PROBLEMAS NO PARAÍSO

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PROBLEMAS NO PARAÍSO

A propósito do produtivismo, da competitividade, da bibliometria, ‘papermania’, perversão da docência, etc. Jorge Olímpio Bento jbento@fade.up.pt UNICAMP, 28 de abril de 2016


Revisitação da Universidade Quando se chega à minha idade, ou se diz tudo, ou mais vale ficar calado. Se provocar desagrado, enfado, reprovação ou má catadura, é sinal de que a crítica e a franqueza não obedecem às regras da circulação no território universitário. Mas… depois não se queixem!


A subserviência, o respeitinho, os ‘rodriguinhos’, trejeitos e salamaleques para não desagradar aos chefes, o ‘não-mecomprometo’, as cabeças ocas, as bocas caladas, o ‘deixaandar’, as engraxadelas, as falas mansas, os paninhos quentes, o faz-de-conta, o ‘não-é-comigo’, o ‘não-estou-para me chatear’, o encolher-de-ombros e o piscar-de-olhos, todo este receituário leva as instituições à ruína, por mais imperiais e sacrossantas que elas sejam.


Nem sempre podemos agradar, mas podemos falar sempre agradavelmente. Voltaire (1694-1778)

Uma narrativa para figurar ao lado de outras conjeturas possíveis, inclusive divergentes. Como é sabido, a apresentação da Verdade nua desafia cada um a vesti-la com a roupa que lhe aprouver.


“Numa situação como a atual, declarar aquilo que está a acontecer pode ser muito mais poderoso do que chamadas à ação, que são, regra geral, muitas desculpas para não fazer nada (…) Atualmente, a ameaça não é a passividade mas a pseudoatividade, a urgência de se ser «ativo», de «participar», de mascarar o Nada que está a ocorrer (…) As pessoas intervêm todos os dias, «fazem alguma coisa», enquanto os académicos participam em «debates» inúteis, etc., e a grande dificuldade é parar um pouco, afastarmo-nos de tudo isso.” Slavoj Zizek, PROBLEMAS NO PARAÍSO, p. 234. Lisboa: Bertrand Editora, 2

Urge parar para pensar!


Parar para pensar! Dar um nome ao que nos destrói ajuda-nos a defendermo-nos. Manuel Vasquez Montalbán (1939-2003), jornalista e poeta espanhol

A procura de remédios para o tratamento dos problemas começa com a sua nomeação.


Haverá solução para os problemas? Para questões complexas não se dispõe de certezas e respostas acabadas, prontas e rápidas, caídas do céu como um meteorito.

A identificação dos problemas não significa que exista apenas uma solução exclusiva; há uma pluralidade de alternativas e justificações. Método para as encontrar: desocultar o que está a acontecer, discutir as contradições, os antagonismos e impasses, estar atento ao reverso sombrio do progresso, enfrentar os redemoinhos e lugares comuns da ignorância e contribuir para a sua desconstrução.


As palavras não resolvem problemas, mas criam e avivam a consciência acerca deles. Fazem e irradiam a luz da revelação e são berço da procura de solução. É de luz que tanto precisamos nesta hora crepuscular. Facilmente desculpamos a criança que tem medo do escuro; a verdadeira tragédia da vida é quando os homens têm medo da luz. Platão (428-348 a.C.)


Há palavras que untam as mãos, palavras falsas, palavras que repetem o que as paredes ecoam, palavras gémeas de outras palavras, palavras que se querem sempre muito corretas, muito limpas, muito puras, palavras redondas e sem arestas. Eu prefiro aqueles que nos falam palavras vivas, palavras novas, palavras menos corretas, palavras que rompem, palavras nas fronteiras da impureza, em nome do nosso dever de falar e de pensar. Renato Roque, Professor da Faculdade de Engenharia da UP.

Hoje na Universidade reina um silêncio de morte; temos que ressuscitar o verbo e pôr as bocas e gargantas a nomear, funcionar e questionar.


Universidade – perguntas incontornáveis • De que janela e com que luz quer a Universidade velar a vinda do futuro? E com que tipo de futuro deseja ter cumplicidade? • Quer a Universidade ser uma instituição de ‘formação’ ou de formatação e instrução ‘funcionalizante’, uma casa da erudição, da espiritualidade, do intelecto, da cultura e da sabedoria ou de amplificação do ‘mainstream’ ideológico do neoliberalismo?

• A sua nova e exaltante missão e vocação é a de ser uma ‘fábrica de papers’?! É esta a sua missão cimeira, e autónoma das outras?


• Sendo a investigação fundamental, livre e sistemática indispensável para o avanço da ciência em todos os domínios, e pressuposto para o bem-viver dos povos, como valoriza a Universidade aquela exigência e se distancia das linhas de pesquisa imposta por modas e pressões das redes do império editorial?

• Satisfaz-se e inflama-se a Universidade com o prestar e sediar serviços, que deviam ser assegurados por corporações e empresas e, assim, aliviam estas do investimento em equipamentos e pessoal qualificado? • Pressente-se na Universidade disponibilidade para a autointerrogação se estará ou não, com a deriva pragmática, utilitária e reverenciadora do putativo mercado, a cometer suicídio (porque não, genocídio?) científico e intelectual?


Pódio Olímpico da Universidade O novo herói e taumaturgo, merecedor de canonização, entronização e premiação, de adulações, hossanas e louvores, de genuflexões, reverências e vénias, no areópago universitário, é o minúsculo homo eficiens e faber, um animal laborans que reproduz a condição de escravo e o comportamento de idiota, porque de criatura livre e de Ser criador não possui rigorosamente nada.


Problema preocupante: funcionalização dos docentes O título desta abordagem podia encerrar uma pluralidade de formulações sinonímicas, todas convergentes para sintetizar melhor o seguinte: a Universidade tem vindo, nos últimos anos, a ser configurada como uma “máquina de triturar intelectuais”. Ela caiu sob a alçada de uma estrutura ideológica que “funcionaliza” os intelectuais ou, em obediência ao rigor, promove a produção em série do “intelectual funcionalizado”.


A última expressão é forte e exagerada. Não no tocante à ação ‘funcionalizante’, mas, sim, em atribuir o estatuto de ‘intelectual’ a quadros formatados pela lógica da ‘funcionalização’. Sejamos assertivos: A relação entre Universidade e intelectualidade, tradicionalmente automática e óbvia e, portanto, inquestionável, carece hoje de questionamento com carácter de urgência.


A docência universitária é sujeita a burocracias, controlos, exigências, métricas e padrões de avaliação que induzem condutas controladas e disciplinadas. Neste ambiente não floresce o bom senso, nem a sabedoria.

O termo ‘intelectualidade’, como distintivo da comunidade académica, não condiz com uma corporação acantonada no bunker do cultivo da especialidade, fechada ao contacto e à polinização da diversidade. ‘Intelectualidade’ pervertida e assaz restrita, de intelectuais menores, que se subtraem à demonstração do exercício da função que deviam cumprir. Os académicos estão despindo o hábito de intelectuais.


À medida que a burocracia tem assumido os processos, à medida que se tem vindo a definir um discurso do politicamente correto e penalizado os desvios do mesmo, à medida que os professores se têm limitado a cumprir as suas obrigações, a Universidade tem deixado de ser um espaço de debate e de criação (…) O impulso para a transformação social, para a renovação intelectual e para a criação artística e técnica, não se encontra hoje na Universidade, mas em outros contextos sociais. (Para inverter este cenário) necessitamos recuperar mais o protagonismo social das Universidades, mais compromisso com o desenvolvimento cultural e social das Comunidades. Miguel A. Zabalza, Programa do VII Congresso Ibero-americano de Docência Universitária, Faculdade de Psicologia e Ciências da Educação da Universidade do Porto, 24-27.07.2012.


A atividade dos académicos tem vindo a deteriorar-se, sendo progressivamente impregnada pelos interesses da gestão, da eficiência e do output. E isto provoca a perda da liberdade académica e a redução da dimensão crítica.

A retórica universitária, que antes se baseava na qualidade científica e na liberdade académica, passou a ser inundada pelo aumento das pressões para a adopção de metodologias de gestão mais próximas das empresariais. Barnett, R. (2008). Being an Academic in a Time-Impoverished Age. In Amaral, A., I. Bleiklie, and C. Musselin (Eds.). From Governance to Identity, pp. 7-17, Dordrecht: Springer. Bailey, R.W. (2008). Is the University in Ruins? Discussion Paper number 2008-2, Institute for Economic Development Policy, University of Birmingham.


Obrigações do professor universitário Para evitar deturpações dos propósitos desta reflexão, enunciamse algumas das obrigações dos docentes académicos.

A primeira é a da produtividade, isto é, a obrigação de ser produtivo, de criar, gerar e difundir conhecimento. Um doutor deve ser membro da sociedade de produtores. Esta exigência comporta a autoria de publicações, não se contentar em passar pela profissão, fazendo esboços e rascunhos. Docência: aquém da qualidade desejada e dá uma pálida imagem de si, se não estiver bem casada com este propósito e percurso.


Uma outra e não menos importante obrigação: Ser crítico, seguir a razão para onde quer que ela nos leve. Ser um eterno aprendiz da suprema arte de levantar dúvidas e formular perguntas. Falar e intervir, não cometer o pecado da omissão cívica e ética, proclamar o bem, o bom e o belo, o correto e justo, o elevado e o sublime. Ser e não querer parecer o que não se é.


Rubem Alves (1933-2014) aponta a mais alta das obrigações da Universidade: Ensinar a pensar é mais importante que pesquisar. É do desenvolvimento da capacidade de pensar que se forma um povo. Povo que não sabe pensar fica à mercê das mentiras. Rubem Alves, O amor que acende a lua. Campinas: Editora Papirus, 2003. Isto reclama a proximidade da filosofia junto dos envolvidos, de modo a unir a abordagem científica e racional à estética e moral. Não mais a filosofia como ofício de uns quantos, mas como arrimo de todos.


Temos que nos inquietar com o declínio da Universidade como casa da erudição, da espiritualidade e da intelectualidade. E igualmente com a diminuição de condições dos docentes universitários para estarem à altura e serem artífices dessa missão.

Quer a missão e a matriz da Universidade, quer a profissão da docência estão a conhecer grandes e inquietantes mudanças.


Inquietantes, porquê? A maioria dos docentes universitários não parece sentir-se incomodada com o rumo da Universidade, nem com o modo como exerce o seu labor académico. Eles resignaram e abdicaram do seu poder e obrigação de ser intelectuais e de pensar o mundo, a sociedade, a sua instituição e a si próprios. Recusam-se a assumir a responsabilidade de intermediários entre as ideias e a cidade, de agentes do despertar e esclarecer a consciência coletiva, de pensar e dizer o possível e desejável sobre o seu tempo e as suas circunstâncias.


Não se dão conta de que a sua atividade se tem descaracterizado e burocratizado.

Inócua e deserta de princípios e valores culturais, humanistas e universais, ela deixa muito a desejar no concernente ao seu alcance educativo, formativo, espiritual e intelectual. Mutilada da dimensão contemplativa e reflexiva, ela é cómoda para alguns e exasperante para os mais criativos, amantes da liberdade e avessos ao pensamento único (mainstream) e ao senso comum reinantes.


As trevas estão de volta, encanzinadas e sedentas de vingança. Vigora um “subtil filtro censório”, alimentício e indutor da “mediocridade formalista”, sufocante de “qualquer iconoclastia” e penalizador da “mínima heterodoxia”. Só não vê quem não quer. “A ascensão das mentalidades autoritárias não tolera a não ser a louvaminha untuosa. No mínimo, a citação reverente e permanente.” Paulo Ferreira da Cunha, “Ciência Cidadã”, Difusão social do saber e condição universitária, ENSINO SUPERIOR – REVISTA DO SNESUP, Nº. 53 Jul/Ago/Set 2015, p. 22, Snesup, Lisboa.


“O ‘intelectual funcionalizado’ (…) isola-se progressivamente, mas consagra-se cegamente à causa, desprezando as suas necessidades pessoais e relacionais; converte tudo numa urgência extrema e imediata; a necessidade de se afirmar perante os pares e de dar provas da sua superioridade permitem-lhe tomar consciência de que alguma coisa não está bem, mas não há cedência nem baixa médica e só uma doença muito grave pode ser um problema. De vez em quando queixa-se. Mas essa é, precisamente, a primeira regra do jogo burocrático em que se enredou. Queixa-se, não porque tenha vontade de se libertar, mas para legitimar a vontade de impor aos outros os mesmos sacrifícios.” Paulo Peixoto, Intelectuais com mentalidade de bunker, ENSINO SUPERIOR – REVISTA DO SNESUP, Nº. 53 Jul/Ago/Set 2015, Snesup, Lisboa.

Que deprimência!


Acerca do publish or perish Neste ambiente a condição universitária põe a máscara da cobardia e do formalismo.

Usa o jargão, a solução e a ‘estratégia’ que a todos cada vez mais formata, permitindo doutoramentos com dissertações elaboradas com escrupuloso rigor metodológico, mas totalmente vazias de sentido, sem originalidade e sem gerar ideias novas.


A replicação e a recorrência dão o tom ao coro quantitativista da ‘papermania’, do ‘paper salami’, presos à lógica do ‘publish or perish’. Sim, em inglês! Porque em inglês compramos e nos vendemos; obrigamo-nos a citar nomes e trabalhos ‘convenientes’, sob pena de morrer na praia ao ver o artigo recusado, por não se conformar aos cânones estabelecidos e por querer manter o cunho pessoal.


O ‘produtivismo’ domina as conversas, revestindo diversos trejeitos e linguagens, quer no seio e devaneio dos estudantes de pós-graduação, quer nos seus calculistas orientadores. Ele faz com que os académicos se meçam e vigiem uns aos outros, não vá o diabo tecê-las num eventual concurso para progressão na carreira ou numa candidatura à obtenção de fundos num qualquer programa.

É manifesta a preocupação de cada um saber quantos trabalhos foram publicados por ele e pelos outros – e onde! A esfera comunicativa e relacional, conferente do sentido de comunidade, sujeita-se ao castigo da erradicação.


São maiores o desconsolo, a frustração ou até drama provocados pela rejeição de publicação de um trabalho ou pela exigência da sua reformulação, do que o regozijo adveniente da aceitação do mesmo e da apresentação e discussão públicas do labor científico, por mais relevante e inovador que este seja. Parece uma caricatura, mas não é. Estamos perante uma inversão de valores, que põe a nu perturbados e inquietantes estados de alma.


A “mudança de cultura ocorreu porque agora os cientistas e suas instituições são avaliados a partir de fórmulas matemáticas que levam em conta três ingredientes, combinados ao gosto do freguês: número de trabalhos publicados, quantas vezes esses trabalhos foram citados na literatura e qualidade das revistas (medida pela quantidade de citações a trabalhos publicados na revista). Você estranhou a ausência de palavras como qualidade, criatividade e originalidade? Se conversar com um burocrata da ciência, ele tentará explicar-te como esses índices englobam de maneira objetiva conceitos tão subjetivos. E não adianta argumentar que Einstein, Crick e Perutz teriam sido excluídos por esses critérios. No fundo, essas pessoas acreditam que cientistas desse calibre não podem surgir no Brasil.” Fernando Reinach, ex-Professor da USP


Não se desconsidera a utilidade dos métodos quantitativos para avaliar um cientista ou departamento ou instituição. O seu uso exclusivo não se coaduna com a identificação e a valoração de “pessoas talentosas, criativas ou simplesmente geniais”. São o “caminho seguro para excluir da carreira científica as poucas pessoas que realmente podem fazer descobertas importantes. Essa atitude isenta os responsáveis de tomar e defender decisões.”

“É a covardia intelectual escondida por trás de algoritmos matemáticos.” Fernando Reinach, Darwin e a prática da 'Salami Science', O Estado de S. Paulo, 27 de abril de 2013.


Só a objetividade quantitativista e reducionista tem direito ao barrete cardinalício. Quem não desistir da qualidade e da liberdade terá que se retirar e desarriscar de tal confraria ou cúria apostólica.

O mandamento da objetividade e ‘positividade’ leva a abandonar e varrer da ciência tudo quanto não se presta à modelação em voga. Além de nem toda a pretensa objetividade ser muito objetiva, a probabilidade da inovação aumenta com o alargamento das margens da subjetividade, sendo o inverso igualmente verdadeiro.


Os académicos aprenderam, com as lições de Charles Darwin (1809-1882), a adaptar-se às regras instituídas; transmutam o espírito crítico numa reprodução conformista, seguindo uma linearidade reativa, de lavra pavloviana. “Se a regra exige aumentar o número de trabalhos publicados, vou praticar ‘Salami Science’. É necessário ser muito citado? Sem problema, minhas fatias de salame vão citar umas às outras e vou pedir a amigos que me citem. Em troca, garanto que vou citá-los. As revistas precisam de muitas citações? Basta pedir aos autores que citem artigos da própria revista. E, aos poucos, o objetivo da ciência deixa de ser entender a natureza e passa a ser publicar e ser citado. Se o trabalho é medíocre ou genial, pouco importa.” Fernando Reinach


Dá para rir, mas nesta ‘cultura’ da esperteza, como tábua-desalvação, também se albarda o burro à vontade do dono!

Semelhante prática, não obstante se ufanar de produzir um número crescente de mestres e doutores, de ‘papers’ e citações, carrega um óbice indisfarçável: “Cada dia ficamos mais longe de ter cientistas que possam ser descritos em uma única frase: Ele descobriu...” Fernando Reinach, ibidem.


O agudo julgamento da ciência feito por Edmund Husserl (18591938) conserva atualidade: “As questões que ela exclui por princípio são precisamente as questões mais escaldantes na nossa época desgraçada para uma humanidade abandonada aos sobressaltos do destino: são as questões que dizem respeito ao sentido ou ausência de sentido de toda a existência humana.” Esta deficiência continua por debelar; porventura agravou-se. A maioria dos trabalhos científicos dialoga muito pouco com a alma, não a acrescenta e enriquece. Em vez de lhe dar asas de liberdade, acorrenta-a à necessidade. Edmund Husserl, A crise da humanidade europeia e a filosofia. Conferência proferida em Viena, em maio de 1935.


Sydney Brenner, Universidade de Cambridge e Prémio Nobel em Medicina em 2002: colonização da Universidade e da ciência por orientações e interesses alheios à idiossincrasia de ambas. Atribui às derivas do produtivismo e do ‘quantitivismo’ das publicações a “destruição da inovação científica”, porquanto “os burocratas da ciência não desejam correr risco algum”. “Uma nova cultura de ciência, baseada na escravatura dos estudantes graduados”, no condicionamento dos estudantes de doutoramento e pós-doutoramento: “Hoje há laboratórios que não aceitam trabalhar como anteriormente, em que as pessoas eram independentes, podiam ter as suas próprias ideias e levá-las por diante.”


Acusação: o ‘peer review’ é “dificultador da ciência”, por se ter tornado “um sistema completamente corrupto”. O mandamento do ‘publish or perish’ evoluiu para ‘publish in the okay places’ (sim, ‘publicar nos locais de feição’, aconselhados e adequados, para não perecer). “E isto juntou o mais ridículo grupo de pessoas.”

Brenner critica o sistema, simultaneamente “mau” e “corrupto”, por colocar “o julgamento nas mãos de pessoas que realmente não têm razão absolutamente nenhuma para julgar.” Tudo isto reverte em favor do comércio, isto é, das “gigantescas organizações que fazem dinheiro com isso”. Elizabeth Dzeng, How Academia and Publishing are Destroying Scientific Innovation: A Conversation with Sydney Brenner. King’s Review-Magazine, Feb 24th, 2014.


Quanto ao fator de impacto (e ao número de papers citados), insiste Brenner:

“Não é necessariamente correlacionado com boa ciência. Para maximizar o fator de impacto, os editores das revistas procuram papers sensacionalistas, que desafiam audaciosamente as normas ou exploram tópicos das últimas tendências, e ignoram coisas menos espetaculares, mas igualmente importantes, tais como estudos de réplica ou resultados negativos. Uma das consequências é a dos académicos serem incentivados a fazer a investigação requerida por este enquadramento”. As revistas e os interesses, por detrás delas, impõem as linhas de investigação, ditam a moda, subestimam o que não se sintoniza com ela; e deste jeito colonizam a academia e a investigação nela incentivada e recompensada.


SEIS EDITORAS CONTROLAM AS PUBLICAÇÕES CIENTÍFICAS MUNDIAIS Um estudo realizado por pesquisadores da Universidade de Montreal (Canadá), intitulado “O Oligopólio das publicações acadêmicas na era digital” (The Oligopoly of Academic Publishers in the Digital Era) revela que as seis maiores editoras de pesquisa do mundo (ACS, Reed-Elsevier, Springer, WileyBlackwell, Taylor & Francis, e Sage) tomaram o controle do artigos acadêmicos publicados em todo o mundo desde os anos 1970 e que pequenas editoras foram absorvidas pelo “oligopólio de publicação”


Um grupo de seis editoras dominam o mercado de publicações científicas desde os anos de 1970. As pesquisa acadêmicas estão cada vez mais submetidas aos interesses das editoras, que tendem a agradar as grandes indústrias. “Enquanto a publicação em revistas de alto fator de impacto for um requisito para os pesquisadores obterem cargos, financiamentos para pesquisas e reconhecimento de seus pares, as grandes editoras comerciais manterão o seu domínio no sistema de publicação acadêmica.”


Os académicos estão a acordar para o facto de que “este obstinado esforço para publish rubbish (sim, para publicar lixo!) tem consequências sérias” para a qualidade da ciência que produzem, com extensões de igual teor nas políticas públicas, nos custos e em vidas humanas”. Está, pois, em jogo, a sua credibilidade. “Só os académicos melhor sucedidos se atrevem a desafiar as normas em vigor e a boicotar as revistas de alto impacto”.

Se nos juntarmos e dispusermos de lideranças nas instituições universitárias e nas agências de investigação com a visão do Prof. Sidney Brenner, é possível “modificar a estrutura da investigação na academia, e a linguagem usada para avaliar a sua qualidade”. Elizabeth Dzeng, ibidem.


Crítica ao sistema ‘peer review’ A crítica de Sidney Brenner ao sistema ‘peer review’ não é isolada. No oceano do aparente consentimento e quietude, multiplicam-se as reservas. Julia Belluz e Steven Hoffman, num texto intitulado “Let's stop pretending peer review works”, coligem os resultados de aturados estudos e as opiniões de editores de jornais e revistas com reputação internacional.

Eis uma síntese suficientemente elucidativa:


• O sistema é “falacioso” e “inconsistente”: são aceites artigos apresentados por nomes afiliados a instituições prestigiadas; os mesmos artigos, submetidos com alteração do autor e da instituição, desta vez uma menos credenciada, são recusados! • Alguns erros não são detetados, devido ao escasso número de revisores. Estes, não sendo pagos e acumulando a tarefa de revisão com outras, que garantem o seu sustento, sentemse pressionados pelo tempo a responder, sem analisar "corretamente" o artigo. A isto soma-se a impreparação do revisor para uma análise exigente. Ademais, não é de excluir a hipótese de ele ter algo contra o(s) autor(es) do ‘paper’ ou contra a respetiva instituição .


• O sistema “não é muito confiável”, não pode ser encarado como garantia de qualidade. O processo de revisão não elimina a publicação de artigos com baixo índice qualitativo. • Para a pergunta acerca da eventual abolição do sistema, surge a resposta de que, pelo menos, deve deixar de ser absolutizado e visto como “scientific gospel” (palavra ou verdade divina). É necessário inventar novos processos e soluções para os complexos problemas da aceitação e valoração das publicações. O texto foi postado, em 7 de dezembro de 2015, neste endereço eletrónico, de Vox SCIENCE & HEALTH: http://www.vox.com/2015/12/7/9865086/peerreview-science-problems


Somam-se as insinuações de que as agências de fomento da investigação e pesquisa, mais as revistas científicas, incluindo as de maior nomeada (por exemplo, Nature e Science), por debaixo do suposto rigor, da ‘excelência’ e do tão badalado ‘fator de impacto’, atraiçoam e desqualificam o debate científico, sepultam o saber e cometem ‘epistemicídio’.

Como assim? Dissuadindo a dissidência e dificultando a emergência de novas áreas e formas de elaboração e enunciação do pensamento.


A insinuação alonga-se, perguntando se o produtivismo • Favorece ou mata a criatividade e imaginação humana, fomenta a passagem para outras realidades ou a impede, incentivando e premiando a reprodução e a replicação da realidade existente? • Está compromissado com os problemas reais de circunstâncias, pessoas e vidas concretas ou com o monopólio dos questionáveis proveitos e vantagens dos globalizados ‘journals’, que enchem a boca e esbugalham os olhos de tantos académicos?


Outras sequelas do produtivismo As sequelas do produtivismo, da ‘bibliometria’ e da prática darwinista da ‘Salami Science’ encontram-se sobejamente denunciadas e divulgadas. Por isso, limitamo-nos a pôr somente mais alguns condimentos nesta comida deveras indigesta: • Uma pesquisa realizada com estudantes da Universidade de Oxford revela que 42%, dos que procuram o serviço de aconselhamento psicológico da instituição, estão inscritos na pós-graduação .


• Segundo pesquisadores da Faculdade de Medicina Albert Einstein (Nova Iorque), o número de retratações, referentes a artigos fraudulentos, aumentou 10 vezes, desde 1975 até aos nossos dias. A fraude escuda-se no facto de ter crescido a pressão sobre os pesquisadores para que publiquem rapidamente e em revistas de alto fator de impacto, a fim de poderem conseguir o necessário financiamento.

• O espaço académico tornou-se um antro de minudências, ambições e vaidades insanas; a necessidade de ser reconhecido pelas publicações é insaciável. A afirmação fazse através da exibição de um ‘conhecimento’ cada vez mais acantonado, esmiuçado, pormenorizado e com pouca solidez.


Um pouco de humildade far-nos-ia muito bem. Tal como deitar água fria na fervura da soberba e arrogância, atendendo à advertência de La Rochefoucault (1613-1680): “O mundo recompensa com mais frequência as aparências do que o próprio mérito.” (Escrito na Pedra, Jornal Público, p. 47, 02.08.2014)

Os costumes da era de La Rochefoucault continuam hoje vigentes em todos os setores; quiçá, mais exacerbados. O contexto universitário, infestado de ‘papermania’, também não se subtrai a esta estocada do escritor e moralista francês.


Tenho a impressão de que certas pessoas, se soubessem exatamente o que são e o que valem na verdade, endoideciam. De que, se no intervalo da embófia e da importância pudessem descer ao fundo do poço e ver a pobreza franciscana que lá vai, pediam a Deus que as metesse pela terra dentro. Miguel Torga, 1907-1995


• Na pós-graduação, contrariando o alerta de Confúcio (551479 a.C.), ensina-se o macaco a trepar às árvores. Gastam-se energias e forças a desenvolver competências técnicas que aprisionam o olhar num arbusto e o impedem de ver a floresta e a linha do horizonte. • Premeia-se a quantidade e a produção constante de textos, publicados a toda a brida e sem tempo de maturação. Isto é, há uma disputa por notoriedade e visibilidade imediatas, olvidando que os frutos da ciência são colhidos a médio e longo prazo, como afirmou Voltaire (1694-1778): “As verdades são frutos que apenas devem ser colhidos quando bem maduros.”


• Muitos artigos ficam adormecidos e são descobertos por outras áreas do saber anos depois de terem sido dados à luz. Por exemplo, um artigo de Albert Einstein, publicado em 1935, ficou esquecido durante 59 anos e só então encontrou o reconhecimento que lhe era devido. “Há artigos científicos que são belas adormecidas e um dia acordam”, título de uma análise sobre a doença da ‘bibliometria’, da autoria de Nicolau Ferreira, jornal Público, p. 29, 26.05.2015.


• Os docentes têm perdido a sua capacidade de pensar livremente, de lutar e de se posicionar a favor do bem comum, aceitando as imposições do sistema. Ou seja, incorrem, com toda a naturalidade, no pecado da omissão cívica e ética perante a desordem contemporânea. Como salienta Manuel Matos Monteiro, “o idioleto, os modismos, os bordões linguísticos (…) são simultaneamente reflexo e mecanismo reprodutor do pensamento dominante.” Manuel Matos Monteiro, Reflexões sobre a linguagem hodierna, Jornal Público, p. 46, 27.12.2015.


• A competição desenfreada atrapalha a lógica de um relacionamento saudável. Por outras palavras, destroem-se vínculos, perturba-se o equilíbrio emocional, afetando o bemestar geral, o próprio e o dos outros. A competição é só civilizadora enquanto estímulo; como pretexto de abater a concorrência, é uma contribuição para a barbárie. Agustina Bessa Luís


• No atual ambiente de concorrência generalizada chamado ‘globalização’, a ciência vê-se despida dos grandes ideais e fins, em proveito dos meios; e é convertida em mera técnica. Não se orienta mais por referências e finalidades transcendentes, visa apenas competir, medir-se e, tanto quanto possível, suplantar (e até esmagar) os outros com números e bitolas, segundo os normativos em moda; ela é o fim em si mesmo, segue, a par e passo, a envolvência consumista. Não espanta, por isso, que a ciência se funda (e confunda) com técnica e tecnologia e evolua (?!) para ‘tecnociência’, que esta se enlace com o contexto ideológico em alta e seja incensada por ele.


• Como se isto não chegasse, sobrevém o abastardamento da linguagem. O livro, a leitura, a literatura e o trato esmerado da língua portuguesa figuram na listagem de derrotados por este modo de buscar, formular, divulgar e avaliar o conhecimento. • A adoção acrítica da obrigatoriedade (não instituída na lei, mas aplicada na prática avaliativa das instituições, das provas e dos concursos) de escrever artigos e dissertações em inglês originou o fabrico em série de doutores e professores, que tratam a língua portuguesa a pontapé, e se encontram no confrangedor estádio da linguagem enfraquecida.


• A baixa qualidade da expressão oral e escrita na língua de Camões, além de prenunciar igual proficiência no idioma de Shakespeare, de Voltaire ou de Goethe, denuncia o desalinho no campo das ideias. Quem não sabe escrever ou falar, também não sabe pensar.

Entre a linguagem e o pensamento, a retórica e a lógica há uma relação de indissolúvel reciprocidade, como a da forma e do conteúdo. O resultado é a queda do nível da razão, da ficção, da idealização e imaginação. A irracionalidade emerge, não é travada ou contrariada; ao invés, é premiada pelas métricas da avaliação em vigor.


Competitividade: Perversão da noção de ‘agonismo’ e ‘arété’ É curial submeter à aclaração e reflexão o ambiente hipercompetitivo que se instalou em todas as esferas da atividade, comparando, medindo, numerando, pressionando e discriminando tudo e todos. A ‘competitividade’ (tal como o ‘empreendedorismo’ e o ‘sucesso’) é hoje um dos dogmas em alta, decretados pelo reformismo neoliberal com a pretensão de elevar a fasquia da produtividade, da eficácia, da eficiência e da meritocracia. É erigida em padrão exclusivo, sem questionar minimamente aonde estão a levar o exacerbamento e a aplicação generalizada do dogma, sem lhe por o freio da relativização.


A competição favorece o alcance de patamares mais altos em vários domínios. Mas, quando desvirtuada, fecunda igualmente comportamentos, estados de espírito e medidas que não se compaginam com o registo do humano. A competição, prevalecente nos nossos dias, não repara que torna arrogantes os vencedores e doentes os perdedores, que a felicidade de uns pode ocasionar a infelicidade de outros. Faz tábua rasa de que o caminho para a felicidade passa mais pela cooperação incorporada do que pela competição desenfreada.


Os dados, colhidos em vários estudos sobre a longevidade e a saúde, são alarmantes, revelam que: • os vencedores vivem mais tempo do que os perdedores; • as doenças decorrentes do estresse competitivo e da instabilidade têm aumentado nas sociedades ditas desenvolvidas. Por exemplo, não faltam vozes autorizadas a atribuir a esta atmosfera asfixiante o crescendo e a imensa maioria dos distúrbios e doenças do foro mental e cancerígeno.


Segundo notícias publicadas em vários jornais, o Papa Francisco, numa missa celebrada em Seul em 15.08.2014, advertiu para o “cancro do desespero" que aflige as sociedades materialistas. Na homilia, numa referência à elevada taxa de suicídio na Coreia do Sul, o Papa alertou para a “cultura da morte”, em rápido crescendo nos países desenvolvidos, onde os pobres são marginalizados.

Apelou ainda aos sul-coreanos para combaterem "o espírito de competição desenfreada, geradora de egoísmos e conflitos" e para rejeitarem “modelos económicos desumanos".


Competição versus cooperação Gabriel L. Mota, um economista doutorado em economia da felicidade, propõe : “Talvez seja melhor pensarmos na cooperação como um mecanismo que também é capaz de (subir e) aumentar os patamares de eficiência mas que promove a felicidade coletiva ao mesmo tempo. No fundo, somos todos muito mais iguais do que diferentes e a cooperação torna-nos mais próximos, enquanto a competição é mais potenciadora da inveja, da idolatria e do individualismo.”


A proposta insiste: “o caminho para uma felicidade coletiva passa mais pela colaboração rizomática...”

Logo o desiderato de “uma democracia evoluída” implica potenciar a cooperação “como força da sociedade”, porque “muito do que fazemos pode ser mais colaborativo e menos competitivo”, sendo possível minimizar os interesses incompatíveis e os potenciais conflitos, “ao mesmo tempo que promove a tolerância e a capacidade de compromisso entre ganhadores e perdedores.” Gabriel Leite Mota, Competição e felicidade: uma equação complexa, Jornal Público, p. 37, 07.08.2014.


Gabriel Mota traça um diagnóstico, que dá muito que pensar: “Uma sociedade onde tudo é calibrado para despertar o lado mais competitivo do ser humano é uma sociedade tensa e insustentável: pela falência dos indivíduos face à pressão ou pelo desencadear sucessivo de conflitos. Os exemplos abundam: a transformação do desporto numa atividade profissional exclusivamente competitiva deu azo a que o doping, a corrupção e a perfídia se tornassem regra, pois que a vitória (em vez do mérito) é o único valor; a abertura dos mercados financeiros a todo o tipo de especulação fez com que se instalasse um clima de competitividade cega entre os


agentes que conduziu às crises, instabilidade e insustentabilidade que hoje vivemos; os climas escolares e profissionais excessivamente competitivos têm desvirtuado os valores da aprendizagem e do crescimento em nome do ficar em primeiro a todo o custo, com consequências para a saúde e o bem-estar psicológico dos indivíduos (vejam-se as estatísticas das doenças mentais que não param de crescer ou mesmo a situação caricata dos EUA, o paradigma da sociedade competitiva, que corre o risco de começar a ver diminuir a esperança média de vida dos seus cidadãos). Penso que vivemos em ‘overdose’ competitiva e que é altura de inverter a tendência: há mais vida para além da competição e só uma sociedade mais cooperante será capaz de produzir um futuro mais feliz!”


Consequências da demência competitiva A overdose competitiva e demencial extravasou o campo desportivo e assentou armas e bagagens em todo o lado, com particular e paradoxal relevo na Universidade. Esta parece mais um hospício de formatação da insanidade e menos uma casa da erudição e racionalidade. Tornou-se uma organização regida por contratos de resultados, onde se compete ufanosamente por eles, segundo estratégias, normas e padrões estranhos à matriz da criação do conhecimento e à ideia de formação. O culto dos rankings deixa ao léu uma absurda e gritante estupidez: a finalidade primeira das universidades é competir entre si; é este o tipo vigente de relacionamento entre elas.


A produtivista competição universitária pode produzir génios, mas produz também uma luzidia, ufana e insuportável casta de neuróticos e esquizofrénicos, ausentes num planeta longínquo, indisponíveis para se solidarizarem com os prejudicados pelo figurino estabelecido, mergulhados numa introversão narcisista que até mete dó. São personagens, parafraseando Hegel, necessitados de aprender a subir às alturas do infinito bom humor, para observar abaixo de nós a eterna tolice dos humanos, para amar a própria insignificância e rir de si mesmos.


Mais, alguma (ou será muita?!) parcela de responsabilidade pela passividade, pela falta de empenhamento cívico e alheamento ético de muitos estudantes é atribuível aos exemplos recebidos dos docentes. Todos o sabemos, “é vasta a lista de exemplos de fraudes cometidas por cientistas, com que se pode rebater a crença segundo a qual eles nunca atuam à revelia da ética.” Santana Castilho, Uma certa versão moderna de fascismo, Jornal Público, p. 37, 27.08.2014.


Endeusamento e fundamentalismo de um rasão avaliativo único, que faz da “estatística guião e da econometria bíblia”, aplica “medidas de desempenho estereotipadas, normalizadas e gerais a tudo o que é diverso”, reduz “culturas e contextos díspares à mesma escravatura de resultados”, cuida que pode medir e indexar tudo a índices e rankings. O panótico de avaliação e controlo (que nos interpela e segue em toda a parte) e a sua aceitação e veneração acríticas e passivas configuram “uma certa versão moderna de fascismo.” Santana Castilho, ibidem.

Alguns usam a estatística como os bêbados usam postes: mais para apoio do que para iluminação. Andrew Lang, 1844-1912, escritor escocês


Não é difícil desfiar um rol de sintomas que indiciam a periculosidade da metamorfose epidémica que assola e desvirtua o espaço académico, precisamente um domínio que é suposto ser referência inspiradora da atuação do conjunto social. Nele impera uma sobrecarga de rotinas, tarefas e trabalhos que convida e, por vezes, força os docentes a descurar o aprimoramento cultural, espiritual e intelectual da sua personalidade, o ócio criativo e a dimensão da vida afetiva e familiar, revertendo isto em desfavor e deslustre do desempenho cabal e nobilitante da sua missão.

Tal condicionamento comportamental assemelha-os a entes secos de espiritualidade e sentimentalidade na face e na alma!


Sufocados pela burocracia esterilizante e alienados pela competição infrene, muitos professores são repetidores mecânicos dos arquétipos que conseguiram fazer dos seus projetos de vida o oposto do que estão fazendo com o deles.

Debaixo do tapete da desculpa do cumprimento das imposições, escondem-se a mediocridade e a falta de criatividade e de ousadia para reagir a uma situação degradante.


Destarte o feitiço vira-se contra o feiticeiro: A função do docente universitário já não é o que era, afasta-se a passos largos do imaginário que a edificou e habitava. Ele é um cumpridor lesto e submisso de determinações e ordens de cariz policial, um tarefeiro obediente que as executa à risca, não se atrevendo a inquirir a respetiva justificação, nem tampouco os objetivos de todo este deprimente enredo. O grau da decadência foi proclamado por Hegel (1770-1831): “Naquilo com que um espírito se satisfaz, mede-se a grandeza de sua perda.” Esta é enorme e medonha; no entanto, é escasso o número dos académicos que se erguem contra semelhante calamidade.


Diagnóstico preocupante da profissão docente Muitos professores desrespeitam e traem, sem que alguns se deem conta disso, o título simbólico que ostentam: PhD – Doutor em Filosofia! Traem os atributos e as obrigações que o título encerra: • Ser um cultor da amizade pela sabedoria, em qualquer área. • Ser um Homo Sacer, um sujeito ardente de curiosidade, sedento de conhecer e saber, de transitar e evoluir do conhecimento para a sabedoria. De olhar para cima, em direção às estrelas que iluminam os nossos passos e caminhos. De captar e perceber o sentido do que vê. De questionar-se acerca do que faz o Universo existir.


Digamos sem rodeios, a profissão docente (a bela profissão de formar pessoas!) está doente; e os seus agentes não o estão menos, naturalizados num papel e afundados numa irracionalidade que, eles sabem isso perfeitamente, origina um ambiente de exaustão física e psicológica, muito bem expresso na síndrome do ‘burnout’. Foram filiados à força na liga da competição possessiva.


A pressão obrigacionista e obsessiva das avaliações, dos rankings, das metas e dos objetivos, de ‘fazer curriculum’, de prestar contas e de mostrar resultados evidentes, palpáveis e quantificáveis, de desconfiar e desqualificar tudo o que não se ajusta ao figurino estatístico, gráfico e numérico – toda esta doidice afunda, deteriora, esmaga, oprime e transforma radicalmente o desempenho, o desígnio e a essência da docência.


A entrega à instituição e aos estudantes, o ensino e a sala de aulas são olhados como parentes pobres, coitados, tolheitos e portadores de toxicidade, em vias de ser ocultados e riscados da lista de convidados para a festa da contabilização. Assuma-se, sem sofismas ou subterfúgios, esta perversão:

‘Ensinar’ e ‘Educar’ - e a extensão das suas implicações - não são termos benquistos no dourado dicionário perfilhado no areópago universitário nos dias de hoje.


Obviamente, não se advoga a atribuição aos docentes do ensino superior de um estatuto de casta, que os isente da responsabilização pelo cumprimento da sua missão. O que está em causa é encontrar alternativas lúcidas à prática corrente. Esta confunde o acessório com o essencial, os meios com os fins; reproduz e multiplica as tentações e totalitarismos do ‘panóptico’, do controlo, da fiscalização e do policiamento, que tomaram conta da sociedade e minam os seus fundamentos.


Devido à perda da visão eclética do mundo e à conformação do labor dos docentes por um crescendo de bitolas burocráticas, redutoras da capacidade de pensar criativamente e de se abrir ao abrangente, diferente e diverso, a versão hodierna e neoliberal da Universidade é um bastião, tomado por indivíduos acríticos, conformistas, manhosos e oportunistas, embrenhados numa competitividade ensandecida por financiamentos de projetos. Acresce a febre da hiperespecialização e do produtivismo consubstanciado na urgência de publicar.


Os académicos estão cada vez mais atomizados e “isolados num campo aberto e exposto”. Tornaram-se “muito competentes na sua área de atuação”, mas deixaram de compreender e integrar numa perspetiva mais ampla “o universo particular em que se movem. Em suma produziram visões muito enviesadas da realidade. A mentalidade de bunker, que daí resulta, faz com que tudo esteja resolvido por fórmulas que, numa realidade complexa, só os mais hábeis tecnocratas são capazes de dominar. Por isso, a capacidade intelectual para ver a mudança, que emerge no contexto, rareia na academia. E a capacidade para a provocar, por via do pensamento criativo e da abertura à diversidade, é ainda mais difícil de encontrar.” Paulo Peixoto, ibidem.


Por mais que invista no cuidado da aparência, a Universidade perde a sua essência no redemoinho da híper-ação e agitação, da “hiperocupação”, da “dispersão forçada”, da “espada de Dâmocles das avaliações”, do “círculo vicioso de tarefas subalternas burocráticas”, da “proverbial facada nas costas” no colega e ‘amigo’ ao lado.

Irrompe nela, o condomínio das ‘panelas’ de cientistas, de alianças mais ou menos mafiosas e imorais entre pesquisadores e editores de revistas, de redes com métodos pouco ortodoxos, das “mãos atadas perante o novo-riquismo displicente do estudo e ávido de títulos que nos assalta. E outras tantas agruras e constrangimentos que nunca sonhamos sofrer quando, imaginando uma profissão livre, de estudo e comunicação de conhecimento, decidimos abraçar esta carreira. …/…


Aí estamos encerrados. O que não quer dizer que não possamos sair do labirinto, mudando de paradigma. O primeiro passo seria reconhecer que nos meteram num labirinto, o qual muitos de nós acarinham e aprimoram, perdendo as suas vidas e infernizando as dos outros.” Paulo Ferreira da Cunha, ibidem, p. 25.

Estamos encalhados num modelo de sociedade e universidade, donde somente sairemos, se tivermos a coragem de o dar por gasto, e de encarar a busca urgente de ideias e perspetivas de superação, que abram caminhos novos. Acordemos e clamemos por claridade e renovação! A desdita do presente reza e suplica por urgente substituição.


Necessidade de um movimento anti-produtivista e anti-utilitarista Urge acudir ao estado doentio da Universidade, manifesto na deriva produtivista, com a atitude implícita nesta anotação, atribuída a Fernando Pessoa: “Há um tempo em que é preciso abandonar as roupas usadas, que já têm a forma do nosso corpo, e esquecer os nossos caminhos, que nos levam sempre aos mesmos lugares. É o tempo da travessia: e, se não ousarmos fazê-la, teremos ficado, para sempre, à margem de nós mesmos.”


A esperança de renovação está fechada, a sete chaves, na arca bafienta da ‘bibliometria’, aí definhando e apodrecendo, se o sobressalto do desassossego não abalar os espíritos inquietos da Universidade. Esta é a hora da prova da verdade. De os docentes se libertarem do crepúsculo que tolda os olhos da lucidez; de erguerem um movimento anti-produtivista e anti-utilitarista, proclamando que a Universidade é uma instituição necessária e útil, mas não pode ser reduzida a uma organização utilitária. Importa eleger e dar importância aos ‘inutensílios’, às ‘inutilidades’ e ao ócio criativo.


A Universidade carece de janelas e portas abertas para a sua alma e para o além e acima de si, para o absoluto e o infinito que a justificam e transcendem. Logo, a ciência e o conhecimento, que nela se realizam, devem ostentar a marca da ‘cidadania’ e encarar a sociedade e a Humanidade, na sua plenitude, como agências às quais prestam contas, e como campo de aplicação, responsabilização e transferência do seu labor.


Isto convida os pesquisadores e acadÊmicos a libertar-se da conduta de eunucos reverenciadores dos sultþes e de outras fontes de suprimento financeiro. Intima-os a sentir-se atraídos e motivados por temas com verdadeira relevância social e humana, independentemente das modas internacionais e dos interesses do putativo mercado empresarial e industrial.


Não faltam personalidades e centros admirados pela sua capacidade de reflexão, pelo seu compromisso com a verdade e envolvimento com a sociedade. São ciosos da sua coragem, independência e rebeldia nestes tempos de cegueira, cobardia, conformismo e demissão, estando bem cientes de que pagam um preço pela sua atitude:

Não figuram na coluna do apreço dos rankings, dos registos e das agências de avaliação do ‘produtivismo bibliométrico’. Perdem alguma coisa com isso? Não, muito pelo contrário: anunciam o advento do futuro!


Precisamos de ‘inutensílios’, de coisas não ‘utilitárias’ e do ‘ócio recriador’, para aliviar o sufoco do utilitarismo e sanear o ambiente inestético e demencial, em que se converteu o contexto social e existencial, inclusive o universitário. Que avaliação faz de si a Universidade a este respeito? Ainda é o lugar do espírito livre, onde se procura a verdade, por ser verdade? Ainda prevalece nela o primado humboldtiano da verdade sobre a utilidade?


Que ponderação tecem disto os académicos? Sentem-se bem com a ‘forma’ e a quadratura da Universidade? Estamos disponíveis para remir, no discurso e na prática, os lemas comuns, matriciais e originais da Universidade ?

Aonde transporta o compromisso selado entre a nossa pertença e paixão pela Universidade? A saúde humanista da Universidade está muito mal. Mas pode ter cura, conquanto os seus protagonistas decidam tomar os remédios apropriados.


Ponham-me um pano por cima de tudo isso, fechem-me isso à chave e deitem a chave fora (…) Época vil dos secundários, dos aproximados, dos lacaios com aspirações a reis lacaios. Passai, frouxos! Passai, radicais do pouco! O mundo quer (…) o político que construa conscientemente os destinos inconscientes do seu povo. Quer o poeta que busque a imortalidade ardentemente e não se importe com a fama. Quer o general que combata pelo triunfo construtivo, não pela vitória que é apenas a derrota dos outros. O mundo quer a inteligência nova, a sensibilidade nova. O que aí está a apodrecer a vida, quando muito, é estrume para o futuro. O que aí está não pode durar porque não é nada. Eu, da raça dos navegadores, afirmo que não pode durar. Eu, da raça dos descobridores, desprezo o que seja menos que descobrir um mundo novo. Ergo-me ante o sol que desce e, à sombra do meu desprezo, anoitece em vós, e proclamo isso bem alto, braços erguidos, fitando o Atlântico e saudando abstratamente o infinito. Álvaro de Campos, Mandado de despejo aos mandarins do mundo, 1917


Há apenas dois caminhos: o abismo ou a metamorfose. Rumo ao primeiro não é preciso esforçar-se, pois a ele nos empurram nossas carências e incompreensões. A direção do segundo caminho, porém, precisa ser cuidadosamente apontada.

A gigantesca crise planetária é a crise da humanidade que não consegue atingir o estado de humanidade.

Não se pode reformar a instituição sem antes reformar as mentes, mas não se pode reformar as mentes sem antes reformar as instituições. Edgar Morin, A via para o futuro da humanidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2013


O que é que então faz falta para abater os muros que comprimem a Universidade? Algo muito pequeno na formulação, porém assaz exigente na ação: coragem e lucidez! Ou as temos ou não. Se as temos e não usamos, somos cobardes; se as não temos, somos carentes e dementes.

Tanto num como no outro caso, não estamos à altura de cuidar de outrem; antes carecemos de alguém que cuide de nós. Logo, sejamos honestos, justos e precisos: o nosso lugar não é na Universidade; é num hospício.


Muito obrigado pela atenção! jbento@fade.up.pt


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