"Palavras à Tona D'Água", por Domingos Oliveira

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À tona do amor Nas suas obras (privilegiadas pela escultura e pela poesia), Domingos Oliveira consegue, porque bom conhecedor das pulsões humanas, uma estética, uma ética muito próprias. Neste seu livro, “Palavras à tona d’Água”, o último, existem textos de cumplicidade, de intencionalidade abertos a memórias onde nos apetece deter o tempo. O autor faz parte dos que chegam elipticamente elevando-se como cometa de muitos desafios, muitos recomeços, feitos de contenção e sugestão, racionalismo e secretismo, intimidade e universalidade. Cedo, ele aprendeu a subtilieza dos horizontes visionados – e assumiu-os. Dotado de capacidades invulgares, que a inteligência, as vivências, decantaram, mas não amarguraram, logrou maestrias que permitem-lhe afirmar sem recuos a sua liberdade, preservando espaços para si e para os seus, para a sua obra e para a sua identidade. Tudo o que cria é perturbador. Os frios, as temperaturas que o perpassam dilui-os sem agressões nem ostentações. Muita contenção há subentendida na sua serenidade, a serenidade dos que sabem dominar o sofrido. Acompanhar Domingos Oliveira é imergir em arco-íris onde a envolvência criativa ganha, pela plasticidade das convocações, evocações, sentimentos irrecusáveis.

Fernando DaCosta

2021


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A força e a criatividade andam de mãos dadas, exemplo disso são as obras de arte que saem do coração e das mãos do meu caro Domingos Oliveira. A vida é dura, mas nós temos a capacidade de lutar o dobro. Artista inspirador e guerreiro são esses os adjectivos que definem este Homem.

Da amiga e escritora Maria Alves

2021


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Olhos talhados a sonhos e cinzel, mãos hábeis de manhãs geladas, corpo sedento embrulhado em burel, malgas cheias de vidas adiadas. Cordas de medos, como duros grilhões, coração de garça ansiando o infinito. Moldando o presente prenhe de recordações, desenhando o futuro como mudo grito. Olhos talhados a sonhos e neblina.

Ao artista, ao amigo, ao homem que nos mostra o Mundo pelas suas mãos.

Paula Homem

2021


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ESPIRITUALIDADE Quando caminho sozinho, sinto que alguém me segue. Olho para trás, sem receio nem medo, e não vejo nada. Debaixo das ramadas de uvas do Casal; Ouvia. Sentia alguém. Mas nunca vi nada, nem ninguém. Mas sentia! A quilómetros de distância, ouvia-te a chamar por mim. Mas … não pode ser! É madrugada! São três da manhã! A noite está escura como breu, um nevoeiro cerrado fazendo lembrar o fumo dos assadores de castanhas, em Novembro. Mas ouvi-te; chamavas por mim! De tão longe! Na noite em que te esperávamos, para fazeres a viagem sem bilhete de volta, ouvi um grito. Vindo não sei de onde … do cimo dos montes… desses montes de solidão. Não sei de onde. Mas ouvi! Ouvi eu e uma vizinha, que de mim se aproximava. Vinha ajudar-nos a passar a noite, ajudar a aguentar a dor. Perguntei-lhe; “Ouviu?”

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Assustada, ela diz: “Credo! Que grito! Foi uma mulher que apanhou uma coça do marido. Mas … não pode ser! Ai Jesus!” Fiquei calmo. E tive a certeza que aquele grito de dor; existiu! Era de alguém que, do outro lado da minha fé, e à espera do fim da viagem, me quis falar da dor. Da dor que eu ia passar, depois de partires para a luz. Tenho dúvidas! Muitas dúvidas! É tão estranho! Mas … OUVI.

2021


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FIGUEIRA ANCIÃ Nasci numa casa com vidraças, onde a chuva, impiedosa, batia no Inverno. Ouvia o constante martelar do despertador. Ao lado, viviam os meus avós paternos, numa casa rodeada de altos muros, onde se debruçavam os braços de uma grande e velha figueira.

2019


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MENINO O menino que mamava no dedo, mijava na cama. 11 anos! Escondido na cave dos afectos e carências, chora envergonhado. Necessitado, desce as escadas, feliz e calmo, mas mamava no dedo. Sobe as escadas. Marçano. Caixote pesado de alimentos para entregar. Gente simples, esperava o marçano … que mamava no dedo.

2021


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RAIZES Minha terra – Paixão! Berço d’Amor! Raízes de urze e tojo. Escolhos! Granitos suados, eiras escaldantes dourando o milho. Broa – pão. Amoras vermelhas de sonhos, crescem na terra queimada, abandonadas nas silvas, que crescem na berma dos caminhos, e, entrelaçadas, se unem. O Cancelinho distante, o Tâmega indiferente. Cestos vazios de choro, mas CANTO! Chamo as andorinhas para me ajudarem, fazendo a segunda voz. De repente … PARTI! Mamando nos dedos o leite azedo, que alimentava a fome de carinho e AMOR. Mas CANTO! Tu e Eu, somos dois em UM.

2020


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MÃE Mãe; tu que pariste no final do Verão. Sofrias para eu viver. O “biju” alimentava a minha fome de ser gente. Escondido de mim, brincava na eira de granito, esperando que as estrelas brilhassem. Chamavas; “Anda! O pote já ferve. Anda! Na lareira, a fogueira está da cor do sol, anda!” Estamos à espera, com malgas cheias de nada. “Hoje é noite de sopa, feita do meu amor por ti. Anda!”

2020


PAI Chegamos a casa; a minha mãe preparava a ceia. O meu pai, como sempre, sentava-se no escano e adormecia. Sonhava com povos distantes, mundos diferentes … Acorda e diz: “Esta soneca soube-me tão bem!” A ceia é rica, sopa de alegrias, feito no pote da madrinha, e bolo de sardinhas, feito no forno, antes de cozer a broa. Que bom! Rezamos o terço - há Mistérios para todos cansado das fragas, meu pai, adormeceu. Saí para o largo, sentei-me nas escadas da Casa do Povo. É noite; apenas oiço o canto dos grilos e a luz brilhante dos pirilampos. Olho o céu;

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vejo a lua cheia, deslumbrante, ofuscando o brilhar das estrelas. Junto todos os meus sonhos e desejos, que escondia na pilheira do meu quarto. O sono bate, aparece lentamente. Despeço-me, cansado da solidão, da lua, dos pirilampos e das estrelas. Partirei! Vou levar comigo todos os que já dormem. Serei aquilo que EU QUISER! Porque, para mim … o CRIADOR EXISTE!

2021


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ATEI Terra. Paixão. Infância de amores, de gritos sufocados, de campos de silêncios e trabalhos cantados. AMOR. Irmãos. Pedreiras. Braços esfolados de dor. Granitos de lágrimas, duros de suores. Ansioso! tenho sede; MÃE.

2012


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MENINOS DE DUAS MÃES Benção de um Deus maior, que colocou nos meus braços um menino. Sim! Um menino de Duas Mães. Uma que te criou e amou. A outra que te pariu e desejou. Uma, embalou-te no berço da humildade e do amor. A outra, alimentava-te nas malgas de barro, nos pratos bordados da saudade de te ter junto. Dois Pais. Aquele que te amou. O outro, que te gerou, mas não criou. Foste amado! Portegido do gelo da Vida, do calor que te queimava a verdade. A verdade que não te deixava gritar, mas tu dizias: “Eu tenho Duas Mães!” Chegou a escolinha. Vieram os granitos suados … És Homem! És Pai! Irmão, meu amigo, quase filho … Menino de Duas Mães.

2021


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