NOVA CULTURA #3

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Revista de Cultura e Teoria Politica

O problema da terra no Brasil e a Revolução Agrária Anti-Feudal

Eleições no Brasil: jogo de cartas marcadas

Entrevista: Eduardo Artés, Primeiro-Secretário do PC (AP)

PAÍSES SOCIALISTAS: Sobre a Realidade Cubana


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SUMÁRIO EDITORIAL: “Eleições no Brasil: jogo de cartas marcadas” página 03 “O problema da terra no Brasil e a Revolução Agrária Anti-Feudal (parte I)” página 06 “Sobre a realidade cubana” página 20 “Direito e Materialismo Histórico: entre a forma jurídica e a forma primitiva na dominação de classe” página 28 “Partido Comunista (Acción Proletária), o combate ao revisionismo e a revolução na América Latina” Entrevista com Eduardo Artés Brichetti página 34 Figuras do Movimento Operário página 41 “A Revolução Coreana e a luta do seu povo pela independência” página 42 NOVA CULTURA Nº 03 - setembro/2014 Revista teórica eletrônica, uma publicação da União Reconstrução Comunista (URC). Colaboradores: Ícaro Leal Alves, Gabriel Martinez, Alexandre Rosendo, Lucas Medina, Alberto Steffen Neto, Klaus Scarmeloto, Paulo Esteves, Diego Gregório, Núcleo Marxista-Leninista Camaradas

Para entrar em contato conosco e ter mais informações sobre a URC, sobre nossas publicações e sobre nossas atividades, escreva para o email da organização: uniaoreconstrucaocomunista@gmail.com


EDITORIAL: “Eleições no Brasil: jogo de cartas marcadas”

Eleições no Brasil

jogo de cartas marcadas “Os acontecimentos posteriores à Segunda Guerra Mundial demonstram novamente que o componente principal da máquina estatal burguesa são as forças armadas e não o parlamento. O parlamento é tão somente um adorno, um biombo para o domínio burguês. Adotar ou eliminar o sistema parlamentar, conceder maior ou menor poder ao parlamento, adotar um ou outro tipo de lei eleitoral, tudo isso a burguesia determina sempre de acordo com as necessidades e os interesses de seu domínio” (Mao Tsé Tung)

Em outubro deste ano o Brasil passará por um novo pleito eleitoral, onde escolherá novos deputados estaduais, deputados federais, senadores, governadores e o presidente da república. As classes dominantes brasileiras, em suas várias tendências, apresentam o processo eleitoral brasileiro como a “festa da democracia” e destina milhões de reais em verbas publicitárias para estimular que o povo compareça as urnas. Neste ano os principais candidatos concorrendo pelo cargo de presidente são Dilma Rousseff, do Partido dos Trabalhadores (PT); Marina Silva do Partido Socialista Brasileiro (PSB) e Aécio Neves do Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Fato que merece ser destacado é que Marina Silva converteu-se em candidata principal de seu partido após a morte de Eduardo Campos, político do Estado de Pernambuco, que morreu em Agosto em um estranho acidente de avião na cidade de Santos, São Paulo. Eduardo Campos aparecia em terceiro lugar nas pesquisas; após sua morte, Marina Silva aparece em segundo lugar e com chances reais de vencer as eleições no segundo turno. Em essência, o programa dos três candidatos são três caminhos diferentes para aplicar um mesmo tipo de projeto: o projeto do neoliberalismo. Ainda que os políticos e militantes do PT tentem passar a imagem de que são “antineoliberais” os governos do PT não romperam com o chamado “tripé econômico” (meta de inflação, superavit primário

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e câmbio flutuante) e promoveu políticas econômicas de caráter entreguista, como bem demonstra as realizações dos leilões que entregaram a exploração do pré-sal brasileiro (campo de Libra) à empresas multinacionais, entre elas a Shell e a Total. Quando a Agência Nacional de Petróleo (ANP) – criada durante o governo de Fernando Henrique Cardoso, do PSDB - realizou este leilão, milhares de militantes e ativistas, trabalhadores e estudantes, saíram às ruas para protestar contra tal ato de agressão à soberania do povo e foram duramente reprimidos pelo exército brasileiro. É conveniente destacar que a realização do Leilão foi apoiado de maneira entusiasta pelo Partido “Comunista” do Brasil (PCdoB), o principal partido revisionista do país. Por meio de um dos seus principais dirigentes, durante anos o PCdoB dirigiu a ANP, aparelhando esta instituição do imperialismo com diversos quadros do partido. Marina Silva, a segunda colocada, se apresenta como defensora de uma “nova política”. Misturando discurso ambientalista com religioso, suas posições são confusas, mas atraem um certo setor da pequena-burguesia. Apresenta também propostas que, se aplicadas, aprofundarão ainda mais a dominação imperialista no Brasil. Conta com assessoria de Neca Setubal, herdeira do Banco Itaú, maior banco da América Latina. Antes do início da campanha eleitoral, vociferou contra a revolução bolivariana da Venezuela. Hoje aparece nas pesquisas como o nome que mais ameaça a candidatura de Dilma Rousseff, superando Aécio Neves. Aécio Neves, do PSDB, era até então o candidato preferido dos grupos monopolistas da imprensa. Seu discurso é o discurso do neoliberalismo, mas o faz de uma maneira aberta, sem máscaras. Defende o corte de direitos trabalhistas e se apresenta como defensor radical do legado de Fernando Henrique Cardoso, ex-presidente do Brasil e membro do mesmo partido. Com um radical discurso anti-PT, utiliza de retórica barata para agradar o seu eleitorado conservador e reacionário, atribuindo ao PT um suposto caráter “socialista” e até mesmo comunista. Os seus eleitores são, em sua maioria, oriundos dos setores mais reacionários das classes dominantes brasileiras, da grande burguesia e setores da pequena e média burguesia iludidos com o imperialismo. Apesar de se dizer “social-democrata”, professa de uma ideologia abertamente direitista, com um violento discurso anti-comunista e anti-latinoamericano. As outras candidaturas existentes são inexpressivas, composta em sua maioria por partidos fisiológicos de parca influência eleitoral ou organizações de “esquerda” vinculadas ao trotskismo e ao revisionista Partido Comunista Brasileiro. Agora, como a situação dos petistas e revisionistas que gerenciam o Estado brasileiro se complica, e a derrota ser uma possibilidade real, é normal que recorram novamente ao discurso que durante anos garantiu o apoio popular que tinham entre os movimentos sociais, o que de forma nenhuma significa uma garantia de que, ganhando novamente as eleições, irão aplicar medidas de caráter “popular e democrático”. Daí vermos a campanha eleitoral de Dilma Rousseff criticando nos seus adversários, coisas que ela também defendeu no passado, entre elas, a autonomia do Banco Central brasileiro. Em certa medida, acenam para bandeiras tidas como “progressistas” por setores do movimento social brasileiro.

Qual é, então, a tarefa das forças revolucionárias no Brasil diante das eleições que se aproximam? Como falado acima, o PCdoB é o principal partido revisionista do país. Este partido se reivindica herdeiro do Partido reorganizado em 1962, no auge das lutas contra o revisionismo moderno de Luís Carlos Prestes e do PC da União Soviética. No passado, o PCdoB combateu de maneira firme e decida a ditadura militar fascista e lutou para desenvolver a Guerra Popular em nosso país. Muitos quadros do Partido se esforçaram para assimilar as contribuições dadas por Mao Tsé-tung ao desenvolvimento da teoria do marxismo-leninismo. Com a derrota da “guerrilha do Araguaia” o PCdoB sofreu um golpe onde muitos dos seus quadros foram assassinados e torturados. Depois, em 1976, a repressão ainda desferiria um outro duro golpe na organização, invadindo a reunião do Comitê Central que fazia o balanço do trabalho do Partido na aplicação da Guerra Popular. Na ocasião, foram brutalmente assassinados Pedro Pomar e Ângelo Arroyo, destacados


EDITORIAL: “Eleições no Brasil: jogo de cartas marcadas” dirigentes do movimento comunista brasileiro. Após esse episódio o Partido passou ser controlado por João Amazonas. Com a morte de Mao Tsé-tung o PCdoB se aproxima ainda mais das críticas de Enver Hoxha ao maoismo e passa a considerar como “revisionista” o falecido presidente chinês. Com tais “mudanças” o PCdoB caminhou gradualmente para o pântano do oportunismo de direita, convertendo-se em uma organização revisionista, ainda que em certos momentos utilizasse de uma retórica pseudo-radical. O partido da classe operária, armado com a teoria científica do proletariado é, assim, completamente liquidado, algo que nunca havia acontecido desde a sua fundação em 1922, mesmo com os vários revesses sofridos pela organização ao longo de sua história. Hoje em dia, o PCdoB nega até mesmo o velho Enver Hoxha e muitos dos seus quadros dizem abertamente que se influenciam pelas ideias do “eurocomunismo” e do velho Partido Comunista Italiano revisionista. Outros partidos menores também professam de uma ideologia revisionista, alheia ao marxismo-leninismo; é o caso do PCB, Partido “Comunista” Brasileiro, que se reivindica herdeiro do antigo partido pró-soviético fundado por Prestes em 1962 e que hoje conta em suas fileiras até mesmo com militantes que se consideram trotskistas. As duas organizações, ainda que de maneira diferente, são um entrave ao desenvolvimento de uma verdadeira organização revolucionária no país, especialmente pela influência que exercem em setores do movimento popular, fato que prejudica a popularização e divulgação do marxismo-leninismo-maoismo entre vastos setores. Com os seus olhos voltados exclusivamente para Europa ou alguns países da América Latina, tais organizações também desconhecem completamente as revoluções que se desenvolvem atualmente na Índia e Filipinas, ambas dirigidas pelos seus respectivos partidos revolucionários maoistas. Assim, para tentar de alguma forma superar a situação em que atualmente nos encontramos, a União Reconstrução Comunista (URC) foi fundada. A URC busca ser um polo aglutinador de todos aqueles elementos descontentes com os rumos do movimento comunista no Brasil e um centro difusor da ideologia do proletariado, o marxismo-leninismo-maoismo. Ainda que nossas atividades sejam bem modestas e não corresponderem as exigências reais do movimento popular, estamos realizando diversas atividades que, aos poucos, despertam novos quadros para o caminho revolucionário. Nos últimos meses publicamos a “Nova Cultura”, revista teórica que se encontra agora em seu terceiro número. Para o primeiro número da revista entrevistamos o profº Jose Maria Sison, fundador do PC das Filipinas e principal ideólogo da revolução filipina. Com a realização das eleições no Brasil, trabalhamos visando mostrar o caráter da sociedade brasileira e do regime político brasileiro, apontando que os problemas estruturais que afligem a sociedade brasileira não serão resolvidos nos marcos do atual regime. Caracterizamos o Brasil como um país semicolonial, de relativo desenvolvimento do capitalismo, subordinado ao imperialismo e com forte presença da semi-feudalidade no interior do país, mais especificamente nas regiões norte e nordeste. Definimos o caráter da revolução brasileira como democrática-popular em direção ao socialismo, uma revolução de nova democracia, que estabelecerá um governo popular revolucionário, dirigido pelo proletariado em aliança com os camponeses. Esta caracterização causa “arrepios” nos revisionistas, que julgam o Brasil como um país “capitalista desenvolvido” a exemplo de EUA, Japão e Alemanha. Alguns vão além e classificam o Brasil como um país “imperialista”. Nesse sentido, dado a total desorganização do movimento revolucionário no Brasil, a inexistência de um verdadeiro partido de vanguarda e o amplo predomínio do revisionismo, a principal tarefa dos revolucionários brasileiros é difundir a teoria científica do proletariado, mostrando para as massas e para os lutadores sociais que somente a luta revolucionária porá fim ao atual regime de subordinação ao imperialismo. Os comunistas, marxistas-leninistas-maoistas, devem, de maneira paciente, explicar ao povo o caráter reacionário do atual regime político brasileiro, denunciando o caráter farsante do processo eleitoral brasileiro, que legítima a espoliação imperialista e faz com que as massas se iludam com as velhas instituições, reacionárias em sua essência. UNIÃO RECONSTRUÇÃO COMUNISTA

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Parte 1

O problema da terra no Brasil e a Revolução Agrária Anti-Feudal

por Alexandre Rosendo

Revolta Agrária de Pato Branco (1957)


“O problema da terra no Brasil e a Revolução Agrária Anti-Feudal” INTRODUÇÃO No documento de fundação da União Reconstrução Comunista, “O Desenvolvimento da Luta Revolucionária exige uma Nova Postura dos Comunistas”, faz-se um balanço da evolução da sociedade brasileira sob o ponto de vista das relações de produção, do desenvolvimento dos instrumentos de produção e da massa de produtores de mercadorias. À base da análise concreta do posicionamento do Brasil no sistema mundial do imperialismo e das relações internas de produção[1], mostra-se o caráter básico da sociedade brasileira como semicolonial e semifeudal[2]; as tarefas agrárias e antiimperialistas da Revolução brasileira; o imperialismo, o feudalismo e o capitalismo burocrático[3] como os alvos da Revolução brasileira em sua atual etapa; o proletariado como força dirigente da Revolução, o campesinato e a pequena burguesia como principais aliados do proletariado, e a burguesia nacional como aliada vacilante. Procuraremos descrever a formação do latifúndio feudal-escravista e colonial no Brasil desde século XVI, as relações de produção predominantes e suas transformações até os dias de hoje, indicar os caminhos a serem seguidos pela libertação do campesinato do jugo feudal e semifeudal imposto pela exploração latifundiária e concluir o papel predominante que cumprirá a luta agrária na Revolução Brasileira. Não buscamos, aqui, descrever exaustivamente o decorrer dos acontecimentos da história do Brasil, mas utilizar o os acontecimentos concretos para buscar neles as transformações operadas nas relações de produção e na situação socioeconômica consequente. Sendo assim, por conta do objetivo do trabalho presente, omitimos uma série de importantes acontecimentos que mereceriam uma análise pormenorizada e mais aprofundada. Pedimos perdão, assim, aos amantes das profundas e mais detalhadas descrições.

[1] Conforme já apontamos no artigo A Economia Política Marxista, publicado na segunda edição da Revista Nova Cultura: “as relações de produção que interligam os homens no processo produtivo. É impossível falar em produção sem falar, ao mesmo tempo, em relações de produção. [...] As relações de produção analisam as relações entre os homens sob três aspectos: 1) a forma de propriedade sobre os meios de produção, que é a relação determinante; 2) a divisão de classes que decorre da forma de propriedade sobre os meios de produção; 3) as formas de distribuição da produção, decorrentes igualmente da forma de propriedade sobre os meios de produção, estabelecendo o elo entre a produção e o consumo.” [2] O caráter semicolonial do Brasil se explica pela dominação do imperialismo norte-americano em todos os setores de sua economia. A dominação imperialista sobre a economia mantém o país como exportador de produtos agropecuários e matérias primas e importador de produtos manufaturados, esfera de investimento de capital excedente e campo de influência política e militar. De acordo com dados disponibilizados pelo economista nacionalista Adriano Benayon, em 1971 o capital estrangeiro já controlava, na economia brasileira: 40% do mercado de capitais; 62% do comércio externo; 28% dos serviços públicos; 82% da produção de transportes marítimos; 77% da produção de transporte aéreo externo; 26% dos seguros; 40% da produção da construção civil; 35% da produção de alimentos e bebidas; 93,7% da produção de fumo; 33% da produção de papel e celulose; 86% da produção farmacêutica; 48% da produção química; 17% da produção de aço; 59% da produção de máquinas; 62% da produção de autopeças; 100% da produção de veículos a motor; 20% da produção mineradora; 48% da produção de alumínio; 90% da produção de vidro. O caráter semicolonial do Brasil, por sua vez, condiciona seu caráter semifeudal – dado que o imperialismo se apoia, sobretudo, em todo o conjunto das sobrevivências de feudalismo e pré-capitalismo para impedir o desenvolvimento do capitalismo (retraindo sua industrialização)e oprimir todo o povo trabalhador da nação. Em uma palavra, o feudalismo e todas as modalidades de exploração pré-capitalista constituem a base social do imperialismo num país semicolonial. [3] I. Compreendemos o imperialismo como a etapa superior, final e mais desenvolvida do sistema capitalista mundial. O imperialismo é, ao mesmo tempo, uma fase particular do capitalismo, capitalismo moribundo e parasitário. Lênin enumera os traços que distinguem o imperialismo, o capitalismo de nossos dias, do capitalismo de livre concorrência: i. domínio dos monopólios sobre todos os setores da economia, ii. junção do capital bancário com o capital industrial, formando o capital financeiro e, com este, a oligarquia financeira, com igual domínio sobre todos os setores da economia, iii. predomínio da exportação de capitais (sob a forma de empréstimos, investimentos diretos, compras diretas de terras, empresas ou concessões no exterior, etc.) sobre a exportação de mercadorias, isto é, a exportação de capitais passa a ter um papel mais relevante que a exportação de mercadorias, iv. divisão fundamental do mundo entre um punhado de países capitalistas altamente desenvolvidos, de um lado, e países coloniais, semicoloniais e dependentes de outro, com os primeiros cumprindo o papel de detentores das indústrias produtoras de manufaturas acabadas, tecnologia e do capital financeiro, e os segundos como esfera de investimento de capital excedente, campo de influência política e militar, mercados para as manufaturas acabadas e fornecimento de matérias primas, produtos agrícolas e mão de obra baratos. II. Entendemos feudalismo como um sistema de produção onde a classe latifundiária, proprietária da terra como principal meio de produção sistema feudal, explora as massas trabalhadoras mediante a coação extra-econômica. Neste sistema, onde à terra cabe a posição de meio de produção principal, o latifundiário subdivide parte de suas terras em pequenos lotes dados em usufruto às massas trabalhadoras, as quais, em troca do usufruto da terra, dão ao latifundiário uma determinada quantidade de riqueza (uma renda) que pode ser paga em trabalhos gratuitos nas terras do latifundiário (aqui, a forma de exploração feudal denominada renda-trabalho, ou corvéia), em colheita (exploração feudal denominada renda-produto, ou censo frutuário), ou em dinheiro (exploração feudal denominada renda-dinheiro, ou censo tributário). Dentro do sistema feudal, portanto, duas classes básicas ficam nitidamente delineadas: latifundiários, proprietários de grandes extensões de terra, de um lado, e camponeses trabalhadores com nenhuma terra, ou pouca terra (estando por isso condicionados ao pagamento da renda agrária), de outro. No feudalismo, também existem outras classes e camadas sociais, como os artesãos, comerciantes e usurários, mas os latifundiários e camponeses sem terra ou com pouca terra permanecem como as classes sociais básicas deste sistema. III. Por capitalismo burocrático, compreendemos a forma particular como se manifesta o desenvolvimento capitalista nos países coloniais, semicoloniais e dependentes. Trata-se de um capitalismo subdesenvolvido, entravado pelas forças moribundas do feudalismo e do imperialismo estrangeiro.

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Em uma época de grandes acontecimentos em nosso país, com uma enorme ascensão de grandes lutas revolucionárias operárias e camponesas, compreendemos que não é possível avançar no sentido de se obter genuínas conquistas políticas sem uma correta análise (não unilateral, mas global, que abarque o desenvolvimento da situação revolucionária em desenvolvimento no seu conjunto) da situação brasileira. Escrevemos esse trabalho com profunda condolência às famílias dos dezenas de lavradores e indígenas que tiveram seu sangue derramado por pistoleiros a serviço dos latifundiários no mês de julho e agosto deste ano, marcado por massacres e perseguições ainda maiores nas zonas rurais de nosso país. Sabemos que os bravos camponeses e assalariados agrícolas brasileiros não receberam de maneira pacífica as chacinas promovidas pelos exércitos particulares do latifundiário, e as inúmeras mortes foram acompanhadas também de grandes lutas. Nos apenas dois meses de julho e agosto, mais de trinta mil camponeses se levantaram em somente duas grandes ações, na tomada das terras da madeireira Araupel, no oeste do Paraná, e na ocupação da fazenda Santa Mônica, em Goiás, de propriedade do coronel cearense Eunício Oliveira. O avanço da luta revolucionária das grandes massas camponesas mostra, assim, que o sangue derramado pelos companheiros assassinados não o foi em vão. Estes que tombaram na luta e verteram seu generoso sangue pela causa do povo, são para nós fonte de inesgotável inspiração e motivação para a luta popular e revolucionária. A motivação do trabalho presente é servir e auxiliar o povo trabalhador, principalmente o campesinato, em sua luta revolucionária. Longe de se tratar, portanto, de uma discussão meramente acadêmica e limitada a círculos de intelectuais progressistas e revolucionários - embora sejamos gratos se nosso esforço para escrever este trabalho for também de ajuda aos estudiosos da questão agrária e acadêmicos relacionados -, possui um enorme sentido de prático, de servir para mobilizar, politizar e organizar os milhões e milhões de camponeses e assalariados agrícolas em sua luta pela terra. Nossa maior vitória prática como fruto do esforço teórico (e igualmente prático, portanto) será a continuação das grandes lutas, das ocupações de terras e greves camponesas, levando ao golpe definitivo sobre as forças latifundiárias e à passagem de suas terras para propriedade das grandes massas camponesas. 1. A FORMAÇÃO NACIONAL PORTUGUESA E AS GRANDES NAVEGAÇÕES O nascimento do sistema latifundiário feudal-escravista está ligado à própria formação nacional brasileira, de modo que não se pode pensar em conhecer a realidade brasileira sem se conhecer, ao mesmo tempo, a história de cinco séculos do arcaico e parasitário sistema latifundiário. Em nosso país, o sistema latifundiário pré-capitalista não nasceu por intermédio de forças endógenas - ao contrário, foi aqui introduzido à força, em meados do século XVI, pelo colonialismo português motivado pelas necessidades da acumulação primitiva do capital[4]. A caracterização das relações de produção estabelecidas no seio do sistema latifundiário e, consequentemente, a própria caracterização do sistema aqui estabelecido por Portugal não pode ser nitidamente conhecida sem se conhecer os antecedentes da formação nacional portuguesa - esta será, para nós, o ponto de partida. A constituição de Portugal enquanto Estado-nação data das lutas seculares dos povos ibéricos cristãos contra a dominação árabe. Mesmo após serem derrotados na Batalha dos Poitiers no ano de 732, os árabes se mantiveram ainda dominando o sul da Península Ibérica durante muitos séculos. Henrique de Borgonha, nobre de origem francesa, recebeu parte das terras situadas a oeste da Península Ibérica do rei de Leão, como recompensa pela ajuda prestada na luta contra os árabes. Serão tais terras que virão a compor o Condado Portucalense e, mais tarde, o Reino de Portugal. Em 1140, Dom Afonso Henriques, filho de Henrique de Borgonha, proclamará a independência do Condado Portucalense em relação ao Reino de Leão, com a consequente formação do Reino de Portugal. [4] Acumulação primitiva do capital, conforme descrito por Marx, é o processo histórico necessário para a passagem do modo de produção pré-capitalista para o capitalista, processo este onde ocorre simultaneamente a separação do trabalhador dos meios de trabalho, mediante a expropriação dos pequenos produtores (camponeses e artesãos) por meio da diferenciação de classes no campo e da violência, e a acumulação de uma enorme quantidade de riquezas mediante o saque colonial (e dos pequenos produtores, igualmente) para a criação das grandes empresas capitalistas.


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Observa-se, aqui, as particularidades da formação nacional portuguesa, em comparação com outros países da Europa: O antigo fracionamento feudal, onde cada senhor de terra era todo-poderoso dentro de seus gigantescos latifúndios, não esteve presente em Portugal, tendo este país já nascido sob o signo da monarquia nacional[5]. A precocidade da ascendência da monarquia lusa possibilitou ao país evitar o fracionamento dos latifúndios que entravava o desenvolvimento da economia mercantil, centralizar a cobrança de impostos dos latifundiários para a criação de poderosas forças armadas (dado que Portugal já nasceu sob o signo de um país guerreiro) e financiar grandes empreendimentos comerciais. A própria Revolução de Avis (1383-1385), fruto de uma luta entre representantes do capital comercial e a nobreza latifundiária, resultou numa vitória dos primeiros contra os segundos, colocando os comerciantes e usurários com uma maior participação nos interesses da Corte portuguesa, embora que ainda de maneira subalterna em relação aos latifundiários. A crescente demanda por metais preciosos na Europa em pleno período da acumulação primitiva era entravada por uma situação onde, cada vez mais, o comércio canalizava o ouro e a prata para a importação de produtos da indústria artesanal indiana. Além disso, o monopólio dos italianos sobre a navegação no Oceano Mediterrâneo encarecia as mercadorias europeias exportadas para a Índia, tornando-as menos competitivas no mercado oriental. Tais fatores vieram a se juntar para condicionar, efetivamente, as expansões marítimas objetivando a busca por metais preciosos e o desenvolvimento do capital comercial. Observa-se que tais problemas não são puramente portugueses, mas europeus como um todo. O fato de haver sido Portugal o primeiro país a se engajar na empresa das Grandes Navegações, enquanto que o restante dos países da Europa somente após muitas décadas o fez, explica-se pelos motivos já citados: a existência, desde o início de sua constituição enquanto país, de um Estado forte e centralizado, refratário ao clássico divisionismo feudal e capaz de impor a centralização tributária; e a Revolução de Avis, que acabou por aproximar o capital comercial da monarquia lusa, alocou considerável parte dos recursos mercantis acumulados na criação de estrutura necessária à expansão marítima (construção de escolas de navegação, inovações técnicas, criação de uma intelectualidade que se aprofundasse no estudo dos mares)[6]. O restante da Europa, ao contrário, encontrava-se ainda mergulhado nas guerras inter-feudais, dos quais ainda poucos países haviam conseguido estabelecer o sistema da monarquia nacional. Sua própria localização geográfica, sendo Portugal um país tipicamente marítimo, foi também um fator que facilitou seu ingresso pioneiro nas Grandes Navegações. As Grandes Navegações, foram, assim, um empreendimento comercial, mercantil. Tratava-se sobretudo, para a frota de Pedro Álvares Cabral, buscar uma nova rota marítima para se chegar à Índia, e se estabelecer contatos de importação e exportação onde se pudesse exportar muito e importar pouco, importar de preferência especiarias para o consumo parasitário da nobreza portuguesa, e buscar metais preciosos. Tais fatores explicam o desinteresse inicial de Portugal pelo Brasil recém descoberto em relação ao comércio com a Índia ou outros países do Oriente. A frota de Cabral, que em nosso [5] Diante de uma situação econômica marcada pela crise do sistema feudal na Europa e gradual crescimento da economia mercantil (os latifundiários, que anteriormente extorquiam a renda agrária dos camponeses em forma de trabalhos gratuitos ou colheita, passam a cobrá-la em forma de dinheiro - somente conseguindo vender suas colheitas no mercado, o campesinato conseguia dinheiro suficiente para pagar aos grandes fazendeiros, sobrando para aquele muito pouco ou mesmo nada), a divisão em feudos de economia natural e autárquica entravavam o desenvolvimento desta. Os latifundiários cobravam enormes impostos pela passagem de mercadorias por suas terras; a permissão para que cada latifúndio possuísse sua própria moeda (ao invés de uma moeda unificada a nível nacional) dificultava a equiparação de uma moeda com a outra e, portanto, a própria circulação mercantil. A crise econômica se refletia numa crise política, onde aumentavam exponencialmente as revoltas dos camponeses espoliados pela exploração feudal, pelas fomes, pelas secas, doenças, etc. O estabelecimento das monarquias nacionais atendeu a interesses, simultaneamente, feudais e mercantis: Os latifundiários abriram mão de sua autonomia sobre a terra, e passaram a pagar impostos ao rei (o maior latifundiário). A centralização da cobrança de impostos pelo monarca permitiu a criação de forças armadas necessárias para combater as revoltas camponesas. Ao mesmo tempo, a unificação da moeda e o fim da cobrança de impostos para a passagem de mercadorias pelos grandes latifúndios atendeu aos interesses de comerciantes e usurários, que puderam comprar, vender e emprestar sem os obstáculos dos entraves feudais. [6] Há aqui uma pequena confusão. O historiador Nelson Werneck Sodré estima que o transporte do açúcar brasileiro para a Europa, bem como sua distribuição no mercado europeu, foi feita quase que exclusivamente por navios holandeses e comerciantes holandeses, o que denunciaria a pobre infraestrutura de Portugal, incapaz de empreender por si mesma a empresa das Grandes Navegações. Esse aspecto da colonização brasileira, controverso e obscuro, não é contudo um empecilho para compreendermos as questões essenciais relacionadas ao período em questão.

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território atracou em abril de 1500[7], encontrou aqui não uma produção mercantil desenvolvida e estabelecida, que pudesse vender o que para Portugal fosse interessante comprar, ou comprar de Portugal o que para a população nativa fosse interessante possuir. Ao contrário, a população nativa do território recém-descoberto (que ainda não se entendia como “Brasil” no sentido nacional do termo, isto é, enquanto nação brasileira) era constituída por povos indígenas que se encontravam ainda no sistema de produção da comunidade primitiva. Tratava-se de povos que viviam do extrativismo vegetal e de uma agricultura rudimentar, que cultivava principalmente as culturas do milho e da mandioca. Evidências históricas dão conta de confirmar que até mesmo o arado puxado a tração animal não era utilizado pelos povos nativos na agricultura - estes não conheciam o cavalo e o boi, sendo introduzidos somente muito mais tarde pelos colonialistas portugueses. Para os indígenas, a terra e os produtos que esta os provia, a própria natureza, os minérios nas entranhas da terra, etc. eram produto de subsistência própria. Não podiam ser, sob a visão dos indígenas, objeto de troca numa situação em que estes mesmos não haviam alcançado um sistema de produção que conhecia as trocas (isto é, a economia mercantil) por lhes faltar a condição histórica necessária para tal[8]. Sendo assim, no território recém descoberto, incapaz de atender às necessidades mercantis das Grandes Navegações, as ações dos portugueses para com o gentio e o território se limitou a um incipiente escambo (trocas amonetárias, isto é, sem a presença de dinheiro como intermediário das trocas, sendo feito portanto de forma direta) de produtos metropolitanos pela madeira nativa do pau Brasil, utilizado em Portugal como matéria prima para a produção de tintas, e ao estabelecimento de poucas frotas de navios para fazer vistorias em torno do litoral como forma de manter o controle sobre as terras recém desbravadas. Até por volta da década de 30 do século XVI, as relações entre nativos e portugueses somente a isso resumir-se-ia, com as atenções voltadas de maneira absolutamente predominante para o mercado oriental. Somente após acontecimentos de relevo datados desta época, Portugal mudaria de atitude para com o território brasileiro recém descoberto. Os ataques árabes contra navios portugueses no Oceano Índico, cada vez mais frequentes, tornavam a manutenção do monopólio comercial com a Índia extremamente cara. O próprio gradual restabelecimento de inúmeros zonas produtoras na Europa após décadas (ou até mesmo séculos) de guerras inter-feudais tornavam os produtos indianos não mais tão atrativos dentro do mercado europeu. Além disso, novos ataques feitos por navios estrangeiros (principalmente franceses) contra o território brasileiro, com o intuito de se buscar metais preciosos, ameaçavam o domínio português sobre aquele. Deve-se ressaltar, também, que Portugal nunca deixou de ter esperanças em encontrar ouro e prata no território descoberto. Para o capital comercial português, tratava-se agora de buscar uma alternativa ao decadente comércio com a Índia e de assegurar o seu controle sobre o território brasileiro frentes aos ataques e invasões estrangeiras. Aparecia então, agora, o problema da colonização (como alternativa ao comércio indiano), que até o momento não se colocava numa empresa comercial como a das Grandes Navegações. 2. A MONTAGEM DA COLONIZAÇÃO E O NASCIMENTO DA SOCIEDADE FEUDAL E ESCRAVISTA Como já foi dito anteriormente, as Grandes Navegações caracterizaram-se por ser uma empresa exclusivamente comercial, operando tão somente na esfera da circulação das mercadorias, nas trocas. Não fora montada para produzir, menos ainda para produzir a ultramar. Diante dos fatos concretos que colocavam para as Grandes Navegações, agora, a tarefa de se produzir no território brasileiro como alternativa de lucros para o capital comercial, os seguintes reveses se apresentavam: - O local de produção (na América do Sul) se encontrava enormemente distante dos mercados consumidores; - O sistema de produção feudal em Portugal impossibilitava o estabelecimento do sistema capitalista [7] Mantêm-se ainda, na historiografia sobre a questão, grandes controvérsias acerca da intencionalidade ou não da descoberta do território que atualmente constitui o Brasil por Portugal. Evidências deixadas pelos antepassados lusitanos, porém, parecem por de lado o mito sobre um suposto “espírito de aventura” das Grandes Navegações - tratou-se, ao contrário, de um negócio de cálculo frio e cuidadosa aplicação. [8] A etapa da Barbárie, conforme descrita por Morgan, foi aquela necessária para a transição da comunidade primitiva para a sociedade baseada na escravidão. Friedrich Engels aprofunda a compreensão sobre esta questão em seu A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado.


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em uma colônia sua, portanto, se excluía o uso de trabalhadores assalariados na produção colonial; - A escravização dos povos nativos tornaria não muito lucrativa a produção, dado que estes eram dispersos, pouco numerosos, e se encontravam num sistema de produção que desconhecia o trabalho no sentido econômico do termo. Os reveses apresentados na questão da montagem da colonização eram, contudo, parcialmente contrabalanceados pela enorme extensão de terras virgens e altamente férteis disponíveis (atraindo a atenção dos latifundiários feudais portugueses). A solução para a mão de obra foi encontrada na importação de escravos africanos: seu emprego na produção abriria também um amplo e lucrativo mercado para o capital comercial português, que desde há muito já se ocupava com a comercialização de escravos da África. Quanto ao gênero da colonização, o açúcar apareceu como a solução ideal. Como especiaria que era ainda no período do século XVI, seu reduzido peso e alto valor unitário resolveria o problema da distância e dos caros fretes da época (além de resolver o problema dos transportes colônia-metrópole). O clima tropical do território brasileiro, a alta fertilidade do solo e grande disponibilidade de terras livres propiciavam o cultivo da cana de açúcar. A produção de açúcar a ultramar, bem como seu comércio, já faziam parte da experiência portuguesa desde primórdios do século XV, o que evitaria a Portugal cometer erros que pudessem comprometer o novo empreendimento açucareiro. Apresentava-se, para a Coroa Portuguesa, o problema de se mobilizar o contingente humano e material necessário para se dar conta de colonizar um imenso território. Como já se viu, as desvantagens que apareciam no empreendimento colonial somavam-se às vantagens das terras vastas e férteis para serem apropriadas. Para ocupar, povoar e produzir no território brasileiro, seriam necessários mais incentivos além das poucas vantagens já existentes. Como parte dos incentivos, se instituiu no Brasil, no ano de 1530, o regime das Capitanias Hereditárias, que dividiram o território em 15 imensos feudos[9], cuja extensão cobria da costa litorânea até o Meridiano de Tordesilhas. No principal documento da instituição das Capitanias Hereditárias, a Carta de Doação, onde apareciam diversos pontos em relação aos direitos e deveres dos donatários[10],verifica-se basicamente o seguinte: doação da Capitania (60 léguas de Costa); doação de uma propriedade (10 léguas de costa); regula a transmissão da Capitania; concede o privilégio de montar engenho; proíbe a alienação da Capitania; proíbe que o donatário tome mais terra; transfere ao donatário poderes judiciários; transfere ao donatário poderes políticos (dá ao donatário a obrigação de fundar vilas); transfere ao donatário poderes civis (dá ao donatário a obrigação de fundar cartórios); transfere poderes administrativos. Verifica-se, a partir da observação de tais características, os evidentes traços feudais da Carta de Doação, que dá ao donatário o papel de figura central na Capitania Hereditária. É, na verdade, um rei dentro da Capitania Hereditária, concentrando em suas mãos todos os poderes possíveis, e transmitindo estes de maneira hereditária. Uma legislação escrita por mãos portuguesas não poderia ser de outra maneira, dado que Portugal era ainda um país feudal. Outro documento escrito alguns meses depois da Carta de Doação, o Foral, estabelece de maneira mais exata o que, na Capitania, pertence à Coroa e ao donatário. No Foral, assim figuram os pontos principais: o donatário possui o direito de conceder sesmarias, e é proibido de tomar as sesmarias; um quinto dos metais e pedras preciosas encontrados pertencem à Coroa portuguesa, enquanto o donatário possui direito a um décimo do quinto concedido à Coroa; o pau Brasil e as especiarias são de propriedade da Coroa; um décimo do pescado pertence à Ordem de Cristo; proíbe o comércio de estrangeiros com os povos nativos. Fica evidente, por meio da análise da Carta de Doação e do Foral, que a Coroa doa as terras a quem puder cultivá-las. Já dizia um velho ditado popular português do século XVI que [9] Capitania do Pará; Capitania do Maranhão; Capitania do Ceará; Capitania do Rio Grande; Capitania do Itamaracá; Capitania de Pernambuco; Capitania da Bahia de Todos os Santos; Capitania de Ilhéus; Capitania de Porto Seguro; Capitania do Espírito Santo; Capitania de São Tomé; Capitania do Rio de Janeiro; Capitania de Santo Amaro; Capitania de São Vicente; Capitania de Santana. [10] Donatários eram, na prática, os “reis” das Capitanias Hereditárias. Eram os indivíduos escolhidos pela Coroa para as administrarem e as terem como suas, em troca de determinadas obrigações como com esta.

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pessoa alguma atravessaria o oceano para se tornar um mero camponês - esta poderia sê-lo, sob condições muito melhores, em seu local de origem. Os que se deslocam de Portugal para o Brasil se deslocam não para plantarem para sua subsistência, mas para enriquecer. “Capacidade para cultivar as terras”, portanto, significa sobretudo capacidade para comprar escravos e instalar engenhos de cana de açúcar - será esse o elemento diferenciador (diferenciador, pois, dessa maneira, excluirá dos camponeses e artesãos, as camadas populares portuguesas da época, a possibilidade de virem a ser colonizadores), que permitirá a nós concluir de maneira mais precisa qual foi o antecedente de classe dos colonizadores e, assim, caracterizar nitidamente as classes dominantes coloniais. Pode-se chegar facilmente à conclusão de que os elementos colonizadores do território brasileiro foram, sobretudo, os grandes latifundiários e magnatas do capital comercial em Portugal, com a predominância dos primeiros. A principal demanda dos grandes latifundiários endividados e arruinados em Portugal era estabelecer numa colônia portuguesa os períodos áureos do feudalismo, com domínios (grandes extensões de terra) intermináveis e com seus servos da gleba à postos para produzirem tudo o que lhes pudesse garantir riqueza e poder. Contudo, num território com a presença predominante de povos que desconheciam o trabalho no sentido econômico do termo (trabalho que gera valores), com a inexistência de servos da gleba que pudessem produzir com os próprios instrumentos e a necessidade de se garantir os lucros do capital comercial, os latifundiários portugueses, de senhores feudais que eram, tiveram de regredir a um etapa histórica milenarmente atrasada já no século XVI, e se tornarem não apenas latifundiários feudais, mas também proprietários de escravos. E, do ponto de vista da comercialização, os colonialistas portugueses, de uma sociedade com economia mercantil altamente desenvolvida da qual saíram, impõem sobre uma colônia a manutenção de uma economia inteiramente natural (isto é, sem a presença de mercado interno), com a produção mercantil presente tão somente nas grandes lavouras canavieiras voltadas para a exportação do açúcar. Portanto, comparando a situação estrutura social e econômica de Portugal com a que se apresenta no Brasil, observamos que a estrutura lusa caracteriza-se pelas seguintes classes e camadas sociais e características: i) grandes latifundiários proprietários de grandes extensões de terra (nobreza), nobres de títulos, e o clero; ii) comerciantes e usurários; iii) pescadores e demais elementos ligados à navegação; iv) elementos da burocracia portuguesa; v) artesãos; vi) camponeses sem terra (rendeiros das terras dos grandes latifundiários); vii) escravos[11]; viii) economia mercantil altamente desenvolvida, com poderosos comerciantes e usurários enriquecidos nas operações de compra-venda e de empréstimos; ix) grande propriedade feudal na agricultura. No Brasil, a estrutura social e econômica apresenta as seguintes classes sociais e camadas sociais e características: i) senhores de engenhos (sesmeiros), proprietários de escravos e de grandes extensões de terra doadas pela Coroa Portuguesa; ii) lavradores independentes fornecedores de cana de açúcar para os senhores de engenho[12]; iii) elementos da burocracia portuguesa local (funcionários públicos, capatazes, juristas, militares, etc.); iv) escravos africanos, trabalhadores dos engenhos de cana de açúcar[13]; v) povos nativos indígenas; vi) predominância da economia natural (inexistência de um mercado interno); vii) produção mercantil presente [11] A retomada das terras do sul que antes estavam ocupadas pelos árabes resultou na escravização dos elementos que as ocupavam, com a consequente formação de uma área no sul de Portugal cuja produção estava assentada no trabalho escravo. [12] Apesar de a diferenciação imposta pela Carta de Doação, no que diz respeito às origens de classe dos colonizadores, a historiografia nos mostra a presença de elementos não tão abastados que se aventuraram na tentativa de enriquecerem nas terras do Novo Mundo. A maior parte destes elementos faliu, enquanto outros se tornaram lavradores que forneciam cana para os senhores de engenho, que as transformavam em açúcar e exportavam. Contudo, essa camada média de lavradores pouquíssimo tempo pôde sobreviver (daí ter sido pouco estudada e haverem poucos registros sobre) e acabou logo sendo engolida pela marcha avassaladora do latifúndio canavieiro, ávido por cada vez mais terras. Os médios lavradores, ao falirem, acabavam retornando para seu local de origem ou se tornando escravos. [13] Parte dos engenhos possuíam pequenos traços de terras onde os escravos viviam e plantavam suas lavouras de subsistência. Dessa maneira, o regime de trabalho escravo na lavoura canavieira se misturava com o regime feudal da corveia. Nos casos referidos, ao mesmo tempo em que eram propriedade do senhor de engenho os cortadores de cana, na medida em que plantavam lavouras de subsistência, possuíam certa possibilidade de pertencer a si mesmos. Eram escravos por serem propriedade privada, e camponeses servos enquanto plantavam para seu próprio sustento.


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somente nas lavouras canavieiras voltadas para a exportação; viii) monopólio comercial e colonial sobre a produção mercantil agroexportadora nas lavouras canavieiras, drenando para a metrópole portuguesa a riqueza aqui produzida; ix) grande propriedade feudal-escravista e colonial na agricultura. Podemos identificar, assim, os dois seguintes traços que manifestam o retrocesso imposto na economia colonial brasileira em comparação com a estrutura sócio-econômica lusitana: latifundiários feudais retrocedem para o nível de senhores de escravos; de amplo e desenvolvido mercado interno em Portugal, se passa para um ambiente de economia natural predominante, ao lado de uma economia mercantil agroexportadora, submetida aos entraves do monopólio comercial e colonial português. 3. EXPANSÃO COLONIAL E FEUDAL PARA O INTERIOR O desenvolvimento até então realizado por Portugal transformou a velha sociedade comunal indígena[14] numa sociedade colonial e feudal-escravista, sendo o engenho da cana de açúcar a célula da sociedade colonial. Até por volta de fins do século XVI, a colonização portuguesa concentrar-se-ia tão somente, mais ou menos, nas regiões litorâneas do nordeste brasileiro - concentração essa que se explica pela maior proximidade do nordeste brasileiro com os mercados europeus em comparação com outras regiões do país. Num período de enorme deficiência técnica em matéria de transporte, os rios que abundavam no litoral do nordeste brasileiro seriam também de grande ajuda para o transporte da cana de açúcar entre os engenhos, bem como demais meios de produção. Tais fatores explicam ter sido no nordeste a região em que se concentraram os principais esforços para a edificação dos engenhos e das lavouras latifundiárias, onde se construíram os primeiros portos e infraestrutura necessários para a exportação do açúcar (e, mais tarde, de outros produtos). Logicamente, isso tornou o litoral do nordeste, durante muitos anos, a região brasileira mais dinâmica economicamente, enquanto o restante do território fora do litoral nordestino se constituía como uma região de enorme atraso em relação ao litoral, com predominância da economia natural e da comunidade primitiva. O desenrolar de importantes acontecimentos na arena internacional, como a submissão de Portugal à Espanha na União Ibérica, a continuidade dos ataques e invasões estrangeiras (principalmente por parte da Holanda) contra o território colonial, a assinatura do Tratado de Methuen, bem como a crescente complexidade da vida social, com o desenvolvimento das forças produtivas coloniais, levaria à expansão da colonização para o interior, deixando aquela de se restringir quase que inteiramente ao litoral nordestino com as lavouras canavieiras agroexportadoras. Vastas zonas do país, antes pouco povoadas e relegadas ao esquecimento por parte de Portugal, passarão a ser povoadas e ocupadas. A expansão para o interior, que acontece principalmente durante os séculos XVII, XVIII e, de certo modo, XIX, transformará a velha economia natural ou quase natural em economia mercantil simples, ainda que de maneira vagarosa e rudimentar, dissolverá ainda mais as sobrevivências da comunidade primitiva e estabelecerá em larga escala o feudalismo no interior do país. Embora sejam estes os traços fundamentais da expansão colonial e feudal para as zonas interioranas brasileiras, a mesma expansão possui determinadas particularidades conforme as diferentes regiões do país onde se deu. Vamos investigá-la, portanto, ponto por ponto: 3.1. EXPANSÃO MINERADORA AURÍFERA E DIAMANTINA Muito embora a mineração seja uma atividade cujo início pertence, em nosso país, ao século XVIII, datam já do século XVII as primeiras jazidas de ouro descobertas. Esse fato parece estabelecer as particularidades da mineração nas regiões de colonização espanhola em relação às regiões de colonização portuguesa. Enquanto naquelas a mineração era uma atividade praticada pelas populações nativas muito antes da colonização, com fins ornamentais (sem a [14] Os massacres feitos pelos portugueses para grilar as terras dos povos nativos e estabelecer nelas o mono cultivo da cana de açúcar estimulou a fuga em massa dos indígenas remanescentes para o interior. Nas terras para onde fugiam, re estabeleciam o sistema comunal primitivo que lhes havia sido usurpado. Assim, no conjunto da economia pré-capitalista do Brasil colonial, as relações de produção escravistas e feudais coexistiam com sobrevivências mais ou menos grandes da velha comunidade primitiva pré-colonial.

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produção de valores de troca), onde a mineração após o início da ocupação espanhola se configurou também como a principal forma de exploração econômica colonial, nestas a mineração não era conhecida nem pela população nativa, nem pelos colonos. Veio aparecer somente mais tarde por fatores internos e externos. A partir de meados do século XVII, a produção do açúcar deixa de ser monopólio de Portugal em suas colônias. Muitas áreas açucareiras inglesas, francesas e holandesas aparecerem em todas as partes do globo - portanto, a concorrência aparece de maneira desfavorável para Portugal. Além disso, o fato de a produção açucareira de seus concorrentes ser muito mais bem equipada tecnicamente em relação à portuguesa, permitindo àqueles alcançar maior produtividade e diversificar sua produção (produzindo não somente açúcar mas, também, cachaça e outras bebidas alcóolicas), tornar-se-á um agravante para a concorrência já muito desfavorável. A consequência acaba sendo uma grande decadência econômica para o Reino de Portugal (que dependia grandemente da produção açucareira em suas colônias), e, portanto, para suas colônias. Outro fator de aprofundamento da bancarrota econômica portuguesa foi a assinatura do Tratado de Methuen, em 1703. O Tratado, na verdade, um acordo de livre comércio entre Portugal e Inglaterra, estabelecia para o primeiro a derrubada de todas as tarifas protecionistas para a importação de panos ingleses, e, para a segunda, a derrubada de todas as tarifas protecionistas para a importação de vinhos portugueses. O que, aparentemente, nada mais era do que um corriqueiro tratado comercial, mostrou ser na verdade um enorme desastre para a economia portuguesa. A derrubada de tarifas protecionistas para os panos ingleses (produzidos sob nível técnico muito mais elevado em pleno contexto da Revolução Industrial) varreu por completo as incipientes manufaturas têxteis portuguesas, entravou seu desenvolvimento e impediu a proletarização das massas trabalhadoras do país. Além disso, o incentivo para a importação de vinho português por parte dos ingleses obrigou os camponeses a transformarem suas lavouras de alimentos em viniculturas para a exportação de vinhos para a Inglaterra. Os camponeses verse-iam agora num país desindustrializado, forçados a importar da Inglaterra não somente os alimentos que antes produziam, como também as roupas que vestiam. As enormes discrepâncias na diferença entre a exportação de vinho, produto de baixo valor agregado, e a importação de panos, produtos de alto valor agregado para a época, fizeram com que Portugal apresentasse deficits comerciais cada vez maiores com a Inglaterra. Os deficits apareciam também na balança de pagamentos e faziam com que Portugal se endividasse cada vez mais com banqueiros ingleses para que tais déficits pudessem ser cobertos. O final do ciclo vicioso foi a transformação de Portugal, na prática, numa semicolônia inglesa, sob protetorado e ocupação ingleses, com uma estrutura econômica pobre e atrasada. A expansão aurífera foi motivada por tais fatores de ordem externa que se refletiam internamente na vida econômica do Brasil colonial. O retrocesso das atividades açucareiras fez com que parte considerável dos senhores de engenho utilizassem escravos seus para imigrarem para as regiões de jazidas auríferas e extraírem ouro, buscando alternativas para os lucros perdidos com a decadência da agroexportação[15]. Contudo, sendo a mineração uma empresa que não exige grandes investimentos tecnológicos, nem pessoal especializado, esta possibilita que qualquer um possa ser um minerador. Levas inteiras de despossuídos pela crise econômica portuguesa vão para o Brasil almejando encontrar ouro e enriquecer, a ponto de Portugal, em 1720, ter sido obrigado a banir a viagem de portugueses para a colônia, temendo uma substancial redução de sua população. Até o auge da produção mineradora, o único rigor fiscal estabelecido por Portugal sobre esta atividade foi o Regimento das Minas, de 1603, que permitia a livre extração do ouro, desde que à Coroa coubesse um quinto dos metais extraídos. À falta de rigor fiscal correspondia uma situação em que a mineração não era ainda uma atividade relevante para a metrópole. [15] É ainda objeto de debates entre os historiadores acerca do assunto sobre em que medida, de fato, a decadência da produção açucareira contribuiu para que maiores atenções fossem destinadas para a empresa mineradora. Embora não existam censos e estatísticas produzidas na época, o economista Roberto Simonsen (no auge da polêmica sobre o período da mineração), por meio de cálculos (embora não se saiba se os dados são verídicos, de fato), concluiu que o valor gerado pelas exportações de açúcar, mesmo no período conhecido como “ciclo do ouro”, superava o valor gerado pelas exportações de ouro. Contudo, apesar das incertezas que ainda existem sobre o peso que cumpriu a decadência da produção açucareira na ascensão da mineração, parece ser consenso que a agroexportação estava em declínio e que tal declínio de fato influenciou o surgimento da mineração.


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Não correspondia à situação atual onde, experimentando enormes deficits comerciais e na balança de pagamentos, bem como crescentes endividamentos externos (principalmente com a Inglaterra), Portugal recorreria a todo tipo de arrochos fiscais para oprimir ao máximo suas colônias, saqueando destas o maior número de riquezas possíveis para pagar suas dívidas e superar sua crise econômica. Com relação ao Brasil, Portugal buscaria fazer isso aumentando sua parcela a ser recebida no conjunto das atividades mineradoras: estabeleceu, no início do século XVIII, a Intendência das Minas. A livre extração continuava sendo permitida por Portugal, porém, estabelecia que qualquer jazida que fosse descoberta deveria ser comunicada à Intendência. A Intendência, após verificar a extensão da jazida, dividiria esta em lotes, onde aquele que houvesse descoberto a jazida teria direito a uma destas, e as restantes seriam doadas para os mineradores. Além do imposto do quinto, já cobrado por Portugal anteriormente à Intendência, estabeleceu-se também a capitação, imposto cujo pagamento era proporcional ao número de escravos que cada minerador possuía. No ano de 1729, foram descobertos diamantes no povoado Arraial do Tijuco. O peso reduzido e altíssimo valor unitário causaram tanto furor entre a população mineradora local, como uma série de novas medidas fiscalizadoras por parte da Coroa Portuguesa. Ao contrário das jazidas de ouro, cuja enorme extensão dificultava de sobremaneira a fiscalização portuguesa sobre as atividades auríferas, o diamante era encontrado em localidade limitada, num povoado somente. Permitir a livre extração do diamante causaria grandes perdas financeiras para Portugal, levando em conta o altíssimo valor unitário do diamante. Assim, se estabelece o estanco régio, isto é, o monopólio da Coroa portuguesa sobre a extração dos diamantes. O povoado Arraial do Tijuco foi cercado e nele se estabeleceu o Distrito Diamantino. O direito de exploração foi concedido a particulares: Além de estes pagarem elevadores valores iniciais pela concessão, bem como elevadas taxas de capitação, 50% do diamante extraído cabia à Coroa. Os impostos cobrados por Portugal, bem como a dificuldade de se fiscalizar regiões enormes e que muitas vezes sequer estavam sob conhecimento da Coroa retiravam o incentivo de se utilizar um grande número de escravos na empresa mineradora. A própria forma de ouro que era extraída, ouro em pó, poderia ser facilmente contrabandeado, e burlar a fiscalização portuguesa não era tarefa das mais difíceis. Portanto, a empresa mineradora foi realizada, em sua esmagadora maior parte, por mineradores independentes e pequenos senhores de escravos - relatos da época observam que os escravos eram ínfima minoria entre os que trabalhavam na mineração. Os rigores fiscais portugueses, como a criação da Intendência das Minas, somente com muitas dificuldades pôde surtir efeito. A expansão aurífera, assim, mostrou ser um dos primeiros abalos na ordem escravocrata, com o aparecimento pela primeira vez do trabalho livre, diferente tanto da escravidão quanto do feudalismo. A contradição entre os mineradores independentes e pequenos senhores de escravos contra o arrocho fiscal português se traduziu em levantes pontuais (pode-se citar a luta contra o estabelecimento das Casas de Fundição por Portugal, que dificultavam o contrabando e o roubo do ouro), como a Rebelião Mineira de Vila Rica, que continham já, ainda que de maneira extremamente embrionária e rudimentar, o início de uma futura consciência nacional contra o colonialismo. Apesar da crescente opressão de Portugal para drenar para o exterior as riquezas geradas com a mineração aurífera e diamantina, parte considerável destas riquezas aqui permaneceram, por meio do roubo e do contrabando. A acumulação interna de ouro por parte de tais elementos permitiu um desenvolvimento relativamente maior das trocas, expandindo, portanto, o mercado interno no Brasil colonial. A colônia Brasil, que anteriormente à mineração era quase que tão somente uma colônia produtora (não importava mercadorias, pois não possuía mercado para que produtos estrangeiros pudessem ser adquiridos), passou a ser uma colônia produtora e importadora, acusando portanto a existência de determinados agentes internos que pudessem vir a possuir interesses próprios, diversos dos interesses metropolitanos portugueses. As atividades mineradoras, ainda que não tenham deixado de existir, entrariam em declínio a partir da década de 70 do século XVIII, por conta do esgotamento das jazidas auríferas e entre outros fatores. Resumindo, a mineração causou as seguintes transformações: criou, pela primeira vez

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na história do Brasil, o trabalho livre, diferente das típicas relações feudais e escravocratas; expandiu grandemente o mercado interno, numa situação em que anteriormente este era inexistente; fez aflorar contradições parciais entre os mineradores e pequenos senhores de escravos contra o colonialismo português. 3.2. A CONQUISTA DO NORTE E A ABERTURA DAS FRONTEIRAS ECONÔMICAS AMAZÔNICAS: DROGAS DO SERTÃO E ESCRAVIDÃO ALGODOEIRA As motivações para a conquista do norte foram, inicialmente, de caráter militar. Desde o ano de 1580, Portugal foi anexada pela Espanha, permanecendo sob o domínio da União Ibérica. A Holanda, que durante muitos anos permaneceu também sob domínio espanhol, concluiu em 1581 sua Guerra de Independência e proclamou a República das Províncias Unidas, com capital em Amsterdã. Portugal, que há pouco possuía interesses amistosos e acomodados para com o capital comercial português, passa a ser vítima dos ataques e invasões holandeses por ser, na prática, um anexo da Espanha, com quem os holandeses há muito estavam em guerra por sua independência. Os ataques e invasões atingiram primeiramente as colônias portuguesas, entre elas o Brasil. Durante muito tempo, os holandeses ocuparam parte considerável do nordeste brasileiro, e, até meados do século XVII, holandeses, e também ingleses e franceses, ocuparam as capitanias situadas ao norte do Rio Grande do Norte, e lá estabeleceram suas feitorias. Não apenas a necessidade de se guerrear contra os estrangeiros para expulsá-los do Brasil, mas também os relatos dos espanhóis que se aventuraram pela Amazônia e falaram na existência de ouro pela região, foram os imperativos que estimularam os portugueses a conquistarem efetivamente a região norte do país. Já no início do século XVII, Portugal travou grandes guerras na região norte para expulsar os invasores estrangeiros. As incursões feitas pelos portugueses no caminho para invadir áreas ocupadas por estrangeiros eram marcadas por frequentes extermínios contra as populações nativas, não apenas pela força das baionetas como também das doenças, contra as quais os povos nativos não possuíam qualquer imunidade. A consolidação das vitórias portuguesas contra os invasores se traduziram na fundação da cidade de Santa Maria de Belém (atual capital do Pará), em 1616. Após as vitórias, tratava-se para Portugal de desenvolver atividades econômicas numa região pobre, esquecida pela colonização. No estabelecimento de atividades econômicas, os seguintes problemas deveriam ser levados em conta: o sistema de transportes era de tal atraso e deficiência que transportar a produção da região para o exterior era mais fácil do que transportá-la para outros locais do país; as humilhantes derrotas militares sofridas pelos portugueses no Ceilão (atual Sri Lanka), Malásia e outros pontos do Oriente haviam lhes privado quase que totalmente de fontes de especiarias - após a expulsão dos estrangeiros do norte brasileiro, os portugueses se encontram agora na região mais rica do mundo em especiarias; os portugueses encontram, no norte, uma população nativa com profundo conhecimento do território onde se encontravam as riquezas extrativistas. Como solução ideal para a situação que se apresentava, as atividades econômicas inicialmente estabelecidas, no Pará e no Maranhão, foram as buscas pelas drogas do sertão, isto é, o extrativismo vegetal que utilizava a mão de obra nativa indígena. Para educar os povos nativos na dura disciplina da exploração feudal, segundo as tradições católicas portuguesas, se enviaram missões religiosas jesuítas para os povoados onde residiam os nativos. A empresa da busca das drogas do sertão, desde o início, se mostrou um grande sucesso. Os indígenas permaneciam dias na mata, e voltavam com suas canoas cheias das especiarias buscadas. Extraía-se da mata baunilha, cacau, canela, pimenta, puxuri, e uma infinidade de especiarias que eram outrora fornecidas pelo Oriente. Não apenas isso, como muitas das especiarias fornecidas pela Amazônia não haviam sido jamais encontradas na Malásia ou Ceilão. As especiarias colhidas eram exportadas para Lisboa em sua maior parte e, minoritariamente, vendidas em pequenos comércios em Belém. As rendas adquiridas através da venda das especiarias eram utilizadas na construção de Igrejas localizadas nas missões, bem como no financiamento da abertura de novas missões nas aldeias indígenas.


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O extrativismo vegetal se manteve à base da exploração feudal sobre o trabalho do indígena. Da coleta efetuada nas matas virgens, permitia-se ao indígena pegar uma pequena parte desta para a subsistência sua e de sua família. Além desta pequena parte da coleta, o indígena recebia uma remuneração em espécie, em determinada quantidade de algodão, da qual parte considerável deveria ser doada para a manutenção da igreja. A situação sócio-econômica amazônica, marcada pelo feudalismo extrativista, assim permaneceria durante mais de um século. Os crescentes choques entre os missionários jesuítas e os espoliadores portugueses, aqueles que se acomodavam com os povos nativos indígenas e estes que os massacravam por conta da própria ignorância, resultaria na expulsão dos missionários jesuítas do território brasileiro em fins do século XVIII, expulsão esta que teria como consequência a ruína das atividades extrativistas, dado que somente a educação religiosa era a que poderia tornar os nativos aptos ao trabalho sob a exploração feudal. Além disso, outros fatores de ordem externa levariam ao declínio do extrativismo. Em 1776, os Estados Unidos travaram sua grande Guerra de Independência e conquistaram o fim da opressão britânica, libertando-se da condição de colônia da Inglaterra, e marchando gradualmente pelo caminho do desenvolvimento capitalista. Em plena época da Revolução Industrial, quando a demanda inglesa por algodão era imensa por conta do grau extremamente elevado do constante desenvolvimento de sua indústria têxtil, a Inglaterra perde sua principal fonte de fornecimento de algodão, os Estados Unidos, por conta da vitória da guerra anti-colonial destes. A Guerra de Independência dos Estados Unidos abriu, assim, amplo mercado para a produção algodoeira brasileira[16], produção esta que se realizaria em regime de grandes latifúndios no Maranhão, levando ao gradual declínio do feudalismo extrativista e ao retrocesso deste para o regime de trabalho escravo, reproduzindo, nos algodoais, uma forma de produção muito semelhante àquela verificada nos engenhos de cana de açúcar do litoral nordestino. A demanda por escravos dos algodoais maranhenses seria benéfica para o capital comercial português que ainda tinha como uma das principais atividades comerciais o tráfico negreiro. “O algodão enegrece o Maranhão”, já diria relato da época, e os lucros do capital comercial com o comércio dos escravos seria mais uma das maneiras que Portugal encontraria de sair da situação de grande endividamento em que estava para com os banqueiros ingleses. 3.3. A CONQUISTA DO SERTÃO E O NASCIMENTO DO FEUDALISMO PASTORIL SERTANEJO No nordeste brasileiro, o aumento da procura por gado (leia-se: o crescimento da pecuária) por parte dos engenhos de açúcar foi a principal causa da necessidade de a colonização portuguesa expandir seus domínios para o interior, isto é, as regiões sertanejas. Na época inicial da colonização, com a introdução das lavouras canavieiras, a agricultura e a pecuária eram atividades que não se separavam, estavam unidas no espaço e no tempo. A criação de gado no seio das grandes unidades populacionais que eram os engenhos serviam, principalmente, como força de tração nas atividades de moenda da cana nas manufaturas do engenho-trapiche, onde anteriormente os músculos dos escravos eram a única força de tração existente; como força de tração nas atividades de lavrar a terra para o plantio da cana de açúcar; e para o abastecimento alimentar dos engenhos, ainda que em menor escala, com carne bovina e leite. A crescente especialização das atividades canavieiras, com a expansão das lavouras que acarretou o aumento da produção, fez dar passos à frente no sentido do aprofundamento da divisão do trabalho, leia-se, na separação entre agricultura e pecuária. As atividades pecuárias, que anteriormente forneciam aos engenhos apenas tração de arado, tração para a moenda e alimentação, passaram a fornecer também o couro, como matéria prima para inúmeros utensílios produzidos e para exportação. Em tal etapa, contudo, a separação entre a agricultura latifundiária e a pecuária ainda não está concluída - o todo-poderoso senhor de engenho ainda aparece, aqui, como proprietário simultaneamente da terra, do escravo, do engenho e do gado. [16] Já nesta época, não mais se poderia considerar que a economia do Brasil se encontrava sob o monopólio colonial português. No período considerado, o final do século XVIII, Portugal encontrar-se-ia já sob a condição de semicolônia inglesa, e as grandes riquezas aqui saqueadas pelos colonialistas portugueses seriam constantemente drenadas de Portugal para a Inglaterra.

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O aumento da demanda por gado que as próprias atividades canavieiras geravam era intensificado ainda mais pelo aparecimento das atividades mineradoras no sudeste do país (atividades estas que tiveram grande importância na expansão colonial e feudal para o interior do país, e que estudaremos mais à frente), dependentes do gado para o transporte de minérios, para a alimentação dos escravos e entre outras necessidades. Tais fatores condicionaram a efetiva separação, completa, entre agricultura e pecuária, com o início da conquista de vastíssimas regiões do sertão nordestino para criar imensas fazendas de gado. Apesar de a pecuária aparecer agora como uma nova atividade econômica, diferente da agricultura canavieira, não significa contudo que aquela tenha aparecido como uma concorrente para esta - mantinha-se, ao contrário, como uma atividade econômica quase que exclusivamente subsidiária dos engenhos, entravada portanto pelas forças moribundas do monopólio comercial e colonial português, ainda que, com a pecuária, as populações sertanejas tenham sido capazes de garantir seu sustento e manter certo comércio com as regiões mineradoras e litorâneas, comércio este realizado em espécie (acusando portanto, aqui, a presença de uma incipiente economia mercantil simples). A deficiência qualitativa das pastagens do sertão era contrabalanceada pela enorme disponibilidade de terras livres para serem apropriadas, e pela grande disponibilidade de mão de obra. A antiga acomodação entre portugueses e povos nativos indígenas no período anterior à década de 30 do século XVI, quando as relações entre aqueles e estes se resumia a incipientes trocas em espécie, retornavam agora no período pastoril. Os pastos para rebanho eram tão grandes que relatos da época esclarecem que a maior parte dos senhores de gado morriam sem nunca ter conhecido a extensão de seus latifúndios. As dificuldades de fiscalização na época e o conhecimento detalhado do elemento indígena da geografia do sertão (que facilitava sua fuga, portanto) impossibilitavam que se estabelecesse nas atividades pastoris sertanejas o trabalho escravo, como se fazia nas lavouras de cana de açúcar no litoral. Na impossibilidade de se escravizar os indígenas, se estabeleceu no seio das atividades pastoris o sistema do feudalismo. O trabalhador dos pastos era um trabalhador livre, que, em troca de cuidar dos rebanhos dos senhores de gado, tinha direito a usufruir de certa parcela do rebanho cuidado. A maneira como se dava a produção e a brutal exploração sobre os vaqueiros caboclos caracteriza o regime feudal da renda-produto (o vaqueiro “dá” ao senhor a esmagadora maior parte do gado, e usufrui sobre a menor parcela deste em troca). Caio Prado Júnior, em seu Formação Econômica do Brasil, descreve a maneira como se manifestava a exploração feudal nos sertões nordestinos[17]: “Contribui para a multiplicação das fazendas o sistema de pagar o vaqueiro, que é quem dirige os estabelecimentos, com 1/4 das crias; pagamento que só se efetua decorridos cinco anos, acumuladas as quotas de todos eles. O vaqueiro recebe assim, de uma só vez, um grande número de cabeças, que bastam para ir-se estabelecer por conta própria. Fá-lo em terras que adquire, ou mais comumente, arrendando-as dos grandes senhores de sesmarias do sertão.” Euclides da Cunha, outro autor clássico da literatura nacional, famoso por fazer uma excelente cobertura da grande Guerra Agrária de Belo Monte (pejorativamente chamada pelas classes dominantes reacionárias de “Guerra de Canudos”) no sertão baiano em fins do século XIX, descreve o sistema feudal sertanejo ao falar sobre a situação casual do vaqueiro caboclo quando, no meio da caatinga, encontrava uma vaca perdida e tentava procurar o dono. Não encontrando-o, prosseguia cuidando do animal, mas não o utilizava para si, em trabalhos de tração ou vendendo-o na feira, pois a vaca não lhe pertencia. Ao dar a primeira cria, fazia o mesmo com esta, e repetia a mesma atitude com a segunda e terceira crias. Somente ao dar a vaca a quarta cria, o vaqueiro pegava-a para si, tirando dela o leite, vendendo-a ou utilizando em trabalhos de arado. Euclides da Cunha destaca nessa atitude a honestidade do homem do campo. Porém, não faz mais do que descrever, por trás de tal honestidade, o fundo das relações feudais ao qual o vaqueiro estava submetido. Ainda que estejamos investigando a realidade da expansão colonial e feudal para o sertão nos séculos XVII e XVIII, as relações de produção descritas por [17] Embora Caio Prado Júnior pertença à corrente da historiografia brasileira que, equivocadamente, nega a existência do feudalismo no Brasil, o autor se contradiz ao constatar aqui, corretamente, a presença de relações feudais no período da colonização. A citação por nós destacada se encontra na página 186 da referida obra.


“O problema da terra no Brasil e a Revolução Agrária Anti-Feudal”

Euclides da Cunha são expressão do medievalismo desse período, que sobreviveu durante o período da Guerra Agrária de Belo Monte. Aqui o autor explica, em seu espetacular trabalho, Os Sertões: “Ao contrário do estancieiro, o fazendeiro dos sertões vive no litoral, longe dos dilatados domínios que nunca viu, às vezes. Herdaram velho vício histórico. Como os opulentos sesmeiros da colônia, usufruem, parasitariamente, as rendas das suas terras sem divisas fixas. Os vaqueiros são-lhes servos submissos. Graças a um contrato pelo qual percebem certa percentagem dos produtos, ali ficam, anônimos - nascendo, vivendo e morrendo na mesma quadra de terra perdidos nos arrastadores e mocambos; e cuidando, a vida inteira, fielmente, dos rebanhos que lhes não pertencem. O verdadeiro dono [...] Não os fiscaliza. Sabe-lhes, quanto muito, os nomes. Envoltos, então, no traje característico, os sertanejos encourados erguem a choupana de pau a pique à borda das cacimbas, rapidamente, como se armassem tendas; e entregam-se abnegados à servidão que não avaliam. [...] Deste modo, quando surge no seu logrador[18] um animal alheio, cuja marca conhece, o restitui de pronto. No caso contrário, conserva o intruso, tratando-o como aos demais. Mas não o leva à feira anual, nem o aplica trabalho algum; deixa-o morrer de velho. Não lhe pertence. Se é uma vaca e dá a cria, ferra a esta com o mesmo sinal desconhecido, que reproduz com perfeição admirável; e assim pratica toda a descendência daquela. De quatro em quatro bezerros, porém, separa um, para si. É a sua paga. Estabelece com o patrão desconhecido o mesmo convênio que tem com o outro. E cumpre estritamente, sem juízes e sem testemunhas, o estranho contrato, que ninguém escreveu ou sugeriu.”[19] A expansão da colonização para o sertão do nordeste marca assim, pela primeira vez, a separação entre uma área marcada pelas relações de produção feudal-escravistas (com predominância das relações escravistas) e produção agro-exportadora no litoral, e outra, no interior, marcada pelas relações feudais de produção, atividades pastoris e incipiente economia mercantil simples, com esta área recém desbravada cumprindo o papel de subsidiária das atividades canavieiras no litoral. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS GUIMARÃES, Alberto Passos. Quatro Séculos de Latifúndio. São Paulo: Paz e Terra, 1989. SODRÉ, Nelson Werneck. Formação Histórica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1963. SODRÉ, Nelson Werneck. As Razões da Independência. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1965. PRADO JR., Caio. Formação Econômica do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 2012. DA CUNHA, Euclides. Os Sertões. Belo Horizonte: Paulo de Azevedo, 1963. SIMONSEN, Roberto. História Econômica do Brasil. Brasília: Edições do Senado Federal, 2005. FREYRE, Gilberto. Sobrados e Mocambos: Decadência do Patriarcado Rural e Desenvolvimento Urbano. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1951.

[18] Logrador é como eram chamadas as imensas pastagens sem cercas. [19] Trecho retirado do capítulo “Servidão inconsciente”, do livro Os Sertões.

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Sobre a realidade cubana por Núcleo Marxista-Leninista Camaradas


“Sobre a realidade cubana”

No último mês de julho, o NM-LC teve a oportunidade de visitar o país e conversar com representantes das principais organizações políticas e de massas de Cuba. Com base nessa experiência, foi elaborado este artigo, que expõe as impressões obtidas sobre a situação política, social e econômica do país, partindo do duro período recorrente da queda da URSS e do Campo Socialista e das implicações desse processo que se fazem evidentes na Cuba atual. As implicações econômicas da queda da URSS e do Campo Socialista A queda da União Soviética e o fim do socialismo nos países do Leste Europeu trouxeram consequências gigantescas para os países socialistas e aos que mantinham comércio intenso com o Campo Socialista. Essas consequências são evidentes ao analisar países como a Síria, a Coreia Popular e, sobretudo, Cuba. Em todos esses países, a queda da URSS e do Campo Socialista acarretaram na necessidade de modificações na estrutura econômica existente, organizando a produção ao novo contexto. O caso de Cuba é emblemático. O país viu-se, de súbito, com 80% de suas exportações e 73% de suas importações aniquiladas[1]. A indústria encontrou-se sem as matérias primas necessárias, que eram em sua maior parte provenientes da URSS, para manter suas atividades. Não havia mais os inúmeros insumos e as peças de reposição necessárias para a produção industrial. Na agricultura, não havia mais o petróleo proveniente da URSS para a maquinaria, fertilizantes, pesticidas ou herbicidas, nem os cereais necessários para a produção de alimento, para a pecuária, avicultura, produção de ovos, de leite. A produção, em todos setores, encontrouse estagnada. Essa situação acarreta na redução de 35 a 45% do PIB do país, de 1989 a 1993 [2] , voltando a ter um leve aumento apenas em 1994, de 0,7%[3]. Nesse período surge o conceito de Período Especial em Tempos de Paz, política inicialmente concebida para tempos de guerra, mas que foi adaptada para a nova situação que se impunha. Diante desse contexto, de aniquilamento do comércio exterior e da produção interna, o país viu-se assolado pela escassez dos produtos mais básicos. Um exemplo claro disso é a falta de produtos higiênicos, como sabonetes. Sem a soda cáustica proveniente da URSS, fazia-se impossível manter essa produção. Ainda hoje, não é difícil encontrar relatos de pessoas que viajam e chocam-se com a escassez desses produtos, sem compreender as condições históricas e o contexto econômico do país. A escassez dos produtos e a retração da produção industrial acarretaram em consequências em todos os aspectos da vida social. Faltavam livros nas escolas, faltavam produtos básicos, inclusive álcool, para os hospitais. O transporte público, sem petróleo, tornou-se praticamente inexistente, até mesmo na vida cultural isso se fez evidente, com a necessidade da redução da quantidade de canais na televisão. Seria preciso escrever livros inteiros para descrever as consequências nos mais diversos aspectos da vida social da retração que houve na produção do país. Surge nesta época o conceito de “alumbrones”, que remete, em espanhol, a “iluminões”, uma demonstração do humor cubano, ironizando os apagões que deixavam o país sem luz durante 20 horas por dia, ou dias inteiros. Diante de todo esse contexto, intensificavamse as agressões norte-americanas e da máfia cubano-americana contra o país. A intensificação das agressões norte-americanas durante o Período Especial Desde o princípio da Revolução Cubana, os Estados Unidos e a máfia cubano-americana executam políticas hostis ao governo revolucionário. O país desde sua efetiva indepen[1] PÉREZ-LÓPEZ, Jorge (2008). “Tiempos de Cambio: tendencias del comercio exterior cubano.” Revista Nueva Sociedad. (Tempos de Mudança: tendencias do comercio exterior cubano. Revista Nova Sociedade.) - Edição n. 216. <http://www.nuso.org/upload/articulos/3541_1.pdf> [2] MESA-LAGO, Carmelo (2001). “The Cuban Economy In 1999-2001: Evaluation Of Performance And Debate On The Future” (A Economia Cubana em 1991-2001: Análise da Performace e Debate Sobre o Futuro) - <http://www.ascecuba.org/publications/proceedings/ volume11/pdfs/mesa-lago.pdf> [3] “Informe Central Al V Congreso Del Partido Comunista De Cuba (...), El 8 De Octubre De 1997” (Informe Central ao V Congresso do Partido Comunista de Cuba (...), 8 de outubro de 1997) <http://www.cuba.cu/gobierno/discursos/1997/esp/f081097e.htm>

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dência em 1959, com a Revolução, viu-se atingido por agressões armadas, como a famosa agressão por parte do exército mercenário treinado pelo governo dos Estados Unidos e com apoio da aviação e da marinha norte-americana da Baía dos Porcos em 1961, ou os grupos contra-revolucionários armados da região do Escambray. Outros tipos de agressão também sempre estiveram presentes, como a tentativa de construção de movimentos políticos contrarevolucionários, o incentivo à emigração, a guerra cultural, a agressão econômica, sabotagens, tentativas de inserção de drogas com aviões e lanchas no país, ataques piratas com lanchas nas costas cubanas e inclusive atentados químicos e biológicos. Grande parte dessas práticas foi intensificada com a queda da URSS e no contexto do Período Especial. Foram aprovadas, nesse período, pelo congresso norte-americano, leis que intensificariam o bloqueio econômico contra o país: A lei Helms-Burton e a lei Torricelli, violando o direito internacional[4]. Também foram aprovados incentivos para a emigração em Cuba, com a entrega de residência a todo cubano que entrasse, mesmo que ilegalmente, nos Estados Unidos (política que não foi concedida a imigrantes de nenhuma outra nacionalidade), além de infindáveis estratégias de subversão. A asfixia econômica tem sido, desde a queda do Campo Socialista, a principal estratégia dos Estados Unidos contra Cuba. Milhares de dólares pertencentes ao país foram congelados em bancos internacionais, inúmeras empresas e bancos tem sido multados por negociar com o país ou efetuar transações com este. O caso mais recente foi o do banco francês BNP Paribas, multado em quase 9 bilhões de dólares por realizar operações financeiras com Cuba, Irã e Sudão. Calcula-se que o país já tenha perdido mais de 1 trilhão de dólares por conta do bloqueio e em 2011 possuía 245 milhões de dólares de seus fundos congelados por parte do governo dos Estados Unidos[5].Essas perdas ocorrem na indústria, na agricultura, na saúde, na educação, em todos os setores do país, seja pelo alto custo dos fretes, pelos custos adicionais devido à importação a partir de terceiros países de produtos produzidos apenas por companhias norte-americanas, por transações financeiras feitas a partir de terceiros países, pela impossibilidade do país de utilizar o dólar em suas transações internacionais, tendo que comprar outras moedas, pelos altos juros cobrados nas transações financeiras por parte dos bancos, devido ao risco das operações, entre outros fatores. Mais do que isso, o bloqueio impede a importação de determinados produtos, em todos os campos, atrasando o desenvolvimento das forças produtivas e afetando os serviços sociais do país, como na saúde, ao impedir a compra de determinados medicamentos e equipamentos por parte de Cuba. Isso acarreta na escassez de produtos na ilha, como o exemplo, já citado, da escassez de produtos de higiene, amplamente difundido e sempre fora de contexto. Entretanto, essa não é a única forma de agressão por parte dos Estados Unidos contra o país. Desde o princípio da Revolução, os ataques químicos e biológicos tem trazido grandes perdas, ocasionando, a cada ataque, prejuízos que podem chegar a centenas de milhões de dólares. Essa política foi mantida e trouxe perdas gigantescas para a economia cubana, multiplicadas pelo bloqueio e pela crise já citada. Devido a esses ataques, houve 2 bilhões e 158 milhões de dólares em perdas no combate às pragas e doenças disseminadas no país[6]. Colheitas inteiras foram perdidas e recursos preciosos foram gastos no combate a essas atividades subversivas. A lista que relata esses ataques é extensa. Muitos desses foram confessados por seus autores. Alguns deles visaram destruir os principais cultivos do país, como o café, o tabaco, a cana, o arroz, a batata, assim como matar animais, porcos, galinhas, gado. Sempre que uma atividade agrícola ou na criação de animais se desenvolve em Cuba, misteriosamente, surgem pragas que, na maioria das vezes, sequer existiam na ilha, ou até mesmo no continente. Esses ataques não visavam atingir apenas a produção cubana, mas a própria população do país, disseminando epidemias de doenças como conjuntivite hemorrágica e dengue hemorrágica, que não existiam na ilha anteriormente. [4] “50 verdades sobre as sanções econômicas dos Estados Unidos contra Cuba” <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/opiniao/2857 6/50+verdades+sobre+as+sancoes+economicas+dos+estados+unidos+contra+cuba.shtml> [5] “Informe de Cuba a la ONU sobre los impactos del bloqueo norteamericano 2012” (Informe de Cuba à ONU sobre os impactos do bloqueio norteamericano 2012) <http://www.cubadebate.cu/especiales/2012/09/21/el-bloqueo-es-el-principal-obstaculo-para-que-cubadesarrolle-a-plenitud-sus-potencialidades/> [6] “Biological Warfare Aganist Cuba” (Guerra Biológica Contra Cuba) <http://www.afrocubaweb.com/biowar.htm>


“Sobre a realidade cubana” Um dos casos mais marcantes nesse sentido é, precisamente, o caso da dengue. Apesar de ser anterior ao Período Especial, demonstra o cinismo dos que dizem combater o terrorismo, mas que são capazes, sem ressentimentos, de organizar atividades de terrorismo biológico a fim de desestabilizar governos contra seus interesses. Esse caso em particular ocorre em 1981, no qual morreram mais de 150 pessoas, em sua maior parte crianças, e foram infectadas 350 mil pessoas. A cepa do vírus utilizada foi a ‘Nueva Guinea’ 1924 (serotipo 02), única no mundo nesse momento, demonstrando que era uma cepa de coleção, elaborada em laboratório. A doença se espalha a partir de três focos distintos e sem relações epidemiológicas, em locais que haviam sido visitados por turistas em dias anteriores. É interessante notar que os soldados da base de Guantánamo foram vacinados contra a doença em setembro do mesmo ano. Houve casos em toda a ilha, mas nenhum na base norte-americana. Inclusive, foi declarado por um especialista, cuja identidade foi preservada, que foram estudados os anticorpos da população cubana, para saber contra que doença esta não tinha resistência. Em 1984 o ataque foi confessado pelo terrorista de origem cubano Eduardo Arocena, que declarou que a enfermidade, que matou 158 pessoas, foi introduzida na ilha por Washington a partir de grupos terroristas. Os Estados Unidos apoiaram os grupos terroristas em Cuba desde o princípio da Revolução. Segundo Clinton, esses métodos não eram utilizados desde 1977. Há de se pensar o que era feito até 1977. A guerra cultural e nos grandes meios de comunicação internacional também se faz presente contra o país. O inimigo não se importa em financiar todo tipo de ataque, mesmo quando demonstram-se infrutíferos. Não há remorsos em financiar e permitir a atividade de terroristas e, ainda quando não estão organizando os atentados, colaboraram para dar aos grupos terroristas contra o país os conhecimentos e a experiência necessária para realizar tais atividades, deixando livres, até hoje, indivíduos que cometeram e cometem atos terroristas contra Cuba, ao contrário dos três heróis cubanos que ainda estão presos nos Estados Unidos e dos outros dois que ficaram presos por mais de uma década, como Fernando González, que recém no ano passado foi libertado após ficar preso injustamente por 16 anos. Esses cinco heróis do país foram enviados, junto com outros, que não foram capturados, pelo governo cubano, para infiltrar-se nas redes dos grupos contra-revolucionários cubano-americanos que residem em Miami. Essa iniciativa ocorre em pleno Período Especial, e permitiu que diversos atentados contra a ilha fossem impedidos. Os heróis foram presos quando o governo cubano denuncia os grupos terroristas frente aos Estados Unidos, que, em vez de encarcerar os terroristas, encarcera os que lutam contra o terrorismo. Nesse momento em particular, estavam ocorrendo, como de costume, atentados nos setores mais proeminentes da economia cubana, dentre eles um em especial, que foi atacado intensamente, tendo provocado a morte de Fabio di Celmo, turista italiano, com a explosão de uma bomba no hotel Copacabana: O turismo. Buscava-se passar a imagem de que o país não era seguro para acabar com o turismo na ilha. Esse setor, ainda nos dias de hoje, é essencial para a economia cubana e foi uma alternativa, amarga, mas necessária, encontrada pelo Estado para conseguir moedas estrangeiras. Para desenvolver esse setor e promover a recuperação econômica do país o Estado cubano teve que tomar determinadas medidas e atualizações em seu modelo econômico. As mudanças econômicas a partir do Período Especial O turismo foi uma alternativa essencial para o país. Todos os anos esse setor representa o ingresso de mais de 2,5 bilhões de dólares, perdendo apenas para a exportação de serviços médicos, que representa um ingresso de aproximadamente 6 bilhões de dólares anualmente [7], mais de 60% dos ingressos provenientes da exportação de serviços[8]. Para permitir um desenvolvimento acelerado do turismo, necessário para a manutenção do país em tempos tão [7] “Creció ligeramente turismo en Cuba durante 2013” (Cresceu ligeiramente o turismo em Cuba durante 2013) <http://www.cubadebate. cu/noticias/2014/01/06/crecio-ligeramente-turismo-en-cuba-durante-2013/> [8] Oficina Nacional de Estadística e Información (ONEI). “Anuário Estadístico de Cuba 2013. Edición 2014 - 15.2 Visitantes por meses e 15.11 Ingresos asociados al turismo internacional” (Oficina Nacional de Estatística e Informação (ONEI) - Anuário Estatístico de Cuba 2013. Edição 2014 - 15.2 Visitantes por meses e 15.11 Ingressos associados ao turismo internacional) <http://www.one.cu/aec2013/esp/20080618_tabla_cuadro.htm> - Id. “Anuário Estadístico de Cuba 2011. Edición 2012 - 5.17 Saldo externo de bienes y servicios” (Anuário Estatístico de Cuba 2011. Edição 2012 - 5.17 Saldo externo de bens e serviços) - <http://www.one.cu/aec2011/esp/05_tabla_cuadro.htm>

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difíceis, assim como o desenvolvimento e manutenção de outros setores da economia, o Estado vê-se obrigado a permitir, ainda que com um grande controle e direcionamento, a existência de investimentos estrangeiros no país, a formação de empresas mistas e, mais recentemente, de empresas de capital totalmente estrangeiro, no país. Para esse fim, foi aprovada a lei de investimentos estrangeiros de 1995 e a nova lei de investimentos estrangeiros de 2014. Trata-se de um remédio amargo para os cubanos, origem de contradições das quais falaremos mais adiante, que foi a única alternativa encontrada naquele momento, mas que não foi a única medida tomada. Além do turismo, foi promovida a exportação de serviços, principalmente de profissionais da saúde, e foi necessária a regulamentação de determinadas profissões que surgiram, assim como uma nova estratégia para o trabalho agrícola. Sem as condições materiais suficientes e as forças produtivas necessárias para centralizar a produção, fez-se necessário regulamentar trabalhos individuais e familiares que surgiram com a queda do Campo Socialista e a crise em Cuba. O Estado, sem condições de prover determinados serviços como de ferreiro, distribuidor de frutas, produção de tintas, engraxate, produção de artesanato e com insuficientes recursos para construir hotéis e restaurantes suficientes, viu-se obrigado a regulamentar essas profissões e a formação de restaurantes e albergues privados, dentre outras atividades[9]. Foi uma forma encontrada pelo Estado de conseguir ingressos com essas atividades e promover a manutenção destas, diante da falta de alternativa. As leis tiveram que se modificar de acordo com o novo contexto econômico. Para essas atividades, os que nelas trabalham passaram a ter um acesso de forma legal aos insumos necessários para manter esses setores. Recentemente, numa tentativa de promover o desenvolvimento de uma produção mais socializada, foram aprovadas, ainda em caráter experimental, cooperativas urbanas, que reúnem várias das atividades citadas. Outras medidas caminharam para aumentar o incentivo material, conforme a produção, para os trabalhadores, em um período difícil, onde isso demonstrou-se necessário. Isso pode ser observado nos mais distintos setores, desde produção de carvão vegetal até o transporte por meio de taxis. Também fez-se necessária a entrega em usufruto, para trabalhadores agrícolas, de uma grande quantidade de terras que antes eram de produção estatal. Formaram-se as Unidades Básicas de Produção Cooperativa (UBPC), nas grandes extensões de terra mecanizadas estatais, enquanto ocorreu uma gradativa transição da produção de cana de açúcar para outros tipos de cultivos. Não somente foram formadas as UBPC, mas grande parte das terras foi entregue a indivíduos dispostos a nelas trabalhar, desde o princípio com incentivos para a formação de cooperativas e com a promoção do acesso ao crédito. Com a crise, grande parte da população do campo foi para as cidades, grande parte das terras ficou ociosa e fez-se necessária essa redistribuição. É interessante notar as palavras de Fidel, em 1997, sobre o tema: “Criaram-se granjas de novo tipo em determinadas empresas que foi considerado conveniente conservar por distintas razões, onde o trabalhador tinha direito também a uma parte importante da infraestrutura e para aplicar ali as formas de retribuição que considerávamos mais adequadas a essas circunstâncias; formas de distribuição mais socialistas – menos comunista, mas mais socialista -, a partir de que o princípio agora é o desenvolvimento do socialismo, a defesa do socialismo, buscando a eficiência, buscando a produção. [...] Idealizaram-se fórmulas de estímulos de diferentes tipos, na agricultura e na indústria, e todas a partir de uma vinculação entre a produção e a renda, para buscar o máximo comprometimento e o máximo esforço do homem na produção.” Outras medidas também foram tomadas, como a criação de organismos estatais para promover o controle das novas relações econômicas que se desenvolvem, assim como a racionalização dos organismos estatais para cortes de custos e a redução da quantidade de funcionários [9] “Autorizan diez nuevas modalidades de trabajo por cuenta propia y reactivan licencias para otras ocho”(Autorizam dez novas modalidades de trabalho por conta própria e reativam licenças para outras oito) <http://www.cubadebate.cu/noticias/2013/09/26/autorizan-dieznuevas-modalidades-de-trabajo-por-cuenta-propia-y-reactivan-licencias-para-otras-ocho/>


“Sobre a realidade cubana” estatais em determinados setores. Isso também ocorre no Partido, levando a uma redução na quantidade de quadros também em alguns setores. O dólar foi legalizado, grandes remessas da moeda passaram a vir desde o exterior. Foram abertas lojas para produtos comercializados em dólar e em peso cubano. Após certo tempo, o dólar foi substituído pelo Peso Cubano Convertível, que pode ser comprado em caixas de câmbio com pesos cubanos comuns ou moedas estrangeiras. Desta forma, o Estado passa a recolher recursos com a operação de troca de moedas. É evidente que, apesar da necessidade dessas medidas, das novas estratégias salariais, da regulamentação de determinadas atividades, da legalização do dólar, da modificação da estrutura do Estado e do Partido, da abertura ao turismo, da crescente utilização de investimentos estrangeiros, para poder construir as bases materiais e as forças produtivas necessárias para desenvolver relações socialistas de produção, cada uma dessas medidas trouxe consequências sociais, que passaram a marcar cada vez mais a sociedade cubana. As implicações sociais e ideológicas da queda da URSS e do Campo Socialista Conforme o exposto, a queda da URSS e do Campo Socialista trouxe consequências gigantescas para Cuba, que são acentuadas pelo bloqueio e a agressão norte-americana. Devido a esses fatores e às consequências das medidas econômicas que inevitavelmente tiveram que ser tomadas, ressurgem em Cuba problemas sociais que há décadas estavam extintos, assim como problemas particulares desse período. Com as dificuldades surgidas no contexto do Período Especial, era inevitável que ressurgisse em Cuba a prostituição e o uso de drogas atrelado ao turismo. A prostituição havia sido erradicada no país, mas ressurge nesse período. O uso de drogas em Cuba era nulo, surgindo nesse contexto, mas ainda sendo ínfimo. Esses problemas, entretanto, foram duramente combatidos e, em partes, resolvidos conforme ocorria a recuperação econômica do país. A crise acarretou numa evasão do campo para as cidades, acarretando em problemas para conseguir suprir as necessidades de todos, devido à carência de moradias e de suporte para a construção de novas moradias devido à insuficiência das redes elétrica, sanitária, de água, de saúde e de transportes. Com a legalização do dólar, o turismo e o surgimento de empreendimentos privados, fez-se inevitável o surgimento da desigualdade social na ilha. Determinados setores da sociedade, que têm parentes no exterior e que têm trabalhos relacionados ao turismo, acabam por ter condições de vida imensamente melhores do que outros. Eis de onde surge um conceito bastante discutido no país: A pirâmide invertida. Esse conceito consiste na constatação de que, em grande parte das vezes, o trabalho não é retribuído de acordo com o esforço. Não é difícil, em Cuba, que um trabalhador por conta própria consiga ter uma renda dezenas de vezes maior que um trabalhador estatal. Com um dia de gorjetas, é possível conseguir o salário de um mês de um trabalhador que não tem ligações com o turismo. É um problema que acaba afetando os jovens, e determinadas profissões, nas quais a população se vê desincentivada para trabalhar. Nesse contexto, milhares de professores deixaram de dar aulas para dedicar-se a trabalhos que lhes garantam mais renda. Não é raro encontrar engenheiros trabalhando como taxistas, mesmo sendo evidente que em Cuba a oportunidade para estudar é gigantesca, assim como a quantidade de pessoas com ensino superior, que não trabalham nas áreas que estudaram não necessariamente por conta da situação econômica do país. Essas condições materiais levam, até certo ponto, a um desincentivo, na juventude, para estudar. Há um sentimento geral de insatisfação com essa contradição que surge com a pequena-burguesia que se forma em uma sociedade que era, e pode-se dizer que até agora segue sendo, composta majoritariamente por proletários, mas na qual os não-proletários viam-se inseridos em um contexto em que tinham condições materiais extremamente próximas aos proletários. Cada vez mais, com o desenvolvimento do turismo e das atividades dos trabalhadores por conta própria, essa pequena-burguesia se desenvolve, ainda que tenha uma atuação que tende a ser nula nos setores produtivos. É algo inevitável, que só pode caminhar em sentido contrário caso ocorra um desenvolvimento das forças produtivas que permita a socialização da produção. Para tratar de contrapor essa questão, o Estado subiu os salários das profissões que

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mais aportam ao país, como os médicos, ainda que a medida seja insuficiente. A queda da URSS e do Campo Socialista significou um grande abalo ideológico para a população cubana. O socialismo viu-se desacreditado. Disciplinas como “comunismo científico” que eram regulares no ensino cubano passaram a ser ironizadas pela população: “O que há de científico nisso? Vejam o que ocorreu com a URSS.” Nesse contexto, o turismo torna-se algo negativo, passando a visão de fartura no capitalismo para os cubanos, assim como vícios. Surgem os pedintes e pessoas que se dedicam a atividades improdutivas pela facilidade de conseguir recursos com os turistas. Fortalece-se, com a influência ideológica burguesa, o individualismo. O Estado não tem condições materiais para produzir um desenvolvimento cultural massivo e com altos níveis tecnológicos, a arte burguesa chega com os turistas, a pesar de sempre ter estado presente em Cuba. Os parentes no exterior acabam também sendo uma grande fonte de influências liberais. O próprio contexto social, da crise, propicia essa situação. Mas, apesar de tantos problemas, do individualismo que se intensifica, do surgimento de problemas sociais e desigualdades, Cuba continuou firme e seu povo resistiu a esse grande abalo. A economia recuperou-se em grande parte, tendo a moeda cubana sido revalorizada em 20 vezes. Apesar das dificuldades, Cuba continuou aprimorando seu sistema de saúde, universal e gratuito, e hoje tem a taxa de mortalidade infantil mais baixa das Américas e menor de sua história. Em determinados aspectos do campo da saúde, Cuba conseguiu ultrapassar até mesmo a maior potência econômica e militar do mundo[10]. Em Cuba não há desnutrição, não há crianças sem casa. Em Cuba é possível andar pelas ruas, em qualquer parte do país, a qualquer hora, sem medo. A educação cubana é reconhecida como a melhor da América Latina e a única verdadeiramente eficiente do continente[11]. Em Cuba não há trabalho escravo, servidão, não há latifúndio. Em Cuba não é preciso reprimir greves de trabalhadores e protestos de estudantes e camponeses com armas ou bombas de gás, as greves e protestos simplesmente não tem porque existir. Diante da crise, com a falta de transporte, os cubanos importaram e produziram 2 milhões de bicicletas. Quando as crianças não tinham sapatos, eram feitas sandálias com pneus recortados para ir à escola. Quando não havia sabão, as roupas eram lavadas com magueypicado, quando faltaram trabalhadores no campo, foram organizadas brigadas estudantis para trabalhar a terra, sem receber um centavo. Inúmeras mostras podem ser dadas do heroísmo do povo cubano, forjado na Revolução e colocado à prova no momento mais difícil. O feito de Cuba haver resistido até hoje é tão grande como a resistência dos vietnamitas ou dos norte-coreanos, os esforços da revolução russa ou da revolução chinesa e de muitos outros lugares de onde surgiram movimentos revolucionários. É um exemplo inspirador para todos os revolucionários. Faz-se necessário, por fim, analisar as tarefas que se colocam para a Revolução Cubana. A luta ideológica e o desenvolvimento das forças produtivas em Cuba A necessidade do avanço no desenvolvimento das forças produtivas evidencia-se como uma necessidade para o desenvolvimento do socialismo em qualquer local onde o proletariado haja triunfado. Nesse sentido, grande parte das tarefas que se fazem necessárias consiste em avançar nesse campo. Assim como o fim da dualidade monetária, uma das maiores expectativas na atualidade para os cubanos é o novo porto de Mariel, surgindo como uma forma de tratar de avançar nesse sentido. A construção dessa zona econômica especial é uma das últimas medidas tomadas pelo Estado cubano, havendo já uma grande quantidade de acordos para a produção conjunta com empresas estrangeiras e para a transferência de tecnologia a Cuba. Nesse porto, haverá indústrias voltadas para a produção e exportação. É evidente, como colocado, que as medidas tomadas pelo Estado cubano acarretam em problemas sociais, que são [10] “Datos prueban que sistema sanitario de Cuba es superior al de EEUU: ¿por qué lo ocultan?” (Dados provam que sistema de saúde de Cuba é superior que o dos EUA: Por que o ocultam?) <http://www.cubadebate.cu/especiales/2013/12/13/datos-prueban-que-sistemasanitario-de-cuba-es-superior-al-de-eeuu-por-que-lo-ocultan-video/> [11] “Banco Mundial diz que Cuba tem o melhor sistema educativo da América Latina e do Caribe” - <http://operamundi.uol.com.br/conteudo/opiniao/37709/banco+mundial+diz+que+cuba+tem+o+melhor+sistema+educativo+da+america+latina+e+do+caribe.shtml>. Ver: “Entrevista Roda Viva Fidel Castro 1990” <https://www.youtube.com/watch?v=3YxnqvFWZN0>


“Sobre a realidade cubana” esperados, também, com a construção do porto, mas que são inevitáveis sem que existam as condições materiais para superá-los. Em Cuba, a pequena burguesia, no geral, apesar das contradições, ainda identifica seus interesses com os interesses da Revolução. No pais, há um forte sentimento de unidade nacional e de um projeto comum de toda a população cubana. Há uma forte participação política em todos os aspectos da vida social, seja na escola, na universidade, nos ambientes de trabalho ou no próprio local onde vivem. Em cada quadra e em determinadas extensões agrícolas, há os chamados Comitês de Defesa da Revolução, que são uma espécie de “conselho da quadra”, possuindo um presidente, pessoas responsáveis pela vigilância, pelas atividades políticas e culturais, entre outras atribuições. Os CDR agrupam-se em pequenos grupos, a nível municipal, provincial e nacional. Algo que ilustra essa participação é a incompreensão de um cubano com quem conversamos sobre a possibilidade de ninguém querer assumir a presidência dos CDR: “Como assim se ninguém quiser? Alguém vai ser o presidente. Os membros do CDR vão decidir quem é a pessoa mais adequada e, se ela não puder, tudo bem, ela explica por que motivo não pode ser o presidente, seja por questões de trabalho, estudos, e outra pessoa vai assumir a função.” Um dos movimentos que chamam a atenção é o Movimento Juvenil Martiano (MJM), fundado em 1989, vanguarda da União de Jovens Comunistas. Esse movimento surge no contexto do Período Especial e representa o pensamento ideológico do povo cubano no período. Com o enfraquecimento do marxismo, foi utilizada a figura de Martí, que sempre esteve presente em Cuba, para manter a unidade nacional e defender-se das garras do imperialismo. Martí foi um patriota liberal, que inspirou a causa de libertação nacional da ilha e a Revolução Cubana. A partir dessa figura, o povo cubano pôde resistir e defender o socialismo e sua autodeterminação.Os camaradas desse movimento afirmam que não é possível ser martiano, como se identificam, sem ser marxista. Não é possível garantir a libertação efetiva de uma nação dominada pelo imperialismo sem socialismo. A partir dos ideais da libertação nacional foi possível defender o socialismo no país. Entretanto, faz-se necessário travar uma dura luta ideológica em Cuba. É preciso lutar contra o individualismo e contra a impaciência que surge pela melhoria na situação econômica do país, deixando clara a necessidade dessas medidas, que trazem aspectos negativos, mas que a longo prazo são a única saída encontrada para solucionar os problemas do país. Cabe destacar a necessidade de deixar cada vez mais claro para a população cubana e, principalmente, para a juventude, que não viveu o esplendor dos tempos soviéticos nem as mazelas sociais antes da revolução, que os problemas da população cubana são ínfimos quando comparados com a situação das massas nos países capitalistas e nos países dominados pelo imperialismo. É preciso, sobretudo, ter cuidado com qualquer manifestação de interesses contrários a essas conquistas, conforme surgem contradições na sociedade cubana. Cabe a nós, revolucionários do Brasil, defender a Revolução Cubana e demais revoluções proletárias da história, extraindo os seus aportes teóricos universais e fazendo as críticas oportunas, para, assim, combater o oportunismo no seio do movimento revolucionário em nosso país e no mundo, que distorce a história das experiências socialistas para justificar suas teses caducas.

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Direito e Materialismo Histórico: entre a forma jurídica e a forma primitiva na dominação de classe

por Klaus Scarmeloto e Paulo Esteves A forma jurídica e o capitalismo Segundo Pachukanis, sobre o modo de produção capitalista surge a estrutura jurídica no seu grau mais complexo. Estudar o direito significa compreender não apenas as suas categorias que compõe como síntese o conteúdo de classe dele, mas, também, seu revestimento com semelhante forma de classista. O Direito apresenta uma relação específica da conjuntura histórica ligada a existência do Estado moderno, pressupondo o modo de socialização capitalista, isto é, a produção de mercadorias e, consequentemente, a circulação delas no mercado. Neste sentido, tudo é passível de ser mercantilizado, devido ao movimento predominante, desse modo de produção, que transforma, tanto a força de trabalho, quanto os produtos da fábrica em mercadorias. A necessidade concreta de cristalizar este processo exige, socialmente, a criação da “forma contrato” e da “forma sujeito”. A forma contrato é o elemento que se manifesta para mediar a produção e a circulação de mercadorias entre os sujeitos proprietários delas. A forma do sujeito de direito consiste em igualar a todos, formalmente, pelo direito, inclusive os que são desiguais materialmente, dando ênfase. A união dessas duas formas gera o último conceito importante o de “relação jurídica”, sendo ela o liame criado pelas duas formas anteriores e que estão em todos os ramos do direito. As necessidades de avanço do capitalismo fizeram com que fossem destruídas as instituições morais e ideológicas das antigas sociedades que separavam os seres humanos em castas, para atender uma necessidade prática: o mercado capitalista. Isso significa a expansão do modo de produção capitalista. Pessoas desiguais por essência - casta, etnia, sangue, terra etc. como era típico das sociedades pré-capitalistas - não estabelecem entre si uma relação de troca, só os sujeitos livres e iguais. Os princípios da liberdade e da igualdade no seu surgimento na modernidade estão


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diretamente ligados as lutas da nascente burguesia em prol de uma nova sociedade. Nos modos de produção dominados pelo capitalismo, o escravista e o semifeudal, a exploração do trabalho pode até ser semifeudal, escravista, haja vista o caso dos haitianos e bolivianos no Brasil, entretanto, a troca, do produto de trabalho explorado, em última instância, é realizado entre iguais. O duplo caráter da dominação de classe: a forma primitiva e a forma jurídica Para entender o estágio atual do direito no imperialismo, não basta observar a igualdade formal entre sujeitos mediada pelo contrato. Losurdo, contra o marxismo ocidental, adverte: a igualdade e a liberdade não são uma realidade absoluta. O imperialismo não erradicou, completamente, por suas necessidades, as estruturas e as superestruturas das sociedades pré-capitalistas, aplicando nas colônias ou semicolônias, distintas realidades que lhe faça extrair delas toda a mais valia possível. Na formação social imperialista, os modos de produção historicamente arcaicos coabitam, mas não na condição dominante de modo de produção, o que resta são formas de organização do trabalho, pressupostas e que preenchem os modos de produção dominantes e, com elas, certas regras que lhe são próprias, submetem-se as regras da forma jurídica do imperialismo. Neste contexto, a denúncia tão frequente do marxismo ocidental sobre a “garantia da igualdade, apenas, formal dada pela burguesia”, pode ignorar o materialismo dialético por não destacar essa contradição. O marxismo francês da década de 1960, procurava realizar a crítica ao direito burguês que apenas formal; no entanto, para o nigeriano ilegal, são aplicadas as formas de organização do trabalho mais arcaicas e informais, bem como, as regras dessa forma de organização do trabalho. Igualdade formal e desigualdade formal coabitam o mesmo espaço, um mesmo país. O Abandono das categorias de colônias e semicolônias gera drásticos problemas na análise jurídica do marxismo ocidental, pois desconsidera o materialismo dialético quando não ressalta as desigualdades formais: “quando afirma que o humanismo em última análise é burguês (...), a sociedade burguesa é recriminada por ater-se apenas à “igualdade formal” e, desse modo, são removidas também as desigualdades formais e os profundos processos conexos que caracterizam o capitalismo”[1]. A Forma Jurídica do Imperialismo: a Garantia das Desigualdades Coloniais Uma teoria materialista e dialética do direito seria incompleta se não levasse em conta o aspecto mais predominante da estrutura econômica: a passagem do período concorrencial ao período monopolista do capitalismo, isto é, o imperialismo. Conforme já explicado, a forma mais simples e abstrata do direito, de acordo com Pachukanis, encontra-se na forma “sujeito de direito”, na “forma contrato” e “na relação jurídica”. Aqui é necessário se deslocar ao âmbito geral do direito para o direito internacional e perceber como se movem as relações jurídicas internacionais através da forma sujeito ─ o Estado ─ e da forma contrato ─ os tratados internacionais, que formam as relações jurídicas entre as grandes nações. O Direito Internacional solidifica as regras para as ações concretas das potencias no imperialismo, e oculta, a partir de conceitos jurídicos de soberania e da igualdade, as relações que possuem caráter exclusivamente colonial ou semicolonial. A premissa do Direito Internacional infere a afirmação formal de uma soberania e independência, dando a ideia da inexistência de semicolônias e colônias, quando, na realidade, o desenvolvimento é dominado pelo capital imperialista nos setores estratégicos no Brasil. O Estado, de alguma maneira, nem que seja meramente formal, precisa ser dotado, formalmente, de soberania: “um conceito fundamental para o Direito Internacional é o de soberania, que não se confunde com a forma jurídica. Ali onde Vitoria afirmava igualdade jurídica, não afirmava igualdade soberana. Afinal, se colonizador e colonizado são juridicamente iguais, algo precisaria diferenciá-los para justificar a superioridade do primeiro. A soberania dos povos colonizados não poderia ser oposta para resistir à imposição da cultura cristã europeia. Porque a soberania dos civilizados é diferente da soberania dos [1] LOSURDO, Domenico. Como nasceu e como morreu o marxismo ocidental. <http://resistir.info/losurdo/marxismo_ocidental.html>.

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não civilizados. A doutrina tradicional, que se baseia no modelo de Westphalia para a origem do Direito Internacional, é incapaz de lidar com esse problema, porque une igualdade e soberania num só princípio”[2]. No Direito internacional público, os sujeitos não possuem, tão somente, igualdade e liberdade para negociarem seus interesses, ao menos no campo formal, eles são soberanos e, consequentemente, não se submetem uns aos outros. Entretanto, essa soberania não procura impedir que a exportação de capital ocorra de um país sobre o outro e que, com base nela, se construa indústrias, comércios e bancos cuja remessa de lucros retornará ao país que realizou o investimento. A disputa pelos territórios disponíveis para os países com excedente de capital cresceu na medida em que os monopólios passam a predominar a realidade capitalista. Os proprietários privados individuais, livres e iguais juridicamente, ao mesmo tempo em que são defendidos, dão lugar a relação entre Estados que se expressa pelo conceito jurídico “soberania” e que defendem, em última instância, a desigualdade. Isso se deve, sobretudo, pela expansão dos monopólios da burguesia imperialista. Essa expansão do capitalismo, todavia, só pôde se consolidar com base na diferenciação entre povos que justifica a colonização. Por isso é que o paradigma que tem a Paz de Westphalia como o marco inicial do Direito Internacional precisa ser colocado em xeque. Esse modelo de Westphalia, baseado no conceito abstrato de igualdade soberana entre Estados, impede uma visão capaz de explicar a subordinação e desequilíbrio de fato entre os Estados. Esse modelo, ademais, explica a soberania desde as particularidades históricas de Estados europeus, distintos dos Estados não-europeus que estiveram submetidos a uma história colonial. O modelo de Westphalia pretende opor o Direito Internacional ao colonialismo, quando na verdade o colonialismo, em distintas formas históricas, é a essência do Direito Internacional (ANGHIE, 2004). Diferentemente do modelo de Westphalia, o modelo de Vitoria permite a afirmação de que o conflito colonial é central para o desenvolvimento do Direito Internacional e faz parte de sua estrutura, chegando até sua forma contemporânea. Anghie (2004, p. 6, tradução nossa) dá o passo para essa mudança de paradigma: De acordo com essa versão da história convencional, o modelo europeu de soberania, estabelecido pelo fato definidor da Paz de Westphalia, foi gradualmente estendido para as periferias não-européias. Meu argumento, em contraste, é de que a soberania foi improvisada para fora do encontro colonial, e adotou formas únicas que se diferem e desestabilizam dadas noções de soberania européia. Como consequência, a soberania do Terceiro Mundo é distinta, e se tornou pelo Direito Internacional singularmente vulnerável e dependente. (Idem. Pag. 64, 65.) Visto deste modo o direito internacional, pela expansão do capitalismo, não faz com que seus sujeitos entrem em harmonia, mas sim o contrário, ressalta a posição deles perante suas contradições e as torna cada vez mais acentuadas[3]. Durante muito tempo a justificativa de expansão realizada pelos imperialistas, como, por exemplo, Cecil Rhoads foi a afirmação de que os povos africanos eram, por suas condições, atrasados, não civilizados e, consequentemente, inferiores. Rhoads costumava legitimar a expansão capitalista com teorias absurdas como o darwinismo social, uma teoria de cunho racista. Assim preconizava o próprio: Ontem estive no East-End londrino (bairro operário) e assisti a uma assembléia de desempregados. Ao ouvir ali discursos exaltados cuja nota dominante era: pão!, pão!, e ao refletir, de [2] MOREIRA, Júlio da Silveira. CRÍTICA DA IGUALDADE JURÍDICA NO DIREITO INTERNACIONAL: SEGURANÇA NUCLEAR E GUERRA AO TERROR. Disponível em: <http://tede.biblioteca.ucg.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1016>. Pag.166. [3] O desenvolvimento histórico do Direito Internacional foi o processo de conformação desses sujeitos. Desde Vitoria, no século XVI, era preciso afirmar a igualdade entre povos (no caso, cristãos europeus e nativos americanos). Mas não se tratava de uma igualdade absoluta, mas sim na forma jurídica. Uma vez que ambos possuíam o atributo da razão, a ambos se aplicava o direito natural, que contém a liberdade de comércio. A afirmação do Direito Internacional era a universalização da forma jurídica para que as sociedades capitalistas pudessem seguir no processo de acumulação de capital a partir das conquistas coloniais. Por isso, para Anghie (2004), o conflito colonial é central para o desenvolvimento do Direito Internacional e faz parte de sua estrutura.


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regresso a casa, sobre o que tinha ouvido, convenci-me, mais do que nunca, da importância do imperialismo ... A idéia que acalento representa a solução do problema social: para salvar os 40 milhões de habitantes do Reino Unido de uma mortífera guerra civil, nós, os políticos coloniais, devemos apoderar-nos de novos territórios; para eles enviaremos o excedente de população e neles encontraremos novos mercados para os produtos das nossas fábricas e das nossas minas. O império, sempre o tenho dito, é uma questão de estômago. Se quereis evitar a guerra civil, deveis tornar-vos imperialistas. (LENIN; 2012. P. 112.) A promessa realizada por Rhoads é que a exportação de capitais e mão de obra desempregada da Inglaterra, nos territórios africanos tornaria, a África, um continente civilizado e, consequentemente, Rhoads justificava a forma imperialista de dominação. Isso pode ser muito bem expresso pelo início da configuração jurídica da liga das nações. No programa ideal, os princípios constituintes da Liga das Nações marcavam a ascensão das relações internacionais de um positivismo a um pragmatismo (ou realismo político), representados por métodos tecnocráticos do imperialismo colonial, denominados de técnicas para governar. Deslocava-se o eixo da noção de soberania a partir de um sistema fechado e interativo, para assentar um fato social ligado ao exercício do poder. A organicidade de Mandatos marcou a mecânica estrutural da transição do capitalismo concorrencial para a política colonial imperialista, foi o que permitiu unificar o princípio da soberania nacional de todos os Estados, a independência deles, com a política colonial. O art. 22 do PSDN dispunha: 1. Os seguintes princípios serão aplicados às colônias e territórios que, em consequência da guerra, deixaram de estar sob a soberania dos Estados que os governavam precedentemente e que são habitados por povos ainda não capazes de se dirigir, nas condições particularmente difíceis do mundo moderno. O bem-estar e o desenvolvimento desses povos constituem sagrada missão de civilização, e convém incorporar ao presente Pacto garantias para o desempenho de tal missão. 2. O melhor método de se realizar praticamente esse princípio é confiar a tutela desses povos às nações desenvolvidas que, em razão de seus recursos, sua experiência ou da sua posição geográfica, sejam as mais indicadas para assumir tal responsabilidade e que consintam em aceitá-la; elas exerceriam essa tutela na qualidade de mandatárias e em nome da Sociedade. (COLETÂNEA DE DIREITO INTERNACIONAL, 2010, p. 230)[4] (grifos nossos) É evidente, quanto ao conceito definido acima: a distinção entre populações ou povos que não podem se desenvolver, pois procura tratar de um paradigma civilizatório e nações que possuem o papel de dirigir países carentes do plano internacional ao plano nacional, o que, por si só, fundamenta a política colonial a partir de uma forma jurídica, um revestimento jurídico de independência. A reafirmação da política colonial ou semicolonial não se desintegrou junto com a liga das nações, sua sucessora, a ONU, também vem demonstrando que falha miseravelmente em trabalhar a resolução de problemas antigos da colonização. Anghie mostra casos exemplares da permanência dessa lógica. Debates levantados por juristas do Terceiro Mundo invocaram perante a ONU a doutrina da Soberania Permanente sobre os Recursos Naturais para revogar tratados coloniais de pilhagem de recursos. A Assembléia Geral da ONU negou a demanda e chancelou esses tratados, mostrando-se incapaz de discutir a responsabilidade internacional por danos causados durante o período de colonização e arbitrar reparações. Outro exemplo são casos de arbitragem internacional em que as cortes arbitrais passaram por cima da imperatividade da legislação doméstica que protegia o acesso a recursos naturais em países de Terceiro Mundo, sobrepondo ao princípio da soberania a força obrigatória dos contratos. Esse processo permite entender que existem diferentes tipos de soberania, a soberania dos países imperialistas e a soberania dos países semicoloniais. Esse exemplo, na atualidade, é tão claro, que [4] Liga das Nações

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permite verificar que a principal potência imperialista, os Estados Unidos, mais submete as nações aos tratados internacionais do que se submete a eles. O protocolo de Kyoto está aí para nos provar isso. Aqui se recupera o paradigma colonial civilizatório, retomando as definições de Francisco de Vitoria que haviam sido aplicadas no Direito Internacional do século XIX. Conforme já se explicou, a noção de soberania é modificada, para atender a duas medidas diferentes de soberania: a dos povos civilizados e a dos povos não civilizados. Embora sejam iguais em direitos (igualdade jurídica), esses dois grupos não são iguais em autonomia e soberania. Resta ao primeiro o dever histórico de “libertar”, “civilizar”, ou seja, fazer com que os diferentes se tornem iguais, adaptando-se a um padrão pré-estabelecido pelos primeiros. Assim era o Direito das Gentes entre colonizadores espanhóis e nativos americanos, como expressou Vitoria na obra Sobre os Índios Recentemente Descobertos, em 1532. Assim é o Direito Internacional da Guerra ao Terror[5]. Basicamente, o país que se encontra sobre grande desenvolvimento industrial, agrícola, e que, no processo de acumulação, se encontra em vantagem sobre os demais e, por isso, se enquadram melhor na essência do conceito de civilização, ocupam as melhores condições mercantis e financeiras no mundo, colocando os demais sob suas regras. Portanto, o exercício da soberania nesses países é desenvolvido, tanto quanto as relações econômicas permitem que seja. O conceito de soberania, para se expressar, depende, em muito, do imperialismo. As lutas anti-coloniais e a descolonização, assim, fizeram culminar o processo de soberania dos sujeitos estatais, constituindo uma ordem mundial de “livre” mercado que mantém as práticas de discriminação racial, exploração econômica, desapossamento territorial e subordinação cultural, que são aspectos centrais no projeto imperial (ANGHIE, 2004). Miéville (2006, p. 270, tradução nossa) conclui que o imperialismo do Direito Internacional significa mais que apenas a difusão global de uma ordem jurídica internacional com o capitalismo – significa que a dinâmica de poder do imperialismo político está embutida dentro da própria igualdade jurídica da soberania[6]. O desenvolvimento do imperialismo precisa, para fazer o poder do capital financeiro dominar, da criação e reprodução do capitalismo burocrático, cuja a principal característica infere, para o proveito do lucro, a manutenção de estruturas sociais arcaicas, com modos de produção dominados, que dependem da desregulamentação do Estado e da soberania formal, na função de regulador desses modos de acumulação que permitem concretizar privilégios a burguesia imperialista. Neste sentido, a universalização da forma jurídica é permeada por essas condições, baseando não exatamente a legalidade, mas a desregulamentação. Os tratados internacionais segundo Mao-Tse-Tung, tem a função de subjugar as colônias e semicolônias: 2) As potências imperialistas compeliram a China a assinar inúmeros tratados desiguais, por força dos quais adquiriram nesta o direito de manter forças marítimas e terrestres, bem como o de exercer uma jurisdição consular; o país inteiro foi dividido em várias esferas de influência imperialistas. 3) Com esses tratados desiguais, as potências imperialistas conseguiram o controle de todos os portos comerciais importantes da China e transformaram parte de muitos desses portos em concessões colocadas sob sua administração direta. Além disso, conseguiram também o controle das alfândegas chinesas, comércio exterior e comunicações (marítimas, terrestres, fluviais e aéreas). Assim é que tais potências ficaram aptas a inundar a China com as suas mercadorias, transformando-a em mercado para os seus produtos industriais, ao mesmo tempo que subordinavam a agricultura desta as suas necessidades imperialistas[7]. [5] MOREIRA, Júlio da Silveira. CRÍTICA DA IGUALDADE JURÍDICA NO DIREITO INTERNACIONAL: SEGURANÇA NUCLEAR E GUERRA AO TERROR. Disponível em: <http://tede.biblioteca.ucg.br/tde_busca/arquivo.php?codArquivo=1016>. (P. 149, 150) [6] Idem. Pag. 112. [7] TSE TUNG, Mao. “A Revolução Chinesa e o Partido Comunista da China”. Disponível em: < http://www.marxists.org/portugues/ mao/1939/12/revolucao.htm>.


“Direito e Materialismo Histórico: entre a forma jurídica e a forma primitiva na dominação de classe”

Conclusão A Teoria do Imperialismo, dos clássicos Lenin e Rosa Luxembrugo, aos atuais Sison, e Losurdo, é de fundamental relevância para compreender o Direito Internacional e a desigualdade que ele alimenta. O Imperialismo jamais deverá ser caracterizado, tão somente, pela sua política de agressividade militar: 1) Primeiro, sua genealogia é econômica, e através da economia, e para mantê-la na exploração, o imperialismo, necessariamente, teve de corresponder ─ e ainda, na atualidade, infere ─ ao racismo, como foi demonstrado na acepção de Rhodes. O que de certo modo nos faz perceber que a desigualdade de raças, ou as desigualdades em geral, tem como ponto de intersecção de todas as condensações hegemônicas a economia. Segundo Lenin:“se o ‘mérito’ do imperialismo consiste em ‘educar o negro para o trabalho’, (é impossível evitar a coerção...), o seu “perigo” consiste em que a “Europa descarregue o trabalho físico - a princípio o agrícola e mineiro, depois o trabalho industrial mais rude sobre os ombros da população negra e se reserve o papel de rentier, preparando talvez desse modo a emancipação econômica, e depois política, das raças negra e vermelha”.(p. 143) 2) O imperialismo é proporcional ao advento do capitalismo monopolista, que ocorre com o fim da predominância do capitalismo de tipo concorrencial, no qual as potências vão, necessariamente, fortificar as conquistas pela briga direta por territórios, sua partilha e sua repartição de colônias e semicolônias com configurações jurídicas diversas em cada uma delas; 3) Terceiro, o Imperialismo não conta apenas com práticas concretas de militarismo, mas possui, a sua disposição uma totalidade de relações hierárquicas que vão desde o pacifismo, até a diplomacia e os tratados internacionais e, em última instância, as guerras. A forma jurídica no imperialismo constitui tanto as igualdades formais quanto as desigualdades formais, o que varia das condições econômicas. Caso um país seja imperialista, o reflexo da socialização capitalista, para proveito do lucro da mais valia, não será o mesmo do que é em um país colonizado ou semicolonial. Nestes países a predominância da desregulamentação pela regulação é mais forte. Além do mais a disputa entre países imperialistas normalmente faz potencias imperialistas fortes ─ como Estados Unidos e o Japão ─ e as potencias imperialistas secundárias ─ a França, a Inglaterra, a Holanda e a Alemanha.

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“Partido Comunista (Acción Proletária), o combate ao revisionismo e a revolução na América Latina”

Partido Comunista (Acción Proletária), o combate ao revisionismo e a revolução na América Latina Entrevista com Eduardo Artés Brichetti

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Nesta terceira edição da Revista Nova Cultura, apresentamos esta entrevista feita com Eduardo Artés Brichetti, Primeiro-Secretário do Partido Comunista Chileno (Ação Proletária). O PC (AP) é um partido que se guia pela ideologia do marxismoleninismo e, atualmente, luta para criar uma alternativa realmente de esquerda ao regime da chamada “nova maioria”, que conta com a participação ativa do Partido “Socialista” e do falso Partido Comunista do Chile. Leva a cabo de maneira exitosa a luta contra o revisionismo, mas também contra os elementos fascistas da sociedade chilena. Na entrevista, Artés apresenta a posição do seu Partido sobre variados assuntos, entre eles, sobre a política chilena, a luta contra o imperialismo e a situação atual do Movimento Comunista Internacional.

Nova Cultura: Qual a posição do PC (AP) sobre o governo neoliberal de Michelle Bachelet? Eduardo Artés Brichetti: Michelle Bachelet é a cabeça ou bandeira do neoliberalismo, de uma simulação de “mudanças”, onde a demagogia somada à infiltração e/ou monitoramento das organizações de massa é permanente, junto com a repressão aberta quando o movimento supera os marcos permitidos. Bachelet é um elemento ligado de maneira absoluta ao imperialismo norteamericano. Sua história e seus interesses que representa, são os do grande capital. Não em vão, personalidades deste mesmo setor a premiaram com cargos de máxima relevância nos organismos internacionais controlados por e a serviço do imperialismo, como a ONU Mulher e outros. Bachelet é eleita por cerca de 25% do total do padrão eleitoral. Com um confuso e fraudulento programa de “mudanças”, tende a maquiar tudo para que nada mude. Apoiando-se na inclusão do não-comunista Partido “Comunista” do Chile na “nova maioria”, montaram uma camarilha política destinada ao adormecimento das massas, que ainda que sem objetivos próprios, não suportam a gestão do modelo capitalista em sua versão neoliberal. Não temos nenhuma dúvida, e estes cinco meses de governo o confirmam, que Bachelet é mais do mesmo, é mais um governo do capital pró-imperialista. Reafirmamos assim que o único caminho para a libertação nacional e socialismo é a Revolução democrático-popular e socialista.


“Partido Comunista (Acción Proletária), o combate ao revisionismo e a revolução na América Latina”

Com Bachelet, todas as demandas políticas e econômicas das massas populares são diluídas em anúncios de intenções que possivelmente se realizarão ao longo do tempo, incluindo após seu mandato. A convocação de uma Assembleia Constituinte, a renacionalização do cobre, o fim dos Fundos de Pensão (que são privados no Chile) e construção de um sistema de pensões solidário e digno, educação sem fins lucrativos, etc. etc. estão totalmente fora da agenda neoliberal de Bachelet. Desde o Partido Comunista Chileno (Ação Proletária), trabalhamos duramente para levantar entre as massas uma potentes “Oposição Popular” contra Bachelet e todas as representações políticas reacionárias pró-imperialistas, e, através dessa maneira, abrir caminho para a política operária e popular. Nova Cultura: Como se dá a luta do PC (AP) contra o revisionismo do Partido Comunista do Chile? Eduardo Artés Brichetti: Como comunistas, temos claro de que é impossível avançar na luta pela revolução e o socialismo, sem desmascarar, golpear e derrotar o revisionismo. É por isso que enfrentamos abertamente e em todos os terrenos o não-comunista Partido “Comunista” do Chile, está é uma luta que desenvolvemos ao calor da própria vida, da luta de classes a nível nacional e internacional. O combate ao oportunismo, à traição revisionista, fazemos de cara a cara com com as massas, de forma ideológica, política e orgânica. A decomposição do Partido “Comunista” do Chile é de tal natureza e profundidade que, hoje em dia, é mais um agrupamento burguês, a serviço total do imperialismo e da reação criolla, colocando-se inclusive à direita de muitos abertamente social-democratas, o que por si só é suficiente para ser considerado um inimigo declarado dos trabalhadores e dos povos. Nova Cultura: Como o PC (AP) analisa a luta de libertação nacional do povo Mapuche e outros povos originários do Chile? Como o PC (AP) participa de tais lutas dessas minorias nacionais? Eduardo Artés Brichetti: Desde o nascimento de nosso Partido, compreendemos o caráter plurinacional do Chile. A partir daí, levantamos a construção de um Estado plurinacional, que hoje em dia no Chile o Estado pró-imperialista reconhece como uni nacional. Estamos absolutamente juntos às lutas das nações Mapuche, Aymara e Rapanui, entre outras, por seus direitos nacionais, dentro de uma unidade estatal. Como comunistas, e sem desconhecer o direito de cada povo ou nação à total auto-determinação, trabalhamos a partir de um critério de classe, pela unidade e colaboração fraternal entre todos os povos que formam parte do Chile. Concretamente, somos parte das lutas pela devolução das terras, direitos culturais, etc. de todos os povos originários, pelo fim da perseguição contra ele, pela libertação de seus prisioneiros políticos. Nova Cultura: Como o PC (AP) compreende a participação dos comunistas nas eleições? Eduardo Artés Brichetti: Como uma forma de luta, como momentos de difundir o programa, políticas e propostas específicas dos comunistas, tudo dentro de um processo geral de acumulação de forças, pela batalha principal pela tomada do poder político, pela Revolução democrático-popular e socialista. As eleições em um estado capitalista são convocadas pelos burgueses, com suas regras e para resolver suas contradições na administração pública. Nelas, os setores dominantes investem somas de dinheiro impossíveis de se equiparar às dos genuínos partidos operários e populares. Em suma, a não ser em momentos excepcionais, as eleições são resolvidas em favor deste ou daquele setor capitalista ligado ao imperialismo. Nova Cultura: Qual a importância do camarada Luis Emílio Recabarren para o movimento comunista chileno? Eduardo Artés Brichetti: Muito grande, e é justamente considerado o pai do movimento operário no Chile. Recabarren participou do desenvolvimento do movimento operário e dos partidos comunistas em outros países. Na Argentina, teve um papel de destaque nesse sentido. Os

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revisionistas traíram e negaram toda a obra de Recabarren. Os anticomunistas da direção do Partido “Comunista” reverteram o histórico passo dado por Luis Emilio Recabarren, de dar por superado ideológica, política e organicamente o Partido Operário Socialista, e fundar o Partido Comunista do Chile como um Partido de novo tipo, sob uma perspectiva de tomada do poder pela classe operária, à frente das massas populares. Os revisionistas do Partido “Comunista” assumem como data de sua fundação o dia do nascimento do assembleísta e mutualista POS e não o próprio acontecimento de 10 anos depois. A passagem do POS ao PC encabeçado por Recabarren fui uma séria tentativa de construção de uma autêntica vanguarda proletária e não uma simples mudança de nome que “nunca deveria ter sido feita”, como os oportunistas dirigentes do Partido “Comunista” sustentam. Nova Cultura: Como se deu o processo da chamada “redemocratização” chilena após a ditadura militar levada a cabo pela grande burguesia chilena? Hoje, o que permanece dos período fascista do governo Pinochet na sociedade chilena? Eduardo Artés Brichetti: Acredito que é mais justo falar de institucionalização de um modelo de desenvolvimento capitalista, como é o neoliberal, que foi imposto a sangue e fogo pela ditadura militar fascista. Atualmente continua vigente a constituição política fascista, imposta de forma fraudulenta por Pinochet em 1980. O modelo econômico subordinado ao capital imperialista no foi modificado no seu mais básico, recebendo elogios de instituições como o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial. A “volta à democracia” forçada pelas grandes e combativas mobilizações de massas e pelas manobras do imperialismo ianqui e europeu ocidental para resguadar seus interesses, viveu seus primeiros e principais momentos, em meio a bancarrota geral do revisionismo no poder na URSS e nos países europeus incluso a Albania, quando o sistema capitalista proclama sua vitória “definitiva” sobre o socilaismo, o “fim da história” e das “utopias sociais”. Quando as forças auto-proclamadas comunistas, socialistas, revolucionárias em confusão total, buscar a “renovação” pela direita, dando o passo para o nascimento de diversos “socialismos” toleráveis e cuja existência não criara nenhuma contradição com o capitalismo, pelo contrário, ajudara a este a ter um “rosto humano”. Não somente existem vestígios do período de Pinochet, como


“Partido Comunista (Acción Proletária), o combate ao revisionismo e a revolução na América Latina”

também se vive seu modelo e continuação do mesmo. Hoje o que está colocado é a Refundação do Chile, da Pátria Nova que abra caminho ao Socialismo. Nova Cultura: Qual a visão do PC (AP) sobre a situação do movimento comunista internacional hoje? Eduardo Artés Brichetti: Se desenvolve em meio à contradições de caráter ideológico, em alguns países de observam avanços de organizações e partidos que reivindicam o comunismo, sobretudo em suas inserções nas massas, isto dinamizado pela busca incessante dos trabalhodores e povos de uma direção justa e correta, que permita enfrentar com êxito à reação e ao imperialismo. Hoje é necessário que nós, comunistas, nos apeguemos como nunca ao caráter científico de nosso pensamento, buscando o essencial, de tal forma que com toda a experiência acumulada, com os princípios proletários relativos à luta de classes, ao Partido e ao socialismo, nos coloquemos no lugar que como vanguardas do proletariado, à frente das massas exploradas. A partir da ciência, do pensamento comunista, dos princípios revolucionários do proletariado, devemos impulsionar o avanço do Movimento Comunista Internacional, temos uma rica experiência de grandes revoluções e também de derrotas. Sabemos como manobra o imperialismo e de como se serve dos desvios ideológicos de alguns que se reivindicam “comunistas”, de aqueles que sem um mínimo de pudor, proclamam suas alucinações “teóricas”, de “revoluções socialistas imediatas e inclusive mundiais” com as quais negam o combate dos povos e países pela salvação, pela soberania e pela libertação nacional, partes integrantes do combate pelo socialismo, diante da agressão em escala global do imperialismo. Somos comunistas e portanto otimistas sobre um novo e superior momento do MCI frente à situação política mundial e pelo momento, não nos referimos a aspectos particulares e a partidos e organizações específicas, a prática de cada um está falando por sí só. Nova Cultura: Qual a análise do PC (AP) sobre o atual momento político na América Latina? Qual a posição sobre o processo bolivariano na Venezuela? Eduardo Artés Brichetti: América Latina, seus povos e trabalhadores buscam a soberania, ser dono de seu destino esta justa aspiração que atravessa toda nossa história, hoje se expressa ou se pode observar na existência de diversos regimes auto-reivindicados progressistas, servem na maioria das vezes aos grandes capitalistas e ao imperialismo, foram eleitos por suas promessas de levar adiante as mudanças exigidas pelos povos. Podemos afirmar que na América Latina a tendência, a busca é pela soberania, pela liberdade e pela superação social, é dizer, pelo socialismo. Objetivamente a necessidade da mudança estrutural em nossos países está colocada e é uma aspiração presente em nossos povos, a dificuldade está no fator subjetivo, na qualidade de quem se põe à frente da resolução da mesma. Nestes tempos não têm sido os setores mais avançados da sociedade, os trabalhadores e suas organizações sindicais de claro conteúdo classista e o mais importante, seus genuínos Partidos Comunistas, os que tem estado à frente da luta. A tarefa mais importante na América Latina é fortalecer e/ou formar genuínos Partidos Comunistas que saibam colocar-se à frente das lutas por liberdade, independência, soberania e socialismo, esta é a única garantia que os combates populares e incluso os levantamentos operários, camponeses, povos originários e demais massas, não fiquem no meio do caminho, senão que deem um passo para uma nova sociedade centrada nos povos e trabalhos, ao socialismo. Apoiamos o povo da Venezuela, o governo do Presidente Maduro em suas medidas soberanas antiimperialistas e em benefício das massas populares, saudamos os esforços para avançar e aprofundar nas conquistas populares que expressam diversos setores do povo venezuelano no território econômico, social e inclusive militar diante das ameaças de golpe fascista. Por experiencia sabemos que na luta de classes, existem leis que não se podem passar por cima, se se quer triunfar em um projeto que se pretenda revolucionário e clara não se pode, nunca foi possível, construir uma nova sociedade sem derrotar a velha ordem estabelecida, sem uma genuína revolução. No Chile isto todos sabemos bem, ao menos no PC (AP).

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Nova Cultura: Como se desenvolvem as relações entre o Partido Comunista (Acción Proletaria) e o Partido do Trabalho da Coreia? Eduardo Artés Brichetti: São relações fraternais, entre camaradas e de apoio mútuo. O Partido do Trabalho da Coreia, PTC, é um partido irmão do Partido Comunista Chileno (Ação Proletária), PC (AP), que de maneira correta e sabiamente, luta e dirige a República Popular Democrática da Coreia na construção socialista, na luta contra o domínio e a agressão imperialista, pela paz e a liberdade dos povos, nações e países. Esta é uma enorme contribuição do PTC aos povos, à luta pelo socialismo em escala internacional. Este é um ponto que se compreende em toda sua magnitude, na relação de irmandade entre o PC (AP) e o PTC. Trabalhamos constantemente para difundir a experiência soberana da RPDC, e podemos dizer que obtivemos importantes logros neste caminho. De forma sustentada, aumenta a simpatia pela Coreia Popular, por seus logros na defesa nacional, pela construção da sociedade avançada e superior, o socialismo. Faz praticamente um ano que o PC (AP) realizou sua visita oficial, por convite do PTC, à gloriosa República Popular Democrática da Coreia, a qual foi fundamental para estreitar ainda mais os laços entre nossos Partidos, para apoiarmo-nos mutuamente na causa comum pela liberdade, a revolução e o socialismo. Nova Cultura: Qual a avaliação da experiência da Unidade Popular de Salvador Allende? Quais foram os erros que levaram a derrota frente ao fascismo? Eduardo Artés Brichetti: Para avaliar a experiência da Unidade Popular e do Presidente Salvador Allende, seria necessário um espaço grande, muita reflexão, de maneira a expor de forma madura e fundamentada aquele memorável momento na história do Chile, dos trabalhadores e povos. Seria necessário dar-nos outra oportunidade. Contudo, podemos somente pontuar algumas coisas. A instalação do governo do Presidente Salvador Allende foi o momento mais destacado no desenvolvimento das forças democráticas, antiimperialistas e socialistas no Chile. Em 11 de julho de 1971, Salvador Allende colocou fim à exploração imperialista sobre a principal riqueza do Chile, o cobre, e esta seria posteriormente uma das causas principais de sua derrubada pelas mãos dos militares fascistas, sob ordens do imperialismo norteamericano. Hoje, novamente, a exploração do cobre está em 72% sob as mãos das empresas capitalistas. A privatização da propriedade foi feita principalmente governo da consulta, pelos mesmos que hoje governam com Bachelet. Junto às medidas de soberania sobre os recursos naturais, o governo do Presidente Salvador Allende levou a cabo a reforma agrária, entregando terras a milhares de camponeses, ampliou e desenvolveu os serviços de saúde, moradia e educação para amplos setores populares, nacionalizando e passando para a propriedade do Estado alguns bancos e indústrias monopolistas. Salvador Allende realizou uma política externa de clara identificação com os povos, países e processos democráticos e socialistas, de ativa solidariedade antiimperialista, pela qual é lembrado e respeitado a nível internacional. Está claro que as medidas tomadas não eram vistas com indiferença pela oligarquia e o imperialismo, muito pelo contrário. Eles contavam com um grande poder institucional, econômico, militar, e religioso, e se organizaram, conspiraram e se prepararam para obter o que haviam perdido. Os atentados fascistas, as explosões de pontes, os assassinatos eram coisa diária. O desvio de alimentos e demais bens de consumo popular era feito pelos reacionários e levados ao mercado negro. Isto é o que, em certa medida, vive hoje a Venezuela bolivariana. Foi o que permitiu à reação no Chile aumentar o descontentamento das camadas médias e contar com uma base social, que apoiou, ou se manteve neutra, frente ao golpe que derrubou o Presidente Allende. A experiência chilena, uma vez mais, deixa claro que não se pode destruir o capitalismo, as garras do imperialismo, simplesmente ganhando uma eleição, ocupando o velho e reacionário aparato estatal. Os trabalhadores e os povos serão derrotados se não possuírem um genuíno Partido Comunista à frente, e que jamais os capitalistas se retirarão da história por sua própria vontade.


Figuras do Movimento Operário

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Figuras do Movimento Operario Diógenes Arruda

Diógenes Alves de Arruda Câmara, nasceu na cidade de Afogados de Ingazeira, Pernambuco, Brasil. Ingressou no Partido Comunista do Brasil (PCB), em 1934, e ligou-se ao comitê da Bahia, para onde se transferiu, como funcionário do Ministério do Trabalho. Foi editor da revista Problemas. Durante o Estado Novo, viveu, por três anos, na Argentina, onde se articulou com vários comunistas. Serviu de elemento de ligação entre grupos que reorganizavam o PCB e terminaram se aglutinando em torno de Luis Carlos Prestes. Em 1943 passa a fazer parte do Comitê Central do PCB. Em 1947 foi eleito Deputado Federal por São Paulo na legenda do Partido Social Progressista (PSP), escapando, assim, da cassação de mandatos que se seguiria, com o cancelamento do registro do PCB. Com as mudanças ocorrida no PCB, em um primeiro momento, Arruda permanece nas fileiras do partido revisionista. Em 1968 foi preso e torturado pela Ditadura Militar que se instalara no Brasil em 1964. Foi solto em 1972 e exilou-se na França. Retornou ao Brasil em outubro de 1979, após a anistia política e faleceu logo em seguida, em novembro do mesmo ano, no mesmo dia em que João Amazonas regressava do exílio.


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“A Revolução Coreana e a luta do seu povo pela independência”

A Revolução Coreana e a luta do seu povo pela independência por A R

lexandre osendo

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Ao falar sobre as guerras de agressão do imperialismo, não se pode entendê-las em sua totalidade sem falar na situação gravíssima que se passa na Península Coreana há quase setenta anos. A questão coreana de hoje é fruto de uma série de acontecimentos históricos que se desenrolam, basicamente, desde 1910, ano em que ocorre a anexação do território da Coreia pelo Império Japonês. Com a enorme opressão feita pelo imperialismo japonês contra todo o país, o povo coreano empreendeu uma prolongada luta de libertação nacional que foi culminar com a libertação do norte da Coreia em agosto de 1945, através de operações realizadas em conjunto pelo Exército Vermelho da União Soviética, que havia declarado guerra contra o Japão, e pelo Exército Popular Revolucionário da Coreia, comandado pelo general Kim Il Sung. Mesmo com a Coreia recém-saída do período da libertação, do período das reformas democráticas feitas para liquidar as chagas do colonialismo japonês e do feudalismo, em menos de cinco anos a jovem República Popular e Democrática da Coreia foi submetida a uma guerra de agressão pela maior potência imperialista do mundo, os Estados Unidos, guerra esta que tirou a vida de 3 milhões de coreanos e causou inúmeros sofrimentos para o povo e retrocessos para sua economia. Para termos uma ideia do tamanho da destruição causada pelos Estados Unidos contra a Coreia do norte, a capital Pyongyang, que no período do conflito tinha cerca de 420 mil habitantes, foi bombardeada não menos que 428 mil vezes. Seria como jogar 13 milhões de bombas contra o município de São Paulo. Ainda que muito destruída pela guerra, a Coreia do norte, com a ajuda do Exército Voluntário do Povo Chinês enviado pelo Presidente Mao Tsé Tung, foi capaz de impor aos Estados Unidos a primeira derrota militar de toda sua história, com a assinatura do Tratado de Armistício em 27 de julho de 1953. Foster Dulles, secretário de Estado norte-americano, disse certa vez que, após a guerra, a Coreia do norte não seria capaz de se reconstruir nem em 100 anos. Jogando por terra os comentários provocadores, a Coreia do norte, rendendo homenagem aos países de democracia popular que lhe ajudaram financeira e tecnicamente, foi capaz de realizar sua industrialização socialista em 17 anos. Já no início dos anos 70, a Coreia, que outrora era conhecida no mundo como um atrasado país colonial e semifeudal, foi capaz de emergir como um país socialista industrial e avançado, consolidando a ditadura do proletariado, a aliança operário-camponesa, e levando a cabo sua revolução cultural e ideológica, tanto para capacitar os trabalhadores com novos conhecimentos técnicos, tão necessários para a expansão da produção industrial e agrícola, quanto para derrotar no terreno ideológico os inimigos de classe da Revolução coreana, as velhas ideologias burguesas e feudais, e formar todos os seus cidadãos como disciplinados comunistas. Tudo isso, claro, feito sob pressões, bloqueios, sanções e ameaças militares por parte do imperialismo norte-americano, japonês e de seus fantoches militaristas sul-coreanos. Após a queda da União Soviética e dos países do bloco soviético do Leste Europeu, sofreu enormes reveses em sua economia, perdendo seus principais parceiros comerciais do dia para a noite. Com o corte na importação de petróleo e minérios por parte da URSS e demais países do Leste Europeu e a enorme escassez de divisas em dólar, a RPDC viu sua indústria e agricultura retrocederem em muitos anos. Além disso, anos e anos de enchentes e secas contribuíram para causar vários danos contra a agricultura – todos esses fatores, combinados com a necessidade cada vez maior de a Coreia do norte destinar crescentes recursos para o desenvolvimento de seu programa nuclear e fortalecer sua capacidade defensiva para fazer frente às provocações militares do imperialismo, causaram duros golpes contra o padrão de vida da população da Coreia, levando a períodos de desabastecimento de alimentos e combustíveis, e obrigando a país a se tornar um importador de alimentos. Esse período, tão difícil para o povo coreano, que durou do início dos anos 90 até início da década de 2000, é conhecido até hoje como o período da “Árdua Marcha”. Contudo, o período de dificuldades também gerou grandes experiências práticas para o povo coreano em luta pelo socialismo: A política Songun, que significa dar prioridade aos assuntos militares e ter o Exército como o destacamento de vanguarda mais avançado da Revolução, de se priorizar o Exército ante a classe operária, é por excelência filha da década de 90. É a partir da década de 90, no período de maiores provocações por parte do imperialismo e enormes dificuldades, é que a política de priorização militar passa a ser exercida na Coreia como forma fundamental da política socialista. A política Songun da Coreia socialista, que teve Kim Jong Il como principal teórico que a


“A Revolução Coreana e a luta do seu povo pela independência”

fundamentou e aplicou, possibilitou ao país se tornar uma grande potência militar e espacial, dando para a Coreia socialista meios fundamentais de dissuasão militar, que permitiram garantir a paz na região do Leste Asiático, evitando que a península coreana se tornasse um cenário como o Iraque, Afeganistão, Líbia ou, em tempos atuais, como a Síria. No campo espacial, dos quatro satélites artificiais lançados pelo país, os Kwangmyongsongs 1, 2, 3, e 3-2, o Kwangmyongsong-3 foi o único que não entrou em órbita: A Coreia do norte já se situa entre os dez únicos países do mundo que conseguiram lançar satélites artificiais com a própria tecnologia. Sempre firme ao princípio da Ideia Juche de se manter a independência na construção econômica, na defesa e na política, o Partido do Trabalho da Coreia liderou o povo coreano para superar as dificuldades na economia e, nos dias de hoje, boa parte das dificuldades herdadas do período da “Árdua Marcha” já foram superadas. Tive a oportunidade de visitar a Coreia popular e democrática em 2011 e 2012, participando das homenagens do povo coreano ao principal líder da Revolução Coreana e fundador da República Popular, o Presidente Kim Il Sung. Vimos algumas dificuldades pelas quais o país visivelmente passava, como quando sobrevoamos o aeroporto de Pyongyang e víamos plantações de arroz no meio das pistas, o que denunciava provavelmente a necessidade de os coreanos aproveitarem cada cm² de terra em razão das dificuldades climáticas para o crescimento das lavouras (as montanhas cobrem 85% do território da República democrática e popular), ou quando ainda víamos nas ruas alguns ônibus velhos (o que provavelmente era compensado pelos baixos preços das passagens, de apenas 5 wons). Ao lado dessas certas dificuldades que ainda subsistiam, vimos também um país completamente transformado pelo socialismo. Pyongyang, capital da Coreia do norte, é uma capital que mais parece um jardim. Nas ruas, inclusive quando andávamos em Pyongyang à noite, não se viam cenas tão típicas que parecem já banais para nós do mundo capitalista e do Terceiro Mundo, de milhares de pessoas morrendo de fome nas ruas, se prostituindo ou se viciando em crack. Desde 1972, o governo revolucionário da República Popular Democrática da Coreia aplica em todo o país o ensino gratuito, compulsório e universal de 11 anos. No ano de 2012, o ensino gratuito, compulsório e universal foi estendido para 12 anos: Hoje, não há na Coreia do norte uma única pessoa que não saiba ler e escrever. Toda gente estuda. Aliás, a Coreia do norte se orgulha de ter sido o primeiro país da Ásia a erradicar o analfabetismo, no ano de 1949, antes mesmo do início da Guerra da Coreia. No sentido da educação, toda província da Coreia possui o seu “Palácio das Crianças”, local para onde são enviados os melhores estudantes das províncias para que possam aprimorar seus conhecimentos. Todas as escolas possuem excelentes instalações e professores com diploma universitário, sem que para isso os pais necessitem pagar nada – no máximo, algum valor simbólico para a questão de materiais escolares ou uniformes. O sistema de impostos foi sendo abolido gradualmente desde o início dos anos 60. Primeiro, com a abolição do imposto camponês no ano de 1966, depois com a abolição completa do sistema de impostos em abril de 1974[1]. Todos os modernos apartamentos onde vivem os norte-coreanos, que abrangem desde Pyongyang até a mais remota aldeia rural, são subsidiados à população pelo Estado – os moradores pagam somente um valor simbólico de 1% dos salários nominais para manterem os apartamentos[2]. Sobre o sistema de saúde, também pude testemunhar os avanços feitos pelo socialismo da Coreia do norte nessa área. Nas palavras da Margharet Chan, diretora-geral da OMS, Organização Mundial da Saúde, que visitou a Coreia do norte no ano de 2010, o sistema de saúde do país é o melhor da Ásia, e um exemplo a ser seguido por todos os países desenvolvidos do mundo. A Coreia do norte também desenvolve inúmeros programas de vacinação que são elogiados por várias organizações internacionais de saúde –no ano de 1991, 99,5% da população já estava vacinada contra paralisia infantil, 99% da população já estava vacinada contra o sarampo e 97% já estava vacinada contra difteria, tétano e coqueluche[3]. Em termos de comparação com o período do colonialismo japonês, a situação é basicamente esta: em 1944, a cada mil crianças nascidas vivas, 204 morriam antes de completar cinco anos. Em 1991, na Coreia do Norte, somente 9 em cada mil crianças nascidas vivas morriam antes de completar cinco anos, número este inferior a menos de [1] HUI, Kim Yong. Successful Solution of Tax Problem in Korea. Pyongyang: Foreign Languages Publishing House, 1990, p. 8. [2] SURET-CANALE, J.; VIDAL, J. E. A República Popular Democrática da Coreia. Lisboa: Editorial Estampa Ltda., 1977, p. 10. [3] The Blessed Younger Generation. Pyongyang: Kyowon Sinmun, 1992, p. 10.

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metade da média brasileira, e muito menor do que a maior parte dos estados brasileiros[4]. Hoje em dia, a Coreia do Norte também desenvolve um programa de saúde que consiste em incentivar que, ao invés de os pacientes irem aos consultórios, os médicos vão às casas dos pacientes. Não precisamos sequer dizer o óbvio: a Coreia do norte que vimos com nossos próprios olhos é diametralmente diferente daquela que é mostrada na imprensa reacionária, que insiste em fazer sempre reportagens mentirosas sobre o país. Trataremos de apresentar aos nossos leitores, nas próximas palavras, o correto balanço da experiência coreana feito pela União Reconstrução Comunista. A COREIA COLONIAL E SEMIFEUDAL E A ASCENSÃO DA REVOLUÇÃO COREANA A tensão que hoje se desenvolve na península coreana tem suas origens, como já foi sublinhado, no início do século XX. O período do início do século XX tem como característica principal a passagem do mundo para a etapa que Lenin classificava como a etapa do imperialismo e das revoluções proletárias. O capitalismo, que era antes o modo de produção característico de alguns poucos países desenvolvidos, como Inglaterra, França ou Alemanha, passa a se estender também os países atrasados. O mundo imperialista, assim, passa a se dividir em dois polos: de um lado, os países capitalistas, que concentram as grandes indústrias monopolistas, os grandes bancos do capital financeiro, e da exportação de capitais predominante sobre a exportação de mercadorias; do outro, os países coloniais, semicoloniais e dependentes, com suas economias dominadas pelo capital financeiro das potências imperialistas e pelas sobrevivências feudais, situadas no mundo como apêndices agrários dos países capitalistas, dedicados à exportação de produtos agrícolas e matérias-primas para as indústrias dos países imperialistas e à importação dos produtos industrializados produzidos pelas indústrias desses mesmos países. O Japão, no início do século XX, de antigo país feudal atrasado, passa a emergir no mundo como a mais nova potência imperialista. Inicia sua aventura expansionista por todo o Leste Asiático, passando a ocupar países mais fracos e coloca-los como esferas de influência política e militar e fontes de matérias-primas baratas para sua indústria em expansão. Em alguns poucos anos, ocupa a Malásia, Filipinas e Indochina. Neste contexto, a Coreia é um dos países que também sucumbe à aventura militarista do Japão. Em 1910, o território coreano é anexado completamente pelo Império Japonês e passa a ser submetido a seu “Governo-Geral”. Com a anexação do território da Coreia, tem-se início um dos períodos mais sangrentos da história da nação coreana, com a escravização completa da população da Coreia pelo imperialismo japonês e pelo latifúndio feudal. A civilização coreana, com mais de cinco mil anos de existência, orgulha-se de já ter derrotado dezenas de tentativas de invasões estrangeiras por parte de todas as potências: Mongólia, China, Rússia, Japão e Estados Unidos. De 1592 a 1598, o Império Coreano derrotou uma ousada tentativa de anexação por parte do Império Japonês, apesar das manobras fracionistas por parte dos senhores feudais. Em 1866, o povo coreano rechaçou também a tentativa de invasão norte-americana, afundando o navio U.S. Sherman que havia saqueado a cidade Pyongyang. Todos os fatos mostram que o povo coreano trava há milênios uma luta por consolidar uma grande unidade nacional, com um povo extremamente patriótico. O imperialismo japonês, ao anexar o território da Coreia, privou o povo coreano daquilo pelo qual este havia lutado durante milênios: a soberania nacional, o direito à autodeterminação. Ao avançar sobre o território da Coreia, o Japão proibiu o povo coreano de exercer até mesmo seus mais elementares direitos democráticos e nacionais – organizações patrióticas e democráticas eram dissolvidas às milhares, com seus líderes presos e decapitados. O Império Japonês levava a cabo uma violenta campanha de colonização cultural e idiomática: proibia os coreanos de falarem seu próprio idioma, de terem sua própria cultura, seus próprios nomes. Os coreanos que não “japonizassem” eram presos e ficavam privados de vários direitos, como arrumar um emprego. O povo coreano era submetido à maior exploração, saque e humilhação por parte do imperialismo japonês. Dados hoje disponibilizados por institutos de história da Coreia do norte dão conta de mostrar que, de 1910 a 1945 (ano da libertação), mais de 6 milhões de coreanos foram escravizados para trabalharem em obras públicas do governo do Japão na Coreia, dos [4] Op. cit., p. 12.


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quais 1,5 milhão foram compulsoriamente transferidos para o Japão para também trabalharem como escravos em obras públicas[5]. Ao todo, o número de coreanos escravizados equivalia a um quarto da população coreana do período em questão. Cerca de 200 mil mulheres foram também sequestradas e transformadas em escravas sexuais do exército imperial japonês[6]. O proletariado coreano era também brutalmente explorado pelo imperialismo japonês. Em 1936, o consumo de arroz de um operário coreano era inferior a um terço do consumo de um operário japonês. Também no mesmo ano, o salário de um operário coreano equivale a menos da metade do salário de um operário japonês, este em si já baixo. Sem direito a quaisquer leis que regulem sua jornada de trabalho, os operários coreanos trabalhavam como escravos assalariados de 12 a 16 horas nas fábricas e minas [7] . As massas camponesas, que no ano de 1944 representavam 89% da população do país, estavam submetidas a uma desumana exploração ainda pior que a dos operários: não possuíam tratores nem quaisquer meios técnicos para melhorarem suas lavouras. Para produzirem, eram obrigadas a pagar aos latifundiários japoneses ou coreanos pró-japoneses pesadas taxas que muitas vezes chegavam a 80% da colheita. Devido a isso, a agricultura coreana ficava a mercê dos fatores puramente geográficos – secas, enchentes, períodos de nevascas, etc. geravam más colheitas e matavam, pela fome e pelo frio, milhões de camponeses coreanos. Na Coreia, não somente os operários e camponeses, como também a pequena burguesia e a burguesia nacional sofriam brutalmente com o domínio japonês. O capital japonês, que durante o ano de 1944 controlava mais de 90% da produção industrial coreana, entravava de sobremaneira o desenvolvimento da indústria nacional – as importações predatórias destruíam a produção da burguesia nacional e arruinavam os pequenos artesãos. A situação pela qual passava o povo coreano, oprimido pelo imperialismo japonês e pelo feudalismo, demandava urgentemente o surgimento de uma vanguarda revolucionária que pudesse lhe guiar pelo caminho da libertação nacional e da democracia. Contudo, bem antes do surgimento de tal vanguarda, o povo coreano tentava já de maneira espontânea buscar o caminho para sua miserável situação: No início do século XX, foi fundado o Exército Independentista Coreano, que tinha como objetivo libertar o país do domínio japonês. Apesar de um objetivo correto, que mobilizava o povo coreano na luta anti-imperialista, o Exército Independentista não possuía um programa claro de luta – muitos em seu seio alimentavam ilusões de que o caminho para a libertação nacional era a restauração das antigas dinastias feudais, outros também possuíam ilusões de que a Coreia deveria seguir o mesmo caminho de desenvolvimento levado a cabo por países como Estados Unidos ou França. Além disso, o Exército Independentista não se preocupou em mobilizar as massas fundamentais do povo coreano que eram os operários e camponeses, e suas ações se limitavam a realizar pequenos atentados, como assassinatos seletivos de políticos japoneses. Como resultado de uma concepção de luta errônea, já no início dos anos 1930 o Exército Independentista estava praticamente liquidado pela repressão. O jovem movimento comunista coreano também não pôde avançar durante bastante tempo. O Partido Comunista da Coreia, fundado no ano de 1925, foi liquidado já em 1928 por rixas internas e pela repressão por parte do imperialismo japonês. Os comunistas de tal geração não encontraram o correto caminho a ser seguido pela Revolução coreana, que nas condições de um país dominado pelo imperialismo japonês, colonial e semifeudal, o caminho a ser seguido pelo povo era o da Revolução democrática, antiimperialista e antifeudal. Foi Kim Hyong Jik, grande patriota e revolucionário coreano, um dos pioneiros no avanço do movimento patriótico e independentista anti-japonês. Kim Hyong Jik foi grande admirador do líder patriótico chinês Sun Yat Sen, e também do líder da Grande Revolução Socialista de Outubro, Vladimir Lenin. Em março de 1917, Kim Hyong Jik fundou a ANC (Associação Nacional Coreana), organização que tinha como programa lutar pela independência da Coreia através da mobilização e organização dos amplos setores populares do povo coreano: operários, camponeses, intelectuais revolucionários, pequenos comerciantes, artesãos e capitalistas nacionais não-compradores. A vitória da Revolução Socialista de Outubro de 1917, na Rússia, deu enorme ímpeto ao movimento nacional-libertador e anti-feudal na Coreia. Após a vitória da Revolução de Outubro, a ANC passa a ser uma organização que luta não somente pela independência da Coreia, [5] HYON, Ri Jong. Japan’s War Crimes: Past and Present. Pyongyang: Foreign Languages Publishing House, 1999, p. 151. [6] Op. cit., p. 144. [7] Disponível em: <http://solidariedadecoreiapopular.blogspot.com.br/2010/08/barbarie-imperialista-cem-anos-da.html>.

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como também pela Revolução proletária – Kim Hyong Jik, principal líder da ANC, entra para a história como o principal responsável por efetivar, na Coreia, a transição do primitivo movimento nacionalista para um movimento revolucionário proletário. Porém, meses após a fundação e atuação na ANC, Kim Hyong Jik e seus companheiros são presos e brutalmente torturados nos cárceres do imperialismo japonês. Kim Hyong Jik morre em abril de 1926, com apenas 31 anos de idade, devido às terríveis torturas que sofrera na prisão. Será seu filho, Kim Il Sung, quem se consagrará como o líder máximo da Revolução coreana. Em outubro de 1926, com apenas 14 anos de idade, Kim Il Sung funda a União para Derrotar o Imperialismo, primeira organização verdadeiramente Marxista-Leninista na Coreia. A “União”, fundada por Kim Il Sung, põe como objetivos prioritários lutar pela libertação nacional e pela independência da Coreia e propagar o Marxismo-Leninismo, e tendo como programa máximo construir o comunismo na Coreia e no mundo. A UDI mudará seu nome para União da Juventude Comunista um ano depois. Em 1930, com somente 18 anos de idade, Kim Il Sung funda na Manchúria (na época sob ocupação japonesa) o Exército Revolucionário da Coreia com o objetivo de iniciar a luta armada contra o imperialismo japonês. Na prática, o ERC funciona como braço armado da União da Juventude Comunista – anos mais tarde, o ERC será reconstituído como Exército Popular Revolucionário da Coreia, um disciplinado exército que aplicará a linha política da União da Juventude Comunista. Os anos 10, 20 e 30, que seguiram a fundação da Associação Nacional Coreana, da União da Juventude Comunista e do Exército Popular Revolucionário da Coreia serão marcados por memoráveis lutas do povo coreano. No ano de 1919, o povo coreano levou a cabo o histórico Levante Popular do Primeiro de Março. O Levante Popular do Primeiro de Março foi o divisor de águas entre o antigo movimento nacionalista coreano e o moderno revolucionário da classe operária: Com forte influência da Revolução Russa de 1917, todo o povo coreano se levantou para lutar contra a dominação do imperialismo japonês. Das 218 cidades da Coreia, 211 entraram em insurreição. Cerca de duas milhões de pessoas participaram do levante. Apesar da enorme repressão feita pelo imperialismo japonês contra o levante popular, onde 8 mil pessoas foram mortas, 16 mil foram seriamente feridas e 54 mil foram presas, o Levante Popular do Primeiro de Março preparou terreno para novos dias revolucionários que estavam por vir[8]. No ano de 1936, por influência do VI Congresso da Internacional Comunista realizado no ano de 1935, que conclamava a necessidade de se estabelecer uma frente única internacional contra o fascismo, o líder Kim Il Sung funda a Associação para a Restauração da Pátria, com a intenção de se estabelecer uma ampla Frente Única Anti-Japonesa com todos os elementos patrióticos e anti-imperialistas da Coreia, como operários, camponeses, artesãos, intelectuais revolucionários, religiosos com sentimentos nacionais, pequenos capitalistas, capitalistas nãocompradores com consciência nacional, e até mesmo latifundiários anti-japoneses para se levar a cabo as tarefas democráticas antiimperialistas e antifeudais na Coreia, como a nacionalização de todas as indústrias estrangeiras, nacionalização de todas as terras sob controle de latifundiários japoneses e pró-japoneses, cancelamento da dívida externa, abolição do sistema de impostos, liberdade de imprensa e de expressão, fim do trabalho escravo, estabelecimento da jornada diária de 8 horas e desmantelamento completo do exército imperialista japonês na Coreia, estabelecendo em seu lugar um exército popular revolucionário, assim como outras reivindicações democráticas. O programa da Associação para a Restauração da Pátria tornou-se rapidamente popular entre o povo coreano, conquistando adeptos e novos comitês de apoio na Manchúria e em todo o norte da Coreia, transformando a ARP numa grande organização de massas anti-japonesa. Em poucos meses após sua fundação, a Associação para a Restauração da Pátria já possuía em suas fileiras mais de 200 mil militantes. Após muitos anos de luta armada e batalhas do povo, com a intensificação das contradições sociais na Coreia e o fortalecimento do movimento revolucionário, a libertação da Coreia do jugo do imperialismo japonês estava por vir. Pela necessidade da libertação da Coreia, a Conferência de Moscou realizada em 1945 resolveu a questão da independência da Coreia e da liquidação do fascismo japonês. Foi feito um acordo entre as forças aliadas anti-fascistas de [8] Democratic People’s Republic of Korea. Pyongyang: Foreign Languages Publishing House, 1958, p. 59.


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que a Coreia deveria ser libertada em conjunto pelos aliados – como foi resolvido, a parte norte seria libertada pela URSS e, a parte sul, pelos Estados Unidos. Contudo, como já foi falado, há muitos anos antes da realização da Conferência de Moscou, o Exército Popular Revolucionário da Coreia já vinha operando no país e levando a cabo a luta armada anti-japonesa. Dessa maneira, a partir do dia 9 de Agosto de 1945, dia em que a União Soviética, depois de ter derrotado a Alemanha nazista, declara guerra contra o Japão, o Exército Popular Revolucionária, que já vinha sendo liderado por Kim Il Sung, passa a operar em conjunto com o Exercito Vermelho soviético. Em menos de uma semana de combates, em 15 de agosto de 1945 a Coreia finalmente é libertada do jugo do imperialismo japonês. Após a libertação do norte da Coreia, foi formado nessa região um novo governo provisório de tipo democrático-popular sob a direção e hegemonia da classe operária. O novo governo deu conta de liquidar o feudalismo e realizar reformas democráticas que liquidassem os danos causados pelos 40 anos de dominação japonesa na Coreia. Os operários e camponeses no norte do país se organizavam em comitês populares e prosseguiam a marcha ascensional na luta pela consolidação da democracia e pela futura construção do socialismo e do comunismo. O Exército Popular Revolucionário da Coreia foi reorganizado de maneira regular como Exército Popular da Coreia, onde os antigos guerrilheiros passaram a ser quadros integrantes das novas forças armadas regulares. Em 1945, é fundado o Partido do Trabalho da Coreia através da união do antigo recém-fundado Partido Comunista da Coreia do Norte com o Partido de Nova Democracia. A NOVA COREIA DEMOCRÁTICA E A LUTA CONTRA O IMPERIALISMO ESTADUNIDENSE Pondo na prática a ideia da libertação conjunta da Coreia ao norte pela União Soviética e ao sul pelos Estados Unidos, formaram-se, respectivamente, o Governo Popular Provisório da Coreia do Norte e o Governo Provisório da Coreia do Sul, numa época em que a divisão da Coreia ainda não estava formalizada. A Conferência de Moscou de 1945 previa também a evacuação de todos os exércitos estrangeiros da Coreia num prazo de 5 anos e a realização de eleições conjuntas norte-sul para a constituição de um governo unificado. Obedecendo ao acordo, a União Soviética retirou todas as suas tropas da Coreia do norte no ano de 1948. O mesmo não foi obedecido pelos Estados Unidos, que mantém suas tropas ocupantes na Coreia do Sul até os dias de hoje. A evacuação das tropas não foi o único ponto da conferência desrespeitado pelos Estados Unidos: O Governo Provisório da Coreia do Sul, já um mero fantoche nas mãos dos Estados Unidos, fizeram proceder eleições separadas na Coreia do Sul em 10 de maio de 1948, e em 31 de Maio de 1948 legalizaram um Estado fantoche com o nome “República da Coreia”, que pretendia representar toda a península. Como vemos, foram tais “eleições” fraudulentas, encomendadas pelo Departamento de Estado dos EUA, que originaram a divisão da Coreia, divisão esta que permanece e que sendo até os dias de hoje a principal fonte do conflito. Em resposta às manobras feitas pelo imperialismo norte-americano e seus fantoches da Coreia do sul, o governo do norte da Coreia foi obrigado a organizar suas eleições separadas, também, em 25 de agosto de 1948, fundando em 9 de setembro do mesmo ano a República Democrática Popular da Coreia. A situação da Coreia do sul era o extremo oposto da situação do norte da Coreia. Como um soldado norte-americano comentou nas suas memórias que escreveu após alguns anos servindo na Coreia do Sul, o objetivo dos Estados Unidos (que entrou no sul da Coreia em 8 de setembro de 1945) não era libertar ninguém, nem lutar pela democracia. O propósito dos agressores imperialistas norte-americanos, ao contrário, era instaurar um regime fantoche que pudesse satisfazer seus interesses e impedir que o povo do sul da Coreia seguisse no caminho do socialismo. Era fazer com que o sul da Coreia se convertesse em base militar estratégica para a anexação do Norte socialista e para a agressão do Leste Asiático. Mais especificamente, para agredir a União Soviética, China, Mongólia, Vietnã e outros países outrora de democracia popular na região. Os Estados Unidos, para impedirem o povo sul-coreano de seguir no caminho da libertação (afinal, os operários e camponeses do sul da Coreia já começavam a fundar comitês populares, seguindo o exemplo do norte libertado), assassinaram diversas lideranças democráticas e patrióticas, dissolveram comitês populares à força e arrastavam estudantes à força para

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formarem um novoexército fantoche para a agressão contra o norte da Coreia. O novo regime fantoche, sob a direção do ditador de extrema-direita Syngman Rhee, estabeleceu um gigantesco aparato burocrático-prisional, decretou milhares de leis fascistas e pôs na ilegalidade, partidos e organizações democráticas, tendo como pretexto justamente tais leis. No período de 1948 a 1949, mais de 140 mil sul-coreanos foram assassinados sob o pretexto de “subversão”, “colaboração com o inimigo”, ou de estarem levando a cabo ações de guerrilha. 150 mil casas também no período de 1948 a 1949 foram incendiadas pelo exército pró-imperialista de Syngman Rhee, sob o pretexto de estarem sendo feitas para reprimir guerrilheiros partisans. A Lei de Segurança Nacional, decretada no ano de 1948 pelo regime fascista sul-coreano, estabelecia como ilegais quaisquer “atividades anti-Estado e subversivas” – pessoas enquadradas na Lei de Segurança Nacional, segundo o último artigo da LSN revisado em 2001, podem pegar desde cinco anos de prisão até a pena de morte, conforme a gravidade dos “crimes” cometidos. A LSN, além disso, proíbe também “atividades que favorecem o inimigo” – ter contato com pessoas da RPDC, fazer propagandas que apoiem o sistema da socialista da RPDC, que apoiem a reunificação pacífica da Coreia ou mesmo visitar a RPD da Coreia por conta própria constituem delitos graves para o regime sul-coreano. Segundo o jornal Minju Choson, desde 1948, mais de 8400 organizações democráticas e partidos políticos foram postas na ilegalidade. Entre eles, o Partido Comunista da Coreia e o Partido Revolucionário pela Reunificação (atual Frente Democrática Nacional Antiimperialista da Coreia do Sul). Justo em tal período, o da vigência da “Doutrina Truman” nos Estados Unidos, que determinava levar a cabo a política do “roll-back” anti-comunista, o governo norte-americano começa a planejar sua aventura militarista para invadir a República Popular Democrática da Coreia e escravizar o seu povo, contando para isso com a ajuda do imperialismo japonês e de seu regime fantoche na Coreia do Sul. Para o governo norte-americano, era importante não só impedir a crescente influência do socialismo no mundo – ele também sabia que uma nova guerra lhe permitiria sair da grave crise que enfrentava no período 1948-1949, e que uma nova guerra significaria mais investimentos em todos os setores da economia. Caso fosse possível, não bastaria para os Estados Unidos levar a cabo uma guerra de agressão somente contra a Coreia do norte – ao contrário, ela deveria ser estendida também contra a China, a Mongólia, a União Soviética e todos os demais países socialistas da região, causando se possível uma terceira nova guerra mundial. Mostrando de maneira explícita sua vontade de iniciar uma nova guerra de agressão, os Estados Unidos, longe de mostrarem qualquer telha de intenção de retirarem suas tropas ocupantes da Coreia do sul, passaram a introduzir os mais modernos artifícios militares no sul da Coreia, a militarizarem cada vez mais a economia da Coreia do sul e fazerem uma massiva propaganda anti-comunista com o intuito de agredir o norte. Poucos dias antes da agressão, em 17 de junho de 1950, Foster Dulles foi inspecionar o paralelo 38 com o propósito de invadir a Coreia do norte. Com efeito, na madrugada do dia 25 de Junho de 1953, a Coreia do sul lançou um ataque surpresa contra o território a norte do paralelo 38. No dia 26 de Junho de 1953, um dia após o início da invasão contra o norte pela Coreia do sul, o Presidente Kim Il Sung fez um histórico discurso chamando todo o povo a se levantar como um só pela vitória na guerra, para que o povo do norte da Coreia aproveitasse o ataque dos sul-coreanos e fizesse um contra-ataque geral para libertar o povo de toda a península da Coreia da ocupação norte-americana, e estabelecer a República Popular Democrática da Coreia em toda a península. No mesmo dia do discurso histórico do Presidente Kim Il Sung, os Estados Unidos entraram na guerra enviando seus aviões para bombardear a Coreia do Norte. Apesar da entrada dos Estados Unidos na guerra, o Exército Popular da Coreia foi capaz de realizar poderosas ofensivas contra os norte-americanos e o exército títere sul-coreano. Com efeito, pouco depois do dia 30 de junho, o Exército Popular da Coreia já havia libertado mais de 90% do território da Coreia do sul e 92% da população sul-coreana do jugo do imperialismo norte-americano e do regime de SyngmanRhee. O Exército Popular causou contundentes baixas contra os reacionários, aniquilando mais de 60 mil soldados norte-americanos ou sul-coreanos. Nas regiões libertadas pelo Exército Popular da Coreia, os comitês do poder popular eram restaurados e as reformas democráticas eram realizadas – mesmo em meio à turbulência da primeira etapa da guerra, de junho de 1950 a setembro de 1950, o Partido do Trabalho da Coreia


“A Revolução Coreana e a luta do seu povo pela independência”

realizou nas regiões libertadas da Coreia do sul uma profunda reforma agrária, distribuindo 570 mil hectares de terra para cerca de 1,2 milhão de camponeses. Através de tais medidas, o Partido do Trabalho da Coreia conquistava amplo apoio das massas da Coreia do Sul[9]. Contudo, no mesmo mês de setembro, o Exército Popular da Coreia foi obrigado a realizar uma retirada temporária, devido ao contra-ataque que seria realizado pelos Estados Unidos, desta vez com os exércitos fantoche de 15 países satélites seus. O contra-ataque no período da segunda etapa da guerra feito pelos norte-americanos arrasou milhares de vilas rurais norte-coreanas e martirizou milhares e milhares de habitantes, entre idosos, mulheres e mesmo crianças. Quando os Estados Unidos iniciaram a bombardear não apenas o território da Coreia do norte como também regiões da República Popular da China (nesta ocasião, os imperialistas norte-americanos já haviam ocupado todo o território da Coreia do norte), o Presidente Mao Tsé-Tung, líder da Revolução Chinesa e da República Popular da China, ordenou o envio de 1 milhão de soldados do Exército Voluntário do Povo Chinês para combaterem na República Popular Democrática da Coreia, com a tarefa de ajudar o povo coreano em sua luta libertadora. No intento de proteger a soberania da nação chinesa, seu território, prestar a fraternal ajuda internacionalista ao povo revolucionário coreano e salvaguardar a integridade da União Soviética e de outros países socialistas do Oriente, os 1 milhão de soldados do Exército Voluntário do Povo Chinês entram na guerra sob o slogan “Resistir à Agressão Norte-Americana, Ajudar a Coreia, Proteger nossos Lares e defender o País”, no dia 25 de outubro de 1950. A partir de então, o Exército Popular da Coreia passa a guerrear através de operações conjuntas com o Exército Voluntário do Povo Chinês. A Guerra de Libertação da Pátria entrava numa nova etapa de contra-ofensiva contra as forças fantoches e imperialistas. Na contra-ofensiva contra o sul, o Exército Popular da Coreia e o Exército Voluntário do Povo Chinês seguiam gradualmente libertando as regiões anteriormente ocupadas pelo inimigo. As tarefas mais candentes que se deparavam ante o Partido do Trabalho da Coreia, que dirigia simultaneamente o Exército Popular da Coreia e o Exército Voluntário, era reconstruir a economia das regiões libertadas destruída pelas forças inimigas, e reorganizar as organizações e comitês partidários, cujas lideranças foram sistematicamente exterminadas pelos inimigos imperialistas. Tal período de contra-ofensiva contra o inimigo no período de fins de 1950-1951 forjou na tempera do combate e da luta revolucionária os melhores filhos dos povos coreano e chinês, cujos méritos e heroísmos devem ser lembrados e exaltados eternamente por todos os combatentes da grande causa democrática e antiimperialista do mundo. Fazendo tudo o que podia para sabotar as conversações de armistício iniciadas em 10 de julho de 1951, os imperialistas norte-americanos fizeram sua “ofensiva de outono” contra o EPC e o EVPC. Os memoráveis combates da “Batalha da Altitude 1221” e “Batalha da Altitude 1052” foram travados. Nestes dois, os inimigos derrubaram cerca de 30 mil a 40 mil bombas diariamente contra as posições dos combatentes coreanos e chineses. Contudo, o EPC e o EVPC defenderam heroicamente a posição conforme fora ordenado pelo General Kim Il Sung. Não apenas resistiram, como causaram golpes ainda mais contundentes contra o imperialismo norte-americano e todas suas tropas lacaias. A Guerra de Libertação da Pátria foi considerada a primeira derrota militar da história do até então todo-poderoso imperialismo norte-americano. Ao final desta, o Exército Popular da Coreia e o Exército Voluntário do Povo Chinês causaram, de junho de 1950 a julho de 1953, no total, 1.093.839 baixas contra o inimigo, entre mortos, feridos e aprisionados, dos quais 397.543 eram do exército imperialista norte-americano, 667.293 do exército títere sul-coreano, e 29.003 de outros países. Vastas quantidades de equipamento militar foram destruídas ou capturadas[10]. Em 27 de julho de 1953, foi assinado um Tratado de Armistício que pôs fim à agressão aberta do imperialismo norte-americano e dos militaroides títeres sul-coreanos contra a República Popular Democrática da Coreia, a República Popular da China e demais países socialistas. Iniciar-seia, a partir daqui, uma nova etapa da Revolução Coreana, isto é, da construção socialista mediante a reconstrução pacífica da economia do país e da luta pela reunificação pacífica da Coreia. [9] Op. cit., p. 96.

[10] Op. cit., p. 107.

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A União Reconstrução Comunista (URC) visa ser um polo aglutinador de todos os militantes revolucionários e ativistas descontentes com os rumos tomados pelo movimento comunista em nosso país, destruído e corroído pelo revisionismo e oportunismos de direita e esquerda. Após longos estudos e debates e um ano da fundação do Coletivo Bandeira Vermelha, conquistamos, enfim a base da unidade orgânica que deve nortear nossa prática: a unidade ideológica na teoria do proletariado desenvolvida por Marx, Engels, Lenin, Stalin e Mao; a luta pela refundação do Partido Comunista com base na teoria revolucionária do proletariado; a necessidade de se levar a cabo a Revolução Proletária dentro das condições concretas de nosso país.

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