma cidade do Osman Lins é uma honra imensa e viver em um lugar com eventos como a Fliporto, a nossa Bienal do Livro, festivais como a Letra e a Voz; um estado que produz impressos como a Revista Continente, o Suplemento Literário de Pernambuco; que possui instituições como o IMC e a Cepe são motivos de orgulho. SUA OBRA É NORTEADA POR PREMIAÇÕES, QUAL O PAPEL DOS CONCURSOS PARA A LITERATURA ATUALMENTE? Até meados dos anos noventa tínhamos três filtros importantíssimos na Literatura: o editor, o livreiro (aquela figura que realmente lia tudo e com base nessa leitura selecionava o que iria para a vitrine), e os prêmios literários. Com a morte dos livreiros, atropelados pelas grandes lojas de redes dos shoppings e com a morte dos editores a partir do ano 2000 (hoje é o departamento de marketing que escolhe o que vai ser publicado), a última trincheira da Literatura se 78

dá pelo viés do Concurso Literário—e concursos sob pseudônimo porque em premiações onde não há esse sigilo sempre se corre o perigo do julgamento político e não qualitativo. COM ESSE QUADRO, HÁ FUTURO PARA A LITERATURA? Claro que sim! Sou totalmente otimista quanto a isto—onde mais temos a oitava economia, 200 milhões de consumidores e um produto incrível como o Livro? O gargalo está no fato de que até o traficante mais vagabundo sabe que é preciso formar público para o produto que ele vende, por isto a primeira pedra de crack é distribuída nas escolas gratuitamente; já o Mercado do livro nunca teve a menor preocupação em formar leitores—me diga apenas um projeto de formação de leitor franqueado por alguma editora. Há projetos incríveis como o da Fundação Itaú, que distribui livros infantojuvenis e estimula a leitura para crianças, o Literatura Viva, do SESC, etc, mas há ainda Tudo a ser feito! Temos mais vaquejadas e rodeios (que são crimes) que festas literárias. A maioria dos prefeitos ainda não acordou para o poder transformador do livro: gasta-se mais em podas desnecessárias de árvores do que em bibliotecas.

Conto do livro O DEUS DOS NOSSOS ENGANOS, próximo livro do autor. NO PEQUENO CAFÉ PIERROT Além de pequeno, o lugar da moda; conseguir uma boa mesa era questão de sorte. Tudo bem, eu disse, ocuparemos aquele canto horrível perto da janela e fingiremos que ali é Paris. Durante a sobremesa já dava para sentir os ventos voltando dos bulevares franceses. Assim conhecemos todo o mundo (viagens nem sempre agradáveis: um enxame de insetos pretos nos infernizou numa praça da Martinica; uma bala perdida quase nos acerta em Copacabana e a poluição da Cidade do México me deixou com os olhos ardendo durante semanas). Então chegou o dia em que o único lugar a ser visitado era a Sibéria. Meu amigo me olhou meio com receio; dei de ombros, buscando no bom humor um modo de contornar a situação difícil. Devido ao frio intenso, tivemos de tomar nossa refeição rapidamente. O mesmo frio que fez aguçar nossa fome (talvez também porque diferente dos outros lugares, como Berna ou Acapulco, nada de interessante se apresentava: apenas o inferno branco do gelo se estendendo até o limite da irritação). Logo não havia comida, a face do meu amigo era o que havia, e a dor do frio nos espetando com suas seis milhões de agulhas. Naquele momento compreendi que morrer não é realmente assustador, é apenas desagradável, como ir ao dentista. Naquele momento vi sua jugular azulada assinalando minha salvação. Pela primeira vez vi que seus dentes eram brancos, pequenos e levemente separados. Naquele momento vi que somos animais racionais até o limite da fome, depois somos só animais. Um obscuro desejo de ingerir o que se ama, percebi. E vi que o canibalismo é o mais secreto dos ignóbeis desejos, e o desespero nossa matéria. Por último, pela contração dos cantos de sua boca, vi que em sua mente se passavam os mesmos pensamentos. Embora nenhum de nós ousasse olhar o outro nos olhos. A selvageria ou a morte, tínhamos que nos haver com esse fato. Aquele nosso propósito havia nos levado longe demais. Quem de nós daria o primeiro passo em direção ao indizível?

Estávamos apenas a dois graus acima daquilo que a morte beija. Um indefinido tempo de desespero pairou sobre nós como uma escura nuvem de gafanhotos. Como sobreviver a um inverno que já tinha aniquilado os exércitos nazistas, de Napoleão, e todo tipo de hordas de assassinos? E deixar a Sibéria (agora ambos sabíamos) era a mais difícil das coisas. Quando estávamos a uma filigrana de descermos de nossa humana condição, ele apontou por sobre meus ombros. Do fundo do vale surgia uma figura humana (os cabelos revoltos duros de gelo, os passos trôpegos, uma desgraça). Lembrei que conhecia aquele homem, embora não soubesse de onde. Ao se aproximar ele não falou de imediato, colocou as duas mãos nas coxas enquanto tentava retomar o fôlego (vi– lhe os dedos necrosados pelo frio). Eis o dono do restaurante, nos dizendo que o café estava fechando—então, eu e meu amigo, rimos, e fomos ao encontro de nossa grande sorte; ao mesmo tempo em que começamos a cercar o visitante e a exibir, orgulhosos, nossos ansiosos e sedentos caninos. 

WALTHER MOREIRA SANTOS é autor de Um certo rumor de asas (Romance, Prêmio Casa de Cultura Mário Quintana e Fundação Cultural da Bahia); Ao longo da curva do rio (Novela, Prêmio Xerox do Brasil, 2001); Helena Gold (Novela, Finalista Prêmio Portugal-Telecon); O metal de que somos feitos (Contos, Prêmio Pernambuco de Literatura) e O ciclista (Romance, Prêmio José Mindlin, Prêmio Cidade de Curitiba e um dos 10 melhores livros de 2008 pelo Prêmio São Paulo de Literatura), entre outros. Integra as antologias Wirsind Barreit (editora Lettretage) e Kürzestgeschichten aus Brasilien (editora DTV), ambas publicações alemãs que reúnem os autores que mais se destacaram no Brasil na última década.

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Guerra–Peixe, “SEU MAESTRO”

FOTOS: DIVULGAÇÃO

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omecei meus estudos musicais com Guerra–Peixe na Pro–Arte, em 1967. Depois de não passar pela prova de ditado musical, uma obra de Bartok que fazia todo mundo dançar e o Guerra se divertir, comecei a estudar o “suficiente de harmonia.”. Não deu um mês de estudo e o Guerra me mandou compor uma peça para a apresentação dos alunos no final do ano. Tentei argumentar que não sabia nada, mas ele determinou: —Faça qualquer coisa. Uma peça pra flauta e violão... Fiz e mostrei pra ele. Acreditem: ele não mexeu numa nota. Somente disse uma palavra, palavra esta que juntamente com mais duas, eram permanentemente ditas ou escritas por ele para o aluno durante o curso: —Tá! As outras duas eram: “É” (que junto com o “Tá” significava “trabalho satisfatório”, “bom”, “muito bom” ou “ótimo”) e “Re–fazer” (Esta última escrita na pauta com a nota ré). Aliás, viva re–fazendo meus exercícios... Larguei os estudos no final de 1969. Em novembro do ano seguinte, morre meu pai e, no dia seguinte ao seu enterro, ligo pro Guerra: —Maestro, quero voltar a estudar música. Mas, não posso pagar as aulas.

Texto NESTOR DE HOLLANDA CAVALCANTI

—Apareça na sexta no museu (Museu da Imagem e do Som). Voltei a estudar. E tome de “Tá”, “É” e “Re–fazer”. Sempre com a predominância do último, é claro! E levava meus trabalhos, exercícios, composições pra ele ver, semanalmente. Não faltava às aulas, que não era besta. —Só fez isso? Dizia depois de ver a montanha de trabalhos que trazia. —O próximo...., falava com um duplo sentido explícito. Então, eu sentava na cadeira junto ao piano e ele começava a ver os trabalhos. A cinza do cigarro crescia e caia sobre seu colo. Às vezes, um cochilo de leve... E, no fim, olhando fixamente pra minha cara, com os olhos meio fechados por causa da fumaça do cigarro, dizia um dos seus três conceitos favoritos. Eu escrevia um bocado. E ai de mim se não fizesse assim. Dançava direitinho. O Guerra, com razão, não admitia aluno faltoso ou preguiçoso. Lembro–me que, ainda inexperiente, queria aprender orquestração. Via os colegas fazendo os trabalhos e ficava com uma certa inveja. Então comecei a “orquestrar” por conta própria meus exercícios de harmonia e os levei para serem apreciados. —Você está ficando um bocado saidinho... Compre o Casella, o Korsakov e o Álbum para a juventude do Schumann.

Ele era um músico essencialmente prático. Suas aulas eram práticas. Exigia do aluno trabalho e dedicação. Tinha um método próprio de ensino, suas apostilas eram práticas, objetivas e visavam fazer com que o aluno escrevesse música. Fazia observaçõoes preciosas. Suas “dicas” eram determinantes. Uma vez, vendo a dificuldade dos alunos com o contraponto, mudou a maneira de ensinar a matéria. —Vamos começar pelo contra­ponto florido. Foi uma revolução. Abriu a mente de todo mundo. E logo, todos estavam brincando com o velho contraponto. Guerra–Peixe era um nacionalista, seguidor da estética de Mário de Andrade, Porém, nunca tentou me conduzir por este caminho ou por qualquer outro. Sempre fiz o que quis e levei os trabalhos sem nenhum receio pra ele ver. E o gordinho via tudo com atenção. Preocupado com a formação dos alunos, indicava livros, partituras e professores. —Procure a Esther (Esther Scliar). Estudei algum tempo com ele e depois a vida nos separou. Nos reencontramos anos depois. Estava na fase da gafieira. Tentei convencê–lo a escrever um livro sobre orquestração. Afinal, ele era um dos maiores orquestradores brasileiros e tinha uma prática fantástica. Porém, apesar dele me prometer que iria pensar no assunto, optou pela gafieira. Ele estava feliz assim. Respeitei, lamentando. Que obra não sairia! Mantive contato com ele até a sua morte que, curiosamente, foi no dia do meu aniversário. Devo muito a Guerra– Peixe, também conhecido como “seu maestro”. Seu temperamento forte ofuscava sua generosidade. Seu Maestro! Minhas saudades... 

DURANTE O CONGRESSO INTERNACIONAL

dedicado a AGUSTINA BESSA–LUÍS, a Fundação Gulbenkian lançou o n.º 187 da sua famosa revista, como tema principal a obra da escritora. Além da apresentação de um texto inédito — “Três mulheres com máscara de ferro”— vários artigos aprofundam aspetos particulares da sua obra: “Agustina e os pensamentos alucinados”, de Patrícia da Silva Cardoso; “Memória cultural e ironia sexual em Fanny Owen”, de Hilary Owen e Cláudia Pazos Alonso; “Jogos da cabra–cega”, de Anamaria Filizola; ”A cena é a vida”, de Dalva Calvão; “Agustina e o significado das coisas”, de Álvaro Manuel Machado, e “Agustina e Eugénio: uma epistolografia”, de Eduardo Paz Barroso. O volume reúne ainda o olhar de seis romancistas: Maria Velho da Costa, Ana Margarida de Carvalho, Armando Silva Carvalho, Hélia Correia, Mário Cláudio e Lídia Jorge. Outra presença a destacar é a de Vasco Graça Moura, recentemente falecido, homenageado no editorial de Nuno Júdice e num texto da autoria de Rita Marnoto, no qual se realça o perfil do humanista. Neste número revela–se ainda um excerto do diário de Marcello Duarte Mathias e a habitual crónica é, desta, vez, dedicada a Manuel de Castro e assinada por Helder Macedo, recordando os tempos do Café Gelo. Entre os restantes artigos publicados, destacam–se “’A Epopeia’ de Tennysson e a ‘Mensagem’ de Pessoa”, de Xingyue Zhou; “Diagramas nos ‘Sertões’ de Euclides da Cunha”, de João Queiroz; “Jorge de Sena: ‘Opera Omnia’ ou a evidência da poesia”, de António Carlos Cortez; “Os caminhos habitados” (sobre a poesia de Fernando Guimarães), de Fernando J. B. Martinho; “’Uma viagem no Outono’ ou a solidão do olhar” (sobre a obra de Rui Nunes), de Maria João Reynaud; e “Obscura Luz”, de Eduardo Lourenço (sobre Escuro, de Ana Luísa Amaral). Isabel Pavão é a pintora convidada. Uma separata consagrada a Diogo Bernardes, a partir de seis das elegias, incluindo um artigo de José Miguel Martínez Torrejón, completa este número de Colóquio/Letras.  81


FOTOS: ROBERTA MEIRA LINS

Texto: PLÍNIO PALHANO

A fotógrafa 82

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olhar da fotógrafa Roberta Meira Lins tem como base a tríplice força necessária que impulsiona o ato criador de um artista: a sensibilidade, a cultura e a inteligência. A sensibilidade fornece elementos para perceber o mundo de forma própria, transfigurando–o com as teclas, vamos dizer, musicais, que mostram as coisas sob vários aspectos. A cultura dá ao seu olhar a percepção do que pretende captar; possui informações que a fazem lembrar a história, os criadores de que tem conhecimento e, principalmente, as raízes da sua terra. Nesse quesito, a fotógrafa teve o privilégio de conviver, na infância e adolescência, com as obras da coleção do seu avô materno, Albino Gonçalves Fernandes—psiquiatra culto que mantinha amizade com Vicente do Rego Monteiro e foi um dos retratados pelo pintor —, que, em sua pinacoteca, tinha quadros de Cícero Dias, Lula Cardoso Ayres e de outros artistas plásticos internacionais... Além disso, a casa era frequentada por escritores e pensadores. A inteligência a deixa aguda para poder alcançar os objetivos da arte, naturalmente, os requintes da técnica, do mote a ser trabalhado e do seu processo de desdobramento. Elegeu a arte da fotografia como expressão e entende que essa linguagem é ponta de lança nas concepções contemporâneas. Nada se perde em seu percurso, tudo se concretiza e se transforma em obras que são produto da sensibilidade, da cultura e da inteligência. A fotógrafa tem um currículo considerável de imagens que a consolida como uma das mais significativas artistas no âmbito da fotografia em Pernambuco. E em Paris, ainda este ano, participará de uma exposição coletiva de fotógrafos selecionados, numa das instalações do Museu do Louvre. Agora, escolheu um tema que lhe foi e está muito próximo: a praia de Porto de Galinhas. Conheceu esse recanto do litoral sul do Estado no tempo em que frequentava, com a sua família, a praia mais deserta e quase primitiva. Talvez nessas recentes fotografias tenha um pouco de autobiografia, a lembrança das coisas simples e verdadeiras que envolvem aquele paraíso notado e divulgado em todo o planeta. Faz questão de mostrar os pescadores em suas atividades diárias na pesca e na condução de jangadas com velas largas, brancas ou de várias cores, luminosas, num límpido mar e no céu expressivo em sol pleno e com nuvens tropicais. São fotografias que encantam e enriquecem o olhar e a memória do espectador. A fotógrafa. 

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O Livro do Nordeste: GILBERTO FREYRE e o “Diário de Pernambuco”

FOTOS: REPRODUÇÃO

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m dos mais celebrados acontecimentos editoriais de Pernanambuco, que marcou época em nosso estado como preciosa fonte de pesquisa, O livro do Nordeste, completa em 2015 exatos 90 anos de sua publicação. Foi editado para comemorar os 100 anos de fundação do jornal. A direção do DIÁRIO entregou essa tarefa, ousadíssima para o seu tempo, ao jovem e erudito Gilberto Freyre. A segunda edição apareceu em 1979, por iniciativa do Arquivo Público Estadual, então dirigido pelo poeta e geógrafo Mauro Mota, que assinou o sugestivo ensaio introdutório. A nova edição, fac–similar como a segunda, saiu enriquecida com excelente texto do jornalista Gladstone Vieira Belo, dirigente do DP. Tanto a segunda como a terceira edições foram impressas em papel especial. Este pioneirismo de Gilberto Freyre, foi devidamente assinalado por Mauro Mota e Gladstone Vieira Belo nos ensaios introdutórios da segunda e terceira edições. Gilberto convidou para colaborarem no Livro do Nordeste pesquisadores do Rio Grande do Norte, Paraíba, Pernambuco e Alagoas, aos quais juntou o ensaísta português Fidelino de Figueiredo e o historiador norte–americano Francis Butler Simkins. Convidado a colaborar no Livro do Nordeste com um poema no qual recordasse sua

infância no Recife, Manuel Bandeira de início estranhou a “encomenda”, mas acabou escrevendo uma de suas obras–primas. “Evocação do Recife” é um poema proustiano, cujos versos brancos se espalham pelas páginas em várias margens alinhadas da esquerda para a direita, segundo depoimento de Edson Nery da Fonseca. “Trata–se de um “poema tipográfico”, segundo o modelo de “Um lance de Dados” de Mallarmé. O mallarméano projeto gráfico do grande poeta brasileiro foi respeitado no Livro do Nordeste, embora alguns versos tenham saído ligeiramente apagados. Ao reproduzir o poema em seu livro Libertinagem, Manuel Bandeira fez pequenas alterações que mostram suas preocupações formais. Ele aprendeu com Mallarmé

que um poema não se faz com ideias e sim com palavras. Somente numa edição crítica do Livro do Nordeste caberiam anotações como esta.” A revista ArtFliporto associa–se a esta comemoração, reconhecendo a importância histórica da publicação e lamentando que as suas páginas, preciosa fonte historiográfica e cultural permaneçam nos dias atuais fora do alcance dos jovens leitores e pesquisadores de um tempo pernambucano e nordestino muito rico de ideias e empreendimentos culturais. Para celebrar, reproduzimos algumas imagens do Recife, extraídas do livro, feitas pelo pintor M.Bandeira, para a edição comemorativa dos 90 anos do jornal, que se tornaria o mais antigo em circulação da América Latina.  85


PR E MI O MAX I MI A NO CA M P O S D E L ITERATU RA

OS GANHADORES

GANHADORES DE 2014

CONTOS

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INSTITUTO MAXIMIANO CAMPOS, IMC, com sede no Recife, reunido nesta quarta–feira (26), sob a presidência do escritor Antônio Campos, anunciou os vencedores do PRÊMIO MAXIMIANO CAMPOS DE LITERATURA 2014. Para comemorar o seu 10º ano de existência, pela primeira vez o concurso abriu inscrições a autores de língua portuguesa fora do Brasil. Dedicado aos gêneros Conto e Miniconto, mais de 2 mil autores concorreram à premiação. “A qualidade dos trabalhos concorrentes foi muito elogiada pela coordenação do concurso, e o número recorde de participantes nacionais e estrangeiros é o reconhecimento de que o Prêmio IMC acha–se cada vez mais prestigiado pelos que buscam uma boa oportunidade no campo da Ficção, daí a sua dimensão nacional e internacional”, disse Antônio Campos.

WA L DI C E M A RI A DA RO C H A S E DOV I M Belém/Pará—Brasil—O P ORTÃO

JAC Q U E L I N E LO PE S S A LGA DO S OA R E S Bauru/SP—Brasil—PI R I–L A M P E JO S

NA RA VI DA L Tunbridge Wells—Kent—Inglaterra—T E M P E STA DE

A L I N E C O N STA N T I NO NO GU E I RA DE ST E FA NO Rio de Janeiro—Brasil—NÃO VA I T E R C OPA—A OR IGE M

M A RI NA RE I S NO GU E I RA Sundsvall— Suécia—P R E S A

CA RL A M A RI S A PE RE I RA VI E I RA PA I S Quincy Sous Senart— France—O S F I L HO S S ÃO AV E S QU E P E R DE M O S N I N HO S

RA FA E L M A RQ U E S CA L I A RI Rio de Janeiro—Brasil—O DI L E M A D O S H A K E S P E A R E DE S C ON T E X T UA L I Z A D O

KAU Ê LU Í Z DO S S A N TO S GO M E S DE M O UR A Recife/Pernambuco—Brasil—S E M T Í T U L O

T H A LY N N I M A RI A DE L AVO R PA S S O S Petrolina/Pernambucpo—Brasil—C ON V E R S A N D O C OM A S E ST R E L A S

J OAQ U I M J O S É T E I X E I RA VI E I RA S E M E ANO Almada— Portugal—S H A R K Y E A S E R P E N T E

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B ERTTO N I C LÁU D I O LI CA R I ÃO João Pessoa/Paraiba Brasil—N E GAT I VO S

NILTON EUR I P ED ES D E D EU S FI LH O Brasilia—GR I T O DE I N DE P E N DÊ NCI A

BRUNO M OTA P I N H EI R O Caucaia/Ceará—Brasil—F O G O B R A N D O

GLOR IA NA A PA R EC I D O PAG NO Belo Horizonte (MG)—Brasil—C ON F IS S ÃO

R ICAR D O LU I Z B RUG NAG O Joinville/Santa Catarina—Brasil—CI NC O PÃ E S

HENRIQU E P EDRO QU EI R OZ V ELU D O G OU V EI A Setúbal—Portugal—A LU PA

GERUSA D E B A R R OS LEA L Olinda/Pernambuco—S A I U NA C H U VA

MARIA JOÃO PESS OA NU N ES R ED ON D O D OS SA N TOS R OD R I G U ES Linda–a–Velha—Portugal—O E S P E L HO

NANC Y K EI KO FUJI TA Recife/Pernambuco—Brasil—C OR R E U M A IS D O QU E C O ST U M AVA C OR R E R

ÂNGELO ANTÔ NIO D OR ES G ONÇA LV ES TEOD OR O Torres Vedras—Portugal—DU E L O

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O

personagem deste conto era um habilidoso fotógrafo. Amador, claro, pois seria improvável ser mais do que isso vivendo–se apenas uma vida. Tirava fotos unicamente pelo prazer de produzi–las, flagrantes de seus olhos famintos capazes de arrancar o fôlego do mar. Fotografara paredes entortando–se de melancolia e a dança da poeira ao entardecer. Fotografara momentos imóveis corroídos em bancos de praça e um céu lilás abocanhando pássaros desvairados que subiam alto e mais alto no firmamento. Era tão talentoso que fazia ­fotografias com apenas um olhar, bastava–lhe usar como câmera aquelas retinas retidas em umidade. Ao final de cada dia, reunia as imagens gravadas para revelá–las no profundo da noite, em um estúdio monocromático formado de pura matéria desperdiçada. E as mantinha consigo como negativos, lá dentro, no escuro quente de seu dom particular. Certa vez, no entanto, enquanto fitava acordado a própria imagem num espelho, sentiu que voltara seu olhar em direção ao profundo de si mesmo, àquele abismo vertiginoso que lá havia. E num lampejo ansioso, hipnótico e descuidado fotografou o próprio espírito. Ah! Como se desesperou... Passou a noite em claro, recusava–se a adormecer, fugiu o quanto pôde do cansaço: tinha medo do gesto audacioso, daquilo que o sono à espreita revelaria. Estava tão intimidado que não percebeu quando tombou febril e exausto no leito intranquilo. E daquele dia em diante, o personagem deste conto nunca mais acordou.

FOTO: DIVULGAÇÃO

MINICONTOS

“NEGATIVOS” BERTTONI LICARIÃO

BERTTONI LICARIÃO nasceu em 1985 em João Pessoa, Paraíba. É graduado em Letras (Português e Inglês) pela UFPB e mestre em Estudos Literários pela Universidade Federal de Minas Gerais, com dissertação sobre a Literatura Brasileira Contemporânea. Durante a graduação, foi bolsista em um p ­ rojeto de inclusão social no ensino de inglês através do universo shakespeariano e hoje tem a maior parte de sua produção voltada às literaturas de língua inglesa e portuguesa, com foco nas teorias da recepção e da intertextualidade. Começou a escrever contos ainda na graduação, mas somente agora, quase dez anos depois, decidiu revisá–los e enviá–los a concursos e revistas. “Negativos”, microconto vencedor do 10º Prêmio Maximiano Campos de Literatura, se tornou seu primeiro trabalho publicado em livro. O restante de sua p ­ rodução – que abrange contos, apresentações de livros, resenhas e artigos—se encontra atualmente espalhado pela internet, entre blogs, periódicos acadêmicos e redes sociais voltadas à leitura. A leitura, a propósito, assim como o palimpsesto, a paródia e o pastiche, o diálogo com o leitor e aqueles narradores cabriolantes estão entre suas principais paixões literárias, influenciando a forma como lê e a literatura que produz. Atualmente, Berttoni Licarião é coordenador pedagógico e professor de língua inglesa em João Pessoa/PB. É também idealizar e coordenador de um grupo de leitura, o Círculo de Leitores José Mindlin, que se encontra mensalmente para discutir romances nacionais e estrangeiros. Nas horas vagas e a passos bem lentos, continua a desenvolver seu primeiro romance. 


EDITH DERDYK:

A

“Não separo processo de

RESULTADO

artista plástica Edith Derdyk acaba de publicar o livro “Entre Ser Um e Ser Mil—O Objeto Livro e suas Poéticas” pela editora Senac, onde discute o livro como um objeto de arte e Póetico. A artista visual Edith Derdyk é também professora, poeta, letrista e escritora de livros para crianças. “Uma arqueologia do avesso”. Assim a artista, educadora e autora de livros Edith Derdyk define o processo de realização de sua obra “Tábula”, uma sobreposição de imagens da primeira página do livro do Gêneses extraídas de cerca de 200 bíblias nos mais diversos formatos, edições e línguas. “O resultado é uma espécie de palimpsesto em que o texto se torna ilegível”, conta a artista. A mostra reúne seis conjuntos de trabalhos, produzidos entre 1987 a 2014, que se relacionam

por terem, como núcleo poético comum, a relação entre a palavra e a imagem. São obras realizadas em diferentes suportes, mídias e linguagens—de prints, objetos e livros de artista a vídeos e uma pequena instalação. O EFÊMERO E O PERMANENTE Os livros de artista são a espinha dorsal que une as obras. O desejo de Edith de manipular estas publicações como objetos artísticos, e não só como meio de documentação, surgiu justamente da necessidade de registrar, em 1997, a realização de suas primeiras instalações—que são peças de natureza efêmera. “Estas imagens revelaram uma potência poética que as faziam sair do âmbito do mero documento. A partir desta constatação, comecei minha investigação e pesquisa sobre este gênero ‘livro de artista’”, conta. Com poucas informações disponíveis no Brasil sobre este gênero artístico, Edith viajou para os Estados Unidos e Canadá para fundamentar sua pesquisa: foi artista residente no The Banff  91


DESENHO Edith explica que a mostra Doublet—Páginas Móveis é mais um desdobramento de um processo de pesquisa e criação artística em que o desenho, matriz de todo o seu percurso artístico, é explorado em linhas e grafias sobrepostas. “Quando me dei conta de que o desenho é uma linguagem tão antiga e tão permanente, é o esqueleto da linguagem visual, bem como está presente em todas as áreas do conhecimento, comecei a organizar as ideias, reunir experiências relativas à educação e informações históricas”, conta. Ela é autora de diversos livros de referência sobre o desenho como Formas de Pensar, O desenho da figura humana, Entre ser um e ser mil—o objeto livro e suas poéticas, Desenho Desenho. Disegno. Desígnio, Linha de Costura, entre outros. A mesa, os instrumentos, os materiais, tudo o que faz parte do processo de produção das obras parecem interessar à artista. “Não separo processo de resultado, nem significante de significado—tudo se torna indissociável”, conta. Para ela, há na exposição um “acordo de convivência” entre “tudo aquilo que é efêmero” e “tudo aquilo que consagra o tempo”, simbolizados pelo objeto “livro” e sua gramática. Como em “Rasuras”, por exemplo, obra realizada com apoio da Bolsa Vitae, que a artista recebeu em 2002, uma série com cerca de 30 livros de artista instalados em duas mesas com fac-símiles. “O objeto livro reúne estes trânsitos, alia a memória e a imaginação, o processo e o registro, aqui entendidos como a gênese do pensamento”, explica.

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Outra obra da artista, que recebeu o título “Mesa”, foi produzida em ferro e acrílico com diversos materiais. Em ‘Mesa’, estes índices estão evidenciados pela presença de papéis velhos e novos, carvão, linhas, agulhas, materiais que se tornam fonemas ‘móveis’ para a construção da linguagem, que é fluida e mutável”, diz. OBRA INÉDITA As obras “Escaninho” e a inédita “Páginas Móveis”, formada por textos sobrepostos impressos em serigrafia sobre placas de acrílico, colocados na parede de maneira que as pessoas possam manipular e gerar relações combinatórias, explicitando as diferentes modalidades de leitura. Já “Onda Seca” e “Fôlego” são vídeos produzidos pela artista em parceria com o videoartista Raimo Benedetti. “Tábula”, que tem como temática o livro do Gêneses, é fruto de um tempo de pesquisa que nasceu da leitura do livro Cena de Origem, de Haroldo de Campos. “Ele traduziu o livro do Gêneses magistralmente, direto do aramaico, demonstrando que a palavra em ‘estado poético’ nasceu destes primeiros relatos míticos da origem do mundo”, explica Edith. A pesquisa lhe rendeu uma viagem de estudos à Jerusalém, em 2011, onde a teve acesso a manuscritos em museus e bibliotecas e conversou com linguistas e outros estudiosos. “O desenho sempre foi a matriz de meu percurso poético, espécie de plataforma para a captura do pensamento e projeções para ações no mundo. O desenho, pela sua natureza específica, é a linguagem que transita em todas as áreas do conhecimento—arte, ciência, técnica. A transitividade dessa me conduziu para a pesquisa e experimentação das interfaces, dos limites e contágios, da fricção entre as distintas materialidades, procedimentos e linguagens”.

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Centre, no Canadá, em 2007, e na The Rockefeller Foundation, nos Estados Unidos, em 1999. “Pesquisas sobre os livros de artista só tomariam impulso real e efetivo no Brasil a partir do livro Página Violada, de 2002, escrito por Paulo Silveira e editado pela UFRGS”, conta.

O diálogo entre a palavra e a imagem aparece frequentemente. Como esses dois universos se manifestam em sua produção? “O espaço entre a palavra e a imagem é uma questão constitutiva da natureza da palavra e da imagem. O desenho é a intersecção entre esses campos, pois tanto a palavra quanto a imagem se originaram do desenho, que ainda mantém um parentesco com a escrita e com o pensamento visual”. “A arte pode ser considerada, do ponto de vista da educação, como o lugar natural e potente para acordar os sentidos, fundamental para a inteligibilização da sensibilidade e a sensibilização da inteligência. Arte é linguagem, é conhecimento, é aventura perceptiva que agrega saberes”. “O processo criativo é fundante e fundamental para a aventura humana. É questão de sobrevivência da espécie. Ativar procedimentos criativos estabelece um vínculo profundo e estrutural com a existência, sob todos os aspectos. “Se forçarmos o território da arte, que existe porque existem artistas, e artistas existem porque existem pessoas, a questão da criação se torna matéria substantiva, que se coloca em movimento… O olhar é

o espaço que opera entre a natureza da palavra e a natureza do imagem. O olhar é a linha que ­intersecta, conecta, costura, refaz, relaciona, associa, desfaz, aproxima ou distancia esses dois campos que são ativados de maneira que se coloca esta questão: “como das palavras nascem imagens e das imagens nascem palavras”. TRAJETÓRIA Desde 1981, Edith Derdyk realiza ­exposições coletivas e individuais em espaços como o MAM–SP, o MAM–RJ, a Pinacoteca do Estado de São Paulo, o Museu de Arte de São Paulo, o Centro Cultural São Paulo, o Instituto Tomie Ohtake, entre outras. No exterior, já esteve em países como México, EUA, Alemanha, Dinamarca, Colômbia, Espanha e França. Dentre outros prêmios, a artista recebeu o Prêmio Revelação Fotografia Porto Seguro (2004), o Prêmio Bolsa Vitae e o Prêmio APCA (ambos em 2002), e o Prêmio Funarte Artes Visuais (2012). Sua obra faz parte de i­ mportantes coleções públicas como a da Pinacoteca do Estado de São Paulo e da Prefeitura de Nurnberg, na Alemanha.  93


NU

encontro do teu

Revela-te, Apresenta-te, Surge e resplandece. Assume teu poder, Tua luz, Tua força e majestade. Sê TU em toda tua essência...

CORPO

Saindo da prisão e rompendo as grades. Tirando as vestes. Libertando–se. Em busca de si mesma.

Modelo: BÁRBARA ACCIOLY (Twiggy Model)

Texto: ALETA CÂMARA Fotos: ROBERTO PORTELLA


Bela Colombina mascarada da janela, Que a tantos delicia com sua nudez e esplendor, Aguardo o momento de revĂŞ-la sem mascaras ou personagens.

Apenas tu.

Deusa, Diva, Divina criatura. Nua, crua e selvagem. Segue nessa vida de passagem. Apenas a nos encantar... Seguindo seu caminho a borboletear.


Saga Yuthan

Van Gogh passou por aqui... ­

BETH ARARUNA Barte Galeria e Escritório de Arte

Em visita imaginária a Pernambuco, o artista holandês celebrado em todo o mundo, lança a pergunta – Como está a arte hoje? A Barte, inaugurando nova fase, no bairro recifense de Casa Forte, convidou artistas que representam a produção cultural do momento a refletir sobre essa questão através de obras especialmente produzidas e destinadas ao Projeto Van Gogh passou por aqui... Cada artista convidado, a partir de linguagem própria e trabalhos originais, registrará o que representa, em sua visão, a grande herança cultural legada por Van Gogh. O Projeto traz como objetivo o desenvolvimento de um acervo inédito, inspirado pelo pintor holandês, que ensejou exposição temática em comemoração aos 125 anos de sua morte. Além disto, terá como produtos a criação de cartões postais alusivos ao tema, a edição de revista de cunho educativo sobre Van Gogh, a proposta do projeto e seus componentes, a edição de catálogo com a produção do projeto, a realização de uma semana de palestras e debates sobre os rumos da arte hoje, e um vídeo documentário mostrando as diversas ações do projeto.

A ESFERA DA EVOLUÇÃO

OS ARTISTAS CONVIDADOS: Carmen Gebaile Cildo Oliveira Francisco Villachan Heraclio Silva Jairo Arcoverde

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MOSTRA DE ARTE PÚBLICA Promover uma exposição a céu aberto na Praça do Marco Zero, no Bairro do Recife, como um momento de grande homenagem dos pernambucanos ao gênio de Van Gogh. A mostra “Van Gogh passou por aqui...” consistirá de 15 tótens enfileirados, que terão, numa face, as obras criadas pelos artistas convidados a desenvolver peças a respeito da influência do pintor holandês. Na outra face, o público poderá conferir as informações básicas da biografia do homenageado, disposta numa linha do tempo especialmente montada para a ocasião.

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EXPOSIÇÃO Realizar uma exposição com 15 artistas da produção cultural atual, onde cada artista comporá, com 9 (nove) obras medindo 0,50 x 0,50m cada, um painel de 1,50 x 1,50 m. Essas obras, que terão em comum a inspiração no gênio artístico de Van Gogh e seu legado, destinam-se à formação do Club do Colecionador, ­projeto que visa difundir e aproximar o artista contemporâneo do grande público e, principalmente, dar oportunidade aos amantes da arte de iniciar ou ampliar suas coleções de arte com obras de 15 importantes artistas ­brasileiros, acompanhando o exemplo dos clubes de colecionadores ­existentes nos Museus e Galerias, estimulando o colecionismo. 

— livro I —

Jose Barbosa Leopoldo Nóbrega

SANGUE E VINGANÇA

Lucia Helena Lucia Py Manuca Vieira Maria Yeda Miguel dos Santos Roberto Botelho Roberto Ploeg Thina Cunha

EDSON CAPISTRANO Olinda — Pernambuco 2014


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PRÓLOGO

um distante mundo chamado Yuthan, no ano 77 de sua Aphos Khallyz, a Era das Trevas, num grande campo de batalha, dois gherivam, exércitos em Yuthan, se enfrentam. Estão nas planícies Snarzick, as planícies douradas, próximo então a Akhan Tharck Rhazllan, uma esplêndida montanha conhecida neste mundo como “aquela que realiza”, localizada em Dhabia Sharan. Akhan Tharck Rhazllan é uma incrível montanha com uma peculiar e impressionante caraterística geográfica: sua forma se assemelha a duas mãos erguidas para o céu, segurando entre elas algo como uma gigantesca rocha circular. Dois brivantham, como são chamados os reis em Yuthan, Arbadhan Dhas Hanzawan (o sagrado lanceiro), o primeiro da dinastia Stayger a governar o iuvanthow (reino) de Onislaza, e Linsyn Myaching, do iuvanthow de Huang Vanthow, lutam ferozmente empunhando com maestria suas garckam, suas espadas. A luta entre esses dois líderes em meio a essa grande batalha irá definir o gherivan vencedor e a nação que terá a hegemonia sobre todos os sete iuvanthowm deste mundo.

Os guerreiros, ou, como em Yuthan são chamados, os gerthackym, por um instante são atraídos pela cena de combate mais perfeita que já viram, e param de lutar para ficar mais próximos ao duelo dos seus reis, paralisados ante o magistral embate dos seus dois líderes. A luta desses exímios garckdhym, ou espadachins, terá sem dúvida o poder de definir a nação vencedora. Porém, algo ainda mais impressionante começa a desviar a atenção dos gerthackym. Uma luz, inicialmente longínqua, no céu deste mundo, como um ínfimo ponto branco no grande manto azul, começa a se aproximar e a se expandir, passando a aumentar sua luminosidade. Conforme se aproxima mais e mais, seu brilho cresce e passa a ser visto agora pelos dois brivantham, além de todos os gerthackym presentes. Como uma estrela cadente, um meteorito, esse objeto do espaço se aproxima. Trata-se da esfera de energia do Ciclo Evolutivo Ighan Vowckan, entrando na atmosfera de Yuthan, trazendo, com ele, em diferentes direções, quatro meteoritos, atraídos por uma poderosa força gravitacional para se chocarem neste planeta. Vai essa esfera vinda do espaço mudar drasticamente o destino de todos os habitantes deste mundo. E ambos os grandes líderes agora por um momento também param de lutar, vislumbrando o que está por vir. Os dois se afastam ante o medo do desconhecido, e um clarão, seguido por uma explosão, se faz presente, derrubando os dois governantes, que em seguida erguem-se, recompondo-se do impacto. Após a poeira baixar e a luz diminuir de intensidade, Arbadhan e Linsyn se aproximam estupefatos ante o artefato que veio do céu. Os dois brivantham avistam agora, diante deles, uma cratera, provocada pelo impacto do artefato, com aproximadamente cinco metros de diâmetro. Perante seus olhos espantados, ainda com a fumaça se erguendo da superfície onde o objeto se chocara, eles veem como que hipnotizados a poderosa esfera do Ighan Vowckan. No meio desse grande buraco, a uns dois metros de profundidade, uma esfera de um metro de diâmetro, portando uma forte luz amarela, irradia, de dentro do seu

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núcleo, como um minúsculo Sol, a sua poderosa radiação, depois chamada pelos sábios deste mundo de Kallirma, a radiação evolutiva. E, no campo onde havia uma batalha, os líderes guerreiros estão frente a frente ainda com as garckam empunhadas e sujas de sangue, diante da densa poeira do impacto baixando, quando Arbadhan de Onislaza tem sua própria visão do fato. Para ele, o que aconteceu foi o sinal que todos esperavam: uma nova Aphos de Paz, a Aphos Tharan, chegou. É quando então o brivanthan Arbadhan lança ao chão a sua garckan, e o mesmo faz o brivanthan de Huang Vanthow Linsyn Myaching. Seguem os dois para se confraternizarem num histórico abraço pela nova Era que para eles se inicia neste momento. O povo de Yuthan é essencialmente supersticioso, extremamente apegado a fatos que ocorrem na natureza ou acontecimentos como este, ocorrido em pleno campo de batalha, capaz de mudar totalmente para um iutamithan a trajetória da vida de um rei de uma nação ou mesmo do seu mundo. E é isso o que vai acontecer. Enquanto ocorre no campo de batalha o fim de uma Aphos de tantas gertham, de tantas guerras, chamada em Yuthan de Aphos Kallys, com os dois principais brivantham deste mundo à época seguindo para se abraçarem, neste mesmo instante, os quatro corpos celestes que passaram despercebidos bem distantes um do outro, por um horizonte que acabara de testemunhar, neste imenso campo de batalha (snarhan para os iutamitham), o que será o início de uma nova Aphos de Paz, a Aphos Tharan, se chocam em distintas e distantes regiões deste planeta. São quatro meteoritos atraídos e levados para este planeta, sem que os brivantham percebam, pela radiante esfera diante de todos no campo de batalha; eles são parte de um evolutivo e até então estranho Ciclo chamado na língua iutamithan de Ighan Vowckan. Os quatros meteoritos seguiram para diferentes localidades deste planeta, onde ficarão, pelo menos nas próximas centenas de anos, ocultos na mais perfeita e obscura evolução, alheios à Aphos de imensa e duradoura Paz, que se inicia favorecendo o medonho surgimento da maior ameaça que este mundo já vira. As criaturas trazidas por esses quatro meteoritos do Ciclo Ighan Vowckan encontrarão numa oculta, calada e sinistra evolução o perfeito ambiente para se erguerem e se tornarem a mais nova espécie deste mundo, e serão mais tarde conhecidas por todos os iutamitham como os marmuw hanckam, os comedores de carniça, ou simplesmente hanckawam, os carniceiros. Contudo, serão esses novos habitantes de Yuthan mais que simples animais em busca de restos para deles se alimentarem. Eles vão se erguer na mais incrível evolução em busca da conquista e destruição deste planeta, para se tornarem sobre as cinzas de suas cidades e civilização a mais nova espécie dominante. Este ciclo é capaz de atrair, de forma incrível, por uma incomum força gravitacional, qualquer corpo celeste que vagueie pelo Universo, desde que abrigue, em seu interior ou mesmo em sua superfície, um vestígio qualquer de vida ou do que um dia fora um ser vivo, para o arremeter contra qualquer planeta deste vasto e finito Universo e assim agraciar o que um dia foram simples restos mortais com o dom do ressurgimento da vida, não importando a sua natureza, a sua espécie, racional ou não. Pelo Ighan Vowckan, qualquer ser pode ressurgir. Esses quatro meteoritos especificamente trazidos pelo Ighan Vowckan contêm resquícios de um planeta destruído e muito, muito distante, com vestígios de 103


sangue, na sua superfície, das criaturas que um dia foram as mais sanguinárias que existiram. Passarão, esses maléficos seres, a habitar num mundo completamente inerme, profundamente despreparado para um sangrento futuro que o espera. Ao mesmo tempo que os hanckawam, no seu estado inicial de evolução, forem pelos iutamitham perseguidos, desprezados e até mesmo caçados como animais medonhos, por causa de sua mórbida aparência, mais ainda serão assim alimentados em seu ódio e vingança e não encontrarão limites para a busca da aniquilação total contra aqueles que eles chamarão com profundo desprezo de tharanck. Na grande Fenda de Sarckanthan, no subterrâneo do iuvanthow de Argadhan, bem como nas outras três colônias Draxym, em distintas regiões deste mundo, estarão esses grandes inimigos dos iutamitham se preparando para extinguir a todos e eliminar por completo os vestígios da antiquíssima civilização dos sete iuvanthowm, dos sete reinos de Yuthan. A notícia e o grande impacto causado pela vinda da esfera do espaço no campo de batalha fora como o prenúncio que as brackstham ansiosamente aguardavam para finalmente, pelas mãos da sua própria dhan bracks da época, chamada Zandharr Ithick Tamithan, em pé sobre uma majestosa rampa de um horizonte agora repleto da mais esplêndida paz, proclamar do alto de sua montanha de Vasthan para todas as sete N’ Vickem, as capitais dos reinos de Yuthan, por meio da soltura de uma Svanckan sagrada, o pássaro usado pelas brackstham, a nova era que se inicia, a mais nova Aphos de um novo tempo, marcando este momento como o dia Um do ano Um da ardentemente desejada Aphos Tharan. Depois, numa grande festa em N’ Vicken Lintzan, a Cidade Verdejante, com todos os mandatários dos sete reinos reunidos banqueteando-se e bebendo, comemorando a festa da chegada da paz pela vinda da Methisan, como passaram a chamar a esfera radioativa do Ighan Vowckan, neste momento colocada no centro entre os sete representantes das nações iutamitham, um dos brivantham, estimulado mais pela bebida do que pela razão, num gesto inusitado com uma garckyn, objeto similar a um punhal, corta com a mão direita a palma de sua mão esquerda e deixa que o seu sangue escorra para a superfície da esfera. Pela paz, e que dure para sempre! — brada o brivanthan, que, sem saber, provoca a reação mais inusitada de todas: assim que o seu sangue toca na superfície da esfera, ele é estranhamente absorvido e todo um processo se inicia a partir daí. O Brivanthan ébrio fez com que o seu sangue, após tocar na Methisan, provocasse, numa estranha simbiose mesclada à radiação Kallirma, emanando como uma onda radioativa em direção aos quatro meteoritos, a mais perfeita energia em prol dos maléficos seres vindos do espaço, ainda impregnados em suas superfícies como se fossem plasma sanguíneo. Um ato insano que trará para as futuras criaturas a melhor de todas as armas, o maior dos dons para a conquista de tudo que se almeja: “inteligência”, com uma fantástica rapidez como nunca houvera num Ciclo Evolutivo Ighan Vowckan. Depois de quase mil anos iutamitham, seres se erguerão na mais assustadora ameaça que este mundo já vira, e o mais incrível de tudo: por uma simples gota de sangue de um ato insano de um rei, estarão esses seres capacitados a impingirem contra os Tharanck (como estes seres chamam os iutamitham) a maior e mais cruel de todas as vinganças.  104

GIL VICENTE Pintura


LI N VR A AR S P IA RIN S C D IP O A BR IS AS IL


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