Plant Project #18

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Para quem pensa, decide e vive o agribusiness

AGROTRENDS 20 tendências para os anos 2020

PLANTAR OU NÃO PLANTAR?

A cannabis ganha status de commodity do futuro. E o Brasil poderia ganhar com isso YES, NÓS TEMOS AGTECH OS FUNDOS ESTRANGEIROS TRAZEM SEUS DÓLARES PARA AS STARTUPS BRASILEIRAS

PULSES

O mercado de proteínas alternativas abre espaço para novas culturas ELÉTRICOS OFF ROAD PICAPES E ATÉ AVIÕES ENTRAM NA ERA DOS MOTORES A BATERIA

COMUNICAÇÃO AS WEBSÉRIES QUE MOSTRAM O CAMPO COMO ELE É

PERFIL

venda proibida distribuição dirigida www.plantproject.com.br

Como a família Jank transformou leite em marca


O MELHOR QUE VOCÊ PODE FAZER PELO FUTURO É CULTIVAR HOJE. Em 30 anos, haverá 3 bilhões de pessoas a mais no mundo. E a única maneira de conseguir alimentá-las é trabalhando juntos. Existe um novo modelo de agricultura que faz exatamente isso, com sementes mais fortes, melhor proteção de cultivos e decisões orientadas por dados. Saiba mais em Corteva.com.br

CONTINUE CRESCENDO.



E d ito ri a l

O TEMPO DO AGRO

O calendário é uma convenção da Humanidade, criado para facilitar as relações entre pessoas, empresas e países. O formato que utilizamos hoje, o Gregoriano, foi adotado no século XVI na Europa e há menos de cem anos em alguns países asiáticos e até mesmo europeus, como Grécia. Dias, meses, anos, décadas, séculos, milênios se sucedem na folhinha, mas há momen-

Para quem pensa, decide e vive o agribusiness

tos em que paramos para pensar sobre o tempo, como se um ano não fosse AGROTRENDS 20 tendências para os anos 2020

apenas mais uma volta da Terra ao redor do Sol. Números exatos como 2020

PLANTAR OU NÃO PLANTAR?

A cannabis ganha status de commodity do futuro. E o Brasil poderia ganhar com isso YES, NÓS TEMOS AGTECH OS FUNDOS ESTRANGEIROS TRAZEM SEUS DÓLARES PARA AS STARTUPS BRASILEIRAS

PULSES

O mercado de proteínas alternativas abre espaço para novas culturas

têm impacto diferente das demais. Eles nos impelem ainda mais a fazer balanços do período que se encerra e, sobretudo, a projetar metas para o que se

ELÉTRICOS OFF ROAD PICAPES E ATÉ AVIÕES ENTRAM NA ERA DOS MOTORES A BATERIA

COMUNICAÇÃO AS WEBSÉRIES QUE MOSTRAM O CAMPO COMO ELE É

inicia. Uma década se foi. Um novo decênio se apresenta. Que legado levare-

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venda proibida distribuição dirigida www.plantproject.com.br

Como a família Jank transformou leite em marca

mos dos anos 2010? Como chegaremos em 2030? Ao olhar para trás, sob a ótica do agronegócio, talvez possamos concluir que nunca houve uma década como a que se encerra. Vislumbrando o futuro, é possível imaginar que temos pela frente os 10 anos mais desafiadores da história. A tecnologia nos trouxe a um ponto em que adquirimos um nível de conhecimento impressionante, com uma capacidade quase infinita de gerar dados sobre cada etapa da produção. Por que caminhos esse conhecimento nos levará é a pergunta que fizemos a produtores, pesquisadores, empreendedores e especialistas, em busca de um roteiro de tendência que nos guiarão nessa nova página do calendário. Sabemos que temos de ir longe na tarefa de produzir alimentos e fibras para uma população crescente e cada vez mais exigente. O tempo mostrará o que o agro é capaz de fazer. Luiz Fernando Sá Diretor Editorial

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Gestão de energia Mercado livre Eficiência energética Geração distribuída Infraestrutura e serviços

INOVAÇÃO É REPENSAR A SUA

O que nos move não é só a energia. É o desafio de continuar fortalecendo a cada dia a parceria com o setor de agronegócio, oferecendo as melhores soluções para reduzir custos e otimizar resultados. É levar a energia que gera competitividade, tornando seu negócio referência no mercado. Afinal, gerir melhor a sua energia não é só uma possibilidade, é uma realidade que garante a produtividade e o desempenho que você precisa.

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Í ndi ce

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D i r etor E ditoria l Luiz Fernando Sá luiz.sa@plantproject.com.br D i r etor Comerc ia l Renato Leite Marketing e Publicidade Multiplataforma renato.leite @plantproject.com.br D i r etor Luiz Felipe Nastari A rt e Andrea Vianna Projeto Gráfico e Direção de Arte E d i tor Romualdo Venâncio romualdo.venancio@plantproject.com.br R e p órt er André Sollitto andre.sollitto@startagro.agr.br Col ab o ra dores: Texto: Amauri Segalla, Evandro Enoshita, Evanildo da Silveira, Tiago Dupim Foto: Rogério Albuquerque Produção: Daniele Faria Design: Bruno Tulini Revisão: Rosi Melo Ev e n to s Simone Cernauski A d m i n i st ração e Fina nç as Cláudia Nastari Sérgio Nunes

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Gado leiteiro na Hungria:

GLOBAL

O lado cosmopolita do agro

foto: Shutterstock

Oligarcas de países da antiga Cortina de Ferro enriquecem às custas de subsídios agrícolas da União Europeia

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GLOBAL

foto: Shutterstock

O lado cosmopolita do agro

LESTE EUROPEU

A MÁFIA DOS SUBSÍDIOS AGRÍCOLAS Líderes políticos, empresários e oligarcas de países como Hungria, República Tcheca, Bulgária e Eslováquia desviam recursos e enriquecem às custas do maior programa mundial para o desenvolvimento do agronegócio Em 2019, a União Europeia destinou US$ 65 bilhões em subsídios agrícolas que deveriam, em tese, estimular o desenvolvimento de comunidades rurais, induzir a inovação no campo e promover o agronegócio no Velho Continente. O valor corresponde a 40% do total das despesas e representa a maior fatia do orçamento da associação que reúne 28 países europeus. É também um dos principais programas de subsídios do mundo, atrás apenas de projetos governamentais da China, e equivale a três vezes mais do que os Estados Unidos desembolsam para custear seus agricultores. O dinheiro, porém, não está sendo bem 8

aproveitado – muito pelo contrário. Segundo uma extensa reportagem do jornal americano The New York Times, que investigou o caso durante quase um ano, os generosos subsídios da União Europeia não beneficiam quem deveria ser favorecido, como os agricultores que cuidam da terra, das lavouras e dos animais. Boa parte dos recursos, de acordo com a denúncia do jornal, vai parar no bolso dos oligarcas que, mesmo depois do ocaso do comunismo, ainda controlam com mão de ferro muitos países do Leste Europeu. Um dos ícones da nova extrema direita na Europa, o primeiro-ministro da Hungria,


Fazenda na Eslováquia e, à direita, os líderes Viktor Orbán e Andrej Babis

Viktor Orbán, está no centro das denúncias. A investigação do Times constatou que ele usa os subsídios europeus como um sistema de patrocínio que enriquece amigos e familiares e protege seus interesses políticos. Recentemente, o governo húngaro leiloou milhares de hectares de terras do país, a preços sempre camaradas, para familiares e pessoas de seu círculo íntimo, incluindo o melhor amigo de infância, que, não à toa, se tornou um dos homens mais ricos do país desde que Orbán chegou ao poder. Como donas da terra, essas pessoas se qualificam para receber os subsídios europeus, fartando-se do dinheiro que deveria ter outro destino. Algumas delas, segundo o Times, são apenas laranja de Orbán, o verdadeiro dono de milhares de hectares. Não é só: o governo do primeiro-ministro chegou a se apropriar de terras de adversários políticos, sob o pretexto de que eram improdutivas, para depois distribuí-las a seus aliados. O sistema prospera graças à ineficácia da própria União Europeia. O dinheiro dos subsídios é partilhado de acordo com critérios muitas vezes nebulosos, sem que o órgão saiba exatamente quem são os donos das terras. De acordo com o Times, a União Europeia falhou ao não investigar as suspeitas de

corrupção que há muito tempo pairam sobre o modelo de subsídio agrícola. Ou seja: ela distribui o dinheiro, mas não está preocupada em acompanhar a sua aplicação dentro de parâmetros justos e legais. “Os maiores beneficiários se escondem atrás de estruturas de propriedade complexas”, escreveu o jornal. “Os dados das propriedades são mantidos em segredo, o que dificulta o rastreamento da posse e favorece a corrupção.” De acordo com o Times, o sistema consiste em uma espécie de “feudalismo moderno”, em que os poderosos com fortes conexões políticas obrigam os pequenos agricultores a se submeter aos seus desígnios. Outra ex-integrante do bloco soviético, a República Tcheca adota o mesmo estratagema para favorecer suas elites na distribuição dos subsídios agrícolas. Em 2018, sempre de acordo com a denúncia do Times, as fazendas ligadas ao primeiroministro do país Andrej Babis arrecadaram US$ 42 milhões em subsídios. Na maioria dos casos, as terras não estão em nome do político, mas de seus parentes e aliados. O governo de Babis chegou a mudar a legislação do país para facilitar a captação de recursos da União Europeia. Ele nega as irregularidades, mesmo diante de todas as evidências apresentadas pela reportagem, e

diz que as novas regras foram criadas para estimular o desenvolvimento do agronegócio tcheco. Não é o que parece. Apesar da fartura de subsídios recebidos, a República Tcheca não tem melhorado a produtividade no campo e continua a ser irrelevante no panorama agrícola global. A reportagem do NYT desnudou o complexo sistema de corrupção dos subsídios agrícolas em vários países do Leste Europeu. Na Bulgária, foram descobertos laços inapropriados entre funcionários do governo e empresários agrícolas, que resultaram no pagamento de propinas para a liberação de recursos. Na Eslováquia, o jornal detectou uma “máfia agrícola” que controla todo o dinheiro enviado pela União Europeia. Não é exagero falar em máfia: pequenos agricultores relataram ter sido espancados para ceder a posse de suas terras e um jornalista foi assassinado depois de começar a investigar o caso. PLANT PROJECT Nº18

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G E S TA D O S U N I D O S

TUBARÃO NO PRATO

No final de outubro, o Serviço Nacional de Pesca Marinha dos Estados Unidos (NMFS, na sigla em inglês) tomou uma decisão inesperada. Em seu boletim informativo, o órgão responsável por proteger as populações de peixes na costa americana recomendou a carne de tubarão como uma fonte sustentável de proteína. Na prática, é como se o NMFS dissesse que as pessoas podem comer tubarão sem culpa. Como justificativa, a entidade disse que, embora a pesca excessiva tenha colocado em risco a sobrevivência de algumas espécies principalmente no Japão e nos países da Escandinávia, nos Estados Unidos a situação está sob controle. Os ambientalistas discordam. “Os tubarões se reproduzem muito lentamente”, disse à imprensa americana Marie Levine, fundadora do grupo de conservação do Shark Research Institute. “Não existe pesca sustentável de tubarões.” De todo modo, a recomendação do NMFS já provoca mudanças no cardápio dos restaurantes. Em Nova York, a carne de tubarão promete ser um dos hits do inverno.

R UA N DA

GORILAS E CHÁS PARA ATRAIR TURISTAS Nos últimos anos, Ruanda, no coração da África, se tornou um dos principais destinos turísticos do mundo para a observação de animais de grande porte. A maior atração do país são os últimos gorilasdas-montanhas restantes no planeta, que durante décadas foram implacavelmente perseguidos por caçadores. Agora protegidos como patrimônio nacional, os gorilas ganharam uma companhia improvável para a atração 10

de turistas: as plantações de chá. O solo vulcânico fértil e o clima temperado formaram a combinação perfeita para a produção de chá, considerado o melhor do mundo e exportado principalmente para os Estados Unidos e a Europa. Recentemente, o governo de

Ruanda teve uma ideia criativa: promover caminhadas no meio das lavouras. Como muitas delas ficam em pleno Parque Nacional dos Vulcões, ao lado das encostas selvagens, o passeio se tornou uma grande atração nacional, trazendo todos os anos milhares de turistas.


PERU

BALÕES LEVAM INTERNET PARA O CAMPO As zonas rurais peruanas estão entre as mais remotas do mundo. De um lado, a floresta amazônica, com seus rios e matas fechadas. De outro, cordilheiras geladas com 5 mil metros de altitude. Os obstáculos naturais tornam o acesso à internet quase impossível, e isso é um grande problema especialmente na nova era tecnológica. Lavouras

desconectadas perdem produtividade e deixam de ser competitivas. No Peru, a exclusão digital vem sendo combatida com uma inovação: balões movidos a energia solar fornecem internet móvel para regiões remotas. Criado pela Loon, subsidiária da Alphabet (holding que controla o Google), o sistema consiste de balões do tamanho de uma quadra de tênis

projetados para permanecer no ar por 150 dias. Do alto, eles enviam os sinais de internet para a população no solo. A iniciativa se concentrará na região de Loreto, que representa quase um terço do país e é o lar de povos indígenas. De acordo com dados de 2016, os mais recentes disponíveis, 80% das localidades peruanas não têm cobertura de internet.

CA N A DÁ

Doces de algas O químico canadense John Bordynuik sempre suspeitou de que doces vendidos como veganos não eram tão veganos assim. Ele

analisou o conteúdo de uma grande marca de balas e descobriu que o agente que tornava o produto macio e mastigável era gelatina derivada da pele de porco. Foi aí que teve a ideia de criar uma empresa que produzisse alimentos sem nenhum – nenhum mesmo – ingrediente de origem animal. Depois de três anos de pesquisas, que consumiram US$ 5 milhões em investimentos, ele inaugurou no início de dezembro a Sandstone Springs, focada em doces veganos e que usa algas no lugar de pele de porco para tornar seus itens tão macios quanto os dos concorrentes. A empresa fica em Ontário, no Canadá, nos arredores das estupendas Cataratas do Niágara, e já firmou contratos para exportar suas balas veganas para o mercado americano. PLANT PROJECT Nº18

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G E S TA D O S U N I D O S

A história oculta do Rio Mississippi O rio Mississippi é um patrimônio dos Estados Unidos. Seus 3,7 mil quilômetros de extensão cruzam dez estados americanos e, durante décadas, a maior parte da produção agrícola do país foi escoada graças às suas artérias sinuosas. Na cultura, o Mississippi é onipresente, tendo inspirado escritores como Mark Twain e Herman Melville e músicos como Johnny Cash e Robert Plant, do Led Zeppelin. Nos últimos 70 anos, a grande referência visual do Mississippi foram os mapas elaborados pelo cartógrafo Harold Fisk, que usou fotos aéreas e mapas locais para traçar o rio com detalhes impressionantes. Agora, a tecnologia permite dar um passo adiante. O também cartógrafo Daniel Coe, da agência de pesquisas científicas US Geological Survey, usou um sistema de lasers para fotografar, a partir de aeronaves, a estupenda topografia do Mississippi. As imagens hiperprecisas captam a beleza única do rio, mostram como ele se transformou ao longo dos anos e revelam o lado oculto do curso d’água mais importante dos Estados Unidos. Confira a seguir:

O rio cercado por fazendas de arroz em Moorhead, no estado do Mississippi

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O mapa criado pelo cartógrafo Harold Fisk em 1944 e as imagens atuais a laser de Daniel Coe. A comparação revela os efeitos da erosão ao longo dos anos, que fizeram com que o canal central do Mississippi se ampliasse

Visto de cima, o delta do Lago Wax, em Louisiana, lembra o formato de uma grande árvore

O rio cruzando New Orleans, templo musical dos Estados Unidos. Não à toa, o Mississippi é onipresente na cultura americana PLANT PROJECT Nº18

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G E S TA D O S U N I D O S

BETERRABAS QUE DESTROEM BACTÉRIAS Todos os anos, uma bactéria conhecida como Ehec deixa milhares de pessoas doentes no mundo inteiro. Quando chega ao intestino, ela provoca diarreia e vômitos e, nos casos agudos, pode levar à morte. No início de 2019, cientistas do departamento de medicina da Universidade do Texas, nos Estados Unidos, decidiram fazer uma experiência: eles mudaram a dieta de ratos portadores da bactéria. No lugar da ração típica, os camundongos doentes

passaram a ser alimentados com plantas, especialmente aquelas que contêm a fibra pectina, como beterraba e frutas cítricas. O resultado surpreendeu os pesquisadores. Eles descobriram que os ratos que comiam pectina tinham 10 mil bactérias Ehec no intestino, contra 1 milhão de bactérias nos

animais que mantiveram a dieta típica. Apenas uma semana depois do início da dieta, os sintomas desapareceram e até camundongos com o quadro mais grave sobreviveram. A ideia agora é levar o projeto adiante, usando humanos nas experiências.

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REINO UNIDO

PÃES FEITOS COM GRILOS Desde 1887, quando foi fundada, a rede de padarias britânica Roberts Bakery diz que sempre usou os “melhores ingredientes para produzir os melhores pães do Reino Unido”. Agora, a empresa traz uma inovação jamais testada em sua história secular: pães feitos de insetos. Chamados de “Crunchy Cricket Loaf”, eles foram lançados no início de dezembro e, segundo a Roberts, se tornaram um sucesso de vendas. Cada pão contém 336 grilos, que são secos, moídos, misturados com farinha de trigo e depois cozidos. “O resultado é um pão tremendamente saboroso, com um toque crocante que conquista o paladar”, afirmou Stuart Spencer-Calnan, diretor da padaria. “Além de ter credenciais ambientais muito fortes, os insetos são ótima fonte de proteínas.” Em um estudo recente, as Nações Unidas estimaram que pelo menos 2 bilhões de pessoas comem insetos – muitos deles fazem isso há gerações – e cerca de 1,9 mil espécies são usadas como alimento. 14


PLANT PROJECT Nยบ18

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G HUNGRIA

A MAIOR INCUBADORA DE AGTECHS DA EUROPA

Durante décadas, a produção agrícola na Hungria ficou marcada pelo uso excessivo de agrotóxicos que contaminaram o solo, envenenaram rios e dizimaram colônias de abelhas. Agora, o país da Europa central quer reverter o cenário sombrio usando tecnologia. A Câmara Nacional de Agricultura da Hungria e a Design Terminal, uma

das principais agências de inovação da Europa, lançaram o NAK TechLab, que tem a ambição de se tornar a maior incubadora de startups agrícolas do Velho Continente. No início, o programa de incubação irá contar com 13 agtechs, a maioria delas voltada a projetos sustentáveis. É o caso das empresas iniciantes Agrodat e Moly, que processam uma base gigantesca de dados para reduzir o uso de produtos químicos nas plantações. A ideia é que os projetos se desenvolvam rapidamente e possam ser replicados em larga escala nas lavouras da Hungria e de outros países europeus.

COLÔMBIA

GUERRA DAS BANANAS Uma doença mortífera está mobilizando um verdadeiro exército na Colômbia. Mais de 25 mil funcionários de 700 fazendas começaram a ser treinados para impedir a invasão de um fungo que murcha as bananeiras adultas, aniquilando seus frutos. A praga entra na planta pela raiz, sufocando-a ao bloquear o acesso a água e nutrientes. Ela é espalhada principalmente pelo calçado das pessoas, ferramentas e veículos que entram nas lavouras ou pelo escoamento 16

da água de irrigação que arrasta o fungo de um lugar para outro. Com a ajuda das Forças Armadas locais, o Ministério da Agricultura colombiano isolou as áreas infectadas e desenvolveu um protocolo para conter a propagação da praga. Ele

consiste em lavar e desinfectar os poucos veículos autorizados a ter acesso às plantações e mergulhar os sapatos dos agricultores em pequenas piscinas de higienização. O caso é sério. Todos os anos, a Colômbia exporta US$ 1 bilhão em bananas.


O futuro logo ali: As tendências do agronegócio para a próxima década

Ag AGRIBUSINESS

Empresas e líderes que fazem diferença

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Ag Empresas e líderes que fazem diferença

20 TENDÊNCIAS PARA OS ANOS 2020 18


AGRO TREND

Está cada vez mais difícil acompanhar a evolução do agronegócio. Robôs já invadiram as fazendas, as máquinas não precisam de pilotos, sensores fazem colheitas cada vez mais fartas de dados, alimentando softwares que monitoram milhões de hectares em todo o mundo. A década de 2010 abriu as porteiras para a chamada agricultura digital, uma nova era que mudará definitivamente a produção de alimentos e fibras e que continuará guiando as inovações em praticamente todas as cadeias do agronegócio. Um consumidor mais atento e exigente, com novos hábitos e ávido por informações sobre origem, insumos, processamento e distribuição dos itens que adquire, seja um litro de leite, seja uma peça de vestuário. Produtores, indústria e varejo correm para satisfazer essa demanda – e a tecnologia, mais uma vez, foi a resposta. Mas o que acontecerá no decênio que se inicia? Qual será a sua marca? A equipe da PLANT ouviu pesquisadores, empresários, executivos, investidores e, é claro, produtores para elaborar uma lista com as principais tendências (que aqui chamamos de Agrotrends) com poder transformador no agronegócio brasileiro e mundial. Agricultura e pecuária se manterão no roteiro da digitalização e, desse processo, surgirão novas possibilidades e desafios. Acompanhe nas próximas páginas (e também em algumas reportagens ao logo desta edição) um guia para transitar pelos próximos anos. Boa leitura.

P or A ndré S ollitto

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Foto: Divulgação Indigo

Agbiotech para mudar o mundo Um levantamento feito pelo fundo AgFunder, um dos mais importantes dedicados a agtech do mundo, mostrou os investimentos feitos no setor de inovação do agro em 2018. Dos US$ 17 milhões registrados, a maior parte foi para produtos voltados ao consumidor final, mas o relatório apontou um crescimento em aportes feitos em startups com soluções dentro da porteira. Nessa categoria, US$ 1,5 bilhão do total de US$ 7 bilhões foram destinados às chamadas agbiotechs, empresas que desenvolvem soluções biológicas para aumentar a produtividade agrícola. Muitas dessas empresas disponibilizam ferramentas de edição genética, como o CRISPR, cujo objetivo é oferecer sementes com maior resistência a climas e doenças específicos, ou com um valor nutricional maior. São apenas exemplos de uma tecnologia revolucionária que ainda está longe de ser aplicada em todo o seu potencial. Um dos exemplos mais representativos é o da Indigo, agtech mais valiosa do momento – e cujo sucesso despertou o interesse de investidores e empreendedores pela área. A empresa americana oferece hoje uma gama enorme de ferramentas aos produtores, de uma plataforma de frete a opções financeiras. Mas sua estrutura foi construída sobre soluções de tratamentos

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de semente, presentes nas principais culturas, do trigo à soja e ao algodão. O produtor só precisa escolher a semente, bem como o nível de germinação, o vigor e o tratamento químico. A Indigo entra com seus micronutrientes e entrega as sementes prontas para o plantio. Mas a Indigo não está sozinha. A também americana Benson Hill é outra agbiotech que usa a edição genética para otimizar a produção. Em 2019, fechou uma parceria com a Ambev para otimizar a produção de cevadas. O objetivo final é bastante modesto: tornar a produção de cerveja mais sustentável. Recentemente, inaugurou uma companhia de sementes para oferecer suas descobertas mais recentes em soja – o grão desenvolvido pela empresa tem maior densidade nutritiva e é mais saudável como alimentação para o rebanho. Além do Vale do Silício, outra região dos Estados Unidos tem se destacado na área de inovação biológica para o agro: o estado de Indiana. O governo estadual desenvolveu um plano de fomento para esse tipo de agtech, já que Indiana oferece três ingredientes muito importantes: é um dos dez maiores produtores agrícolas do país, possui um ambiente de inovação e pesquisa científica, e um crescimento acelerado em trabalhos na área de tecnologia. Não à toa, empresas maiores


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estão abrindo escritórios por lá, caso da brasileira Solinftec, e startups menores estão surgindo nesse ecossistema. Ainda existem debates sobre alimentos produzidos a partir da edição genética. Os efeitos a longo prazo ainda não são plenamente conhecidos. Além disso, a legislação varia de acordo com o

Ag

continente. Nos Estados Unidos os alimentos não são considerados transgênicos, já que não há adição de genes exteriores. A Europa, por outro lado, não vê o tema da mesma maneira. Mas essas questões devem se resolver nos próximos anos, à medida que o potencial e os benefícios da tecnologia forem comprovados.

O surgimento das ferramentas de gestão da fazenda e a digitalização dos processos representaram momentos de enorme evolução no campo. Por meio de monitoramento via satélite e sensores instalados no maquinário, tornou-se possível aplicar insumos de maneira mais precisa, sem desperdícios. O produtor passou a saber qual talhão precisava de maior atenção, onde era preciso aplicar mais defensivos ou cuidar da nutrição das plantas. Agora, estamos entrando em um novo estágio desse processo em que é possível agir de maneira individual em cada planta. Com o aprimoramento das soluções de monitoramento, agricultores e pecuaristas continuarão a produzir

Foto: Shutterstock

Produção em escala, cuidados individuais em escala, mas poderão tomar decisões cada vez mais pontuais. De maneira semelhante à medicina, o tratamento personalizado reduzirá os custos gastos com insumos, já que eles serão aplicados exatamente de acordo com a necessidade. O cultivo precisará de menos defensivos, e o resultado atende à demanda do consumidor por produtos mais saudáveis. A tendência também será observada na pecuária. Soluções desenvolvidas por startups já permitem que o criador saiba os detalhes de cada animal de seu rebanho: quais estão abaixo do peso, quais precisam de atenção médica e quais estão no momento certo de seguir para o abate. PLANT PROJECT Nº18

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Foto: Shutterstock

Há cerca de três anos, o conceito de proteínas alternativas e carnes à base de plantas não passava de uma curiosidade. Desde então, esse nicho tão pequeno do mercado cresceu com uma velocidade enorme. Cerca de US$ 16 bilhões foram investidos em startups do setor em um mercado estimado em US$ 888 milhões apenas nos Estados Unidos. Um relatório divulgado neste ano pelo banco Barclays estimava que até 10% do mercado de carnes poderia ser substituído por alternativas até 2029, mas hoje esses dados são considerados conservadores. A realidade pode ser ainda maior: 15% do mercado até 2025. E ele não dá sinais de que irá diminuir sua velocidade de crescimento. A Beyond Meat, principal foodtech americana do setor, lançou seu IPO em março e o sucesso foi enorme, muito maior do que o esperado. Desde então, ela registrou um 22

Até onde vão as proteínas alternativas? lucro de US$ 4,1 milhões no terceiro trimestre. Sua principal concorrente lá fora, a Impossible Foods, busca alcançar a marca de US$ 5 bilhões em avaliação após uma nova rodada de investimentos. A companhia americana lançou no início de 2020 a primeira versão “suína” de seus burgers alternativos, apontando uma outra tendência: Já começaram a pipocar também substitutos “plant based” para outras fontes de proteínas animais, como aves e pescados. Com essa demanda maior, as startups precisam lidar com a falta de insumos para a produção de seus alimentos. O que abre uma nova oportunidade no setor: grãos tradicionalmente ignorados passam a receber atenção renovada por conta de seu uso nas receitas. O governo canadense estabeleceu um plano de “dominação mundial” de insumos para proteínas alternativas, investindo US$

153 milhões em pesquisas e desenvolvimento das chamadas proteínas veganas. O aquecimento do mercado plant based tem movimentado também fundos de capital. O AgFunder, um dos mais tradicionais a focar exclusivamente em inovação no agro, criou o New Carnivore Alt Protein Fund, dedicado a investir em empresas early stage que façam parte do que eles chamam de “revolução das proteínas”. Mas eles não estão sozinhos. O Paine Schwartz, fundo de capital privado dedicado ao setor agrícola, levantou US$ 1,5 bilhão para seu quinto fundo, dedicado exclusivamente a essas alternativas. Além das carnes à base de plantas, outra revolução vem se desenhando. Por enquanto, longe dos olhos do público. Trata-se das carnes feitas em laboratório, desenvolvidas a partir do uso de células animais,


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mas sem o abate. O principal desafio dos pesquisadores é reproduzir o sabor e a textura da proteína original, e até agora eles obtiveram sucesso moderado em cortes específicos. Bifes já foram produzidos, mas outras peças ainda continuam distantes. O alto custo envolvido nessa produção também será repassado ao consumidor quando os produtos chegarem às prateleiras dos supermercados – algo que só deve acontecer no final de 2020 ou início de 2021. Há também um certo receio da população em provar uma “carne de laboratório”, algo que precisará ser trabalhado pelas startups que desenvolvem essa alternativa. E essas proteínas todas representam apenas uma pequena faceta da categoria do mercado que engloba todo tipo de alimentos inovadores. Aqui, entram diversos produtos, do leite feito de amêndoas e outros grãos, por exemplo, às kombuchas, os chás fermentados que podem ou não ser alcoólicos e lá fora já disputam com as cervejas artesanais o gosto do público. O Radar AgTech 2019, maior levantamento de agtechs e foodtechs já realizado, mostrou o tamanho desse setor. Do total de 1.125 empresas listadas, 224 dedicam-se ao desenvolvimento de alimentos inovadoras. É mais do que todas as startups que buscam soluções Dentro da Fazenda.

CLEBER SOARES

Em entrevista à PLANT, o diretor executivo de inovação da Embrapa, Cleber Soares, fala sobre os principais temas que exigirão a atenção do produtor nos próximos anos.

MUDANÇAS SOCIOECONÔMICAS NA AGRICULTURA

A agricultura será cada vez mais especializada e menos focada em monoculturas. Os produtores entenderam que é possível agregar valor por meio da diversificação. SUSTENTABILIDADE AGRÍCOLA

Não só pela cobrança do mundo, o produtor viu as vantagens de otimizar seu sistema e produzir muito mais a partir de práticas sustentáveis como a integração entre lavoura e pecuária. MUDANÇAS CLIMÁTICAS

Será preciso se preparar para os efeitos extremos das alterações no clima, principalmente por meio de variações genéticas mais resistentes.

Ag

RISCOS NA AGRICULTURA

Muito além do risco financeiro, será preciso levar em conta fatores como a dinâmica de emprego no campo, a chegada de novas tecnologias, a necessidade de pessoal qualificado para operar as inovações e os riscos de mercado. AGREGAÇÃO DE VALOR NAS CADEIAS PRODUTIVAS

Não bastam apenas recordes de produção: o grande desafio será encontrar maneiras de agregar valor aos produtos brasileiros, como café ou chocolate, que ainda não são reconhecidos mundialmente da mesma maneira que concorrentes italianos ou belgas, por exemplo. PROTAGONISMO DO CONSUMIDOR

O patrão é o cliente e dita o padrão que quer. O produtor será obrigado a correr atrás para atender a essas exigências. CONVERGÊNCIA TECNOLÓGICA

Em um futuro muito próximo, os setores serão avaliados pelo input tecnológico nos produtos. E o agro tem recebido uma afluência de tecnologias, da edição genômica à nanotecnologia.

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O Brasil possui um ecossistema de fintechs bastante evoluído. Empresas como Nubank, PagSeguro e Stone causaram uma verdadeira revolução no mercado de soluções financeiras – basta olhar para a lista de unicórnios brasileiros para ver vários desses nomes por lá. Agora, essa revolução começa a chegar ao campo. Com enorme potencial de mercado (apenas o Plano Safra, de recursos oficiais para o setor, supera R$ 225 bilhões), mas ainda concentrado, caro e ineficiente, o crédito agrícola é visto como a bola da vez na lista de segmentos a passarem por uma disrupção. As chamadas agfintechs (startups de base tecnológica voltadas para as finanças rurais) estão entre as mais promissoras para os próximos anos. As novas startups buscam oportunidades digitalizando processos do atual mercado ou resolvendo problemas que emperravam o desenvolvimento e o barateamento das linhas de financiamento ou de seguros rurais. Empresas como Agrotools, BovControl e Bart.Digital lideram essa corrida, oferecendo ferramentas que permitem, entre outras coisas, a utilização do monitoramento 24

Foto: Shutterstock

Uma década para as agfintechs em tempo real das lavouras através de dados colhidos por satélites ou sensores, o rastreamento de cadeias produtivas e a certificação de contratos por blockchain para suprir uma demanda de informação de bancos e seguradoras. A Bart, por exemplo, oferece soluções para facilitar as operações de barter – e já chegou a uma parceria com a Indigo, uma das agtechs mais valiosas do mundo. Bancos e seguradoras também têm buscado parcerias com as startups. Da mesma forma, as ferramentas de monitoramento estão reduzindo os riscos para quem deseja investir no campo, mas ainda tem receio. São soluções que dão transparência à produção e visam garantir que os recursos investidos estão sendo usados corretamente. Com isso, a tendência é a chegada de mais recursos, através de novos mecanismos de crédito e modalidades de seguros. À medida que a conectividade chega ao campo, acompanhada por tecnologias que mapeiam todo o processo, ficará mais claro como o agro é um bom negócio para os investidores e, com isso, mais opções financeiras estarão disponíveis ao produtor.


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Um setor com menos intermediários

O surgimento de marketplaces e o avanço das agfintechs, criando novos mecanismos eletrônicos de negociação entre produtores, financiadores e indústria, devem provocar transformações drásticas nas atividades de alguns dos principais atores do agronegócio. O avanço tecnológico do setor acendeu luzes de alerta, por exemplo, nas grandes tradings – como Cargill, ADM e Bunge, por exemplo, que controlam grande parte do mercado de commodities no mundo, atuando como intermediários entre mercados e ajudando a financiar a produção agrícola. “Elas não vão deixar de existir, mas tendem a mudar”, afirma Bernardo Fabiani, CTO da TerraMagna, agfintech que utiliza inteligência artificial e big data para mitigar riscos em operações de crédito rural. Segundo ele, novas opções para o crédito rural devem ter impacto nas relações entre tradings e agricultores, que ficarão menos dependentes das operações

com essas empresas para financiar suas lavouras. Isso vale também na ponta da venda da produção, graças à chegada de plataformas como o Orbia, parceria da Bayer com a empresa Bravium. Com o ambicioso objetivo de se tornar o marketplace mais popular do agro brasileiro, a Orbia vai funcionar a partir de três verticais: fidelidade, commodities e insumos, como um grande agregador de produtos. Produtores poderão fazer compras diretamente dos fornecedores e terão acesso a operações de barter. “Eles podem vender a safra, atual ou futura, gerando um contrato de barter e créditos, que por sua vez podem ser usados na compra de insumos”, disse Ivan Moreno, CEO da Orbia, no evento de lançamento, em outubro. Nesse cenário, as próprias tradings devem buscar nas tecnologias digitais novos modelos de operação para se manterem relevantes e competitivos. PLANT PROJECT Nº18

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Enquanto aqui no Brasil ainda se discute as condições da liberação da maconha para fins medicinais, nos Estados Unidos o mercado que se desenvolveu em torno da Cannabis já é enorme e pode crescer muito. Em 2018, uma nova legislação permitiu o uso do canabidiol, ou CBD, extrato natural da Cannabis sativa, em diversos produtos. Desde então, ele já é encontrado em remédios para dores, adesivos, cremes, óleos, vaporizadores… A lista é enorme. No início deste ano, a consultoria Brightfield Group, especializada em análise do mercado da Cannabis, divulgou um relatório em que estimava um faturamento de US$ 5,7 bilhões para a indústria em 2019. O valor pode chegar a US$ 22 bilhões em 2022. O problema é que os investidores ainda estão receosos de fazer aportes em empresas e startups do setor, principalmente por conta de nebulosas questões regulatórias. O CBD ainda não é liberado em alimentos e bebidas. Em 2018, o extrato foi liberado na composição de um medicamento para epilepsia, e uma vez que uma substância é aprovada para uso em remédios controlados a lei americana impede que ela seja utilizada em alimentos. A Food and Drug Administration (FDA), agência reguladora dos Estados Unidos, tem discutido o uso de derivados da maconha, mas uma legislação capaz de dar mais tranquilidade a empresários e investidores ainda pode levar anos para ser estabelecida. Por conta desse cenário, o mercado é atualmente considerado de alto risco pelas consultorias 26

americanas, mas com alto potencial de retorno. A área cinzenta em torno do que é permitido e do que ainda não está regulamentado é grande, e as empresas que se arriscam precisam ter muito cuidado com a maneira como divulgam e vendem seus produtos. Até agora, a FDA não retirou nada das prateleiras, mas a situação pode mudar. E não são apenas as startups interessadas em produzir alimentos e bebidas com CBD que precisam tomar cuidado. Outros problemas afetam a produção de maconha usada em medicamentos. A cidade de Denver, no Colorado, é considerada o epicentro do cultivo e da inovação relacionados à maconha. Mesmo assim, testes feitos pelo Departamento de Saúde Pública de Denver encontrou mofo em 80% das amostras. Esses dados são preocupantes, já que esses medicamentos são usados por pessoas com problemas imunológicos. Em 2016, o mercado sofreu um duro golpe quando um paciente com câncer morreu, na Califórnia, após usar um remédio contaminado com bactérias e fungos. Há um debate sobre a validade e a maneira como o produto é embalado - e muitos acreditam que ele precisa ser regulado de maneira bastante cuidadosa, como acontece com alimentos e bebidas. O mercado tem enorme potencial e de fato deve crescer muito nos próximos anos, mas ainda existem diversas questões legais e regulatórias que precisam ser resolvidas antes. Leia mais sobre o mercado de Cannabis no Brasil na reportagem desta edição da PLANT PROJECT

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Cannabis e o medo de uma viagem errada


Ag

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Cultivo high tech: a segunda geração das fazendas urbanas O ambiente das fazendas verticais que têm surgido nos últimos tempos parece saído diretamente de um filme de ficção científica. Hortaliças são cultivadas em torres com vários andares de altura, e toda a produção é banhada por uma iluminação rosa, resultante de luzes azuis e vermelhas que simulam o Sol. Da mesma maneira, prometem resolver alguns dos principais problemas da agricultura, como o uso intenso de recursos naturais e a falta de espaços cultiváveis. A atenção dada ao formato vem

aumentando. Prova disso é o interesse dos investidores. Entre 2015 e 2016 foram investidos US$ 60 milhões em startups de agricultura vertical. Entre 2017 e 2018, o número saltou para US$ 414 milhões. Em 2018, o mercado foi avaliado em US$ 2,3 bilhões. Embora a maior parte desses aportes esteja concentrada nos Estados Unidos e na Europa, o fenômeno é global. Um levantamento feito pelo hub de fomento agtech The Mixing Bowl, especializado em conectar grandes empresas e agtechs, aponta que já são mais de mil empresas trabalhando no PLANT PROJECT Nº18

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Ag Matéria de Capa

que chamam de “agricultura indoor”. Existem algumas delas em operação no Brasil. É o caso da Pink Farms, que neste ano recebeu um aporte de R$ 2 milhões e inaugurou um centro de produção em São Paulo na região da Ceagesp, maior centro atacadista de alimentos do País. A ideia de cultivar hortaliças em um ambiente controlado não é exatamente nova. Mas as soluções que vemos agora integram a segunda geração de fazendas verticais. A primeira é marcada pelo controle e monitoramento da irrigação, iluminação, nutrientes, pH, temperatura do ar, umidade e quantidade de CO2. A segunda geração de tecnologias consegue analisar e otimizar o processo de cultivo a partir de dados coletados. O resultado é um rendimento até 55 vezes maior do que uma fazenda tradicional. E a agricultura vertical é apenas uma vertente do cultivo urbano. As mesmas tecnologias podem ser aplicadas em menor escala em contêineres. A rede de lojas de móveis IKEA está testando o formato na Suécia, oferecendo hortaliças cultivadas localmente nos restaurantes de algumas de suas unidades. E existem as startups dedicadas à produção em coberturas de prédios. O caso mais emblemático é o da startup francesa Agripolis, que se prepara para inaugurar a maior fazenda em uma cobertura no mundo. Localizada no 15º arrondissement de Paris, ela terá um restaurante e um bar para 300 pessoas. Obviamente, diversos pratos e drinques servidos lá terão ingredientes locais. A abertura está prevista para 2020. No Sudeste Asiático, os governos de Singapura, da Malásia e das Filipinas têm incentivado a agricultura urbana de forma a contornar a falta de espaço cultivável nessas regiões. Mas é preciso ter cautela. Durante 28

os últimos anos, o pesquisador americano Caleb Harper cativou outros pesquisadores, maravilhou plateias e arrecadou investimentos com sua proposta de construir um "computador da comida", principal tecnologia da Open Agriculture Initiative (ou OpenAg), iniciativa do Media Lab do Massachussets Institute of Technology (MIT), um dos principais polos de inovação do mundo. A proposta era aparentemente simples: desenvolver caixas em que o cultivo de plantas pudesse ser feito sem o solo, em qualquer lugar do mundo. A tecnologia seria responsável por garantir o ambiente ideal, e as informações coletadas seriam usadas para otimizar o plantio. O problema é que os resíduos eliminados pelo sistema foram considerados impróprios por autoridades locais. Uma reportagem do jornal The New York Times mostrou que Harper deu declarações exageradas ou falsas sobre os resultados de seu projeto tanto para patrocinadores quanto para jornalistas e para o público de suas palestras. A consequência foi desastrosa. O MIT suspendeu as atividades de todo o departamento responsável pelo OpenAg, e ex-funcionários disseram que computadores da comida enviados a escolas não funcionavam. Outros contaram que fotografias do laboratório foram feitas com hortaliças compradas em mercados locais. Todo o setor de agricultura indoor sofreu um golpe, já que seus impactos ambientais e a sustentabilidade econômica desse modelo de negócios ainda não são totalmente conhecidos. A agricultura urbana e vertical ainda representa uma importante revolução, mas o caso do OpenAg mostra que a transparência é a chave para a longevidade do formato.


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O consumidor como protagonista Os motivos que levam um consumidor a colocar um produto em seu carrinho de supermercado não estão mais ligados apenas ao preço e ao sabor dos alimentos. Levar para casa um pacote de comida envolve uma série de decisões relacionadas a suas preferências, crenças e preocupações com o meio ambiente. Esse protagonismo foi uma das tendências identificadas pela Embrapa no estudo "Visão 2030: O Futuro da Agricultura Brasileira". Divulgado em 2018, ele lista áreas que sofrerão grandes mudanças ao longo dos próximos dez anos - e seu impacto terá um efeito em toda a cadeia de produção de alimentos. Hoje, é importante saber o teor de sódio e de açúcar de um alimento, bem como as condições em que os animais foram criados e quais são as ações que as empresas produtoras adotam

para garantir a sustentabilidade dos recursos naturais. É uma tendência associada principalmente às classes com maior poder de compra, mas o estudo da Embrapa indica que o preço deixou de ser o único fator determinante em toda a sociedade brasileira. Como exemplo, Cleber Oliveira Soares, diretor de Inovação e Tecnologia da Embrapa, cita o McDonald’s. Uma das maiores redes de fast-food do mundo, a empresa anunciou neste ano que todos os ovos usados em suas receitas serão provenientes de criações de galinhas livres até 2025. “O mercado do mundo inteiro vai ter que se adaptar. E tudo porque o consumidor exige”, afirma ele. Francisco Jardim, cofundador da SP Ventures, fundo de venture capital focado em agtechs e foodtechs, diz que o consumidor exige principalmente três coisas:

sustentabilidade, saudabilidade e bem-estar animal. São essas exigências que vão ditar inclusive onde aportes serão feitos e quais empresas e startups os receberão. Esse cenário pode parecer preocupante para as empresas. Afinal, há um ano ninguém falava em proteínas alternativas e carne à base de vegetais, mas hoje esse nicho de mercado se consolidou - é inclusive uma das tendências listadas em nossa reportagem - e fabricantes de alimentos tiveram que correr atrás da demanda de seus clientes. Mas abre uma gama enorme de oportunidades, especialmente para startups sejam elas capazes de oferecer soluções de rastreabilidade, usando tecnologias como blockchain para oferecer maior transparência, ou atender às demandas de dietas específicas por meio de planos alimentares personalizados. PLANT PROJECT Nº18

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RANVEER CHANDRA

A pedido da PLANT, o pesquisador-chefe da Microsoft Azure, criador da FarmBeats, plataforma da Microsoft voltada para o mercado agro, elencou cinco tendências para o setor na nova década. Confira:

AGRICULTURA BASEADA EM DADOS E TAMBÉM SOBRE NUVEM

O fato de que a nuvem permite ao produtor ter acesso ilimitado a armazenamento e serviços de computação a um preço baixo permite que essa tecnologia seja usada em fazendas grandes e pequenas. Hoje, na maior parte do tempo, tudo acontece à base de palpites. Com conectividade e acesso à nuvem, o produtor terá à sua disposição mais informações e poderá tomar decisões melhores. INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL

MUDANÇAS SOCIOECONÔMICAS NA AGRICULTURA CONECTIVIDADE

Mais fazendas estarão conectadas, e com conexão sem custos. Isso permitirá obter grandes quantidades de informações sobre cada fazenda, transformadas em insights para os produtores. Essa mudança será um combustível para a agricultura de precisão, por exemplo. Além de permitir a conexão de inúmeros dispositivos, permite que produtores e seus funcionários recebam mais informação sobre o que é preciso fazer na lavoura.

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Após ter acesso à conectividade e à nuvem, o fazendeiro terá também acesso a ferramentas de IA. Os dados capturados ajudarão a criar modelos e por meio deles será possível prever o que acontecerá no futuro. É o que fazemos com nossa ferramenta FarmBeats. Inteligência artificial dará maior efetividade, capacidade e visibilidade à agricultura, oferecendo aos produtores informação sobre o que é preciso mudar para produzir mais. Além disso, como existem muitos players na cadeia do agronegócio, a tecnologia de blockchain

também será muito útil, dando mais transparência e confiabilidade ao processo. CRISPR

A inovação em melhoramento de plantas (que já foi tema de capa da PLANT PROJECT) vai democratizar o tipo de semente que será usada nas fazendas. Imagine estabelecer um tipo de pesquisa biológica, de melhoramento de plantas e animais, com o objetivo de tornar o setor mais produtivo. Por exemplo, dependendo do tipo de solo de uma propriedade será possível mudar o genoma de uma semente para que ela seja mais efetiva. As aplicações dessa tecnologia não têm limites na agricultura, e acredito que ela será muito mais acessível no futuro. COMPUTAÇÃO QUÂNTICA

Essa tecnologia permitirá um aprofundamento maior nos métodos agrícolas. Com uma capacidade de computação enorme, será possível identificar variedades de sementes e simular processos da lavoura em um nível muito mais profundo, além dos problemas mais simples das fazendas.


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Ag

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Pulses: Vida nova para os antigos grãos

O termo pode até ser pouco comum, mas os grãos que hoje fazem parte da categoria dos pulses são consumidos há milhares de anos. Para ter uma ideia, as primeiras evidências de uso foram encontradas no Crescente Fértil, região do Oriente Médio em que as civilizações mais antigas se desenvolveram há 11 mil anos. A lista de pulses inclui feijões, lentilhas, favas, ervilhas, grãos-de-bico e outros, menores, que não se enquadram nessas categorias mais amplas. Oficialmente, são 11 tipos reconhecidos pela Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura. O termo é especificamente usado para variedades colhidas apenas como grãos secos, de forma a diferenciá-las de outras, que são colhidas ainda verdes. E por que eles voltaram agora à discussão? Principalmente por conta da demanda maior por proteínas alternativas,

outras das tendências listadas nesta reportagem. As carnes feitas à base de vegetais costumam levar grão-de-bico e ervilhas em sua composição, e a demanda por esse tipo de alimento tem crescido em uma velocidade impressionante. Produtores aptos a atendê-la têm muito a ganhar com esse mercado. Startups que se destacaram nesse setor, como as americanas Impossible Foods e Beyond Meat, já sofreram com a falta de insumos para a produção. Outras empresas maiores fecharam parcerias com fornecedores para garantir o suprimento. Por aqui, a Marfrig, responsável pelas carnes plant based usadas no Rebel Whopper do Burger King, fechou um contrato com a ADM, uma das maiores processadoras agrícolas do mundo. Leia mais sobre os pulses e esse mercado na reportagem desta edição da PLANT PROJECT. PLANT PROJECT Nº18

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Índia, a próxima fronteira 32

O Vale do Silício, nos Estados Unidos, ainda é o principal ecossistema de inovação do mundo e continuará a receber a maior quantidade de recursos por algum tempo. Mas fundos de investimento buscam outros mercados com grande potencial. Quando o assunto é inovação no agro, a Ásia – e mais especificamente a Índia – representa a próxima fronteira a ser desbravada. Um relatório feito pelo AgFunder, referência global em investimento agtech, divulgado em novembro, aponta que 57% dos 50 fundos de venture capital entrevistados estão empolgados com as possibilidades oferecidas na região – muito mais que outros centros agrícolas mais tradicionais. O que estariam os investidores enxergando em um país com um modelo


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fundiário baseado em milhões de pequenas propriedades que praticam agricultura de subsistência e que vive uma grande crise? A resposta talvez esteja nas oportunidades geradas por essa condição. Na Índia, uma nova leva de investidores prósperos (muitos oriundos do setor de tecnologia) está se dedicando a adquirir porções de terras dos agricultores e consolidá-las em propriedades maiores, que lhes permitirão trabalhar com mais escala e de forma tecnificada. De quebra, contratam os antigos donos como empregados. Com grandes porções de terras agricultáveis e um enorme contingente de trabalhadores – estimase que mais de 500 milhões de indianos vivam da agricultura – acreditam que poderão transformar o país, em um prazo razoavelmente curto, em uma nova potência agrícola. Questões geopolíticas auxiliam a vender essa ideia. A localização estratégica das lavouras indianas as coloca como potenciais fornecedoras para boa parte do gigantesco mercado asiático de alimentos. O continente é a maior fonte de demanda por proteína. Além disso, seus sistemas de produção e logística não têm a mesma infraestrutura encontrada em países desenvolvidos, o que significa que há muita oportunidade de causar um impacto significativo. Por fim, as agtechs podem ser muito relevantes para resolver problemas de qualidade do solo e da água na Ásia. Outras vantagens indicadas pelos investidores incluem o reconhecimento do inglês como idioma oficial na Índia, e o mercado de capitais fortemente estabelecido no país. Nesse ambiente, a Índia representa um mercado com enorme potencial. Atualmente, tem 1,3 bilhão de habitantes, mas até 2024 deve ultrapassar a China

Ag

e liderar o ranking de população. São muitas bocas para alimentar – e a cadeia de produção de alimentos é especialmente problemática no país. Outro relatório realizado pelo AgFunder, publicado em dezembro de 2018, investigou o ecossistema de inovação agfoodtech indiano. Entre 2013 e 2017, foram investidos US$ 1,66 bilhão, uma quantia pequena se comparada aos US$ 10 bilhões que foram captados pelas startups globalmente apenas em 2017, mas o valor de cada aporte é menor, reflexo dos custos reduzidos para manter um negócio no país. No período indicado pela pesquisa, muitos empreendedores indianos têm focado seus esforços na busca por soluções para atender à crescente classe média, que saltou de 24 milhões de pessoas, ou 11% da população, em 2005, para 57 milhões, ou 21%, em 2016. A ascensão social veio acompanhada por uma mudança nos hábitos de consumo: eles buscam mais qualidade e comodidade em todas as etapas da cadeia. Com isso, houve uma proliferação de serviços de delivery e marketplaces online. Não à toa, a Swiggy, líder entre os marketplaces de restaurantes, captou US$ 1 bilhão em uma rodada de investimentos em 2018 e passou a ser avaliada em US$ 3,3 bilhões. O perfil de startups que despertam o interesse dos investidores também diz muito sobre o perfil de cada ecossistema. Nos Estados Unidos e na Europa, por exemplo, o foco é em agbiotech – outra das tendências apontadas por nossa reportagem. Na Ásia, de maneira geral, o interesse é em softwares de gestão da fazenda, soluções de agricultura digital, marketplaces on-line de insumos agrícolas e serviços de delivery. PLANT PROJECT Nº18

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Pecuária 4.0 vai digitalizar os rebanhos Os anos 2010 marcaram o início da era digital na agricultura. As ferramentas de base tecnológica começaram a mudar a forma com que os agricultores tomam decisões, entregando a eles muito mais informações em tempo real e permitindo que eles sejam mais assertivos. Na pecuária, a transformação da gestão está alguns passos atrás, mas a década de 2020 se inicia apontando para a digitalização da atividade. Se hoje a maior parte das agtechs em atividade desenvolve soluções para lavouras, muitas startups com foco no pecuarista já chamam a atenção do mercado. Com um dos maiores rebanhos comerciais do mundo, o Brasil deve despontar como o grande campo de testes para novas tecnologias – e, por que não, o berçário de empresas com potencial de liderar a chamada Pecuária 4.0. Um passo importante foi a inauguração do Animals Hub, em Piracicaba (SP). Uma iniciativa

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da startup @Tech, o espaço foi planejado para que empresas com pensamento semelhante criem suas soluções em um ambiente de inovação aberta. Muitas das ferramentas disponíveis hoje para o produtor oferecem dados para que ele saiba qual o melhor momento de agir. Existe até um termo, Pecuária de Decisão, que vem sendo usado de forma complementar ao já conhecido Pecuária de Precisão. Indica um embasamento maior do pecuarista, que depende menos apenas de seu instinto e experiência, em temas como manejo, nutrição e saúde animal. O impacto no aumento da produtividade e lucratividade já é sentido. Outro ponto fundamental para o setor é o da rastreabilidade dos rebanhos, o que tem aberto oportunidades para a utilização de tecnologias como blockchain. Empresas como a Nestlé, por exemplo, já executam programas piloto para acompanhar cada etapa do trabalho de seus fornecedores,


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oferecer informações que permitam a eles incrementarem sua produção e garantir aos consumidores a procedência da matériaprima usada em seus alimentos. No Brasil, esse trabalho é feito em parceria com a startup BovControl, uma das pioneiras na Pecuária 4.0 por aqui. Startups mais jovens também têm olhado para outros gargalos da produção,

Ag

do transporte do leite na temperatura adequada a doenças graves que afetam o rebanho. No desafio Ideas for Milk, por exemplo, a agtech vencedora foi a Volutech, responsável por uma ferramenta de medição do volume de leite em tanques. São soluções que estão chegando ao mercado agora e devem fazer barulho nos próximos anos.

Agricultura regenerativa não é um conceito novo. O termo é usado para práticas sustentáveis adotadas por produtores para recuperar e melhorar a qualidade do solo e contribuir para o sequestro de carbono há vários anos, mas 2019 foi o ano em que essas práticas passaram a ser adotadas em larga escala e vistas também por grandes grupos como uma das principais tendências de manejo agropecuário para os próximos anos. O lançamento de iniciativas importantes, apoiadas por alguns dos principais players do setor, reforçam essa percepção. A agtech americana Indigo, a mais valiosa e disruptiva do momento, está promovendo o Terraton Challenge, cujo objetivo é sequestrar 1 trilhão de toneladas de carbono por meio de práticas de agricultura regenerativa. A Danone, em parceria com a Yara, Corteva e outros, lançou um programa com foco na pecuária de leite, que associa técnicas de manejo

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Agricultura regenerativa tradicionais, como a rotação de pastagens, a novas tecnologias. Outras empresas, como General Mills e Anheuser Busch, também se manifestaram sobre o tema. Os investidores, da mesma forma, estão atentos a essas práticas sustentáveis. Em julho, o relatório Soil Wealth analisou os investimentos feitos em projetos relacionados à agricultura regenerativa e os números são bastante altos: de acordo com o site AgFunder News, foram 70 negociações que somam US$ 47,5 bilhões apenas nos Estados Unidos. Os benefícios da adoção de processos mais sustentáveis são inúmeros. Os cuidados com o solo melhoram a performance das lavouras, e o sequestro de carbono, por exemplo, ajuda na preservação do nosso planeta, algo que não beneficia apenas um ou outro produtor. Nos próximos anos, veremos mais iniciativas como essas que surgiram em 2019, e os efeitos serão vistos por todos. PLANT PROJECT Nº18

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Com um mercado avaliado em US$ 13,3 bilhões, o setor de aquicultura é importante e promissor - e frequentemente ignorado na maioria das discussões sobre proteína animal. Até 2030, especialistas acreditam que 62% de todos os peixes consumidos serão provenientes de sistemas de aquicultura, e ainda assim é muito mais comum ouvir debates sobre gado, frango, e agora sobre as proteínas animais à base de plantas ou desenvolvidas em laboratório. O setor é bastante fragmentado e a diferença tecnológica entre os mercados é enorme. A produção de salmão na Noruega, por exemplo, é muito avançada, enquanto a pesca de camarões no Vietnã é mais rudimentar. É nesse cenário de enorme potencial que algumas agtechs estão conquistando a confiança de produtores e despertando a atenção dos investidores. No Brasil, a criação de pescados é uma das atividades que mais crescem no agro, com adoção cada vez maior de tecnologia. Existem várias empresas brasileiras que estão 36

de olho no setor. A TatilFish é uma delas. As ferramentas desenvolvidas pela empresa de Londrina incluem o monitoramento da concentração de oxigênio dos tanques, automatizando o funcionamento dos aeradores, e o cálculo da quantidade de ração que deve ser oferecida nos alimentadores de acordo com a temperatura da água. A Embrapa resolveu fomentar a inovação no setor e lançou o Hackathon Inove Aqua, cujo objetivo será encontrar soluções para grandes problemas do setor. Com foco no público universitário, o evento acontecerá em maio, em Tocantins. Um dos destaques entre as agtechs estrangeiras é a canadense XpertSea, que usa ferramentas semelhantes àquelas adotadas por produtores rurais. A solução conta com um dispositivo que capta informações dos tanques de aquicultura e uma plataforma em que esses dados são analisados. A partir deles é possível tomar decisões para otimizar a produção e aumentar os lucros. Assim como em outros setores

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As proteínas que vêm da água do agronegócio, algumas das startups que estão despertando a atenção dos investidores lidam com pequenas dores dos produtores. A israelense BioFishency desenvolveu uma tecnologia de filtragem da água dos tanques - e recebeu US$ 2,4 milhões em uma rodada de investimentos. Já a norueguesa Molofeed criou uma ração de alta qualidade para camarões que facilita a digestão dos animais. São apenas dois cases que mostram a diversidade de um setor ainda pouco digitalizado. O setor já tem até fundos de investimento de olho em startups com soluções para a aquicultura. É o caso do holandês Aqua Spark, que busca empresas pequenas e médias que apresentem um modelo de negócios que leve em conta a sustentabilidade econômica, ambiental e social. Eles têm inclusive uma agtech brasileira, a Fisher Piscicultura, em seu portfólio. A empresa mineira foi fundada em 2011 e oferece, entre outros serviços, tanquesrede de grande volume, voltados para o ganho de escala e melhor desempenho no cultivo.


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Ag

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A tecnologia promove o bem-estar animal O poder exercido pelos consumidores é uma das tendências apontadas pela nossa reportagem - e ele tem feito com que diversos setores do agronegócio adotem novas práticas. É o caso da pecuária, que passou a olhar com mais atenção para o bem-estar dos animais por conta dessa crescente demanda do público, que cada vez mais busca informações sobre cada etapa da produção dos alimentos que consome. Na última década, inúmeras mudanças foram registradas - e a tecnologia e as startups tiveram (e devem continuar tendo) papel determinante para que toda a indústria de proteína animal passe a oferecer melhores condições de manejo aos seus rebanhos. É o que afirma a americana Temple Grandin, pesquisadora da Universidade de Colorado e uma das principais especialistas

em bem-estar animal do mundo, em um artigo escrito para a revista Forbes. Grandin cita o monitoramento por meio de câmeras instaladas em abatedouros, responsáveis por evitar o sofrimento desnecessário. Da mesma maneira, outras tecnologias capazes de identificar se um animal está andando de forma estranha, indicando dor, ou se ele foi ferido em uma briga, aumentam a transparência sobre as condições em que eles são criados. A legislação também tem mudado. Nos Estados Unidos, por exemplo, formas extremas de confinamento foram abolidas. Além disso, grandes empresas passaram a fazer propaganda de suas boas práticas. É o caso do McDonald’s, que implementou auditorias em abatedouros. Recentemente, anunciou que só usará ovos de galinhas criadas livres de gaiolas até 2025. PLANT PROJECT Nº18

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MAURÍCIO ANTÔNIO LOPES

Ex-presidente da Embrapa e um dos maiores estudiosos das tendências do agronegócio em todo o mundo, o pesquisador indicou os principais movimentos que vão guiar a produção de alimentos nos anos 2020.

PRECISÃO E SUSTENTABILIDADE Na próxima década veremos o fortalecimento do conceito de “manejo sítio-específico” nas fazendas, que é outro termo para caracterizar “agricultura de precisão”. Nas suas versões mais avançadas, envolverá o uso de algoritmos que analisam o estado geral das lavouras, as condições locais do solo e do clima para ajudar o agricultor, por exemplo, a definir a quantidade e o momento das aplicações de insumos, que são realizadas com grande precisão – usando equipamentos guiados por satélite - operando com grande exatidão através de sensores e atuadores que permitem aplicação de quantidades corretas nos locais e momentos adequados. A implementação de práticas de manejo sítio específico nas fazendas irá provocar uma revolução na agricultura, por algumas razões óbvias: a) praticamente todas as áreas 38

agrícolas têm variabilidade espacial significativa em fatores que afetam o rendimento das lavouras, como fertilidade, umidade, dispersão de pragas, etc.; b) hoje dispomos de conhecimentos e instrumentos para identificar e medir múltiplas fontes de variabilidade; e c) com esse conhecimento podemos usar ferramentas da tecnologia da informação e da comunicação, associadas a automação avançada, para modificar as práticas de manejo de forma a aumentar eficiência, reduzir impactos e tornar a agricultura mais sustentável, em resposta às expectativas da sociedade. NUTRIÇÃO PERSONALIZADA Avanços recentes em genômica, combinados à possibilidade de se gerar e analisar grandes conjuntos de dados usando algoritmos avançados e inteligência artificial, já mostram que é biológica e fisiologicamente impossível desenvolver um conceito de dieta universal. Ou seja, é pouco provável que determinada composição alimentar responda à nossa enorme heterogeneidade genética, metabólica e nutricional. É por isso que as dietas no futuro provavelmente tenderão a ser individualizadas. Muito embora seja difícil antecipar todas as consequências práticas que tais conhecimentos poderão gerar no futuro, é importante monitorar os avanços cada vez mais rápidos no campo da nutrição personalizada de precisão e suas possíveis consequências sobre a agricultura e o sistema alimentar.

BIOMASSA E A BIOECONOMIA CHEGANDO ÀS FAZENDAS Quando se avalia a monumental produção de biomassa em áreas agrícolas no cinturão tropical do globo e todos os problemas gerados anualmente pela queima intencional ou acidental de parte dessa biomassa, é impossível não considerar a emergência de alternativas de manejo sustentável desse recurso no futuro. Por isso não parece absurdo antecipar as fazendas do futuro com suas plantas de pirólise de biomassa para produção de biocarvão ou até mesmo o surgimento de biorefinarias capazes de aproveitar todo o potencial econômico da biomassa, com rotas de conversão capazes de transformá-la numa espécie de petróleo bruto, do qual possam ser destilados produtos líquidos, como bio-óleo, para produção de químicos industriais; produtos gasosos, como o bio-gás, como fonte energética; e produtos sólidos, como o biocarvão, a ser aplicado aos solos. INSETOS NA DIETA HUMANA Os insetos estão entre os organismos mais disseminados e abundantes no planeta, com cerca de 30 milhões de espécies, que juntas acumulam o maior volume de biomassa dentre todos os seres vivos. Estima-se haver mais de 200 milhões de insetos para cada ser humano, o que significa 140 quilos de insetos para cada quilo que cada um de nós acumula. Os insetos estão por aqui há cerca de 400 milhões de anos, o que lhes deu capacidade adaptativa extraordinária, além de habilidade de converter as mais variadas fontes de


Matéria de Capa alimentos em proteína de alta qualidade, o que pode dar aos insetos um papel de destaque na composição das dietas humanas e de rações animais no futuro. Aproximadamente 2 bilhões de pessoas em 130 países já comem insetos regularmente e a FAO vem promovendo e estimulando a ampliação do seu uso como forma de prover proteínas, vitaminas e aminoácidos de alta qualidade para reforço das dietas humanas. Além do uso direto na alimentação humana, outra grande promessa é o uso de insetos devoradores de lixo e resíduos para produção de adubos orgânicos e rações animais. AGRICULTURA URBANA, OU O AGRO GANHANDO ESPAÇO NAS CIDADES O quadro de urbanização acelerada e frequentemente desordenada está causando toda sorte de problemas ao redor do globo. Até 2030 estima-se que o mundo terá 43 megacidades com população superior a 10 milhões de pessoas, a maioria em regiões que não conseguirão criar oportunidades de emprego suficientes, em especial para a população mais pobre. Inevitável também é o crescimento dos problemas relacionados a moradia, transporte, lixo e esgotos, qualidade do ar, dentre muitos outros. É frente a este quadro de perplexidade com os múltiplos problemas gerados pelo crescimento desordenado das cidades que o tema agricultura urbana e peri-urbana ganha força, como estratégia complementar para redução da insegurança alimentar e da pobreza, e para melhoria da gestão ambiental urbana. Para

se tornarem sustentáveis e resilientes as cidades precisarão ser socialmente inclusivas, produtivas e ambientalmente saudáveis. E como atividade essencialmente multifuncional, a agricultura pode contribuir enormemente para a superação de muitos dos problemas gerados pela urbanização, nas dimensões econômica, social e ambiental. A MIMETIZAÇÃO DA PROTEÍNA ANIMAL Dentre as tendências de mudança no padrão alimentar da sociedade, uma surge com força e ganha grande espaço entre os jovens e a população mais afluente. Trata-se da rejeição aos produtos de origem animal – em especial à carne. Comportamento usualmente justificado pelo impacto negativo dos sistemas de produção animal sobre o meio ambiente – com produção de gases de efeito estufa e outros poluentes, consumo excessivo de água, etc. E também por questões humanitárias, relacionadas ao bem-estar animal, em especial na produção em escala industrial. Em resposta a esse movimento irá crescer a influência de modelos de negócios é baseados na mimetização da carne, usando componentes exclusivamente derivados de vegetais. Estas “carnes” vegetais são produzidas com proteínas de grãos, batata, óleos vegetais, condimentos, aromas, etc., e usualmente servidas como hambúrgueres. Este é um negócio em franco crescimento e já surgem empresas se aventurando a produzir similares de peixe, frango, ovos e até de laticínios, como o leite, sem qualquer componente animal.

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AS LEGUMINOSAS GANHAM MAIS IMPORTÂNCIA E EVIDÊNCIA As leguminosas de grãos tradicionalmente utilizadas como alimentos, como a soja, os feijões, o grão-de-bico, a lentilha, a ervilha, o amendoim, dentre muitas outras, tendem a se tornar cada vez mais essenciais para a humanidade. Elas serão cada vez mais importantes no enfrentamento de desafios globais, com destaque para o alcance da segurança alimentar e nutricional de uma população em rápido crescimento; para a luta contra as emissões de gases de efeito estufa, que impactam as mudanças climáticas; e para o atendimento à crescente demanda por energia limpa, de baixo impacto para o meio ambiente. Há expectativas de que uma gama diversificada de leguminosas alimentares ganhe espaço em resposta ao crescimento populacional e às mudanças demográficas previstas para as próximas décadas. Devido à sua capacidade de estabelecer simbiose com organismos fixadores de nitrogênio, as leguminosas são excelentes provedoras, a baixíssimo custo, desse nutriente essencial aos agroecossistemas, melhorando a produtividade das lavouras, o uso da água e de nutrientes caros e finitos, como o fósforo. E as leguminosas são componentes centrais no processo de intensificação sustentável dos sistemas produtivos, viabilizando consórcios e a integração de lavouras, pecuária e florestas, com uso mais intensivo e eficiente da terra, o que reduz as pressões da agropecuária sobre os recursos naturais, em especial as florestas nativas e os recursos hídricos.

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Foto: Divulgação

Com Maurício Palma Nogueira

MAURÍCIO PALMA NOGUEIRA 46 ANOS, SEPARADO, DOIS FILHOS SÓCIO-DIRETOR DA CONSULTORIA ATHENAGRO FORMADO EM AGRONOMIA PELA ESALQ/ USP (BIG-BEM – F97), É COORDENADOR DO RALLY DA PECUÁRIA, EXPEDIÇÃO TÉCNICA PRIVADA QUE PERCORRE AS PRINCIPAIS REGIÕES PRODUTORAS DO PAÍS

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planejamento das comemorações do final de 2019, seja para a ceia de Natal, seja para o churrasco de Réveillon, foi atropelado pelas mudanças de preço dos cortes bovinos nas casas de carnes e supermercados. Em algumas lojas, o corte de contrafilé que saía por R$ 29,90 chegou, da noite para o dia, a R$ 44,90, um aumento de 50%. Se do lado do consumidor os possíveis quilos de picanha e fraldinha viraram toneladas de memes e piadinhas nos grupos de WhatsApp, no campo o sentimento era de euforia. Em 25 de outubro, a arroba do boi chegou a R$ 230 no mercado paulista, a maior cotação da história da pecuária nacional. A alta foi motivada pelo apetite dos chineses, que passaram a buscar mais opções de carnes no mercado global enquanto tentam frear as perdas causadas


“Há um processo de digitalização na pecuária que o produtor precisa acompanhar. Entraremos em um ritmo de disrupção como vemos em outros segmentos, a exemplo da logística”

pela peste suína africana em seu rebanho suíno. O momento é oportuno para a cadeia pecuária brasileira, que teve mais plantas habilitadas a exportar para a China, e pode ganhar ainda mais espaço. Para o esalqueano Maurício Palma Nogueira, sócio-diretor da consultoria Athenagro, o cenário positivo para o setor tende a continuar em 2020 e pode ir além, sustentado por diversos fatores. Mas, como se diz na pecuária, boi que chega primeiro bebe água limpa. Ou seja, quem já estava mais bem preparado para atender a essa nova demanda de mercado, com desenvolvimento tecnológico e de gestão e capacidade de entregar ao mercado o animal adequado no tempo certo, é que tem as melhores condições de aprovei-

tar. Maurício tem uma relação muito próxima com a cadeia produtiva da pecuária, tanto com o mercado quanto com o produtor. Ele é coordenador do Rally da Pecuária, a maior expedição técnica privada dedicada a difundir conhecimento e debater tendências e desafios. Para se ter ideia, na edição de 2019 o Rally rodou quase 50 mil quilômetros, dividido em sete equipes, para visitar 310 fazendas, distribuídas por dez estados, nas principais regiões produtoras do País. É com base nessa experiência e nos vários anos de consultoria que Maurício conversou com a PLANT PROJECT sobre essa disparada no mercado da carne. Acompanhe. O que houve com o mercado da carne bovina? Tivemos uma redução nas exportações de setembro e em outubro a China entrou em um processo de habilitação de várias plantas aqui no Brasil. Isso criou um estresse muito grande nas indústrias. Muita gente achou que não ia conseguir se habilitar e de repente conseguiu. Esse pessoal teve de sair correndo atrás de um boi específico que atendesse às exigências dos chineses, que, embora não cobrem tanto por qualidade, querem um animal abatido por volta dos 30 meses, e pagou o que tivesse de pagar para tê-lo. Criou-se então um movimento de expectativa dos produtores, tanto que teve gente tirando o boi de escala, pois havia sido negociado a preços menores. Foram diversos fatores associados que jogaram o mercado para cima. Em tese, a alta para

este ano já era prevista, e uma alta forte, mas o movimento superou, e muito, até as previsões mais otimistas. E o que pode acontecer agora com as exportações? Quando a gente analisa os fundamentos, o que tem de informação, tanto de volumes exportados quanto de abate, está na mesma. Não teve um aumento além desse pontual em outubro. O mercado pode ficar desse jeito caso tenhamos nos próximos meses a China e outros compradores puxando volumes crescentes de boi, de carne, para esses locais. Caso isso aconteça, temos de lembrar do mercado interno, que não aguenta preços de carne tão elevados, e é provável que tenhamos preços diferenciados. O caminho da exportação é esse até o mercado se regularizar, mas o cenário mais provável é que a gente volte para um patamar dentro da expectativa de alta que já existia. Ou seja, confirmando esse cenário, o preço do boi cairia para um patamar mais alto do que se esperava antes disso tudo acontecer, então já mudou a referência. Quando o mercado chinês vai se regularizar? É muito difícil prever. Em maio a gente havia projetado que 20% dos suínos na China estariam infectados e seriam abatidos. Esse dado foi confirmado por uma consultoria que está conseguindo levantar os números por lá. Só que o problema não parou, então cerca de 50% do rebanho suíno chinês deve estar PLANT PROJECT Nº18

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Com Maurício Palma Nogueira

comprometido. Não dá para entender exatamente o que está acontecendo, pois do mesmo jeito que erraram achando que o consumo de alimentos ia cair muito, porque os suínos foram abatidos, existia a possibilidade de que grande parte desses suínos fosse criada com lavagem e não com grãos, pois há muitos pequenos produtores na China. Da mesma forma que não houve um impacto tão grande no mercado de grãos, é possível que a recuperação da suinocultura chinesa seja mais rápida do que a gente está prevendo. Mas não antes de dois ou três anos. Essa demanda mais forte pode vir também de outros países? Sem dúvida. A Rússia mesmo está voltando a comprar do Brasil, e há outros países melhorando. Inclusive na Ásia, pois o problema da China não afeta só o mercado chinês. Estamos negociando a abertura de mercado em lugares onde nunca tivemos acesso. Há ainda um cenário mais restritivo nos próximos anos para o aumento de exportação de carne de outros países, como Austrália e Estados Unidos, que poderiam aumentar, mas não vão. Alguns até vão reduzir, enquanto o Brasil vai nadando de braçada. Se pegar 2019 como exemplo, nossa projeção é de que o mundo todo junto, fora o Brasil, aumente a exportação de carne em 150 mil toneladas. Já o Brasil sozinho vai aumentar no mínimo 450 mil toneladas, três vezes mais que o mundo todo. No entanto, se a China puxar de fato uma proporção maior do 42

“Um grande problema da pecuária brasileira é a quantidade de gente que não se movimenta. Então, em termos de população, de números de produtores, a maioria não tem noção do que está acontecendo e para onde ir, e a tendência é de que acabe sendo excluída”

que estamos esperando, talvez tenhamos de rever tudo o que estou falando aqui, embora o impacto não seja para 2019. Mas para 2020 vai impactar bastante e aí, sim, jogamos o mercado para cima e provavelmente vamos ter uma redução no consumo interno pelo preço. Quais são os desafios para que o produtor aproveite esse momento e até intensifique os investimentos na atividade? Ele está preparado? O produtor está atento, respondendo, mas é uma parcela pequena. De forma proporcional, pouco mais de 10% dos pecuaristas movimentam cerca de 70% desse mercado. E não estou falando de tamanho, mas de agilidade, pois até dentro do público do Rally da Pecuária as fazendas mais produtivas, na média, são as menores. Um grande problema da pecuária brasileira é a quantidade de gente que não se movimenta. Então, em termos de população, de números de

produtores, a maioria não tem noção do que está acontecendo e para onde ir, e a tendência é de que acabe sendo excluída. Em relação ao rebanho, a maioria dos animais e das vendas está na mão de quem sabe o que está fazendo. Então a pecuária brasileira está em um momento muito bom e vai responder, mas o pecuarista, não. Há uma quantidade de gente sendo excluída do campo e a gente não sabe o que fazer. Isso é um grande problema de ordem social que precisa ser solucionado. E quanto ao movimento da entrada e aplicação de tecnologia? Isso não muda. A resposta da pecuária, e isso não começou agora, é tecnológica. Agora será da mesma forma, a pecuária vai responder com tecnologia, genética, nutrição, pasto, isso tudo. Até 2008, mais ou menos, havia um estoque grande de animais, com gado mais erado, quase sempre pronto. Bastaria dar um estímulo, um acabamento, para que en-


trassem no mercado e ajustassem o preço. Hoje não há esse estoque, depende de produtividade, e aí, sim, tem o preço de mercado que vai dizer se o produtor está ou não estimulado para produzir. Em resumo, a cotação tende a se ajustar ao que os mais competitivos aguentam. A pecuária é muito dinâmica, vai responder, já está começando a testar a internet das coisas dentro das fazendas, que ainda não está dando muita vazão porque o pecuarista não tem um modelo de gestão que consegue transmitir aquilo com precisão. Há um processo de digitalização na pecuária que o produtor precisa acompanhar e, no momento em que essa ponte for construída, a velocidade será ainda maior. Entraremos em um ritmo de disrupção como vemos em outros segmentos, a exemplo da logística. Como é o entendimento dos grupos que representam o setor para levar informação correta ao mercado global? A gente é muito ruim de comunicação e quem vem de fora acaba comprando a ideia daqueles que se comunicam bem. Se você pegar aquele caso do Fábio Porchat, é um absurdo o que foi falado sobre o agronegócio. Deveria haver alguma consequência, pagar uma multa ou o programa sair do ar, porque ele enganou o público, aquilo foi uma mentira. Quando vem o pessoal de fora, a gente não consegue acessar. E, se consegue, apanha, leva porrada de todo lado. Estive recentemente com o Roberto Rodrigues, em Goiânia, e

RALLY DA PECUÁRIA 2019 7 equipes 310 fazendas visitadas 47,9 mil km cobertos 10 estados 1.560 produtores e profissionais nos eventos 8 eventos regionais 28 oficinas e 1 webinar Fonte: Rally da Pecuária

ele comentou sobre essa dificuldade. Ele fala disso há anos, inclusive tentou fazer um belo projeto, que era o SouAgro, mas não consegue dinheiro para manter. O setor não tem ou não quer colocar esse dinheiro em comunicação? Tem muita coisa em jogo. Na época em que o Rodrigues estava conseguindo captar recursos para o SouAgro, teve de competir com gente do próprio setor que, por vaidade, decidiu fazer algo semelhante. E aí surge uma situação delicada, pois alguém da agroindústria, por exemplo, com interesse em contribuir, pode desistir se tiver de escolher uma ou outra iniciativa para não criar inimizade. Esse é um dos problemas, mas há outros, como o fato de sermos bons falando para nós mesmos, mas não para fora do setor. Qual a importância do trabalho de vocês em um momento como esse, de muita especulação? A informação é tudo, e hoje o produtor tem acesso gratuito à informação, seja via órgãos que entregam de graça, seja via empresas que têm o interesse de

que o produtor se posicione melhor, tanto o frigorífico quanto as empresas de insumo. Isso está disponível e ele tem de usar, e a importância é a gente posicionar o cara da leitura de mercado que estamos fazendo, não que necessariamente isso esteja certo ou errado. Então a importância do trabalho que a gente faz, do serviço que prestamos, é ajudar o produtor a se posicionar estrategicamente, sem ilusão. A gente não oferece receita pronta. É do ser humano querer a resposta pronta, não? É o imediatismo. Tivemos um caso muito triste este ano, de uma propriedade grande que acompanhávamos há algum tempo, em que os proprietários receberam orientação de dois caras do setor financeiro dizendo para venderem os bois e terem dinheiro na conta. Como o período de nossa consultoria iria acabar, avisei que não era hora de vender o gado, e isso tudo está documentado, pois o preço do boi iria subir. Venderam metade do rebanho dessa fazenda para iniciar um arrendamento para cana, o que também vai dar dinheiro, é um contrato. Mas pegaram um patrimônio que entre junho e novembro valorizou 40% e transformaram em outro que no mesmo período valorizou 0,7%. Não é muito inteligente. É imediatismo de ter em mãos o dinheiro que estava em boi. É aí que podemos ajudar, no direcionamento dos rumos estratégicos. O que fazer para o ano que vem, que decisões tomar, como se posicionar. PLANT PROJECT Nº18

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AGRO TREND

GERAÇÃO SOB MEDIDA Novas técnicas de nutrição animal levam a pecuária à era da programação fetal dos rebanhos, que permite determinar características dos bezerros a partir da alimentação dada às mães

foto: Shutterstock

Por Evanildo da Silveira

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Ciência

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a pecuária do século 21, um bezerro pode ser o que sua mãe come. Ou então, dito de maneira mais técnica, o que uma vaca de corte ingere durante sua gestação pode ser determinante para o desempenho futuro de seus bezerros em termos de produção de carne e gordura. Pesquisadores das universidades federais de Viçosa (UFV) e Lavras (Ufla), ambas em Minas Gerais, desenvolveram uma tecnologia, que usa alterações e suplementação alimentares em determinados períodos da prenhez, para manipular e reprogramar o desenvolvimento fetal. Os resultados preliminares do trabalho mostram que filhotes das mães que passaram pela técnica produziram 9,3% mais carne do que aqueles que não receberam o tratamento. O zootecnista Mateus Pies Gionbelli, um dos líderes do grupo de pesquisa em Nutrição Gestacional e Programação Fetal, que reúne cientistas das UFV e Ufla e de outras instituições brasileiras e estrangeiras, diz que o trabalho envolve tratamentos alimentares, ou seja, diferentes condições nutricionais durante alguns períodos específicos da gestação, principalmente nos terços médio e final dela. “São nessas duas fases que se dá o recrutamento de células indiferenciadas (aquelas que poderão dar origem a qualquer tecido) para formar a grande massa de células de tecido muscular e esquelético e adiposo do bezerro”, explica. “Esse conjunto delas formará o potencial de produção de carne e gordura em locais estratégicos da carcaça durante a vida adulta do animal.” A pesquisa visa manipular a trajetória

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de desenvolvimento do indivíduo por meio da nutrição da mãe durante a gestação, acrescenta o também zootecnista e outro líder do grupo, Marcio de Souza Duarte, da UFV. “Utilizamos, nesse caso, estratégias alimentares e compostos bioativos, como vitamina A e selênio e aminoácidos específicos como metionina e arginina, adicionados à dieta da matriz, em pontos estratégicos da gravidez, com o objetivo de programar o desenvolvimento do tecido muscular do feto”, explica. Nos sistemas de produção tradicionais, explica Gionbelli, as vacas se alimentam menos durante a estação seca e a natureza adaptou a programação ao desenvolvimento dos fetos dessas matrizes para se tornarem indivíduos capazes de viver em ambientes de escassez de nutrientes. “Isso causa alterações na forma como o DNA é expresso”, explica. “Ele não é alterado, mas sua expressão sim. Os problemas nutricionais e ambientais que a mãe enfrenta na gestação podem causar algumas modificações na estrutura que protege o DNA, de forma a expor mais algumas de suas regiões ou bloquear outras. A consequência é que alguns genes podem ser mais expressos e outros menos.” Isso acarreta um risco de subdesenvolvimento de tecidos musculares e esqueléticos, que leva à geração de bezerros com menor potencial de produção de carne na vida adulta. “Eles têm uma grande chance de ter menor ganho de peso e rendimento de carcaça e pior qualidade de carne”, diz Gionbelli. “O que nós fazemos, por meio da nutrição materna durante a gestação, é tentar corrigir esses problemas, de modo que a PLANT PROJECT Nº18

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foto: Matheus Luz

expressão do DNA dos fetos em desenvolvimento possa ser maximizada, ou seja, otimizar o que esses animais já têm em seu genoma, para que ao longo da vida eles tenham desempenho compatível com o seu potencial genético.” Com seu trabalho, os pesquisadores buscam gerar progênies que apresentem maior potencial produtivo de tecido muscular, o que renderá ao pecuarista maior eficiência, gerando mais carne por animal. “Ainda, caso seja de interesse do mercado, podemos realizar estratégias que busquem aumentar a deposição de gordura na carcaça e, principalmente, marmoreio, responsável por conferir mais sabor, suculência e maciez à carne e que agrega valor ao produto final”, diz Duarte. De acordo com ele, os trabalhos que o grupo vem realizando ao longo dos anos têm desvendado mecanismos que regem o controle fino do desenvolvimento muscular. Isso inclui como esse tecido, ainda durante a fase fetal, responde a estímulos nutricionais. Tais 46

estímulos participam do controle da expressão de genes por meio de mecanismos conhecidos como “mecanismos epigenéticos”, em que se consegue a realização do controle da expressão de genes sem que ocorra alteração do DNA do indivíduo. Fatores epigenéticos podem ser entendidos como aqueles que alteram a estrutura do DNA, de modo a silenciar ou ativar regiões específicas do genoma, as quais compreendem genes de interesse, responsáveis pelas características fenotípicas que se quer alterar, como o desenvolvimento muscular e adiposo, por exemplo. “Buscamos em nossos trabalhos identificar quando e o que fornecer à matriz gestante para que esse controle epigenético possa ocorrer na progênie”, conta Duarte. “Cabe destacar que algumas dessas alterações são transgeracionais, ou seja, podem se perpetuar em outras gerações advindas da progênie programada durante a fase fetal.” Resumindo, o grupo não faz manipulação genética. “O que fazemos é usar da interface nutrição x genoma”, explica Duarte. “Isso significa que trabalhamos com planejamento estratégico ou compostos dietéticos, que interagem de forma direta com o genoma animal, de modo a controlar quais regiões devem ou não ser ativadas em determinado momento do desenvolvimento fetal.”

Assim, levando-se em consideração que o desenvolvimento do tecido muscular ocorre em grande parte durante a fase fetal, esta é a fase crucial para manipulação do seu desenvolvimento. Aquela em que a intervenção na alimentação da matriz gestante será imposta, com o objetivo de programar a trajetória de desenvolvimento da progênie, dependendo do interesse que se tem. “Ela pode compreender desde a fase embrionária (estágios iniciais de desenvolvimento intrauterino, em que há grande controle da formação de células musculares) até a etapa final de gestação (em que há grande controle da formação de células adiposas intramusculares, responsáveis pela formação de marmoreio)”, diz Duarte. “O que fazemos é delinear estratégias de alimentação, de acordo com os objetivos almejados e, assim, intervimos na trajetória de desenvolvimento intrauterino de modo a atender às expectativas.” Os estudos do grupo de pesquisa em Nutrição Gestacional e Programação Fetal começaram em 2017. Foram produzidos em conjunto pela UFV e Ufla 60 animais com a nova tecnologia, cujo desenvolvimento ainda está sendo acompanhado. “Além disso, temos 100 animais de uma empresa, dos quais uma parcela está sendo avaliada”, conta Duarte. “Os 60 primeiros que


Vacas e bezerros em pesquisas de programação fetal na Universidade Federal de Lavras (Ufla)

suplementadas com proteína (usando pasto de melhor qualidade como forma de manipulação da dieta do meio para o final da gestação) tiveram um aumento de 5% do peso ao desmame”, revela Duarte. “Além disso, aumentaram em 10% o ganho médio diário; em 4% o peso ao abate após a fase de terminação em confinamento; 5% o peso de carcaça e em 19% o conteúdo de gordura de marmoreio, sua carne foi 17% mais macia.” Ao longo do trabalho, o grupo também fez outras descobertas. Uma delas é que a má nutrição da matriz durante a gestação pode limitar o crescimento muscular da progênie, além de programar o tecido muscular para utilizar, prioritariamente, gordura como combustível metabólico para produção de

energia. “Isso, além de comprometer o desempenho do animal (limitar o seu ganho de peso), dificulta ainda o acúmulo de gordura na carcaça/carne dele, o que é prejudicial do ponto de vista econômico”, diz Duarte. De forma contrária, os estudos também indicam que a superalimentação materna durante a gestação tem impacto sobre o controle de genes responsáveis pela gordura de marmoreio, favorecendo a deposição deste tecido na progênie quando submetida à dieta de terminação (alta energia). “Isso traz muitas perspectivas de adoção de manejo alimentar do rebanho, possibilitando tomadas de decisão para que o produtor não tenha surpresas ao submeter o animal ao abate e não obter o produto que se esperava”, explica Duarte.

foto: Daniel Casagrande

estão sendo acompanhados, da pesquisa de 2017, foram divididos em três grupos: um de gestantes que não receberam suplementação com proteína e energia em nenhum momento da gestação; um em que receberam dos três aos seis meses apenas; e outro em que receberam dos seis aos nove meses.” Os resultados observados na progênie foram o aumento do número de fibras musculares na oriunda de matrizes suplementadas no terço médio da gravidez (3 a 6 meses), e de deposição de gordura subcutânea naquela gerada pelas vacas suplementadas no terço final (6 a 9 meses). “A média de peso ao desmame não variou entre os filhos de mães suplementadas no terço médio ou terço final de gestação”, informa Duarte. “O número de fibras musculares foi 16% maior nas crias de fêmeas que receberam suplementos (tanto no terço médio como no terço final) em comparação aos daquelas que tiveram alimentação especial. O que resultou em aumento de 12% na área de olho de lombo de animais gerados pelas primeiras.” Duarte cita ainda os resultados de um trabalho semelhante, realizado por um colaborador do grupo nos Estados Unidos e que foi mais longe, até o abate dos animais – o que não ocorreu com o estudo dos pesquisadores no Brasil. “Animais gerados por matrizes

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foto: Shutterstock

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Lideranรงa


AGRO TREND

A DISRUPÇÃO DOS LÍDERES DO AGRO O maior desafio das mentes à frente do agronegócio, na atualidade, é acompanhar a rápida e abrangente revolução tecnológica do setor e entender como novos e antigos valores humanos moldam esse ambiente de transformação Por Romualdo Venâncio

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er uma grande liderança é bem diferente de ocupar um cargo de liderança. Isso vale para qualquer setor econômico – e mais ainda para o agronegócio, que passa por seu momento mais disruptivo (sim, essa palavra também impacta o universo agro). De um lado, há uma intensa, abrangente e rápida revolução tecnológica que eleva o agro ao mesmo patamar – ou até acima – em que estão diversos outros segmentos. De outro, acontece uma revisão de conceitos que não reconhece o sucesso na lucratividade sem que haja respeito às pessoas. O equilíbrio entre esses dois campos define a coluna dorsal das lideranças que o agronegócio necessita agora e daqui para a frente. Há quem se encaixe facilmente nesse perfil, quem precisará se dedicar mais para chegar lá e, infelizmente, quem resistirá às mudanças. Esse terceiro grupo terá dificuldades para se enquadrar não só no agro, mas em quaisquer ambientes profissionais e sociais, até porque o estímulo para se tornar uma liderança disruptiva deve vir também da própria pessoa. Quem estiver nessa sintonia terá mais chances de avançar.

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Outra consequência dessa transformação: subiu a régua que define a dificuldade da função de headhunter. As consultorias organizacionais têm de ser bem mais criteriosas, mais ágeis e ao mesmo tempo mais pacientes e cuidadosas para encontrar executivos com as competências necessárias e adequadas para esse novo cenário. Principalmente porque grande parte desses profissionais não está preparada para o futuro, segundo o estudo The Self-Disruptive Leader, realizado pela consultoria global Korn Ferry. A pesquisa envolveu dados de mais de 150 mil lideranças corporativas de 18 mercados internacionais (Alemanha, África do Sul, Arábia Saudita, Austrália, Brasil, China, Estados Unidos, França, Holanda, Hong Kong, Índia, Indonésia, Japão, Malásia, México, Polônia, Reino Unido e Singapura), nos segmentos de serviços financeiros e empresariais; tecnologia, mídia e telecomunicações; e industrial. O estudo ainda buscou a opinião de 795 investidores e analistas, dos quais 70% afirmaram que “as pressões de curto prazo tiravam dos líderes a capacidade de promover inovação,


Liderança

digitalização e mudança”. Uma das conclusões do estudo é que as empresas necessitam de lideranças que tenham a capacidade de romper pensamentos, valores e ações que já não combinam com a nova realidade e de se reconstruir. É o que a Korn Ferry chama de líder autodisruptivo. De acordo com a pesquisa, na média global, apenas 15% dos executivos apresentam condições para um desempenho excepcional em um ambiente tão volátil. No Brasil, o número é ainda menor: 13%. Esse índice tão reduzido é uma preocupação para as empresas em todos os campos, sobretudo na gestão das pessoas e dos negócios e nas decisões de investimentos. A verdade é que uma coisa puxa a outra, se a liderança erra a mão no trato com as equipes, há consequências imediatas nas taxas de produtividade, sintomas que não demoram a aparecer para o mercado. Daí em diante vira efeito avalanche. Também por isso é tão relevante o cuidado com o bem-estar e a saúde mental dos profissionais, tanto das lideranças quanto de seus liderados. Embora muita gente reconheça momentos de pressão ou situações de crise como um incentivo à descoberta de soluções inovadoras, é de um cenário bem diferente que vem o melhor estímulo. É o que diz Wander Pereira, o professor de Engenharia de Software que

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criou a disciplina de Felicidade na Universidade de Brasília (UnB). Na conceituada Universidade de Harvard, nos Estados Unidos, essa disciplina já existe há mais de dez anos. “Criatividade e felicidade são coisas indissociáveis, quando você está feliz a criatividade se torna inovação”, afirma Wander, acrescentando que para ser inovador também é preciso ter disciplina e conhecimento. Há quem diga que dentro das corporações as pessoas fazem alianças entre elas, e não necessariamente com a corporação. A análise faz sentido, pois toda relação nas empresas – e em quaisquer instituições – se constrói por meio dos indivíduos. Por mais que colaboradores possam admirar a empresa em que trabalham e se orgulhar de estar ali, é pela relação de confiança e cooperação com os colegas, independentemente do nível hierárquico, que se dispõem a suar um pouco mais a camisa. Sem essa conexão, só mesmo por imposição, algo que vem perdendo efeito, ou por alguma recompensa convincente. Aí reside um grande desafio apontado pelo estudo da Korn Ferry: “A maioria dos líderes não consegue motivar as pessoas de forma eficaz, construir confiança ou tomar decisões e agir de forma inteligente com rapidez o bastante”. Para a consultoria, as habilidades desse líder do futuro devem refletir as dimensões contidas na sigla em inglês PLANT PROJECT Nº18

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ADAPT, que envolve as capacidades de antecipar, impulsionar, acelerar, fazer parcerias e confiar. “Nos últimos 100 anos, os líderes aprenderam que controle, consistência e conclusão são os princípios da liderança empresarial. Mas as mudanças dramáticas no ambiente global fazem com que já não haja um esquema confiável”, diz Dennis Baltzley, líder de soluções globais para desenvolvimento de liderança da Korn Ferry. MOMENTO DE TRANSIÇÃO Para Jeffrey Abrahams, managing partner da FESA Group, consultoria especializada na busca e seleção de altos executivos, é o agronegócio que está disruptivo neste momento, com toda a transformação digital das fazendas, a era do 5G no campo, as inovações de food tech e as mudanças de hábitos e costumes dos consumidores. “Está ocorrendo uma grande mudança que, com mais ou menos intensidade, vai impactar todas as áreas do setor. E acredito que o agro vai andar mais rápido do que a gente imagina”, afirma o especialista em recursos humanos, com vasta experiência nas cadeias produtivas do agronegócio. “Quem não estiver nesse bonde ou nessa vibe de novas tecnologias vai acabar ficando para trás, e a criatividade e a capacidade analítica vêm nesse pacote.” Entre as competências mais 52

importantes para que lideranças do setor acompanhem a atual revolução, Jeffrey destaca a resiliência, a capacidade de leitura de novos cenários e a rapidez de implementação. Segundo ele, para integrar tais características é imprescindível ter vontade de aprender, e aprender rápido, em qualquer idade. “Onde você pode melhorar seus atuais processos para ser mais rápido, mais ágil e mais inteligente? Esse questionamento acontece – e está acontecendo – com as lideranças”, comenta. Outro diferencial importante, na opinião de Jeffrey, é a capacidade analítica de dados para poder lidar com tamanho volume de informações geradas a partir de agricultura de precisão e digitalização, inteligência artificial, algoritmos, machine learning, big data e outras inovações que estão por vir. A turma old school pode apresentar certa resistência, o que é uma postura arriscada para quem precisa, no mínimo, garantir espaço no mercado. Sobretudo em relação à questão digital, pois é como se tivesse de aprender um novo idioma e saber como utilizá-lo de forma adequada. A agilidade e a facilidade para acessar e transmitir dados, o tempo todo, são grandes vantagens do ambiente digital, mas sem controle pode gerar uma sobrecarga e desviar a atenção do que realmente interessa. “É assustador o volume de informações que a gente recebe o dia inteiro. Os executivos

precisam ter filtro e cuidado para não perder o foco do core business, daquilo que é o feijão com arroz e que paga as contas”, alerta Jeffrey. O resultado de tudo isso só será bem aproveitado e duradouro se as lideranças tiverem a capacidade de trabalhar em rede, de compartilhar e trocar informação com seus pares e suas equipes. Mas lidar bem com a relação humana demanda controle do ego. “A vaidade humana é uma coisa impressionante e complicada. É difícil lidar, pois exige autoconhecimento”, comenta Jeffrey. Ele diz que o ego inflado é um grande inimigo dos executivos e que uma boa ajuda para evitar estragos pode vir da intervenção de quem está acima na hierarquia organizacional, mostrando o que está acontecendo e propondo uma nova conduta. Portanto, as lideranças também devem estar preparadas para conduzir outras lideranças. “Se a pessoa não consegue mudar sozinha, precisa fazer terapia, procurar ajuda de um coach, pois aquela postura afeta o ambiente, o ecossistema onde opera.” Trata-se de uma questão inclusive de saúde, pois os níveis de pressão e tensão podem levar a doenças psicossomáticas. Diante de tantas variáveis que influenciam o desempenho de uma liderança em uma agroindústria, um grupo agrícola


ou pecuário e até mesmo uma grande fazenda, poder identificar, com maior assertividade, a pessoa compatível com a função é uma vantagem enorme. Esse ganho passa pela eficiência no processo de assessment, a seleção em si dos profissionais, que envolve entrevistas, análise de competências, testes psicométricos, avaliação da parte cognitiva e da capacidade de planejamento, além da habilidade para lidar e trabalhar com gente. Toda essa bateria dá uma boa ideia de como será o desempenho do profissional. Jeffrey comenta que ainda é possível medir o que chamam de “fator descarrilhador”. “A avaliação pega pontos da personalidade da pessoa que vão tirá-la do eixo, mostrando onde perde o controle e o que pode ocorrer em um momento crítico”, diz. Segundo ele, enquanto entre 80 e 90% das contratações são feitas com base em aspectos técnicos, cerca de 80% das demissões acontecem por questões comportamentais. E se o tema do momento é a disrupção, por que não tratar desse fenômeno dentro do processo de seleção de lideranças? Não há dúvidas de que muita gente gostaria de ter a mesma previsibilidade – ou até mesmo a precisão – de uma análise de DNA para garantir o sucesso de uma contratação, saber desde o primeiro momento se vai ou não dar certo. O executivo da FESA Group faz

uma provocação sobre fatores bioquímicos que podem influenciar o comportamento, e por consequência o desempenho, de uma liderança. “Quanto será a constituição bioquímica de um líder fora de série? Quanto pesa esse tipo de informação? É uma área que acho interessante, poder saber a influência do nível de dopamina e serotonina, por exemplo, pois para estar motivado o profissional precisa de energia, e se estiver fluindo bem a companhia avança”, diz Jeffrey. “Ainda nem tocamos nessa superfície.” PRESENÇA FEMININA A disrupção no agronegócio não se mede apenas pelos avanços tecnológicos, mas também por mudanças de conceitos comportamentais. Tanto que as lideranças femininas estão deixando de ser notícia por uma questão de gênero e cada vez mais ganhando espaço nas manchetes por sua competência. A quarta edição do Congresso Nacional das Mulheres do Agronegócio, por exemplo, realizada em São Paulo (SP), no mês de outubro, recebeu 1,9 mil pessoas, segundo a organização do evento. Participantes vindas de diversas partes do Brasil acompanharam e realizaram várias discussões sobre a contribuição feminina para a aceleração das inovações do agro dentro e fora do País. Há duas décadas, talvez, seria difícil imaginar um encontro como esse.

Para Jeffrey Abrahams, da Fesa Group, lideranças devem ter resiliência, capacidade de leitura de novos cenários e rapidez de implementação. Isso é um pouco do que ele viu, no início dos anos 1980, em Carla Salomão, a primeira agrônoma a integrar uma equipe comercial de campo no Brasil

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Ag

Liderança

Muito mais pelos fortes traços de uma cultura patriarcal do que pela relevância das mulheres no agro, que de uma forma ou de outra está aí desde sempre. Que o diga Carla Salomão, a primeira mulher a integrar, no Brasil, uma equipe comercial de campo no segmento de defensivos agrícolas. Em fevereiro de 1982, ela começou a trabalhar na DuPont para cobrir a região norte do Paraná. Sua primeira entrevista para o emprego foi exatamente com Jeffrey Abrahams. O processo de disrupção, neste caso, começa bem antes da contratação de Carla. Nascida no Rio de Janeiro, filha de um piloto de avião e de uma advogada, era muito bem inserida na alta sociedade carioca, como ela mesma diz. Mas a vontade de “melhorar o mundo” a levou até a Universidade Federal de Viçosa, em Minas Gerais, para cursar engenharia agronômica. “Quis ser física nuclear, pilota, arquiteta, mas por fim achei que a agricultura seria o futuro. Foi uma decisão muito radical para aquele momento, pois minha realidade social era bem diferente”, diz. A oportunidade na DuPont veio assim que Carla terminou sua formação, por isso precisou de extrema dedicação para aprender rapidamente o máximo que pudesse. “Eu procurava suprir a falta de experiência com mais conhecimento. Fui preparada para saber e para estudar, então 54

fui me capacitando pelo método learn by doing”, afirma. Com metas a cumprir e uma rota de quase 400 quilômetros para percorrer entre as cidades de Goioerê e Jacarezinho, traçava os mapas de visitas e saía cortando estrada dentro de uma Belina. Por ser a única mulher naquele trabalho, jovem, com origem puramente urbana, suas visitas às fazendas eram um acontecimento, e Carla soube tirar vantagem de tal condição. “Além de não ser vista como concorrente por outros vendedores, era sempre a primeira a ser recebida pelos compradores. Aquela garota carioca era como um fruto proibido, então eu entrava antes de todo mundo”, diz ela. Mas reforça que jamais teve qualquer problema de descriminação ou foi incomodada. “Eu era uma menina muito bonita, tinha tudo para, no mínimo, ser cantada, mas sempre me respeitaram. Me tornei alguém que eles apreciavam receber, pois agregava, levava informação, novidades, conhecimento.” A inquietação em busca de novas fronteiras levou Carla a outra decisão inusitada: saiu da DuPont para se dedicar ao mestrado em Economia Rural na Esalq/USP, em Piracicaba (SP). Conseguiu uma bolsa e defenderia uma tese sobre sementes e seu pacote tecnológico. O percurso ali foi mais desafiador do que Carla imaginava. Teve de interromper os estudos e retornar ao Rio de Janeiro para cuidar da mãe, que


foto: Shutterstock

havia adoecido e faleceu dois anos depois. Ao retornar para o mestrado, a agrônoma havia perdido a bolsa e decidiu mudar o tema para análise de risco e tomada de decisão. Antes que terminasse a tese, participou de uma seleção para a Vale (do Rio Doce, na época) e foi contratada para trabalhar no Rio. Tocou as duas coisas em paralelo. “Na Vale passei a aprender e a entender melhor o ambiente corporativo. E a ter paciência, pois havia muitas circunstâncias políticas e as tomadas de decisão ocorriam bem distantes do pessoal técnico. Isso me incomodava, pois eu era técnica e dinâmica, queria que as coisas acontecessem”, comenta. Após cinco anos, pediu demissão da Vale para começar uma nova história na holding que se associou à Agrícola Fraiburgo, de Santa Catarina, companhia que mudou a história do mercado

de maçãs no Brasil. “Fiquei dois anos e meio na holding, ainda no Rio, onde criei o conselho de administração, e fui convidada para assumir a presidência da operação no Sul”, diz Carla. A administração da executiva foi sustentada pelo tripé sistema, processos e pessoas. Ela conta que o processo de mudanças em todos os níveis da gestão, começando pela diretoria, durou três anos. “Treinamos as pessoas para que falassem a mesma língua e aprendessem a utilizar as novas ferramentas e os novos sistemas, e essa capacitação acabou exigindo mais inovações”, comenta. “Recuperamos uma empresa forte em volume, mas pouco eficiente, e a tornamos altamente eficiente, gerando produtos de alta qualidade.” Pelo trabalho à frente da Fraiburgo, Carla ganhou notoriedade no setor como um todo, chegando a integrar a

diretoria do Instituto Brasileiro de Frutas (Ibraf) e representar o segmento nacional de maçãs no mercado externo. “Quando achei que já tinha feito tudo o que queria, decidi sair para me dedicar a projetos pessoais e ter mais tempo livre para a família”, diz a agrônoma, que logo se viu diante de seis novas iniciativas. Como a ideia era desacelerar, teve de reduzir bem o leque. Hoje, aos 61 anos bem vividos, Carla mora em Portugal e seu negócio é representar produtores de vinho e azeite locais (e um da Espanha) e administrar a entrada e a distribuição desses itens no mercado brasileiro. Até por isso ainda mantém uma base no Rio de Janeiro. “Também faço a gestão das marcas, verifico a apresentação e a colocação dos vinhos e azeites no importador e nos pontos de venda, saída dos contêineres. Faço isso há 17 anos”, conta a empresária, dona da Azavini, que atribui a satisfação dessa trajetória, entre outras coisas, ao planejamento da carreira e às características que a tornaram uma importante liderança no agronegócio. “Entre os vários tipos de liderança, destaco aquele que é baseado na formação de pessoas, que tem animação e positivismo. Se for centralizadora, não funciona. E não é sempre que se encontra uma liderança assim, pois geralmente são muito impositivas e até medrosas – temem a capacidade dos outros.” PLANT PROJECT Nº18

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Terraços de arroz no sul da China: técnicas replicadas há 1,3 mil anos 56


OS GUARDIÕES MUNDIAIS DA BIODIVERSIDADE Programa criado pela FAO identifica, em diversas partes do mundo, sistemas agrícolas que preservam técnicas ancestrais de manejo e mantêm uma relação sustentável com a natureza

foto: © Agriculture and Food Bureau of Chongyi County

Por Amauri Segalla

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foto: INRAA

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os últimos 17 anos, a FAO, Agência das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura, tem se dedicado a uma tarefa extraordinária: identificar atividades agrícolas que preservam técnicas ancestrais de manejo da terra e que mantêm uma relação sustentável com a natureza. Os lugares reconhecidos com essas características recebem o selo GIAHS, sigla em inglês para Sistema Agrícola Tradicional Globalmente Importante, e passam a ser considerados “guardiões mundiais da biodiversidade”. De certa forma, a chancela GIAHS é a versão agrícola da lista “Patrimônio Mundial da Humanidade”, criada pela Unesco para destacar locais de grande valor histórico, cultural e científico. “O conceito GIAHS é mais complexo do que um local chamado de área protegida”, diz a FAO. “Um GIAHS é um sistema vivo e em evolução de comunidades humanas que, ao longo de gerações, preservam um intrincado relacionamento com seu território. Ele é constituído por paisagens de impressionante beleza que combinam biodiversidade agrícola, ecossistemas resilientes e um valioso patrimônio cultural.” Ao criar a distinção, a FAO não

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estava interessada apenas em conceder um selo de reconhecimento. A intenção maior é aumentar a conscientização sobre a importância desses sistemas agrícolas e estimular ações capazes de preservá-los. Segundo a FAO, eles estão ameaçados por uma série de desafios, incluindo urbanização crescente, mudanças nas estruturas sociais e econômicas, negligência política e falta de incentivos para a sua conservação. Desde 2002, quando o programa foi lançado, 52 locais em 21 países mereceram a honraria. Por enquanto, nenhum projeto brasileiro está na lista, mas o País pode em breve ter um representante no grupo. Trata-se da comunidade de apanhadores de flores da Serra do Espinhaço, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais. Há dois anos, o rigoroso comitê científico da FAO avalia o sistema brasileiro, que passou por várias etapas seletivas que incluíram a análise de um dossiê com dados históricos e a visita in loco dos especialistas das Nações Unidas. A decisão final deverá ser tomada até julho de 2020. Conheça a seguir alguns desses lugares e saiba por que mereceram ingressar no seleto grupo GIAHS.


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Assim, elas têm fácil acesso à água, sem precisar de chuva ou irrigação, e as árvores crescem mesmo em um ambiente hostil. Para evitar que a areia fustigue as palmeiras, elas são posicionadas de acordo com a direção e velocidade dos ventos. A técnica secular transformou a aridez das dunas em uma constelação de jardins, tornando-se um marco das habilidades agrícolas humanas. Quando as plantas prosperam, animais são atraídos para o lugar e, assim, nasce o que

verdadeiramente pode se chamar de oásis. Segundo o governo local, existem atualmente 9,5 mil ghouts moldando a paisagem única de El Oued. CHINA / OS TERRAÇOS DE ARROZ DE HONGHE HANI Poucas atividades agrícolas são tão tradicionais e permaneceram imunes à passagem do tempo quanto os terraços de arroz de Honghe Hani, na província de Yunnan, no sudoeste da China, quase na

foto: Shutterstock

ARGÉLIA / OS OÁSIS DO DESERTO No século 15, agricultores do Vale Souf, na província de El Oued, tiveram uma ideia engenhosa para cultivar palmeiras em pleno Saara argelino, região de recursos hídricos escassos e que frequentemente é atingida por violentas tempestades de areia. As raízes são plantadas próximas do lençol freático, em crateras de 80 a 200 centímetros de diâmetro e 5 metros de profundidade.

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foto: © S.H. Rashedi

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Animais mortos pela febre e a comparação do baço de um porco saudável e o de um que foi contaminado (o maior na foto abaixo): sintomas muitas vezes se confundem com os de outros males

fronteira com o Vietnã. Os primeiros registros do cultivo do grão nas montanhas locais datam de 1.300 anos. Desde então, quase nada mudou. Os hani, como são chamados os moradores da região, desenvolveram um complexo sistema de canais para levar a água abundante das florestas que ficam no topo das montanhas para os terraços logo abaixo. As plantações que ocupam a totalidade das encostas íngremes fizeram surgir um emaranhado de recortes nas montanhas que, de acordo com a posição do sol e da época do ano, formam um conjunto de luzes e cores únicos no mundo. Durante a dinastia Ming (1368-1644), o imperador deu ao povo de Hani o título de “Escultores da Montanha Mágica”. A distância dos grandes centros urbanos e a dificuldade de acesso mantêm Honghe Hani isolada do mundo, 60

como se toda a região tivesse parado no tempo – talvez esse seja o seu maior atributo. IRÃ / TÚNEIS SUBTERRÂNEOS MILENARES Nenhuma atividade consome tanta água quanto a agricultura. Por essa razão, a humanidade foi obrigada a desenvolver ao longo dos séculos técnicas capazes de superar as dificuldades impostas por ambientes inóspitos. Na antiga Pérsia, atual Irã, agricultores ancestrais criaram o qanat, sistema de distribuição e gestão de água nascido no primeiro milênio antes de Cristo. O qanat consiste na escavação de poços verticais que levam água de um local com reservas abundantes para outros mais secos. Entre os poços, são escavados túneis de ligação, através dos quais a água corre pela força da gravidade. Ainda hoje, quase 3 mil anos depois dos


foto: © Shutterstock

JAPÃO / OS DAMASCOS DAS COLINAS A região de Minabe-Tanabe, na província de Wakayama, no Japão, é conhecida pelas encostas com solo pobre e pedregoso. Mesmo assim, é ali que, há 400 anos, cultiva-se o melhor umê (damasco-japonês) do país. As comunidades locais criaram um ambiente perfeito para a produção de umê, organizando a floresta de damascos em torno de taludes que armazenam a água e, assim, estimulam o crescimento das árvores. As abelhas japonesas fazem o resto, com seu incansável trabalho de polinização. O sistema MinabeTanabe é responsável por mais da metade da produção de umê do Japão e a sua produtividade é quase o dobro da observada em outros distritos do país. Além disso, as florestas de damascos contribuem para a reposição de nutrientes do solo e, principalmente, para a prevenção de desmoronamentos nas encostas. A mais recente contagem estimou em 30 mil o número de damascos-japoneses

foto: © GIAHS Secretaria

primeiros registros dos qanats, o processo de escavação dos túneis é manual, feito com ferramentas simples como martelos e talhadeiras. Atualmente, essas estruturas subterrâneas estão presentes em 34 países, a maioria deles na Ásia e África. No Irã, existem 40 mil qanats ativos, que perfazem uma extensão total de 220 mil quilômetros.

nas colinas de Minabe-Tanabe. Todo o pomar é permeado por trilhas que propiciam uma visão panorâmica do desabrochar das flores. MÉXICO / JARDINS FLUTUANTES Os astecas deixaram inúmeros legados para a sociedade mexicana. Na agricultura, o sistema conhecido como chinampa, como são chamados os jardins flutuantes do país, persistem até os dias atuais. Uma

chinampa típica consiste de um conjunto de canais e ilhas onde são cultivados diveros tipos de culturas, de grãos a variedades ornamentais, como flores e bonsais. No início, a ideia era ampliar o espaço de plantio e garantir que houvesse alimento suficiente para os habitantes. A solução encontrada foram as ilhas artificiais: elas são construídas em partes rasas de lagos, com a mistura do lodo e da vegetação. Como os astecas descobriram, as ilhas se tornaram PLANT PROJECT Nº18

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ESPANHA / O SAL DE 200 MILHÕES DE ANOS Visitar o Vale Salgado de Añana, em Álava, na Espanha, significa fazer um mergulho no passado. Ele está assentado em um antigo mar que secou há 200 milhões de anos, mas que deixou marcas profundas que resistiram ao passar do tempo. Nos últimos séculos, incontáveis gerações aprenderam a extrair o sal que ficou depositado nas profundezas dessa imensa área, com técnicas ancestrais de “colheita” que foram cuidadosamente preservadas. A exploração consiste em captar a água salgada que emerge na parte mais alta do vale, transportando-a por um engenhoso sistema de canais acionado por gravidade. Depois de a água ser levada para imensos poços, basta esperar o processo natural de evaporação para que o sal seja, enfim, 62

foto: ©The Añana Salt Valley Foundation foto: ©FAO/David Boerma

ambientes perfeitos para a agricultura. Graças ao contato direto com a água, elas são autossuficientes, não precisando, portanto, de sistemas de irrigação. Como em poucos lugares do mundo, o sistema chinampa provou ao longo dos anos que a coexistência das atividades ligadas ao campo com centros urbanos não só é possível como desejável. No sul da Cidade do México, o lago Xochimilco atrai todos os anos milhares de turistas com sua abundância de ilhas agrícolas.

capturado. Apesar do notável avanço das técnicas agrícolas, os moradores locais repetem exatamente o que os seus antepassados faziam. E isso em plena Espanha, no coração da Europa. QUÊNIA E TANZÂNIA / O POVO QUE INVENTOU A AGRICULTURA SUSTENTÁVEL

O povo massai, que habita partes do Quênia e da Tanzânia, desenvolveu um sistema pastoril que, ao longo dos séculos, se adaptou ao escasso suprimento de água e à falta de disponibilidade de áreas de pastagens. Para otimizar os recursos, os massai combinam a criação de búfalos, cabras e ovelhas com o cultivo de milho e feijão, revezando a exploração do


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solo para não permitir que as pastagens ocupem espaços indevidos, ou que as lavouras saturem as áreas destinadas aos animais. Ou seja: muito antes de as grandes empresas agrícolas falarem em uso sustentável do solo, os massai já faziam isso, sem jamais perceber que, de certa forma, estavam antecipando o futuro do agronegócio. Seminômades, os massai são reconhecidos por sua íntima conexão com a natureza – outra lição que deixaram para as futuras gerações. BRASIL / OS APANHADORES

DE FLORES (EM ANÁLISE PELA FAO) A Serra do Espinhaço, no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, abriga 100 espécies de flores típicas do cerrado. Chamadas de sempre-vivas (porque demoram para perder a coloração mesmo depois de colhidas), elas garantem há mais de um século o sustento das comunidades locais, em sua maioria formada por quilombolas, como são chamados os remanescentes dos antigos quilombos de escravos. A coleta de flores se dá na época da seca e é um grande acontecimento.

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Famílias inteiras vão para o alto da serra e permanecem lá de três a seis meses, combinando a colheita das sempre-vivas com o manejo do gado. Nesse período, residem em lapas, como são chamadas as grutas de formação rochosa características da região do Espinhaço. No alto da montanha, entre uma colheita e outra, as famílias se unem para comemorar sua tradição e até casamentos são celebrados (porque a serra dá sorte, segundo a crença). Agora, os apanhadores de flores esperam ser reconhecidos pela FAO como patrimônios da humanidade.

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VIRADA DO LEITE NA ERA DO BRANDING Nova geração da família Jank prova que a genética continua a ser um grande diferencial da Agrindus. Referência de inovação porteira adentro, a empresa agora avança como nunca do lado de fora na relação direta com o consumidor final Por Romualdo Venâncio, de Descalvado (SP) Fotos Rogério Albuquerque

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A advogada Taís (agachada) e a publicitária Diana até iniciaram uma carreira distante da fazenda, mas a chance de fazer a diferença nos negócios da família as trouxe para perto de novo PLANT PROJECT Nº18

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esmo durante o almoço, Taís mantém os olhos atentos ao celular. É semana de lançamento, e a qualquer instante pode surgir no smartphone alguma mensagem que exija uma ação imediata. É o que acontece, e a leva a consultar, no mesmo instante, seu tio Jorge, o Joca, também à mesa, sobre a entrega de um lote bem específico de produtos que está prestes a sair do laticínio. A expectativa que envolve a pergunta logo vira satisfação com a confirmação de que já está tudo pronto. Mas quem disse que a ansiedade vai embora? Dali a três dias seria apresentada ao mercado a primeira linha em potes da Letti, a marca de produtos frescos da Agrindus S/A, contendo coalhada natural, coalhada com goiabada e iogurte natural. O lançamento aconteceu no dia 21 de novembro, na Casa Santa Luzia, supermercado para consumidores da classe A em São Paulo (SP). Nos últimos dois anos, essa agitação tem sido cada vez mais comum na empresa da família Jank e criado um novíssimo capítulo na história que começou em 1945. O ponto central dessa mudança nos negócios

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é a entrada da nova geração e de um novo sócio, o que trouxe modernidade, profissionalização e sustentação para a operação fora da porteira, além de estabelecer uma conexão direta com o consumidor em uma linguagem atual, atrativa e até divertida. Para que isso acontecesse, também foi essencial oferecer um produto com qualidade, credibilidade, segurança alimentar, sustentabilidade e uma boa história. A nova geração em questão é representada pelas irmãs Taís e Diana, filhas de Roberto Jank Júnior, diretor-presidente da Agrindus, engenheiro agrônomo envolvido desde sempre com a fazenda e que há tempos se tornou uma liderança na pecuária de leite nacional. O irmão Joca, que teve uma carreira na Aeronáutica, é sócio de Roberto e divide com ele a gestão da empresa, que hoje tem 1,8 mil vacas da raça holandesa em lactação e produção diária de 65 mil litros tipo A. A Agrindus é uma das maiores produtoras de leite do País e uma referência em melhoramento genético, qualidade de leite, inovação tecnológica em sistemas produtivos, sustentabilidade,


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A partir da esquerda, Diana, Roberto, Joca e Taís: agora os encontros de família também são reuniões de negócio

conforto animal, entre outros fatores. “Sempre fomos muito inovadores dentro da porteira, nosso ponto mais crítico era como fazer isso para fora dela”, diz Roberto. É difícil imaginar tal limitação por se tratar de uma empresa que produz leite A desde 1998. Mas dali até 2006 a Agrindus utilizava outra marca para o leite e seus derivados. “Entramos no leite A com a marca Salute, que seria uma concorrente nossa no interior de São Paulo. Resolvemos unir forças para ganhar mercado”, afirma Roberto. A Letti surgiu quando os objetivos deixaram de ser comuns – os irmãos Jank não abriam mão de seguir com produtos diferenciados, enquanto o parceiro buscava mais o mercado de itens com pouco valor agregado. A nova marca entrou em operação em 2007, com leite tipo A, iogurte para beber e creme de leite. “Até 2017 a gente vinha trabalhando de forma semelhante ao que era com a Salute, e sempre com muita dificuldade de crescer”, comenta o empresário. Nesses dez anos, até pela dificuldade de Roberto e Joca se dedicarem à marca, a Letti acabou se tornando muito mais uma alternativa para lidar com as oscilações do mercado lácteo. Se o preço do leite estava baixo, a Letti se destacava, do contrário, deixava de ser a melhor opção. “A principal dificuldade era a comunicação. Dentro do setor, eles faziam isso muito bem, tanto que em qualquer faculdade de veterinária ou

zootecnia as pessoas conheciam a Agrindus. Mas não conseguiam falar com o público dos centros urbanos, que não conhece o dia a dia da fazenda”, comenta Taís. Para Diana, o desafio começava um pouco antes: “Costumo brincar questionando que tempo um agrônomo e um militar da Força Aérea teriam para realmente se dedicar a criar e estruturar uma marca, pensar em posicionamento, comunicação e embalagem com uma fazenda inteira para tocar”. MOMENTO DA VIRADA A mudança da operação só começou a acontecer quando as filhas de Roberto passaram a se interessar profissionalmente pelo negócio. Embora tenham crescido na fazenda, em contato permanente com a produção de leite, as vacas e a bezerrada, ao escolherem a formação acadêmica buscaram outros ambientes. O pai agradeceu. “O agro tem um problema sério de sucessão, e acredito que não faz sentido estimular alguém a ficar no negócio só porque é da família. Por isso dissemos a elas que não fizessem ciências agrárias”, diz Roberto, que agora se orgulha de discutir os rumos da empresa com as filhas. “O fato de terem feito faculdades mais amplas e voltado por vontade própria, trabalhando em um setor no qual a gente não atua, acaba sendo um ciclo bem virtuoso de sucessão.” A verdade é que talvez nem fosse preciso o pedido de Roberto

e sua esposa Ana Cecília, a Tita. Taís foi estudar na Escola de Direito de São Paulo da Faculdade Getulio Vargas (FGV). Chegou a trabalhar em escritório de advocacia e no departamento jurídico de uma grande seguradora. Até que, em certo momento da ainda recente carreira, passou a se questionar se o que mais queria na vida era advogar e consultou a família sobre a possibilidade de fazer um teste na empresa. “Meu pai não amou a ideia, mas meu tio achou legal e disse que estavam começando com uma supervisora de vendas em São Paulo e eu poderia iniciar com ela”, diz a advogada. A experiência foi de fato um grande teste. “Comecei como se fosse chão de fábrica, pois fiz toda a parte de tirar pedidos, degustação nos pontos de venda e até arrumação de produtos na gôndola das lojas. Conheci esse processo da área de vendas bem de perto.” Surge então outra figura importante nessa virada, que embora não pertencesse à família Jank, os conhecia bem de perto. Eduardo Eisler, que por dez anos foi vice-presidente de estratégia de negócios da Tetra Pak, acabara de se aposentar e de fundar a E2E Strategy, empresa criada com a filha Einat e o filho Amit. “Ele ligou pra gente e veio um dia almoçar aqui, conversamos sobre projetos e comentei com ele sobre o leite A2, algo que era muito recente. Aí resolvemos fazer esse novo projeto da Letti, capitaneado PLANT PROJECT Nº18

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Abaixo, Joca (à esquerda) foi quem mais incentivou a entrada das sobrinhas no negócio. Ao lado, a embalagem plástica do leite Letti A2 lembrando as tradicionais garrafas de vidro que eram entregues de porta em porta

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por ele no depois da porteira, junto com as meninas”, lembra Roberto. “Mudamos completamente toda a operação do negócio.” O produto A2 foi fundamental para abrir caminho e conquistar a empatia do consumidor final. A maior parte das proteínas do leite produzido pelas vacas divide-se em dois grupos de beta-caseínas: A1 e A2. O processo de digestão de ambas no intestino humano acontece de forma diferente, sendo que muitas pessoas acabam sentindo certo desconforto com a A1, o que não acontece no caso do leite exclusivamente A2. No gado, essa distinção pode ser feita por meio da seleção genética, exatamente por isso 45% dos animais jovens e adultos da Agrindus já são A2A2, e a meta é chegar a 100% do rebanho. Em relação ao leite coletado na sala de ordenha, 35% é A2, o que abastece a linha completa da Letti – todos os produtos da marca são A2. “Sempre soubemos dos nossos diferenciais em termos de controle de produção, rastreabilidade,

alimentos frescos com maior shelf life, mas com o A2 foi a primeira vez que tivemos algo realmente diferente para contar ao consumidor”, diz Roberto. É aí que entra Diana, embora, a exemplo de Taís, também não demonstrasse interesse em seguir carreira no agronegócio. “A gente passou a infância inteira na fazenda, mas eu sempre fui mais urbana”, conta ela. Assim que terminou o colegial (atual ensino médio) ainda no interior, também seguiu para a capital paulista, onde se formou em publicidade pela ESPM. “Sempre gostei muito de moda e até já estava atuando na área. Então tinha mesmo certeza de que não queria trabalhar com a fazenda.” Mais uma vez, é Joca quem faz a diferença na escolha das sobrinhas. “A gente estava de férias, no final de ano, e meu tio me contou sobre o projeto. Tinha acabado de me formar e vi ali uma oportunidade de trabalhar com o que eu realmente havia estudado e com algo que é nosso. Se era para fazer uma virada de mesa com a marca, eu queria estar junto”, conta Diana. Por mais que já pensasse diferente do irmão sobre as meninas fazerem parte do agronegócio, Joca lembra que não foi tão simples se adequar às mudanças. “Em um primeiro momento, é difícil até porque a gente estava investindo em uma área com pouco chão, que não conhece bem e não sabe direito o que vai acontecer”, diz. Mas o


fotos: Divulgação

empresário logo passou a se surpreender com a proporção das oportunidades que se abriram a partir do dinamismo que veio com a atuação de Taís e Diana e da segurança trazida pela experiência de Eduardo, o novo sócio, para fazer um investimento tão arrojado, e que ainda está acontecendo. “Agora percebemos que há um caminho de expansão pela frente.” ESTRATÉGIAS E INVESTIMENTOS Uma transformação como essa pela qual passa a Agrindus não acontece apenas com boa vontade, é preciso botar a mão nos bolsos. No rebanho, a empresa já investiu cerca de R$ 700 mil com análises para obter o DNA de cada fêmea e dos reprodutores, utilizados via inseminação artificial. Já a nova operação recebeu um aporte de R$ 1,8 milhão em comunicação,

branding (construção e valorização da marca), e-commerce e toda a mudança de perfil da empresa e dos produtos. “O investimento ainda está acontecendo, e temos uma curva de retorno da aplicação em um ano e meio ou dois anos, a partir de agora”, afirma Joca. “Vínhamos de um período de crise nos últimos três anos, com queda no volume de vendas. Em um ano, apesar de sairmos de uma base que não era tão elevada, conseguimos um crescimento de 100% na comercialização, o que estabilizou o negócio e agora começamos a retomar.” Roberto reforça o depoimento do irmão lembrando que essa evolução nas vendas é mais significativa do que parece. “Alcançamos esse salto num ano em que o leite cru, principal concorrente da Letti aqui dentro, estava bem posicionado em relação aos anos anteriores.

Mesmo com toda a dificuldade de logística, de entrada em novos pontos de venda, avançamos com preço final acima do dos concorrentes. Isso é uma sinalização muito importante”, diz ele. A nova imagem da marca, valorizando toda a história da fazenda, foi decisiva para essa conquista. Como é o caso da embalagem do leite, uma garrafa PET no formato daqueles vasilhames de vidro da época em as pessoas recebiam o leite na porta de casa. Essa é outra cartada positiva da Letti, a aposta na entrega a domicílio, aumentando a conexão até mais emocional com o mercado. “Conseguimos ampliar nosso público, tanto os consumidores que se lembram bem daquela época, quanto os mais jovens, muito preocupados com as questões do alimento saudável”, comenta Diana, citando o slogan do Letti A2: “O leite como sempre foi”. PLANT PROJECT Nº18

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Ag Perfil

Acertar a qualidade e a quantidade do conteúdo, o tom da linguagem e os meios de comunicação foi primordial para construir o diálogo com os consumidores e o mercado em geral. A começar pelo novo site da empresa, o maniadeleite.com.br, que traz de forma clara, simples e direta informações sobre a história da fazenda, os sistemas de produção, o rebanho, o leite A2, a opção de compra on-line ou a indicação de onde encontrar os produtos. A Letti também ganhou projeção nas redes sociais, com destaque para o Instagram, que é baseado em imagens e facilita e agiliza o acesso aos internautas. Diana ressalta o compromisso com a informação correta sobre o que é o leite A2 e seus benefícios. “É preciso grande cuidado no tom dessa conversa, deixando claro, por exemplo, que o leite A2 não é indicado para quem tem alergia ou intolerância à lactose. Por isso temos feito um trabalho forte com médicos e nutricionistas, para levar uma explicação correta a todos os nossos canais”, diz. Essa precisão nas informações também acompanha as ações de degustação nos pontos de venda. Uma das características mais marcantes na nova comunicação da Letti, para Roberto, é o respeito 70

de suas filhas pela diversidade de escolhas e opiniões do consumidor. Taís e Diana não gastam energia como certamente fariam Roberto e Joca nos episódios recentes de celebridades comentando as atividades agropecuárias sem nenhum conhecimento de causa. “Teríamos batido de frente com um monte de coisa que não concordamos”, confirma Roberto. “E o tema comunicação no agro está muito presente, é muito atual. Em quase todos os fóruns do setor entende-se que há uma grande defasagem no diálogo com o consumidor final. O Agro tem uma história muito bacana para contar, mas não consegue.” No que depender de Taís e Diana, isso não se aplicará à Letti, pois muito da sustentação de sua conversa com o consumidor vem exatamente da história bacana da Agrindus. E elas sabem que há quem não queira consumir leite e derivados. “Esse não é nosso público”, diz Taís. “Se a pessoa não acredita em produtos de origem animal, está tudo bem. O que não pode acontecer é a informação chegar distorcida até as pessoas”, completa Diana. ESFORÇO RECONHECIDO O grande empenho para dar

projeção à marca trouxe respostas interessantes e até inesperadas para a família Jank. Roberto comenta, entusiasmado, que até então não haviam experimentado a sensação de serem procurados por gente de diferentes capitais e outras cidades interessadas na Letti. “Tínhamos uma enorme dificuldade de cadastrar nossos produtos nas lojas, e agora recebemos ligações de Salvador, Manaus, Cacoal, Goiânia, Brasília e Cuiabá querendo a Letti por lá. Mesmo quando explicamos se tratar de produtos frescos, e por isso é difícil atender, insistem dizendo que têm um caminhão vindo para São Paulo e passam para retirar”, conta. A persistência dos novos clientes tem dado resultado: a Letti já chegou à rede Angeloni, em Santa Catarina e Paraná, e ao Rio de Janeiro. Nas principais cidades de São Paulo, a marca é encontrada em lojas como Savegnago, Jaú Serve, Pague Menos, Convém e Hortifruti Oba. Na capital paulista, também no Oba, além de Natural da Terra, Hortisabor, St. Marche, Mambo, Casa Santa Luzia e grandes redes de hipermercados. Se a marca cai no gosto de profissionais da gastronomia, a


ponto de indicarem os produtos, o reconhecimento sobe um degrau. “Quando vemos uma chef superlegal recomendar o leite Letti durante um curso ou uma chef de confeitaria fazer questão de ter Letti entre seus ingredientes, temos a certeza de que o negócio está crescendo. Estão notando que oferecemos produtos diferenciados”, afirma Diana. Agora, se o projeto com o leite A2 rende à família Jank até cumprimentos de uma rainha, aí já é outro patamar. A Agrindus foi premiada pela Fundação Mapfre, como a Melhor Iniciativa no Setor Agropecuário com o tema “Pioneirismo na produção de leite A2 no Brasil”. Em meio a 681 participantes de Europa, Estados Unidos, Ibero-América, África e Ásia, a empresa se destacou pela produção de alimentos frescos e saudáveis associada ao respeito com o bem-estar da terra e dos animais e foi uma das quatro vencedoras. Como a sede da Mapfre fica em Madri, na Espanha, toda a família Jank foi para lá receber o prêmio das mãos da rainha Sofia. Inclusive Isabela, a irmã mais nova de Taís e Diana, que teve uma participação decisiva para essa conquista. Para a inscrição no prêmio, era preciso indicar a inovação e apresentar documentos que a comprovassem, além de um relatório com informações econômicas. “Pedimos a ajuda da Isabela, que trabalha no setor financeiro, para mostrar a

sustentabilidade econômica da empresa e fazer análises de DRE [Demonstrativo de Resultados do Exercício]. Nós três juntas montamos o projeto e enviamos”, diz Taís. “Não tínhamos noção da dimensão dessa história na Espanha, de estar lá com a rainha e um monte de gente, os outros premiados. Uma das iniciativas, por exemplo, é uma empresa que leva comida a quase 1,5 milhão de crianças em 18 países. É uma importância muito grande”, comenta Roberto. No balanço desse novo momento, um dos resultados mais valiosos para o produtor é a satisfação de conseguir capturar, fora da porteira, valor para a operação pecuária, algo que parecia intangível, mesmo com tudo o que era feito porteira adentro. “Sempre buscamos a intensificação da produção, com mais leite e faturamento por hectare; apostamos na verticalização, com marca própria, genética, agricultura mais eficiente, uso sustentável de efluentes”, diz Roberto. Porém, ele assegura que essa satisfação não significa estacionar, e que é preciso continuar buscando inovação, formas diferentes de comunicação e de facilitar a vida do consumidor.

Estar on-line é indispensável na nova fase da Letti, tanto para acompanhar o que acontece dentro da fazenda quanto a movimentação fora da porteira. Na sala de ordenha, as vacas A2A2 entram separadas das demais

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Cultivo da Cannabis a cĂŠu aberto exige o mesmo zelo empregado em outras importantes commodities, inclusive colheita mecanizada 72


AGRO TREND

COMMODITY DO FUTURO Com toda sua aptidão agrícola, o Brasil poderia ser um destaque no bilionário mercado global da Cannabis. Mas para isso é preciso que o plantio seja regulamentado Por Romualdo Venâncio

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Ag Mercado A planta apresenta características agronômicas favoráveis ao cultivo em países de clima tropical, como o Brasil, mas também tem desafios

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uso da Cannabis medicinal ganhou novo episódio no Brasil com a aprovação, pela Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária), do regulamento para fabricação, importação e comercialização de medicamentos derivados da Cannabis spp. Esses remédios só poderão ser comprados com prescrição médica e exclusivamente em farmácias e drogarias sem manipulação. A norma entrará em vigor 90 dias após sua publicação no Diário Oficial da União, ocorrida no dia 11 de dezembro de 2019, e três anos após essa data passará por uma primeira revisão. Trata-se de uma boa notícia para quem faz uso de remédios à base de canabidiol (CBD) e tetrahidrocanabinol (THC), pois pode facilitar o acesso aos medicamentos e, espera-se, até significar uma redução no custo do tratamento, hoje baseado exclusivamente em produtos importados. Já sobre o plantio no Brasil para fins medicinais, industriais ou pesquisa, nada de novo. Pelo contrário, a proposta de regulamentação para essa questão foi arquivada, frustrando, por ora, as expectativas de quem vê a Cannabis como uma promissora commodity agrícola. Não faltam investidores, nacionais e estrangeiros, interessados no negócio, pois, além de se tratar de um mercado global já bilionário e em expansão, o Brasil oferece condições climáticas e agronômicas favoráveis ao cultivo da Cannabis. Há quem acredite estarmos desperdiçando uma grande oportunidade de ocupar uma posição de destaque no cenário internacional, pela possiblidade de cultivar lavouras com alto padrão de qualidade a custos competitivos e pela diversidade de produtos que derivam da maconha. Entre as justificativas para arquivar a

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proposta sobre plantio, a Anvisa cita, por exemplo, o fato de não regulamentar o cultivo de plantas sujeitas a controle especial; argumenta não haver, nos autos do processo do novo regulamento, estudos econômicos comprovando que o plantio da Cannabis spp no Brasil reduziria os custos dos produtos à base da planta; e ainda busca amparo no teor da manifestação de três ministérios – o da Saúde, contrário ao cultivo, e os da Economia e da Justiça, que afirmam ser necessário uma discussão melhor e mais ampla do caso. A julgar pela postura da maior parte dos órgãos governamentais envolvidos com essa questão e pelo ainda forte conservadorismo no Brasil em relação ao assunto, devido principalmente à indevida conexão que se faz entre o uso medicinal e o recreativo, não há perspectivas de mudanças oficiais nessa questão a curto prazo. Ainda que existam variedades de Cannabis para fins medicinais e industriais com níveis de THC abaixo de 0,3%, ou seja, sem efeito psicotrópico, e que já se tenha informações de investigações científicas sobre as possibilidades e probabilidades da planta como agronegócio. De qualquer maneira, o mundo dos negócios, sobretudo o mercado financeiro, já deu sinais claros de que frente a números tão convidativos não ficará de braços cruzados, apenas aguardando mudanças na legislação, o que para muitos é apenas uma questão de tempo. De acordo com o Bank of Montreal, instituição canadense com forte atuação no segmento de Cannabis, o mercado global da planta movimentou US$ 18 bilhões em 2018. O levantamento do banco, publicado em maio de 2019 e amplamente divulgado pela imprensa mundial, ainda estima que esse valor pode chegar a US$ 194 bilhões em


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2026. Isso significa um crescimento de quase 1.000% em um prazo de oito anos. Não por acaso, a fintech Vitreo lançou em novembro de 2019 dois fundos específicos para o setor, o Canabidiol FIA IE, para investidores qualificados (que tenham pelo menos R$ 1 milhão em aplicações financeiras ou certificação técnica aprovada pela CVM), e o Canabidiol Light FIC FIM, para o público em geral. A visão de negócios atraiu também a XP Investimentos, considerada uma das maiores corretoras de valores independente do País, que no mês seguinte lançou o Trend Cannabis FIM, um fundo para brasileiros interessados nesse mercado. O produto é vinculado a um fundo ETF (Extend Traded Fund) listado nos Estados Unidos como ETFMG Alternative Harvest e negociado em bolsa com o código “MJ”. De acordo com a ETFM, corretora responsável pela gestão do MJ, este é o primeiro fundo dos EUA e do mundo a envolver a indústria global de Cannabis, com ações de

empresas direta ou indiretamente ligadas ao processo de cultivo legal, produção, marketing ou distribuição de produtos da planta, inclusive para fins não medicinais. Entram nas opções de investimento até indústrias farmacêuticas que produzem, comercializam ou distribuem medicamentos derivados do canabidiol. MELHOR ESTAR PREPARADO A proposta da Anvisa para uma revisão da nova regulamentação três anos após entrar em vigor é um sinal de que as autoridades reconhecem estar diante de uma situação em transição regulatória. A própria divulgação da agência ao aprovar o texto do regulamento dizia que essa decisão ocorreu “justamente em razão do estágio técnicocientífico em que se encontram os produtos à base de Cannabis mundialmente” e que “as empresas não devem abandonar suas estratégias de pesquisa para comprovação de eficácia e segurança das suas formulações”.

No que diz respeito a não abandonar as estratégias de pesquisa, Sérgio Barbosa Ferreira Rocha nem pensaria de outra forma. Formado em geografia pela PUC Minas e em agronomia pela Universidade Federal de Viçosa (UFV), ele é autor do primeiro zoneamento agroclimático para cultivo de Cannabis para uso medicinal e industrial no Brasil e fundador e supervisor executivo da Adwa Cannabis. A startup que nasceu em 2018, dentro da UFV, desenvolve pesquisas e tecnologias dedicadas à cadeia produtiva da planta. Rocha é um entusiasta do potencial agrícola que o Brasil tem para o cultivo da maconha destinada aos segmentos medicinal e industrial, principalmente pelas condições favoráveis que o País apresenta. E por isso lamenta que a Anvisa tenha enterrado o assunto plantio. “A decisão da Anvisa, do ponto de vista econômico e do agronegócio, não foi boa. Nem sequer permitiram a abertura PLANT PROJECT Nº18

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QUEM JÁ LIBEROU

Com a forte expansão, o mercado global da Cannabis também vai aumentando o número de países com regulamentação, em todo o seu território ou em parte dele, para uso medicinal da planta, para o cultivo e a produção e até para o uso recreativo. Confira alguns deles. ALEMANHA Legalizado uso médico com prescrição. País começa a debater a liberação para uso recreativo, desde que com produção e distribuição controladas. ÁFRICA DO SUL É permitido uso recreativo, mas somente por adultos e em local privado, e pode ser cultivada para uso pessoal.

BRASIL A Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) aprovou novo regulamento para fabricação, importação e comercialização de medicamentos derivados da Cannabis spp. A proposta de plantio foi arquivada pela agência. O uso recreativo continua proibido. CANADÁ Tudo legalizado: cultivo e uso medicinal ou recreativo. Na verdade, o problema do país hoje é que está sobrando Cannabis. Em novembro de

2019, havia 400 toneladas excedentes da planta em estoque. COLÔMBIA Liberado tanto o uso quando o cultivo para fins medicinais. ESTADOS UNIDOS Há liberação do uso medicinal e do recreativo, mas com diferenças entre os estados. Em três deles a proibição ainda é total. URUGUAI Pioneiro na liberação para uso e produção da Cannabis medicinal, inclusive com a comercialização dos medicamentos em farmácias. Para o cultivo em casa, são permitidas até seis plantas por pessoa, ou então por meio de clubes de usuários (grupos com no mínimo 15 e no máximo 45 participantes).

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ARGENTINA O uso médico é legalizado. O único lugar onde o cultivo foi autorizado, também para fins medicinais, é a fazenda El Pongo, uma propriedade pública localizada na turística província de Jujuy. O projeto, que deu origem à empresa estatal Cannabis Avatãra, tem participação da Green Leaf International.

AUSTRÁLIA Legalizado uso médico. Mas, a partir de 31 de janeiro de 2020, somente em Canberra, capital do país, também estará liberado o uso recreativo e o cultivo, com limite de apenas quatro plantas por domicílio (duas por pessoa).

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Legislação brasileira nem sequer considera o plantio da Cannabis para desenvolvimento de pesquisas

para pesquisas, ou seja, nem podemos gerar informações. Acabamos fortalecendo o mercado da Colômbia, que já é exportador. Quanto mais demorarmos para entrar nisso, mais tempo ficaremos dependentes de tecnologia importada”, diz o agrônomo. “Não temos competitividade. Além de deixarmos de salvar vidas, deixaremos de gerar empregos e renda.” Ele conta que na Colômbia são utilizados diversos sistemas, inclusive casas de vegetação só com controle de fotoperíodo para que se tenha vários ciclos o ano todo. Dessa forma alcançam alta produtividade com menor custo. “No Brasil, teríamos um custo semelhante e boa competitividade frente aos colombianos”, avalia. O empresário já teve a oportunidade de apresentar esse panorama da Cannabis como commodity agrícola para o Brasil até na Comissão de Agricultura, Pecuária, Abastecimento e Desenvolvimento Rural da Câmara dos Deputados. “Senti uma resposta positiva, pois estávamos falando de plantio

de Cannabis para uso medicinal e industrial, como produção de fibras e bioplásticos”, afirma Rocha. Entre as possíveis aplicações industriais da planta, o agrônomo destacou, no encontro em Brasília, os setores de óleos essenciais, produtos para cuidado com o corpo, suplementos nutricionais, papel e celulose, têxtil, construção civil e até alimentação animal e produção de cama para bovinos. “Nosso objetivo é gerar informação e desenvolver tecnologia para produção, não fazer pesquisa para ficar na prateleira”, comenta o agrônomo, que diz já ter sido procurado por produtores, agricultores interessados em saber se podem cultivar, quando e como fazê-lo. “Recebemos o pessoal de hortifrúti, grãos e até de lúpulo. Não podemos divulgar os nomes porque nos pediram sigilo. Mas já há uma empresa brasileira que conseguiu liberação para o cultivo com fins industriais.” A companhia citada por Rocha é a Schoenmaker Humako Agri-Floricultura, do grupo Terra Viva, que conseguiu, via decisão judicial, a autorização para

“importar e cultivar sementes de hemp, ou cânhamo industrial, e comercializar fibra, folha e semente, in natura ou após processamento para produção de óleo, no Brasil e também para exportação, para fins de produção de medicamentos, fitoterápicos e suplementos alimentares”, conforme descrito no processo. O documento, inclusive, é enfático na definição de que a variedade em questão, a Cannabis ruderalis, apresenta concentração de THC inferior a 0,3% e por isso não tem efeito psicotrópico. O texto da decisão judicial, assinada pelo juiz Renato Coelho Borelli, da 9ª Vara Federal Cível da Seção Judiciária do Distrito Federal, traz um parágrafo que pode aquecer as discussões sobre o tema: “Quanto ao objeto da presente demanda, utilização do cânhamo industrial, fica clara a omissão do Poder Público na regulamentação do plantio da Cannabis, o que denota claramente ofensa à ordem econômica e à proteção constitucional ao direito à saúde, impossibilitando avanço em tais setores”. PLANT PROJECT Nº18

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VANTAGENS AGRONÔMICAS O nome que Sérgio Rocha escolheu para batizar sua startup é uma referência à Batalha de Adwa, embate ocorrido em 1896 entre etíopes e italianos. Segundo ele, é uma reflexão sobre esse cenário da Cannabis no Brasil, por conta das ótimas condições de clima, solo e relevo e do conhecimento sobre essas características, combinação que aumenta as chances do País na disputa com os concorrentes já mais avançados nessa área. No final do século 19, o colonialismo europeu invadiu e dominou quase toda a África. Apenas dois países daquele continente não sucumbiram a tal domínio: Libéria e Etiópia. Os etíopes protagonizaram um dos mais emblemáticos confrontos daquele período, por surpreenderem e derrotarem as tropas da Itália. De acordo com diversos relatos, os italianos foram derrotados por sua própria soberba, por desconhecerem e subestimarem seus adversários, e porque as 78

forças da Etiópia usaram de forma estratégica tudo o que sabiam sobre as características de clima, solo e relevo de suas terras. O embate ocorrido na cidade de Adwa marcou a primeira vitória de africanos sobre europeus. O estudo desenvolvido pela Adwa Cannabis mostra diversas áreas do território nacional com boas ou ótimas condições para o cultivo da planta, seja para produção de flores, seja para fibras. A pesquisa foi realizada em parceria com a Universidade Federal de Viçosa e teve apoio financeiro da Abrace Esperança, instituição que desenvolve pesquisas com a Cannabis medicinal e apoia famílias que necessitam de tratamento à base da planta. O trabalho foi feito com modelo computacional, até porque legalmente não se pode plantar. “Fizemos uma revisão de artigos e das plantas considerando onde foram domesticadas, e usamos informações topográficas e climáticas, com algorítmos e modelos matemáticos para

realizar as simulações”, explica o agrônomo. O cenário positivo é, na verdade, uma associação de pontos positivos da planta e do ambiente. Por exemplo, a Cannabis é uma planta rústica, com baixa demanda hídrica, o que permitiria o cultivo em regiões mais secas. Por outro lado, seu desenvolvimento depende de luz, o que pode ser facilmente suprido pelas muitas horas de luz solar disponíveis por aqui. Tão importante quanto entender os pontos favoráveis ao plantio da Cannabis é reconhecer os desafios para essa lavoura. Como acontece em todas as commodities cultivadas no Brasil, por se tratar de um país tropical, com calor e umidade, é preciso lidar com uma diversidade de pragas e doenças. “Já foram catalogadas mais de 300 pragas para a Cannabis, a exemplo do percevejo-verde, de lagartas como helicoverpa e mofo-branco”, afirma Sérgio, que acrescenta: “Mas nada que o Brasil não tenha know-how para lidar”.


“Nossos tchês estão embarcando arroz para o país de Frida Kahlo e seu Dieguito Rivera.”

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Ideias e debates com credibilidade

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O arroz, de Frida Kahlo a Ana Pimentel VERA ONDEI Jornalista, coordenadora de comunicação digital da DBO

Nossos tchês estão embarcando arroz para o país de Frida Kahlo e seu Dieguito Rivera. Aquelas bandas também inventaram a barbacoa, o tamale, o taco e o chocolate, como a gente conhece hoje. Ah, e, claro, a tequila e a margarita. No México tem também a horchata de arroz, com canela e amêndoa, a “bebida dos deuses” para maias, astecas e esta que vos fala. Horchata é igual a mate na Argentina, clericot no Uruguai, mocochinchi na Bolívia ou garapa por aqui: em qualquer esquina tem. Mas o México tem pouco arroz, desde a década de 1990, quando neoliberais abriram o mercado sem proteger os coitados dos arrozeiros locais. O grão está por lá desde o século 15 e figura entre os três principais alimentos, junto com o milho e o trigo. Só que os mexicanos produzem 20% do que necessitam e dos cerca de 25 mil produtores de três décadas atrás sobraram menos de mil. Hoje, eles tiram da terra cerca de de 155 mil toneladas por safra. Nós, brazucas, estamos entrando nessa brecha. Porque, no fim das contas, tivemos uma sorte danada. Falta pouco para a safra chegar em 11 milhões de toneladas. Quem diria isso à Ana Pimentel, se ela ainda estivesse aqui? Casada com um cara que fundou São Vicente e se escafedeu pra Índia, a mando da Coroa portuguesa, Ana foi uma das três mulheres que governaram capitanias. E acredite: deu certo. Ela no litoral paulista, as outras em Pernambuco e no Espírito Santo. O fato é que Ana, além de revogar uma lei do marido proibindo os colonos de subir a serra de Piratininga (São Paulo seria fundada dez anos depois), em 1534 iniciou no Brasil o cultivo de 80

arroz. E a gente nunca mais ficou sem ele: “Deus, salve os gaúchos”, digo eu. Dando um spoiler, não foi apenas o grão. Dizem por aí que Ana plantou laranja e criou boi de forma organizada. Mas essas são outras agro-histórias. Dona Ana, uma dama castelhana de alta linhagem, não era uma exímia cooker. O que ela fez foi meter a mão na gestão pra “bagaça” não desandar. Ou seja, foi mandar. Ao contrário de Frida, com uma monumental obra, sensibilidade e suas louquíssimas festas na Casa Azul. E lá tinha arroz. Frida escreveu um livro de receitas que se chamava Livro da Erva Santa. Nele, anotou as receitas de sua vida, as que preparava para Diego e seus amigos. A obra, que foi roubada, é contada em detalhes no livro O Segredo de Frida Kahlo, do mexicano Francisco Haghenbeck. Está lá para quem quiser ler. Certa vez, ao receber Leon Trotsky para uma festa, a fala de Frida em meio às panelas foi assim: “Na cozinha você pode ser ignorante, mesquinho ou descuidado, mas nunca as três coisas juntas, e por isso sempre tem alguém mexendo o arroz enquanto ferve, deixando de por algum ingrediente porque esqueceu de comprar, cozinhando ao mesmo tempo a massa e o molho, fritando a carne com mais óleo que o lago de Chapala, servindo feijão queimado”. Não era o caso dela. Frida tratava o arroz em seus banquetes como pintava A Mesa Ferida, O que a Água me Deu, Diego e Eu. Publicado originalmente no site Agrohistórias: www.agrohistorias.com.br


O agro, o tech e o fator que nos une RICARDO CAMPO Coordenador de inovação da Raízen e gestor do Pulse Hub

Startups são empresas em fase inicial que desenvolvem produtos ou serviços inovadores, com potencial de rápido crescimento, num modelo de negócios repetível e escalável, trabalhando em condições de extrema incerteza. Conhecidas como agtechs, as startups agrícolas têm transformado o cenário do agronegócio, gerando ganhos de produtividade e eficiência para produtores rurais, com oportunidades de negócios para empreendedores e investidores, abrindo novas fronteiras na economia global. Como celeiro do mundo, o Brasil já mostra a sua força nesse setor, agregando às nossas commodities também o capital intelectual das novas tecnologias. Na forma de grãos ou bytes, sacas ou algoritmos, vivemos um momento importante como trendsetters, estabelecendo tendências nessa nova revolução agrícola. Publicado pela SP Ventures, Embrapa e Homo Ludens, com apoio da StartAgro, o estudo Radar AgTech Brasil 2019 identificou cerca de 1.125 AgTechs atuando na agropecuária e produção de alimentos. Divididas em “antes, dentro e depois da fazenda”, o censo deixa claro como essas empresas já configuram um novo e promissor segmento com soluções que vão desde insumos biológicos, passando pela produção monitorada em tempo real até chegar às mesas dos consumidores finais na forma de alimentos funcionais ou proteínas alternativas. Depois de quase duas safras em atividade no AgTech Valley (o Vale do Piracicaba), tenho a oportunidade e o privilégio de interagir diariamente com estudantes, pesquisadores, empreendedores, investidores e produtores rurais. Nesse ambiente conhecido como ecossistema de inovação, é muito gratificante ver como academia, startups e mercado estão ajudando a mudar a dinâmica em que nosso

país passa a exportar tecnologia ao invés de apenas adotar aquilo que nos é entregue. Mas, para que tecnologias emergentes virem produtos de fato e ganhem escala comercial, as boas ideias precisam sair do laboratório e partir para a realidade do campo, progredindo entre barro e poeira, superando as dificuldades estruturais características do meio rural para que ganhem o crédito de produtores ao resolverem suas “dores” e problemas da vida real. No fim das contas, nessa colheita de novidades devemos lembrar do fator humano que nos une, com 99% tech, mas com aquele 1% inquieto, criativo e resiliente. Pivotar ou perseverar, eis a questão! Produzir sem ter a certeza do resultado esperado, tentando mitigar os riscos do clima, das pragas, dos custos dos insumos, do câmbio e preços internacionais, das ofertas e demandas do mercado: ser produtor rural não é nada fácil. Ainda mais quando se tem o peso nas costas de ter que alimentar um planeta faminto, com consumidores cada vez mais engajados e conectados. A projeção mundial de habitantes para 2050, que antes era de 9 bilhões, já chegou a 10 bilhões. E nesse ponto, a visão das startups orientada para a resolução de problemas em modelos de crescimento rápido e escalável é uma grande aliada para o desenvolvimento de uma agropecuária mais eficiente e sustentável. À primeira vista, as AgTechs surgem como fonte de inovação incremental, otimizando rotinas operacionais com impactos que auxiliam em redução de custos e melhores tomadas de decisão. Porém, são essas mesmas startups que ajudam em uma produção ambientalmente mais precisa, com menos aplicação de insumos, melhor uso de recursos naturais e redução da pegada de carbono. Seja pela leitura do solo com sensores, pela liberação de defensivos biológicos por drones, previsão climática por aplicativos, seja por rastreabilidade por blockchain. Junto com o benefício desse pacote “disruptivo”, há ainda o risco de ter que testar e aprender rápido com uma maior tolerância ao erro, num modo de pensar não muito comum ao agro, setor que cobra caro qualquer variação de safra, vendendo a presente aquilo que será colhido apenas no futuro e olhe lá! Parece que aqui encontramos um link que coPLANT PROJECT Nº18

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Fo loca startups e fazendas lado a lado para um modelo de inovação aberta, com atuação em campo para crescer e perseverar. O conhecimento científico precisa ser validado com a experiência prática para ajustes de trajetória e feedbacks valiosos que permitem insights e confrontação com os códigos binários (a linguagem dos computadores) podendo virar fonte de receita na forma de um produto mínimo viável*. Brilho nos olhos, poeira nas botinas Os investidores de risco conhecidos como VCs, venture capitalists, citam o “brilho nos olhos” como uma das características mais marcantes dos empreendedores bem-sucedidos. Também é dos VCs a expressão de que uma ideia não vale nada se não houver capacidade de execução. Num ciclo de construir, medir e aprender, as startups conseguem atuar de forma enxuta para desenvolvimento rápido de soluções considerando os MVPs, a experiência do usuário e as interfaces com as quais ele terá que interagir (UX / UI). Basicamente é aprender fazendo, amassando barro e ouvindo quem vai usar o produto final dentro das porteiras. Se é agtech, estamos falando de agrobusiness e o lucro está na mesa de negociação. No entanto, mesmo que se trate de uma empreitada tecnológi-

Carne saborosa que conserva o Bioma: É possível? MARCELO BENEVENGA SARMENTO Agrônomo, professor universitário, doutor em sementes e produtor rural

Nos campos da região Sul do Brasil existe uma pecuária que conserva os recursos naturais e produz uma carne de excelente qualidade. Essa pecuária é realizada predominantemente em pastagens naturais ou cultivadas e possui alguns diferenciais em relação a outros sistemas pecuários conduzidos 82

ca, o sucesso será consequência de uma relação de pessoas lidando com pessoas, na base da confiança e da cooperação. Com coragem de se lançar ao incerto em busca de resolução, empatia para se colocar no lugar do outro para a percepção de um problema real e de impacto socioambiental. Usando habilidades de comunicação para sintetizar um arsenal técnico de forma simples para traduzir o seu valor. Tendo sensibilidade para ouvir e mudar o caminho quando necessário. Carisma para liderar e reter talentos numa empresa em formação. Paciência para driblar a angústia de se provar como negócio sólido e com muita resiliência para superar um eventual fracasso. São os fatores humanos que fazem a diferença em qualquer negócio e certamente serão essenciais para consolidar as raízes da agricultura 4.0. Se você é um empreendedor com intenção de desbravar o campo com uma nova invenção, saiba que dentro dessa máquina chamada agro também bate um coração! *Do inglês Minimum Viable Product, o MVP é um conjunto de testes primários feitos para validar a viabilidade do negócio, provando a visão inicial da startup e revelando se uma boa ideia corresponde a um produto que atenda às demandas do mercado.

no Brasil e em outros países. A região dos campos sulinos e o pampa gaúcho estão entre as mais importantes em nível global na produção pecuária sustentável a pasto. Além do reconhecido potencial econômico, os campos naturais dessa região possuem multifuncionalidades, podendo, além de prover pastagens, carne, leite, lã e couro, fornecer inúmeros serviços ecossistêmicos como a conservação dos recursos hídricos, controle da erosão do solo, manutenção da flora e da fauna e ainda mitigar a emissão de gases de efeito estufa oriundos de outras atividades antrópicas. Em nível global esse papel multifuncional dos serviços ecossistêmicos é estimado em valores ao redor de 33 milhões de dólares anuais, no mínimo um terço dos quais oriundos de ecossistemas campestres e com atividades pastoris. A criação de bovinos e seu principal produto comercial, a carne, vêm sendo alvo de críticas e apresentados como os grandes vilões da produção de


alimentos em nível global. Nesse sentido, sistemas produtivos que conciliem produção e conservação com relações éticas com os colaboradores, respeito ao bem-estar animal e às leis têm sido demandados pelo mercado consumidor e pelos produtores. Quando esse sistema possui tradição centenária e apresenta atributos qualitativos diferenciados de outros é preciso prestar um pouco mais de atenção nele. A pecuária da região está fortemente associada a um papel cultural que se reflete tanto na culinária como na indumentária, nos costumes e nas artes, mantendo preservada a história do gaúcho ou “gaúcho” nos vizinhos países rio-pratenses. Esse sistema produtivo nos estados do Sul do Brasil é feito desde o século 18 com base na criação de bovinos e ovinos em pastagens nativas, amplamente encontradas pelos colonizadores portugueses e espanhóis ao chegarem à região. Fato este que fez com que os estrangeiros se admirassem da aptidão regional para a criação extensiva de animais. Assim, a atividade com herbívoros tem moldado a vegetação nativa e sustentado fazendas, cidades e inclusive aspectos culturais do gaúcho dos pampas sul-americanos. Os sistemas pastoris e seus principais produtos comerciais, como as carnes bovinas e ovinas, têm comprovadamente vantagens competitivas em qualidade nutricional, bem-estar animal, sustentabilidade e segurança alimentar, podendo resultar em maior valor agregado dos produtos gerados em comparação a outros sistemas pecuários. Em trabalho realizado por pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul e do Instituto do Coração de Porto Alegre demonstrou-se que a carne oriunda de bovinos criados em campos nativos ou melhorados (com adubação e espécies forrageiras) possuem menos colesterol total, menos gordura saturada, boa relação entre os ácidos graxos ômega 6 e ômega 3, riqueza em ferro, zinco, elevado teor de ácido linoleico conjugado e maior quantidade de antioxidantes naturais como o betacaroteno e vitamina E. Embora a população desconheça essa informação e a mídia insista em condenar a carne bovina, esses trabalhos mostram que produzida nessas condições naturais ela é tão saudável quanto peixes famosos como salmão e atum. Em relação às emissões de gases de efeito estufa, o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas (IPCC, na sigla em Inglês) divulgou, há alguns anos, dados que condenam a pecuária brasi-

leira por ser um dos maiores emissores de gases de efeito estufa, particularmente o metano, resultante das fermentações entéricas dos animais. Entretanto, em trabalhos realizados pelo grupo da pesquisadora Teresa Cristina Genro, da Embrapa Pecuária Sul, em Bagé, e de outras instituições como UFRGS, têm demonstrado que a pecuária feita com base em campo nativo ou pastagens cultivadas não apenas emite bem menos CO2 e metano em relação aos dados divulgados pelo IPCC como ainda sistemas pastoris captam grande quantidade de carbono atmosférico, emitidos tanto pelas próprias atividades agrícolas como por outras atividades humanas, resultando em muitos casos de balanço neutro ou negativo de carbono. Pois é, a pecuária também sequestra carbono. Essas diferenças significativas nos valores obtidos pelos pesquisadores brasileiros e dados divulgados pelo IPCC são explicadas pelo fato de que a pecuária realizada na maioria dos demais países produtores é feita com animais confinados, em pastagens degradadas ou em más condições de manejo pecuário, o que leva a uma alta produção de gases de efeito estufa quando comparadas com a realidade das pastagens nativas ou cultivadas do Brasil. Uma vantagem adicional da produção a pasto é que os animais são criados livres no campo ou pastagens, podendo assim expressar o seu comportamento natural, pastejando, descansando e ruminando, características que vão ao encontro das bases do bem-estar animal global. Nos sistemas pastoris, água limpa e sombra estão disponíveis para os animais no momento que desejarem. A ruminação, processo digestivo natural dos bovinos e ovinos que degrada as fibras vegetais e sintetiza aminoácidos e outras moléculas orgânicas, é essencial ao bom desenvolvimento do metabolismo e resulta em animais sadios e mais produtivos. Os ruminantes são verdadeiras fábricas de produzir carne, leite, couro e lã a partir das fibras e moléculas orgânicas vegetais ingeridas ao pastejar. Todas essas condições dos sistemas pastoris fazem com que os animais vivam naturalmente sem dor, desconforto ou medo. Nesses sistemas há uma relação de simbiose entre os animais e a vegetação. A prática da pecuária se beneficia diretamente da diversidade de plantas que ocorrem naturalmente na região. Os animais dependem da vegetação para comer, se abrigar e ruminar, e a vegetação depende do pastoreio e dos dejetos animais para a ciclagem de nutrientes e outras funções ecológicas. AdicionalPLANT PROJECT Nº18

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Fo mente muitas dessas plantas nativas consumidas pelos herbívoros possuem uma gama de compostos químicos que agem como antibióticos naturais, anti-inflamatórios, cicatrizantes, analgésicos etc. Sistemas produtivos com diversidade de plantas geram animais naturalmente mais saudáveis e uma carne de melhor qualidade. Carne saborosa que além de tudo conserva o

Investimento em inovação MARCO RIPOLI

Ph.D., engenheiro agrônomo, mestre em Máquinas Agrícolas pela Esalq-USP e doutor em Energia na Agricultura pela Unesp. Proprietário da Bioenergy Consultoria, da Energia da Terra, empresa de alimentos saudáveis e investidor da Drinquis

Em um cenário cada vez mais competitivo, consumidores cada vez mais exigentes e com significativas transformações tecnológicas, o setor agropecuário brasileiro já entendeu a relevância de fortalecer seus esforços com inovação para atender essas demandas. Existem oportunidades ao longo de toda a cadeia produtiva do agro: compra/venda de terras, insumos, implementos, maquinário, produção, processamento, armazenamento, distribuição e transporte. Para assegurar o contínuo incremento da produtividade e o fortalecimento da capacidade do produtor de não somente identificar tendências globais, mas também de criar ou moldar essas tendências, é vital o aumento do volume de investimentos estrangeiros no Brasil. O Brasil exporta para mais de 160 países, porém ainda de forma concentrada em um número limitado de produtos agropecuários (na sua maioria commodities). Com o objetivo de elevar os atuais 7% de participação do Brasil no comércio mundial, toda a cadeia produtiva e o governo brasileiro veem positivamente todo investimento voltado para a diversificação da 84

bioma e sequestra carbono é, sim, possível e vem sendo produzida na região Sul do Brasil há centenas de anos. Sejam os pecuaristas familiares, médios ou grandes, todos têm mérito nisso. A região do pampa e os campos sulinos têm um sistema produtivo diferenciado, capaz de ofertar alimentos nutritivos, saborosos, saudáveis, éticos e sustentáveis não apenas para o Brasil, mas também para o mundo.

produção nacional e para a ampliação de mercados. Especificamente sobre investimentos em inovação no campo, o crescimento significativo do setor nas últimas quatro décadas, que posicionou o Brasil entre os líderes mundiais do setor, foi oriundo da junção entre empreendedorismo dos agricultores, pesquisas científicas de qualidade e abundância de recursos naturais. O volume de investimentos da China equivale a aproximadamente dez vezes o que é investido por Índia e Brasil na produção sustentável de alimentos e energias renováveis. O mercado interno brasileiro é formado por 210 milhões de consumidores. Por estarmos inseridos no Mercosul, temos acesso a mais 55 milhões de pessoas nos países vizinhos e a um ambiente de muitas vantagens para se investir no agro brasileiro. Se considerarmos os dois acordos recentes entre o Brasil e a União Europeia e Efta (Suíça, Noruega, Islândia e Liechtenstein) – juntos, esses dois blocos somam mais 510 milhões de habitantes –, o número de consumidores será ainda maior. Não obstante, existem outras negociações comerciais do Mercosul com mercados importantes como Canadá, Japão, México e Singapura, que elevarão ainda mais essa base consumidora. Acessar mercados com clientes de grande poder aquisitivo e derrubar barreiras comerciais significa incentivar os produtores brasileiros para que melhorem seus processos produtivos e, por sua vez, aumentar a competitividade do agronegócio. Devemos continuar buscando um ambiente de negócios saudável, proporcionar acesso ao crédito de forma mais fácil, diminuir a burocracia, ficar atentos às necessidades do produtor rural, buscar melhorias na infraestrutura, independentemente de seu tamanho. O agro não para!


Lavoura de gergelim no Vale do Araguaia (MT): Região tem potencial para se tornar polo da produção de pulses no Brasil

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As regiões produtoras do mundo

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As regiões produtoras do mundo

Campos cultivados em área das Fazendas Nova Geração no Mato Grosso: propriedade virou referência para o plantio de pulses 86


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UMA VITRINE PARA OS PULSES Grãos ricos em proteínas, cobiçados pela indústria de substitutos para a carne, podem ser alternativas valiosas para os agricultores. No Vale do Araguaia, em Mato Grosso, uma experiência mostra que a região pode se tornar um solo fértil para o desenvolvimento dessas culturas

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Por Romualdo Venâncio

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Vale do Araguaia A produtora Carla Mayara Borges: “O veganismo é uma barreira para o mercado de carne ou uma oportunidade para outros segmentos?”

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m 2018, a PLANT PROJECT teve uma participação especial no Global Agribusiness Forum (GAF-18), a maior conferência do agronegócio no Brasil e uma das maiores do mundo. Com um lounge exclusivo, promoveu uma série de debates, ou melhor, bate-papos sobre diversas tendências e oportunidades para a agropecuária nacional. Um deles, o “Diálogo Agro Content”, abordou a importância do storytelling e do branded content como ferramentas estratégicas para a comunicação do agro. Era exatamente o que buscava uma jovem produtora rural do Centro-Oeste. Carla Mayara Borges, hoje com 29 anos, ouvia atentamente os participantes em busca de novas ideias para o segmento de pulses – termo utilizado para definir toda uma categoria de grãos ricos em proteínas, principalmente feijão, ervilhas, lentilhas e grão-de-bico –, sua aposta para agregar valor e expandir os negócios no Vale do Araguaia, em Mato Grosso. Mais do que isso, Carla empunhou uma bandeira em defesa dos pulses como agronegócio de valor no Centro-Oeste. Formada em administração de negócios pela FAE Centro Universitário, de Curitiba (PR), e pela Universidade de Ciências Aplicadas Fachhochschule Münster, na Alemanha, a produtora tem acompanhado bem de perto o comportamento do consumidor final dentro e fora do Brasil para entender as oportunidades mercadológicas para as culturas que pode plantar em sua fazenda. O contato próximo com supermercados e indústrias ajuda a entender quais são os produtos mais procurados e os que acabam sobrando nas prateleiras. Já nas redes sociais, acompanha

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comentários de consumidores e depoimentos de influencers. “É importante sabermos como olhar as tendências de forma geral. O veganismo, por exemplo, é uma barreira para o mercado de carne ou uma oportunidade para outros segmentos do agronegócio?”, questiona. É o caso também do segmento de alimentos produzidos a partir de proteína vegetal, os plant based, mercado que tem crescido exponencialmente, atraindo inclusive investimentos de gigantes da indústria da carne. “Pelas conversas que tenho com o pessoal da indústria, há muito potencial nesse setor. Mas a matéria-prima ainda vem praticamente toda de fora, como ervilhas plantadas na Argentina. Por aqui temos o feijão-caupi, que é uma cultura barata e produz em qualquer lugar. O que falta é desenvolvermos mais pesquisas com opções como essa para de fato podermos utilizá-las”, analisa. Pouco antes do GAF-18, a produtora passara a fazer parte de um comitê nacional de promoção do feijão, dando suporte ao Ibrafe (Instituto Brasileiro do Feijão e dos Pulses). “Temos um plano de melhorar nossa comunicação, como setor, com os consumidores e aproveitar essa tendência de busca por proteínas vegetais para promover o produto nacional, a diversidade que tem o feijão e suas variedades”, comenta Carla. O Ibrafe tem desenvolvido diversas iniciativas que estimulem o desenvolvimento do segmento de pulses, como as ações para celebrar o Dia Mundial do Feijão e dos Pulses, comemorado em 10 de fevereiro; e a realização do Fórum Brasileiro do Feijão – Pulses e Colheitas Especiais, cuja oitava edição acontecerá entre os dias 17 e 19 de


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junho próximos, em Cuiabá. Além de contribuir com a agenda governamental envolvendo o setor, como foi o caso do Plano Nacional da Cadeia Produtiva do Feijão, lançado em junho de 2018. Mais do que isso, transformou sua própria experiência em uma história a ser contada nessa jornada pela valorização das culturas de pulses. Em sua propriedade, Carla destina pequenas áreas para testar diferentes variedades que possam ocupar esses espaços de mercado. Hoje, planta soja na safra e na segunda safra trabalha com uma diversidade de produtos: vários tipos de feijão para exportação, gergelim, milho canjica, milheto e outras culturas de pulses que vão sendo testadas. Com a rotação de culturas, consegue fazer entre duas e três safras por ano e ainda tem produção de gado de corte. “O que fazemos em dois anos e meio, no Canadá ou nos Estados Unidos só seria possível em seis”, compara a administradora. Como não poderia deixar de ser, a escolha das culturas é amparada por dados. Mato Grosso é o estado que mais produz soja no Brasil e o terceiro maior de feijão. De acordo com o acompanhamento de safra da Conab, para o período 2019/20, o Mato Grosso deve colher quase 33,2 milhões de toneladas de soja e 337 mil toneladas de feijão (somando as três safras).

TRADIÇÃO EM DESAFIOS A fazenda que Carla administra em parceria com o irmão agrônomo fica em Nova Nazaré, cidade mato-grossense localizada a cerca de 50 km de Água Boa e a quase 800 km de Cuiabá. Chegaram por ali em 2014, por conta do processo de expansão dos negócios da família, e o plano para os mais de 5 mil hectares era dar continuidade ao que já vinha realizando em outra parte do Centro-Oeste. Ela integra a terceira geração de produtores de grãos que tem origem alemã e que começou sua história no Brasil por Panambi, no Rio Grande do Sul. Em 1983, migraram para Chapadão do Céu, no sul de Goiás, a menos de 12 km da divisa com Mato Grosso do Sul. A adoção de inovações tecnológicas ajudou a terem prosperidade e a se tornarem referência na região. Em 2011, em um processo de expansão e diversificação das atividades, houve mudanças na estrutura dos negócios e surgiu a empresa Fazendas Nova Geração. É desse núcleo da família que Carla faz parte. Entre terras próprias e arrendadas, que somam 9 mil hectares, cultivam soja, milho, sorgo e cana-de-açúcar, seguindo a linha de sistemas com alto nível tecnológico e produtividade elevada. Em Mato Grosso, a história foi diferente. “Mantivemos o padrão de alta produtividade e alto investimento, mas PLANT PROJECT Nº18

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Vale do Araguaia

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não funcionou como esperávamos, pois encontramos no Vale do Araguaia outras condições de clima, solo e janelas de plantio”, explica a produtora. Ela conta que levaram dois anos aprendendo a mexer com o solo naquela região, e ainda ficou o desafio de como trabalhar com eficiência a segunda safra. Os dados sobre as safras de feijão ajudaram a pensar nas estratégias para resolver essa questão, pois cerca de 65% da produção do grão no estado está na segunda safra. Teve início então uma intensa jornada em busca de conhecimento para saber como lidar com as janelas de plantio, o que acabou abrindo portas de oportunidades mercadológicas. Contribuíram para esse movimento a inquietação e a curiosidade que Carla diz já fazerem parte de seu DNA. “Minha família sempre foi muito ousada para testar, experimentar, e eu sempre gostei de estudar, de pesquisar”, diz, acrescentando que faz questão de conhecer e compreender as razões de cada safra ter sido ou não positiva. Naquele momento em que Carla ainda se via frustrada com o desempenho da fazenda, foi 90

seu pai quem jogou uma luz sobre a equação de alcançar lucratividade tendo muito trabalho e pouco resultado. Ele compartilhou com a filha uma mensagem que havia recebido por e-mail sobre a Associação Nuffield Brasil, braço da Nuffield International Farming Network, fundação nascida em 1947 que investe em um programa de formação de jovens líderes do agro global. Atualmente, a instituição conta com cerca de 1,8 mil “nuffieldianos” e 100 investidores de diversos países. Carla participou do programa em 2017 e 2018 e trouxe uma série de conhecimentos que contribuíram para investir nos pulses e para colocar mais tecnologia na gestão de máquinas em sua fazenda, entre outros pontos que enriqueceram sua visão sobre o negócio. Uma das características do programa Nuffield é estimular os participantes a se comunicarem melhor, de forma mais clara, para que possam aproveitar ao máximo cada experiência. Carla chegou a criar um canal no YouTube, o Agrosfera, para compartilhar suas experiências com o agronegócio em outros

países, falar sobre os pulses e mostrar a realização do #seliganafazenda, projeto social que surgiu com o intuito de aproximar e integrar mulheres do agro e acabou se tornando uma vitrine sobre o agronegócio, inclusive com a participação de diversos estudantes. A administradora esteve bastante envolvida nas edições realizadas em Chapadão do Céu e em Água Boa. Esse papel de porta-voz do setor acabou ganhando outras dimensões. O tema de estudo de Carla no programa Nuffield foi uma continuidade da solução que buscava para sua fazenda: “Captura e criação de valor para os grãos do Centro-Oeste do Brasil – Entendendo a cadeia de valor e as oportunidades para a segunda safra”. O trabalho rendeu um detalhado relatório, com um panorama do mercado na região, dados sobre os maiores desafios e as principais oportunidades para essa agregação de valor, envolvendo toda a cadeia, e até estratégias para entrar no e-commerce e demais plataformas on-line. O documento foi entregue em dezembro de 2018, mas grande


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Grãos produzidos por Carla no Centro-Oeste: de olho na demanda por proteínas alternativas

parte desse estudo foi apresentada por Carla em janeiro do mesmo ano na Oxford Farming Conference, realizada na Oxford University, no Reino Unido. A produtora, e agora também palestrante, falou para um público seleto sobre a importância do agronegócio brasileiro e suas principais mudanças, como sua família progrediu no campo com a adoção de inovações e suas pretensões para o setor, sobretudo sendo uma mulher trabalhando com agricultura.

TEMPO DE SEMEAR De tanto pesquisar e falar sobre o assunto, Carla adquiriu conhecimento suficiente para reestruturar o negócio da fazenda e entender como tirar proveito das características da região, sejam fatores climáticos, sejam as

condições de solo. “É tudo cíclico, então não dá para desistir de uma cultura porque não foi bem em uma safra”, comenta. Em vez de desistir, a administradora passou a acrescentar mais opções de culturas no planejamento agrícola da empresa, e foi essa diversidade que passou a equilibrar a resposta econômica. Segundo a produtora, fazem parte desse leque pulses para a segunda safra “o feijãocaupi, com mais de dez variedades que atendem diversos mercados; os feijões consumidos pelos asiáticos, como o mungo e o azuqui; o grão-de-bico, que ainda precisa de melhoramento genético, pois há dificuldades agronômicas para ter melhor rendimento; o gergelim, que pode entrar no segmento de cosméticos; e a lentilha, com estudos já iniciados para o plantio”. Nessa onda de novas possibilidades, Carla inclui até a chia, que não é um pulse, mas trata-se de um grão especial. “Também acredito muito na linhaça. Tanto que já estou buscando sementes para plantar e testar, pois tem um mercado internacional gigante. Tudo o que faz óleo tem grandes oportunidades, até pelo mercado cosmético. Por isso é importante sabermos o que os consumidores estão usando, comprando”, comenta. Naturalmente, quando os resultados começam a aparecer, também surgem olhares curiosos por cima das cercas. Como aconteceu com a família de Carla PLANT PROJECT Nº18

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em Goiás, a fazenda que ela toca com o irmão em Mato Grosso também despertou a curiosidade e se tornou uma referência na região. Por se tratar de uma grande propriedade, que recebe representantes comerciais com frequência, as notícias correm mais rápido. “A gente recebe cada vez mais visitas de gente interessada em saber o que e como estamos fazendo”, diz Carla. A produtora tem aproveitado essa condição para também provocar os produtores a pensarem de maneira mais estratégica em seu negócio, analisando com mais critério as oportunidades comerciais. É inevitável que a atenção fique mais voltada para a lavoura, para as questões agronômica, mas quanto mais conseguirem administrar de forma profissional as questões mercadológicas, menos vão depender de terceiros. Precisa pesquisar o comportamento do mercado internacional, os preços, as exigências, as condições de negociação. “Na fazenda a gente acaba precisando de um departamento específico para cuidar disso.” A visibilidade que a região tem conquistado no segmento de pulses está atraindo exportadores que veem grandes oportunidades nesses grãos. A cidade de Canarana, por exemplo, localizada a cerca de 90 km de Nova Nazaré, se tornou a “capital nacional do gergelim”, pois responde por 90% da produção brasileira, segundo o Sindicato Rural do município. A 92

expectativa da entidade era de que os 65 mil hectares plantados com a cultura renderiam uma produção de meia tonelada em 2019. A maior parte é destinada ao mercado internacional. “Tem vindo muita gente do oeste de Mato Grosso, onde se trabalha mais com milho. Não querem plantar pulses por lá, pois dá mais trabalho”, comenta Carla, referindo-se a vantagens locais como as janelas de chuva e as condições de plantio. Claro que ainda há desafios a serem superados, tanto de ordem agronômica e genética quanto burocrática. Em seu levantamento sobre o segmento de pulses, Carla aponta a burocracia e os altos impostos para investir em uma indústria inovadora como grandes barreiras para o desenvolvimento do setor e de tantas outras atividades promissoras. É aí que entram os fatores que a administradora tem levado em suas palestras, como a importância de o agronegócio se comunicar bem em qualquer circunstância; de trabalhar de forma conjunta e agregadora, aproximando e fortalecendo os elos de produção; a necessidade de maior investimento em desenvolvimento científico, e do acesso a esse conhecimento; e da organização das cadeias produtivas para encontrar e aproveitar as melhores oportunidades comerciais. Parece que, no final das contas, é tudo uma questão de pesquisar, semear, cultivar e colher.


A picape Cybertruck, da Tesla: Os veículos elétricos também encaram a lama

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A grande feira mundial do estilo e do consumo

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A CORRIDA PELA PICAPE NA TOMADA Das startups aos fabricantes tradicionais, todos querem ter a sua picape elétrica. Mas elas ainda são mais um objeto de status do que um veículo para o trabalho Por Evandro Enoshita

Cybertruck: picape da Tesla tem design duvidoso, mas mostra que elétricos também pegam pesado PLANT PROJECT Nº18

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o visual, a Tesla Cybertruck pode até não ter agradado muita gente. Suas linhas retas, que pereciam inspiradas em um filme de ficção científica dos anos 1980, provocaram reações distintas, menos indiferença, como tudo mais que sai da mente e da empresa do bilionário americano Elon Musk. Desta vez, o homem que saiu na frente na corrida dos carros elétricos se propunha a mostrar para o grande público que a disputa com as grandes montadoras deve se acirrar, nos próximos anos, também nas trilhas das picapes movidas a baterias. Com a entrega das primeiras unidades prevista para 2021, o modelo da Tesla será oferecido em três versões (com um, dois ou três motores e opção da tração integral) e preços que vão variar de US$ 39.900 a US$ 69.000. E, mesmo com o evento de lançamento marcado por gafes – como os vidros inquebráveis da picape que se quebraram na demonstração --, o Musk destacou que o modelo já havia recebido 200 mil reservas apenas três dias após a apresentação, em 23 de novembro. A Cybertruck não entra sozinha nessa

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briga. E nem será a primeira a chegar. É um dos oito modelos de picapes elétricas que estão previstos para estrear no mercado americano nos próximos dois anos. Boa parte desses veículos será lançada por empresas iniciantes, como a startup Rivian, que promete para 2020 o modelo R1T com preços a partir de US$ 69.000, e a Bollinger e a sua B2, que custará incríveis US$ 125.000. E, além dessas novatas, algumas gigantes automotivas também se preparam para entrar na briga. Mesmo tendo anunciado um investimento de US$ 500 milhões na Rivian, a Ford já confirmou para 2021 o lançamento de uma versão elétrica da tradicional F-150, que será precedida por uma variante híbrida do mesmo modelo. Mesma época em que a GM pretende apresentar a sua representante nesse segmento. Do ponto de vista técnico, uma picape elétrica faz todo o sentido. Os propulsores a bateria são compactos e entregam 100% de torque desde o momento da partida. Cada modelo pode receber um ou mais motores, atendendo assim, ao mesmo tempo, à demanda por potência e força em


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A F-150 All-Eletric, da Ford: grandes montadoras entram forte na tendência

qualquer aplicação. Já o espaço limitado para a instalação de baterias, algo que restringe a autonomia nos carros elétricos urbanos, não é um problema para esses veículos comerciais leves, que graças ao espaço adicional podem obter um alcance de rodagem equivalente ou até maior que o dos modelos a combustão no mesmo segmento. Mas, apesar dessa corrida dos fabricantes, ainda vai demorar mais um tempo até que essas elétricas com caçamba tomem o espaço das tradicionais picapes com motores a combustão nas aplicações mais pesadas. Para Vitor Klizas, presidente da consultoria JATO Dynamics do Brasil, a popularização, no curto prazo, ainda esbarra no custo elevado da tecnologia e no perfil típico de uso de veículos por parte dos compradores de comerciais leves. Com rotinas de rodagem menos previsíveis que no caso dos elétricos urbanos, essas picapes seriam ainda mais dependentes de uma rede de recargas rápidas fora dos grandes centros urbanos, algo que ainda não é muito comum mesmo nos mercados mais desenvolvidos. “Essa é uma aposta visando o médio e o longo prazo. A tecnologia evoluiu muito nos últimos três anos e deve continuar evoluindo ainda mais. E nos próximos anos devemos ver um número maior desse tipo de veículo rodando. Mas os elétricos ainda podem ser

considerados produtos de nicho. Esbarramos, principalmente, na questão da baixa escala de produção. Só com um grande volume será possível baratear os custos e atingir a um público maior. E isso é algo mais demorado de se resolver, já que depende do processo de transição do modelo de energia. Até lá, a tendência é de que os fabricantes se concentrem nos modelos mais caros”, destacou. Um exemplo dessa estratégia mais focada nos consumidores urbanos endinheirados e aventureiros do que nos clientes tradicionais das picapes principalmente nos Estados Unidos - é a da própria Tesla Cybertruck. Custando US$ 69.900 em sua versão mais cara, com três motores e tração integral, o modelo da Tesla tem uma capacidade de carga de até 1.600 kg. Pouco maior do que a de uma picape média. Enquanto isso, modelos grandes convencionais na mesma faixa de preço, como as topo de linha Ford F-350 Platinum e a RAM 3500, possuem mais do que o dobro dessa capacidade. Se não consegue ser tão forte para o trabalho quanto as concorrentes tradicionais, a picape de Elon Musk quer se destacar pela tecnologia embarcada e pela construção sofisticada, trazendo a opção do sistema de direção semiautônoma, carroceria com painéis e estrutura de aço inoxidável e um desempenho

digno de um modelo esportivo, sendo capaz de acelerar de 0-100 km/h em pouco mais de três segundos. MERCADO BRASILEIRO Por aqui, a primeira representante do gênero será a JAC iEV 330P. Apontada pela marca como a primeira picape elétrica de produção em série no mundo, o modelo chega ao Brasil em abril de 2020. Baseada no modelo JAC T8 a combustão, é fabricada na China atualmente o maior mercado do mundo para carros elétricos. Pesa mais de 3 toneladas e leva até 800 quilos de carga. Atinge no máximo 98 km/h de velocidade e tem uma autonomia de 320 km. Apesar do porte de picape média e da vocação puramente urbana, está entre as picapes mais caras do mercado brasileiro: custa R$ 244.990. Valor que fica abaixo apenas dos R$ 289.990 pedidos pela grande RAM 2500. O modelo faz parte da ofensiva elétrica da JAC no Brasil, na qual a marca pretende lançar quatro veículos de passeio e um caminhão movidos a bateria por aqui até junho de 2020. Segundo Klizas, no caso do Brasil, embora já exista uma demanda para esse tipo de veículo e mesmo com iniciativas como o corredor elétrico ligando as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo, o País ainda segue atrasado em relação aos principais mercados no quesito infraestrutura. A situação deve PLANT PROJECT Nº18

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QUEM É QUEM Dentre as picapes que citamos no começo desta reportagem, dois modelos (o da Ford e o da General Motors) ainda não tiveram detalhes técnicos revelados. As outras seis picapes mencionadas foram prometidas para chegar ao mercado americano nos próximos dois anos, embora uma visita ao site dos fabricantes revele que alguns desses modelos parecem mais prontos do que os outros para se tornarem realidade. Atlis XT Lançamento: 2020 Preço: a partir de US$ 45.000 Propulsão: quatro motores Autonomia: mais de 800 km Capacidade de carga: 2.270 kg Site do fabricante: www. atlismotorvehicles.com/xt-truck Bollinger B2 Lançamento: 2021 Preço: US$ 125.000 Propulsão: dois motores de 623 cv

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Autonomia: 322 km Capacidade de carga: 2.270 kg Site do fabricante: https:// bollingermotors.com/ bollinger-b2/ Hercules Alpha Lançamento: 2020 Preço: n/d Propulsão: quatro motores com mais de 1.000 cv Autonomia: mais de 480 km Capacidade de carga: 1.130 kg Site do fabricante: herculesev.com

Propulsão: quatro motores elétricos com potência de mais de 760 cv Autonomia: mais de 640 km Capacidade de carga: n/d Site do fabricante: rivian.com/r1t/ Tesla Cybertruck Lançamento: 2021 Preço: a partir de US$ 39.900 Propulsão: três motores elétricos Autonomia: mais de 800 km Capacidade de carga: até 1.600 kg Site do fabricante: tesla.com/ cybertruck

Lordstown Endurance Lançamento: 2020 Preço: n/d Propulsão: dois motores de 623 cv Autonomia: mais de 400 km Capacidade de carga: n/d Site do fabricante: lordstownmotors.com Rivian R1T Lançamento: 2020 Preço: US$ 69.900

JAC iEV 330P Lançamento: abril de 2020 Preço: R$ 244.900 Propulsão: um motor com 150 cv Autonomia: 320 km Capacidade de carga: 800 kg Site do fabricante: https://www. jacmotors.com.br/veiculos/ eletricos-detalhes/iev330p#


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evoluir na próxima década, mas ainda assim, estaremos atrás dos principais mercados. Vale a pena apostar hoje em um elétrico? Essa é uma resposta que vai depender muito do perfil de uso do veículo. Mas o presidente da JATO Dynamics destaca que, cedo ou tarde, o consumidor será forçado a fazer essa escolha. “Os veículos atualmente são

construídos sobre plataformas mundiais e existe uma tendência global para a eletrificação. E com isso haverá a escala de produção necessária e a questão da infraestrutura terá que ser resolvida. Vamos lembrar que na década de 1950, no início da indústria automobilística no Brasil, não havia muitos postos. E hoje existem várias grandes redes. O mesmo vai acontecer

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com os elétricos”, completou. O fato é que, quando se trata de alternativas energéticas menos poluentes, no Brasil os motores elétricos teriam ainda uma forte concorrência do etanol, que deve ganhar novo impulso com a entrada em vigor do programa nacional de biocombustíveis RenovaBio. Por aqui, eletrificar a frota pode ter um combustível um pouco diferente.

Líder mundial no uso do etanol na aviação agrícola, Brasil começa (apesar dos obstáculos) a desenvolver a tecnologia que pode levar os aviões elétricos para o agronegócio Por Tiago Dupim

Um dos grandes desafios da indústria aeronáutica neste século é encontrar alternativas para o combustível de aviação. Enquanto empresas da Europa e dos Estados Unidos já voam movidos parcialmente por bioquerosene, o Brasil aguarda os movimentos da indústria, das organizações internacionais que regulam o setor e das produtoras de combustíveis para ingressar

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UM VOO DO ETANOL À ELETRICIDADE

O avião agrícola Ipanema, da Embraer: primeiro movido a etanol pode ser também o primeiro elétrico do Brasil

nessa área. Há nove anos ocorreu o primeiro teste de bioquerosene por aqui em um voo da TAM (hoje Latam). Azul e Gol também já realizaram experimentos com combustíveis sustentáveis. A Gol fez mais de 300 voos em 2014 com uma mistura de 4% de querosene produzido com óleo de milho junto ao combustível convencional. De lá para cá, entretanto, o tema não evoluiu.

Mas nem tudo parece estar perdido por aqui. Em junho último, a gigante Boeing anunciou um investimento de US$ 1 milhão para desenvolver biocombustíveis de aviação no Brasil. Em nota, a companhia informou que a intenção é trabalhar em conjunto com comunidades envolvidas na produção de matérias-primas que podem ser utilizadas na PLANT PROJECT Nº18

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fabricação de combustíveis considerados mais limpos. No ano passado, a empresa já havia feito um outro investimento no setor com o mesmo valor. Se no que se refere à pesquisa de novos biocombustíveis para aviões o Brasil ainda engatinha, em pelo menos um deles pode-se dizer que o País é pioneiro na produção comercial em larga escala: o etanol, utilizado com sucesso no avião agrícola Ipanema. A mesma aeronave já tem um novo encontro marcado com a inovação. Ela foi a escolhida pela Embraer e pela fabricante de motores WEG para testar novos propulsores movidos a baterias. Voar longos percursos com motores elétricos é um dos maiores desafios da indústria aeronáutica e o mercado do agronegócio pareceu para as empresas o cenário ideal para enfrentá-lo. O EXEMPLO DO ETANOL O uso do etanol na aviação começou nos Estados Unidos. Em 1988, pesquisadores da Baylor University começaram a desenvolver a tecnologia no avião biplano Pitts. Em 1996, a norte-americana FAA (Federal Aviation Administration) certificou um Cessna 152 de instrução para operar com combustível renovável, o etanol. Foi quando, pela primeira vez, um avião foi totalmente homologado para funcionar com combustível de aviação que não fosse oriundo do petróleo. 100

Posteriormente, em 2000, foi a vez do avião agrícola Piper PA-25 Pawnee ser aprovado para voar duplamente com 100% de etanol e 100% de gasolina de aviação. Não demorou muito para as primeiras unidades do Pawnee chegarem ao Brasil. “Essa tecnologia não avançou muito nos EUA, pois lá o custo da Avgas é mais baixo. Mas no Brasil o valor do etanol é bem vantajoso e, com a chegada do Ipanema, virou um sucesso absoluto”, diz Thiago Magalhães, presidente do Sindag (Sindicato Nacional das Empresas de Aviação Agrícola). O Ipanema 202A, certificado em 2004, foi a primeira aeronave da série no mundo a voar à base de etanol. O primeiro exemplar movido a etanol foi entregue em 2005 e era, coincidentemente, o milésimo Ipanema entregue. A principal mudança era o motor de 320 HP a etanol. O reconhecimento, especialmente após a inovação e o uso do bicombustível, veio rapidamente. Em 2005, o Ipanema recebeu o Prêmio da Indústria Aeronáutica na categoria de Aviação Geral, promovido pela prestigiada revista britânica Flight International. No mesmo ano, outra importante publicação internacional, a revista norte-americana Scientific American, considerou a novidade uma das 50 invenções mais importantes do ano. No Brasil, o Ipanema foi condecorado com o Prêmio Melhores da Terra, do Grupo Gerdau.

O IPANEMA NO AGRO Como protagonista da economia brasileira, o agronegócio estimula diversos outros setores em paralelo, entre eles o aéreo, que fomenta uma relevante parte dos cultivos no Brasil. As principais culturas que têm demandado aviões agrícolas como o Ipanema são soja, milho, algodão, cana-de-açúcar, banana, citrus, eucalipto e café. Multitarefas, a aeronave também pode ser utilizada para espalhar sementes, controlar vetores e larvas, combater incêndios e povoar rios. Utilizado principalmente na pulverização de fertilizantes e defensivos agrícolas, o Ipanema evita perdas por amassamento na cultura e flexibiliza as operações. Ele faz parte de um mercado ainda pequeno no Brasil, pois a aviação agrícola representa apenas 3% entre as modalidades de aplicação na lavoura. Líder no segmento agrícola com 60% de participação de mercado, o Ipanema recentemente chegou ao importante marco de 1.400 unidades comercializadas desde seu lançamento, nos anos 1970. Lançado em 2015, o modelo atual, o Ipanema 203, ganhou 2 metros de envergadura de asa em relação ao anterior e hooper com capacidade 16% maior em volume. As novas tecnologias permitem a realização da pulverização com precisão submétrica, graças à implantação do altímetro a laser, ao controle de vazão e à abertura


foto: Adobe Stock

e ao fechamento automático dos bicos de pulverização por meio do sistema de DGPS – GPS diferencial. Os winglets (pontas das asas) foram reprojetados aumentando o controle e melhorando a eficiência da pulverização, atingindo a faixa de até 24 metros. A aeronave conta também com novo sistema de ar-condicionado, cinto de segurança com airbag e cabine mais alta, com novo conceito ergonômico. As alavancas de comando e os pedais também foram modificados, com ângulos mais suaves, que permitem controles ainda mais precisos. O baixo custo operacional do motor a etanol conquistou o mercado e, na maior parte do território brasileiro, torna a operação à gasolina desvantajosa. Hoje, basicamente só não compensa voar com etanol nos extremos das regiões Sul e Norte do Brasil. O Ipanema movido a energia renovável tem inúmeras vantagens. Entre elas, garante mais agilidade, eficiência e produtividade. A aeronave

consome em média 95 litros por hora. A gasolina de aviação pode ultrapassar os 10 reais por litro, enquanto o etanol é bem mais em conta. A redução do custo operacional pode ultrapassar os 35% dependendo da região onde opera. Não é só o uso de aviões a álcool que torna a operação no campo mais sustentável do que os veículos terrestres. Enquanto a vazão de aplicação de um trator, por exemplo, gasta, em média, 200 litros de água por hectare para diluir os defensivos agrícolas, a aeronave gasta cerca de 20 litros. A empresa Pachu Aviação Agrícola, da cidade de Olímpia (SP), opera cinco unidades do Ipanema movido a etanol. As aeronaves atendem exclusivamente a cultura de cana-de-açúcar. Segundo Marcelo Amaral, piloto e diretor da empresa, apesar do aumento no consumo em relação à Avgas, é muito mais vantajoso operar com o biocombustível. “Além da questão do preço, tem a logística facilitada também. O etanol é possível encontrar em qualquer cidade e não preciso mandar um

Cessna modelo 152: pioneiro na homologação de aeronave movida a combustível alternativo

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caminhão até o aeroporto para buscar, como no caso da gasolina da aviação”, comenta. Uma resolução da Anac (Agência Nacional de Aviação Civil) permite aos proprietários de aviões agrícolas a pistão movidos a Avgas fazer a conversão para o etanol. Há várias empresas homologadas para realizar esse tipo de serviço. “Até mesmo por conta da crise de abastecimento de Avgas no Brasil, muita gente converteu os aviões para etanol nos últimos meses”, conta Magalhães. Atualmente, 100% da demanda em carteira da Embraer para esse setor é de aeronaves com motor a etanol. FUTURO À ELETRICIDADE Se depender da Embraer e da WEG (uma das líderes mundiais no segmento de motores e geradores elétricos, além de ser uma das empresas nacionais com maior número de patentes e inovações registradas), o futuro do Ipanema passa pela propulsão elétrica. Recentemente, elas assinaram um acordo de cooperação científica e tecnológica para o desenvolvimento conjunto de novas tecnologias e soluções para viabilizar motor elétrico para aeronaves. Como em todo projeto do tipo, após o período de teste das tecnologias em laboratório, uma plataforma aeronáutica precisa ser utilizada para integração e testes de sistemas complexos em condições de operação real. Foi 102

foto: Adobe Stock

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escolhida uma aeronave baseada no Ipanema 203 para realizar a avaliação primária da tecnologia de eletrificação. O primeiro voo do demonstrador movido a energia elétrica está previsto para 2020. De acordo com a WEG, a cooperação entre as equipes de pesquisas vai apoiar a criação de tecnologias inovadoras, que podem gerar oportunidades para evoluções futuras de novas configurações aeronáuticas. “À medida que o projeto evoluir, será possível medir o ganho em sustentabilidade ambiental e de que forma efetivamente será aplicado na prática”, resume Manfred Peter Johann, diretorsuperintendente da WEG Automação. Wellington Carvalho, professor da Ufla (Universidade Federal de Lavras), especialista em tecnologia de aplicação e um dos coordenadores do programa CAS (Certificação Aeroagrícola Sustentável), acredita que, pelo menos na aviação agrícola, a equipe de engenharia tem alguns obstáculos a superar. “A autonomia operacional da bateria em condições de campo é um desafio. Ainda não vejo como recarregar a energia em lugares remotos”, opina.

Amaral vê com bons olhos a possível chegada de motores elétricos ao setor, mas destaca que é preciso desenvolver muito a tecnologia. “A princípio vejo como o maior desafio a questão da troca de bateria para manter a aeronave voando. De outubro a maio, durante o período de safra, chegamos a voar até oito horas por dia. Talvez uma versão híbrida (etanol e elétrica) fosse uma solução. Vamos esperar”, acredita. O processo de eletrificação é uma tendência da indústria aeronáutica mundial e visa atender seus compromissos de sustentabilidade ambiental. De acordo com a consultoria Roland Berger, até o final deste ano haverá mais de 200 aeronaves movidas a energia elétrica em estudo pelo mundo. “Não podemos esquecer que, na aviação agrícola, já temos o drone (veículo aéreo não tripulado) que contribui bastante no dia a dia. Até mesmo por conta da segurança operacional, a decisão da Embraer de escolher um modelo agrícola como plataforma para esse estudo se mostrou bastante acertada. Tudo que venha para inovar no nosso setor é muito bem-vindo”, finaliza Magalhães.


A produtora Hilda Losch, em cena da websérie This Is My Story, da Corteva Agriscience:

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Um campo para o melhor da cultura

foto: Dantas/SEC foto: Michael Divulgação

Empresas do setor colocam documentários para redes sociais no centro de suas estratégias de comunicação

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Um campo para o melhor da cultura

LUZES, CÂMERAS... AGRONEGÓCIO! Da telinha do celular à telona do cinema, as webséries se consagram como formato popular para levar as mensagens do campo para diferentes audiências

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foto: Romualdo Venâncio

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Gravação de episódio da série TOP FARMERS, com o pecuarista Pedro Merola: duas temporadas e exibição também na TV aberta PLANT PROJECT Nº18

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foto: Divulgação

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essão de cinema na capital paulista às 10 horas da manhã de uma terça-feira. Clima de première, convidados lotando a sala. E, quando a luz se apaga, a telona apresenta à plateia um roteiro baseado em fatos reais. O protagonista do enredo: o agronegócio! A exibição especial, realizada no dia 12 de novembro passado, deu nova dimensão às webséries, produções criadas para grandes audiências em telas pequenas de computadores e smartphones, que se transformaram em uma das mais populares ferramentas para levar as mensagens do setor até as cidades. Naquele dia, o evento era para a estreia da websérie O Legado, produzida pela Basf. Mas outras grandes do campo, como Corteva, Bayer ou a fabricante de veículos Mitsubishi, também aderiram ao formato e investem nas séries vídeos distribuídas em redes sociais para se comunicar com diferentes públicos. “As webséries nos ajudam a contar histórias, a mostrar a vida de pessoas que são praticamente anônimas, mas são inspiradoras e reveladoras”, afirma Vivian Bialski, diretora de Comunicação Corporativa da Corteva na América

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Latina. A empresa tem sido uma das mais ativas no uso do formato nos últimos anos, numa estratégia que rompeu as fronteiras brasileiras e ganhou alcance global. No primeiro semestre de 2018, Vivian lançou à sua equipe o desafio de, a partir do Brasil, desenvolver uma série de vídeos que refletisse os anseios das mulheres agricultoras ao redor do mundo – iniciativas como essa em geral são geradas na matriz, nos Estados Unidos. Uma pesquisa global com mais de 4 mil produtoras apontou as dificuldades e as demandas mais frequentes – como a falta de reconhecimento ou mesmo de acesso à educação. Faltava, no entanto, dar rosto e voz a elas. O time brasileiro propôs, então, contar as histórias de dez mulheres, de dez diferentes países, personificando a diversidade e a relevância da presença feminina na agricultura. “Era importante escolher mulheres que atingissem o coração das pessoas, não apenas o cérebro”, diz Vivian. “E que falassem também ao público de fora do agro.” A série This Is My Story (Esta é a Minha História) foi lançada em 15 de outubro,


Comunicação

data consagrada pela ONU como o Dia Internacional das Mulheres Rurais, com dez episódios trazendo personagens de Brasil, Argentina, Estados Unidos, Canadá, Alemanha, África do Sul, Quênia, China, Índia e Indonésia. A narrativa foi desenvolvida no Brasil pela equipe da PLANT PROJECT, que produziu o episódio local e o argentino e criou um guia de filmagem distribuído por Vivian para os demais países. A finalização dos filmes também foi realizada pela PLANT, com versões para Inglês, Português e Espanhol. “O resultado foi acessível e impactante”, comemora a diretora da Corteva. Ela não revela as métricas de audiência da série, mas afirma que elas superaram as expectativas, seja

na repercussão, na geração de tráfego ao site da empresa, seja nos compartilhamentos. “Tão importante quanto os números foi o sentimento de orgulho que ouvimos dos nossos stakeholders.” Animada com o formato, em 2019 Vivian repetiu a dose e propôs a realização de uma continuação para a websérie. Desta vez batizada de Growing the Next Stories (Cultivando as Próximas Histórias), em cinco episódios (Brasil, Estados Unidos, Europa, Indonésia e Quênia), trouxe mulheres impactadas pelos programas criados pela Corteva em resposta às demandas apontadas pela pesquisa um ano antes. Segundo Vivian, com o aprendizado da primeira temporada e o incremento nas

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Imagens da série This Is My Story: produção em dez países para mostrar papel da mulher no agro

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estratégias de divulgação e distribuição nas redes sociais da empresa, houve um crescimento de 30% no número de visualizações e de compartilhamentos. Focada em se comunicar também com o consumidor, a empresa produziu ainda outra websérie com o objetivo de decifrar o caminho dos alimentos, do campo à mesa. A série Follow the Food (Siga a Comida) foi desenvolvida pela matriz da companhia, em parceria com a estatal inglesa BBC e, recentemente, foi veiculada no Brasil pelo Canal Rural.

O foco na humanização dos processos de produção agrícola, diminuindo a distância entre campo e cidade, é uma constante nas produções. Lançada em 2017 nas redes sociais da Bayer, a websérie Ser Agro É Bom também busca contar histórias de produtores espalhados pelo Brasil. Os episódios, com cerca de quatro minutos de duração cada um e tom de documentário, contam a história de fazendas como a Frankanna, no Paraná, de Franke Dijkstra (também retratado na websérie Top Farmers, e Boa Esperança, de

Orcival Guimarães, localizada em Mato Grosso. CAMPEÃO DE AUDIÊNCIA Investimentos em impulsionamento e parcerias de distribuição entre empresas e veículos ajudam a ampliar a audiência das webséries, produzidas com foco nas redes sociais e plataformas de vídeo na internet. Os dois modelos transformaram a websérie Top Farmers em uma das maiores audiências do segmento. Produção original da PLANT, os dez episódios da primeira temporada, em 2018, apontavam

O agricultor Franke Dijkstra, personagem da série Ser Agro É Bom, da Bayer: foco na humanização do campo

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fotos: Divulgação

Filmagens de Mulheres e Homens da Terra, da Encruzilhada Filmes: “Apresentar um Brasil que o Brasil não conhece”

a receita de sucesso de produtores que se tornaram referência em suas culturas. Distribuída nas redes sociais e nos canais de YouTube da PLANT e da Mitsubishi Motors, patrocinadora do projeto, somou mais de 12 milhões de visualizações. Para a segunda temporada, que focou em jovens produtores, a estratégia foi levar os vídeos também para a TV aberta e para a plataforma Now, serviço on demand da operadora de TV a cabo Net, em parceria com o Canal Rural e patrocínio de Corteva e Mitsubishi Motors. Modelo semelhante foi adotado pelo Top Farmer Caio Penido, pecuarista e sócio da

Encruzilhada Filmes, para a série Mulheres e Homens da Terra. Financiada com recursos do Fundo Setorial do Audiovisual, a produção percorre fazendas da região Centro-Oeste para mostrar o cotidiano de agricultores e pecuaristas. Ainda em fase de captação de imagens, deve ser divulgada no segundo semestre de 2020 pelo canal Terra Viva. “Vamos apresentar um Brasil que o Brasil desconhece”, afirma Penido. FICÇÃO NA WEB A websérie O Legado, da Basf, segue em outra direção. Os três episódios trazem uma nova abordagem da campanha de PLANT PROJECT Nº18

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Comunicação Abertura da minissérie O Legado, da Basf: ficção entra em jogo para contar o dia a dia nas fazendas

posicionamento de marca “Basf na Agricultura. Juntos pelo seu legado”. O primeiro passo foi dado em 2018, com um dueto musical e videoclipe interpretados por Luciana Villar e Renato Teixeira. A série, que foi ao ar em dezembro passado em várias plataformas digitais, troca o tom documental pela ficção para contar um momento importante da história de uma família produtora de café. Assim, retrata a realidade de inúmeras famílias brasileiras, e do mundo todo, sobre a sucessão das gerações nos negócios da fazenda. Tanto que uma das convidadas para a sessão de lançamento se emocionou. Simone Martelli, uma jovem de 29 anos, é filha de produtores rurais, administradora de empresas, com ênfase em comércio exterior, e pósgraduada em Gestão do 110

Agronegócio. Após cinco anos atuando na SLC Agrícola, em Porto Alegre (RS), está desde março de 2019 trabalhando com a família na Fazenda Horizonte, em Campo Novo do Parecis (MT). “Eu sabia que em algum momento voltaria para o campo, pois preciso cuidar do que é meu também”, diz ela. “Esse filme parece que é sobre a minha vida. Meu pai vivia me dizendo que precisava de ajuda.” Ela conta que o fato de ser herdeira do negócio não lhe garantiu privilégios, teve de conquistar seu espaço e o respeito de quem já estava na fazenda, tocando as lavouras de soja, milho e algodão. Mas com estudo, dedicação e uma dose de paciência está colocando seu toque pessoal na gestão da atividade. “Meu pai aceita bem as críticas e as sugestões, então não sofro quando ele pede para

explicar mais de uma vez as novas ideias e propostas para nosso negócio”, comenta Simone, lembrando que, na verdade, seu pai espera mesmo que apresente novidades. Para Daniela Ferreroni, gerente sênior de Serviços de Marketing e Sustentabilidade da Basf, está aí um ponto central dessa nova etapa da campanha. “Quando decidimos ser os maiores parceiros do produtor, sabíamos que essa relação tem de passar pelo ser humano, não é apenas uma questão de oferecer ferramentas e soluções”, diz a executiva. O filme retrata bem essa interação, de forma até bem-humorada, pela maneira como as três personagens principais, os pais e a filha, encontram um ponto comum em meio a suas pretensões, sempre respeitando as escolhas de cada um.


Revolução das máquinas: Na lavoura digitalizada de hoje, é preciso entender como os microprocessadores presentes contribuem para o desempenho do maquinário agrícola

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foto: Shutterstock

As inovações para o futuro da produção

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STARTAGRO

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As inovações para o futuro da produção

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OS CHIPS NO COMANDO Ao escolher um maquinário agrícola, produtores não olham mais apenas para potência e capacidade, mas também para os microprocessadores e para a tecnologia embarcada. Afinal, pilotar e colher dados em breve serão as atividades principais das máquinas em campo Por André Sollitto

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Tecnologia

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a hora de assinar um cheque para fechar a compra de um trator ou plantadeira, o que os produtores levam em conta? Durante muito tempo, fatores como capacidade e potência desse maquinário eram decisivos. Afinal, durante quase um século com poucas mudanças drásticas nesses equipamentos, pequenos incrementos eram suficientes para justificar os preços mais altos. Hoje, com a digitalização da agricultura e a iminência da chegada de uma nova era da conexão de máquinas com a tecnologia 5G, esses fatores continuam importantes, mas se tornaram praticamente secundários. Importante mesmo é a capacidade de captura e processamento de dados dessas máquinas, dotadas de computadores e microprocessadores que analisam centenas de atividades simultâneas. Essa mudança faz parte de uma longa e gradual evolução que chega agora à fase da chamada agricultura digital. Essa história passou por alguns momentos decisivos. O lançamento do primeiro arado autolimpante, em 1837, por John Deere, fundador da companhia que leva seu nome, foi um deles. Mais tarde, o motor de combustão interna, a diesel, representou outra grande inovação. “A evolução vem atrelada à necessidade de produzir mais, com menos. Ou seja, literalmente maximizar a eficiência e a demanda, com menores custos”, afirma Emerson Crepaldi, diretor de Novos Negócios da Solinftec, uma das principais empresas brasileiras fabricantes de soluções de agricultura digital. Após essas descobertas, durante décadas a maneira como esse maquinário funciona ficou

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estagnada, sofrendo pouquíssimas alterações. Com as tecnologias embarcadas, uma realidade nos últimos anos, o cenário mudou completamente. “O grande segredo, hoje, não está em medir a capacidade de uma máquina em campo, mas sim como podemos aproveitá-la da melhor maneira possível e pelo maior tempo no campo”, diz ele. Assim como acontece com os computadores pessoais, essa capacidade parte de um bom hardware – e o microprocessador é a peça central do equipamento. Quanto mais poderoso, mais ele é capaz de capturar e processar dados. “Estamos sempre analisando e absorvendo o que há de melhor no mundo de tecnologia embarcada, e os microprocessadores são parte importante no desenvolvimento das nossas soluções de hardware”, afirma Henrique Nomura, head de TI da Solinftec. É a partir desse hardware robusto que as diversas soluções são oferecidas tanto pela Solinftec quanto por inúmeras outras startups e fabricantes de maquinário. “Os dados são o combustível do equipamento”, afirma Felipe Santos, gerente de Soluções Integradas da John Deere para a América Latina. E o maquinário moderno é capaz de capturar uma quantidade impressionante de dados. Existem aqueles relacionados ao próprio equipamento, como sua posição, rastro, o tempo que o motor está ligado, sua rotação e temperatura e a quantidade de horas inativas. Existem ainda os dados agronômicos que dão pistas importantes de produtividade ao fazendeiro. Em uma colheitadeira, é possível saber a vibração das peneiras de limpeza. Em um


Centro de monitoramento na fazenda e tela embarcada no maquinário: os dados capturados são fundamentais para o produtor

pulverizador, é importante ficar atento com a vazão dos bicos. Em uma plantadeira, a distribuição das sementes e a pressão exercida são algumas das informações captadas. Algumas máquinas, como as colhedoras e os pulverizadores, possuem mais tecnologia embarcada que outras, mas todas são bastante inteligentes. Captar todos esses dados é importante, mas é preciso transformá-los em informações que podem ser usadas pelos produtores para tomar decisões. Por isso existem tantas soluções de agricultura digital e gestão da fazenda. E por conta da quantidade e complexidade desses dados, o trabalho de desenvolver essas soluções é feito geralmente em conjunto entre fabricantes de maquinário, startups e grandes empresas de tecnologia. Algumas, como a John Deere, preferem criar a maior parte de suas ferramentas dentro de casa, mas esse modelo

é a exceção. Geralmente, as empresas trabalham em um ambiente de inovação aberta, com máquinas e softwares conversando entre si. Afinal, o objetivo final é um só. “Nenhuma solução de tecnologia na agricultura mundial realmente vira um negócio, ou realmente cresce exponencialmente se não retornar para o produtor algo interessante”, diz Nomura, da Solinftec. A adoção dessas tecnologias, no entanto, ainda não é unânime. O valor dos equipamentos mais modernos ainda é um empecilho para produtores menores, mas não é o único. “A coleta de dados ainda é vista como algo secundário para muitos”, diz Felipe Santos. “Mas em um mundo digitalizado, o trabalho primário das máquinas será a captura de informações no campo.” A falta de conectividade também é uma dificuldade enorme. Existem maneiras de driblar a falta de internet,

capturando os dados de maneira “off-line” e transmitindo todas as informações ao final do dia, quando o maquinário retorna à sede. Não é a maneira ideal, e o produtor perde a capacidade de tomar decisões em tempo real. Operadoras de telecomunicações, fabricantes de máquinas e grandes empresas do setor têm se debruçado em busca de soluções – e as dificuldades em resolver essa questão foram tema de uma reportagem de capa da edição #15 da PLANT. Enquanto essas barreiras estão sendo transpostas, já é possível vislumbrar os próximos estágios da evolução das máquinas. A automação já é uma realidade em algumas culturas, graças a startups que colocaram opções no mercado muito mais rápido do que se imaginou. Mas as grandes fabricantes estão correndo atrás da tecnologia. A John Deere, por exemplo, apresentou um trator autônomo na feira Agritechnica, realizada na Alemanha em novembro. A grande vantagem é que o equipamento é também elétrico, o que aponta para uma tendência no futuro. Sem motorista, elétrico e capaz de capturar quantidades enormes de dados: esse é o maquinário agrícola do futuro. O papel do produtor será transformar tudo isso em decisões que aumentem a produtividade. PLANT PROJECT Nº18

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YES, NÓS TEMOS AGTECH Aceleradoras e fundos de venture capital estrangeiros passaram a operar no Brasil de olho nas startups do agro e mostram o rápido amadurecimento da inovação no campo Por André Sollitto

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xistem diversos elementos necessários para o desenvolvimento de um ecossistema de inovação, mas um deles é fundamental, independentemente das características da região, do setor produtivo ou do perfil dos empreendedores: os recursos financeiros. Sem investimentos, as soluções simplesmente não saem do papel. O ano de 2019 marcou a chegada de diversos fundos de investimentos internacionais ao Brasil, que desembarcaram por aqui de olho em agtechs, apontando para o início de um novo ciclo de amadurecimento do ecossistema agtech no País. O caso mais emblemático é o do grupo japonês SoftBank. Neste ano, o mais proeminente fundo do planeta anunciou a criação do Vision Fund 2, com US$ 108 bilhões – ainda maior que o já impressionante Vision Fund, com US$ 100 bilhões. O objetivo é investir em startups promissoras. E criou ainda outro fundo, bem mais modesto, com “apenas” US$ 5 bilhões, exclusivo para a América

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Latina. Desde então, fez diversos aportes importantes na região: em empresas de logística, como a Rappi e a Loggi, em fintechs e em outras empresas de destaque, como a Buser e a QuintoAndar. O grupo também dedicou R$ 500 milhões para outros fundos de venture capital da região, uma estratégia para diversificar seus investimentos. Lá fora, no entanto, o SoftBank viveu momentos de tensão com a WeWork, plataforma de escritórios compartilhados que tentou abrir seu capital, teve que voltar atrás, e ficou sem dinheiro. Em meio às polêmicas e às análises atentas dos investidores sobre o potencial da empresa, o CEO, Adam Neumann, foi obrigado a renunciar. O caso parece distante da nossa realidade, mas indica que o SoftBank será mais cauteloso em seus investimentos em 2020, inclusive na América Latina. O agro, no entanto, já foi indicado por André Maciel, diretor da operação brasileira do fundo, como um setor que desperta a atenção – não


Investimentos

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O grupo japonês SoftBank e o economista Kieran Gartlan, do Yield Lab: fundos e aceleradoras estão de olho no agtech brasileiro

por acaso, representantes do SoftBank no Brasil passaram a ser frequentadores assíduos de eventos do ecossistema agtech brasileiro. E o que o SoftBank faz, bem como as áreas em que atua, servem de exemplo para outros fundos e investidores. “É um gatilho. Não é o único, mas tem um papel bastante importante”, diz o investidor Mitsuru Nakayama, japonês radicado no Brasil. As startups brasileiras estão trabalhando há anos em busca de soluções para áreas importantes, como o agronegócio e o mercado financeiro. No caso das agtechs, houve uma explosão no número de empresas: o Radar AgTech 2019, maior mapeamento já feito no setor, apontou 1.125 startups em funcionamento no País. O que mudou no cenário macro para justificar esse boom e a chegada dos fundos estrangeiros? “Os juros estão baixando e há um interesse muito maior por investimentos alternativos”, afirma Kieran Gartlan, economista irlandês responsável por cuidar da operação da Yield Lab no País. E o setor agtech se apresenta como uma opção bastante interessante. “Principalmente pela facilidade de mostrar seu potencial e pelo tamanho do mercado”, diz ele. Fundada em 2014 em St. Louis, nos Estados Unidos, a aceleradora Yield Lab chegou ao Brasil em 2019. Focada em startups do agronegócio, ela desenvolveu um programa regional para a América do Sul. Gartlan e sua

equipe se dividem entre São Paulo e Piracicaba, mas prestam atenção na movimentação em outros polos de destaque. Em agosto, o Yield Lab anunciou o primeiro investimento em uma startup brasileira, e a selecionada foi a agfintech TerraMagna, criadora de uma plataforma que reduz os riscos para quem quer investir no agro, oferecendo um monitoramento seguro. O Yield Lab não foi o único desembarque estrangeiro de 2019. A Plug and Play, badalada aceleradora americana, já atuava no Brasil por meio de sua plataforma de investimentos, mas neste ano passou a contar com um escritório físico em São Paulo e lançou outras vertentes de seu modelo de negócios no País, incluindo aceleração e um programa de inovação corporativa. Lá fora, ela atua em 16 verticais, de saúde a mobilidade urbana. Para a operação brasileira, decidiu começar com as fintechs

e com agfoodtechs. “Estamos em busca do próximo unicórnio do agro”, diz Francisco de Frutos, diretor da área aqui no Brasil. “O ecossistema brasileiro ainda não está maduro, mas em vias de se tornar”, afirma Bruno Gaspar, analista de empreendimentos da Plug and Play. “O Brasil está desenvolvendo uma mentalidade sobre o capital de risco, entendendo que é preciso ter inteligência para investir o dinheiro em várias startups. É preciso entender que o retorno chegará daqui a cinco, dez anos, e que é necessário fomentar a inovação aberta.” A movimentação não fica restrita a esses três fundos. Fundado pelo japonês Nakayama, o Brazil Venture Capital surgiu como um fundo que se dedicava às startups em estágio inicial. “Em meados de 2014, ninguém olhava para esse estágio. Os fundos existentes só viam empresas mais maduras”, afirma ele. Ele percebeu

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Investimentos

O PERFIL DE CADA FUNDO SoftBank Principal fundo de investimentos no mundo, o grupo japonês levantou US$ 108 bilhões para o Vision Fund. Tem uma visão mais generalista, mas investe apenas em empresas mais maduras. Sua atuação na América Latina ficou focada em fintechs e startups que causaram um grande impacto em outras áreas, mas já indicou que o agronegócio representa um setor interessante. Os aportes são sempre grandes, passando das centenas de milhões de dólares. Plug and Play Fundo americano de tese mais generalista, trabalha com 16 verticais nos Estados Unidos. No Brasil, inaugurou um escritório e começou a operação com foco em fintechs e agfoodtechs. Os investimentos são feitos em startups em estágio inicial, e o ticket médio fica em torno de US$ 100 mil.

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Entenda como cada fundo olha para as agtechs e quais são as características buscadas antes de o investimento ser feito

Yield Lab A aceleradora de origem americana se dedica exclusivamente às agtechs. O ticket médio também fica em torno de US$ 100 mil. No Brasil, o único aporte feito até agora foi na TerraMagna, mas o fundo atua também em outros países da América Latina. Brazil Venture Capital O foco é em startups em estágio inicial, com produtos ou serviços preliminares prontos para serem testados no mercado, e no formato B2B. Inicialmente, olha para os setores de marketing, saúde, serviços financeiros e educação, mas seu fundador, Mitsuru Nakayama, já afirmou que o agronegócio é uma vertente com potencial.

SPVentures Após ter surgido com um perfil mais generalista, a empresa passou a se concentrar em agtechs que causem impactos positivos na cadeia de produção. Acaba de levantar recursos para um novo fundo, o AgVentures II. GV Angels Como o nome já indica, o fundo formado por ex-alunos da FGV faz investimento anjo e seed em empresas com produto pronto, validação de mercado e alguma tração relevante. O ticket vai até R$ 600 mil. Poli Angels Também formado principalmente por exalunos da Escola Politécnica da USP, o fundo faz aportes em startups em estágio inicial. O objetivo é fomentar o empreendedorismo de jovens engenheiros por meio de investimento anjo e mentoria especializada.


Mitsuru Nakayama, do Brazil Venture Capital, e Bruno Gaspar, da Plug and Play: a chegada de novos fundos de investimento aquece o ecossistema de inovação

o potencial do Brasil e decidiu se instalar no País. “O mercado é muito grande. Então, se você acertar, o retorno é enorme. Além disso, não é preciso ter tecnologia de ponta para fazer diferença. Basta ver o exemplo da 99. Há o que chamo de ponto ótimo entre concorrência e potencial de mercado”, afirma Nakayama. Hoje, ele ajuda a fazer a ponte entre os ecossistemas brasileiro e japonês, organizando eventos, e diz ver muito potencial não apenas no agro, mas em fintechs e healthtechs. Esses fundos novatos no Brasil se unem a outros, com mais experiência. É o caso da SP Ventures, que surgiu com uma pegada mais generalista, mas em pouco tempo mudou seu perfil e se tornou o primeiro fundo com foco em agtechs do Brasil. Recentemente, o cofundador Francisco Jardim anunciou que estava levantando recursos para o fundo AgVentures II, dedicado apenas a agtechs e foodtechs. O valor total não foi divulgado, mas a Basf anunciou um aporte de US$ 4 milhões.

Outros exemplos incluem ainda fundos menores dedicados ao capital somente, como o Poli Angels e ao GVAngels, formados, respectivamente, por ex-alunos da Poli e da FGV. Eles têm demonstrado interesse no agro. A Poli Angels fez um aporte na IDGeo, que desenvolve sistemas de gestão de lavoura, e a GV Angels, na FishTag, uma plataforma que conecta produtores e compradores de pescado. UM ECOSSISTEMA MAIS MADURO A chegada dos fundos de investimento estrangeiros aponta para um desenvolvimento muito mais completo do ecossistema. Outro fator de maturidade é a quantidade de hubs que estão surgindo. A cidade de Piracicaba, conhecida como AgTech Valley pela presença do Pulse, hub de inovação da Raízen, e da EsalqTec, a incubadora da Esalq, ganhou o reforço do AgTech Garage, que abriu suas portas em abril e já lançou a primeira edição de seu programa de aceleração. A cidade de Cuiabá ganhou, recentemente, o AgriHub Space, inaugurado no início de dezembro com o objetivo de se tornar referência em inovação aberta na região. Outras iniciativas incluem o Habitat Floema, no Rio Grande do Sul, que quer se tornar um laboratório de soluções para o agro, e o Conexa Hub, em Goiânia. “Há uma verdadeira onda de espaços como esses sendo inaugurados”,

diz Kieran Gartlan. Londrina, no norte do Paraná, também estruturou um ecossistema completo, unindo as expertises de produtores locais com a presença de centros de pesquisas como o da Embrapa Soja, um forte ambiente acadêmico e um tradicional polo de TI. Acabou sendo reconhecido pelo Ministério da Agricultura como o primeiro Polo de Inovação Agro do País. “Desde que chegamos ao Brasil, estive mais vezes em Londrina do que no Rio de Janeiro”, afirmou recentemente Francisco de Frutos, o espanhol que comanda a operação da Plug and Play por aqui. O efeito é cumulativo. Os hubs atraem as empresas, que passam a se engajar mais com o universo de startups. O AgTech Garage, por exemplo, estabeleceu seu programa de aceleração a partir das demandas dos parceiros corporativos, e formatos semelhantes têm sido adotados em outras iniciativas. “Isso ajuda o investidor que vem de fora a entender por que há tanto barulho em agtech”, diz Kieran. “Da mesma maneira, se olharmos para o passo anterior, do investidor anjo, veremos como a atuação dele dá ainda mais tranquilidade aos investidores, que podem aplicar o dinheiro sem pensar tanto no básico”, afirma o economista. O cenário é favorável e tem tudo para transformar 2020 no ano em que a inovação brasileira no campo se tornará um exemplo para o mundo. PLANT PROJECT Nº18

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FERNANDO DE NORONHA E A ARMADILHA DO PATINETE Po r Pl i n i o N a s t a r i

O MIT avaliou emissões de gases do efeito estufa de diferentes alternativas de mobilidade e concluiu que os patinetes elétricos emitem muitas vezes mais CO2 equivalente por passageiro do que os atuais ônibus a diesel. Essa é uma constatação intrigante, que contraria o senso comum e causa surpresa à legião de usuários que pensam estar agindo de forma sustentável utilizando patinetes elétricos. É o mesmo erro que está por trás da lei estadual aprovada no estado de Pernambuco prevendo que no território de Fernando de Noronha seja vedada a entrada, a partir de 10 de agosto de 2022, e a circulação e

permanência, a partir de 10 de agosto de 2030, de veículos equipados com motores a combustão interna. Presume-se que a intensão seja utilizar energia elétrica de origem fotovoltaica ou eólica, e não aquela gerada pela usina térmica atualmente em funcionamento na ilha, que infelizmente queima óleo diesel para gerar eletricidade, o que contraria completamente o espírito de preservação daquele precioso patrimônio ecológico-ambiental. Mesmo que no futuro os carros elétricos que sejam levados à ilha utilizem apenas energia solar ou eólica, é preciso que o almejado benefício seja cotejado em relação a

outras alternativas, como a do uso do etanol em veículos convencionais, híbridos ou elétricos capazes de utilizá-lo. O etanol já é considerado e reconhecido como fonte de energia em transporte extremamente limpa e deve ter a sua pegada de carbono zerada em breve, à medida que o diesel usado nos caminhões de transporte de cana e nos tratores e colhedoras seja substituído por biometano produzido a partir de resíduos da cana. Portanto, é fundamental que a legislação preveja critérios absolutamente científicos na priorização, ou eventual limitação, ao uso de combinações de motorização e energia para transporte.

Plinio Nastari é presidente da Datagro, e representante da sociedade civil no Conselho Nacional de Política Energética (CNPE).

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e planejamento de longo O RenovaBio, o novo prazo. O resultado, Plano Nacional de como não poderia deixar de ser, Biocombustíveis, é a criação empregos. concebido node âmbito do Muitos empregos. Não é à Conselho Nacional de toa que qualquer análise Política Energética, que ou pesquisa realizada por entra em pleno vigor especialistas na área de neste iníciohumanos de 2020,aponta eo recursos Rota 2030, programa o agronegócio comode um modernização e pujantes dos setores mais eficiência na indústria no oferecimento de automotiva, são os oportunidades de trabalho. Para citar marcos regulatórios apenas alguns dos aprovados para induzir exemplos de mais óbvios, a produção profissionaislíquidos nas áreas combustíveis e de tecnologia agrícola, o desenvolvimento e gestãode ambiental, adoção tecnologias zootecnia, agronomia, automotivas na direção engenharia de alimentos de etc., maior eficiência não ficam (menor consumo) se desempregados energética quiserem.e do reconhecimento da Para quem não é do capacidade de cada ramo, pode parecer que fonte de energia empregos no agronegócio promover estão apenas descarbonização. relacionados comAa legislação no produçãoaprovada agrícola ou parlamento federal, pecuária. Mas essaeé uma parte da suaapenas regulamentação, história.que Na os verdade, uma preveem terça parte. Quando critérios a serem falamos em agronegócio, considerados na precisamos lembrar certificação dos e entender que existe produtores de todo um complexo combustíveis sejam segmento produtivo e de

serviçosem à montante baseados normas e à jusante da produção internacionais primária. estabelecidas pela ISO.

Ou seja, à montante, As existe metasum deformidável universo de empresas que descarbonização para o atuam de forma direta ou setor de combustíveis indireta na produção de aprovadas CNPE e insumos, pelo implementos atémáquinas 2029 preveem que a agrícolas. participação do etanol E, à jusante, temos no também consumo de outra combustíveis do ciclo impressionante gama de Otto passe doque nível atividades, envolvem o armazenamento, observado em 2019, de escoamento, 45,9%, para cerca de beneficiamento, 55% em 2029. Isso industrialização, significa que o Brasil já distribuição, exportação substitui praticamente etc. Em resumo, há 46% de toda a sua empregos de toda a sorte, gasolina por etanol, com para quase todas as grandes benefícios em categorias profissionais, termos de redução de baseados nos seguintes emissão de material alicerces: gestão x particulado, produção xcompostos aromáticos contidos industrialização x na distribuição. gasolina, formaldeídos e smog fotoquímico, e No entanto, existem significativo impacto alguns requisitos básicos para que se esteja positivo à saúde e apto a entrar para o mundo do redução de gastos com agronegócio. Um deles é a internações hospitalares. disposição morar em Tudo isso tempara trazido cidades médias ee menor sofrimento pequenas do interior, maior longevidade à especialmente nas regiões população pela redução que detêm o maior de potencial doenças de pulmonares, crescimento

na produção câncer e outrasagropecuária, doenças, como o caso do sem falaré do enorme Centro-Oeste, do Nordeste impacto na redução da e da região Norte.do Apenas emissão de gases umaestufa, pequena parte dos efeito e dos empregos do agro está benefícios sociais, localizada nas econômicos e degrandes cidades. E, mesmo assim, segurança energética predominantemente na área relacionados ao seu uso. de tecnologia e serviços. Além disso, da mesma

Desconsiderar forma que os essa demais realidade, além ser segmentos da de economia inconsistente a brasileira, o com agro precisa política pública de nível de especialização, de todas as naturezas e de àtodos os federal, pode levar tipos,armadilha seja em nível mesma do técnico, seja em nível de graduação patinete. ou de pós-graduação. Com esses dois elementos básicos, mais uma boa dose de interesse e iniciativa, as oportunidades se multiplicam, os salários estão em expansãoe a rapidez de crescimento nas carreiras é impressionante. E será com essa mentalidade e essa dinâmica, que o agro brasileiro buscará em um futuro próximo, a liderança mundial. Um “AgroAbraço” a todos!

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