Plant Project #25

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Para quem pensa, decide e vive o agribusiness

O AGRO DE 1 TRILHÃO Pela primeira vez o Valor Bruto de Produção da agropecuária supera essa marca histórica. O que está por trás dessa conquista?

PLANT SUSTENTÁVEL

Os desafios para quem quer produzir com responsabilidade

SERVITIZAÇÃO A TENDÊNCIA QUE MUDOU OS NEGÓCIOS DA INDÚSTRIA DE MÁQUINAS AGRÍCOLAS MADE IN BRAZIL OS TALENTOS NACIONAIS QUE MOVEM A PRODUÇÃO AO REDOR DO MUNDO

TÊNIS COM CAUSA

venda proibida distribuição dirigida www.plantproject.com.br 1

A marca francesa que colhe no Brasil a matéria-prima e as histórias dos calçados mais verdes do mundo


Seus desafios, nosso propósito Os desafios são imensos. E assim são as possibilidades. O futuro do trabalho. Mudanças climáticas. Disrupção digital. Assistência à saúde acessível. Estamos ao seu lado buscando oportunidades e caminhando pela incerteza nas áreas de risco, estratégia e pessoas.

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Soluções de seguros e gestão de riscos para o setor sucroenergético Uma indústria com características singulares, que possui interligação de diversos processos e equipamentos e que requer um grande esforço de manutenção preventiva e corretiva, necessita de parceiros que conheçam a fundo sua operação. Da operação agrícola à industrial; da armazenagem até a logística de escoamento, somos especialistas em soluções de seguros para os mais diversos riscos operacionais do setor sucroenergético. Ao enfrentarmos juntos este novo mundo, uma coisa nunca mudará, estaremos ao seu lado nos momentos mais importantes.

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E d ito ri a l

O PRÓXIMO TRILHÃO DO AGRO

Números redondos, como o trilhão de reais estimado para o Valor Bruto de Produção (VBP) do agronegócio brasileiro, são marcos importantes. Eles têm o poder de nos alertar, de forma positiva ou negativa, para fatos que muitas vezes, em nossa rotina atribulada, deixamos passar em branco. O nosso trilhão merece registro. Mais do que isso, suscita, como outras mar-

Para quem pensa, decide e vive o agribusiness

cas relevantes, uma reflexão. O que fizemos para chegar a ele? O que fare-

O AGRO DE 1 TRILHÃO Pela primeira vez o Valor Bruto de Produção da agropecuária supera essa marca histórica. O que está por trás dessa conquista?

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A marca francesa que colhe no Brasil a matéria-prima e as histórias dos calçados mais verdes do mundo

mos para atingir o próximo trilhão? A frieza dos dígitos pode esconder o esforço, o suor, o investimento, a determinação de muita gente em transformar, através do conhecimento e da tecnologia, a produção agropecuária brasileira em um exemplo para o mundo. Assim, que usemos este momento para valorizar as conquistas expressas nesse trilhão. Que não nos percamos, no entanto, na soberba de achar que a inércia nos levará adiante. Cada mil, milhão, bilhão ou trilhão a mais exigirá o mesmo empenho e a mesma capacidade de mobilização de todos que participam das imensas cadeias produtivas do agro. Não há atalhos, mas existem caminhos desenhados. O uso da tecnologia e a conectividade rural, por exemplo, são indispensáveis nos próximos anos. Um estudo feito em parceria pelo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa) e pela Esalq-USP aponta que podemos acrescentar até R$ 100 bilhões ao VBP nesta década se conseguirmos ampliar dos atuais 23% para 80% a área rural com cobertura de internet. Ou seja, investir em políticas públicas nesse sentido tem retorno garantido, como teve o investimento feito durante décadas em ciência e em instituições de pesquisa como a Embrapa, hoje refletidos no nosso primeiro trilhão.

Luiz Fernando Sá Diretor Editorial

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Í ndi ce

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G pág. 7 Ag pág. 17 Fo pág. 73 Fr pág. 77 W pág. 85 Ar pág. 95 S pág. 101 M pág. 114 G LO B A L

D i r etor E ditoria l Luiz Fernando Sá luiz.sa@plantproject.com.br D i r etor Comerc ia l Renato Leite Marketing e Publicidade Multiplataforma renato.leite @plantproject.com.br D i r etor Luiz Felipe Nastari A rt e Andrea Vianna Projeto Gráfico e Direção de Arte E d i tor Romualdo Venâncio romualdo.venancio@plantproject.com.br Col ab or a dor es: Texto: André Sollitto, Dayani Andrade, Felipe Porciúncula, Lívia Andrade, Ronaldo Luiz Fotos: Egberto Nogueira Design: Bruno Tulini Pro d ução Daniele Faria R ev i são Rosi Melo Ev e n tos Simone Cernauski A d m i n ist r ação e Fina n ç as Cláudia Nastari Sérgio Nunes

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Na Suíça, pesquisadores descobrem mais benefícios das abelhas para o planeta:

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O lado cosmopolita do agro

foto: Shutterstock

Elas podem antecipar a floração das plantas

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GLOBAL

foto: Shutterstock

O lado cosmopolita do agro

SUÍÇA

A SURPREENDENTE MORDIDA DAS ABELHAS Uma pesquisa mostra que, além da polinização, os insetos utilizam outros recursos para antecipar a floração das plantas Abelhas são uma espécie incrível, todos sabemos. Suas contribuições para a vida na Terra têm sido estudadas há séculos – assim como os fenômenos mais recentes envolvendo a rápida redução de sua população mobiliza cientistas em busca de soluções para explicá-los e contê-los. Com tantos olhos sobre elas, não raramente surgem descobertas sobre seu comportamento, sua capacidade de adaptação e sua capacidade de influir positivamente com o meio ambiente e também com o agronegócio, indo além dos já conhecidos benefícios da polinização. Uma das mais recentes e relevantes constatações nesse sentido foi feita por 8

cientistas do Instituto Federal de Tecnologia de Zurique, na Suíça. Em estudo publicado na revista Science, eles demonstram como pequenas incisões feitas por zangões nas folhas de plantas – atos antes considerados sem importância – são na verdade mecanismos usados por eles para induzir a floração precoce das plantas, antecipando assim a oferta de polem necessário para a sobrevivência de suas colmeias. A descoberta do poder das mordidas dos zagões – não confundir com as picadas dos ferrões – impressionou e maravilhou os especialistas. Primeiro, porque esse simples gesto havia passado despercebido por tanta gente em tantas décadas de estudos. Mas,


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mais do que isso, pelas implicações que a descoberta pode trazer. Ela indica, por exemplo, que as abelhas conseguem se adaptar a condições mais extremas de clima, principalmente em um momento em que a elevação das temperaturas faz com que elas deixem as colmeias antes de as plantas estarem em seu estágio ideal para gerar os alimentos que elas precisam. Já para a agricultura, dominar essa técnica pode significar uma oportunidade de ter mais domínio sobre determinadas culturas, gerando maior precocidade e produtividade. O primeiro a observar esse comportamento das abelhas foi um estudante suíço, Foteini Pashalidou. Ele notou, em uma das estufas do laboratório em que trabalhava sob a orientação da química ecologista Consuelo de Moraes, que os zangões faziam pequenos cortes nas folhas, mas

não removiam pedaços das folhas ou as ingeriam. Intrigado, relatou à orientadora sua suspeita de que o gesto era um indutor do desenvolvimento das plantas. Então, a equipe do laboratório realizou uma série de pesquisas. Elas mostraram que o comportamento estava relacionado à escassez de pólen no ambiente: cada vez que a oferta se reduzia no ambiente, as abelhas “forçavam” as plantas a florescerem para regularizar o seu estoque. Por outro lado, quando expostas a ambientes ricos em pólen, os zangões não faziam incisões nas plantas. Tanto nas simulações em estufa (com exemplares de tomateiros e de mostarda ainda não floridos) como em campo, os pesquisadores observaram que, fazendo os cortes nas folhas, as abelhas conseguiam antecipar a floração em até um mês. Uma vez confirmada a tese,

a pesquisa tentou replicar artificialmente a técnica natural dos insetos. E, então, surgiram novas questões, muitas ainda sem respostas. Os pesquisadores usaram pequenas lâminas para reproduzir os cortes feitos pelos zangões. Conseguiram sucesso parcial. Houve, sim, uma antecipação da floração, mas não tão expressiva quanto a obtida pelas abelhas. “Elas fazem algo que ainda não conseguimos descobrir”, afirmou, à revista National Geographic, o cientista Mark Meschler, um dos envolvidos no estudo suíço. A suspeita é de que, junto com a incisão, elas inoculem algum componente bioquímico ou odor proveniente de uma glândula salivar. Obter essa resposta pode ser a chave para introduzir um novo ingrediente na agricultura, com efeitos positivos potencialmente enormes. PLANT PROJECT Nº25

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G ARGENTINA

A CRIPTOMOEDA DA SOJA No mundo digital, não são mais novidade. No agronegócio, podem se tornar o marco de uma nova era nas transações eletrônicas entre produtores, traders e fornecedores de insumos. As primeiras criptomoedas lastreadas em produtos agrícolas começaram a ser negociadas no ano passado e chamam a atenção de investidores em vários pontos do mundo. Da Argentina, por exemplo, vem a Soya, criada pela startup Agrotoken. Ela transforma em

moedas digitais as cargas de soja depositadas em armazéns de parceiros, como a trading Cargill. Uma vez verificada a procedência do grão, a trading emite um certificado que, depositado na plataforma da Agrotoken, é convertido em uma quantidade correspondente em Soyas. O produtor pode optar entre guardar e esperar a valorização da moeda – que varia conforme

a cotação da soja no mercado internacional – ou usá-la para fazer negócios com empresas parceiras. No Brasil, a cooperativa Minasul também já colocou no mercado a Coffee Coin, cujo valor de face equivale a um quilo de café verde no padrão commoditizado. A intenção de ambas é que essas criptomoedas dêem origem a um mercado internacional especialmente voltado para elas.

E S TA D O S U N I D O S

MADEIRA DE LABORATÓRIO Nos laboratórios das principais instituições de pesquisa do mundo, reproduzir processos da natureza tem sido um desafio permanente há décadas. Uma vez obtido sucesso, as descobertas lá feitas têm o poder de gerar novos segmentos de mercado e alternativas de consumo. Foi assim com as proteínas animais. A partir da produção de células animais nos laboratórios desenvolveu-se uma emergente indústria de substitutos das carnes fornecidas pelos rebanhos 10

de diferentes espécies. Pesquisadores do renomado Massachussets Institute of Technology (MIT) querem agora repetir a dose com a madeira, reproduzindo em suas instalações, de forma rápida, materiais que naturalmente levariam décadas para crescer. Eles têm obtido bons resultados a partir de células extraídas das folhas das zínias, plantas rasteiras que crescem em campos de todas as Américas. “Essas células são similares a células-tronco”, afirma Luís

Fernando Velásquez-Garcia, cientista-chefe do Laboratório de Tecnologia de Microssistemas do MIT. “Elas têm potencial de se transformar em praticamente qualquer coisa”. Os pesquisadores acreditam que podem “persuadir” essas células a se transformarem em estruturas mais complexas, já reunidas em formas prédeterminadas. Assim, sem que uma árvore fosse cortada, poderiam produzir madeira para uso na construção civil ou na fabricação de móveis.


G E S TA D O S U N I D O S

RAD, A COVID DAS MAÇÃS

Para os produtores de maçãs dos Estados Unidos, duas siglas representam pavor e morte nos últimos anos. Uma, a Covid-19, ameaça vidas humanas. Outra, a RAD, tem provocado temor pelos estragos em seus pomares. As três letras resumem rapid apple decline, ou o declínio rápido das maçãs, uma síndrome que tem simplesmente exterminado

grandes áreas plantadas, sobretudo na costa leste do país – no estado da Carolina do Norte, por exemplo, cerca de 80% dos pomares foram afetados. As árvores, principalmente as mais jovens, sofrem uma espécie de morte súbita. Desenvolvem-se normalmente e parecem saudáveis até a chegada do verão. E, então, tombam mortas.

Os primeiros casos foram identificados na Pensilvânia, em 2013, mas se tornaram mais graves e frequentes nos últimos anos. Até hoje a causa da síndrome é um mistério. As hipóteses variam de um vírus desconhecido às variações dos padrões de temperatura em função do aquecimento global. Preocupado, o governo americano destinou recursos especialmente para financiar estudos que investigam o que provoca a RAD e como enfrentá-la. É mais uma corrida da ciência contra o tempo.

CHILE

O UNICÓRNIO DOS ANDES Criar unicórnios é uma atividade dos tempos modernos. Um dos maiores especialistas nela é Jeff Bezos, fundador da gigante do comércio eletrônico Amazon e hoje um dos homens mais ricos do mundo. Ele costuma escolher a dedo as startups em que investe. Nutre as empresas filhotes com seus dólares abundantes para que, no futuro, elas se transformem em companhias bilionárias – unicórnios é como o mercado financeiro denomina as jovens empresas que atingem valor de mercado superior a US$ 1 bilhão. Bezons parece ter identificado uma com esse potencial aqui

perto do Brasil, nos Andes chilenos. A NotCo. é uma das estrelas do mercado de proteínas alternativas e vende seus produtos à base de plantas no Chile, no Brasil e nos Estados Unidos. A empresa utiliza inteligência artificial para analisar as estruturas moleculares de plantas e entender como combiná-las para produzir substitutos sem proteína animal para o leite (NotMilk), maionese (MotMayo), hambúrgueres (NotBurger) ou até sorvetes (NotIceCream). A startup já levantou mais de US$ 120 milhões em investimentos e prepara uma nova rodada para este ano. Conta

com uma forcinha de Bezos – um dos seus primeiros investidores, que abriu as portas da rede de supermercados Whole Foods, que pertence à Amazon para seus produtos – para se transformar em uma figura mitológica: a primeira foodtech da América Latina a bater na cifra do bilhão.


G QUÊNIA

UMA LUZ PARA A CONECTIVIDADE

A IMAGINAÇÃO VOA ALTO Superar obstáculos físicos passando, literalmente, por cima deles é a solução aparentemente mais simples. Por isso, vem sendo o caminho utilizado com mais frequência. A própria Alphabet já segue nesse rumo há mais de uma década. Um de seus

A universalização da conectividade, fazendo chegar acesso de internet a toda a população da Terra, é um desafio de proporções bíblicas. Estimase que cerca de 3 bilhões de pessoas – cerca de metade dos habitantes do planeta – estejam fora de áreas de cobertura, em regiões remotas ou que, em função de dificuldades geográficas, são inviáveis para um modelo comercial de conexão, com base em cabos de fibra ótica ou as torres convencionais de telecomunicações sem fio. Para as maiores empresas da era digital, porém, esse contingente representa uma grande oportunidade de expansão de seus mercados, inclusive aumentando a oferta de serviços para setores como o agronegócio. Por isso, gigantes como Google e Facebook mantêm permanentemente equipes voltadas a desenvolver novas abordagens para vencer esse desafio. Algumas das mais originais estão em testes em pontos distantes da África, continente com menor taxa de população atendida por internet. É lá, em plena savana do Quênia, que a Alphabet, holding 12

projetos mais promissores foi a utilização de balões estratosféricos para levar sinal 4G para conectar vilas rurais. Batizado de projeto Loon, a ideia também foi primeiro testada no Quênia, no Peru e em Porto Rico, mas enfrentou problemas que acabaram por inviabilizá-lo. Os principais foram a ação

que controla o Google, estuda a viabilidade de uma ideia que pode se mostrar revolucionária: usar feixes de luz invisíveis para fazer o fluxo de dados entre pontos distantes. O conceito se assemelha ao das fibras óticas, que também usa a luz para transportar os dados, com a diferença, aqui, que esses finíssimos feixes de luz viajam pelo ar, sem uma estrutura de cabos. Batizado de Projeto Taara, o experimento utiliza pequenas caixas no alto de torres para emitir esses feixes luminosos, que podem percorrer até 19 quilômetros, conectando as áreas no seu entorno. O problema maior enfrentado é que eventuais interrupções no feixe fazem a conexão cair. Assim, as caixas emissoras precisam ser instaladas em pontos acima de edificações ou árvores. Poluição e chuvas também podem afetar o sinal. E pássaros também, caso cruzem inadvertidamente, o seu caminho. Neste caso, pelo menos, os cientistas dizem já terem uma solução: o sistema foi “treinado” para, em caso dessas interrupções breves, reenviar o sinal. O Taara está em testes também em zonas rurais na Índia.


dos ventos nas faixas altas da atmosfera e a durabilidade dos balões utilizados pela companhia, que se deterioravam depois de alguns meses. Outras empresas, porém, oferecem essa solução, com balões de altitudes mais baixas e, por isso, com menor área de cobertura, inclusive no Brasil.

CRIATIVIDADE NO CHÃO Enquanto a universalização não chega, os engenheiros desenvolvem soluções criativas para levar a conectividade, ainda que temporária, às áreas produtivas. Transformar reboques em roteadores móveis é a proposta da empresa Prime Field, de Jaú (SP). Ela desenvolveu uma pequena carreta que pode ser levada a qualquer ponto das fazendas e é capaz de captar sinal de satélites e reproduzi-lo, criando uma rede com cerca de 2 quilômetros de raio. O roteador móvel é dotado de uma antena Ka e uma antena transmissora wi-fi e é energizado por placas solares.

MAIS ALTO, MAIS ALTO... Para o Facebook, a combinação de várias alternativas, cada uma mais adequada a uma região, é que vai permitir a universalização da conectividade. O grupo tem uma subsidiária dedicada ao tema, a Facebook Connectivity, que em dezembro passado, depois de anos de testes em parceria com operadoras de telecom, lançou o seu modelo baseado em megatorres com células de grande alcance. A empresa afirma, com base em testes feitos na Nigéria, que a sua SuperCell, instalada a 250 metros de altura, pode cobrir uma área 65 vezes superior à de uma antena convencional, com 30 metros. Assim, a sua supercélula substituiria, a um custo 33% mais competitivo, uma rede de 15 a 25 células tradicionais utilizadas atualmente pela indústria de telecomunicações para cobrir áreas maiores. O ponto-chave do sistema seria a localização da torre, que precisa estar posicionada em uma situação que permita superar problemas da topografia de cada região.

6G NO ESPAÇO Serviços de internet via satélite já são conhecidos e bastante utilizados em áreas rurais, inclusive no Brasil. O que limita sua expansão, por enquanto, é o custo, ainda salgado para boa parte da população de áreas rurais, e a latência (tempo de resposta) do sinal, longe do ideal para quem pretende utilizar equipamentos que utilizam dados em tempo real, como pilotos automáticos de máquinas agrícolas autônomas. O quadro pode mudar nos com a entrada em operação de constelações de satélites dotados de equipamentos da quinta geração de comunicações móveis. Estima-se que o número de satélites estacionários de baixa órbita voltados para o 5G chegue a 30 mil nos próximos anos. Com isso, será mais fácil instalar torres receptoras em qualquer lugar do planeta, levando cobertura de alta velocidade para áreas remotas. O próximo passo será o 6G, com conexões 40 vezes mais rápidas que as 5G. A empresa chinesa Hauwei já prepara o lançamento do primeiro satélite com a tecnologia e acredita poder torná-la comercial em menos de uma década. Os americanos também estão na corrida: criaram a The Next G Alliance, associação entre as principais empresas do setor nos EUA para o desenvolvimento de soluções 6G. PLANT PROJECT Nº25

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AUSTRÁLIA

A ESTAÇÃO DO TERROR

É o outono do terror no estado australiano de Nova Gales do Sul, um dos principais polos agrícolas do país. Nas suas planícies férteis, fazendeiros estão insones. Nas lavouras, nos galpões e em suas casas, milhões de famintos visitantes indesejados consomem sua produção e tudo mais que encontram pela frente. Uma invasão de ratos – já definida pelas autoridades locais como “absolutamente sem precedentes” – provoca sustos e prejuízos calculados em 1 bilhão de dólares australianos (o equivalente a mais de R$ 4 bilhões) para a safra de inverno dos

produtores rurais, que nesta época plantam sobretudo cevada, trigo e canola. "Se não reduzirmos significativamente o número de ratos até a primavera, estaremos enfrentando uma crise econômica e social absoluta na região", disse o ministro da Agricultura, Adam Marshall. Para combater a praga, o governo estadual apelou para uma medida polêmica: encomendou na Índia 5 mil litros do veneno Bromadiolone, proibido na Austrália, e agora pede autorização federal para usá-lo. Porém, os próprios fazendeiros temem que, além dos ratos, a substância mate outros animais, provocando um grave desastre ambiental. Até o fim de maio passado, sem solução, a insônia permanecia.

NIGÉRIA

PREJUÍZO TRILIONÁRIO A agricultura africana sofre, anualmente, com perdas que somam mais de US$ 3,5 trilhões provocadas apenas pela presença de pragas exóticas – ou seja, trazidas de outros locais e disseminadas pelas lavouras do continente. O número, assustador, consta de um estudo publicado pelo Centro Internacional para Biociência e Agricultura (CABI, na sigla 14

original), uma organização sem fins lucrativos voltada para a pesquisa na região. “Esse valor tão elevado nos surpreendeu”, afirmou ao The New York Times o cientista René Eschen, do CABI. “O estudo demonstra que há uma necessidade urgente de se adotar medidas capazes de mitigar o efeito das espécies invasoras já presentes e evitar a disseminação de novas

espécies.” Parte dessas invasoras pode ter sido introduzida em ações malsucedidas de controle de pragas. Sem inimigos naturais, elas se multiplicaram e acabaram se tornando um problema ainda maior. O país mais atingido seria a Nigéria, com mais de US$ 1 trilhão em perdas. Já as culturas com maiores perdas seriam as de tomates, milho e mandioca.


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G J A PÃO

A FÁBRICA DE MORANGOS Com grande população e poucas áreas para cultivo, o Japão foi pioneiro em técnicas de agricultura vertical. O país tem tecnologia e tradição na produção de verduras em ambientes fechados, com umidade e temperatura controladas. A produção de frutas, porém, é uma nova fronteira nessa área. Uma das mais antigas empresas japonesas de agricultura indoor, a Spread, de Kyoto, anunciou agora que desenvolveu tecnologia para cultivar morangos em larga escala. Desde 2018 a companhia

utiliza sistemas robóticos para automatizar a produção em sua Techno Farm. Uma nova unidade usará a mesma técnica para os morangos, considerada uma das culturas mais sensíveis à ação de pragas e doenças. Por isso, em condições normais na natureza, é uma das que mais fazem uso de

produtos químicos – o que deve ser dispensado na fazenda vertical. A Spread informou também que avalia a distribuição de seus morangos na Europa e na América do Norte e que tem pesquisas para, no futuro, cultivar grãos, cogumelos e outras frutas em suas instalações.

CHINA

A MURALHA DE VINHAS

Nos anos 1960, o governo central chinês colocou em prática um plano original para conter tempestades de areia e o avanço das áreas desérticas em seu território. Incentivou o plantio da chamada Grande Muralha Verde, criando projetos de agricultura e reflorestamento em grandes fazendas estatais. Em algumas delas foram plantados vinhedos, que deram início a uma indústria vinífera no país. Hoje, algumas dessas 16

fazendas estão no centro de uma polêmica. A mídia local da província de Gansu acusou uma das estatais, a Fazenda Florestal Yangguan, de derrubar ilegalmente centenas de hectares de matas para substituí-las por mais vinhedos e, desta forma, conseguir atingir as metas previstas nos seus planos quinquenais. A província é a quarta maior produtora de uvas para vinhos da China e hoje possui até mesmo rotas turísticas em suas vinícolas. Uma delas, a Zi Xuan Wine Estate, guias conduzem visitantes a uma adega capaz de armazenar, em condições ideais, mais de 7 mil barris de vinho. Com o progresso delas em detrimento das árvores, porém, o receio de parte da população é que o esforço feito durante décadas para conter as tempestades de areia vire poeira.


Com avanços em todas as culturas e regiões, o agronegócio empurra o Valor Bruto de Produção para a casa dos trilhões

Ag AGRIBUSINESS

Empresas e líderes que fazem diferença

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Ag

foto: Shutterstock

Empresas e líderes que fazem diferença

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O AGRO DE UM TRILHÃO

Com os preços das commodities nas alturas, o dólar valorizado e mais uma produção recorde de grãos, o VBP – Valor Bruto da Produção Agropecuária – vai passar de R$ 1 trilhão pela primeira vez na história

P or D aiany A ndrade

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epois dos recordes em produção e exportação, o agro brasileiro conquista mais uma marca histórica: o primeiro trilhão no VBP, o Valor Bruto da Produção Agropecuária, que é o faturamento registrado dentro da porteira pelos agricultores e pecuaristas de todo o País. Segundo estimativa do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), o VBP atingiu, com base na apuração até abril, o total anualizado de R$ 1,057 trilhão. Trata-se de um crescimento de 12,4% na comparação com 2020. E a maior cifra do indicador desde que o Mapa passou a acompanhar os dados, em 1989. O recorde é referendado pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA), que também divulga mensalmente uma projeção própria. Como avalia mais produtos e, além dos dados da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab), também usa informações do IBGE e de outros agentes do mercado, a entidade tem uma estimativa ainda mais ambiciosa: R$ 1,192 trilhão, aumento de 15,2%. O número trilionário, a princípio, indica mais renda, tecnologia e investimento no campo e pode ser comemorado. “O bom resultado é fruto de vários fatores. Um deles é que o agro não parou na pandemia. Os produtores continuaram suas atividades. Além disso, o planejamento da safra é feito com muita antecedência. Os produtores investiram em pacotes arrojados, em tecnologia”, explica o coordenador do Núcleo Econômico da CNA, Renato Conchon. Soja, milho e boi são de longe os maiores responsáveis por uma previsão tão expressiva. Segundo o Ministério da Agricultura, as lavouras devem faturar R$ 727,7 bilhões. Desse total, as culturas de soja e milho vão representar sozinhas 65,5%, enquanto a carne bovina vai representar 45% do valor esperado na pecuária, de R$ 330,1 bilhões.

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Matéria de capa

Ag

"Percentualmente, os preços cresceram mais que a produção"

PREÇOS X PRODUÇÃO O VBP nada mais é do que uma estimativa para o faturamento bruto dentro das fazendas calculada com base nos preços vigentes e na perspectiva de produção. A eficiência da produção, assim, tem grande contribuição no resultado obtido. Nesta temporada, porém, outro fator foi ainda mais decisivo: os preços das commodities agropecuárias. Com o dólar valorizado frente ao real e a demanda crescente por alimentos, em um cenário de queda nos estoques, os produtores viram as cotações explodirem no mercado internacional. “Percentualmente, os preços cresceram mais que a produção”, afirma o economista-chefe da Federação da Agricultura do Estado do Rio Grande do Sul (Farsul), Antonio da Luz, sem deixar de destacar o crescimento das lavouras nos últimos anos. “O preço é um fenômeno mais recente. Mas a produção vem crescendo ano após ano.” Em 2021, o Brasil deve colher 273,8 milhões de toneladas de grãos, a maior produção já registrada. É o que aponta o levantamento divulgado pela Conab em abril. Apesar do crescimento impressionante, algumas culturas importantes vão registrar queda e, mesmo assim, alcançar um faturamento alto – outro elemento que confirma a elevação mais expressiva dos preços no VBP. “Um exemplo é o algodão, a produção vai ser menor este ano. Teve redução de área de plantio. Mesmo assim, o faturamento bruto vai crescer. Pelo menos essa é a expectativa porque os preços estão melhores”, explica o jornalista e analista de mercado Silmar Müller. Outros produtos seguem essa tendência de queda na produção, mas preços altos. É o caso do arroz, com uma colheita estimada em cerca de 11 milhões de toneladas, queda de 0,8% na comparação com a safra passada. A despeito dessa redução, junto com laranja, trigo e uva, o arroz também está entre os destaques do VBP deste ano. PLANT PROJECT Nº25

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foto: Shutterstock

Antonio da Luz, economista-chefe da Farsul


"Se olhar só para o VBP, vão falar que o produtor está ganhando muito dinheiro. Por outro lado, os custos também subiram muito e isso vai refletir na rentabilidade" Renato Conchon, coordenador do Núcleo Econômico da CNA

A soja é a principal exceção, teve alta na produção e no preço ao mesmo tempo. Com a colheita recorde de 135,5 milhões de toneladas, de acordo a previsão da Conab, é o principal produto da agricultura brasileira e vive, já há algum tempo, um cenário de preços excelentes, na casa dos R$ 170 a saca. E a tendência é seguir assim, afinal de contas os estoques mundiais do grão seguem baixos. O cenário é de oferta apertada e preço alto. “Podemos não ter preços ainda mais altos do que já estão. O patamar já está bastante elevado, mas também não há nenhuma perspectiva de queda, pelo menos nos próximos meses”, completa Müller. FATURAMENTO X RENTABILIDADE Faturamento bruto alto é igual a rentabilidade do produtor também alta. Certo? Errado. “Se olhar só para o VBP, vão falar que o produtor está ganhando muito dinheiro. Por outro lado, os custos também subiram muito e isso vai refletir na rentabilidade”, é o que explica o coordenador do Núcleo Econômico da CNA, Renato Conchon. Dólar alto não representa apenas melhora na remuneração em reais, mas também insumos como sementes, fertilizantes e defensivos agrícolas mais caros. Além disso, o produtor enfrenta aumento no preço dos combustíveis – que também impacta os insumos –, do frete e da mão de obra, em alguns setores. Também é necessário ter mercadoria nos momentos de pico. “Um exemplo é o café, que está até R$ 800 a saca. Mas muitos produtores não têm estoque. A maioria vende antecipado”, destaca Conchon. 22


Matéria de Capa

Ag

O café é um dos produtos que devem registrar queda no faturamento. A safra do grão será bem menor este ano, cerca de 30%, segundo projeções da Conab e do IBGE. Além de estar em ano de baixa bienalidade, o clima seco prejudicou a produção em várias regiões produtoras. O tombo não vai ser maior por causa dos bons preços. Por último, a venda antecipada, que traz segurança para o produtor, também reflete na rentabilidade. Em momentos como o atual, vender primeiro pode significar não aproveitar os melhores preços. Esse é outro fator que dá a falsa ilusão de que todos estão lucrando. “O VBP recorde não significa que esses valores foram parar no bolso do produtor. Nunca se teve uma venda antecipada de safra tão alta em percentuais. E o produtor acabou não conseguindo aproveitar os preços”, afirma Antônio Galvan, recém-empossado presidente da Aprosoja Brasil. E ele conclui: “[no Mato Grosso] se vendeu a grande maioria da safra por 50% do valor que está no mercado hoje”. Em abril, 67% da produção de soja da safra 2020/21 já estava negociada, de acordo com a consultoria Safras e Mercado. “O produtor não está milionário porque o preço agora está bom. Vendeu muito antecipadamente por um preço bem diferente do atual. Isso impacta na rentabilidade, na margem de lucro do produtor”, reforça o analista Silmar Müller. EXPECTATIVA X REALIDADE O VBP de mais de R$ 1 trilhão ainda é uma projeção, mas muito perto de ser confirmada. “Não está consolidado, mas não deve ter grandes oscilações. A safra de verão representa a maior parte e está praticamente definida”, explica o coordenador-geral de Avaliação de Política Agrícola

“Nunca se teve uma venda antecipada de safra tão alta em percentuais. E o produtor acabou não conseguindo aproveitar os preços” Antônio Galvan, presidente da Aprosoja

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Matéria de capa

do Mapa, José Garcia Gasques. Ele também ressalta que o crescimento do faturamento bruto das fazendas tem sido constante nos últimos cinco anos, a média no período é de R$ 813,5 bilhões. Além do peso da maioria das culturas de inverno ser menor para o cálculo do VBP, tudo indica que os preços seguirão em patamares elevados, principalmente por causa da redução dos estoques globais de grãos e da manutenção da alta demanda, tanto no mercado externo como no interno, em especial para a alimentação animal. A principal preocupação é a segunda safra de milho. A cultura foi plantada com atraso e também enfrenta riscos climáticos, já que a maior parte foi semeada fora da janela ideal. A produção total de milho é estimada pela Conab em 109 milhões de toneladas, um volume histórico, 6% maior que o registrado na temporada passada. A maior parte, 82,6 milhões de toneladas, é prevista na segunda safra, também conhecida como safrinha. Mas essa previsão recorde está ameaçada. A seca já castiga as principais regiões produtoras no Centro-Sul do País e pode prejudicar o desenvolvimento das lavouras, consequentemente também a produção, de acordo com informações da Associação Brasileira dos Produtores de Milho (Abramilho). Cenário alarmante essencialmente para as agroindústrias de carnes. RENDA E TECNOLOGIA Faturamento bruto alto. O que isso representa efetivamente dentro das fazendas? “Renda e a adoção de novas tecnologias quase que de imediato”, responde Garcia Gasques. O presidente da Câmara Setorial de Máquinas e Implementos Agrícolas (CSMIA), Pedro Estevão, concorda. “Historicamente o agricultor sempre investe mais em anos em que o VBP é maior, seja pelos preços ou por uma grande safra.”

“Houve crescimento real de 17% no faturamento” Pedro Estevão, presidente da Câmara Setorial de Máquinas e Implementos Agrícolas (CSMIA)

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Em 2020 o Valor Bruto da Produção Agropecuária já havia sido recorde, alcançando mais de R$ 871 bilhões. As vendas de máquinas agrícolas não decepcionaram. “Houve crescimento real de 17% no faturamento”, destaca Estevão. Para este ano, a expectativa é de novo aumento na casa dos dois dígitos, já que os fundamentos que fizeram o VBP crescer seguem atuando, como a desvalorização do real e o aumento dos preços internacionais das commodities. Os principais investimentos por parte dos produtores são em máquinas para o preparo do solo, plantio, adubação, pulverização e colheita, além de tratores. “O produtor é um constante investidor. Se ele não se atualizar, não investir, aí ele fica comprometido”, afirma o presidente da Aprosoja Brasil, Antonio Galvan. Ele mesmo investiu no solo e também em máquinas recentemente. Com uma rentabilidade melhor, essa é uma tendência entre os produtores, investir mais na correção de solo, além de novas máquinas e implementos. No ano passado, a demanda por fertilizantes cresceu cerca de 10%, na comparação com 2019, valor bem superior à porcentagem média dos últimos três anos, de 2%, segundo o vice-presidente comercial da Mosaic Brasil, Eduardo Monteiro. “É estimado que, de todo o incremento de demanda, 60% vieram do aumento de tecnologia, enquanto 40%, pelo aumento de área”. Este ano, a expectativa é de novo crescimento, entre 5 e 6%. Isso se deve a vários fatores, como os investimentos no plantio de milho, tendo em vista os ótimos preços da cultura, o aumento na área plantada de soja e o maior investimento em tecnologia – não apenas pela agricultura, mas também pela pecuária, com a adubação de pastagens. “A comercialização também ocorreu de forma antecipada, principalmente para a safra de verão, que iniciou as primeiras vendas em julho de 2020, nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste do Brasil”, finaliza Monteiro. PLANT PROJECT Nº25

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FERNANDO SAMPAIO 45 ANOS, CASADO, DOIS FILHOS DIRETOR EXECUTIVO DO INSTITUTO PCI ENGENHEIRO AGRÔNOMO FORMADO PELA ESALQ-USP Por Daiany Andrade 26

ernando Sampaio, diretor executivo do Instituto PCI (Preservar, Conservar e Incluir) – iniciativa do governo de Mato Grosso com foco em projetos voltados para a produção responsável no estado –, tem uma visão crítica e corajosa, seja ao analisar a projeção para o faturamento bruto da produção agropecuária, seja ao falar sobre o atual momento do agronegócio brasileiro e da forte pressão ambiental, que vem não apenas por parte da sociedade civil, mas principalmente dos mercados e investidores. Nesta entrevista à PLANT, ele defende a construção de um modelo mais inclusivo na busca pela sustentabilidade no campo, nas relações comerciais e no desenvolvimento econômico. Para isso, defende, é fundamental a atuação conjunta do poder público, do setor privado e da sociedade civil. Confira. Como você avalia essa previsão recorde para o Valor Bruto da Produção (VBP) em 2021? Ele reflete o momento atual do agronegócio? Acredito que, mais do que tudo, esse número demonstra o quanto o desempenho da economia brasileira depende do agronegócio. Em um cenário de crise no setor de serviços por conta da pandemia e da desindustrialização, essa dependência fica mais evidente. Mas o


Com Fernando Sampaio

número, por si só, não quer dizer que tudo vai bem no campo. Quais pontos devem ser observados, na sua opinião, antes de comemorarmos esse resultado? Primeiro é que essa produção é cada vez mais concentrada, você tem poucos produtores ou grupos produzindo a maior parte desse valor. Em segundo lugar, é preciso olhar o efeito do câmbio. O câmbio atual favorece as exportações, mas aumenta os custos. O que significa que vender mais não necessariamente quer dizer lucrar mais. A CNI (Confederação Nacional da Indústria) elabora há algum tempo um mapa estratégico da indústria, um estudo que identifica fatores-chave para maior competitividade do Brasil, fatores que valem para o agronegócio também. Esses fatores vão de infraestrutura, educação, relações de trabalho até o ambiente macroeconômico e jurídico. E no Brasil tudo isso é muito ruim comparado a nossos concorrentes. O motivo de estarmos ampliando vendas é porque somos muito competitivos dentro das fazendas, mas também por causa do câmbio. Se queremos que isso se mantenha ao longo do tempo, precisamos depender menos do câmbio e melhorar todo o resto. Por último, para que isso se mantenha, precisamos também ampliar mercados. E, para o agro, essa ampliação depende

basicamente de status sanitário, acordos comerciais e agora outros atributos como a conservação ambiental. Embora tenhamos evoluído na questão sanitária, temos poucos acordos, e a questão ambiental será uma pressão cada vez maior sobre nossos produtos. Existe relação do crescimento do VBP com a adoção de práticas mais sustentáveis no campo? Se sim, qual? Sim. Primeiro porque normalmente os produtores que produzem com mais eficiência tendem também a ser os que mais conseguem investir tanto na adequação à legislação como nas boas práticas. Segundo porque, como expliquei, a pressão ambiental não vem mais da sociedade civil ou de órgãos ambientais, ela vem dos compradores, dos bancos e investidores. Ou seja, para produzir e vender bem, ser sustentável deixou de ser uma opção para ser uma necessidade. E, possivelmente, quem está na frente na implementação do

Código Florestal e da aplicação de práticas de agricultura de baixo carbono conseguirá em breve também incorporar o carbono no seu modelo de negócios. Vamos exportar soja, carne, algodão, mas também carbono. Recentemente, em um artigo [“O Alphaville e a Favela, ou nosso apartheid rural”, publicado no site da Adealq, associação dos ex-alunos da Esalq], você falou sobre a concentração de renda no campo e também dos efeitos que a pressão ambiental pode provocar no setor. Por essa perspectiva, quando observamos o VBP, estamos falando apenas de uma elite rural? Sim, anos atrás, no artigo "Pobreza Rural, Pobreza de Ideias", os pesquisadores da Embrapa Eliseu Alves e Zander Navarro já apontavam que dos 4,4 milhões de estabelecimentos rurais validados no último levantamento censitário, apenas 500 mil responderam por quase 90% do valor bruto da produção. Dentre estes, apenas 24 mil

"O número [VBP de R$ 1 trilhão] não quer dizer que tudo vai bem no campo"

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Com Fernando Sampaio

produziram a metade do valor. E isso eles falavam do Censo de 2006! Tudo indica que essa concentração só tenha piorado. Quando as exigências de ESG são aplicadas no campo, seja por compradores ou por financiadores, está claro que é uma minoria que conseguirá atender aos critérios que o mercado demanda. O resto será excluído. Para uma agroindústria ou um banco é muito mais fácil se cercar de grandes fornecedores que têm condições de atender ao que se pede. Quais fatores estão levando ao aumento da desigualdade no campo? É preciso entender que o valor de mercado de qualquer commodity tende ao custo de produção. Se seu custo de produção é melhor que o da média, você ganha dinheiro. Se é pior, você perde e uma hora ou outra será engolido. Na soja, o produtor ineficiente quebrou há muito tempo. Na pecuária, o ineficiente tem uma certa resiliência, ou pela escala, ou porque tem outra atividade econômica subsidiando a fazenda. No resto, e na agricultura familiar, na maior parte dos casos é apenas subsistência. Os principais gargalos estão na dificuldade de acesso a crédito, também por falta de regularização fundiária ou ambiental, acesso à tecnologia e gestão. As políticas públicas que podem melhorar isso são escas28

“Quem está na frente na implementação do Código Florestal e da aplicação de práticas de agricultura de baixo carbono conseguirá em breve também incorporar o carbono no seu modelo de negócios”

sas. Na maior parte das vezes espera-se que essas pessoas abandonem o campo para se encaixarem nos centros urbanos em outras atividades econômicas. Na atual situação do País isso só vai gerar mais problemas sociais. No artigo você compara a realidade do campo com o que vivemos nas cidades. Como observar o que aconteceu no desenvolvimento das grandes metrópoles e evitar os mesmos erros agora no campo? As cidades cresceram desordenadamente movidas por especulação, sem respeito à geografia, às necessidades das pessoas e muitas vezes sem investimentos básicos como saneamento. A solução de quem podia pagar foi a de se fechar

em condomínios e shoppings enquanto lá fora a sujeira e a violência acontecem. No campo convivemos com duas realidades. Uma de um agro moderno, exportador, conservacionista, tecnológico. Outra de grilagem, conflitos, degradação e pobreza. O problema é que muitas vezes essas duas realidades convivem misturadas, e o lado bom leva a fama do mau. Grande parte do agronegócio encara isso como um problema que não é dele. Eu, pelo contrário, digo que deveríamos liderar o debate sobre o enfrentamento desses problemas. Como o poder público deve agir para diminuir essa desigualdade? O setor público tem muito claro o que precisa fazer. É obrigação dele controlar a ilegalidade, implementar a legislação do


Código Florestal, fazer a regularização fundiária, destinar terras não destinadas. Criar um ambiente de negócios para que as pessoas possam ter segurança, investir e avançar. Mas não se trata somente de aplicar a legislação. Trata-se também de planejar o território. Se você olhar a Amazônia, por exemplo, temos muitos assentamentos, todos em lugares errados, onde não há mercado. Vão produzir o quê, para vender pra quem? E o governo pode ter um papel fundamental na criação de capacidades, na disseminação de tecnologias, na infraestrutura, na conectividade, e principalmente na educação. As empresas, os grandes e médios produtores também devem atuar nesta causa ou já atuam? Ninguém vai resolver esses desafios por conta própria, nem governo, nem sociedade civil, nem setor privado. Se não houver um esforço conjunto, é quase impossível avançar com a redução das desigualdades e a sustentabilidade no campo. A PCI, em Mato Grosso, é um exemplo de como podemos articular ações de diferentes setores para avançar com a sustentabilidade no campo. Hoje, os esforços para cadeias de commodities sustentáveis são todos baseados em exclusão. Se há desmatamento, não compro: se não tem documentos, não compro, se tem

embargos, não compro. É sempre na base da moratória, do embargo e das sanções. Há dois problemas nisso. Primeiro porque o mercado é o principal motor da melhoria contínua na eficiência do uso da terra. A razão pela qual a pecuária deu saltos de produtividade no Brasil nas últimas décadas é porque estávamos inseridos no mercado global. Ao cortar o acesso a mercados, vamos incentivar a ineficiência. Segundo porque não resolve o problema. As pessoas continuam no campo precisando de renda, e vão criar um mercado paralelo que será pior do que o atual. Obviamente não queremos que empresas sejam coniventes com a ilegalidade. Há critérios que são inegociáveis, não se pode aceitar trabalho escravo, invasão de terras indígenas e outros crimes, por exemplo. Mas precisamos passar da exclusão para a inclusão, apoiando produtores em processos de regularização e assistência técnica. Hoje, muitas empresas estão saindo de sistemas excludentes de compra para criar mecanismos de incentivo e apoio em suas cadeias de fornecimento. Grandes produtores podem servir como âncora para assistência técnica, comercialização e financiamento em seu entorno. Para pequenos produtores, o associativismo e o cooperativismo são mecanismos fundamentais de apoio.

Temos vários projetos e ações no P aís voltados para a sustentabilidade no agro. Como tornar essas iniciativas mais inclusivas? As exigências de sustentabilidade em cadeias de produtos agropecuários são legítimas e vêm de anseios do consumidor e da sociedade em geral. Mas existem barreiras que precisam ser superadas tanto dentro da porteira como nas capacidades locais de governos e outros agentes. Acredito que precisamos primeiro sair da lógica de exclusão nas cadeias de fornecimento das empresas, sejam essas cadeias ligadas a grãos, proteína ou mesmo a produtos da agricultura familiar. Segundo, precisamos sair também da lógica de projetos isolados, e começar a olhar o conjunto do território. Olhar onde estão os gargalos e as oportunidades, o que precisa acontecer no setor público, e o que precisa acontecer na ponta, no campo. Isso pode ser feito em um município, em uma região, em um estado, em um bioma. A partir da definição de onde queremos chegar naquele território e desse planejamento, podemos desenhar projetos que apoiem a região a atingir esse objetivo. Com isso vamos apoiar a produção no que ela precisa, apoiar a conservação onde ela é necessária, e criar oportunidades para todos que convivem nessa paisagem rural. PLANT PROJECT Nº25

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OS DESAFIOS DA PRODUÇÃO SUSTENTÁVEL As boas práticas socioambientais entraram na pauta da gestão das propriedades agrícolas. Implementá-las, no entanto, não depende apenas da vontade dos produtores

foto: Egberto Nogueira/Ímã Fotogaleria

Por Lívia Andrade

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Área preparada para ILPF em fazenda do Grupo Morena, no Mato Grosso

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foto: Egberto Nogueira/Ímã Fotogaleria

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corrida para impedir que a temperatura mundial aumente mais que 1,5 °C até o fim do século 21 vem pautando a agenda econômica mundial. Em território nacional, tal preocupação tem sido o catalisador de uma série de mudanças rumo a uma agropecuária cada vez mais sustentável. No entanto, para avançar nessa agenda, não basta ter produtores conscientes de que precisam implantar práticas socioambientais mais modernas e responsáveis em suas propriedades. De questões regulatórias ao incentivo financeiro para que eles adéquem suas fazendas, há uma longa lista de desafios que precisam ser encarados, dentro e fora das porteiras, para que a produção sustentável seja reconhecida como um atributo indiscutível do agronegócio nacional. Um dos principais e mais antigos pontos a serem tratados, nesse sentido, é a questão

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fundiária. “A terra é um ativo em disputa no mundo e está suscetível a permanentes conflitos, além de ser palco de crimes ambientais, como o desmatamento”, diz Richard Torsiano, diretor executivo da R.Torsiano Consultoria Agrária, Ambiental e Fundiária e consultor da FAO para assuntos fundiários na América Latina e Caribe. A resolução dos conflitos agrários passa obrigatoriamente pela governança de terras, uma lição que o País ainda não fez. “Não é possível governar aquilo que não se conhece. E, para conhecer, é preciso ter um cadastro de terras eficiente e integrado com as instituições que produzem informações fundiárias como o Incra [Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária], a Receita Federal, o Serviço Florestal Brasileiro (SFB), o Cadastro Ambiental Rural (CAR) e os cartórios de registros de imóveis”, diz Torsiano. Mesmo alguns avanços que

já conseguimos ainda não podem ser totalmente contabilizados como positivos. Um dos mais modernos instrumentos legais do gênero no mundo, o Código Florestal brasileiro ainda precisa ser implementado por completo. Esta foi, inclusive, uma das ações propostas pela Coalização Brasil Clima Floresta e Agricultura, movimento que envolve mais de 280 representantes do agro, sociedade civil, setor financeiro e academia, em carta endereçada ao presidente Jair Bolsonaro, no início de abril, cobrando metas mais ambiciosas em relação ao clima. No documento, a Coalização diz que “os governos federal e estaduais deveriam iniciar já a análise dinamizada e validação do CAR, permitindo agilização da implementação dos Programas de Regularização Ambiental (PRAs) e das Cotas de Reserva Ambiental (CRAs)” e suspendendo os registros de CAR que incidem sobre florestas públicas.


Sustentabilidade

Na opinião de Renata Nogueira, gerente de Sustentabilidade do Negócio Agrícola da Cargill na América do Sul, “o Brasil é um país gigantesco e as demandas são diferentes em cada região”, mas a implementação do Código Florestal é o ponto de partida. “Sabemos que uma pequena parcela de produtores não cumpre as leis ambientais e isto impacta a reputação de toda a produção agropecuária brasileira”, diz. Não por acaso, a Cargill se comprometeu em transformar suas cadeias de suprimentos globalmente para serem livres de desmatamento até 2030. No Brasil, a multinacional já identificou a localização de todos os fornecedores diretos em biomas de alto risco, como Amazônia e Cerrado. “Com base em dados de satélite, vamos monitorar o uso da terra nessas cadeias de abastecimento”, diz. A Cofco International, trading de commodities agrícola da estatal chinesa de alimentos Cofco, foi outra gigante que anunciou a meta de rastrear 100% da soja que compra diretamente de fazendas do Brasil até 2023. CONHECIMENTO E CUSTO A insegurança jurídica não é, entretanto, o único problema. Quando se trata de pequenos e médios estabelecimentos rurais, a falta de assistência técnica, de conhecimento sobre práticas sustentáveis, de conectividade no campo e acesso às ferramentas

da agricultura digital é o grande gargalo. “Está cada vez mais evidente que, sem adotar tecnologia, sem inovar, nenhuma atividade produtiva vai para a frente”, diz Rodrigo Lima, diretor da Agroicone, empresa de pesquisa aplicada em agronegócio. Atender às determinações do emaranhado de normas técnicas que regulam a proteção ambiental e também o trabalho no campo não é tarefa fácil. A legislação traz muitos detalhes e os órgãos oficiais responsáveis costumam fazer atualizações frequentes dessas normas, dificultando o acompanhamento por parte do produtor. Por esse motivo, empresas como as grandes traders, que fazem originação de produtos agrícolas, têm investido em parcerias para fazer chegar ao produtor esse conhecimento. Reunidas no Soft Commodities Forum (SCF), as seis maiores tradings do mundo – ADM, Bunge, Cargill, Cofco, Glencore e Louis Dreyfus – desenharam um projeto-piloto em parceria com o Instituto PCI (Produzir, Conservar e Incluir), do governo de Mato Grosso, para orientar e dar assistência técnica a produtores na adequação de suas propriedades. Numa primeira fase, foram selecionadas 50 fazendas nos municípios de Campos de Júlio e Planalto da Serra. Elas receberão diagnósticos socioambientais e orientações para elaborarem planos de ação de melhorias e serão assistidas pela Produzindo Certo, empresa

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Painéis solares na paisagem da Fazenda Morena: certificações em várias áreas, da produção à gestão

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Produção em sistema ILPF no Mato Grosso: para especialistas, desafios da pecuária são maiores que os da agricultura

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escolhida como parceira técnica no programa. Outro grande obstáculo dessa parcela de produtores é o valor das certificações, que asseguram uma produção de acordo com as boas práticas socioambientais. O custo da auditoria para conseguir esses selos oscila entre R$ 4 mil e R$ 24 mil, dependendo da certificação desejada. A quantia pode ser inviável para muitos proprietários rurais, sobretudo os de menor porte. Para driblar a barreira financeira, muitos agricultores têm buscado alternativas em programas públicos ou de organizações sem fins lucrativos. Hortifrutigranjeiros de Parelheiros, na periferia da cidade de São Paulo, por exemplo, se uniram e criaram a Cooperativa Agroecológica dos Produtores Rurais e de Água Limpa da Região Sul de São Paulo (Cooperapas). Eles seguem os protocolos de boas práticas agrícolas da Secretaria de Agricultura do Estado de São Paulo e recebem assistência técnica de agrônomos da prefeitura, que estimulam os produtores da região – que é cercada de mananciais e das represas Billings e Guarapiranga – a fazer a transição para a agricultura orgânica. Como a certificação é algo caro e nem todos têm recursos, parte dos produtores da Cooperapas tem a chancela da Organização de Controle Social (OCS), que fornece o documento de conformidade de produção orgânica participativa. É uma

espécie de certificação social, em que um produtor fiscaliza o outro. Este modelo foi abraçado por chefs de cozinha, como Paola Carossela. Desde 2016, a argentina tem parceria com a Cooperapas e, na pandemia, criou pratos vegetarianos só com produtos desses pequenos agricultores. Resultado: a chef quase quadruplicou o valor da compra de legumes e hortaliças do grupo, que saltou de R$ 36 mil em 2019 para R$ 140 mil em 2020. Os fundos sociais são outra iniciativa relevante. Várias entidades certificadoras, como o Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), trabalham com essa ferramenta, que funciona da seguinte forma: parte dos recursos de contratos firmados pelo instituto se transforma em subsídios para certificações de pequenos produtores. CEGUEIRA DO ESTADO Um dos principais obstáculos da produção agropecuária sustentável é a omissão do Estado, assunto que veio à tona com o desmatamento de mais de 10 mil km2 registrado na Amazônia Legal entre 2018 e 2019. Segundo o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), 40% do desmatamento observado na região em 2018 ocorreu em terras públicas, ou seja, em reservas indígenas, em unidades de conservação e nas chamadas florestas públicas não destinadas (terras federais e estaduais).


foto: Divulgação

A lacuna da presença do Estado é agravada pela falta de conexão entre as informações dos diversos órgãos que deveriam analisar e regulamentar as propriedades rurais, como Incra, Receita Federal, SFB, CAR e até mesmo os cartórios de registros de imóveis. “Os guardiões dos direitos de propriedade, que são os cartórios, em sua maioria, especialmente nas regiões mais pobres, até hoje guardam esses direitos em livros velhos e precários, que nem minha avó guardava as receitas [culinárias]”, diz Torsiano, consultor da FAO. E não é só isso, há títulos antigos expedidos em terras federais na Amazônia nas décadas de 1960 e 1970 que não têm sequer uma planta, ou seja, não há informação sobre a sua localização. Isso resulta em outro problema. “Hoje, você tem mais 100 mil lotes georreferenciados [na região], prontos para titular. Mas o servidor federal, quando vê que naquela terra já foram dados títulos, recua com medo de

processos administrativos por conta da possibilidade de sobreposição de títulos”, explica. Tal fragilidade na administração de terras não é algo restrito ao Norte do Brasil. Os títulos precários são uma realidade do Oiapoque ao Chuí e há muitos “vazios”, terras públicas dos estados que não foram delimitadas. “São terras devolutas estaduais, em que os estados não operaram as devidas arrecadações, não trouxeram para o seu patrimônio”, diz o consultor. “Ali, certamente existem milhares de agricultores vivendo. Têm comunidades com todo o direito de serem regularizadas, sobrevivendo em condição vulnerável porque o Estado não conhece sequer a ocupação. Mas tem também grileiro se aproveitando da cegueira do Estado para se apropriar dessas terras e operar desmatamento e crime ambiental”, acrescenta. Para Torsiano, a regularização fundiária é essencial para os produtores terem o seu direito protegido e acessar as políticas

públicas e as linhas de financiamentos. Assim, é fundamental resolver com urgência a governança de terras. “Se é necessário regularizar é porque foi possível a ocupação irregular e isso acontece porque o Estado não tem controle sobre a ocupação que ocorre sobre suas terras e isso é reflexo da debilidade na governança”, diz. Hoje as discussões sobre regularização fundiária no Brasil estão muito focadas no marco legal, data-limite da ocupação para que seja possível a titulação da terra. A lei em vigor estabelece o ano de 2008 como limite, mas o Projeto de Lei nº 510, de 2021, do senador Irajá Silvestre Filho (PSD/ TO) propõe que seja 2012. “Esta mudança do marco temporal só fragiliza, traz insegurança jurídica e sinaliza para os oportunistas que podem entrar que depois o governo dá um jeito de regularizar”, afirma Torsiano. Mas ele frisa que a questão da regularização fundiária não está circunscrita a esta discussão. “O marco legal PLANT PROJECT Nº25

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trata de terras públicas federais. Se formos para a Amazônia, a lei está tratando de 10% do território, que é uma área relevante em extensão. Mas o maior problema do Brasil são milhões de hectares de terras públicas e devolutas [não destinadas] que estão sob a responsabilidade dos estados, inclusive na Amazônia”, explica. NOMENCLATURA Outro desafio da produção sustentável é a nomenclatura. “Muitos produtores não entendem o que é e têm a visão que sustentabilidade é possuir uma certificação socioambiental, com reconhecimento internacional, ou participar do programa de alguma empresa”, diz Oséias Mendes, coordenador de projetos do Instituto de Manejo e Certificação Florestal e Agrícola (Imaflora), uma das organizações credenciadas para certificação de agricultura sustentável Rainforest Alliance no Brasil. A falta de conhecimento é mais recorrente nos pequenos agricultores. “Os grandes procuram abrir novos canais de vendas e, na busca, recebem muita informação sobre sustentabilidade”, diz Mendes. Sem contar que eles costumam ter consultores e profissionais debruçados a entender certas temáticas. Mas a história é diferente com os pequenos e médios produtores. É comum eles adotarem práticas sustentáveis sem saber que aquilo é uma técnica de agricultura regenerativa, que cuida do solo, da 36

água, da biodiversidade. O Cerrado Mineiro é um bom exemplo. A região concentra mais de 50% das fazendas cafeeiras com certificação Rainforest no Brasil, mas nem sempre o agricultor tem a visão do todo. “Eles plantam capim braquiária entre as ruas do cafezal, porque traz matériaorgânica, cobre o solo e evita erosão, mas muitos não sabem dos outros benefícios”, diz Mendes, que acompanha projetos de cafeicultura na região. Ele se refere a ganhos como atração de insetos, que são inimigos naturais de pragas do cafezal; maior aeração do solo pela raiz do capim, o que ajuda na infiltração da água; manutenção de uma temperatura amena no terreno; inibição de plantas daninhas, entre outros. Tal lacuna de conhecimento holístico poderia ser suprida por um órgão de assistência técnica e extensão rural. Mas as instituições voltadas a esta finalidade andam com poucos braços. Quem tem feito a “catequese” é o corpo técnico de cooperativas. Na cafeicultura do Cerrado Mineiro, Mendes ressalta que o principal gargalo para uma produção sustentável é o manejo hídrico. “A região é dependente de irrigação. Mas são raros os produtores rurais que têm um manejo apurado. A maioria [dos cafeicultores], enquanto tem água, está molhando”, diz. A diminuição do recurso hídrico no contexto de mudanças climáticas é uma grande

preocupação. Por isso, Mendes defende que as cooperativas deveriam contratar um técnico em irrigação. “Hoje, quando o produtor recebe informações de irrigação, elas vêm de empresas [do ramo] que prometem coisas mirabolantes. Eles ficam com medo”, explica. Com o intuito de ajudar nesse processo, o Imaflora fez um estudo pioneiro com 34 propriedades rurais (pequenas, médias e grandes) de cooperados da Cooperativa dos Cafeicultores do Cerrado Monte Carmelo (Monteccer) para mensurar o balanço das emissões de carbono da produção de café dessas fazendas. “Levantamos as práticas sustentáveis que mais contribuem para o sequestro de carbono. Agora a ideia é disseminá-las na região”, completa. AS PEDRAS NO MEIO DO CAMINHO Mesmo para as fazendas que estão na vanguarda da sustentabilidade no Brasil, não é tarefa simples estar 100% dentro das regras. “Nunca está tudo certinho, sempre há situações em que você precisa correr atrás das adequações”, diz Dulce Ciochetta, dona da Fazenda Morena, propriedade de 6.900 hectares em Campo Novo dos Parecis (MT), voltada à produção de soja, milho, eucalipto e gado no sistema de integração lavoura-pecuáriafloresta (ILPF). Para a professora, que desde 2006 cuida da gestão do grupo Morena, os dois principais


Dulce e o marido, Romeu Ciochetta: “Tudo isso é custo, demanda tempo e dá muito trabalho, mas ser sustentável é sair da zona de conforto e saber que está fazendo sua parte pelo planeta”

empecilhos são as mudanças constantes nas leis, que exigem constantes adaptações, e a morosidade de órgãos públicos, que demoram para analisar um simples pedido de renovação da outorga para o uso da água. Mas Dulce não reclama. “Sustentabilidade é uma prática, eu mudei minha mente, vou me adaptando, me organizando”, conta. A paranaense reconhece que tem uma situação privilegiada, com recursos e pessoas para implementar mudanças. “Quando o agricultor é pequeno não é simples, ele precisa do apoio de cooperativas, de entidades e grupos de trabalho para viabilizar”, diz. Ela cita um fato corriqueiro na Fazenda Morena. Toda vez que é feita a troca do óleo lubrificante dos maquinários da propriedade, Dulce designa um motorista para recolher o material e levar de caminhão até a cidade mais próxima que tenha uma empresa para fazer a destinação correta do resíduo. O mesmo acontece com as seringas usadas para a vacinação do gado.

“Coloco dentro de galões e levo para o escritório em Tangará [da Serra (MT)]. Uma pessoa pega e leva para Cuiabá, onde tem uma empresa que incinera”, diz. “Tudo isso é custo, demanda tempo e dá muito trabalho, mas ser sustentável é sair da zona de conforto e saber que está fazendo sua parte pelo planeta”, complementa. Nem tudo são ônus, no entanto. Estar antenado com as práticas socioambientais e de governança tem um impacto no lado financeiro, a fazenda aprimora a gestão e consegue aumentar a produtividade e, consequentemente, a rentabilidade. “Eu tenho que ser sustentável, senão estou fora do processo. Para ter mais lucratividade, é uma obrigação fazer mais com menos, cuidar dos recursos naturais, do solo e da água”, diz Dulce. A conectividade é outro catalisador de uma produção sustentável. “Estamos vivendo a agricultura 4.0, que é uma agricultura movida a dados, que ajudam na tomada de decisão”,

diz a gestora. Hoje as máquinas vêm com tecnologias embarcadas, fazem aplicação de fertilizantes em taxa variável, têm recursos para diminuir o gasto de combustível e dessa forma emitir menos gases poluentes, mas sem internet não é possível usar tais ferramentas. Na Fazenda Morena, conectividade já foi um problema, hoje não é mais. “Colocamos fibra ótica”, diz Dulce. A fazenda hoje coleciona certificações. Na soja, o grupo Morena tem os selos: RTRS (Round Table on Responsible Soy) e o 3S (Soluções para Suprimentos Sustentáveis) da Cargill, do programa de sustentabilidade da multinacional, que avalia requisitos como desmatamento zero, gerenciamento de gases do efeito estufa, boas práticas agrícolas e o bem-estar do trabalhador rural. “E estamos há três anos no processo para conseguir a certificação B-Corp, que engloba as questões socioambientais, mas é voltada a oferecer melhores produtos para o mundo”, finaliza. PLANT PROJECT Nº25

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O pecuarista Alcindo Schinoca: “Meu lema hoje é: ‘Aqui se produz, aqui se preserva’”

PECUÁRIA: UM CAPÍTULO À PARTE Os desafios que já são grandes na agricultura ficam ainda maiores na pecuária. A grande dificuldade é rastrear o animal do nascimento ao abate, porque são poucos os pecuaristas que fazem o ciclo completo (cria, recria e engorda). A maioria atua em apenas uma ou duas das etapas da cadeia, o que dificulta o monitoramento de fornecedores indiretos, que – muitas vezes – são acusados de criar bezerros em áreas desmatadas ilegalmente. O grupo Morena tem sentido na pele essa dificuldade. No processo para conseguir uma nova certificação, a B-Corp, Dulce Ciochetta foi indagada sobre a procedência dos bezerros que compra, já que a fazenda trabalha só com recria e engorda. Ela chegou à conclusão de que não conhece a fundo seus fornecedores. Sim, ela sabe quem são eles, mas não os pormenores da fazenda, se a propriedade tem práticas sustentáveis, se não desmata, se respeita as leis trabalhistas. “Isso nos fez iniciar um trabalho para conhecer o nosso fornecedor de gado”, explica Dulce. 38

No Brasil, há dois processos de rastreabilidade. No primeiro, o pecuarista adota o Serviço Brasileiro de Rastreabilidade da Cadeia de Bovinos e Bubalinos (Sisbov), que identifica com um brinco, uma espécie de documento de identidade com um número oficial, os animais logo após o desmame. A ferramenta permite acompanhar a vida da rês desde os 10 meses até o abate. Geralmente, este tipo de rastreabilidade é para animais que preenchem a Cota Hilton, para exportação de cortes bovinos de alta qualidade destinados à União Europeia. Para quem não utiliza o Sisbov, a rastreabilidade é feita nos últimos 120 dias do animal, ou seja, a etapa final (engorda) do ciclo produtivo. “Pela legislação, toda indústria é obrigada a ter a rastreabilidade da última propriedade onde o animal foi hospedado e atender todos os protocolos sanitários vigentes”, diz Orlando Negrão, diretor de operações do Frigol, frigorífico brasileiro com foco em produtos de maior valor agregado. De acordo com a assessoria de imprensa da Marfrig, uma das maiores empresas de carne

bovina do mundo, “a empresa está ciente do desafio a ser enfrentado, que é obter informações dos fornecedores indiretos”. Nesse sentido, desde 2013 a empresa tem a Request for Information (RFI), uma ferramenta que solicita aos pecuaristas de quem a empresa compra o animal para o abate, as informações dos produtores e das fazendas das quais as reses foram adquiridas, caso a propriedade não seja de ciclo completo. A adesão é voluntária e tem por objetivo “promover a transparência e fortalecer ainda mais os dados sobre a origem dos animais fornecidos à empresa”. Hoje, o rebanho bovino nacional é de 220 milhões de cabeças. “Temos 13 milhões de bovinos rastreados, o que dá cerca de 6% da população bovina brasileira”, diz Nabih Amin El Aouar, presidente da Associação dos Criadores de Nelore (ACNB). “Destes 13 milhões de bovinos rastreados, abatemos anualmente entre 3,5 milhões e 3,7 milhões de cabeças, o que dá um pouco menos de 10% dos animais abatidos”, explica. Mas a rastreabilidade é apenas um dos desafios da


Sustentabilidade

atividade. Considerada por muitos a vilã do agronegócio, a pecuária é um universo bastante heterogêneo. De acordo com o IBGE, a produtividade média do produtor brasileiro é de 4,26 arrobas por hectare/ano em propriedades que fazem o ciclo completo (cria, recria e engorda). No entanto, dados do Rally da Pecuária – expedição técnica privada organizada pelas consultorias Athenagro e Agroconsult, que avalia as condições da bovinocultura de corte no País – apontam uma produtividade média de 12,81 arrobas por hectare/ano no público visitado pelo rally. “A gente estima que 90% dos produtores do Brasil estejam operando com prejuízo, com um baixo nível de tecnologia. Mas os 10% que conseguem ter lucro representam a pecuária profissional e movimentam 75% das vendas de gado do País”, diz Maurício Palma Nogueira, coordenador do Rally da Pecuária. Tal raio X evidencia o abismo de conhecimento. De um lado, produtores extremamente tecnificados, que cuidam das pastagens e investem em tecnologias para aumentar a produção por hectare. Do outro, pecuaristas que continuam presos ao passado, tocando a propriedade de forma rudimentar, como o avô tocava meio século atrás. Nesta parcela de pecuaristas precários, há muitos com problemas fundiários, sem o título da terra, o que os impede de usufruir das

políticas públicas, ter acesso ao crédito e investir na melhoria da propriedade. Outro problema recorrente é a falta de afinidade dos filhos com a atividade exercida pelos pais. Muitos herdam a propriedade e não têm dinheiro nem conhecimento para investir e vão deixando as pastagens se degradar ou, na melhor hipótese, vendem ou arrendam para terceiros. DESTAQUE POSITIVO A história é diferente para os pecuaristas de ponta, como Alcindo Jorge Schinoca, que tem 5,5 mil cabeças de gado em Jaciara (MT). O proprietário da fazenda Agropecuária Schinoca, hoje com 71 anos, vem acompanhando a evolução do agronegócio nacional. No passado, Schinoca não era um preservacionista. Chegou a desmatar muitas áreas e levar os resíduos paras os córregos d’água. Mas sua forma de pensar mudou por completo. “Meu lema hoje é: ‘Aqui se produz, aqui se preserva’”, diz. Hoje, na Agropecuária Schinoca, as nascentes e córregos d’água são todos cercados e protegidos e ai daquele que ousar depredá-los. O recurso hídrico da maior mina é bombeado para um grande reservatório e abastece todas as famílias da fazenda e também os animais da propriedade, que trabalha com ciclo completo, mas em tempo curto. Em outras palavras, os machos são abatidos com cerca de 18 meses e as

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fêmeas, novilhas precoces, vão para o abate com 30 meses, depois de deixar um bezerro. A fazenda trabalha com cruzamento das raças Nelore e Angus e tem 700 hectares dedicados à Integração LavouraPecuária-Floresta (ILPF). “Fazemos a RIP, Recria Intensiva a Pasto. Pegamos o bezerro que foi desmamado e levamos para a melhor pastagem e ainda damos uma ração especial para ele não perder peso”, explica o pecuarista. Depois da RIP, os animais vão para a Terminação Intensiva a Pasto (TIP) e lá ficam até chegarem a 450 quilos. “Eles só vão para o confinamento nos últimos 45 a 60 dias para ganhar uma cobertura de gordura”, explica Schinoca. O esmero com as pastagens e com os animais resulta numa produtividade muito acima da nacional. “Nossa média está em torno de 25 a 30 arrobas por hectare/ano”, diz. Todo o rebanho da propriedade é rastreado pelo Sisbov, e a fazenda, além de vender para Marfrig e frigorífico Estrela, exporta para União Europeia e China. “A partir do ano que vem, vamos pleitear a Cota Hilton”, diz o proprietário da Agropecuária Schinoca, que está em fase final do processo para ter a fazenda certificada, com o apoio da Produzindo Certo. Quem vence os desafios da produção sustentável percebe que ela é o caminho para a preservação do ambiente, mas, sobretudo, do negócio para as próximas gerações. PLANT PROJECT Nº25

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MAIS DINHEIRO EM CAMPO

Santander prevê crescer entre 25 e 30% em crédito destinado ao produtor rural este ano, com firme demanda externa por grãos e carnes, preços favoráveis para produtos do setor sucroenergético e dólar valorizado

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O agronegócio brasileiro tem demanda superior de crédito em relação ao que o governo é capaz de ofertar por meio da política oficial. Recursos subsidiados são gradativamente substituídos por fontes privadas. É uma agenda em transformação, acompanhada de perto pelo Santander, que ano a ano avança em participação no crédito para o produtor rural. A carteira de crédito ampliada (que considera recursos obrigatórios e livres, BNDES, Funcafé e os títulos CPR e CDCA) do banco aumentou 285% entre dezembro de 2015 e fevereiro de 2021, saltando de R$ 6,086 bilhões para R$ 23,436 bilhões. Em 2020, o crescimento foi de 18,6%, para R$ 23,391 bilhões, sobre o ano anterior. Em 2021, o Santander prevê crescer entre 25 e 30% sua carteira de crédito para o agronegócio, por conta da firme demanda externa por grãos e carnes, preços favoráveis para produtos do setor sucroenergético, sobretudo o açúcar, e dólar valorizado. O banco também continuará reforçando a estrutura de atendimento, com o planejamento de abertura, ainda este ano, de 50 a 80 novas agências exclusivas para o agronegócio, especialmente nas regiões Centro-Oeste, Norte e Nordeste, conforme destaca o diretor responsável pela área de Agronegócios do Santander Brasil, Carlos Aguiar Neto, na entrevista a seguir: Qual o cenário de crédito rural para a temporada 2021/22? Carlos Aguiar: Os depósitos à vista e as aplicações na poupança rural cresceram. A expectativa é de mais recursos para operações

de custeio, notadamente mais de curto prazo. Já para linhas destinadas a investimentos, o custo de captação já está maior, com juros mais altos, devido ao cenário fiscal e de endividamento público – agravados pela pandemia. O que o Santander prepara diante deste cenário? Carlos Aguiar: A despeito do período desafiador, o agronegócio vai muito bem. Estamos otimistas, investindo em tecnologia, a fim de melhorar a experiência do cliente no processo de tomada de crédito, tornando-o mais ágil, assertivo. Também estamos investindo na abertura de novas agências focadas no agro. Como foi a evolução da captação de recursos por meio de títulos como CRA e LCA nos últimos anos? Carlos Aguiar: O mercado de capitais conectado ao financiamento do agronegócio enfrenta percalços, mas é cada vez mais ativo. As captações por meio de LCAs registraram certo recuo, já que se trata de títulos de renda fixa, e com os juros em patamares mais baixos, ficaram menos atraentes aos olhos dos investidores. Mesmo assim, mantivemos um volume em carteira de aproximadamente R$ 15 bilhões. As operações via Certificados Recebíveis do Agronegócio (CRAs) crescem por se tratar de um título de renda fixa, que costuma oferecer rendimento mais alto. A agenda de crédito rural está em transformação, com o Tesouro Nacional passando a

focar mais no pequeno. Como o Santander enxerga esse processo? Carlos Aguiar: É um movimento correto. O agro brasileiro é moderno, profissional, tecnológico, e as finanças do setor precisam acompanhar isso. O produtor quer é crédito rápido, confiável, acessível. Boa fatia dos produtores já vem se movimentando em busca de diversidade de fontes de recursos, e acompanhamos de perto esse quadro, com o objetivo de oferecer mais e melhor crédito. Critérios relacionados ao compliance socioambiental serão cada vez mais adotados para concessão de financiamento? Carlos Aguiar: A agenda pautada pela governança socioambiental (ESG, na sigla em inglês) veio para ficar. Exigências relacionadas a atributos como originação e rastreabilidade só aumentam. Nós temos monitoramento diário com relação ao compliance socioambiental vinculado à concessão de crédito. Qual a estimativa de participação do Santander no financiamento agrícola na safra 2021/22? Carlos Aguiar: Nossa meta é crescer em oferta de crédito entre 25 e 30%. A firme demanda externa por grãos e carnes, preços favoráveis para produtos do setor sucroenergético, sobretudo o açúcar, e dólar valorizado são fatores de impulso ao agronegócio, e consequentemente da necessidade de mais recursos para o setor. PLANT PROJECT Nº25

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A paranaense Dayane Andrade, há 12 anos na Nova Zelândia: a aventura virou destino 42


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TALENTOS BRASILEIROS PELO MUNDO Mais do que um grande exportador de tecnologia e produtos agropecuários, o Brasil é também uma fonte de profissionais dedicados, diferenciados e altamente qualificados Por Romualdo Venâncio

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e tem algo que não falta no agronegócio brasileiro é profissionais de alto nível, gente que faz a diferença nas mais diferentes subdivisões do setor. Pode ser nas fazendas, nas empresas, em instituições de pesquisa, no segmento acadêmico, na área pública e privada. Inclusive fora do País. Há muita gente agregando valor ao Brasil agro quando se arrisca em diferentes desafios pelo mundo. A PLANT PROJECT traz aqui um pouco da trajetória de quatro profissionais que estão fazendo história em lugares e atividades bem distintas. Para isso, têm enfrentado e superado os obstáculos das diferenças culturais, do próprio idioma, de questões estruturais e governamentais e até a saudade da família e das amizades. Acompanhe.

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Trabalho

Criadora de ovinos e digital influencer na Nova Zelândia “Do balcão do boteco dos meus pais, servindo pinga, cigarro e coxinha, às montanhas tocando meu próprio rebanho em solo estrangeiro. Como cheguei até aqui? Fazendo acontecer.” Este é um trecho do post que Dayanne Andrade fez em seu perfil no Instagram (@canal_sheepnutter), em 23 de abril, ao completar 12 anos na Nova Zelândia. Motivos não lhe faltam para celebrar. Nascida em União da Vitória, cidade paranaense na divisa com Santa Catarina, se formou em zootecnia pela Unesp de Botucatu (SP). Bem antes de concluir o curso, ela já havia optado por trabalhar com ovinocultura, e foi essa escolha que a levou até o outro lado do globo. Mas, no tempo da faculdade, nem sequer pensava em deixar o País. “Nunca tive ambição de fazer estágio fora. Tinha muito os pés no chão, não tinha grana, não falava inglês. Nem criava expectativas para não me frustrar”, diz. Dayanne vive em Gladstone, região sul da Ilha Norte da Nova Zelândia, é casada com o neozelandês Paul Crick e mãe da pequena Isabela, de 4 anos. A Fazenda Glenside, propriedade da família, tem cerca de 4.500 ovinos para produção de carne e lã, 300 cabeças de gado de corte e 700 cervídeos para produção de carne e chifre. Além de produtora rural, a zootecnista é consultora em genética, ou area management and technical lead, pela Zoetis na Ilha Norte. Ouvir Dayanne contar o que vive hoje na Nova Zelândia é empolgante. Mas acompanhá-la descrevendo sua jornada, desde a saída do Brasil, chega a ser uma diversão. Foi uma amiga de infância, Natália, engenheira química que morava na Alemanha, quem a encorajou – e a apoiou com

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o inglês – para que fizesse contato com ovinocultores da Nova Zelândia e da Austrália. Após cerca de 500 e-mails enviados, veio a resposta de um produtor que costumava receber mochileiros na fazenda, viajantes que pagavam a hospedagem e a comida com trabalho. “Ele nunca tinha recebido brasileiros, ainda mais com um interesse tão específico em ovinos”, lembra. Ficou acertado o estágio por um mês, sem remuneração. Era preciso comunicar à família. “Como eu ia explicar para meus pais que encontrei alguém no Google e ia para outro país?”, diz Dayanne. Por fim, contou que conheceu o produtor numa exposição de ovinos em que trabalhava, em São Paulo (SP), e ele a convidou para conhecer a fazenda. “Disse ainda que ele falava português, que eu ganharia um salário e poderia voltar com algum dinheiro. Minha mãe não deve ter acreditado, mas me deu um voto de confiança”, lembra ela, que hoje ri da situação.

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Nem bem chegou à Nova Zelândia, Dayanne já sentiu o drama de não falar inglês quando precisou explicar na imigração um visto de visitante se ia para trabalhar. Foram umas quatro horas até esclarecer tudo e passar o pânico de ter de pegar um voo de volta. “Imagina pagar o mico de retornar ao Brasil e ligar para minha mãe me buscar no aeroporto”, comenta. Não por acaso, Dayanne passou aquele mês agarrada a um dicionário. E ainda pedia às pessoas que anotassem as palavras que ela não entendia para treinar a pronúncia mais tarde. Também vieram as diferenças de clima, sobretudo o frio intenso, e a saudade da família e dos amigos, que era inviável matar pela única linha de telefone fixo a que tinha acesso. “Minha mãe me ligou uma vez, mas quando viu a conta do telefone não ligou mais”, conta Dayanne. A forma de se relacionar também era outra. “Sou animada, otimista, carinhosa, abraçava as pessoas. E elas não sabiam o que fazer. Me adaptei à cultura deles, mas sem deixar de ser quem eu era.” Por esses e outros fatores, Dayanne não considerava outra hipótese que não fosse fazer aquela experiência dar certo. Sua dedicação deu resultado. Ao final do estágio, convidaram-na a ficar mais tempo, até setembro, até porque quando chegou já havia terminado o período de reprodução dos ovinos, que era seu principal interesse. “Eu passava o dia cuidando da manutenção da fazenda, no máximo manejava os animais no pasto”, conta a zootecnista. Foram cinco anos nessa propriedade, até que recebeu uma proposta de ir para a Wairere, uma fazenda bem 46

maior, com mais desafios. Nesse novo emprego, já com acesso à internet, Dayanne se descobriu comunicadora e virou uma digital influencer. Até para ter mais contato com o Brasil, passou a compartilhar sua rotina de trabalho nas redes sociais. Primeiro com postagens e entradas ao vivo no Facebook, depois veio o Instagram e, por fim, o YouTube. Dayanne batizou todo esse canal de comunicação de Sheepnutter. “Ouvi essa palavra logo que cheguei por aqui. Quer dizer ‘fanático por ovelha’, ou, como gosto de dizer, ‘ovelhocólatra’”, explica a zootecnista. Com uma presença muito peculiar nas plataformas digitais, oferecendo conteúdo de qualidade por meio de uma linguagem clara, prática, direta e bemhumorada – sendo ela mesma, na verdade –, foi ganhando cada vez mais seguidores em busca de soluções para a ovinocultura. Logo começaram a surgir consultas e convites para vir ao Brasil fazer palestras. Até que em 2016 aconteceu, e teve início a Maratona Ovinocultura em Foco, com uma intensa programação que passou por vários lugares. Com o nascimento da filha no ano seguinte, Dayanne deu uma pausa, mas retomou o projeto em 2018 e 2019. Ela não cobrou pelas palestras, mas também não seria justo que tivesse despesas, por isso precisava contar com apoiadores. Como a New Zealand Trade and Enterprise (NZTE), agência para o desenvolvimento do comércio internacional da Nova Zelândia, que além de viabilizar sua vinda ao País promoveu o trabalho de Dayanne junto a diversos veículos de comunicação voltados ao agronegócio. A carência por informações sobre a ovinocultura era tão grande que algumas de suas apresentações passavam de três horas de duração, entre palestras e conversas com a plateia. Dayanne conta que ao perguntar o tempo que tinha de palestra, ouvia que podia ficar à vontade. Então avisava: “Olha, não faz assim, vocês vão se arrepender”. A zootecnista só está aguardando um sinal verde em relação à pandemia da Covid-19 para voltar a realizar sua maratona por aqui. Do lado de lá, a vida já segue normalmente.


O engenheiro agrônomo José Paulo Unterpertinger está prestes a completar nove anos de trabalho com reflorestamento em Gana, na África. Sua chegada ao país, no dia 1º de julho de 2012, foi motivada por um projeto que estava começando, uma nova empreitada de Erling Lorentzen, o norueguês que fundou a Aracruz Celulose (hoje Fibria). “O objetivo era produzir eletricidade a partir de eucalipto”, diz José Paulo. “Há um déficit muito grande de eletricidade em Gana, eu tenho corte de energia umas quatro vezes por dia.” Mas o plano de plantar até 120 mil hectares de eucalipto e construir sete usinas não avançou, até por questões governamentais, e foi necessário recalcular a rota. E é aí que entram as habilidades do agrônomo, principalmente o conhecimento e a experiência com árvores e a paciência com cada situação. Para falar sobre esses atributos de José Paulo, vale voltar ao início de sua carreira. Natural de Sorocaba, no interior paulista, foi estudar agronomia em Piracicaba, também em São Paulo, na Esalq-USP. Logo que se formou, na turma de 1979, teve a oportunidade de trabalhar na divisão florestal da Shell Petróleo, aqui no Brasil. E em seguida a empresa o convidou para participar de um novo projeto no Uruguai, onde ficou 19 anos. Ao final daquele período, soube por um ex-chefe

O homem da floresta em Gana

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de uma oportunidade na empresa Green Resources, em Moçambique, na África. O agrônomo decidiu apostar e deu certo, foi contratado e atravessou o Atlântico. Mas as coisas não fluíram como esperado e o tempo de sua jornada por ali foi reduzido. Permaneceu no continente africano por conta do surgimento da African Plantation for Sustainable Development (APSD), o tal empreendimento de Erling Lorentzen. Sem a possibilidade de implementar as sete usinas para geração de energia, passaram a buscar outras utilidades para a madeira e surgiu a ideia de uma fábrica de MDF. “Já estamos começando o processo de certificação pela FSC (Forest Stewardship Council). Acredito que em dois ou três anos esteja funcionando”, diz José Paulo. Segundo ele, já foram plantados 10 mil hectares. Outra mudança no percurso foi a morte de Lorentzen, em março último, aos 98 anos de idade. “Ele deixou tudo organizado para o filho tomar conta”, afirma José Paulo. O filho, no caso, é Haakon Lorentzen, presidente do Grupo Lorentzen. José Paulo tinha uma boa relação com o empresário e uma grande consideração por ele. O agrônomo conta, inclusive, que essa aproximação o impediu de aceitar propostas para deixar a empresa e retornar ao Brasil. “Ele sempre me tratou muito bem. E eu queria ver isso aqui funcionando, do jeito que o sr. Lorentzen desejava. Não ia abandonar o barco, e agora com a possibilidade de uma nova fábrica quero ficar por aqui.” A decisão de José Paulo ganha ainda mais importância quando se coloca na balança os desafios que enfrenta para estar trabalhando em Gana. A distância da família, por exemplo, a esposa e o casal de filhos, que chegaram a morar com ele no Uruguai, mas não em 48

Moçambique. “Eu até queria que fossem comigo, mas era muito perigoso, inclusive pelas doenças”, diz o agrônomo, lembrando que já teve malária seis vezes nesses anos que está na África. “Combinamos, então, de nos encontrarmos em Nelspruit, na África do Sul, e depois fomos conhecer Cape Town (Cidade do Cabo). Eles gostaram da cidade e estão lá até hoje.” De fato, é uma realidade bem diferente, considerando que José Paulo mora em uma área rural, distante de grandes centros. Sua casa fica entre duas cidades – a 10 quilômetros de Kwame Danso e a 25 de Atebubu. Quando precisa fazer compras em um centro comercial, tem de rodar cerca de 170 quilômetros, até Kumasi, a segunda maior cidade do país, atrás apenas da capital, Acra. José Paulo se comunica com a população local em inglês, ao menos com os que falam inglês, pois existem vários idiomas nativos que o agrônomo não entende. Há ainda outras questões culturais, religiosas e até relacionadas ao ritmo de trabalho, características muito fortes que precisam ser compreendidas e respeitadas para que se preserve o bom relacionamento. “Por isso é importante observar, ouvir, ir mostrando com paciência o que a gente espera. É difícil mudar hábitos em pouco tempo”, diz José Paulo, que prefere olhar para o lado positivo de tudo. “Ou você enlouquece e não consegue fazer nada.” Por falar em mudanças, José Paulo conta que o trabalho em Gana permitiu implementar melhorias valiosas para a região, como a instalação de uma torre da Vedafone para que tivessem sinal de internet 3G e 4G, o que atendeu duas vilas próximas; a construção de cinco represas para armazenar água da chuva; o plantio de um cinturão verde para que o pessoal cultivasse feijão e milho, o que ainda protege a plantação das árvores de possíveis focos de incêndio. Na verdade, uma cultura protege a outra. Agora, está começando um reflorestamento da região pelo plantio de mudas de árvores nativas. No primeiro ano serão cerca de 500 mil, mas a pretensão é de chegar a 5 milhões.


Do Zebu no Brasil aos camelos nas Arábias Há oito meses, a médica veterinária Aline Cardoso iniciou uma nova etapa na carreira. Em todos os sentidos. Primeiro, por se tratar de um lugar onde jamais imaginou trabalhar, mas que sempre teve vontade de conhecer: os Emirados Árabes. Indicada por um ex-gerente para uma fazenda, onde cuidaria de bezerros bovinos, teve o campo de ação ampliado e passou a lidar também com camelos. “Adorei os animais, eles são dóceis, calmos, mas é preciso tomar cuidado, pois às vezes mordem. A parte clínica é bem parecida, só exige uma infraestrutura com mais espaço por serem grandes”, conta. A ida para o Oriente Médio foi uma excelente oportunidade, até pelo momento profissional que Aline vivia no Brasil. Ela vinha trabalhando com preparação de gado para o circuito de eventos como leilões e exposições, um dos pouquíssimos segmentos do agronegócio interrompido por causa da pandemia da Covid-19. A médica veterinária é formada pela Unicastelo (atual Universidade Brasil), na unidade de Descalvado, no interior de São Paulo, a 40 quilômetros de sua cidade natal, São Carlos. Sempre trabalhou com bovinos, principalmente gado de corte, foi jurada auxiliar da ABCZ (Associação Brasileira de Criadores de Zebu) e teve experiência clinicando e com laboratório de FIV (fertilização in vitro). Aline chegou a Al Fujayrah, a cidade onde está, com um contrato de três meses de experiência, que foi prorrogado por mais três e agora já passou para

três anos. O objetivo inicial era cuidar apenas dos bezerros, mas logo surgiu uma chance de integrar a equipe de reprodução. “Vieram três mulheres dos Estados Unidos para cuidar dessa área, mas uma teve de voltar e fiquei no lugar dela”, conta. Como o laboratório estava instalado no setor dos camelos, Aline foi se aproximando, bastante atraída pelos experimentos recém-iniciados com FIV. “Ao perceberem que eu estava interessada, me perguntaram se não queria participar, acompanhar mais de perto. Foi aí que comecei a fazer o manejo de campo com os bezerros dos camelos. Como os veterinários são egípcios, até aprendi um pouco de árabe.” O idioma também foi um desafio para a veterinária, pois quando chegou o inglês não estava tão afiado. “Eu conseguia me comunicar, mas às vezes faltava alguma palavra, havia muitos termos técnicos. Precisava me virar e aprendi rápido, até porque era responsável por treinar as equipes”, diz Aline. Naquele início, quando ainda morava na fazenda, havia uma boa chance de falar em português, pois tinha um gerente brasileiro, mas por causa da jornada de trabalho acabaram convivendo pouco. E o pouco que puderam conviver não foi uma experiência amistosa. Aline lembra que recebia um tratamento bem rude, tornando aquele período bastante árduo. Felizmente, a situação mudou. A veterinária conta ser muito respeitada no dia a dia do trabalho. “Sou a única mulher na fazenda e me tratam muito bem, não há nenhum preconceito PLANT PROJECT Nº25

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por gênero nem pela nacionalidade, os salários são iguais para homens e mulheres. Sou mais respeitada aqui até do que no Brasil”, afirma Aline, que também se surpreendeu com a valorização da profissão. “Temos o mesmo reconhecimento dos médicos que tratam das pessoas, e de fato somos médicos. Há muitas oportunidades na área, pois são várias fazendas grandes de gado de leite, tem muita produção de iogurte, outras propriedades de criação de camelo, hospital veterinário. Além disso, há apenas uma universidade de medicina veterinária em Al Ain, então é pouca gente nova entrando no mercado.” No entanto, algumas particularidades na rotina de trabalho exigem mais de quem vem de fora. Aline conta que a região é muito quente, com altas temperaturas e muita umidade, chegando a lembrar uma sauna. O manejo dos animais exige muito cuidado com o estresse térmico e o ataque de parasitas, como o carrapato. O que sobra de montanhas, falta de pasto, cenário desafiador

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para a alimentação dos rebanhos. “Não tem capim e a comida é toda importada. O feno, por exemplo, vem do Paquistão, e nem sempre na melhor condição”, relata. A fazenda tem cerca de 750 camelos, criados para corridas ou produção de leite; aproximadamente 600 bovinos, entre os quais exemplares das raças Gir, Girolando e Nelore, importados do Brasil; umas 2 mil cabeças entre caprinos e ovinos; além de búfalos. Aline só não pode citar nem mostrar nada relacionado ao nome da empresa ou à infraestrutura da propriedade. Esse controle é ainda mais surpreendente em relação ao cotidiano, fora do dia a dia de trabalho, inclusive. Aline teve – e ainda tem – que dedicar grande esforço para se adequar aos costumes do país, que são bem diferentes dos que temos no Brasil. A entrevista para esta matéria, por exemplo, foi feita por uma chamada de vídeo pelo aplicativo Botim, o único que é liberado por lá. “Tudo é muito rastreado, precisa tomar bastante cuidado com o que pesquisa, como que digita”, afirma. Por mais que tenha pesquisado sobre os hábitos e o comportamento na região, a veterinária ainda fala com certa surpresa sobre diversas regras do país. “Não pode ter demonstração de afeto em público, e se uma mulher engravidar sem que esteja casada ela é presa”, diz. Ela mora a dois quarteirões da praia, no Golfo de Omã, e não pode ter fotos de biquíni. Aliás, desde que foi para lá, sua presença nas redes sociais se tornou bem restrita. “Não tenho muitos amigos por aqui, então sinto muita saudade da família, dos meus amigos, do churrasco no final do dia de trabalho na fazenda”, conta Aline. Ao menos pode se divertir aproveitando os finais de semana em Dubai, que fica a apenas uma hora de sua casa.


Trabalho

Ele é o tradutor do campo na Suíça

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Batizado com sobrenome holandês, Michael Daamen nasceu e foi criado em uma fazenda na região de Itapetininga, no sudoeste paulista. A origem no meio rural o levou à faculdade de Engenharia Agrícola, na Unicamp (Universidade de Campinas), que o levou ao mestrado na Universidade de Wageningen, na Holanda. E toda essa jornada fez com que fosse parar em Morges, na Suíça, entre as cidades de Genebra e Lausanne, a poucos quilômetros da fronteira com a França. É lá que está a sede global da Gamaya, empresa que é líder global e pioneira de imagens hiperespectrais na agricultura. O principal motivo de Michael ter se conectado à Gamaya é a geração de conhecimento para otimizar a produção de cana. O segmento é o principal foco da empresa, especificamente em território brasileiro, e o engenheiro pode ser considerado um veterano do sensoriamento remoto de canaviais. Ainda na Unicamp, Michael fez estágio com sensoriamento remoto voltado ao zoneamento agrícola na Embrapa Meio Ambiente. E sua área de pesquisa do mestrado na Holanda foi a ciência da geoinformação aplicada ao meio ambiente. Esse encontro aconteceu em 2018, quando Michael trabalhava no CTC (Centro de Tecnologia Canavieira), que iniciava uma parceria com a agtech suíça no uso de imagens hiperespectrais feitas por satélite para a identificação e o mapeamento de variedade de cana nos talhões. Ali surgiu o convite da Gamaya para que o engenheiro se mudasse para a Suíça e assumisse o comando do time de desenvolvimento de produtos. Na região onde a Gamaya está instalada, PLANT PROJECT Nº25

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o francês é a língua predominante, mas como o escritório da empresa mais parece um encontro das nações, com profissionais de dez países diferentes, o inglês é mais comum. Em meio a essa mistura de idiomas, Michael se tornou uma espécie de tradutor da linguagem do campo para a linguagem digital, dos softwares criados pela empresa. A equipe que ele lidera é dedicada a desenvolver soluções para que usinas e fornecedores de cana possam “enxergar” seus canaviais por inteiro, e durante toda a safra, com a ajuda de drones, satélites e avançadas tecnologias de processamento de imagem com base em inteligência artificial e machine learning. “O grande desafio de uma empresa de tecnologia como a Gamaya, mais orientada para software e hardware, é mexer com a natureza, traduzir os processos agronômicos para os algoritmos”, diz Michael. Ele afirma que sua principal contribuição nesse processo foi ajudar a empresa a falar com esses dois mundos. “O fato de eu conhecer o campo e ter trabalhado sempre com sensoriamento, que é mais ligado com a computação, permitiu que eu me adaptasse bem ao desafio.” Por outro lado, o engenheiro comenta que as companhias de origem agronômica conhecem bem o setor, mas lhes falta a capacidade de processamento. O fato de a cana ser uma cultura muito específica dos trópicos não permite

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que se aplique soluções genéricas, como no caso do milho e da soja. “Uma usina é um quebracabeça, com várias unidades de manejo diferentes, plantio em datas distintas, variedades diversas. Cada bloco se comporta de maneira muito particular”, explica. Um dos resultados desse trabalho foi o lançamento, no ano passado, do Canefit, um portfólio de soluções de sensoriamento de canaviais que, a partir da combinação de imagens de drones e satélite, apresenta informações precisas sobre falhas e linhas básicas do plantio, detecção e monitoramento de plantas daninhas, monitoramento dos canaviais e das linhas de colheita. Grande conquista de Michael e de sua equipe é mostrar ao setor o valor do investimento nesse tipo de tecnologia e promover a revisão de alguns preconceitos que impediam essa evolução, como falta de compreensão sobre a relação custo/ benefício. “Podemos mostrar que há ganhos como no direcionamento do trabalho de campo das equipes de qualidade e de controle de pragas e doenças. O monitoramento reduz o gasto com equipes e gera ganhos de eficiência com o trabalho mais efetivo”, comenta o engenheiro. “Além disso, melhora a quantificação do trabalho e as medições são mais precisas. Sem contar o ganho de velocidade na inspeção, acelerando o controle e reduzindo perdas.”

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Todos por um Com aumento da resistência aos defensivos, empresas do setor investem no desenvolvimento de estratégias que combinam vários produtos no controle de doenças como a ferrugem da soja

A soja é um dos carros-chefes da balança comercial do agro brasileiro e cultura de maior importância econômica para o País, com uma área plantada de 38,3 milhões de hectares espalhados de norte a sul do Brasil. As dimensões da sua importância são, no entanto, proporcionais ao desafio de manter a lavoura saudável, da semeadura à colheita. Mais do que nunca, os sojicultores têm sido demandados a redobrar a atenção no manejo agrícola em função da incidência de doenças nas plantas. A mais temida delas é a ferrugem asiática, causada por 54

um fungo que provoca a desfolha da planta, acarretando perdas superiores a US$ 2 bilhões por ano safra. “Esta é a estimativa do custo ferrugem, que engloba tanto o prejuízo [queda de produtividade] que ela causa, quanto o gasto para se realizar o controle da doença”, explica o pesquisador Rafael Soares, da Embrapa. O custo doença para o Brasil é tão alto que a Embrapa montou e coordena o Consórcio Antiferrugem. Trata-se de um projeto, que congrega empresas públicas e privadas, que monitoram os locais de incidência do fungo. Toda

ocorrência é notificada no site da iniciativa, como forma de alertar o produtor em quais localidades a doença já apareceu. “Neste ano, detectamos em 11 estados, mas como a semeadura atrasou em várias regiões e o início do ano foi mais seco, a ferrugem asiática não está causando epidemias fortes”, diz Soares. Mesmo assim, o produtor não pode descuidar. O uso incorreto de defensivos agrícolas ou o uso contínuo do mesmo princípio ativo é um dos principais fatores para o surgimento de populações resistentes do fungo. No médio prazo, isso acarreta na perda de


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REFORÇO PREVENTIVO As principais recomendações para conter a ferrugem:

1-Utilizar cultivares com

resistência genética ao fungo;

2-Fazer aplicação preventiva

de fungicidas; 3-Utilizar produtos mais eficientes e da forma adequada 4-Seguir o vazio sanitário, ou seja, não plantar soja na entressafra.

eficácia das moléculas utilizadas nesses defensivos, trazendo prejuízos ao agricultor. No Brasil, as condições tropicais tornam a situação ainda mais preocupante. Elas favorecem a propagação de pragas e doenças, o que agrava o cenário de aumento da resistência aos fungicidas usados na lavoura. “Uma forma

de proteger e manter o controle nesta conjuntura é fazer uma aplicação combinada de diferentes formas de agir combatendo o fungo”, diz Ximena de Souza Vilela, gerente de Produtos Fungicidas da IHARA. Com base nesse conceito, a indústria de defensivos tem ido além do desenvolvimento de produtos com alta tecnologia, passando a investir também na pesquisa e recomendação do melhor manejo, bem como a melhor combinação de produtos, buscando uma maior efetividade com base na sequência e na dosagem das aplicações de cada molécula. “Baseada nessa estratégia de ofertar, além de produtos com alta tecnologia e performance, uma alternativa de manejo seguro, que é a proposta da IHARA com o Esquadrão Fungicidas Gold”, afirma Ximena. Recém-lançado pela IHARA, o Esquadrão reúne três tecnologias com mecanismos de ação distintos: o Fusão EC – um fungicida específico, que age de forma sistêmica, proporcionando alta performance no controle da ferrugem e manchas foliares da soja, tem versatilidade de uso, o que significa que pode ser usado em qualquer fase da cultura, além disso tem alta velocidade de absorção e baixo risco de perda por chuva; o Absoluto Fix, um protetor premium, que em associação com o Fusão, potencializa ainda mais o controle da ferrugem e manchas foliares, além de ter uma formulação de alta tecnologia com redução de tamanho de partículas que proporciona melhor distribuição na folha e maior fixação; e o Iharol

Gold, óleo mineral que facilita o espalhamento, aumenta e agiliza a absorção dos produtos, potencializando a performance das moléculas. A comunidade científica recomenda que os fungicidas sejam usados de forma preventiva porque a eficácia diminui quando a doença já está estabelecida, comprometendo a produtividade. “O ideal é o produtor iniciar as aplicações antes do fechamento da lavoura [fase entre o final do ciclo vegetativo e início do reprodutivo], quando as gotas de produto conseguem alcançar as folhas da parte inferior da planta, por onde a maioria das doenças começam a infecção”, explica Ximena. “É fundamental que o intervalo entre uma aplicação e outra não ultrapasse 14 dias, já o número de aplicações vai depender das condições climáticas e pressão da doença de cada região. Todavia, o recomendável atualmente é que se faça pelo menos três”, acrescenta. A estratégia do Esquadrão Fungicidas Gold visa fortalecer a defesa da lavoura na batalha contra várias doenças que afetam a produtividade da soja. Além da ferrugem, o trio de produtos combate fungos que causam as manchas foliares, como manchaalvo, antracnose, septoriose e cercosporiose. “A incidência e severidade das doenças varia de acordo com a região. Por isso, é importante o produtor observar quais problemas são, historicamente, mais recorrentes na sua localidade, além de estarem sempre atentos às condições climáticas em cada safra”, finaliza Ximena. PLANT PROJECT Nº25

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SALVAÇÃO JURÍDICA DA LAVOURA Uma mudança na legislação tornou a recuperação judicial acessível também para pessoas físicas, inclusive produtores rurais sem CNPJ. Para especialistas, a medida traz vantagens, mas pode aumentar os desafios Por Romualdo Venâncio

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li pela metade dos anos 1940, a empresa que não honrasse seus compromissos financeiros era enquadrada na “lei de falência”, o Decreto-Lei nº 7.661, de 21 de junho de 1945. Independentemente dos motivos que poderiam levar uma companhia à chamada bancarrota, o prejuízo econômico era sempre agravado pela crise de imagem. Tachado pelo mercado como mau pagador, o empresário tinha cada vez menos chances de uma retomada. Esse cenário vem mudando, tanto jurídica quanto conceitualmente, com a recuperação judicial. Em vez de acabar com o negócio e colocar tudo à venda para pagar dívidas, a prioridade passou a ser a superação da crise e a preservação da empresa, dos empregos e dos interesses dos credores. O agronegócio é testemunha dessa transformação. Diferentemente de outras atividades econômicas, a agricultura é impactada com mais frequência e intensidade por fatores sobre os quais o empresário – o produtor, no caso – não tem controle. Se chove demais ou de menos sobre a lavoura, se o campo é castigado por geada ou granizo ou se alguma nova praga invade as plantações, é iminente o risco de perda da safra e de os prejuízos financeiros se multiplicarem. Esse

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é um dos motivos pelos quais grandes grupos do agro acabam entrando em recuperação judicial. No final do ano passado, surgiu um novo capítulo dessa história. A Lei nº 14.112, de 24 de dezembro de 2020, abriu também a possibilidade para que o produtor rural pessoa física, aquele que não tem um CNPJ constituído, recorra a esse processo para negociar com seus credores – desde que o valor do passivo em questão não seja maior do que R$ 4,8 milhões. O mercado ainda avalia o que há de positivo ou não nessa legislação, o quanto pode ser uma oportunidade ou um problema. É preciso mesmo uma análise criteriosa e muito cuidado antes de dar o pontapé inicial, pois é sempre uma situação desgastante, em todos os sentidos, e de alto custo. “Não é um processo barato, precisa de um advogado, o administrador judicial vai ser pago por essa recuperação, o que vai a leilão acaba saindo por valores mais baixos”, diz Octavio de Moura Andrade, advogado do escritório Aniceto e Stievano Advogados Associados. De maneira bem simplificada, após o devedor entrar com o pedido, é feita a classificação dos créditos e os credores dizem se concordam ou não. Então acontece uma assembleia para votação e,


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em seguida, o plano de pagamentos é apresentado para aprovação. Na prática, isso envolve muita discussão, possíveis e prováveis discordâncias, pressões de todos os lados, ou seja, uma série de elementos que tornam tudo mais complexo. A recuperação judicial não é algo que a pessoa escolhe fazer porque acha bonito. “Não se usa essa ferramenta a qualquer momento e de qualquer jeito. É um remédio amargo que pode ajudar, desde que tomado na hora certa”, comenta Andrade. Por isso é tão importante o fôlego inicial para quem solicita a recuperação judicial. Durante um período de 180 dias, a partir do deferimento do processo, fica proibida “qualquer forma de retenção, arresto, penhora, sequestro, busca e apreensão e constrição judicial ou extrajudicial sobre os bens do devedor”, conforme o texto da lei, mantido da anterior, a Lei nº 11.101, de 9 de fevereiro de 2005. “Essa é uma grande vantagem, porque durante esse período o devedor não precisa pagar uma conta vencida antes de ajuizar, tudo o que está listado no processo, todos os credores, não paga nada e não corre o risco de perder a fazenda”, explica a Gláucia Albuquerque Brasil, advogada especializada em recuperação judicial. Vale reforçar que se trata de um fôlego, não de uma folga, pois esses seis meses são o prazo para a apresentação do plano de recuperação.

TEORIA E PRÁTICA Uma das preocupações de quem acompanha o segmento de recuperação judicial com a nova lei é que ela acabe criando mais dificuldades para o produtor rural. Partindo-se do princípio de que, durante o processo, as negociações vão sempre buscar algum deságio sobre as dívidas, os credores tendem ficar mais rigorosos. “O grau de exigência pode aumentar. Na prática, quais produtores podem ter acesso à recuperação judicial? Precisa contratar um escritório de advocacia, tem o administrador judicial. E como o agricultor fica sem acesso a crédito?”, questiona o advogado Olavo Guarnieri, do escritório De Luca Oliveira. “Na minha visão, acho prejudicial, o nível de exigência certamente já aumentou.”

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Gláucia Brasil também tem algumas ressalvas. “Acho que a lei em si é mais do mesmo. O produtor rural já estava ciente do que podia e não podia. Acredito que pode dificultar, com mais exigências e restrições”, comenta. Para a advogada, a nova legislação pode ter um papel de segregar a classe produtora nessa questão, afastando ainda mais quem já não olhava a recuperação judicial com bons olhos. Não que alguém queira passar por isso, mas em determinadas situações pode mesmo ser uma nova oportunidade para a empresa. “A recuperação judicial deve ser ajuizada antes de chegar ao ponto em que os ativos já não se sustentam”, diz a advogada. Ela analisa que na atividade agrícola, por conta de suas particularidades, é difícil

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responder qual é o momento certo, pois uma boa safra pode mudar a situação. “O produtor rural brasileiro é sempre otimista, não acredita que é tarde demais”, afirma. Isso também é um risco, pois pode mesmo ser tarde demais. Um ponto positivo que a nova lei trouxe, segundo Gláucia, é a mediação, com uma solução mais rápida, uma composição mais segura e, se preciso, a opção pela arbitragem. “Essa composição é o ponto alto”, diz. A advogada conhece bem esse ambiente. Ela é a administradora judicial, por exemplo, dos processos do Grupo Bom Jesus (Rondonópolis, MT), que tem um passivo de R$ 2,62 bilhões, e do Grupo J. Pupin (Campo Verde, MT), cujo passivo é de R$ 1,23 bilhão. O processo do Grupo J. Pupin foi ajuizado em 2018 e ainda está 60

rolando, parte do cumprimento do que foi acordado está em dia e outra parte dos créditos está sendo discutida, a pedido do empresário José Pupin. De qualquer forma, Gláucia acredita que está indo bem. “Houve uma venda recente de ativo que pode ter uma contribuição importante para os pagamentos, e a empresa está em um processo de adequação administrativa e de ativos e passivos”, afirma. “Tudo pode se encaminhar bem para virar um case de sucesso. No entanto, o empresário vai perder o título de ‘rei do algodão’, e esse é o lado melancólico. Embora não seja, necessariamente, culpa da recuperação judicial, pois foi bem encaminhada, temos bons números.” Para Antonio Nunes da Cunha Filho, presidente da Comissão de Assuntos Agrários e Agronegócios da Ordem dos

Advogados do Brasil em Mato Grosso do Sul (OAB-MS), é preciso tempo para que se possa dizer com mais segurança o quanto a nova lei contribui ou não. “Como tudo o que é novidade, é necessário tempo para aprendermos o que funciona e o que não funciona. Às vezes pode precisar de ajustes e os envolvidos também vão se ajustando. É uma forma conjunta de solução”, afirma. A RELAÇÃO MUDOU Um fator essencial para a mudança do conceito entre falência e recuperação judicial, sobretudo no agro, é a relação com a advocacia. “Cada vez mais os advogados são necessários, mais ainda os que entendem do campo, os ‘advogados de bota’, como costumo dizer. Você precisa entender o negócio da porteira para dentro”, afirma Octavio


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Andrade, que tem uma forte relação com a produção rural. Ele comenta ainda que o próprio sistema jurídico vem se aproximando mais do meio rural. “Em São Paulo já existem varas especializadas, o que é muito bom”, acrescenta o advogado. Em uma região onde não há essa relação e o juiz tem de lidar com todo tipo de processo, quando entra a recuperação judicial de uma fazenda pode ser que não receba exatamente o tratamento que deveria, por não ser um tema que está na pauta com frequência. Antonio Filho, da OAB-MS, diz que esse entendimento parte também dos próprios advogados, pois estão percebendo que têm uma função mais integrada do sistema. Para ele, já não cabe mais a história de “quando tiver algum problema, me chama”. “Com a atividade agrária mais profissional, o produtor vai tendo uma noção da importância de se antecipar, de antever as situações e de se precaver dos problemas. E o advogado está entendendo que sua função é mais preventiva, de trabalhar buscando informações para ajudar a pensar o negócio, soluções de diferentes institutos jurídicos para criar uma situação melhor”, afirma. Na agricultura essa antecipação é ainda mais importante, pois tudo tem um tempo certo para acontecer, não se pode esperar demais para plantar ou colher, por exemplo. Se já existe todo esse olhar sobre quem advoga, mais ainda

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sobre quem assume a administração judicial de um processo de recuperação judicial. Gláucia Brasil acredita até que a nomenclatura poderia ser outra, pois se aproxima mais de averiguação judicial. Isso porque o papel dela nessa função é averiguar se as informações que estão no processo batem com a realidade, se o que está no papel bate com o que acontece na fazenda, como estão os funcionários. Ela é a visão do juiz fora do tribunal. “A atribuição do administrador judicial é visitar a empresa, conhecer, olhar o balancete, ler os livros-caixa para o juiz, e tudo isso entra em um relatório mensal”, descreve a advogada. O fator confiança também é primordial nessa relação. Do ponto de vista da administração judicial, Gláucia diz ser primordial evitar o vínculo demasiado, seja com o devedor, seja com os credores, até porque, nessa função, é ela quem conduz a assembleia entre as partes. Antonio Filho acrescenta outro ponto que contribui para essa questão, que é o perfil do produtor rural. “Dificilmente você vai ver alguém que está querendo dar um golpe, pois não é só dinheiro que está envolvido, tem toda a questão da produção, o nome da família, a tradição. Por isso é importante que o profissional responsável por cuidar do caso tente construir pontes, alinhar as situações para que haja acordos”, explica. PLANT PROJECT Nº25

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CABE MAIS BOI NO CONFINAMENTO Quando bem utilizado, o sistema ajuda a pecuária a aproveitar melhor o tempo e o espaço – inclusive nas pastagens – e a ganhar em padronização e rendimento do gado na indústria. Para especialistas, o cenário atual favorece essa equação

foto: Rogério Albuquerque

Por Romualdo Venâncio

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foto: Renato Brito

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uem confina boi no Brasil precisa ter sempre um olho no mercado futuro e outro no cocho. Agora, ainda mais, porque enquanto a valorização da arroba segue batendo recordes, a cotação do milho, principal ingrediente da ração do gado, não fica para trás. E se é para ter vida longa no setor, a visão deve ser ampliada, alcançando também as atuais – e futuras – exigências globais sobre preservação ambiental e bem-estar animal, questões que moldam os novos hábitos dos consumidores no mundo todo, dos brasileiros inclusive. De acordo com especialistas do setor, uma boa maneira de corresponder a tais demandas é adotar gestão profissional e atualizada, ampliar o horizonte de conhecimento, aderir às inovações tecnológicas e ouvir o mercado com atenção. Profissionais que acompanham de perto o confinamento de bois afirmam haver espaço para sua expansão no País e dizem que esse sistema de produção aproxima a pecuária da agricultura quanto à adoção e aplicação de inovações tecnológicas. Faz parte desse grupo Thiago Bernardino de Carvalho, pesquisador do Cepea-Esalq/USP (Centro de Estudos Avançados em Economia Agrícola da

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Escola Superior de Agricultura Luiz de Queiroz, da Universidade de São Paulo), que nos últimos anos tem se dedicado bastante ao mercado futuro de boi gordo e ao acompanhamento de custos de produção de pecuária de corte em todo o Brasil. Para falar sobre essa relação, Thiago Carvalho recorre a uma pergunta que se faz com certa frequência no setor: “O que dá mais certo, um agricultor virar pecuarista ou um pecuarista virar agricultor?”. De forma alguma a questão tem o intuito de generalizar, mas levando-se em consideração o histórico e as particularidades de cada uma das atividades, a produção agrícola se envolveu mais cedo e de maneira mais intensa com o universo das inovações tecnológicas. “Teoricamente, pelo fato de a pecuária de corte trabalhar com ciclo mais longo, pode ser mais moroso. Mas isso não é uma regra, pois há também muita tecnologia no setor, muito avanço nas mãos dos pecuaristas”, complementa o pesquisador do Cepea. Abordamos esse tema de forma ampla em nossa edição de número 14. Grande contribuição que o confinamento traz para a pecuária – e mais uma razão para acreditar que o sistema


Pecuária

pode ganhar espaço no Brasil – é o aprimoramento em gestão e comercialização, a maturidade para lidar com o negócio sob um olhar mais crítico em cada detalhe. Até porque o ganho da atividade vem em gramas. “Cada vez mais o setor está deixando de lado o amadorismo e entrando no profissionalismo. A eficiência na gestão vale para qualquer setor agropecuário, com atenção a produção, comercialização, recursos humanos e financeiro”, comenta Thiago, lembrando que todos esses departamentos estão integrados, são interdependentes e influenciam uns aos outros. O QUE DIZEM OS NÚMEROS A opinião do pesquisador do Cepea sobre a evolução do segmento é reforçada pelo zootecnista Marcos Baruselli, gerente da categoria Confinamento da DSM, empresa global que é dona da marca de nutrição animal Tortuga. Para ele, o confinador é um empresário, um gestor eficiente que entende bem de planejamento, o que é essencial até por se tratar de um sistema de produção sazonal. Baruselli está na DSM há 32 anos, e nos últimos nove tem se dedicado especificamente ao confinamento. “Na época em que ingressei na área, eram cerca de 2 milhões de cabeças confinadas no Brasil, e agora passam de 6,18 milhões. Isso dá um crescimento médio de 7% ao ano nos últimos oito anos”,

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afirma. Esses dados são de um levantamento feito pela própria empresa, o Censo DSM Confinamento, utilizado até para direcionar suas ações no setor. O cruzamento desses números com o volume de bovinos abatidos no ano passado indica, relativamente, um avanço ainda mais significativo. De acordo com o IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), em 2020 os abates somaram 29,7 milhões de cabeças, índice 8,5% menor do que no ano anterior. Se há menos boi indo para o frigorífico e mais gado entrando em confinamento, a representatividade do segmento na cadeia pecuária está aumentando. E com mais rendimento. Baruselli diz que os pecuaristas têm dado preferência aos bois mais pesados no abate. “O boi de 18 arrobas ficou para trás. Agora o animal entra com 13 arrobas no confinamento e sai com 20”, explica. Considerando a relação de peso vivo e rendimento de carcaça, seria um boi com 550 a 600 quilos. O zootecnista reforça que 2 arrobas extras no animal podem significar R$ 600 a mais na venda. Ou até mais, dependendo da negociação. O produtor pode ser bonificado quando oferece um boi de qualidade – com rendimento de carcaça em torno de 55%, conformação ideal e bom acabamento de gordura – em volume, padronização e PLANT PROJECT Nº25

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foto: Divulgação

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frequência que favoreçam as escalas de abate na indústria. É o caso da carne bovina que vai para a China, e com a vantagem de que os chineses têm interesse no boi todo, não apenas em partes específicas, como explica Thiago Carvalho. “A dinâmica do mercado externo para a carne bovina do Brasil mudou bastante. No início dos anos 2000, a grande parceria comercial era com a União Europeia. Depois cresceu com a Rússia, Hong Kong, Egito e Irã”, diz. O pesquisador comenta que havia muita saída de dianteiro, mas o cenário começa a mudar quando entram os chineses, a partir de 2015. “Quando a China chega, compra tudo, o boi todo. E hoje é um boi de US$ 55 a arroba”, diz. É exatamente essa demanda chinesa que tem aquecido o mercado nacional de carne bovina. Para exportações, pois essa mesma valorização acaba desestimulando o consumo internamente. Com a perda do 66

poder aquisitivo da população, intensificada pela pandemia da Covid-19, e os preços da carne bovina em constante evolução no varejo, o alimento vem se tornando artigo de luxo na dieta dos brasileiros. “Como economista, me preocupa ter um único comprador como a China. Não posso dizer que não é bom, mas é preciso ter cuidado para não depender só disso. Já há mercados questionando o valor da arroba, pois não querem pagar esses mesmos US$ 55”, diz Thiago Carvalho. Para ele, o Brasil tem uma posição privilegiada, pois tem o produto, tem o fornecimento, e pode definir o mercado. “Mas ainda não sabe usar isso estrategicamente.” SINERGIA PRODUTIVA Por falar em estratégia, sendo o milho o principal insumo na alimentação do gado em confinamento, os pecuaristas têm muito o que planejar. Quem foi estratégico em 2020, está mais tranquilo agora. “No ano passado, o confinador comprou milho no preço antigo e vendeu o boi no preço novo”, diz Marcos Baruselli, da DSM. Agora a situação é outra. Na melhor das hipóteses, os altos preços do grão reduzem as margens de lucro da terminação do boi gordo no cocho. Por outro lado, a cotação elevada estimula os agricultores a plantarem mais nesta segunda safra, inclusive com ampliação de área. E aí vem outro porém: a safra está atrasada por conta de fatores


foto: Emiliano Capozoli

climáticos, e o desenvolvimento da lavoura vai coincidir com um período em que o clima gera mais riscos para as plantas. Para evitar surpresas desagradáveis, a gestão dos confinadores deverá ser ainda mais primorosa. O bom desempenho nas etapas que antecedem a terminação contribui para uma melhor performance dos animais no cocho. Na verdade, a criação no pasto e o confinamento são complementares. “O confinamento serve como uma luva para o segmento brasileiro de produção em pastagem. É uma estratégia de colheita”, diz Sérgio Raposo de Medeiros, pesquisador da Embrapa Pecuária Sudeste, unidade instalada em São Carlos (SP). “Você tira do pasto os animais que estão mais pesados, aliviando a pastagem no início da entressafra. Esses bois que vão para o confinamento reduzem um ano de produção, e os que ficam também ganham mais

peso no pasto.” Sérgio Raposo chegou à Embrapa Pecuária Sudeste em 2019, após quase 17 anos trabalhando na unidade Embrapa Gado de Corte, em Campo Grande (MS). É também dessa experiência que vem sua visão de que o confinamento abre espaço para outras tecnologias em todo o sistema produtivo. E até necessita dessa integração. Ainda sobre a engorda em pastagem e a terminação com o gado no cocho, o pesquisador destaca o valor das arrobas estocadas, essas que vêm do pasto, pois o ganho de arroba no confinamento é pequeno. “A vantagem está exatamente em otimizar a lotação da fazenda”, afirma. É essa a estratégia adotada por José Antônio Júnior, pecuarista e diretor da Oxen Currais, empresa especializada em desenvolver e implementar projetos de infraestrutura de currais, com tecnologias como PLANT PROJECT Nº25

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cerca elétrica e troncos de contenção. Até para poder apresentar essas ferramentas aos clientes com mais clareza e demonstrar como um curral bem elaborado impacta em todo o sistema de produção, Júnior investiu em uma propriedade, no município de Goiás (GO), para montar uma fazenda modelo, uma vitrine de tudo o que oferece ao mercado. A iniciativa deu tão certo que ganhou dimensões de um novo negócio. Em uma área de 100 hectares, Júnior faz a recria dos garrotes que compra de outras fazendas. Os animais ganham cerca de 8 arrobas e vão para o confinamento pesando entre 15 e 16 arrobas. Esse gado é comercializado em parceria com a empresa confinadora. “Se eu terminasse esses animais na fazenda, teria um custo alto e não conseguiria o mesmo acabamento. Com essa parceria, eles são confinados bem no período da seca, deixando o pasto livre para a entrada de outros garrotes. E ainda são vendidos para a indústria em um grupo de 60 mil cabeças, o que dá um poder de barganha considerável em qualquer situação”, comenta o empresário. O reflexo do crescimento do confinamento de bovinos no Brasil é que, embora não seja o segmento mais representativo nos negócios da Oxen, nos últimos anos o sistema tem ganhado espaço também no atendimento da empresa. “Principalmente em 68

foto: Rogério Albuquerque

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Mato Grosso, com os lavouristas cultivando capim após a soja e o milho. Depois eles colocam bois e também fazem confinamento. E, por serem estruturas menores, nos abre mais espaço, porque pulveriza a tecnologia por mais fazendas”, diz Júnior. A RAZÃO DO CLIENTE Como parte integrante da cadeia produtiva de carne bovina, o confinamento também está sujeito aos desafios macros da atividade como um todo. E um dos mais importantes no momento é se adaptar às demandas globais relacionadas à produção de alimentos. Entram nesse pacote tanto as definições técnicas da indústria frigorífica, no Brasil e nos países para quem exportamos, quanto as novas tendências de consumo ao redor do mundo. “Temos uma população urbana e jovem dos grandes centros que é cada vez mais crítica. Precisamos nos preparar para lidar com esse


Na análise de Sérgio Raposo, a terminação dos bois em confinamento, na verdade, ameniza ou até elimina alguns desses problemas. A redução na idade de abate dos animais, pela maior eficiência no processo todo, já diminui também a emissão de gases de efeito estufa. Sem contar o sequestro de gás carbônico ainda na fase de pastagem. “Até mesmo em relação à produção de esterco, do chorume, é necessário que se tome uma série de cuidados. E esse material pode entrar numa economia circular, pois serve para abastecer as próprias lavouras que geram comida para o gado”, explica o pesquisador. Sobre o bem-estar, Sérgio ressalta que, diferentemente do que muita gente imagina,

os animais não passam a vida toda ali no confinamento, são apenas 90 dias. E que a pesquisa trabalha no sentido de aumentar o conforto desse gado, e até o desempenho. “A área mínima por cabeça, no confinamento, é de 12 metros quadrados, e já recomendamos que se mantenha o dobro disso”, afirma. Já existem outras preocupações, como oferecer sombreamento e até promover um enriquecimento ambiental, com mais itens que os bovinos encontrariam se estivessem livres – um lugar onde pudessem se coçar, por exemplo. Esta última possibilidade ainda está no plano filosófico, como explica o pesquisador. “É algo que precisamos considerar, avaliar com critérios.”

foto: Renato Brito

consumidor. A gente quer que a renda aumente para haver mais consumo, mas a régua vai subir. Com o tempo, a cobrança vai aumentar, por isso é importante a gente dar o máximo de transparência”, comenta Sérgio Raposo, da Embrapa. No caso da pecuária brasileira, há uma inevitável conexão com a preservação da Amazônia, devido à imagem que se tem do avanço de pastagens sobre áreas de floresta. Especificamente sobre o confinamento pairam cobranças sobre o bem-estar animal e a produção de dejetos orgânicos. Quanto mais rápido, e de forma clara, o setor mostrar qual é sua posição nessas questões, menor será o espaço para desinformação.

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O EXEMPLO QUE VEM DO CAMPO

Evento discute o futuro do agronegócio, destaca as inovações aplicadas nas fazendas e reforça o papel vital da sustentabilidade para o desenvolvimento do setor

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O agronegócio brasileiro é, acima de tudo, uma ilha de excelência. Além da extraordinária riqueza produzida no campo – em 2020, sua contribuição líquida para a balança comercial do País chegou a US$ 87,8 bilhões, um recorde –, ele se destacou nos últimos anos pela elevada capacidade de inovar. Sistemas de gestão integrados, uso da robótica, inteligência artificial no monitoramento das lavouras, aplicativos que controlam o cultivo e a colheita, redes de satélites e muitas outras ferramentas digitais fizeram das fazendas referências em tecnologia avançada. Por si só, essa característica já seria motivo de orgulho, mas ela vai além. A tecnologia tornouse parceira indispensável da questão mais urgente para o futuro do planeta: a sustentabilidade. É graças a ela que as fazendas produzem mais em áreas menores, é a tecnologia que permite ao mesmo tempo alimentar bilhões de pessoas e preservar os inestimáveis recursos naturais. Essa foi a principal premissa do evento online “Agrotech: o futuro da indústria que alimenta o mundo”, realizado em março. Organizado pela SAP Brasil em parceria com o WTC São Paulo Business Club, o encontro contou com o patrocínio da Intel Corporation e apoio da PLANT. Entre os participantes estavam nomes de destaque do agronegócio e do universo corporativo brasileiro, como Adriana Aroulho, presidente da SAP Brasil; Fernando Degobbi, presidente da Coopercitrus; Fernando Brocaneli, CIO da Bunge; e Plinio Nastari, fundador e presidente da Datagro. Para Adriana Aroulho, a sustentabilidade irá nortear o futuro do agronegócio – e a tecnologia terá papel fundamental nesse caminho. “As práticas sustentáveis estarão mais presentes à medida que novas tecnologias forem incorporadas aos sistemas de produção”, disse a executiva. “É por isso que essa

indústria é tão importante e estratégica para nós.” A SAP está no Brasil há 25 anos. Nesse período, deu notáveis contribuições para tornar as empresas do setor agroindustrial mais inteligentes e eficientes. Não faltam bons exemplos. Entre outros atributos, seus softwares permitem a rastreabilidade da cadeia de suprimentos, seus aplicativos conectam agricultores a grandes empresas e suas soluções são capazes de controlar todas as despesas relacionadas à atividade agrícola. “Empresas inteligentes são aquelas que olham para o crescimento sustentável”, reforçou Adriana. “Isso é ainda mais verdadeiro no agronegócio.” Não à toa, a SAP tem colecionado resultados expressivos no Brasil. Em 2020, em plena pandemia, a área de soluções da empresa cresceu acima de três dígitos, um marco em sua trajetória no País. Os parceiros de negócios da SAP ressaltam o papel vital da tecnologia em suas operações. Uma das maiores cooperativas do Brasil, com 38 mil associados, a Coopercitrus atribui parte do crescimento médio de 20% ao ano na última década ao uso eficaz das tecnologias agrícolas. “Um de nossos maiores desafios é levar a inovação para dentro da porteira”, afirmou Fernando Degobbi, presidente da Coopercitrus. “Felizmente, e com o apoio da SAP, fomos bem-sucedidos nesse propósito.” De fato, a parceria tem sido produtiva. No ano passado, a cooperativa lançou o Projeto Germinar com o objetivo de unificar os dados de suas operações em uma única plataforma. Para tornar a iniciativa possível, foi escolhido o sistema SAP S/4HANA, desenvolvido pela SAP. Graças a ele, hoje a Coopercitrus tem uma visão completa do relacionamento do cooperado com suas diversas áreas de negócios e pode fazer o acompanhamento de dados em tempo PLANT PROJECT Nº25

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Nastari, da Datagro; Degobbi, da Coopercitrus; Brocaneli, da Bunge, e Adriana Aroulho, da SAP: "De mãos dadas com o futuro"

real, algo vital em mercados cada vez mais dinâmicos. “Com a ajuda da tecnologia, o cooperado descobre que seus produtos e serviços têm muito mais valor”, disse Degobbi, que destacou também o fato de seu time de colaboradores contar com 110 especialistas da área tecnológica, quase o dobro de um ano atrás. A inovação é uma busca permanente. Atualmente, a Coopercitrus conta com 50 mil propriedades georreferenciadas, mas esse número provavelmente será maior até o final do ano diante do crescente interesse dos associados. A transformação digital da cooperativa foi acelerada pela pandemia. Em 2020, seu tradicional evento anual, o Coopercitrus Expo, foi 100% online, o que não foi um impedimento para que movimentasse R$ 1,1 bilhão em negócios. A Bunge, uma das maiores tradings mundiais de commodities agrícolas, também marcou presença no evento “Agrotech: o futuro da indústria que alimenta o mundo”. Segundo Fernando Brocaneli, CIO da empresa, a digitalização em geral e a parceria com a SAP em particular têm contribuído para tornar a operação mais eficiente. A Bunge utiliza soluções da SAP em diversas partes do mundo, mas customizou 72

algumas delas para o mercado brasileiro. Entre as iniciativas apontadas pelo executivo estão a gestão da logística de cargas e a rastreabilidade das commodities – é aí que a sustentabilidade entra em cena. “A rastreabilidade assegura aos nossos clientes e parceiros que os produtos da Bunge não têm, por exemplo, nenhuma relação com o desmatamento”, afirmou Brocaneli. A tecnologia permeia todas as áreas de negócios e é um elemento indispensável na nova era digital. Nesse contexto, Brocaneli lembrou o papel vital da SAP para a integração de processos e sistemas. Até 2017, a Bunge tinha um modelo de negócios descentralizado na América do Sul. Depois disso, a companhia decidiu unir as operações de Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai – e precisou da SAP para realizar a junção. “Fizemos a completa integração sem sustos ou sobressaltos”, disse Brocaneli. Poucos países têm tantos motivos para celebrar o agronegócio quanto o Brasil. Plinio Nastari, fundador e presidente da consultoria agrícola Datagro, destacou não apenas o impressionante vigor econômico do setor, que tem quebrado sucessivos recordes no País, mas também a sua inegável vocação para preservar o meio ambiente.

Basta olhar com atenção alguns indicadores para entender como o agronegócio protege o planeta. Nos últimos 45 anos, lembrou Nastari, o etanol, menos poluente e mais sustentável, substituiu 3,3 bilhões de barris de gasolina. Isso, ressaltou o especialista, representou uma economia de US$ 261 bilhões no período. Sob qualquer ângulo – econômico, ambiental ou tecnológico –, o agronegócio é, de longe, a principal referência do Brasil, e provavelmente continuará sendo por muitos anos. A agricultura brasileira caminha para se tornar a maior fornecedora de alimentos para o mundo, o que por si só é algo tão fantástico quanto desafiador. A boa notícia é que o Brasil está bem preparado, e isso devese sobretudo à participação ativa de empresas como SAP, Coopercitrus, Bunge, Datagro e muitas outras. Juntas, elas tornam o agronegócio brasileiro mais tecnológico e, por isso mesmo, sustentável. Não há outro caminho. “Estamos de mãos dadas com o futuro”, resumiu Adriana Aroulho, presidente da SAP Brasil. Use o QR Code e preencha o cadastro para ter acesso gratuito ao conteúdo do evento.


“Primeiro houve uma Revolução Industrial, depois uma Revolução Cultural, e agora uma Revolução Agrícola.”

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foto: Shutterstock

Ideias e debates com credibilidade

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SEM MURALHAS NA TECNOLOGIA POR MARCO RIPOLI* Primeiro houve uma Revolução Industrial, depois uma Revolução Cultural, e agora uma Revolução Agrícola. Para muitos a China já é a sede do mais recente Vale do Silício, na verdade, de vários Vales do Silício organizados em hubs tecnológicos em todo o país. A China é um país continental com cinco vezes a população e um pouco mais de área que os Estados Unidos, tendo cerca de 800 milhões de pessoas envolvidas na agricultura. As fazendas chinesas são relativamente pequenas em tamanho, quando comparadas às fazendas americanas e brasileiras, mas isso vem mudando com a urbanização do país. À medida que as fazendas são agregadas e o número de agricultores diminui, a necessidade de soluções tecnológicas aumentará. A China continua crescendo... Segundo o Fundo Monetário Internacional (FMI), o PIB do país supera o da América, se o PIB chinês for convertido em dólares na paridade do poder de compra (a taxa de câmbio que equalizaria o preço do dólar de bens similares em cada país). Embora o crescimento do PIB tenha desacelerado, ainda é alto o suficiente para exigir soluções tecnológicas para resolver problemas existentes e aliviar o estresse no sistema. A necessidade de inovar na alimentação e na agricultura vem ganhando cada vez mais força, pois como em muitos outros países, a China também tem uma escassez de mão de obra agrícola. Como a experiência em outras indústrias, a tecnologia deve intensificar-se para preencher essa lacuna. O governo chinês identificou três

áreas principais de foco na produção alimentar e agrícola. Em primeiro lugar, a China está comprometida em proteger seu meio ambiente. Atualmente o país emite mais que o dobro do CO2 que a América e produz 50% mais eletricidade. A China comprometeu-se a reduzir as emissões de carbono e tornou-se mais rigorosa na aplicação dessas metas. Soluções agtech que substituem produtos químicos Inteligência Artificial, realidade aumentada, robôs etc. encontrarão um mercado próspero na China. Segundo, o desenvolvimento econômico é prioridade. Embora se fale sobre a segurança alimentar na comunidade tecnológica americana e brasileira como um problema, o fornecimento de alimentos é uma questão atual na China, devido ao fato de haver muitas áreas agrícolas que não podem sequer produzir alimentos suficientes para alimentar seus moradores locais. O governo chinês elaborou plano de ações prioritário para ajudar parte da população a sair da zona de pobreza por meio da agricultura. Técnicas de agricultura de precisão que reduzem custos e aumentam as receitas têm papel relevante no desenvolvimento das áreas agrícolas. Por fim, o governo chinês está incentivando a inovação em biotecnologia e biologia molecular, especialmente tecnologias que podem aumentar a produção e reverter as tendências recentes na produção de grãos da China. Vejo aqui mais um caminho para a agricultura brasileira continuar a prosperar.

* Marco Lorenzzo Cunali Ripoli é Ph.D., engenheiro agrônomo, mestre em Máquinas Agrícolas pela Esalq-USP e doutor em Energia na Agricultura pela Unesp. Executivo, disruptor, empreendedor, inovador e mentor, é proprietário da Bioenergy Consultoria, da Energia da Terra, empresa de alimentos saudáveis e investidor da Drinquis.


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Fo OS 90 ANOS DA VINÍCOLA AURORA POR IRINEU GUARNIER FILHO* A Cooperativa Vinícola Aurora, de Bento Gonçalves, na Serra Gaúcha, comemorou, em fevereiro passado, uma data muito especial: 90 anos de fundaçāo. Tenho uma relação muito antiga com a Aurora, e é desta amizade que gostaria de lhes falar. Amor à primeira vista Recordo bem: eu era muito jovem, no início dos anos 1980, quando visitei pela primeira vez a Serra Gaúcha, para conhecer vinhedos e vinícolas. E essa minha primeira incursão pelo mundo do vinho brasileiro começou pela Cooperativa Vinícola Aurora. Estão bem nítidos na minha memória os longos corredores escuros das caves subterrâneas, as enormes pipas de madeira da “cantina” (hoje substituídas por modernos tanques de inox e barricas de carvalho francês) e o aroma de vinho que impregnava o ambiente (cheiro de cantina, de que muita gente não gosta, mas que eu adoro). Foi amor à primeira vista. Fiquei encantado com aquele mundo frio, úmido, escuro, onde as leveduras cumpriam em silêncio sua laboriosa missão e no qual o vinho, como que por mágica, nascia. A Aurora já era, então, a maior vinícola brasileira, com uma ampla gama de rótulos, e seus vinhos (Marcus James à frente) logo seriam exportados até mesmo para os Estados Unidos, e ganhariam medalhas em inúmeros concursos internacionais. Hoje, a Aurora é a mais premiada vinícola brasileira, com 731 prêmios. Reencontro com as origens italianas Tive a certeza de que, a partir

daquele dia, o vinho estaria, de uma maneira ou de outra, ligado à minha vida. Foi como se, ao penetrar naquele mundo subterrâneo de penumbra e pedras, eu tivesse me reencontrado com minhas origens italianas. Vieram-me à mente lembranças de antepassados distantes que faziam seu vinhozinho de uva Isabel no porão de pedra de casas simples de madeira. Soube, naquele dia, que voltaria muitas vezes à Serra Gaúcha para provar seus vinhos e escrever sobre eles. O que, de fato, aconteceu ao longo das últimas décadas.

Aprendendo a gostar de vinho A verdade é que, depois de alguns porres catastróficos com vinhos comuns de garrafão, eu quase não bebia vinho naquela época. Só viria a me reconciliar com a bebida de Baco após os 25 anos de idade – por influência de amigos jornalistas mais velhos, com quem convivi na década de 1980 em Porto Alegre. Alguns haviam vivido por algum tempo na Europa e retornaram com um bom conhecimento sobre vinhos. Foram eles que me apresentaram aos primeiros vinhos finos que bebi. Quase todos nacionais, da Serra Gaúcha. Porque vinho importado, naquele tempo, era um luxo a que poucos PLANT PROJECT Nº25

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privilegiados podiam ter acesso. Rótulos estrangeiros a preços acessíveis só chegariam legalmente ao mercado brasileiro a partir do início da década de 1990, com a liberação das importações promovida pelo governo Collor. Bebíamos naquela época os modestos vinhos de umas poucas vinícolas gaúchas ou multinacionais instaladas no Rio Grande do Sul: Garibaldi, Salton, Rio-Grandense, Peterlongo, Château La Cave, Martini e Rossi, Chandon, Almadén e, claro, Aurora, a maior e com a mais completa linha de produtos – do humilde Sangue de Boi ao mais sofisticado (para a época) Conde de Foucauld.

res. Afinamento de vinhos em barricas bordalesas de carvalho era coisa rara. Lembro do primeiro vinho nacional com passagem por carvalho que provei: o Marcus James, da Aurora. Estranhei bastante o aroma e o sabor – mas gostei.

Nomes estrangeiros e brasões medievais Os rótulos, de um modo geral, exibiam nomes estrangeiros, títulos de nobreza, brasões medievais, nomes de regiões demarcadas europeias, e quase sempre aludiam à longa tradição vinícola do Velho Mundo. Rosés, brancos e suaves faziam muito sucesso então – mais do que os tintos. Ainda nada se sabia sobre o Paradoxo Francês, que, a partir dos anos 1990, daria aos vinhos tintos status de “remédio” para o coração e promoveria o aumento do seu consumo em detrimento do gosto pelos brancos Por influência da indústria vinícola norte-americana, que desde o famoso Julgamento de Paris, em 1976, vinha se impondo mundialmente, os vinhos brasileiros já começavam a identificar com destaque em seus rótulos as variedades de uvas com as quais eram elaborados. Cabernet Franc e Riesling Itálico eram as cepas viníferas tinta e branca mais popula-

Patrimônio cultural do Rio Grande do Sul De lá para cá, a indústria brasileira de vinhos nāo parou de evoluir. E a Aurora acompanhou essa evolução. A cooperativa enfrentou momentos difíceis, quase sucumbiu às crises econômicas dos anos 1980, mas, com a união de suas mais de mil famílias de associados e a gestão profissional moderna que adotou, deu a volta por cima. Quitou uma grande dívida antes do prazo, e hoje é este patrimônio empresarial e cultural que orgulha os gaúchos. Para mim, que acompanhei esta história de perto nas últimas quatro décadas, o aniversário de 90 anos da Aurora me emociona – de verdade. Quantas empresas brasileiras podem comemorar 90 anos? Vinícolas, entāo, nem se fala: poucas realizaram esta façanha. Por isso, associados, colaboradores e dirigentes da Cooperativa Vinícola Aurora estāo todos de parabéns. Longa vida à Aurora!

*Irineu Guarnier Filho é jornalista especializado em agronegócio, cobrindo este setor há três décadas. Metade deste período foi repórter especial, apresentador e colunista dos veículos do Grupo RBS, no Rio Grande do Sul. É Sommelier Internacional pela Fisar italiana, recebeu o Troféu Vitis, da Associação Brasileira de Enologia (ABE), atua como jurado em concursos internacionais de vinhos e edita o blog Cave Guarnier. Ocupa o cargo de Chefe de Gabinete na Assembleia Legislativa do Rio Grande do Sul, prestando consultoria sobre agronegócio


Trecho do Rio Paraíba do Sul no estado de São Paulo: Cobrança pelo uso da água modificou paisagem da região

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foto: Bruno Felin / WRI Brasil

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foto: Divulgação CSN

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O PREÇO DA RESPONSABILIDADE Cobrança pelo uso da água refloresta Vale do Paraíba e traz benefícios para a produção agropecuária na região Por Felipe Porciúncula

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Vale do Paraíba

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ntes vista como um recurso abundante e inesgotável, a água que corria pelos rios brasileiros era utilizada indiscriminadamente por quem tivesse acesso a ela. Durante séculos, bastava coletá-la, desviá-la e usá-la da forma que se desejasse. Agricultura, pecuária e indústria não se fizeram de rogadas. Abusaram do insumo até que a conta, literalmente, chegou. O que parecia farto passou a ser escasso e de gratuito a oneroso. Iniciada há quase duas décadas, a cobrança pelo uso da água mudou hábitos e, agora, vem modificando a paisagem de uma das regiões mais emblemáticas da história econômica brasileira, o Vale do Paraíba – onde, durante o período imperial, a produção de café e a pecuária quase levaram à degradação de solos e de cursos de água. Desde o ano passado, diversas fazendas de gado leiteiro e de corte começaram a recompor as matas ciliares em suas propriedades, nas margens paulistas de vários afluentes do Rio Paraíba do Sul, com recursos do Fundo Estadual de Recursos Hídricos (Fehidro), nos municípios de Lavrinhas e Cruzeiro. “Como tenho dentro da minha fazenda várias nascentes, hoje me considero um produtor de água, pois além de garantir mais qualidade ao meu gado Nelore (vendo bezerros desmamados), uma parte desses recursos hídricos fica retida nas áreas de proteção permanente (APPs)”, explica o pecuarista Carlos Antônio da Silva, da Fazenda Santana, localizada em Lavrinhas (SP). Hoje, cerca de 17 propriedades rurais (localizadas às margens dos rios da Água Limpa, do Braço e Jacu, que deságuam

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no Paraíba do Sul) receberam apoio para recompor as áreas de APPs, que, além de aumentar a disponibilidade da água, cumprem o Código Florestal. “Essa região estava muito desmatada e possuía áreas muito degradadas, favorecendo o assoreamento dos rios, comprometendo seus leitos e causando enchentes. Esperamos que daqui a alguns anos, tenhamos outra situação florestal por aqui”, lembra o engenheiro agrônomo Fabiano Haddad, consultor ambiental do Sindicato Rural de Cruzeiro e responsável pelo projeto. Esse trabalho ajuda não só os fazendeiros como os moradores das cidades próximas, que podem ter uma maior oferta de água em suas torneiras. O projeto deu tão certo que está sendo articulado mais um grande reflorestamento na bacia hidrográfica do Rio Batedor, principal manancial de abastecimento do município de Cruzeiro, com cerca de 84 hectares de áreas degradadas. O resultado dessa parceria tem sido muito positivo. A ideia é que organizações internacionais financiem a recuperação florestal das APPs e da reserva legal. “O Sindicato Rural de Cruzeiro, junto com a The Nature Conservancy (TNC) e o Programa Conservador da Mantiqueira, faz uma prospecção em 180 propriedades rurais para apoiar a recuperação de áreas degradadas, além de pagar R$ 300 por hectare/ano aos pecuaristas durante cinco anos através do PSA (Pagamento por Serviços Ambientais) por meio do crédito de carbono”, lembra Wander Bastos, presidente do Sindicato Rural de Cruzeiro e Lavrinhas.


Castanhas

PIONEIRA A bacia hidrográfica do Rio Paraíba do Sul foi a primeira a implementar essa cobrança em rios de domínio da União, em vigor desde 2003. “A participação da sociedade civil, dos usuários e do poder público permite, por meio de decisões descentralizadas, a aplicação dos recursos em prol da bacia”, comenta André Marques, diretor-presidente da Agevap, entidade responsável pelo gerenciamento dos recursos da cobrança na bacia do Rio Paraíba do Sul. Segundo a Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico (ANA), a bacia do Rio Paraíba do Sul possui área de drenagem de cerca de 55,5 mil km², distribuída pelos estados de São Paulo (13,9 mil km²), Rio de Janeiro (20,9 mil km²) e Minas Gerais (20,7 mil km²). A extensão do Rio Paraíba

do Sul, calculada a partir da nascente do Paraitinga, é superior a 1,1 mil km. A bacia drena uma das regiões mais desenvolvidas do País, abrangendo parte do estado de São Paulo, na região conhecida como Vale do Paraíba Paulista, parte do estado de Minas Gerais, denominada Zona da Mata Mineira, e metade do estado do Rio de Janeiro. Ao longo dessa extensão, há 180 municípios, 36 dos quais estão parcialmente inseridos na bacia. O montante arrecadado também contribui para a melhoria da qualidade ambiental da bacia, possibilitando, por exemplo, o financiamento de projetos de obras de saneamento básico, incluindo ações para o tratamento de esgoto em diversos municípios. Um exemplo bem-sucedido é o

Recuperação de mata ciliar nas margens do Paraíba: reflexos positivos na produção agropecuária

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Vale do Paraíba

Marques, da Agevap; Andrade, do Daee; Mariana, da Basf; e unidade da empresa em Taubaté: esforços públicos e privados pela recuperação do rio

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Programa Pró-Tratar, cujos investimentos no último ano somam cerca de R$ 21 milhões, conforme dados do Comitê de Integração da Bacia Hidrográfica do Rio Paraíba do Sul (Ceivap). Existem dois tipos de pagamento: aquele realizado pelos usuários do Paraíba do Sul, gerenciado pela Agevap; e aquele oriundo dos que usam seus afluentes, administrado pelos comitês estaduais. Apesar desse esforço, existem produtores rurais que apontam descuido com a poluição do trecho do Paraíba do Sul que passa nas áreas urbanas, além da falta de reciclagem do lixo. “Existem várias cidades da região em que o descarte vai parar no rio. Uma proposta nossa é que parte desses recursos provenientes da cobrança seja usada para isso”, coloca Giani Bresolin, produtora de arroz no Sítio Santa Cruz, em Guaratinguetá. Giani pertence à terceira geração da família, que produz arroz-agulhinha em uma propriedade de 15 hectares em Guaratinguetá. Por conta do avanço da tecnologia, em 20 anos viu sua produtividade passar de 4 mil para 10 mil toneladas de arroz por hectare. “Por sua natureza, o arroz é uma cultura que precisa de água de muita qualidade e aqui usamos o Rio Piagui, afluente do Paraíba do Sul. A vantagem é que, depois da colheita, a água é absorvida pelo solo e volta ao lençol

freático”, afirma Giani. O setor industrial também colabora com o processo de preservação da bacia. Um exemplo é a unidade de Jacareí da Suzano, gigante da área de papel e celulose. A empresa conta com uma Estação de Tratamento de Efluentes própria, na qual é utilizada tecnologia de duplo estágio de lodos ativados para o tratamento dos efluentes. Esse método compreende um processo biológico em que microorganismos são utilizados para remoção da carga orgânica do efluente em condições controladas de temperatura, oxigênio e nutrientes. A tecnologia garante mais de 95% de remoção de carga de Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO). “Hoje, o maior usuário é o setor elétrico, com a destinação de água para geração de energia. Os municípios da parte paulista têm um consumo de 5 m3/s. Além disso, existe a transposição da represa do Jaguari para a represa Atibainha, do Sistema Cantareira, com uma transferência de 5,13 m3/s, volume extremamente relevante. A irrigação também responde por 5 m3/s em todo o trecho paulista”, explica Edilson de Paula Andrade, assessor técnico do Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee), órgão responsável pelo gerenciamento dos recursos hídricos no estado de São Paulo. A Basf, uma das maiores


consultora de relatórios de proteção ambiental e EHS na Basf América do Sul. Outro exemplo é a Companhia Siderúrgica Nacional (CSN), que intensificou nos últimos 20 anos ações para a redução de captação de água nova. Nesse período, a empresa – cuja principal unidade fica em Volta Redonda (RJ), uma das principais cidades do Vale – diminuiu em 70% o volume de água captada, de 8,8 m³/s para 2,6 m³/s, mesmo com a ampliação do parque fabril, com a instalação da Central Termoelétrica-2, a Fábrica de Aços Longos e a Fábrica de

Cimentos. “Em 2020, a empresa, em caráter proativo, reduziu 30% da sua outorga perante a ANA, disponibilizando mais de 2 m³/s de água para os demais usuários da bacia. Essa redução foi viabilizada devido a diversos projetos implantados de reúso de água ao longo dos anos”, afirma Antônio Carlos Simões de Santana Filho, especialista em Meio Ambiente da CSN, com foco em recursos hídricos. Com indústria e agricultura seguindo no mesmo curso, a água ajudará a resgatar a riqueza da terra e da biodiversidade na região. E isso não tem preço.

foto: Luís Fernando Ricci/WRI Brasil

indústrias químicas do mundo, tem investido na redução do consumo. “Desde 2002, aumentamos em 42% os volumes de produtos fabricados na América do Sul, enquanto o volume específico de água utilizada nos processos foi reduzido em 58%. Em Guaratinguetá, nossa maior unidade produtiva da América do Sul, o consumo atual é de 1 milhão de m³ por ano, sendo que em 2002 esse volume era de 3,6 milhões de m³. Nesse mesmo período, nosso volume de produção aumentou cerca de 70%”, enfatiza Mariana Sigrist,

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Vale do Paraíba

A BACIA DO PARAÍBA DO SUL EM NÚMEROS Área total: 62.074 km², estendendo-se pelos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais Municípios envolvidos: 184 População dos municípios: 5,5 milhões de habitantes População abastecida pelas águas da bacia: aproximadamente 14,2 milhões de pessoas

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O RIO PARAÍBA DO SUL

COBERTURA VEGETAL E USO DO SOLO

A ECONOMIA

Resulta da confluência dos rios Paraibuna e Paraitinga, que nasce no município de Areias, ambos no estado de São Paulo, a 1.800 metros de altitude, percorrendo 1.150 km até desaguar no Oceano Atlântico, no norte fluminense, na praia de Atafona no município de São João da Barra. Principais afluentes do Paraíba do Sul: - Pela margem esquerda: rios Jaguari, Paraibuna (MG/RJ), Pirapetinga, Pomba e Muriaé. - Pela margem direita: rios Una, Bananal, Piraí, Piabanha e Dois Rios.

- Pastagens: 67% - Culturas agrícolas e reflorestamento: 22% - Florestas nativas: 11% (Mata Atlântica, que ainda subsiste em áreas da Serra dos Órgãos e dos parques nacionais da Serra da Bocaina e de Itatiaia

A MesoRregião do Vale do Paraíba, constituído de 39 municípios, possui PIB de R$ 124 bilhões (o PIB estadual é de R$2,2 trilhões ou 5,6% do PIB estadual). O valor da produção agropecuária da região é de R$ 378 milhões, com a maior contribuição da carne bovina, seguida de leite, arroz e banana, conforme dados de 2018.

Fonte: Agevap

Fonte: IBGE.


Tênis da marca francesa Veja: Matérias-primas e histórias garimpadas no Brasil para fazer a grife de calçados mais sustentável do mundo

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A grande feira mundial do estilo e do consumo

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O V DA QUESTÃO Para fazer o tênis mais sustentável do mundo, a marca francesa Veja compra algodão, borracha e couro no Brasil, numa operação que combina desafios e ações de impacto social Por Luiz Fernando Sá

Extração de látex por seringueiros no Acre: borracha usada nos produtos da marca é comprada de cooperativas que preservam a biodiversidade 86


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mundo conhece por Veja, em português. No Brasil, é Vert, verde em francês. A ideia é francesa, a produção, em fábricas do Rio Grande do Sul e do Ceará. Os consumidores estão em mais de 40 países, mas quem procura a origem certificada da matéria-prima tem de mergulhar em histórias de pequenos produtores do sertão nordestino, dos seringais amazônicos e dos pampas gaúchos. Assim, com vários sotaques nacionais e internacionais, se conta a história da marca de tênis mais badalada do momento – e sua relação direta com o agronegócio brasileiro. O algodão, a borracha e o couro transformados em calçados com a marca de um V estampado são parte central da narrativa que transformou a Veja em grife valorizada pelos chamados consumidores conscientes de todo o mundo – a começar por celebridades como as atrizes Meghan Markle, esposa do príncipe Harry, da família real britânica, e Reese Witherspoon. Foi a partir deles que os franceses Sébastien Kopp e François-Ghislain Morillion desenvolveram um modelo de negócios único no setor, depois de abandonarem uma curta carreira no mundo corporativo. Ainda na faixa dos 25 anos, os jovens viajaram o mundo – sobretudo países em desenvolvimento – em busca de um propósito e mapeando oportunidades de negócios. Visitaram fábricas e avaliaram as cadeias de fornecimento de grandes empresas, tentando entender o que estava certo e o que estava errado. “Ficamos muito desapontados com o que vimos”, conta Kopp em um vídeo postado no site da empresa. “Esses grandes grupos falavam muito, mas não faziam muito. E muitos deles resistiam às mudanças.” PLANT PROJECT Nº25

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W Arquitetura

DESCOBERTA DO BRASIL A procura da dupla acabou quando eles chegaram ao Brasil. Em Tauá, no interior do Ceará, eles conheceram uma comunidade de produtores familiares de algodão orgânico. Diferentemente do modelo industrial adotado nas principais regiões produtoras, eles faziam o manejo sem o uso de pesticidas, de forma praticamente artesanal, e mal conseguiam sobreviver do cultivo. Morillion ficou vários dias na região. Mesmo sem falar português, observou a produção, negociou preços e adquiriu um pequeno lote de algodão. Foi o ponto de partida para o negócio que buscavam. Apaixonados por calçados, decidiram investir nos tênis – mas tênis com propósito. 88

A opção foi baseada no estudo da manufatura do produto. Com apenas três matérias-primas básicas – justamente algodão (para a lona), borracha e couro – poderiam desenvolver seus calçados e, ao mesmo tempo, causar impacto promovendo a valorização de fornecedores com o mesmo histórico que encontraram no Ceará. Assim, seguiram para o Acre à procura de grupos de seringueiros de quem pudessem obter borracha natural. Os primeiros tênis Veja foram para as ruas em 2005, já embalados na bela história de seus componentes: algodão agroecológico e borracha nativa da Amazônia. E uma receita bem diferente de um mercado baseado em publicidade agressiva. “Até hoje

pensamos da mesma forma”, diz Beto Bina, responsável pela cadeia de fornecimento da Veja no Brasil. “Ao invés de patrocinar um jogador de futebol gastando milhões, decidimos colocar o dinheiro numa cadeia produtiva que conte uma história bonita e em um produto de qualidade. E, então, deixar que as pessoas propaguem essa história. Isso é uma coisa muito poderosa para a gente. Quando vemos um influenciador, como a Meghan Markle, usando a marca, o mercado sabe que é porque eles gostaram da história e do produto.” ALÉM DO MERCADO Até hoje a relação com as cadeias produtivas é o coração da


Calçados

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Meghan Markle e o príncipe Harry: a imagem dela usando os tênis da marca ajudaram a impulsionar as vendas em todo o mundo

marca. Tanto no algodão como na borracha, a Veja montou estruturas de fornecimento através de cooperativas de pequenos produtores familiares que preservam modelos tradicionais de cultivo ou de extração. Os seringueiros, por exemplo, atuam da mesma forma que se fazia no antigo ciclo da borracha, entrando na mata e fazendo o extrativismo clássico a partir de uma seringueira por hectare. Por prestarem também serviços de preservação ambiental, a Veja paga a eles três vezes o valor de mercado da commodity. No algodão, por sua vez, as compras são feitas de 18 cooperativas de pequenas propriedades que produzem no modelo agroecológico, plantando algodão consorciado com feijão, arroz, gergelim, que garantem a segurança alimentar das comunidades, propiciam a cobertura do solo e protegem a biodiversidade local. Com o aumento da produção, hoje a rede de fornecedores está presente em todos os estados do Nordeste, menos na Bahia. Também nesse caso, pagam o dobro do valor de mercado. Com as histórias bem contadas no algodão e na borracha, a Veja ainda precisava preencher lacunas em outros capítulos da sua narrativa. Nos últimos dois anos, a empresa decidiu se aprofundar na formação de cadeias de fornecimento para outros insumos fundamentais, mas PLANT PROJECT Nº25

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W Calçados

que ainda não estavam adequados aos parâmetros exigidos pela marca e seus clientes. Um deles é o plástico obtido com a reciclagem de embalagens PET. “Nosso modelo é entrar na cadeia, mapeá-la e ter um relacionamento o mais justo possível com os fornecedores e muitas vezes a melhor forma de fazer é através das cooperativas, sempre tendo como critérios os valores ambientais, a preservação de biomas e os valores sociais para promover o desenvolvimento dessas famílias envolvidas”, explica Beto Bina. Funcionou bem com borracha e algodão e deve funcionar também com o PET. O DESAFIO DO COURO Com o couro, porém, a complexidade é maior. Durante vários anos a Veja comprou o material de curtumes do Rio Grande do Sul e da região Centro-Oeste. Mas a pressão internacional em torno da 90

pecuária brasileira acendeu uma luz de alerta na empresa. Isso porque é praticamente impossível garantir a origem do couro. A empresa se baseava nas informações dos frigoríficos que faziam o abate dos animais, mas não tinha como rastrear a sua procedência. “Sentimos a necessidade de ouvir mais do que o frigorífico nos falava, de ir mais a fundo”, explica Bina. “Ainda estamos muito às cegas sobre origem e manejo sustentável do gado. Quando tentamos rastrear desde a fazenda de origem, descobrimos coisas que precisam ser mudadas. Quanto mais a gente investiga, mais problemas a gente encontra. Seria negligência não ir atrás.” A complexidade da cadeia do couro começa na própria estrutura da pecuária e se expande quando o boi deixa a fazenda e segue para a indústria. A grande maioria do gado de corte passa por várias propriedades em sua vida, até o abate. Em uma é

Equipe do Estâncias Gaúchas e o gado criado nos Pampas: bioma do Sul do País tem ajudado a Veja a vencer desafio do couro


feita a cria e a recria, em outra a engorda e em uma terceira, o acabamento. Uma vez embarcado no caminhão, segue para o frigorífico, onde o couro, geralmente, não é uma preocupação em virtude de seu baixo preço. Todo o material é misturado, sem preocupação com a sua procedência. Depois, é leiloado e geralmente arrematado por atravessadores, que vendem esse material para os curtumes, onde é finalmente tratado e transformado em matéria-prima para as indústrias de calçados, roupas e outros artigos. A dificuldade de seguir esses passos é enorme. Ao longo dos anos, a Veja vinha tentando fazer um trabalho junto aos frigoríficos, num esforço para convencê-los a verificar a origem do animal e, uma vez recebido, separar o couro dos animais produzidos dentro das suas exigências – entre elas a de não vir de área de desmatamento. A escala da pecuária e da indústria da carne, no entanto, praticamente inviabilizou esse plano. A opção da empresa, então, foi acessar diretamente criadores de gado que fazem o ciclo completo, da cria ao acabamento. “Mas no centro do Brasil esse é um universo complicado e fica muito difícil fazer essa curadoria e convencer esses produtores a vender para um frigorífico específico”, explica Bina. “O couro representa apenas 5% do valor do animal e, assim, o produtor não está pensando na receita através

do couro. Tínhamos a garantia do frigorífico, mas sabíamos que existe uma margem de erro. Não podíamos correr esse risco reputacional.” A CAMINHO DO SUL A Veja, então, deu uma guinada para o Sul, afastando-se das polêmicas que envolvem biomas como o Cerrado e a Amazônia. E descobriu que poderia desenvolver um modelo de sucesso no Pampa. Lá, em parceria com o engenheiro agrônomo Marcelo Fett Pinto, coordenador do programa Estâncias Gaúchas, a ideia de PLANT PROJECT Nº25

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Os fundadores Kopp e Morillion com produtor de algodão no Ceará e a atriz Reese Whiterspoon com o tênis Veja: propaganda gratuita

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fazer a curadoria de criadores com todo o rebanho rastreado começou a dar bons resultados no ano passado, quando foi iniciado um projeto-piloto que envolveu cerca de 40 propriedades rurais do Rio Grande do Sul. “Conseguimos dar à Veja uma opção que atende ao desejo de substituir o couro vindo da Amazônia por outro oriundo de sistemas de produção mais responsáveis”, afirma Marcelo. “O Estâncias Gaúchas nos apresentou os argumentos essenciais que necessitávamos, como a garantia de não haver desmatamento e também de controle total do ciclo de produção”, afirma Bina. “E o que é mais legal é que o bioma Pampa parece que foi desenhado para a criação de gado, sem precisar ser adaptado para isso.” A biodiversidade da região, de fato, não é impactada pela presença do boi. “Nossos campos são como uma Amazônia em miniatura, com dezenas de espécies nativas por metro quadrado”, afirma o gaúcho Marcelo. A grande riqueza está nas gramíneas que brotam

naturalmente nos Pampas e dispensam a necessidade de derrubada de matas para a implantação de pastagens. Como vantagem adicional, afirma Bina, a Embrapa já demonstrou que, naquele bioma, a manutenção de pastagens nativas com altura acima de 12 cm e uma densidade de uma cabeça de gado por hectare, o sequestro de carbono é maior que as emissões de metano pelo gado. É mais uma boa história para a Veja contar, mas antes disso o modelo precisa ser consolidado – e os desafios ainda estão presentes. O Estâncias Gaúchas conseguiu, no primeiro ano de projeto, montar uma plataforma auditável de fornecedores, onde são registradas as propriedades, os animais e toda a sua movimentação, com a inclusão de documentos como notas fiscais e guias de trânsito animal. Marcelo também fortaleceu a relação com frigoríficos e tem tido sucesso no convencimento de produtores para que vendam seus animais para aqueles que se comprometem a não misturar os couros com os provenientes


Calçados

de outras propriedades. Há um ponto sensível, porém, a ser resolvido: o pagamento adicional aos fornecedores ativos no programa. Diferentemente do que acontece no algodão e na borracha, os criadores vendem seu gado às indústrias e não diretamente à Veja. Além disso, como o valor do couro representa muito pouco do valor do animal, o simples pagamento de um valor extra pela peça também não seria um benefício suficientemente relevante para impactar uma cadeia com tantos elos diferentes. “Se um dos elos se sentir prejudicado, o programa não roda”, afirma Marcelo. Uma das soluções que estão sendo desenhadas é a criação de um canal direto para que a Veja faça o pagamento por serviços ambientais aos pecuaristas valorizando a preservação dos chamados ambientes pastoris nativos. “Hoje eles sofrem uma pressão grande da agricultura, para que façam a conversão das pastagens em lavouras. Se arrendarem a terra para a produção de soja, ganham quatro vezes mais sem ter nenhum trabalho”, diz o agrônomo. “A pecuária é a essência dele, ele nasceu no meio do boi e da natureza. Mas às vezes ele não suporta se manter na atividade.” DORES DO CRESCIMENTO Ao mesmo tempo em que faz os ajustes necessários junto ao Estâncias Gaúchas, a Veja precisa

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pensar na sua expansão. A demanda pelo couro gaúcho – produzido a partir de animais de raças britânicas, como Angus e Hereford, bem adaptadas ao Sul do Brasil – cresce aceleradamente em função do sucesso da linha Campo, que utiliza peças curtidas sem cromo. Mas há ainda as outras linhas e, com isso, muito mais matériaprima é necessária. As compras em curtumes de São Paulo e Goiás ainda são feitas no modelo antigo, com base nas informações dos frigoríficos, e representam 50% da produção da Veja. “A gente está trabalhando para mudar isso tudo até o fim de 2021”, afirma Bina. “Precisamos disso. Nenhuma marca faz o que a gente faz.” O sucesso das histórias contadas pela empresa exige pressa. As vendas da marca crescem de 30 a 40% por coleção. São duas coleções por ano e, com isso, a empresa dobra seu faturamento a cada ano. Segundo a revista Fast Company, são cerca de meio milhão de pares de tênis por ano, garantindo uma receita de cerca de US$ 20 milhões. É pouco perto de uma Nike ou de uma Adidas, mas Kopp e Morillion não se preocupam com isso. Sabem que o crescimento desenfreado tem muitas dores e, por isso, preferem caminhar em um ritmo que lhes permita manter a narrativa coerente. Para ser sustentável, acreditam, é preciso dar um passo de cada vez. PLANT PROJECT Nº25

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Planta de soja brota na terra vermelha no norte do Paraná: Região é cenário para a obra de Domingos Pellegrini

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Um campo para o melhor da cultura

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Um campo para o melhor da cultura

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PALAVRAS QUE VÊM DA TERRA Autor de Terra Vermelha e Não Existe Impossível, biografia do pecuarista Celso Garcia Cid, o escritor Domingos Pellegrini descreve a história de um dos principais polos do agro brasileiro

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om mais de três dezenas de livros publicados, entre coletâneas de contos, romances e histórias para o público juvenil, além de dois prêmios Jabuti, o londrinense Domingos Pellegrini, 71 anos, é conhecido, principalmente, como escritor. Mas, antes de se dedicar à ficção, Pellegrini foi jornalista. E, como repórter, descobriu a agricultura e tomou gosto pelo trabalho e pela cultura do campo. Foi de lá que brotaram algumas de suas principais obras, que ajudam a contar a história do desenvolvimento do norte do Paraná, um dos principais polos do agronegócio brasileiro. Quando fazia parte da redação da Folha de Londrina, no início dos anos 1970, era responsável pela produção de matérias para o segundo caderno sobre os mais variados assuntos. Não importava se o tema era cultural ou policial: era preciso encher uma página. Em 1972, foi enviado para visitar o recém-criado Instituto Agronômico do Paraná (Iapar). Na época, a instituição ocupava uma casa no centro da cidade e era formada por uma pequena equipe. Foi recepcionado pelo então presidente, Raul Juliatto. “Uma hora e meia de conversa depois, eu havia me tornado um entusiasmado pela agricultura”, conta Pellegrini. “Fui começando a descobrir um mundo. Eu era neto de tropeiro. Havia nascido em uma cidade efervescente, capital mundial do café, com uma mistura de negros e brancos, de brasileiros de todos os estados e gente de 30 países”, diz o escritor. Por querer, se tornou repórter do agro. Entrevistou, por exemplo, o produtor Herbert Bartz (1937-2021), precursor da técnica do plantio direto no Brasil.

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Foi também como repórter que conheceu o grande pecuarista Celso Garcia Cid, ou Seo Celso, como era conhecido. “Fui conversar com ele meio a contragosto. Na época, eu era comunista e ele era um empresário”, afirma Pellegrini. Em 1960, Garcia Cid foi responsável por trazer ao Brasil um pequeno rebanho puro de zebuínos, vindos da Índia, após anos de pedidos de importação dos animais feitos ao Ministério da Agricultura, uma aventura que mudou de vez a pecuária brasileira. Pellegrini foi surpreendido pela personalidade e visão do pecuarista. “Na entrevista vi que ele não olhava só para o grande produtor. Ele entendia os pequenos. Tinha uma visão de estadista sobre a crise que afetava esses pequenos açougues na época.” Aquele encontro ficou na cabeça dele. Tanto que, 20 anos depois, quando Garcia Cid já havia morrido, Pellegrini encontrou na história de Seo Celso uma oportunidade de transformar sua carreira. Infeliz com a agência de publicidade que havia montado, decidiu ir atrás da família de Garcia e pedir ajuda para escrever sobre a trajetória do produtor. “Achei que ia entrevistar um punhado de pessoas e fazer o livro”, conta. “Quando disse ao filho que queria contar a história do pai, ele pegou uma folha de papel, escreveu 40 nomes sem levantar a caneta e me disse para começar minha pesquisa por aquelas pessoas.” Pellegrini ficou fascinado. A vida de Seo Celso estava relacionada à história da própria cidade de Londrina. E muito mais. Ele era um apaixonado pela Índia, profundo conhecedor da pecuária e entusiasta de temas variados, da antropologia à agricultura. O extenso


Celso Garcia Cid e sua aventura na Índia: biografia, escrita por Pellegrini, conta um episódio que mudou a pecuária no Brasil

Eram oito os canaviais da Usina, cada canavial com seus talhões e ruas, em cada rua um cortador. Em cada talhão um capataz anotava quantos feixes cortava cada um, depois no último talhão competiam os melhores, e o melhor de cada canavial seria um dos oito finalistas na disputa final, o Concurso de Corte de Cana de Capivari-Rafard, como anunciavam os cartazes da Festa da Usina, com programação religiosa, recreativa e esportiva, missa, fogos, quermesse, leilão, mas o melhor era o Concurso dos Cortadores, ou O Concurso, como diziam tanto em Rafard quanto em Capivari. Era o único dia do ano em que se juntavam capivarianos e rafardenses, no território neutro onde afinal todos ganhavam a vida, e, também, onde os franceses despediam quem brigasse.

trabalho de pesquisa e escrita, que fez com que Pellegrini também se debruçasse sobre o romance como um formato literário, deu origem a Não Existe Impossível: O tempo de seo Celso. O livro ganhou duas edições, ambas bancadas pela família do pecuarista, e se tornou obra obrigatória para quem quer entender a moderna pecuária brasileira. Hoje, está fora de catálogo. Mas o escritor espera

republicá-lo no ano que vem, via Lei Rouanet. Tem planos de levar o livro a feiras agrícolas e divulgar o trabalho de Seo Celso também em palestras. A pesquisa para a biografia de Celso Garcia também serviu de inspiração para outra obra, o ambicioso romance Terra Vermelha. A história acompanha o casal José e Tiana durante quatro décadas, desde quando se conheceram nos canaviais da

região de Rafard e Capivari, no interior de São Paulo, passando pelos inúmeros trabalhos de José, como marceneiro, sócio de farmácia e dono de um pequeno comércio, até a mudança para Londrina, no Paraná, que começava a se desenvolver por meio do sistema de colonato. O romance é estruturado em sete noites. Um dos netos de João – já velho, doente e internado em um hospital – relembra passagens da vida do avô. Para escrever, Pellegrini teve de recriar palavras para representar o dialeto surgido da miscigenação de culturas e raças atraídas na aventura de colonizar o norte do Paraná na metade do século 20. O autor buscou inspiração na própria história. João é baseado em seu avô paterno. E Tiana, na avó materna. “Eu tinha um grande caldeirão de lembranças familiares”, conta. Um tio, contador de causos, falava da rivalidade que havia entre os habitantes das cidades de Rafard e Capivari. A avó Sebastiana tinha histórias de Minas Gerais. Os peões e tropeiros que visitavam a casa da família também forneceram valiosa contribuição. Até mesmo Garcia Cid inspirou um dos personagens centrais. “Terra Vermelha é um romance multirreferencial. Tem fundamento de pesquisa. Tem uma linguagem clara, mas que às vezes insiste em ser poética. Tem muita ligação com o agro. E, PLANT PROJECT Nº25

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De repente, estava trotando pela estradinha, como não fazia desde muito tempo, como gostava de fazer quando rapaz. É a terra-vermelha, falou para o cavalo, e cavalgou até o bicho suar, aí foi a pé assobiando. Mas a cada hora via menos fazendas e sítios, e mais mata, mata sempre mais alta. À noite, enrolado na manta, dormiria olhando as estrelas e pensando na tal terra-vermelha depois do Tibagi, conforme tinha contado o inglês. Figueiras-brancas que nem dez homens abraçavam. Perobas de quarenta metros de altura. Cafeeiros tão altos que era preciso colher de escada. Terrenos e sítios à venda com vários anos para pagar, sem entrada: – Os ingleses não querem dinheiro já – tinha falado o ferreiro – Querem é colonos para valorizar a terra.

Pellegrini: "Terra Vermelha tem muita ligação com o agro. Para mim, foi muito interessante porque aprendi a valorizar as minhas origens”

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para mim, foi muito interessante porque aprendi a valorizar as minhas origens”, diz Pellegrini. Foram cinco anos reescrevendo até chegar à versão final. “A cada ano eu separava um mês só para mexer no livro. Eu achava que ele estava muito longo, precisava de ajustes”, afirma. O romance foi publicado pela primeira vez em 1998 e reeditado duas vezes. Hoje, é um título da editora Leya. O escritor também é conhecido por seus livros para o público juvenil, como As Batalhas do Castelo, de 1988, e A Árvore que Dava Dinheiro, de 1981, que fez parte da coleção Vaga-Lume. É ainda um contista premiado. Com O Homem Vermelho, sua primeira coletânea de narrativas curtas, lançada em 1977, recebeu o primeiro Jabuti. O segundo veio anos depois, em 2000, com o romance O Caso da Chácara Chão. Com a pandemia, decidiu reler os contos que escreveu. “Fiquei com vergonha de muitos. Outros decidi reescrever. De cada dez, aproveitei três.” Pellegrini foi

juntando esses contos reescritos e separou-os em quatro livros temáticos, que pretende lançar nos próximos meses. O primeiro, sobre meninos e meninas, vai sair em breve como paradidático pela Moderna. Há um sobre amor e outro sobre mulheres. O quarto será focado justamente no trabalho e na terra. “Estou muito satisfeito com esse trabalho e com a oportunidade de poder reescrever. É uma coisa que sinto falta em outros escritores. Lima Barreto, por exemplo, não deve ter revisado Clara dos Anjos”, diz. Agora, Pellegrini também tem se dedicado a escrever roteiros de cinema e séries de TV. “Sempre tive curiosidade pelo formato”, conta. Já tem dois trabalhos para o cinema prontos, ambos inspirados na pandemia. Também prepara um roteiro para um seriado. Será uma obra juvenil, sem cenas de violência, que vai abordar temas como corrupção, nepotismo, burocracia e descoordenação política. “Os males do Brasil”, diz Pellegrini.


Cabine de comando de máquina agrícola: Fabricantes apostam em serviços para fidelizar clientes e ampliar mercado

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As inovações para o futuro da produção

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As inovações para o futuro da produção

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BOAS DE SERVIÇO Depois da digitalização, fabricantes de máquinas agrícolas transformam sua estratégia de negócios e entram na era da servitização Por Ronaldo Luiz

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termo não é exatamente novo: servitização. Trata-se de um neologismo, que há pelo menos meia década se ouve em rodas de consultores e acadêmicos da administração. Demorou um pouco, mas chegou ao campo. É capaz que você ouça quando for comprar a sua próxima máquina agrícola. As concessionárias das principais marcas já abriram a porteira para essa tendência, transformada em novo modelo de negócios para o setor. Agora, vender apenas um produto físico, ainda que de grande valor e com muita tecnologia embarcada, não basta para que elas se mantenham competitivas no mercado. A nova ordem do mercado de máquinas 4.0 é, como o próprio nome diz, oferecer serviços ao agricultor. Não significa que a venda de máquinas agrícolas esteja mal ou que deixará de ser o principal negócio para as fabricantes em um futuro próximo. Dados da Federação Nacional de Distribuidores de Veículos Automotores (Fenabrave) mostram o contrário. No acumulado do primeiro bimestre deste ano, a comercialização alcançou 6.691 unidades, avanço de 33,23%

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em relação a igual período do ano passado. Mas a servitização ganha cada vez mais espaço nas contas de fabricantes e revendedores. Em linhas gerais, a servitização é a transição da produção de bens para oferta de soluções e serviços. Esmiuçando um pouco mais, é o movimento das empresas para agregar valor aos seus produtos, oferecendo serviços e soluções relacionados a eles. Ou seja: a empresa passa a fornecer soluções produto-serviço, em vez de comercializar exclusivamente aquele item. As pioneiras na adoção do modelo foram as companhias de tecnologia da informação, especialmente as desenvolvedoras de softwares. Se antes um cliente adquiria um software e o instalava em sua própria infraestrutura de TI, com o decorrer do tempo os desenvolvedores passaram a vender somente licenças de uso periodicamente renováveis, operando como um aluguel da utilização do programa. O modelo se espalhou para outros segmentos da economia e agora ganha corpo na cadeia


Máquinas

Computadores no comando de máquina da Jacto e a executiva Kelly Nakaura, da John Deere: novos modelos de negócios incorporam a servitização

produtiva do agronegócio. “A servitização é um processo de transformação de um produto para um serviço. É uma nova forma de enxergar a criação de valor, que, tradicionalmente, era centrada meramente no item”, afirma Everton Drohomeretski, professor da FAE Business School, que realiza programas de negócios junto a cooperativas agropecuárias do Paraná. No agronegócio, segundo Drohomeretski, a pergunta-chave para se aplicar de maneira correta o conceito de servitização é: “Quais são as dores do produtor rural, o que ele precisa para melhorar o desempenho da sua lavoura, por exemplo?” Neste sentido, uma fabricante vai incorporar, ao oferecer uma máquina agrícola, serviços e soluções que tratem de melhorar as atividades de plantio, o uso inteligente de insumos, as tarefas de colheita, e assim por diante.

ESTRATÉGIAS Com as ferramentas digitais cada vez mais incorporadas aos seus produtos, os fabricantes de máquinas têm conseguido dar impulso à oferta de serviços, independentemente do grau de maturidade em que esteja a proposta de valor da servitização. Os desafios de conectividade ainda existem no campo, mas a realidade também é que ano a ano a área de cobertura registra gradual expansão. O mais recente Censo Agropecuário do IBGE, por exemplo, revela que o número de produtores rurais que acessam a internet cresceu incríveis 1.900% de 2006 para 2017. A pesquisa “Hábitos de Mídia do Produtor Rural”, da Associação Brasileira de Marketing Rural e Agronegócio (ABMRA), vai na mesma linha, destacando que a utilização da internet pelo homem do campo registrou alta de 7,7% de 2013 até 2017. No processo de servitização, a estratégia combina digitalização e parcerias com startups, bem como o estímulo a hubs de inovação, que reúnem várias agtechs. “Temos investido forte em digitalização, seja em tecnologia embarcada nas máquinas, seja na disponibilização de serviços em torno dos produtos. Nesse sentido, mantemos parceria com a agtech de origem canadense, Farmers Edge, para entrega de soluções de agricultura de precisão digital aos

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nossos clientes, dentro de um modelo de negócios via concessionárias”, afirma Gerson Filippini, especialista de Marketing de Produto da Case IH. A mudança do conceito de serviço para as montadoras tem sido rápida. Segundo Giovanno Pretto, gerente de Field Service Brasil da New Holland Agriculture, até pouco tempo atrás ele se resumia a “oferecer reparo e revisão do equipamento”. Hoje, acentua o executivo, é preciso entregar muito mais, acompanhar o dia a dia do uso da máquina para viabilizar o uso completo e eficiente do produto, ministrar treinamentos, entregar informações técnicas destinadas ao plantio e à colheita, até soluções de manutenção preditiva, por exemplo, que possam apontar, antecipadamente, quando o maquinário precisará de uma troca de peças. Outras empresas, como a Jacto, investiram no desenvolvimento de uma plataforma própria de agricultura digital. Wanderson Tosta, diretor de Marketing da empresa paulista, conta que a empresa apostou em uma ferramenta on-line que busca funcionar como um ecossistema digital para o produtor-cliente, trazendo desde softwares com dados agronômicos até ferramentas de gestão, espaço de negócios [financiamento e/ou venda do maquinário], por exemplo, entre outras funções, que dependendo PLANT PROJECT Nº25

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Máquinas

Tosta, da Jacto; Pretto, da New Holland; e Filippini, da Case IH: digitalização amplia possibilidades de serviços

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do pacote são gratuitas ou necessitam de contratação à parte. Sob o guarda-chuva da servitização, o executivo ressalta o projeto-piloto, que combina equipamentos da Jacto com solução de controle biológico da Koppert, especializada na atividade. “É algo que podemos vir a oferecer futuramente em escala comercial.” A americana John Deere, por sua vez, além de embarcar tecnologia nas máquinas, investiu na transformação de suas concessionárias em espécie de centrais digitais de controle de operações agrícolas, onde o cliente pode visualizar, com assistência dos técnicos da companhia, todos os recursos disponíveis com a análise dos dados obtidos pelos equipamentos. Kelly Nakaura, diretora de Tecnologia e Inovação da ABMRA da John Deere, pontua que o “business” da agricultura de precisão digital tem se tornado extremamente relevante para a operação por meio da oferta de serviços. “O modelo de negócios caminha, sim, em direção à servitização, e acredito muito na expansão de um modelo de contratação por demanda.” Para a executiva, além de fortalecer a marca junto à clientela, a servitização também pode funcionar como um ímã para atração de investimentos. “Mostra que a empresa está se movimentando, criando, antenada, em um esforço que

alavanca o seu potencial de rentabilidade futura.” Servitizar é verbo que não consta em dicionários, mas está na boca dos executivos do setor e dos consultores. “Quando digo ‘eu servitizo’, significa que incorporo serviços a fim de criar uma experiência positiva para o cliente, a começar por ele ter a possibilidade de extrair o máximo do produto que ele adquiriu”, ressalta o professor Drohomeretski. “Em um processo bem estruturado de servitização, o serviço é percebido pelo cliente como inerente ao bem – e não como um penduricalho, um acessório ao produto. Servitização é investir na criação de uma proposta de valor que seja clara em termos de resultados positivos para o cliente.” Criar condições favoráveis à recorrência de compra – e, assim, à continuidade de receita – é o principal retorno para a empresa que investe em servitização. “No agro, por exemplo, a servitização faz o fabricante de maquinário agrícola estar com o produtor rural o tempo todo por meio dos serviços, o que fortalece o vínculo, reforça a confiança – atributo extremamente valorizado no campo – em busca de fidelidade”, ressalta o professor. “Isso diminui a necessidade de a marca ter que ficar “correndo” atrás do cliente a todo instante, fazendo com que o gasto para viabilizar uma segunda, uma terceira venda seja menor para a empresa.”


SERVITIZAR É...

As premissas básicas do processo, segundo o professor Everton Drohomeretski: ...mudar o foco do fornecimento de produtos para oferecer um serviço; ...se responsabilizar pela colocação, instalação e manutenção de produtos que ofereçam os benefícios requeridos pelos clientes; ...conhecer as reais necessidades dos clientes, o que permite se voltar mais para o benefício que se entrega; ...criar valor por meio da inovação e da conexão com essas reais necessidades.

Para Camilo Adas, presidente do Conselho da SAE Brasil – associação que atua na difusão de conhecimento tecnológico e de novos modelos de negócios para a indústria, inclusive de máquinas agrícolas –, as características básicas dos maquinários para o campo, principalmente entre as maiores fabricantes, se tornaram cada vez mais parecidas, ficando de certo modo “commoditizadas”. “E este cenário faz com que a diferenciação de mercado esteja cada vez mais atrelada não apenas a tecnologias embarcadas, mas sobretudo às que envolvem serviços em torno do produto, que tenham como foco melhorar o dia a dia do produtor. E é isso que vem alavancando a servitização.” A boa estratégia de servitização, segundo Adas, precisa considerar o encaixe entre produto-serviço-cultura. “Uma lógica de processo, uma experiência que possa fazer sentido para uma grande propriedade produtora de grãos no Centro-Oeste é bem provável que não tenha aderência em um

negócio de agricultura familiar nos arredores de uma metrópole.” Um bom exemplo de servitização, nesse aspecto, e que, em princípio, não tem nada a ver com uma grande inovação tecnológica, diz o dirigente, é uma fabricante ter uma oficina de maquinário agrícola locada na própria fazenda de um grande cliente. “Dependendo, claro, de análise de custos, de viabilidade, entre outras variáveis, este posto avançado pode ser bem trabalhado como um atributo de adição de valor, dentro do conceito de servitização, funcionando na prática como uma ação de fidelização da marca junto ao produtor”, esclarece Adas. “Uma ampla rede de concessionárias é algo visto como serviço pelo produtor, que quer ter assistência rápida e confiável para o maquinário que adquiriu. Na prática, é critério de compra.” “Apenas vender produto como estratégia dominante de mercado não funciona mais. É por isso que a servitização vem crescendo”, concorda Matheus

Cônsoli, sócio fundador da Markestrat, especialista em estratégias de negócios para o agro. Dentro desse raciocínio, Cônsoli traz ainda para a discussão dois outros modelos de serviços que vêm sendo empregados no universo de máquinas agrícolas. Primeiro, o da “uberização” – compartilhamento de maquinário. “Temos exemplos interessantes. Não servirá para todos os produtores, mas pensando no custo de aquisição de uma máquina agrícola, quanto maior for o investimento necessário, produtores pequenos e médios podem passar a optar mais pelo aluguel.” Segundo Cônsoli, outro modelo que também avança é o da contratação do serviço completo – não apenas do maquinário, mas da execução da atividade também. “O produtor rural paga pelo serviço de um número X de máquinas trabalhando, por um determinado tempo, para a atividade Y. Cooperativas em São Paulo têm trabalhado com esta opção.” PLANT PROJECT Nº25

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Abertura de Safra

O EXEMPLO DA BIOENERGIA Evento Santander DATAGRO: Abertura de Safra de Cana, Açúcar e Etanol 2021/22 destaca resultados e potencial de descarbonização promovida pelo setor sucroenergético nacional Por Ronaldo Luiz

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nquanto o mundo discute a descarbonização da economia, o Brasil tem um exemplo a dar. Foi a mensagem que os ministros Bento Albuquerque (Minas e Energia) e Ricardo Salles (Meio Ambiente) destacaram durante o evento Santander DATAGRO: Abertura de Safra de Cana, Açúcar e Etanol 2021/22, que, em sua 5ª edição, já se tornou referência absoluta para o setor. Os ministros ressaltaram que todo o esforço de descarbonização promovido pelo

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setor sucroenergético nacional é item-chave para que o Brasil tenha uma das matrizes energéticas mais renováveis e limpas do planeta – durante a cerimônia de abertura do encontro realizado nos dias 10 e 11 de março em formato on-line, devido às recomendações de distanciamento social e de saúde como medidas de segurança em relação à Covid-19. "O Brasil é exemplo de matriz energética limpa, tendo o potencial da bioenergia


Patrocínio

proveniente da cana-de-açúcar, segunda maior fonte energética do País, como um de seus pilares", afirmou Albuquerque, que, em sua fala, também mencionou a resiliência do RenovaBio [Política Nacional de Biocombustíveis] ao ser implantado em 2020, ano absolutamente desafiador em razão dos impactos decorrentes da pandemia. Em sua exposição, o ministro Albuquerque adiantou ainda que a pasta de Minas e Energia trabalhava, na ocasião, no desenvolvimento do programa Combustível Futuro, que terá como objetivo fomentar políticas públicas que combinem o avanço de combustíveis verdes com novas tecnologias automotivas. E, pouco mais de um mês depois, no dia 20 de abril, de fato, a pasta confirmou aprovação, por parte do Conselho Nacional de Política Energética (CNPE), de resolução que instituiu o Programa. Já o ministro Salles acentuou que o setor sucroenergético brasileiro é exemplo global de sustentabilidade. De acordo com o titular da pasta do Meio Ambiente, o portfólio nacional de atributos e ativos ambientais é gigantesco, mas precisa ser monetizado por meio de mecanismos de mercado que atestem a descarbonização, citando, como exemplo, os Créditos de Descarbonização (CBios), títulos atrelados ao RenovaBio. "Precisamos dar o devido valor, dar preço à nossa biodiversidade e sustentabilidade." Salles frisou que o governo

federal irá atuar para, cada vez mais, reafirmar que o carro movido a biocombustíveis, especialmente o etanol, é a alternativa mais viável, confiável e adequada para o Brasil se comparada à tendência pura e simples dos veículos elétricos europeus, que é ancorada na obtenção de energia a partir de fontes fósseis. "Precisamos frequentemente mostrar à indústria automobilística que o mais coerente para o Brasil é o carro híbrido elétrico-etanol." MAIS LIDERANÇAS EM DESTAQUE O vice-presidente executivo do Santander, Mário Opice Leão, classificou o RenovaBio como exemplo de programa que une o agronegócio e a sustentabilidade e antecipou que o banco prepara o lançamento de uma publicação dedicada à Política Nacional de Biocombustíveis. Já o deputado federal Arnaldo Jardim, um dos principais parlamentares ligados ao setor sucroenergético, elencou em sua participação alguns desafios do segmento, como, por exemplo, a tributação incidente sobre os CBios – que não está totalmente equacionada, segundo ele –, bem como que a cadeia produtiva precisa estar disposta a discutir de modo mais enfático o cenário de aumento no preço dos combustíveis. Também presente à transmissão, o presidente da União da Indústria de Cana-de-

Açúcar (Unica), Evandro Gussi, frisou a envergadura do RenovaBio, o potencial dos CBios – como ativos para o mercado de créditos de carbono – e o começo de um entendimento por parte da indústria automobilística instalada no País, de que a eletrificação da frota, de acordo com o modelo europeu, não é a mais indicada para o Brasil. O presidente do Fórum Nacional do Setor Sucroenergético, André Rocha, lembrou ainda a importância da manutenção de ações de comunicação como processo imprescindível para a valorização do etanol. Ademais, o presidente da Datagro, Plinio Nastari, fez um breve balanço da safra 2020/21, assim como registrou algumas expectativas para o novo ciclo – agora já em curso. "A temporada 2020/21 foi extremamente desafiadora, devido a pandemia, clima, volatilidade nos mercados, oscilações no câmbio, mas o setor sucroenergético se manteve firme e entregou produção recorde tanto em açúcar e etanol como cumpriu o objetivo de implantação do primeiro ano do RenovaBio. A despeito dos efeitos do clima, que também devem impactar este novo ciclo, a safra 2021/22 promete ser exitosa", afirmou Nastari. Também participaram da cerimônia de abertura o prefeito de Ribeirão Preto, Duarte Nogueira; Alexandre Andrade (Feplana); Luiz Carlos Jorge (Ceise Br); e Denis Arroyo (Orplana). PLANT PROJECT Nº25

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Abertura de Safra

RAIO X DOS PRINCIPAIS PAINÉIS Segmento avança forte em políticas de ESG Reunidos em painel sobre a agenda (ESG) – Environmental, social and corporate governance, na sigla em inglês –, especialistas enfatizaram os avanços do setor sucroenergético em ações de caráter socioambiental e de governança. Participaram deste painel Mário Campos Filho, presidente do Siamig; Otávio Tufi, auditor do Benri; Renata Camargo, coordenadora da Unica; e Benjamin Bourse, diretor da Control Union. Segundo eles, os esforços de ESG da cadeia produtiva sucroenergética fortalecem e mostram o grau de transparência, profissionalismo e modernização do segmento, endereçando um processo favorável de elegibilidade para o acesso a mercados diferenciados – tanto em nível doméstico como sobretudo externo –, bem como para captação de novos investimentos. "O mercado valoriza cada vez mais a agenda ESG, e isso é passaporte para clientes e recursos", ressaltou Campos Filho. De acordo com Bourse, o volume de certificações socioambientais existentes no setor sucroenergético é uma clara demonstração de que o segmento está atento à 110

importância desta temática para a estratégia de negócios. Em sua exposição, Tufi mostrou, por exemplo, a busca contínua por economia de combustível no maquinário agrícola usado no dia a dia das fazendas e usinas de cana, além da expansão do uso de fontes renováveis, como o biometano para o funcionamento dos equipamentos. Já Renata apresentou a iniciativa estruturada do segmento para recuperação e conservação florestal, especialmente no tocante às Áreas de Preservação Permanente (APPs), entre as quais as matas ciliares. Financiamento do agro avança em captação no mercado privado A agenda de financiamento do agronegócio como um todo – inclusive, claro, o setor sucroenergético – será cada vez mais vinculada à captação no mercado privado [bolsas, fundos de investimentos, títulos verdes, entre outras fontes], com o crédito rural oficial sendo direcionado às atividades de subsistência, afirmaram os especialistas Carolina Troster, sócia da Datagro Financial; Fabian Valverde, da Paketá Crédito; e Fabrizzio Sollito Marchetti, da Navi, em painel sobre o tema. De acordo com os participantes, o avanço de ferramentas digitais no dia a dia do agro, seja no campo, seja nos processos de inteligência para

análise de dados da atividade em si, contribui, cada vez mais para um diagnóstico mais preciso do compliance socioambiental e da saúde financeira dos negócios, em uma espiral que pode favorecer a diminuição do custo de capital junto a fontes privadas. Entretanto, segundo os especialistas, ainda falta um maior conhecimento, por parte dos agentes do mercado privado, das especificidades do agro e de como essas particularidades, que são diferentes de cultura para cultura, são itens-chave como critérios para oferta personalizada de crédito. Ademais, os participantes também destacaram as oportunidades de financiamento, que despontam das agrofintechs, bem como as que surgirão a partir do Fiagro (Fundos de Investimento para o Setor Agropecuário). Preços do açúcar devem continuar em margens confortáveis Com a expectativa de ligeiro déficit no mercado mundial na safra 2021/22 – consumo levemente superior à oferta –, os preços do açúcar devem continuar apresentando margens confortáveis para os produtores do adoçante, destacaram Maurício Sacramento, executivo de açúcar da Cofco; Ulysses Carvalho, da Sucden; e Ivan Melo Filho, sócio da Datagro Financial, em painel relativo ao assunto. De acordo com Carvalho, os preços do açúcar têm registrado


máximas históricas, o que endereça uma safra, no ciclo 2021/22, novamente mais açucareira. "De fato, o açúcar assim como o etanol estão com boa remuneração", ressaltou Sacramento. Segundo Melo, o avanço no controle da pandemia da Covid-19, em nível global, sinaliza que o mercado de açúcar pode registrar uma alta no consumo de aproximadamente 1,5%. No que diz respeito às exportações brasileiras do adoçante, o sócio da Datagro Financial mencionou que a China deve permanecer como um dos grandes importadores nesta nova temporada. Internacionalização do uso do etanol Representantes dos ministérios das Relações Exteriores (MRE) e das Minas e Energia (MME) trataram das oportunidades e, sobretudo, dos desafios para viabilização de uma trajetória bem-sucedida

de internacionalização do uso do etanol. De acordo com o chefe da divisão de promoção de energia do MRE, Renato Godinho, a energia limpa e renovável, gerada a partir de biomassa, é primordial para que a matriz energética brasileira seja considerada uma das “mais verdes” do planeta. “Este cenário, tem o etanol, seja como aditivo ou combustível principal, como protagonista. A experiência brasileira é exemplo concreto para que países que tenham potencial similar possam replicá-la.” Segundo o diretor do Departamento de Biocombustíveis do MME, Pietro Mendes, a expansão do uso do etanol passa, impreterivelmente, pelo esforço contínuo de comunicação da mensagem de que a utilização de biocombustíveis acarreta, obviamente, não somente em vantagens ambientais [pela melhoria do ar e consequentemente da saúde

pública em geral], bem como traz benefícios econômicos e sociais, como geração de novos negócios, renda e emprego em sintonia com a agenda global de sustentabilidade. Nesta linha, o embaixador indiano em solo nacional, Suresh Reddy, enalteceu o intercâmbio cada vez maior entre ambos os países. “Todos os dias acompanho notícias sobre novos projetos que estão sendo desenvolvidos no Brasil, e muitos de nossos empresários do setor de cana manifestam cada vez mais interesse em visitar as usinas brasileiras.” Plantio e reaproveitamento de resíduos O reaproveitamento de sobras e resíduos da cadeia produtiva da cana-de-açúcar como matériasprimas para a fabricação, por exemplo, de fertilizantes e a consolidação do sistema de Mudas Pré-Brotadas (MPB), desenvolvido pelo Instituto PLANT PROJECT Nº25

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D

Abertura de Safra

Agronômico de Campinas (IAC), foram destaques de painel sobre tecnologia agrícola para o segmento. O fundador da Agrion Agrisolutions, Ernani K. Judice, ressaltou que sobras e resíduos como torta de filtro e vinhaça – somente para citar dois – passaram a não ser mais totalmente descartados pelas usinas, sendo compreendidos como subprodutos/coprodutos para reutilização em processos como o de adubação. Já o diretor do Centro de Cana do IAC, Marcos Landell, falou sobre o avanço e uso cada

vez maior no setor do modelo de (MPB), tecnologia que contribui para a produção rápida de mudas combinada ao elevado padrão de fitossanidade e vigor, que resulta em uma boa uniformidade das linhas de plantio. Segundo ele, o sistema vem aumentando a eficiência e os ganhos econômicos na implantação de viveiros, no replantio de áreas comerciais e na renovação e expansão de canaviais. A tecnologia de MPB permite mudar a forma de produção de mudas. No lugar dos colmos como sementes, entram as mudas pré-brotadas, que são produzidas

CONDIÇÕES DE MERCADO DEVEM GARANTIR RENTABILIDADE AOS PRODUTORES DE CANA-DE-AÇÚCAR NA SAFRA 2021/22, DIZ ESTUDO DA CONAB Segundo o órgão, no caso do açúcar, perspectiva é de que exportações continuem aquecidas, o que deve dar suporte aos preços internos As condições de mercado devem garantir a rentabilidade dos produtores de cana-de-açúcar para a safra 2021/22. O cenário externo apresenta estabilidade quando comparado ao período anterior. Se no início da pandemia a desvalorização do petróleo influenciou na queda dos preços internacionais entre março e abril de 2020, os meses seguintes foram marcados pela recuperação das cotações, em razão da limitação dos estoques globais da safra 2020/21. Tendência que pode ser mantida para esta safra, conforme indica estudo da Companhia Nacional de Abastecimento (Conab). Segundo a análise, a perspectiva é de que as exportações continuem aquecidas, o que deve dar suporte aos preços internos. A conjuntura da taxa de câmbio elevada, aliada a preços internacionais 112

a partir de cortes de canas, chamados minirrebolos – onde estão as gemas. Depois passam por uma seleção visual e são tratados com fungicida. São colocados em caixas de brotação, com temperatura e umidade controladas, e ao final colocadas em tubetes que passam por duas fases de aclimatação. O ciclo completo leva 60 dias. O sistema envolve a formação de viveiros para multiplicação rápida de novos materiais de cana. É um método simples, que também pode ser adotado por pequenos produtores e cooperativas, não ficando restrito às usinas.

atrativos, contribuiu para uma exportação de cerca de 32,2 milhões de toneladas de açúcar na safra 2020/21, o que representa um aumento de 69,8% na comparação com o mesmo período de cultivo em 2019/20. As expectativas atuais são otimistas e indicam forte crescimento da venda antecipada de produção no mercado futuro. As cotações internacionais do açúcar voltaram a recuar no último mês de março. No entanto, a queda dos preços é limitada pela estimativa de redução dos estoques globais na safra 2020/21 e adversidades climáticas em países produtores. No caso do etanol, o País também registrou aumento nas vendas externas. As exportações foram de cerca de 2,9 bilhões de litros na safra 2020/21, um aumento de 55,1% em relação à temporada anterior. Já as importações tiveram queda de 65,2% e estão estimadas em 581,6 milhões de litros. A perspectiva é de que o fator cambial continue favorecendo as exportações e limitando as importações do biocombustível nesta safra. Já a demanda interna de etanol deve apresentar melhora à medida que a vacinação contra a Covid-19 for avançando.


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DATAGRO Markets

A ENERGIA DA CANA IMPULSIONANDO A MOBILIDADE SUSTENTÁVEL DO FUTURO P o r P l i ni o Na s ta ri A cana-de-açúcar responde por 18% da oferta primária de energia no Brasil, atrás apenas do petróleo (34,4%), e à frente da energia hidráulica (12,4%) e do gás natural (12,2%). É por larga margem a energia renovável de origem na biomassa mais relevante de nossa matriz energética, e tem uma grande importância, principalmente na geração de combustível líquido, etanol e bioeletricidade, produzidos de forma sustentável. Em 2020, o etanol de cana substituiu 48% de toda a gasolina consumida no Brasil, através da mistura de 27% de etanol anidro misturado à gasolina, e do uso de etanol hidratado na frota flex, que representa 86% da frota de veículos leves do País. A bioeletricidade gerada com biomassa foi responsável por mais de 52 mil GWh de geração elétrica, ofertados principalmente nos meses de inverno, quando as hidrelétricas operam em regime de baixa pela sazonalidade hidrológica. Assim, a bioeletricidade eleva a capacidade de geração de base do sistema hidráulico, sem investimentos adicionais e sem a necessidade de construção de mais represas, para armazenamento de água, e linhas de transmissão. A geração

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elétrica, assim como o etanol, é produzida próxima aos centros de consumo, evitando investimentos e as perdas com transmissão, que no Brasil são muito significativos. Mais recentemente, novas rotas de diversificação têm sido desenvolvidas com a produção de etanol de segunda geração, através do aproveitamento de bagaço e palha para a geração de etanol celulósico e a produção de biogás. O biogás gerado pela biodigestão de resíduos do processo industrial como a vinhaça e a torta de filtro, quando queimado em motores elétricos, aumenta significativamente a geração de bioeletricidade, e, quando purificado e transformado em biometano, é equivalente ao gás natural fóssil e pode ser utilizado para substituir o óleo diesel usado em caminhões, tratores e colhedoras, ou injetado diretamente nos gasodutos por ser fungível ao gás natural fóssil. O mundo inteiro busca novas formas de energia que sejam sustentáveis, eficientes do ponto de vista energético e limpas para o meio ambiente. O etanol de primeira e de segunda geração, a bioeletricidade, o biogás, o biometano, o bagaço e a palha em pellets, para substituir carvão mineral em termelétricas tradicionais,

representam essa forma de energia que o mundo almeja. E faz isso de forma replicável, pois usa uma tecnologia que é conhecida e dominada. É escalável, pois pode começar pequena e crescer ao longo do tempo. É acessível em preço ao consumidor, pois é adaptada a formas de utilização já consagradas, sem a exigência de construção de uma nova infraestrutura de produção, armazenagem e distribuição. Não usa recursos naturais escassos, como metais raros ou preciosos. Gera emprego e renda descentralizados, e tem um impacto positivo muito grande em termos de redução de emissões locais e globais, e, portanto, na saúde. Os setores produtor e processador de cana-de-açúcar se complementam e atuam de forma integrada, gerando energia e alimento para o Brasil e para o mundo. Na safra 2020/21, encerrada no final de março de 2021, além de fornecer o etanol que viabilizou a substituição de 48% de toda a gasolina consumida no País, produziu também açúcar para abastecer todo o mercado doméstico e gerar exportações de mais de 32,2 milhões de toneladas, suprindo um mercado livre global estimado em 54,6

Presidente da Datagro e do Ibio, Instituto Brasileiro de Bioenergia e Bioeconomia, foi representante da sociedade civil no CNPE, Conselho Nacional de Política Energética (nov/2016 a ago/2020).


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milhões de toneladas, o que faz do Brasil por larga margem o maior produtor (com 41,46 milhões de toneladas) e exportador mundial. As exportações de etanol também estão em crescimento e atingiram em 2020/21 2,92 bilhões de litros, a partir de uma produção total de 32,5 bilhões de litros. O etanol está sendo utilizado em veículos equipados com motores de combustão interna de elevada taxa de compressão, portanto mais eficientes, o que é uma meta de montadoras em todo o mundo, e mais recentemente em motorizações elétricas, através dos híbridos flex a etanol. As emissões de gases do efeito estufa dos motores flex a etanol são hoje de 58 gramas de CO2e por km, e a dos híbridos a etanol de 29 gramas de CO2e/km. A título de comparação, um veículo elétrico a bateria na Europa hoje emite 92 gramas de CO2e/km, e os veículos leves a gasolina e a diesel emitem em média 124 gramas de CO2e/km. Em breve, estará disponível também a eletrificação com células a combustível utilizando etanol, que fazem uso do hidrogênio contido no etanol como fonte de energia. Esses veículos, considerados como sendo a motorização mais moderna e sustentável do futuro, terão emissões estimadas em 27 gramas de CO2e/km. Todos esses números avaliados pelo conceito poço-a-roda (well-to-wheel), ou segundo

a avaliação do ciclo de vida (ACV). Outros países estão buscando soluções equivalentes. A Índia decidiu acelerar a adoção de etanol em mistura à gasolina, e em 2021 deverá atingir uma mistura média de 8,5%. Em 2022, deverá chegar a 10%, e antecipou o cronograma para chegar a 20%, de 2030 para 2025. Além disso, já autorizou a partir de 2021 a distribuição de etanol puro, E100, abrindo as portas para a introdução de automóveis e motocicletas flex capazes de utilizar etanol puro diretamente. Em 2021, a Tailândia vai aumentar a mistura de etanol de 10% para 20% em toda a sua gasolina, e outros países seguem o mesmo caminho ao elevarem o uso de etanol de biomassa em suas matrizes de transporte. Fatih Birol, diretor executivo da Agência Internacional de Energia, classificou a energia de biomassa como a grande fonte de energia negligenciada no mundo. Mas aparentemente o mundo está descobrindo a sustentabilidade dessa fonte de energia que tem origem no BIO, na vida e na renovabilidade propiciada pelo aproveitamento e pela transformação eficiente, econômica e segura da energia do sol em energia útil e fácil de armazenar, transportar e distribuir. O Brasil oferece esta solução ao mundo, colocando à disposição de todos a tecnologia que desenvolveu nos últimos 45 anos. Tecnologia que permitiu ao País substituir, desde 1975, 3,3 bilhões de

barris de gasolina, com economia de 607,7 bilhões de dólares em importações evitadas, incluindo o custo da dívida externa evitada. Em 2021, a safra de cana deve ser momentaneamente menor do que foi em 2020, por conta da seca, que se prolonga no primeiro trimestre de 2021. Mas os preços continuam competitivos, e o setor privado se encontra preparado e ansioso para investir mais e torná-lo mais eficiente e com menores custos, graças ao impulso propiciado pelo RenovaBio, que premia os produtores mais eficientes, permitindo-lhes que emitam mais créditos de descarbonização. Para se ter uma ideia do que isso representa, em 11 anos de operação, os veículos da Tesla geraram uma economia de 3,7 milhões de toneladas de carbono, em CO2 equivalente. Os produtores de etanol certificados pelo RenovaBio no Brasil descarbonizaram no primeiro ano de operação do programa, em 2020, mais de 15 milhões de toneladas de CO2e. No segundo ano, serão mais 25,2 milhões de toneladas, e em dez anos, até 2030, serão 620 milhões de toneladas, equivalentes a toda a emissão de um país como a França ou a Alemanha durante um ano inteiro. Através da cana-de-açúcar e do aproveitamento de resíduos orgânicos, o Brasil demonstra que a bioenergia pode ser um vetor relevante para a mobilidade sustentável do futuro.

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